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Digitalização: Vicky B,
Revisão: Gaby G
Formatação: Alê M.
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Capitulo I
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pelo jardim, o que a levara a descobrir uma antiga capela, situada no fim
de um pequeno bosque. Ela permanecera muito tempo ali, admirando as
estátuas dos ancestrais dos Curthoys, nos túmulos que circundavam a
capela, todos de mãos postas, rostos voltados para o céu e cães a seus pés.
Algumas mostravam-se danificadas, não apenas pelo desgaste do tempo,
mas pela invasão do exército de Cromwell, séculos atrás. Algumas das
inscrições eram quase indecifráveis. Mas Frances continuava a admirá-las,
quando subitamente um feixe de luz vindo de um pequeno vitral iluminara
um outro túmulo, isolado por uma grade de ferro.
Em silêncio, Frances aproximara-se, fascinada, diante da descoberta:
ao contrário das outras efígies, aquela não lembrava a morte: a estátua em
mármore representava um homem adormecido, jovem e gracioso,
reclinado numa pose indolente e relaxada, um joelho levantado e a outra
perna esticada. A cabeça estava apoiada no braço e ao lado havia um livro
aberto, perto da sua mão, como se o tivesse deixado cair durante a leitura.
Estava sem armadura ou manto, usava botas altas, calça e camisa, e os
cabelos encaracolados emolduravam-lhe o rosto. O efeito era tão natural
que Frances tivera a impressão de que, se estendesse a mão, poderia
acordá-lo.
Voltara durante as férias de verão, somente para visitar o túmulo
novamente, e ficara muito desapontada ao encontrar a igreja fechada para
o público. Muito tímida para perguntar sobre o motivo, nunca mais
retornara a Curthoys Court.
Determinada, Frances acionou o motor e guiou até a mansão, sob
uma chuva violenta que parecia tornar o dia ainda mais frio e escuro.
Estacionou no pátio e, antes que subisse a escadaria para tocar a
campainha, um senhor idoso surgiu de uma porta lateral e a olhou, curioso:
— Pois não?
— Boa tarde. Tenho uma entrevista com o sr. Harry Curthoys — ela
explicou, lutando contra o vento, que parecia querer arrancar-lhe o guarda-
chuva das mãos.
— Por aqui, senhorita — o homem respondeu amavelmente, e
conduziu-a até o pequeno hall de entrada. Então abriu uma porta, à direita:
— Espere aqui, por favor — disse, apontando-lhe uma cadeira. — Deixe-
me pendurar sua capa.
— Obrigada. — Frances estendeu-lhe o impermeável. — É muita
gentileza de sua parte.
— Ora, não há de quê — ele retrucou, pendurando a capa num antigo
cabide, a um canto. Pegou também o guarda-chuva, que colocou ao lado.
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recebera poderia ser encarada como um bom indício de que tudo correria
do melhor modo possível. Também havia simpatizado com Harry. Ou
talvez fosse melhor dizer impressionada, não apenas pelo fato de ele ser
belo e atraente, mas também por suas maneiras gentis, que já em nada
lembravam o rapaz rebelde cujas fotos ela um dia colecionara. No entanto,
ele agora possuía uma outra espécie de encanto. Seria a maturidade?
Afinal, Harry devia estar com aproximadamente trinta e cinco anos. Sim,
era a um homem maduro que agora via, e não um jovem inconseqüente. E
como era bonito!
— Mais chá, srta. Wilding? — ele ofereceu, solícito.
— Não, obrigada.
— Pois bem, quando pretende começar?
— Devo dar um prazo aos Napier, para que possam arranjar uma
outra babá. Talvez uma semana.
— Que tal duas? Assim poderá começar... — Tirando uma pequena
agenda do bolso, ele a consultou. — Deixe-me ver... No dia vinte e três
está bem?
— De acordo. Estarei aqui às oito horas, nesta data. Mas o dia vinte e
três não é um domingo?
— Exato, e também é meu dia de folga, pois passo a semana toda em
meu escritório imobiliário e no sábado estou exausto. Portanto, prefiro
recebê-la no domingo, porque assim poderei explicar o que deve fazer.
Como pode ver, durante a semana sou um trabalhador, e, nos fins de
semana, um feliz proprietário — ele acrescentou, com uma ponta de ironia.
— Então está combinado. Até o dia vinte e três.
— Venha lá pelas duas horas, enquanto ainda está claro, e eu lhe
mostrarei a casa. Agora vou querer mais um croissant. Você aceita?
— Obrigada, estou satisfeita. Bem, acho que devo lhe dizer que já
estive aqui antes. Aliás, mais de uma vez.
Ele olhou-a interessado.
— É mesmo? E quando foi isso?
— Eu vim com minha classe, quando cursava o colegial, e voltei em
duas outras ocasiões.
— Gostou tanto assim de Curthoys Court, senhorita?
Frances recostou-se na cadeira.
— Não sei como explicar, mas a verdade é que este lugar exercia um
incrível fascínio sobre mim! Não falo apenas da casa, mas também da
capela e das estátuas dos seus antepassados, sobretudo aquela do homem
adormecido. No entanto, na última vez que estive aqui, a capela estava
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Capítulo II
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talvez séculos.
Frances olhou ao redor: pela sala ampla espalhavam-se baús, caixas e
papéis amarrados com barbante, além de livros velhos, tudo empilhado de
qualquer jeito, sobre a mesa e estantes. Para um leigo, aquilo seria um caos
assustador, mas para ela era diferente... ou melhor, apaixonante.
— Então, como pode deduzir, esta é a biblioteca. Ainda quer o
emprego? — Harry indagou, um tanto divertido.
— Se quero? Agora mais do que nunca, com todo esse tesouro diante
dos meus olhos.
Ele riu.
— Venha. Vou lhe mostrar rapidamente as salas do andar térreo.
O grande hall ocupava boa parte do andar. Além dele havia a
cozinha, a sala de jantar, o escritório onde Frances estivera, a sala de
visitas, sala de jogos, sem contar os salões abertos ao público.
Mais tarde, enquanto tomavam chá diante da lareira, Frances ainda se
sentia fascinada com tudo o que vira e por isso comentou:
— O senhor... quero dizer, você tem um imenso tesouro nas mãos.
— Não basta apenas possuir um tesouro. É preciso poder mantê-lo.
Bem, mas não quero aborrecê-la com os meus problemas.
Pouco a pouco a conversa fluiu de maneira mais descontraída e
Frances, a certa altura, comentou:
— O sr. Napier contou-me a respeito de sua herança ficar vinculada
ao seu casamento.
Harry sorriu, um tanto irônico.
— Você, como todas as outras pessoas, deve estar imaginando por
que não corri para o altar com a primeira jovem disposta a casar, só para
receber o dinheiro.
— Isso não é da minha conta — ela retrucou, temendo ser indiscreta.
— Realmente não. Infelizmente, o assunto sobre a herança é um
pouco mais complicado. Algum dia eu lhe contarei.
— Se quiser...
Harry olhou-a, pensativo.
— Você é uma boa menina, Frances Wilding. Acho que vamos nos
dar muito bem.
Ela sorriu, um tanto embaraçada e levemente ferida em seu orgulho
feminino. "Boa menina"? Era uma mulher de vinte e dois anos e não uma
garotinha, pensou, incomodada. Mas por que importar-se com o
comentário? Afinal, aquele homem era seu patrão e não... não um homem
a ser conquistado. Repelindo com energia esse pensamento, Frances
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parece em ordem. Vou passar uma tarde interessante examinando tudo isso.
— Então não cometi nenhuma asneira?
— Claro que não, sr. Bates. — Frances riu e passou a mão com
carinho sobre a mala de madeira. Dificilmente teria pertencido aos
Curthoys. Na tampa estavam gravadas as iniciais L. M. e isso despertou-
lhe a curiosidade.
— A senhorita parece que está se divertindo com esse trabalho —
Bates observou mais calmo.
— Estou mesmo.
— Isso é bom.
— Gosto do meu emprego, sr. Bates.
— Eu também, senhorita.
Frances o fitou, hesitando antes de perguntar:
— Perdoe a minha curiosidade, mas o senhor está aqui há muito
tempo?
— Durante quase toda a minha vida, com exceção de quando estive
no Exército. Meu pai era mordomo do pai do sr. Harry e eu fiquei em seu
lugar. Antes disso eu era um dos criados da casa e trabalhava sob a
supervisão do meu pai.
— Então já estava aqui quando Harry, quero dizer, quando o sr.
Curthoys nasceu?
— Sim, claro. Ele e a srta. Charlotte, sua irmã, brincavam muito na
cozinha e nos estábulos, e aprontavam mil diabruras, para desespero de
minha mulher, que era a babá. — Bates sorriu. — Como o tempo passa,
não? Bem, mas estou atrapalhando o seu trabalho, srta. Frances.
— Imagine...
— Bem, agora devo ir. Quer que eu pegue mais alguma coisa no
sótão?
— Ainda há alguns documentos ou livros por lá?
— Não, só objetos velhos: cadeiras quebradas, castiçais...
— Então está bem. Obrigada, sr. Bates.
— Disponha, senhorita. Até logo.
Sozinha na sala, Frances começou a examinar a mala. Encontrou
livros de contabilidade com páginas amareladas pelo tempo e tinta bem
desbotada, mas a maioria das anotações ainda era legível. Havia uma
miscelânea de escrituras cuidadosamente enroladas e amarradas, relatórios,
contas domésticas, orçamentos, projetos, a lista não tinha fim. Estava tudo
ali: uma documentação completa sobre um período muito turbulento na
história da familia Curthoys.
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Capitulo III
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— Nada de novo.
— "Na hora do almoço" — Frances continuou — "preciso ir até
Astcote. Não vou mandar L. Devo vê-lo pessoalmente e avisá-lo da volta
de Hal. Meu Deus, como poderei suportar esta dura provação? Às vezes
sinto que tudo está acima de minhas forças..."
Nessa data não foi anotado mais nada, e nem nos dias seguintes.
Depois vinham referências à rotina da casa, mas, em seguida, uma
caligrafia trêmula registrava: "Hal chegou. O pequeno Ned e todos em
Curthoys Court estão alegres. Também tenho procurado me mostrar
entusiasmada, mas Deus sabe o que me vai no íntimo. Preciso ir a Astcote.
Talvez o pequeno Ned necessite de uma consulta. Sim, direi isso se me
perguntarem. Preciso avisá-lo, meu Deus".
— Todos alegres, com exceção da linda Arabella — comentou Harry,
pensativo. — Você está tendo a mesma impressão que eu? Percebe que Hal
voltou para casa e para uma esposa muito pouco entusiasmada?
Frances concordou com um gesto de cabeça.
— Esse homem que Arabella queria avisar... Poderia ser um amante?
— É muito provável.
Frances continuou a ler o diário, que se tornava cada vez mais
ilegível à medida que as páginas se sucediam. Algumas estavam em
branco, outras continham apenas referências a assuntos de rotina. Depois
apareceu uma data, em junho, quando Arabella havia escrito: "Hal está
amargo, mudado. Não dorme mais na minha cama. Eu não estou triste
com isso. Como poderia, se não é o meu marido que desejo ao meu lado?
E somente quero aquele que é proibido para mim ? Até onde essa loucura
me levará? Ao inevitável, suponho, mas morro de pavor só em pensar
nisso..."
Depois, novamente a rotina da casa e mais uma declaração veemente:
— "Eu sei que Hal está zangado, ferido em seu coração e orgulho
masculino. Às vezes tenho medo do que ele será capaz de fazer. Mas eu
não posso. Não posso. A vida está insuportável. Desejo ser tocada apenas
por um homem. Estou cansada de esperar. Jesus, como poderei su-
portar..."
— Pobre mulher. Sentia-se muito infeliz — Frances comentou,
penalizada.
— E Hal também, pelo que se pode deduzir — Harry acrescentou. —
Imagine voltar da guerra e descobrir que um outro vinha aproveitando os
privilégios que deveriam estar sendo guardados para ele.
— E Hal naturalmente passou todo o tempo na guerra como um
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mais a idéia de ver a mulher que amava nos braços do marido, entregou-
lhe um frasco de veneno e ela, embora atormentada e relutante, acabou
dando-o a Hal, na jarra de cerveja que levou ao jardim, onde ele estava
lendo ao sol. Depois deixara-o sozinho e ele morrera... Mas não na pose
graciosa de estátua sobre o túmulo.
— "Eu proibi Ned e os criados de incomodá-lo, e voltei mais tarde.
Nem até o dia de minha morte poderei esquecer. Eu endireitei seu corpo,
que estava retorcido pela agonia, e virei seu rosto, que era tão bonito, até
apoiá-lo sobre o braço. Só depois chorei e gritei pedindo ajuda, e mandei
que L. chamasse o médico. Paguei um preço terrível pelo meu amor, e
posso confiar meu pecado somente a estas páginas. Logo queimarei este
livro, e com ele as lembranças deste dia horrível e nefasto."
A voz de Frances soou emocionada ao ler as últimas frases e, quando
terminou, ambos ficaram em silêncio.
Depois Harry estremeceu, como se procurasse acordar de um sonho
mau.
— Meu Deus! — exclamou. — Por que será que Arabella não
queimou esse diário? Ela não poderia conservar uma carga de dinamite
como essa, ao alcance de qualquer pessoa.
Frances de repente sentiu que estava gelada e levantou-se para ficar
perto da lareira:
— Talvez ela o tivesse dado para esse L.M. guardar. Alguma coisa
deve ter acontecido, para impedi-la de destruir essas confidencias. Diga-
me, Arabella tornou a se casar?
— Não. Aliás, ela morreu um ano e pouco depois de Hal.
— Você acha que ela ao menos experimentou alguma felicidade com
o amante?
— Eu não sei... Na verdade, estou assombrado com Arabella.
Provavelmente mandou cercar o túmulo de Hal para insinuar que ele havia
se suicidado e afastar assim qualquer suspeita sobre si mesma.
Frances sentiu um arrepio.
— Meu Deus, ela não só matou o marido, mas o deixou morrer sem
absolvição, e ainda por cima com a desonra de suicida, o que aliás era
considerado muito grave, naquela época. A nossa Arabella era uma pessoa
um tanto... atormentada.
— Sem dúvida. Talvez esta seja a palavra menos áspera para defini-
la. Escute, você quer um cálice de licor? Eu estou precisando, depois das
revelações de Arabella.
Frances aceitou. Sorveu um pequeno gole e ficou contemplando as
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posso vê-la na sua casa, com seu engenheiro e seus dez filhos...
— Ora, gosto de crianças, mas não sou tão maluca assim — Frances
retrucou, divertida. — E você, não gosta de crianças?
— Digamos que eu "precise" delas. Ou melhor, de uma — Harry
respondeu, com um sorriso enigmático, que aos poucos se tornou amargo.
— Ora, deixe para lá. Seria tolice falar desse assunto.
— Como assim? O que quer dizer com "precisar" de crianças?
— É uma história complicada demais. Acho que se eu lhe contasse,
estragaria a noite.
— Está bem. — Temendo ser indiscreta, Frances não fez mais
perguntas. Mesmo porque não tinha nada a ver com a vida particular
daquele homem, a quem já se afeiçoara de maneira incrível. Era como se o
conhecesse há muito tempo. Sim, estava encantada com Harry... Encantada
demais, talvez?, perguntou-se, apreensiva. Não estaria se envolvendo em
excesso com um homem que era apenas seu patrão e que dentro de alguns
meses, após o término do trabalho, não mais veria?
Essas dúvidas continuaram a perturbá-la quando, tarde da noite,
preparava-se para dormir.
Vestiu uma camisola de flanela e acomodou-se sob as cobertas
macias. Virando-se, contemplou a foto de Chris no criado-mudo. Acalmou-
se imediatamente ao ver aquele rosto moreno, sorridente e tão querido.
Sentou-se na cama e pegou o bloco para escrever-lhe e contar sobre aquele
primeiro dia de trabalho. Mas ficou encostada nos travesseiros, pensando
em Harry, Arabella e tudo o que acontecera naquela noite. Estranho... Em
geral não tinha problemas para escrever para Chris. Agora, no entanto, as
palavras não fluíam. Inquieta com esse fato, Frances acabou adormecendo
e mergulhou em sonhos confusos, onde o rosto de Chris às vezes se
confundia com o de Harry.
A manhã seguinte veio apagar essas imagens e Frances, após
saborear um delicioso café com torradas e geléia, sentia-se bem melhor.
Minutos depois, já estava instalada na biblioteca, às voltas com
documentos e livros de toda espécie. Antes de mexer nos papéis, leu
novamente o diário de Arabella com muita atenção, para ver se descobria
algum dado novo sobre as trágicas circunstâncias que envolviam a morte
de Hal Curthoys. Mas nada descobriu, além do fato de que Ned Curthoys,
o filho e herdeiro de Hal, era um menino de saúde delicada, que requeria
cuidados médicos freqüentes. Tornou a ler as páginas, pois já estava
habituada com a caligrafia. A criança parecia ter problemas de saúde quase
todos os dias. Pobre Hal, ela pensou, além de tudo, um filho doente. E o
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Acho que ganhei não apenas uma bibliotecária competente, mas também
uma boa amiga.
— Acho que também sentirei saudade... meu amigo — ela
respondeu, com voz trêmula de emoção, enquanto evocava o rosto belo e
risonho de Chris. Ele sim, era o seu amor, disse a si mesma. Seria
maravilhoso revê-lo. Isso lhe devolveria a segurança de que tanto
necessitava.
— Você pode usar o Sedan, se quiser — Harry afirmou. — Evitará ao
seu pai uma viagem até aqui e poderá usá-lo enquanto estiver lá.
Frances ficou radiante.
— Realmente não sei como agradecer... Você é muito gentil.
— Tolice — ele retrucou, ainda sorrindo. — Não vou precisar dele.
Pode levar.
Num impulso, ela ergueu-se na ponta dos pés e lhe deu um beijo no
rosto. Depois afastou-se embaraçada, enquanto ele a fitava, encantado.
— Alguém já lhe disse que é não apenas bonita, mas graciosa?
Frances não respondeu. Sentia as faces afogueadas, enquanto
caminhava a passos largos para a mansão. Não, ninguém lhe dissera antes
que era bonita e graciosa, ao menos não com aquele tom de voz, que mais
parecia uma carícia.
No dia seguinte, logo após o almoço, Frances foi para o quarto
embrulhar os presentes de Natal, comprados na semana anterior em
Oxford. Havia uma caixa de charutos para o velho Bates e um vaso de
porcelana com jacintos para Dolly, que não tivera dificuldade para
escolher. Mas o presente da Harry fora um problema. Era difícil descobrir
algo útil para um homem que era ao mesmo tempo pobre e proprietário de
uma mansão. Frances optou por algo que não fosse caro, mas alegre, e
comprou um cachecol de lã xadrez. Não era muito original, mas talvez ele
gostasse de usá-lo. Embrulhou-o num vistoso papel antes que mudasse de
idéia, tomou um cartãozinho e escreveu, simplesmente: de Frances.
À noite, durante o jantar, Arabella surgiu novamente na conversa:
— É uma pena que eu não possa tornar pública a sua descoberta —
Harry comentou. — Mas não gostaria que esses fatos se tornassem
conhecidos, mesmo que tenham ocorrido há trezentos anos.
— E não são fatos... — Frances retrucou. — Apenas suposições da
minha parte. Não podemos provar nada, além de Arabella ter assassinado
Hal, e não acho que queira tornar isso conhecido.
— Você tem razão. Já houve confusão demais com Hal. Aliás, as
pessoas provavelmente ficariam desapontadas com a verdade. O pobre
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Capítulo IV
Frances não jantou mais com Harry, antes do Natal. Todo o tempo de
que ele dispunha, até as festas de fim de ano, estava tomado com
compromissos sociais. Frances não o viu até a manhã do dia da partida,
quando recebeu um recado dele convidando-a para tomarem juntos o
desjejum.
— Não podia deixá-la partir sem uma despedida à altura — ele disse,
ao afastar a cadeira para que Frances se sentasse. — E Dolly insiste para
que você tome um bom café da manhã antes de viajar para casa. Tome
cuidado na estrada. O rádio diz que o trânsito está muito difícil em certos
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— Até...
Uma hora mais tarde, após se despedir do casal Bates e dar-lhes os
presentes, Frances partiu, rumo à casa dos Napier. Almoçou com Eddy,
Caroline e o pequeno Sam, que fez questão de lhe mostrar a decoração de
Natal e os enfeites de chocolate que ornamentavam a árvore. Caroline
estava curiosa para saber da sua vida em Curthoys Court e ficou contente
ao se inteirar do sucesso em seu trabalho. Já era tarde quando Frances
conseguiu sair, depois de trocar presentes e prometer a Sam que o visitaria
novamente, assim que tivesse tempo.
Foi recebida com muita alegria e amor pelo pai e Jassy, que também
estavam ansiosos para saber as novidades. A árvore de Natal encontrava-se
no lugar de sempre, a um canto da sala, rodeada de pilhas de pacotes. Tudo
naquela casa parecia ter um toque de carinho especial e Frances sentiu-se
feliz de estar ali, onde vivera sua infância, ao lado das pessoas que amava.
Agora, só faltava rever Chris, para a felicidade ficar completa.
Curiosamente, não se sentia nada ansiosa. Talvez isso se devesse ao fato de
que tinha certeza de encontrá-lo logo, pensou, sentando-se no sofá, ao lado
do pai e de Jassy.
— Como é a vida com os ricos, filhinha? — perguntou o velho Matt
Wilding, provocando-a com ar brincalhão.
— Ótima — ela respondeu, sorrindo. — Não preciso perguntar como
está a vida por aqui. É só olhar.
Jassy sorriu também, feliz, e levantou-se para preparar alguns
drinques, enquanto dizia:
— Naturalmente não posso falar por Matt, mas de minha parte acho o
casamento formidável. Apenas eu... Bem, eu gostaria de não ter essa
sensação de que obriguei você a sair de casa.
— Tolice — Frances retrucou. — Estou fora de casa desde que fui
para a Universidade e nunca pretendi ficar aqui depois de arrumar um
emprego.
— Jassy tem complexo de madrasta — Matt comentou, maroto. —
Pensa que você é a Branca de Neve e que ela é a bruxa má.
— Não é nada disso, seu maluco — Jassy argumentou, divertida. —
Você só diz bobagens.
— Está vendo como ficou furiosa, Frances? Vamos, diga-lhe que ela
não é tão má assim.
— Você é maravilhosa. — Frances sorriu para Jassy, que lhe estendia
um copo de conhaque. — E agora vocês dois parem de discutir e me
contem as novidades.
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— A sra. Bradley passou por aqui hoje, para avisar que Chris só
chega amanhã.
— Parece que não conseguiu passagem — disse Jassy. — Agora,
conte-nos sobre Curthoys Court e sobre Harry Curthoys. Ele é tão
simpático como me pareceu naquele dia em que fomos levar você até lá?
Continua um playboy inveterado e enche a casa de lindas mulheres,
promovendo orgias todas as semanas?
Frances riu, procurando disfarçar o desapontamento por causa de
Chris, e desfez as idéias de Jassy sobre Harry Curthoys. Depois contou ao
pai sobre o trabalho que estava fazendo. Falara com tanto entusiasmo, que
Matt Wilding trocou um olhar de alívio com a esposa, quando a filha subiu
para o quarto. Nenhum dos dois havia tido coragem de contar a Frances
sobre o verdadeiro motivo do atraso de Chris.
— Ele nem deveria aparecer por aqui, já que ficará por apenas dois
dias — Jassy comentou, zangada, enquanto terminava de preparar o jantar.
— Que falta de consideração com a pobre Frances.
— Os dois se conhecem desde crianças — Matt ponderou. — Ele
deve achar que Frances vai entender.
Sozinha no quarto, no entanto, Frances continuava desapontada com
a mudança de planos de Chris. Encolheu os ombros e decidiu não pensar
mais no assunto. Com certeza ele teria uma boa explicação para dar,
quando chegasse.
Após dormir umas duas horas para se refazer da viagem, ela resolveu
tomar uma ducha antes de descer. Quando algum tempo depois chegou à
copa, Jassy e Matt estavam a sua espera.
— Vou servir o jantar — Jassy anunciou. — Fiz purê de batatas para
acompanhar o filé com champignons.
— Você não se esqueceu do meu prato predileto — Frances
respondeu, agradecida.
— E para acompanhar, um bom vinho tinto. — Matt abriu a garrafa e
colocou-a sobre a mesa já posta.
O jantar transcorreu num clima alegre e os três conversaram até
muito tarde.
A véspera de Natal passou célere. Frances e Jassy prepararam uma
série de pratos para a ceia e Matt encarregou-se das frutas natalinas e das
bebidas. Por volta das dez da noite estava tudo pronto. Dali a pouco Chris
chegaria com a mãe, Frances pensava, enquanto se vestia para a ceia, que
sem dúvida seria muito agradável.
Escolheu um vestido de lã azul-claro bastante elegante, escovou os
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de ficar a sós com Chris. Só no final da festa, quando a sra. Badley retirou-
se para a cozinha com Jassy, e o velho Matt despediu-se, após desejar feliz
Natal a todos e subindo para o quarto, foi que Frances pôde observá-lo
melhor.
Chris estava diferente, mudado. Comportara-se como um irmão mais
velho e não como um namorado. Até o presente que lhe dera, um vidro de
perfume Frances, demonstrava que tinha sido comprado às pressas, sem
pensar nas preferências dela, que ele deveria conhecer melhor do que
ninguém. Ela, ao contrário, escolhera para Chris um lindo suéter. Mas,
pensando bem, comprara aquele presente como se fosse para um amigo
muito querido, e não para o seu amor. "Acho que ambos mudamos",
Frances constatou com uma ponta de tristeza. A verdade era que jamais
imaginara sua vida separada dele. Afinal, conheciam-se desde crianças,
haviam crescido juntos, compartilhado os sonhos, os projetos de vida, tro-
cado os primeiros beijos... Se aquilo não era amor, o que seria?
"Nós nos amamos", ela disse a si mesma, enquanto vagamente se
perguntava por que, afinal, seu coração não batia mais forte agora que o
reencontrava, após quase três meses de ausência. Ora, com certeza era
porque já o conhecia há muito tempo, concluiu, procurando tranqüilizar-se.
— Você está muito bonita hoje. — Chris sorriu, interrompendo-lhe as
divagações. — Venha sentar-se aqui no sofá. Precisamos conversar.
— Você também está bonito — ela respondeu, indo acomodar-se ao
lado dele. E de fato Chris parecia forte e saudável. — Você não parece uma
pessoa que passa a vida debruçada sobre pranchetas, fazendo cálculos.
Ele riu.
— Não fico. Jogo tênis e pratico natação no clube da firma, quando o
tempo permite. Preciso me manter em forma.
— E sua vida social?
— Regular — ele disse, cauteloso. — Saio freqüentemente com um
colega da firma para tomar uns aperitivos. E você?
Frances contou-lhe, com mais detalhes, sobre a vida em Curthoys
Court, e teria continuado a falar por muito tempo, mas notou a falta de
interesse de Chris e calou-se. Ao contrário do que sempre acontecia, ele
não a tomou nos braços para beijá-la. Ela tampouco ansiava por isso. Algo
havia acontecido, um elo tinha se quebrado e era preciso resgatá-lo, para
assim retomar a velha amizade, a velha atração, a camaradagem. Chris a
fitava, relutante, como se quisesse dizer algo, mas lhe faltasse coragem. A
situação se tornava tensa e Frances, com um profundo suspiro, decidiu
abrir o diálogo:
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Capitulo V
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de revista. Frances ficou feliz com o elogio e notou que o casal também
tinha vestido as suas melhores roupas para a ocasião. A mesa estava posta
com todo o carinho por Dolly, que, após a ceia, foi até a sala e voltou com
velhos álbuns de fotografia. Entre elas havia muitas de Harry e Charlotte,
quando crianças.
Frances estava se divertindo com as histórias sobre a infância de
Harry, quando, subitamente, se levantou, assustada com o barulho de
freios, seguido por um baque surdo. Bates saiu correndo para investigar.
Frances quis segui-lo, mas Dolly a impediu:
— Calma. Vamos esperar para sabermos o que aconteceu.
Ambas ficaram aguardando, tensas, mas logo ouviram vozes no
corredor:
— É o sr. Harry — disse Dolly, surpresa. — Não sei o que está
fazendo aqui, quando deveria estar numa festa. É melhor ir até lá para ver
se ele precisa de alguma coisa. Espere, não devo demorar.
Frances estava curiosa para saber o que provocara o barulho, mas
como os Bates pareciam não querer que ela saísse, ficou onde estava, até
quando Dolly voltou, parecendo embaraçada.
— O que foi? — Frances perguntou.
— O sr. Harry derrapou na neve e bateu com o carro no portão da ala
leste, mas ele está bem. E o carro também, embora não possa dizer o
mesmo do portão.
— Posso ajudar em alguma coisa?
— Não, querida. Mas terá que me dar licença. Bates foi acender a
lareira da sala e eu vou levar um pouco de sopa para o sr. Harry.
Ela saiu rápido e Frances ficou sozinha novamente. Estava ao mesmo
tempo alegre com a volta de Harry e ansiosa para saber o que acontecera.
Não queria ser indiscreta, senão iria vê-lo, mas era obvio que havia algum
problema. Percebera isso pelo constrangimento de Dolly. Decidiu ficar ali
mesmo, para saber.
— O sr. Harry não está muito bem — o velho Bates anunciou, quase
meia hora depois. — Minha esposa está preocupada e não sabe o que fazer.
Frances hesitou.
— Acha que devo ir até lá para vê-lo?
— Eu não sei, mas, na minha opinião, acho que ele está precisando
de alguém para animá-lo.
— Posso tentar. Se ele não quiser companhia, eu volto.
Dolly, que acabava de entrar, ouviu a conversa:
— Bem, já que vai até lá, veja se consegue fazê-lo tomar a sopa.
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resistir. Para quê, se isso era tudo o que desejava? Ofegante, Harry afastou-
a para fitá-la bem dentro dos olhos. Então inclinou-se e a beijou no-
vamente.
Frances sentiu que o coração disparava dentro do peito. Harry a
tocava de um modo que era impossível não corresponder. As línguas se
buscaram, num novo beijo, exigente, pleno de desejo. Frances procurou
lembrar-se de que Harry bebera mais do que devia, e a estava usando para
substituir sua amada Annie. Ele não confiava nas mulheres... Mas nada
disso adiantou para fazê-la desvencilhar-se daquele abraço com que tanto
sonhara. Quando, finalmente, Harry afastou-se, Frances olhou-o, confusa.
Agora que aquele momento mágico havia se acabado, já não sabia como
agir diante daquele homem.
— Feliz ano-novo, Frances — ele disse, num tom suave.
Ela encarou aqueles olhos azuis, sob os cabelos despenteados, e teve
de se controlar para não abraçá-lo novamente.
— Feliz ano-novo, Harry — e saiu rapidamente, deixando-o atônito.
Precisava ficar sozinha, para refletir melhor sobre o que havia
acontecido. Adorara cada instante daqueles beijos, mas tinha plena
consciência de que Harry a tomara nos braços por pura carência e solidão,
talvez até mesmo por um súbito desejo, que provavelmente passaria
naquela mesma noite. Para ela, no entanto, a lembrança permaneceria
vivida. Guardaria aqueles momentos como um tesouro precioso. O desejo
continuaria a torturá-la não apenas naquela noite, mas em todas as outras,
até mesmo quando partisse de Curthoys Court. E Harry estava à procura de
uma mulher que o amasse, ela pensou, com ironia, fechando a porta do
quarto atrás de si.
Capítulo VI
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com um homem que não a amava... Por que cedera a esse ponto? Para se
iludir?
Frances suspirou e virou-se para a parede. Que sensação terrível,
aquela. Agira como uma adolescente apaixonada, sucumbira ao fascínio
daqueles olhos tão azuis, e agora sentia-se péssima. No entanto, no mais
profundo do seu ser, a emoção dos beijos permanecia vivida e intensa,
independente dos conflitos, das ilusões e das carências humanas. A
despeito de tudo, a vida continuava. Como iria lidar com essa nova
situação?, ela se perguntava, confusa, adiando o momento de se levantar.
Será que Harry estaria diferente? Talvez embaraçado? Ou talvez nem se
lembrasse de nada a respeito da noite anterior?
Não ficou muito tempo na dúvida, pois quando Dolly veio lhe trazer
o café, entregou-lhe um bilhete de Harry, que dizia: Venha me ver guando
quiser. Estou na sala de jantar, curando uma terrível ressaca. H.
A princípio, Frances decidiu não ir. Talvez fosse melhor passar o dia
na biblioteca, trabalhando exaustivamente para deixar a mente ocupada, a
salvo das dúvidas que tanto a atormentavam. Seria a atitude mais prudente,
se ela pudesse controlar o desejo de vê-lo novamente, de fitar aqueles
olhos cristalinos que pareciam um pedacinho de céu.
Não, era inútil lutar contra a força poderosa dos próprios
sentimentos. Assim; após vestir um conjunto esportivo lilás que lhe dava
uma aparência leve e graciosa, Frances dirigiu-se à sala de jantar, com um
misto de apreensão e alegria.
"Está brincando com fogo, Frances Wilding", disse para si mesma.
"Onde tudo isso vai parar? O mais provável é que você saia muito
magoada, talvez de maneira irreversível."
— Como está se sentindo? — Harry indagou, assim que a viu surgir
pela porta entreaberta.
— Bem... — ela mentiu.
— Só isso?
Frances concordou com um gesto de cabeça, pois tinha medo de que
a voz soasse trêmula.
— Frances, eu... eu me comportei mal ontem à noite?
Enrubescendo, ela retrucou:
— Você não se lembra do que fez?
Harry olhou-a, receoso.
— Sim... Eu me recordo de tê-la beijado e de ficar abraçado com
você. Espero que não tenhamos ido mais além...
— Não fomos — Frances disse num fio de voz.
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— Mesmo porque não teria sido justo... para nenhum de nós. Afinal,
se tivéssemos feito amor, você estaria pensando no seu Chris e...
— Não — ela o interrompeu, num impulso.
Harry sorriu, compreensivo.
— Sei que está sofrendo por ele, Frances, mas você conseguirá se
recuperar, tenho certeza.
Frances sufocou um soluço. Tinha vontade de gritar que ele estava
enganado, que ela não amava Chris e só desejava um homem... Mas não
disse nada. Como desfazer aquele mal-entendido? Com uma expressão de
total desalento, ela o fitou, procurando desesperadamente um jeito de lhe
contar, ao menos, que o rompimento com Chris fora difícil, mas positivo
para ambos. Que se agora sofria por alguém, não era por Chris, mas por
ele. Harry, no entanto, interpretou aquela expressão de abandono de
maneira bem diferente. Abraçando-a carinhosamente, disse:
— Ah, pobre menina. Aquele idiota deixou você... Mas esse
sofrimento passa, pode acreditar. Se quiser desabafar, conte comigo. Não
se esqueça de que somos amigos.
Aquilo foi demais e Frances não conseguiu conter as lágrimas. "E o
mais terrível é que Harry acha que estou chorando por Chris", ela pensou,
com amargura, impotente para esclarecer a situação.
Harry a manteve abraçada por um longo momento e quando por fim
ela se acalmou, perguntou, acariciando-lhe os cabelos:
— Sente-se melhor, Frances?
— Sim — ela murmurou, envergonhada, enquanto se afastava em
direção à janela. Sentia-se tola por ter chorado na presença dele e isso só
servia para piorar a situação. "Agora Harry vai achar, com toda a razão,
que sou uma garota imatura e chorona", pensou, arrasada. Lá fora, a neve
continuava a cair.
— Já não bastam os seus próprios problemas... — ele comentou,
aproximando-se — e eu ainda fui sobrecarregá-la, ontem, com os meus.
Peço desculpas. Devo ter aborrecido você, não?
— Pelo contrário. Eu até gostaria de poder fazer alguma coisa para
ajudar você.
Harry tentou brincar.
— Então, que tal guiar o carro da fuga para mim, quando eu roubar
um banco?
Frances sorriu.
— Ah, é assim que gosto de vê-la. Você fica linda quando sorri.
Alguém já lhe disse isso?
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Ela o fitou. Mais uma vez a beleza dos olhos azuis a hipnotizava,
despertando-lhe emoções que não deveria sentir. Precisava se libertar
daquele fascínio, e rápido.
— Está na hora de começar o meu trabalho — disse de repente. —
Aliás, já estou muito atrasada.
— Hoje não, srta. Wilding, pois é o dia de ano-novo. Trate de colocar
um casaco e vamos dar um passeio.
— Não, prefiro trabalhar. Assim não pensarei em...
— Chris?
— Em minha vida, em meus problemas — ela o corrigiu, saindo
rapidamente.
Desde aquela manhã, Frances atirou-se ao trabalho com muita
vontade. Passava os dias envolvida com o passado, o que não lhe deixava
muito tempo para sofrer com a dor do presente. Mas era nas altas horas da
noite que a solidão a abatia. Ao que tudo indicava, Harry continuava a
julgá-la apaixonada por Chris. Em parte a culpa do equívoco era dela.
Quantas vezes pensara em lhe dizer que não amava Chris, e sim outro
homem. Mas então Harry lhe perguntaria quem era esse homem e... o que
diria? Assim, os dias passavam e Frances continuava sozinha, com suas
mágoas e a tristeza de saber que não deveria alimentar esperanças com
relação a Harry.
Duas ou três vezes por semana ele a convidava para jantar. E aos
domingos, a não ser que estivesse viajando, costumava levá-la até o bar do
King's Arms, a alguns quilômetros dali, para um aperitivo antes do almoço.
Quando finalmente o inverno cedeu lugar à primavera, Harry estava
trabalhando muito e ela o via cada vez menos. O mercado imobiliário
começava a melhorar e ele quase não vinha jantar. Também terminaram os
aperitivos no King's Arms aos domingos, pois Harry agora abria o
escritório também nos fins de semana, pela manhã. Ele estava mais magro
e evidentemente cansado. Mas sempre se mostrava amável com Frances,
nas raras ocasiões em que se encontravam. Mesmo durante as folgas,
estava ocupado com os preparativos para a abertura da mansão ao público,
na Páscoa.
Frances sentia falta dos jantares e das conversas agradáveis. Mais que
isso: começava a se sentir apreensiva, pois, no máximo até o outono, seu
trabalho como bibliotecária seria concluído. E então chegaria a hora de
dizer adeus.
— Estou preocupada com o sr. Harry — Dolly comentou, certa
manhã. — Ele está exagerando, não?
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Capitulo VII
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voltou pelo corredor, até o hall. O homem estava parado, de costas para
ela, examinando o brasão da família sobre a lareira. Tinha cabelos escuros
e ondulados, usava jeans e um casaco de couro sobre um suéter amarelo-
vivo. E trazia uma máquina fotográfica pendurada no pescoço.
— Sr. Latimer?
— É a bibliotecária? — ele indagou, virando-se. Parecia surpreso.
— Sim. Frances Wilding. Como vai? — Ela estendeu a mão. — A
sra. Bates disse-me que era repórter.
Ele a cumprimentou, olhando fixamente para ela.
— Você é mesmo a bibliotecária que está reunindo os documentos
dos Curthoys?
— Sim.
— Não me disseram que era tão jovem. Eu imaginei alguém de
tailleur de tweed, óculos e birote — Latimer comentou, com um ar
atrevido que desagradou Frances.
— Devo levar a bandeja para a biblioteca, srta. Frances? — Dolly
indagou, aproximando-se com o café.
— Sim, por favor, Dolly.
O rapaz apressou-se para pegar a bandeja.
— Permita-me. Parece muito pesada para uma senhora.
A solicitude um tanto forçada de Latimer não ganhou a simpatia de
Dolly, que entregou a bandeja com relutância, enquanto Frances mostrava
o caminho até a biblioteca.
Ele colocou a bandeja cuidadosamente sobre a mesa e olhou ao redor
com ávido interesse.
— É esta a sala que está sendo aberta pela primeira vez ao público?
— Sim. — Frances olhou para a máquina fotográfica com
curiosidade. — Você é fotógrafo também, além de repórter?
— Quando é necessário, sim.
— Aceita um café?
— Obrigado. Pouco açúcar. — Ele andou pela sala examinando os
livros e os móveis, depois viu os cartões que Frances estava escrevendo.
— É seu trabalho?
— Sim. O que deseja saber, sr. Latimer?
Ele encostou-se na mesa e sorveu um gole.
— Conte-me sobre os documentos que está reunindo.
Enquanto Frances discorria sobre o assunto, explicando em detalhes
a participação dos Curthoys na Guerra Civil, Latimer fazia anotações e às
vezes a interrompia com perguntas, que a encorajavam a falar ainda mais
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sobre o tema.
— Vai dar uma reportagem interessante — ele comentou, uma hora
mais tarde. — Agora vamos tirar uma foto sua aqui, junto à mesa de
trabalho.
— Oh, não! — Frances recusou, aflita. — Aliás, creio que se alguém
deve sair nas fotos, é o sr. Curthoys, não eu.
— É mais bonita que ele, srta. Wilding. — Latimer sorriu e tirou a
bandeja da mesa. — Sente-se aqui e pegue a caneta, como se estivesse
escrevendo nestes cartões.
— Oh, mas...
Latimer fez com que se sentasse e pôs-lhe a caneta na mão.
— Não vai doer nada, eu garanto.
— O sr. Curthoys não mencionou nada a respeito de fotografias —
Frances ainda protestou.
— Srta. Wilding... Relaxe! — Os olhos de Tony Latimer brilhavam,
enquanto andava de um lado para outro, procurando o melhor ângulo. —
Agora, sorria... Não, não assim. Pense em algo agradável.
No momento, a coisa mais agradável em que podia pensar seria
esbofeteá-lo. Ao imaginar a cena Frances sorriu, e ele conseguiu a foto que
queria.
— Perfeito! — exclamou radiante.
Havia alguma coisa na personalidade daquele homem que lhe
causava mal-estar e Frances não via a hora de vê-lo partir.
— Já terminou, sr. Latimer? Estou muito ocupada e preciso continuar
o meu trabalho.
— Há mais alguma coisa... Harry disse que a senhorita me
acompanharia até a capela.
— O sr. Curthoys disse isso? — Frances estranhou. Achava difícil
acreditar que Harry houvesse feito uma promessa desse tipo, já que não
queria saber de sensacionalismo com relação àquele local. — Tem certeza,
sr. Latimer?
— Ele sabe que velhas capelas são o meu hobby e disse que poderia
visitá-la, já que estou aqui. Sei que não pretende abri-la ao público este
ano e pode ter certeza de que nada mencionarei a respeito na reportagem.
Com relutância, Frances deixou o repórter e foi até a cozinha para
buscar as chaves. Voltou logo em seguida, ainda não muito certa de estar
agindo bem. Enfim, se Harry havia prometido ao repórter...
— Construção interessante — ele comentou, quando chegaram. —
Em que século foi construída?
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gracejar:
— Se tenho mesmo de partir, só me resta agradecer-lhe pela
entrevista. — As palavras eram gentis, mas o jeito como ele a fitava,
observando-lhe os seios e o contorno dos quadris, chegava a ser
desagradável.
— Adeus — disse Frances com frieza e virou-se, partindo em direção
à casa. Finalmente estava livre dele, pensou, aliviada.
No sábado de manhã, Frances ouviu quando Harry chegou de
viagem. Seria bom revê-lo, mostrar-lhe as etiquetas que preparara, os
textos explicativos para a exposição. Resolveu esperá-lo na sala, ansiosa
para contar-lhe as novidades.
Ele parecia pálido e cansado quando entrou e o sorriso de Frances
apagou-se no rosto, ao ver-lhe a expressão furiosa.
— Já viu isto? — ele perguntou, entregando-lhe um jornal.
— Do que se trata? Por que está tão nervoso?
— Veja! — Apontando a coluna social, na primeira página, ele
acrescentou: — Assim talvez você entenda.
Frances leu o artigo, assinado por um tal Don Ryder, onde havia duas
fotos: uma era dela, sentada à mesa da biblioteca, e a outra era do túmulo
de Hal Curthoys. "Lembram-se de Hal Curthoys?", assim começava a
reportagem. Depois de uma introdução sobre o mistério que envolvia a
morte de Hal, o repórter falava de Harry, relembrando a fama de playboy
rebelde e seus tempos de universidade, a falta de dinheiro, agora que
herdara a propriedade, o romance fracassado com Annie Hayward
Breckanridge e... como o último descendente da família Curthoys tinha
uma linda bibliotecária para enfeitar a sala de documentos, e talvez ainda
outras salas particulares. "Os rumores são de que Harry precisa casar-se", o
repórter insinuava. "Dizem que só assim poderá receber o dinheiro que o
pai deixou vinculado. Grande mistério. Qual seria o motivo que levou a
bela Annie a abandonar o nosso herói? Maior mistério ainda é: por que
continua solteiro? Talvez a pequena Miss Bibliotecária consiga acertar na
loteria. Ou será que existe algum motivo oculto para que Harry continue
solteiro? Dizem as más línguas..."
Enojada, Frances pousou o jornal sobre a mesa. Sentia-se mal. Ao ver
a raiva de Harry, sentiu-se ainda pior.
— Agora quero saber por que deixou Don Ryder entrar aqui.
— Eu não sabia quem ele era. Dolly disse-me que um repórter havia
chegado e...
— E você não percebeu que não era o homem certo?
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espécie, mas parece que tem uma certa influência sobre o diretor do
Weekly Gazette. Em resumo, como Tony Latimer não podia vir fazer a
reportagem naquele dia, o tal Don o substituiu. Só que Tony, que fora
chamado às pressas para cobrir um "furo", só soube disso hoje. Caso con-
trário, teria me prevenido.
Frances o fitou, magoada, mas nada disse.
— Dolly me passou uma descompostura, agora há pouco — Harry
continuou. — Disse-me que você não queria receber o repórter, e que só o
fez porque eu não estava. Disse também que suas intenções, ao falar da
exposição, eram as melhores possíveis, o que, aliás, eu deveria ter sabido
desde o início. Mas é que fiquei tão furioso quando a vi, tão sorridente,
naquele porcaria de jornal, que perdi o controle. Além disso fiquei
possesso com a insinuação maldosa sobre o nosso relacionamento.
— E nós somos apenas amigos — Frances observou, com o olhar
distante. — Ou éramos.
Harry fitou-a com ternura.
— Gostaria de pensar que ainda somos. Se puder esquecer a cena que
fiz hoje de manhã, eu...
— Vou tentar — Frances murmurou.
— Isso quer dizer que virá jantar comigo, hoje?
— Não, acho que não.
Harry ficou ali parado, olhando para ela.
— Quer dizer que realmente passei dos limites, não? Você não vai
me perdoar tão cedo.
— Já disse que vou tentar. Mas, enquanto isso, acho que é melhor
cada um ficar no seu lugar. O seu é do lado de lá. — Frances apontou a
porta. — O meu, durante algum tempo, é aqui, até que termine o trabalho
pelo qual está me pagando.
— Eu a magoei muito, não foi? É este meu gênio horrível, eu sei.
Aprendi a controlá-lo durante estes últimos anos, mas de vez em quando
ele se solta e me domina.
— E então, salve-se quem puder — Frances replicou com frieza.
Encararam-se por um momento e então Harry saiu, fechando a porta
atrás de si.
Sozinha no quarto, Frances deixou escorrer as lágrimas que estivera
controlando. O encanto entre ela e Harry havia se quebrado. E talvez fosse
melhor assim. A dor que agora a invadia era insuportável. Precisava reagir,
ou acabaria enlouquecendo, decidiu, levantando-se para lavar o rosto. De-
pois voltou para a cama e esforçou-se para se concentrar na leitura de um
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livro.
Dali a pouco bateram de novo à porta e o coração de Frances
disparou de emoção ao ver que também dessa vez não era Dolly: Harry
entrou no quarto carregando uma enorme bandeja. Sem uma palavra,
colocou-a sobre a mesa do canto, depois voltou-se para Frances, que o
olhava, espantadíssima, e pegou um guardanapo branco:
— Permita-me, minha senhorita — disse, muito sério. Afofou os
travesseiros atrás dela e estendeu o guardanapo sobre a colcha, à sua
frente.
— Mas o que é isso? O que está fazendo, Harry?
— Inversão de papéis — ele respondeu, e foi buscar um prato com
legumes e faisão assado. Colocou-o diante dela com uma reverência, e
entregou-lhe os talheres.
— Mas eu não posso...
— Pode, sim, mas há um problema. Vou ficar aqui para jantar
também. — E foi o que fez: serviu-se de um prato e sentou-se na beirada
da cama. Tranqüilamente, começou a comer.
Frances olhou-o, indecisa, depois encolheu os ombros e provou um
pedaço de faisão. Estava delicioso.
— Dolly sabe que você está fazendo isso? — ela indagou.
— Mais ou menos.
— O que quer dizer com "mais ou menos"?
— Ela achava que nós íamos comer lá na sala de jantar, como sempre
fazemos aos domingos.
— Então por que estamos comendo aqui?
— Porque você recusou jantar comigo. Então, decidi vir jantar com
você, milady. Ou seja, trouxe a guerra para o campo inimigo. — Harry fez
uma pausa, antes de levar o garfo até a boca. — Mas eu gostaria que não
fôssemos inimigos, Frances.
Subitamente, ela percebeu o absurdo da situação e começou a rir.
— Devo interpretar este riso cristalino como a graça de seu perdão,
milady?
— Ora, pare com isso. — Frances continuava a rir. Era impossível
manter-se indiferente diante daquele homem encantador.
Terminaram o jantar num clima bem mais descontraído e então Harry
convidou-a a tomar o café na sala. Frances tentou recusar, mas não
conseguiu.
— Está bem. Você me espera lá?
— Claro. — Ele levantou-se e colocou os pratos sobre a bandeja. —
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Capítulo VIII
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— Não preciso fazer isso. Essa decisão tem de ser apenas minha. —
Frances olhou-o e tentou sorrir. — Além disso, qualquer pai acharia você
um bom partido para uma filha.
— Não sei... Isso é o que dizem por aí, o que aliás me aborrece
terrivelmente. Sinto-me como um bilhete premiado de loteria. — Harry
retribuiu o sorriso. — Mas sei que você não falou por mal. Você é uma das
poucas pessoas que me valorizam e me aceitam como realmente sou.
Aliás, este é um dos motivos pelos quais acabo de lhe fazer esta proposta
maluca.
— E os outros?
— Você é uma boa amiga, é uma pessoa agradável, enfim... — Harry
fez um gesto vago e não percebeu a expressão decepcionada de Frances.
Se ele a amasse, aquele momento poderia ser tão feliz...
— Vou pensar sobre isso, Harry. — Frances levantou-se. — E, para
tanto, preciso de um pouco de solidão.
— Claro, eu compreendo.
— Amanhã à noite creio que já terei chegado a uma conclusão. Boa
noite.
— Frances, espere. Eu a acompanho até seu quarto.
— Não é necessário. Boa noite. — E Frances saiu, ainda perplexa
com o que acabara de ouvir.
Tarde da noite, ela ainda pensava. Será que realmente desejava ser a
esposa de Harry? A resposta era muito fácil: sem dúvida seria maravilhoso,
mas... Faltava apenas um ponto naquele jogo complicado para que a
felicidade fosse completa: o amor de Harry. Não a amizade, ou o carinho
fraternal, mas o amor, o desejo. Conseguiria conquistá-lo com o passar do
tempo? Estava preparada para enfrentar a maternidade assim tão
precipitadamente? Esta questão não a incomodava tanto. Amava Harry o
suficiente para lhe dar um filho. O problema era se algum dia ele a veria
como uma mulher desejável, e não como uma amiga, ou como uma irmã
mais nova? Agarrando-se a essa frágil esperança, sentia-se tentada a
aceitar. A situação era ao mesmo tempo maravilhosa e desesperadora.
Apesar do desgaste emocional que essas dúvidas lhe causavam, a
ponto de deixá-la exausta, Frances não conseguia dormir. A proposta de
Harry não lhe saía da cabeça. Sabia que ele lhe devotava um imenso
carinho, mas preferia que ele estivesse loucamente apaixonado... Por que
ela só conseguira despertar-lhe aquela espécie de afeição? Sabia também
que, ao menos quando a beijara, Harry a havia desejado. Mas desejo e
amor eram sentimentos bem distintos. Os pensamentos se sucediam numa
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livre. Sugerira a Dolly que preparasse tortas e sucos para vender, o que
também rendeu um bom lucro àquela bondosa senhora, que mal cabia em
si de contentamento.
— Você veio trazer uma nova vida a este lugar, querida — ela
costumava dizer a Frances, que nesses momentos tinha de se controlar
muito para não demonstrar sua tristeza.
O relacionamento com Harry ia de mal a pior. Era terrível admitir,
mas seu casamento fora um fracasso, e tudo por um mal-entendido que não
conseguia esclarecer.
Desde aquela primeira noite, quando experimentara a felicidade nos
braços do homem que tanto amava, Harry não mais a tocara. Mais que
isso: negara-se a ouvir as explicações que ela quisera dar. Estava
absolutamente certo de que sua esposa amava outro e nada no mundo seria
capaz de demovê-lo dessa idéia.
O homem gentil e encantador que a conquistara tornara-se um
marido frio e indiferente. Muitas vezes ela o flagrara fitando-a com um
misto de raiva e mágoa. Nem a chance de conversar ele lhe dava, pois
bastava tocar no assunto para que levantasse e saísse, deixando-a sozinha
com seu desespero e seu amor incompreendido.
Reagindo àquele clima hostil, Frances trancava-se em si mesma, em
seu mundo triste e sem esperanças. Muitas vezes, quando Harry se deitava
a seu lado sem sequer olhá-la, ela mordia o lábio para não dizer palavras
de carinho. Isso só contribuía para dar ainda mais certeza a Harry de que
sua esposa não o amava.
"Minha vida...", Frances escrevera numa carta a Jassy, "é uma
sucessão de mal-entendidos. A princípio Harry imaginou que eu fosse
apaixonada por Chris e infelizmente devo admitir que tive culpa neste
equívoco. Quando rompi com Chris e contei a Harry que assim tinha sido
melhor, ele duvidou que eu estivesse falando a verdade. Julgava-me ainda
apaixonada. E como demovê-lo dessa idéia? Só se lhe confessasse que era
a ele que eu amava, mas não tive coragem. Como dizer isso a um homem
que me tratava como uma boa amiga, eu como uma garota ingênua? Eu
tive medo de parecer ridícula, de receber como resposta ao meu amor
apenas um sorriso distante... E agora pago caro por meu orgulho..."
A carta continuava, cheia de conclusões amargas. Frances não a
enviou. Deixou-a na gaveta do criado-mudo, dentro de um caderno de capa
dura, onde passou a fazer anotações sobre o seu dia-a-dia. Quando
percebeu, possuía um diário...
"Como lady Arabella", ela pensava com amargura.
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"A diferença é que amo meu marido acima de tudo. E seria incapaz
de matar quem quer que fosse".
"Meu ponto em comum com lady Arabella é o sofrimento...", Frances
escreveu, certa noite.
E assim o tempo transcorria, indiferente aos problemas humanos.
Frances atirava-se ao trabalho, sem se importar com o cansaço. Tudo o que
desejava era esquecer sua angústia e o único modo de conseguir isso era se
concentrando nos livros. Além do mais, era bom que estivesse exausta, à
noite. Assim não teria tempo de pensar muito antes de adormecer. Nem de
contemplar o rosto sereno de Harry dormindo. Nesse momento ele parecia
estar em paz, era o mesmo Harry que conhecera e por quem se apaixonara.
Tinha de se controlar muito nessa hora para não acariciá-lo, para não
abraçá-lo, implorando um pouco de ternura e compreensão. Que ironia do
destino, ela se dizia, contendo as lágrimas. Aquele homem parecia tão
próximo e ao mesmo tempo estava tão distante como as estrelas no céu.
Até quando suportaria a situação? Não tinha a mínima idéia de como
resolver sua vida. No íntimo, ainda acalentava uma última esperança, que,
com o passar dos dias, ia cedendo lugar a uma tristeza infinita.
Ninguém percebia a infelicidade do casal Curthoys. Por um acordo
sem palavras, que surgira naturalmente, ambos se tratavam com
cordialidade na frente das outras pessoas. Isso quando precisavam se falar.
Se não, cada qual se recolhia a um canto. Nem mesmo Dolly parecia
perceber o que se passava. Ou, se percebia, não demonstrava. Tratava am-
bos com carinho, como se fossem os filhos que jamais tivera, e mimava-os
o quanto podia.
A vida se arrastava e Frances sentia-se levada pela correnteza dos
acontecimentos, sem que nada pudesse fazer. Estava corada pelo sol, seus
cabelos sedosos emoldurando-lhe o rosto de traços delicados. Quando se
olhava no espelho, constatava o quanto tinha mudado: ao chegar ali, era
uma garota alegre, espontânea, um tanto inábil e imatura.
Naqueles poucos meses tornara-se mulher, seu corpo se arredondara
nas formas, seus olhos traziam uma expressão mais serena. Mas do que
adiantava tinha tudo isso, se estava infeliz?
Certa noite, pouco antes do jantar, um carro estacionou no pátio da
mansão.
— Está esperando alguém? — Harry perguntou, num tom seco.
— Não.
Pouco depois Dolly atendia a porta e ambos levantaram-se e
dirigiram-se ao hall.
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que o sexo era algo maravilhoso e mágico, bem diferente do ato frustrante
que eu conhecera com Chris. Claro que ele não tinha culpa, como aliás
você mesmo disse, nem tampouco eu. Com você, no entanto, tudo correu
tão bem, tão... Eu me realizei, entende?
Harry a olhou por um longo momento, antes de indagar:
— Se eu lhe pedisse para ficar... você concordaria?
Frances suspirou. De novo aquela tênue esperança voltava a acender-
se. Mas tinha medo de se magoar novamente e por isso respondeu com
cautela:
— Se eu ficar, terei de novo sua amizade, a sua consideração?
— Receio que não — ele disse, baixando os olhos.
Frances sentiu que o chão lhe fugia sob os pés. Uma sensação de
abandono a invadiu.
— Então por que está me pedindo para permanecer nesta casa,
Harry? Por acaso só quer me fazer sofrer? Mas isso você já conseguiu, e
muito! Por que não quer me dar sua amizade de novo?
— Porque sinto por você algo maior... Porque eu te amo, Frances.
Ela ergueu o rosto devagar e encontrou os olhos de Harry. Não estava
sonhando... O que via naquele olhar só podia ter um significado: amor.
— Mas eu também amo você, Harry.
Uma centelha de felicidade iluminou o rosto perfeito de Harry.
— Você... Diga isso de novo, Frances.
— Eu te amo... Não tive coragem de dizer-lhe antes porque você só
me tratava como amiga, às vezes até como uma criança.
Ele sorriu, carinhoso.
— Eu só a tratava assim para me defender do que sentia por você.
Além do mais, eu julgava que você amava Chris. Oh, Frances, por que não
me disse isso antes? Teria nos poupado tanto sofrimento...
— E por que você também não me disse?
Frances interrompeu-se. As palavras já não eram necessárias, não
naquele momento, em que todo o desespero cedia lugar a uma felicidade
sem limites. Impulsionados pela mais pura emoção, abraçaram-se com
força e um beijo uniu os lábios e os corações, como se quisessem resgatar
o tempo perdido.
O desejo que os incendiava tornou as carícias mais ousadas, na
mágica busca do prazer. Minutos depois, estavam nus, livres para cumprir
o mais antigo ritual de felicidade entre homem e mulher. O prazer era
intenso, quase insuportável de tão belo, no caminho secreto que só aos
verdadeiros amantes é dado conhecer. Assim chegaram ao clímax, para
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FIM
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