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PERFEITO
Paulo Moreira1
uma poesia “tão tesa, tão endurecida, tão formalzinha” (p. 8). Os poetas con-
temporâneos reunidos na antologia caminhariam, na opinião de Fabre, na di-
reção oposta buscando
2Participaram de Caos Portátil os poetas Elisa Andrade Buzzo, Bruna Beber, Rod Britto, Sergio Cohn, Bruno
Dorigatti, Camila do Valle, Angélica Freitas, Izabela Guerra Leal, Augusto de Guimaraens Cavalcanti, André
Monteiro, Elza de Sá Nogueira, Ana Rusche e Virna Texeira. A coletânea latinoamericana Caos Portátil contava com
a participação brasileira de Cohn, Freitas, Beber e do Valle.
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um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
que não usam contraceptivos
cabem as senhoras católicas
militando diante das clínicas
às 6h na cidade do méxico
e cabem seus maridos
em casa dormindo
cabem cabem
sim cabem
e depois vão
comprar pão
uno de los mejores poemarios publicados por jóvenes en los últimos años, cuya
sustancia radica en ser una poesía sumamente depurada, en la que la autora toca las
cosas más concretas sin ser prosaica, enlazando referencias clásicas y facturas poéticas
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muy nuevas, que muestra erudición en muchos temas y despliega con soltura una
enorme variedad de recursos expresivos (Milenio, Marzo 21, 2013).
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Partido dos Trabalhadores. Além da Bolívia e do Paraguai, os Abramos brasi-
leiros acabam lançando raízes no México quando o antropólogo Marcelo
Abramo [pai de Paula] repete o pai no gesto do autoexílio e evita assim o des-
tino trágico de outros militantes ou simpatizantes de movimentos de esquerda
estudantil na ditadura civil-militar.
Fiat Lux transforma toda essa história familiar – que pode ser lida em
prosa nas memorias de Lélia Abramo [Vida e Arte, 1997] ou nos testemunhos
à revista Teoria e Debate, coletados em Rememória — Entrevistas sobre o Brasil do
Século XX [1997] – em matéria poética, buscando uma arquitetura rigorosa que
combina altíssima voltagem poética com uma grande e rara qualidade narra-
tiva. Significativamente, Paula leva a linha narrativa até a menção ao exílio do
pai em “Marcelo, 1968” (69-74). Ao contrário, portanto, do espetáculo egocên-
trico dos selfie, gosto de pensar que temos aqui uma contraproposta: uma es-
pécie de unselfie no qual Paula conta obliquamente a história dos seus ances-
trais sem nunca chegar a si mesma, tomando como mote o conselho das cartas
de Fúlvio escritas no exílio: “No mires hacia adentro” (35, 70).
A voz poética centra atenção, portanto, não em si mesma, mas no conflito
inevitável entre os personagens com a inflexível disciplina capitalista no chão
da fábrica, com a brutalidade estúpida do fascismo na rua, com a hipocrisia
dos liberalismos, com o autoritarismo sufocante do comunismo ortodoxo e
com uma forma de opressão fundamental que é muito brasileira e mexicana:
a fome. Esse combate dramatiza a necessidade de preservar o desejo de uma
vida melhor e o livre-arbítrio de escolher entre fazer ou não fazer e tem sua
figura mais marcante em Angelina – personagem fundamental que abre e fe-
cha o livro –, empregada doméstica que trabalha numa cozinha “casi pasillo”
“breve y requemada” [p.11]:
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de su abuela.
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nove entre os muitos exemplos espalhados pelo livro em que a imagem do
fósforo que se acende une o sensível concreto ao inteligível num casamento
feliz:
prende un cerillo
no me gusta esta falta esencial del pobre modo
préndelo
como si uno a sí mismo nunca se imperara
como si para imperarse fuera necesaria
rutinaria y filosa la escisión
préndelo
lo prendo y qué hago luego [p. 11]
la palabra cerillo
algo tiene de breve y fricativa
dos o tres dedos que se unen la palabra
fósforo
algo dice de incendio pequeñito [p. 24]
prende un cerillo
pero ¿si el cerillo no enciende
lo que debe
no inaugura la pausa nocturna
de las velas o el atarantado
bullir en los sartenes?
¿qué es lo que debe
encender un cerillo
durante el rápido cumplimiento de su estrella
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cuántos alumbramientos
que duran lo que la llama
transitiva
del cerillo
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los cerillos alumbran
como los partos pero aquí
muchas vidas a un tiempo
conjugadas
cajita de fósforos estos escritos cajita
donde mi cuerpo se asienta
donde asentado
imagina su cuerpo
de fábulas [p. 53]
seu forno e com os quais Angelina acenderá seu fogão, o fósforo justapõe o
sublime bíblico e o prosaico da propaganda moderna:
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mente à morte todos os sobreviventes do hotel. O refrão da ca-
nção tem dois versos que se repetem e um terceiro que se modifica à medida
em que o enredo avança. A epígrafe do livro de Freitas é o primeiro refrão que
apenas anuncia a chegada ao cais da cidade do poderoso navio.
Assim como a manutenção do idioma original, o uso da mais insuspeita
das variações do refrão sugere um procedimento de auto camuflagem que a
poeta usa em todo o livro. Por trás da galeria de personagens despersonaliza-
dos de nomes genéricos (“mulher feia”, “mulher limpa”, “mulher de malan-
dro”, etc.), da simplicidade mecânica de versos duros e repetidos e da dicção
ostensivamente prosaica e frequentemente cômica da maioria dos poemas, es-
conde-se uma voz poética que carrega seu ódio inconformado camuflado em
ironia sutil e bem-humorada. Como Polly, que interpreta a pirata Jenny para
esconder/revelar sua inconformidade não apenas para o público no teatro,
mas também para a gangue do noivo durante o seu farsesco casamento, An-
gélica Freitas interpreta/dramatiza uma voz poética que finge se esconder,
num simulacro inteligente de ironia dramática que joga com dois valores que
podem parecer antitéticos à primeira vista: a sutileza e a contundência.
É uma voz dura, muitas vezes implacável na sua crueldade, mas que
frequentemente está dobrada em dois níveis. Em um nível mais óbvio e visível
ela faz uma mímica mecânica da voz do senso comum patriarcal que divide
as mulheres em tipos genéricos sem rosto nem nome, regurgitando máximas
sobre esses tipos e sentenciando-as sumariamente. Num nível mais sutil, por
baixo dessa voz mecânica do senso comum patriarcal pulsa uma outra voz,
furiosa, sarcástica, anárquica, “braba e suja” (p. 11), que faz um imenso esfo-
rço para esconder o máximo possível (mas não completamente) sua dor, fin-
gindo mesmo ser a “patinha sem pathos” de que nos fala Carlito Azevedo na
orelha do livro. Em vários momentos da terceira seção do livro (chamada
“Uma mulher em construção”) essa voz outra, que já atuava subvertendo as
estranhas parábolas cruéis das duas seções anteriores, nos fala sobre si
mesma. Eis um exemplo:
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se reduz a isso
a palhaça
toca fagote
com a boca cheia
de colgate [p. 49]
grotesca transferindo aquela outra voz sutil para o papel de interlocutora si-
lenciosa. Os cenários cada vez mais absurdos para as desculpas esfarrapadas
se acumulam até a referência a um spam, que é uma espécie de lugar comum
cibernético:
A voz sutil e fugidia que aqui se reduz a ouvinte, essa gauche vítima de
achaques mil, é um núcleo delicado e precioso que faz com que a obra de An-
gélica Freitas, quando lida com atenção, alce voo muito além da média. Muito
além da satisfação com “acertar o alvo”, Freitas inquietamente inventa alvos
outros ali, onde ninguém estava sequer olhando.
A terceira e última aparição do nome da autora no livro acontece na úl-
tima seção do livro, “O livro rosa do coração dos trouxas”, onde transparecem
relacionamentos partidos, rompimentos drásticos e listas de namoradas im-
prováveis. É, junto com a seção anterior (chamada “Argentina”) o movimento
final do livro, no qual a capa protetora da impessoalidade que o governava
até então revela mais descarnadamente o tal eu-poético oculto que orienta o
livro como um todo. Com isso não quero dizer que o final do livro nos aguarda
com derramamentos sentimentais. É um eu-poético ferido, porém é mais uma
vez uma voz extremamente dura, avesso a transbordamentos, capaz de afir-
mar secamente já no primeiro fragmento da seção que “eu quando corto re-
lações / corto relações” (p. 83). É nesse contexto que o nome da autora reapa-
rece, no último fragmento dessa última seção do livro. O fechamento desse
livro que tem uma unidade formal e temática tão impressionante quanto o Fiat
Lux de Paula Abramo é um convite solene (e nonsense) feito à “sociedade pe-
lotense” (p. 91) para um casamento improvável,
o enlace
de suas filhas
angélica & angélica (p. 91)
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A volta ao seio familiar burguês e à cidade natal provinciana no fim de
um livro que acabara de declarar a intensidade de uma relação cultural/afe-
tiva com a Argentina é pretexto para rir da impossibilidade de uma identi-
dade perfeita entre essas vozes poéticas agressivamente dissonantes que ba-
talham desde o começo do livro. O casamento absurdo das duas angélicas
acontece num contexto fantástico que, ao invés de maravilhas, nos apresenta
uma história que se repete “nanica e irônica”. Não há obviamente intenções
escapistas na construção desse mundo nonsense em que o eu-poético admite
estar partido em dois e simultaneamente imagina uma volta à identidade uní-
voca. Angélica Freitas criou em todo Um útero é do tamanho de um punho uma
voz poética que se duplica, se multiplica, se disfarça, se esconde, desaparece
e reaparece em modo farsesco. São múltiplas vozes poéticas inquietas, agres-
sivas, cruéis e engraçadas que convivem em conflito constante da primeira à
última página de um livro que parece também imbuído daquela procura dos
poetas mexicanos contemporâneos pelo concreto e efêmero identificado (erro-
neamente) com o prosaísmo. Assim Angélica Freitas segue, à sua própria ma-
neira muito particular, a diretiva de Fúlvio Abramo: “No mires hacia dentro”
e faça da experiência, seja ela íntima, pessoal e familiar ou não, matéria para
um contundente unselfie.
As ligações entre Brasil e México em Fiat Lux e Um útero é do tamanho de
um punho têm uma consistência diferente de outras produções memoráveis
derivadas de contatos diretos como certos poemas de Ronald de Carvalho e
Alfonso Reyes. Essa diferença vai além do óbvio contraste cultural entre o
mundo dos anos 20 e 30 do século XX e desse começo de século XXI. Paula
Abramo e Angélica Freitas pertencem a uma geração de escritoras nem um
pouco afeitas a respeitar as regras do jogo de mandarins de um status quo poé-
tico em vias de desaparecimento e pouco dispostas a repetir os contatos entre
latino-americanos através de rotas que necessariamente passam pela Europa
Ocidental ou pelos Estados Unidos.
REFERENCIAS:
Abramo, Paula. Fiat Lux. México: Fondo Editorial Tierra Adentro, 2012.
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Fabre, Luis Felipe. La edad de oro – Antología de poesía mexicana actual. Mexico:
UNAM, 2012.
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