Sei sulla pagina 1di 87

O Segredo de Frances

Love Lies Sleeping


Catherine George

As sombras do passado ameaçavam esse amor!


"Não, Chris!", gritou Frances, angustiada, ao acordar no quarto em
penumbra. No pesadelo, o ex-noivo voltava para atormentá-la, ofuscando a
felicidade que encontrava nos braços de Harry...
Ao dar-se conta do que acontecera, virou-se inquieta para o marido e
percebeu então o erro que cometera: Harry a olhava revoltado, como a
perguntar-lhe por que chamava por outro homem na primeira noite que
passavam juntos...

Digitalização: Vicky B,
Revisão: Gaby G
Formatação: Alê M.
2

Copyright: Catherine George


Título original: Love Lies Sleeping
Publicado originalmente em 1987 pela
Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: Vera Onorato
Copyright para a língua portuguesa: 1989
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.

Capitulo I

Frances Wilding guiava com cuidado, ao longo da estrada ladeada


por cercas vivas, procurando enxergar apesar da chuva que batia contra o
pára-brisa. Provavelmente enganara-se e tomara o caminho errado, pois
não havia sinal de residências, mas somente fileiras de cercas vivas e
árvores.
Estivera naquele lugar há cinco anos, mas viera de ônibus e era
primavera. Agora, no entanto, tudo parecia muito diferente. Estaria
perdida?, perguntou-se, ansiosa.
Ficou mais animada quando, depois de rodar cerca de mais um
quilômetro, avistou um muro de pedra e logo alcançou a entrada da
propriedade: um imponente portão de ferro, adornado com duas letras "C"
entrelaçadas: eram as iniciais da família Curthoys Court. Puxando o capuz
sobre a cabeça, Frances saiu do carro e experimentou abrir o portão. Puxou
um pesado trinco e dali a pouco já seguia por uma alameda arborizada,
rumo à mansão.
Tivera medo de atrasar-se para a entrevista, porém via agora que
chegara meia hora antes. Procurou um lugar para estacionar e parou sob os
galhos de uma árvore enorme, que era uma proteção contra a chuva.
Desligou o motor e respirou profundamente, procurando manter-se calma.
Entretanto, era difícil não ficar tensa, quando desejava tanto obter aquele
emprego.

2
3

Desde a sua formatura, no verão, esta era a primeira entrevista que


conseguira para trabalhar na profissão que havia escolhido. Se não fosse
pelo serviço temporário, como pajem de um menino de quatro anos, filho
do casal Napier, teria ficado desempregada durante os últimos meses.
Felizmente os Napier eram muito gentis. Aliás, eles mesmos haviam lhe
indicado esse emprego, já que brevemente o pequeno Sam iria para a
escola, e então não precisaria mais de seus cuidados.
Eddy Napier era um velho amigo de Harry Curthoys, o proprietário
da mansão Curthoys Court, e quando soubera que ele estava precisando de
uma bibliotecária para trabalhar e morar na sua residência durante algum
tempo, pedira que desse uma chance a Frances antes de colocar o anúncio
no jornal. Por isso ela agora se achava ali, ansiosa diante da expectativa de
organizar a biblioteca e a documentação daquela família aristocrática e
poderosa. Era exatamente isso o que desejava: conseguir um trabalho
apaixonante e absorvente, que, além de ajudá-la a realizar-se profissional-
mente, faria com que se mantivesse ocupada o suficiente para não sofrer
muito com a ausência de Chris Bradley, o namorado de tantos anos, que
partira para Edinburgh, na Escócia, para trabalhar.
Quando Frances pensou nele, o que fazia quase que o tempo todo,
seu olhar tornou-se mais meigo. Abriu o porta-luvas e pegou a última carta
que Chris enviara: era curta, como sempre, e já fora lida tantas vezes...
Chris estava animado com o novo emprego, conhecera um bom amigo no
escritório, alugara um apartamento por um preço razoável. Dizia-se
saudoso e lhe pedia para não perder a esperança, pois certamente
encontraria logo um emprego como bibliotecária. Terminava com a
promessa de que se encontrariam no Natal.
Ele não era muito sentimental, Frances pensou, conformada. A carta
parecia ter sido escrita às pressas, talvez porque Chris estava muito
ocupado. Mesmo assim, sentia-se inquieta, pois a quantidade de cartas
diminuíra muito, comparada com as primeiras semanas de separação.
Afastando para longe esse pensamento, ela procurou animar-se e até
planejou escrever a ele contando sobre a visita a Curthoys Court para a
entrevista com Harry Curthoys, se fora bem-sucedida ou não. Mas teria
sucesso, tinha certeza. Estava disposta a trabalhar até de graça, apenas por
uma ajuda de custo. Aliás, os Napier já haviam lhe dito que o proprietário
da Curthoys Court estava muito mal de finanças. Tanto, que precisara abrir
a mansão à visitação pública, para poder mantê-la. E agora queria permitir
o acesso à sua famosa biblioteca e arquivos da família, como um meio de
atrair mais dinheiro, recebendo grupos de universitários ou até mesmo

3
4

historiadores, já que os Curthoys tinham uma importância ímpar história


da Inglaterra. E era justamente por isso que estava precisando de uma
bibliotecária.
Frances consultou o relógio com impaciência. Queria acabar logo
com a expectativa, mas ainda faltavam alguns minutos. Não desejava
chegar antes da hora, nem tampouco parecer muito ansiosa para obter o
emprego, embora estivesse bastante curiosa para conhecer Harry Curthoys.
Há não muitos anos, ele aparecia freqüentemente nas colunas sociais dos
jornais locais, ao lado de belas garotas, e sua motocicleta "envenenada".
Aos olhos de Frances, então uma adolescente de quatorze anos, ele
era um ídolo, assim como para qualquer outra garota de sua idade. Sim, o
rebelde e irreverente Harry Curthoys despertava-lhe muitas fantasias,
sobretudo porque a mansão Curthoys Court ficava somente a trinta e cinco
quilômetros de distância da pequena cidade onde Frances vivia, no
condado de Warwick. Ela interessava-se muito pelo jovem herdeiro do
império dos Curthoys: recortava as fotos dos jornais e colava-as num
caderno que escondia no armário. Estava apaixonada pelos seus cabelos
loiros e seu sorriso alegre. Sentia ciúme violento das inúmeras moças que
eram fotografadas com ele e imaginava se um dia poderia conhecê-lo...
O tempo havia passado e agora ali estava ela. Já não era mais uma
adolescente, mas sentia-se curiosa para vê-lo. Segundo os Napier, Harry
Curthoys estava mal de finanças porque, embora tivesse herdado a mansão
e a propriedade, seu pai deixara uma cláusula no testamento que o impedia
de tomar posse de uma imensa fortuna. Só poderia desfrutar do dinheiro
quando se casasse. E, curiosamente, Harry continuava solteiro. Por quê?
Era isso o que os colunistas sociais queriam descobrir: por que um homem
tão atraente não tomara como esposa uma das belas mulheres da alta
sociedade que praticamente se atiravam em seus braços?
"Bem, não tenho nada com isso", Frances refletiu, encolhendo os
ombros. Estava ali para trabalhar e não para fazer conjeturas sobre o
excêntrico Harry Curthoys. Deveria lhe contar que já estivera ali por mais
de uma vez? A primeira quando ainda estudante, junto com sua classe e um
professor de História. Ficara tão fascinada que voltara alguns dias depois,
para poder visitar tudo com calma. Era uma tarde clara de primavera. Ela
descera do ônibus junto ao portão, andara pela alameda até chegar a casa
onde ficara por algumas horas, contemplando cada objeto, que parecia
possuir um encanto especial, como se de repente o passado se tornasse
vivo e a história daquela família pudesse ser lida através das tapeçarias,
dos móveis. Mas o dia estava lindo e Frances resolvera andar um pouco

4
5

pelo jardim, o que a levara a descobrir uma antiga capela, situada no fim
de um pequeno bosque. Ela permanecera muito tempo ali, admirando as
estátuas dos ancestrais dos Curthoys, nos túmulos que circundavam a
capela, todos de mãos postas, rostos voltados para o céu e cães a seus pés.
Algumas mostravam-se danificadas, não apenas pelo desgaste do tempo,
mas pela invasão do exército de Cromwell, séculos atrás. Algumas das
inscrições eram quase indecifráveis. Mas Frances continuava a admirá-las,
quando subitamente um feixe de luz vindo de um pequeno vitral iluminara
um outro túmulo, isolado por uma grade de ferro.
Em silêncio, Frances aproximara-se, fascinada, diante da descoberta:
ao contrário das outras efígies, aquela não lembrava a morte: a estátua em
mármore representava um homem adormecido, jovem e gracioso,
reclinado numa pose indolente e relaxada, um joelho levantado e a outra
perna esticada. A cabeça estava apoiada no braço e ao lado havia um livro
aberto, perto da sua mão, como se o tivesse deixado cair durante a leitura.
Estava sem armadura ou manto, usava botas altas, calça e camisa, e os
cabelos encaracolados emolduravam-lhe o rosto. O efeito era tão natural
que Frances tivera a impressão de que, se estendesse a mão, poderia
acordá-lo.
Voltara durante as férias de verão, somente para visitar o túmulo
novamente, e ficara muito desapontada ao encontrar a igreja fechada para
o público. Muito tímida para perguntar sobre o motivo, nunca mais
retornara a Curthoys Court.
Determinada, Frances acionou o motor e guiou até a mansão, sob
uma chuva violenta que parecia tornar o dia ainda mais frio e escuro.
Estacionou no pátio e, antes que subisse a escadaria para tocar a
campainha, um senhor idoso surgiu de uma porta lateral e a olhou, curioso:
— Pois não?
— Boa tarde. Tenho uma entrevista com o sr. Harry Curthoys — ela
explicou, lutando contra o vento, que parecia querer arrancar-lhe o guarda-
chuva das mãos.
— Por aqui, senhorita — o homem respondeu amavelmente, e
conduziu-a até o pequeno hall de entrada. Então abriu uma porta, à direita:
— Espere aqui, por favor — disse, apontando-lhe uma cadeira. — Deixe-
me pendurar sua capa.
— Obrigada. — Frances estendeu-lhe o impermeável. — É muita
gentileza de sua parte.
— Ora, não há de quê — ele retrucou, pendurando a capa num antigo
cabide, a um canto. Pegou também o guarda-chuva, que colocou ao lado.

5
6

Então acrescentou: — Fique à vontade. O sr. Harry Curthoys já virá. Com


licença.
Sozinha na sala, Frances notou que ali devia ser o escritório de Harry
Curthoys. Havia uma enorme mesa cheia de papéis e livros de
contabilidade, uma estante com várias pastas e algumas poltronas. Mais
uma vez sentiu-se nervosa. Seria bem-sucedida na entrevista?
Nem teve tempo de conjeturar muito sobre o assunto, pois Harry
acabava de entrar. Frances levantou-se para cumprimentá-lo, notando que
ele havia mudado, e muito. Tinha ainda os mesmos cabelos claros, mas já
não tão longos como antes. E a expressão dos olhos azuis também já não
parecia tão irreverente.
Ele sentou-se à mesa e a encarou com um sorriso um tanto distante.
— Então você é Frances Wilding?
— Sim.
— E pretende o emprego de bibliotecária?
— Exato — Frances respondeu, controlando o nervosismo.
— Será que continuará assim tão decidida, depois que eu lhe disser o
quanto posso pagar pelo seu trabalho?
— Preciso apenas de uma ajuda de custo, e, já que vou morar aqui,
não precisarei gastar muito — Frances retrucou, surpresa por demonstrar
tamanha segurança, quando, no íntimo, sentia-se tão tensa.
Ele a fitou, surpreso:
— Creio que a senhorita ainda não se deu conta de que moro aqui
sozinho. Afora Bates, o homem que a atendeu, e sua esposa, que habitam a
ala lateral da casa, não há mais ninguém. E se eu a aceitasse aqui, isso sem
dúvida provocaria alguns comentários desagradáveis, não acha?
— Não vejo por quê — Frances contestou, corando levemente. —
Afinal, que mal pode existir no fato de o senhor contratar uma profissional
para organizar a biblioteca e os documentos de sua família?
— Mesmo que essa profissional seja jovem e bonita?
Frances sentiu as faces afogueadas e vacilou por um momento, antes
de argumentar:
— Mas se o senhor acha que eu sirvo para o trabalho... Quero dizer,
não há uma cidade aqui por perto, onde eu pudesse ficar?
— Não com o ordenado que vou lhe oferecer, o que provavelmente
fará com que mude de idéia a respeito do emprego. — Com relutância,
Harry informou-a sobre a soma modesta que poderia pagar e acrescentou:
— Por isso eu estava pensando em alguém que tivesse acabado de se
formar, sem experiência anterior.

6
7

— Eu quero o emprego e não importa qual seja o ordenado.


— Nem os possíveis comentários?
— Não me importo — ela afirmou, com veemência.
— Quer saber de uma coisa? Eu também não. — Um largo sorriso
iluminou o rosto de Harry e por um momento ele pareceu o mesmo rapaz
irreverente e alegre de alguns anos atrás. Mas logo reassumiu a expressão
séria e então fez uma série de perguntas. Por fim, concluiu: — Muito bem!
A senhorita parece ideal para o que tenho em mente, principalmente
porque me parece bastante informada a respeito do passado de minha
família. Tenho documentos detalhados sobre o período da guerra civil,
quando os Curthoys tiveram um papel preponderante, mas devo avisá-la de
que se encontram em desordem e que vai precisar de tempo e paciência
para separá-los. Se quiser, o emprego é seu. E então, o que me diz?
— Eu quero — Frances respondeu. No íntimo mal podia se conter de
tanta alegria.
— Certo. Falarei com Dolly... — Ante o olhar interrogativo de
Frances, ele explicou: — É a esposa de Bates, o homem que atendeu você.
— Ah, sim.
— Pois pedirei a ela que lhe arranje acomodações na ala lateral.
Importa-se de dividir o espaço com eles?
— Não.
— Ótimo! Creio que Dolly ficará contente de tê-la por perto. E assim
você também não se sentirá muito sozinha.
— Para mim está bem, sr. Curthoys.
— Posso então lhe fazer mais uma ou duas perguntas, srta. Wilding?
— Naturalmente! Quantas quiser.
— Poderia me dizer por que uma jovem como a senhorita está
disposta a morar no emprego? A casa é um pouco retirada e por aqui não
há muita distração.
— Para ser franca, estou procurando um emprego desde que me
formei e não tenho tido sorte. Por isso estou na casa dos Napier, tomando
conta do filho deles. Mas o menino vai para a escola após o Natal e não
precisarão mais de mim.
— Compreendo — Harry assentiu. — Mas e a casa de seus pais?
Desculpe-me por lhe fazer uma pergunta tão pessoal, mas... Será que não
se dá bem com eles?
Frances sorriu.
— Não se trata disso. Os meus pais são muito bons para mim. Meu
pai estava viúvo há muitos anos, e agora casou-se novamente com uma

7
8

pessoa maravilhosa chamada Jassy.


— E a senhorita se sente agora um pouco como uma estranha.
— Exatamente. Nós três nos adoramos, mas sinto que eles precisam
levar sua própria vida... E eu também.
— O que me leva a deduzir que, já que é jovem e atraente, deve estar
comprometida com algum rapaz que, provavelmente, não aprovará o fato
de você morar aqui.
— Eu de fato tenho um namorado — Frances respondeu um tanto
embaraçada com o súbito elogio. — Chama-se Chris. Formou-se no verão
como eu, mas ele é engenheiro e foi contratado por uma firma de
Edinburgh.
— Em Edinburgh? Então ele terá de fazer uma viagem longa para vir
visitá-la.
— Não espero vê-lo antes do Natal. Bem, creio que a minha vida
particular não causará problemas, sr. Curthoys.
— Perfeito.
Naquele momento uma senhora entrou, trazendo uma bandeja com
chá e croissants.
— Ah, aí está Dolly — Harry exclamou, levantando-se. — Dolly,
quero lhe apresentar a srta. Frances Wilding, a bibliotecária que acabo de
contratar.
— Olá, como vai? — Frances estendeu a mão, que a mulher apertou
após depositar a bandeja sobre a mesa.
— Muito bem, obrigada. É um prazer conhecê-la, srta. Wilding.
A simpatia foi instantânea entre ambas e Harry pareceu satisfeito
com isso. Quando a senhora saiu, após desejar boas-vindas a Frances, ele
comentou:
— Dolly aprovou você. Este é um bom sinal.
— Como assim, sr. Curthoys?
Ele riu, parecendo bem mais descontraído que minutos atrás, quando
a recebera.
— É que Dolly tem um senso infalível para perceber o verdadeiro
caráter das pessoas. Se não houvesse gostado de você, teria demonstrado,
Deus sabe de que maneira.
— Fico contente, pois também simpatizei com ela.
— Ótimo. E agora, vamos tomar o chá. Você é minha convidada.
Enquanto mordiscava um croissant, após sorver um gole da bebida
fumegante, Frances começou a se sentir mais à vontade. Iria se dar bem no
novo emprego; tinha quase certeza disso. A forma amável como Dolly a

8
9

recebera poderia ser encarada como um bom indício de que tudo correria
do melhor modo possível. Também havia simpatizado com Harry. Ou
talvez fosse melhor dizer impressionada, não apenas pelo fato de ele ser
belo e atraente, mas também por suas maneiras gentis, que já em nada
lembravam o rapaz rebelde cujas fotos ela um dia colecionara. No entanto,
ele agora possuía uma outra espécie de encanto. Seria a maturidade?
Afinal, Harry devia estar com aproximadamente trinta e cinco anos. Sim,
era a um homem maduro que agora via, e não um jovem inconseqüente. E
como era bonito!
— Mais chá, srta. Wilding? — ele ofereceu, solícito.
— Não, obrigada.
— Pois bem, quando pretende começar?
— Devo dar um prazo aos Napier, para que possam arranjar uma
outra babá. Talvez uma semana.
— Que tal duas? Assim poderá começar... — Tirando uma pequena
agenda do bolso, ele a consultou. — Deixe-me ver... No dia vinte e três
está bem?
— De acordo. Estarei aqui às oito horas, nesta data. Mas o dia vinte e
três não é um domingo?
— Exato, e também é meu dia de folga, pois passo a semana toda em
meu escritório imobiliário e no sábado estou exausto. Portanto, prefiro
recebê-la no domingo, porque assim poderei explicar o que deve fazer.
Como pode ver, durante a semana sou um trabalhador, e, nos fins de
semana, um feliz proprietário — ele acrescentou, com uma ponta de ironia.
— Então está combinado. Até o dia vinte e três.
— Venha lá pelas duas horas, enquanto ainda está claro, e eu lhe
mostrarei a casa. Agora vou querer mais um croissant. Você aceita?
— Obrigada, estou satisfeita. Bem, acho que devo lhe dizer que já
estive aqui antes. Aliás, mais de uma vez.
Ele olhou-a interessado.
— É mesmo? E quando foi isso?
— Eu vim com minha classe, quando cursava o colegial, e voltei em
duas outras ocasiões.
— Gostou tanto assim de Curthoys Court, senhorita?
Frances recostou-se na cadeira.
— Não sei como explicar, mas a verdade é que este lugar exercia um
incrível fascínio sobre mim! Não falo apenas da casa, mas também da
capela e das estátuas dos seus antepassados, sobretudo aquela do homem
adormecido. No entanto, na última vez que estive aqui, a capela estava

9
10

fechada. Por quê?


— Uma senhora de idade ficou presa na capela, por engano, depois
que a mansão foi fechada ao terminar o horário de visita. Ela quase morreu
de medo antes que uma amiga notasse a sua falta. Pois esta fantasiosa
senhora jurou ter visto, pelo vitral, a estátua levantar-se e se espreguiçar
como se tivesse acabado de acordar.
— A estátua se mexeu? — Frances indagou, perplexa.
Harry olhou-a espantado.
— Minha cara srta. Wilding, trata-se de uma peça de mármore! Não
se levantou, é claro. Tudo não passou da imaginação de uma senhora
apavorada, mas o incidente chamou a atenção e o interesse público e eu
decidi fechar a área. Eu precisava do dinheiro; aliás, ainda preciso, mas
não a ponto de transformar a minha casa num show para pessoas em busca
de sensações por causa de Hal Curthoys.
— Foi ele que lutou na Guerra Civil?
— Ele mesmo. Você está bem informada a respeito, não? Isso é
bastante positivo.
— O que aconteceu com Hal Curthoys? O livro que eu li dizia que
ele morreu logo depois de retornar do campo de batalha.
— Só sabemos que morreu e não há nenhum documento explicando
de que modo. Conta-se que após o almoço ele foi para o jardim, e deitou-
se, só de camisa e calça, para ler. Mais tarde sua esposa foi procurá-lo e
encontrou-o morto. Não sei se de fato ocorreu assim, mas creio que foi um
ataque do coração. Sua linda e inconsolável viúva imediatamente
encomendou o túmulo e mandou cercá-lo de grades, ao lado da capela,
onde tem estado por trezentos anos. Quando eu a abri à visitação pública, a
lenda de Hal ficou em evidência durante um certo tempo, mas agora
acabou. Bates, que não é supersticioso, faz a limpeza uma vez por semana.
— Num tom sério, Harry acrescentou: — Se não se importa, gostaria que
evitasse aquele lugar. Não quero outros incidentes desagradáveis.
Frances ficou desapontada, mas concordou:
— Está bem. — Em seguida consultou o relógio. — Ora, o tempo
passou e eu nem percebi. Agora preciso ir. Devo chegar a tempo de dar um
banho em Sam, antes do jantar.
Harry riu e tocou a campainha para chamar Bates.
— Você gosta de crianças, Frances?
— Muito mais do que alguns adultos que conheço.
— Pretende ter filhos?
— Sim. Quando Chris e eu nos casarmos, espero ter dois ou três. —

10
11

Frances riu. — De preferência parecidos com o pequeno Sam, pois ele é


muito bonito. Loiro, de olhos azuis e com um rosto angelical, apesar de ser
um diabinho. — Voltou-se e viu o velho empregado entrando.
Bates retirou a capa do cabide e o guarda-chuva e estendeu-os pára
ela, comentando:
— Já estão secos, senhorita.
— Obrigada, sr. Bates.
— Não há de quê. Venha, eu a acompanharei até a porta.
— Pois não. — Frances estendeu a mão a Harry para despedir-se: —
Boa tarde, senhor...
— Por favor, me chame de Harry.
— Oh, eu não sei se...
— São ordens do patrão — ele retrucou, com um sorriso.
— Está bem... Harry.
— Ótimo, assim é melhor. Espero que seja feliz trabalhando aqui em
Curthoys Court, Frances. Você acha que vai ser?
— Sim — ela respondeu, com sinceridade. — Espero que goste do
meu trabalho.
Durante o trajeto de volta, Frances procurava pensar apenas no
quanto havia sido bom conseguir o emprego, mas a lembrança do largo
sorriso de Harry Curthoys não lhe saía da mente. Naquela mesma noite
escreveria a Chris contando a boa notícia.

Capítulo II

O dia da partida de Frances da casa dos Napier não tardou a chegar.


O pequeno Sam estava inconsolável, mas acabou aceitando o fato, depois
que lhe disseram que um menino grande como ele não precisava mais de
uma babá. Mesmo assim, lembrou Frances mil vezes da promessa de
visitá-lo no Natal.
Ela escrevera contando tudo a Chris, que respondera felicitando-a
pelo novo emprego e comentando com entusiasmo do seu. Estava
dividindo um apartamento com um colega do escritório, também
engenheiro, e divertindo-se muito na linda cidade de Edinburg. Havia
muita coisa para fazer e para ver e ainda tinha de arranjar tempo para um
curso de pós-gradução, mas sentia saudade dela e esperava vê-la no Natal.
Frances passara dois dias com o pai, Matt Wilding, e Jassy, sua
madrasta. O velho Matt provocava a filha a respeito de ter Harry Curthoys

11
12

como patrão, prevenindo-a dos perigos de viver perto de um nobre famoso,


elegante e conquistador.
— Ele mudou, papai — Frances retrucou. — Parece um homem
maduro, calmo e nada inconveniente.
— O rebelde Harry Curthoys? — o pai replicou, brincalhão. — É um
playboy incorrigível, menina. Mas você também não é nada ingênua e sabe
cuidar de si mesma.
— Além do mais, sou namorada de Chris, não se esqueça.
— Aquele idiota! Como pôde abandoná-la e ir para tão longe?
— Ele não a abandonou, Matt — Jassy interveio, divertida. — Só foi
trabalhar na Escócia.
E a conversa prosseguiu, num tom alegre e descontraído, até que, na
tarde escura daquele domingo de novembro, Jassy e Matt foram levá-la até
Curthoys Court.
Harry Curthoys recebeu os três com amabilidade, enquanto o velho
Bates levava a bagagem de Frances para o quarto. Mais tarde, quando
Jassy e Matt já haviam partido, Frances ficou a sós com Harry, que
indagou num tom suave:
— Está se sentindo solitária, aqui, agora que sua família foi embora?
— Nem um pouco. Estou acostumada com despedidas. Fui para o
colégio interno depois que a minha mãe morreu. Aprendi muito cedo a ser
independente.
— Eu também. Perdi minha mãe aos oito anos e passei o resto de
minha infância e adolescência num internato. Minha maior alegria era
quando chegavam as férias e eu podia vir para cá, encontrar a minha irmã.
— E seu pai — Frances completou, quase sem pensar.
— E papai, claro — ele assentiu, com uma ponta de mágoa.
Naquele momento Dolly entrou na sala. Sorriu para Frances, antes de
dizer:
— Venha, vou mostrar-lhe o quarto, srta. Wilding.
— Estarei à sua espera — Harry afirmou, sentando-se numa
confortável poltrona.
— Então até já.
Dolly conduziu Frances até a sala lateral, passando por um extenso
corredor.
— Bates e eu dormimos no quarto da frente, com vista para o parque
— ela explicou. Então abriu uma porta: — E este é o seu quarto, ou
melhor, uma pequena suíte, com vista para o pátio interno e a mansão.
Espero que goste.

12
13

Ao entrar, Frances pôde assegurar à sra. Bates, com absoluta


sinceridade, que era tudo o que poderia desejar. O bom gosto da decoração
deixou-a impressionada: em tons de marrom e bege, as cortinas, carpetes e
colcha da cama compunham uma incrível harmonia. Os móveis, muito
antigos, davam-lhe a impressão de haver penetrado num ambiente do
século passado. Apenas o banheiro continha comodidades modernas, como
uma ducha, hidromassagem e uma infinidade de vidros coloridos, com sais
de banho e xampus, ao lado da banheira. Frances nunca habitara um local
tão luxuoso e foi com franqueza que exclamou: — É muito lindo, sra.
Bates! Vou ser muito feliz aqui.
A senhora sorriu.
— Que bom, srta. Wilding.
— Por favor, chame-me de Frances.
— Certo, mas então me chame de Dolly.
— Está bem... Dolly. — Ambas riram e a velha senhora se retirou.
Sozinha no quarto, Frances contemplou o aposento e sentiu prazer
em estar ali. Tomou uma ducha rápida, vestiu uma calça bege e suéter não
muito pesado, pois o sistema de aquecimento era perfeito, escovou os
longos cabelos loiros e saiu para encontrar Harry, que se achava na mesma
poltrona, havia acendido a lareira e folheava um jornal.
— Vamos? — ele levantou-se. — Depois tomaremos um chá.
Frances o acompanhou, redescobrindo a casa com renovado prazer,
como se estivesse revendo um antigo lar. Harry levou-a primeiro para o
andar superior. No fim do hall, passou por vários dormitórios, cada um
com uma história diferente.
Os aposentos de Harry ficavam numa pequena ala particular, fechada
ao público, no final de um corredor. Saíram por uma outra ala e então
Harry levou-a até uma galeria cheia de quadros. Chegaram depois a uma
sala ampla, mas numa desordem que em nada combinava com a
imponência dos móveis ou das paredes revestidas de carvalho. A um canto
havia uma estante diferente das outras, que, na verdade, era uma passagem
secreta para o sótão. Harry empurrou-a e Frances viu a escada espiral.
— Uma estante falsa? — ela indagou.
— Sim. Além dos documentos que temos aqui, há outros lá em cima.
Já pedi a Bates que os traga aos poucos para baixo.
— E são documentos... a respeito de quê?
— Ora, de minha família, claro.
— Sim, mas você tem alguma idéia sobre...
— Absolutamente nenhuma. Creio que ninguém mexe neles há anos,

13
14

talvez séculos.
Frances olhou ao redor: pela sala ampla espalhavam-se baús, caixas e
papéis amarrados com barbante, além de livros velhos, tudo empilhado de
qualquer jeito, sobre a mesa e estantes. Para um leigo, aquilo seria um caos
assustador, mas para ela era diferente... ou melhor, apaixonante.
— Então, como pode deduzir, esta é a biblioteca. Ainda quer o
emprego? — Harry indagou, um tanto divertido.
— Se quero? Agora mais do que nunca, com todo esse tesouro diante
dos meus olhos.
Ele riu.
— Venha. Vou lhe mostrar rapidamente as salas do andar térreo.
O grande hall ocupava boa parte do andar. Além dele havia a
cozinha, a sala de jantar, o escritório onde Frances estivera, a sala de
visitas, sala de jogos, sem contar os salões abertos ao público.
Mais tarde, enquanto tomavam chá diante da lareira, Frances ainda se
sentia fascinada com tudo o que vira e por isso comentou:
— O senhor... quero dizer, você tem um imenso tesouro nas mãos.
— Não basta apenas possuir um tesouro. É preciso poder mantê-lo.
Bem, mas não quero aborrecê-la com os meus problemas.
Pouco a pouco a conversa fluiu de maneira mais descontraída e
Frances, a certa altura, comentou:
— O sr. Napier contou-me a respeito de sua herança ficar vinculada
ao seu casamento.
Harry sorriu, um tanto irônico.
— Você, como todas as outras pessoas, deve estar imaginando por
que não corri para o altar com a primeira jovem disposta a casar, só para
receber o dinheiro.
— Isso não é da minha conta — ela retrucou, temendo ser indiscreta.
— Realmente não. Infelizmente, o assunto sobre a herança é um
pouco mais complicado. Algum dia eu lhe contarei.
— Se quiser...
Harry olhou-a, pensativo.
— Você é uma boa menina, Frances Wilding. Acho que vamos nos
dar muito bem.
Ela sorriu, um tanto embaraçada e levemente ferida em seu orgulho
feminino. "Boa menina"? Era uma mulher de vinte e dois anos e não uma
garotinha, pensou, incomodada. Mas por que importar-se com o
comentário? Afinal, aquele homem era seu patrão e não... não um homem
a ser conquistado. Repelindo com energia esse pensamento, Frances

14
15

procurou, sem muito sucesso, imprimir um tom impessoal na voz, ao


perguntar:
— E quanto às minhas folgas, sr.... Harry?
— Faça da maneira que achar melhor. Pode sair à noite e nos fins de
semana. Se quiser mais, é só combinarmos.
— Prefere que eu saia todos os fins de semana, ou posso ficar aqui,
às vezes?
Harry Curthoys inclinou-se para ela.
— Frances, pode ficar aqui o tempo todo, se desejar. Mas pensei que
uma jovem como você gostaria de sair deste fim de mundo sempre que
tivesse oportunidade.
— Não. Sair sem Chris, meu namorado, não tem graça. E aqui
também não é o fim do mundo. Eu gosto deste lugar. Além disso, este
emprego é temporário. A propósito, quando pretende reabrir a mansão ao
público?
— Na Páscoa, talvez um pouco antes.
— Ótimo. Acho que até lá já terei organizado algo de novo para
apresentar, mesmo que seja apenas sobre um determinado período, como...
Que tal o século dezessete?
Harry aprovou com entusiasmo.
— Seria maravilhoso. Se pudesse apresentar algo sobre a Guerra
Civil, seria muito bom.
— Acho que posso, sim. Não tenho nenhuma predileção especial
pelo rei Carlos I, mas acho esse período fascinante, principalmente porque
é o momento em que se derruba a tirania na Inglaterra. Acho que Carlos I
mereceu morrer decapitado.
— Você realmente adora História, não?
— É uma de minhas paixões.
— E a outra é seu namorado... Como ele se chama, mesmo?
— Chris.
— Você tem sorte — Harry afirmou, pensativo. — Infelizmente não
posso dizer o mesmo.
— Acho que isso não é verdade. Eu costumava ler notícias nos
jornais sobre você, e diziam que namoradas não lhe faltavam. — Frances
corou, repreendendo-se por ter sido tão ousada. Mas, para sua surpresa,
Harry riu.
— Ei, você não devia acreditar em tudo o que os jornais falavam de
mim. Os colunistas exageravam um pouco, pode acreditar. Mas você tem
razão; eu era mesmo endiabrado.

15
16

— Quando eu tinha quatorze anos, achava que você era o homem


mais charmoso do mundo.
— É mesmo?
— Você mudou muito, desde aquela época.
— Pois é. Sinto-me séculos mais velho, mas provavelmente não
muito mais sábio. Enfim, o tempo passa e a gente aprende certas lições...
Algumas não são nada agradáveis. Mas assim é a vida.
— Desculpem a intromissão, mas preciso perguntar à srta. Frances a
que horas devo levar-lhe o jantar no quarto. Ah, e também o que prefere
para o desjejum, amanhã.
— Oh... É muito gentil da sua parte, mas não se preocupe em levar o
jantar até meu quarto. Posso comer na copa.
— Nada disso. Além do mais, não é trabalho algum — Dolly
replicou, categórica. — Às sete está bem?
— Sim, obrigada.
— E para o desjejum?
— Bem, não costumo comer muito pela manhã. Chá com torradas é
suficiente.
— Por isso a senhorita é tão magra — censurou Dolly. — Eu lhe
servirei as refeições nas horas certas e isso a deixará em boa forma. A
saúde é tudo na vida.
— É o que ela vive dizendo para mim — Harry comentou,
brincalhão.
— Mas ele não me dá ouvidos.
Frances olhou de um para outro e sorriu ao perceber o imenso
carinho que havia entre ambos.
— Bem, é só. Com licença, sr. Harry. Com licença, srta. Frances.
— Srta. Frances... — Harry repetiu, assim que Dolly saiu. — Quanta
honra! Quando Annie vinha aqui, ela a chamava apenas de senhorita.
Jamais disse srta. Annie, que eu me lembre.
— Annie?
— Sim, a mulher com quem quase me casei.
Um breve silêncio se instalou na sala e por um momento Frances
ficou imaginando como seria Annie. Bonita? Sofisticada? Por que não se
casara com Harry? Afastou de si essas perguntas. Afinal, isso não lhe dizia
respeito.
— Bem, acho que vou para o quarto, desfazer as malas — disse,
levantando-se.
— Eu a verei somente amanhã à noite. Se precisar de alguma coisa,

16
17

peça ao Bates, certo?


— Está bem. Obrigada pelo chá. Foi um prazer.
— Que prazer foi meu, Frances.
— Bem... Eu o manterei informado sobre o trabalho. Quer que faça
um relatório das atividades?
— Não é necessário. Prefiro conversar com você. Assim é mais
agradável.
— Obrigada. Até amanhã.
— Até, Frances.
Na manhã seguinte Frances acordou cedo e já estava vestida e pronta
para o trabalho quando Dolly bateu à porta trazendo uma bandeja com o
desjejum.
— Já disse para não se incomodar comigo. — Frances sorriu,
enquanto a mulher colocava a bandeja sobre uma pequena mesa, ao lado
da janela.
— E eu já lhe disse que não é incômodo algum.
Antes das oito, Frances já tinha tomado seu chá, arrumado o quarto e
a cama. Vestia calça jeans, uma malha vermelha e um guarda-pó.
Trabalhou sem parar durante horas e ficou surpresa quando Dolly
chegou, trazendo o almoço. O tempo passara e ela nem percebera.
Saboreou satisfeita uma sopa de lentilhas e depois comeu uma deliciosa
fatia de pernil, com batatas e arroz.
— Dolly, você não é apenas uma pessoa maravilhosa, mas uma
cozinheira de mão cheia.
Um largo sorriso iluminou o rosto bondoso da mulher.
— Bondade sua, srta. Frances — disse, já saindo da biblioteca.
Dali a pouco o sr. Bates, que estiver a no sótão a pedido de Frances,
desceu a escada em espiral trazendo uma velha mala.
— Devo pedir desculpas, srta. Frances. Eu escorreguei lá em cima e a
mala caiu da estante. Acho que a danifiquei.
Frances levantou-se imediatamente.
— O senhor se machucou?
— Não, senhorita. — Ele olhava aflito para a mala. — Mas estraguei
a tampa. Parece que tem algo pesado dentro do forro, veja. —
Chacoalhando a tampa que se desprendera parcialmente, Bates
acrescentou: — Escute... Há alguma coisa.
Frances ajoelhou-se e abriu a mala com cuidado, descobrindo que o
fundo falso da tampa se quebrara devido à batida...
— Acho que não houve muito estrago — ela o tranqüilizou. — Tudo

17
18

parece em ordem. Vou passar uma tarde interessante examinando tudo isso.
— Então não cometi nenhuma asneira?
— Claro que não, sr. Bates. — Frances riu e passou a mão com
carinho sobre a mala de madeira. Dificilmente teria pertencido aos
Curthoys. Na tampa estavam gravadas as iniciais L. M. e isso despertou-
lhe a curiosidade.
— A senhorita parece que está se divertindo com esse trabalho —
Bates observou mais calmo.
— Estou mesmo.
— Isso é bom.
— Gosto do meu emprego, sr. Bates.
— Eu também, senhorita.
Frances o fitou, hesitando antes de perguntar:
— Perdoe a minha curiosidade, mas o senhor está aqui há muito
tempo?
— Durante quase toda a minha vida, com exceção de quando estive
no Exército. Meu pai era mordomo do pai do sr. Harry e eu fiquei em seu
lugar. Antes disso eu era um dos criados da casa e trabalhava sob a
supervisão do meu pai.
— Então já estava aqui quando Harry, quero dizer, quando o sr.
Curthoys nasceu?
— Sim, claro. Ele e a srta. Charlotte, sua irmã, brincavam muito na
cozinha e nos estábulos, e aprontavam mil diabruras, para desespero de
minha mulher, que era a babá. — Bates sorriu. — Como o tempo passa,
não? Bem, mas estou atrapalhando o seu trabalho, srta. Frances.
— Imagine...
— Bem, agora devo ir. Quer que eu pegue mais alguma coisa no
sótão?
— Ainda há alguns documentos ou livros por lá?
— Não, só objetos velhos: cadeiras quebradas, castiçais...
— Então está bem. Obrigada, sr. Bates.
— Disponha, senhorita. Até logo.
Sozinha na sala, Frances começou a examinar a mala. Encontrou
livros de contabilidade com páginas amareladas pelo tempo e tinta bem
desbotada, mas a maioria das anotações ainda era legível. Havia uma
miscelânea de escrituras cuidadosamente enroladas e amarradas, relatórios,
contas domésticas, orçamentos, projetos, a lista não tinha fim. Estava tudo
ali: uma documentação completa sobre um período muito turbulento na
história da familia Curthoys.

18
19

Com os olhos brilhando de entusiasmo, Frances colocou tudo


cuidadosamente sobre a mesa, por ordem de data. Então, com a ajuda de
um estilete, procurou libertar o objeto escondido no forro falso. Não teria
feito a descoberta, se Bates não houvesse danificado a tampa da mala,
pensou, curiosa. Minutos depois, retirava do esconderijo um livro
encadernado em couro vermelho, macio ao toque, como se fosse seda.
Louca de curiosidade, ela o abriu e ficou excitada ao ler as palavras:
Arabella Curthoys. Meu diário. 1646.
Aquilo era mesmo um tesouro! Arabella Curthoys fora esposa do
misterioso e fascinante Hal Curthoys, que se deitara para descansar e
morrera num dia de verão, depois que voltara para a sua esposa e família,
após lutar numa longa guerra.
Frances estava ansiosa para ler o diário e descobrir o que continha,
mas o escrúpulo a impediu. Harry Curthoys deveria dar-lhe autorização
para tanto, o que provavelmente era uma tolice da sua parte, já que estava
sendo paga examinar tudo. Entretanto, esse livro era diferente. Colocou-o
de lado e passou a concentrar-se nos outros papéis.
Encontrou um material tão interessante a respeito de Carlos Stuart,
que teve de fazer um intenso esforço para voltar ao presente, quando Dolly
chegou com o chá das cinco da tarde. A um lado da bandeja, havia um
bilhete de Harry, convidando-a para jantar com ele e contar-lhe sobre o pri-
meiro dia de trabalho. Frances sorriu: a ocasião seria ideal para comunicar
sua descoberta.
De fato, mal havia sentado à mesa, ela não se conteve mais e falou
sobre o diário.
— Um diário? — Harry repetiu, interessado. — De quem?
— Arabella Curthoys — Frances respondeu, triunfante.
— A esposa de Hal? E o que a linda Arabella tinha para contar?
— Ainda não sei. Achei que você deveria ler o diário primeiro.
— Por quê?
— Pareceu-me uma coisa tão pessoal para ser lida por uma
estranha... Especialmente pelo fato de ter estado escondido durante esse
tempo todo. Escrituras e livros de contabilidade são documentos de outra
natureza, mas um diário é algo muito particular. Por isso achei que...
— Minha cara Frances — ele a interrompeu —, você tem carta
branca para ler tudo o que desejar. Mas já que foi tão discreta, vamos ver
esse diário juntos. Nunca se sabe, talvez traga uma luz para o mistério
sobre a morte de Hal Curthoys.

19
20

Capitulo III

Quando Frances entregou o diário a Harry, que a aguardava na sala


diante da lareira, ao lado de uma garrafa de xerez e dois cálices,
experimentou uma sensação incômoda. Ler as confidencias secretas de
alguém parecia uma invasão, mesmo que a pessoa já estivesse morta há
mais de trezentos anos.
Ansioso, ele abriu o livro na primeira página, mas, ao contemplar a
caligrafia rebuscada e desbotada, pareceu frustrado:
— Como vou conseguir decifrar isso? Olhe só para esses arabescos e
para a letra "s" escrita como se fosse um "f". — Devolvendo-lhe o diário,
acrescentou: — Desculpe, mas você terá de ler em voz alta para mim,
porque eu não consigo.
Frances levou algum tempo para compreender a caligrafia de
Arabella e familiarizar-se com os floreios e demais características da letra
daquela remota personagem que há três séculos habitara a mansão. No
início, o diário parecia um relatório monótono do cotidiano em Curthoys
Court naquela época, com algumas alusões ao marido, que em breve
regressaria de Oxford.
— "Hal mandou um recado", escrevia Arabella. "Ele fez um acordo
sobre a propriedade. Assim poderá comprar a paz e o perdão ao mesmo
tempo, com o valor das nossas terras".
— Eu sei que ele fez isso — Harry comentou —, quando Cromwell
expulsou o rei de Oxford. A mansão já havia sido despojada de
praticamente todos os seus pertences. Todos os objetos, tapeçarias e
mobília que pudessem ser transportados, foram levados. Tempos duros,
aqueles. A maior parte do que está aqui, hoje, data da restauração da
monarquia em diante. A época de Hal talvez tenha sido a mais terrível que
os Curthoys atravessaram.
— Imagino o quanto foi horrível para a pobre Arabella enfrentar tudo
isso sozinha.
— Devem ter sobrado alguns criados, mas Arabella realmente ficou
completamente isolada na casa, naquela ocasião. O pai de Hal e dois
irmãos mais novos foram mortos em Edgehill, e a mãe dele viveu somente
mais algumas semanas após a morte dos filhos. Mas isso tudo nós
sabemos. Vamos ver se ela nos diz algo de novo.
— ''Meu pequeno Ned esteve doente durante duas semanas",
escreveu Arabella, "mas já se restabeleceu e está brincando novamente".
Harry sorriu.

20
21

— Nada de novo.
— "Na hora do almoço" — Frances continuou — "preciso ir até
Astcote. Não vou mandar L. Devo vê-lo pessoalmente e avisá-lo da volta
de Hal. Meu Deus, como poderei suportar esta dura provação? Às vezes
sinto que tudo está acima de minhas forças..."
Nessa data não foi anotado mais nada, e nem nos dias seguintes.
Depois vinham referências à rotina da casa, mas, em seguida, uma
caligrafia trêmula registrava: "Hal chegou. O pequeno Ned e todos em
Curthoys Court estão alegres. Também tenho procurado me mostrar
entusiasmada, mas Deus sabe o que me vai no íntimo. Preciso ir a Astcote.
Talvez o pequeno Ned necessite de uma consulta. Sim, direi isso se me
perguntarem. Preciso avisá-lo, meu Deus".
— Todos alegres, com exceção da linda Arabella — comentou Harry,
pensativo. — Você está tendo a mesma impressão que eu? Percebe que Hal
voltou para casa e para uma esposa muito pouco entusiasmada?
Frances concordou com um gesto de cabeça.
— Esse homem que Arabella queria avisar... Poderia ser um amante?
— É muito provável.
Frances continuou a ler o diário, que se tornava cada vez mais
ilegível à medida que as páginas se sucediam. Algumas estavam em
branco, outras continham apenas referências a assuntos de rotina. Depois
apareceu uma data, em junho, quando Arabella havia escrito: "Hal está
amargo, mudado. Não dorme mais na minha cama. Eu não estou triste
com isso. Como poderia, se não é o meu marido que desejo ao meu lado?
E somente quero aquele que é proibido para mim ? Até onde essa loucura
me levará? Ao inevitável, suponho, mas morro de pavor só em pensar
nisso..."
Depois, novamente a rotina da casa e mais uma declaração veemente:
— "Eu sei que Hal está zangado, ferido em seu coração e orgulho
masculino. Às vezes tenho medo do que ele será capaz de fazer. Mas eu
não posso. Não posso. A vida está insuportável. Desejo ser tocada apenas
por um homem. Estou cansada de esperar. Jesus, como poderei su-
portar..."
— Pobre mulher. Sentia-se muito infeliz — Frances comentou,
penalizada.
— E Hal também, pelo que se pode deduzir — Harry acrescentou. —
Imagine voltar da guerra e descobrir que um outro vinha aproveitando os
privilégios que deveriam estar sendo guardados para ele.
— E Hal naturalmente passou todo o tempo na guerra como um

21
22

celibatário? — Frances retrucou, secamente.


— Não. É claro que não. Ninguém esperaria isso dele.
— Nem mesmo Arabella?
— Parece que Arabella tinha o pensamento em outra pessoa — Harry
replicou, um tanto irônico.
— Pelo sofrimento que se nota nestas páginas, os sentimentos dela
por esse outro homem não eram uma coisa passageira — Frances
argumentou. — Talvez ela o amasse, realmente. Afinal, o casamento com
Hal provavelmente foi arranjado pela família, como se fazia naquela
época. Talvez não gostasse muito dele.
— Pelo que a própria Arabella diz, Hal devia amá-la. "Ferido em seu
coração", ela escreveu. E tinha medo do que ele pudesse fazer.
— Será que foi por isso que Hal se suicidou?
Harry a fitou, espantado:
— Por que você acha que ele se suicidou?
— Porque o túmulo dele é o único que está cercado por grades. É o
que acontecia às vezes, se o suicida era de família importante. Hal pôde ser
enterrado ao lado dos outros, mas com a condição de ser discriminado, ao
menos simbolicamente, ou seja, com as grades. Esse é um costume antigo.
— Pelo que sei, foi Arabella quem mandou colocar as grades. Tenho
certeza de que encontrará esse fato documentado em algum lugar. Mas o
que sempre ouvi dizer era que o túmulo atraía a atenção de tantas pessoas,
que as grades foram colocadas como uma proteção contra o entusiasmo
exagerado do público. Ao menos oficialmente, foi o que argumentaram.
— Interessante. — Frances contemplou o livro aberto à sua frente. —
E você nunca viu ou ouviu falar desse diário antes?
— Nunca soube da sua existência. Provavelmente ficou na tampa
daquela mala desde que foi escondido lá, pela própria autora. Mas não
consigo entender por que Arabella não o destruiu.
— Vamos ver se conseguimos descobrir... As iniciais L.M. estão
gravadas na tampa e isto quer dizer que a mala não pertencia a Arabella.
Aliás, é modesta demais para ser dela. Não restam mais muitas páginas,
quer que eu continue?
— Continue, Sheherazade. Sinto-me como o sultão das mil e uma
noites. Ou seria melhor dizer que tudo isso parece um romance policial?
Frances riu e voltou a observar a caligrafia, que ficava cada vez mais
difícil de decifrar. Era evidente que Arabella Curthoys precisava de um
confidente, mas só podia confiar no seu diário.
A situação tornava-se mais clara: o amante anônimo, não suportando

22
23

mais a idéia de ver a mulher que amava nos braços do marido, entregou-
lhe um frasco de veneno e ela, embora atormentada e relutante, acabou
dando-o a Hal, na jarra de cerveja que levou ao jardim, onde ele estava
lendo ao sol. Depois deixara-o sozinho e ele morrera... Mas não na pose
graciosa de estátua sobre o túmulo.
— "Eu proibi Ned e os criados de incomodá-lo, e voltei mais tarde.
Nem até o dia de minha morte poderei esquecer. Eu endireitei seu corpo,
que estava retorcido pela agonia, e virei seu rosto, que era tão bonito, até
apoiá-lo sobre o braço. Só depois chorei e gritei pedindo ajuda, e mandei
que L. chamasse o médico. Paguei um preço terrível pelo meu amor, e
posso confiar meu pecado somente a estas páginas. Logo queimarei este
livro, e com ele as lembranças deste dia horrível e nefasto."
A voz de Frances soou emocionada ao ler as últimas frases e, quando
terminou, ambos ficaram em silêncio.
Depois Harry estremeceu, como se procurasse acordar de um sonho
mau.
— Meu Deus! — exclamou. — Por que será que Arabella não
queimou esse diário? Ela não poderia conservar uma carga de dinamite
como essa, ao alcance de qualquer pessoa.
Frances de repente sentiu que estava gelada e levantou-se para ficar
perto da lareira:
— Talvez ela o tivesse dado para esse L.M. guardar. Alguma coisa
deve ter acontecido, para impedi-la de destruir essas confidencias. Diga-
me, Arabella tornou a se casar?
— Não. Aliás, ela morreu um ano e pouco depois de Hal.
— Você acha que ela ao menos experimentou alguma felicidade com
o amante?
— Eu não sei... Na verdade, estou assombrado com Arabella.
Provavelmente mandou cercar o túmulo de Hal para insinuar que ele havia
se suicidado e afastar assim qualquer suspeita sobre si mesma.
Frances sentiu um arrepio.
— Meu Deus, ela não só matou o marido, mas o deixou morrer sem
absolvição, e ainda por cima com a desonra de suicida, o que aliás era
considerado muito grave, naquela época. A nossa Arabella era uma pessoa
um tanto... atormentada.
— Sem dúvida. Talvez esta seja a palavra menos áspera para defini-
la. Escute, você quer um cálice de licor? Eu estou precisando, depois das
revelações de Arabella.
Frances aceitou. Sorveu um pequeno gole e ficou contemplando as

23
24

chamas da lareira, ainda impressionada com o que acabara de descobrir.


— Quem seria esse amante? — Harry indagou, pensativo. — Você
acha que era um dos Cromwell?
— É pouco provável, considerando-se que eram puritanos e
condenavam o pecado de qualquer espécie, sobretudo o adultério e o
assassinato.
— Então deve ter sido um dos administradores, um dos criados, até
um cavalariço. Talvez você descubra alguma pista, quando examinar os
outros documentos. — Harry sorriu. — Frances Wilding, você começou de
maneira espetacular. Se fez essa descoberta logo no seu primeiro dia de
trabalho, imagino ò que poderá vir depois.
Frances também sorriu, antes de sorver o último gole de xerez.
— Bem, agora, se me der licença, vou me deitar.
— Claro, mas antes quero lhe mostrar uma coisa. Venha. —
Conduzindo-a pela escadaria que levava ao andar de cima, Harry
acrescentou: — Creio que você gostará de vê-la. Já fomos lá ontem, mas
agora sinto que Arabella está mais próxima de nós.
— A galeria dos antepassados! — Frances exclamou, adiantando-se
para abrir uma porta, no início do corredor.
— Pronto — disse Harry, acendendo a luz, e apontando para um dos
quadros. — Quero lhe apresentar lady Arabella Curthoys.
Frances aproximou-se para examinar aquela mulher de beleza
singular: cabelos negros, com cachos entrelaçados com pérolas,
emolduravam-lhe o rosto de traços delicados e olhar austero e
melancólico.
— Quando foi feito?
— Durante o período entre o casamento e o nascimento do filho.
Arabella não parece muito alegre, não? E aqui... — Tomando-a pelo braço,
Harry levou-a diante de outro quadro. — Aqui está Hal Curthoys.
Frances contemplou o rosto, também de uma beleza ímpar, daquele
homem que vivera ali três séculos antes. Era um pouco parecido com
Harry. Até a expressão alerta, prudente, nos traços finos, era igual, como se
ele de certo modo adivinhasse o destino difícil que a vida lhe reservara.
— E aí estão eles e ambos morreram tão jovens. Entretanto, nós
estamos vivos. É a nossa vez, agora: somos livres para cometer as
bobagens que quisermos.
— E também para lutar pela felicidade.
Harry riu.
— Tenho a impressão de que você é uma romântica incurável. Já

24
25

posso vê-la na sua casa, com seu engenheiro e seus dez filhos...
— Ora, gosto de crianças, mas não sou tão maluca assim — Frances
retrucou, divertida. — E você, não gosta de crianças?
— Digamos que eu "precise" delas. Ou melhor, de uma — Harry
respondeu, com um sorriso enigmático, que aos poucos se tornou amargo.
— Ora, deixe para lá. Seria tolice falar desse assunto.
— Como assim? O que quer dizer com "precisar" de crianças?
— É uma história complicada demais. Acho que se eu lhe contasse,
estragaria a noite.
— Está bem. — Temendo ser indiscreta, Frances não fez mais
perguntas. Mesmo porque não tinha nada a ver com a vida particular
daquele homem, a quem já se afeiçoara de maneira incrível. Era como se o
conhecesse há muito tempo. Sim, estava encantada com Harry... Encantada
demais, talvez?, perguntou-se, apreensiva. Não estaria se envolvendo em
excesso com um homem que era apenas seu patrão e que dentro de alguns
meses, após o término do trabalho, não mais veria?
Essas dúvidas continuaram a perturbá-la quando, tarde da noite,
preparava-se para dormir.
Vestiu uma camisola de flanela e acomodou-se sob as cobertas
macias. Virando-se, contemplou a foto de Chris no criado-mudo. Acalmou-
se imediatamente ao ver aquele rosto moreno, sorridente e tão querido.
Sentou-se na cama e pegou o bloco para escrever-lhe e contar sobre aquele
primeiro dia de trabalho. Mas ficou encostada nos travesseiros, pensando
em Harry, Arabella e tudo o que acontecera naquela noite. Estranho... Em
geral não tinha problemas para escrever para Chris. Agora, no entanto, as
palavras não fluíam. Inquieta com esse fato, Frances acabou adormecendo
e mergulhou em sonhos confusos, onde o rosto de Chris às vezes se
confundia com o de Harry.
A manhã seguinte veio apagar essas imagens e Frances, após
saborear um delicioso café com torradas e geléia, sentia-se bem melhor.
Minutos depois, já estava instalada na biblioteca, às voltas com
documentos e livros de toda espécie. Antes de mexer nos papéis, leu
novamente o diário de Arabella com muita atenção, para ver se descobria
algum dado novo sobre as trágicas circunstâncias que envolviam a morte
de Hal Curthoys. Mas nada descobriu, além do fato de que Ned Curthoys,
o filho e herdeiro de Hal, era um menino de saúde delicada, que requeria
cuidados médicos freqüentes. Tornou a ler as páginas, pois já estava
habituada com a caligrafia. A criança parecia ter problemas de saúde quase
todos os dias. Pobre Hal, ela pensou, além de tudo, um filho doente. E o

25
26

pequeno Ned parecia ter sofrido muito.


Deixando de lado as confidencias de Arabella, Frances passou a
examinar os outros documentos, menos dramáticos, sem dúvida, mas não
menos interessantes. Separou todas as obras literárias que encontrou e
colocou-as, sem ordem, na estante. Deixaria esse trabalho para o final.
Depois voltou a se concentrar nos outros papéis. Ali estava, à sua frente, o
que chamara de um tesouro, e não sem razão: lançamentos nos livros de
contabilidade, documentando a rotina diária de uma família que vivera sob
o reinado de Carlos I, durante a Guerra Civil e o sóbrio governo de
Cromwell. Era simplesmente fantástico. Organizou uma boa parte do ma-
terial, sempre atenta a alguma pista sobre o misterioso amante de Arabella,
que provavelmente fora seu cúmplice, no assassinato de Hal.
Frances estava tão entretida no trabalho, que mal sorriu para Bates,
quando ele lhe trouxe o almoço.
A tarde passou célere. Frances mal tocou no chá das cinco horas, pois
ao folhear mais uma vez o diário durante o almoço, descobrira alguns
indícios que talvez a levassem a elucidar o caso de Hal.
Eram mais de sete horas e ela estava fazendo anotações, quando
Harry Curthoys entrou na biblioteca e tirou-lhe a caneta das mãos.
— Ei, não acha que está trabalhando demais?
Frances sorriu, estendendo-lhe o diário de Arabella, com várias
páginas marcadas.
— Eu acho que sei quem ele era!
— O amante misterioso? — Harry indagou, folheando o livro. —
Aqui ela diz que fez vários potes de geléia... E aqui... oh, Frances, a
caligrafia de nossa heroína me deixa vesgo. O que devo ver, exatamente?
— Você não está percebendo que determinados itens aparecem
constantemente? Veja. — Ela deu a volta e inclinou-se sobre o diário. —
Aqui aparece pela primeira vez: "Ned está febril hoje". Alguns dias depois,
"Ned está com a garganta inflamada" e "Ned está com brotoejas".
Harry fitou-a com ternura: Frances tinha uma expressão triunfante
nos olhos verdes. O cabelo estava em desalinho, e por um momento ele a
comparou com um anjo. Como era linda, pensou, antes de indagar, com ar
brincalhão:
— Certo, mas onde está a resposta? A nossa bela heroína estava
envenenando o filho, também?
— Não, não — Frances retrucou, impaciente. — Más acho que ela
usava a saúde frágil do filho como uma desculpa para as freqüentes visitas
ao dr. Verney. Afinal, quem questionaria a presença regular do médico na

26
27

mansão, principalmente quando o herdeiro parecia ter uma constituição tão


fraca e doentia? E encontrei várias provas de que o dr. Verney morava em
Astcote. Veja só esses recibos: estão assinados por ele. — Frances
mostrou-lhe um maço de papéis: — As datas obviamente diferem, mas o
local é o mesmo: Astcote, 4 de maio; Astcote, 10 de maio; e por aí afora.
Claro que, como Os Curthoys eram nobres, recebiam atendimento a
domicílio.
O olhar de Harry encheu-se de admiração.
— É claro! E um médico teria acesso ao quarto de Arabella a
qualquer hora, sem despertar comentários maldosos entre os criados ou sua
dama de companhia...
— Que aliás se chamava Lucy. Arabella a menciona várias vezes,
usando a letra L para designá-la. Sei que se chamava Lucy por analogia
com alguns livros de contabilidade que encontrei.
— Então o tal dr. Verney... Seria mesmo o amante?
— Ele deve ter entregue o veneno à nossa lady, e a instruído para
colocá-lo na bebida do marido. Depois, o próprio dr. Verney seria chamado
para examinar o corpo de Hal e diagnosticar a morte por causas naturais.
Creio que "mal súbito" eram as palavras que encobriam um cem número
de assassinatos na época. Perfeito, não é?
— Bravo, menina! — Harry exclamou, entusiasmado. — Acho que
você desvendou o mistério.
— São apenas suposições, Harry. Mas pelos lançamentos nos livros
de Pegler...
— Pegler?
— O criado. Você pode ver os pagamentos regulares ao jovem dr.
Verney, como o chamavam.
— Quer dizer que, além de desfrutar dos favores de milady, ainda
recebia dinheiro?
— Sim, mas isso não durou muito tempo. Ele se enforcou cerca de
um ano após a morte de Hal. Há uma anotação sobre isso, porque Pegler
escreveu o nome do médico e fez um comentário sobre o fato de o jovem
dr. Verney ter se matado e sobre a grande mágoa de seu pai.
— Por que você acha que foi? Remorso, talvez?
— Que tal chantagem? Lucy, a criada, podia ser confidente de
Arabella. Talvez estivesse a par de tudo, não? Ela deve ter encontrado o
diário. Escondeu-o e depois exigiu dinheiro do doutor e quem sabe
também de lady Arabella.
— Meu Deus, que melodrama! — Harry exclamou. — Sabe que

27
28

você daria uma detetive formidável?


— São só suposições. Não tenho provas.
— Acho que você acertou. Santo Deus, que história trágica. Hal
morreu, o médico morreu...
— E, por estranho que pareça, Lucy também morreu, não muito
tempo após a morte do dr. Verney. Pegler anotou a despesa sobre a compra
de um caixão para uma tal de Lucy Manders, que morrera... adivinhe do
quê? Mal súbito!
— Ei... Você acha que a nossa Arabella matou Lucy também?
— Pode ser. Afinal, se Lucy estava chantageando a patroa e
escondendo o diário... Sim, pois a mala deve ter pertencido a Lucy. As
iniciais L.M. e o diário escondido na tampa são provas difíceis de refutar.
— Então Arabella morreu sem nunca tê-lo reencontrado. Ela deve ter
enlouquecido, pensando que poderia passar a qualquer momento para
mãos perigosas.
— Talvez seja por isso que tenha morrido tão jovem. — Frances
suspirou. — Mas isso nunca saberemos. Não consigo encontrar nenhuma
referência sobre a morte de Arabella, além do registro de óbito. Quanto ao
pequeno Ned, parece que sobreviveu.
— Sim. Cresceu e tornou-se um homem de negócios bastante temido
na região. Teve duas esposas, oito filhos legais e, segundo se suspeita,
vários Curthoys espalhados pela vizinhança também. E agora chega de
passado, por hoje. Vamos viver o presente. Que tal jantar comigo?
Frances olhou para si mesma e não pôde evitar uma sensação de
embaraço: suas roupas estavam imundas e as mãos, cinzentas de pó.
— Não, obrigada — respondeu. — Acho que preciso de um banho.
— Posso esperar.
— Acho que não — ela retrucou, sentindo-se enrubescer ante o olhar
de Harry, que sorriu.
— Agora está sem jeito. Por quê?
Frances baixou os olhos. Nem ela mesma conseguiria responder. O
que estava acontecendo? Por que se intimidava diante daquele olhar
cristalino e tão azul como o céu da primavera?
— Está bem. Então poderemos ir jantar juntos amanhã?
— Claro — ela aquiesceu, sem encará-lo.
— Ótimo. Até amanhã, Sherlock — e saiu, deixando Frances a sós
com suas dúvidas.
Após as extraordinárias revelações dos primeiros dias, Frances
voltou-se para os documentos menos dramáticos, que deveriam ser

28
29

expostos por volta da Páscoa, quando Curthoys Court seria reaberta à


visitação pública. Optou por trabalhar sobre o período da Guerra Civil e a
atuação dos Curthoys na época. Passava os dias entretida nas pesquisas e,
às noites, às vezes jantava com Harry Curthoys, que a tratava como uma
boa amiga, como se a conhecesse há muito tempo. Sempre que alguma
sensação incômoda a invadia, Frances repetia para si mesma que Harry lhe
devotava apenas uma franca amizade, nada além disso. Depois, sentia-se
mais calma. Talvez aquelas emoções confusas que Harry lhe despertava
desaparecessem quando ela reencontrasse Chris.
O Natal se aproximava e ela estava ansiosa para rever o namorado e
contar-lhe as novidades que não conseguira escrever. Não recebera mais
cartas de Chris, mas também não estava preocupada por isso. Talvez ele
andasse muito atarefado com o trabalho.
No dia primeiro de dezembro, Harry Curthoys entregou-lhe o salário
de um mês, apesar de ela protestar, pois não trabalhara nem a metade de
novembro.
— Precisará de dinheiro para os presentes de Natal. Considere isso
como uma gratificação pelas descobertas sobre Arabella. E não é muito.
Frances ficou agradecida e assegurou-lhe que o salário era suficiente,
considerando que tinha onde morar e comer.
No fim da semana seguinte, foi fazer as compras de Natal. Havia um
Sedan cinza, bem antigo, na garagem, e, para sua alegria, Harry insistiu em
emprestá-lo, dizendo que poderia usá-lo sempre que quisesse.
— E então, quando pretende ir para a casa de seu pai? — ele
perguntou, num domingo antes do Natal.
— Posso ir na antevéspera? Chris deve chegar neste dia.
— Quem sou eu para afastá-la do seu grande amor? Pode ir até antes,
se quiser.
— Não. Eu só preciso ir no dia vinte e três, mesmo.
— Está bem. Pode ficar até depois do ano-novo por lá. Eu estarei
fora. Vou passar as festas com minha irmã Charlotte, sabe?
— Que bom.
Aos poucos, um silêncio tenso e prolongado foi se instalando entre
ambos. Estavam no jardim da mansão e a neve cobria tudo ao redor.
Frances tentou baixar os olhos, mas não conseguiu. Harry estava
fascinante, num conjunto de lã marrom. Uma ponta de cabelos loiros
escapava-lhe sob o gorro. Ele agora sorria, exibindo os dentes alvos como
a neve e todo seu rosto parecia iluminar-se.
— Vou sentir falta de você, Frances — ele disse, num tom suave. —

29
30

Acho que ganhei não apenas uma bibliotecária competente, mas também
uma boa amiga.
— Acho que também sentirei saudade... meu amigo — ela
respondeu, com voz trêmula de emoção, enquanto evocava o rosto belo e
risonho de Chris. Ele sim, era o seu amor, disse a si mesma. Seria
maravilhoso revê-lo. Isso lhe devolveria a segurança de que tanto
necessitava.
— Você pode usar o Sedan, se quiser — Harry afirmou. — Evitará ao
seu pai uma viagem até aqui e poderá usá-lo enquanto estiver lá.
Frances ficou radiante.
— Realmente não sei como agradecer... Você é muito gentil.
— Tolice — ele retrucou, ainda sorrindo. — Não vou precisar dele.
Pode levar.
Num impulso, ela ergueu-se na ponta dos pés e lhe deu um beijo no
rosto. Depois afastou-se embaraçada, enquanto ele a fitava, encantado.
— Alguém já lhe disse que é não apenas bonita, mas graciosa?
Frances não respondeu. Sentia as faces afogueadas, enquanto
caminhava a passos largos para a mansão. Não, ninguém lhe dissera antes
que era bonita e graciosa, ao menos não com aquele tom de voz, que mais
parecia uma carícia.
No dia seguinte, logo após o almoço, Frances foi para o quarto
embrulhar os presentes de Natal, comprados na semana anterior em
Oxford. Havia uma caixa de charutos para o velho Bates e um vaso de
porcelana com jacintos para Dolly, que não tivera dificuldade para
escolher. Mas o presente da Harry fora um problema. Era difícil descobrir
algo útil para um homem que era ao mesmo tempo pobre e proprietário de
uma mansão. Frances optou por algo que não fosse caro, mas alegre, e
comprou um cachecol de lã xadrez. Não era muito original, mas talvez ele
gostasse de usá-lo. Embrulhou-o num vistoso papel antes que mudasse de
idéia, tomou um cartãozinho e escreveu, simplesmente: de Frances.
À noite, durante o jantar, Arabella surgiu novamente na conversa:
— É uma pena que eu não possa tornar pública a sua descoberta —
Harry comentou. — Mas não gostaria que esses fatos se tornassem
conhecidos, mesmo que tenham ocorrido há trezentos anos.
— E não são fatos... — Frances retrucou. — Apenas suposições da
minha parte. Não podemos provar nada, além de Arabella ter assassinado
Hal, e não acho que queira tornar isso conhecido.
— Você tem razão. Já houve confusão demais com Hal. Aliás, as
pessoas provavelmente ficariam desapontadas com a verdade. O pobre

30
31

rapaz foi envenenado... o que é bem diferente da versão romântica da


lenda. Não, prefiro lidar com documentos que possam fornecer
informações históricas sobre os Curthoys. Seria terrível ganhar dinheiro
com sensacionalismo barato sobre meu pobre parente. Estou mal de
finanças, mas não a ponto de apelar para isso. Aliás, não estou tão pobre
assim. Minha firma vai indo muito bem. Se não fosse por causa deste
elefante branco que é a mansão, eu estaria razoavelmente estabilizado.
— Você já pensou em vendê-la ou doá-la ao Patrimônio Histórico?
— Este é o meu lar, Frances. Enquanto eu viver, ou tiver um pouco
de dinheiro, tentarei mantê-lo.
— Ei, então você também é um pouco romântico — ela brincou.
— Bem mais do que possa imaginar, menina — ele respondeu, com
um olhar insinuante.
O resto do jantar transcorreu num silêncio tenso, como se cada um
estivesse mergulhado em profundas divagações. Quando Frances terminou
de comer, levantou-se pretextando sono e recusou o café que Harry lhe
ofereceu. Ele também não insistiu. Apenas fitou com ar pensativo, antes de
dizer:
— Boa noite, Frances... Por acaso você está fugindo de mim?
A pergunta pegou-a desprevenida e sua voz soou trêmula, ao retrucar:
— Claro que não. Que tolice!
— Então por que está tão nervosa?
— Não sei... Acho que... Bem, é que estou com saudades de Chris.
— Sem esperar pela resposta, alcançou a porta e saiu, o que a impediu de
ver a expressão decepcionada de Harry.
— Compreendo... — ele murmurou.

Capítulo IV

Frances não jantou mais com Harry, antes do Natal. Todo o tempo de
que ele dispunha, até as festas de fim de ano, estava tomado com
compromissos sociais. Frances não o viu até a manhã do dia da partida,
quando recebeu um recado dele convidando-a para tomarem juntos o
desjejum.
— Não podia deixá-la partir sem uma despedida à altura — ele disse,
ao afastar a cadeira para que Frances se sentasse. — E Dolly insiste para
que você tome um bom café da manhã antes de viajar para casa. Tome
cuidado na estrada. O rádio diz que o trânsito está muito difícil em certos

31
32

trechos por causa da neve.


— Vou me lembrar disso — ela respondeu, servindo-se de uma
grande xícara de café. Sentia-se feliz por ver Harry depois de vários dias e
também estava excitada com a perspectiva da viagem.
— Pretende ir diretamente para casa? — ele perguntou.
— Não. Vou almoçar com os Napier, para dar o meu presente de
Natal ao pequeno Sam. Só depois seguirei para a casa de papai. Estou com
muita saudade dele, de Jassy e...
— De seu namorado Chris, já sei.
— Pois é. Faz tanto tempo que não nos vemos, e temos mil coisas
para conversar.
— Se eu fosse ele, e tivesse ficado longe de você durante um mês ou
dois, conversar seria a última coisa que eu faria.
Frances sentiu que corava e serviu-se de uma torrada:
— Chris e eu fomos praticamente criados juntos, mas já éramos bons
amigos antes de...
— De quê?
— Antes de descobrirmos que queríamos nos casar. — Ela não sabia
ao certo por quê, mas não queria falar desse assunto. Por isso abriu a bolsa
e retirou o presente de Harry. — Uma lembrança para lhe desejar um feliz
Natal.
Surpreso, ele pegou o pacote:
— Ora, que maravilha. Posso abrir agora?
— Claro.
Com a impaciência de um garoto curioso, ele desembrulhou o
presente e ao ver o cachecol xadrez sorriu, com uma alegria tão
espontânea, que Frances ficou aliviada.
— Um cachecol! Ótimo! — Levantou-se e deu-lhe um beijo no rosto,
antes de colocá-lo no pescoço. Mas o cachecol não combinava com o seu
blazer escuro, muito formal. — Eu o usarei sempre, até para dormir —
brincou.
— Espero que combine melhor com seu pijama do que com esse
blazer.
— Não vai destoar, pois não uso pijama. — Seu sorriso era tão
contagiante, que Frances dessa vez não se sentiu embaraçada. — E agora é
a minha vez. — Retirando do bolso uma caixinha de veludo, entregou-a a
Frances. — Feliz Natal, e obrigado por tudo.
Emocionada, Frances abriu a caixinha e, deslumbrada, contemplou o
pequeno broche, oval, com uma borda de ouro, com o retrato de um jovem

32
33

aparentando cerca de vinte anos, cujos longos cabelos loiros caíam-lhe


sobre a gola de renda. O rosto fora pintado de modo estilizado, mas era
facilmente reconhecível, embora lhe faltasse a expressão cansada do
homem mais velho, cujo quadro estava pendurado na galeria.
— É Hal... — murmurou, acariciando o broche. — O jovem Hal,
antes do seu mundo desmoronar.
— Pintado antes do seu casamento, quando tinha dezenove anos de
idade. Foi encontrado por meu pai, quando eu era ainda criança, dentro de
um pequeno baú que continha outras jóias e que estava oculto numa parede
falsa, na ala lateral da casa. Creio que o esconderam lá antes da chegada
dos homens de Cromwell. E então, gostou?
Frances estava simplesmente encantada, mas sentia que não deveria
aceitar algo tão valioso, que ainda por cima pertencia ao patrimônio da
família Curthoys.
— É maravilhoso, Harry, mas...
— Eu poderia ter lhe dado um perfume ou qualquer outra coisa, mas
achei que você iria gostar mais desse presente. A não ser que eu esteja
enganado, você tem um interesse especial por Hal Curthoys. Quero que o
guarde como lembrança do tempo em que esteve aqui na mansão.
— É maravilhoso, mas acho que não devo...
— Por favor, aceite-o. É um presente meu para você.
Frances ainda hesitou um pouco, até que sorriu e tocou levemente a
mão de Harry.
— Então, muito obrigada. É o presente mais bonito que já ganhei, e
eu o guardarei para sempre.
— Ótimo. Estou contente que tenha gostado. — Harry consultou o
relógio. — Meu Deus, o tempo passa depressa demais quando estou com
você, Frances. Desculpe, mas devo ir para o escritório, agora. —
Levantando-se, ele afagou-lhe os cabelos, num gesto carinhoso. — Faça
uma boa viagem e feliz Natal, Frances. Até o ano que vem! Dê lembranças
à sua família e divirta-se.
Frances sorriu, emocionada.
— Divirta-se também, e mais uma vez obrigada pelo presente. Ele é
lindo!
— Acho que você está apaixonada por Hal, menina.
— Estou falando do broche, e não dele.
— Mentirosa. Você o acha lindo, eu sei.
"E é tão parecido com você...", ela pensou, fitando-o com ternura.
— Até a volta, Harry.

33
34

— Até...
Uma hora mais tarde, após se despedir do casal Bates e dar-lhes os
presentes, Frances partiu, rumo à casa dos Napier. Almoçou com Eddy,
Caroline e o pequeno Sam, que fez questão de lhe mostrar a decoração de
Natal e os enfeites de chocolate que ornamentavam a árvore. Caroline
estava curiosa para saber da sua vida em Curthoys Court e ficou contente
ao se inteirar do sucesso em seu trabalho. Já era tarde quando Frances
conseguiu sair, depois de trocar presentes e prometer a Sam que o visitaria
novamente, assim que tivesse tempo.
Foi recebida com muita alegria e amor pelo pai e Jassy, que também
estavam ansiosos para saber as novidades. A árvore de Natal encontrava-se
no lugar de sempre, a um canto da sala, rodeada de pilhas de pacotes. Tudo
naquela casa parecia ter um toque de carinho especial e Frances sentiu-se
feliz de estar ali, onde vivera sua infância, ao lado das pessoas que amava.
Agora, só faltava rever Chris, para a felicidade ficar completa.
Curiosamente, não se sentia nada ansiosa. Talvez isso se devesse ao fato de
que tinha certeza de encontrá-lo logo, pensou, sentando-se no sofá, ao lado
do pai e de Jassy.
— Como é a vida com os ricos, filhinha? — perguntou o velho Matt
Wilding, provocando-a com ar brincalhão.
— Ótima — ela respondeu, sorrindo. — Não preciso perguntar como
está a vida por aqui. É só olhar.
Jassy sorriu também, feliz, e levantou-se para preparar alguns
drinques, enquanto dizia:
— Naturalmente não posso falar por Matt, mas de minha parte acho o
casamento formidável. Apenas eu... Bem, eu gostaria de não ter essa
sensação de que obriguei você a sair de casa.
— Tolice — Frances retrucou. — Estou fora de casa desde que fui
para a Universidade e nunca pretendi ficar aqui depois de arrumar um
emprego.
— Jassy tem complexo de madrasta — Matt comentou, maroto. —
Pensa que você é a Branca de Neve e que ela é a bruxa má.
— Não é nada disso, seu maluco — Jassy argumentou, divertida. —
Você só diz bobagens.
— Está vendo como ficou furiosa, Frances? Vamos, diga-lhe que ela
não é tão má assim.
— Você é maravilhosa. — Frances sorriu para Jassy, que lhe estendia
um copo de conhaque. — E agora vocês dois parem de discutir e me
contem as novidades.

34
35

— A sra. Bradley passou por aqui hoje, para avisar que Chris só
chega amanhã.
— Parece que não conseguiu passagem — disse Jassy. — Agora,
conte-nos sobre Curthoys Court e sobre Harry Curthoys. Ele é tão
simpático como me pareceu naquele dia em que fomos levar você até lá?
Continua um playboy inveterado e enche a casa de lindas mulheres,
promovendo orgias todas as semanas?
Frances riu, procurando disfarçar o desapontamento por causa de
Chris, e desfez as idéias de Jassy sobre Harry Curthoys. Depois contou ao
pai sobre o trabalho que estava fazendo. Falara com tanto entusiasmo, que
Matt Wilding trocou um olhar de alívio com a esposa, quando a filha subiu
para o quarto. Nenhum dos dois havia tido coragem de contar a Frances
sobre o verdadeiro motivo do atraso de Chris.
— Ele nem deveria aparecer por aqui, já que ficará por apenas dois
dias — Jassy comentou, zangada, enquanto terminava de preparar o jantar.
— Que falta de consideração com a pobre Frances.
— Os dois se conhecem desde crianças — Matt ponderou. — Ele
deve achar que Frances vai entender.
Sozinha no quarto, no entanto, Frances continuava desapontada com
a mudança de planos de Chris. Encolheu os ombros e decidiu não pensar
mais no assunto. Com certeza ele teria uma boa explicação para dar,
quando chegasse.
Após dormir umas duas horas para se refazer da viagem, ela resolveu
tomar uma ducha antes de descer. Quando algum tempo depois chegou à
copa, Jassy e Matt estavam a sua espera.
— Vou servir o jantar — Jassy anunciou. — Fiz purê de batatas para
acompanhar o filé com champignons.
— Você não se esqueceu do meu prato predileto — Frances
respondeu, agradecida.
— E para acompanhar, um bom vinho tinto. — Matt abriu a garrafa e
colocou-a sobre a mesa já posta.
O jantar transcorreu num clima alegre e os três conversaram até
muito tarde.
A véspera de Natal passou célere. Frances e Jassy prepararam uma
série de pratos para a ceia e Matt encarregou-se das frutas natalinas e das
bebidas. Por volta das dez da noite estava tudo pronto. Dali a pouco Chris
chegaria com a mãe, Frances pensava, enquanto se vestia para a ceia, que
sem dúvida seria muito agradável.
Escolheu um vestido de lã azul-claro bastante elegante, escovou os

35
36

cabelos, deixando-os soltos, e aplicou uma maquilagem leve sobre o rosto.


Mirou-se no espelho e sorriu: estava pronta para ver Chris. Ia ser tão bom
conversar com ele, ouvir as novidades sobre o novo emprego, em
Edinburgh, e contar sobre o trabalho na mansão de Harry... Onde estaria
ele?
Mas não era em Harry que deveria pensar. Tinha certeza de que o que
sentira pelo último descendente dos Curthoys fora apenas entusiasmo
passageiro e incômodo... Talvez carência, já que estava tão longe de Chris.
Agora que o veria de novo, tudo voltaria a ser como antes. Seu lugar era ao
lado de Chris, a quem conhecia desde menina e com quem um dia se
casaria. Era verdade que ele não lhe provocava nenhuma sensação de
arrebatamento, que não a fascinava com um simples olhar. Mas essa
espécie de emoção não existia, na realidade. Só acontecia nos romances ou
nas tragédias, como com Arabella. Além do mais, Harry a via apenas como
uma boa amiga. Sem dúvida, só se interessava por mulheres sofisticadas e
mais experientes. Mas por que estava de novo pensando nele, quando todo
seu amor deveria ser dirigido a Chris e a mais ninguém?
Mal havia acabado de chegar à sala, tocaram a campainha.
— É ele — Frances exclamou, e correu a atender. Num impulso,
atirou-se nos braços do rapaz, dizendo: — Chris, que saudades!
Ele, porém, lhe deu um beijo rápido nos lábios e, num gesto delicado,
afastou-a de si, cumprimentando-a simplesmente:
— Como vai, Frances?
— Frances, querida! — A sra. Badley adiantou-se para cumprimentá-
la.
— Vamos entrar, pessoal! — o velho Matt convidou. — Que tal um
brinde?
A ceia transcorreu num clima de festa. Chris, como sempre, era o
centro das atenções. Sentado ao lado de Frances, contava sobre o novo
emprego em Edinburgh, com tiradas de bom humor, divertindo a todos
com histórias engraçadas sobre sua vida naquela cidade.
— E como é a vida entre os nobres? — perguntou a certa altura,
provocando Frances. — Você se dá bem com os ricos e aristocratas?
— Sim. Muito bem. Só que Harry Curthoys é mais aristocrata do que
rico. Ele trabalha para se sustentar.
Isso provocou uma série de perguntas, não apenas de Chris, mas
também da sra. Badley, que estava interessada na luta do jovem
proprietário para manter Curthoys Court.
Durante a troca de presentes, Frances também não teve oportunidade

36
37

de ficar a sós com Chris. Só no final da festa, quando a sra. Badley retirou-
se para a cozinha com Jassy, e o velho Matt despediu-se, após desejar feliz
Natal a todos e subindo para o quarto, foi que Frances pôde observá-lo
melhor.
Chris estava diferente, mudado. Comportara-se como um irmão mais
velho e não como um namorado. Até o presente que lhe dera, um vidro de
perfume Frances, demonstrava que tinha sido comprado às pressas, sem
pensar nas preferências dela, que ele deveria conhecer melhor do que
ninguém. Ela, ao contrário, escolhera para Chris um lindo suéter. Mas,
pensando bem, comprara aquele presente como se fosse para um amigo
muito querido, e não para o seu amor. "Acho que ambos mudamos",
Frances constatou com uma ponta de tristeza. A verdade era que jamais
imaginara sua vida separada dele. Afinal, conheciam-se desde crianças,
haviam crescido juntos, compartilhado os sonhos, os projetos de vida, tro-
cado os primeiros beijos... Se aquilo não era amor, o que seria?
"Nós nos amamos", ela disse a si mesma, enquanto vagamente se
perguntava por que, afinal, seu coração não batia mais forte agora que o
reencontrava, após quase três meses de ausência. Ora, com certeza era
porque já o conhecia há muito tempo, concluiu, procurando tranqüilizar-se.
— Você está muito bonita hoje. — Chris sorriu, interrompendo-lhe as
divagações. — Venha sentar-se aqui no sofá. Precisamos conversar.
— Você também está bonito — ela respondeu, indo acomodar-se ao
lado dele. E de fato Chris parecia forte e saudável. — Você não parece uma
pessoa que passa a vida debruçada sobre pranchetas, fazendo cálculos.
Ele riu.
— Não fico. Jogo tênis e pratico natação no clube da firma, quando o
tempo permite. Preciso me manter em forma.
— E sua vida social?
— Regular — ele disse, cauteloso. — Saio freqüentemente com um
colega da firma para tomar uns aperitivos. E você?
Frances contou-lhe, com mais detalhes, sobre a vida em Curthoys
Court, e teria continuado a falar por muito tempo, mas notou a falta de
interesse de Chris e calou-se. Ao contrário do que sempre acontecia, ele
não a tomou nos braços para beijá-la. Ela tampouco ansiava por isso. Algo
havia acontecido, um elo tinha se quebrado e era preciso resgatá-lo, para
assim retomar a velha amizade, a velha atração, a camaradagem. Chris a
fitava, relutante, como se quisesse dizer algo, mas lhe faltasse coragem. A
situação se tornava tensa e Frances, com um profundo suspiro, decidiu
abrir o diálogo:

37
38

— O que há conosco, afinal? Eu sinto que...


— Você adivinhou que havia algo? — ele a interrompeu.
— Claro.
— Frances... Meu Deus! — Ele fez um gesto vago e desviou o olhar.
— Creio que deveria ter dito isso em minhas cartas, mas parecia uma
maneira desleal de lhe contar. Acontece que...
— Você conheceu alguém.
Ele concordou, ainda incapaz de encará-la.
— O colega de escritório com quem saio à noite é uma moça.
Frances sufocou um soluço. Isso não poderia estar acontecendo.
— Eu não queria... eu não pretendia magoá-la. Eu a quero muito bem
e você sabe disso. Mas com Isla é diferente. No momento em que a vi, eu
me apaixonei. E ela sentiu a mesma coisa por mim.
— Compreendo. Foi por isso que você demorou tanto a chegar?
— Sim. E voltarei amanhã, porque vamos ficar noivos na véspera do
ano-novo.
— Você a conhece há pouco tempo...
— O tempo suficiente para ter certeza. Nós dois sabíamos, desde o
início. Bem, é isso, Frances. Desculpe, mas não pude evitar.
— Não se pode mesmo mandar no coração, Chris.
— Então, não esta magoada comigo?
Frances tentou sorrir.
— Claro que fiquei um pouco triste, mas, para dizer a verdade, não
sei se é por amor ou apenas por um tolo orgulho.
— Como assim? — ele retrucou, desconcertado. — Não me diga que
você também se apaixonou por outra pessoa.
— Oh, eu realmente não sei. Mas se amar é sentir-se frágil e
vulnerável diante de alguém, e enrubescer a cada cinco minutos, então
pode-se dizer que me apaixonei por Harry Curthoys.
— Aquele playboy! — Chris exclamou, levantando-se. — Ah, eu
sabia! Mas não deixe que ele se aproveite da sua ingenuidade.
— Ei, espere aí, rapaz — Frances reagiu, irritada. — Não sou
nenhuma garotinha indefesa e Harry está longe de ser um Casanova.
Ignorando o argumento, Chris elevou a voz:
— Sabe o que ele vai fazer com você? Vai adulá-la o quanto for
preciso, até conquistá-la. E depois a abandonará como uma coisa usada e...
— Cale a boca, Chris — ela ordenou, indignada. — Não admito que
fale assim de Harry, principalmente porque ele não está aqui para
defender-se.

38
39

— Nem é preciso — Chris replicou, sarcástico. — Afinal, ele tem


você para fazer isso, não?
— Em primeiro lugar, vamos baixar o tom de voz, pois nem meu pai,
nem Jassy, nem sua mãe têm nada a ver com nossos problemas. Em
segundo lugar, não ofenda Harry, já que eu não disse uma palavra contra a
sua garota. Em terceiro... — Frances estava ofegante e sua voz soava
trêmula. — Eu, ao contrário de você, não tenho nenhum tipo de com-
promisso com meu patrão. Aliás, ele não me ama. E, finalmente, não sei
por que você está tão furioso, já que acaba de romper nosso namoro para
ficar noivo na próxima semana.
— Sim, mas é que... Bem, eu não esperava que você fosse gostar de
outro!
— Chris, pelo amor de Deus, não seja tolo. Diga-me, você preferiria
que eu agora estivesse chorando, desesperada, implorando para você me
amar?
Chris a fitou, confuso, e Frances concluiu:
— Santo Deus, você preferiria mesmo isso. Faria um bem imenso
para o seu orgulho se eu agora estivesse no triste papel da namorada
abandonada e desiludida. Não acha essa posição lamentável, Chris? Então
você pode se apaixonar por alguém, mas eu não?
— Ora, pare com esses argumentos, Frances. Assim você me
confunde. O problema é que você sempre foi só minha. E perdê-la assim,
de um momento para o outro...
— Mas você está apaixonado por outra garota! Você acabou de
romper nosso namoro, antes que eu lhe contasse sobre Harry. Pense um
pouco, Chris, e não deixe que o orgulho ferido o engane. Por que, ao invés
de nos perdermos, como você diz, não nos tornamos bons amigos? Aliás,
creio que sempre fomos.
Chris ficou pensativo por alguns instantes, mas então fitou-a com um
olhar ansioso.
— Escute, Frances, agora que você está aqui, ao meu lado, refleti
melhor e cheguei à conclusão de que nós dois fomos feitos um para o
outro. Isla me parece tão distante, neste momento. Olhe, por que não
esquecemos toda essa história, e fazemos de conta que nada aconteceu?
— Chris, não se deve brincar assim com os sentimentos. Meu Deus,
você não sabe o que quer?
— Eu quero você — ele murmurou, tentando abraçá-la. — Já me
esqueci de Isla.
— Não diga tolices, Chris. E deixe de agir como um garoto mimado,

39
40

que não gosta de ser contrariado.


— Você me traiu com Harry.
— Imagine! Ele nem sabe que eu...
— Que você o ama?
— Sim.
— Então, esqueça esse playboy e volte para mim.
Frances o encarou com pesar. Só agora tomava consciência do quanto
Chris era imaturo. Na verdade, ele sempre fora assim. Só que ela não havia
percebido. Com extrema paciência, tentou tranqüilizá-lo:
— Escute, Chris, acho que ambos estamos tensos. Claro que meu
orgulho ficou abalado ao saber de Isla, assim como ocorreu com você,
quando lhe falei sobre Harry. Vamos deixar que o tempo se encarregue de
nos fazer superar esse problema, e então voltaremos a ser bons amigos,
está bem?
— Então você arranjou um casamento milionário, heim? Soube usar
muito bem seus dotes femininos — ele retrucou, com sarcasmo.
Frances perdeu o controle:
— Não adianta mesmo, não é? Você agora vai tentar me ofender de
todas as maneiras. Sabe o que você é, Chris? Um garoto mimado e
imaturo, que não sabe ao certo o que quer.
— E você é uma grande mulher, não?
— Não, mas estou lutando para ser.
— E aquele playboy inveterado vai ensiná-la.
— Ora, quer saber de uma coisa? Vá para o inferno, Chris Bradley!
Furiosa, Frances subiu para o quarto e atirou-se na cama. Lágrimas
de raiva e indignação vieram-lhe aos olhos e uma profunda tristeza a
invadiu. Fora difícil, mas necessário, separar-se de Chris. Não daria certo,
mesmo. Agora, estava sozinha e não seria nada prudente alimentar alguma
esperança com relação a Harry. Só lhe restava atirar-se de corpo e alma ao
trabalho, ela concluiu, decidida a voltar para Curthoys Court o mais breve
possível.

Capitulo V

No dia seguinte, após o almoço, Frances contou a Jassy e ao pai que


ela e Chris haviam rompido. Não entrou em detalhes, mas afirmou, com
tranqüilidade, que fora melhor assim e que ambos continuariam a ser
amigos.

40
41

— O pobre rapaz saiu tão deprimido — Matt comentou.


— E eu que estava preocupada com você, Frances — disse Jassy. —
Achei que essa história de Chris ficar apenas dois dias era uma grande
falta de consideração. Pensei que estivesse apaixonada por ele.
— Eu também — Frances retrucou, pensativa.
Matt trocou um olhar com a esposa e não fez mais perguntas, mas
quando Frances lhe disse que pretendia partir no dia seguinte, ele insistiu
para que ficasse.
— Não gosto de imaginar você sozinha na véspera do ano-novo,
minha filha.
Após uma longa conversa, o velho Matt acabou cedendo, embora não
estivesse muito convencido das razões de Frances, que alegava precisar de
isolamento para pensar e também para continuar o trabalho, pois havia
muito a fazer até a Páscoa, quando Curthoys Court seria reaberta ao pú-
blico.
Quando finalmente partiu no Sedan, Frances soltou um suspiro de
alívio. Amava demais o pai e Jassy, mas no momento a solidão era a
melhor companheira. A conversa com Chris fora desgastante para ambos,
com uma diferença: ele voltaria para Isla, enquanto que para ela não havia
esperança alguma. Tudo o que Harry podia lhe oferecer era amizade. Com
certeza, estava guardando seu amor para alguma garota rica e sofisticada,
que, provavelmente, seria fácil de encontrar.
Perdida em divagações, Frances finalmente avistou os portões da
Curthoys Court e então uma doce sensação de alegria a invadiu. Era como
se já fizesse parte daquele lugar, pensou, guiando devagar pelas curvas do
caminho, até a velha mansão, que se erguia imponente, recortada contra o
cenário de neve já quase encoberto pela noite que caía.
Foi também agradável receber a acolhida calorosa dos Bates. Estava
exausta devido à viagem, e até gostou de jantar na cama, assistindo à
televisão. Mais tarde, Dolly veio lhe trazer uma caneca de chocolate
quente.
— Parece muito cansada, Frances — a velha mulher comentou, com
o ar maternal de sempre. — Deve ter dormido tarde ultimamente. O sr.
Harry chegará assim, também. A casa de sra. Charlotte é sempre muito
animada e provavelmente tinham muito a conversar. Espero que ele não
fique triste em ter de voltar para cá.
— Quando ele disse que regressaria?
— No dia dois. O escritório começa a funcionar dia três. — Dolly
pegou a caneca. — Agora durma bem, descanse e amanhã só levante

41
42

quando tiver vontade.


— Estou pensando em trabalhar logo de manhã.
— Não sei não... O que o sr. Harry vai dizer disso?
— Não vai dizer nada, a não ser que a senhora conte.
— O que é isso, menina? Pensa que não sei guardar um segredo? —
Com uma risada alegre, Dolly saiu do quarto.
Frances sorriu e acomodou-se sob as cobertas. Sentia-se em casa, o
que era perigoso, pois dentro de alguns meses partiria dali para nunca mais
voltar.
Mas para que pensar no futuro, se, no presente, já tinha problemas
demais?
No dia seguinte, bem cedo, ela foi para a biblioteca e sentou-se
diante da grande mesa, que encontrou do mesmo jeito que deixara.
Era agradável trabalhar ali, naquela temperatura amena, devido ao
perfeito sistema de aquecimento da mansão, e volta e meia contemplar os
flocos de neve que caíam lá fora. Frances mergulhou no trabalho.
Felizmente, o esforço e a concentração não lhe permitiriam pensar em
outras coisas... Na dura discussão com Chris... Ou em Harry. Assim o dia
transcorreu, e no fim da tarde ela limpou um pouco a mesa, deixando tudo
preparado para o dia seguinte.
A véspera do ano-novo chegou. Era quase noite quando Dolly foi
encontrar Frances na biblioteca.
— Olá. — A velha senhora parecia embaraçada. — Olhe, eu hoje fiz
uma torta, um prato especial para... Ah, droga, não sou muito boa para
fazer convites e por isso vou dizer de uma só vez: quer comemorar a
passagem do ano conosco?
Frances sorriu, comovida.
— Oh, seria maravilhoso, Dolly.
O rosto da velha mulher iluminou-se num sorriso.
— Ah, está vendo? E o cretino do Bates falou que você detestaria
passar a véspera do ano com dois velhos tão rabugentos como nós.
— Imagine, Dolly, eu adoro vocês.
— Bem, vou pôr a mesa na copa e então abriremos a garrafa de vinho
que Bates ganhou do sr. Harry. Vamos festejar só nós três.
E, de fato, foi muito agradável. Frances usou um vestido vermelho de
malha, presente de Natal de Jassy, que lhe realçava as formas do corpo,
emprestando-lhe um ar de sensualidade que ela habitualmente não
ostentava.
Dolly, quando a viu, disse que estava linda como uma artista de capa

42
43

de revista. Frances ficou feliz com o elogio e notou que o casal também
tinha vestido as suas melhores roupas para a ocasião. A mesa estava posta
com todo o carinho por Dolly, que, após a ceia, foi até a sala e voltou com
velhos álbuns de fotografia. Entre elas havia muitas de Harry e Charlotte,
quando crianças.
Frances estava se divertindo com as histórias sobre a infância de
Harry, quando, subitamente, se levantou, assustada com o barulho de
freios, seguido por um baque surdo. Bates saiu correndo para investigar.
Frances quis segui-lo, mas Dolly a impediu:
— Calma. Vamos esperar para sabermos o que aconteceu.
Ambas ficaram aguardando, tensas, mas logo ouviram vozes no
corredor:
— É o sr. Harry — disse Dolly, surpresa. — Não sei o que está
fazendo aqui, quando deveria estar numa festa. É melhor ir até lá para ver
se ele precisa de alguma coisa. Espere, não devo demorar.
Frances estava curiosa para saber o que provocara o barulho, mas
como os Bates pareciam não querer que ela saísse, ficou onde estava, até
quando Dolly voltou, parecendo embaraçada.
— O que foi? — Frances perguntou.
— O sr. Harry derrapou na neve e bateu com o carro no portão da ala
leste, mas ele está bem. E o carro também, embora não possa dizer o
mesmo do portão.
— Posso ajudar em alguma coisa?
— Não, querida. Mas terá que me dar licença. Bates foi acender a
lareira da sala e eu vou levar um pouco de sopa para o sr. Harry.
Ela saiu rápido e Frances ficou sozinha novamente. Estava ao mesmo
tempo alegre com a volta de Harry e ansiosa para saber o que acontecera.
Não queria ser indiscreta, senão iria vê-lo, mas era obvio que havia algum
problema. Percebera isso pelo constrangimento de Dolly. Decidiu ficar ali
mesmo, para saber.
— O sr. Harry não está muito bem — o velho Bates anunciou, quase
meia hora depois. — Minha esposa está preocupada e não sabe o que fazer.
Frances hesitou.
— Acha que devo ir até lá para vê-lo?
— Eu não sei, mas, na minha opinião, acho que ele está precisando
de alguém para animá-lo.
— Posso tentar. Se ele não quiser companhia, eu volto.
Dolly, que acabava de entrar, ouviu a conversa:
— Bem, já que vai até lá, veja se consegue fazê-lo tomar a sopa.

43
44

Talvez, se a senhorita pedir, ele atenda. Eu desisto. Sabe o que me disse?


Que fosse dormir e o deixasse sozinho.
Frances olhou de um para outro, com ternura. Preocupavam-se com
Harry Curthoys como se ele fosse o filho que nunca tiveram.
— Ele está ferido? — perguntou.
— Não, não é isso... está deprimido — disse Dolly, vagamente.
— Compreendo... Então, tratem de dormir. Vou ver o que posso
fazer.
— Obrigada, querida.
Frances atravessou um longo corredor e entrou silenciosamente na
sala. As luzes estavam apagadas e só as chamas da lareira iluminavam
Harry, que, sentado numa poltrona, contemplava o fogo.
— Olá! — Frances disse, aproximando-se.
— Que diabos está fazendo aqui? Ou será que estou delirando? — A
voz de Harry soou um tanto rouca, bem diferente da habitual.
Frances compreendeu imediatamente o que os Bates haviam omitido:
Harry Curthoys não estava doente, nem ferido. Apenas tinha bebido alguns
drinques a mais, ela concluiu, sentando-se na poltrona ao lado dele.
— Não. Sou real. Por que está aqui, no escuro?
— Porque eu quero — ele retrucou, áspero. — Eu me sinto escuro.
— Fitou-a por um momento e desviou o rosto. — Não entendo por que
você veio aqui. É a véspera do ano-novo. Deveria estar festejando com o
seu namorado.
— Ele está regressando para a Escócia e eu voltei para trabalhar. Mas
você... Pensei que só retornasse dentro de um ou dois dias.
— Então é por isso que você veio. Pensou que eu não estivesse aqui.
Frances não se preocupou em contradizê-lo.
— Achei que estivesse passando o ano-novo numa festa em casa de
Charlotte, com seus amigos.
— Não consegui ficar mais do que uma hora e decidi vir para cá.
Parei no bar do King's Arms e tomei um ou dois drinques com um sujeito
chamado Jim, que estava tão deprimido quanto eu.
"Ou meia dúzia", Frances pensou, sem saber se devia sentir pena ou
achar graça da situação.
— Jim disse-me para vir para casa a pé, mas eu não quis. Afinal,
tratava-se da minha estrada particular. Não poderia machucar ninguém,
não é? Mas havia neve demais e eu me atrapalhei. Calculei mal na hora de
estacionar. Dei uma trombada dos diabos. Bates lhe contou?
— Nem precisava. Eu ouvi. — Frances olhou a bandeja sobre uma

44
45

mesinha, ao lado da poltrona de Harry. O prato de sopa estava intocado, e


ao lado havia uma garrafa térmica, provavelmente com café. — Que tal
um pouco de sopa?
Harry meneou a cabeça, num gesto de desagrado.
— Suponho que eles a mandaram para cá para me fazer tomar isso.
— Não. Eu tive a idéia de vir para lhe fazer companhia. Mas talvez
seja melhor ir embora.
— Não! Não vá ainda. Fale comigo.
— Está bem — Frances aquiesceu.
Harry tentou levantar-se, cambaleou um pouco e decidiu sentar-se
novamente. Estava usando um smoking, com a camisa branca aberta no
pescoço, a gravata solta e o cabelo em total desalinho.
— Estou um pouco indisposto — ele disse, com dignidade.
— Você quer dizer que está bêbado.
Harry olhou-a, depois encolheu os ombros.
— Está bem. Bêbado, de pileque, e outros nomes que você quiser.
— Quer desabafar comigo, Harry?
Ele a fitou por um longo momento. Demorou-se a examinar o vestido
vermelho, com uma expressão de admiração. Então sorriu.
— Eu conto, se você contar.
— Contar o quê?
— Por que voltou correndo para cá, quando deveria estar se
divertindo, na véspera do ano-novo.
Frances relutou, mas acabou dizendo calmamente:
— Eu e Chris... rompemos.
— Oh, que pena. Sinto muito, Frances. Você deve estar sofrendo um
bocado.
— Não ia dar certo, mesmo. Chris apaixonou-se por outra garota e
eu... — Interrompeu-se, sem saber como continuar. Como dizer a Harry
que também ela se apaixonara por outra pessoa? Ou melhor, por ele? — Eu
estou aqui — concluiu, vaga. — E você?
— Eu?
— Sim, o que aconteceu que o deprimiu tanto?
— Nada, a não ser a velha história da herança, e aquela festa chata,
onde as mulheres ficavam me olhando como se eu fosse um passaporte
para a fortuna.
— Como, Harry? Não estou entendendo.
— Oh, não, você não está. Acho que vou lhe contar aquela historinha
que prometi outro dia, lembra-se? Se tiver paciência para ouvir...

45
46

— Claro, fale comigo, Harry.


— Mas antes preciso de um drinque.
— Depois. Agora me conte.
— Está bem... Vamos recordar então o tempo de Harry, o terrível, o
playboy maluco e inveterado, que despertava a adoração das adolescentes.
— Não fique se autodepreciando — Frances censurou num tom
suave. — Isso não leva a nada, sabe?
— Não, não sei. Onde é mesmo que eu estava?
— Falando da sua juventude.
— Ah, sim... Eu me divertia um bocado, naquela época. Acho que eu
não era nem pior nem melhor do que os outros. Não tomava drogas, mas
gostava de carros velozes, festas, garotas, discussões com os garçons,
algumas cadeiras quebradas, sabe como é...
— Posso imaginar.
— Bem, meu pai ficou irritado com o meu comportamento. Ameaçou
cortar a minha mesada, mas como ele vivia dizendo isso e nunca agia, eu
não ligava. Depois, antes que eu terminasse o meu curso em Cambridge,
meu pai levou um tombo enquanto andava a cavalo. Deve ter tido uma
vertigem, mas o cavalo o feriu na cabeça. Ele morreu. — Harry passou a
mão pelo rosto e ficou em silêncio por um longo momento. Depois,
continuou: — Eu amava o meu pai, e sabia muito bem que ele me amava,
apesar das suas idéias sobre disciplina e tudo o mais. O que eu nunca tinha
percebido até conhecer o testamento era a paixão dele por este lugar.
Deixou a casa e a propriedade para mim, mas impôs uma condição para eu
tomar posse do dinheiro. Pelo testamento, estava claro como cristal: ele
temia que se eu herdasse aquela fortuna ainda jovem, gastaria tudo em
farras e deixaria a mansão ir à ruína. E assim, afora uma anuidade para mi-
nha mãe, que morreu logo depois, e uma pequena herança para Charlotte,
que já estava casada, ele deixou todo o dinheiro aplicado num fundo, até...
— Até você se casar?
Ele suspirou.
— Não. Até o nascimento do meu primeiro filho. Ele acreditava que
isso faria com que eu criasse juízo e passasse para o rol dos homens sérios.
A minha primeira reação foi uma mágoa horrível. Meu próprio pai não
havia confiado em mim, achando que eu seria incapaz de assumir as
minhas responsabilidades, quando chegasse a hora. Depois fiquei zangado
e resolvi ganhar o meu próprio dinheiro. Possuía algumas economias e
assim me estabeleci como corretor de imóveis em Astcote, onde eu sabia
que o nome Curthoys ainda tinha prestígio. Depois de alguns anos e muito

46
47

esforço, comecei a ter lucros e pude manter a mansão razoavelmente, com


o mínimo de empregados no inverno e um pouco mais no verão. Decidi
abrir este lugar para o público e ganhar dinheiro para a conservação.
Depois, eu conheci Annie.
— E o que deu errado? — Frances perguntou.
— Ela não me amava, só isso. Ou melhor, digamos que ela gostava
mais do dinheiro que nosso casamento e o filho iriam proporcionar... Bem,
para resumir, rompi com Annie e a partir daí atirei-me numa série de
aventuras amorosas, que fazia questão de terminar em poucos meses, antes
que elas pensassem que haviam "fisgado o peixe". Pode imaginar a
insegurança que isso me causou?
— Sim... Mas como essa história sobre a herança se tornou pública?
— A querida Annie deu com a língua nos dentes. Omitiu apenas o
detalhe do filho. Então, todas as vezes que freqüento a alta, as garotas se
atiram sobre mim como se eu fosse um prêmio a ser disputado. No começo
foi divertido, mas depois fui me sentindo angustiado. Sabe, no fundo sou
um homem romântico, que sonha com a mulher ideal e todas essas
bobagens.
— Não são bobagens.
Ignorando o aparte, ele prosseguiu:
— Agora, imagine se eu me apaixono por uma garota que, ao invés
de me amar, deseja apenas ficar rica à minha custa.
— Olhe, Harry, se a sua ex-noiva era uma pessoa interesseira, isso
não significa que todas as mulheres sejam.
— Gostaria que você me apontasse apenas uma que estivesse
interessada em mim, e não na fortuna que represento.
"Ela está bem aqui na sua frente", Frances pensou. "Mas você não
enxerga, claro."
— Naquela maldita festa na casa de Charlotte, eu procurei uma,
apenas uma que me tratasse como Harry, e não como o herdeiro dos
Curthoys. Pois não achei nenhuma.
— Você ainda está apaixonado por Annie?
— Estive. Depois, não encontrei mais ninguém com quem quisesse
compartilhar a minha vida. E, mesmo que quisesse, qual seria a louca que
concordaria, depois que eu lhe contasse a história do testamento?
— No meio onde eu vivo é mais simples: a gente se apaixona por um
homem e casa-se com ele, se o rapaz pedir, naturalmente. É só o amor que
importa, sabe?
— Parece utopia — Harry comentou, com amargura. Então levantou-

47
48

se e examinou a bandeja. — Acho que vou tomar um pouco dessa sopa. As


minhas desgraças me deixaram com fome. Peço desculpas. Devo tê-la
aborrecido.
— Não, absolutamente. Achei quase tão fascinante como a história
de Hal.
— Obrigado pelo "quase". Quer um pouco de sopa?
— Não, obrigada. — Frances olhou com aprovação quando Harry
provou o caldo.
— Esfriou — ele disse, sentando-se, com o prato no colo. — Mas
mesmo assim...
— Quer que eu a esquente para você?
— Não, está gostosa desse jeito, também.
— Está se sentindo um pouco melhor? — ela perguntou, logo que ele
terminou.
Ele riu.
— Se quer saber se estou sóbrio, acho que sim, Aliás, sinto-me
disposto a começar tudo de novo. Que tal um conhaque?
— Harry!
— Só para brindar ao novo ano, menina. — Ignorando os protestos
de Frances, ele foi até o bar, retirou dois cálices e uma garrafa de
Napoleão.
— Tome primeiro um café — ela aconselhou.
— Faço tudo o que disser. Olhe, tive uma idéia — e, deixando os
cálices de lado, Harry encheu duas xícaras com café, depois acrescentou
conhaque generosamente.
Ambos ficaram bebendo em silêncio o líquido quente, olhando para
as chamas, até que os sinos da igreja começaram a tocar, a distância.
Harry fez com que Frances se levantasse e serviu mais conhaque.
— Vamos fazer um brinde, Frances. Que o ano-novo nos traga
felicidade.
— Felicidade para nós dois — completou ela, e tomou a bebida num
gole, como Harry, mas engasgou.
Ele riu e pegou o seu copo para pousá-lo na mesa. Depois observou-
a.
— Posso ter o privilégio de lhe dar um beijo para receber o ano-
novo!
Frances sorriu e levantou o rosto. Harry inclinou-se para tocar-lhe os
lábios suavemente, mas acabou atraindo-a para si, enlaçando-a pela
cintura, para beijá-la de maneira ardente e impetuosa. Ela não tentou

48
49

resistir. Para quê, se isso era tudo o que desejava? Ofegante, Harry afastou-
a para fitá-la bem dentro dos olhos. Então inclinou-se e a beijou no-
vamente.
Frances sentiu que o coração disparava dentro do peito. Harry a
tocava de um modo que era impossível não corresponder. As línguas se
buscaram, num novo beijo, exigente, pleno de desejo. Frances procurou
lembrar-se de que Harry bebera mais do que devia, e a estava usando para
substituir sua amada Annie. Ele não confiava nas mulheres... Mas nada
disso adiantou para fazê-la desvencilhar-se daquele abraço com que tanto
sonhara. Quando, finalmente, Harry afastou-se, Frances olhou-o, confusa.
Agora que aquele momento mágico havia se acabado, já não sabia como
agir diante daquele homem.
— Feliz ano-novo, Frances — ele disse, num tom suave.
Ela encarou aqueles olhos azuis, sob os cabelos despenteados, e teve
de se controlar para não abraçá-lo novamente.
— Feliz ano-novo, Harry — e saiu rapidamente, deixando-o atônito.
Precisava ficar sozinha, para refletir melhor sobre o que havia
acontecido. Adorara cada instante daqueles beijos, mas tinha plena
consciência de que Harry a tomara nos braços por pura carência e solidão,
talvez até mesmo por um súbito desejo, que provavelmente passaria
naquela mesma noite. Para ela, no entanto, a lembrança permaneceria
vivida. Guardaria aqueles momentos como um tesouro precioso. O desejo
continuaria a torturá-la não apenas naquela noite, mas em todas as outras,
até mesmo quando partisse de Curthoys Court. E Harry estava à procura de
uma mulher que o amasse, ela pensou, com ironia, fechando a porta do
quarto atrás de si.

Capítulo VI

Na manhã seguinte, Frances tomou a primeira resolução para o ano-


novo: dali por diante evitaria o conhaque, já que o resultado de apenas
duas doses fora a irresponsabilidade que demonstrara na noite anterior.
Devia estar louca ao deixar Harry beijá-la. E sabia muito bem que "deixar"
não era a palavra certa. Havia correspondido de todo o coração, embora
soubesse que ele a tomara nos braços apenas para suprir suas carências.
Harry ao menos tivera uma desculpa: estava ligeiramente bêbado.
Mas ela deveria ter tido o bom senso de voltar para o quarto antes que
aquilo acontecesse. Não que não o desejasse, mas trocar beijos ardentes

49
50

com um homem que não a amava... Por que cedera a esse ponto? Para se
iludir?
Frances suspirou e virou-se para a parede. Que sensação terrível,
aquela. Agira como uma adolescente apaixonada, sucumbira ao fascínio
daqueles olhos tão azuis, e agora sentia-se péssima. No entanto, no mais
profundo do seu ser, a emoção dos beijos permanecia vivida e intensa,
independente dos conflitos, das ilusões e das carências humanas. A
despeito de tudo, a vida continuava. Como iria lidar com essa nova
situação?, ela se perguntava, confusa, adiando o momento de se levantar.
Será que Harry estaria diferente? Talvez embaraçado? Ou talvez nem se
lembrasse de nada a respeito da noite anterior?
Não ficou muito tempo na dúvida, pois quando Dolly veio lhe trazer
o café, entregou-lhe um bilhete de Harry, que dizia: Venha me ver guando
quiser. Estou na sala de jantar, curando uma terrível ressaca. H.
A princípio, Frances decidiu não ir. Talvez fosse melhor passar o dia
na biblioteca, trabalhando exaustivamente para deixar a mente ocupada, a
salvo das dúvidas que tanto a atormentavam. Seria a atitude mais prudente,
se ela pudesse controlar o desejo de vê-lo novamente, de fitar aqueles
olhos cristalinos que pareciam um pedacinho de céu.
Não, era inútil lutar contra a força poderosa dos próprios
sentimentos. Assim; após vestir um conjunto esportivo lilás que lhe dava
uma aparência leve e graciosa, Frances dirigiu-se à sala de jantar, com um
misto de apreensão e alegria.
"Está brincando com fogo, Frances Wilding", disse para si mesma.
"Onde tudo isso vai parar? O mais provável é que você saia muito
magoada, talvez de maneira irreversível."
— Como está se sentindo? — Harry indagou, assim que a viu surgir
pela porta entreaberta.
— Bem... — ela mentiu.
— Só isso?
Frances concordou com um gesto de cabeça, pois tinha medo de que
a voz soasse trêmula.
— Frances, eu... eu me comportei mal ontem à noite?
Enrubescendo, ela retrucou:
— Você não se lembra do que fez?
Harry olhou-a, receoso.
— Sim... Eu me recordo de tê-la beijado e de ficar abraçado com
você. Espero que não tenhamos ido mais além...
— Não fomos — Frances disse num fio de voz.

50
51

— Mesmo porque não teria sido justo... para nenhum de nós. Afinal,
se tivéssemos feito amor, você estaria pensando no seu Chris e...
— Não — ela o interrompeu, num impulso.
Harry sorriu, compreensivo.
— Sei que está sofrendo por ele, Frances, mas você conseguirá se
recuperar, tenho certeza.
Frances sufocou um soluço. Tinha vontade de gritar que ele estava
enganado, que ela não amava Chris e só desejava um homem... Mas não
disse nada. Como desfazer aquele mal-entendido? Com uma expressão de
total desalento, ela o fitou, procurando desesperadamente um jeito de lhe
contar, ao menos, que o rompimento com Chris fora difícil, mas positivo
para ambos. Que se agora sofria por alguém, não era por Chris, mas por
ele. Harry, no entanto, interpretou aquela expressão de abandono de
maneira bem diferente. Abraçando-a carinhosamente, disse:
— Ah, pobre menina. Aquele idiota deixou você... Mas esse
sofrimento passa, pode acreditar. Se quiser desabafar, conte comigo. Não
se esqueça de que somos amigos.
Aquilo foi demais e Frances não conseguiu conter as lágrimas. "E o
mais terrível é que Harry acha que estou chorando por Chris", ela pensou,
com amargura, impotente para esclarecer a situação.
Harry a manteve abraçada por um longo momento e quando por fim
ela se acalmou, perguntou, acariciando-lhe os cabelos:
— Sente-se melhor, Frances?
— Sim — ela murmurou, envergonhada, enquanto se afastava em
direção à janela. Sentia-se tola por ter chorado na presença dele e isso só
servia para piorar a situação. "Agora Harry vai achar, com toda a razão,
que sou uma garota imatura e chorona", pensou, arrasada. Lá fora, a neve
continuava a cair.
— Já não bastam os seus próprios problemas... — ele comentou,
aproximando-se — e eu ainda fui sobrecarregá-la, ontem, com os meus.
Peço desculpas. Devo ter aborrecido você, não?
— Pelo contrário. Eu até gostaria de poder fazer alguma coisa para
ajudar você.
Harry tentou brincar.
— Então, que tal guiar o carro da fuga para mim, quando eu roubar
um banco?
Frances sorriu.
— Ah, é assim que gosto de vê-la. Você fica linda quando sorri.
Alguém já lhe disse isso?

51
52

Ela o fitou. Mais uma vez a beleza dos olhos azuis a hipnotizava,
despertando-lhe emoções que não deveria sentir. Precisava se libertar
daquele fascínio, e rápido.
— Está na hora de começar o meu trabalho — disse de repente. —
Aliás, já estou muito atrasada.
— Hoje não, srta. Wilding, pois é o dia de ano-novo. Trate de colocar
um casaco e vamos dar um passeio.
— Não, prefiro trabalhar. Assim não pensarei em...
— Chris?
— Em minha vida, em meus problemas — ela o corrigiu, saindo
rapidamente.
Desde aquela manhã, Frances atirou-se ao trabalho com muita
vontade. Passava os dias envolvida com o passado, o que não lhe deixava
muito tempo para sofrer com a dor do presente. Mas era nas altas horas da
noite que a solidão a abatia. Ao que tudo indicava, Harry continuava a
julgá-la apaixonada por Chris. Em parte a culpa do equívoco era dela.
Quantas vezes pensara em lhe dizer que não amava Chris, e sim outro
homem. Mas então Harry lhe perguntaria quem era esse homem e... o que
diria? Assim, os dias passavam e Frances continuava sozinha, com suas
mágoas e a tristeza de saber que não deveria alimentar esperanças com
relação a Harry.
Duas ou três vezes por semana ele a convidava para jantar. E aos
domingos, a não ser que estivesse viajando, costumava levá-la até o bar do
King's Arms, a alguns quilômetros dali, para um aperitivo antes do almoço.
Quando finalmente o inverno cedeu lugar à primavera, Harry estava
trabalhando muito e ela o via cada vez menos. O mercado imobiliário
começava a melhorar e ele quase não vinha jantar. Também terminaram os
aperitivos no King's Arms aos domingos, pois Harry agora abria o
escritório também nos fins de semana, pela manhã. Ele estava mais magro
e evidentemente cansado. Mas sempre se mostrava amável com Frances,
nas raras ocasiões em que se encontravam. Mesmo durante as folgas,
estava ocupado com os preparativos para a abertura da mansão ao público,
na Páscoa.
Frances sentia falta dos jantares e das conversas agradáveis. Mais que
isso: começava a se sentir apreensiva, pois, no máximo até o outono, seu
trabalho como bibliotecária seria concluído. E então chegaria a hora de
dizer adeus.
— Estou preocupada com o sr. Harry — Dolly comentou, certa
manhã. — Ele está exagerando, não?

52
53

— É sempre assim, quando chega a época de abrir a casa para o


público — o velho Bates acrescentou. — Às vezes eu acho que o pai dele
não devia estar com a cabeça boa, ao deixar-lhe a casa sem dinheiro para
mantê-la.
— Não sei por que ele não se casa — Dolly retrucou. — Assim teria
uma companheira com quem dividir as alegrias e dificuldades dessa carga.
Mas acho que aquela última moça de quem ficou noivo tirou-lhe esta idéia
da cabeça.
Frances não fez comentários, surpresa ao perceber que os Bates não
conheciam os termos do testamento.
— Dolly acha que você está trabalhando demais — Frances disse,
enquanto ela e Harry jantavam juntos, no domingo. — E eu concordo com
ela.
Ele suspirou.
— Não tenho escolha. Mas quem é você para me criticar? Sei muito
bem que até trabalhou ontem, depois do jantar, quando qualquer pessoa
ajuizada deveria estar fazendo visitas ou assistindo à TV.
— A mansão vai ser aberta daqui a três semanas e quero organizar
uma exposição completa sobre o período da Guerra Civil, quando os
Curthoys tiveram uma grande atuação.
— Não procure mudar de assunto. Eu já lhe disse que não quero que
trabalhe aos sábados e ainda mais à noite — ele encerrou, categórico,
enquanto servia o vinho.
— Mas eu não estava trabalhando. Apenas fiquei na biblioteca
revendo o catálogo que fiz. Já que os únicos arquivos prontos são aqueles
sobre os Stuart, acho que poderíamos expor alguns volumes escolhidos, do
mesmo período, num lugar de destaque. Talvez sobre a mesa da biblioteca,
mesmo.
— É uma boa idéia.
— E já providenciei um estojo para expor uma bíblia que data do
século XVII. Você também tem uma edição muito antiga do Book of
Martyrs, de Foxe, que pode ficar aberto sobre a mesa... Por que está rindo?
— Por causa do seu entusiasmo, Frances. É maravilhoso.
— Mas você não concorda que é uma boa idéia?
— Concordo, sim. E se isso puder atrair mais pessoas, ficarei
encantado.
— E também há uma novidade — Frances continuou. — Cataloguei
todos os livros antigos que você possui, e arrumei-os na estante central.
São verdadeiras preciosidades. E tenho um palpite... É meio maluco, mas...

53
54

— Vamos lá, Sherlock — ele a incentivou, bem-humorado.


— Naturalmente não posso provar, mas, de acordo com os registros
do meu querido Pegler, o criado na época de Hal e Arabella, dois livros
foram comprados entre os dias da chegada de Hal e sua morte. Ambos
estão em condições razoáveis para serem expostos, mas um deles tem duas
páginas muito manchadas e desbotadas, no meio. E daí se pode deduzir
que isso se deve ao fato de ter ficado aberto ao sol, sobre a grama —
Frances terminou, com um sorriso triunfante. — Oh, não ligue para mim.
Provavelmente estou fantasiando, mas... não é uma incrível coincidência?
— Então vamos colocá-lo em exposição com uma etiqueta dizendo
assim: ''Acreditamos que seja o livro que Hal Curthoys estava lendo..."
etc. Só Deus sabe como eu gostaria de publicar o diário de Arabella, mas
como isso é impossível, algo relacionado com a morte de Hal será
interessante. Mas nada de sensacionalismo.
— Claro. Escute, Harry, será que o Weekly Gazette, de Astcote, não
poderia publicar algo a respeito? — ela sugeriu.— Podemos incluir o
detalhe sobre a exposição do período da Guerra Civil.
— Eu já providenciei isso. Afinal, precisamos mesmo de divulgação.
Tony Latimer, um repórter que conheço há anos, virá até aqui para tirar
algumas fotos. Ele é um bom fotografo, além de ótimo redator. — Harry
suspirou. — Ah, Frances, precisamos mesmo de sucesso, nesta nova
temporada. Não sei se o telhado suportará mais um inverno. O velho Bates
disse-me hoje que apareceram goteiras em um dos sótãos.
— O que pretende fazer?
— Um conserto temporário, mas obviamente este é o tipo de solução
paliativa, que só serve para adiar o problema.
— Mas não pode obter um empréstimo?
Harry sorriu, desolado.
— Mas como vou pagar a dívida? Imagine o quanto terei de
desembolsar para refazer toda a estrutura de madeira, além das telhas e a
mão-de-obra. Claro, eu poderia pedir uma parte a Charlotte, mas meu
orgulho me impede de fazê-lo. Não, preciso cuidar disso sozinho, sem a
ajuda de ninguém.
— Eu gostaria de colaborar em alguma coisa.
— Você já está fazendo muito. Bem mais do que eu esperava,
principalmente com o ordenado que lhe pago.
— Lembre-se de que inclui casa e comida.
— Isso não justifica o fato de estar ganhando tão pouco.
— Não me importo. — Ela sorriu. — Eu adoro o meu trabalho.

54
55

— E eu adoro você — ele retrucou, num tom suave que a


surpreendeu, e acrescentou: — Você é uma boa e encantadora menina.
Frances fingiu-se concentrada no prato à sua frente. Não sabia se
deveria ficar feliz ou triste com o elogio. Será que para Harry ela seria
sempre uma "menina", e não uma mulher?
— Seu cabelo fica melhor solto... — ele comentou, interrompendo-
lhe as divagações. — Eu gosto mais assim...
— É mesmo? Eu sempre o prendia porque... Bem, porque Chris
preferia desse jeito.
— Pois deveria usá-lo do modo que você gosta mais — ele retrucou,
antes de sorver um gole de vinho.
Frances, num gesto nervoso, empurrou o prato para a frente. De
repente, perdera o apetite e estava furiosa consigo mesma. Primeiro,
porque falara de um jeito sobre Chris que só serviria para confirmar o
equívoco da situação. E, segundo, porque dera a entender que não possuía
nem sequer segurança para escolher o próprio penteado. Mais uma vez
Harry a tratava como uma criança, uma garotinha que precisava de
conselhos e orientação. E ela nada poderia fazer, nem mesmo condená-lo
por isso, já que dava-lhe motivos para tanto.

Capitulo VII

Naquela noite, antes de deitar-se, Frances examinou-se ao espelho.


Nunca se preocupara muito com a aparência, mas agora estava mudando:
passava às vezes uma hora se arrumando, sobretudo quando ia jantar com
Harry. Sim, queria que ele a enxergasse como mulher, que a desejasse
como acontecera com Annie, a garota com quem quase se casara. No
entanto, isso parecia pouco provável, porque ele a imaginava apaixonada
por Chris.
Às vezes pensava se o que acontecera na véspera do ano-novo não
fora apenas um sonho, se os beijos não teriam sido uma armadilha da sua
imaginação. Mas não, ainda agora podia sentir nos lábios a suavidade com
que Harry a havia tocado, como homem algum fizera antes. E foi em meio
a essas divagações que ela acabou adormecendo.
No dia seguinte acordou indisposta, pois dormira mal. As dúvidas
vinham assaltá-la até mesmo nos sonhos, Frances pensou, aborrecida. E
quando Dolly, ao lhe trazer o café, contou-lhe que Harry viajara a negócios
e que provavelmente só retornaria dali a dois dias, concluiu que o dia

55
56

realmente não seria nada fácil.


O movimento da mansão era intenso. As senhoras do serviço
voluntário local tinham chegado para ajudar Dolly a limpar a casa para a
abertura ao público, como faziam todos os anos. Frances, que a princípio
ficou mal-humorada com aquela agitação, foi apresentada a todas e acabou
contente ao ver o interesse que demonstravam pelo seu trabalho. Mas logo
desculpou-se e foi para a paz e o sossego da biblioteca.
Apesar do desapontamento ao saber que Harry estava viajando,
achou que seria bom, pois teria tempo para se refazer antes da volta dele.
Não sabia ao certo como agir para se libertar da angústia daquele amor
sem esperança, mas de uma coisa tinha certeza: precisava se fortalecer, e
muito. Não podia mais se comportar como uma garota assustada, apenas
porque o amava. Só não sabia como fazer isso. O jeito era continuar
trabalhando, para não enlouquecer. Talvez encontrasse alguma solução,
afinal.
À tarde, as voluntárias dedicaram-se a limpar a biblioteca. Quando
saíram, Frances voltou para lá e passou horas trabalhando nos textos
explicativos que acompanhariam os livros expostos. Usando uma caneta
nanquim, ela em seguida preparou as etiquetas, em papéis que imitavam
velhos pergaminhos. Esperava que o resultado fosse uma surpresa
agradável para Harry. Sua mão movia-se devagar e com método, para fazer
os traços grossos e finos, o texto em azul-cobalto e as maiúsculas em
destaque, quando Dolly veio interrompê-la:
— Um tal sr. Latimer está aqui e quer vê-la, srta. Frances.
— Quer me ver? Tem certeza, Dolly?
— Foi o que ele disse. Parece que é de um jornal de Astcote. O sr.
Harry falou-lhe sobre um artigo a respeito da biblioteca e ele veio para
entrevistá-la.
— Mas eu pensei que Harry fosse recebê-lo e mostrar-lhe a mansão.
— Mas o sr. Harry não está.
— Disse isso ao repórter?
— Sim, e sabe o que ele me respondeu? Que precisa vê-la hoje, ou a
reportagem não sairá no jornal da próxima semana.
Frances suspirou, olhando para a roupa.
— Estou tão mal-arrumada. Peça a ele para esperar no hall, enquanto
lavo as mãos.
— Certo, querida. Trarei o café daqui a pouco.
Frances foi para o banheiro, lavou o rosto e as mãos, tirou o guarda-
pó e ajeitou o suéter vermelho. Passou um pente pelos cabelos e então

56
57

voltou pelo corredor, até o hall. O homem estava parado, de costas para
ela, examinando o brasão da família sobre a lareira. Tinha cabelos escuros
e ondulados, usava jeans e um casaco de couro sobre um suéter amarelo-
vivo. E trazia uma máquina fotográfica pendurada no pescoço.
— Sr. Latimer?
— É a bibliotecária? — ele indagou, virando-se. Parecia surpreso.
— Sim. Frances Wilding. Como vai? — Ela estendeu a mão. — A
sra. Bates disse-me que era repórter.
Ele a cumprimentou, olhando fixamente para ela.
— Você é mesmo a bibliotecária que está reunindo os documentos
dos Curthoys?
— Sim.
— Não me disseram que era tão jovem. Eu imaginei alguém de
tailleur de tweed, óculos e birote — Latimer comentou, com um ar
atrevido que desagradou Frances.
— Devo levar a bandeja para a biblioteca, srta. Frances? — Dolly
indagou, aproximando-se com o café.
— Sim, por favor, Dolly.
O rapaz apressou-se para pegar a bandeja.
— Permita-me. Parece muito pesada para uma senhora.
A solicitude um tanto forçada de Latimer não ganhou a simpatia de
Dolly, que entregou a bandeja com relutância, enquanto Frances mostrava
o caminho até a biblioteca.
Ele colocou a bandeja cuidadosamente sobre a mesa e olhou ao redor
com ávido interesse.
— É esta a sala que está sendo aberta pela primeira vez ao público?
— Sim. — Frances olhou para a máquina fotográfica com
curiosidade. — Você é fotógrafo também, além de repórter?
— Quando é necessário, sim.
— Aceita um café?
— Obrigado. Pouco açúcar. — Ele andou pela sala examinando os
livros e os móveis, depois viu os cartões que Frances estava escrevendo.
— É seu trabalho?
— Sim. O que deseja saber, sr. Latimer?
Ele encostou-se na mesa e sorveu um gole.
— Conte-me sobre os documentos que está reunindo.
Enquanto Frances discorria sobre o assunto, explicando em detalhes
a participação dos Curthoys na Guerra Civil, Latimer fazia anotações e às
vezes a interrompia com perguntas, que a encorajavam a falar ainda mais

57
58

sobre o tema.
— Vai dar uma reportagem interessante — ele comentou, uma hora
mais tarde. — Agora vamos tirar uma foto sua aqui, junto à mesa de
trabalho.
— Oh, não! — Frances recusou, aflita. — Aliás, creio que se alguém
deve sair nas fotos, é o sr. Curthoys, não eu.
— É mais bonita que ele, srta. Wilding. — Latimer sorriu e tirou a
bandeja da mesa. — Sente-se aqui e pegue a caneta, como se estivesse
escrevendo nestes cartões.
— Oh, mas...
Latimer fez com que se sentasse e pôs-lhe a caneta na mão.
— Não vai doer nada, eu garanto.
— O sr. Curthoys não mencionou nada a respeito de fotografias —
Frances ainda protestou.
— Srta. Wilding... Relaxe! — Os olhos de Tony Latimer brilhavam,
enquanto andava de um lado para outro, procurando o melhor ângulo. —
Agora, sorria... Não, não assim. Pense em algo agradável.
No momento, a coisa mais agradável em que podia pensar seria
esbofeteá-lo. Ao imaginar a cena Frances sorriu, e ele conseguiu a foto que
queria.
— Perfeito! — exclamou radiante.
Havia alguma coisa na personalidade daquele homem que lhe
causava mal-estar e Frances não via a hora de vê-lo partir.
— Já terminou, sr. Latimer? Estou muito ocupada e preciso continuar
o meu trabalho.
— Há mais alguma coisa... Harry disse que a senhorita me
acompanharia até a capela.
— O sr. Curthoys disse isso? — Frances estranhou. Achava difícil
acreditar que Harry houvesse feito uma promessa desse tipo, já que não
queria saber de sensacionalismo com relação àquele local. — Tem certeza,
sr. Latimer?
— Ele sabe que velhas capelas são o meu hobby e disse que poderia
visitá-la, já que estou aqui. Sei que não pretende abri-la ao público este
ano e pode ter certeza de que nada mencionarei a respeito na reportagem.
Com relutância, Frances deixou o repórter e foi até a cozinha para
buscar as chaves. Voltou logo em seguida, ainda não muito certa de estar
agindo bem. Enfim, se Harry havia prometido ao repórter...
— Construção interessante — ele comentou, quando chegaram. —
Em que século foi construída?

58
59

— Por volta de 1.400, século XIII.


Assim dizendo, Frances foi abrindo a porta. Ficou surpresa, pois o
rapaz não quis demorar nem cinco minutos no interior da capela. Para
quem se dizia apaixonado por antigas construções, ele demonstrava bem
pouco interesse. Melhor assim, ela pensou. Não simpatizara nada com
Latimer e quanto mais cedo ele se fosse, mais cedo poderia retornar ao
trabalho.
Assim que o repórter saiu, Frances fechou a porta e já se preparava
para acompanhá-lo até o portão de saída, quando o viu aproximar-se das
grades que circundavam o túmulo de Hal.
— Então esse é o célebre túmulo? — ele indagou, curioso. Frances
quase gritou quando o viu preparar a máquina fotográfica. Tony Latimer
começou a andar de um lado a outro, cheio de animação, enquanto tirava
uma série de fotos.
Furiosa, Frances segurou-o pelo braço.
— Como se atreve? O senhor veio aqui para ver a capela, não para
tirar fotos. Enganou-me direitinho, com toda aquela tolice a respeito de
construções antigas, e nem olhou para a capela. Este túmulo era a única
coisa que o interessava, não? — Estendeu a mão para apanhar a câmera,
mas Latimer riu, afastando-se.
— Acalme-se, minha cara. Estas fotos são para o meu prazer pessoal.
Completamente confidencial, eu garanto. Acha que eu iria irritar uma
pessoa importante como Harry Curthoys, sendo eu um simples empregado
do jornal? Eu perderia o emprego, garota.
— Espero que esteja dizendo a verdade — ela retrucou, num tom
seco. — Agora peço que se retire, sr. Latimer.
— Já estou saindo — ele aquiesceu, andando rapidamente à sua
frente.
— Por favor, saia imediatamente. Quero ter certeza de que partiu,
antes de voltar para o meu trabalho.
— Alguém já lhe disse como fica bonita quando está zangada? Não?
Tenho inveja de Harry Curthoys. Deve ser muito agradável ter uma jovem
tão encantadora como bibliotecária.
Frances não respondeu. Ficou feliz quando viu o velho Bates
trabalhando num dos canteiros, perto da saída.
— Sr. Bates — ela o chamou. — Por favor, quer acompanhar este
senhor até o carro?
— Sim, srta. Frances. Por aqui, senhor.
Tony Latimer olhou para o rosto impassível de Frances e tentou

59
60

gracejar:
— Se tenho mesmo de partir, só me resta agradecer-lhe pela
entrevista. — As palavras eram gentis, mas o jeito como ele a fitava,
observando-lhe os seios e o contorno dos quadris, chegava a ser
desagradável.
— Adeus — disse Frances com frieza e virou-se, partindo em direção
à casa. Finalmente estava livre dele, pensou, aliviada.
No sábado de manhã, Frances ouviu quando Harry chegou de
viagem. Seria bom revê-lo, mostrar-lhe as etiquetas que preparara, os
textos explicativos para a exposição. Resolveu esperá-lo na sala, ansiosa
para contar-lhe as novidades.
Ele parecia pálido e cansado quando entrou e o sorriso de Frances
apagou-se no rosto, ao ver-lhe a expressão furiosa.
— Já viu isto? — ele perguntou, entregando-lhe um jornal.
— Do que se trata? Por que está tão nervoso?
— Veja! — Apontando a coluna social, na primeira página, ele
acrescentou: — Assim talvez você entenda.
Frances leu o artigo, assinado por um tal Don Ryder, onde havia duas
fotos: uma era dela, sentada à mesa da biblioteca, e a outra era do túmulo
de Hal Curthoys. "Lembram-se de Hal Curthoys?", assim começava a
reportagem. Depois de uma introdução sobre o mistério que envolvia a
morte de Hal, o repórter falava de Harry, relembrando a fama de playboy
rebelde e seus tempos de universidade, a falta de dinheiro, agora que
herdara a propriedade, o romance fracassado com Annie Hayward
Breckanridge e... como o último descendente da família Curthoys tinha
uma linda bibliotecária para enfeitar a sala de documentos, e talvez ainda
outras salas particulares. "Os rumores são de que Harry precisa casar-se", o
repórter insinuava. "Dizem que só assim poderá receber o dinheiro que o
pai deixou vinculado. Grande mistério. Qual seria o motivo que levou a
bela Annie a abandonar o nosso herói? Maior mistério ainda é: por que
continua solteiro? Talvez a pequena Miss Bibliotecária consiga acertar na
loteria. Ou será que existe algum motivo oculto para que Harry continue
solteiro? Dizem as más línguas..."
Enojada, Frances pousou o jornal sobre a mesa. Sentia-se mal. Ao ver
a raiva de Harry, sentiu-se ainda pior.
— Agora quero saber por que deixou Don Ryder entrar aqui.
— Eu não sabia quem ele era. Dolly disse-me que um repórter havia
chegado e...
— E você não percebeu que não era o homem certo?

60
61

— Como poderia saber? Ele se apresentou como sr. Latimer. Pensei


que fosse aquele repórter que você conhecia.
— Pensou! Não poderia ter pedido as credenciais dele?
— Eu... Bem, isso não me ocorreu.
— O que foi que contou a ele?
— Nada. — Frances começou a se irritar. — Falei somente sobre o
trabalho que estava fazendo.
— Nenhuma história sobre meu noivado com Annie, ou minha
herança?
— É claro que não. Como você pode pensar que eu faria isso? — ela
retrucou, indignada. — Por acaso acha que sou uma idiota ou, o que é pior,
que eu trairia sua confiança?
Harry estava furioso demais para ouvi-la e foi num tom ainda mais
áspero que continuou:
— E para culminar, você deixou que ele fotografasse o túmulo de
Hal.
Frances levantou-se, ofendida diante da injustiça das acusações.
Tensa, prestes a perder o controle, afirmou:
— Ele contou uma história muito convincente a respeito de você ter
lhe prometido que poderia visitar a capela, pois adorava construções
antigas. Depois, antes que eu percebesse, estava tirando fotos do túmulo.
Eu tentei pegar a câmera, mas ele jurou que as fotos eram para seu deleite
pessoal, não para o jornal.
— Como pôde ser tão ingênua? Não percebe agora que teremos
multidões fazendo fila para entrar, todos loucos para ver o maldito túmulo?
E para me ver também. E a você! — Harry estava tão furioso que respirava
com dificuldade. — Não vejo motivo agora para não abrir oficialmente a
capela. Talvez até pudesse pôr um aviso: "Não é recomendado para
visitantes com nervos fracos". Deveria cobrar mais. Talvez ganhe o
suficiente para conservar o telhado. Droga!
— Eu não podia saber que esse homem era um impostor — Frances
replicou, aflita e magoada. — Eu pensei que estivesse dando informações
sobre os documentos para o Weekly Gazzette, conforme havíamos
combinado. Esse homem não publicou nada do que eu disse. Estava só
interessado em sensacionalismo barato. Que cretino miserável.
Harry encolheu os ombros.
— O que você disse ou fez, ou pensou, agora não tem mais
importância. O resultado está aí, em branco e preto no jornal, sua garota
tola e ingênua.

61
62

Frances empalideceu. Aquilo era demais.


— Vou embora daqui imediatamente — ela quase gritou.
Harry a fitou, perplexo. Estava tão pálido quanto ela e no longo
silêncio que se seguiu, a tensão tornou-se quase palpável.
— Impossível — ele disse, de repente. — Exijo um mês de aviso
prévio, para que termine o trabalho que iniciou.
— Como quiser. Agora me dê licença, pois devo ir à biblioteca para
cuidar dos últimos detalhes da exposição. Depois poderei trabalhar na
saleta contígua, até ir embora.
— Está bem. — A hostilidade no rosto dele a fez estremecer. Naquele
momento, era impossível reconhecer o Harry amável e bem-humorado de
sempre. Sem mais uma palavra, ele saiu da sala, deixando-a arrasada.
Frances via agora que por trás do homem encantador ocultava-se
uma pessoa dura e ferina, que não se importava de magoá-la
profundamente num momento de raiva.
Sentia-se injustiçada, traída no sentimento e no amor que devotava a
Harry. Homens! Se Chris, seu amigo da vida inteira, saíra correndo atrás
da primeira moça bonita que encontrara no novo emprego, por que haveria
de esperar consideração por parte de Harry Curthoys, que a conhecia
apenas há pouco tempo?
Tentava consolar-se com a idéia de que ainda tinha o trabalho.
Aprendera, durante os últimos tempos, que este era um remédio muito
efetivo para sentimentos feridos. Mas será que dessa vez funcionaria?
Estava muito magoada. Por que Harry não compreendia que sua
participação no artigo do jornal fora completamente inocente? Talvez até
mesmo tola, mas inocente.
No final de tarde, Frances terminou de catalogar os últimos livros.
Depois verificou os arquivos. Seu trabalho, no que tocava à exposição,
fora concluído. Tudo estava pronto para o domingo de Páscoa, o dia da
abertura da Curthoys Court ao público. Frances suspirou de alívio, grata
pelo fato de poder retirar-se para a pequena saleta ao lado, durante o tempo
que tivesse de permanecer ali. Resolveu pedir ao velho Bates que a
ajudasse a transferir o material para lá e foi procurá-lo. Como não o
encontrou no jardim, dirigiu-se à copa para perguntar a Dolly sobre ele.
— Srta. Frances! — Dolly exclamou, ao vê-la entrar. — Está tão
abatida... O que aconteceu? Eu vi o sr. Harry sair zangado hoje de manhã e
a senhorita quase não comeu no almoço. Por acaso discutiram?
— Infelizmente sim.
— Ah, minha pobre menina. Você me parece tão nervosa. Sente-se,

62
63

vou lhe fazer um chá.


Frances obedeceu. Minutos depois, enquanto saboreava a bebida
fumegante, resolveu desabafar com Dolly e contou-lhe tudo sobre o artigo
do jornal e a discussão com Harry.
— E ele acha que sou culpada pela reportagem — finalizou com
tristeza. — Eu quis ir embora imediatamente, mas ele acha que eu lhe devo
um mês de aviso prévio. Enquanto isso, vou ficar trabalhando na saleta ao
lado da biblioteca. Aliás, vim justamente procurar pelo sr. Bates. Quero
pedir-lhe ajuda para levar o material até lá.
— Veremos isso depois, querida — Dolly respondeu, servindo-lhe
mais chá. — Escute, procure perdoar o sr. Harry. Ele tem um gênio difícil,
mas é uma boa pessoa. Tenho certeza de que não queria ofendê-la.
— Então espero não estar por perto quando ele quiser me ofender —
Frances retrucou, com um sorriso amargo.
— Ele não fez por mal... — Dolly afirmou, com o empenho de uma
mãe desculpando o filho por uma travessura. — Prometa-me que vai tentar
perdoá-lo.
Frances forçou um sorriso.
— Está bem, Dolly. Bem, agora vou indo. O sr. Bates...
— Eu o aviso. Ele foi até Astcote de manhã, e logo estará de volta.
Agora, se aceita uma sugestão, vá dar um passeio e tente se animar um
pouco.
— Não, obrigada. Não tenho vontade, agora. Acho que prefiro ir para
o quarto, tomar um bom banho a descansar.
Após um longo banho de imersão, Frances já se sentia bem melhor.
Resolveu pôr uma roupa confortável. Optou por uma camisola curta, de
malha, pois não pretendia sair do aposento. Recostou-se na cama para
escrever algumas cartas. Uma era para Caroline Napier e outra para Jassy e
o pai. De repente, alguém bateu à porta. Certa de que fosse Dolly, ela
ordenou:
— Entre. O jantar saiu mais cedo, hoje? — interrompeu-se ao ver
que não era Dolly, e sim Harry.
— Frances... — Ele a fitava, com uma expressão de total
arrependimento. — Vim para pedir desculpas pela maneira como me
comportei hoje de manhã. — Passou a mão pelos cabelos, num gesto
nervoso. — Eu li o artigo e vim para cá... Então descarreguei toda a minha
raiva em você. Sinto muito. Muito mesmo. Quando fui para Astcote esta
manhã, telefonei para Tony Latimer e ele me contou que esse tal Don
Ryder vive aprontando confusões desse tipo. É um colunista da pior

63
64

espécie, mas parece que tem uma certa influência sobre o diretor do
Weekly Gazette. Em resumo, como Tony Latimer não podia vir fazer a
reportagem naquele dia, o tal Don o substituiu. Só que Tony, que fora
chamado às pressas para cobrir um "furo", só soube disso hoje. Caso con-
trário, teria me prevenido.
Frances o fitou, magoada, mas nada disse.
— Dolly me passou uma descompostura, agora há pouco — Harry
continuou. — Disse-me que você não queria receber o repórter, e que só o
fez porque eu não estava. Disse também que suas intenções, ao falar da
exposição, eram as melhores possíveis, o que, aliás, eu deveria ter sabido
desde o início. Mas é que fiquei tão furioso quando a vi, tão sorridente,
naquele porcaria de jornal, que perdi o controle. Além disso fiquei
possesso com a insinuação maldosa sobre o nosso relacionamento.
— E nós somos apenas amigos — Frances observou, com o olhar
distante. — Ou éramos.
Harry fitou-a com ternura.
— Gostaria de pensar que ainda somos. Se puder esquecer a cena que
fiz hoje de manhã, eu...
— Vou tentar — Frances murmurou.
— Isso quer dizer que virá jantar comigo, hoje?
— Não, acho que não.
Harry ficou ali parado, olhando para ela.
— Quer dizer que realmente passei dos limites, não? Você não vai
me perdoar tão cedo.
— Já disse que vou tentar. Mas, enquanto isso, acho que é melhor
cada um ficar no seu lugar. O seu é do lado de lá. — Frances apontou a
porta. — O meu, durante algum tempo, é aqui, até que termine o trabalho
pelo qual está me pagando.
— Eu a magoei muito, não foi? É este meu gênio horrível, eu sei.
Aprendi a controlá-lo durante estes últimos anos, mas de vez em quando
ele se solta e me domina.
— E então, salve-se quem puder — Frances replicou com frieza.
Encararam-se por um momento e então Harry saiu, fechando a porta
atrás de si.
Sozinha no quarto, Frances deixou escorrer as lágrimas que estivera
controlando. O encanto entre ela e Harry havia se quebrado. E talvez fosse
melhor assim. A dor que agora a invadia era insuportável. Precisava reagir,
ou acabaria enlouquecendo, decidiu, levantando-se para lavar o rosto. De-
pois voltou para a cama e esforçou-se para se concentrar na leitura de um

64
65

livro.
Dali a pouco bateram de novo à porta e o coração de Frances
disparou de emoção ao ver que também dessa vez não era Dolly: Harry
entrou no quarto carregando uma enorme bandeja. Sem uma palavra,
colocou-a sobre a mesa do canto, depois voltou-se para Frances, que o
olhava, espantadíssima, e pegou um guardanapo branco:
— Permita-me, minha senhorita — disse, muito sério. Afofou os
travesseiros atrás dela e estendeu o guardanapo sobre a colcha, à sua
frente.
— Mas o que é isso? O que está fazendo, Harry?
— Inversão de papéis — ele respondeu, e foi buscar um prato com
legumes e faisão assado. Colocou-o diante dela com uma reverência, e
entregou-lhe os talheres.
— Mas eu não posso...
— Pode, sim, mas há um problema. Vou ficar aqui para jantar
também. — E foi o que fez: serviu-se de um prato e sentou-se na beirada
da cama. Tranqüilamente, começou a comer.
Frances olhou-o, indecisa, depois encolheu os ombros e provou um
pedaço de faisão. Estava delicioso.
— Dolly sabe que você está fazendo isso? — ela indagou.
— Mais ou menos.
— O que quer dizer com "mais ou menos"?
— Ela achava que nós íamos comer lá na sala de jantar, como sempre
fazemos aos domingos.
— Então por que estamos comendo aqui?
— Porque você recusou jantar comigo. Então, decidi vir jantar com
você, milady. Ou seja, trouxe a guerra para o campo inimigo. — Harry fez
uma pausa, antes de levar o garfo até a boca. — Mas eu gostaria que não
fôssemos inimigos, Frances.
Subitamente, ela percebeu o absurdo da situação e começou a rir.
— Devo interpretar este riso cristalino como a graça de seu perdão,
milady?
— Ora, pare com isso. — Frances continuava a rir. Era impossível
manter-se indiferente diante daquele homem encantador.
Terminaram o jantar num clima bem mais descontraído e então Harry
convidou-a a tomar o café na sala. Frances tentou recusar, mas não
conseguiu.
— Está bem. Você me espera lá?
— Claro. — Ele levantou-se e colocou os pratos sobre a bandeja. —

65
66

Obrigado. — E sorriu — Até já, então.


Depois que ele saiu, Frances levantou-se e vestiu-se depressa.
Escolheu um vestido de seda verde-água e escovou os cabelos. Mirou-se
no espelho. Os olhos faiscantes e as faces rosadas a surpreenderam. Estava
muito diferente daquela criatura pálida que vira pouco antes. E sua
expressão parecia possuir uma espécie de brilho diferente... O brilho
inconfundível de uma mulher apaixonada.

Capítulo VIII

Mais tarde, quando estavam sentados na varanda, contemplando a


noite enluarada que parecia emprestar à paisagem um toque de azul e
prata, conversaram sobre o episódio desagradável da manhã.
— Para mim parece que isso aconteceu há tanto tempo... — Frances
comentou.
— Pois eu gostaria que não tivesse acontecido — Harry confessou,
com sinceridade. — Foi um choque para mim, quando você falou em
partir.
— Ficou com medo de não encontrar outro Sherlock para desvendar
os mistérios dos Curthoys?
— Não. Eu... Bem, digamos que isso fez nascer uma semente que
estava germinando em minha cabeça há algum tempo. — Harry fez uma
pausa, como se relutasse em continuar. Depois, num tom sério, disse: —
Frances, quero que ouça com toda a atenção o que tenho a lhe falar.
— Estou ouvindo — ela afirmou, tensa.
— Frances, você ainda está sofrendo pelo seu namorado?
— Não.
— Não? — ele repetiu, incrédulo. — Quer dizer que em tão pouco
tempo conseguiu esquecê-lo?
— Você não me entendeu, ou melhor, eu não me expliquei como
deveria. A verdade é que descobri que não amava Chris, realmente. Creio
que éramos apenas amigos.
— Assim como nós — ele comentou.
— Sim. — Frances desviou o olhar.
— Mas você ficou muito abalada com o rompimento, não?
— Seria mais exato dizer que fiquei magoada com Chris.
— Isso não significa que você ainda o ama?
— Não, claro. Mas por que está me questionando sobre esse assunto?

66
67

Harry ficou pensativo por um momento, depois virou-se para ela.


— Frances, você sabe quase tudo a meu respeito, inclusive o gênio
terrível que possuo. Você sabe também que preciso me casar e conhece os
termos do testamento. Porém, não estou disposto a me unir com uma
pessoa que esteja apenas interessada na fortuna de minha família. Gostaria
de ter ao menos um laço de amizade com a mulher com quem me casar, já
que o amor me parece, a cada dia que passa, algo impossível, próprio
apenas para os romances...
— Então você não acredita que duas pessoas possam se amar de
verdade?
— Não, realmente não.
Frances engoliu em seco e Harry continuou:
— Penso que você já sabe o que vou dizer... Esta manhã, quando me
falou em ir embora imediatamente, me senti arrasado. Seria terrível ficar
sem você. Eu me habituei a tê-la aqui em casa, Frances. É como se nos
conhecêssemos há tanto tempo e... Bem, o que estou tentando fazer é um
pedido de casamento. — Frances ia interrompê-lo, mas Harry calou-a com
um gesto. — Espere... Eu sei que você não me ama, mas essa história de
amar é mesmo pura ilusão, acredite. Além do mais, nós nos demos bem.
Temos interesses comuns, e este é um fator importante. Agora... — Harry
suspirou. — Vem a parte mais difícil. Você afirmou que gosta de crianças...
porque naturalmente aí é que está a dificuldade. Quero dizer, você estaria
disposta a me dar um filho? Ah, que situação difícil. Deus sabe que não
tenho aversão ao trabalho, mas não consigo imaginar um meio de ganhar o
suficiente para manter esta casa indefinidamente. — Harry encarou-a,
aflito. — Meu Deus, nunca vi um pedido de casamento tão pouco
romântico. — Virou-se e ficou olhando o vazio. — Claro que não estou
pedindo uma resposta imediata.
Frances ficou grata, pois no momento estava em estado de choque.
— Você é muito jovem — ele continuou, sem ousar fitá-la. — Talvez
a idéia de comprometer-se com um homem que lhe é praticamente um
estranho, e ainda por cima com a finalidade de dar-lhe um filho, não
parece ser uma proposta muito atraente.
Frances suspirou. Casar-se com aquele homem, que jamais a amaria,
não era, de maneira alguma, tão desinteressante como ele parecia pensar.
— Você me apanhou de surpresa — ela disse, depois de algum
tempo. — Nunca pensei...
— Você tem todo o tempo do mundo para decidir. Fale com sua
família, se achar necessário.

67
68

— Não preciso fazer isso. Essa decisão tem de ser apenas minha. —
Frances olhou-o e tentou sorrir. — Além disso, qualquer pai acharia você
um bom partido para uma filha.
— Não sei... Isso é o que dizem por aí, o que aliás me aborrece
terrivelmente. Sinto-me como um bilhete premiado de loteria. — Harry
retribuiu o sorriso. — Mas sei que você não falou por mal. Você é uma das
poucas pessoas que me valorizam e me aceitam como realmente sou.
Aliás, este é um dos motivos pelos quais acabo de lhe fazer esta proposta
maluca.
— E os outros?
— Você é uma boa amiga, é uma pessoa agradável, enfim... — Harry
fez um gesto vago e não percebeu a expressão decepcionada de Frances.
Se ele a amasse, aquele momento poderia ser tão feliz...
— Vou pensar sobre isso, Harry. — Frances levantou-se. — E, para
tanto, preciso de um pouco de solidão.
— Claro, eu compreendo.
— Amanhã à noite creio que já terei chegado a uma conclusão. Boa
noite.
— Frances, espere. Eu a acompanho até seu quarto.
— Não é necessário. Boa noite. — E Frances saiu, ainda perplexa
com o que acabara de ouvir.
Tarde da noite, ela ainda pensava. Será que realmente desejava ser a
esposa de Harry? A resposta era muito fácil: sem dúvida seria maravilhoso,
mas... Faltava apenas um ponto naquele jogo complicado para que a
felicidade fosse completa: o amor de Harry. Não a amizade, ou o carinho
fraternal, mas o amor, o desejo. Conseguiria conquistá-lo com o passar do
tempo? Estava preparada para enfrentar a maternidade assim tão
precipitadamente? Esta questão não a incomodava tanto. Amava Harry o
suficiente para lhe dar um filho. O problema era se algum dia ele a veria
como uma mulher desejável, e não como uma amiga, ou como uma irmã
mais nova? Agarrando-se a essa frágil esperança, sentia-se tentada a
aceitar. A situação era ao mesmo tempo maravilhosa e desesperadora.
Apesar do desgaste emocional que essas dúvidas lhe causavam, a
ponto de deixá-la exausta, Frances não conseguia dormir. A proposta de
Harry não lhe saía da cabeça. Sabia que ele lhe devotava um imenso
carinho, mas preferia que ele estivesse loucamente apaixonado... Por que
ela só conseguira despertar-lhe aquela espécie de afeição? Sabia também
que, ao menos quando a beijara, Harry a havia desejado. Mas desejo e
amor eram sentimentos bem distintos. Os pensamentos se sucediam numa

68
69

velocidade estonteante e Frances sentia-se cada vez mais confusa.


Finalmente conseguiu dormir, certa de que depois de uma noite de
descanso saberia o que dizer.
Na noite seguinte jantaram juntos num clima bastante tenso. Harry
não tocou no assunto, mas dirigia-lhe olhares ansiosos a cada momento.
Assim que terminaram a refeição, saíram para um passeio no jardim e
então Harry convidou-a a sentar-se num banco de pedra. Tomando-lhe as
mãos entre as suas, disse num tom suave:
— Frances, não quero pressioná-la, mas gostaria de saber se você
continua pensando sobre a proposta que lhe fiz. Estou tão nervoso que até
perdi a naturalidade diante de você, enquanto jantávamos. E receio que
não consiga agüentar esse suspense por muito tempo.
— A resposta é sim — Frances murmurou, nervosa.
Ele beijou-lhe a ponta dos dedos e então pressionou-lhe as mãos
levemente. Passou-se um longo momento, antes que perguntasse:
— E Chris? Ele não vai ser uma sombra no nosso casamento, não é?
— Não — ela respondeu, magoada com a insinuação. — Já lhe disse
que não. Quantas vezes preciso repetir?
— Desculpe. É que às vezes penso que você ainda o ama.
Frances sorriu com tristeza. Por que não dizia a Harry que ele era o
único dono de seu coração? Simplesmente não tinha coragem. Aquele era
seu segredo, e estava condenada a guardá-lo só para si, talvez para sempre.
— Quando? — ele perguntou, abraçando-a. — Logo?
— Assim que você quiser — Frances disse, baixinho, um momento
antes que Harry a beijasse, fazendo-a esquecer de todas as dúvidas. Ao
menos naquele instante, ele era seu.
Um mês depois estavam casados. Nas semanas que antecederam o
casamento, Frances viu-se totalmente sobrecarregada com os preparativos.
Às vezes chegava a pensar que nada ficaria pronto a tempo.
Curthoys Court tinha sido aberta ao público no domingo de Páscoa,
conforme fora planejado, e tudo correra a contento. Na verdade, não
esperavam tanta gente e os resultados suplantaram as expectativas.
De comum acordo, Harry e Frances optaram por uma cerimônia
simples, e convidaram apenas os parentes e amigos mais próximos.
E foi assim que, numa bela manhã de primavera, Curthoys Court
tornou-se cenário de uma festa bastante animada, com a presença do velho
Matt Wilding e Jassy, que mal cabiam em si de contentamento, pois eram
os padrinhos de Frances. Charlotte Curthoys e o marido foram os
padrinhos de Harry. Também os Napier compareceram, trazendo o

69
70

pequeno Sam, que carregou as alianças.


Frances, bela em seu vestido de noiva, que fora um presente de
Charlotte, sentia-se quase feliz... Olhando Harry, que estava fascinante
num terno branco, ela imaginava como tudo seria diferente se ele a
amasse... E então uma nuvem sombria parecia descer sobre seus olhos
verdes e ela se perguntava se não dera o passo mais errado de sua vida. No
entanto, agora, era tarde demais para retroceder.
No momento em que a noiva disse sim, os olhares se convergiram
para ela, com ternura e admiração.
Quando Harry a beijou, depois de finalizada a cerimônia, presidida
ao mesmo tempo pelo padre e pelo juiz de paz, ela sentiu-se incendiar de
desejo.
Entusiasmados, os convidados cumprimentaram os noivos,
desejando-lhes votos sinceros de felicidade.
— Agora você é a sra. Curthoys — Jassy disse a Frances, abraçando-
a. — Sente-se feliz?
"Quase feliz", Frances pensou, mas apenas respondeu:
— Sim.
Como ocorrera com Hal Curthoys há trezentos anos, ela agora amava
alguém e não era correspondida. Esse pensamento sombrio a entristeceu e
Frances afastou-se até a janela, controlando as lágrimas, sem perceber que
naquele exato momento Harry a observava, com uma expressão talvez tão
triste quanto a dela.
Também ele se perguntava se não teria errado casando-se com uma
mulher cujo coração julgava pertencer a outro homem.
— Se ao menos ela esquecesse Chris... — Harry murmurou, quase
sem pensar.
— O que disse, querido? — indagou Charlotte, que estava a seu lado.
— Como? — ele retrucou, com voz distante.
— Você disse qualquer coisa que não entendi.
— Ah, sim, eu costumo falar sozinho, às vezes — ele brincou,
tomando-a pelo braço. — Estava apenas pensando que Frances é uma
mulher maravilhosa.
— Sem dúvida. Você é um homem de sorte. Sua esposa é adorável —
Charlotte concordou, sem perceber a ponta de tristeza no olhar do irmão.
A festa durou o dia todo e já era noitinha quando o último convidado
se retirou.
Abraçados na porta da mansão, Frances e Harry acenaram para
Charlotte, que, debruçada na janela do carro, desejava-lhes felicidade.

70
71

Quando entraram na sala, encontraram uma bandeja de frutas, frios e pão


caseiro. Ao lado, um balde de gelo onde mergulhava uma garrafa de
champanhe. Sobre os guardanapos, imaculadamente brancos, um cartão
com os dizeres:
"Este é o nosso presente para vocês, com os mais sinceros votos de
muita paz e alegria. Dolly e Bates".
— Que lindo! — Frances comentou, comovida.
— Eu sempre digo que eles são meus pais postiços — Harry brincou.
— Aliás, acho que também adotaram você.
— Sorte nossa — ela retrucou, rindo. No íntimo, sentia-se
embaraçada, agora que estava a sós com Harry.
Procurava mostrar-se natural, como fazia habitualmente, mas havia
uma diferença. Afinal, esta não era uma noite como as outras.
Ela trocara o traje de noiva por um vestido azul, de gaze, cingido por
uma faixa que lhe realçava a cintura fina, deixando adivinhar as formas
arredondadas por sob o tecido quase transparente. E Harry vestia agora
uma camisa amarela de voil, com calça branca de algodão. Mas a grande
diferença era que haviam trocado de roupa no mesmo quarto que iriam
compartilhar, de agora em diante, como marido e mulher.
Sabendo que o momento de se entregar a Harry estava tão próximo,
ela se sentia tensa. No íntimo, temia decepcioná-lo e a insegurança a
dominava. Se havia algum modo de conquistar o amor daquele homem,
talvez fosse através da harmonia sexual, da entrega total, para que ele a
desejasse e desfrutasse de todo o prazer possível. Assim, talvez acabasse se
apaixonando. Conseguiria tocar o coração do homem que amava, através
da entrega de seu corpo? Duvidava, pois mesmo que Harry sentisse prazer
a seu lado, e portanto a desejasse, isso não significava que passaria a amá-
la. Imersa nestas dúvidas angustiantes, Frances mal sentia o sabor do
champanhe ou das frutas.
— O que há, querida? — Harry indagou, como se lhe adivinhasse os
pensamentos. — Está nervosa?
— Sim — ela não pôde negar.
— Isso é natural.
— Obrigada por ser tão compreensivo. Peço que tenha paciência
comigo no começo. Mas prometo que me acostumarei com tudo bem
depressa.
— Você é uma garota maravilhosa. E eu sou um homem de sorte por
ter me casado com você.
Uma centelha de esperança brilhou nos olhos de Frances. O que

71
72

Harry queria dizer com "um homem de sorte"?


— A amizade que existe entre nós é algo muito difícil de acontecer
entre um homem e uma mulher.
— E nós fomos os premiados — ela retrucou, com uma ponta de
amargura. Ante o olhar surpreso de Harry, apressou-se a acrescentar: —
Oh, desculpe, mas já lhe pedi para ser paciente comigo. Não tenho muito
jeito para... a verdade é que estou confusa e...
— Tensa?
— Sim.
— Não deveria — ele censurou num tom carinhoso, tomando-a pela
mão e conduzindo-a ao sofá. — Sente-se aqui comigo e procure relaxar.
Relaxar? Esta era a espécie de reação impossível de ocorrer quando
estava ao lado daquele homem. Estava nervosa, sim, mas por um motivo
bem diferente do que ele supunha: não tinha medo de entregar-se, e sim de
decepcioná-lo.
— Você quer conversar um pouco, Frances? — ele indagou,
acariciando-lhe os cabelos. — Há algo que queira me dizer? Por acaso
você tem algum trauma, ou...
— Bem... Chris costumava ficar impaciente porque eu não me
interessava por sexo. Eu gostava dos beijos e das carícias, mas quando
chegavam os carinhos íntimos, eu o desapontava.
— E você se sentia culpada por isso?
— Claro.
— E nunca lhe ocorreu que este problema era falta de entrosamento
entre vocês dois, e nada mais?
— Para ser franca, não. Chris sempre me pareceu tão seguro... Mas
não vamos falar de Chris.
— Isso mesmo. — Harry levantou-se, foi até o bar e serviu duas
doses de xerez. Estendeu um cálice a Frances e acrescentou: — Creio que
nos sentiremos melhor, agora. O álcool ajuda a relaxar.
Frances sorveu a bebida, antes de aconchegar-se ao peito de Harry.
Uma sensação de leveza mesclou-se ao desejo que ele lhe despertava. Mas
a insegurança ainda permanecia e foi num tom de voz quase inaudível que
ela murmurou:
— Tenho medo de desapontá-lo, também.
— Não fale assim, querida.
Pouco depois, subiam de mãos dadas para o quarto. Harry abriu a
porta e, tomando-a no colo, levou-a até a cama. Frances começou a rir.
— Ei, o que está fazendo?

72
73

— A tradição manda que o homem carregue a esposa até o leito


nupcial. Afinal, você é a nova castelã de Curthoys Court e merece todas as
honras — acrescentou, rindo, e deitou-se ao seu lado. Começou a beijá-la
com suavidade, depois com mais avidez, o que a fez parar de rir.
Atraindo-a para si, Harry a acariciou sobre o tecido fino do vestido,
provocando-lhe gemidos de prazer. Depois, suas mãos penetraram em seu
decote e encontraram os seios firmes. Frances arqueou o corpo. O toque
daqueles dedos a incendiavam de desejo. Era a primeira vez que
experimentava aquela sensação doce e angustiante ao mesmo tempo.
Devagar, Harry tirou-lhe o vestido, depois a minúscula tanga branca e
afastou-se um pouco para contemplá-la:
— Você é linda — murmurou, antes de abraçá-la novamente.
Frances, emocionada, fitou Harry um momento antes do beijo e viu
em seus olhos azuis o brilho do desejo. Sim, não podia estar enganada: ao
menos naquele instante, ele a desejava. Conseguira despertar esta emoção
no homem que amava e isso a deixava mais confiante. Conseguiria
também que ele a amasse, algum dia? Só o tempo saberia dizer.
Mas agora não era o momento de se atormentar com essa frágil
esperança. Estava encantada demais com o corpo perfeito de Harry, que
sem nenhuma pressa se libertava das roupas. Como era belo e viril. E não
havia nada no mundo que quisesse mais do que se entregar a ele, de corpo
e alma. Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Harry beijou-lhe os
olhos, a boca, o pescoço, e então tocou-lhe os seios com os lábios.
Se houvesse tempo para tanto, Frances ficaria surpresa com sua
própria desenvoltura. Sua quase total inexperiência de repente já não tinha
nenhuma importância. Era como se o amor a guiasse para Harry, como se o
desejo lhe ditasse o caminho das carícias mais íntimas. Tudo o que contava
no momento era o encanto de descobrir e tocar aquele corpo, perceber os
músculos tensos, as batidas aceleradas do coração de Harry, que agora a
chamava baixinho, para torná-la sua esposa.
Quando ele a penetrou, Frances foi envolvida numa torrente de
sensações que a levaram, devagar e ritmadamente a um clímax que nunca
julgara existir.
Por um tempo que mais parecia uma doce eternidade, ambos
permaneceram abraçados. E como se formassem um só corpo, uma só
pulsação que agora se acalmava, aos poucos, embalada pela serenidade do
prazer satisfeito, do ato consumado.
Bem mais tarde, quando começou a despertar no quarto escuro,
Frances estava desorientada, vagamente consciente de um braço

73
74

envolvendo-a pela cintura.


Em sua mente, ainda povoada pelo resto de um estranho sonho, as
imagens se misturavam, confusas. Tinha sonhado com Chris e a primeira
vez que se entregara a ele, ainda nos tempos de faculdade. Acordara
sobressaltada no meio da noite, incomodada com o braço que a envolvia e
ainda assustada com a experiência quase brutal daquele seu primeiro ato
de amor. Como tentasse se levantar, Chris despertara e, apertando-a contra
si, quisera recomeçar as carícias. O pânico a invadira, então. Não queria
que ele a possuísse de novo, ao menos não naquela noite, quando se sentia
dolorida e traumatizada, certa de ser a culpada por isso. As carícias de
Chris iam se tornando mais urgentes e Frances, sem poder controlar o
medo, pedira num tom quase de súplica:
— Não... Por favor, Chris...
— Chris! — ela gritou, na penumbra do quarto de Curthoys Court.
O braço que a segurava afastou-se com uma violência que a trouxe
de volta à realidade. Numa fração de segundo, Frances lembrou-se de onde
estava. E com quem estava. A luz do abajur acendeu-se de repente,
revelando os olhos furiosos de Harry, onde a hostilidade agora habitava.
— Então você chama o nome de outro homem na sua noite de
casamento, sra. Curthoys? Eu deveria ter compreendido que você jamais
deixaria de amá-lo. — Levantando-se, ele abriu o armário e vestiu um
robe. Então voltou-se para ela com uma expressão de mágoa e ódio.
Trêmula, Frances se encolheu e o fitou com um ar de total abandono.
— Harry, você não está pensando que eu amo Chris...?
— Não é preciso pensar. As evidências demonstram. De qualquer
forma, o erro foi meu — ele disse num tom frio, dirigindo-se à porta. — E
eu imaginei que... Ora, deixe para lá.
— Harry, onde você vai? — ela indagou, descontrolada.
— Vou dormir na sala.
— Não me deixe aqui sozinha, por favor... Eu posso explicar. Oh,
meu Deus, você não está entendendo que...
— Estou, sim. O pior é que estou.
— Deixe-me explicar. Eu tive um sonho e...
— Ah, sim — ele a interrompeu, com um sorriso de desprezo. —
Agora você vai me contar seu sonho com Chris?
— Não — ela gritou. — Não é nada disso.
— Procure se controlar, Frances. Esta cena lamentável já foi longe
demais.
Os olhos azuis de Harry agora pareciam impassíveis. Era difícil

74
75

acreditar que aquele homem frio fora um amante maravilhoso e terno, há


apenas algumas horas. Onde estava o seu Harry?, ela se perguntava,
desesperada.
— Não me deixe sozinha — repetiu.
— Fique com as lembranças de Chris.
Frances sufocou um soluço. Compreendeu que o estava perdendo,
talvez para sempre, e que precisava fazer algo para deter aquele ódio
estampado nos olhos azuis que tanto amava. Uma centelha de esperança
acendeu-se em seu angustiado coração. Só havia um modo de salvar o seu
amor: confessá-lo. Sim, pois jamais dissera a Harry que o amava.
E agora chegara o momento. Se ele em troca lhe devolvesse um
sorriso complacente, se lhe respondesse que seu sentimento por ela era
apenas amizade, ainda assim isso seria melhor do que aquele ódio terrível.
Que importava que seu orgulho feminino ficasse ferido? Nada, diante
desse momento desesperador. Respirando fundo, tentando controlar o tre-
mor da voz, Frances começou a dizer:
— Eu... — a porta bateu com força e as últimas palavras soaram no
silêncio do quarto — eu te amo, Harry! — As lágrimas escorreram-lhe
pelo rosto e ela repetiu: — Eu te amo!
Mas Harry não estava mais ali para ouvi-la.

Capitulo IX

Um mês havia se passado e tudo parecia estar correndo bem em


Curthoys Court, ao menos sob o ponto de vista material: o público crescia
a cada final de semana, dois jornais importantes de Londres haviam
dedicado a coluna cultural à propriedade, narrando em detalhes o imenso
acervo que lá existia. Grupos de universitários de várias faculdades fre-
tavam ônibus para visitar o local, onde passavam o dia.
Frances fizera contato com várias fundações e universidades. Para
que os estudantes ficassem à vontade, sem ter de enfrentar as filas que se
formavam nos fins de semana, ela abria a mansão às quartas e sextas para
recebê-los, e colocava-se à disposição para orientá-los em suas pesquisas.
Com suas maneiras simples, conquistava a simpatia do público e por duas
vezes já fora chamada a presidir debates ou dar palestras em universidades,
recebendo por isso uma soma razoável.
Com a aquiescência de Harry, e a ajuda do velho Bates, construíra
alguns quiosques para que os visitantes pudessem fazer um lanche ao ar

75
76

livre. Sugerira a Dolly que preparasse tortas e sucos para vender, o que
também rendeu um bom lucro àquela bondosa senhora, que mal cabia em
si de contentamento.
— Você veio trazer uma nova vida a este lugar, querida — ela
costumava dizer a Frances, que nesses momentos tinha de se controlar
muito para não demonstrar sua tristeza.
O relacionamento com Harry ia de mal a pior. Era terrível admitir,
mas seu casamento fora um fracasso, e tudo por um mal-entendido que não
conseguia esclarecer.
Desde aquela primeira noite, quando experimentara a felicidade nos
braços do homem que tanto amava, Harry não mais a tocara. Mais que
isso: negara-se a ouvir as explicações que ela quisera dar. Estava
absolutamente certo de que sua esposa amava outro e nada no mundo seria
capaz de demovê-lo dessa idéia.
O homem gentil e encantador que a conquistara tornara-se um
marido frio e indiferente. Muitas vezes ela o flagrara fitando-a com um
misto de raiva e mágoa. Nem a chance de conversar ele lhe dava, pois
bastava tocar no assunto para que levantasse e saísse, deixando-a sozinha
com seu desespero e seu amor incompreendido.
Reagindo àquele clima hostil, Frances trancava-se em si mesma, em
seu mundo triste e sem esperanças. Muitas vezes, quando Harry se deitava
a seu lado sem sequer olhá-la, ela mordia o lábio para não dizer palavras
de carinho. Isso só contribuía para dar ainda mais certeza a Harry de que
sua esposa não o amava.
"Minha vida...", Frances escrevera numa carta a Jassy, "é uma
sucessão de mal-entendidos. A princípio Harry imaginou que eu fosse
apaixonada por Chris e infelizmente devo admitir que tive culpa neste
equívoco. Quando rompi com Chris e contei a Harry que assim tinha sido
melhor, ele duvidou que eu estivesse falando a verdade. Julgava-me ainda
apaixonada. E como demovê-lo dessa idéia? Só se lhe confessasse que era
a ele que eu amava, mas não tive coragem. Como dizer isso a um homem
que me tratava como uma boa amiga, eu como uma garota ingênua? Eu
tive medo de parecer ridícula, de receber como resposta ao meu amor
apenas um sorriso distante... E agora pago caro por meu orgulho..."
A carta continuava, cheia de conclusões amargas. Frances não a
enviou. Deixou-a na gaveta do criado-mudo, dentro de um caderno de capa
dura, onde passou a fazer anotações sobre o seu dia-a-dia. Quando
percebeu, possuía um diário...
"Como lady Arabella", ela pensava com amargura.

76
77

"A diferença é que amo meu marido acima de tudo. E seria incapaz
de matar quem quer que fosse".
"Meu ponto em comum com lady Arabella é o sofrimento...", Frances
escreveu, certa noite.
E assim o tempo transcorria, indiferente aos problemas humanos.
Frances atirava-se ao trabalho, sem se importar com o cansaço. Tudo o que
desejava era esquecer sua angústia e o único modo de conseguir isso era se
concentrando nos livros. Além do mais, era bom que estivesse exausta, à
noite. Assim não teria tempo de pensar muito antes de adormecer. Nem de
contemplar o rosto sereno de Harry dormindo. Nesse momento ele parecia
estar em paz, era o mesmo Harry que conhecera e por quem se apaixonara.
Tinha de se controlar muito nessa hora para não acariciá-lo, para não
abraçá-lo, implorando um pouco de ternura e compreensão. Que ironia do
destino, ela se dizia, contendo as lágrimas. Aquele homem parecia tão
próximo e ao mesmo tempo estava tão distante como as estrelas no céu.
Até quando suportaria a situação? Não tinha a mínima idéia de como
resolver sua vida. No íntimo, ainda acalentava uma última esperança, que,
com o passar dos dias, ia cedendo lugar a uma tristeza infinita.
Ninguém percebia a infelicidade do casal Curthoys. Por um acordo
sem palavras, que surgira naturalmente, ambos se tratavam com
cordialidade na frente das outras pessoas. Isso quando precisavam se falar.
Se não, cada qual se recolhia a um canto. Nem mesmo Dolly parecia
perceber o que se passava. Ou, se percebia, não demonstrava. Tratava am-
bos com carinho, como se fossem os filhos que jamais tivera, e mimava-os
o quanto podia.
A vida se arrastava e Frances sentia-se levada pela correnteza dos
acontecimentos, sem que nada pudesse fazer. Estava corada pelo sol, seus
cabelos sedosos emoldurando-lhe o rosto de traços delicados. Quando se
olhava no espelho, constatava o quanto tinha mudado: ao chegar ali, era
uma garota alegre, espontânea, um tanto inábil e imatura.
Naqueles poucos meses tornara-se mulher, seu corpo se arredondara
nas formas, seus olhos traziam uma expressão mais serena. Mas do que
adiantava tinha tudo isso, se estava infeliz?
Certa noite, pouco antes do jantar, um carro estacionou no pátio da
mansão.
— Está esperando alguém? — Harry perguntou, num tom seco.
— Não.
Pouco depois Dolly atendia a porta e ambos levantaram-se e
dirigiram-se ao hall.

77
78

— Harry, querido! Há quanto tempo. — Uma garota ruiva, vestida de


maneira sofisticada, atirou-se nos braços de Harry.
Frances, surpresa, a observava. Ela era bonita e sexy e parecia muito
segura de si. Quem seria?
— Annie, que surpresa! — ele exclamou, num tom descontraído. —
Vamos entrar. Deixe-me apresentá-la a minha esposa... Frances, esta é
Annie Warwick.
— Como vai, querida? — a garota a cumprimentou com dois beijos
nas faces.
— Bem... e você? — Frances respondeu, com um sorriso amável.
— Você janta conosco? — Harry convidou, tomando Annie pelo
braço e conduzindo-a à sala de jantar.
— Oh, não, querido. Estou apenas de passagem e não posso me
demorar muito.
— Então, que tal um drinque?
— É uma ótima idéia. Diga-me, você ainda tem aquele bourbon
maravilhoso que costumávamos tomar?
— Claro — Harry respondeu, solícito. — Você também quer um
drinque, Frances?
— Sim, obrigada — ela concordou, sentando-se numa poltrona em
frente a Annie. Annie! Agora compreendia quem era a ex-noiva de Harry,
com quem ele quase se casara. O que estaria fazendo ali? Por que a visita
inesperada?, perguntou-se, com uma sensação incômoda.
Minutos depois, os três saboreavam os drinques e a insegurança de
Frances crescia a cada momento. Não gostava das maneiras afetadas de
Annie, nem do modo com que Harry a olhava. Inclinando-se para ela,
ouvia-a com interesse e deferência, e isso incomodava Frances, que
começava a se irritar. Era engraçado... pensava, com amarga ironia. Harry
lhe dissera certa vez que Annie jamais o amara, e que seu único interesse
era a fortuna dos Curthoys. No entanto, dispensava-lhe agora todas as
atenções, enquanto que ela, Frances, só recebia a mais fria indiferença.
Ela, que o amava tanto!
— Pois então, querido... — Annie tagarelava — estou morando na
França, mas vim visitar alguns amigos e pensei: oh, Deus, não posso
deixar de ver Harry. Além do mais, eu soube do casamento e queria muito
conhecer sua esposa. Devo dizer que achei Frances adorável. — Fez uma
pausa, sorrindo para Frances, antes de indagar: — E então, meu bem,
sente-se feliz com o casamento?
— Incrivelmente feliz — ela respondeu, com uma ironia que passou

78
79

despercebida à outra, mas não a Harry, que duplicou as atenções com


relação a Annie.
— E então, como vão os estudos? — ele perguntou, com um olhar
interessado.
— Era exatamente sobre isso que eu queria lhe falar — Annie disse,
rápido. — Creio que precisarei de um pequeno favor seu... Você não me
negaria, não é mesmo?
— Primeiro me conte do que se trata — Harry replicou. Então o
verdadeiro motivo dessa visita aparentemente despretensiosa começa a
aparecer, Frances pensou.
— Espere, vou explicar direitinho — Annie começou. — Não sei se
você está a par do trabalho que desenvolvi na França...
— Não, realmente — Harry respondeu, terminando o drinque.
— Oh, fiz um trabalho maravilhoso, modéstia à parte. Terminei a
faculdade há dois anos e logo em seguida consegui um cargo de assistente
da cadeira de História, na Universidade de Londres. Conheci um professor
maravilhoso que me levou para a França e lá desenvolvemos uma
pesquisa, para uma fundação cultural.
— Que ótimo — Harry comentou.
Isso serviu para estimular Annie ainda mais, o que deixou Frances
furiosa.
— Pois então... — Annie continuou. — Agora surgiu uma
oportunidade fantástica para viajar com um grupo de historiadores até a
Espanha, a fim de desenvolver um levantamento arqueológico, sob o
patrocínio dessa mesma fundação.
— E você foi escalada para integrar a equipe?
— Sim, querido, mas há um pequeno porém... Não tenho horas de
trabalho suficientes para preencher as exigências, compreende? Falta algo
no meu currículo, algo como... — Annie exibiu seu mais cativante sorriso,
antes de explicar: — Um estágio em Curthoys Court, por exemplo, seria
suficiente para que me aceitassem. Afinal, Curthoys Court está em
evidência, com toda essa publicidade que andam fazendo. É considerada
uma espécie de museu ou centro cultural. E tem tudo a ver com minha
área.
— Não estou entendendo, Annie. Você quer trabalhar aqui?
— Mas não, meu querido, claro que não. — Annie ria, jogando os
cabelos ruivos para trás, consciente do quanto poderia ser encantadora. —
Quero apenas uma declaração sua, dizendo que trabalhei aqui por...
digamos... seis meses.

79
80

Frances levantou-se, indignada. Aquilo era demais e se não se


retirasse da sala agora mesmo, não conseguiria conter uma grosseria, que
aliás Annie bem merecia.
— Com licença. Preciso verificar se o jantar está pronto.
— Oh, eu aborreci você, querida? — a outra perguntou.
Aborrecer não era o termo exato. Frances estava furiosa e ficou ainda
mais ao ver a expressão tranqüila de Harry.
— Com licença — ela repetiu, e saiu apressada, a tempo de ouvir
Annie insistir:
— Você não vai me negar este favor, não é mesmo, querido?
Ofegante, Frances chegou ao quarto, batendo com raiva a porta atrás
de si. Estava ferida em seu orgulho feminino, pois Harry, deliberadamente,
dera atenção àquela mulher que um dia o magoara. O que ele queria
demonstrar com isso? Se desejava provocar-lhe ciúme, tinha conseguido. E
agora, será que prestaria aquele favor a Annie? Teria coragem de dar-lhe
uma declaração dizendo que estivera trabalhando em Curthoys durante seis
meses? Iria tirar-lhe o único mérito que possuía? Era só o que faltava!
Dividir com a outra a competência de um trabalho exaustivo, que agora
tornava-se evidência em vários jornais! Mas isso não a deixava tão furiosa
quanto os olhares lânguidos de Annie para Harry. O que aquela mulher
queria? Conquistá-lo novamente, agora que Curthoys rendia dinheiro
suficiente para projetá-lo novamente nas altas rodas sociais que ela com
certeza freqüentava?
As lágrimas inundaram os olhos de Frances e ela compreendeu,
desesperada, que a situação chegara a um ponto insustentável. Suportara
tudo com dignidade até então, pois julgava que ainda era possível um
entendimento com Harry. No entanto, neste momento era obrigada a
admitir que não havia mais saída. Fora humilhada em sua própria casa e
isso já era o bastante. Só havia uma atitude a tomar: partir de Curthoys
Court para sempre, deixando para trás a perspectiva de uma felicidade que
lhe escapara entre os dedos em sua noite de núpcias. Conseguiria esquecer
Harry e tudo o que ele representava? Provavelmente não. A lembrança dos
beijos ardentes, da magia daquela noite que lhe parecia longínqua, nunca a
abandonaria.
Num impulso, Frances abriu o armário e retirou uma grande mala de
couro, que colocou sobre a cama. Depois, com gestos nervosos, apanhou
as roupas dos cabides e começou a guardá-las. Não podia pensar nem
tampouco ouvir a voz do coração, ou não teria coragem de sair dali.
Chegara a hora de dizer adeus; era inevitável. Pegaria o Sedan na garagem

80
81

e depois o deixaria na casa do Napier, para que o devolvessem a Harry.


Deixaria também um bilhete para Dolly e Bates. E para Harry... o seu
coração.
Levou mais tempo do que pensava para arrumar tudo. Era incrível
como possuía roupas e objetos, sem contar os livros... E o diário, ela
lembrou-se. Guardou-o na valise de mão, junto com seus objetos de toalete
e o broche com o retrato de Hal, que Harry lhe dera antes do Natal. Sem se
importar com as lágrimas que turvavam-lhe a visão, ela tirou a aliança e
depositou-a com as mãos trêmulas sobre o criado-mudo. Harry a
encontraria, sem dúvida.
Por fim, vestiu um casaco leve sobre o vestido de linho que estava
usando, escovou os cabelos, e parando junto à bagagem que empilhara a
um canto, olhou para o quarto. Estava pronta e não podia hesitar. Tinha
acabado de ouvir o carro de Annie partindo e dali a pouco Harry poderia
subir. Não queria vê-lo, ou melhor, não suportaria. Era melhor partir. E
rápido.
Enxugando os olhos com as costas das mãos, pegou a malas e
naquele instante a porta se abriu. Harry parou e levou apenas alguns
segundos para compreender. Visivelmente nervoso, os olhos azuis muito
abertos, numa expressão de espanto, ele indagou:
— O que está fazendo, Frances?
Ela estremeceu. Por que não saíra antes? Agora teria de magoá-lo e
magoar-se novamente, a cena prometia ser tão ou mais desagradável do
que da noite do casamento. Conseguiria suportar mais essa dor? Estava no
limite da resistência, mas agora não havia como fugir. Curthoys Court lhe
reservara mais essa provação.
— Estou de partida, como pode ver — respondeu, num fio de voz.
— Vai me deixar? — Harry perguntou, com uma suavidade que a
surpreendeu. — Por quê?
Frances perdeu o controle:
— Por quê? Você ainda tem coragem de perguntar? Porque estou
farta da sua indiferença, de seu desprezo. Tentei fazer de tudo para que
você me ouvisse, me desse chance de explicar tantas coisas... Mas você
não tem tempo para mim, não é mesmo? Só tem disposição para as tolices
das outras mulheres. Delas você nunca se cansa, não é mesmo, sr. Cur-
thoys? E não hesita em dar-lhes declarações falsas, para que elas possam
viajar para a Espanha com seus trabalhos ma-ra-vi-lho-sos, enquanto que
eu, que fui realmente a responsável pela biblioteca de Curthoys Court, o
que ganho? Seu olhar frio e sua falta de compreensão.

81
82

Harry começou a rir. Frances o encarou, perplexa. Esperava dele


qualquer reação, menos aquela.
— Quer me dizer que é a graça, por favor? Já não bastou ter me
humilhado, e agora quer me ridicularizar?
— Frances... — Harry continuava a rir. — Você... Você está com
ciúme... E de Annie!
— Ciúme? Estou furiosa. E farta dessa vida que levamos.
Harry a fitou, subitamente muito sério.
— Não pensei que você se preocupasse com nossa vida, Frances.
Achei que você passasse os dias lamentando ter se casado com um homem
que não ama.
— Com um homem que não me ama, você quer dizer. Antes, você ao
menos me dava sua amizade. E agora, nem isso. Eu sabia que você não me
amava, mas esperava conquistá-lo, algum dia. Quando vi que você me
desejava, na noite do nosso casamento, senti uma nova esperança nascer
dentro de mim. Eu pensei: Harry não me ama, para ele sou apenas uma
garota imatura, talvez uma boa amiga e nada mais. No entanto, quem
sabe... — Um soluço sufocou-lhe a voz e Frances escondeu o rosto entre as
mãos.
Harry ensaiou um gesto para acariciá-la, mas interrompeu-se. O
orgulho ferido o impedia de fazer o que desejava e ele resolveu tocar no
assunto que tanto o magoava:
— Mas por que você queria me conquistar, já que não me amava?
— O que está dizendo?
— Mas você não vai querer negar agora que chamou o nome de
Chris, naquela noite. O que eu poderia pensar disso?
— O que quisesse, Harry, desde que me deixasse explicar.
— Pois bem, fale. Estou ouvindo.
Frances o encarou. Era a segunda vez que ele a surpreendia naquela
noite.
— Receio que agora seja tarde demais para isso, Harry...
— Talvez não — ele retrucou, em voz baixa.
Controlando o tremor da voz, Frances contou-lhe o sonho que tivera
com Chris, contou-lhe sobre como o sexo fora frustrante entre ambos, e o
quanto isso a traumatizara.
Falou sobre tudo o que não tivera coragem de confessar antes. A
expressão intrigada de Harry ia aos poucos se tornando mais suave e ele a
ouvia com atenção.
— E na noite do nosso casamento... — Frances concluiu — descobri

82
83

que o sexo era algo maravilhoso e mágico, bem diferente do ato frustrante
que eu conhecera com Chris. Claro que ele não tinha culpa, como aliás
você mesmo disse, nem tampouco eu. Com você, no entanto, tudo correu
tão bem, tão... Eu me realizei, entende?
Harry a olhou por um longo momento, antes de indagar:
— Se eu lhe pedisse para ficar... você concordaria?
Frances suspirou. De novo aquela tênue esperança voltava a acender-
se. Mas tinha medo de se magoar novamente e por isso respondeu com
cautela:
— Se eu ficar, terei de novo sua amizade, a sua consideração?
— Receio que não — ele disse, baixando os olhos.
Frances sentiu que o chão lhe fugia sob os pés. Uma sensação de
abandono a invadiu.
— Então por que está me pedindo para permanecer nesta casa,
Harry? Por acaso só quer me fazer sofrer? Mas isso você já conseguiu, e
muito! Por que não quer me dar sua amizade de novo?
— Porque sinto por você algo maior... Porque eu te amo, Frances.
Ela ergueu o rosto devagar e encontrou os olhos de Harry. Não estava
sonhando... O que via naquele olhar só podia ter um significado: amor.
— Mas eu também amo você, Harry.
Uma centelha de felicidade iluminou o rosto perfeito de Harry.
— Você... Diga isso de novo, Frances.
— Eu te amo... Não tive coragem de dizer-lhe antes porque você só
me tratava como amiga, às vezes até como uma criança.
Ele sorriu, carinhoso.
— Eu só a tratava assim para me defender do que sentia por você.
Além do mais, eu julgava que você amava Chris. Oh, Frances, por que não
me disse isso antes? Teria nos poupado tanto sofrimento...
— E por que você também não me disse?
Frances interrompeu-se. As palavras já não eram necessárias, não
naquele momento, em que todo o desespero cedia lugar a uma felicidade
sem limites. Impulsionados pela mais pura emoção, abraçaram-se com
força e um beijo uniu os lábios e os corações, como se quisessem resgatar
o tempo perdido.
O desejo que os incendiava tornou as carícias mais ousadas, na
mágica busca do prazer. Minutos depois, estavam nus, livres para cumprir
o mais antigo ritual de felicidade entre homem e mulher. O prazer era
intenso, quase insuportável de tão belo, no caminho secreto que só aos
verdadeiros amantes é dado conhecer. Assim chegaram ao clímax, para

83
84

então se deixarem cair numa doce sensação de paz, de corpos satisfeitos.


Adormeceram abraçados e despertaram na madrugada, dessa vez não para
destruir o encantamento, mas para enriquecê-lo com novas carícias, até um
novo ato de amor.
— O prazer não tem mais fim? — Frances murmurou no final,
aconchegando-se ao peito de Harry.
— Não, ele cresce a cada vez. Acho que não tem fim, mesmo... É
como o amor.
— Como o nosso amor — ela o corrigiu, desenhando-lhe o contorno
dos lábios com a ponta dos dedos.
Ficaram abraçados, observando a claridade lá fora, cada vez mais
forte. Amanhecia em Curthoys Court e o dia prometia ser radiante, como
se quisesse homenagear os amantes.
Em dado momento, Frances sorriu, divertida, e ele perguntou:
— O que foi?
— Bobagem...
— Pois me conte, sra. Curthoys.
— Estava me lembrando que eu quase quis matá-lo, ontem à noite.
— Por causa de Annie? — Harry também riu. — Agi como um
adolescente idiota querendo provocar ciúme na namorada. Acho que isso
resume minha atitude. No início fiquei surpreso, não apenas por revê-la
depois de tanto tempo, mas pela minha tranqüilidade diante daquela garota
por quem um dia fui apaixonado.
— Nunca mais diga isso, sr. Curthoys, ou ficarei com ciúme
novamente. Que história é essa de ter sido apaixonado por ela?
— Acho que eu a amei como você amou Chris. Paixão de
adolescência, e nada mais.
— E aquela deferência toda com que a tratou? Terá sido em
homenagem aos velhos tempos?
Harry apertou-a contra si.
— Não, realmente. Na verdade, eu não sentia vontade de me mostrar
tão interessado, mas quando vi que você estava com ciúme, aí não me
contive. Eu estava ferido e magoado e resolvi lhe dar o troco.
— Seu idiota! — ela exclamou, beijando-o de leve nos lábios. —
Você quase me matou de dor. A propósito, quanto ao favor que Annie lhe
pediu...
— Recusei, claro. Seria absurdo. Em primeiro lugar, eu jamais daria
uma declaração falsa, nem que fosse para o meu melhor amigo. Em
segundo, o mérito do acervo de livros e documentos de Curthoys Court

84
85

pertence a você, a ninguém mais.


Frances sorriu.
— Também não precisa exagerar...
— Mas é a pura verdade. Escute, deixe-me explicar algo sobre
Annie: ela é uma pessoa que tem suas qualidades, como qualquer outra. É
claro que possui defeitos, entre eles um oportunismo fantástico. Quando
viu que Curthoys Court tinha adquirido um peso cultural inegável, não
apenas nesta região, mas também no país inteiro, achou que já era hora de
reatar relações com o "querido Harry". Toda aquela história sobre estar
passando por aqui e não poder deixar de nos visitar foi apenas desculpa!
— Oportunismo! — Frances repetiu.
— Exato. E se possível, algo mais, como a tal declaração para o
currículo.
— E talvez outro tipo de favor, também — Frances comentou, mas
arrependeu-se imediatamente. — Oh, desculpe, acho que não devo julgar
as pessoas sem antes conhecê-las muito bem. Estou sendo injusta com
Annie. Naturalmente não simpatizei com ela, mas... Bem, talvez até goste
mesmo de você, ou...
— Minha querida... — Harry a fitou com ternura. — Annie não gosta
de ninguém, creio que nem dela própria. É uma pessoa fria e calculista e
não mede conseqüências para conseguir o que quer. Não a condeno por
isso, pois acho que cada um é dono de sua própria vida. Apenas, não a
desejo nem como mulher, nem como alguém de minhas relações sociais. É
um direito meu. Mas chega de falar de Annie.
— Sim, chega... — Frances sussurrou, lançando-lhe um olhar
insinuante.
Um longo beijo os uniu. A felicidade era plena e, dessa vez, nada no
mundo poderia destruí-la.

Antes da Páscoa seguinte, numa linda tarde ensolarada, Curthoys


Court estava novamente em festa, agora para o batizado do pequeno
Nicholas Edward Francis Henry Curthoys.
Os padrinhos, Matt Wilding e Charlotte, estavam emocionados.
Ficaram inclusive nervosos no momento do batizado e atrapalharam-se um
pouco nas respostas que deveriam dar ao padre. O pequeno Nick, no
entanto, olhava tranqüilo o movimento em torno.
— Ele deve estar se perguntando pelo motivo de tanta confusão —
Harry cochichou a Frances, que, sufocando o riso, aconchegou-se mais a
ele.

85
86

No final da cerimônia, todos dirigiram-se ao pátio, onde uma grande


mesa fora posta.
— Dê-me o pequeno Nick, Charlotte — Dolly pediu, de uma
maneira que não admitia recusas. — Você deve estar cansada.
— Ora, deixe-me ficar com ele só mais um pouquinho, Dolly.
— Nada disso. Você já o segurou durante todo o batizado. Agora é
minha vez. — Com um sorriso doce, a velha senhora tomou o bebê no
colo. — Venha com a vovó. Este bando de adultos barulhentos deve estar
aborrecendo você, meu querido.
Frances e Harry trocaram um olhar comovido.
— Nossa boa Dolly... — ela comentou.
— Nossa mãe postiça... — Harry respondeu. — Sorte de Nick, por
ter uma avó tão maravilhosa.
— Felizmente agora Dolly poderá descansar um pouco — disse
Frances.
Com os lucros de Curthoys Court, tinham contratado novos
empregados para a mansão e aposentado Dolly e o velho Bates, que
continuavam a habitar a ala lateral e passavam os dias às voltas com o
bebê. Bates fizera questão de construir os móveis do quarto de Nick, e
Dolly recusara terminantemente a idéia de contratar uma babá.
— Eu praticamente criei o Harry. Será que não sou capaz de cuidar
do pequeno Nick?
— Além do mais, se não cuidarmos do menino, o que faremos?
Morreremos de tédio, com certeza — acrescentara o velho Bates.
— Eles dois vão mimá-lo muito — Frances comentou, rindo.
— E daí? Carinho nunca é demais — Harry apartou. E a vida
transcorria, bela, em Curthoys Court.
— Sabe que a partir de amanhã teremos acesso à herança de meu
pai? — Harry contou a Frances, durante a festa do batizado. — Meu
advogado ligou ontem para cá, informando que já poderei dispor do
dinheiro.
— E o que vamos fazer com toda essa fortuna? — ela indagou,
sorrindo. — Já temos o suficiente para vivermos com relativo conforto.
— Poderíamos fundar uma entidade cultural, o que acha? A fundação
seria dirigida por você, naturalmente.
— Oh, Harry, seria maravilhoso. Sabe, acho que se o seu pai pudesse
vê-lo agora, sentir-se-ia orgulhoso.
— Talvez ele esteja nos vendo... Quem sabe?
— Quem sabe... — Frances repetiu, emocionada. — Eu também me

86
87

sinto orgulhosa de você, sr. Curthoys.


Harry pressionou-lhe a mão num gesto de carinho, antes de dizer,
baixinho:
— Olhe só para essa mesa, querida. E guarde bem a lembrança deste
momento. Aqui estão todas as pessoas que mais amamos. Provavelmente a
vida nos reserva grandes dificuldades, mas sinto que se retratarmos este
instante em nossos corações, nos tornaremos mais fortes para enfrentar os
problemas e os sofrimentos que porventura aconteçam. Creio que, ao me
impedir o acesso à fortuna dos Curthoys, meu pai queria me mostrar essa
outra forma de riqueza.
Frances contemplou os rostos sorridentes daquelas pessoas queridas:
ali estava seu velho pai, com a sabedoria e o humor que a idade avançada
não conseguira destruir; Jassy, doce como sempre; Charlotte, o esposo, os
Napier, o velho Bates, a querida Dolly e o pequeno Nick, fruto de seu
amor com Harry.
Sim, talvez Harry tivesse razão. Talvez o pai quisesse que ele
conhecesse aquela rara espécie de fortuna, que nada, nem mesmo o tempo
ou a morte, poderiam destruir.

FIM

87

Potrebbero piacerti anche