Sei sulla pagina 1di 105

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS - PPGEL

MARCUS VINÍCIUS CONCEIÇÃO PEREIRA

OS DISCURSOS SOBRE A PRISÃO NO ESTADO NOVO EM MEMÓRIAS DO


CÁRCERE DE GRACILIANO RAMOS

Salvador
2014
MARCUS VINÍCIUS CONCEIÇÃO PEREIRA

OS DISCURSOS SOBRE A PRISÃO NO ESTADO NOVO EM MEMÓRIAS DO


CÁRCERE DE GRACILIANO RAMOS

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade do


Estado da Bahia – UNEB, Programa de Pós-Graduação
em Linguagens – PPGEL, como requisito final para a
obtenção do título de Mestre em Linguagens. Área:
Análise do Discurso.

Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto

Salvador
2014
MARCUS VINÍCIUS CONCEIÇÃO PEREIRA

OS DISCURSOS SOBRE A PRISÃO NO ESTADO NOVO EM MEMÓRIAS DO


CÁRCERE DE GRACILIANO RAMOS

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade do


Estado da Bahia – UNEB, Programa de Pós-Graduação
em Linguagens – PPGEL, como requisito final para a
obtenção do título de Mestre em Linguagens, área:
Análise do Discurso, e aprovada pela seguinte banca
examinadora:

_______________________________________________
Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto
Universidade do Estado da Bahia

_______________________________________________
Profª Drª rosa Helena Blanco Machado
Universidade do Estado da Bahia

_______________________________________________
Prof. Dr. Igor Rossoni
Universidade Federal da Bahia

Salvador, ____ de _______________________ de 2014.


Às duas grandes mulheres da minha vida:
Solange Auta Conceição e Sônia Maria Conceição Silveira.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, o Professor Dr. João Antônio de Santana Neto, que
me proporcionou novos aprendizados, dando-me auxílio, apoio e incentivo para trilhar
caminhos desconhecidos, encorajando-me a enfrentar os grandes desafios de formular essa
dissertação. A leitura crítica e debates contribuíram para que adquirisse um contorno
definitivo. Minha dívida para com ele é eterna e incontestável.
À Professora Drª Rosa Helena Blanco Machado e ao Professor Dr. Igor Rossoni,
pelos comentários e sugestões no exame de qualificação.
Aos meus amigos, os professores doutores em Linguística pela Universidade
Federal da Bahia, docentes da Universidade do Estado da Bahia, André Gaspari Madureira e
Erivelton Nonato, pela amizade fiel, verdadeira e devotada com a qual se dedicaram a
motivar-me ao retorno da vida acadêmica e ao desenvolvimento desta dissertação.
À inestimável orientação pessoal e profissional do amigo e professor Pedro Barroso
Sobrinho pela grande contribuição prestada à minha formação de vida e retorno à vida
acadêmica.
Aos amigos Reinaldo Miranda por seus elogios e correções e Patrícia Rodrigues
Sampaio por sua preocupação, carinho e atenção acadêmica desde a minha aprovação no
mestrado.
A todos os professores e funcionários do PPGEL.
É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais
sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos
afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que
perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos
felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes
poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam
como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém
que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o
ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um
machado para o mar congelado que há dentro de nós.

Franz Kafka.
RESUMO

Nessa dissertação, procurou-se fazer uma análise interpretativa sobre o discurso da prisão
durante o período do Estado Novo inscrito no romance Memórias do Cárcere de Graciliano
Ramos. Primeiro, buscou-se fazer a reconstituição das origens e filiações biográficas, pessoais
e artísticas de Graciliano Ramos relacionando-as ao estudo do desenvolvimento histórico das
condições de produção e dos elementos formadores da memória discursiva presentes na
linguagem literária do romance e constituição histórica do Estado Novo. Entende-se que a
prisão no Estado Novo exerceu o controle panóptico do corpo e do sujeito através de uma
vigilância hierárquica. A análise da prisão estadonovista, valeu-se, principalmente, dos
postulados de Louis Althusser acerca da Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado, além da
teorização genealógica e arqueológica sobre o discurso e a prisão, de Michel Foucault,
elemento teórico basilar para a compreensão das relações do poder opressor e das
manifestações ideológicas do cárcere na Era Vargas. Por último, buscou-se entender o modo
discursivo específico do trabalho de tradução autobiográfica presente no romance por
intermédio dos estudos da Análise do Discurso. A prisão, portanto, discursivamente não pode
ser apenas vista como elemento material de clausura institucional. Destaca-se nesse estudo, a
importância simbólica estabelecida pela ditadura estadonovista ao escolher um dos mais
destacados intelectuais de seu tempo silenciando-o e vitimando-o à época. Desse modo,
mostra-se que o discurso produzido pelo narrador em Memórias do Cárcere, longe de ser
despretensioso e neutro, contém um elemento denunciador ao público leitor das práticas
torpes realizadas, a partir da década de 1930, durante o período da ditadura Vargas.

Palavras chave: Discurso. Prisão. Estado Novo. Poder. Ideologia. Memória e vigilância.
ABSTRACT

In this thesis, we tried to make an interpretative analysis of the discourse of prison during the
Estado Novo enrolled in the novel Memórias do Cárcere by Graciliano Ramos. First, we tried
to make the reconstruction of the biographical, personal and artistic origins and affiliations of
Graciliano Ramos, relating them to the study of the historical development of the production
conditions and the constitutive features of the discursive memory in the literary language of
the novel and the historical constitution of the NewState. It is understood that during the
NewState, the prison exercised panoptic control of the body and the subject, through a
hierarchical supervision. The analysis of the prison during the New State, thanks, mainly, the
postulates of Louis Althusser on the Theory of Ideological State Apparatus, besides Michel
Foucault's archaeological and genealogical theorizing about the speech and the arrest,
fundamental theoretical element for the understanding of the relations between the oppressive
power and ideological manifestations of the imprisonment in Vargas Era. Finally, we sought
to understand how specific discursive translation work in this autobiographical novel through
the studies of discourse analysis. The arrest, therefore discursively just can not be seen as a
material element of institutional confinement. Stands out in this study, the symbolic
importance established by the dictatorship in the Vargas Era when choosing one of the
leading intellectuals of his time silencing him and victimizing him at the time. Thus, it is
shown that the speech produced by the narrator in Memórias do Cárcere, far from being
neutral and unassuming, gives up to the readers a denunciatory element of the vile practices
carried out from the 1930s during the Vargas dictatorship.

Keywords: Discourse. Prison. Estado Novo. Power. Ideology. Memory and vigilance.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 09

2 GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS, CÁRCERE E ESTADO NOVO 14

2.1 O ESTADO NOVO E O FACISMO TUPINAMBÁ 14

2.2 GRACILIANO RAMOS E O PERCURSO A MEMÓRIAS DO CÁRCERE 26

2.3 ELEMENTOS PARA ANÁLISE 37

3 BASES TEÓRICAS E ANALÍTICAS 46

3.1 MEMÓRIA, DISCURSO E ARQUIVO 46

3.2 CORPO, SUJEITO E VIGILÂNCIA 52

3.3 OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO GETULISTA 63

3.3.1 A POLÍCIA DE GETÚLIO - O DESPS 65

3.3.2 O PRESÍDIO GETULISTA – O CCDR E ILHA GRANDE 67

3.3.3 O TRIBUNAL DE SEGURANÇA NACIONAL – TSN 70

3.3.4 O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA – DIP 72

4 A ANÁLISE DO CORPUS: O CÁRCERE DE GRACILIANO 74

4.1 ARQUIVO INSTITUCIONAL E POSICIONAMENTO DO SUJEITO 74

4.2 A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA PRISÃO NO GETULISMO 81

4.3 DISCURSIVIDADE E HISTÓRIA 89

5 CONCLUSÃO 96

REFERÊNCIAS 102
9

1 INTRODUÇÃO

O regime totalitário denominado Estado Novo, implantado no país a partir da década


de 1930, instaurou um conjunto de práticas e procedimentos ditatoriais que delinearam
diversas concepções ideológicas e literárias na sociedade brasileira nas décadas de 1930 a
1950. O elemento opressor mais contundente desse sistema autoritário foi o da prática do
encarceramento generalizado durante grande parte do período do governo de Getúlio Vargas.
A prisão funcionou como mecanismo de perpetuação do controle ideológico estadonovista e
fonte disseminadora da legitimação do modelo de poder abusivo e disciplinar do Estado
getulista.
A ancoragem nesse cenário possibilitou a escolha da trajetória narrativa do romance
Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, por representar uma tradução discursiva mais
próxima do testemunho histórico e da descrição pormenorizada das práticas torpes realizadas
nos porões/prisões à época da ditadura getulista. O sujeito histórico apresentado na narrativa
autobiográfica graciliana estabelece o encontro de diversas acepções literárias, político-
ideológicas, memorialistas e históricas, as quais possibilitam perceber, de modo específico, a
partir do aporte teórico da Análise do Discurso (AD), a confluência possível entre a história,
as ciências humanas e a linguística sobre a memória discursiva e a função-sujeito presentes no
depoimento registro configurado a partir dos relatos do escritor Graciliano Ramos, no presídio
de Ilha Grande, durante o período da ditadura varguista.
Na presente dissertação, tem-se como objetivo principal trabalhar as condições
produtoras do discurso ideológico estadonovista, analisando-se as estratégias disciplinares de
controle e legitimação do poder a partir do aparelho ideológico da prisão presente no discurso
da obra Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
Outros aspectos que objetivaram a realização desta pesquisa concentram-se em:
identificar os elementos constituintes de uma formação discursiva presente na linguagem
literária graciliana, a reflexão sobre a função ideológica da prisão no contexto histórico-
político; compreender as relações de opressão que se estabeleceram no Estado Novo, e
analisar a posição sujeito dos sujeitos histórico-culturais na construção discursiva. As
hipóteses pretendidas apresentam a noção de que, mediante a pesquisa, é possível identificar
que o discurso literário conferido na narrativa da obra Memórias do Cárcere funciona como
uma espécie de autópsia de um dos mais complexos sistemas ditatoriais já implantados no
país.
10

Por isso, elegeu-se como objeto de estudo os arquivos discursivos sobre a prisão no
Estado Novo, em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, na tentativa de depreender e
analisar, no depoimento-discursivo, as estratégias discursivas que manifestam as ideologias e
as relações de poder a partir da década de 1930, no período da ditadura Vargas. Algumas
motivações conduziram à escolha do tema, como, por exemplo, a suposição de que o romance
Memórias do Cárcere representa uma espécie de arquivo vivo de diversas representações,
imaginários, panoramas e acervos das estratégias ditatoriais getulistas no período do Estado
Novo.
Dessa forma, foram suscitados os principais questionamentos, delineantes do percurso
investigativo, a saber: a prisão em Memórias do Cárcere funciona como instrumento de
opressão ideológica do Estado Novo, que pretende punir o sujeito enunciado (Graciliano
Ramos) por expor o depoimento discursivo. O sujeito enunciador (narrador-autor) denuncia as
estratégias de manutenção do poder opressor por meio do acionamento da memória narrativo-
discursiva. O presente estudo se justifica, portanto, pela necessidade de estabelecer discursos
limite situados em divisa onde a obra literária se encontra demarcada: os anos de totalitarismo
político do Estado Novo. Por sua vez, o depoimento narrativo-discursivo do autor serve como
archeion (arquivo registro) sócio-histórico-político de observação e reflexão sobre a
utilização dos instrumentos dos aparelhos ideológicos do Estado e sobre a forma de
perpetuação no poder.
O corpus da pesquisa se constitui do romance Memórias do Cárcere, escrito por
Graciliano Ramos, extraídos dos dois exemplares publicados no ano de 1953, das referências
da crítica especializada, além de consultas bibliográficas e entrevistas em periódicos da época.
Assim, o trabalho foi idealizado tomando como parâmetro o discurso visto como fenômeno
capaz de revelar ideologias materializadas por meio do conjunto de práticas estabelecidas por
instituições repressivas a partir da força bruta, conformações de representações, relações
imaginárias dos indivíduos com respectivas condições reais de existência e os aparelhos
ideológicos de Estado presentes no período getulista.
Quanto à estruturação monográfica interna, busca-se atender às expectativas teórico-
metodológicas pontuadas para os objetivos estabelecidos, bem como à linha de investigação
científica adotada no momento da concepção temática do estudo. Em decorrência, a
dissertação divide-se em três seções. A primeira, intitulada Graciliano Ramos: memórias,
cárcere e Estado Novo, dedica-se às origens e filiações biográficas, pessoais e artísticas de
Graciliano Ramos; ao estudo do desenvolvimento histórico das condições de produção e dos
elementos formadores da memória discursiva presente na linguagem literária do romance e à
11

constituição histórica do Estado Novo repercutidas em Memórias do Cárcere em relação ao


período de encarceramento do escritor, buscando-se evidenciar os aspectos mais relevantes da
narrativa, com ênfase nos discursos, arquivos e linguagens envolvidos na construção do
depoimento discursivo gracilianiano. De tal maneira, procura-se reunir elementos conceituais,
formulações e dados históricos relativos à memória apresentada ao longo do romance,
destacando-se, inclusive, o encontro de diversas acepções temáticas que conferem
legitimidade à obra do sujeito enunciador (narrador autor), a formulação conceitual e
ideológica do Estado Novo a partir das concepções fascistas adotadas no período.
Na segunda seção, aborda-se as principais bases teóricas e analíticas do presente
estudo dissertativo. Destacam-se a importância da análise do discurso memorial-documental e
histórico autobiográfico, as interações entre memória, discurso e arquivo. Desse modo, a
análise do controle panóptico do corpo e do sujeito através de uma vigilância hierárquica
apresenta-se com importante manancial, no qual estão reunidas informações sobre o poder
ideológico da prisão, objetivando-se traçar um panorama histórico relativo aos conceitos e
definições atribuídos ao referido aparelho ideológico do Estado e à utilização deste na
ditadura varguista. Ademais, realiza-se estudo acerca da Teoria dos aparelhos ideológicos de
Estado, desenvolvida por Louis Althusser, além de centrar-se nos estudos genealógicos sobre
a prisão e arqueológicos sobre o discurso, de Michel Foucault, os quais serviram como base
para a análise das relações do poder opressor e as manifestações ideológicas encontradas no
material contido no corpus da pesquisa. Procura-se reunir, ainda, conceitos e definições
relativos à Análise do Discurso, por meio dos quais foi possível lançar um olhar mais
cuidadoso ao material analisado, o que subsidiou cientificamente essa dissertação.
Na terceira seção, o cárcere de Graciliano Ramos, analisa-se o corpus – Memórias do
Cárcere – sob perspectiva que compreende que um dado acontecimento discursivo –
encarceramento de Graciliano Ramos – projeta uma fração da história invisível, intocada e
inaudita. Novamente, o estudo apurado da função ideológica da prisão no Estado Novo
imprimiu materialidade às teorias abordadas, servindo como elemento confirmador das
hipóteses levantadas e dos questionamentos lançados ao longo de todo o trabalho de
investigação. Assim, estrutura-se esta parte da dissertação em três momentos: o primeiro
demonstra os impactos do posicionamento do sujeito no discurso, reordenando e
ressignificando o conteúdo iconográfico de um arquivo institucional. O segundo analisa a
função ideológica da prisão no getulismo, buscando identificar os mecanismos discursivos de
legitimação do poder opressor estadonovista nos sujeitos ideológicos presentes no romance; o
terceiro investiga a estreita ligação entre a discursividade e a história, verificando, assim, o
12

lugar na história em que se apresentam as principais estratégias de exercício do poder


opressor varguista no estabelecimento do silêncio discursivo-narrativo do autor.
A dissertação configura-se, pois, como oportunidade para se perceber um modo
específico de entender o trabalho de tradução autobiográfica, por intermédio dos estudos do
discurso. Tal reflexão torna-se relevante em período no qual a ideia de sujeito é dimensionada
por concepção que entende o sujeito como elemento afetado pela ideologia e subordinado à
linguagem. Estudar a trajetória do narrador-autor Graciliano Ramos é uma possibilidade para
se pensar como determinadas formações discursivas podem se adensar e constituir memórias
discursivas, que revelam formas de comportamento e pensamento tidas como institucionais
nas sociedades do pós-guerra.
Por último, colocam-se na conclusão os posicionamentos sobre os resultados que
foram constatados na investigação: o discurso sobre a prisão na época do Estado Novo.
Procura-se mostrar, através dela, que as condições de produção em que se encontra a obra de
Graciliano Ramos foram submetidas a uma forte interferência ideológica, difundidas pelas
instituições que compõem os aparelhos ideológicos do Estado, em especial, a prisão no
modelo estadonovista. A prisão, portanto, não pode ser apenas vista como elemento material
de clausura institucional. Destaca-se, nesse estudo, a importância simbólica estabelecida pela
ditadura estadonovista ao escolher um dos mais nobres intelectuais de seu tempo: silenciar e
vitimar a gerações de intelectuais da época. Assim, mostra-se que o discurso produzido pelo
narrador em Memórias do Cárcere, longe de ser ingênuo e neutro, pode denunciar ao público
leitor as práticas torpes realizadas a partir da década de 1930 durante o período da ditadura
Vargas em conter o avanço de ideologias contrárias no país.
A pretensão de realizar o trabalho é – para além de analisar o impacto sócio-histórico
sobre a construção de discursos autoritários dirigidos às massas e às repercussões nas
liberdades coletivas no Brasil do pós-guerra – sinalizar, também, como a trajetória de um
intelectual pode orientar e denunciar todo o surgimento da banalização do mal no seio da elite
dirigente do país. Em momentos particulares da história, para demonstrar força, poder e
fascínio, o poder ditatorial escolhe seus melhores representantes literários: Franz Kafka,
Garcia Lorca, Vladimir Maiakoviski. Na dissertação em questão, percorre-se um fio condutor
de exploração investigativa e de denúncia que podem ser apreciadas no romance sobre a
opressão humana e a capacidade de revelar a face obscura de um período ditatorial ainda não
totalmente digerido pela sociedade brasileira.
Desse modo, visa a despertar o olhar mais atento do leitor para o regime ditatorial de
encarceramento generalizado realizado no período do Estado Novo, pois acredita-se que os
13

discursos presentes no romance Memórias do Cárcere têm o poder conscientizador na


formação dos indivíduos, despertando-os para elementos pertinentes a determinadas
formações discursivas e ideológicas antidemocráticas que afetam a sociedade brasileira na
atualidade.
14

2 GRACILIANO RAMOS : MEMÓRIAS, CÁRCERE E ESTADO NOVO

2.1 O ESTADO NOVO E O FASCISMO TUPINAMBÁ

O século XX inaugurou o ciclo de profundas transformações econômicas, políticas e


sociais no modelo e na estrutura da sociedade brasileira a partir das décadas de 1920. A
sociedade escravista começava a ser substituída por uma relação econômica centrada no
processo industrial e na mão de obra remunerada do operariado. As cidades brasileiras, que
até então serviam exclusivamente de entrepostos comerciais desde a época da colônia,
transformavam-se em centros de processamento de manufaturados pertencentes a produções
em larga escala.
A intensa urbanização e a modificação do eixo populacional predominantemente
agrário (agroprodutor) para um eixo populacional notadamente urbano prenunciaram a
derrocada do modelo latifundiário cafeicultor, estabelecendo uma crise sem precedentes no
núcleo do poder político e ideológico da elite dirigente brasileira. Com a crise do modelo
patriarcal agrário, o país é invadido por êxodo rural crescente; pelo fluxo de imigrantes com
ideias anarquisras e pelo incremento de uma nova mentalidade de viver. Assim, comportar-se
e agir em cidades recém-independentes, politicamente, após o período escravagista,
intensificam a mudança da sociedade essencialmente ruralista urbana.
A primeira grande crise do capitalismo ocidental (o crack da bolsa de 1929)
possibilitou uma série de transformações na hegemonia da denominada “República café com
leite”1, favorecendo o esgotamento do poder oligárquico estabelecido durante décadas na
política e na economia brasileira. O advento de duas grandes guerras mundiais propiciou o
solapamento do conceito de formação e exercício de sociedades liberais em todo o mundo.
Nascia, assim, o mito do Estado nação (Estado forte) e a concepção de que um líder
predestinado com dons e personalidade singular deveria estabelecer uma espécie de “coesão
social suprema” em prol da unidade e integridade nacionais. O embate mundial entre as

1
A política denominada de “café com leite” foi um arranjo político que vigorou no período da Primeira
República. Constituída pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais e o governo central no sentido de
controlar o processo sucessório, para que somente políticos desses dois estados fossem eleitos à presidência de
modo alternado. O surgimento do nome "café com leite" batiza o acordo que seria uma das referências à
economia de São Paulo e Minas, grandes produtores, respectivamente, de café e leite. Com a quebra da Bolsa
de Nova York, em 1929, o preço do café brasileiro caiu drasticamente, o que levou os cafeicultores paulistas a
terem uma crise de superprodução. Esta fragilidade econômica de São Paulo foi decisiva para que Minas
Gerais se unisse ao Rio Grande do Sul e à Paraíba, formando a chamada Aliança Liberal, a qual resultou na
eleição do gaúcho Getúlio Vargas à presidência encerrando o ciclo da política café com leite.
15

ideologias comunista e capitalista conformava o surgimento de personalidades doutrinadoras


e líderes políticos ultrarradicais em todo o mundo.
O entrechoque de forças ideológicas possibilitou o avanço do culto à personalidade,
que se expressou de maneira multifacetada nos dirigentes políticos de esquerda e direita no
período entre guerras. A tendência se apresentou como alternativa “legítima” de resolução de
conflitos de classes sociais e econômicos gerados pelo sistema capitalista em disputa
ideológica com o comunismo, durante todo o século XX.
O ponto central da doutrina é determinar que o Estado não mais estivesse subjugado a
qualquer ditame ou preceito do liberalismo econômico. O Estado nação deve ser forte o
suficiente para contemplar, cultuar o nacionalismo exacerbado e, sobretudo, uma
nacionalidade vigorosa e sem limites.

Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente, a estrutura do


Estado é fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido. Fosse
sob forma de nova República ou de monarquia constitucional reformada, o Estado
herdou como função suprema a proteção de todos os habitantes do seu território,
independente de nacionalidade, e devia agir como instituição legal suprema. A
tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo
interferiu com essas funções. Em nome da vontade do povo, o Estado foi forçado a
reconhecer como cidadãos somente os “nacionais”, a conceder completos direitos
civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito
de origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente
transformado de instrumento da lei em instrumento da nação. (ARENDT, 2012,
p.323).

Dessa forma, o nacionalismo estabelece o controle supremo de todas as ações dos


indivíduos na sociedade e é imbuído, assim, de um “espírito de nacionalidade” capaz de
dirimir as mazelas da desigualdade social no século XX. As relações de poder entre Estado e
nação, e governo e comunidade, são absorvidas por uma liderança insigne que entroniza em
sua personalidade a figura do “dono de uma verdade”, de uma voz única que suplanta as
diversas expressões existentes nos mais variados setores da sociedade.
As concepções de Estado nação desenvolvidas na Europa favorecem a elaboração do
regime ditatorial denominado de Estado Novo no Brasil. O Estado Novo apresenta ,em
formação ideológica, o discurso do medo e do terror. A construção ideológica discursiva
sobre a necessidade da existência de um Estado totalizador que defendesse de inimigos
externos a nação revela-se como uma estratégia argumentativa recorrente em ditaduras
totalitárias. A estratégia discursivo-ideológica de disseminar o medo está associada a práticas
antissemitas e racistas que incorporam um clima ideológico de pavor e desconfiança nas
massas, no intuito de angariar adesão da sociedade às práticas ditatoriais do regime opressor
16

em questão. O Plano Cohen – estopim do golpe getulista de 1937 – imprimiu essa estratégia
no seio da sociedade brasileira, instaurando a ideia do anticomunismo (iminente ameaça
judaico-comunista) e o ódio à linhagem judaica no país favorecendo as primeiras cogitações
ideológicas estadonovistas.
O Estado Novo estabeleceu maior racionalidade administrativa além de disseminar
ideologia através de propaganda extensiva à sociedade brasileira. A centralização do poder
administrativo e político, aliada à criação de cargos públicos em diversos níveis da
administração, vincularam de forma subordinada os estados ao poder central do governo
estadonovista. A matriz intervencionista do Estado Novo configura-se no grande aparato
estatal de base tecnocrática, autônoma e não clientelista. No entanto, a estrutura moldada no
getulismo atendeu em grande parte aos interesses e conveniências político-partidárias do
Estado Novo. A propaganda e a censura no varguismo transformaram-se nas principais armas
ideológicas de controle durante a ditadura estadonovista, o objetivo principal era o de
persuadir e controlar um imenso contingente do proletariado; a propaganda e a censura
estadonovista estabeleceram o procedimento focado em dois polos distintos: a educação
massificada e o civismo dirigista.
A educação proporcionada pelo governo estimulava principalmente o culto ao corpo
em exibições oficiais em quadras de futebol. Nesse período, imenso contingente de escolas
brasileiras sofreu intenso processo de nacionalização curricular, monitoração e intervenção
cultural.
O civismo promovia campanhas de cunho educativo com intuito de “erradicar”
influências perniciosas advindas de terras estrangeiras. Nesse sentido, o propagandismo
varguista criou uma série de campanhas em prol de causas defendidas pelo governo: Dia da
raça, Dia da pátria, Dia da juventude, Semana da independência e Dia do trabalho. A máquina
de propaganda do Estado Novo produziu uma extensa iconografia mítica e louvatória em
torno da imagem de Getúlio Vargas. A construção ideológica de uma iconografia de uma
liderança marcada por uma monumentalidade associada à agenda oficial de inaugurações de
Getúlio pretendia edificar um lugar na imagem pública do país de um presidente com valor
histórico de paternalidade dos desfavorecidos, uma espécie de defensor dos humildes, que
trazia uma preocupação subliminar: conter a acentuada insatisfação dos proletários,
imigrantes e abastados numa sociedade capitalista tardia e industrial nascente. A construção
da imagem de chefe de Estado, “pai nacional” que protegia os humildes e que possuía o poder
de transformar os anseios e desejos do povo em interesses da nação.
17

A propaganda de massa getulista desempenhou um papel basilar e precípuo na


instauração do regime do Estado Novo. Em virtude da crescente adoção de práticas
nazifascistas pelo poder central varguista, a arquitetura, a escultura e a pintura receberam
influência de traços estéticos notadamente neoclássicos em diversas inaugurações de prédios
públicos, favorecendo assim uma revigoração artística de cunho institucional e patrimonial.
Conforme Berger e Luckmann (2008, p.79-80), o construto da institucionalização ocorre
sempre quando há uma típica e recíproca ação habitual dimensionada por diversos atores ao
longo de um processo histórico:

As instituições têm sempre uma história, da qual são produtos. É impossível


compreender adequadamente uma instituição sem entender o processo histórico em
que foi produzida. As instituições, também, pelo simples fato de existirem,
controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de
conduta, que a canalizam (sic) em uma direção por oposição às muitas outras
direções que seriam teoricamente possíveis. É importante acentuar que este caráter
controlador é inerente à institucionalização enquanto tal, anterior a quaisquer
mecanismos de sanções especificamente estabelecidos para apoiar uma instituição
ou independente desses mecanismos. Tais mecanismos (cuja soma constitui o que
geralmente se chama sistema de controle social) existem evidentemente em algumas
instituições e em todas as aglomerações de instituições que sociedades (sic)
(BERGER & LUCKMANN, 2008, p. 79-80).

O instrumento institucionalizado de grande ferocidade e controle ideológico no


período estadonovista foi, sem dúvida, a censura. A censura da Era Vargas, representada pelas
ações ideologicamente estratégicas do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),
pautava-se na reprodução da autocensura às atividades de produções artísticas, recreativas,
esportivas, radiofônicas, literárias sociais, políticas e de imprensa. A principal intervenção da
censura no campo literário ocorre na agregação de escritores que constituíram uma versão
oficial da realidade estadonovista em contrapartida a uma política de favorecimento literário.
O discurso literário de Graciliano Ramos, diante da política de compra de intelectuais a favor
do regime, mantém-se num posicionamento de resistência prudente diante de verbas e
favorecimentos ofertados pelo getulismo.
Uma das estratégias do DIP na atração desses intelectuais notabilizou-se na elaboração
da revista Cultura Política que buscava agregar intelectuais de campos liberais e da esquerda
para alinhar-se ao projeto político estadonovista associando temas literários a remunerações
expressivas patrocinadas pelo getulismo. Ao receber o convite por parte da revista, Graciliano
Ramos estabelece, nos artigos colaborativos à revista, um discurso centrado numa postura de
completo desconhecimento sobre o regime Varguista. Enquanto grande parte dos escritores
18

rendia homenagens ao regime nas colaborações à revista, Graciliano Ramos estabeleceu uma
condução ética e isolada do discurso oficial produzido por grande parte dos colaboradores.
A existência da censura Varguista constitui-se para o escritor como experiência
decisiva para a instauração de um direcionamento autobiográfico pautado por um discurso de
teor avaliativo sobre as relações e transformações do poder promovidas pelo Estado Novo.
Desse modo, o sistema opressor da Era Vargas elaborou e instituiu o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por realizar a inspeção do conteúdo de todos
os veículos da imprensa: jornais, revistas e radiofusão. Segundo Garcia Júnior (1982), a
Agência Nacional exerceu o controle de quase 60% das produções dos noticiários, os censores
limavam constantemente as matérias de grande parte dos jornalistas na imprensa escrita e
falada e o governo estipulava dura e intensa política de concessões de rádio pelo país.
Do ponto de vista do propagandismo getulista, a faceta marcadamente ideológica e,
portanto, manipulatória encontra-se na elaboração de um discurso que visou legitimar e criar
um ambiente de acentuado teor protetivo em relação às normas e regulamentações trabalhistas
para a classe trabalhadora brasileira. O incremento pelo Estado de apelos patrióticos no
sentindo de estabelecer um “espírito de conciliação” em torno das questões que envolvessem
a dignidade dos trabalhadores levaram ao poder central varguista o aprimoramento de uma
política intervencionista projetada na figura de Vargas como um negociador habilidoso que
refreava todos os tipos de antagonismos de classe, revoltas sindicais e lutas do operariado.
Dessa maneira, o Estado Novo elabora e cria a Justiça do Trabalho e a Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT), que estipulam um nível de qualificação profissional e utilizam-se
do discurso, nomenclatura e imagem do “trabalhador” como forma de estabelecer uma
possível sensação ideológica de conforto e proximidade entre trabalhadores e patrões,
associada à imagem iconográfica de “pai protetor” de Getúlio Vargas.
O patrimonialismo exerceu forte presença no projeto audacioso da ditadura Vargas; à
mercê da divulgação de inaugurações suntuosas de empresas e órgãos públicos, a população
contemplava fascinada o dinâmico desempenho de seu líder e o esforço carismático em
estabelecer a tão prometida igualdade e justiça social aos pobres: as inaugurações da
Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Estrada de Ferro Central
do Brasil, Companhia Hidrelétrica Vale do Rio Doce, entre outras realizações patrimoniais
concretizadas. A visão patrimonialista estadonovista não se restringiu apenas a edificações e
criações de empresas estatais.
19

O estilo de governar de Getulio imprimia uma conduta que buscava não gerar nenhum
desafeto político. Lira Neto, a propósito, descreve de forma habilidosa as salomônicas
soluções administrativas getulistas:

“O Sr. Paranhos deseja o lugar de inspetor-geral do ensino. É funcionário da saúde


pública. O Moreirinha, jornalista aqui, também me veio pedir para telegrafar a
Vossa Excelência”, adiantou Getúlio, por carta, a Borges de Medeiros. “Se, por
forças das circunstâncias, eu telegrafar solicitando a indicação de Paranhos ou
Moreira, Vossa Excelência me responda dizendo que não pode atender nenhum dos
dois, porque já tem compromissos”, combinou. “Como vê, este meu pedido é fácil
de atender: pois exatamente eu não desejo ser atendido”, brincou. Boa parte do
expediente do ministério era tomada pela miuçalha de solicitações que lhe
aterrissavam na mesa de trabalho. Getúlio administrava tais pedidos e ia tocando a
burocracia – pondo sua assinatura em portarias, requerimentos e autorizações de
despesas – ao passo que o próprio Washington Luís cuidava da política
macroeconômica do governo. “Quem lhe fosse falar a propósito de assuntos de sua
pasta ouviria uma palavra distraída e displicente, de que não guardaria rancor ou
ressentimento, pelo sorriso amável e o ar acolhedor daquele ministro
despreocupado”, escreveria o jornalista Barbosa Lima Sobrinho a respeito do
desempenho de Getúlio à frente da Fazenda (LIRA NETO, 2012, p.245).

Nesse sentido, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) era o


responsável por promover todo conjunto de ações que visavam ao controle da efetivação de
pesquisas pormenorizadas sobre as repartições governamentais, departamentos e empresas
públicas para efetivar as modificações a serem realizadas em diversas áreas no governo:
orçamento, remanejamento, processos trabalhistas, deficiências estruturais dos órgãos do
governo. O Departamento Oficial de Propaganda (DOP) foi o responsável pela elaboração do
despretensioso programa “A Hora do Brasil”, instrumento ideológico de propaganda
institucionalizada que consistia no programa radiofônico oficial, transmitindo informações a
todo território nacional. Além disso, o DOP, em meados de 1934, foi reestruturado, tornando-
se o Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural (DNP), responsável por
instituir políticas culturais para o cinema, radiotelegrafia, processos técnicos, filmes
educativos e cultura física. Na mesma ordem institucional e ideológica, o Estado Novo cria o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o objetivo de estabelecer melhor controle
e eficácia das informações nos estados da Federação.
O DIP centralizou esforços em áreas distintas: imprensa e turismo, cinema e teatro,
divulgação e radiodifusão. O Serviço de Inquérito Político e Social (SIPS) produziu um dos
maiores mananciais de arquivos institucionais do país na metade do século XX. O SIPS
detinha um eficiente e organizado método de recortar jornais, revistas, relatórios e
informações de colaboradores por todo o Brasil. Essa sistemática continha, no início da
década de 1940, um catálogo de 44 fichas básicas sobre 1.574 municípios da Federação,
20

representando um somatório de 69.256 arquivos sobre situações políticas, econômicas,


geográficas, culturais e sociais sobre a nação.
Segundo Capelato (1999), o propagandismo varguista deve ser considerado como um
fenômeno misto e não essencialmente fascista. Todavia, a autora assinala a importância da
influência do doutrinamento do fascismo italiano e do nazismo alemão na organização e
funcionamento dos órgãos produtores de propaganda e meios de comunicação de massa que, a
seu ver, se estruturavam a partir de um preciso planejamento centrado em uso de insinuações
indiretas, veladas e ameaçadoras, simplificação das ideias para atingir as massas incultas,
apelos de caráter emocional, repetições ostensivas, promessas de benefícios materiais para o
povo, fortalecimento e unificação da nação.
A propaganda política no Estado Novo estabeleceu uma nova perspectiva de lidar com
as massas e de como persuadir as multidões a aderirem aos princípios totalitários adotados
pela ditadura no país. Assim, a ditadura estadonovista esforça-se para aumentar drasticamente
o número de pessoas proprietárias de um aparelho de rádio em seus lares. O jornal O Estado
de S. Paulo veiculava diversas notícias com plena e clara vinculação ideológica com o
getulismo após sua expropriação na década de 1940.
A atividade jornalística no Estado Novo tornara-se uma disposição intelectual
subjugada e coordenada pela centralidade político administrativa do governo Vargas. A
política de silenciamento dos jornais e jornalistas obteve sucesso através da intensa troca de
favorecimentos e de fartas quantias financeiras traduzidas em verbas de propaganda
oferecidas pela ditadura estadonovista. Os “homens da informação” quedaram-se à política de
oferta de cargos, ganhos e obtenção de vantagens na estrutura de poder do Estado Novo,
restando desse modo um tímido grupo de intelectuais resistentes ao poder opressor do Estado.
A radiodifusão no Brasil nasce sob o signo do controle estatal na década de 1930,
profetizando, assim, a tônica de comando e controle dos discursos, mensagens e notícias
oficiais deste período ditatorial.
Para entender com exatidão o processo de construção do Estado Novo é necessário
compreender a dimensão e participação pessoal e iconográfica de Getúlio Vargas. Essa noção
determina com eficiência o grau de idolatria e influência exercida por Getúlio Vargas na
população brasileira durante e após todo o regime estadonovista. O traço iconográfico de
Vargas como líder sedutor das massas foi um produto da combinação dos fatores do culto à
personalidade exarcerbado, práticas totalitárias e o ultranacionalismo. O biógrafo Lira Neto
(2012) chama a atenção para a enorme “orgia cívica” vivida no período de sua posse e a
imagem de Getúlio antes da “sagração” política:
21

O clima era de orgia cívica, conforme definiria Chatô, nas páginas de o Jornal.
Entretanto, muitos devem ter ficado intrigados quando o sujeito baixinho, de cara
raspada, aparência frágil e bochechas rosadas como as de um bebê se adiantou, com
um calhamaço de páginas datilografadas na mão. Alguns talvez se perguntassem:
então aquele era Getúlio Dornelles Vargas, o colosso dos Pampas, o grande líder que
prometia redimir o país dos males do autoritarismo, da corrupção e da falcatrua
política? Aquele, o mais mirradinho do palanque? Um homem, segundo a descrição
da Folha da Manhã, “tão pequenino, tão rechonchudo”? Pela primeira vez, muitos
puderam constatar que Getúlio, apelidado de “Meia Garrafa” pela mordacidade do
Deputado Azevedo Lima, não correspondia mesmo ao estereótipo do sujeito audaz,
corpulento, de vasta bigodeira, montado na sela de um corcel empinado, o que
desmentia a figura típica eternizada em prosa e verso pela literatura regional do Rio
Grande do Sul. O gaúcho que puderam conhecer melhor naquele cinzento fim de
tarde carioca mais parecia um anãozinho de jardim, um homenzinho um tanto
quanto barrigudo, sem maiores atrativos, fisicamente incapaz de fazer frente à
altanaria do emplumado Washington Luís e seu cavanhaque inglês (LIRA NETO,
2012, p.393).

Este cenário político ideológico revela o trabalho eficaz do sistema ditatorial


estadonovista em construir a imagem institucional de Getúlio Vargas perante a grande “massa
de desvalidos” como um líder “grandioso, forte, robusto e de uma capacidade de trabalho e
superação descomunais”. A propaganda e as diversas comemorações cívicas em diversos
estádios proliferavam e disseminavam uma espécie de doutrinação da personalidade e
deificação do líder. Essa disposição produz uma série de panfletos, cartazes, livros, cartilhas e
slogans que buscavam fixar a personalidade “santificada” do “pai supremo da nação”. O
Getúlio de voz anasalada, monocórdica e antirretórica ficou escondido sob o poderio
estratégico da ideológica, contumaz e persuasiva propaganda de Estado.
Necessário enfatizar, em termos políticos e ideológicos, que a publicidade
desempenhou um papel decisivo na ampla difusão, orientação e legitimação do regime do
Estado Novo e foi estabelecida por um conjunto de práticas que buscavam a elaboração de
discursos condizentes às necessidades de caráter imediato e básico da massa proletária
brasileira. A autoridade suprema atribuída a Gétulio Vargas se coadunava com a construção
de uma personalidade carismática, engenhosa, dotada de atributos excepcionais e liderança
onipresente. O simbolismo pujante de Vargas submeteu a população brasileira a intermitentes
ciclos de autopromoção transformando-o em certos momentos em um líder que traduzia os
anseios mais urgentes do povo.
É importante salientar que os regimes totalitários buscavam disciplinar e controlar as
massas. A organização política, o temor por ataques ou ameaças internas ou externas, as
discordâncias ideológicas e a descrença no modelo democrático liberal hipnotizaram muitos
países numa escalada nazifascista. O unipartidarismo solapou o pluralismo democrático,
reduzindo o debate político sobre as questões sociais mais urgentes a uma escolha e tomada
22

de posição nacionalista; a fragilidade em deter as manifestações e reivindicações populares


deu vazão ao uso da força bruta; os embates e escolhas ideológicas foram submetidos por um
antagonismo de posicionamentos capitalistas ou socialistas. Os regimes totalitários instituíram
uma ditadura do unipartidarismo e instauraram o Estado como propriedade privada a serviço
do seu sistema ditatorial.
Os sistemas totalitaristas impuseram uma lealdade quase individual a cada um dos
seus membros, aos seus partidos, aos líderes e à nação. Nesse aspecto, o regime totalitário
buscou imprimir um espectro da violência centrado num forte aparato coativo que não se
contentou apenas em disciplinar as massas com o arcabouço jurídico estatal, mas, sim, incutir
uma dimensão simbólica da violência baseada no limite do terror que cada ser humano
poderia experimentar em uma sociedade banalizada pelo medo introduzido por uma atroz
política de Estado. Hannah Arendt, enquanto filósofa e estudiosa das questões imperialistas e
antissemitas, concebe o totalitarismo como uma máquina de violência que subtrai os desejos
das massas:

O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através


do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel
dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de
subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Nesse sentido, elimina a
distância entre os governantes e governados e estabelece uma situação na qual o
poder e o desejo de poder, tal como entendemos, não representa papel algum ou, na
melhor das hipóteses, têm um papel secundário. Essencialmente, o líder totalitário é
nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um
individuo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica
arbitrária (ARENDT, 2012, p.323).

O Estado Novo alicerçou-se, em grande parte, em teorizações e práticas político-


ideológicas do regime fascista. O governo de Getúlio Vargas sempre exprimiu publicamente
sua admiração e fascínio pelo sistema ditatorial fascista. Em 25 de julho de 1929, Getúlio,
antes de assumir no Palácio do Catete2, dera a entender que sua forma de governar seria

2
O Palácio do Catete foi construído pelo Barão de Nova Friburgo em 1860 e passou, já nos primeiros anos da
República (1894), a abrigar a sede do poder executivo, tendo sido palco dos principais acontecimentos da
nossa história republicana até a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, quando foi
transformado em Museu da República. Além das características materiais que privilegiam o Palácio do Catete
como um marco concreto da memória histórica do país, outros fatores contribuem para a sua constituição em
um lugar de memória indissociavelmente ligado à imagem de Getulio Vargas. Em primeiro lugar, Vargas foi o
governante que por maior período contínuo de tempo ocupou o Catete - de 1930 a 1945 - e o único que a ele
retornou, como quem volta à própria casa, para aí permanecer pelo resto da vida, de 1951 a 1954. Em segundo
lugar, Vargas não deixou o Palácio por término do mandato presidencial, mas morto, sob circunstâncias
dramáticas, que produziram intensa comoção popular e marcaram o fim de uma fase extremamente conturbada
da vida política nacional. Em terceiro lugar, longe de ensejar o término do mito de Vargas, cuidadosamente
construído durante o Estado Novo - período de 1937 a 1945, durante o qual o Congresso esteve fechado e
23

inspirada nos pressupostos do corporativismo italiano de Benito Mussolini. O líder Getúlio


Vargas atribuía a força da doutrina fascista à “renovação criadora” que impulsionaria o
modelo de institucionalização da tutela do Estado sobre as relações entre capital e trabalho,
contrariando os adeptos liberais (Aliança Liberal) do recém-eleito “Mussolini dos pampas” e
o seu triunfo político no Catete. Deste lugar, entende-se que o fascismo adotado por Getúlio
no país adquiriu contornos muito específicos e diferenciados, mesmo seguindo ditames
rigorosos e austeros do sistema fascista italiano. Ao conceber a adoção doutrinária pelo
getulismo, faz-se necessário utilizar a expressão atribuída ao Estado Novo pelo reconhecido
professor e historiador Nelson Werneck Sodré (1988) que denominou no prefácio do romance
Memórias do Cárcere o fascismo do governo do Estado Novo como fascismo tupinambá.
O modelo ditatorial brasileiro apresentaria nuances do sistema fascista italiano,
identificando-se com as marcas inequívocas das contradições das oligarquias brasileiras e o
regime de extrema direita implantado por Mussolini. O Movimento Integralista estabeleceu os
laços permanentes com o fascismo europeu e suas teorias racistas, elitistas, antidemocráticas e
economicamente reacionárias. De forma geral, o fascismo se constitui em uma estrutura
quadripartida baseada em teorias sobre o mito da raça, o Estado de base totalitarista, o
nacionalismo exacerbado e a concepção de elitismo cultivado pela figura de um líder nato.
O fascismo tupinambá elaborado pelo sistema opressor do Estado Novo sob o domínio
de Getúlio Vargas estruturou-se a partir do uso da força bruta, produzindo o poder
hegemônico do super Estado capaz de submeter qualquer cidadão e esmagá-lo para glorificar
o poder central que o criou. No campo ideológico, a função desse sistema não difere muito da
do modelo praticado na Europa. Enquanto o fascismo europeu buscou esmagar as concepções
do positivismo, o ideário socialista e as democracias liberais no final do século XIX, o
fascismo tupinambá tratou de sufocar as ações anarquistas, as revoltas do operariado e os
levantes sindicais.
O sistema ditatorial fascista desenvolvido por Getúlio serviu a priori para enfraquecer
a estrutura oligárquica de poder dos coronéis no Brasil. A Constituição de 1937, com
inspiração polonesa, implantou o marco legal para projetar as bases jurídico-políticas do
Estado Novo. A confluência de forças políticas, que viam o fascismo como alternativa de
estabelecer e evitar o avanço do “perigo vermelho”, ou seja, do comunismo no país,

Getúlio exerceu ditatorialmente o governo do país -, o suicídio veio a revigorá-lo e conferir-lhe, pelas
frequentes rememorações do episódio, um grau de permanência que o faz chegar até aos dias de hoje. Segundo
Lira Neto (2012) ao tomar posse no palácio do Catete Getúlio exprime seu desejo de conduzir o governo nos
princípios e ditames da doutrina fascista de Benito Mussolini o que o apelidou de Mussolini dos Pampas.
24

dimensionou o sentimento de anticomunismo de Vargas. A política de imigração no Brasil


escondia um traço característico do fascismo: a teoria da eugenia. O grande contingente de
imigrantes europeus, em especial italianos, ampara o discurso fascista da homogeneidade
racial e integração nacional.
A imigração é concebida em consonância com teorias eugênicas europeias para alterar
os traços fenotípicos brasileiros e diminuir a crescente escalada semita na República
formadora de consciência nacionalista. O fim do Estado Novo atrelou-se diretamente a um
desejo de renovação política e redemocratização dos setores estudantis e de uma parcela da
elite econômica brasileira. Com o término da Segunda Guerra Mundial e dos seus efeitos, o
varguismo tenta estabelecer uma flexibilização das suas posturas ideológicas, procurando a
manutenção do seu poderio político-militar. A nova ordem política do Estado Novo produziu
uma ampla reforma de partidos, a concessão de anistia aos condenados e exilados políticos e a
eliminação da prática da censura no país.
A burocracia do Estado Novo procurou firmar um pacto com setores viciados e
retrógrados do governo para promover a manutenção do regime. O anseio por reformas e
mudanças políticas era crescente no âmago das classes política e trabalhadora brasileiras. No
entanto, surge um movimento que reivindicava a continuidade de Getúlio no poder
denominado de “queremismo” ou simplesmente: “queremos Getúlio”. A habilidade política e
a manipulação estatal de Vargas abriram espaço para uma inusitada tentativa da burocracia
estadonovista em estabelecer um plano mais longo de permanência no poder. Todavia, a
considerada ousada e abrupta decisão de Vargas de alterar o calendário eleitoral e nomear seu
irmão Benjamin Vargas e seu amigo João Alberto desencadearam um intenso
descontentamento entre setores da sociedade brasileira.
Os militares produziram maior resistência e maior contundência à continuidade do
regime político e ditatorial estadonovista. O general Góis Monteiro estabelece a liderança do
movimento, determinando, no dia 29 de outubro de 1945, a retirada amena e pacífica de
Getúlio Vargas do poder. A rendição do líder do Estado Novo é acatada sob a condição do
governo central ser exercido pelo Judiciário até a divulgação de novos pleitos eleitorais. No
dia 30 de outubro de 1945, o regime do Estado Novo é definitivamente sepultado. Esse fato,
no entanto, não esgotou o carisma e a popularidade de Getúlio que retornaria ao poder no
Palácio do Catete, aclamado popularmente em 1951, de onde só sairia morto.
O regime do Estado Novo consagrou o mito da liderança tão difundido pela teoria
fascista em voga no início do século XX. O Estado Novo não se perpetuaria por tanto tempo
se não fosse pela força das ideologias totalitárias que este sistema ditatorial representou ao
25

longo da metade do século XX. Os campos de concentração na Alemanha e sua fábrica


propagandista se tornaram oficinas de aprimoramento do horror e da barbárie. O legado
implantado pela utilização da engenharia de controle fascistas na estrutura de poder varguista
trouxe repercussões das mais variadas para o país no modelo de gestão pública adotado desde
a modernização estatal administrativa, as medidas protetivas ao trabalhador brasileiro, os
projetos expansionistas na indústria e uma acentuada vitalidade na economia brasileira.
A herança mais atroz e devastadora do Estado Novo traduziu-se na ampla
disseminação da violação dos direitos humanos. A tortura e os interrogatórios desenvolveram-
se amplamente no período getulista, assumindo requintes de crueldade e sofisticação nos
interrogatórios para o momento histórico em questão. A gestão autoritária estadonovista puniu
duramente uma farta parcela de intelectuais, políticos, artistas e militantes opositores ou não
simpatizantes do regime totalizador. A dura face do getulismo estabeleceu um
intervencionismo militar que projetou no país um constante temor e instabilidade
democrática. A estrutura intervencionista de Estado fez surgir uma tecnocracia extremamente
descomprometida das causas sociais e do povo brasileiro.
O Estado Novo e o seu fascismo tupinambá são produtos de um país que sofreu
profundas transformações sociais, políticas e ideológicas durante o século XX. Os regimes
ditatoriais, centralizadores e totalitários isolaram o homem das massas, oferecendo a este uma
falsa segurança de cuidado e proteção. A legitimação desse comportamento ideológico se deu
na intensa manipulação das massas direcionadas ao culto de líderes de caráter populista,
autocentrados e de formação governamental paternalista. Os trabalhadores urbanos foram o
alvo preferencial do sistema ditatorial de Vargas. O crescente aumento da urbanização revelou
a impotência dos trabalhadores ante a estrutura nefasta do capital. Assim, os valores
fundamentais dessa sociedade moderna passam a ser preconizados pela atividade do trabalho.
O regime fascista almejou dilacerar completamente as necessidades e expressões políticas das
emergentes populações urbanas de todo o mundo.
O fascismo e o Estado Novo são produtos ideológicos nascidos sob a égide da
decomposição moral e ética do Estado liberal moderno. Nesta perspectiva, o término do
regime estadonovista coincide com a maturação do processo industrial brasileiro,
possibilitando o crescimento econômico do país. Em realidade, o sistema ditatorial do Estado
Novo foi um conjunto de perspectivas que abrangeram os campos político, ideológico,
estético, administrativo, ético e econômico. Trata-se, portanto, de uma concepção política
baseada na estratificação do poder, no qual a formação totalitária é configurada pela
concepção do “gênio” de seu líder. Dessa forma, o Estado Novo e Getúlio Vargas estão
26

entrelaçados na estratégia discursivo-ideológica de instituir a forma pública e a gestão pessoal


da memória nacional como uma técnica de controle corpo/nação. O valor iconográfico de
Getúlio é atrelado ao valor da potencialidade de inclusão das massas no projeto de progresso
econômico, social e político estadonovista.i

2.2 GRACILIANO RAMOS E O PERCURSO TEMÁTICO A MEMÓRIAS DO CÁRCERE

Graciliano Ramos de Oliveira, o mais destacado ficcionista da geração modernista da


década de 1930, considerado por muitos críticos como um dos maiores romancistas
brasileiros, nasce no dia 27 de outubro de 1892, em Quebrângulo no Estado de Alagoas. O
ano de seu nascimento é marcado pela intensificação de disputas políticas e por grave crise
econômica. A República Brasileira nasceu (1889) por meio de um golpe militar que retirou do
centro do poder a família imperial e estabeleceu um rigoroso controle da imprensa por meio
da censura, conjuntamente à organização dos tribunais de exceção considerados como
protetores da prestigiada segurança do Estado republicano.
Em 1895, o pai, Sebastião Ramos, vende a loja em Quebrangulo, em Alagoas, e muda-
se para Buíque, na vizinhança da fazenda Maniçoba em Pernambuco. Graciliano retorna a
Alagoas em 1899, então residindo em Viçosa. Aos onze anos vai para o internato em Macéio
para aprimorar os estudos e realizar os primeiros experimentos literários. No internato
Alagoano, em 1904, Graciliano Ramos, motivado pelo literato e professor Mário Venâncio,
publica o conto de estreia, intitulado “O pequeno pedinte”, no número 1 de O Dilúculo
(alvorada), periódico de publicação bimestral com a tiragem de duzentos exemplares,
distribuídos de porta em porta e com quatro páginas impressas.
De acordo com o biógrafo Moraes (2012), o ano de 1910 é marcado pela mudança do
futuro escritor com a família para Palmeira dos Índios, onde o escritor passou a trabalhar na
direção da loja de tecidos do pai e a lecionar português no período noturno. O jovem
Graciliano transfere-se, em 1914, para o Rio de Janeiro, trabalhando como revisor e escritor
de contos e crônicas na imprensa local. Retorna em 1915 a Palmeira dos Índios para atuar no
comércio, publicar em jornais e casar com Maria Augusta Barros que veio a falecer em 23 de
novembro de 1920, vítima de complicações no parto, deixando Graciliano Ramos viúvo com
quatro filhos.
Segundo Guilhaumou e Maldidier (1986, p.45) o acontecimento discursivo realiza
algumas das suas possibilidades temáticas quando torna possível a compreensão de feixes de
sentidos através da existência de trajetos temáticos, ou seja, o conjunto de configurações
27

textuais que, de um acontecimento a outro, articulam os temas e operam o ciclo de uma nova
repetição discursiva. Neste âmbito, entende-se que o itinerário biográfico e a produção
literária discursivo-narrativa do autor aproxima-se a um trajeto temático que pode ser
analisado ao longo de um eixo cronológico de produção de imagens textuais representativas
sobre a metáfora do aprisionamento interior em suas obras, em especial, o acontecimento
discursivo sobre o encarceramento do autor no período do Estado Novo.
Compreende-se assim, que este itinerário temático pode ser categorizado como uma
espécie de arquivo por abrigar em si um contingente de horizontes temáticos que pode
favorecer a inteligibilidade de um momento histórico. De início, constata-se nesse percurso
temático o tema da descrição discursiva em forma de relatos articulados com viés
ficcionalmente histórico parece apresentar-se em descrições configuracionais no interior do
discurso da rede de enunciados da formação discursiva do autor. Além disso, considera-se que
a tematização da prisão de maneira metaforizada percorre constantemente a elaboração
simbólica narrativa do escritor.
A produção de argumentos com traço discursivo de originalidade pode ser
compreendido pela Análise do Discurso como um procedimento de historização do discurso
de acordo com os trabalhos de trajetória temática de Wahnich (1997) que considera a
materialidade sintática como uma tradução da materialidade discursiva. O modelo de
produção textual do relatório apresenta-se como uma estratégia discursiva do autor que
possibilita a visualização do seu trajeto temático como gestor público a frente da Prefeitura de
Palmeira dos Índios, gestão, marcada por grande celeuma em alguns setores da sociedade. A
figura discursiva deste ator social nos relatórios sobre a maneira de administrar a prefeitura é
configurado por um administrador honesto, austero e culto. O prefeito-escritor determinou a
limpeza de ruas e logradouros públicos, a retirada de animais sem rumo; estabeleceu medidas
sanitárias duras, paralelamente à política de multas e impostos que desagradou uma parcela
dos poderosos da cidade.
Nesse sentido, a modalidade de produção textual do relatório confere um modelo de
leitura do arquivo revelador do espírito de intervenção de um ator social em uma época
histórica particular. Esta disposição (espírito) é demarcada na linguagem em diversos
momentos da sua produção literária e ao longo do corpus da obra Memórias do Cárcere. Os
relatórios tratam com minúcia sobre a lisura financeira das contas municipais e seu balanço
patrimonial que eram acompanhados diária e pessoalmente por Graciliano Ramos. Os atos,
eventos e a prestação de contas no Diário Oficial do município da sua gestão eram transcritos
em relatórios preciosos que se consagraram historicamente e despertaram a atenção do mundo
28

literário e político até hoje registrados nos principais jornais no país da época: Jornal de
Alagoas, O semeador, Correio da Pedra, Jornal do Brasil e A esquerda.
O pesquisador Dênis Moraes (2012) remete ainda, seguindo estudo de fontes
biográficas, à pertinência e conduta ética evidenciada na escrita dos relatórios de Graciliano,
conforme os fragmentos:

Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos
pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais,
a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte;
estimulei as relações entre o produtor e o consumidor. Estabeleci feiras em cinco
aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora. Canafístula
era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com
gente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem
mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola. (MORAES, 2012, p.70)

E ainda:

Projetos. Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da


produção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de
estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo – e os projetos morrem. Iniciarei, se
houver recursos, trabalhos urbanos. [...] Empedrarei, se puder, algumas ruas. Tenho
também a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja. Mas para que
semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos
a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer. Ficarei
satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada,
realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande. O município, que esperou
dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo
de mim cobras e lagartos. (MORAES, 2012, p.71)

Desse modo, o trajeto de historicidade temática pode ser materializado


discursivamente pela formulação de estratégias discursivas pertencentes a um trajeto de
sentido firmado pelo ator social. Nesse veio, o principal legado discursivo-administrativo do
autor como Prefeito em Palmeira dos Índios foi o da formulação e aplicação do código de
posturas: um relatório de procedimentos constituído por um calhamaço com 82 artigos
redigidos que disciplinavam os costumes da cidade e estabeleciam multas altas para os
infratores.
Como prática de leitura situada, o autor rompe com o modelo autoritário da época de
prestações de contas e, a partir da interpretação da situação de descontentamento político da
cidade, apresenta uma tomada de decisão para a ação pautada no exercício da transparência
pública, fato inovador para época. Edita assim, um relatório técnico-político comunicando a
toda sociedade Palmeirense o não endividamento público, o que possibilitou a realização de
obras na cidade, em especial: três escolas na Serra da Mandioca, Anum e Canafístula; um
29

posto de saúde; a inauguração do abatedouro municipal, que extinguiu a prática do abate do


gado em praça pública e, por conseguinte , a sujeira gerada por tal costume, a reforma da
prefeitura e a ampliação de 40 km de estrada de Palmeira de Fora.
A dedicação intensa de Graciliano à prefeitura causou prejuízos significativos e
irreparáveis à loja da família, Sincera. Paralelamente a isso, a crise de 1929 e a decadência do
cultivo do café enfraqueciam a economia, diminuíam o poder aquisitivo e reduziam a oferta
de produtos a ser comercializada A loja Sincera mergulhou em dívidas que obrigaram
Graciliano a se desfazer do negócio herdado do pai.
Em março de 1930, recebeu o convite oficial do Governador do Estado para ocupar o
cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Renunciou, então, à prefeitura no
dia 30 de abril de 1930, depois de dois anos e três meses de árduo trabalho, animosidades e
perseguições à frente do Executivo, transferiu-se para Maceió para ser diretor da Imprensa
Oficial de Alagoas, onde exerceu o cargo até 1931 quando pediu demissão.
Os famosos e ilustres relatórios de Graciliano Ramos despertaram a curiosidade de um
dos maiores editores da época: Augusto Frederico Schimitt. O editor tomou conhecimento
sobre a existência de um manuscrito de um romance de Graciliano. A obra vinha sendo
confeccionada durante cinco anos de ruminação, técnica e apuro literário do escritor alagoano.
Os primeiros originais definitivos foram entregues a Augusto Frederico Schimitt em 1930,
analisados de antemão pelos críticos literários Tristão de Athaíde e Agripino Grieco, que
apreciaram a obra do escritor alagoano como um futuro sucesso editorial.
Nesse entendimento, a existência do segundo eixo de descrição do percurso temático
do autor insere-se na constatação da metáfora da prisão concretizada dentro da própria vida do
escritor, na qual a experiência literária e a experiência humana se fundem na tradução
simbólica para libertar o homem através do discurso das limalhas da opressão humana e da
absurda ignorância da existência.
Na perspectiva de Faye (1982) o trajeto temático origina-se da articulação de vários
trajetos temáticos que possibilitam visualizar o percurso panorâmico do itinerário de um
sujeito histórico diante de um desenvolvimento de um tema numa dada formação discursiva a
partir da leitura de enunciados de um arquivo. A focalização na temática da prisão como
metáfora dirigi-se ao movimento discursivo de uma estratégia simbólica que servirá como um
dos principais referentes históricos do autor ao longo do discurso narrativo de Memórias do
Cárcere.
A presença deste segundo eixo de percurso temático evidencia-se na construção de
imagens do romance Infância, publicado em 1945, que apresenta uma escrita memorialista
30

confessional que aborda o tema do aprisionamento da criança sertaneja a partir da dura


aprendizagem da normatividade familiar e dos regramentos sociais do nordeste. O
personagem menino-narrador e adulto-menino alimentam, ao longo da trama, reminiscências
da infância e da pré-adolescência com a leitura e as relações paternas. O narrador preso às
memórias de um rigor com a linguagem e pelos processos autopunição materna prenuncia em
sua obra de estréia a força coativa e enclausuradora do seio familiar: “Eu vivia numa grande
cadeia. Não, vivia numa cadeia pequena, como papagaio amarrado na gaiola”.
O romance São Bernardo, publicado em 1934, apresenta uma caracterização sólida e
amplamente complexa sobre a tematização da metáfora da prisão. O processo de construção
minucioso e o trabalho de apuro da linguagem literária de Graciliano Ramos se perpetuam na
construção do personagem-tema: Paulo Honório. De cunho autobiográfico relativo à infância
do escritor, em Buíque, o personagem central do romance, Paulo Honório utiliza-se da força
brutalidade patriarcal para realizar o desejo de acumular a posse de mais e mais latifúndios.
Homem de poucos escrúpulos, mediocrizado e egoísta preserva seus interesses por meio da
coação violenta, de virulência contudente e tamanha que precipita o suicídio da esposa
Madalena.
A temática da prisão processa-se na instalação do drama de consciência de Paulo
Honorio refletido na narrativa a partir do recurso literário do discurso indireto livre, onde o
personagem condena-se por assumir uma postura materialista diante da vida confrontando-se
com o estilo de vida humanitário de Madalena. O desejo de punição e autoflagelação
expressos pelo pernsonagem na narrativa revelam-se como estratégias discursivas do narrador
para conduzir o leitor ao encarceramento psicológico da personagem:

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração
miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um
nariz enorme, uma boca enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalena
me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio. Fecho os olhos,
agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
(RAMOS, 1970, p. 248)

A publicação de Angústia, em 1936, romance que apresenta como eixo central as


reminiscências de infância do personagem Luís da Silva e o assassinato do rival Julião
Tavares aborda mais uma vez de forma autobiográfica a rusticidade e a aspereza das relações
familiares e a falta de afeto no seio familiar sertanejo. O personagem Luís da Silva pertence a
uma família patriarcal e decadente economicamente; desintegrada pela crise econômica;
desidentificada pela despersonalização da figura do patriarca, o velho Trajano, ex-senhor de
31

escravos e terras. O percurso temático da metáfora da prisão insurge-se no ambiente


desgregador ocasionado pela condição de intelectual pequeno burguês do personagem que não
consegue libertar-se dos padrões capitalistas impostos a sociedade urbana. A deformação e o
sentimento de rejeição social traduzem o decisivo embate das forças ideológicas capitalistas
na vida social e política do país.
Em 1938, com a publicação de Vidas Secas, Graciliano Ramos alcança o apogeu
público, intelectual e literário. A abordagem da migração e do latifúndio acrescentam uma
carga de dramaticidade à trama sobre uma família que busca incessantemente fugir da fome,
sede e desamparo. A temática do encarceramento interior é revivida na narrativa pelo traço
neorrealista do autor que insere a obra numa dimensão zoomórfica que contempla as
condições deterministas da terra a uma relação familiar instintiva com os meios sociais de
subsistência e a uma dependência absoluta dos aparelhos de Estado.
Segundo Miranda (2010), o romance Vidas Secas representa a etapa mais amadurecida
de uma profunda leitura da realidade brasileira através da utilização da metáfora da prisão
como instrumento revelador da linguagem em confronto com o poder cerceador da expressão
e da extrema liberdade irônica da linguagem e dos respectivos recursos linguísticos, com o
romance Infância e experimentados pelo autor a partir da produção dos seus romances.
Assim, a concepção sobre “a metáfora da prisão” ganha corpo quando se compreende todo o
esforço e engajamento político e partidário do escritor com o Partido Comunista, em 1945, e o
ativismo e militância que se prolongaram até o falecimento em 20 de março de 1953.
Para Miranda (2010), o romance Vidas Secas é uma espécie de mediação ou
passagem dos romances em primeira pessoa para os textos autobiográficos. A inusitada
mudança de foco narrativo do autor revela a decisão de Graciliano Ramos de estabelecer uma
maior densidade e coerência com a matéria narrada moldando dessa maneira o mundo interior
e o mundo exterior das suas primorosas personagens. Este, por Rubem Braga (1978)
apelidado “romance desmontável”, é produzido de maio a outubro de 1937, ao longo de dez
meses e dez dias de pleno cárcere político.
O ano de 1953 traria o falecimento de Graciliano Ramos e o encerramento abrupto da
sua maior obra autobiográfica, memorialista e ficcional: Memórias do Cárcere. O romance
assume, então, como questão fundamental a ser observada, o dilema das relações do poder
opressor político-ideológico do Estado Novo por meio da prisão em relação à sociedade
brasileira e o referencial insigne de conduta ética e da liberdade de expressão de toda uma
geração de intelectuais brasileiros sintetizados em seu melhor representante: o escritor
Graciliano Ramos.
32

A continuidade da metáfora de encarceramento de Graciliano Ramos desloca-se para a


narrativa de Memórias do Cárcere rumo ao um horizonte ideológico conturbado, agressivo e
com elementos ideologicamente marcados pelos mecanismos de estratégia de vitimização da
elite intelectual brasileira, apresentando-se como um recado ofensivo aos opositores do
regime ditatorial Getulista.
O historiador e crítico Nelson Werneck Sodré (1998) remonta o evento de forma
precisa e testemunhal:

Graciliano Ramos, secretário da Educação em Alagoas, já conhecido como


romancista, fora arrancado às funções, preso, metido em porão de navio, recolhido à
penitenciária, em promiscuidade com criminosos comuns da pior espécie, com a
cabeça raspada e vestindo o uniforme dos presidiários: jamais foi ouvido, jamais
processado, jamais condenado e, apesar de tudo, penou longos meses, de cárcere em
cárcere, de presídio em presídio. A injustiça não tinha importância, o erro não tinha
importância, o arbítrio não tinha importância; a vítima era um comunista... A tortura
campeava infrene, levando às pessoas à loucura, matando, marcando, mutilando,
mas não tinha importância: as vítimas eram comunistas... E a estes se acusava de
cruéis, desumanos, violentos e criminosos. Foram os homens de letras que
organizaram o esforço para conseguir a liberdade de Graciliano Ramos; libertado,
abria-se para ele o problema do trabalho. Enfraquecido pelos meses de sofrimento e
de má alimentação, com mulher e filhos para sustentar, desempregado, o romancista
foi morar numa pensão no Catete: tinha que recomeçar a vida. Os amigos
conseguiram, depois, sua nomeação para fiscal de ensino; a mais alta função que
ocupou, em toda a sua existência, o maior romancista brasileiro depois de Machado
de Assis. (SODRÉ, 1998, p.108-9)

O romance Memórias do Cárcere foi publicado em 1957, após 20 anos da libertação


de Graciliano Ramos, em 13 de janeiro de 1937. Surpreendentemente, pela primeira vez, a
personalidade mais consagrada do período de repressão varguista alcança o topo das tiragens
com mais de dez mil exemplares vendidos, em cerca de um mês e meio. A crítica da época
recebe o livro de forma unânime. A quantidade de artigos e críticas por parte de inúmeros
intelectuais famosos credenciaram a obra como o relato político-literário mais importante do
país no século XX. A experiência da prisão iniciada em Macéio, no dia 03 de março de 1936,
com o embarque dentro do porão do navio Manaus, e logo depois, à Casa de Detenção e ao
Complexo Penitenciário de Ilha Grande transformam o romance em depoimento narrativo que
denuncia as práticas opressoras vigentes no Estado Novo a partir de um testemunho vivencial
articulado entre o ficcionalismo histórico e a narrativa autobiográfica.
A composição e publicação das Memórias do Cárcere de Graciliano origina-se
efetivamente a partir de janeiro de 1946, todavia, o autor realiza a primeira tentativa de
redação do livro em setembro de 1937, quando seleciona 190 nomes para a composição dos
personagens da narrativa (ao concluir o romance são 237 personagens distribuídos em 681
33

páginas) e estabelece os principais locais de encarceramento dos presos na trama: Rio Grande
do Norte, Alagoas, Colônia Correcional, Pavilhão dos Primários e Sala da Capela.
Finalmente, em julho de 1947, o editor José Olympio estabelece o pagamento adiantado de
mil cruzeiros mensais, em julho do mesmo ano, e pelo prazo de três anos consecutivos, na
expectativa da entrega de três capítulos por mês confeccionados por Graciliano Ramos.
Memórias do Cárcere consome seis anos árduos de intenso trabalho por parte do nobre
escritor. O rol de personagens e as duras lembranças na prisão transformam o trabalho de
composição do autor em uma penosa labuta de rememoração das passagens marcantes do
encarceramento político.
Segundo Moraes (2012), o romance seguiu o cronograma definido e foi dividido em
quatro volumes: o primeiro iniciado em 25 de janeiro de 1946 e finalizado em 28 de maio de
1947; o segundo volume inicia-se em 29 de maio de 1947, findando a 12 de setembro de
1948; o terceiro volume é composto entre 15 de setembro de 1948 e 6 de abril de 1950; e o
quarto e último volume da obra é iniciado em 6 de abril de 1950 e paralisado definitivamente
em 1º de setembro de 1951 sem a conclusão definitiva.
O biógrafo Ricardo Ramos (2011) ilustra com precisa propriedade a recepção do livro
no meio intelectual e o contexto sociopolítico presente no momento da publicação da obra:

Um livro relativamente caro, pois lançado em quatro volumes, Memórias do Cárcere


desde logo virou Best-seller. Igualmente repercutiu na crítica avassaladora – eram
artigos e artigos sucessivos, assinados por nomes de peso, enaltecedores ao ponto da
consagração. Só que os jornais comunistas se calavam, ignorando-o, enquanto os
demais os ecoavam. Entre estes, a Tribuna da Imprensa, onde Carlos Lacerda
insistente pontificava, escrevendo páginas inteiras de elogios, entusiasta no seu
apreço: assombroso documento de uma época, depoimento estarrecedor sobre as
misérias da ditadura de Getúlio. [...] A leitura continuada de Memórias do Cárcere
nos revela, nitidamente, a extensão de sua crítica. Ao militarismo que imperava no
partido, herança do tenentismo, dominando altos escalões e, sem excluir ninguém,
desde o seu principal dirigente, afastava qualquer possibilidade de democracia ou
simples discussão interna. [...] Entre as positivas está claro que as de comunistas.
Mas também as de liberais e trotskistas. Uns aceitos como auxiliares (na época,
inocentes úteis); outros, afastados como pragas (a canalha de então, a escumalha).
Imperdoável que Graciliano houvesse encontrado trotskistas honestos e inteligentes.
E que a sua linguagem, peculiar, desalinhada, iconoclasta, falasse de temas
proibidos. No caso, a forma era o conteúdo. Em conversas que se cosiam, fui
puxando os fios da malha, vestindo o livro. Memórias do Cárcere, para quem o
compreendesse, tinha o sabor das ilusões perdidas. Como estranhar a posição do
partido, assim desmitificado? Nós, do alto de nossa juvenil desesperança,
contemplávamos aquele tabuleiro de xadrez. (RAMOS, 2011, p.212-214)

Em Memórias do Cárcere a ficção histórica e a autobiografia narrativa se reúnem para


confirmar o testemunho inequívoco de um intelectual memorialista submetido à forte
opressão vivida na barbárie da prisão. A ficção histórica presente no romance é configurada
34

por um extenso diário íntimo construído a partir da experiência do cárcere romanceada pelo
autor. A ficção histórica desempenha uma função de médium entre o ato de interpretação de si
diante do acontecimento histórico – o regime ditatorial do Estado Novo e sua própria
identidade face ao drama pessoal experienciado: o encarceramento político no Presídio da Ilha
Grande. A ficcionalidade histórica efetiva-se na operação transgressora de transformar o
evento da prisão política do escritor em um episódio literário com atores sociais do momento
histórico getulista presentes neste acontecimento histórico transformados em personagens da
narrativa do romance. Entretanto, a noção de narrativa histórica abrange um discurso que
penetra profundamente no âmago do fenômeno da consciência-experiência, horizonte este que
é delimitado por um sujeito marcado pela verossimilhança e dependente do discurso histórico.
A ficção histórico-narrativa de Memórias do Cárcere propicia o entendimento sobre
articulação entre as narrativas históricas do período getulista e da produção ficcional deste
período, ou seja, a forma de lidar com os processos de ficcionalização da história e da
historização da ficção.
A concepção de ficção histórica compreende conceitos que interligam diversos
campos de aplicação sobre as formas autobiográficas de escrita como os registros ficcionais e
a narrativa de cunho histórico. Os horizontes da história e ficção estabelecem uma simbiose
entre as narrativas e a experiência pessoal do sujeito. Hayden White (2001), ao estudar as
narrativas históricas como artefatos da construção literária, diz:

A narrativa, ou a dispersão sintagmática dos acontecimentos através de uma série


temporal apresentada como um discurso em prosa, de modo a mostrar sua
progressiva elaboração como uma forma compreensível, representaria a “reviravolta
interior” que o discurso realiza quando tenta mostrar ao leitor a verdadeira forma das
coisas que subjazem a uma informidade meramente aparente. O estilo narrativo, na
história como no romance, seria, pois construído como a modalidade do movimento
que parte da representação de algum estado de coisas original para chegar a algum
estado subsequente. O sentido básico de uma narrativa consistiria, então, na
desestruturação de um conjunto de eventos (reais ou imaginários) originalmente
codificados num modo tropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto num
outro modo tropológico. Vista dessa maneira, a narrativa seria um processo de
decodificação e recodificação em que uma percepção original é esclarecida por
achar-se vazada num modo figurativo diverso daquele em que veio a ser codificada
por convenção, autoridade ou costume. E a força explicativa da narração dependeria,
então, do contraste entre a codificação original e posterior. (WHITE, 2001, p. 113)

A narrativa autobiográfica de Memórias do Cárcere representa, então, a


desconfiguração discursiva da imagem paternalista atribuída ao Estado Novo na sociedade
brasileira que vivia sob a égide de um regime militar e opressor das massas do século XIX. O
lugar ideológico destinado ao intelectual Graciliano Ramos invade os limites do cárcere
35

ideológico estadonovista para se constituir em um símbolo insigne de toda uma geração de


intelectuais brasileiros vitimados pelo poder ditatorial do regime getulista. O cenário de
complexidade ideológico-existencial e sociocultural determina a formação da autobiografia
narrativa substanciada em Memórias do Cárcere no seu relato íntimo.

É a narrativa que confere papéis aos personagens da nossa vida, que define posições
e valores entre eles; é a narrativa que constrói, entre circunstâncias, os
acontecimentos, as ações, as relações de causa, de meio, de finalidade; que polariza
as linhas de nossos enredos entre um começo e um fim e os leva para a sua
conclusão; que transforma a relação de sucessão dos acontecimentos em
encadeamentos finalizados; que compõe uma totalidade significante, na qual cada
evento encontra o seu lugar; segundo sua contribuição na realização da história
contada. (DÉLORY-MONGERGER, 2008, p. 37)

O romance em questão estabelece intercâmbio de experiências entre a narrativa


ficcional, a escrita autobiográfica, a ficção histórica e memória discursivo-cultural. Para
analisar as relações da existência de uma variedade de mundos e tempos sociais entre a
narrativa autobiográfica de Memórias do Cárcere e o cenário sócio-político-econômico-
cultural do país no período do Estado Novo, é preciso entender que a abordagem biográfica
assume matiz de análise histórico-sociológica, realizada a partir da integração crítica das
fontes. As narrativas reposicionam a experiência em sequências possíveis para a compreensão
de uma construção da realidade individual e social.
Leonor Arfuch (2010, p. 143), em O espaço biográfico,confere a especificidade do
diário íntimo na construção da narrativa autobiográfica da seguinte forma:

[...] o diário íntimo promete, em vez disso, a maior proximidade à profundidade do


eu. Uma escrita desprovida de amarras genéricas, aberta à improvisação, a inúmeros
registros da linguagem e do colecionismo – tudo pode encontrar lugar em suas
páginas: contas, bilhetes, fotografias, recortes, vestígios, um universo inteiro de
ancoragens fetichistas – sujeita apenas ao ritmo da cronologia, sem limite de tempo
nem lugar. O diário cobre o imaginário de liberdade absoluta, cobiça qualquer tema,
da insignificância cotidiana à iluminação filosófica, da reflexão sentimental à paixão
desatada.

As narrativas autobiográficas são, portanto, uma oportunidade de estabelecer um


conhecimento de si que serve como elemento subsidiador para uma pesquisa da realidade
social no campo da literatura, historiografia e memória discursivo-cultural. O diário íntimo é
uma das formas de composição mais próximas de uma maior profundidade do Eu. O
surgimento dessa modalidade de escrita ocorre apropriadamente nos séculos XVII e XIX,
quando a sociedade brasileira se alfabetiza em maior escala passando a ter maior acesso à
escrita e à leitura. As inscrições autobiográficas do diário íntimo de Graciliano Ramos
36

(manuscritos) transformados na narrativa de Memórias do Cárcere oferecem um


entendimento transversal sobre o sujeito-contexto e a sua utilização em abordagens de
pesquisa biográficas, históricas e discursivo-culturais.
Lejeune (2008), em O pacto autobiográfico, considerou que a autobiografia é “uma
narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Dessa forma, o
ato narrativo autobiográfico é uma ousada aventura em torno do conhecimento de si e do
mundo que nos cerca. Esse sujeito cognoscível constrói um tear de significações possíveis
para representar o mundo e a tradução da vida, magia e sagração.
Obviamente, a autobiografia estabelece uma atividade que leva a um posicionamento
de navegação sobre si mesmo e a vida. A narração de si é o fio condutor para a experiência
única e especial do exame reflexivo sobre a vida. Desse modo, salienta Lejeune (2008, p.104):

O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não
significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao me colocar por escrito, apenas
prolongo aquele trabalho de criação de “identidade narrativa”, como diz Paul
Ricoeur, em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar me ver melhor,
continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e esse
movimento vai provisoriamente, estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me
inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade: todos
os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar
em pé. Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a este
imaginário está do lado da verdade.

Como consequência dessa convicção, a autobiografia insere a possibilidade


exploratória a partir da experiência de peregrinação centrada em relatos de vida. Assim,
Memórias do Cárcere revela todo o poderio do sistema opressor da Era Vargas e, sobretudo,
o panorama incontestável da irracionalidade das elites políticas do país na época. O escritor
Graciliano Ramos: homem ético, resoluto e honrado, torna-se um personagem atemporal,
eternizado nas suas memórias do claustro político que espelham nada mais que a
miserabilidade humana em tempos de plena escuridão ideológico-política no seio da
sociedade brasileira.
Em suma, o ofício do escritor de retratar e denunciar as mazelas da repressão getulista
em sua obra autobiográfica e as agruras vividas por ele neste período da sua vida se
notabilizou e ganhou vida por todo Brasil e por todo mundo. A versão fílmica de Memórias
do Cárcere, dirigida e roteirizada, em 1984, por Nelson Pereira dos Santos, foi sem dúvida
um estrondoso sucesso de público e crítica, arrebatando prêmios no Festival de Cannes, no
Festival de Havana e da Associação Paulista de Críticos de Arte.
37

2.3 ELEMENTOS PARA ANÁLISE

Para se entender a complexidade das narrativas gracilianas sobre a prisão no Estado


Novo, em especial, no presídio de Ilha Grande, onde Graciliano Ramos foi mantido
encarcerado, é necessário recorrer à análise da função ideológica da prisão durante o período
getulista. Em virtude disso, a teoria genealógica foucaultiana sobre a prisão serve de
referencial e marco teórico desta dissertação. O filósofo francês problematiza, em Vigiar e
punir (2007), questões que já se encontram presentes no corpus que é analisado mais adiante
– Memórias do Cárcere – e que configuram de maneira exemplar e expressiva arcabouços
teóricos abordados na obra em questão, principalmente, em relação à função que a punição
exerce na modernidade: a transferência da barbárie exercida no suplicio dos condenados e a
retirada das penas e castigos corpóreos para uma fase de transição “pedagógica” de
humanidade aos condenados. As práticas do aparelho penitenciário estadonovista são,
portanto, uma extensão da conduta ideológico-institucional do Estado fascista-autoritário
idealizado por Getulio Vargas.
Os presídios na ditadura Vargas pertenceram a uma enorme engenharia simbólica que
criou uma tecnologia política específica de castigo aos opositores ideológicos do regime
getulista com métodos, estratégias e punições específicas aos transgressores do poder
varguista. Dessa forma, o intelectual encarcerado – Graciliano Ramos – é uma figura punida
que retrata o condenado isolado do seu habitat peculiar: a produção de discursos literários e
ideológicos transgressores de um regime ditatorial e opressor da liberdade de pensamento e
expressão na sociedade brasileira a partir da década de 1930.
Desse modo, no plano da ideologia, o encarceramento político de Graciliano Ramos
subjaz o rito e súplica comum dos condenados do presídio de Ilha Grande. A punição
estabelecida pelo regime é sancionada à elite pensante brasileira e a modulação da pena
estabelecida é castigo simbólico atribuído a uma geração de intelectuais que foram
“aprisionados” por um sistema ditatorial fascista. O espaço simbólico da prisão, porém, não
impôs limitação violenta ao autor que, mesmo assim, privado da liberdade utiliza a
consciência política para relatar as agruras sofridas no período de detenção. O regime
estadonovista utiliza o “corpo” de Graciliano Ramos com o intuito de “docilizar” setores da
intelectualidade brasileira que ainda não estavam de todo conformados com a instauração da
ditadura Vargas no Brasil. O pensador e epistemólogo francês assinala de forma assertiva essa
noção sobre o corpo na teorização genealógica da prisão:
38

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e


o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica de
poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como
se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma “capacidade”
que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potencia que poderia
resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica
separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece
no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
(FOUCAULT, 2007, p. 119)

O estabelecimento dos corpos docilizados pela teoria de Michel Foucault faz parte de
amplo estudo sobre as tecnologias modernas de poder político desenvolvidas na modernidade.
Uma segunda abordagem da teoria a ser enfatizada nessa dissertação liga-se
predominantemente à noção dos recursos para o bom adestramentro sinalizados por Foucault
em Vigiar e punir. Segundo o autor, o exercício da disciplina configura-se quando os
aparelhos disciplinares desenvolvem vigilância hierárquica que se fundamenta no
“encastramento”. O encastramento pertence a uma arquitetura que não é mais construída
apenas para ver e ser vista como o Fausto dos palácios – ou ainda, a construção do espaço
exterior traçada na geometria das fortalezas imperiais. Essa nova tecnologia do biopoder
controla o mundo interior humano de maneira articulada e detalhista. Esta instituição
disciplinar seria um verdadeiro microscópio do comportamento humano, um aparelho de
observação, controle e contínua vigilância. O aparelho disciplinador consubstanciaria todas as
formas de controle coercivo e repressor, um olhar disciplinar que abarcaria as funções
meramente administrativas, as práticas da polícia e todo o rol de práticas de verificação e
domínio. Dadas as interpretações sobre o sistema moderno de encarceramento referido pelo
autor pode-se compreender que nenhum ato é destituído de manipulação e controle
ideológico-hieráquico o que faz remeter à série de encastramentos-encarceramentos ao qual
foi submetido Graciliano Ramos, primeiramente, metido num quartel e transferido ao porão
de um navio (Manaus), depois, em companhia de criminosos comuns, encaminhado ao
Pavilhão dos Primários, na Casa de Correção até a Colônia correcional na Ilha Grande e,
finalmente, ao presídio carioca da Detenção.
Foucault, portanto, estabelece uma matriz teórica de compreensão dos elementos
historicamente ideológicos que colaboram com uma maior lucidez investigativa sobre o tema
fulcral que é perseguido no presente estudo: a função ideológica exercida pela prisão no
39

Estado Novo na produção do arquivo íntimo, histórico e institucional produzido pelo escritor
Graciliano Ramos, ou seja, o romance autobiográfico Memórias do Cárcere.
É sabido também que o filósofo demarcou de forma precisa em A Arqueologia do
Saber (2012) e A Ordem do Discurso (2011) as principais regras de formação discursiva
presentes na constituição e construção de discursos ideológico-históricos. Este conjunto de
reflexões acerca do funcionamento e das regras das formações discursivas em contextos
ideologicamente históricos representa influente fonte técnica de análise do corpus em estudo,
pois Focault considera que a formação discursiva pode ser encontrada em unidades
tradicionais rotuladas de teorias, ideologias e ciências, que designariam na realidade um
conjunto de enunciados pertencentes a amplo sistema de regras determinados por um processo
de construção histórica. Esta noção mostra-se fundamental na análise do presente corpus em
estudo, por se tratar de um objeto que interpenetra noções da memória discursivo-histórica, de
recortes autobiográficos e arquivismo institucional sobre o período da ditadura Vargas.
Assim, na concepção foucaultiana, o discurso é constituído por uma formatividade de
saberes articulada paralelamente a práticas não discursivas. Esta noção de discurso penetra
profundamente na ideia de uma “jogatina estratégica” associada aos binômios ação/reação,
indagação/resolução, de submissão-defesa e principalmente de enfretamento. Nestes termos, o
discurso é entendido como procedimento de saber e poder no qual a legitimação do que é dito
é conferida e avalizada por direito atribuído a uma instituição historicamente construída. É no
delinear desta teorização que Foucault aborda a temática da não homogeneidade dos discursos
quando analisa em A arqueologia do saber (2012) uma série de obras literárias. A análise
arqueológica é de toda esclarecedora para a presente pesquisa principalmente quando
pressupõe o aclaramento sobre a produção de um discurso gerador de poder e a implicação do
seu funcionamento no interior do próprio discurso, tomada por Foucault (2013, p. 30-31):

A obra não pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa,
nem como unidade homogenea. Finalmente, eis a última precaução para colocar fora
de circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organizam, de antemão, os
discursos que se pretende analisar: renunciar a dois temas que estão ligados um a
outro e que se opõem. Um quer que jamais seja possível assinalar, na ordem do
discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de qualquer começo
aparentemente há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela
jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seríamos fatalmente
reconduzidos, através da ingenuidade das cronologias, a um ponto indefinidamente
recuado, jamais presente em qualquer história; ele mesmo não passaria de seu
próprio vazio; e, a partir dele, todos os começos jamais poderiam deixar de ser
recomeço ou ocultação (na verdade, em um único e mesmo gesto, isto e aquilo). A
esse tema se liga um outro, segundo o qual todo o discurso manifesto repousaria
secretamente sobre um já dito; e que este já dito não seria simplesmente uma frase já
pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-dito”, um discurso sem corpo,
40

uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu
próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra
articulado nesse meio silêncio que lhe é prévio, que continua a correr
obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto não
passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não dito seria
um vazio minado, do interior, tudo que se diz. O primeiro motivo condena a análise
histórica do discurso a ser busca e repetição de uma origem que escapa a toda
determinação histórica; o outro a destina a ser interpretação ou escuta de um já-dito
que seria, ao mesmo tempo, um não dito. É preciso renunciar a todos esses temas
que tem por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta
presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para
acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa
pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser
repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços,
escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso
remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua
instância.

Além disso, o filósofo francês apresenta a noção de arquivo, elemento teórico de suma
importância para o desenvolvimento da presente dissertação. Foucault (2013) afirma que o
arquivo deve estabelecer não a representação do somatório textual e documental de
determinadas instituições e nem o traço distintivo identitário de uma nação. O arquivo é
considerado pelo epistemólogo como fonte de jogos de relações que fundamentam o sentido
da discursividade; não surge de forma despretensiosa e sim mediante um processo de
irregularidades, específico e multifacetado:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que
faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinitivamente em uma massa
amorfa, não se inscrevam tão pouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em
figuras distintas, se componham umas as outras segundo relações múltiplas, se
mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com
que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte
como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras
contemporâneas já estão extremamente pálidas. (FOUCAULT, 2013, p.30-1)

Sublinhe-se que, a teorização do autor contempla a análise arqueológica da história


dos sistemas discursivos constitutivos da ciência do homem que possuem o atributo de
construir conjuntos de enunciados que formulam uma segmentação do saber expressa em um
dado referencial espaço-tempo traduzido em arquivos. Os enunciados-arquivos reproduzem o
saber instaurado durante um desenvolvimento performático num espaço-tempo determinado.
Este saber não pertence ao crivo das incursões valorativas do legítimo versus não legítimo, e,
sim, das camadas da ordenação da historicidade discursiva que constituíram sua validade.
Com isso, compreende-se que, em determinados momentos históricos, sujeitos estão
autorizados ou não a pronunciar determinados enunciados em momentos particulares da
41

história. A concepção de arquivo de Michel Foucault possibilita a reflexão sobre um modo de


ler o arquivo na atualidade em face das repercussões promovidas pelas práticas ideológico-
políticas desenvolvidas no período histórico do Estado Novo e as estratégias discursivas
contidas na concepção prisional estadonovista da época; testemunhadas por Graciliano Ramos
em Memórias do Cárcere.
Seria inexato dizer que o romance em questão não se articula conjuntamente às
matrizes teóricas escolhidas como, também, a disciplina de entremeio a ser utilizada como
elemento basilar nessa investigação: a Análise do Discurso (AD). Ao lado da escolha temática
fornecida pelo autor ao presente estudo e do cabedal genealógico e formativo-discursivo de
teorização, compreende-se que a peculiar noção sobre o arquivo e a relação de poder-saber em
construções discursivo-históricas atende, de forma substancial, ao anseio de traduzir as
repercussões históricas, ideológicas e políticas sobre o regime ditatorial getulista retratadas no
romance do escritor alagoano.
Pretende-se observar também, em pormenor, os mecanismos de controle e legitimação
do poder da ditadura Vargas e, para isso, entende-se que o presente estudo deva analisar os
aparelhos ideológicos presentes no referido corpus, o funcionamento estratégico político, as
condições de produção e a forma de reprodução. Em virtude disso, a teoria althusseriana dos
aparelhos de Estado e dos aparelhos ideológicos de Estado é uma fonte inequívoca de aferição
e constatação de como dada ideologia (fascista/estadonovista) pode interpelar expressiva
parcela de indivíduos em uma sociedade específica. Os modelos de análise propostos pela
teoria de Althusser (1985) permitem compreender de maneira apurada o funcionamento
interno dos aparelhos de Estado e dos aparelhos ideológicos do Estado Novo e a
representação ideológica produzida nas massas neste período histórico brasileiro. Para
Althusser, os aparelhos repressivos do Estado (governo, administração, exército, polícia,
tribunais e prisões) não devem ser confundidos com os aparelhos ideológicos (religião, escola,
família). Os aparelhos de Estado se afirmam a partir do uso da força coatora da violência,
ainda que seja no nível simbólico. Diferentemente dos aparelhos repressivos do Estado, os
aparelhos ideológicos do Estado materializam o funcionamento através da utilização da
ideologia.
István Mészáros, em O poder da ideologia, ressalta a concepção e influência da
ideologia na atividade administrativa do Estado:

É claro que a própria tentativa de eliminar as contradições da base material por meio
da manipulação estrutural é contraditória. Entretanto, embora seja ilusório esperar a
superação dos antagonismos materiais básicos da sociedade utilizando-se tais
42

medidas, ainda que a eclosão das contradições mais agudas possa ser postergada
com sucesso por algum tempo, seria absurdo minimizar a eficácia prática da
manipulação do Estado para criar um consenso em relação às crenças ideológicas.
Quanto a este aspecto, a configuração da política e da ideologia no pós-guerra é uma
solução qualitativamente mais avançada, do ponto de vista do capital, do que a
utopia administrativa de Taylor e seus derivados mais ou menos diretos. A
intervenção eficaz do Estado na administração de “disfunções” e conflitos
potencialmente devastadores é uma dimensão prática inegável da realidade social
contemporânea, suficientemente eloquente por si mesma. Dentro deste quadro, as
ideologias de consenso, política e institucionalmente sustentadas, têm um peso de
poder e um poder de persuasão muito maiores do que qualquer apelo do direito – em
nome da ciência ou de qualquer outra coisa – a que os indivíduos particulares e os
grupos sociais “revolucionem sua atitude mental” para que haja uma “cooperação
fraterna”, apelo este que, deixado por sua própria conta, está fadado a permanecer
confinado ao plano do mero pensamento veleitário. (MÉSZÁROS, 2004, p.145)

No Brasil do século XX, o Estado Novo atuou na sociedade brasileira a partir do que
Althusser denominou de “duplo funcionamento”, ou seja, a atuação ideológica e política
estadonovista se concretizou em primeiro plano no nível da repressão com uma vasta gama de
coações físicas violentas e, no segundo, através da construção de instituições representativas
dos aparelhos ideológicos do Estado getulista. Além disso, a intensa mudança das relações de
produção no país a partir da década de 1930 exigiu que a estrutura jurídico-política e
ideológica fosse completamente refeita na intenção de abrigar todas as transformações de uma
elite predominantemente latifundiária para uma nova elite urbana industrial. Este novo
paradigma estabelece alteração na formação social do modo de produção deste período
histórico. Com efeito, a implantação do modelo ideológico instaura uma alteração na
perspectiva das condições políticas e da reprodução das relações de produção no início do
século no país.
Os elementos teóricos althusserianos compõem excelente método de investigação das
relações de poder, das lutas internas de classe e da unidade entre os diferentes aparelhos
repressivos e ideológicos presentes em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. O
filósofo marxista reitera a posição sobre a função da ideologia e os aparelhos repressivos e de
Estado:

Se os aparelhos ideológicos de Estado “funcionam” predominantemente através da


ideologia, o que unifica a sua diversidade é este funcionamento mesmo, na medida
em que a ideologia, na qual funcionam, está de fato sempre unificada, apesar da sua
diversidade e contradições, sob a ideologia dominante, que é a ideologia da “classe
dominante”. Se considerarmos que por princípio a “classe dominante” detém o
poder do Estado (de forma clara ou, mais frequentemente por alianças de classes ou
de frações de classes) e que dispõe, portanto do aparelho (repressivo) do Estado,
podemos admitir que a mesma classe dominante seja ativa nos aparelhos ideológicos
do Estado. Bem entendido, agir por leis e decretos no aparelho (repressivo) do
Estado é outra coisa que agir através da ideologia dominante nos aparelhos
ideológicos do Estado. Seria preciso detalhar esta diferença, - que no entanto não
43

deve encobrir a realidade de uma profunda identidade. Ao que sabemos, nenhuma


classe pode, de forma duradoura, deter o poder do Estado sem exercer ao mesmo
tempo sua hegemonia sobre e nos aparelhos do Estado. (ALTHUSSER, 1985, p.70-
71)

A teoria funcional dos aparelhos repressivos e ideológicos possibilita a compreensão


de que os aparelhos não servem apenas como meios e sim como o locus fundamental da luta
de classes. Nesse mote de compreensão, percebe-se que a teoria explicita com agudeza as
engrenagens do poder do Estado getulista, área e âmbito de interesse temático dessa
dissertação: esmiuçar o entendimento analítico-teórico sobre a construção de um sujeito
histórico oprimido pelo poder hegemônico do Estado a partir de um aparelho de Estado: a
prisão getulista. O Estado e as instituições, no que dizem respeito à ideologia do poder
político não são a priori objetos culturais espontâneos. O Estado possui tentáculos de controle
forjados através de um exercício artificial proposital, não espontâneo, amalgamado por
atividades conjuntas de indivíduos submetidos a um ordenamento simbólico estratificado em
subdivisões hierárquicas complexas definidas por liame social imaginário.
Segundo Castoríades (1982), a sociedade pode ser concebida pelo binômio do
institucional e do simbólico, na qual o simbólico se expressa primeiramente no nível da
linguagem. O outro nível de significação pode ser traduzido por uma organização específica
presente na economia, no direito, no poder instituído e na religião presentes socialmente como
sistemas sancionadores. Os sistemas sancionadores operam a conexão dos significantes
(símbolos) e os significados (representações, ordens e injunções). Esses sistemas estabelecem
uma ligação de maior ou menor intensidade em dado grupo na sociedade. A folha de
pagamento é um símbolo do direito do assalariado. A sentença judicial de um tribunal e suas
repercussões até a execução de uma pena por um carrasco são atos simbólicos. O mundo
social-histórico é indissociavelmente entrelaçado ao horizonte com o simbólico e os seus
gestos reais, individuais e coletivos.
Compreende-se, também, que o corpus em análise não deve ser observado apenas sob
o ângulo das teorias já expostas. O complexo conjunto de elementos arquivo-históricos e
discursivo-memoriais da obra Memórias do Cárcere carece de uma análise mais apurada.
Elege-se, então, a perspectiva teórica de estudo sobre a História e a Memória do pensador
Jacques Le Goff. Em pesquisa sobre Memória Coletiva e História, Le Goff (2012) afirma que
estes dois elementos são aplicados a partir de dois tipos de acervos materiais: os documentos e
os monumentos. O monumento é um sinal indicador do passado. Sua evocação contempla
tudo aquilo que perpetua a recordação do passado. O monumento tem como traço
44

fundamental o estabelecimento do liame entre a perpetuação voluntária e involuntária das


sociedades históricas e o reenviar dos testemunhos pertencentes a uma parcela rarefeita de
testemunhos escritos. O documento apresenta-se como prova histórica, ou seja, uma espécie
de papel justificativo, em especial no universo policialesco. É afirmado precipuamente através
dos testemunhos escritos.
O romance Memórias do Cárcere é fonte de sucessivos recortes histórico-memoriais
por apresentar autopsia da realidade político-ideológica brasileira durante os idos do Estado
Novo nas décadas de 1930 a 1940. Considera-se a obra em questão como um arquivo-registro
particular da história e da memória do país. A produção do romance coincide com o triunfo do
documento e da revolução documental no século XX como assevera Le Goff (2012, p. 513-
514):
Com a escola positivista, o documento triunfa. O seu triunfo, como bem o exprimiu
Fustel de Coulanges, coincide com o texto. A partir de então, todo o historiador que
trate de historiografia ou do mister de historiador recordará que é indispensável o
recurso do documento. No prefácio à obra coletiva L’histoirie et sés méthodes,
Saraman, enunciando os princípios do método histórico, declara: “Não há história
sem documentos” (1961, p.XII). No seu curso da Sorbonne, de 1945-1946, sobre a
historiografia moderna (retomado na obra La naissance de L’historiographie
moderne), Lefrebre afirma igualmente: “Não há notícia histórica sem documentos”,
e precisava: “Pois, se dos fatos históricos não foram registrados documentos, ou
gravados ou escritos, aqueles fatos perderam-se” (1971, p.17). Todavia, se a
concepção de documento não se modifica, o seu conteúdo enriquecia-se e ampliava-
se. Em princípio, o documento era, sobretudo, um texto. No entanto, o próprio
Fustel de Coulanges sentia o limite desta definição. Numa lição pronunciada em
1862 na universidade de Estrasburgo, declarara: “Onde faltam os manuscritos
escritos, deve a história demandar às línguas mortas os seus segredos [...]. Deve
escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação [...]. Onde o homem passou,
onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história”

Conjuntamente ao estudo de Le Goff sobre a História e a Memória, atribui-se também


à presente análise o papel atribuído a memória e como compreendê-la por Achard e Davallon.
Além disso, entende-se a noção de leitura transgressora de arquivo do filósofo e linguista
Jacques Derrida. A noção de memória de Achard (1999) privilegia o papel da memória como
produtora de sentido e o papel privilegiado do analista do discurso:

A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certamente discutível, mas


parece frutífera, pela abertura as práticas que podemos estudar ao nível da dialética
entre repetição e regularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo de
força de regularização se exerce na retomada dos discursos e constitui uma questão
social. Se situamos a memória do lado, não da repetição, mas da regularização, então
ela se situaria em uma oscilação entre o histórico e o linguístico, na sua suspensão
em vista de um jogo de força de fechamento que o ator social ou analista vem
exercer sobre discursos em circulação. Este eventual jogo de força é suportado pelas
relações de formas, mas estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas
estão eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas em práticas
(ACHARD, 1999, p. 17).
45

Segundo Jean Davalon (1999), a memória social deve ser encarada como um
acontecimento ou saber registrado que saiu da indiferença e que se libertou do domínio da
insignificância. Para ele, o fato da lembrança de um acontecimento não significa que o
acontecimento faça parte do jogo da memória social. O acontecimento lembrado deve
encontrar a sua vivacidade e ser, sobretudo, reconstruído a partir de dados e de noções
comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Evidencia-se nesta dissertação também a noção de arquivo de Derrida (2001), segundo
o qual o nascimento do arquivo seria um resultado da oposição continua entre a pulsão de
destruição e conservação. O arquivo assumiria uma ampla gama de extratos de outros
arquivos que superpostos imprimiria um “envelopamento” de outros arquivos. A escolha do
manancial teórico descrito neste subitem advém da necessidade de estabelecer uma cadeia de
coerência entre o conjunto de manifestações históricas, políticas, institucionais e arquivo-
discursivas presentes em Memórias do Cárcere e a afinidade com o instrumental bibliográfico
selecionado para a análise da obra. Acredita-se que as teorias escolhidas contemplam de
maneira profunda, apropriada e categórica a complexidade de relações instituídas pelo Estado
Novo no romance de Graciliano Ramos.
46

3 BASES TEÓRICAS E ANALÍTICAS

3.1 MEMÓRIA, DISCURSO E ARQUIVO

Nesta subseção, mostra-se o cruzamento temático possibilitado pelo romance


Memórias do Cárcere a partir de uma leitura crítica embasada nos princípios da AD,
conjuntamente à história, literatura, filosofia arqueológica e ao biografismo documental. O
romance em questão, observado detidamente, congrega matizes temáticas que proporcionam a
visão mais depurada em relação ao período da ditadura Vargas e as implicações na sociedade
brasileira, a partir da década de 1930.
A confissão autobiográfica, o testemunho histórico, o discurso realista e a descrição
pormenorizada dos porões-prisões, as misérias, torturas, e degradações, retratadas no
romance, servem como campo de investigação profunda da teia de relações da formação, as
disseminações ideológicas e as relações de poder no período do Estado Novo. Vale ainda
lembrar que o discurso presente na narrativa possui elementos enunciadores que configuram
as relações de poder e as estratégias de controle ideológico que foram utilizadas no contexto
sociopolítico do Estado Novo.
A trajetória pessoal e literária do escritor Graciliano Ramos no romance Memórias do
Cárcere pontua o interlúdio reflexivo entre o contexto histórico-político da época, o acervo
documental não institucional sobre o varguismo, o papel do discurso e do intelectual na
sociedade brasileira capitalista industrial e o registro documental institucional. A memória
social e a escrita literária sempre pertenceram ao rol de procedimentos metodológicos de
reconfiguração de uma imagem institucional, como salienta Le Goff (2012, p. 451):

Para voltar à memória social, as convulsões que se vão conhecer no século XX


foram, parece, preparadas pela expansão da memória no campo da filosofia e da
literatura. Em 1896, Bergson publica Matiére et mémoire. Considera central a noção
de “imagem”, na encruzilhada da memória e da percepção. No termo de uma longa
análise das deficiências da memória (amnésia da linguagem ou afasia) descobre, sob
uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda,
pessoal, “pura”, que não é analisável em termos de “coisas”, mas de progresso. Esta
teoria que realça os laços da memória com o espírito, senão com a alma, tem uma
grande influencia na literatura. Marca o ciclo narrativo de Marcel Proust, À la
recherche du temps perdu (1913-1927). Nasceu uma nova memória romanesca, a
recolocar na cadeia “mito-história-romance”.

Considera-se, assim, a memória social e a memória coletiva como estruturas sociais


que podem servir como estratégias e mecanismos do poder dirigente na tentativa de exercer
um domínio quase que exclusivo das massas. No Estado Novo, a ideologia propagandista de
47

Vargas buscou uniformizar todos os tipos de arquivos, relatos e registros que se opusessem ao
poder ditatorial estadonovista. O romance Memórias do Cárcere funciona como instrumento
memorial, documental e histórico que, de forma prudente e silenciosa, denuncia a
manipulação institucional coletiva da sociedade brasileira a partir da década de 1930 e a
necessidade da libertação deste estado de servidão coletiva. Desse modo, a memória
estruturada pelo esquecimento na história aproxima-se do discurso documental, retomando o
passado, tornando-se memória institucionalizada, como situa Orlandi (2012, p. 172):

Já o que chamamos de arquivo é a memória institucionalizada, estabilização de


sentidos. No arquivo o dizer é documento, atestação de sentidos, efeitos de relação
de forças. [...] O arquivo repousa sobre o realizado, menos sobre o que se pode dizer
e mesmo a possibilidade de se dizer o irrealizado, o arquivo repousa sobre o
realizado, menos sobre o que se pode e mais sobre o que deve ser dito. No arquivo
há um efeito de fechamento, de saturação, de completude. [...] Enquanto arquivo a
memória tem a forma da instituição. O dizer nessa relação é relativamente curto,
datado. Reduz-se ao contexto, à situação da época, ao pragmático. Enquanto
discursividade a memória é historicidade, a relação com a exterioridade alarga, abre
para outro sentido, dispersa, põe em movimento.

Conforme registra Maingueaneau (2006), o termo grego archeion, étimo do termo


latino archivum apresenta polissemia a arché, significando: fonte, princípio, sede. Dessa
forma, a elaboração do discurso estaria arraigada a determinado lugar com um corpo de
locutores consagrados e uma dada elaboração da memória. O discurso literário se apresenta
como discurso constituinte ao conferir sentido aos atos da coletividade, ou seja, uma espécie
de arquivo de toda a sociedade.
A discursividade presente no romance situa-o no conjunto de enunciados pertencentes
ao somatório global de acontecimentos enunciativos formadores de um sistema de enunciados
sobre as condições ideológicas dos encarcerados durante o regime ditatorial do Estado Novo.
O testemunho narrativo-histórico do autor torna-se inusitado por apresentar dentro do regime
prisional getulista uma observação aguda e singular sobre a densidade do isolamento da prisão
estadonovista, que se assemelhava, em relação ao tratamento ofertado aos presos em Ilha
Grande, aos campos de concentração na Europa. O controle disciplinar não se limita apenas
ao corpo, e, sim, aos discursos que devem ser emanados no interior dos sistemas discursivos:

A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os


limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização
permanente de regras. Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na
multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que
recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser
princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e
48

multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva.


(FOUCAULT, 1996, p. 36)

O procedimento discursivo inscrito na obra é produto da interação de diversas


camadas discursivas superpostas que determinam aquilo que deverá ser dito ou não nos
discursos formulados durante o governo de Getúlio. O escritor pode ser considerado como
uma espécie de arquivo vivo, pois, ao presenciar, relatar, viver e refletir os castigos-sanções
da prisão, remaneja os enunciados denunciando os efeitos da ditadura na sociedade brasileira.
O trabalho de escafandrista de Graciliano Ramos é revelado ao publicar o romance
quase dez anos mais tarde. Ele mesmo reaproxima a memória histórica da memória
imaginária, reatando o nó entre a postura ético-moral perante o mundo, as marcas das dores
no claustro, o temor de revelar um período de barbárie e vergonha da memória nacional e a
tarefa do escritor em transformar o passado em testemunho insigne sobre a liberdade de
consciência e expressão humana. De forma contumaz, Foucault (2005, p.25) alerta sobre a
função do arquivo:

Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados por uma
civilização, nem o conjunto de traços que puderam ser salvos de seu desastre, mas o
jogo das regras que, em uma cultura, determinam o aparecimento e o
desaparecimento de enunciados, sua permanência e seu aparecimento, sua existência
paradoxal de acontecimentos e coisas. Analisar os fatos de discurso no elemento
geral do arquivo é considerá-los não absolutamente como documentos (de uma
significância escondida ou de uma regra de construção), mas como monumentos.

Para resgatar o lado sombrio da história, o narrador rememora, a priori no capítulo


Pavilhão dos primários, a convivência com presos políticos e comuns no pavilhão do presídio
getulista. A reordenação e reconfiguração do passado através da escrita literária e
historiográfica diante da complexidade de fatos, personagens, impressões e significados
especifica a base discursiva estrutural aberta que abriga os processos descritivos
característicos de um legítimo arquivo focaultiano. A enunciação do arquivo possibilita a
contaminação e dispersão de diversos vestígios enunciativos e a possibilidade de novas
formulações de regras discursivas transformadoras de enunciados.

Ganhamos a Praça Vermelha. A um canto muitos indivíduos se comprimiam, alguns


inteiramente nus, enxugando-se, vestindo-se à pressa. Findos esses arranjos, subimos
batendo os cascos nos degraus de ferro, em seguida encaracolamos por uma escadinha
espiral, desembocamos lá em cima num grande terraço. Deixando a sombra, recebemos de
chofre uma inundação de luz. Montes, arranha-céus, a agitação rumorosa da central, trechos
do Mangue, o enorme gasômetro da Light, a massa dura da favela, muros altos a rodearnos,
a casa de correção vizinha. Estávamos ali umas sessenta pessoas, várias conhecidas no
porão do Manaus: depois de nós, outros haviam chegado, em pequenos grupos bisonhos, e
49

os faxinas andavam numa azáfama, transportando camas e colchões, arrumando células.


Afeito à solidão no quartel, a promiscuidade animal da viagem, habituara-me com surpresa
à vida nova. (RAMOS, 2001, p. 219)

No entendimento de Derrida (2001), a questão da compreensão do arquivo não se


refere ao passado. O tema do passado não é conceito pertinente à noção arquivável de
arquivo. Pelo contrário, o arquivo é, para ele, resposta a uma promessa de responsabilidade
sobre o amanhã. O arquivo só revelará o que se deseja saber no tempo do porvir. O sentido de
promessa é o que se ligaria ao arquivo como numa espécie de messianismo espectral presente
na religião, história e ciência.
Assim, a noção de arquivo de Derrida, que se associa ao plano discursivo da memória
social, permite concluir que o romance Memórias do Cárcere serve de resposta crítico-
reflexiva ao ataque frontal perpetrado à cultura nacional pelo Estado Novo ao vitimar o
intelectual mais ilibado: Graciliano Ramos. O sentido simbólico da promessa está na
revelação de que a barbárie dos porões das prisões do Estado Novo traria no futuro uma
sociedade baseada em terror, medo e brutalidade.
O tempo do porvir registrado nas memórias arquiváveis do autor funciona como
sistema discursivo que desnuda o gérmen do imenso período ditatorial que será enfrentado
pelo país, da década de 1930 até o final da1970. A promessa de responsabilidade almejada
pelo escritor ao seu país na década de 1930 em seu arquivo-testemunho projeta uma visão
social e solidária sobre os caminhos e possibilidades da liberdade humana.
O preso político e escritor introvertido e ruminador de textos exercita dentro da cela,
uma atividade transgressora: o escritor transforma-se no próprio arquivo. O efeito discursivo
do posicionamento deste sujeito promove uma tomada crítica sobre a rememoração e
restauração do passado nos anos sombrios da conquista à estabilização do poder da Era
Vargas. Ao confeccionar o libelo, o escritor situa-se como testemunha atemporal, pois o
arquivo-romance esculpe as entrelinhas de um acontecimento tenebroso e singular na política
do país.
O discurso ficcional histórico, notadamente realista, traz no próprio bojo a necessidade
de demarcação entre o referencial histórico e a escrita ficcional. A focalização histórica do
romance e o engendramento com os recursos ficcionais das produções literárias do século XX
no Brasil, revelam o posicionamento do autor em relação à disposição de confeccionar uma
obra de caráter histórico-documental. Do posto das argumentações, Focault (2013, p. 159-
160) remete à noção de arquivo como registro limite dos acontecimentos presentes no
enunciado:
50

O arquivo não é descritível em sua totalidade; e é incontornável em sua atualidade.


Dá-se por fragmentos, regiões e níveis, melhor, sem dúvida, e com mais clareza na
medida em que o tempo dele nos separa: em termos extremos, não fosse a raridade
dos documentos, seria necessário o maior recuo cronológico para analisá-lo.
Entretanto, como poderia essa descrição do arquivo justificar-se elucidar o que o
torna possível, demarcar o lugar de onde ele próprio fala, controlar seus deveres e
direitos, testar e elaborar seus conceitos pelo menos no estágio da pesquisa em que
ele só pode definir suas possibilidades no momento de seu exercício – se se
obstinava em descrever somente os horizontes mais longínquos? Não será preciso
nos reaproximarmos o máximo possível dessa positividade a que ele próprio
obedece, e do sistema de arquivo que nos permite falar, hoje, do arquivo em geral?
A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo
próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que
cerca nosso presente, que o domina e que indica em sua alteridade; é aquilo que, fora
de nós, nos delimita.

Em outro aspecto, a articulação entre memória, discurso e arquivo reverte-se na


trajetória de uma história preenchida pela atmosfera velada entre um arquivismo institucional
e uma mirada sobre a história não oficial dispersa, subvertida, clandestina. Ironicamente,
Graciliano trabalhou no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), conhecendo, assim,
alguns estratagemas do poder varguista em manipular arquivos públicos. A repugnância do
escritor alagoano em relação à manipulação desenvolvida pelo regime ao acesso livre e
democrático à informação pode ser comprovada no artigo Milagres, publicado em 1943,
pertencente ao livro póstumo Viventes das Alagoas como ilustra, em breve excerto, Moraes
(2012, p.181):

Faltam-nos muitas coisas, e o pior é que não nos esforçamos para obtê-las.
Esperamos que nos venham de fora: do céu, da Rússia, dos Estados Unidos ou da
Itália. Milagres. Quem reduzirá o aluguel das casas e elevará o câmbio? O governo,
provavelmente. Não podemos viver sem tabus: eleições, por exemplo, o voto
secreto. O essencial é que o país tenha um homem, ou antes um super-homem, um
herói. Enquanto ele não chega, contentamo-nos imaginando alguns. Os que estão
perto diminuem e os que estão longe aumentam, o que parece um disparate, mas não
é.

O arquivo no regime de exceção é instrumento inquisitorial onde um simples relato-


registro investigativo, além de estabelecer intercâmbio de informações, pode tornar-se uma
descrição ou uma sentença de morte, como biografou Lira Neto (2013, p. 262):

O intercâmbio entre a DESPS e a Gestapo não se resumiu à mera troca de


informações arquivísticas. Em março, o capitão Afonso de Miranda Corrreia,
delegado especial, homem de confiança de Filinto Muller, embarcou rumo a Berlim,
após receber o convite oficial do governo alemão para fazer um estágio de um mês
na polícia nazista. Lá, Miranda Correia se familiarizou com as técnicas, métodos e
procedimentos da Gestapo, instituição que se notabilizou pelo amplo repertório de
martírios cominados aos judeus que passaram por suas tenebrosas salas de
interrogatórios [...]. Os investigadores do DEPS, porém, prescindiam de mestres
estrangeiros. Não eram meros aprendizes no ofício. Enquanto o delegado Miranda
51

Correia cumpria seu estágio probatório no circo de horrores germânico, seus


subordinados e colegas de repartição continuavam cometendo atrocidades no Brasil.

Para Lira Neto (2013), o intercâmbio de arquivos entre o DESPS e a Gestapo


formalizava a prática institucionalizada do crime de tortura no país de forma técnica e
requintada. Todavia, o trânsito de arquivos entre dois países – Alemanha e Brasil – não se
resumiu exclusivamente numa barganha técnico-policial, mas, sim, em troca ideológica de
tecnologia de vigilância hierárquica baseada no medo.
Esta troca ideológica percorre o campo do discurso, pois os arquivos remetidos às duas
instituições – DESPS e Gestapo – correspondem a um lugar definido dentro das estruturas dos
enunciados que constroem o discurso do poder hegemônico estadonovista-hitlerista. Desse
modo, os discursos oficiais de Getúlio apregoam uma segurança jurídico-institucional e uma
civilidade na apuração dos fatos que traduzem benignidade bem próxima do estado espúrio de
censura, repressão e mentira que contaminou todos os estamentos e instituições sociais da
época no país.
O estado latente de violência institucional colaborou em grande parte para uma espécie
de vigília macabra sobre as atrocidades cometidas pelos aparelhos de repressão do Estado
Novo. A partir deste ponto, todo e qualquer engano traduzia-se na vontade de apurar a
verdade e, por fim, a subversão. O arquivo revela faceta mordaz e obscura quando mesmo
institucionalizado serve como política de Estado nefasta que se deslocando do discurso se
insurge na prática de atividades criminosas lesivas à integridade e ao bem estar humano.
De acordo com Foucault (2013), o arquivo não é o que protege, apesar de fuga
imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, o estado civil
de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá,
define, desde o início, o sistema de enunciabilidade. O arquivo não é, tampouco, o que
recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre
eventual de ressurreição; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema
de funcionamento. Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio
confuso do discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso
mantido, é o que diferencia os discursos em existência múltipla e os especifica em duração
própria.
Em Memórias do Cárcere, o universo histórico representado é o do Brasil degradado
por uma sensação de falta de certeza do amanhã. A suspensão de direitos políticos, o governo
de exceção, as medidas coativas-punitivas reportam-se nas entrelinhas do autor a noção de
acontecimento da linguagem baseada na literalidade como produto da história em que um
52

sentido possível determinado pelas condições de produção ganha forma simbólica


institucional ocultando outros sentidos do momento histórico, ou seja, a história
multifacetada e dispersa propriamente na sua invisibilidade. Ao se dar ênfase, então, ao rito de
um condenado político, o escritor Graciliano no manejar do seu tear textual estabelece no
discurso o principal objetivo do locutor ao longo da enunciação narrativa: a elaboração do
discurso narrativo em que a história buscasse o sentido em si mesma como interlocutora da
verdade possível.
Em suma, as relações memoriais, discursivas e documentais, presentes no romance em
estudo, congregam a multiplicidade histórica pertinente ao acontecimento histórico do Estado
Novo; a narrativa em questão serve como um dos novelos discursivos da linguagem, que ao
apresentar diversas pontas e trançados, confere o sentido que escapa à mão do sujeito
histórico, resvalando-se novamente na memória. Esse fato, de modo especial, alude à noção
da pluralidade de acontecimentos históricos presentes em tempos discursivos diversos que
podem ocorrer com uma mínima visibilidade ou ampla invisibilidade histórica sem que os
sujeitos envolvidos na trama coletiva tenham qualquer noção da extensão deste acontecimento
linguístico-discursivo.

3.2 CORPO, SUJEITO E VIGILÂNCIA

Nesta subseção, mostra-se que o encarceramento de Graciliano Ramos pode ser


compreendido sob três dimensões teórico-metodológicas focaultianas: as noções de corpo,
sujeito e vigilância. O controle ideológico do corpo na ditadura Vargas assume importância
fulcral no projeto fascista do getulismo. A arquitetura de controle prisional varguista é
legitimada a partir da década de 1930 com a reformulação das casas correcionais no país,
entre elas a Colônia Correcional de Dois Rios3 (CCDR). Esta colônia era destinada, em
maioria, a delinquentes. Entretanto, a partir da tomada de poder da Aliança Liberal, na década
de 1930, passa a abrigar continuamente encarcerados políticos, em grande parte filiados ao
Partido Comunista.

3
A Colônia Correcional de Dois Rios (CCDR) localizada na Vila de Dois Rios em Ilha Grande, faz parte de um
arquipélago de 187 ilhas e ilhotas, localizada na Baia da Ilha Grande, costa oeste do Estado do Rio de Janeiro,
região também conhecida como Costa Verde (vide anexo 1: localização geográfica. E Anexo 2: planta da
penitenciária). Pertencente juridicamente ao município de Angra dos Reis como 3º Distrito municipal, com
sede na Vila do Abraão. Inaugurada em 1894, a Colônia Correcional de Dois Rios (CCDR) foi a primeira
instituição carcerária de Ilha Grande tornou-se famosa por ter abrigado em suas celas escritores (presos
políticos ilustres) como Orígenes Lessa e Graciliano Ramos.
53

O envio constante e gradual de integrantes do Partido Comunista à CCDR é crescente


a partir da tomada de poder por Vargas. As prisões ocorrem sem trâmite legal, tornando-se
prática institucional rotineira e declarada. Em virtude disso, a população carcerária da Casa de
Detenção e da CCDR aumenta drasticamente, obrigando os gestores da época à transferência
de parcela dos presos para a Ilha Grande, conjuntamente a criminosos comuns.
Os dados do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), contidos no
prontuário policial, revelaram que o romancista Graciliano Ramos fora detido e encarcerado
em Alagoas, no dia 03 de março de 1936, acusado de participação no levante de novembro de
1935, sendo apresentado ao chefe de polícia no dia 14 de março de 1936 que o encaminhou à
casa de detenção. A transferência do escritor ocorreu no dia 11 de junho de 1936 para a
Colônia Correcional de Dois Rios, regressando no dia 29 de junho de 1936, sendo recolhido à
sala da capela da Casa de Correção e, finalmente, posto em liberdade em 13 de janeiro de
1937.
O isolamento da Ilha Grande e agruras do cárcere não foram tema exclusivo das
Memórias de Graciliano Ramos. Diversos escritores e personalidades produziram relatos
sobre o período de internação na Colônia Correcional de Dois Rios em Ilha Grande. O relato
mais inusitado e excêntrico foi o do Dr. Hermínio Ouropretano Sardinha, médico da Colônia
Correcional de Dois Rios. As memórias de Sardinha revelam de forma contundente e precisa
como era o funcionamento da colônia nos idos da década de 1930, quando o ainda jovem
médico relatava os banhos de mar, os bailes promovidos na colônia, o casamento e o
nascimento da prole. O relato biográfico de Sardinha aponta para um contingente entre mil a
dois mil presidiários após o período da década de 1930 submetidos a trabalhos forçados
disciplinados pelo açoite. O médico, que se tornará no futuro próximo Diretor da Colônia
Penal Cândido Mendes, critica abertamente o tratamento disciplinar ofertado na Casa
Correcional de Dois Rios e no Presídio de Ilha Grande:

Lembro-me que muitas vezes fui chamado, altas horas da noite, para socorrer presos
dentro daqueles covis. Quando regressava à minha casa, apesar de tomar banho e
mudar de roupa, eu continuava sentindo por muito tempo aquele odor nauseante
característico, em minhas narinas. Aqueles homens já se haviam habituado e nada
mais sentiam, nem mesmo sono. (SARDINHA, 1969, p. 67)

Outro relato biográfico ilustre sobre as condições da colônia e do presídio, segundo


Santos (2009), foi o do célebre escritor Orígenes Lessa, também interno da colônia
correcional que narra, testemunho autobiográfico, a fuga de um interno da época:
54

Um caso típico é o do tenente Frank. Esteve preso no “Pedro I”. Uma noite, atirou-
se ao mar, para escapar a nado. Tentativa absurda, quase infantil. É apanhado e
transferido para Ilha Grande. Dias depois, foge de novo. Mas não consegue sair da
Ilha enorme e bem patrulhada. Espalhado o alarme, saem soldados em todas as
direções. Passa uma noite e um dia no mato, sem comer, observando as patrulhas
que o procuraram. Ao anoitecer, desce, para alcançar uma canoa, na praia deserta. É
quando surge da sombra o inspetor Chagas: Boa noite, tenente. Ele ainda tenta
refugar, mas vê a inutilidade da coisa: Você é a minha asa negra, seu Chagas...
(LESSA, 1933, p.166-167)

A utilização da tecnologia e engenharia prisional no Governo Vargas, paralelamente à


política de industrialização brasileira, deflagraram a existência de um bem elaborado sistema
de biopoder que se intensificava nos binômios corpos-cárcere e corpos-máquina. Os pátios
prisionais e indústrias se revelavam como laboratórios fascistas do controle panóptico
getulista. A curta e inicial passagem de 18 dias do escritor Graciliano Ramos pela Colônia
Correcional Dois Rios ilustra com clareza o tratamento ofertado aos presos conduzidos à
colônia correcional:

Isolados ou em pequenos grupos, novos indivíduos surgiam no pavilhão dos


primários, havia ali um fervedouro de cortiço. Em geral demoravam pouco: sem
razão aceitável, desapareciam, os novatos se embebiam na esperança de reconquistar
a liberdade. Era como se se evaporassem, não recebíamos a mais leve notícia deles.
De repente alguns tornavam e, antes de acomodar-se, retiravam-se de novo, na
contradança infindável, incomprensível. Essa mobilidade nos causava receio
constante não nos permitiam conhecer-nos bem; relações imprecisas, camaradagens
mal esboçadas, estavam sempre a desfazer-se. As figuras nos apareciam vagas,
incompletas; só os caracteres mais fortes conseguiam definir-se. Comunicação
difícil, quase impossível: operários e pequenos-burgueses falavam línguas
diferentes. Não nos entendíamos, não nos podíamos entender. (RAMOS, 2001,
p.248).

A reformulação do sistema prisional brasileiro durante o início do período do Estado


Novo relaciona-se à construção de um novo modelo de sociedade jurídico-político-disciplinar.
O aparato repressor do sistema penal e carcerário varguista de clara tendência centralizadora e
autoritária compôs um engenhoso regime de detenção, higienização, trabalhos forçados, que
transformavam o corpo dos detentos em uma das engrenagens do mecanismo de poder. O
controle do corpo no Estado Novo não se restringiu apenas ao sistema prisional; constituiu um
amplo conjunto de regras e regulamentos semitécnicos representados nos procedimentos
prisionais, industriais, e civis educativos, como assinala Bercito (2011, p.373-374):

Nas décadas de 1930 e 1940, o interior da fábrica foi ainda alvo dos olhares de
médicos e engenheiros, que se juntaram aos empresários no projeto de fazer avançar
a industrialização como maneira de atingir o crescimento econômico e a
modernização do país. Na visão que se consolidava, esse espaço deveria ser
orientado pela racionalidade e pela ciência, que seriam capazes de aumentar a
55

produtividade e o rendimento do trabalho. De fato, para a evolução no processo de


industrialização, seria preciso disciplinar a mão de obra – imigrante local ou oriunda
do meio rural – e adequá-la para o exercício da atividade nas fábricas. “Adestrar” o
trabalhador, em uma expressão da época, incluía sua qualificação profissional.
Envolvia também conformá-lo a partir de procedimentos que conduzissem à
domesticação de seu próprio corpo.

De acordo com Parada (2011), o discurso sobre o adestramento físico e da disciplina


moral sempre foi recorrente em práticas getulistas nas quais a figura do “Jovem Nacional”
estivesse presente. O Estado Novo promoveu a criação da Juventude Nazista, fundada em
1940, com o intuito de estabelecer um modelo de jovem escolar nacional. A instituição
deveria enquadrar toda a infância, dos 7 aos 11 anos, e toda a juventude, dos 12 aos 18 anos,
na modalidade cívica dos padrões nacionalistas do Estado Novo. A criação da Juventude
Brasileira estabeleceu um padrão de controle institucional do corpo: o jovem preparado no
corpo físico que exibe a força e a moral da obrigação cívica para com o país.
O controle dócil do corpo pelo varguismo pode ser plenamente observado nas
campanhas extensivas do Ministério da Educação e Saúde que se dedicava com atenção a uma
categoria específica: a criança. O disciplinamento corporal se concentrava na definição de
modelos solidários de comportamento coletivo que endoçassem a ideia institucional de nação.
A produção de cartilhas pelo Ministério da Educação, nos idos de 1940, apresenta ampla
iconografia de temas relativos ao cuidado com as crianças no período escolar.
Parada (2011) chama atenção para que, qualquer que seja a figura do leitor
infantojuvenil durante o período do Estado Novo, o espaço da leitura é, portanto, uma
atividade privatizada pelo controle panóptico de Getúlio Vargas. O uso intenso das cartilhas
de leitura fácil sedimenta o discurso de controle do jovem escolar. A construção de uma
“criança cívica” determinava o arco de aliança entre os jovens e o projeto político de Estado
de Getúlio. Nesse sentido, a criação do Departamento Nacional da Criança promoveu uma
série de cerimônias cívicas profetizando o trabalhismo como tábua de salvação ao futuro dos
jovens.
Para Focault (2007), o corpo humano entra numa maquinaria do poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Essa anatomia política pertence a uma mecânica
específica do poder, o nascimento define como se dará o domínio sobre o corpo dos outros,
estabelecendo não apenas o que se quer, mas que operem como se quer através de técnicas,
segundo a rapidez e eficácia que determinam. A disciplina hierárquica fabrica corpos
submissos e exercitados, ou seja, corpos docilizados. A disciplina aumenta as forças do corpo
no campo da economia da utilidade e reduz essas mesmas forças em termos políticos de
56

obediência. A disciplina hierárquica dissocia o poder do corpo o faz ser uma aptidão, uma
capacidade, que é aumentada e invertida por outro lado da energia, uma potência que poderia
resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita. A coerção disciplinar produz no corpo
o elo coercitivo entre a aptidão ampliada e a dominação acentuada advindas da exploração
econômica da força e do produto do trabalho.
O corpo simbólico do intelectual Graciliano Ramos é encarcerado no biofascismo do
poder autoritário do Estado Novo instaurado no exercício de poder/conhecimento no Presídio
da Ilha Grande. Em Memórias do Cárcere, a punição atribuída ao autor produz uma imagem
litero-discursiva que expõe as regras de funcionamento de um sistema jurídico-político
bestializado, brutal e coercitivo. O tratamento carcerário conferido ao escritor no Presídio da
Ilha Grande faz parte de um processo de repartição, desumanização e modelagem punitiva do
corpo dos encarcerados pela convivência carcerária diária ilustrada em um trecho do
consagrado romance:

Entramos num salão estreito e escuro. Pendiam lâmpadas do teto de baixo, vidros
fuscos, fios incandecentes, a espalhar uma luzinha frouxa e curta; a alguns metros
dela os objetos mergulhavam na sombra. Distingui duas alas de mesas compridas;
eram duas, se não me engano, ladeadas por bancos. [...] as mesas se formavam de
tábuas soltas em cima de cavaletes. O ar estava nauseabundo e empestado, havia
certamente nas proximidades um bicho morto a decompor-se. [...] Sacudi o torpor,
abri os olhos, abri os olhos, vi um prato junto a mim (RAMOS, 1953, p.53).

E ainda:

Coitados. A miserável boia lhes arrasara as entranhas, vencia melindres, anulava a


educação. [...] Era uma sala quadrada, o chão de cimento. Pendiam do teto alguns
chuveiros, quatro ou seis, e junto a uma parede se alinhava igual número de latrinas,
sem vasos, buracos apenas, lavados por frequentes descargas rumurosas. Em todas
viam-se homens de cócoras, e diante deles estiravam-se filas, esperando a vez,
cabisbaixas de humilhação, torcendo-se, a exibir urgências refreadas a custo. Essa
mostra indecorosa, a falta da mínima dignidade, encheu-me de vergonha e medo,
tolheu-me a ação. [...] A potassa arruinava intestinos. Arriscava-me a ingerir uma
colher de feijão, e apavorava-me submeter àquela ignonímia. (RAMOS, 1953, p.53).

Na perspectiva de Hannah Arendt (2010), o poder só pode ser exercido onde a palavra
e o ato não se divorciam. Segundo Arendt, as palavras não são vazias e os atos não são brutais
quando não são empregadas para velar intenções, mas para o desvelar das realidades,
possibilitando que os atos não devam ser usados para violar e destruir, mas para estabelecer
relações e criar novas realidades. Pode-se afirmar que a postura discursiva de Graciliano
Ramos em Memórias do Cárcere assume um posicionamento de irrupção com o biopoder e a
57

bio-história do período varguista. O corpo simbólico do autor tenta bular as estratégias de


controle panóptico se insurgindo, por ora, da força do outro do poder institucional.
Mas é preciso considerar que o indivíduo é o produto do poder e resultado das
interações que se operam nas situações sociais mais próximas em trabalho cotidiano, ou ainda,
em relações de si para si mesmo. Inevitavelmente, o sujeito do discurso apresentado em
Memórias do Cárcere opõe-se frontalmente ao regime e ao modo discursivo instituído pelo
Estado Novo. Assim, a aparelhagem interventiva e a tecnologia de poder estadonovista não
alcançam o sucesso de adestrar a subjetividade do condenado. Graciliano Ramos, ao não se
enamorar ou declinar pelo poder utiliza a “identidade obrigatória” como exame de
consciência ético e moral de um período torpe do país.
Portanto, o conjunto dos enunciados do romance Memórias do Cárcere que
constituem a relação entre o autor e o que deseja dizer sobre a ditadura do Estado Novo na
prisão de Ilha Grande determina a posição que deverá preencher para constituir-se como
sujeito discursivo. O sujeito do discurso de Memórias do Cárcere não estabelece apenas um
relato-registro de intervenção histórica, é ele o operador enunciador da existência de
mecanismos sistematizados de barbárie no interior do sistema do microcosmo prisional
getulista. A operação de reconfiguração do sujeito enunciante – sujeito do discurso na obra –
e do que está enunciado no romance – poder ditatorial Varguista – definem a posição- sujeito
em que se encontra o autor. Ao arrematar sobre a concepção de sujeito do discurso e o
posicionamento, Foucault argumenta:

Não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da


reformulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é, na verdade,
causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma
frase; não é, tampouco a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o
terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição; não é o núcleo
constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os
enunciados, cada um por sua vez, viriam manifestar na superfície do discurso. É um
lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos
diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se
manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou
melhor, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo, através de
várias frases, bem como para se modificar a cada uma. Esse lugar é uma dimensão
que caracteriza toda a formulação enquanto enunciado, constituindo um dos traços
que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevê-la. Se uma
proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser considerados
“enunciados”, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para
depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas sim na medida em que pode ser
assinalada a posição do sujeito (FOUCAULT, 2013, p.115-116).

Este sujeito deslocado e descentrado do poder totalitário estadonovista corresponde a


um momento de transição histórica na construção de políticas de controle das massas no
58

Brasil. Sendo assim, o código histórico fabricado pelo getulismo, a partir da década de 1930,
conduziu a população a uma regulação e controle dos grupos sociais com comportamentos
adequados a normas de conduta e padrões morais a serviço do getulismo. Ao tentar interpretar
o episódio discursivo (encarceramento), Graciliano Ramos transforma-se em foco de
resistência subjetiva silenciosa da opressão getulista. O biógrafo Lira Neto (2013), em
pesquisa sobre o período do governo provisório à ditadura do Estado Novo, descreve
precisamente o acontecimento histórico:

Estava dada a senha para uma campanha sistemática de prisões arbitrária e de


perseguição a jornalistas, professores e intelectuais. Entre os prisioneiros do regime,
logo se incluiria o escritor Graciliano Ramos, que legou à posteridade um eloquente
testemunho do obscurantismo político em que então vivia o país, nos dois volumes
do seu clássico Memórias do Cárcere. Começamos oprimidos pela sintaxe e
acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, deplorou
Graciliano. A médica Nise da Silveira, uma das pioneiras no tratamento humanitário
de esquizofrênicos e de outros pacientes com distúrbios psiquiátricos no país,
também foi mandada para cadeia, denunciada por participar da União Feminina do
Brasil e por possuir livros marxistas em sua biblioteca particular. O escritor Jorge
Amado, que havia lançado o seu quarto romance, Jubiabá, foi outro a ser preso. O
professor e pedagogo Anísio Teixeira, um dos maiores nomes da educação no país,
terminou afastado do cargo de secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal
por suspeita de ligação com comunistas. O cronista Rubem Braga, para continuar a
sobreviver como jornalista, recorreu a pseudônimos, disfarces e esconderijos na casa
de amigos e parentes (NETO, 2013, p.256-257).

O surgimento de uma recente economia do poder e os avanços da produtividade,


procedimentos e efeitos no corpo social evidenciaram a necessidade de estipular um controle
refinado dos grupos de intelectuais resistentes ao modus operandi das elites constituídas.
Michel Foucault e Gilles Deleuze (1979) ressaltam as relações dos intelectuais e do poder na
crescente sociedade capitalista industrial:

Parece-me que a politização de um intelectual tradicionalmente se fazia a partir de


duas coisas: em primeiro lugar, sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no
sistema de produção da sociedade capitalista, na ideologia que ela produz ou impõe
(ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, “maldito”, acusado de subversão, de
imoralidade, etc.); em segundo lugar, seu próprio discurso enquanto revela uma
determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente elas não eram
percebidas. Estas duas formas de politização não eram estranhas uma em relação à
outra, embora não coincidissem necessariamente. Havia o tipo do intelectual
“maldito” e o tipo do intelectual socialista. Estas duas formas de politização
facilmente se confundiram em determinados momentos de reação violenta do poder,
depois de 1848, depois na comuna de Paris, depois de 1940: o intelectual era
rejeitado, perseguido, no momento em que não devia dizer que o rei estava nu. O
intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que
não podiam dizê-la: consciência e eloquência. [...] Mas existe um sistema de poder
que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra
somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito
profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios
59

intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da
“consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual
não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a
muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente
onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da
“verdade”, da “consciência”, do discurso (FOCAULT, 1979, p. 70-71).

A formação genealógica da prisão abriga o cruzamento de recursos e mecanismos


disciplinares colonizadores que se instauram nas instituições penais e que, espelhados na
prisão, inauguram uma mecânica de poder baseada no controle austero do corpo. A
substituição da pena capital pela pena pedagógica do encarceramento corporal faz a prisão
moderna nascer. No interior de um regime de exceção, o caráter da prisão pedagógica
moderna transforma-se na mais absoluta prisão-castigo, prisão-aparelho. O fundamento
jurídico-econômico e técnico-disciplinar que argumenta a funcionalidade da prisão como
forma mais imediata de civilizar a sociedade esvazia-se no discurso amoral, aético e violador
das práticas político-ideológicas do Estado Novo. A prisão e o exaustivo controle disciplinar
desempenham uma função não mais reformadora, e sim um estratagema da carnificina
política e do malogro desumano ao direito à liberdade promovida pela ditadura de Getúlio
Vargas. A existência de um poder punitivo que expurga do núcleo da sociedade intelectuais,
cientistas e pensadores ressalta a presença de um vigilância hierárquica direcionada à
eliminação quase que completa de discursos que possam se opor ao poder legitimador
getulista. O trato com os corpos dóceis dos pensadores e intelectuais é exercido por um
rebaixamento hostil e sistemático que visa a destituir o capital simbólico do preso político no
período de estada no Presídio da Ilha Grande. A resistência do sujeito e o seu posicionamento
ideológico-discursivo diante do drama humano vivido pelos companheiros de internação são
evidenciados na passagem do romance que descreve o encontro de Nise da Silveira e
Graciliano Ramos no presídio:

Chamaram-me da porta: uma das mulheres recolhidas à sala 4 desejava falar


comigo. Estranhei. Quem seria? E onde ficava a sala 4? Um sujeito conduziu-me ao
fim da plataforma, subiu o corrimão e daí, com agilidade forte, galgou uma janela.
Esteve alguns minutos conversando, gesticulando, pulou no chão e convidou-me a
substituí-lo. Quê? Trepar-me àquelas alturas, com tamancos? Examinei a distância
receoso, descalcei-me, resolvi tentar a difícil acrobacia. A desconhecida amiga
exigia de mim um sacrifício; a perna, estragada na operação, movia-se lento e perra;
se me desequilibrasse, iria esborrachar-me no pavimento inferior. Não houve
desastre. Numa passada larga, atingi o vão da janela; agarrei-me aos varrões de
ferro, olhei o exterior zonzo, sem perceber direito porque me achava ali. Uma voz
chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava.
Enxerguei o pátio, o vestíbulo, a escada já vista no dia anterior. No patamar, abaixo
do meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à
direita, além de uma grande larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de
olhos fixos, arregalados. O rosto revelava fadiga, aos cabelos negros misturava-se
60

alguns fios grisalhos. Referiu-se a Macéio, apresentou-se: Nise da Silveira. Noutro


lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a
conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos
loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queirós me afirmava a grandeza moral
daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de
tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido também
médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em
liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento (RAMOS, 2001, p.223-224).

Os porões dos presídios estadonovistas acumulavam presos políticos encarcerados por


uma repressão política que utilizava a violência de forma generalizada não poupando sequer
mulheres grávidas e crianças no pátio dos presídios. É neste contexto de dor, castigo e
humilhação que o jornal O Globo, de 06 de abril de 1934, classifica o Presídio da Ilha Grande
como a ilha da maldição. O corpo dos condenados e os respectivos suplícios eram regulados
de acordo com a matéria com castigos físicos através do chicote – denominado de camarão de
chipó levado ao fogo; os internos eram obrigados a carregar seminus enormes vigas. A prática
da tortura campeava como um dos carros chefes do regime opressor de Vargas. Em 1935,
surgem fortes denúncias sobre tortura; naquele momento, as prisões já concentravam mais de
sete mil presos políticos. O caso de tortura mais inescrupuloso, vexatório e de conhecimento
público da ditadura Vargas foi o de Ernest Ewert, o acontecimento surge no exato momento
em que o modelo de punição da tortura acompanha uma série de protestos contra o regime:

Ao longo dos seis meses seguintes, em meio a uma onda incontrolável de histeria e
clamor popular anticomunista, a polícia política faria um total de 7.056 prisões,
conforme as estatísticas oficiais apresentadas com orgulho pelo próprio Filinto
Muller. Como muitos suspeitos foram presos sem a devida formalização da queixa-
crime, os números verdadeiros por certo atingiram índices muitos maiores. Homens
com passagens pela [polícia] eram preventivamente de novo trancafiados, como se
fossem presos políticos, embora nem ao menos soubessem porque estavam sendo
detidos. “Assim agi a fim de evitar que estes elementos perniciosos fossem
aproveitados como instrumentos no momento da confusão, ou se valessem da
confusão para aumentar suas atividades criminosas invadindo lares, assaltando e
depredando”, justificou Muller. Nesse clima generalizado de caça às bruxas, as
denúncias de maus-tratos contra prisioneiros eram constantes. No Rio de Janeiro, o
caso mais brutal de que se tinha notícia era o de Ernest Ewert, colocado em uma
espécie de jaula, no socavão debaixo de uma escada, de onde não podia sair um
único instante a não ser para ser interrogado – e torturado. Ewert foi vítima
sistemática de choques elétricos na cabeça, no pênis, no ânus, além de sofrer
queimaduras com pontas de cigarro e charuto por todo o corpo. Dormia no chão,
onde era obrigado a comer em meio aos próprios excrementos. Não podia tomar
banho e jamais lhe permitiriam trocar de roupa. Sua esposa, Elise, foi arrastada pelos
cabelos até a sala de interrogatório, onde chegou a ser estuprada repetidas vezes na
frente do marido. Um era obrigado a assistir às mortificações do outro (NETO,
2013, p. 258).

O escritor Graciliano Ramos denuncia no romance as diversas facetas que o castigo


legal pode assumir e as diferentes formas de técnicas punitivas que podem ser experimentadas
61

no interior do cárcere. A técnica penitenciária da punição-correção, deste modo, assume a via


de um depositário humano em que os corpos não serviriam nem mais a uma reeducação ou
um reexame de conduta social. A zoomorfização presente na escrita do autor denuncia uma
patologização ideológica que rebaixa o corpo social do homem a condição dos insetos
animalizados:

Despertei, vi a dois passos um soldado cafuzo a sacudir violentamente o primeiro


sujeito da fila vizinha. Muxicões terríveis. A mão esquerda, segura à roupa de zebra,
arrastou o paciente desconchavado, o punho direito malhou-o com fúria na cara e no
peito. A fisionomia do agressor estampava cólera bestial; não me lembro de focinho
tão repulsivo, espuma nos beiços grossos, os bugalhos duas postas de sangue. Os
músculos rijos cresciam no exercício, mostrando imenso vigor. Presa e inerme, a
vítima era um boneco a desconjuntar-se: nenhuma defesa, nem sequer o gesto
maquinal de proteger alguma parte mais sensível [...]. O corpo estragado conservou-
se imóvel [...]. Todos em roda estavam assim, firmes, de braços cruzados,
impassíveis. Nenhum sinal de protesto, ao menos de compaixão. Também me
comportara com essa horrível indiferença, como se assistisse a uma cena comum.
Éramos frangalhos; éramos fontes secas; éramos desgraçados egoísmos cheios de
pavor. Tinhamo-nos reduzido a isso. Qual a razão daquela ferocidade? [...] Já nem
me importava saber a causa da sevícia imprevista. Falta ligeira: algum descuido,
gesto involuntário, cochico a pertubar o silêncio. Estávamos reduzidos àquilo
(RAMOS, 1953, p. 60-61).

A Colônia Correcional de Dois Rios apresenta-se na imagem discursivo-literária de


Graciliano Ramos como um lugar onde o poder disciplinar é exercido de maneira legiferante e
sem qualquer respeito à dignidade humana. A correta disciplina e arte do bom adestramento
estão presentes nas práticas carcerárias denunciadas pelo depoimento-discursivo do autor. A
vigilância hierárquica estabelecida pelo aparato prisional em Dois Rios é um espelho do
exercício disciplinar da ideologia estadonovista, que através de meios coercitivos prioriza o
conjunto de sanções normalizadoras. O estado corporal em frangalhos retratado pelo escritor
Graciliano Ramos no excerto de Memórias do Cárcere alude à tecnologia, ao aparelho de
vigiar que esmaga o sujeito ao jogo de vigilância exata, reduzindo o homem a ações de
vigilância policial, penas carcerárias, arquitetura prisional e sanções administrativas.
A vigilância hierárquica operada pelos guardas e autoridades aos presos de Dois Rios
produz uma impressão marcante de degenerescência em suas personalidades que resulta na
construção de estigmas sociais, como bem demarcou o sociólogo canadense Irving Goffmann:

O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: assume o


estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente
evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes nem imediatamente
perceptível por eles? No primeiro caso, está-se lidando com a condição do
desacreditado, no segundo com a do desacreditável. Está é uma diferença
importante, mesmo que um indivíduo estigmatizado em particular tenha,
provavelmente, experimentado ambas situações. [...] Em primeiro lugar; há
62

abominações do corpo – as várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de


caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais,
crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos
conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo,
desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. [...] Em todos
esses exemplos de estigma, inclusive aqueles que os gregos tinham em mente,
encontram-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter
sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode-se
impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de
atenção para outros atributos seus (GOFFMANN, 1988, p. 14).

O sistema de vigilância do Estado Novo se redimensiona com a reformulação do


sistema prisional e, sobretudo, com os novos investimentos no setor policial. A prisão sob
regime de tortura e o exílio de indivíduos foram defendidos e praticados de maneira árdua e
combativa por um ex-tenentista, homem de confiança quase absoluta, chamado Filinto
Muller. O poderoso chefe de polícia varguista gerenciou o serviço policial incrementando
uma nova forma de coordenar as informações e direcionar o planejamento dos aparelhos
repressivos. Diretamente subordinada a Getúlio, a polícia civil obteve a criação de um novo
regulamento através do Decreto 24.531, de 2 de julho 1934. O presidente passava a possuir
ampla liberdade para nomear ou exonerar para o cargo de chefe de polícia o representante que
lhe conviesse para o cargo. Nota-se, assim, que os critérios da vigilância hierárquica são
pautados por um regime disciplinar que pretende estabelecer um juízo específico de punição
como uma reprodução de um microuniverso do poder representado num modelo de tribunal:

A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem duvida, uma das grandes
“invenções” técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua
importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar,
graças a ela, torna-se um sistema “integrado”, ligado do interior à economia e aos
fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como poder múltiplo,
automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos,
seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um
certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” o conjunto, e o
perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais
perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não
se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como
uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o
aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo
permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente
indiscreto, pois está em toda a parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa
nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão
encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois funciona
permanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz “funcionar” um
poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o
brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às
técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam
segundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de
telas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à
força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos “corporal” por ser mais
sabiamente “físico” (FOCAULT, 2007, p. 148).
63

Enfim, trata-se de um sistema de controle prisional centrado na coação e isolamento de


existências morais. Logo, o homem encarcerado revelado no discurso do romance Memórias
do Cárcere abriga em grande parte a condição humana de um digno intelectual brasileiro que,
em face da dramática experiência na prisão, não traiu nem purgou convicção nos elevados
ideais sócio-históricos. Nessa direção, o discurso projetado no romance é coroado por um
sentimento de solidariedade e força que subleva o regime atroz do Estado Novo. A resistência
do sujeito no discurso permeia-o de um significado no momento em que Graciliano Ramos
rompe com o poder sancionador do Estado Novo. Entende-se que este rompimento realizado
pelo sujeito produz uma clivagem discursiva que eterniza o sentido da sua denuncia sócio-
discursivo-histórica, dissipando a onipotência do poder opressor do Estado Novo.

3.3 OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO GETULISTA

Nesta seção, busca-se compreender o funcionamento dos principais aparelhos


ideológicos de Estado no governo de Getúlio Vargas, importância e atuação dentro do
contexto relatado no romance em questão. Em virtude disso, analisa-se a estrutura ideológico-
institucional dos aparelhos de Estado do governo Vargas a partir do enfoque teórico,
desenvolvida por Louis Althusser, acerca dos aparelhos ideológicos de Estado, além de focar
as análises sobre a ideologia, discurso, a teoria da prisão e das instituições com referência em:
Michel Foucault, Cornelius Castoríades e Hannah Arendt.
Durante o período da conquista do poder, formação e consolidação da ditadura do
Estado Novo, os aparelhos estatais transformaram-se em grandes instituições de representação
clientelista; em exclusiva maioria, os aparelhos estatais estavam sob o jugo de Vargas na
operação de intervenções ou práticas centralizadoras de gestão administrativa. A centralização
política e administrativa atingiu diretamente a estrutura e o funcionamento de diversas
instituições no campo sindical, político, industrial, comercial, judiciário, financeiro e agrícola.
A ideologia, na perspectiva de Althusser (1985), é composta por uma representação
imaginária dos indivíduos com condições reais de existência. Nesse sentido, a presença de um
aparelho de Estado subentende a existência de uma ideologia em forma materialmente prática.
Desse modo, pode-se compreender que a formação do Estado Novo deu-se a partir de um
amplo aparato de instituições estatais que reivindicaram indiretamente a construção simbólica
de um arcabouço ideológico que representasse a necessidade de se construir um conjunto de
práticas materiais na época e condições de produção/reprodução econômicas, políticas e
64

ideológicas, as quais sustentassem o enorme contingente de ações políticas de Getúlio Vargas


no poder.
Dessa maneira, a relação imaginária das massas no país e as condições reais de
existência material na sociedade brasileira pós-década de 1930 resultam no surgimento de um
poder político totalizador que reproduziu uma relação de profundo paternalismo com as
classes nascentes mais desfavorecidas e o fim do protecionismo exacerbado em alguns setores
oligárquicos do país. Os aparelhos ideológicos de Estado no governo Vargas nascem para
oferecer legitimidade material entre a relação imaginária e as condições de existência das
relações de produção e de classe nascidas no país pós-industrial no século XX.
A centralização política e ideológica acompanhou um processo gradual e intenso de
construção de uma ideologia centrada no culto da personalidade do “grande pai da nação”
forte e austero. Em constituição original, o Estado Novo é estruturalmente baseado na
hierarquização de funções ideológicas segmentadas para atingir o máximo de eficiência na
dominação centralizadora da população brasileira. O concurso anual de frases escolares sobre
Getúlio é uma pitoresca demonstração de que o controle ideológico apresenta-se timidamente
neutro, porém esse mimetismo sócio-histórico pode revelar a face disciplinar, rígida e
intransigente da dominação do poder dirigente, como descreve Lira Neto (2013) em obra
biográfica sobre o Estado Novo:

Enquanto isso, escolas e bibliotecas eram inundadas com folhetos e cartilhas verde-
amarelas, em que sobressaíam as mensagens ufanistas. Biografias edulcoradas do
presidente da República, a maioria destinada ao público infantojuvenil, eram
produzidas em série. Concursos para a escolha de cartazes cívicos também se
tornaram rotineiros. Apenas nos dois primeiros anos do Estado Novo, entre 1937 e
1939, o serviço de divulgação do governo imprimiria e distribuiria 90 mil retratos,
cartões-postais e pôsteres de Getúlio, além de um total de 45 livros doutrinários,
com tiragens que variam de 10 mil a 75 mil exemplares cada. [...] A Revista Tico-
Tico, pioneira na publicação de histórias em quadrinhos no Brasil, realizou uma
promoção entre seus pequenos leitores, convidando-os a resumir, em uma única
frase, suas opiniões sobre o presidente da República. O ganhador foi o menino
carioca Joppert da Costa, que enviou a seguinte definição: “Getúlio Vargas é o
despertador do gigante”. O segundo lugar ficou com o garoto pernambucano Carlos
Alberto Carneiro Leão, autor da frase: “O nosso querido presidente é o novo Papai
Noel das crianças do Brasil”. Um dos finalistas, o mineirinho R. B. de Oliveira,
recebeu menção honrosa ao comparar o chefe de Estado a um famoso herói dos
gibis: “Para mim, Getúlio é maior que o Tarzan das florestas” (NETO, 2013, p.326-
327).

O discurso institucional pode ser considerado como a principal estratégia ideológica


do sistema ditatorial implantada por Getúlio Vargas no início da formação do governo
estadonovista. Os aparelhos ideológicos do Estado getulista tornam-se, assim, o mecanismo
fundamental de manutenção do poder ao longo de toda a existência de governabilidade. Dada
65

a amplitude, diversidade e segmentação, divide-se o grau de abrangência desse controle


ideológico em quatro aparelhos ideológicos. O primeiro constitui-se na formação da
Delegacia Especial de Segurança Política e Nacional (DESPS). O segundo, na Colônia
Correcional de Dois Rios (CCDR). O terceiro aparelho, o Tribunal de Segurança Nacional
(TSN). E, por último, o aparelho mais disperso e difuso, porém com o mesmo grau de
importância dentro do sistema de controle varguista: o Departamento de Imprensa e
propaganda (DIP).

3.3.1 A POLÍCIA DE GETÚLIO - O DESPS

O aparato policial e a estrutura penitenciária no país foram das áreas que mais
sofreram o impacto das reestruturações e reformas gestadas pelo governo varguista com o
intuído de atender ao projeto de Estado no modelo fascista preconizado por Vargas. Com a
formulação iniciada em 10 de janeiro de 1933, o Decreto 24.531 é reinterado em 2 de julho de
1934, autorizando Getúlio Vargas a interferir de forma livre e soberana na hierarquia policial,
nomeando sem maiores justificativas o chefe da polícia. Além disso, o decreto promove
alterações na forma de instituir os inquéritos, na prestação de serviços relevantes à polícia, nas
punições aos policiais da Polícia Civil ao inspecionar os serviços de outros policiais, o porte
de arma e a concessão de passaportes.
O Decreto determina a reforma do serviço policial do Distrito Federal extinguindo a 4ª
Delegacia auxiliar criando a Delegacia Especial de Segurança Política e Nacional (DESPS). O
DESPS torna-se um aparelho de controle e repressão policial com maior autonomia
interventiva por apresentar um alto grau de liberdade administrativa ao chefe de polícia na
atuação sociopolítica do Brasil. Esse exercício funcional quase ilimitado do chefe de polícia
nomeado por Vargas é descrito por Myriam Sepúlveda dos Santos (2009) em pesquisa sobre o
serviço policial e as prisões no país no regime getulista:

Diretamente subordinado à Vargas, Filinto Muller alcançou poderes praticamente


ilimitados na garantia da ordem, exigindo a prisão, a tortura e o exílio de indivíduos
considerados perigosos sem que fossem necessárias as intermediações dos processos
formais. Seu poder estava respaldado pelo Decreto 22.332. Militar, oriundo de uma
família de políticos do Mato Grosso, esteve exilado na Argentina e, na volta, não
participou diretamente do movimento que levou Getúlio ao poder. O passado do
poderoso chefe de polícia traz algumas dúvidas sobre uma possível deserção no
período em que se alinhou às tropas tenentistas. Se houve dissidência, esta não foi
um entrave para sua carreira, que teve curso e ascensão meteórica após 1930.
Durante sua gestão, o serviço policial tornou-se capaz de coordenar diferentes tipos
de informação, com a repressão aumentando a sua eficiência (SANTOS, 2009, p.
199).
66

A radical virulência do sistema policial implantado por Filinto Muller na ditadura


Vargas pode ser atestada no famoso episódio de tortura e aprisionamento pela Gestapo da
esposa do comunista Luís Carlos Prestes – o cavaleiro da luz – a comunista ativista Olga
Benário que se negara nos interrogatórios a revelar quem era e de onde viera, afirmando
apenas ser “Maria Prestes”, como retrata Stanley Hilton (1986) em trecho retirado do
despacho do ex-ministro das Relações Exteriores Moniz Aragão, sobre a identificação da
companheira de Prestes:

Depois de apuradas as sindicâncias, o serviço secreto alemão informou-me ter


podido identificar Maria Prestes, que aí se intitulava esposa de Luís Carlos Prestes.
[...] Ela é Olga Benário, agente comunista da Terceira Internacional, deveras
eficiente, de grande inteligência e coragem. É de raça israelita, tendo nascido em 12
de fevereiro de 1908, em Munique, na Bavária (HILTON, 1986, p. 155-156).

A criação de um sistema de arquivo de encarcerados de uso exclusivo do DESPS


propiciou a elaboração de dossiês, relatórios e diversas outras publicações sobre presos
políticos, criminosos comuns e opositores subversivos do regime. A repressão policial
aumentou de maneira expressiva, consagrando o DESPS como a principal polícia na repressão
de manifestações públicas políticas aguerridas. A atuação e incorporação da chefatura de
polícia ao novo formato da polícia varguista dinamizou o desmembramento de grupos e
organizações opositoras a ditadura, em particular, anarquistas, associações operárias,
comunista e estrangeiros pertencentes a países alinhados ao bloco socialista. O aparelho
policial getulista contribuiu de forma decisiva para dar estabilização política a Vargas por
quase todo o período ditatorial.
Segundo Cornelius Castoríades (1982) – na obra A instituição imaginária da
sociedade – a compreensão da “escolha” que uma sociedade faz de um simbolismo específico
ultrapassa as considerações formais ou estruturais. Para ele, entender um simbolismo de uma
sociedade é captar as significações de estruturas significantes sem reduzir-se a isso. O mundo
humano seria , desse modo, uma forma de submissão a resposta e resultado da transformação
dos dados imaginários por meios simbólicos a concretização dos dados naturais.
As memórias narrativas de Graciliano Ramos traduzem com exata agudez o
tratamento da polícia varguista aos condenados pelo regime ditatorial de Getúlio. Os policiais
tratavam de reproduzir a normatização do regime com comportamentos bestializados,
irracionais e de extrema ferocidade humana:
67

[...] nanico, tinha péssimas entranhas, compensava a escassez física normalizando a


violência; arrogava-se poder imenso, de fato ali dentro superava as autoridades
comuns, adstritas à censura e a regra. Já me haviam falado nesse tipo. Exigia um
respeito absurdo, e na presença dele todos nós devíamos guardar silencio e cruzar os
braços. Inclinava-me a julgar isso exagero; difícil admitir que tal significância
tivesse meios de criar normas, sujeitar a elas várias centenas de indivíduos
(RAMOS, 2008, p.224).

Na imagem literária, o homem encarcerado não se limita ao narrador Graciliano


Ramos, o encarceramento é da forma sujeito em sua redoma ideológica: o Estado Novo.
Entende-se que a polícia, aparelho ideológico de Estado, compõe o primeiro elemento de uma
maquinaria quádrupla de intervenção ideológica fascista no país na década de 1930.

3.3.2 O PRESÍDIO GETULISTA – O CCDR E ILHA GRANDE

A década de 1930 representou um período de reformas e ampliações no sistema


prisional do país. O governo Vargas programa uma série de mudanças no sistema carcerário
brasileiro, medidas estas já sugeridas desde o início da década de 1920. As primeiras
discussões em torno de um modelo penitenciário para o país centralizaram-se em torno dos
presídios baseados nos sistemas prisionais congregadores americanos de Auburn, em Nova
Iorque (EUA), onde os detentos trabalhavam agrupados, silenciosamente, durante todo o dia,
dormindo em celas individuais à noite e os de isolamento da Filadélfia, na Pensilvânia (EUA),
que estipulavam penas em regime de confinamento solitário, controle moral austero dos
detentos e castigos de privação de luz e comida, como descreve Michel Foucault em sua
história sobre a violência das prisões:

O modelo de Auburn prescreve a cela individual durante a noite, o trabalho e as


refeições em comum, mas, sob a regra do silêncio absoluto, os detentos só podendo
falar com os guardas, com a permissão destes e em voz baixa. [...] A prisão deve ser
um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em
uma existência moral, mas onde sua reunião se efetua num enquadramento
hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no
sentido vertical. Vantagem do sistema Auburniano segundo seus partidários: é uma
repetição da própria sociedade. A coação é assegurada por meios materiais mas
sobretudo por uma regra que se tem que aprender a respeitar e é garantida por uma
vigilância e punições.[...] Assim esse jogo de isolamento, da reunião sem
comunicação, e da lei garantida por um controle ininterrupto, deve requalificar o
criminoso como individuo social: ele o treina para uma “atividade útil e resignada”;
devolve-lhe “hábitos de sociabilidade”. No isolamento absoluto – como em
Filadélfia – não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei
comum, mas à relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que
pode iluminá-lo de dentro. [...] Não é portanto um respeito exterior pela lei ou
apenas um receio da punição que vai agir sobre o detento, mas o próprio trabalho de
sua consciência (FOUCAULT, 2007, p. 200-201).
68

O modelo penitenciário escolhido para o país direcionou-se à penitenciária


“congregadora”, pois os políticos e técnicos da época acreditavam que silenciamento e
isolamento absolutos não combinariam com a cultura do país. O assustador aumento de
crimes, vadiagens e pequenas infrações superlotava as prisões em quase todo o país, além da
recente e crescente demanda de presos políticos recém-chegados ao desestruturado e prosaico
sistema carcerário brasileiro, como salienta Myrian Sepúlveda dos Santos:

No século XX, as leis que penalizavam e encarceravam os bêbados e vadios estavam


presentes em diversas partes do mundo. No Brasil, entretanto, a dimensão adquirida
por essas leis se tornou imensa. Quando os presos chegavam ao depósito de presos,
localizado no centro da cidade, as autoridades policiais tinham o poder de classificá-
los e decidir seus destinos. Aqueles julgados criminosos eram encaminhados para a
Casa de Correção a fim de cumprirem suas sentenças. Mas esses eram poucos; a
grande maioria era encarcerada nas instituições da época que cumpriam o papel de
regenerar contraventores. Entre elas a Colônia Correcional de Dois Rios (DOS
SANTOS, 2009, p. 146).

A Colônia Correcional de Dois Rios (CCDR) foi criada em 1894, localizada no Estado
do Rio de Janeiro, no município de Angra dos Reis, na localidade de Ilha Grande,
inicialmente com o intuito de reabilitar pequenos infratores acusados de vadiagem: capoeiras,
negros, alforriados, imigrantes e pobres em sua maioria. Com a tomada do poder pelo Estado
Novo a partir da década de 1930, a CCDR passa a receber sentenciados por crimes comuns e
presos políticos. A Colônia Correcional encarcera um grande número de simpatizantes e
participantes do Partido Comunista Brasileiro, aumentando de forma considerável o
contingente do presídio até o final da década de 1940. O isolamento estratégico da CCDR, a
distância da cidade, a impossibilidade de comunicação, a proibição de visitações e a fama dos
castigos severos construíram uma imagem de ilha maldita ou caldeirão infernal por conta das
práticas de vigilância austeras.
A prisão como aparelho de Estado sempre esteve associada a uma instituição
legiferante de caráter agressivo e brutal. O sistema carcerário do Estado Novo integrava o
presídio de Fernando de Noronha, O Lazaredo da Ilha Grande, anos depois Complexo Penal
Candido Mendes, o presídio do Distrito Federal e as colônias agrícolas do Distrito Federal.
Essa intima ligação entre aparelho de Estado, elite dirigente e luta de classes é descrita por
Althusser (1986, p. 106):

Com efeito, o Estado e seus aparelhos, só tem sentido do ponto de vista da luta de
classes, enquanto aparelho da luta de classes mantenedor da opressão de classe e das
condições da exploração e sua reprodução. Não há luta de classes sem classes
antagônicas. UEM diz luta de classes da classe dominante diz resistência, revolta e
luta de classe da classe dominada. Por isso os AIE não são a realização da ideologia
69

em geral, ou mesmo a realização sem conflitos da ideologia da classe dominante. A


ideologia da classe dominante não se torna dominante por graça divina, ou pela
simples tomada de poder do Estado. É pelo estabelecimento dos AIE, onde esta
ideologia é realizada e se realiza, que ela se torna dominante. Ora, este
estabelecimento não se dá por si, é, ao contrário o palco de uma dura e ininterrupta
luta de classes: antes de mais nada contra as antigas classes dominantes e suas
posições nos antigos e novos AIE,em seguida contra a classe explorada (sic).

A Colônia Correcional de Dois Rios é uma representação microcósmica do país


durante o regime de exceção do Estado Novo. Essa realidade apartada do território nacional
traça o perfil da elite dirigente em produzir soluções de Estado para a manutenção da ordem
social. Essas soluções políticas resultavam na importação de modelos totalitários de controle
ideológico que intensificaram o ambiente de barbárie perpetrado desde o período da
escravatura.
Em Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos conduz o relato de suas memórias com
maestria e lucidez ao perceber que o conjunto estrutural penitenciário do Estado Novo era
uma fábrica de degradação humana. Os presos políticos submetidos a toda sorte de
constrangimentos, torturas e castigos lotavam as celas inóspitas do regime como mercadorias
estragadas estocadas em depósitos humanos, como retrata Graciliano Ramos em breve
excerto:

Certamente se haviam habituado a olhar trastes como nós, espalhados no chão, eram
tipos importantes, não nos enxergavam, naturalmente. Carregados de embrulhos,
redes, malas e sobretudos, gente do sul e do norte, pobres-diabos, não valíamos
nada, éramos lixo. Não nos distiguiam. Acostumados ao lixo, andavam cegas,
podiam pisar-nos (RAMOS, 1953, p.36).

A Ilha Grande torna-se um campo de concentração nos moldes da Gestapo alemã. O


cerceamento de informações sobre os presos, o racionamento ostensivo de alimento, além dos
intensos períodos de interrogatórios seguidos de sessões de tortura faziam da Colônia
Correcional de Dois Rios um dos presídios mais vitimadores do país. A edificação da CCDR
integrou, inicialmente, o pensamento de modernizar o aparato carcerário penal do Brasil. Essa
tentativa de melhoria das condições de humanidade e dignidade da condição dos presos foi
desvirtuada por gestores getulistas seguidores de um doutrinamento nazifascista. Ao longo do
tempo, o presídio foi objeto de desvio de verbas federais, ingerência administrativa e abuso de
poder. Na perspectiva de Hannah Arendt (2010), a condição humana compreende mais do que
as condições sob as quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados,
porque tudo aquilo com que eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de
existência. O mundo no qual transcorre uma vida ativa consiste em coisas que são produzidas
70

por atividades humanas. No entanto, as coisas que devem uma existência exclusiva aos
homens condicionam os seus produtores humanos. Em suma, o depoimento discursivo do
autor deflagra o estado de coisas em que se encontra a sociedade, o homem e a elite dirigente
da época.

3.3.3 O TRIBUNAL DE SEGURANÇA NACIONAL - TSN

O espírito ditatorial, que havia permeado os aparelhos de Estado getulista – como o


DESPS e o CCDR – manifesta-se com maior vigor com a formação, em 1936, do Tribunal
de Segurança Nacional (TSN). A implantação do TSN instituída pela Lei n. 244, de 11 de
setembro de 1936, contrariava toda a orientação democrática e constitucional do país ao
estabelecer um regime judicial de exceção no Brasil. Esse judiciário, nem tão independente
quanto deveria, estava, assim, julgando todo e qualquer ato que afrontasse a segurança interna
do país com crimes que se demonstrassem ser contra a República e suas instituições militares
ou de finalidades subversivas às instituições políticas e sociais brasileiras.
Os cinco integrantes do TSN, nomeados livremente pelo presidente da República,
estavam vinculados a um órgão da Justiça Militar com sede no Distrito Federal e foram
responsáveis a partir do ano de 1936 pela deflagração inicial de um complexo quadro
jurídico-político do governo getulista. Segundo D’araujo (2000), o TSN processou, julgou e
condenou cerca de 4.099 pessoas ao longo da existência jurídica. O alvo das condenações em
grande parte eram os revoltosos ao regime, no levante de 1935, partidários do comunismo,
intelectuais esquerdistas ou simpáticos ao socialismo, funcionários públicos e até mesmo
membros do judiciário que se negassem a julgar os processos em voga no tribunal varguista.
O procedimento de julgamento, a seleção dos condenados e a não isenção judicial do TSN são
relatados por Lira Neto em sua apurada pesquisa bibliográfica:

O TSN, por sua vez, condenou os principais implicados no levantes de 1935. Pedro
Ernesto foi sentenciado a três anos e quatro meses de prisão. Antonio Maciel
Bonfim e Honório de Freitas Guimarães, dirigentes do PCB, pegaram quatro anos e
quatro meses, a mesma punição conferida ao argentino Rodolfo Ghioldi. Agildo
Barata recebeu condenação de dez anos. Ernest Ewert, de treze anos e quatro meses.
Luís Carlos Prestes ficou com a pena mais alta de todas: dezesseis anos e oito meses
de cadeia (LIRA NETO, 2013, p.267).

A serviço do governo Vargas, o TSN desempenhava a função de um aparelho


ideológico de Estado jurisprudencial completamente esvaziado por falta completa de
autonomia e liberdade na condução dos processos arbitrados pelo tribunal. O quadro de
71

completa submissão do TSN aos interesses do governo de Getúlio Vargas aponta para o
entendimento histórico de que o tribunal serviu apenas de uma imaginativa peça teatral
burlesca, como enfatiza Silva (2013, p.1-2):

E nesse estado de guerra, para reprimir, para julgar os responsáveis pelo movimento
comunista de 1935, se criou um tribunal caricato e odioso, um tribunal de crise de
memória, chamado Tribunal de Segurança Nacional, para o julgamento dos crimes
políticos praticados antes de sua existência. Era um tribunal misto com um juiz de
direito, dois militares, do Exército e da Marinha, um advogado, um auditor de
guerra: eram cinco membros que tinha esse tribunal, na sua origem. […] Esse
Tribunal de Segurança Nacional realmente é uma marcha na história de nosso País,
porque era tudo, menos um tribunal. Era um ajuntamento destinado a aplicar sanções
a quem se opusesse aos detentores do poder de então. E de ato em ato, de supressão
da liberdade, o governo de então instalou uma ditadura que se chamou Estado Novo,
no ano de 1937. Fechou o Congresso, suprimiu as garantias individuais, manietou o
Supremo Tribunal Federal porque suprimiu o habeas corpus para os presos
políticos.

Pode-se considerar que o TSN correspondeu ao aparelho ideológico do Estado


getulista de maior força repressiva por apresentar um enorme volume de prisões arbitrárias
sem acusações formais, paralelamente ao aumento do número de encarceramentos em seu
período de atuação no país. D’Araújo (2000) assinala que o Tribunal de Segurança Nacional
instalou no país uma severa lei de segurança nacional que levou a esquerda às prisões e ao
banco do réus. No entanto, foi o escritor Graciliano Ramos, sem dúvida, a maior testemunha
histórica que conheceu mais profundamente os efeitos das decisões punitivas do TSN,
confessando suas críticas pessoais na narrativa de Memórias do Cárcere ao relatar um dos
julgamentos truculentos do TSN:

Eu nem preciso examinar o processo, pois este caso é notório. O réu não esconde
seus crimes. Atentou contra as nossas instituições, conspirou, usou bombas e
combateu as forças legais – todo mundo sabe. [...] Além disso, devemos reconhecer,
temos diante de nós um irresponsável. É um infeliz, um pobre-diabo, ruína física.
Pela cara vemos perfeitamente: um imbecil, um idiota. Sem dúvida obedeceu às
instruções dos agentes de Moscou. Assim, venerandos juízes, não venho pedir
justiça, que este individuo é um canalha – todo o mundo sabe. Espero clemência, e
baseio-me nas tradições misericordiosas da nossa cultura ocidental. Uma pena
suave, meritíssimos juízes, aí uns trinta anos [...] (RAMOS, 2008, p. 649-650).

O Tribunal de Segurança Nacional (TSN) pode ser compreendido pela dinâmica


punitiva de Focault (2007) ao afirmar que na essência de todos os sistemas disciplinares
funcionaria um pequeno mecanismo penal. Entende-se que o tribunal de exceção varguista,
mesmo não possuindo legitimidade democrática para julgar e condenar os seus encarcerados,
funciona sob condições infrapenais estabelecidas por uma lógica de poder baseada numa
72

universalidade punível-punidora pertencente ao próprio sistema de regras ideológicas da


formação discursiva do Estado Novo.

3.3.4 O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA - DIP

O triunfo da ideologia estadonovista a partir da década de 1930 processou-se em


grande parte por conta do eficiente e moderno trabalho de propaganda inspirado no modelo
alemão propagandista hitlerista centralizado no culto à personalidade, à manipulação
ideológica e à prática de notícias inverídicas. No Brasil, após o golpe getulista, o Estado Novo
elabora o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Criado em dezembro de 1939, o
DIP concentrou-se em duas funções principais: a atividade da censura; e o trabalho de difusão
da propaganda de Estado.
O aparelho ideológico de Estado propagandista de Vargas teve como base
fundamental o discurso falado. Esse fundamento norteou toda a construção ideológica dos
discursos políticos em inaugurações, comemorações cívicas e visitações públicas. A
radiofonia destacou-se como o principal instrumento de divulgação de ideias, plataformas e
ideologia do ditador dos Pampas. Os altos índices de analfabetismo, o crescente
descontentamento da população com a falta de atenção dos políticos com as classes
subalternas e a crescente crise econômica facilitaram ainda mais a penetração da propaganda
varguista.
No entendimento de Nelson Garcia (1982), o DIP desempenhou um papel fundamental
no aprimoramento da censura no país por não apenas apresentar a censura negativa clássica,
mas a censura positiva indicadora primordialmente de um sentido unidirecional da realidade.
A censura e a propaganda foram atividades de controle destacado na disseminação ideológica
do Estado Novo. A Constituição de 1937 estabelecia a liberdade de pensamento limitando o
rol de condições ao assunto que deveriam ser abordados no teatro, cinema, literatura, rádio e
jornais. A censura getulista era operada mediante a prática da autocensura. As medidas
restritivas e a censura prévia limitavam o raio de ação e pensamento de intelectuais, artistas e
jornalistas, evitando a produção cultural e artística que afrontasse o governo Vargas.

A imprensa, além de subjulgada (sic) pela censura, começara a ser coagida a


reproduzir, como material editoral, textos saídos direto das máquinas de escrever
dos redatores da Agência Nacional, um dos órgãos do Departamento de Propaganda.
A convocação de “entrevistas coletivas” com o presidente da República passou a se
resumir à distribuição de declarações previamente escritas pelos secretários do
palácio, com a devida orientação de que fossem transcritas na íntegra, linha por
73

linha. No caso de algum diretor de redação esboçar discordância quanto às regras


estabelecidas, a publicação ficaria exposta, além da visita intimidadora dos censores,
a retaliações de ordem financeira: o jornal perdia automaticamente a isenção
tributária sobre a compra do papel. Com a principal matéria-prima excessivamente
onerada, ficava impedido de circular. Para ajudar a manter a imprensa sob controle,
Getúlio regulamentou pela primeira vez no país a profissão de jornalista, oferecendo
benefícios básicos à categoria, como a limitação da jornada de trabalho a sete horas
diárias e o estabelecimento de uma folga por semana. Em contrapartida, para a
expedição do registro profissional, passou a ser exigida do pretendente uma folha
corrida na polícia, para que atestasse nunca ter respondido a processo por crime
contra a segurança nacional – o que na prática vetava o retorno ao ofício de centenas
de repórteres perseguidos pelo regime desde 1935 (LIRA NETO, 2013, p. 325-326).

O aparelho ideológico de Estado propagandista do Estado Novo fez parte de um


conjunto de engrenagens do poder dirigente baseadas em estratégias de veiculação ideológica
que facilitassem a aceitação das massas com relação às modificações sociais pretendidas por
uma ditadura pós-industrial e capitalista. Nesse sentido, as mensagens publicitárias de Estado
deveriam dirimir as insatisfações populares, apaziguando os conflitos de classes, os
antagonismos de opinião, os confrontos de ideias e as lideranças opositoras.
Para Capelato (1999), o totalitarismo produz estruturas socioafetivas que se
caracterizam por uma dimensão emocional intensa. Os regimes dessa natureza, na propaganda
política, atuam no sentido de aquecer as sensibilidades e tendem a provocar paixões. Os
sentimentos, fenômenos de longa duração, são manipulados de maneira intensa pelas técnicas
de propaganda com o objetivo de produzir fortes emoções. No entanto, os móveis das paixões
variam conforme o momento histórico: honra, riqueza, igualdade, liberdade, pátria, nação. A
intensidade dessas emoções ocorre através dos meios de comunicação, responsáveis pelo
aquecimento das sensibilidades.
O controle varguista não operou apenas nas técnicas de manipulação publicitárias
destinadas a provocar mudanças de sensibilidade e exaltação dos sentimentos nas grandes
massas, eles foram responsáveis por uma crescente manipulação da mentalidade de diversas
gerações de brasileiros, principalmente, nas formas de organização e planejamento dos órgãos
encarregados da propaganda política, revelando sua grande afinidade e identidade com a
proposta propagandista nazista.
74

4 A ANÁLISE DO CORPUS: O CÁRCERE DE GRACILIANO

4.1 ARQUIVO INSTITUCIONAL E POSICIONAMENTO DO SUJEITO

Neste capítulo, apresentam-se algumas ponderações sobre as inter-relações do


romance Memórias do Cárcere com os conceitos de arquivo institucional, posicionamento do
sujeito no discurso, a funcionalidade da prisão no período getulista, a construção de uma
memória discursiva e a relação com a história. Nesse sentido, procura-se fazer a análise da
relação dos dispositivos constitutivos da AD presentes no tecido narrativo do romance e a
construção discursiva da obra em questão. A análise, parte do pressuposto de que os estudos
em AD possuem uma perspectiva histórica e discursiva centrada na relação entre memória,
história e linguística. O percurso através do interior do corpus do romance configura o trajeto
do sujeito histórico, o itinerário em busca de uma formulação de um objeto discursivo, a
posição desse sujeito no interdiscurso e os dispositivos técnicos e metodológicos que lhe
evidenciam inscrição em uma dada memória discursiva.
No entendimento de Orlandi (2002), o arquivo institucional (documental) é observado
por uma memória institucionalizada definida a partir de um dizer instaurado por uma
ordenação repetível que possibilita ao interprete (sujeito histórico) formular uma variedade de
enunciados discursivos dentro de uma memória constitutiva. Neste processo de construção
discursiva, o escritor Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, apropria-se de um sujeito
locutor específico enfatizando a oposição entre o sistema jurídico institucional (Estado Novo)
centralizador da memória institucionalizada e o outro campo discursivo dos dizeres não
inscritos na ordem repetível institucionalizada. Desse modo, ao descrever a construção de um
acontecimento discursivo, o autor assume função bifásica no arquivo diante das diversas
possibilidades interpretativas manejadas ao longo do corpus do romance.
O arquivo institucional presente no corpus do romance, enquanto representação da
heterogeneidade dos dizeres presentes no arquivo Estadonovista, se confunde com o sentido
manifesto, ocultado pertencente a uma metadiscursividade histórica constituída por
enunciados discursivos de manifestação contrária ao regime getulista. O arquivo institucional,
ora totalizante, ora silenciado, sucumbe à dialética da reparação memorialista fidedigna e da
reatualização histórica. Nessa trajetória, enquanto prática discursiva e operação de
reapropriação do passado é matéria aprisionada, amorfa, estéril. A utilização do arquivo
institucional pelo Estado Novo abrigou a tentativa de instaurar a crença de uma moderna
75

concepção de gestão, sociedade e progresso, relegando ao apagamento a política de repressão


ostensiva política e cultural:

Agora me distanciava das familiaridades indiscretas: já não seria obrigado a conter a língua
para não me perceberem nas palavras o avesso das intenções. O barulho dos tamancos nos
chegava surdo. Não era só a posição do quarto que originava relativo sossego. Também as
ideias políticas de Adolfo Barbosa influíam nisso: discrepantes, punham de quarentena o
moço pálido, feio e prognato; raro um sujeito vacinado, livre do contágio, se decidia a
entrar naquela espécie de Lazareto, na verdade próspero, cheio de superfluidades, até
cadeiras e uma escandalosa mesinha redonda. Provavelmente esse luxo vinha de gorjetas
liberalizadas para amortecer a vigilância. Os objetos miúdos e caros eram trazidos pelo avô
de Adolfo, um velho Senador pernambucano, respeitável em demasia. Na segregação e no
conforto, o meu novo conpanheiro esfalfava-se em leituras, rabiscava notas; em seguida
precisava discutir a matéria: desviava a cama e, protegido pelo guarda-vento, agachava-se
nos travesseiros, alcançava o buraco da parede e caía num largo debate [...]. À noite
jogávamos poker, surdos à voz da liberdade. Agora os sambas, o hino do Brasileiro Pobre,
as notícias resumidas por Malta abafavam-se a distancia; só havia clareza nas canções da
vizinha da sala 4. A linguagem gutural de Elisa Berger e Olga Prestes adoçava-se nas
estrofes da Bandeira Vermelha (RAMOS, 2001, p.354).

Pêcheux (2002) considera que os gestos de interpretação produzidos pelo arquivo só


podem ser compreendidos por técnicas apropriadas de leitura do arquivo que possam traduzi-
lo para a realidade. Os gestos de leitura podem ser traduzidos detidamente a partir das formas
técnicas materiais, de gestão social dos indivíduos e interpretativas que representam o arquivo
nas ciências naturais, humanas e em nível simbólico. Assim, os corpora de arquivo seriam
responsáveis pela gestão social dos indivíduos, aprimorando a estabilidade das relações
sociais. Pêcheux considera a dimensão linguístico-interpretativa como atributo fundamental
na compreensão discursiva de leitura do arquivo.
Desse modo, entende-se que o romance Memórias do Cárcere se situa como um
exemplar de corpora de arquivo. Em virtude da presença de mecanismos teóricos e
metodológicos utilizados pelo locutor para retomar o enfoque da técnica de leitura na gestão
social de indivíduos e na interpretação simbólica em sua elaboração discursiva ao tratar da
condição humana submetida ao controle disciplinar carcerário. O discurso narrativo do sujeito
histórico é desenvolvido por um itinerário temático pertencente ao corpora de arquivo. A
narrativa documental, que revela a condição de silenciamento institucional e gerenciamento
humano, inclui também um universo de preocupações de uma memória discursiva que se
pretende institucionalizar-se no interior dos discursos presentes na ideologia do Estado Novo.
O processo de construção e leitura do arquivo em Memórias do Cárcere atua de dois
modos distintos: a técnica de leitura de gestão de indivíduos demarca os principais processos
sociais existentes no decurso da convivência do locutor no ambiente biossocial carcerário
76

estado-novista. Os personagens descritos no discurso narrativo do locutor representam a rede


de ordenação humana e controle biofísico estadonovista.
No que diz respeito aos enunciados de arquivos de corpora construídos no interior do
trajeto temático do locutor e o sentido da construção configurativa efetiva-se na divisão
esquemática do locutor em subdidir o discurso narrativo em dois espaços distintos: Viagens
(até a chegada ao presídio) e o ingresso no Pavilhão dos Primários.
Os dois blocos representam um rito de passagem demarcado por um percurso temático
ao arquivo de corpora. No primeiro capítulo – Viagens – há uma postura interpretativa do
sujeito histórico que assume uma atitude de fleuner. Nesse sentido, compreende o ato de
produção ou consumo textual a partir de uma forma ativa que contempla a observação e a
escuta. O sujeito histórico utiliza o itinerário da Viagem para produzir um método
interpretativo que contempla um olhar caminhante arguto sobre o caos político da nação, o
surgimento de um novo regramento de estado e o resultado dessa política de controle no
comportamento dos humanos:

Afinal íamos ser transferidos para o sul. Que lugar nos destinavam? Rio de Janeiro, Bahia,
São Paulo? Ou qualquer cidadezinha do interior? Quando lhes desse na veneta, mandar-
nos-iam fazer meia-volta, desembarcar-nos-iam no Amazonas, obrigar-nos-iam à
convivência com jacarés. Nenhuma lógica nessas reviravoltas, nenhum senso. Arranha-céus
ou seringueiras e tartarugas. Estúpido. Nada nos chamam aqui ou acolá. [...]. Para que
servíamos? Saltar da cama pela manhà, escovar os dentes, pentear os cabelos, ouvir dois
minutos, em pé, o interrogatório do comandante, dar respostas adequadas; em seguida
papaguear meia hora com o excelente capitão Lobo, contrariá-lo (RAMOS, 2001, p.116).

No segundo capítulo do romance – Pavilhão dos Primários – o sujeito histórico


descreve o conjunto de práticas arbitrárias utilizadas no cárcere estadonovista. O Pavilhão dos
Primários, além de se constituir como o principal ambiente de representação do Estado Novo
na narrativa discursiva, também, tem uma gama de ações ideológicas como função de
Aparelho de Estado. Neste caso, o Pavilhão dos Primários funciona como um microcosmo das
atrocidades desenvolvidas durante o período da Era Vargas.
Paralelamente ao uso da técnica de leitura dos corpora de arquivo, o sujeito histórico
utiliza outra técnica de leitura interpretativa das representações imaginárias pertencentes ao
universo simbólico estadonovista: o corpora da construção do analista. Por meio de um
método que busca compreender a partir do entendimento sobre o simbólico, o acontecimento
discursivo e a sua tradução na realidade histórica em torno de um conhecimento constituído: a
prisão ideológica no Estado Novo.
77

Essa via interpretativo-analítica converge, desse modo, ao terreno da especulação


profunda sobre o papel e a relação com o sujeito diante do imaginário. A relação entre
simbólico, significante e sujeito dirige-se ao patamar em que se inscreve o romance no
discurso, contexto e história a noção formação do sujeito histórico. A metodologia dupla de
leitura do arquivo: análise da gestão social dos indivíduos (corpora de arquivo) versus
entendimento do acontecimento discursivo (corpora de analista) promove o nascimento no
discurso narrativo do locutor, um modelo de uso do arquivo binário pelo locutor. Essa dupla
abordagem conferida ao locutor na narrativa discursiva é possibilitada pelo caráter híbrido e
intertextual do romance intercruzado por marcas autobiográficas, históricas, ficcionais,
denúncia-reportagem e diário-memorialista.
Derrida (2001) considera que a compreensão do arquivo está relacionada à noção
ontológica de comando: arké, ou ainda, numa dimensão etimológica e histórica de
representação do domicilio, endereço, casa. Assim, o arquivo institucional assume, portanto,
outra finalidade: o poder de comando para a realização institucional. Desse modo, a prisão
getulista passa a ser entendida como um repositório de ordenações do Estado Varguista e
como lugar preferencial de depósito da instituição totalitária.
Em decorrência do ecletismo textual do locutor de intercruzar tipologias textuais
diversas, compreende-se que esse sujeito dicotômico surge, insurge e reinsurge-se no discurso
do romance, na tentativa de reunir o conjunto de textos de forma multifacetada, plural e
simbólica como espécie de portavoz das vozes silenciadas de período ditatorial.
O locutor assume função arcôntica de interpretação no discurso semelhante aos
guardiões que interpretavam arquivos na casa funcional. O ápice desse processo expressa-se
no atributo de consignar o evento histórico particular reunindo signos em um único corpus
configurativo – romance literário – possuidor de uma sincronia com o tempo pessoal,
histórico e simbólico do locutor e de uma época. O arquivo institucional é uma ponte de
consignação para os sujeitos histórico e inconsciente para que o locutor da narrativa
discursiva deposite o seu patrimônio de apreço: a preservação da liberdade de pensamento e
ação.
No que concerne ao trabalho de formulação teórica do corpus, observa-se que o
arquivo institucional, numa concepção foucaultiana, não é apenas a arte de compor um
manuscrito. A priori, não é a identificação discursiva, ou qualquer outro selo referencial de
uma instituição, que o qualifica como um legítimo arquivo. Na verdade, o arquivo é
consubstanciado por um gesto de leitura além das marcas institucionais. Uma leitura
hermenêutica comprometida com o interprete, uma interpretação do corpus significativa,
78

aberta, atuante. O arquivo institucional de Foucault opõe-se a passividade de uma sociedade


do conhecimento pautada na conservação de textos:

Em vez de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que


traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar,
temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados
como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e
coisas (compreendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses
sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho
chamar de arquivo. Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma
cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como
testemunho de sua identidade mantida; não entendo tão pouco, as instituições que,
em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se
quer ter lembrança e manter a livre disposição. [...] figuras adventícias e como que
inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam segundo regularidades
específicas; em suma, que se há coisas ditas – e somente estas - não é preciso
perguntar sua razão imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que
as disseram, mas ao sistema da discursividade, às possibilidades e às
impossibilidades enunciativas que ele conduz (FOUCAULT, 2013, p. 157-158).

No romance Memórias do Cárcere, a constituição de sentido é formada a partir de um


a priori histórico retratado no discurso narrativo pela condição da realidade condicionada por
um acontecimento particular ao autor (encarceramento – Estado Novo) que decorre, na
verdade, de uma fração da história real determinada. Essa fração revelada pelo sujeito
histórico a partir de uma técnica literária induz (exclusivamente) ao entendimento de uma
parcela autorizada pelo poder do que pode ser dito ou não pelo locutor. Não o é, permitido,
efetivamente, transgredir as fronteiras do discurso oficial, institucional.
Apesar disso, o sujeito histórico, num a priori formal, constrói através da técnica
literária um conjunto de representações imaginárias – corpus do romance – imbuído do efeito
da polissemia-paráfrase da linguagem literária, transformando o acontecimento histórico
(arquivo institucional) em acontecimento discursivo. Na qualidade de leitor dos gestos
interpretativos do cárcere estadonovista o locutor, suportando o fardo da memória
institucional, traduz aspectos simbólicos do espaço prisional à cena pública.
Ao lado das técnicas e métodos descritos, que são formulações linguísticas sobre o
discurso e seu funcionamento na narrativa discursiva de Memórias do Cárcere, pretende-se
compreender o lugar do sujeito no interdiscurso da ideologia getulista e o seu posicionamento
ideológico. Os modos de compreensão sobre o posicionamento do sujeito no discurso passam,
de maneira obrigatória, pelos traços ideológico-históricos que caracterizam de forma
específica uma condição de produção discursiva a partir de um dado contexto discursivo e da
tomada de posição do sujeito na estrutura social em que este discurso é efetivamente
produzido.
79

Por outro lado, a formação e constituição de uma forma sujeito histórica é efetivada
por um conjunto simbólico ditado por uma ideologia atinente e interpelativa ao sujeito
esmagando-o até individualizá-lo. Deve-se considerar que o surgimento e a ascensão do
Estado Novo no Brasil possui relação direta com o declínio de uma elite oligárquica agrícola
em detrimento de uma recém nascida sociedade capitalista industrial. Este novo Estado é uma
confluência dos interesses jurídicos e políticos da nova elite dirigente brasileira. A conjuntura
no país dessas relações de forças capitalismo-industrialização-sociedade produz um sistema
regido por um Estado de base materialista que organiza seus diversos processos de
individualização dos seus sujeitos simbólicos de forma hierarquizada em seu aparato jurídico-
político-estatal.
Pode-se compreender que a forma sujeito do Estado Novo pertence ao imaginário de
um mundo capitalista nascente, produtora de uma materialidade constituída de discurso base
centrado em amplo processo de dominação. A dinâmica de atuação da forma sujeito histórica
do Estado Novo interpela a forma sujeito do locutor do romance, pretendendo individualiza-
lo, tentando estabelecer um nivelamento identitário com a formação discursiva getulista e a
forma sujeito histórica estadonovista.
A tentativa de inscrição do sujeito histórico/sujeito inconsciente na formação
discursiva getulista, com intuito de estabelecer uma identificação, estabelece um movimento
de rompimento e inaceitação da forma sujeito inscrita no romance Memórias do Cárcere. A
tentativa de cingir o sujeito histórico da narrativa discursiva o Estado Novo através do cárcere
do escritor-locutor incita o nascedouro de um posicionamento do sujeito do romance: o
sujeito de resistência.
Neste contexto de oposições e não-identificações com a forma sujeito estadonovista, o
sujeito de resistência, revela-se como denuciante das rachaduras e imperfeições ideológicas
do Estado getulista. Em consonância com a complexidade das formações ideológicas
promotoras da onipotência dos sujeitos e dos sentidos preceitua Orlandi:

Somos sujeitos interpelados pela ideologia e é só pelo trabalho e pela necessidade


histórica da resistência que a ruptura se dá quando a língua se abre em falha, na falha
da ideologia, enquanto o Estado falha, estruturalmente, em sua articulação do
simbólico com o político. Não é, pois pela magia, nem pela vontade, mas pela práxis
que a resistência toma seu lugar (ORLANDI, 2012, p. 231).

Na realidade, a articulação da forma sujeito estadonovista em materializar a prisão


como a representante primordial de um regime histórico de domínio coletivo proporciona a
exposição da falha ideológica mais expressiva do getulismo. A falha da ideologia getulista
80

nitidamente percebida pelo locutor abre caminho para a construção de um discurso de


resistência calcado numa reação de não subordinação do locutor com a formação discursiva
do getulismo. A fenda simbólica de ruptura ideológica do Getulismo é inscrita no discurso de
denúncia do locutor que oferece na narrativa um percurso temático simbólico, ideológico e
histórico no interior do interdiscurso do Estado Novo.
A atitude de contestação ideológica do discurso narrativo do sujeito histórico no
romance Memórias do Cárcere o coloca num posicionamento de delinquência discursiva
perante a forma sujeito capitalista do Estado Novo. Essa trajetória marginal é a representação
direta da práxis do sujeito histórico da narrativa que a partir da sua formação social
humanitária e ativismo político rechaça as práticas antidemocráticas e a conduta de
segregação dos indivíduos por uma instituição totalitária:

Não se descobriam sinais de crimes, mas pelo jeito eles deviam existir em qualquer
parte; conservar-me-ia longe do mundo até que aparecessem. Essa reles inocência
provisória de nenhum modo me satisfazia. No pavilhão achava-me inútil, olhado
com indiferença, talvez com algum desprezo. Recusara-me a fazer uma conferência,
lançara no coletivo propostas chocas facilmente arruinadas por Desidério; e ausente
da massa, declarando-me artesão, incapaz de entusiasmos e amigo do
internacionalismo, sentia fervilharem suspeitas em redor. Já um fanático me havia
chamado trotskista. A ordem pública julgava-me inofensivo, tanto que nem me
afligia com perguntas, mas não revelava o intuito de mandar-me embora. Não a
censurei por isso. Comparando-me a outros, a Manuel Leal, ao beato José Inácio,
admiti que para mim havia até certa benignidade. Não iria lamentar-me, por ser de
índole avesso a queixas e por enxergar no caso uma relativa justiça. Inimigos em
chusma atacavam a sociedade, éramos cupim no edifício burguês e aplicavam-nos
inseticida (RAMOS, 2001, p.289).

As relações entre arquivo institucional, posicionamento do sujeito e o discurso


narrativo do locutor correspondem à construção de posições e valores definidos do sujeito
histórico inscritos no corpus da obra. O posicionamento deslocado do sujeito histórico ante o
edifício do poder getulista revela a autonomização da posição sujeito ocupada pelo locutor no
discurso ao assumir uma alteridade que vai questionar de forma irônica, sutil e ácida o jogo de
poder e relações de força de um sistema destrutivo das relações humanas. Nesta perspectiva, o
discurso narrativo do sujeito histórico e do sujeito inconsciente da narrativa pertence a um
sítio simbólico permeado por uma dinâmica da solidariedade social e do meio político caótico
centrado na negação de qualquer expressão cidadã possível.
Ao testemunhar a realidade do sistema prisional getulista no interior axiológico, o
locutor, a partir do percurso temático pelo horizonte ditatorial estadonovista, experiencia
espaços onde se elege o terror como prática sistematizada de convívio e relação com o outro.
Vale dizer ainda que o deslocamento do sujeito histórico para um posicionamento antifascista
81

é um ato de provocação à formação discursiva getulista e uma dissonância dentro do


interdiscurso varguista. Como consequência, a tensão produzida pelo discurso do sujeito
histórico da narrativa discursiva torna-se propulsora de uma autonomia subversiva que
desmonta a visão paternalista e progressista da Era Vargas no Brasil. A esse respeito, o corpus
do romance parece iluminar o acervo dos discursos não-formais de denúncia sobre o período
getulista que não obtiveram êxito em se fazer ouvidos ou que beiraram o terreno ilustrativo da
denúncia meramente panfletária.

4.2 A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA PRISÃO NO GETULISMO

A literatura carcerária sempre foi tema recorrente entre grandes autores da literatura
universal. A prisão como mecanismo de silenciamento de escritores, pensadores e intelectuais
em regimes políticos ditatoriais foi um dos principais instrumentos de subjugação das
concepções filosóficas, políticas e morais de diversos intelectuais.
A associação da produção literária de um dado escritor, encarceramento e a
intervenção de um poder antidemocrático convergem em estratégias e formações discursivas e
ideológicas que concretizam formas de dominação-oposição aos discursos que se
contrapuseram a afrontar posições político-ideológicas institucionalizadas. Um dos exemplos
mais notórios da literatura contemporânea encontra-se delineado no romance de Franz Kafka
– O processo:

K. mal prestou atenção ao conselho. Não estava interessado em considerar o


dinheiro daqueles dois de disporem de seus objetos de uso pessoal; achava muito
mas urgente compreender claramente sua situação, mas com aqueles homens ao seu
lado não conseguia nem pensar. A barriga do segundo policial – pois ambos não
deviam passar de policiais – se encostava nele de um modo cordial; contudo, quando
olhava para cima, via um rosto que não combinava nem um pouco com aquele corpo
gordo; era uma fisionomia seca, ossuda, com um nariz grande, e que parecia
combinar melhor com a figura de seu companheiro. Quem poderiam ser aqueles dois
homens? Do que estavam falando? Qual a autoridade que representavam? K. vivia
num país que possuía uma constituição jurídica e onde reinava a paz; todas as leis
estavam em vigor; quem poderia ousar prendê-lo em sua própria casa? (KAFKA,
1963, p. 08).

No trecho, são narrados metaforicamente os métodos coercitivos de opressão,


silenciamento e desrespeito aos direitos individuais nos países controlados ou recém ocupados
por tropas nazistas na Europa. A narrativa dirige-se a interpelação da instância ideológica –
Alemanha Nazista – e ao assujeitamento de K. às condições de um interrogatório-processo.
82

O repertório de escritores encarcerados é predominantemente vasto na literatura


brasileira desde o período colonial até a literatura moderna. Autores que se opuseram ao poder
político institucionalizado e, ao fazê-lo, produziram, em grande parte, suas obras sob regimes
de exceção que os enclausuraram: Bento Teixeira, Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos e
Tomás Antonio Gonzaga.
Ao discutir o conceito de prisão e encarceramento nos séculos XVII e XIX, Michel
Foucault (2007) dirige fundamentação para a noção de arquipélago carcerário, constituída
pela abertura oficial do arquipélago penitenciário de Mettray, em inauguração em 22 de
janeiro de 1840. O modelo institucional de encarceramento em arquipélagos foi reproduzido
pela doutrina Getulista na reforma penitenciária e penal elaborada pelo Estado Novo a partir
da década de 1937.
O arquipélago carcerário de Ilha Grande foi a extensão de projeto prisional elaborado
pelo Getulismo que abrigava um sistema de controle por meio de aparatos coercitivos: celas
coletivas, turmas de trabalho extramuros e captura e castigos ritualizados aos presos
resistentes até a morte. O comportamento indócil dos encarcerados era repelido por forte
reação agressora de onipotência simbólico-política de forma coletiva, brutal e exemplar.
A figura do escritor Graciliano Ramos encarcerado torna-se representativa por abrigar
a atividade literária e uma experiência carcerária intercruzada de memória discursiva, arquivo
institucional, registro histórico e ficcionalidade. O relato sobre a prisão estadonovista, além de
contundente, confere ao registro histórico relatado um espaço de dissenções múltiplas sobre as
diversas formas de exercício das frações do poder getulista. A função ideológica dos castigos
exercidos em Ilha Grande ao corpo indócil do escritor Graciliano Ramos é consequência
direta de uma formação discursiva concebida em um espaço totalitário de segregação humana.
Essas práticas revelam uma das funções da prisão assinalada por Foucault (2007) em
Vigiar e punir: a função desnaturalizadora. Nesse processo, a função de despersonalização da
prisão getulista é demarcada pelo próprio escritor que estende o sentido desnaturalizador
utilizando de forma semântica a palavra “despersonalização” no trecho da narrativa:

As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento. No


íntimo havia talvez o incerto desejo de provar a nova justiça inquisitorial, perturbar
acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e patifarias. Essa vaidade tola devia
basear-se na suposição de que enxergariam em mim indivíduo, com certo número de
direitos. Logo ao chegar, notei que me despersonalizavam. O oficial de dia recebera-
me calado. E a sentinela estava ali encostada no fuzil, em mecânica chateação, como
se não visse ninguém (RAMOS, 2001, p.52).
83

O processo de desenraizamento da individualidade do escritor na prisão se processa de


forma paulatina em um devir de rupturas de convivência, condições humanas e ambientes
inóspitos, procedimentos e castigos pessoais impostos. As diversas tentativas de dissolução
identitária pelo mecanismo sancionador da prisão getulista ao sujeito histórico são traduzidas
na função autor do escritor e referencializadas de forma alegórica no enredo do romance para
representar o quantum de perdas pessoais e anônimas dos encarcerados em Ilha Grande:

Naquele dia a comida veio muito ruim, de aspecto mais desagradável que o
ordinário. No caixão, ao pé da grade, empilhavam-se os pratos – e o alimento se
comprimia formando uma pasta onde se misturavam carne, peixe, arroz e batatas
esmagadas. Entramos na fila, passo a passo nos avizinhamos dos faxinas ocupados
na distribuição, recebemos a boia enjoativa e a sobremesa: uma laranja murcha, uma
banana preta, meio podre. Afastei-me, pegando a louça imunda, a sentir nos dedos
grãos machucados e gordura, subi os degraus de ferro. Lá em cima iria repetir-se a
dificuldade comum nas refeições. À falta de mesa ou cadeira, forrávamos a cama
com jornais guardados para as tochas com que se queimavam os percevejos.
Evitávamos assim o contato da coisa repugnante com as cobertas. Mas a imprensa
ali era clandestina, só tinha livre curso à noite, nos resumos badalados pela Rádio
Libertadora. Minguava o papel – e depois da queima dos insetos, procedíamos como
bichos, segurando a comida, num embaraço horrível (RAMOS, 2001, p. 277).

O ambiente de confinamento institucional getulista na Ilha Grande possuía um grande


trunfo: a invisiblilidade. A prisão arquipélago Tupinambá exercia o grau de punição
proporcional ao nível de visibilidade dos condenados. A estratégia do Estado Novo de
conduzir presos políticos para Ilha Grande demonstrou, ao longo do tempo, que a intervenção
do poder getulista determinou o fortalecimento da resistência política das alas democráticas,
além de incitar o aumento das denúncias públicas geradoras de indignação por parte da
sociedade.
O ambiente de barbárie do sistema prisional getulista tornara-se, assim, de pleno
conhecimento do grande público, despertando o fascínio da sociedade e aguçando a
curiosidade de leitores intrigados pelas histórias inusitadas dos confinados da ilha. A
notoriedade do preso político Graciliano Ramos é revertida para o escritor que no exercício da
função autor estabelece o entrechoque de forças com o poder constituído, imprimindo
definitivamente a construção autoral emblemática de contestação política do regime no
romance afetadamente demarcado pelo duro regramento disciplinar da instituição do Estado
Novo. Assim, por ser esse mediador entre a instituição ideológica do Estado Novo e a
construção do relato narrativo histórico o escritor Graciliano Ramos através de Memórias do
Cárcere desnuda os processos disciplinares da prisão getulista.
84

O cerceamento institucional do intelectual Graciliano Ramos e o posicionamento


como preso político conduzem ideologicamente ao acionamento da função autor do escritor
que organiza o conjunto de discursos correntes sobre o totalitarismo no Estado Novo em
momento individual e particularizado: o aprisionamento em Ilha Grande. A prisão getulista é
um microcosmo onde as relações de força se adensam, provocando o surgimento de forma
premente o lugar da interpretação graciliana: o conjunto de gestos interpretativos que
produzem um deslocamento da visão tradicional da época sobre o governo Getulista e o
Estado Novo. No interior de uma formação discursiva contrária à formação discursiva
getulista, e aprisionado no locus pertencente à ideologia do Estado Novo (presídio de Ilha
Grande), o autor articula os sentidos e constitui um sujeito apartado das contaminações
ideológicas fascistas do Estado Novo, ainda que seu corpo social se encontre sob o jugo do
dominador:

Estremeci, apertei as mãos com raiva. Anos atrás encolerizava-me facilmente,


cegava, fazia imenso esforço para não perceberem zanga, a violência interior,
movimentos dos punhos contraídos no desespero. Frequentemente explodia a fúria
bestial e desmandava-me em desatinos que me enchiam de vergonha. Sentia-me
fraco, bicho inferior, invejava as pessoas calmas, não conseguia iludir-me com a
manifestação parva de coragem falsa. Às vezes me dominava, recompunha-me, a
tremura desaparecia, os dedos se estiravam. Sinais de unhas nas palmas suadas, as
juntas a doer; a respiração era um sopro cansado. Naquele dia a ira vermelha,
recalcada nos subterrâneos do espírito, veio à luz e sacudia-me: desejei torcer o
pescoço do insolente. Na surpresa, recusei o testemunho dos olhos e dos ouvidos.
Ter-me-iam dito palavra rude? Estaria a censurar-me o bugalho torto e imóvel, a
desviar-me de mim, zombeteiro, superiormente fixo na parede, num ponto de acima
de minha cabeça? O rombo sujeito, carregador de sacos, não seria tão grosseiro com
uma pessoa habituada a manejar livros. Devo ter pensado nas conveniências amáveis
e tolas, nas perfídias gentis comuns na livraria e no jornal (RAMOS, 2001, p. 251).

De posse da função eautor Graciliano Ramos assume uma tomada de posição


contraposta à formação discursiva pertencente ao getulismo representada pelo aparelho
ideológico: o arquipélago carcerário de Ilha Grande. A contraidentificação do sujeito
discursivo na função autor construída na narrativa denúncia Memórias do Cárcere oscila entre
posições de revolta, questionamento, contestação e repúdio pelos procedimentos disciplinares
do cárcere getulista, instaurando uma atmosfera narrativa de tensão manejada por uma forma
de resistência intelectual disciplinada e silenciosa.
Assim, a função autor é acionada no instante em que o autor assume posicionamento
contrário ao poder institucional getulista. Desse modo, o escritor faz emergir uma cisão entre
o narrador com os seus mecanismos de escrita e uma posição sujeito que se insurge ao sistema
jurídico-intuticional estadonovista. A postura do autor configura-se no instante em que se
85

pode apreciar o locutor real do discurso e as condições de existência discursiva. Em virtude


disso, a função autor presente no discurso de Memórias do Cárcere se contrapõe em diversas
passagens da narrativa em relação à imagem pré-concebida do intelectual Graciliano Ramos
como cidadão prudente, pacato e introvertido.
O posicionamento do sujeito discursivo Graciliano Ramos na função autor é elaborado
mediante a não adesão por parte do escritor ao status quo governamental institucional do
Estado Novo, às entidades governamentais formuladas pelo getulismo (Em especial o
DESPS) e ao modelo punitivo opressor: o arquipélago carcerário de Ilha Grande. Para
Pêcheux (1988), a tomada de posição e de enfrentamento à forma sujeito inscrita em um dado
interdiscurso, caracteriza o sujeito deste discurso como “mau sujeito” portador de
contraidentificação em relação ao saber-poder da formação discursiva que o afeta.
Desta maneira, a função autor em Graciliano Ramos diferentemente do escritor
possuiria um grau de abertura contrastivo maior de contestação ao saber constituído. O sujeito
desidentificado se pronuncia no discurso como um ato de rebeldia arguta, ainda que limitado
por condições do discurso. Encontra-se assim, um novo sujeito violento, tenaz e combativo
como se percebe no trecho da narração de uma rebelião no cárcere de Ilha Grande:

Principiamos a sacudir as grades com desepero. Ajustavam-me aos batentes, as


linguetas folgavam nos encaixes; segurando os varões de ferro, agitando-os,
produzíamos bulha infernal. Poucos se eximiram do contágio, suponho da fúria de
bichos excitados e impotentes. Sérgio, imune e sem nervos, acompanhou o
desenvolvimento da bagunça, esperando ensejo para repousar; como isto não viesse,
murmurou boas noites, alongou-se na cama, engarfou os dedos no peito magro e
dormiu logo. Era exceção: os outros, pilhas doidas, queriam esgotar-se, acabar-se.
Em frente a mim, Lacerdão exibia violência profética: ligava-se às varas, formava
corpo com elas; o inglês erudito de Cambridge desaparecia; tínhamos ali um feixe
de músculos encrespando-se, tentando rebentar a prisão; a carne engrossava, matéria
bruta igual a ferro; a barba espessa voava, a boca enorme se escancarava largando
insultos indeterminados. Isso me atraía. Às vezes não queremos saber se nos
comportamos bem ou mal; procedemos assim por não nos ser possível proceder de
outra maneira; a violência animal nos impele e domina. Naquele instante, máquina,
peça de máquina, desprezei a inteligência de Sérgio; vi-o miúdo e chinfrin; se ele me
alegasse razões, apresenta-lhe-ia argumentos vigorosos: músculos rijos, fortaleza
alheia, conclusivos (RAMOS, 2001, p. 294).

Ricouer (1996), em Interpretação e ideologias, subdivide a função da ideologia em


três categorias distintas. A primeira função da ideologia correlaciona-se à função geral de
mediadora na integração da sociedade, favorecendo a coesão grupal. A pedra de toque desse
conceito é dada a partir da perpetuação da ideologia como ato fundador inicial ligado
predominantemente a necessidade de um grupo social conferir uma imagem de si que a
representasse no jogo social. Além deste caráter fundador, a ideologia seria elemento de
86

motivação para a ação em sociedade por possuir em prática um reflexo social inerente
propício a justificação das ações. O poder simplificador e esquemático da ideologia nos
códigos sociais a torna elemento de expressão retórica, racionalizadora, operatória em bojo e
precipuamente intransigente, inerte com relação às tentativas de mudança, desconstrução e
recorte da sua estrutura basilar:

Mas como a ideologia consegue preservar seu dinamismo? Um terceiro traço se faz
necessário: toda ideologia é simplificadora e esquemática. Ela é uma grelha, um
código, para se dar uma visão de conjunto, não somente do grupo, mas da história e,
em última instância, do mundo. Esse caráter "codificado" da ideologia é inerente à
sua função justificadora. Sua capacidade de transformação só é preservada com a
condição de que as ideias que veiculam tornem- se opiniões, de que o pensamento
perca rigor para aumentar sua eficácia, como se apenas a ideologia pudesse
mediatizar não somente a memória, dos atos fundadores, mas os próprios sistemas
de pensamento. É dessa forma que tudo pode tornar-se ideológico: ética, religião,
filosofia. "Essa mutação de um sistema de pensamento ern sistema de crença", diz
Ellul, é o fenômeno ideológico. A idealização da imagem que um grupo faz de si
mesmo é apenas um corolário dessa esquematização. De fato, é através de uma
imagem idealizada que um grupo se representa sua própria existência; e é essa
imagem que, por contra reação, reforça o código interpretativo (RICOUER, 1996, p.
69).

Em segundo plano, a função da ideologia é considerada por Ricouer como uma


instauradora de hierarquização social, na qual a figura de autoridade anseia exercer o domínio
dos sistemas políticos, legitimando um sistema justificador de dominação. Por último, a
função da ideologia estaria atrelada também a um caráter funcional deformador, destorcido e
dissimulador que seleciona os elementos de uma dada realidade, modificando os componentes
dessa realidade de acordo com as estratégias e interesses de uma elite dirigente:

Esse segundo conceito de ideologia está intimamente ligado ao precedente, na


medida em que o fenômeno de autoridade também é coextensivo à constituição de
um grupo. O ato fundador de um grupo, que se representa ideologicamente, é
politico em sua essência. Como Éric Weil não se cansou de ensinar, uma
comunidade histórica só se torna uma realidade política i tornando-se capaz de
decisão; daí surge o fenômeno da dominação. É por isso que a ideologia-
dissimulação interfere em todos os outros traços da ideologia-integração,
especialmente no caráter de não-transparência que se vincula à função mediadora da
ideologia (RICOUER, 1996, p. 69).

A noção de ideologia de Ricoeur dividida em dominação e distorção pode ser acoplada


perfeitamente a análise da função da prisão getulista. Os códigos punitivos das instâncias
carcerárias no Estado Novo e o complexo penitenciário de Ilha Grande podem ser
compreendidos como o um excesso carcerário. O excesso penitenciário é uma medida de
dominação austera por abrigar na sua concepção o extrapolamento dos sistemas de lei
87

vigentes no judiciário mesmo se tratando de um regime quase que exclusivo de exceção. A


prisão em seus diversos ambientes de domínio: cela, pátio, refeitório, sala de visitas e de
interrogatório exercita ao máximo o poder de dominação nos indivíduos.
A construção de um regime de autoridade é um elemento predominante na relação
hierárquica na prisão getulista, buscando legitimar sua autoridade no amplo aparato de
procedimentos castradores: a tortura, os inquéritos, a revistas, as privações de sono e
alimentação. A dominação pode ser entendida, ainda, em episódios domésticos e particulares
onde o dominador estabelece coação em detalhes privativos da intimidade do individuo
encarcerado. É nessa direção que se dá o controle disciplinar da prisão em relação ao autor
Graciliano Ramos, no seu relato denúncia Memória do Cárcere:

Entendia-me em semelhantes recomendações e receava causar involuntariamente


prejuízo a alguém. Nada me concederiam além da licença contida no passaporte de
minha mulher. Um cartão de vinte centímetros, com as iniciais D.E.S.P.E.S no alto e
em seguida estes dizeres: “Sr. Diretor o portador do presente, cujo retrato se vê ao
lado, sra. Fulana de tal, tem autorização desta Delegacia Especial para visitar o Sr.
Sicrano.”Uns garrachos ilegíveis serviam de assinatura; à esquerda, a fotografia de
minha mulher, revelando que a permissão era intransferível. Aquilo se utilizava às
sextas-feiras, ao meio-dia; a direção do estabelecimento, razinza, e mesquinha, só
nos permitia uma conversa de trinta minutos. Escolhíamos os assuntos principais
com antecedência , buscávamos não perde-los, mas isso era difícil: esquecia-me de
pontos necessários, baralhava tudo, punhame a divagar e a repetir. Uma deficiência
curiosa pertubava: fugia-me a significação das notícias; esforçava-me por entendê-
las, algumas pareciam-me inacreditáveis (RAMOS, 2001, p. 290).

Nesse processo, o controle disciplinar constitui a crença dada por um grupo formado
que se representa e que se faz representar por meio de uma decidida representação ideológico-
politica, determinando os limites da existência de atos que podem ser validados como
criminosos lesivos ao Estado e como deve ser a correta punição aos culpados. Nessa direção,
a função de dominação da prisão getulista exerce papel de domínio daquilo que deve ser dito
ou não no espaço interdiscursivo da formação discursiva estadonovista. Trata-se, portanto, de
produzir um apagamento a partir da dominação dos discursos contrários ao regime getulista
tornando os seus opositores em deliquentes do discurso.
A função deformadora da ideologia encontra representação no cárcere getulista
quando se autodetermina a reeducar os indivíduos e reexaminar as suas condutas. Pode se
dizer que a função-sujeito exercida pelo autor utiliza o silenciamento transformando-o em
linguagem literária metafórica para esculpir uma realidade histórica dissimulada por uma
comunidade político ditatorial.
88

A função deformadora da prisão getulista, nessa direção, diminuiria as forças do


corpos indóceis dos seus condenados. O conjunto de leis, procedimentos penitenciários e
ações disciplinadoras são representadas pela função autor do sujeito do discurso em Memórias
do Cárcere como uma repertório dissimulado que contemplava medidas punitivas de arbítrio
ineficaz:

Um fato, pouco depois, convenceu-me de que ali dominava o capricho despótico, e


as sentenças dos tribunais são formalidades inconsequentes; cumprem-se, e os réus
não se desembaraçam da culpa. Certos crimes não desaparecem nunca; um infeliz
ajusta contas com o juiz e fica sujeito ao arbítrio policial. Inteiramente impossível a
reabilitação, pois não o deixam em paz. E dá-se o caso de o indivíduo não querer ser
solto, porque essa liberdade precária finda logo: tiram-no de uma prisão e mandam-
no para outra pior. Foi o que me disse o faxina ao narrar um homicídio praticado
naquele dia. Um ladrão concluíra pena leve. Na véspera da saída amanhecera
abatido e sombrio (RAMOS, 2001, p.304).

Entende-se, dessa maneira, que a função deformadora da prisão não atinge o sujeito-
autor, pois ao assumir um posicionamento desidentificado com a formação discursiva do
getulismo, o autor não é afetado pelos processos de deformarção e distorção ideológica
comumente produzidas aos encarcerados de Ilha Grande. Percebe-se, desse modo, uma
interpretação transdiscursiva das imagens simbólicas reunidas no romance Memórias do
Cárcere projetadas pela função autor do sujeito Graciliano Ramos. A transdiscursividade
apresentada pela função autor examina detidamente as implicaturas dos diversos discursos
que atravessam e constituem a formação discursiva estadonovista.
Em síntese, o trabalho discursivo da função autor em observar e denunciar a
funcionalidade do cárcere getulista reside em reconstruir os referenciais das imagens possíveis
pertencentes ao interdiscurso estadonovista dentro de uma formação discursiva avessa a
formação discursiva getulista. Nesse âmbito, o trabalho de discursivo do autor pauta-se na
busca pela compreensão das regras formadoras do domínio de um poder de estado embasado
na dissimulação do uso do poder de forma brutal como forma de legitimadora que evitasse
grandes perigos aos interesses econômico-políticos da nação.

4.3 DISCURSIVIDADE E HISTÓRIA

Nesta secção, mostra-se que o romance apresenta uma esquematização discursiva


estruturada pelo locutor e uma oposição discurso-história latente efetivada na materialização
do discurso. Nesta perspectiva, o discurso narrativo é encarado com uma esquematização
interativa de atores ativos na construção de um sentido discursivo. O processo de
89

representação discursiva da narrativa em Memórias do Cárcere pauta-se no ideal de


representação que o locutor tem de si mesmo e a representatividade da interlocução com o
Estado Novo na interação do discurso. De acordo com Amossy (2008, p. 08), a concepção de
representação discursiva reflete a apropriação da palavra pelo sujeito discursivo e a
autoimagem criada:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto,
não é necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas qualidades nem
mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências lingüísticas e
enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma
representação de sua pessoa.

O quadro de conhecimentos e de filtros culturais pré-construídos mediante uma troca


discursiva mobiliza um acervo de conhecimentos sociais. Os objetos do discurso são os
elementos tradutores principais da esquematização do discurso comunicação-interação. A
conjugação desses elementos a pré-constituição cultural, as imagens representativas de cada
locutor e interlocutor e a finalidade dos atores sociais no discurso determinam a formulação
dos pontos de vista no discurso.
Dessa maneira, a estruturação da narrativa discursiva provém de uma dupla relação de
interação entre o lugar de construção das imagens do período getulista pelo locutor da
narrativa e o lugar de reconstrução das imagens produzidas pela interação entre o locutor e o
interlocutor no discurso. Destaca-se assim, a enorme confluência de imagens recortadas
construídas e reconstruídas a partir de um processo de representação de superposição
construção-reconstrução, resultando em síntese de uma imagem tema. Nesse sentido, a
situação específica da interlocução definida pelas dimensões concretas de tempo, lugares e
finalidades discursivas e o entralaçamento a uma dimensão teórica do contexto
sociodiscursivo-histórico legitimam o sentido do discurso materializado na narrativa da obra.
Como em toda interação discursiva, as imagens produzidas por essa esquematização
entre dois produtores locutor-interlocutor muitas vezes escapam à vontade pré-constituída de
seus locutores e interlocutores, quando interagem mediante as suas representações discursivas
definidas. Entretanto, há uma zona dialogal entre a interação que possibilita o jogo, a troca e a
enunciação de outros sentidos que se esbarram na superposição de imagens imprevistas pelos
atores do discurso. É neste contexto que se efetiva uma discursividade ativa na narração do
locutor no romance.
90

Restar-me-ia alegar que o DIP, a polícia, enfim, os hábitos de um decênio de


arrocho, me impediram o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos
censura prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas
foram raríssimos esses autos-de-fé. Em geral a reação se limitou a suprimir ataques
diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disso escasso prejuízo veio à
produção literária. Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas
excelentes por falta de liberdade – talvez ingênuo recurso de justificar inépcia e
preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe
e acabamos às voltas com a Delegacia Política e Social, mas, nos estreitos limites a
que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer. Não será impossível
acharmos nas livrarias libelos terríveis contra a república novíssima, às vezes com
louvores dos sustentáculos dela, indulgentes ou cegos. Não caluniemos o nosso
pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de
autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos
impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício
(RAMOS, 2001, p.34).

O locutor apresenta conscientização de grau de abertura discursiva possível no


interdiscurso getulista que possibilita uma liberdade desavisada dentro da linguagem ofertada
pela produção literária capaz de imprimir uma atividade artística libertadora. Esse ofício de fé
literária é impregnado por um tencionamento constante de forças ditatoriais moldadas pelo
controle disciplinar institucional centrado no rigor.
O posicionamento tête-à-tête do locutor da narrativa com o poder institucional
getulista ordena uma sequência de produção de imagens que interferem duramente na
constituição do ethos institucional estadonovista sem tentar derrubá-lo ou alterá-lo, mas
esvaziando-lhe sentido através de um processo de hiper realismo de imagens. O jogo de
oscilações de diálogos internos entre o locutor com a narrativa e o quadro de ações
institucionais do Estado Novo modula as intervenções discursivas que determinam o embate
sobre a posição de poder de eleição de imagens no discurso do romance. O conjunto dessas
imagens representativas contrapostas resulta num texto de estrutura discursivo-narrativa-
dialogal.
Segundo Adam (1987, p.20), a sequência conversacional (ou troca) com a unidade
constituinte do texto conversacional é determinada por unidade constituída de macroposições,
ou seja, por suas intervenções, elas mesmas se constituem de microposições que são os atos
de fala. Na medida em que a troca é definida por uma unidade temática e a menor unidade
conversacional-dialogal transforma-se numa sequência, insurge o constituinte de maior
unidade dialogal – o texto conversacional. Numa perspectiva discursiva, entende-se que ao
estabelecer a posição de locutor do discurso narrativo o sujeito histórico elabora gestos de
interpretação sobre a ideologia Getulista marcados por uma multiplicidade de diálogos
críticos gerados pela intervenção do poder de estado getulista culminando na temática do
encarceramento.
91

Em posicionamento de base contradiscursiva o locutor se insurge contra a lei


constituída estabelecendo atos de convívio de resistência crítico passiva. O posicionamento de
observação crítico-passivo é uma posição de enfrentamento subliminar e silencioso que
possibilita ao locutor produzir o relato de forma minuciosa, construindo um quadro sequencial
de imagens sobre o encarceramento formadoras de uma unidade de sentido dominante.
A sequencialidade discursiva do locutor no romance é estruturada em eixo centrado
em direcionamento discursivo narrativo descritivo-argumentativo e dialogal-conversacional.
Com ênfase nas sequências de trocas dialogais baseadas na hierarquia interlocutor-locutor, a
narrativa estrutura-se no aporte investigativo denunciador do preso político Graciliano Ramos
e na exposição do mundo enclausurado de técnicas de opressão estadonovistas reveladas na
narrativa.
O locutor da narrativa recorta a materialidade do romance na obra em mundos
discursivos que funcionam como elementos de transição das representações individuais e
coletivas retratadas no enredo do romance. A representação discursiva do poder institucional
getulista engloba o mundo discursivo formal constituído por representações sociais coletivas
enquanto que a postura do locutor pertence a um mundo discursivo vulgar preenchido pela
representação individual da história pessoal e à ação do locutor ao narrar e elaborar o
discurso. Essa disposição e contraposição entre dois mundos discursivos de narrar fica
evidente no trecho:

Estaremos a forjar mentiras, resvalaremos na credulidade antiga, a engrossar boatos,


adorná-los, emprestar-lhes movimento e vida? Procuramos velhos companheiros,
atiçamos as reminiscências deles, obtemos confirmação. Foi o que me aconteceu.
Informei-me de novo, procurei afastar as posições de erro ou exagero, mas ainda me
ficou uma vaga incerteza. O essencial é verdadeiro, causou espanto, depois foi
observado e nos pareceu natural. Não examinamos, porém, as circunstâncias: temos
conhecimento delas por indivíduos confusos, propensos à divagação. Verdades? Não
sei. Narro com reservas o que me narraram, admito restrições e correções (RAMOS,
2001, p. 309).

A narrativa do sujeito histórico é intercambiada por uma mediação do locutor entre os


dois mundos: o formal e o vulgar. Em face disso, a narrativa possui uma constante tensão
causada pelo entrechoque dos dois mundos. O mundo formal apresentado no discurso
narrativo recupera os elementos constitutivos que instauraram a crença na sociedade brasileira
vigente na época sobre a viabilidade da implantação e manutenção do getulismo. O mundo
vulgar pauta-se no sujeito histórico da narrativa que persegue um ideal de verdade sobre o
relato dos fatos por encontrar-se imbuído numa concepção desconstrutora dos acontecimentos
estadonovistas na prisão.
92

O cárcere em si é uma ferramenta discursiva dialogal solepcista que efetua


discursividade por um conjunto de solilóquios do locutor da narrativa. A imagem do cárcere é
convenientemente relatada para que se encaixe no quadro estrutural global da narrativa. O
relato do cárcere converge com a estratégia discursiva de uma posição pré-constutuída pelo
sujeito histórico ao escolher o modo de narrar institucionalmente a história. O ato de escolha
de enfrentamento do locutor ao Estado Novo origina o lugar do posicionamento no
interdiscurso getulista, inscrevendo a narrativa de forma particular no tempo e na história.
Diante das imagens históricas presentes no romance, a narrativa discursiva de
Memórias do Cárcere apresenta-se como um objeto de articulação de materialidade
discursiva, histórico-social e política do primeiro modelo de sistema de Estado político
moderno na sociedade brasileira.
O conjunto de imagens históricas reunidas, organizadas por uma acervo particular do
locutor, ilustra as transformações ocorridas na cultura, sociedade e indivíduos. A história pode
ser concebida no discurso narrativo do locutor como um desdobramento de uma relação de
forças histórico-discursivas de apagamento versus não-apagamento de registros, relatos e
denúncias oficiais e não-oficiais. A história, portanto, compreende-se de uma imensa
interrogação de imagens, fatos, versões e relatos originados de uma significação permeada por
uma incompletude de sentido real.
Pelo processo de apagamento, a história vivenciada in natura afasta-se, do plano da
memória coletiva, transformando-se em história oficial (institucional), a partir do ponto de
vista de uma instituição representativa do poder do Estado. De forma pensada e planejada, o
poder institucional exercita a relação apagamento/esquecimento nas práticas sociais
cotidianas. O propósito estratégico do poder institucional com relação à maneira de
rememorar a história ultrapassa o território da intenção ingênua da não-lembrança e penetra
no terreno da intervenção ao acesso de um acervo memorial diversificado. O esquecimento é
aparato político do poder institucional que dissimula um sentido usual, único e aceitável ao
discurso eleito numa dada sociedade.
Pêcheux (2010) ao enfatizar sobre o esquecimento ideológico delimitou esse conceito
em esquecimento n º 1 e esquecimento n º 2:

Consideremos o que designamos respectivamente com o nome de “esquecimento n º


1” e “esquecimento n º 2”. Vemos que estes dois esquecimentos diferem
profundamente um do outro. Constata-se, com efeito, que o sujeito pode penetrar
conscientemente na zona n º 2 e que ele o faz na realidade constantemente por um
retorno de seu discurso sobre si, uma antecipação de seu efeito, e pela consideração
da defasagem que aí introduz o discurso de um outro. Na medida em que o sujeito
93

se corrige para explicitar a si próprio o que disse, para aprofundar “o que pensa” e
formulá-lo mais adequadamente, pode-se dizer que esta zona n º 2, que e a dos
processos de enunciação, se caracteriza por um funcionamento do tipo pré-
consciente/consciente. Por oposição, o esquecimento n º 1, cuja a zona é inacessível
ao sujeito, precisamente por esta razão aparece como constitutivo da subjetividade
da língua na língua (PÊCHEUX, 2010, p. 176-177).

Na relação apagamento-esquecimento, o sujeito histórico no discurso é afetado


ideologicamente por um conjunto de regramentos simbólicos pertencentes a uma ideologia
específica.
A retomada de sentidos pré-existentes dentro de um estado inconsciente é denominada
por Pêcheux como esquecimento n º 1. A relação processo de enunciação de formulação e
reformulação do que é dito pelo sujeito do discurso o direciona para uma área de
funcionamento de oscilação de pré-consciência e consciência do dizer e sobre o que pensa no
discurso.
Do mesmo modo, o sujeito histórico da narrativa discursiva em seu relato estabelece
um processo textual de oposição entre a configuração institucional estadonovista pertencente
ao esquecimento n º 1 e a constituição da sua condição de existência não-sujetiva no discurso.
A aderência do sujeito histórico a zona do esquecimento n º 2 na narrativa discursiva de
Memórias do Cárcere aprofunda a dimensão do caráter de desidentificação imaginária com a
forma sujeito da Era Vargas. O locutor da narrativa discursiva demarca essa zona de
articulação e convergência ideológica e discursivo-histórica em sua descrição no cárcere
getulista:

Uma noite ouviram gritos desesperados. Que eram? Donde viam? Não tínhamos o
menor indício. [...] À força de repetições, chegávamos a admiti-las, pelo menos
como possíveis à natureza humana, contingente e vária, capaz de tudo, até que
viessem negá-las, enviar-nos à sociedade razoável, acomodada, sóbria, ignorante
daqueles horríveis desvios. Cá fora passamos involuntariamente a raspadeira neles.
Houve um momento em que nos vieram narrá-los, comentá-los, ou são produtos de
fantasia desvairada, vestígios de sonho? Vacilamos em transmiti-los: não nos darão
crédito, e isto nos deixará perplexos (RAMOS, 2001, p. 308).

Na medida em que o sujeito histórico reformula o dizer na zona de esquecimento n º 2


para repensar sobre o dizer no posicionamento discursivo na narrativa, o locutor de Memórias
do Cárcere inscreve na narrativa uma elucidação de frações de poder existentes no processo
de interpelação do sujeito pela ideologia na zona de esquecimento n º 1:

Estaremos a forjar mentiras, resvalaremos na credulidade antiga, a engrossar boatos,


adorná-los, emprestar-lhes movimento e vida? Procuramos velhos companheiros,
atiçamos as reminiscências deles, obtemos confirmação. Foi o que me aconteceu.
94

Informei-me de novo, procurei afastar as posições de erro ou exagero, mas ainda me


ficou uma vaga incerteza. O essencial é verdadeiro, causou espanto, depois foi
observado e nos pareceu natural. Não examinamos, porém, as circunstâncias: temos
conhecimento delas por indivíduos confusos, propensos à divagação. Verdades? Não
sei. Narro com reservas o que me narraram, admito restrições e correções (RAMOS,
2001, p. 309).

A intervenção mais expressiva, no entanto, é realizada por um conjunto de paráfrases


expressas na linguagem do discurso da narrativa estabilizando-a em uma zona de
esquecimento n º 2 em que o sentido do que é dito pelo locutor da narrativa produz uma
dimensão ilusória de aceitação passiva da realidade opressora. A narração sedimentada por
um modo de dizer entrecortado pelo discurso polissêmico do locutor prontifica-se a realizar
uma demarcação dos sítios simbólicos de pertencimento no corpus da narrativa.
Além da presença da discursividade e o recurso do esquecimento na narrativa a partir
de sistemas de imagens representativos, dimensionando o sentido polissêmico do texto, o
locutor lança mão de outro recurso narrativo discursivo: a história reconstituída por uma
narrativa de ficção. O sujeito histórico, portanto, em seu lugar de interpretação presume uma
identificação possível com o tempo histórico assumindo uma posição no discurso diante da
formação discursiva presente no interdiscurso da ideologia vigente. Assim, o locutor da
narrativa produz no corpus uma materialização da sua filiação histórica utilizando-a para
relatar o momento histórico: Era Vargas. Para Callot (apud LE GOFF, 2001, p. 18), o trabalho
de reconstrução do sentido histórico:

O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é


parte integrante e significativa da história. Isto é verdadeiro em dois sentidos.
Primeiro, porque o progresso dos métodos e das técnicas permite pensar que um
parte importante dos documentos do passado esteja ainda por se descobrir. Parte
material: a arqueologia decorre sem cessar dos monumentos desconhecidos do
passado; os arquivos do passado continuam incessantemente a enriquecer-se. Novas
leituras de documentos, frutos de um presente que nascerá no futuro devem também
assegurar o passado uma sobrevivência – ou melhor, uma vida -, que deixa de ser
“definitivamente passado”.

No romance, a abordagem histórica transparece por meio do diálogo textual com os


limites, oposições, oscilações e atributos narrativos do romance: realismo/ficcionalidade,
socialismo/fascismo, denúncia/abuso de poder; mundo formal/mundo vulgar. Essa abordagem
narrativa histórica confunde-se com o trabalho autobiográfico do locutor do discurso por
apresentar não uma concepção restrita, aferível de uma verdade histórica, mas a trajetória dos
fatos de um dado evento experiencial de uma historicidade do fato acontecido com o sujeito
histórico.
95

Ao longo da narrativa discursiva, a incompletude gerada pela falha ideológica do


Estado Novo em impor ao sujeito histórico uma dada formação discursiva transforma-se
numa reivindicação do locutor que deseja recontar uma história suprimida da arquivagem
pública. A tentativa de recuperação das vozes e ações perdidas no período do encarceramento
é uma oportunidades de reduzir o impacto das sequelas da violência do poder de Estado. A
história contada na narrativa utiliza o arquivo para questionar a memória institucional do
Estado Novo. O passado deixa de ser exclusivamente um ofício de um historiador e passa a
ser um dever discursivo do locutor a partir do posicionamento de um sujeito histórico no
discurso.
A construção do corpus da obra Memórias do Cárcere no âmbito histórico possui a
função discursivo ideológica de reparação institucional pelos danos ocorridos na ditadura
Vargas. Tecnicamente arquitetada, a narrativa literária serve como um relatório histórico
moderno que abriga o lado da indizibilidade histórica. Os procedimentos discursivos de
ficcionalização e o manejo de fontes dos arquivos pelo locutor fornecem a narração um valor
histórico de um relato testemunhal discursivo que distorce o passado institucional.
Além disso, o eixo discurso e histórico na narrativa apresenta-se como uma vertente de
narratividade memorialista que consagra o locutor do discurso como uma voz de autoridade
privilegiada sobre o momento histórico getulista. A desenvolver uma narrativa onde descreve
o mundo de vitimização dos condenados o locutor solidariza os leitores para o campo da
busca incessante dos culpados e da instauração de suas condenações. Esse exame de
consciência pura é elaborado na coerência discursiva imaginaria do locutor da narrativa no
seu tosco oficio literário de resistência.
Assim, a materialidade ideológica de reivindicacão no discurso do locutor suprime
qualquer outro destino estético ou de artesanato literário que se espere do locutor-escritor.
Essa disposição de dilacerar a verdade institucional getulista é ditada, capítulo a capítulo, no
romance do locutor do discurso. O cárcere para o locutor é um excelente oportunidade de
elaboração de um argumento corrosivo, conciso e denso que possa ser utilizado para
comprovar a sua experiência individual em um regime de opressão.
Finalmente, o discurso é validado por um distanciamento narrativo e interpretativo do
locutor que presencia a história no período do Estado Novo, canalizando a experiência no
cárcere numa hipótese interpretativa do evento sem alterar as marcas, inserindo-as na
reconstrução da história baseada em um horizonte de rememoração silenciosa que recupera o
locutor de seu isolamento e privação ideológica diante daquilo que o poder do Estado
autorizaria-o a dizer e da coragem de transgredi-lo no que é dito na narrativa discursiva.
96

5 CONCLUSÃO

Nesse trabalho, buscou-se apreciar como objeto analítico a narrativa discursiva sobre o
evento político e ideológico da prisão no Estado Novo a partir do romance Memórias do
Cárcere, em virtude disso elencou-se os princípios teóricos e metodológicos da Análise do
Discurso, Ciências Humanas e da linguística. No primeiro momento de análise, procurou-se
compreender as concepções de Estado-nação desenvolvidas na Europa que favorecem a
elaboração do regime ditatorial denominado de Estado Novo no Brasil e em seguida as
condições de produção que legitimaram a ditadura estadonovista no país.
Por tratar-se de um corpus pertencente ao discurso literário, analisou-se em princípio
dados e referências histórico bibliográficas do autor da obra estudada: o escritor Graciliano
Ramos. Dessa forma, utilizou-se o aparato teórico sobre as concepções de Estado Nação e
regimes totalitários de Hanah Arent, o trabalho de análise histórica sobre A Era Vargas de
Lira Neto, as fontes e estudo biográfico de Dênis de Moraes e Ricardo Ramos sobre o autor
Graciliano Ramos. No aspecto procedimental teórico metodológico elegeu-se para analisar os
elementos constitutivos do cárcere getulista a teoria a teoria genealógica foucaultiana sobre a
prisão inscrita na obra Vigiar e punir.
Faz-se necessário pontuar que as questões teóricas e metodológicas utilizadas na
presente pesquisa sobre o objeto de análise escolhido consideram a construção da narrativa
discursiva como uma representação de imagens no discurso de uma posição marcadamente
ideológica de um sujeito histórico traduzido pela função autor assumida na locução discursiva
do escritor. Considera-se a narrativa sobre a prisão no Estado Novo como um construto
institucionalizado particular de uma realidade social específica reproduzida por uma formação
ideológica discursiva de dominação.
Este horizonte define-se pelo modelo de linguagem e discurso cravado no corpus
analisado. A apropriação de um modo de existência reflete-se diretamente na forma dialogal
do sujeito com a sociedade e a sua inserção na realidade de mundo vivida. Em face disso,
compreende-se a prisão getulista como um fenômeno complexo e heterogêneo atravessado
por ideologias de dominação, imagens simbólicas violentas e funções disciplinares coativas.
Nessa perpectiva, entende-se que o objeto de estudo analisado possui uma confluência
de diversos componentes teóricos discursivos do campo da Análise do Discurso que são
presentes no romance, sendo manejados de forma constante pelo locutor do discurso (autor) e
o interlocutor (Estado Novo).
97

Nesse patamar, constata-se que o dispositivo teórico do arquivo na narrativa discursiva


de Memórias do Cárcere compreende uma forma de leitura crítica do discurso, da história e
da ideologia vigente. Assim, atesta-se que uma das formas de se ler um arquivo pode ser
entendida como uma fonte de reordenação e reconfiguração do passado através da escrita
narrativa, discursiva e histórica de um dado locutor que diante da complexidade de
impressões e significados das imagens de uma base discursiva estrutural ideológica insurge-se
contra uma leitura de mundo pré-definida. Além disso, os processos de enunciação do arquivo
possibilitam identificar vestígios enunciativos e a possibilidade de formulações de regras
discursivas dominantes no interior dos enunciados de um interdiscurso pertencente a uma
formação discursiva autoritária de origem getulista.
Neste âmbito, acredita-se que o modo de ler o arquivo institucional na narrativa
produz um posicionamento deslocado do sujeito histórico um modo de leitura do arquivo
contraposto ao poder getulista acentuando uma posição sujeito centrada em um locutor do
discurso que denuncia em sua narrativa as estratégias danosas do poder e o entrechoque das
relações de força de um sistema destrutivo das relações humanas. Em virtude disso, o discurso
narrativo do locutor e o posicionamento do sujeito histórico da narrativa pertencem a um
domínio de uma formação discursiva que lê o arquivo como fonte coletiva, social e humana.
Chama-se a atenção para a habilidade do locutor em realizar a leitura do arquivo
institucional em sua qualidade de leitor de arquivos depurando os gestos interpretativos do
cárcere estadonovista e transferindo-o o fardo da memória institucionalizada para os aspectos
simbólicos do espaço prisional na cena pública presentes na narrativa da obra. Afere-se no
presente estudo que essa habilidade do locutor é remanescente de um modelo de leitura
peuchetiano que compreende o arquivo em procedimentos teóricos e metodológicos utilizados
pelo locutor para retomar o enfoque da técnica de leitura na gestão social de indivíduos e na
interpretação simbólica em sua elaboração discursiva ao tratar da condição humana submetida
ao controle disciplinar carcerário.
Afastando-se da perspectiva da Análise do Discurso e contextualização histórica, é
preciso caminhar na direção de uma compreensão de base focaultiana sobre o objeto de
estudo analisado avaliando o discurso, o acontecimento histórico e a formulação ideológica. O
discurso e o poder da ideologia getulista, desse modo, são reproduzidos no interior do
presente objeto de estudo mediante à construção de um amplo conjunto de regras discursivas e
regulamentos de vigilância representados por procedimentos de silenciamento do discurso e
regimes de encarceramento.
98

Nessa concepção discursivo-ideológica, que considera o discurso um conjunto de


regras de formação os elementos de constituição da formação discursiva do Estado Novo,
participam de um jogo estratégico de dominação através dos seus aparelhos de Estado que
atuam institucionalmente no controle ideológico do sujeito histórico presente na obra. A partir
dessas considerações, constata-se que os enunciados produzidos pelo locutor da narrativa
discursiva constituem um microuniverso das relações de poder entre as correntes ideológicas
sociodemocráticas e as reacionário-fascistas do início do século XX.
Observa-se no presente estudo que o locutor intercambia de forma binária dois
procedimentos de leitura do arquivo entre os corpora de arquivo quando narra sua
preocupação com a gestão social dos indivíduos no cárcere e corpora da construção do
analista ao utilizar técnicas literárias na interpretação das representações imaginárias
pertencentes ao universo simbólico estadonovista.
Neste contexto, aprecia-se no discurso narrativo do locutor da obra ao longo da
pesquisa o percurso temático de escolha do locutor por uma tomada de posição ideológica
contrária ao interdiscurso do Estado Novo. É evidente que a função autor assumida na
narrativa do locutor implanta-se por uma tomada de posição contraposta à formação
discursiva pertencente ao getulismo representada ideologicamente na prisão. O processo de
re-configuração da ideologia getulista instaura-se na contraidentificação do sujeito discursivo
em sua função autor que difere diametralmente do ethos de intelectual sóbrio, prudente e
taciturno do escritor Graciliano Ramos.
No que diz respeito o posicionamento do sujeito histórico constituído na narrativa
denúncia Memórias do Cárcere pode-se concluir que o seu itinerário temático ao longo do
discurso da narrativa imbuí-se de uma atmosfera de microposições no discurso de resistência
ideológica a formação discursiva da forma sujeito getulista. Esta atitude de insubordinação
condena o sujeito histórico a um estado de delinquência subversiva em todas às vezes que
tenta defrontar-se ou opor-se numa interlocução com a formação discursiva do getulismo.
Outro entendimento, os dos tipos de esquecimentos pecheutianos, presentes no
discurso da narrativa do locutor da obra na presente pesquisa ligam-se a manipulação
ideológica do Estado Novo e ao posicionamento do sujeito histórico de Memórias do Cárcere
diante da realidade discursiva da prisão getulista. O presente estudo não tratou de assinalar a
diferença ou mapear a presença no discurso do sujeito histórico entre o esquecimento nº 1 e o
esquecimento nº 2, evidenciou, sobretudo, a tomada de posição do sujeito no interior do
discurso de base getulista e o acionamento do fluxo de pré-conciência/consciência no
99

processo discursivo de formulação do que é dito pelo locutor da narrativa durante o seu
percurso temático na obra.
O presente estudo procurou identificar, nos trechos da narrativa, recortes de instâncias
discursivas, nos quais a construção de paráfrases pelo locutor acentua ou anula posições de
aceitação ou oposição ao regime opressor vigente. Não se trata aqui de desprezar a existência
do esquecimento nº 1, embora esse modelo de realidade discursiva ilusória esteja presente no
discurso da narrativa. Todavia, o esquecimento nº 2 constitui-se como modelo mais próximo
de representação da realidade construída pelo sujeito histórico verificado na presente pesquisa
sobre a prisão estadonovista na narrativa do locutor.
Entende-se que a função autor é produto da ruptura do sujeito histórico com a
formação discursiva da forma sujeito getulista. O acionamento da função autor no discurso
narrativo ocorre devido à presença de uma falha ideológica da instituição jurídico-política do
Estado-Novo. A base de construção do posicionamento do sujeito discursivo Graciliano
Ramos em sua função autor é constituída por uma atitude de enfrentamento ao saber-poder do
Estado Novo.
A não aderência do sujeito histórico presente na narrativa do romance é consequência
direta de uma contraidentificação da voz discursiva narrativa do locutor com a forma sujeito
representada pela prisão getulista inscrita no interdiscurso da ideologia Vargas. O bom
intelectual ético e o intelectual mau subversivo reproduzem apenas uma disposição de
distanciamento ou encaixe com a forma sujeito da ideologia do Estado Novo. Tal perspectiva
vincula de vez a narrativa discursiva como um objeto de linguagem contradiscursivo
autônomo dentro de um sistema ideológico ditatorial onde o sujeito histórico opera uma
autonomia simbólica particularizada por sua habilidade em manejar o tear literário simbólico-
discursivo.
O exame desse sujeito histórico no discurso protagoniza na narrativa uma
representação que o locutor tem de si mesmo na interação do discurso. Nessa mesma linha, a
autoimagem criada favorece a composição do locutor da narrativa na composição de um
autorretrato de um sujeito histórico combativo e resistente aos ditames ideológicos do
getulismo. Constata-se que em todas as formulações e estratégias discursivas pertencentes ao
discurso narrativo do locutor o da interação discursiva locutor (sujeito histórico) e interlocutor
(Estado Novo) é a que mais produz efeito de sentido polissêmico na narrativa sobre a prisão
getulista.
Diante desta constatação, destaca-se a ideia da presença de uma multimodalidade na
maneira de narrar e produzir um discurso contraideológico na narrativa discursivo-histórica de
100

Memórias do Cárcere. O locutor negocia os limites da interpretação e do discurso


estruturando um eixo dialogal recortado de uma discursividade narrativa, descritivo-
argumentativa e dialogal-conversacional. A escolha do autor por uma narrativa
autobiográfica, histórica e ficcional representa uma estratégia discursiva de fuga de uma
hierarquia interlocutor-locutor na origem ideológica do dizer.
Em suma, o locutor propõe, então, que os dois mundos ideologicamente discursivos
possam transitar com suas intervenções e posições ideológicas pontuais para que se resolvam
problemas de recuperação histórica, problemas estes indizíveis no período do Estado Novo.
Em qualquer um desses dois mundos, a função discursivo-ideológica de reparação
institucional dos danos ocorridos na ditadura Vargas faz-se presente na narrativa do locutor.
Importa, em cada mundo, considerar-se a dimensão de vitimização e o ativismo ideológico do
locutor de perseguir uma culpabilidade institucional e de estipular suas condenações aos
algozes do regime.
Conclui-se que se deve pensar, portanto, a prisão getulista na narrativa graciliana de
Memórias do Cárcere como um relatório discursivo contundente da falta de limites do
exercício de um regime de exceção. O corpus da narrativa é materialidade ideológica
contradiscursiva que reivindica no cerne do discurso um posicionamento político-ideológico
pautado numa práxis cidadã e democrática. Trata-se, então, de admitir que a fissura do poder
ideológico do Estado Novo, além de inseparável, é necessária, para produzir modelos de
contestação de ideologias totalizadoras. Pensar o discurso dessa maneira, encarando-o como
necessidade derivada de um processo de dominação/libertação de um objeto ideológico,
implica repensar as relações em torno da linguagem, sociedade e história.
101

REFERÊNCIAS

ACHARD, P. et al. Papel da memória. Trad.: José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.

ADAM, M. Types de séquences textuelles élémentaires. Pratiques, n 56, p.54-79, déc. 1987.

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de


Estado (AIE). 2.ed. Trad.: Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro.
Introdução Crítica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Grall, 1985.

AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.

ARENDT, H. A condição humana. 11.ed. Trad.: Roberto Raposo. Rev.: Adriano Correia.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

______. As origens do totalitarismo. Trad.: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.

ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad.: Paloma


Vidal. Rio de Janeiro: Edurj, 2010.

BERCITO, S. de D. R. Corpos-máquinas: trabalhadores na produção industrial em São Paulo


(décadas de 1930 e 1940). In DEL PRIORE, M.; AMANTINO, M. (Orgs.). História do
corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011.

BERGER, P.L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia


do conhecimento. Trad.: Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2008.

BRAGA, R. Eu vi este livro nascer. Status, São Paulo, n. 52, nov. 1978.

BRASIL. Decreto-lei n. 24.351 de 2 de julho de 1934. Estabelece critérios para autorizar o


Presidente Getúlio Vargas a nomear ou exonerar para o cargo de chefe da polícia o agente de
confiança pessoal segundo o artigo 9 do decreto. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, v.
133, n.15, p.45, 2 de jul. 1934. Secção 5.

CAPELATO, M.H. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In:


PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1999.

CASTORÍADES, C. A instituição imaginária da sociedade. Trad.: Guy Reynaud. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1982.

D’ARAÚJO, M.C. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

DEL PRIORE, M.; AMANTINO, M. (Orgs.). História do corpo no Brasil. São Paulo:
Unesp, 2011.

DÉLORY-MONGERGER, C. Histórias de vida: da invenção de si ao projeto de formação.


2.ed. Trad.: José Cláudio e Júlia Ferreira. Natal: EDUFRN, 2008.
102

DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad.: Claudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DULCE, P. (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas,
1999. In: CAPELATO, Maria Helena. Propaganda política e controle dos meios de
comunicação. In: Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo Giralda
Seyferth.

FAYE J.–P. Langages totalitaires: Paris: Herman, 1982.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8.ed. Trad.: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária. 2013.

______. A ordem do discurso. 21.ed. Trad.: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
Loyola, 1996. (Aula inaugural no collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970).

______. Microfísica do poder. 23.ed. Org. e Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.

______. Sobre a arqueologia das ciências: resposta ao círculo da epistemologia. In: ______.
Arqueologia das ciências e história do sistema de pensamento. Rio de Janeiro: Forense
Universitaria, 2005. (Coleção Ditos & Escritos, V. 2).

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34.ed. Trad.: de Raquel Ramalhete.


Petrópolis: Vozes, 2007.

GARCIA, N.J. Estado Novo: ideologia e propaganda. São Paulo: Loyola, 1982.

______. Estado Novo: ideologia e propaganda. São Paulo: Loyola, 1986.

GOFFMANN, I. Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada. 4.ed. Trad.: Márcia


Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: [s.n.], 2012.

GUILHAUMOU, J.J.; MALDIDIER, D. Effets de l’arquive. L’analyse dediscours du cotê de


l’histoire. Langages. Paris, n. 81, 1986.

HILTON, S. A rebelião vermelha. Rio de Janeiro: Record, 1986.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico. Trad.: Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês
Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

LESSA, O. Ilha Grande: do jornal de um prisioneiro de guerra. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, 1933.

LE GOFF, J. História e memória. 6.ed. Trad.: Bernardo Leitão. Campinas: Edunicamp.


2012.

KAFKA, F. O processo. Trad.: Manoel Paulo Ferreira. São Paulo: Círculo do Livro, 1963.
103

LIRA NETO. Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930). 1.ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

______. Getúlio: 1930-1945 - do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo. 1.ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MAINGUENEAU, D. Discurso literário. Trad.: Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad.: Paulo Cezar Castanheira. São Paulo:


Boitempo. 2004.

MIRANDA, Wander Melo. Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004.

______. Nações literárias. Cotia: Ateliê Editorial, 2010.

MORAES, D. de. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. 1.ed. rev. e
ampl. São Paulo: Boitempo, 2012.

O GLOBO. Rio de Janeiro: Globo. 6 de abril de 1934.

ORLANDI, E.P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4.ed. Campinas: Pontes,


2002.

______. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 2.ed. Campinas: Pontes, 2012.

PARADA, M. Corpos infantil e nacional: políticas públicas para a criança durante o Estado
Novo. In: DEL PRIORE, M.; AMANTINO, M. (Orgs.). História do corpo no Brasil. São
Paulo: Unesp, 2011.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,


Edunicamp, 1988.

______. Estrutura e acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.

______. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Org.: Françoise Gadet e Tony Hak. Trad.: Bethânia S. Marianni. 4.ed. Campinas:
Edunicamp, 2010.

RAMOS, G. Memórias do Cárcere. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1953. (2 volumes).

______. Memórias do Cárcere. 37.ed. São Paulo: Record, 2001. (1 volume).

______. Memórias do Cárcere. Vol 1. 44.ed. São Paulo: Record, 2008.

______. São Bernardo. 13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970.

RAMOS, R. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. São Paulo: Globo, 2011.

RICOUER, P. Interpretação e ideologias. Trad.: Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1996.
104

SANTOS, S.M dos. Os porões da República: a barbárie das prisões da Ilha Grande - 1894-
1945. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

SARDINHA, H.O. Memórias de um médico: Ilha Grande. Rio de Janeiro: Reper, 1969.

SILVA, E. de L. e. A defesa do Estado Democrático de Direito. Disponível em:


<http://www.oab.org.br/hist_oab/primeiros_anos.htm>. Acesso em: 15 ago. 2013.

SODRÉ, N.W. Em defesa da cultura. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

WAHNICH, S., L’impossibilite citoyen. L’éstranger dans le discours de La Révolution


française.Paris: Albin Michel, 1997.

WEINHARDT, M. Ficção histórica: teoria e crítica. Org.: Marilene Weinhardt. Ponta


Grossa: UEPG, 2011.

WHITE, H. O texto histórico como artefato literário. In: ______. Trópicos do discurso:
ensaios sobre a crítica da cultura. 2.ed. Trad.: Alípio Correia de França Neto. São Paulo:
Unesp, 2001.

Potrebbero piacerti anche