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As últimas eleições têm confirmado o auge de populismos basea-


dos no medo e na desconfiança generalizada das elites. As elei-

DAVID VAN REYBROUCK  CONTRA AS ELEIÇÕES


ções tornaram-se concursos de popularidade em vez de serem
um debate racional de propostas.
Como explica este livro brilhante, o objetivo inicial das eleições
foi excluir as pessoas do poder selecionando uma elite para go-
verná-las. Na verdade, durante a maior parte dos 3.000 anos
de história da democracia, as eleições não existiam, e os cargos
eram repartidos usando uma combinação de sorteios e voluntá-
rios que se ofereciam.
A partir de estudos e exemplos de todo o mundo, este manifesto
influente e radical apresenta uma proposta real para uma verda-
deira democracia, uma democracia que realmente funcione. Ur-
gente, heterodoxo e extremamente persuasivo, Contra as eleições
deixa apenas uma pergunta a ser respondida: "O que estamos
esperando?".

"A eleição de nossos governantes com o voto popular não logrou


em um autêntico governo democrático: esse parece ser o vere-
dicto da história que se desenrola diante de nossos olhos...Talvez
tenha chegado o tempo para essa idéia.” J.M. Coetzee

David van Reybrouck (1971) - um dos intelectuais mais


importantes da Bélgica, é um pesquisador, jornalista e
poeta. Escreveu numerosos livros, mas foi com Congo que
ganhou notoriedade internacional. Ele é presidente do Pen
Club Bélgica. Em 2011, na Bélgica, ele lançou o G1000
projeto, uma plataforma de inovação democrática para au-
mentar a participação dos cidadãos no processo político.
BIBLIOTECA antagon sta

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Belo Horizonte | Veneza
DIRETOR EDITORIAL
Pedro Fonseca

COORDENAÇÃO EDITORIAL
André Bezamat

CONSELHEIRO EDITORIAL
Simone Cristoforetti

PRODUÇÃO EDITORIAL
Fábio Saldanha

EDITORA ÂYINÉ
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DAVID VAN REYBROUCK
CONTRA AS ELEIÇÕES

TRADUÇÃO Flavio Quintale


PREPARAÇÃO Ligia Azevedo
REVISÃO Fernanda Alvares
© 2013 David van Reybrouck. Originally published by De
Bezige Bij, Amsterdam Antwerpen

© 2017 EDITORA ÂYINÉ

Tradução da edição holandesa atualizada de Tegen


verkiezingen – geactualiseerde editie, De bezige bij,
Amsterdam, 2017, de Flavio Quintale.

IMAGEM DA CAPA: Julia Geiser


PROJETO GRÁFICO: ernesto
SUMÁRIO

contra as eleições 17

i. sintomas 21
Entusiasmo e desconfiança:
o paradoxo da democracia 21
Crise de legitimidade: desfaz-se o apoio 29
Crise de eficiência: desfaz-se o poder de ação 35

ii. diagnósticos 46
A culpa é dos políticos:
o diagnóstico do populismo 46
A culpa é da democracia:
o diagnóstico da tecnocracia 51
A culpa é da democracia representativa:
o diagnóstico da democracia direta 57
A culpa é da democracia representativa
eleitoral: um novo diagnóstico 76
iii. patogênese 106
Um procedimento democrático:
sorteio (Antiguidade e Renascimento) 106
Um procedimento aristocrático:
eleições (século xviii) 135
A democratização das eleições:
um processo aparente (séculos xix e xx) 156

iv. remédios 176


O retorno do sorteio:
democracia deliberativa (final do século xx) 176
Renovação democrática na prática:
um percurso internacional (2004-13) 189
Renovação democrática no futuro:
assembleias sorteadas 212
Esboço de uma democracia baseada no sorteio 224
Argumento provisório para um
sistema birrepresentativo 240

Conclusão 260
Posfácio 264
Agradecimentos 274
Referências bibliográficas 282

15
CONTRA AS ELEIÇÕES

17
Os ingleses pensam ser livres. Eles se enganam.
Eles são livres somente durante as eleições parlamenta-
res; tão logo terminam as eleições, eles voltam a serem
escravos, um nada completo.

Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social


(1762).

19
I. SINTOMAS

Entusiasmo e desconfiança:
o paradoxo da democracia

Há algo de estranho com a democracia: todos


parecem desejá-la, mas ninguém acredita mais nela.
Como mostram as estatísticas internacionais, cada
vez mais pessoas a defendem. A World Values Survey,
programa de pesquisas internacional de grande enver-
gadura, entrevistou mais de 73.000 pessoas de 57 paí-
ses, o que representa cerca de 85% da população mun-
dial. Perguntados se a democracia é um bom sistema
de governo, 91,6% dos entrevistados responderam que
sim.1 Jamais havia existido tamanha parcela da popu-
lação mundial favorável à democracia.
É espetacular tal entusiasmo, sobretudo se lem-
brarmos que, cerca de setenta anos atrás, a democra-
cia era algo desprezado. Ao final da Segunda Guerra

1  Http://www.wvsevsdb.com/wvs/WVSAnalizeQuestion.jsp.

21
Mundial, por culpa do fascismo, do comunismo e do governos e nos partidos políticos atingiu números
colonialismo, existiam apenas doze países democráti- alarmantemente baixos.5 Constata-se que a ideia de
cos.2 Aos poucos o número foi aumentando. Em 1972, democracia agrada as pessoas, mas sua aplicação na
eram 44 nações.3 Chegou a 72 em 1993. Hoje são 117 prática não convence, ao menos como tem sido pra-
democracias com eleições livres de um total de 195 ticada hoje.
países. Noventa deles têm democracias consideradas Essa queda de confiança é, em parte, culpa das
reais. Jamais na história da humanidade existiram democracias jovens. Vinte anos depois da queda do
tantas democracias e jamais ela teve tantos partidá- Muro de Berlim, a desilusão é bastante grande em
rios como hoje.4 muitos países do antigo bloco oriental. A Primavera
Entretanto, o entusiasmo diminuiu. A mesma Árabe parece estar bem longe de desabrochar em um
World Values Survey revelou que, em todo mun- verão democrático. Mesmo nos países onde há elei-
do, o número de pessoas que defende líderes fortes ções (Tunísia, Egito) são muitos os que descobrem
«que não se importam com eleições parlamentares» a face negra do novo sistema. Constatação amarga:
aumentou consideravelmente nos últimos dez anos, as pessoas que têm o primeiro contato com a demo-
assim como a falta de confiança nos Parlamentos, nos cracia logo percebem que na prática a teoria é outra,
sobretudo se a democratização do país é acompa-

2  Eric Hobsbawm, Age of Extremes: The Short Twentieth Cen-


tury, 1914-1991. Londres, 1995, p. 112. 5  Entre 1999 e 2000, 33% dos entrevistados acreditavam que li-
3  Freedom House, Freedom in the World 2013: Democratic deres fortes não deveriam levar em conta as eleições parlamenta-
Breakthroughs in the Balance. Londres, 2013, pp. 28-9. res; o número cresceu para 38,1% entre 2005 e 2008. Com relação
à confiança no governo, entre 2005 e 2008, 52,4% dos entrevista-
4  Ronald Inglehart, «How solid is mass support for democracy dos tinham nenhuma ou pouca confiança no governo, 60,3% no
— and how can we measure it?». PSOnline, www.apsanet.org, jan. Parlamento e 72,8% nos partidos políticos. Http://www.wvsevs-
2003, pp. 51-7. db.com/wvs/WVSAnalizeQuestion.jsp.

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nhada pela violência, pela corrupção e pela recessão mo seja a base de uma cidadania crítica, é legitimo se
econômica. perguntar o quanto essas proporções podem crescer e
Mas essa não é a única explicação. Mesmo as a partir de qual patamar uma desconfiança sadia pode
democracias mais sólidas são confrontadas, cada vez se transformar em real aversão.
mais, com sinais contraditórios de atração e rejeição. Números recentes dão uma boa ideia do tama-
Em nenhum lugar o paradoxo é tão impressionante nho dessa desconfiança em toda a Europa. Eles não se
como na Europa. Ainda que a ideia de democracia te- aplicam apenas às instituições políticas propriamente
nha raízes históricas e possua larga sustentação, a con- ditas, mas também a outros setores públicos, como o
fiança nas instituições democráticas diminuiu a olhos correio, o sistema de saúde e o transporte. A confiança
nus. No outono de 2012, o Eurobarômetro, órgão ofi- política não é nada mais do que um reflexo do am-
cial de pesquisa da União Europeia, constatou que so- biente em que se vive. Mas, além das instituições de-
mente 33% dos europeus confiam na União Europeia. mocráticas, quem obviamente mais sofre com a crise
(Em 2004 a confiança era de 50%!) A confiança nos ar- de confiança são os partidos políticos (receberam nota
lamentos nacionais e nos governos é ainda mais baixa, 3,9 dos cidadãos da União Europeia, de um máximo
chegando, respectivamente, a 28% e 27%.6 São os nú- de dez), seguidos pelos governos (4), os Parlamentos
meros mais baixos dos últimos anos. Atualmente, de (4,2) e a imprensa (4,3).7
dois terços a três quartos das pessoas desconfiam do A desconfiança é recíproca. O pesquisador neer-
próprio ecossistema político. E, mesmo que o ceticis- landês, Peter Kanne, recentemente apresentou núme-

6  Eurobarômetro, Standard Eurobarometer 78: First Results, out. 7  http://www.eurofound.europa.eu/surveys/smt/3eqls/index.


2012, p. 14. Http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/eb/ EF.php. Os números relativos a imprensa, Parlamento e governo
eb78/eb78_first_en.pdf. são de 2012, e o dos partidos é de 2007.

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ros interessantes sobre a visão que os representantes cidadão «desliga», como dizem por aí. Mas as coisas
dos partidos no arlamento dos Países-Baixos, em Haia, não são bem assim. É verdade que muitas pessoas têm
têm da sociedade neerlandesa. Cerca de 87% dos mem- interesse limitado na política, mas sempre foram um
bros da elite governamental dos Países-Baixos descre- contingente substancial. Não se pode falar em dimi-
vem-se, eles mesmos, como inovadores, respeitadores nuição do interesse nos últimos tempos. Estudos mos-
da liberdade e orientados para o exterior, mas 89% de- tram que, ao contrário do que se pensa, é maior o inte-
les acham que a população é tradicional, nacionalista resse na política hoje do que no passado: fala-se mais
e conservadora.8 Os políticos, em sua grande maioria, de política hoje com os amigos, a família e os colegas
tendem a considerar que os cidadãos têm valores di- do que antes.9
ferentes dos seus, menos elevados do que os seus, evi- Não é questão de apatia então. Será que estamos
dentemente. Não há motivo algum para pensar que mais tranquilos? Não é esse o ponto. Uma época em
esses números sejam muito diferentes fora da Europa. que o interesse pela política cresce enquanto a con-
Voltando ao cidadão. A palavra utilizada para ex- fiança na política diminui tem claramente um caráter
plicar essa desconfiança é «apatia». A individualização explosivo. Alarga-se cada vez mais o buraco entre o
e o consumismo teriam minado de tal modo o espírito que pensa o cidadão e o que ele vê o político fazer,
crítico dos cidadãos que sua crença na democracia foi entre aquilo que julga indispensável ser feito enquanto
transformada em tibieza. Hoje, no melhor dos casos, cidadão e aquilo que, segundo ele, o Estado não faz. O
há uma indiferença morosa, e logo se quer mudar de
assunto quando surge algum argumento político. O
9  Koen Abts, Marc Swyngedouw e Dirk Jacobs, «Politieke be-
trokkenheid en institutioneel wantrouwen. De spiraal van het
wantrouwen doorbroken?», em Koen Abts et al., Nieuwe tijden,
8  Peter Kanne, Gedoogdemocratie: Heeft stemmen eigenlijk wel nieuwe mensen: Belgen over arbeid, gezin, ethiek, religie en politiek.
zin? Amsterdam, 2011, p. 83. Lovaina, 2011, pp. 173-214.

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resultado é a frustração. Qual pode ser a consequên- Crise de legitimidade: desfaz-se o apoio
cia para a estabilidade de um país quando cada vez
mais cidadãos acompanham com paixão as ações dos Democracia, aristocracia, oligarquia, ditadura,
detentores do poder, em quem têm cada vez menos despotismo, totalitarismo, absolutismo, anarquia. Todo
confiança? Quantos olhares desconfiados pode supor- sistema político deve encontrar o equilíbrio entre dois
tar um sistema? E são apenas olhares desconfiados de critérios fundamentais: eficiência e legitimidade. Efi-
uma época em que cada um pode exprimir e compar- ciência em resposta à pergunta: quanto tempo o gover-
tilhar seus sentimentos na internet? no precisa para encontrar as soluções para os problemas
Vivemos em um mundo completamente dife- que se apresentam? legitimidade em resposta à pergun-
rente daquele dos anos sessenta. Naquele tempo, um ta: em que medida os cidadãos estão de acordo com as
camponês podia ser totalmente apático politicamen- soluções propostas? Eficiência tem a ver com a capaci-
te e, ao mesmo tempo, ter uma confiança absoluta na dade de realização; legitimidade, com o apoio dos cida-
política.10 Os camponeses, em grande parte da Euro- dãos às ações públicas. Esses dois critérios são, em geral,
pa Ocidental, como mostraram estudos sociológicos, inversamente proporcionais: a ditadura é indubitavel-
eram confiantes. Essa era a divisa: apatia e confiança. mente a forma mais eficaz de governo (a decisão cabe
Agora é outra: entusiasmo e desconfiança. Tempos a uma única pessoa), mas muito raramente é legitimada
conturbados. por muito tempo. Por outro lado, em um país onde as
decisões são debatidas pelos habitantes, tem apelo po-
pular, mas seguramente pouca capacidade de realização.
Democracia é a menos pior das formas de gover-
no justamente porque ele procura satisfazer os dois cri-
10  Luc Huyse, De niet-aanwezige staatsburger. Antuérpia, 1969, térios. Toda democracia busca um equilíbrio saudável
pp. 154-7.

28 29
entre legitimidade e eficiência. Uma hora se critica um 85% os eleitores europeus. Nos anos noventa, beirava
lado, outra hora, o outro. O equilíbrio do sistema é como os 79%. Ao longo da primeira década do século XXI,
o de um marinheiro em um navio, que deve distribuir o caiu para menos de 77%, número mais baixo desde a
peso entre as duas pernas segundo a agitação do mar. As Segunda Guerra Mundial.11
democracias ocidentais de hoje, entretanto, enfrentam Em números absolutos, são milhões de europeus
simultaneamente crises de legitimidade e de eficiência. que não fazem mais questão de comparecer às urnas.
É uma situação de exceção. O mar não está agitado, é Trata-se de um quarto dos eleitores. Nos Estados Uni-
uma tempestade. Para entender, devemos analisar os dos, a situação é ainda mais dramática: nas eleições
números, que raramente aparecem nas manchetes. Se presidenciais, o comparecimento foi menor que 60% e
olharmos com lupa os dados de cada pesquisa de opi- nas eleições de meio de mandato foi de cerca de 40%. A
nião e de cada resultado de eleição, perdemos de vista as abstinência eleitoral está para se tornar a principal cor-
grandes correntes marítimas e as variações climáticas. rente política do Ocidente, mas ninguém quer tocar
no assunto. Na Bélgica, a abstinência é muito menor
A seguir, vou me concentrar nos governos, em nível porque o voto é obrigatório (nos últimos dez anos gi-
nacional, de diversos países. É evidente que existem os rou em torno de 10%), mas o número foi aumentando
governos em escalas locais, regionais e supranacionais, com os anos: de 4,9% em 1971 passou para 10,78% em
cada um deles possui suas próprias dinâmicas e intera- 2010. 12 As eleições municipais belgas de 2012, ampla-
ções. Mas é em nível nacional que se pode estudar melhor mente cobertas pela mídia, registraram o menor índice
a quantas anda a saúde da democracia representativa.
A crise de legitimidade aparece em três sintomas
11  Michael Gallagher, Michael Laver e Peter Mair, Representa-
inegáveis. Primeiro, cada vez menos pessoas se apre- tive Government in Modern Europe. Maidenhead, 2011, p. 306.
sentam para votar. Nos anos sessenta, eram mais de
12  http://nl.wikipedia.org/wiki/Opkomstplicht.

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de comparecimento dos últimos quarentas anos. Em prichosos ao votar. Aqueles que ainda o fazem reconhe-
cidades como Antuérpia e Oostende, a abstenção che- cem a legitimidade do processo, mas demonstram ser
gou a 15%.13 Os números da Antuérpia são particular- cada vez menos fiéis a um partido, que recebem apenas
mente alarmantes: a campanha eleitoral para prefeito seu apoio provisório. Os cientistas políticos chamam
dominou a mídia nacional durante meses. Nas eleições isso de «volatilidade do eleitorado» e constatam que
parlamentares dos Países-Baixos de setembro de 2012, aumentou consideravelmente a partir dos anos noven-
26% dos eleitores ficaram em casa.14 Em 1977, foram ta: esse eleitorado varia de dez, vinte a trinta por cen-
12%.15 A democracia tem um problema sério de legiti- to. Reina o eleitor volátil. Terremotos políticos viram
midade quando os eleitores não dão mais importância rotina. «As eleições ocorridas desde o início do século
à coisa mais fundamental, o voto. O Parlamento ainda confirmam essa tendência», afirma uma análise. «Áus-
representa alguém? Não deveria ficar vazio um quarto tria, Bélgica, Países–Baixos e Suécia bateram novos re-
dos assentos, durante os quatro anos de mandato? cordes, com a ascensão súbita da extrema direita (Paí-
Em segundo lugar, além do baixo comparecimen- ses–Baixos em 2002) ou meteórica (Áustria em 2002),
to, há a inconstância dos eleitores. Os europeus não produzindo resultados eleitorais que figuram entre os
apenas vão menos às urnas, como são cada vez mais ca- mais voláteis da história da Europa ocidental.»16

Por último, há cada vez menos filiados a partidos


13  Koenraad De Ceuninck et al., «De bolletjeskermis van 14 ok- políticos17. Nos estados membros da União Europeia,
tober 2012: politiek is een kaartspel», Sampol, n. 1, 2013, p. 53.

14  Yvonne Zonderop, «Hoe het populisme kon aarden in Neder-


land». Creative Commons, 2012. 16  Michael Gallagher, Michael Laver e Peter Mair, 2011, p. 306.

15  http://www.parlement.com/id/vh8lnhrp8wsz/opkomstper- 17  Paul F. Whitely, «Is the party over? The decline of party acti-
centage_tweede. vism and membership across the democratic world», Party Politi-

32 33
apenas 4,65% dos eleitores ainda o são. Isso na média. como a natureza e o significado da filiação
Na Bélgica, são 5,5% (eram 9% em 1980) e, nos Paí- partidária mudaram profundamente.18

ses–Baixos somente 2,5% (eram 4,3% em 1980), mas a


diminuição da filiação partidária é constatada em toda O que significa para a legitimidade da democracia,
parte. Um estudo científico recente chamou o fenôme- o fato de cada vez menos pessoas aderem aos partidos,
no de «bastante surpreendente». Após uma análise sis- principais atores do sistema democrático? Quão grave
temática, os pesquisadores concluíram: é a situação quando não se confia mais em partidos?
E por que eles próprios pouco se importam com isso?
Em casos extremos (Áustria, Noruega), a
perda chega a mais de 10% e, em outros,
cerca de 5%. Todos os países, com exceção
de Portugal, Grécia e Espanha [democra- Crise de eficiência: desfaz-se o poder de ação
tizada apenas nos anos setenta], registram
forte queda no número de inscritos em
Não apenas a legitimidade da democracia entrou
partidos no longo termo: queda de um mi-
lhão, ou mais, na Grã-Bretanha, França e em crise, também sua eficiência sofre turbulências.
Itália, cerca de meio milhão na Alemanha Seu poder de ação tornou-se um problema intrica-
e quase o mesmo na Áustria. Os partidos,
do. Os Parlamentos chegam a levar quinze anos para
em países como a Grã-Bretanha, Noruega
e França, perderam mais da metade de seus aprovar uma lei. Os governos têm cada vez mais difi-
membros desde 1980; na Suécia, Irlanda, culdade em fazer coalizões, que são em geral instáveis,
Suíça e Finlândia, quase metade. São nú-
meros impressionantes, que sugerem

18  Ingrid van Biezen, Peter Mair e Thomas Poguntke, «‘Going,


going… gone? The decline of party membership in contemporary
cs, v. 17, n. 1, 2001, pp. 21-4. Europe», European Journal of Political Research v. 51, pp. 33, 38.

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e no final do mandato são quase sempre punidos pelos há uma evolução notável: o tempo é cada vez mais im-
eleitores. As eleições, cada vez menos frequentadas, previsível, a flexibilidade com as necessidades criadas
acabam sendo um obstáculo à eficiência. Exponho, está na ordem do dia, mas o caminho a seguir deve ser
agora, novamente três sintomas. muito bem definido e esclarecido com antecedência
O primeiro, a formação do governo demora cada nos mínimos detalhes, tamanha é a desconfiança entre
vez mais, sobretudo em países onde a formação de os membros das coalizões, tamanho é o medo de ser
coalizões é bastante complexa. Não se trata apenas da punido nas eleições. Cada partido quer garantir sua
Bélgica, que em junho de 2010 bateu todos os recor- fatia do bolo. Ter tudo o que é possível dentro do pos-
des, ficando um ano e meio sem governo, mas também sível, pois se trata de manter o máximo que se pode
de Espanha, Itália e Grécia, onde a heterogeneidade do programa de governo, tentando perder o mínimo
produzida pelas eleições foi tão grande que as dificul- possível na formação das coalizões. A consequência:
dades para a formação dos governos foram imensas. negociações demoradas.
Mesmo nos Países-Baixos foi muito complicado. Das O segundo, os partidos governistas viram vitrine.
nove negociações para a formação de governo que du- O estudo comparativo dos governos representativos
raram mais de oitenta dias desde o pós-guerra, cin- é uma disciplina recente, mas alguns de seus resulta-
co ocorreram depois de 1994.19 Há várias razões para dos são impressionantes. Um deles é o estudo sobre
isso. Uma delas certamente é a demora nos acordos e, a «retribuição» do eleitorado europeu. Qual é o futu-
principalmente, os detalhes dos acordos. Nesse caso ro de um partido do governo nas eleições seguintes?
Nos anos cinquenta e sessenta, os partidos governistas
perdiam entre 1% e 1,5% das cadeiras do Parlamen-
19  Http://nl.wikipedia.org/wiki/Historisch_overzicht_van_ka-
binetsformaties_(Nederland). Ver também: Sona N.Golder, «Bar- to na eleição subsequente, 2% nos anos setenta, 3,5%
gaining Delays in the Government Formation Process», Compa- nos anos oitenta e 6% nos anos noventa. Depois da
rative Political Studies, v. 43, n. 1, 2010, pp. 3-32.

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virada do século, as perdas chegaram a 8% ou mais. Os governos nacionais na Europa perderam muito do
Nas recentes eleições na Finlândia, nos Países-Baixos seu prestígio e do seu poder de tão comprometidos
e na Irlanda, os partidos governistas perderam res- que estão com atores locais e supranacionais. Se no
pectivamente 11,15 e 27% de seus eleitores20. Quem passado esses projetos traziam prestígio e eram vistos
quer manter o poder de ação na Europa, se o preço a como proezas da tecnologia, hoje representam um pe-
ser pago por governar é impiedosamente alto? Ficar sadelo administrativo. A época gloriosa das obras no
de lado, à espera, é a coisa mais racional a se fazer no golfo do Zuiderzee, da transposição do delta dos rios
momento, ainda mais se isso não tem consequências Reno e Mosa, dos trens de alta velocidade e do túnel
para o financiamento do partido: o Estado banca, de sob o canal da Mancha acabou. Para que serve um
toda maneira. governo que não tem nem mesmo condição de cons-
O terceiro, as ações públicas são cada vez mais truir um túnel ou uma ponte? Para quase nada, já que
demoradas. As grandes obras de infraestrutura como a qualquer coisa que tentam fazer se veem de mãos
a linha Norte-Sul do metrô de Amsterdam, a nova es- e pés atados à dívida nacional, à legislação europeia,
tação de trem de Stuttgart, a conclusão do anel viário às agências norte-americanas de classificação de risco
de Antuérpia e o projeto do aeroporto internacional de crédito, às multinacionais e aos tratados interna-
de Nantes não saem do papel ou não terminam nunca. cionais. No início do século XXI, a soberania, até en-
tão fundamento dos Estados nacionais, tornou-se um
conceito bastante relativo. Por consequência, os gran-
20  Hanne Marthe Narud e Henry Valen, «Coalition member-
ship and electoral performance in Western Europe», comunica- des desafios do nosso tempo – mudança climática, cri-
ção apresentada em 2005 no NOPSA Meeting, Reykjavik, 11-3 se bancária, crise do euro, crise econômica, paraísos
ago. 2005. Ver também: Peter Mair, «How Parties Govern», co-
municação da Universidade da Europa Central, Budapeste, 29 fiscais, migrações, superpopulação – não podem mais
abr. 2011, http://www.youtube.com/watch?v=mgyjdzfcbps, a ser resolvidos pelos governos nacionais.
partir dos minutos 27’50.

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A impotência virou a palavra-chave do nosso gam campanhas publicitárias, o que faz
tempo: impotência do cidadão diante do governo, do com que os três setores [política, mídia
e empresariado] acabem em uma parali-
governo diante da Comunidade Europeia e do conti- sia mútua, um «triângulo das Bermudas»
nente diante do mundo. Ninguém se importa com o onde tudo é misteriosamente engolido sem
vizinho e não olha mais para ele com esperança e con- se saber o motivo. […] A interação entre
política e mídia é na verdade um fator im-
fiança, mas com desprezo e raiva. Hoje, o poder é uma portante de acentuação do incidentalismo21
hierarquia de maldições. na política. A mídia vive de notícias. Nas
entrevistas com os jornalistas, observa-se
A política foi sempre vista como a arte do possí-
que os incidentes chamam mais a atenção
vel, mas se transformou na arte do microscópio. Isso da mídia do que os debates de qualidade,
ocorreu por sua incapacidade de se ater aos problemas muitas vezes também presentes.22
estruturais e pelo exagero da importância dada a ques-
tões triviais, encorajada por um sistema midiático fora Incidentalismo: bom termo. Os números falam
de controle, que, fiel à lógica de mercado, acabou prefe- por si mesmos. Ao longo dos últimos anos, os nú-
rindo dar destaque a conflitos fúteis em vez de analisar os meros de questões orais e escritas, de monções ou de
problemas reais, particularmente em períodos de queda discussões de urgência no parlamento dos Países-Bai-
no ibope. Resumindo: o capricho reina como jamais rei- xos dispararam, juntamente com a audiência dos talk
nou. O Parlamento dos Países-Baixos resolveu investigar
a questão em 2009. A comissão parlamentar responsável
chegou às seguintes conclusões no seu relatório: 21  Incidentalisme, no original. Trata-se de um neologismo para
dar a ideia de incidente, percalço. (N.T.).
Os políticos querem fazer pontos no ibope 22  Câmara dos Deputados dos Países-Baixos, Vertrouwen en-
para serem reeleitos. Fazem de tudo para zelfvertrouwen. Parlementaire zelfreflectie 2007-2009, v. 31845, n.
chegar ao pódio, usam as mídias e propa- 2-3, 2008-9, pp. 38-9.

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shows com conteúdo político na televisão, já que o ticos tem um título revelador: Encontrar e manter fiel.24
parlamentar precisa de ibope. «Os deputados não can- O manter fiel não é fácil, pois o talento político se
sam de usar termos como ‘indignado’, ‘chocado’, ‘muito queima mais rápido do que antes. Herman van Rom-
surpreso negativamente’», nota um dos responsáveis puy, presidente do Conselho Europeu, disse recen-
pelo relatório. «No século XIX havia juristas demais na temente a respeito do tema: «As nossas democracias
Câmara dos Deputados; hoje, há juristas de menos».23 ‘usam’ as pessoas em um ritmo alucinante. Temos que
Se dar ibope passa a interferir na gestão pública, prestar atenção para não usar a própria democracia da
se a febre em se reeleger vira uma doença crônica, se mesma maneira».25
os compromissos políticos são vistos como traição, se Aqui está o cerne da crise de eficiência: a demo-
a política partidária desperta sistematicamente des- cracia foi pouco a pouco perdendo os dentes ao mes-
prezo e se o exercício do poder acaba em punição se- mo tempo que devorava seus próprios filhos. Em vez
vera nas eleições seguintes, qual motivo tem um jo- de mastigar discretamente no seu cantinho, com ver-
vem idealista para entrar na política? O Parlamento gonha de seus defeitos, sem ter muito poder de ação, o
está anêmico. É cada vez mais difícil recrutar jovens político de hoje deve se expor — as eleições e a mídia
entusiastas, um efeito colateral da crise de eficiência. A não lhe deixam escolha —, de preferência levantado
política está caindo na mesma vala do ensino: antiga- o punho, abrindo a boca e o flanco, para dar boa im-
mente era vista como uma atividade nobre, mas hoje é pressão de energia e força. Ao menos ele crê nisso. Em
motivo de escárnio da nação. Uma brochura neerlan-
desa dedicada ao recrutamento de novos talentos polí-
24  Hansje Galesloot, Vinden en vasthouden. Werving van politiek
en bestuurlijk talent, Amsterdam, 2005.

25  Herman van Rompuy, «Over stilte en leiderschap», conferên-


23  Idem, p. 34. cia feita em Turnhout em 7 de jun. 2013, www.destillekempen.be.

42 43
vez de reconhecer com humildade as mudanças nas
relações de poder e buscar novas formas de governar,
que façam sentido, o político é obrigado a continuar
a jogar a partida midiático-eleitoral, frequentemente
contra sua vontade e a do cidadão, que começa a se
cansar do espetáculo: toda essa histeria, exagerada e
artificial, não é capaz de restaurar a confiança. A crise
de eficiência só agrava a crise de legitimidade.
O resultado está aí. Os sintomas da doença de
que sofre a democracia ocidental são tão numerosos
quanto vagos, mas se colocamos juntos o abstencio-
nismo, a instabilidade eleitoral, a hemorragia dos par-
tidos, a impotência administrativa, a paralisia política,
o medo das eleições, a penúria no recrutamento, o de-
sejo compulsivo de aparecer, a febre eleitoral crônica,
o estresse midiático extenuante, a desconfiança, a in-
diferença e outras convalescências vemos se desenhar
uma síndrome, a síndrome da fadiga democrática, ain-
da não estudada sistematicamente, mas que inegavel-
mente afeta inúmeras democracias ocidentais. Veja-
mos quais são os diagnósticos já existentes.

44
II. DIAGNÓSTICOS eles, os governantes atuais pertencem a uma elite, uma
casta totalmente desconectada das necessidades e das
aflições da população. Não é de espantar, portanto, a
situação caótica em que se encontra a democracia!
As análises existentes que tentam diagnosticar a Esse discurso todo mundo conhece na Europa,
síndrome da fadiga democrática são quatro: é culpa está na boca tanto de velhos populistas, como Silvio
dos políticos, é culpa da democracia, é culpa da demo- Berlusconi, Geert Wilders e Marine Le Pen, quanto
cracia representativa e uma variante bem especifica: é dos novos, como Beppe Grillo na Itália e Norbert Ho-
culpa da democracia eleitoral-representativa. Tratarei fer na Áustria, e de partidos como Jobbik (Hungria),
delas nessa ordem. Verdadeiros Finlandeses e Aurora Dourada (Grécia).
No mundo de língua inglesa, assistimos ao surgimen-
to de figuras como Nigel Farrage e, sobretudo, Donald
A culpa é dos políticos: o diagnóstico do populismo Trump. O remédio que propõem para a síndrome da
fadiga democrática é muito simples: melhor represen-
Os políticos são carreiristas, saqueadores, para- tação nacional, ou melhor, uma representação popular
sitas, aproveitadores fora da realidade, não têm ne- mais popular, de preferência aumentando considera-
nhuma noção sobre a vida das pessoas e era melhor velmente os votos nos seus partidos populistas. O diri-
que desaparecessem da face da terra — todo mundo gente desse tipo de partido se apresenta como alguém
conhece essas acusações. Os populistas repetem essas do povo, porta-voz da vontade popular, encarnação
fórmulas à exaustão. Pelo diagnóstico deles, a crise da do senso comum. Diferentemente de seus adversários,
democracia deve-se, antes de tudo, à desonestidade ele afirma estar ao lado dos homens e das mulheres
das pessoas que estão atualmente no poder. Segundo do povo. Ele reproduz o que eles pensam e sabe o que

46 47
deve ser feito. O político populista é do povo, essa é O populismo, consequentemente, não é um ca-
sua retórica. minho promissor para uma democracia doente. Não
Que isso é história para boi dormir todo mun- quer dizer, porém, que, como o remédio não é bom,
do sabe. Não existe um sentido único para a ideia de o diagnóstico não tem elementos válidos.1 Há de fato
«povo» (toda sociedade é composta de diferentes ele- um problema de representatividade; nesse ponto os
mentos), não existe sentimento popular, e senso comum populistas têm razão. O número de pessoas com di-
é algo altamente ideológico. Trata-se de uma ideologia ploma de ensino superior nos Parlamentos é tão ab-
que se recusa a ver si mesma como tal, um jardim zoo- surdamente desmesurado que podemos chamar de
lógico que está convencido de ser um terreno baldio. democracia de diplomados.2 É um problema tam-
A ideia de que é possível se fundir organicamente na bém referente ao recrutamento de parlamentares. O
massa, impregnar-se de seus valores e comungar per- sociólogo J. A. A. van Doorn observa que se antes os
feita e conscientemente suas aspirações, deflagra uma parlamentares, eram eleitos por «representar algum
forma de misticismo, não de política. Não existe ne- setor da sociedade», hoje, ao contrário, também entre
nhuma corrente subjacente, é puro marketing. os populistas, existem cada vez mais «profissionais da
Os populistas são empresários da política que lu- política, frequentemente jovens mais ambiciosos do
tam para abocanhar a maior parte possível do mercado,
usando um pouco de kitsch romântico quando necessá-
rio. Se chegarem ao poder, não se sabe muito bem como 1  Em um ensaio anterior, Pleidooi voor populisme (Amsterdam,
2008), eu não pedia o fim do populismo, mais um populismo um
serão as relações deles com aqueles que não concordam pouco melhor. Ele sempre exprime de forma caricatural o desejo
com eles, pois a democracia é o poder da maioria res- das massas menos instruídas de dar sua contribuição política à
sociedade.
peitando a minoria — caso contrário ela degenera na
famigerada «ditadura da maioria», o que é ainda pior. 2  Mark Bovens e Anchrit Wille, Diplomademocratie. Over de
spanning tussen meritocratie en democratie, Amsterdam, 2011.

48 49
que experientes. E é apenas porque os elegemos que tação parlamentar. Os populistas querem combater a
eles representarão algum setor da sociedade quando».3 síndrome da fadiga democrática de maneira enérgica:
Ainda mais problemática é a tendência em encarar a com uma transfusão de sangue, a mais completa pos-
atividade parlamentar como uma perspectiva profis- sível. Sangue novo no Parlamento! E o resto virá por si
sional interessante, um plano de carreira, e não como só. Os céticos se perguntam se a solução é realmente
um serviço temporário oferecido à comunidade du- eficaz. Seremos melhor guiados se trocarmos os pilo-
rante alguns anos. Em alguns casos, passa de pai para tos? O problema, para eles, não é de pessoal, mas da
filho. Em Flandres existem algumas «dinastias demo- democracia em si.
cráticas»: a segunda geração das famílias De Croo, De
Gucht, De Clercq, Van den Bossche e Tobback já está
na ativa. Um nome conhecido é mais fácil de ser elei- A culpa é da democracia:
to, «enquanto certos nomes desconhecidos não con- o diagnóstico da tecnocracia
seguem se eleger nem mesmo para a Câmara de Ve-
readores», como me confessou em privado um antigo A morosidade e a complexidade das tomadas de
político do primeiro escalão. decisões na democracia fazem com que alguns duvi-
Reduzir o populismo a uma forma de antipolítica dem da democracia em si. Face aos desafios colossais e
parece-me intelectualmente desonesto. O populismo, urgentes gerados pela crise do euro, por exemplo, bus-
apesar de tudo, tenta lutar contra a crise da democracia cam-se sistemas mais eficientes. A tecnocracia aparece
através da legitimidade e do incremento da represen- então como solução rápida. Em uma tecnocracia, a
gestão da coisa pública é confiada a especialistas, que
com sua competência permitem ao país navegar em
3  Citado no Conselho de Administração Pública, Vertrouwen op
democratie, Haia, 2010, p. 38.
águas agitadas sem naufragar. Os tecnocratas são ges-

50 51
tores que entram no lugar dos políticos: não precisam tos como pessoas competentes, capazes e indiferentes
se preocupar com as eleições, têm tempo para pensar ao poder. Para muitos, são melhores do que os gover-
em medidas de longo prazo e podem anunciar medi- nantes atuais.»5
das antipopulares. Em suas mãos, a política se trans- O discurso tecnocrata de hoje se funda em gran-
forma em questão de engenharia cívica, de «gestão de de parte no pensamento «pós-político» dos anos no-
problemas». venta. A época da terceira via política (Third Way po-
Pensa-se frequentemente na tecnocracia como litics), o novo centro (die Neue Mitte) e a coabitação
uma brincadeira da elite (do mundo dos negócios) (la cohabitation), em que se acreditava nas diferenças
preocupada que os negócios andem bem. O populis- ideológicas como sendo coisa do passado. Depois de
mo para o povo, a tecnocracia para a elite? Longe dis- décadas de divisão, esquerda e direita andavam de
so. Um estudo nos Estados Unidos mostra que pessoas mãos dadas. As soluções estavam à disposição, di-
comuns estão dispostas a entregar o poder sem muita zia-se, bastava serem colocadas em prática; era uma
hesitação a especialistas ou empresários não eleitos: «o questão apenas de «boa administração». Disputas
povo prefere confiar o poder a alguém que não o quer ideológicas foram substituídas pelo princípio «tina»:
do que a alguém que o quer», escrevem os autores There is no alternative. Estavam estabelecidos os fun-
do influente livro Stealth Democracy4. A maioria dos damentos da tecnocracia.
cidadãos quer que a democracia seja como um bom- Os exemplos mais óbvios de tecnocracia foram
daeiro Stealth: invisível e eficiente. «Os empresários verificados recentemente em países como Grécia e
de sucesso e os especialistas independentes, mesmo
quando não são necessariamente empáticos, são vis-
5  John R. Hibbing e Elizabeth Theiss-Morse, Smpenhar-se ema-
do. the Citzens Assembly on Electoral Reformy)tealth Democra-
cy: Americans’ Beliefs about How Government Should Work. Cam-
4  Democracia furtiva. bridge, 2002, p. 156.

52 53
Itália, onde nos últimos anos, governantes não eleitos bancos centrais e das cortes constitucionais, por exem-
comandaram o país. Loukas Papadimos governou de plo, fortaleceu-se consideravelmente. As autoridades
11 de novembro de 2011 a 17 de maio de 2012; Mario julgaram como medidas cruciais os controles monetá-
Monti, de 16 de novembro de 2011 a 21 de dezembro rio e constitucional para frear os partidos e não correr
de 2012. Esses especialistas em economia financeira riscos nos processos eleitorais.
(um banqueiro e um professor universitário de eco- Isso é ruim? Não há dúvida de que um governo
nomia) eram vistos, no ponto crucial da crise, como a tecnocrata pode obter bons resultados: o «milagre eco-
grande carta na manga. nômico» chinês é o melhor exemplo disso. E um Pri-
Mas a tecnocracia também atua em áreas menos meiro-ministro como Mario Monti foi muito melhor
visíveis. Nos últimos anos, grande parte do poder dos administrador público do que foi Silvio Berlusconi.
Parlamentos nacionais foi transferido para institui- Mas eficácia não gera automaticamente legitimidade.
ções transnacionais como o Banco Central Europeu, A confiança em um tecnocrata derrete como neve ao
a Comissão Europeia, o Banco Mundial e o fmi. Elas sol, basta ele fazer cortes no orçamento. Nas eleições
não foram eleitas democraticamente e têm caráter presidenciais de fevereiro de 2013, Monti teve apenas
puramente tecnocrata nas tomadas de decisões. Ban- 10% dos votos. E a China tem seus próprios métodos
queiros, economistas e analistas financeiros dançam para reprimir o descontentamento com o governo.
conforme a música. Não adianta fazer da tecnocracia um tabu, é na-
Isso não vale apenas para as organizações inter- tural que Estados recém-nascidos comecem por uma
nacionais. Todo Estado-nação moderno adquiriu ca- tecnocracia. A Quinta República de Charles de Gaul-
racterísticas da tecnocracia a partir do momento em le, em 1958, e o Kosovo, em 2008: quando nascem, os
que retirou atribuições da democracia do espaço de- Estados nem têm uma legitimidade democrática. Du-
mocrático para colocar em outro lugar. O poder dos rante a fase de transição que se segue a uma revolução,

54 55
o poder acaba sempre nas mãos de uma elite não elei- A culpa é da democracia representativa:
ta. É necessário organizar eleições ou um referendo o o diagnóstico da democracia direta
mais rápido possível, para que não baixem os níveis
de confiança e se estabeleça uma legitimidade a pos- Em 2 de agosto de 2011, havia uma dúzia de pes-
teriori. No curto prazo, uma tecnocracia pode dar um soas sentadas em círculo no parque Bowling Green, em
novo impulso; no longo prazo, porém, não é viável. Nova York.6 Esse dia ficou marcado como o ponto alto
Democracia não é somente um governo para o povo, de um dos episódios mais espantosos da história nor-
mas também um governo do povo. te-americana recente. Durante as semanas e os meses
Os tecnocratas fazem o contrário dos populis- precedentes, democratas e republicanos não entraram
tas. Tentam curar a síndrome da fadiga democrática em acordo sobre o aumento do teto da dívida norte-
colocando a eficiência acima da legitimidade, com a -americana.7 Os democratas queriam que o governo
esperança de que bons resultados na administração fizesse mais empréstimos junto ao mercado de capital
pública resolvam a questão. Ou seja: na esperança de internacional para garantir o funcionamento do país,
que eficiência gere espontaneamente legitimidade. os republicanos não queriam dar o consentimento a
Pode funcionar, claro, mas política é mais do que a es- menos que Obama fizesse cortes drásticos no orça-
colha de um bom administrador. Cedo ou tarde será mento, prejudicando os mais necessitados. Aguçados
necessário fazer escolhas morais, o que exige consulta pelo Tea Party, os republicanos não arredavam o pé:
popular. A questão é: como se deve dar essa consulta?
No parlamento, seria a resposta mais comum. Mas é
ainda o parlamento o local onde está representada a 6  Sarah van Gelder (Org.), This Changes Everything: Occupy
Wall Street and the 99% Movement, San Francisco, 2011, p.18.
vontade popular? Muitos se colocam essa questão, que
nos leva ao terceiro diagnóstico. 7  Para uma excelente análise, Tom Vandyck. “‘Compromis’, een
nieuw vuil woord, De Morgen, 11 jul. 2001, p. 13.

56 57
primeiro os cortes, depois o acordo. Os democratas, bons e legítimos, mas não estão acima dos interesses
que julgavam mais justo aumentar minimamente os do Estado. No fim, os democratas cederam e os repu-
impostos dos mais ricos do que fazer cortes draconia- blicanos triunfaram. Estava-se já em plena campanha
nos que afetariam os mais necessitados, não queriam presidencial de 2012.
ceder à chantagem dos republicanos. Afinal, o aumen- A dúzia de pessoas no parque de Bowling Green
to da dívida norte-americana não era consequência da estava farta de tudo aquilo. Essa disputa delirante en-
aventura insensata no Iraque em que os republicanos tre dois partidos tinha quase colocado toda a econo-
haviam metido o país? mia mundial em crise. O Congresso ainda era o lu-
O debate bloqueava tudo e se aproximava o dia gar em que os eleitos serviam ao interesse geral? Ou a
em que governo norte-americano deveria pagar as fa- Câmara dos Deputados e o Senado Federal eram uma
turas e os salários: 2 de agosto de 2011, calculava-se. creche onde os partidos brincavam de especular e cor-
A situação lembrava aquilo que no ciclismo se chama rer riscos? Uma das pessoas presentes no parque era
a surplace ou standstill do ciclismo, momento em que uma artista grega que vivia em Nova York.8 Ela não
dois adversários avançam em equilíbrio imóvel até a estava lá apenas para protestar, mas para utilizar um
linha final. Se não fizerem nada, serão inevitavelmente método que havia visto em Atenas: uma «assembleia
alcançados pelo pelotão de trás. Uma grande recessão geral» a céu aberto, em que os passantes que quises-
econômica assolava os Estados Unidos. Ameaçava-se sem podiam se aproximar e tomar a palavra. Em tal
uma crise mundial, pois, se os cofres públicos da maior general assembly, os pontos de vistas favoráveis e des-
economia mundial ficassem vazios, o mundo inteiro favoráveis eram examinados e o grupo, em conjunto,
iria para o buraco. As tensões eram tão grandes que procurava chegar a um consenso. Essa experiência de
a China tecnocrata pediu à democracia norte-ameri-
cana que não extrapolasse: interesses partidários são
8  Idem.

58 59
democracia igualitária e direta como alternativa às deira dos 99%: nossos representantes não
querelas da democracia representativa funcionou de estão nos representando.10

modo particularmente contagiante. A assembleia do


Bowling Green foi aumentando ao longo das semanas Os ocupantes que no outono de 2011 acampa-
e dos meses seguintes. Nascera Occupy Wall Street. ram durante semanas no parque Zuccotti inspiraram-
A referência a Wall Street e o slogan «we are the -se nos manifestantes da praça Tahrir no Cairo e da
99%” levaram a crer que o movimento visava atacar Puerta del Sol em Madri. A assembleia geral acontecia
questões econômicas, quando na verdade o grande duas vezes por dia. Era uma espécie de Parlamento
descontentamento era com a democracia representa- fora do Parlamento, um fórum político sem partidos
tiva, motivo principal do protesto.9 Um dos partici- políticos, em que os cidadãos podiam apresentar li-
pantes afirmou: vremente suas propostas e discuti-las, sem ter de pas-
sar por representantes eleitos. A general assembly era
No Congresso dizem que o objetivo co- o ponto central do movimento e desenvolveu rapida-
mum é servir o povo norte-americano, mente seu próprio arsenal de rituais. A mais notável
mas na verdade trata-se de luta entre dois
partidos políticos pelo poder. Nossos re- era o people’s mic ou o megafone popular: como era
presentantes eleitos […] representam ape- proibido o uso de amplificadores, tudo se desenvolvia
nas os interesses dos partidos políticos e acusticamente, sem meios técnicos, mesmo quando a
da elite econômica que enche seus cofres
na campanha eleitoral — tudo está clara- assembleia reunia centenas de participantes. Quando
mente invertido. Essa é a principal ban-

10  Lenny Flank (Org.), Voices From the 99 Percent: An Oral His-
9  Lars Mensel, «Dissatisfaction makes me hopeful», entrevista tory of the Occupy Wall Street Movement, St. Petesburg, Flórida,
com Michael Hardt, The European, 15 abr. 2013. 2011, p. 91

60 61
alguém tomava a palavra, os que estavam próximos Em outras regiões do mundo ocidental, as pes-
repetiam a frase para os que estavam mais afastados, soas saíram às ruas pedindo uma democracia melhor.
que, por sua vez, repetiam para os demais, e isso su- Na Espanha, o movimento dos Indignados ganhou
cessivamente, até chegar à última fileira de pessoas. grandes proporções, tendo como slogan ¡Democra-
Respondia-se estar de acordo ou não e solicitavam- cia real ya!. Na praça Sintagma, em Atenas, dezenas
-se mais explicações fazendo gestos com as mãos. A de milhares de gregos dirigiram-se à porta do Parla-
assembleia não tinha presidente, chefe de grupo ou mento exigindo uma democracia verdadeira. Pessoas
porta-voz, no máximo alguns animadores do deba- acamparam diante da Bolsa de Berlage, em Amster-
te que zelavam pelo bom funcionamento da reunião. dã, da Bolsa de Londres e do Banco Central Europeu,
Horizontalidade era a palavra. em Frankfurt. Na Alemanha os Wutbürger [cidadãos
Assim surgiram no dia 23 de setembro os Princi- furiosos] protestaram contra a nova estação de Stut-
ples of Solidarity [Princípios de solidariedade], primeiro tgart, os voos noturnos em Frankfurt, a terceira pista
documento oficial do movimento. O primeiro princí- de aterrissagem em Munique e o transporte ferro-
pio não tratava do capitalismo-cassino, da globalização, viário de lixo atômico. O termo Wutbürger foi esco-
dos lucros ou da crise bancária, mas da democracia. lhido como palavra do ano em 2010 na Alemanha.
Como resposta ao sentimento de exclusão política, no Na Bélgica, eu contribui para a formação do g1000,
topo da lista lia-se: «empenhar-se em uma democracia iniciativa visando estimular maior participação dos
direta, transparente e participativa» (Engaging in direct cidadãos nas tomadas de decisões políticas. No ci-
and transparent participatory democracy).11 berespaço, viu-se o surgimento dos Anônimos e do
Partido dos Piratas.
A revista Time, em dezembro de 2011, elegeu o
11  Sarah van Gelder (ed.), 2011: This Changes Everything: Occu- manifestante como a personalidade do ano. A Escola
py Wall Street and the 99% Movement. San Francisco, 25.

62 63
de Economia de Londres, pouco tempo depois, publi- Para boa parte daqueles que participaram dos
cou um volumoso estudo internacional sobre a emer- protestos o diagnóstico é claro: constata-se a sín-
gência súbita dessa «política subterrânea» na Europa. drome da fadiga democrática na atual democracia
Suas conclusões são bastante importantes: representativa, com suas estruturas e rituais apo-
drecidos. Eles concordam com os tecnocratas que
A conclusão mais importante da nossa a democracia atual tem falhas, porém não querem
pesquisa é a de que todos esses diferentes
substituí-la (como propõem os tecnocratas), mas
protestos, ações, campanhas e iniciativas
têm em comum uma profunda frustração melhorá-la. Como? Certamente não através de no-
com relação à política formal tal como é vos parlamentares (como defendem os populistas).
exercida hoje. As palavras «angry» (raiva),
Uma transfusão de sangue não pode curar um corpo
indignado ou desiludido exprimem essa
frustração. […] A população alemã sofreu doente, acreditam. Além disso, não aderem ao culto
bem menos com as medidas de austerida- da personalidade, como os populistas: é uma forma
de do que a dos outros países da Europa.
muito vertical de representação, que nada mais é do
[…] Entretanto, vê-se na Alemanha, como
em todos os outros países europeus, o que outra maneira de delegar poder. Então, como fa-
surgimento da política subterrânea. Isso zer? A eficiência dos tecnocratas tampouco os agra-
prova que os protestos não visam apenas
da. Seus modos particulares de atuação mostram
os cortes orçamentários, mas também a
questão política.12 que, ao contrário dos tecnocratas, estão mais preo-
cupados com a legitimidade do que com a rapidez
dos resultados.
Ao se observar mais de perto, vê-se que Occupy
12  Mary Kaldor e Sabine Selchow, «The ‘bubbling up’ of sub- Wall Street e os Indignados são movimentos forte-
terranean politics in Europe», London School of Economics and mente antiparlamentares. «Nossos representantes não
Political Science, jun. 2012, p. 10.

64 65
estão nos representando», é a palavra de ordem em os Indignados saíram pelas ruas de Bruxelas, ban-
Nova York. Em Madri dizem: deiras de partidos políticos, e mesmo de sindicatos
não eram bem-vindas. Para eles, todos fazem parte
Na Espanha, grande parte da classe polí- do sistema.
tica não nos escuta. Os políticos deveriam A última vez que se tinha visto um movimento
ouvir nossa voz e fazer com que a parti-
cipação política dos cidadãos seja efetiva antiparlamentarista dessa envergadura na Europa foi
para beneficiar toda a sociedade, em vez durante o período entreguerras. Como a Primeira
de se preocupar em enriquecer e prospe- Guerra Mundial e a crise dos anos vinte eram frequen-
rar às nossas custas, tendo olhos apenas
para a ditadura dos grandes poderes eco- temente vistas como consequência dos excessos da de-
nômicos. mocracia burguesa do século xix, três líderes se apode-
raram do Parlamento. Seus nomes: Lênin, Mussolini e
Hitler. Muitas vezes se esquece, mas fascismo e comu-
Manifestantes do Occupy e dos Indignados são
nismo eram, na origem, tentativas de revitalização da
ávidos por adjetivos: nova democracia, democracia
democracia: com o fechamento do Parlamento, o povo
profunda (deep democracy), horizontal, direta, par-
e o líder se entenderiam melhor (fascismo) ou o povo
ticipativa, democracia guiada pelo consenso (con-
governaria diretamente (comunismo). O fascismo de-
sensus-driven democracy), ou seja, verdadeira demo-
generou rapidamente em totalitarismo, enquanto o
cracia (true democracy). A seus olhos, Parlamentos e
comunismo buscou novas formas de decisão coletiva.
partidos não fazem mais sentido. Em vez do conflito,
Vale a pena resgatar Lênin da poeira do esquecimen-
propõem o consenso; em vez do voto, a consulta; em
to. Em seu famoso livro Estado e revolução, escrito
vez de querelas teatrais, a escuta respeitosa. Recusam
em 1917, ele defende a supressão do Parlamento. «No
chefes, não têm reivindicações concretas, descon-
Parlamento não se faz nada além de tagarelar, com o
fiam do apoio dos movimentos existentes. Quando

66 67
único objetivo de engabelar o povo». Suas palavras Não é de espantar que alguns participantes do mo-
a respeito das eleições enquadram-se perfeitamente vimento Occupy tenham comparado os acontecimen-
nos movimentos de Nova York e de Madri: «Decidir tos do Zuccotti Park à Comuna de Paris: a retórica ilude
periodicamente qual líder da classe dirigente calçará até os ponderados.14 Porém, um movimento tão violen-
os sapatos do povo para esmagá-lo no Parlamento tamente contra o sistema parlamentar, que ignora a his-
durante alguns anos é a verdadeira essência do Par- tória e recusa-se a refletir sobre uma alternativa válida,
lamento burguês». Para desenvolver uma alternativa, demonstra não apenas falta de estratégia, mas também
ele se inspirou na Comuna de Paris de 1871 (a palavra absoluta insensatez. Eles querem realmente colocar o
«comunismo» inclusive deriva daí): modelo atual em xeque? E como será no futuro? Quais
são as garantias de igualdade e liberdade? Como evitar
Para combater o Parlamento corrupto da que as coisas se degenerem? Não basta ser simpático
sociedade burguesa, podre da cabeça aos e diferente diante de uma tarefa tão crucial como a de
pés, a Comuna estabeleceu organismos em
que a liberdade de opinião e de debate não propor um modelo de aperfeiçoamento. O grande filó-
degenerasse em trapaça. […] Os organis- sofo francês da democracia Pierre Rosanvallon lançou,
mos representativos permaneciam, mas o com razão, um aviso: «Quando se tenta reforçar a de-
parlamentarismo como sistema especial,
como divisão do poder entre legislativo mocracia, ela pode se voltar contra si e se tornar totali-
e executivo, como situação privilegiada tária, como aconteceu na União Soviética».15
para os deputados, deixava de existir.13

14  Chris Hedges e Joe Sacco, Days of Destruction, Days of Revolt,


Nova York, 2012, p. 232.
13  Lênin, O Estado e a revolução: doutrina marxista sobre o Esta-
do e as tarefas do proletariado na revolução, São Paulo, Boitempo, 15  Pierre Rosanvallon, Democratie en tegendemocratie, Amster-
2017. dam, 2012, p. 54.

68 69
Quando falou aos manifestantes do Occupy em O sociólogo neerlandês Willem Schinkel comple-
Nova York, o filósofo esloveno Slavoj Zizek pediu tou: «Occupy é, em certo sentido, a simulação de uma
que não se apaixonassem por si mesmos. Infelizmen- resistência ideológica. O desejo de uma contraideolo-
te não adiantou. Em um ensaio avassalador, o jorna- gia era fundamental no movimento, muito mais do que
lista norte-americano Thomas Frank descreve como uma verdadeira contraideologia».17
o movimento se perdeu no culto à participação e à Occupy evidenciava um mal-estar mais do que
«democracia direta», e como ela virou um fim em si apresentava uma solução. O diagnóstico da democra-
mesmo: cia representativa estava correto, mas a alternativa era
muito fraca. Os participantes das general assemblies
Estabelecer uma cultura de luta democrá- tiveram certamente experiências marcantes e praze-
tica é certamente válido para a militância rosas. O sentimento de pertencer a uma comunidade
política, mas é somente o ponto de parti-
da. O Occupy Wall Street não foi além des- que delibera com calma e de forma adulta pode ser
se ponto; não impulsionou uma greve, não muito entusiasmante. As virtudes civis nunca pode-
bloqueou nenhum centro de recrutamen- rão ser plenamente exercidas, ainda mais quando o
to nem mesmo invadiu a sala do reitor de
uma universidade. Para seus militantes, a Parlamento e a mídia deixam de dar o bom exemplo.
cultura horizontal era o ponto mais alto da Não foi examinado, contudo, como as coisas extrapo-
luta. «O processo é a mensagem», diziam laram, nem as etapas percorridas durante todo o pro-
em coro os manifestantes.16
cesso. Stephane Hessel, diplomata e herói da Resistên-
cia francesa, autor do panfleto Indignai-vos, que deu

16  Thomas Frank, «To the Precinct Station. How theory met 17  Willem Schinkel, De nieuwe democratie: Naar andere vormen
practice… and drove it absolutely crazy», The Baffler, n. 21, 2012. van politiek, Amsterdam, 2012, p. 168.

70 71
nome ao movimento dos Indignados, chama a atenção partidos locais19. Nos Países-Baixos, o g500 tentou se
para o fato de que uma indignação sem engajamento infiltrar de maneira astuta nos partidos políticos e no
não basta e é preciso tentar realmente influenciar os Parlamento20. Na Itália, o Movimento Cinco Estrelas,
governantes: «Não se deve engajar à margem, mas no de Beppe Grillo, tornou-se o terceiro maior partido
coração do poder».18 do país21.
Os três remédios que expus até o momento pa- O que chama a atenção nesses movimentos neo-
recem-me muito perigosos: o populismo é perigo- parlamentaristas é que querem aperfeiçoar a democra-
so para a minoria; a tecnocracia é perigosa para a cia representativa através de novas formas de partici-
maioria; e o antiparlamentarismo é perigoso para a pação. O Partido Pirata passou de uma plataforma de
liberdade. militantes lutando por direitos digitais a uma corrente
Nos últimos anos, porém, surgiram também al- política que pretende enriquecer a democracia repre-
guns movimentos na Europa que não se contentaram sentativa com a democracia direta.22 No caso do g500,
apenas com manifestações simbólicas à margem. Eles mais de quinhentos jovens neerlandeses tornaram-se,
buscavam «o coração do poder», e podem ser cha- de uma hora para outra, membros dos três grandes
mados de «neoparlamentaristas». Um exemplo é o
Partido Pirata que apareceu na Suécia e na Alemanha
19  Christoph Mielke, The German Pirate Party: Populists with
em 2006 e tornou-se virtualmente, em pouco tem- Internet access or a game-changer for German Politics?, em apco/
Forum, 2012, www.apcoworldwide.com/forum
po, a terceira força, atrás somente dos dois maiores
20  http://www.g500.nl.

21  Fiona Ehlers et al., «Europe’s lost generation finds its voice»,
SpiegelOnline, 13 mar. 2013.

18  Stéphane Hessel, À nous de jouer: Appel aux indignés de cette 22  Entre outros, através do seu software de feedback líquido e de
Terre, Paris, 2013, p. 63. sua noção de democracia «delegativa».

72 73
partidos de centro para poder influenciar seus pro- depois caiu na vala comum. Conquistar o poder no
gramas. Posteriormente, convidaram os eleitores para, Parlamento não dá direito a um mandato na mídia.
através do Stembreker,23 fazer com que suas vozes ti- Tem-se quatro anos para se familiarizar com o cargo
vessem mais peso e estivessem unidas nas estratégias de deputado, mas logo depois da eleição é preciso
de votação. A ideia era a mesma: mais participação, falar no rádio e ter audiência, pronunciando pala-
tanto nos programas partidários quanto na formação vras positivas e tendo bom conhecimento dos temas
das alianças políticas. Apesar da retórica populista do em discussão, como se o político não tivesse mais
seu líder, o Movimento Cinco Estrelas quer melhor nada para fazer na vida. Amadorismo é legal, des-
representação popular através do estabelecimento de de que não se seja amador. Antes mesmo de expor
novas regras: ficha limpa, nada de cargos vitalícios e suas ideias, já se está excluído. Talentos e ideais são
limite de dois mandatos. O objetivo é permitir que um consumidos rapidamente. Os novos movimentos
número maior de cidadãos comuns participe das de- merecem consideração por não virarem as costas ao
cisões políticas. Parlamento, mas, em uma sociedade de percepção
O que se deve notar também nessas três inicia- como a nossa, não basta, de modo algum, vencer as
tivas é que, depois de um início meteórico e com eleições.
grande repercussão na mídia, o entusiasmo suscita- Sim, a síndrome da fadiga democrática nasce
do no público e na imprensa declinou rapidamente. da fraqueza da democracia representativa, mas nem
O que no início era novo e estonteante alguns meses o antiparlamentarismo nem o neoparlamentarismo
conseguirão reverter a situação. Nenhum deles explo-
rou a fundo a ideia de representação. Um abandonou
23  Algo como «Voz ativa», site da internet que oferece a opor-
tunidade de se exprimir diretamente sobre as propostas políticas a ideia e o outro ainda crê nela, mas ambos partem
dos diversos partidos, com o objetivo de permitir que cada cida- do princípio de representação como representação
dão tenha sua voz ouvida e possivelmente atendida. (N.T.)

74 75
popular em um órgão de discussão formal, desasso- ciente eleitoral e do sistema de contagem dos votos,
ciado das eleições. Vejamos agora essa hipótese com com ampliação desse direito. Os pais não deveriam
mais atenção. também ter o direito de voto para os filhos menores,
garantindo assim escolhas de longo prazo? Deve-se
dar a oportunidade de se votar em mais de um par-
A culpa é da democracia representativa eleitoral: tido diminuindo assim a «partidocracia»? Devem-se
um novo diagnóstico prever referendos concomitantemente às eleições de
pessoas?
Nos últimos anos foram propostas inúmeras Todas essas propostas são úteis e muitas vezes
sugestões para melhorar a democracia representati- necessárias, mas, mesmo que sejam colocadas em
va e resgatar seu glamour. A maioria delas propõe prática, não resolverão completamente o problema,
mudanças nas regras do jogo. Os funcionários pú- pois a síndrome da fadiga democrática não é conse-
blicos, por exemplo, não devem exercer atividade quência da democracia representativa em si, mas de
remunerada no setor privado paralelamente e preci- uma variante específica: a democracia representativa
sam tornar públicos os seus rendimentos e o seu pa- eletiva, que estabelece a representação popular por
trimônio. Propõem-se também novas regras para os meio de eleições. Alguns esclarecimentos fazem-se
partidos: financiamento transparente, respeitar con- necessários.
dições mais restritas para receber subvenções, man- As palavras «eleições» e «democracia» torna-
ter as contas abertas ao público. Novas regras para ram-se sinônimos para quase todo mundo. Estamos
o processo eleitoral: eleições nacionais, regionais e convencidos de que a única maneira de ser represen-
europeias unificadas para proporcionar um período tado é através da voz das urnas. Ela aparece inclusive
de calma nas disputas políticas, mudança do coefi- na Declaração Universal dos Direitos dos Homens,

76 77
de 1948: «A vontade do povo é o fundamento da au- convicção inabalável de que não existe democra-
toridade dos poderes públicos; essa vontade deve ser cia sem eleições, de que as eleições são a condição
expressa através de eleições honestas e periódicas». necessária e fundamental para se poder falar em
A formulação «deve ser expressa» é particularmente democracia. Os fundamentalistas eleitorais recu-
sintomática, do nosso modo de entender. Quem diz sam ver as eleições como um método para o exer-
democracia, diz eleições. Mas não é curioso que um cício da democracia; consideram-nas um fim em si
documento tão geral — o documento jurídico mais mesmo, um princípio sagrado de valor intrínseco
universal da história da humanidade — indique com e inalienável.
tanta precisão o modo como a vontade popular deve Essa crença cega na voz das urnas como o mais
ser expressa? Não é estranho que um documento su- alto baluarte da soberania popular é ainda mais for-
mário sobre os direitos humanos (com menos de 2 te na diplomacia internacional.24 Quando os países
mil palavras no total) dê tanta importância ao modo ocidentais doam alguma coisa, esperando que países
como a tese deve funcionar na prática, como se um duramente castigados como Congo, Iraque, Afega-
projeto de lei de saúde pública inclui-se receitas culi- nistão ou Timor Leste se democratizem, eles querem
nárias? Tem-se a impressão de que, para os autores eleições gerais, preferivelmente segundo o modelo
do texto de 1948, o próprio método tornou-se um ocidental: cabine de votação, cédulas e urnas, par-
direito fundamental. Como se o procedimento fosse, tidos políticos, campanha eleitoral, coalizões de go-
em si, sagrado. verno, lista de candidatos, tribunais eleitorais e lacres
Essa é a causa fundamental da síndrome da
fadiga democrática: tornamo-nos fundamentalis-
tas eleitorais. Desprezamos os eleitos, mas venera- 24  David van Reybrouck, «De democratie in ademnood: de ge-
mos as eleições. O fundamentalismo eleitoral é a varen van electoraal fundamentalisme», Cleveringarede, Univer-
sidade de Leiden, 20 nov. 2011.

78 79
nas urnas a serem escrutinizadas. Ou seja, tudo como Mas e se a montagem do produto falhar? E se o
no Ocidente, mas lá longe. Enviamos verbas a esses produto não for adequado? E se ele se desmontar sozi-
países. As instituições democratas e protodemocra- nho? A culpa é do cliente que não soube montar, não
tas locais (conselhos de cidadezinhas e vilarejos, me- do fabricante distante.
diações comunitária, justiça baseada nos costumes) O fato de que eleições em Estados frágeis podem
não têm nenhuma chance: mesmo se feitas de modo desencadear violência, conflito étnico, criminalidade,
válido, coletiva e pacificamente, as arcas do tesouro corrupção etc. parece secundário. Assim como o de
param de chegar se os países não adotam nossa recei- que eleições não produzem automaticamente a de-
ta comprovada — mais ou menos como a medicina mocratização e podem, inclusive, freá-la e reduzi-la a
tradicional, que deve ser descartada com a chegada zero, é comodamente esquecido. Não. Todos os países
da medicina ocidental. do mundo devem ir às urnas periodicamente, não im-
Quando se vê as recomendações dos países doa- porta os eventuais efeitos colaterais. Nosso fundamen-
dores, parece que a democracia é um produto de ex- talismo eleitoral toma forma de uma nova evangeliza-
portação: pré-fabricado, embalado cuidadosamente, ção mundial. As eleições são o sacramento dessa nova
pronto para envio. A democracia se transforma em religião, em que a forma dos rituais é mais importante
um kit «faça você mesmo25 eleições livres e justas», do que seu conteúdo.
que o destinatário deve montar onde se encontra, se- *
guindo as instruções do manual.
Essa obssesão pelas eleições é realmente estra-
nha: faz quase 3 mil anos que a humanidade expe-
25  Ikea, no original, empresa sueca de móveis e objetos para casa rimenta a democracia, e apenas duzentos que se faz
e escritório «faça você mesmo», não presente por hora no merca- exclusivamente através de eleições. Entretanto, julga-
do brasileiro. (N.T).

80 81
mos ser o único método válido. Por quê? A força do não existiam partidos, não havia lei de sufrágio uni-
hábito tem um papel importante, sem dúvida, mas versal, mídia comercial ou redes sociais. Pior ainda:
existe outro motivo fundamental: ninguém pode os idealizadores da democracia representativa eletiva
negar que o sistema de eleições funcionou muito não podiam imaginar que, em menos de um século,
bem nos últimos dois séculos. Mesmo com algumas surgiriam novidades do tipo. A Figura 1 mostra como
óbvias exceções, as eleições tornaram a democracia o panorama político mudou desde então.
possível, organizando a difícil busca por um equilí-
brio crível entre requisitos contraditórios como efi-
ciência e legitimidade. Figura 1: As eleições em perspectiva histórica: as gran-
Esquece-se, contudo, que as eleições surgiram des etapas do sistema eleitoral representativo nas democra-
cias ocidentais
em um contexto totalmente diferente daquele em
que devem ser aplicadas hoje. Os fundamentalistas, Antes de 1800
em geral, têm pouca noção de história: partem do
poder Soberano Do período feudal à
princípio de que seus dogmas são sempre válidos. Os época absolutista, co-
manda a aristocracia.
fundamentalistas das eleições também pouco conhe- O poder pertence ao
cem da história da democracia. É uma ortodoxia sem soberano. Atribui-se
sua autoridade à ori-
retrospecção. gem divina. Com con-
massa
selheiros nobres (ca-
valeiros, membros da
Por isso, uma retrospectiva se faz necessária. corte), ele dita as leis.
Não há esfera pública.
Quando os participantes da Revolução Norte-Ame-
ricana e da Francesa propunham as eleições como
instrumento para se conhecer a «vontade popular»,

82 83
1800 1920-1940

Poder A Revolução Ame- A crise econômica do


ricana e a Francesa Poder período entreguerras
limitam o poder da coloca a democracia
Esfera aristocracia e instau- Esfera representativa em al-
pública ram eleições para dar pública ta-tensão. Caem dis-
voz à soberania popu- juntores aqui e acolá.
massa lar. A autoridade não Massa Experimentam-se no-
massas não emancipadas vem mais do alto, mas vos modelos políticos:
de baixo. O direito a o fascismo e o comu-
voto é ainda restrito à Crise nismo sendo os princi-
elite. O debate público pais deles.
acontece, sobretudo,
nos jornais.

1870-1920 1950

governo Duas evoluções cru- governo A democracia repre-


poder Parlamento ciais por toda parte: Poder parlamento sentativa é surpreen-
surgimento de par- dentemente reestabe-
tidos políticos e ins- partidos lecida. O poder está
esfera Esfera
pública partidos tauração do sufrágio pública organismos nas mãos dos grandes
universal. As eleições intermediários partidos políticos. O
massa tornam-se uma luta Massa povo contato com o cidadão
entre grupos com inte- é feito através de uma
massa com direito a voto resses divergentes que série de organismos
procuram representar intermediários (sin-
a maior fatia da popu- dicatos, corporações,
lação possível. em alguns casos es-
tabelecimentos de ensino e mídias privadas). Há grande fidelidade
partidária e os resultados das urnas são previsíveis. A mídia (rádio e
televisão) pertence ao Estado.

84 85
1980-2000
Houve um tempo na Europa em que não exis-
governo
parlamento tiam cidadãos, apenas súditos. Da Idade Média até
Dois desenvolvimen-
Poder partidos tos decisivos: desfa- o final do século xviii — generalizamos para não
zem-se os organis-
Esfera mídia mos intermediários
nos deter demasiadamente nesse período —, o po-
pública comercial
e a mídia comercial der pertencia a um soberano. (As repúblicas de Ho-
ganha poder. O siste-
Massa ma eleitoral torna-se landa, Florença e Veneza são exceções à regra.) Em
instável. À medida
que a esfera pública
seu palácio, sua fortaleza ou seu castelo, o soberano,
se preenche com atores do setor privado (a mídia pública também eventualmente auxiliado por nobres ou conselheiros,
adota a lógica do mercado), deteriora-se a fidelidade partidária. Os
partidos políticos não são mais os principais representantes da so- decidia como governar seu território. Suas decisões
ciedade civil, e sim meros órgãos da periferia do aparelho do Es- eram anunciadas nas praças por um mensageiro, para
tado. As eleições transformam-se em uma disputa midiática para
conquistar eleitores (indecisos). quem quisesse ouvir. Essa rua de mão única determi-
2000-2020 nava a relação entre o poder e a massa, e foi assim do
governo feudalismo ao absolutismo.
parlamento As redes sociais e a cri-
se econômica colocam No fim do século, porém, surgiu a chamada
Poder partidos
a democracia repre-
sentativa novamente
«esfera pública», para usar o termo e a teoria do so-
Esfera mídia
pública comercial sob pressão. A nova ciólogo alemão Jürgen Habermas. Os súditos opuse-
tecnologia traz auto-
nomia, mas coloca o ram-se à relação de cima para baixo e reuniram-se
Massa redes
sociais jogo eleitoral sob ainda em praça pública para discutir a situação. O século
mais pressão: a campa-
nha eleitoral tornou-se xviii, época do despotismo esclarecido, foi um gran-
Crise permanente. O exer-
cício do poder sofre de catalisador, e Habermas mostrou como surgiram
de febre eleitoral, sua credibilidade está sempre à prova. A partir de
2008, a crise financeira joga mais lenha na fogueira. Prosperam o po-
os lugares em que as pessoas podiam debater ques-
pulismo, a tecnocracia e o antiparlamentarismo. tões públicas. Nos grandes cafés da Europa central,

86 87
nas Tischgemeinschaften26 alemãs, nos restaurantes um grupo com as mesmas convicções, como os car-
franceses, nas public houses na Grã-Bretanha — dis- diais. Na política, ele deveria, do mesmo modo, favo-
cutiam-se questões públicas por toda parte. A esfera recer a unanimidade na escolha das pessoas que eram
pública formou-se através de novas instituições como consideradas as melhores entre seus pares. Para um
os cafés, os teatros e as óperas, mas, sobretudo, através cidadão do início do século xxi, isso exige poder ima-
da invenção singular dessa época: o jornal. A emanci- ginativo: as eleições não foram sempre uma máquina
pação que foi germinada no Renascimento brotou em de querelas, tendo sido introduzidas para promover
grupos cada vez maiores. Nasceu o cidadão. a concórdia! O espaço público por excelência, o lu-
A Revolução Norte-Americana, em 1776, e a gar onde se podia falar em completa liberdade para
Francesa, em 1789, foram o apogeu: uma população defender o interesse comum, chamava-se Parlamen-
revoltada pôs abaixo o jugo das Coroas britânica e to. Edmund Burke afirmou: «o Parlamento não é um
francesa e decidiu que não seria mais o rei, e sim o congresso de embaixadores com interesses divergen-
povo, o soberano. E encontrou-se uma forma para tes e hostis […], o Parlamento é a assembleia delibe-
ouvir a voz popular (ou pelo menos a voz da burgue- rativa de uma única nação, com um interesse único: o
sia, porque o direito de voto era bastante limitado): da coletividade»28. Jean-Jacques Rousseau, com quem
as eleições, procedimento que até então era utilizado Edmund Burke discordava em muitos pontos, tinha
principalmente na escolha dos novos papa.27 O voto a mesma opinião: «Quanto maior for o consenso nas
era tido como um meio de obter a unanimidade em assembleias, ou seja, quanto mais próximo se chegar
da unanimidade, mais dominante será a vontade ge-

26  Reuniões em volta da mesa.

27  Pierre Rosanvallon, La légitimité démocratique, Paris, 2008, 28  Edmund Burke, pronunciamento aos eleitores de Bristol, 1774,
p. 42. press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch13s7.htlm.

88 89
ral; mas os longos debates, as diferenças de opiniões e Os partidos políticos surgiram depois de 1850.
os tumultos indicam interesses particulares e declínio Claro que antes existiam grupos em conflitos nas jo-
do Estado»29. O parlamentarismo era a resposta para vens democracias: entre a população da cidade e do
a burguesia do século xviii ao absolutismo do Antigo campo, entre os ricos com dinheiro e os ricos com
Regime. Representava uma forma de democracia re- propriedades, entre liberais e católicos, entre federa-
presentativa indireta. O «povo» (lê-se: a elite burgue- listas e antifederalistas. Mas somente no final do sécu-
sa) escolhia seus representantes, e eles que deveriam lo xix esses grupos tornaram-se organizações formais
defender o interesse público no Parlamento. Eleições, e sólidas. Não eram partidos de massa, mas «partidos
representação popular e liberdade de imprensa anda- de quadro» com ambições de poder e poucos mem-
vam de mãos dadas. bros. Isso, porém, mudou depressa. De completamen-
Nos dois séculos seguintes, o método do século te ignorados pelas constituições nacionais, passaram a
xviii sofreu cinco mudanças estruturais: surgiram os serem os principais atores da cena política. O Partido
partidos políticos, introduziu-se o sufrágio universal, Socialista, por exemplo, tornou-se, com a industriali-
cresceu a sociedade civil organizada, as mídias comer- zação, o principal defensor do sufrágio universal. Sua
ciais dominaram o espaço público e as redes sociais introdução (em 1917 na Bélgica e nos Países-Baixos,
apareceram para fazer mais do que se esperava. O con- em 1918 no Reino Unido – ainda que somente para
texto econômico obviamente tem influência conside- os homens) significou uma transformação estrutural
rável: em tempo de crise, o entusiasmo democrático no sistema eleitoral: as eleições se transformariam em
diminui (o entreguerras, nossa época); em tempo de luta entre grupos de interesses divergentes numa mes-
prosperidade, aumenta. ma sociedade, tentando obter apoio da maior parte
possível do eleitorado. Pensadas no início como um
mecanismo para favorecer a unanimidade, tinham se
29  Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, l. iv, cap. ii.

90 91
transformado em verdadeiras arenas onde os candi- administrativos, tempo de rádio e televisão e conces-
datos digladiavam. Iniciava-se o choque dos partidos. sões privadas. Isso resultou em um sistema extrema-
Depois da Primeira Guerra Mundial, o amor pela mente estável, com fidelidade partidária e comporta-
democracia eleitoral esfriou. A crise econômica dos anos mento eleitoral previsível.
vinte e trinta fez diminuir o apoio popular. Os modelos O equilíbrio terminou com o pensamento neoli-
antiparlamentares autoritários ganharam popularida- beral, que, a partir dos anos oitenta e noventa, trans-
de em toda a Europa. Ninguém poderia imaginar que formou radicalmente o espaço público. Não era mais
depois do desastre mundial de 1940-45, a democracia a sociedade civil, e sim as leis do mercado que dariam
ganharia uma segunda vida, mas o trauma da guerra e a as cartas — em vários domínios da vida pública, em
enorme prosperidade dos anos cinquenta e sessenta fi- particular na mídia. Jornais partidários desapareceram
zeram com que muitas pessoas no Ocidente se mostras- ou foram comprados por grupos de mídia, surgiram
sem favoráveis à reintrodução do sistema parlamentar. novos canais de televisão comercias e mesmo os canais
Nos anos do pós-guerra, os partidos políticos públicos renderam-se às leis do mercado. Houve uma
dominaram a cena política. Eles tinham o Estado nas verdadeira explosão na mídia. A importância dos índi-
mãos. Através de uma rede de organismos interme- ces de audiência na televisão e no rádio e o número de
diários (sindicatos, corporações, instituições de saúde leitores na imprensa escrita ganharam importância des-
pública e de ensino, mídia privada), conseguiam apro- proporcional, tornando-se a cotação diária da opinião
ximar-se do dia a dia dos cidadãos. A esfera pública pública. As mídias comerciais revelaram-se os princi-
pertencia em grande parte à sociedade organizada. O pais fabricantes de consenso social. A sociedade civil,
Estado era o proprietário majoritário das mais impor- ao contrário, perdeu bastante terreno — pelo fato de
tantes e recentes redes de rádio e televisão, mas os par- sindicatos e instituições de saúde começarem também
tidos tinha direito à palavra sob a forma de mandatos a adotar o modelo de mercado ou dos poderes públi-

92 93
cos preferirem se dirigir diretamente ao cidadão, sem diz o teórico norte-americano Michael Hardt. «Elei-
intermediação de associações sociais. A consequência ções não passam de um concurso de beleza pra gente
é óbvia: o cidadão virou consumidor e as urnas, uma feia»31 é a piada que circula na internet.
aventura. Seguramente, quando os partidos recebem O sociólogo britânico Collin Crouch criou em
financiamento e subvenções públicas (com frequência 2004 o termo «pós-democracia» para descrever esse
para coibir o perigo de corrupção), veem-se cada vez sistema de controle da mídia de massa:
menos como organizações intermediárias entre a massa
e o poder, e instalam-se na periferia do aparato estatal.
Para poder permanecer, deveriam (e devem) se apre- Ainda que o modelo atual de eleições
sentar aos eleitores no período eleitoral para abastecer funcione bem e seja capaz de proporcio-
nar a alternância de poder, o debate elei-
sua legitimidade. As eleições transformam-se em um toral transformou-se em um espetáculo
combate midiático acalorado para ganhar a preferên- cuidadosamente controlado, gerenciado
cia do eleitor. As paixões violentas que se desencadeiam por equipes de especialistas em técnicas
de persuasão; espetáculo com número
na população nesse período escondem um sentimen- limitado de temas abordados, escolhidos
to bem mais profundo, uma irritação crescente contra previamente pelas equipes. A maioria
tudo o que se assemelhe à política. «Deve ser muito dos cidadãos tem papel passivo, cordato e
mesmo apático, limitando-se a reagir con-
difícil encontrar alguém na face da terra que não se forme os sinais de comando dados. Atrás
tenha tornado cínico diante do espetáculo midiático e das cortinas cessa a encenação, a política
comercial que nos é apresentado durante as eleições»30, real ganha forma nos contatos discretos
entre os governos eleitos e as elites, que re-

30  Lars Mensel, «Dissatisfaction makes me hopeful», entrevista 31  Elections are just a beauty contest for ugly people, em inglês, no
com Michael Hardt, The European, 15 abr. 2013. original em neerlandês. (N.T)

94 95
presentam, principalmente, os interesses ascensão e do declínio da sociedade civil organiza-
do mundo dos negócios.32 da e da tomada do poder pelas mídias comerciais,
apareceu ainda algo totalmente novo no início do
A Itália de Berlusconi é sem dúvida o melhor século xxi: as redes sociais. O termo «social» é bas-
exemplo de Estado pós-democrático, mas mesmo an- tante enganador: Facebook, Twitter, Instagram, Fli-
tes já havíamos visto outros exemplos indo nessa dire- ckr, Tumblr e Pinterest são mídias comerciais tanto
ção. O cidadão do final do século xx parece com o do quanto cnn, fox ou Euronews, com a diferença de
século xix. Conforme a sociedade civil perdeu espaço, que seus proprietários não querem que o público
criou-se novamente um abismo entre o Estado e o in- olhe ou ouça, mas escreva e compartilhe. Seu objeti-
divíduo. As instâncias canalizadoras desapareceram. vo principal é mantê-lo o maior tempo possível em
Quem ainda é capaz de unir as diferenças dos indiví- seu site, porque é bom para os anunciantes. Daí a
duos? Quem ainda é capaz de traduzir as aspirações importância de «amigos» ou «seguidores», a dinâmi-
da base em propostas para o topo? Quem ainda distila ca viciante do «curtir» e do «retuitar», as mensagens
o tumulto para transformá-lo em ideias claras? O ter- permanentes sobre o que se está fazendo, quem você
mo «individualismo» tornou-se pejorativo, como se o conhece e quais sãos os assuntos do momento, os
cidadão fosse culpado pelo desaparecimento das es- trending topics.
truturas coletivas. Mas o que aconteceu é o seguinte: o As redes sociais são mídias comerciais com di-
povo virou novamente massa e o coro, uma cacofonia. nâmica própria. Enquanto o cidadão dos anos 2000
Além disso, depois do surgimento dos partidos podia seguir os acontecimentos políticos quase ins-
políticos, da introdução do sufrágio universal, da tantaneamente pelo rádio, pela televisão ou pela inter-
net, hoje ele pode também reagir no segundo seguinte
aos fatos e mobilizar os demais. A cultura da infor-
32  Colin Crouch, Post-Democracy, Cambridge, 2004, p. 4.

96 97
mação direta ganhou ainda a interação instantânea. políticos esforçam-se, com maior ou menor sucesso,
A cacofonia aumentou. O trabalho da pessoa públi- em dar o tom. Os políticos mais populares são aque-
ca, em particular o político eleito, não é facilitado: ele les que conseguem mudar o roteiro e reenquadrar o
não apenas vê instantaneamente se suas propostas são debate, ou seja, que são capazes de dar uma pitada
bem aceitas pelos cidadãos, mas também o número pessoal. Há espaço para improvisação, e isso tem um
de pessoas que podem ser mobilizadas por elas. Essa nome: atualidade.
nova tecnologia traz nova autonomia (Mubarak e Ben Na imprensa escrita, as coisas são ainda mais in-
Ali pode falar alguma coisa a respeito), mas essa nova trincadas. Os jornais perdem leitores e os partidos es-
autonomia intensifica ainda mais as rachaduras do sis- vaziam-se: os velhos atores da democracia tornaram-
tema eleitoral. -se, no início do século xxi, náufragos que se agarram
Mídias comerciais e redes sociais reforçam-se uns aos outros gritando, sem perceber que estão afun-
mutuamente. Como tomam e repercutem constante- dando todos juntos. A imprensa livre é bem menos li-
mente as notícias umas das outras, instaura-se uma vre do que ela pensa, prisioneira de formatos, tiragens,
atmosfera permanente de campanha difamatória. A acionários e do frenesi imposto.
concorrência feroz, a perda de anunciantes e a dimi- Seu futuro é duvidoso. Por consequência da his-
nuição das vendas também trouxeram, cada vez com teria coletiva das mídias comerciais, das redes sociais
mais virulência, grandes problemas para as mídias e dos partidos políticos, a febre eleitoral tornou-se
comercias, compostas de redações cada vez menores, permanente. Isso traz graves problemas para o fun-
jovens e baratas. Para o rádio e a televisão, a política cionamento da democracia: a eficiência é baseada em
nacional tornou-se uma novela cotidiana, um teatro cálculos eleitorais; a legitimidade, na necessidade per-
com atores voluntários. As redações determinam, manente de aparecer. O sistema eleitoral vai minando
em certo sentido, o cenário, o script, o elenco, e os o longo termo e o interesse geral em detrimento do

98 99
curto termo e dos interesses partidários. As eleições, melhor solução seria confiná-los a cada quatro ou cin-
que sempre foram aquilo que tornava possível a de- co anos em uma cabine de votação, onde devem esco-
mocracia, nessas circunstâncias a enfraquecem e a de- lher na penumbra do isolamento não entre ideias, mas
terioram. Eleição virou sinônimo de enrolação33. entre uma lista de nomes divulgada durante meses em
E para dar o tiro de misericórdia no sistema vie- ritmo frenético de campanha publicitária? Será que os
ram a crise financeira de 2008 e as crises econômicas e cidadãos iam se interessar por isso? E ousaríamos ain-
monetárias que se seguiram jogaram ainda mais lenha da chamar esse ritual estranho e arcaico de «o grande
na fogueira. O populismo, a tecnocracia e o antiparla- momento da democracia?»
mentarismo inflamaram-se. O momento não se asse- Reduzimos a democracia à democracia represen-
melha ainda aos anos trinta, mas as semelhanças com tativa, e a democracia representativa às eleições, de
os anos vintes são cada vez mais evidentes. modo que um sistema válido entrou em xeque. Pela
* primeira vez desde a Revolução Norte-Americana e a
Francesa, o peso das eleições seguintes é sempre maior
Se os Pais Fundadores dos Estados Unidos e que o das anteriores. É uma transformação espanto-
os heróis da Revolução Francesa soubessem em que sa. Vencer nas urnas não é nada mais do que obter
contexto seu método deveria ser aplicado duzentos e um mandato provisório. Rema-se com remos cada
cinquenta anos depois, eles teriam concebido outro vez menores. A democracia é frágil e vive sua maior
modelo. Se tivéssemos que elaborar hoje um proce- fragilidade desde a Segunda Guerra Mundial. Se não
dimento para descobrir a vontade popular, será que a prestarmos atenção, ela vai se transformar em uma di-
tadura das eleições.
Não há nada de surpreendente nesse proces-
33  Procurou-se reproduzir o jogo de palavras do original, so. Quantas descobertas do final do século xviii são
«Verkiezing wordt verzieking». (N.T)

100 101
ainda válidas no início do século xxi? A diligência? drástica nas relações de força. Grandes empresas so-
O balão? A caixa de rapé? Por mais simplista que lidamente estabelecidas são constrangidas a ceder a
seja a conclusão, é preciso admitir: as eleições estão alguns poucos clientes descontentes.34 As ditaduras,
obsoletas. Uma democracia que se limita a isso está que pareciam inabaláveis, não controlam mais as
condenada à morte. Na verdade, é como se reser- massas, que se organizam através das redes sociais.
vássemos o espaço para os balões sem nos importar Os partidos políticos não representam mais as vozes
com os cabos de alta-tensão, os voos panorâmicos, da rua, sendo destruídos por elas. O modelo clás-
as novas mudanças climáticas, os tornados e as esta- sico e patriarcal que utilizam os partidos para de-
ções espaciais. fenderem seus interesses não funciona numa época
A emancipação transforma o mundo. Quem em que os cidadãos são cada vez mais emancipados.
dita as regras? Essa é a questão crucial. Até a inven- A democracia representativa é essencialmente um
ção da impressão, a Europa estava nas mãos de al- modelo vertical, mas o século xxi torna-se cada vez
gumas centenas de pessoas: o clero, os príncipes e mais horizontal. O acadêmico neerlandês em gestão
os reis decidiam quais textos podiam ser copiados de transição, Jan Rotmans disse recentemente: «Va-
ou não. A impressão, de repente, deu a milhares mos do centro para a periferia, do vertical para o
de pessoas esse poder de decisão. A criação de Gu- horizontal e do alto para o baixo, do baixo para o
tenberg determinou o declínio da antiga autoridade alto. Foi preciso mais de um século para construir
e permitiu a transição da Idade Média para o Renas- essa sociedade central, de cima para baixo, vertical.
cimento. Com o surgimento das redes sociais, todo Esse modo de pensar está na berlinda. Temos muito
mundo hoje é um Gutenberg! E, mais ainda, todo
mundo teu seu próprio índex. O cidadão não é mais
leitor, mas redator-chefe, o que traz uma mudança 34  Marc Michils, Open boek. Over eerlijke reclame in een trans-
parante wereld. Leuven, 2011, pp. 100-1.

102 103
a aprender e desaprender. O maior obstáculo está na
nossa cabeça».35
As eleições são o combustível fóssil da política:
antes davam enorme estimulo à democracia, como
o petróleo à economia, mas agora criam problemas
novos e colossais. Ameaça-nos uma crise enorme do
sistema, se não refletirmos urgentemente sobre a na-
tureza de nosso combustível democrático. Em tempos
de depressão econômica, sistema midiático instigado
e transformações culturais rápidas, continuar a pren-
der-se exclusivamente às eleições é sepultar delibera-
damente a democracia.
Como chegamos a esse ponto?

35  Jan de Zutter, «Het zijn de burgers die aan het stuur zitten «,
entrevista com Jan Rotmans. Sampol, 2013, pp. 20, 23-4.

104
III. PATOGÊNESE Em uma segunda-feira de manhã, antes de come-
çar a aula, um colega apareceu, todo orgulhoso, com
algumas pedrinhas na mão. Ele havia passado o fim de
Um procedimento democrático: semana em Berlim, para celebrar. O Muro havia caído
sorteio (Antiguidade e Renascimento) poucos dias antes. O futuro arqueólogo tivera um mo-
mento de lucidez em meio a tanta bebedeira, e havia
O professor Verdin foi um dos acadêmicos mais trazido aqueles restos de cimento.
fascinantes que conheci. Durantes meus primeiros Verdin — ele só tinha sobrenome — deveria nos
anos na Universidade, segui seus cursos de meto- falar a respeito das instituições atenienses do século
dologia histórica, uma disciplina enfadonha, porém V a.C. O século de Péricles, a cidade-Estado grega, o
necessária, e de história da Grécia. Em seus cursos nascimento da democracia: aprenderíamos qual era a
semanais, Verdin expunha-nos, em tom de voz afá- gloriosa tradição de que a Alemanha Oriental logo ia
vel, a civilização minoica, o sistema político de Es- fazer parte.
parta, a ascensão da frota ateniense e as conquistas de Mas o mundo do qual o professor trataria esta-
Alexandre, o Grande. Era um professor literalmente va milhas de distância do mundo que víamos ao vivo
das antigas. Slides e transparências não faziam seu na televisão. Eu guardei minhas anotações do curso.
tipo, e o PowerPoint nem existia. Estava acostumado «Objetivo: igualdade política», leio nos meus papéis
a falar maravilhosamente por duas horas. De terno escritos a mão. Mais abaixo: «mas apenas entre os ci-
e gravata, óculos fundo de garra e cabelos grisalhos. dadãos, uma reduzida minoria, não para toda a po-
Verdin era erudito, eloquente, humano. Era o outono pulação». Também guardei a lembrança de uma leve
de 1989, e eu tinha acabado de iniciar meus estudos decepção. Berlim inteira exultava no frio, wir sind das
em arqueologia. Volk [nós somos o povo], mas na Atenas antiga quase

106 107
ninguém desses enjaquetados teria direito à participa- Oligarquização: termo típico de Verdin.
ção. «Ao empregar o termo ‘democratização’», via-se O mais estranho, porém, não era isso. «Terceiro,
nas anotações de Verdin, «não se deve jamais perder todas as funções eram atribuídas por sorteio, inclusive
de vista uma característica essencial da polis, ou seja, a de magistrado». Quase dei um pulo. Eu não tinha
a exclusividade dos direitos cívicos.» As mulheres, os direito de voto antes de completar dezoito anos. Em
estrangeiros, os menores e os escravos não contavam. breve votaria pela primeira vez no partido e nas pes-
Havia coisas ainda mais estranhas. Os três prin- soas que mereciam minha confiança. Na teoria pare-
cipais órgãos da cidade eram a assembleia popular, o cia bonita a concepção ateniense de igualdade, mas eu
Conselho dos Quinhentos e o tribunal do povo, con- queria viver na democracia da loteria que Verdin esta-
tava Verdin. Todo cidadão podia participar, mas havia va começando a esmiuçar? Pior ainda: era isso que os
três aspectos que «não podemos subestimar», dizia em alemães orientais que foram às ruas lutar por eleições
tom solene. livres queriam?
«Primeiro, a participação dos cidadãos era direta. O sorteio tinha suas vantagens, dizia Verdin, com
Ao contrário do sistema atual, em que a representação tranquilidade. «O objetivo era neutralizar a influência
popular é uma tarefa para especialistas. Hoje, apenas pessoal. Em Roma, onde isso não existia, havia inúme-
o júri popular pode ser exercido por pessoas comuns. ros escândalos de corrupção. Além disso, em Atenas,
Segundo, as decisões mais importantes eram feitas as funções eram atribuídas por um ano, e o escolhido
pela massa. A Eclésia, ou assembleia popular, reunia em geral não podia ser reeleito. Os cidadãos se reve-
milhares de pessoas; a Helieia, ou tribunal popular, era zavam em funções de todos os níveis. Queria-se que
composta de 6 mil membros. Isso tudo é contrário ao o maior número possível de pessoas participasse para
nosso sistema atual, em que se nota certa oligarquiza- promover, assim, a igualdade. Sorteio e rotação esta-
ção da democracia.» vam no centro do sistema democrático ateniense».

108 109
Eu hesitava entre entusiasmo e ceticismo. Eu po- públicas discutindo a construção de um novo tem-
deria confiar num grupo de pessoas sorteadas e não plo ou a escavação de um poço. Essa época pode ser
eleitas? Como diabos isso funcionaria? Como evitar o fonte de inspiração para o mundo agitado de hoje?
amadorismo? As pedrinhas do Muro de Berlim ardiam em nossas
«O sistema ateniense era mais pragmático do que mãos inquietas.
dogmático», dizia Verdin, «ele não é baseado na teo- Vasculhei recentemente meus arquivos do cur-
ria, mas na prática. O sorteio, por exemplo, não era so do professor Verdin — acabei descobrindo que
utilizado para funções no alto escalão militar e finan- ele se chamava Herman. Se nossa síndrome da fa-
ceiro. Nesses casos, havia eleição e a rotação não era diga democrática é causada efetivamente pela de-
obrigatória. Os mais competentes podiam ser esco- mocracia representativa de hoje, se nossa crise re-
lhidos. Alguém como Péricles poderia, desse modo, duziu a democracia a um mero procedimento, se as
ser eleito e reeleito como estrategista durante catorze eleições são mais um retrocesso do que um avanço
anos. O princípio de igualdade dava lugar ao princípio para a democracia, então pode ser útil examinar o
de segurança. Mas isso se aplicava somente à minoria que foi introduzido no passado para aprimorar a
com mandatos governamentais.» democracia.
Entristecido, porém, mais instruído, deixei a Não sou o único interessado nisso. Nos últimos
sala de aula. O berço mítico da nossa democracia re- anos, o mundo acadêmico se debruçou cada vez mais
velava-se, no fim das contas, um sistema arcaico com pela história do nosso sistema atual. A obra Princípios
procedimentos caquéticos. Sorteio e rotação eram do governo representativo1 do cientista político francês,
aplicáveis em pequenas cidades-Estados da Antigui-
dade, período em que os homens vestiam sandálias
e túnicas e podiam passar o dia inteiro nas praças 1  De suma importância para a renovação no interesse pela de-
mocracia ateniense foi a tradução para o inglês da obra-prima

110 111
Bernard Manin, publicada em 1995, abriu novas pers- Na esteira do brilhante estudo de Manin surgiram
pectivas. Só a primeira frase do livro já é bombástica: outros livros sobre o assunto.3 Esses estudos recentes
«As democracias contemporâneas nasceram de formas mostram que a democracia atual é resultado de um
de governo que seus fundadores consideravam não de- apanhado de circunstâncias decorrentes dos últimos
mocráticas». Manin foi o primeiro a pesquisar porque dois séculos, e trazem um olhar renovado com relação
se deu tanta importância às eleições. Ele buscou o fio aos séculos anteriores, para mostrar que outras formas
condutor que levou a Revolução Norte-americana e a de democracia teriam sido possíveis.
Francesa a escolherem o sistema representativo. E achou: Então o que existia antes da Revoluçãoões Nor-
acabar com o tumulto da democracia! «O governo re- te-americana e da Francesa? Em diversos lugares na
presentativo foi instituído com plena consciência de que Antiguidade e no Renascimento parece que o sorteio
os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidadãos tinha muita importância.
ilustres, de classe social distinta dos eleitores.» Há um Na Atenas clássica dos séculos v a.C. e iv a.C., as
reflexo aristocrático no fundamento da democracia con- vagas dos órgãos governamentais eram preenchidas
temporânea. A conclusão incomum e abrangente é de através de sorteio: o Conselho dos Quinhentos (Bulé),
que o sistema representativo que conhecemos atualmen- o tribunal popular (Helieia) e quase todas as magis-
te «tem, ao mesmo tempo, traços democráticos e não de- traturas (arkhai). O Conselho dos Quinhentos era o
mocráticos».2 Voltarei a esse tema. órgão central do governo na democracia ateniense: ele
preparava a agenda da assembleia popular (Eclésia),
do clássico dinamarquês The Athenian Democracy in the Age of
controlava as finanças, os serviços públicos e os ma-
Demosthenes (Oxford, 1991), de M. H. Hansen. Temos de agra-
decer por sua análise original e extremamente minuciosa em seis
volumes das fontes a partir do século iv a.c. 2012, pp. 125, 306.

2  Bernard Manin, Principes du gouvernement représentatif, Paris, 3  Ver Referências Bibliográficas.

112 113
gistrados, e era o responsável pelas relações diplomá- sorteados ou eleitos, a executavam. O Conselho dos
ticas com as nações vizinhas. Para resumir, cidadãos Quinhentos controlava o poder executivo e o tribunal
sorteados estavam no centro nevrálgico do poder. popular, o judiciário.
Além disso, dos setecentos magistrados existentes, Um traço importante da democracia atenien-
seiscentos eram escolhidos por sorteio. O tribunal po- se era a grande rotação dos mandatos: era-se jurado
pular sorteava, todas as manhãs, cem jurados entre os somente por um dia e membro do conselho ou ma-
seiscentos cidadãos inscritos. Para tanto, utilizava-se a gistrado por apenas um ano (com salário). Podia-se
kleroterion, uma superfície de pedra bem grande com ser membro do conselho no máximo por duas vezes,
perfurações em cinco colunas, divididas por grupo, e não consecutivas. Qualquer cidadão que se julgava
onde os candidatos a jurado inseriam uma plaqui- capaz de exercer um cargo público tinha o direito de
nha com seu nome. Dispunham-se bolinhas coloridas apresentar a própria candidatura. Isso incentivava a
numa caixinha colocada na vertical junto à pedra, com participação: entre 50% e 70% dos cidadãos com mais
cada cor correspondendo a uma linha de nomes de de trinta anos foram membros do conselho por pelo
jurados no kleroterion. As cores sorteadas indicavam menos uma vez.
os nomes dos jurados participantes. Era como lançar
dados para fazer a justiça, uma roleta para distribuir o
poder judiciário.
O sorteio era utilizado para os poderes legislati-
vo, executivo e judiciário (Figura 2). A lei era elabora-
da pelo Conselho dos Quinhentos, sorteados, e votada Figura 2a + 2b: Principais órgãos da democracia
pela assembleia popular; o tribunal popular, sorteado, ateniense (séculos v-iv a.C.) e a divisão dos poderes
examinava a legalidade da nova lei, e os magistrados, legislativo, executivo e judiciário

114 115
Cidadãos atenienses: entre 30000 e 600000 homens adultos

Assembleia popular Conselho dos Qui- Tribunal popular Magistratura


(Eclésia) nhentos (Helieia) (Arkhai)
(Boulé)
+/- 6000 cidadãos +/- 6000 membros +/- 6000 cidadãos
voluntários quinhentos membros sorteados entre os ci- voluntários
sorteados entre os dadãos; sorteio todas

116
cidadãos as manhãs entre os
cidadãos presentes

- vota as leis - redige as leis - aplica a justiça - executam as deci-


sões
- elege os funcioná- - prepara as reuniões - examina a legali-
rios do alto escalão da assembleia popular dade das decisões da
assembleia popular
- controla os
magistrados

- conduz a diplomacia

Cidadãos atenienses

Assembleia popular Conselho dos Qui- Tribunal popular Magistratura


(Eclésia) nhentos (Helieia) (arkhai)
(Boulé)
vota examina executa
elabora as leis
117

controle dos magistrados


julgamento dos cidadãos
Talvez nos surpreenda hoje que a democracia primordial da liberdade é a de, ao mesmo tempo, go-
ateniense em seu apogeu funcionasse com sorteios, vernar e ser governado».4 Uma ideia com 25 séculos de
mas, para eles, era absolutamente normal. O próprio idade, mas ainda de validade espantosa. Liberdade não
Aristóteles diz: «Um exemplo de governo democráti- é: estar sempre no poder, mas muito menos que isso:
co é o sorteio […]; oligárquica são as eleições». Ain- resignar-se com o poder. Liberdade é o equilibro entre
da que Aristóteles defendesse algo intermediário, ele autonomia e lealdade, governar e ser governado. Hoje,
deixa bem clara a diferença entre sorteio e eleições, com a «oligarquização da democracia» ainda mais
chamando só o primeiro de democrático. Encontra-se acentuada do que na época do professor Verdin, 25
essa ideia inúmeras vezes em sua obra. A propósito de anos atrás, tudo isso parece completamente esquecido.
Esparta, por exemplo, ele escreve que se trata de um A democracia ateniense é frequentemente defini-
Estado «repleto de características oligárquicas, como o da como uma democracia «direta». Verdin nos falava
fato de todos os magistrados serem eleitos e nenhum da grande assembleia popular mensal, em que milha-
ser sorteado». O sorteio para ele é realmente democrá- res de cidadãos participavam diretamente. No século
tico. Algo próprio da democracia ateniense era que, na iv a.C., era quase semanal. Mas o grosso do trabalho

prática, não havia diferença entre os políticos e os ci- era realizado pelas instituições que já conhecemos, o
dadãos, administradores e administrados, poderosos e tribunal popular, o Conselho dos Quinhentos e os ma-
súditos. A função de «político profissional» que parece gistrados. Não era todo o povo que tinha voz, mas um
completamente normal nos dias de hoje para um ate- grupo sorteado ao acaso. O povo ateniense que não
niense seria uma coisa estranha, absurda. Aristóteles era membro dessas instituições não participava direta-
propõe, de maneira muito interessante, uma relação
com a ideia de liberdade: «O princípio fundamental de
um regime democrático é a liberdade […] uma marca 4  Aristóteles, Politics, Oxford, v. 1, livro iv, parte ix; livro vi, parte
ii, 1885, pp. 124-5, 189.

118 119
mente das decisões. Concordo totalmente com as con- dia, o sistema voltou a ser utilizado. Bolonha (1245),
clusões dos estudos recentes que definem a democra- Vicenza (1264), Novara (1287) e Pisa (1307) são al-
cia ateniense não como «direta», mas como um tipo guns exemplos, mas as grandes cidades renascentis-
de democracia representativa particular não eleitoral.5 tas como Veneza (1268) e Florença (1328) estão mais
Quero, porém, dar um passo adiante. Visto que a re- bem documentadas (Figura 3).
presentação popular é feita através de sorteio, temos Tanto em Veneza como em Florença era utilizado
de falar em uma democracia representativa aleatória o sorteio, mas de modo bem diferente. Em Veneza ele
(de alea, «dado» em latim). Democracia representati- foi utilizado durante séculos para a escolha do chefe
va aleatória é uma forma indireta de governo, em que de Estado, o “Doge” (de dux, duque). A República de
a distinção entre quem governa e quem é governado Veneza não era uma democracia, mas uma oligarquia
se dá através de sorteio em vez de eleições. A história governada por algumas famílias aristocráticas pode-
política da Europa ocidental está repleta dessa forma rosas: o governo estava na mão de algumas centenas
de governo, bem mais do que se imagina. de milhares de nobres, cerca de 1% da população total.
Entre um quarto e um terço deles ocupavam pratica-
A República Romana tem ainda resquícios do mente todas as funções de administração pública. O
sistema ateniense de sorteio, mas que caiu em desu- cargo de Doge era vitalício, mas a função não era he-
so no período imperial. Apenas com o surgimento reditária, ao contrário do que acontece na monarquia.
das cidades do norte da Itália durante a Idade Mé- Para evitar o conflito entre as famílias, utilizava-se o
sorteio para se definir o novo Doge, mas, para se ter
certeza de que se tratava de uma pessoa competente
5  Terrill Bouricius, «Democracy through multi-body sortition: como chefe de Estado, realizavam-se também eleições.
Athenian lessons for the modern day», Journal of Public Delibera- O resultado era um processo incrivelmente complexo
tion, v. 9, n. 1, 2013, art. 11.

120 121
Figura 3: O sorteio como instrumento político na An-
tiguidade e no Renascimento

Atenas Veneza Florença Aragão


Kleroterion Ballotta Imborsazione (1328- Insaculación (1350-1715)
(462-322 a.C.) (1268-1797) 1530)

Objetivo Favorecer a igualdade po- • Evitar o con- Objetivo • Evitar o confli- • Favorecer a
lítica flito entre famílias nobres to entre facções rivais estabilidade
Fazer participar o maior na nomeação da autori- • Combater a
número possível de cida- dade suprema concentração de poder
dãos no governo

Para quem 30000-60000 cidadãos 600-1600 membros dos Para quem 7000-8000 cidadãos Cidadãos
(10-24% de 250000- conselhos (7-9% de 90000 habitan- (1-16% dos habitantes,
300000 habitantes) (0,6-1,2% de 100000- tes). em função da cidade)
135000 habitantes).

Sorteio Para nomeação dos Nomeação da autoridade Sorteio Para nomeação dos prin- Nomeação de:
principais órgãos gover- suprema: cipais órgãos governa- - Comitês eleitorais
namentais: - composição de comitês mentais: (como Veneza)
- Conselho dos Qui- eleitorais para a nomea- - Conselho legislativo - Chefes locais (como
nhentos ção do doge. - Governo (Signoria) Florença)
- Tribunal popular - Membros do Parlamento - Comissários governa-
(6000) nacional mentais(Cortes)
- Magistrados (600)
Como 1. Voluntariamente 1. Grande Conselho Como 1. Proposta por ofício ou 1. Proposta
2. Sorteio (com o klero- 2. 10 sorteios e eleições família 2. Cooptação
terion) alternadas 2. Cooptação 3. Sorteio
3. Prestação de contas 3. Sorteio com bolinhas 3. Sorteio
4. Seleção
Rotação um ano (máximo 2 man- Eleições e sorteio no mo- Rotação rotação rápida, sem acu- rotação rápida: um ano
datos) mento da nomeação do mulação
doge.

Eleições cargos altos: Eleições e sorteio no mo- Eleições Cooptação e eleições Cooptação e eleições
- 10 chefes do Exército mento da nomeação do para cargos altos para cargos altos
(estrategistas) doge.
- 90 altos funcionários
Orvieto, Siena, Pistoia, Zaragoza, Gerona, Tar-
Outros Mileto e Cós; Atenas Outros Perúgia, Lucca, e mesmo ragona, Huesca, Cervera,
lugares helenística e pré-romana lugares Münster e Frankfurt Ciutadella, Maiorca, Llei-
(322-31); República Ro- da, Igualada, La Mancha,
mana (Comitia Tributa). Múrcia e Extremadura

que durava cinco dias, dividido em dez fases. Inicia- e chamava o primeiro garoto entre oito e dez anos que
va-se com o conselho geral (Consiglio Grande), com- encontrava. Ele era levado à sala do conselho, onde os
posto de quinhentos membros da nobreza (o número conselheiros estavam reunidos em conclave, para ser
aumentou a partir do século xiv). Cada conselheiro o ballottino, “o garoto das bolinhas”. Suas mãos peque-
depositava na urna uma bolinha de madeira com seu nas e inocentes sorteavam os nomes dos trinta parti-
nome escrito, chamada ballotta, enquanto o conse- cipantes da reunião, seleção reduzida posteriormente
lheiro mais jovem dirigia-se à Basílica de São Marcos a nove em uma segunda rodada. Eles constituíam o

124 125
primeiro comitê. Sua função era chegar a quarenta legitimidade e eficiência ao novo eleito. Os historia-
nomes a partir dos nove: através de votação e maioria dores concordam que a extraordinária longevidade da
qualificada (na verdade, era uma forma de cooptação). estabilidade da República de Veneza, que durou mais
Os quarenta eram por sua vez reduzidos, através de de cinco séculos até sua dissolução com a invasão na-
sorteio, a doze, que votavam novamente para se che- poleônica, deve-se muito a seu engenhoso sistema de
gar a 25. O sistema estendia-se por algum tempo: o co- ballotta. Sem o sistema de sorteio, a República teria
mitê reduzia-se a cada sorteio e depois aumentava por de enfrentar muito mais disputas entre as famílias no-
votação, alternando os métodos aleatório e eleitoral. bres. (E os governos de hoje não sucumbem a tantas
Quando o comitê estava composto de 41 membros, disputas entre os partidos políticos?)
eles escolhiam finalmente o doge em conclave. Um pequeno parêntese7: a memória do sistema
O sistema veneziano parecia ridiculamente com- veneziano permanece apenas no nome. Por um des-
plicado, mas, recentemente, alguns cientistas da com- ses incríveis acasos de etimologia, em inglês, a pala-
putação demonstraram interesse nesse protocolo de vra ballot indica a cédula de votação, derivada direta-
eleição de dirigente, pois permitia a vitória do candi- mente de ballotte em italiano, as bolinhas do sorteio.
dato de fato mais popular, dando chance às minorias Em neerlandês existe a palavra balloteren, processo de
e coibindo a corrupção de eleitores. Além disso, con- eleição de um novo chefe de uma associação.
tribuía para colocar em evidência candidatos compro- Em Florença era diferente. O sorteio era co-
missados, expondo suas vantagens.6 Tudo isso dava nhecido como imborsazione [colocar na urna]. O
objetivo também era diminuir os conflitos entres as
diversas facções da cidade, mas os florentinos foram
6  Miranda Mowbray e Dieter Gollman, «Electing the Doge of
Venice: analysis of a 13th century protocol», www.hpl.hp.com/
techreports/2007/HPL-2007-28R1.pfd. 7  Pour la petite histoire, em francês, no original em neerlandês.

126 127
ainda mais além do que os venezianos. O sistema de se excluíam os nomes que, por exemplo, já tinham
sorteio não se aplicava à função de chefe do Estado, exercido mandato ou sido condenados. O processo
mas a quase todos os cargos públicos e funções admi- decorria em quatro etapas: indicação, voto, sorteio,
nistrativas. Se Veneza era uma República de famílias exclusão. Como em Atenas, era proibida a acumula-
aristocráticas, Florença era uma República dominada ção de cargos e depois de ano deixava-se o cargo. E,
pela alta burguesia e por corporações poderosas. Exa- também como em Atenas, o sistema garantia grande
tamente como entre os antigos atenienses, nas insti- participação popular: não menos de 75% dos cida-
tuições mais importantes a escolha era feita através dãos eram indicados. Os nominati não sabiam jamais
do sorteio entre os cidadãos: o governo (Signoria), se tinham passado da primeira seleção: a lista era
o conselho legislativo e os comissários governamen- secreta. Não ser escolhido para uma das milhares de
tais. A Signoria era, exatamente como o Conselho funções públicas podia indicar que não se havia sido
dos Quinhentos de Atenas, a instância executiva su- eleito ou puro azar no sorteio.
prema, responsável pela política externa, o controle Enquanto o modelo veneziano era seguido por
administrativo e a elaboração das leis. Ao contrário cidades como Parma, Ivrea, Brescia e Bolonha, o mo-
de Atenas, os cidadãos não podiam inscrever-se di- delo florentino era aplicado em Oriveto, Siena, Pistoia,
retamente, mas deveriam ser indicados por suas cor- Perúgia e Lucca. Os inúmeros e florescentes contatos
porações de oficio, sua família ou outras organiza- comerciais levaram o sistema a Frankfurt. Na Penín-
ções; eles eram os nomeados (nominati). Em seguida sula Ibérica, diversas cidades do reino de Aragão ado-
ocorria nova seleção: através de votação, decidia-se taram o procedimento, como Lleida (1386), Zaragoza
em diversas comissões de cidadãos quem eram os es- (1443), Gerona (1457) e Barcelona (1498). O sorteio
colhidos para exercer as funções públicas. Somente era chamado de la insaculación, literalmente «colo-
então se fazia o sorteio, chamado, (la tratta). Depois car no saco», tradução espanhola de imborsazione.

128 129
O objetivo também era a estabilidade e neutralidade Esse rápido panorama histórico nos ensina seis
na partilha do poder governamental. Quem obtinha lições: 1) o sorteio foi utilizado desde a Antiguidade
um mandato nas cidades ou nos vilarejos, fazia par- como instrumento político eficaz em diversos Esta-
te de comissões eleitorais e era escolhido sem confli- dos; 2) foi aplicado em áreas geográficas pequenas,
tos intermináveis, de modo rápido e neutro. Os não centros urbanos (cidade-Estado, República urbana)
escolhidos tinham sempre a esperança de conseguir onde apenas uma parte limitada da população tinha
uma vaga em breve, em outro sorteio, porque, como acesso ao poder; 3) a utilização do sorteio coincidia
em Atenas e Florença, ninguém podia exercer a fun- frequentemente como o apogeu econômico, do po-
ção por mais de um ano. A rotação rápida aumentava, der e da cultura (Atenas nos séculos v-iv a.C., Vene-
obviamente, o envolvimento. Nos outros grandes rei- za e Florença durante o Renascimento), 4) o sorteio
nos espanhóis, como Castela, era usado o sorteio nas era feito de diversas formas e com diferentes proce-
regiões de Múrcia, La Mancha e Extremadura. Depois dimentos, mas seu objetivo principal era reduzir os
do rei Fernando II ter anexado em 1492 os reinos de conflitos e aumentar a participação dos cidadãos; 5)
Castela e Aragão, estabelecendo as bases da Espanha o sorteio não era jamais empregado sozinho, mas
atual, disse: «Por experiência, vê-se, com frequência, sempre associado às eleições, para garantir a compe-
que nas cidades e nos vilarejos onde existe o sorteio há tência do escolhido; 6) os Estados que recorriam ao
administração saneada, melhores condições de vida e sorteio eram reconhecidos, com frequência e duran-
de governo do que nos lugares onde se aplica o sistema te séculos, como politicamente estáveis, apesar das
eleitoral. São mais unidos e igualitários, mais pacíficos grandes diferenças internas entre grupos rivais. O
e desprendidos de paixões».8 minúsculo Estado de San Marino continuou a utili-

8  Yves Sintomer, Petite histoire de l’expérimentaion démocratique: Tirage au sort et politique d’Athènes à nos jours, Paris, 2011, p. 86.

130 131
zar o sorteio até a metade do século xx para escolher governar poderia ser corrigido por seleção, autosse-
seus dois governantes entre os sessenta membros do leção ou avaliação. Monstesquieu admirava a demo-
conselho!9 cracia ateniense, em que os funcionários, depois de
realizar suas tarefas, deviam prestar contas, fruto da
No século xviii, período do Iluminismo, filó- «conjunção entre sorteio e eleição».10 Somente com a
sofos de renome debruçaram-se sobre a questão combinação dos dois sistemas pode-se evitar exces-
do Estado democrático. Montesquieu, fundador sos: simples sorteio propicia incompetência; apenas
do Estado de direito moderno, repete em Do espí- eleições, impotência.
rito das leis (1748) as palavras ditas por Aristóteles Ideias semelhantes encontram-se na famosa En-
2 mil anos antes: «O sufrágio por sorteio pertence ciclopédia de Diderot e D’Alembert, da metade do
à natureza da democracia; por escolha, à da aristo- século xviii. No verbete sobre aristocracia, lê-se que
cracia». O caráter elitista das eleições era, também o sorteio não é apropriado para a aristocracia (o su-
para ele, muito claro. Ao contrário, Montesquieu diz: frágio não deve se realizar através de sorteio, traria
«O sorteio é um modo de eleger que não prejudica somente inconvenientes11), melhor constituir-se um
ninguém e que permite a qualquer cidadão ter a es- Senado: «Pode-se dizer que a aristocracia encontra-
perança de um dia servir à pátria». Era bom para -se no Senado, a democracia em toda a nobreza e
o cidadão, mas também era para a pátria? O perigo o povo simplesmente não conta». Não obstante, os
evidente de ser sorteado alguém incompetente para autores deixam claro que a aristocracia tem respon-

10  Montesquieu, Do espírito das leis, livro ii, cap. 2.


9  Hubertus Buchstein, Demokratie und Lotterie: Das Lot als poli-
tisches: Entscheidungsinstrument von Antike bis zur eu, Frankfurt, 11  Le suffrage ne doit point se donner par sort; on n’en auroit que
2009, p. 186. les incovéniens, em francês, no original em neerlandês. (N.T.).

132 133
sabilidade com relação ao povo. O verbete sobre de- tintamente. Somente a lei pode obrigar o sorteado a
mocracia retoma em grande parte a argumentação de exercê-lo.»12
Montesquieu. A conclusão é clara: nos dois livros de filosofia
Alguns anos depois, Rousseau retoma a reflexão. política mais importantes do século xviii, apesar de
Ele também buscará uma forma intermediária, prin- discordâncias fundamentais entres eles, os autores
cipalmente para a distribuição de cargos. «Quando concordam que o sorteio é mais democrático do que
se misturam a escolha e o sorteio», escreveu em Do as eleições e que a combinação de ambos os métodos é
contrato social (1762), «pelo primeiro privilegia-se o positiva para a sociedade. Os procedimentos aleatório
talento, como nos cargos militares; pelo segundo, o e eleitoral podem se fortalecer mutuamente.
bom senso, a justiça, a integralidade, como nos car-
gos do Judiciário». Rousseau descreve o método duplo
que Atenas, na Antiguidade empregou durante sécu- Um procedimento aristocrático:
los para atribuição de cargos públicos. A combinação eleições (século xviii)
entre sorteio e eleição produzia um sistema ao mesmo
tempo com grande legitimidade e eficiência. Em todas Então acontece algo estranho. Bernard Manin
as sociedades os talentos são naturalmente divididos descreve maravilhosamente:
de modo desigual, mas isso não quer dizer que deve-
ríamso abrir mão do sorteio. «O sorteio é da natureza Nem mesmo uma geração após a publi-
cação de Do espírito das leis e Do contra-
da democracia», era essa também a opinião de Rou-
to social, a nomeação de governantes por
sseau. «Em toda verdadeira democracia, um cargo
público não é uma vantagem, mas um fardo oneroso,
que não pode ser atribuído a um e não a outro indis- 12  Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, livro iv, cap. iii,
1762.

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sorteio desapareceu de repente, sem dei- Durante muito tempo os historiadores e os cien-
xar rastros. Foi totalmente ignorada du- tistas políticos ignoraram a questão. Seria por invia-
rante a Revolução Norte-Americana e a
Francesa. Os Pais Fundadores do Estado bilidade prática? Sim, a diferença é clara: usava-se o
moderno proclamaram solenemente seu sorteio em Atenas, na Antiguidade, porque era uma
compromisso com a igualdade de direitos cidade de alguns metros quadrados, totalmente dife-
dos cidadãos. Debateu-se sobre a exten-
são do direito a voto, mas se decidiu sem rente de um país como a França ou do imenso territó-
a mínima hesitação, tanto de um lado do rio que compunha os treze Estados independentes da
Atlântico como do outro, estabelecer uma
costa Atlântica dos Estados Unidos. Só o tempo ne-
limitação dos direitos políticos dos cida-
dãos e instalar um sistema de escolha no- cessário para o deslocamento entre um Estado e outro
tadamente aristocrático.13 já era o suficiente para se compreender que se tratava
de um universo completamente diferente. Certamente
Como é possível? Como se pôde ignorar os ar- esse foi um dos motivos.
gumentos filosóficos mais influentes da época, em um
século que reivindicava a razão e os filósofos14? De O censo populacional e as estáticas demográficas
onde vem esse triunfo unilateral de um procedimento no final do século xviii não estavam desenvolvidos o
de escolha considerado aristocrático? Como é possível suficiente para que fosse possível aplicar bem o siste-
que o sorteio, como se diria hoje em dia, tenha «sumi- ma de sorteio. Não se sabia exatamente o número de
do completamente do radar»? habitantes de um país para se aplicar um modelo de
sistema representativo.
E, claro, não se conhecia profunda e detalhada-
13  Bernard Manin, 2012, p. 108
mente a democracia ateniense. O primeiro estudo sé-
rio, Eleição por sorteio em Atenas, de James Wycliffe
14  les philosophes, em francês, no original em neerlandês. (N.T.).

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Headlam, apareceu somente um século depois, em último não há regras preestabelecidas, tudo dependen-
1891. Até então, tinha-se um conhecimento bastante te do capricho de quem governa. Na república, o poder
incompleto, descrito em obras um tanto singulares provem do povo. Com relação à democracia, ele faz
como Da natureza e do uso de sorteio: um tratado his- uma distinção extremamente importante: «Quando,
tórico e teológico (1627), do pastor Thomas Gataker. em uma república, todo o povo tem o poder soberano,
Dificuldades em sua aplicação prática, porém, pode-se falar em democracia. Quando o poder está em
não eram o único motivo. Os antigos atenienses tam- uma parte do povo, tem-se uma aristocracia».15
pouco possuíam uma administração pública perfei- Não resta dúvida de que a alta burguesia que em
ta. Os florentinos não conheciam detalhadamente os 1776 e em 1789 libertou-se das Coroas britânica e
procedimentos gregos. Entretanto, utilizaram mas- francesa lutava pela instituição da república. Ela tam-
sivamente o sorteio. O que surpreende nos escritos bém aspirava pela variante democrática desse tipo de
dos revolucionários norte-americanos e franceses não Estado? Pelo seu discurso, sim. Referências ao povo
é que não pudessem aplicar o sorteio, mas que sim- não faltam. Os revolucionários proclamavam sem ces-
plesmente não o quisessem, independente da questão sar que o povo era soberano, que Nação se escrevia com
prática. Em nenhum momento tentaram introduzi-lo. N maiúsculo, que nós, o povo era o princípio de tudo,
Ninguém lamentou. Talvez o sorteio não fosse viável, mas sua concepção de povo era um tanto elitista. Os
mas certamente tampouco era desejável. Deve-se isso novos estados independentes norte-americanos foram
à concepção de democracia. chamados de «repúblicas», não de «repúblicas demo-
Montesquieu distinguia três tipos de Estado: a cráticas». John Adams, grande combatente pela inde-
monarquia, o despotismo e a república. Na monarquia, pendência e segundo presidente dos Estados Unidos,
o poder estava concentrado em apenas uma pessoa, as-
sim como no despotismo, com a diferença de que no
15  Montesquieu, livro ii, cap. 1, 1748.

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era bastante reticente com relação ao sistema e avisou: tes na Assembleia Constituinte francesa entre 1789 e
«uma democracia não pode durar muito tempo. Ela se 1791 sobre o direito a voto, o termo democracia apa-
desgasta, se consome e se suicida. Nunca houve uma rece apenas uma vez. 19
democracia que não tenha se suicidado».16 James Ma- O cientista político canadense Francis Dupuis-
dison, pai da Constituição norte-americana, conside- -Déri fez uma pesquisa sobre o uso do termo de-
rava a democracia «um espetáculo cheio de turbulên- mocracia e constatou que os Pais Fundadores da
cias e disputas», que geralmente tinha «vida curta e Revolução Norte-America e da Revolução Francesa
morte violenta».17 evitavam utilizá-lo. Para a maioria deles, democracia
Também na França revolucionária o termo «de- significava caos, extremismo, e por isso não queriam
mocracia» era pouco corrente e tinha conotação ne- nenhuma associação com ela. Não se tratava apenas
gativa. Relacionava-se com a confusão constante que de uma questão linguística. Não apreciavam a ideia
seria caso os pobres chegassem ao poder. Um impor- de democracia. Muitos eram juristas, proprietários de
tante revolucionário como Antoine Barnave, membro terras, industriais, armadores e, nos Estados Unidos,
da primeira Assembleia Nacional, definia a democra- latifundiários e escravocratas; haviam servido as Co-
cia como «o sistema político mais odioso, mais sub- roas britânica e francesa no auge da era aristocrática,
versivo e o pior de todos para o povo».18 Nos deba- exercendo cargos administrativos e políticos, e eram
social e tradicionalmente ligados ao sistema que com-
batiam.20 «Essa elite buscava destruir a legitimidade
16  John Adams, The Works of John Adams, Boston, v. 6, p. 484.

17  James Madison, Federalist Paper, documento 10, press-pubs.


uchicago.edu/founders/documents/v1ch4s19.htlm, 1787. 19  Ibid., p. 149.

18  Citado por Francis Dupuis-Déri, Démocratie: Histoire politi- 20  Howard Zinn, A People’s History of the United States, Nova
que d’un mot aux États-Unis et en France, Montreal, 2013, p. 138. York, 2015, p. 90.

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do rei e da aristocracia. Ao mesmo tempo, mostrava perder se abrisse mão do poder, considerando seus
a incompetência do povo em governar a si mesmo. privilégios econômicos. Na França era a mesma coi-
Proclamava em alto e bom som que, por estarem a sa, mas havia outro fator. Ao contrário dos Estados
serviço da pátria, a soberania da nação pertencia a Unidos, era preciso construir uma nova sociedade
eles, a elite.»21 no mesmo território do regime anterior. Isso explica
Nesse contexto, o termo «república» soava mais a importância que tinha para a nova elite fazer um
nobre do que «democracia», e as eleições tornaram-se acordo com os antigos nobres proprietários de terra.
mais importantes que o sorteio. Os líderes revolucioná- Em outras palavras: muitos aristocratas velhacos pe-
rios na França e nos Estados Unidos não se interessa- garam carona na carruagem dos revolucionários. Se
vam pelo sorteio, porque não tinham nenhum interesse quisessem seguir um novo caminho, deveriam estar
na democracia. Quem herda uma carruagem de luxo atentos ao itinerário proposto por esses caronas te-
de um antepassado não vai deixar crianças darem vol- nazes e prestar atenção se não colocariam travas nas
tinhas nela. rodas da carruagem.
Voltando à tipologia de Montesquieu: os líde- Nos dois países, porém, a tendência era clara: a
res patriotas da Revolução Francesa e da Norte-A- república que os líderes da revolução tinham em men-
mericana eram indubitavelmente republicanos, mas te e que deveriam colocar em prática era mais aris-
de modo algum democratas. Não queriam deixar tocrática do que democrática. As eleições ajudariam
o povo conduzir a carruagem do poder, preferiam nesse propósito.
segurar as rédeas nas próprias mãos, para evitar
danos.. Nos Estados Unidos, a elite tinha muito a Hoje essas conclusões soam heréticas: ouvimos
já tantas vez o mesmo discurso, de que a democracia
moderna surgiu em 1776 e 1789. Uma análise cuida-
21  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 87.

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dosa dos textos históricos mostra, na verdade, outra exata do conjunto de toda a população». A questão é
história.22 saber, naturalmente, se um banqueiro de Nova York
No ano da Independência, em 1776, John Adams e um jurista de Boston, sentados lado a lado, esta-
escreveu em seu famoso Pensamentos sobre o governo riam preocupados com as necessidades e os anseios
que os Estados Unidos eram muito grande e muito do padeiro de uma cidadezinha de Massachusetts ou
populoso para ser governado diretamente. Sem dúvi- do estivador de Nova Jersey tanto quanto com eles
da, verdadeiro. Uma transposição irrefletida do mo- próprios.
delo ateniense ou florentino não poderia funcionar. Dez anos mais tarde, James Madison, pai da
Mas a continuação de suas reflexões é surpreendente. Constituição norte-americana, iria além. Os Artigos
A etapa fundamental, expunha ele, seria «transferir o da Confederação (Articles of Confederation) de 1777
poder de muitos para poucos, mais sábios e melho- seriam substituídos por uma constituição concebida
res23». Se o povo como um todo não podia se expri- totalmente como uma federação norte-americana.
mir, um pequeno grupo de notáveis devia fazê-lo por Madison, que havia escrito a primeira versão, fez de
ele. Adams esperava, de modo um tanto ingênuo e tudo para que ela fosse ratificada pelos treze Estados
utópico, que um grupo de pessoas virtuosas deveria da Confederação à época. Em Federalistas, uma série
«pensar, sentir, racionar e agir» como o resto da po- de 85 ensaios que ele escreveu com dois colegas para
pulação: «Elas deverão ser, em miniatura, a imagem ser publicados em jornais nova-iorquinos, para que o
Estado de Nova York ratificasse o documento, ele ates-
ta, em fevereiro de 1788:
22  Para uma análise mais profunda, ver: Howard Zinn, 2015, e
Francis Dupuis-Déri, 2013.
O objetivo de toda constituição política é,
23  to depute power from the many, to a few of the most wise and ou deveria ser, conseguir, antes de tudo,
good, em inglês, no original em neerlandês. (N.T.)

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homens com grande sabedoria que bus- preferia deixar para «os melhores» o controle das
quem o bem comum para a sociedade e rédeas.26
que sejam virtuosos a ponto de realizá-lo.
[…] O método eletivo de designação dos Um regime governado pelos melhores – não
líderes é o princípio distintivo do regime se chama aristrokratia em grego? Thomas Jeffer-
republicano.24 son, o pai da Independência norte-americana, em
todo caso, considerava que existia uma «aristocra-
Com essa preferência pelos «homens mais sá- cia natural fundada no talento e na virtude» e que a
bios para discernir e mais virtuosos para colocar melhor forma de governo consistia em «incluir aris-
em prática o bem comum da sociedade25», Madison tocratas natos no governo de maneira mais eficaz
aderia sem reservas a John Adams. Assim, porém, possível».27
ele estava a léguas de distância do ideal ateniense de Entretanto, não se trata de uma «pretensa oli-
divisão igualitária das oportunidades políticas. Se garquia», continua James Madison, pois os melho-
ele concordasse com o espírito grego de não distin- res seriam eleitos. Ele acreditava que o sistema elei-
ção entre governantes e governados, Madison não toral, além de eficiente, era também legitimo. Segue
defenderia justamente o contrário. Se Aristóteles via sua reflexão:
liberdade na alternância entre governar e ser gover-
nado, o redator da Constituição norte-americana Quem serão os eleitores dos representan-
tes federais? Ricos e pobres; instruídos
ou não; herdeiros das famílias tradicio-
24  James Madison, 1788, documento 57, press-pubs.uchicago.
edu/founders/documents/v1ch4s26.html.

25  men who possess most wisdom to discern, and most virtue to 26  Bernard Manin, 2012, p. 168.
pursue, the common good of society, em inglês, no original em
neerlandês. 27  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 155.

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nais e pessoas de origem humilde, incer- Deve-se ter conquistado algum mérito, inspirar
ta ou não abastada. Os eleitores serão a respeito e confiança, distinguir-se, para poder ter ex-
grande composição dos povos dos Esta-
dos Unidos28. celência, ser melhor do que o resto. O sistema repre-
sentativo pode ser democrático pelo direito a voto,
mas também é, em sua origem, aristocrático em sua
Mulheres, índios, negros, despossuídos e escra-
aplicação: todo mundo pode votar, mas a seleção dos
vos pertenciam ao povo norte-americano, mas não
candidatos é feita entre membros da elite.
para Madison. Ele era um latifundiário escravocrata
É aí que as coisas começam na prática, segun-
da Virgínia e ninguém fazia caso. Na Grécia antiga
do as palavras de James Madison, no ensaio 57 de
também existia uma elite restrita que tinha acesso ao
Federalistas, publicado em 19 de fevereiro 1788 no
poder. Mas o fato novo e bastante importante é que
jornal The New York Packet. Melhor dizendo: é aí
no sistema eleitoral representativo de Madison supu-
que as coisas terminam, que o ideal da democra-
nha-se uma diferença qualitativa entre governantes e
cia ateniense — igualdade de oportunidade polí-
governados. Ele diz claramente:
tica — é definitivamente sepultado. A partir desse
momento, tem-se a divisão entre governos com-
Quem serão os candidatos? Todo cidadão
que conquistar o respeito e a confiança petentes e incompetentes. Isso se assemelha mais
de seu país. […] Como serão escolhidos ao nascimento de uma tecnocracia do que de uma
por seus concidadãos, temos o direito de
democracia.
supor que se distinguem dos demais por
suas qualidades. *

Também nos textos franceses vê-se a «aristocra-


28  The electors are to be the great body of the people of the United tização» da revolução. Os tumultos começaram como
States, em inglês, no original em neerlandês. (N.T.).

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uma revolta popular, temperados posteriormente por representação parlamentar, e o regime participativo,
uma nova elite burguesa desejosa de «restabelecer pelo representativo.
a ordem»; em outras palavras, governar e defender Muito surpreendente foi a atitude do padre
seus interesses. Nos Estados Unidos, isso se desen- Sieyès, da comunidade católica de Fréjus, que com seu
volveu do processo de Independência em 1776 até a panfleto subversivo O que é o terceiro estado? colocou
Constituição em 1789 (com Madison na liderança); mais lenha na fogueira. Sieyès, o homem que julgava
na França, da Revolução em 1789 até a Constituição que a nobreza e o clero, o primeiro e o segundo es-
em 1791. A revolta com participação popular (não tados, tinham muito mais poder do que o terceiro, a
entrando no mérito das proporções mitificadas da burguesia; que pleiteava por maior poder a esse estado
tomada da Bastilha) terminaria alguns anos mais e a supressão da aristocracia; que escrevia artigos lidos
tarde em uma Constituição com influência popular em toda parte (em janeiro de 1789, foram vendidos
mínima, sendo o voto um direito reservado a um em mais de 30 mil exemplares do panfleto); que dava voz
cada seis franceses. à frustração popular e que passava por um dos prin-
Na Declaração dos direitos dos homens e do ci- cipais teóricos da Revolução escreveu: «A França não
dadão, documento mais importante do primeiro ano é uma democracia e não deve se tornar uma. […] O
da Revolução de 1789, lê-se: «A lei é a expressão da povo, repito, em um país não democrático (e a França
vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de con- não será um), o povo não pode se expressar nem agir
tribuir pessoalmente ou através de seus representan- senão por seus representantes».29
tes». Mas, na Constituição de 1791, o «pessoalmen- Desde então surgiu essa «agorafobia política», o
te» desapareceu: «A Nação é de onde procede todo o medo do homem nas ruas — vindo justamente dos revo-
poder, que pode ser exercido por representação». Em
dois anos, a participação popular foi substituída pela
29  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 141

150 151
lucionários.30 Eleito o Parlamento, o povo deve se silen- para não falar de outras, ainda mais mal
ciar. O sorteio vira, de agora em diante, algo a ser aplica- remuneradas. Essas pessoas não devem
ser oprimidas pelo Estado, mas o Estado
do em um caso bem especifico do domínio público: na será inegavelmente oprimido por elas se
composição do júri popular em alguns casos judiciários. as deixarem governar, individual ou cole-
A «aristocratização» da Revolução deve ter dado tivamente. […] Todas as funções devem
ser acessíveis, mas não na mesma medi-
muita satisfação a Edmund Burke. Esse filósofo e po- da para todos. Nada de rotação; nada de
lítico britânico ficava apavorado com a ideia de que sorteio nas contratações; nenhum recru-
tamento que esteja no espírito do sorteio
o povo pudesse ter poder demais. Em seu eloquente
ou da rotação é saudável para um governo
Reflexões sobre a Revolução Francesa (1790), ele escre- que se ocupa de assuntos importantes.
ve que os governantes deveriam se distinguir não por
«sangue, nome e títulos31» – ele tinha consciência de
Adeus ideal ateniense! Essa é condenação do sor-
que os tempos haviam mudado – mas pela «virtude e
teio mais explícita do final do século xviii que conhe-
sabedoria32». E acrescenta:
ço. Burke era contra a democracia, contra Rousseau,
contra a Revolução e contra o sorteio. Ele prezava
A profissão de cabeleireiro ou de ciriei-
ro não é das mais prestigiosas — isso mais a competência da elite: «Não hesito em dizer que
não deve ser facilitado o caminho de alguém de ori-
gem humilde à grandeza e ao poder. […] O templo da
30  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 112. honra deve ser estabelecido pela excelência».33

31  blood and names and titles, em inglês, no original em neer-


landês.(N.T.)

32  virtue and wisdom, em inglês, no original em neerlandês. 33  Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, www.
(N.T.). constitution.org/eb/rev_fran.htlm, 1790.

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As palavras de Burke não ficaram sem repercus- cracia, mas eliminou uma aristocracia hereditária para
são. Durantes as discussões sobre a nova Constituição instalar uma aristocracia eleita. «Uma aristocracia ele-
francesa de 1795, depois dos anos conturbados do tiva», para usar o termo de Rousseau. O próprio Ro-
Terror, Boissy d’Anglas, presidente da Convenção e bespierre a chamou de «uma aristocracia representa-
encarregado de preparar o texto, declarou: tiva».35 O soberano e a nobreza foram postos de lado,
o povo foi seduzido com a retórica de Nação, Povo e
Temos de ser governados pelos melhores: Soberania36, e uma nova alta burguesia tomou o poder.
os melhores são os mais instruídos e os
A legitimidade não vinha mais de Deus, do solo ou
que dão mais importância à manutenção
das leis; e, com raríssimas exceções, não da nascença, mas de outro resquício aristocrático: as
serão encontrados entre aqueles que não eleições. Discussões intermináveis sobre quem deve-
tenham propriedade privada. São aficio-
ria ter direito a voto tiveram início, e ele foi definido
nados ao país onde estão suas proprieda-
des, às leis que as protegem e à tranquili- com todas as suas restrições: reservado a quem pagas-
dade que as conservam. […] Em um país se certa soma de impostos. Pela Constituição de 1791,
governado por proprietários há ordem
somente um francês entre seis tinha direito a voto na
social, ao contrário de um governado por
não proprietários, que vive em estado de primeira eleição parlamentar. Marat, apaixonado re-
natureza.34 volucionário, condenava essa «aristocratização» da
revolta popular e defendia os cerca de 18 milhões de
A Revolução Francesa, como a Norte-Americana, franceses sem direito a voto. «O que ganhamos», di-
não eliminou a aristocracia para instalar uma demo-

35  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 156.

34  Daniel Amson, Histoire Constitutionnelle française: de la prise 36  la Nation, le Peuple, la Souveraineté, em francês, no original
de la Bastille à Waterloo, Paris, 2010, p. 235. em neerlandês. (N.T.)

154 155
zia ele, «se aniquilamos a aristocracia da nobreza para a patogênese de nosso fundamentalismo eleitoral. O
substituí-la por uma aristocracia dos ricos?» primeiro passo foi mostrar a fisiologia da democracia
representativa aleatória na Antiguidade e no Renasci-
mento. Mostrei como, no final do século xviii, a nova
A democratização das eleições: elite deixou de lado essa tradição para instituir o siste-
um processo aparente (séculos xix-xx) ma eleitoral representativo. Resta-me agora investigar
como essa guinada aristocrática acabou adquirindo,
Recapitulemos. Vimos nos capítulos anteriores a nos séculos xix e xx, legitimidade democrática — até
ideia de que eleições como instrumento democrático cair no fogo cruzado. Em outras palavras: depois da
é algo datado, e aprendemos como elas, na verdade, aristocratização da revolução, temos de examinar a
nunca foram pensadas como instrumento democrático. democratização das eleições.
Bem o contrário! E mais: o instrumento democrático Vemos antes de tudo uma mudança na termi-
mais aplicável, o sorteio, foi completamente excluído nologia. A república fundada sobre o direito a voto,
pelos arquitetos do sistema representativo, em parti- mesmo tão restrito, foi frequentemente chamada de
cular em uma instância: no campo jurídico. Nós, fun- «democrática». Um observador poderia constatar
damentalistas eleitorais, agarramo-nos às urnas por desde 1801 que «a aristocracia eletiva da qual falava
décadas como se fossem o Santo Graal da democracia, Rousseau há cinquenta anos é o que chamamos hoje
e agora nos damos conta de que nos apegamos não ao de democracia representativa».37 Esse sinônimo caiu
Graal, mas à taça envenenada, com um procedimento completamente no esquecimento: quase ninguém co-
que não serve como instrumento democrático. nhece hoje as raízes aristocráticas do sistema vigente.
Como pudemos ser tão cegos por todo esse tem-
po? Temos de dar um terceiro passo para descortinar
37  Citado por Francis Dupuis-Déri, 2013, p. 120.

156 157
Quando o grande Alexis de Tocqueville, no iní- dos Unidos. Diferentemente de muitos aristocratas,
cio do século xix, passou nove meses nos Estados ele acredita que a Revolução Norte-Americana e a
Unidos para estudar o novo sistema de governo, não Francesa não eram acidentes de percurso, mas par-
hesitou em dar o título do seu livro resultante des- te de um desenvolvimento bem maior rumo à con-
sa viagem de Da democracia na América. Ele explica quista por mais igualdade. Nada poderia impedi-lo.
o motivo na primeira linha: «Entres as coisas novas Ele afastava-se conscientemente do mundo antigo:
que mais me chamaram a atenção nos Estados Uni- recusava-se a usar seu título de nobreza, perdera a
dos, nenhuma se compara à igualdade de condições». fé e casara-se com uma moça do povo. Quando en-
Em nenhum outro país, diz Tocqueville, a noção de trou para a cena política francesa, em fins de 1830,
soberania do povo era tão altamente prezada. Como lamentava que o sistema fosse pouco democrático e
o livro teve muita influência no século xix, contribuiu que oferecesse tão pouca oportunidade de participa-
enormemente para a popularização do termo «demo- ção política aos cidadãos.
cracia» para designar o sistema republicano eleitoral A viagem aos Estados Unidos fez de Tocqueville
representativo. um democrata entusiasta, mas ele permaneceu crítico
Que fique bem claro: isso não significa que o au- quanto à forma como o sistema funcionava na prática.
tor não tinha críticas ao sistema eleitoral. Tocquevil- Nos Estados Unidos e na França, as eleições venceram
le era um observador extraordinário. Descendente o sorteio e seu papel foi relegado à simples composi-
de uma antiga família aristocrática que havia visto ção do júri popular em certos casos judiciários.
alguns de seus membros perecerem na guilhotina, O que ele pensava dos dois métodos de seleção?
tinha toda a razão em ter grande desconfiança do Vale a pena citá-lo, em sua belíssima prosa. É quase
novo sistema. Entretanto, mostrava grande interes- inacreditável que a passagem abaixo tratando do siste-
se e dava muita abertura ao que acontecia nos Esta- ma eleitoral tenha sido escrita em 1830:

158 159
Próximo às eleições, o chefe do poder exe- diversos campos, cada um apoiando seu
cutivo (o presidente) pensa apenas na ba- candidato. A nação inteira entra em um
talha que se aproxima; não há mais futuro; estado febril; as eleições entram na ordem
ele não pode fazer nada além de observar do dia na imprensa, viram tema de discus-
o que os outros vão fazer. […] A nação o são entre as pessoas, ocupam a preocupa-
ignora e concentra-se em um único obje- ção e o pensamento dos eleitores, tornam-
tivo; ela tem olhos apenas para o rebento -se a única coisa que realmente interessa.
que está por nascer. […] Pode-se conside-
Naturalmente, depois que passam, esfria
rar o momento das eleições presidenciais
o entusiasmo, tudo se acalma e o rio que
nos Estados Unidos um período de crise
transbordava volta tranquilamente ao nível
nacional. […]
natural. Devíamos, contudo, nos surpreen-
Já muito tempo antes de começar, as elei- der que tal tempestade possa passar.38
ções tornam-se a maior preocupação e,
por assim dizer, a única coisa que real-
mente interessa. As disputam aumentam Essa é provavelmente uma das primeiras críticas
em tensão; afloram todas as paixões mais
à democracia representativa eleitoral, com sua febre
inimagináveis em um país feliz e tranqui-
lo, conforme o grande dia se aproxima. eleitoral, sua paralisia governamental e sua midiatiza-
O presidente, por sua parte, empenha to- ção, ou seja, com sua histeria. Muito mais positivo é
das as suas forças em se defender. Não go- o julgamento de Tocqueville com relação ao sistema
verna mais pelo interesse do Estado, mas de sorteio empregado para a escolha do júri popular:
para sua reeleição; ele se inclina para a
maioria e, frequentemente, em vez de re- «certo número de cidadãos escolhidos, por certo pe-
sistir às paixões como deveria, segue seus ríodo, para julgar». Cito-o novamente:
caprichos.
À medida que se aproximam as eleições,
as intrigas aumentam, a agitação cresce e 38  Alexis de Tocqueville, Da democracia na América, livro I,
expande-se. Os cidadãos dividem-se em parte I, cap. 8, 1835.

160 161
Graças ao júri, e sobretudo ao júri civil, e à paixão das partes interessadas, tudo o
uma parte do espírito da sociedade está que se passa contribui para a compreensão
representado no espírito judiciário; esse das coisas. Creio que se deva atribuir prin-
tipo de prática é o que precisamente me- cipalmente à inteligência prática o bom
lhor representa a liberdade. senso político dos norte-americanos em
matéria civil, exercitado no júri ao longo
do tempo. Não sei dizer se o júri é útil no
(Observa-se que Tocqueville, como Aristóteles, que concerne ao processo em si, mas ele é
seguramente útil para quem julga. Vejo o
associa a liberdade à possibilidade de ter a ocasião júri como um dos meios mais eficazes que
de tomar responsabilidade e como algo que se deve a sociedade tem de educar o povo.39
aprender).

Ainda que a política norte-americana mostre no


Obrigando as pessoas a cuidar de casos início todas as possibilidades de uma democracia, To-
alheios, combate-se o egoísmo individual,
que é o verdadeiro motivo do apodreci-
cqueville não esconde os males necessários da campa-
mento da sociedade. O júri ajuda incri- nha eleitoral, mesmo numa época em que não haviam
velmente a formar a capacidade de juízo partidos ou veículos de massa.
e a desenvolver a compreensão inata do
povo. Em minha opinião, isso é uma gran-
de vantagem. Ele deve ser visto como uma Os anos em que foram publicados os dois volu-
escola gratuita, aberta permanentemente, mes de Da democracia na América seriam marcados
em que cada um aprende sobre seus direi-
tos, tem contato diário com pessoas mais por um acontecimento que reforçaria o sistema re-
instruídas e mais esclarecidas das classes
sociais mais elevadas, em que as leis são
ensinadas na prática, em que, graças à ha-
bilidade dos advogados, à opinião do juiz 39  Alexis de Tocqueville, Da democracia na América, livro I,
parte II, cap. 8, 1835.

162 163
presentativo eleitoral: a Independência da Bélgica, dos radicais, republicanos e democratas; a Consti-
em 1830. Pode surpreender que o nascimento de um tuição, um processo liderado por aristocratas, clero
pais minúsculo, subordinado ao domínio de potências e liberais moderados. Podia ser diferente? Era 3 de
estrangeiras — tendo sido desde a Revolução France- novembro de 1830; nas eleições para o Congresso
sa, sem evocar os séculos anteriores, sucessivamente Nacional, o primeiro Parlamento que deveria redigir
território austríaco, francês e neerlandês —, tenha ta- a Constituição, apenas 46 mil homens tinham o di-
manho impacto. Mas foi o caso. A Constituição belga reito a voto, menos de 1% do contingente populacio-
entraria para a história como o protótipo de modelo nal. Somente quem pagava certa «cifra» de impos-
representativo eleitoral.40 tos tinha direito a voto. Eram, sobretudo, grandes
A independência da Bélgica seguiu um proces- proprietários de terra, aristocratas e profissionais
so conhecido: após uma série de escaramuças contra liberais que determinariam o destino do país, soma-
o regime no poder (em agosto e setembro de 1830), dos a alguns «eleitores capacitados», cidadãos que
produziu-se uma aristocratização durante o período não atingiam a «cifra» mas eram bem-vindos, como
de Assembleia Constituinte (de novembro de 1830 clérigos e universitários. O Congresso Nacional era
a fevereiro de 1831). A revolução havia sido obra composto por duzentos membros, 45 deles prove-
nientes da nobreza, 38 da advocacia, 21 da magistra-
tura e treze do clero. Metade deles já havia exercido
40  Cito diversas fontes. E. H. Kossmann, The Low Countries cargos públicos antes da Independência, fazendo
1780-1940 (Oxford, 1978), Marc Reynebeau, Een geschiedenis van
België (Tielt, 2003), Rolf Falter. 1830: De scheiding van Nederland, com que a ruptura com o passado fosse bem menor
België en Luxemburg (Tielt, 2005), Els Witte, Jean-Pierre Nandrin, do que poderia ser esperado.41
Eliane Gubin e Gita Deneckere, Nieuwe geschiedenis van België,
deel 1: 1830(Tielt, 2005), Els Witte, Jan Craeybeckx e Alain Mey-
nen, Politieke geschiedenis van België: van 1830 tot heden (Antuér-
pia, 2005). 41  Rolf Falter, 2005, p. 203.

164 165
Rompido o élan revolucionário, a Constituição e foram introduzidos os júris populares. O direito a
acabou bastante moderada, aceitável para os outros voto permanecia restrito, mas não como tinha sido no
países e para os belgas, contentando as aspirações de passado. Na Bélgica, um entre cada 95 cidadãos podia
todos. As forças conservadoras da sociedade estavam votar, na França — onde a monarquia tinha acabado
satisfeitas em três pontos: o novo regime era uma mo- de voltar — era um entre cada 160.42 Apenas os pontos
narquia (em vez de uma república), foi conservado o mais radicais da revolta popular foram ignorados, os
direito a voto condicionado à «cifra» (em vez do sufrá- deixado de mãos vazias.
gio de universal) e instituía-se um Senado (em vez de Embora três quartos dos artigos da Constitui-
um Parlamento unicameral). De todos, o último era o ção belga tenham sido retirados de textos consti-
mais importante, pois permitia à aristocracia ter seu tucionais da França e daos Países-Baixos, sua ori-
próprio órgão no novo Estado. Como a contribuição ginalidade reside na criação do sistema de «freio e
fiscal era extremamente elevada, somente os extrema- contrapeso» (checks and balance) entre o Parlamento
mente ricos poderiam ambicionar uma vaga no Sena- e o governo. Essa característica positiva não passou
do: não mais do que quatrocentas pessoas em todo o desapercebida.
país eram elegíveis para o cargo. Pouco se lembra hoje da grande influência que
As forças progressistas da jovem sociedade bel- esse texto exerceu em outras Constituições, mas, no
ga caíram numa armadilha: o poder do rei estaria su- século xix, ele era um ponto de referência na cria-
bordinado à Constituição e ao Parlamento (tratava-se ção dos modernos Estado-nação. A Constituição da
de uma monarquia constitucional parlamentar), as Saxônia (1831), a da Confederação Helvética (1848)
eleições eram diretas e não indiretas (como na Fran- e o projeto de lei fundador da Federação Alemã ela-
ça e nos Estados Unidos), a liberdade de imprensa e
de expressão estavam asseguradas pela Constituição
42  E. H. Kossmann, 1978, p. 137.

166 167
borada pelo Parlamento de Frankfurt (1849) tomaram Em um recente estudo comparativo, lê-se: «A
trechos emprestados na íntegra. Outras constituições Constituição belga de 1831 é a principal constitui-
foram profundamente influenciadas, como a da Es- ção elaborada antes de 1848».44The New Cambridge
panha (1837). Depois de 1848, ano revolucionário, o Modern History a chama de um «farol», um texto que
texto ganhou ainda mais seguidores: foi usado na ela- «superou praticamente todas as constituições euro-
boração da Constituição da Grécia (1848 e 1864), daos peias de seu tempo»:
Países-Baixos (1848), de Luxemburgo (1848), de Pie-
monte-Sardenha (1848), da Prússia (1850), da Romê- O modelo de constituição […] continha
nia (1866), da Bulgária (1879) e mesmo do Império muittas características únicas, com for-
mulações que não se podiam encontrar
Otomano (1876). Sobretudo as constituições dos Paí- melhores em nenhuma outra […] chega a
ses-Baixos, Grécia, Romênia e Bulgária são cópias fiéis ser surpreendente que o texto não tenha
do original belga. No início do século xx, a influência sido ainda mais copiado do que foi.45
chegou até mesmo ao Irã (1906) e ao Império Oto-
mano, futura Turquia (1908). Também inspiraram Ou seja, um texto curto e claro de 139 artigos
os novos Estados da Europa Central, como Polônia, predominaria durante um século na maior parte do
Hungria e Tchecoslováquia.43 mundo moderno. Com ele, o modelo representativo

43  John Gilissen, «La Constitution belge de 1831: ses sources,


son influence», Res Publica, 1968, pp. 107-141. Ver também: P. 44  Zachary Elkins, «Diffusion and the constitutionalization of
Lauvaux, «La Constitution belge aux sources de la Constitution Europe», Comparative Political Studies, v. 43, n. 8-9, 2010, p. 988.
de Tirnovo», em L’union fait la force: Étude comparée de la Cons-
titution belge et de la Constitution bulgare, Bruxelas, 2010, pp. 45  J.A.Hawgood, «Liberalism and constitutional developmen-
43-54; Asem Khalil, Which Constitution for the Palestinian Legal ts», em The New Cambridge Modern History, v. x, Cambridge,
System?, Roma, 2003, p.11. 1960, p. 91.

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eleitoral tornou-se a norma: Tocqueville deu a ele o para uma tarefa bastante impopular. Pelo menos no
nome de «democracia»; a Constituição belga foi o ras- papel. Na prática, permanecia a desigualdade social:
cunho para uso internacional. A luta por mais demo- jovens ricos sorteados tinham dinheiro o suficiente
cracia a partir de 1850 não era a luta contras as eleições, para pagar um filho de um camponês ou de um ope-
mas para a ampliação do direito a voto. Os movimen- rário a servir em seu lugar. Essa prática desacreditou
tos operários, que surgiram em toda a Europa, fizeram o sorteio entre as classes mais humildes: parecia um
disso um de seus maiores objetivos de luta. O sorteio sistema que privilegiava a aristocracia. Que ironia da
não era reivindicado. Pelo contrário: ganhou até má história! As eleições são consideradas democráticas
fama na população, porque lembrava muito o sistema e o sorteio, aristocrático. Nenhum líder socialista ja-
de recrutamento para o serviço militar, que enviava mais recomendou seu uso na política, nenhum clé-
jovens para as frentes de batalha. Foram os franceses rigo de interior o defendeu. O sorteio estava fora de
que o aplicaram no final do século XVIII, mas na Bél- questão.
gica, como em outros lugares, a prática duraria ainda Quando, em 1891, foi publicada a primeira gran-
um século, para desespero de muita gente. Hendrik de obra sobre o sorteio na antiga Atenas, seu autor,
Conscience, o pai da literatura flamenga, dedicou ao James Wycliffe Headlam, que fez a pesquisa no King’s
assunto, em 1849, sua melhor obra, a belíssima novela College de Cambridge, não podia que introduzir o seu
De loteling [O sorteado].46 trabalho que com estas palavras: «De todos os costu-
O sorteio para o serviço militar não era aplica- mes que a história antiga nos revela, nenhum deles é
do, naturalmente, para dar a oportunidade de igual- mais difícil de compreender do que o uso do sorteio
dade política, mas para ser uma escolha imparcial para a escolha dos funcionários públicos. Não temos
nenhuma experiência com esse sistema; qualquer pro-
posta de introduzi-lo parecerá tão sem cabimento que
46  Hendrik Conscience, De loteling, Antuérpia, 1850.

170 171
temos dificuldade em crer que ele fosse tão difundido século xviii; eleições que não eram consideradas como
em uma sociedade tão civilizada».47 um instrumento democrático, mas um procedimen-
Meio século depois, em 1948, lia-se na Declara- to para a nova aristocracia não hereditária chegar ao
ção Universal dos Direitos do Homem que «a vontade poder. Através da extensão do direito a voto, esse pro-
do povo deve ser expressa periodicamente em eleições cesso aristocrático se democratizou sem se desfazer
honestas». E ainda, mais de meio século depois, Fran- da distinção oligárquica fundamental entre políticos
cis Fukuyama, em seu best-seller internacional, anun- e eleitores. Diferentemente da esperança de Abraham
cia «o fim da história» e abençoa o casamento místico Lincoln de que a democracia eleitoral não fosse um
entre a democracia parlamentar e a economia de mer- governo para o povo, mas do povo, ela permanece ine-
cado livre: «Um país é democrático quando o povo vitavelmente vertical: continuou a existir sempre um
tem o direito de escolher seus governantes em eleições abaixo e um acima, a autoridade e os súditos. As urnas
periódicas, secretas e multipartidárias, com sufrágio tornaram-se o elevador que coloca alguns no andar de
universal e igualitário para toda a população adulta».48 cima. Deliberadamente, a democracia eleitoral man-
Eis o consenso estabelecido. tém algo de feudalismo, uma forma de colonialismo
Essa é a patogênese de nosso fundamentalismo interior que se adere.
eleitoral: o sorteio, o mais democrático de todos os ins- A síndrome da fadiga democrática que se mani-
trumentos políticos, teve de dar o lugar às eleições no festa hoje em todas as partes é consequência natural da
sacralização do sistema representativo eleitoral. Du-
rante décadas, as eleições fizeram girar bem as engre-
47  James W. Headlam, Election by Lot at Athens, Cambridge, nagens da democracia, mas agora notamos cada vez
1891, p.1.
mais que elas eram apenas uma peça adaptada. Claro
48  Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, que foi polida e lixada para que funcionasse bem e ser-
Nova York, 1992, p. 43.

172
visse à soberania popular, mas, depois de dois séculos,
começou a dar sinais de desgaste. A eficiência vai a so-
lavancos, a legitimidade range. Há descontentamento
por todo lado, desconfiança e protestos pululam. Todo
mundo se pergunta: não existe outro tipo de democra-
cia? É de se surpreender que, nesse contexto, a ideia
voltar ao sorteio não passe pela cabeça?

174
IV. REMÉDIOS do surpreendeu muita gente. A publicação ocorreu al-
guns meses antes das eleições presidenciais que seriam
vencidas por George Bush sênior, derrotando Michael
Dukakis. Ambos foram escolhidos por seus partidos
Há um belíssimo provérbio frequentemente atri- depois de uma série de primárias e assembleias eleito-
buído a Gandhi, mas que, na verdade, é de origem rais partidárias realizadas em todo o país. Como nos
centro-africana: «Tudo que fazes para mim sem mim, Estados Unidos essas primárias começam sempre nos
fazes contra mim». É um resumo da tragédia da demo- Estados de Iowa e New Hampshire, sendo amplamente
cracia representativa eleitoral de hoje: ainda que com cobertas pela mídia, esses Estados acabam tendo mais
as melhores das intenções, quem governa o povo sem força do que normalmente teriam. Quem vai bem em
sua participação governa pela metade. No século xviii, audiência ganha mais tempo no ar; quem vai mal per-
com grande parte da população analfabeta e vastas re- de, ou seja, os financiadores de campanha se retiram.
giões inacessíveis, as eleições foram instituídas por ra- Antes mesmo que os filiados dos partidos tenham
zoes práticas. Mas elas ainda se justificam hoje? tempo de conhecer bem os pré-candidatos do próprio
partido, o pleito já está mais ou menos definido pelas
regras da mídia e pelos patrocinadores.
O retorno do sorteio: Tudo dentro da normalidade, afirmava James
democracia deliberativa (final do século XX) Fishkin. Mas o quanto isso é democrático? Esse jovem
professor da Universidade do Texas conhecia bem a
Em agosto de 1988, a revista norte-americana The bibliografia sobre o tema. Havia lido Para além da
Atlantic Monthly publicou um artigo notável de James democracia adversária, obra da cientista política Jane
Fishkin. Não tinha mais de duas páginas, mas o conteú- Mansbridge que havia sido publicada alguns anos an-

176 177
tes. Para Mansbridge há duas tradições democráticas à presidência, tanto republicanos como democratas.
nos Estados Unidos, a adversária (adversary) e a uni- Os cidadãos poderiam ouvir os planos de governo
tária (unitary): uma inimiga e uma respeitosa, uma de dos candidatos e interagir com eles. Tudo poderia ser
disputa entre partidos e outra de diálogo entre os cida- acompanhado pela televisão, para que os demais cida-
dãos. Fishkin leu também Democracia forte (1984), de dãos pudessem fazer suas escolhas de forma mais cons-
Benjamin Barber, um dos livros de teoria política mais ciente. Fishkin adota propositadamente dois aspectos
influentes das últimas décadas do século XX. Barber da democracia ateniense: os participantes deveriam ser
faz uma distinção entre democracia forte e fraca e afir- sorteados e os preteridos ganhariam uma indenização
ma que a democracia de conflitos e representativa de para garantir a maior diversidade possível. «A igualda-
hoje caracteriza uma democracia fraca. de política funcionaria através da amostra arbitrária.
Foi um período fascinante. John Rawls e Jürgen Todo cidadão, em teoria, teria a mesma a chance de
Habermas, dois dos maiores autores de filosofia política participar.» Divisão igualitária de oportunidade polí-
do pós-guerra, pleiteavam por maior participação dos tica: o ideal ateniense renascia das cinzas. Mas o que
cidadãos nos debates sobre os caminhos que a socieda- Fishkin visava com essa amostra era mais do que a ené-
de deveria seguir no futuro. Esse tipo de debate poderia sima pesquisa de opinião: «Essas pesquisas apontam
se desenvolver racionalmente e tornar a democracia o que o público pensa quando não reflete. […] uma
mais legitima. Havia mais pesquisadores nos meios amostra deliberativa, ao contrário, mede o que o públi-
acadêmicos estudando os limites do sistema atual. co pensa quando lhe é dada a chance de refletir».
Não se deveriam colocar essas novas ideias em O termo democracia deliberativa foi cunhado
prática? Fishkin propunha em seu famoso artigo no para designar uma democracia em que os cidadãos
Atlantic reunir 1500 cidadãos de todo os Estados Uni- não apenas votam nos políticos, mas também dis-
dos, durante duas semanas com todos os candidatos cutem com eles e com os especialistas. Democracia

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deliberativa é uma forma de democracia em que as Fishkin queria realmente pôr à prova sua su-
deliberações coletivas têm papel central e os partici- gestão. Tentou diferentes formas e meios de organi-
pantes, baseados em informações e argumentações, zação, mas não tinha tempo hábil para aplicá-los nas
formulam soluções concretas e racionais para vencer eleições presidenciais de 1992. Como levar todos os
os desafios sociais que se apresentam. Para evitar que participantes? Onde dormiriam? Duas semanas era
alguns participantes eloquentes prejudiquem o pro- muito tempo, 1500 cidadãos era gente demais. Ele
cesso coletivo, deve-se formar pequenos subgrupos adaptou sua proposta: seiscentas pessoas em um fim
de trabalho, com moderadores profissionais e cenário de semana, além de realizável, era estatisticamente
predefinido. A bibliografia sobre democracia delibe- representativo. Após alguns projetos-piloto delibe-
rativa pululou nos últimos anos, mas sua inspiração é rativos em pequenos grupos na Inglaterra, ele estava
de 2500 anos atrás. O próprio Fishkin diz: «A combi- pronto em 1996, ano em que Bill Clinton e Bob Dole
nação entre igualdade política e deliberação remonta disputariam as eleições. De 18 a 21 janeiro ocorreu em
à antiga Atenas, onde um microcosmo deliberativo de Austin, Texas, a primeira grande amostra deliberati-
centenas de homens diferentes, escolhidos por sorteio, va, chamada de National Issues Convention. Fishkin
tomava decisões cruciais. Com o declínio da democra- recebeu apoio de 4 milhões de dólares da American
cia ateniense, a prática caiu em desuso, para não dizer Airlines, do Southwestern Bell, da cidade de Austin e
no esquecimento».1 do canal público PBS (Public Broadcasting Service). A
PBS deixou o evento no ar por mais de quatro horas,
para que um vasto público acompanhasse as delibe-
1  David Holmstrom, «New kind of poll aims to create an ‘au- rações entre os cidadãos sorteados e os diversos can-
thentic public voice’», The Crhistian Science Monitor, 31 ago.
1995; James S. Fishkin e Robert C. Luskin, «Experimenting with didatos à presidência. Apesar do generoso apoio que
a democratic ideal: deliberative polling and public opinion», Acta teve, Fishkin sofreu muitas críticas. Mesmo antes do
Politica, 2005, pp. 40, 287.

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início do evento, jornalistas do país inteiro receberam As conclusões objetivas da pesquisa também fo-
exemplares da revista Public Perspective opondo-se à ram surpreendentes: a diferença entre «antes» e «de-
iniciativa.2 Cidadãos deliberando? Impossível, ou pelo pois» revelou-se marcante. O processo de deliberação
menos indesejável, certamente perigoso. tinha deixado os cidadãos visivelmente mais compe-
James Fishkin não desanimou. Como cientista, tentes, mais refinados em seus juízos políticos. Tinham
tinha a necessidade de descobrir como as coisas fun- aprendido a expor seus pontos de vistas e ficaram com
cionariam na prática. Ele fez os participantes preen- o olhar mais apurado para a complexidade da tomada
cherem questionários — antes, durante e depois das de posições políticas. Foi demonstrado cientificamen-
deliberações — para observar o desenvolvimento de te, pela primeira vez, que pessoas comuns podem se
seus pontos de vistas. Antes de começar, os participan- tornar cidadãos competentes desde que tenham ins-
tes receberam dossiês contendo informações factuais e trumentos para isso. Fishkin acreditava que a prática
tiveram a oportunidade de conversar com especialis- fortaleceria a democracia, distante da «democracia de
tas. Eles poderiam ser influenciados? Em todo caso, os massa baseada em sondagens, jingles de política e slo-
participantes ficaram impressionados com «a grande gans» em favor da «verdadeira voz popular».4
dedicação, o respeito mútuo e o senso de humor da
maioria das pessoas, permitindo uma atmosfera de to- A obra de James Fishkin rendeu uma verdadei-
lerância entre opiniões divergentes».3 ra guinada deliberativa na ciência política. Nenhum
cientista político sério põe mais em dúvida que a de-
mocracia deliberativa deu nova força à democracia re-
2  Daniel M. Merkle, «The National Issues Convention delibera- presentativa eleitoral moribunda. A participação dos
tive poll», Public Opinion Quarterly, 1996, pp. 60, 588-619.

3  John Gastil, Deliberation at the National Issues Convention: An


Observer’s Notes, Kettering Foundation, 1996. 4  David Holmstrom, 1995.

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cidadãos não se limita mais à participação em greves, na China, a política de cidades etc. A iniciativa levou
assinatura de abaixo-assinados e outras formas de mo- sempre a mudanças na legislação. A democracia de-
bilização permitidas em espaço público, devendo ser liberativa pareceu também funcionar em sociedades
ancorada também nos mecanismos institucionais. O profundamente divididas, como a Irlanda do Norte.
próprio Fishkin organizou, posteriormente, dezenas Fishkin fez pais católicos e protestantes deliberarem
de amostras deliberativas em todo o mundo, com re- sobre a reforma do ensino e constatou que pessoas que
sultados quase sempre impressionantes.5 No Texas, não se falavam de repente elaboraram juntas propos-
por diversas vezes, ele sorteou cidadãos para deliberar tas bastante concretas.
sobre energia renovável, tema pouco familiar para um Também em outros lugares buscaram-se novos
estado produtor de petróleo. Essas deliberações entre modelos de participação cidadã. Existe na Alemanha,
cidadãos sorteados fez subir de 52 para 84 o percen- desde 1970, as «células de planificação» (Planungs-
tual de pessoas que se declararam favoráveis à utili- zellen). A Dinamarca instituiu em 1986 o «conselho
zação de energia eólica ou solar! O apoio permitiu ao tecnológico» (Teknologi-rådet), uma instituição para-
Texas se tornar, em 2007, o maior estado norte-ameri- parlamentar de incentivo à participação cidadã para
cano em produção de energia eólica, quando dez anos estudar as consequências sociais das nova tecnolo-
antes era um dos últimos da fila. No Japão, o tema gias, como os organismos geneticamente modificados
foi aposentadoria; na Bulgária, a discriminação dos (OGMs). A França estabeleceu em 1995 a Comissão
ciganos; no Brasil, a carreira de funcionário público; Nacional para o Debate Público, para permitir a par-
ticipação dos cidadãos em questões sobre meio-am-
biente e infraestrutura. A Inglaterra instituiu os «júris
5  Não apenas Canadá, Austrália, Irlanda do Norte, Dinamarca,
Itália, Hungria, Bulgária, Grécia, Polônia e a Comunidade Euro- cidadãos» (Citizen Juries). Flandres fundou, em 2000,
peia, mas também Brasil, Argentina, Japão, Coreia, Macau, Hong o «Instituto Sociedade e Tecnologia» (Instituut Samen-
Kong e até China. Ver: www.cdd.stanford.edu.

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leving en Technologie) para mobilizar os cidadãos para ropeia aplicou diversas vezes a democracia delibera-
a área de tecnologia. São apenas alguns exemplos. No tiva («Meeting of the Minds» em 2005, as «Consultas
site participedia.net encontram-se informações sobre aos cidadãos europeus» em 2007 e 2009) e proclamou
as centenas de projetos de participação dos últimos 2013 como «O ano do cidadão».
anos. A lista aumenta a cada dia. Não importa a forma de consulta — júri cida-
Foi sobretudo nas cidades que o terreno mostrou- dão, pequenos públicos, conferências de consenso,
-se fértil. Os moradores de Nova York participaram amostras deliberativas, células de planificação, deba-
das discussões durante dois dias inteiros para decidi- tes públicos, assembleia de cidadãos, parlamento do
rem sobre o futuro do Ground Zero. Em Manchester, povo, encontros na prefeitura —: os organizadores
o tema foi a luta contra a criminalidade. Em Porto importam-se em escutar a voz do cidadão entre duas
Alegre e em outras diversas cidades sul-americanas, eleições. A democracia representativa eleitoral se en-
realiza-se o orçamento participativo, em que cidadãos riquece com uma forma de democracia representativa
decidem diretamente onde aplicar o orçamento da ci- aleatória.
dade. Na cidade de Wenling, na China, cidadãos sor-
teados são conselheiros dos altos quadros do partido Para cada projeto deliberativo deve-se decidir a
em questões relacionadas às grandes obras de infraes- composição do painel de cidadãos. Se os cidadãos ins-
trutura. Em Roterdã, distrito sul, e em Genk, na Bélgi- crevem-se espontaneamente, sabemos que certamente
ca, reuniu-se em 2013 grandes amostras de habitantes estão motivados e vão se empenhar. O inconveniente
para deliberar sobre os grandes desafios socioeconô- da autosseleção é que só aparecerão homens eloquen-
micos do futuro. tes e altamente qualificados, em geral brancos e com
Entretanto, a democracia participativa não se mais de trinta anos, os chamados «cidadãos profissio-
limita à democracia local ou nacional. A União Eu- nais». Não é o ideal. Se o recrutamento for feito por

186 187
sorteio, haverá mais diversidade e legitimidade, só que Institui-se assim mais uma aristocracia seletiva, não
também mais despesas: a composição de uma amos- pela via democrática, mas uma aristocracia autossele-
tra boa e representativa é custosa e os participantes tiva. Consequentemente, não se avança. A convenção
convocados, não voluntários, não terão conhecimento cidadã acaba virando um «conclave da meritocracia».6
básico do assunto e provavelmente perderão rápido
o interesse. Autosseleção eleva a eficiência; sorteio, a
legitimidade. Às vezes se opta por uma forma inter- Renovação democrática na prática:
mediária: sorteio seguido de autosseleção, ou autosse- um percurso internacional (2004-13)
leção seguida de sorteio.
O que não deve ser feito: em abril de 2008 o pri- De todos os processos participativos dos últimos
meiro-ministro australiano Kevin Rudd convocou um anos, cinco saltam aos olhos, creio, por serem mais
milhão de habitantes para uma reunião cidadã em 2020 audaciosos e determinantes, e por terem sido aplica-
na Austrália. Ele buscava os «melhores e mais brilhan- dos em escala nacional. Dois no Canadá, um nos Paí-
tes» do país — um slogan que se encaixaria muito bem ses-Baixos, um na Islândia e outro na Irlanda. Todos
no século XVIII. Os cidadãos deveriam apresentar são da década passada (o irlandês desenrolou-se até
sua candidatura com uma lista de qualificações e en- 2013); todos com mandato temporário e orçamento
viar uma carta de apresentação explicando como par- público considerável; todos tratando temas extrema-
ticipariam do processo. Não seria recebida nenhuma mente importantes, como a reforma da lei eleitoral e
verba ou qualquer reembolso de viagem e hospedagem
— isso em um país com as dimensões da Austrália.
Quantas mulheres pobres aborígenes do norte pode- 6  Janette Hartz-Karp e Lyn Carson, «Putting the people into po-
riam comprar uma passagem para viajar a Camberra? litics: the Australian Citizens’ Parliament», International Journal
of Public Participation, v. 3, n. 1, 2019, p. 18.

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até mesmo da Constituição. O verdadeiro coração da colocaram em xeque a legitimidade do modelo vigen-
democracia. O que é totalmente diferente de deixar os te. As autoridades tinham de reagir para reestabelecer
cidadãos deliberarem sobre energia eólica ou espigas a confiança.
de milho. A Colúmbia Britânica, em 2004, tomou a ini-
A Figura 4 traz os dados essenciais relativos aos ciativa de realizar o processo deliberativo mais am-
projetos, dividos em duas fases. A primeira, de 2004 bicioso do mundo no período moderno. Esse estado
a 2009, diz respeito aos fóruns cidadãos nas provín- canadense visava a reforma da lei eleitoral através de
cias canadenses da Colúmbia Britânica e Ontário e, 160 cidadãos sorteados. O Canadá utilizava ainda o
nos Países-Baixos, três projetos sobre a reforma da lei sistema eleitoral britânico, que funcionava segundo o
eleitoral, ou pelo menos sobre a elaboração de uma princípio de maioria: quando um candidato em uma
proposta de reforma. circunscrição fica na frente mesmo com pouca dife-
A segunda fase iniciou-se em 2010 e continua até rença de votos, ele ganha tudo (the winners takes all,
hoje. É o caso da Assembleia Constituinte da Islândia em vez do sistema proporcional). Era o mais legítimo?
(Stjórnlagaping á Íslandi) e a Convenção Constitucio- Os participantes da assembleia cidadã se encontraram
nal da Irlanda (An Coinbhinsiún ar na mBunreacht), uma vez por mês durante um ano. A mudança da lei
dois projetos de mudança na constituição. Na Irlan- eleitoral é um típico exemplo de questão que os parti-
da, tratava de oito artigos constitucionais, na Islândia, dos políticos têm dificuldade de tratar: em vez de bus-
do texto integral. Convidar cidadãos para redigir uma car o interesse comum, preocupam-se com os riscos
Constituição não é tarefa simples. Não por acaso, esses que as novas regras podem trazer para eles.
dois países, que sofreram demais com a crise de cré-
dito de 2008, resolveram tentar uma inovação demo- Figura 4: Inovação democrática em alguns paí-
crática. A falência da Islândia e a recessão na Irlanda ses ocidentais

190 191
Local Islândia Irlanda Colúmbia Britâni- Países-Baixos Ontário, Canadá
ca, Canadá
300 mil 6,4 milhões 4,4 milhões 16,7 milhões 12,9 milhões

Projeto Assembleia Cons- Convenção Consti- Assembleia cidadã Fórum cidadão para Assembleia cidadã
tituinte tucional para reforma elei- o sistema eleitoral para reforma elei-
(Stjórnlagaping á (An Coinbhinsiún ar toral 2006 toral
Íslandi) na mBunreacht) 2004 2006-7
2010-2 2013

Missão nova Constituição 8 artigos da Consti- reforma do sistema reforma do sistema reforma do sistema
tuição eleitoral eleitoral eleitoral

Comissionado por Parlamento Parlamento governo governo governo

Duração 2 anos ( 3 fases) : um ano um ano 9 meses (10 fins de 9 meses


semana)

Orçamento (€) 2,2 milhões 1,2 milhões 4,1 milhões 5,1 milhões (sem 4,5 milhões
pessoal)

Número 25 cidadãos 100 cidadãos 160 cidadãos 140 cidadãos 103 cidadãos

Composição representação pro- 66 leigos, 33 políticos 1 homem e 1 mu- representação pro- 1 cidadão de cada
porcional por região (29 da República da lher de cada um dos porcional por região distrito, 52 mulheres,
e gênero Irlanda, 4 da Irlanda 79 distritos, mais e gênero 51 homens, 1 abo-
do Norte) e 1 presi- dois líderes aborí- rígine
dente genes

Seleção eleição direta: 522 Segundo o grupo: O recrutamento seguiu três fases:
candidatos, 25 elei- Presidente nomeado, Sorteio: convite a cidadãos escolhidos arbitrariamente (baseados nas
tos, 3 assentos no cidadãos sorteados e listas de estado civil)
Parlamento políticos eleitos Autosseleção: quem queria se candidatar podia se apresentar à reunião
informativa e confirmar ou não a participação
Sorteio: cota a partir de cada grupo de candidatos

192 193
Indenização 4 meses de renda completa, para todos € 110 por dia, deslo- € 400 por fim de € 110 por dia
parlamentar os custos camento + babá semana

Procedimento 1. Fórum nacional: 1. Oito fins de sema- Procedimento: Processo desenvolvido em três fases de 3 a 4 semanas
1000 cidadãos sobre nas com especialistas cada uma
valores 2. Cada um apresenta Fase de formação com especialistas
2. Comitê constitu- suas sugestões Fase de consulta aos cidadãos: reuniões regionais
cional: conselhos de 3. Reuniões regionais Fase de decisões e resoluções
7 políticos 4. Sessões plenárias
3. Conselho cons- via internet
titucional: 25 cida- 5. Sugestões para a
dãos redação

Resolução Proposta para a Relatórios e reco- Fazer valer cada voto Um voto, mais esco- Uma cédula, dois vo-
nova Constituição mendações para a (dez. 2004) lhas (dez. 2006) tos (maio 2007)
da República da Is- Convenção
lândia (jul. 2011)

Mandato Vinculativo: a ser Vinculativo: a ser Vinculativo: a ser não vinculativo Vinculativo: a ser
confirmado por confirmado pelo Par- confirmado por re- confirmado por re-
referendo lamento ferendo ferendo

Efeito Continuação: Re- Continuação: As su- Continuação: Re- Continuação: Sem Continuação: Re-
ferendo em 2012: gestões são entregues ferendo em 2005: referendo; interrom- ferendo em 2007:
maioria de 2/3 em ao Parlamento, que 57,7%; em 2009: pido pelo governo 36,9%
todos os parágrafos. deve decidir, em até 39,9% em 2008
O Parlamento deve quatro meses, pela
confirmar duas ve- realização ou não de
zes entre as eleições referendo; em caso
de referendo, basta
maioria simples

194 195
A ideia de trabalhar com cidadãos independentes rante anos por melhorias nas regras do jogo democrá-
também parecia fazer sentido para Ontário. O estado ti- tico. Em 2003, para ser aliado do governo, o partido
nha uma população três vezes maior do que a Colúmbia procurou convencer seus colegas de coalizão a criar
Britânica, e também foram enviados convites a um gru- um fórum cidadão para o sistema eleitoral, com a es-
po numeroso de cidadãos inscritos em listas eleitorais perança de repetir a experiência realizada no Canadá.
e escolhidos arbitrariamente. Os interessados poderiam Os outros partidos não se entusiasmaram com a ideia,
apresentar-se à reunião de informação e confirmar ou mas, como precisavam do apoio do D66 para gover-
não a participação. Do grupo de candidatos, seria sor- nar, aceitaram-na. Quando o D66 deixou o governo
teada uma plenária representativa composta de 103 ci- logo após as eleições antecipadas de 2006, o projeto
dadãos: devendo ser 52 mulheres e 51 homens e pelo caiu no esquecimento — de modo tão discreto, que a
menos um aborígene, e respeitando a pirâmide etária. maioria dos neerlandeses, mesmo os leitores assíduos
Apenas o presidente era nomeado. Dos participantes da de jornais, não ouviram mais falar da ideia e se esque-
assembleia escolhidos por sorteio 77 tinham nascidos ceram dela. Uma pena, pois muitas coisas interessan-
no Canadá e 27 no exterior. Entre eles haviam auxiliares tes foram realizadas no Canadá.8
de creches, contadores, operários, professores, funcio- Nos três casos citados, o recrutamento desenvol-
nários públicos, empresários, profissionais de tecnolo- veu-se em três etapas: 1) sorteio simples de cidadãos
gia e informática, estudantes e funcionários da saúde. registrados nas listas eleitorais: recebiam convite pelos
Ainda que os Países-Baixos tenham um sistema correios; 2) processo de autosseleção: quem queria se
eleitoral proporcional, o partido político D667 luta du- candidatar podia se apresentar à reunião informativa

7  Partido liberal reformista, considerado de centro-esquerda no 8  Manon Sabine de Jongh, Group Dynamics in the Citzens As-
atual cenário político. (N. T.) sembly on Electoral Reform, Utrecht, 2013, p. 53.

196 197
e confirmar ou não a participação; 3) sorteio entre os O que surpreende também é que nenhum des-
candidatos, respeitando-se uma cota a partir de cada ses três projetos conseguiu influenciar realmente a
grupo, em função da idade, gênero e outros critérios. vida pública. Como isso é possível? Uma contribuição
Um sistema mesclado com sorteio/autosseleção/sorteio. sensata, sem efeitos concretos? Sim. Nos três casos,
As discussões realizaram-se em três lugares dife- a proposta da assembleia deveria ser confirmada por
rentes durante nove a doze meses. Durante esse perío- referendo. Como instrumento democrático, o sorteio
do, os participantes primeiro familiarizavam-se com era ainda muito estranho para gozar de legitimidade
a matéria, consultando especialistas e documentos. intrínseca. É mais ou menos como se fosse preciso
Depois havia discussões e deliberações com outros validar através de um referendo uma decisão do júri
cidadãos. Por fim, formulavam-se sugestões concretas popular norte-americano. Dessa maneira, o trabalho
para alterar a lei eleitoral. (Vale a pena observar que os de dezenas de cidadãos durante meses deveria ser
cidadãos de Ontário escolheram um modelo eleitoral submetido, uma segunda vez, ao juízo da população.
diferente dos cidadãos da Colúmbia Britânica: delibe- Na Colúmbia Britânica 57,7% dos cidadãos votaram
ração não é manipulação direcionada a uma escolha a favor. Um número alto, mas não o suficiente para
predeterminada.) atingir os 60% exigidos. (nova chance foi dada em
O que surpreende quando se lê na internet os rela- 2009, mas o entusiasmo despencou para 39,9%). Em
tórios dos Parlamentos canadense e neerlandês é a opa- Ontário, apenas 36,9 votaram a favor. Naos Países-
cidade das nuances com que se argumentam alternativas -Baixos, o governo Balkenende9 não deu prossegui-
tecnicamente refinadas. Quem duvida ou está habituado
a duvidar que cidadãos sorteados sejam capazes de tomar
decisões sensatas e racionais deveriam ler esses relató- 9  Jan Peter Balkenende, nascido em 1956, foi primeiro-ministro
rios. As conclusões de Fishkin confirmam-se novamente. Holandada Holanda de 22 de julho de 2002 a 14 de outubro de
2010. (N. T.)

198 199
mento às sugestões do Fórum Cidadão para o Sistema jogando-as na lixeira.11 4) a mídia colocou-se frequen-
Eleitoral, embora tenham sido investidos 5 milhões temente contra as assembleias cidadãs no Canadá,
de euros no projeto. sem se importar com o conteúdo das propostas: em
Renovação democrática é um processo lento. Os Ontário a impressa comportou-se de modo «histerica-
fracassos no processo canadense e neerlandês são par- mente negativo»;12 5) os fóruns cidadãos quase nunca
ticularmente instrutivos. Há diversas explicações: 1) tinham porta-vozes aguerridos e orçamento suficien-
os cidadãos convocados para o referendo não haviam te: apesar da mídia dar as cartas, a verba era gasta mais
acompanhado as deliberações: a opinião desavisada de com trabalhos internos que com marketing; 6) um re-
uns (raw opinion) contrastava com a opinião com co- ferendo sobre reformas complexas tende sempre à vi-
nhecimento de causa (informed opinion) de quem par- tória do não: «se você não sabe, diga não», é assim que
ticipou do processo;10 2) os fóruns cidadãos são insti- funciona; foi assim também no caso da Constituição
tuições temporárias com mandato por tempo limitado Europeia: era só os opositores levantarem alguma dú-
e têm menos peso do que os órgãos formais estabe- vida sobre algum projeto que os defensores do «sim»
lecidos; 3) os partidos políticos têm frequentemente tinham de ser muito mais eloquentes na persuasão. É
interesse em desacreditar ou simplesmente ignorar as de questionar se o referendo é o meio mais adequado
propostas, já que a reforma eleitoral pode custar-lhes para a tomada de decisões sobre dossiês complexos.13
o poder: nos Países-Baixos, o governo decidiu não or-
ganizar nenhum referendo e sumir com as propostas,
11  Manon Sabine de Jongh, 2013, pp. 53-5.

12  Lawrence LeDuc, «Electoral reform and direct democracy in


Canada: when citizens become involved», West European Politics,
10  Ideia tomada emprestada de uma conversa com Kenneth v. 34, n. 3, 2011, p. 559.
Carty, diretor de pesquisa do fórum cidadão da Colúmbia Britâ-
nica em 13 dez. 2012, em Lovaina. 13  Ibid., p. 563.

200 201
Nas últimas décadas, o referendo foi frequen- to em uma discussão deliberativa se expressa uma opi-
temente utilizado como um instrumento efetivo de nião pública esclarecida.
reforma democrática. Em um tempo em que a socie- Assembleias cidadãs podem dar bons trabalhos, e
dade se individualiza e a sociedade civil tem cada vez mais cedo ou mais tarde devem apresentar suas reso-
menos peso, parece muito útil perguntar diretamente luções. É sempre um processo penoso. A visão estreita
à população sua opinião sobre dossiês controversos. em uma discussão política reclusa alarga-se e se ilumi-
Desde os referendos sobre a Constituição Europeia na no espaço público. Os adversários mais virulentos
realizados nos Países-Baixos, na França e na Irlanda, encontram-se sempre nos partidos políticos e na mí-
o amor por eles esfriou um pouco. Apesar disso, o re- dia. O fenômeno espalha-se por toda parte e intriga.
ferendo ainda tem grande popularidade, como mos- De onde vem essa implicância?, perguntam-se muitos
tram aqueles sobre a Independência da Catalunha e acadêmicos e ativistas. Enquanto a sociedade civil
da Escócia e o Brexit. Referendos e democracia delibe- mostra-se quase sempre favorável a uma participação
rativa são semelhantes no que diz respeito à consulta maior dos cidadãos — o que fazem os sindicatos, or-
direta sobre a opinião do cidadão. De resto, são bem ganizações patronais, movimentos da juventude, as-
diferentes entre si: em um referendo, pede-se voto a sociações femininas e outros atores da vida social há
todos os eleitores para um tema sobre o qual a gran- mais de um século —, a imprensa e o mundo político
de maioria deles quase sempre tem pouco conheci- frequentemente desdenham dela. Pode ser porque eles
mento, enquanto em um projeto deliberativo pede-se próprios se apresentam como devotos guardiões da
a um grupo representativo de pessoas que discutam opinião pública e não querem dar o braço a torcer?
um tema sobre o qual receberam o maior número de Faz sentido. Será que é porque a imprensa e o mundo
informações possíveis. Em um referendo, as pessoas político pertencem ao antigo sistema representativo
exprimem-se quase sempre com má vontade, enquan- eleitoral e têm dificuldade em aceitar novas formas

202 203
de democracia? Pode ser. Quando tudo é imposto «de dramática e dificilmente vira uma novela. O Canal 4
cima para baixo» é fácil se perturbar quando esse sen- norte-americano transmitia o programa The People’s
tido é invertido»? É uma hipótese. Parliament, uma série inspirada em James Fishkin em
Mas há ainda outros fatores. Os partidos políticos que centenas de cidadãos sorteados debatiam sobre
têm medo dos eleitores. Muitos cidadãos não confiam temas controversos, como a criminalidade juvenil e o
nos políticos, todo mundo sabe, mas que os políticos direito a voto, mas encerrou a série depois de alguns
não confiam nos cidadãos é uma novidade. Lembremo- poucos programas. Simplesmente «não pegou».14 Isso
-nos da pesquisa feita por Peter Kanne, que mostra que também explica a falta de interesse da mídia.
nove entre dez políticos não têm a confiança da popu-
lação. Se os políticos acham que, por definição, o povo A Islândia precaveu-se dos problemas encontra-
pensa diferente deles, não é de surpreender que sejam dos nas experiências canadense e neerlandesa. Para
céticos quanto à participação popular nas discussões. evitar que o trabalho de plenária dos cidadãos termi-
Também a mídia tem suas dúvidas. Processos de- nasse na lata do lixo foram introduzidas três adapta-
liberativos com cidadãos sorteados são quase sempre ções fundamentais. Primeiro, não se reuniu cem ou
experiências intensas para os participantes, mas não 160 cidadãos sorteados, mas apenas 25 foram esco-
são adaptáveis à cobertura midiática atual: são lentos, lhidos! Os candidatos deveriam obter trinta assinatu-
não têm tenores, gente conhecida ou grandes confli- ras; apresentaram-se 522 pessoas no total. O restante
tos. Os cidadãos sentam-se à mesa de discussões com da população foi às urnas para eleger a equipe de 25
bloquinho de notas e caneta nas mãos. É pouco in-
teressante para o telespectador. A democracia parla-
mentar é um teatro e propicia ótimos momentos de 14  John Parkinson, «Rickety bridges: using the media in delibe-
televisão, enquanto a democracia deliberativa é pouco rative democracy», British Journal of Political Science, v. 36, 2005,
pp. 175-83.

204 205
membros. (Devido às disputas entre partidos políticos lema era transparência e deliberação. O International
formais, a votação foi invalidada e o Parlamento de- Herald Tribune dizia ser a primeira Constituição nas-
cidiu ele mesmo eleger os membros, mas essa é uma cida da colaboração coletiva.
questão secundária. A filosofia de que o fórum consti- O resultado era previsível: quando, em 20 de ou-
tucional deveria ser eleito foi mantida.) Segundo, que- tubro de 2012, a Constituição proposta foi submetida
ria-se evitar que as atividades desse pequeno grupo a referendo, dois terços dos cidadãos islandeses vota-
não tivessem legitimidade aos olhos dos cidadãos e ram a favor. Durante as deliberações do conselho sur-
dos políticos. Milhares de cidadãos poderiam decidir giu a questão suplementar: se as riquezas naturais da
sobre os princípios e os valores da nova Constituição, e ilha que não fossem de propriedade privada deveriam
sete políticos elaborariam as recomendações prelimi- permanecer propriedade do Estado. A reposta foi de
nares do documento de setecentas páginas. A medida 83% para o sim.15
cortaria as asinhas dos eventuais críticos. Terceiro, a Ainda que esse consenso parlamentar já tenha al-
organização preferiu, muito conscientemente, não fe- guns anos, a aventura islandesa é, sem dúvida, o maior
char os 25 membros da equipe em uma redoma, para exemplo positivo de democracia deliberativa até o
que depois de alguns meses de deliberações internas momento. O sucesso vem da grande abertura de todo
aparecesse uma Constituição já pronta. Durante a re- o processo? Ou o fator foi justamente as eleições em
dação, publicavam-se versões provisórias dos artigos vez de sorteio? Difícil dizer. Não há dúvida de que as
da Constituição no site da assembleia. Comentários eleições permitiram a escolha de pessoas competentes.
no Facebook, Twitter e outras redes sociais contri-
buíam para reformulações do texto e o site era atua-
lizado constantemente com novas versões. Cerca de 4 15  Eríkur Bergmann, «Reconstituting Iceland: constitutional re-
mil comentários ajudaram a enriquecer o processo. O form caught in a new critical order in the wake of crisis», British
Journal of Political Science, v. 36, 2013, pp. 175-83.

206 207
Foi também eficiente — em quatro meses teve-se uma iniciou em janeiro de 2013 também tirou lições dessas
nova Constituição. Já em termos de legitimidade nem primeiras experiências democráticas. Suas conclusões
tanto. Qual é a diversidade de uma assembleia cons- foram: envolver os políticos mais intensamente (como
titucional formada de 25 membros, sendo sete diri- na Islândia), mas manter o sorteio para a escolha dos
gentes (de universidades, museus, sindicatos), cinco cidadãos (diferente da Islândia). Os irlandeses também
professores, quatro jornalistas, quatro artistas, dois entenderam que para se implementar o projeto com
juristas e um pastor? Até o pai da cantora Björk, sindi- sucesso era necessário o envolvimento dos políticos
calista de primeiro plano, teve um assento. Apenas um logo no início do processo, e fizeram isso bem antes
agricultor participou.16 A composição dos constituin- dos islandeses. Não se pediu formulações preliminares
tes, do ponto de vista metodológico, privilegiou talvez aos selecionados, mas se fez uma escolha consciente de
os setores mais frágeis da sociedade islandesa. Contu- reunir políticos e cidadãos ao longo de todo o percur-
do, mais que a composição, a transparência impressio- so: 66 cidadãos e 33 políticos da República da Irlanda
nante do processo contribuiu para grande consenso e e da Irlanda do Norte, incluindo Gerry Adams, traba-
aprovação. A questão permanece: um grupo de cida- lhando junto durante um ano. Pode parecer estranho
dãos sorteados, com mais tempo e mesmo com mais que um processo de participação cidadã dê a palavra
abertura, não seria capaz de elaborar uma Constitui- a nomes conhecidos dos partidos políticos, com sua
ção com resultados tão bons como a de um referendo? retórica e seu conhecimento dos dossiês. Essa escolha,
Essa foi a questão que se colocou na Irlanda pou- porém, favorece a aplicação rápida das decisões toma-
co tempo depois. A Convenção da Constituição que se das, tranquiliza os políticos do receio de se convocar
cidadãos e evita o sarcasmo dos partidos políticos.
Durante o processo deliberativo acontece quase sem-
16  http://en.wikipedia.org/wiki/Iceland_Constitutional_As- pre algo particular: os políticos perdem a desconfiança
sembly_election,_2010.

208 209
nos cidadãos, e vice-versa. A participação cidadã pode convenção não tinham ainda força de lei: as propostas
fortalecer a confiança mútua. Não há perigo dos polí- deveriam ser submetidas às duas Câmaras do Parla-
ticos se apoderarem do processo? Temos de aguardar a mento irlandês, depois ao governo e, finalmente, postas
análise do modelo irlandês, mas, para funcionar bem, em referendo. Permaneceram ainda muitas fissuras por
o peso dos participantes dever ser definido segundo o tapar, já que também na segunda fase do fórum cidadão
critério interno de «freios e contrapesos», assim como persistiu o medo de que o sorteio fosse um erro.
a divisão em subgrupos e a repartição das decisões. Em 22 de maio de 2015, o povo irlandês apro-
Além disso, os irlandeses optaram pelo sorteio vou em referendo nacional a emenda constitucional
com muita resolução. Sua Convenção Constitucional que permitia a o casamento entre pessoas do mesmo
baseou-se em um projeto de sucesso anterior com ci- sexo. A campanha pelo sim recebeu 62% dos votos.
dadãos sorteados, We the Citizens, realizado pela Uni- Esse referendo, a favor da revisão constitucional, es-
versity College de Dublin. Uma instituição de pesquisa tava previsto pela Convenção Constitucional de 2013,
independente formou, aleatoriamente, um grupo de 66 aprovada com 79% dos votos. Não conheço melhor
pessoas baseado em idade, gênero e origem (República exemplo prático de que a democracia deliberativa
da Irlanda ou Irlanda do Norte). A diversidade era um pode realmente fazer a diferença. Nos tempos moder-
componente positivo para se tratar de temas polêmicos nos, foi a primeira vez no mundo que uma delibera-
como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os di- ção com cidadãos sorteados promoveu uma emenda
reitos da mulher e a proibição da blasfêmia, presente na constitucional.17
Constituição. Eles não estavam sós: os participantes ou-
viam especialistas e recebiam intervenções de outros ci-
dadãos (receberam milhares de mensagens com relação 17  https://www.washingtonpost.com/blogs/monkey-cage/
à união civil de pessoas do mesmo sexo). As decisões da wp/2015/06/05/the-irish-vote-for-marriage-equality-started-at-
-a-constitutional-convention/.

210 211
Para comparação: enquanto na Irlanda «católica» to os políticos hesitam, a mídia desconfia e os cidadãos
a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo ignoram, os acadêmicos e ativistas refletem sobre novos
sexo foi mais ou menos serena, graças aos debates en- horizontes. Como afirma o filósofo belga Philippe van
tre os cidadãos, na França «libertária» presenciou-se Parijs, sua tarefa é «ter razão antes».18 Quando John Stuart
uma disputa política durante um ano inteiro para tra- Mill, no meio do século XIX, defendia o direto de voto às
tar exatamente do mesmo tema. Manifestações com mulheres, seus contemporâneos o chamavam de louco.
mais de 300 mil pessoas ocuparam as ruas de Paris. Conscientes de que seriam recebidos com sorrisos
Bastaria ter dado a palavra ao cidadão. de escárnio e esnobismo, diversos autores, durante dé-
cadas, pleitearam o sorteio institucional e constitucional
com o intuito de favorecer a democracia. Eles julgavam
Renovação democrática no futuro:
que não podiam se ater a projetos pontuais; cidadãos
assembleias sorteadas
sorteados deviam fazer parte da estrutura do Estado.
A discussão era o modo como fazê-lo. A maioria dos
Se me alonguei um pouco nos exemplos do Cana-
teóricos propôs que órgãos legislativos fossem consti-
dá, dos Países-Baixos, da Islândia e da Irlanda, é porque
tuídos por sorteio. Desde então, preparam-se mais de
se tratam de experiências de inovação democrática en-
vinte propostas.19 Todos os autores defendem que o Par-
tusiasmantes. Ainda que tenham decorrido em grande
escala e tratado de temas fundamentais, a grande mídia
estrangeira raramente cobriu esses eventos. As lições e as 18  De Standaard, 29 dez. 2012.
experiências acumuladas não chamaram a atenção de um
19  Antoine Vergne, «A brief survey of the literature of sorti-
público internacional mais vasto. Esse vácuo não impe- tion: is the age of sortition upon us?», em Gil Delannoi e Oliver
Dowlen (Orgs.), Sortition: Theory and Practice, Exeter e Char-
de que outras pessoas pensem em dar passos adiante. A
lottesville, 2010, p. 80. Vergne conta dezesseis, mas nos últimos
democracia desenvolve-se em ritmos diferentes: enquan- tempos surgiram outros.

212 213
lamento composto de modo aleatório pode favorecer a Em 1985, os autores norte-americanos Ernest
legitimidade e a eficiência. A legitimidade, porque esta- Callenbach e Michael Phillips sugeriram transformar
belece o ideal de igualdade de oportunidade política. A a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos em
eficiência, porque a nova representação nacional não ia Câmara Representativa. Os 435 representantes não
se prender ao cabo de força entre partidos, campanhas seriam mais eleitos, mas sorteados. Eles não eram au-
eleitorais, batalhas midiáticas e conchavos legislativos. tores de contos de fadas. Ernest Callenbach havia se
Ia se preocupar apenas em servir ao bem comum. Tra- tornado famoso com o livro Ecotopia, que vendou 1
tarei das cinco propostas principais (Figura 5).20 milhão de exemplares. Muitas de suas ideias que pare-
ciam estapafúrdias à época, hoje são aceitas. Michael
Phillips era um banqueiro que havia publicado livros
20  Para os Estados Unidos: Ernest Callenbach e Michael
Phillips, A Citizen Legislature (Berkeley, 1985; nova edição Exeter como As sete leis do dinheiro e Negócios honestos. Nos
e Charlottesville, 2008); John Burnheim, Is Democracy Possible? anos sessenta, ele era o mentor da MasterCard.
The Alternative to Electoral Politics (Londres, 1985, texto comple-
to na internet); Ethan J. Leib, Deliberative Democracy in America: Para ambos, o sistema eleitor atual, além de não
A Proposal for a Popular Branch of Government (Filadélfia, 2005); ser representativo, é vulnerável à corrupção. O poder
Kevin O’Leary, Saving Democracy: A Plan for Real Presentation
in America (Stanford, 2006). Para a Inglaterra: Anthony Barnett do capital pesa demais na balança. O sorteio poderia re-
e Peter Carty, The Athenian Option: Radical Reform for the Hou- mediar isso. Os cidadãos eleitos seriam sorteados a par-
se of Lords (Londres, 1998; nova edição Exeter e Charlottesville,
2008); Alex Zakaras, «Lot and democratic representation: a mo- tir de listas já existentes no júri popular (mais inclusivas
dest proposal», Constellations, v. 17, 2010, p. 3; Keith Sutherland, até que as listas eleitorais norte-americanas) e por três
A People’s Parliament: A (Revised) Blueprint for a Very English
Revolution (Exeter e Charlottesville, 2008) e «What sortition can
and cannot do» (2011, http://ssrn.com/abstract=1928927). Para a
França: Yves Sintomer, 2011). E para a União Europeia: Hubertus
Buchstein, Demokratie und Lotterie: Das Lot als politisches Ents- Europe: the lottery as a political instrument for a reformed Euro-
cheidungsinstrument von Antike bis zur EU, (Frankfurt e Nova pean Union», em Gil Delannoi e Oliver Dowlen (Orgs.), Sortition:
York, 2009); Hubertus Buchstein e Michael Hein, «Randomizing Theory and Practice (Exeter e Charlottesville, 2011), pp. 119-55.

214 215
Figura 5: Propostas para sorteio nas assembleias legislativas
País Estados Unidos Reino Unido Reino Unido França União Europeia

Nome Câmara Representativa Câmara dos Iguais Câmara dos Comuns Terceira Assembleia Câmara dos Sorteados

Função substituir a Câmara substituir a Câmara substituir a atual Câ- somar-se ao Senado e somar-se ao Parla-
dos Representantes dos Lordes mara dos Comuns à Assembleia Nacional mento Europeu

Tamanho 435 600 — — 200

Composição sorteio anônimo das 1) sorteio a partir de sorteio restringido sorteio entre candi- sorteio entre os cida-
listas de júri popular listas eleitorais; 2) au- por idade, instrução datos voluntários dãos da União Euro-
tosseleção; 3) sorteio e educação peia, proporcional e
por cotas (gênero e compulsório
região) e membros de
partidos políticos.

Duração 3 anos (renovável 1-4 anos 1-10 anos — 2,5 anos (uma legis-
por períodos) latura no máximo)

Remuneração bastante justa no mínimo o mesmo justa no mínimo igual aos bastante atraente do
valor dos parlamen- deputados e sena- ponto vista financei-
tares atuais + verba dores + formação e ro e organizacional
de gabinete justa administração

propor leis e exami- examinar as propostas examinar as propos- temas de discussão iniciativa, conselho
Mandato nar as propostas de de leis da Câmara dos tas de leis prolongada: ecolo- e veto
lei do Senado Comuns (controlando gia, questões sociais,
clareza, eficiência e sistema eleitoral,
constitucionalidade) Constituição

Autor Callenbach e Phillips Barnett e Carty Sutherland (2008) Sintomer (2011) Buchstein (2009)
(1985) (1998)

Ver também Ver também: Bur- Ver também: Barnett Ver também: Su- Ver também: Buchs-
nheim (1985), Leib e Carty (2008), Zaka- therland (2011) tein e Hein (2010)
(2005), O’Leary ras (2010)

216 217
anos ocupariam a função parlamentar. A remuneração A proposta deles foi aprimorada por diversos
seria proporcional, para assegurar que os pobres quises- autores. No Reino Unido surgiram outras propostas
sem participar, os ricos suspendessem suas ocupações e nessa mesma direção. Anthony Barnett e Peter Car-
as pessoas que trabalhassem demais pudessem ter mais ty defendem que a Câmara dos Lordes, único Senado
tempo. Para garantir a continuidade dos trabalhos, os no Ocidente em que alguns membros têm assento por
membros da Câmara não poderiam ser destituídos to- direito hereditário, democratizada. Barnett é funda-
dos ao mesmo tempo, mas em partes, um terço por ano. dor do site openDemocracy e escreve regularmente no The
Para os autores, as funções dos novos membros não se- Guardian; Carty escreve para diversos jornais britâni-
riam distintas daquelas da Câmara atual: propor leis ao cos de prestígio (The Guardian, The Independent, The
Senado e examinar as propostas dele. Independent on Sunday, Financial Times etc.). Dife-
Callenbach e Phillips não defendem a supressão rentemente de seu colega norte-americano, eles não
das eleições: julgam ser bastante razoável dar espaço a querem a introdução do sorteio no Parlamento, mas
cidadãos sorteados em uma Câmara para se confrontar no Senado. Isso afetaria apenas a Câmara dos Lordes,
com o Senado. A representação deve ser estabelecida não a dos Comuns. Eles defendem o direito da Câ-
pelas vias eleitoral e aleatória. «Acreditamos que a ideia mara de Sorteados de propor leis; bastaria apenas o
de uma representação direta não tem nada de aber- exame da Câmara dos Comuns. A nova Câmara dos
rante. Quando for compreendida por todos, será vista Lordes, que passaria a se chamar Câmara dos Iguais,
como honesta e correta, e mesmo poderosa e atraente, deveria examinar a clareza, a eficiência e a constitucio-
como uma extensão do direto de voto do passado.»21 nalidade das leis propostas.22 Evidentemente, eles têm

21  Ernest Callenbach e Michael Phillips, A Citizen Legislature, 22  Outra diferença com relação à proposta de Callenbach e
Exeter,2008, p. 67. Phillips é que dos seiscentos membros da Câmara dos Iguais ape-

218 219
consciência de estar propondo uma mudança radical, land concorda em não dar direito de iniciativa à Câ-
mas uma democracia deve olhar adiante. «Diz-se que mara de membros sorteados. Ele questiona, porém, a
a vida de um pensamento importante tem três fases. inexistência de restrições mínimas como idade, grau
Primeiro, é ignorado. Depois, ridicularizado. E, final- de instrução e competência. Como bom conservador,
mente, é aceito como sabedoria do senso comum.»23 sugere que os sorteados devam ser pessoas com mais
Keith Sutherland, um pesquisador da Universi- de quarenta anos, porque as aspirações da população
dade de Exeter que se apresenta como conservador, jovem, segundo ele, são supridas pela mídia de massa,
pensa o contrário. A Câmara dos Lordes permanece os partidos políticos e o marketing. Sua posição é clara:
Câmara dos Lordes, mas para a Câmara dos Comuns «O sorteio é um componente indispensável a toda for-
deve ser introduzido o sorteio, exatamente como na ma de governo que se autodefina como democrática».24
Câmara Representativa norte-americana. Para ele, Na França, o cientista político Yves Sintomer não
também é importante oferecer vencimentos generosos propôs introduzir o sorteio no Senado ou na Assem-
aos sorteados; como seus colegas britânicos, Suther- bleia Nacional, mas enriquecer o sistema com uma
nova Câmara. A Terceira Câmara deveria ser sorteada
entre cidadãos que se apresentassem voluntariamente.
nas alguns filiados de partidos poderiam ocupar assentos. Não Ele concorda também que se deva atribuir boa remu-
seriam sorteados, mas empossados para funcionar como elo en-
neração e acesso a informações. Os deputados sortea-
tre o fórum cidadão e o partido político, semelhante à Convenção
Constitucional Irlandesa. Barnett e Carty concordam com os co- dos teriam direito a assessores, exatamente como os
legas norte-americanos que as condições para o sorteio deveriam
eleitos. Ele não específica quem deve ter qual direito,
ser as mais atraentes possíveis (remuneração elevada, verbas de
gabinete), para se obter um máximo de diversidade sem cons- mas defende que a Terceira Câmara se ocupe de te-
tranger as pessoas, como no caso do serviço militar ou do júri
popular.

23  Anthony Barnett e Peter Carty, 2008, p. 22. 24  Keith Sutherland, 2011; ver também: Keith Sutherland, 2008.

220 221
mas que exige preocupação no longo termo (ecologia, mas Buchstein defende que é necessário pressionar
questões sociais, lei eleitoral, Constituição). Essa é jus- para estimular decisões deliberativas e assim controlar
tamente a dimensão que, no modelo de hoje, é quase o déficit democrático na Europa.26 Somente com pres-
sempre deixada de lado.25 sões deliberativas a União Europeia pode almejar uma
O professor alemão Hubertus Buchstein pleiteia a tomada de decisões eficiente e transparente.
criação de uma Câmera suplementar, não em nível na- O que podemos concluir dessas diferentes pro-
cional, mas supranacional. Ele defende que deve surgir postas? Em primeiro lugar, tratam-se de grandes enti-
um segundo Parlamento Europeu, com cidadãos sor- dades: França, Reino Unido, Estados Unidos e União
teados. Buchstein o chama de Câmara dos Sorteados. Europeia. O tempo em que o sorteio era coisa de cida-
Duzentos cidadãos seriam sorteados entre a população des-Estados ou microestados ficou para trás. Segundo,
adulta da União Europeia, proporcionalmente dividi- apesar das divergências consideráveis, existe consenso
da entre os Estados membros, por um período de dois com relação à duração (no máximo alguns anos) e à
anos e meio. A participação seria obrigatória, menos remuneração (a mais generosa possível). Terceiro, a
em caso de impossibilidade comprovada. Também desigualdade de competências entre os cidadãos deve
para ele, as condições financeiras e organizacionais ser compensada através de formação e apoio de espe-
deveriam ser atraentes, para não dar brecha à evasão. cialistas, como já acontece nos Parlamentos. Quarto,
Diferentemente dos autores britânicos, Buchstein acre- os membros sorteados não devem ser vistos como algo
dita que o Parlamento sorteado da União Europeia de- separado dos membros eleitos, mas seu complemento.
veria ter iniciativa legislativa e, mais ainda, formular E, finalmente, o sorteio deve ser aplicado somente a
propostas e ter direito a veto. São medidas radicais, uma das câmaras legislativas.

25  Yves Sintomer, 2011, p. 235. 26  Hubertus Buchstein, 2009, Frankfurt, p. 448.

222 223
Esboço de uma democracia baseada no sorteio com desconhecidos e fazendo trapalhadas em textos?
E, mesmo supondo que aceitem, eles farão o traba-
Na primavera de 2013, a revista científica Journal lho corretamente? Um Parlamento sorteado pode ser
of Public Deliberation publicou um artigo fascinante mais legítimo (porque é mais representativo), mas
do pesquisador norte-americano Terrill Bouricius. será mais eficiente? Ou a maior parte dos sorteados
Ele, que durante vinte anos foi um político eleito vai inventar todo tipo de pretexto para não ir e no
pelo estado de Vermont, questionava-se em que me- fim das contas a representação terminará nas mãos
dida as propostas que acabamos de ver seriam reali- de homens altamente qualificados? Que a democracia
záveis. A substituição de uma Câmara de eleitos por se fortaleça com a introdução de uma assembleia de
uma de sorteados daria novo impulso à democracia sorteados é uma bela ideia, porém existem inúmeros
no domínio das políticas públicas e da capacidade de obstáculos. Quer-se dar a palavra a todos, mas se pode
ação? Seu questionamento era particularmente perti- acabar criando uma nova forma de elitismo. Como
nente. Como ideal, deseja-se um Parlamento Europeu conciliar ideal e prática? Bouricius queria responder
de sorteados que seja representativo de toda a União a essa questão.
Europeia, mas quantos padeiros de aldeias na Lituâ- Para tanto, voltou-se à democracia ateniense, es-
nia podem fechar a padaria para tomar um assento tudou seu funcionamento e tentou encontrar de que
na Câmara dos Sorteados em Estrasburgo? Quantos maneira poderia ser aplicada nos dias de hoje. Típico
engenheiros recém-formados de Malta vão abandonar da democracia ateniense, o sorteio não era utilizado
seus projetos promissores durante três anos porque apenas para uma instituição, mas para uma série delas,
foram sorteados para o Parlamento? Quantos de- com o objetivo de criar um sistema de freios e contra-
sempregados das Midlands britânicas vão deixar seus pesos: um grupo sorteado vigiava outro. O Conselho
pubs e seus amigos durante anos para ficar fuçando dos Quinhentos decidia a agenda e preparava os pro-

224 225
jetos de lei para a assembleia do povo, mas não po- Trabalhar com várias instâncias sorteadas (multi-
dia votar as leis. Uma lei aprovada pela assembleia do -body sortition na terminologia de Bouricius) permiti-
povo podia ser revogada pelo tribunal popular, mas ria obter-se mais legitimidade e mais eficiência.
ele não podia votar as leis. O processo de decisão era Como esse sistema poderia funcionar hoje? Na
repartido entre as diferentes instituições (Figura 2B). Figura 6, procurei esquematizar o modelo de Bouri-
Parece um sistema complicado, mas tem vantagens cius. Baseei-me em seu artigo, inseri estudos anterio-
consideráveis: res e complementei com informações da minha troca
de e-mails com seu colega David Schecter.
A divisão dos poderes em Atenas entre
diferentes órgãos sorteados e participan- Na verdade, diz Bouricius, são necessários seis
tes autosselecionados tinha três objetivos
importantes na assembleia do povo que órgãos distintos. Por que tantos? Para que interesses
não existem nas legislaturas modernas opostos sejam conciliados. Como especialista na área
eleitas: 1) o poder legislativo representa- da inovação democrática, ele sabe como as coisas fun-
va relativamente bem a população civil; 2)
havia pouco espaço para corrupção e para cionam. Deseja-se que o sorteio permita obter um nú-
grande concentração de poder político; 3) mero vasto e representativo, mas se sabe também que
a possibilidade de participar e de tomar é mais fácil trabalhar em pequenos grupos. Deseja-se
decisões estendia-se de maneira mais re-
levante e ampla na população.27 favorecer a rotação rápida da participação, mas se sabe
também que trabalhos mais longos produzem resulta-
dos mais apurados. Deseja-se deixar que todos partici-
pem, mas se sabe também que se obtém concentração
27 Terrill Bouricius, 2013: Democracy through multi-body sorti- de cidadãos com alto nível de formação, capazes de se
tion: Athenian lessons for the modern day. Journal of Public Deli- exprimir. Deseja-se que os cidadãos deliberem juntos,
beration 9, 1, article 11, 5.

226 227
mas se sabe também que se corre o risco de formar um tariamente (um pouco como os tribunais populares
pensamento-padrão na tentativa de chegar rápido ao atenienses). O Conselho de Agenda indica os tópicos,
consenso. Deseja-se dar o máximo de poder possível porém, não os desenvolve. Cidadãos que não perten-
às câmaras sorteadas, mas se sabe também que certos cem ao Conselho, mas que desejam colocar questões
indivíduos exercerão influencia exagerada no proces- sobre algum tema especifico, podem solicitar encami-
so coletivo e, por consequência, vai se chegar a resul- nhamento: basta reunir o número requerido de assi-
tados arbitrários. naturas para a questão ser tratada.
Todos os que se debruçam sobre formas alterna-
tivas de processo deliberativo conhecem esses cinco
dilemas. Tamanho ideal dos grupos, duração ideal,
método de seleção ideal, método de deliberação ideal
e dinâmica de grupo ideal. Na verdade, diz Bouricius,
não existe nada ideal, e essa é uma discussão inútil. É
melhor desenvolver um modelo composto de órgãos
distintos: desse modo, as vantagens das diversas pro-
postas se fortalecem e as desvantagens se enfraquecem.
Em vez de oferecer todo o poder para as câmaras
sorteadas, seria melhor dividir os trabalhos legislati-
vos em diferentes fases.
Na primeira, define-se a agenda. Isso cabe ao
Conselho de Agenda, órgão bastante grande, em que
os participantes são sorteados entre os inscritos volun-

228 229
CONSELHO DE AGENDA: define a agenda, escolhes os tópicos JÚRI DE POLÍTICAS PÚBLICAS: vota leis; voto secreto depois de
a legislar apresentações públicas
Tamanho: 400, somente em plenária
Tamanho: 150-400 membros, eventual- Composição: sorteio entre cidadãos adul-
mente subcomitês tos, participação compulsória
Composição: sorteio entre voluntários Frequência: todas as vezes que uma lei
Duração: tempo integral deve ser votada
Rotação: 3 anos (cada 1/3), não renovável Duração: um ou diversos dias
150-400 400
Remuneração: salário Remuneração: por dia e por deslocamento

PLENÁRIAS DE INTERESSE: propõe leis sobre determinado tema CONSELHO DE REGULAMENTAÇÕES: decide sobre as regras e
os procedimentos
Tamanho: 12 por plenária, número ilimi- Tamanho: cerca de 50
12 12 tado de plenárias Composição: sorteio entre voluntários
Composição: voluntários que se inscrevem (eventualmente antigos participantes)
12 12 12 Frequência: sempre que necessário Frequência: tempo integral (no início,
Duração: a plenária termina em data pre- certamente)
c. 50
12 determinada Rotação: 3 anos (cada 1/3), não renovável
Remuneração: nenhuma Remuneração: salário

PLENÁRIAS DE REVISÃO: apresentam propostas a partir dos elemen- CONSELHO DE CONTROLE: controla o processo legislativo, aco-
tos recebidos lhe reclamações
Tamanho: cerca de 20
Tamanho: 150, divididos em plenárias; cada
uma sobre apenas um tema; participantes Composição: sorteio entre voluntários
não escolhem plenárias, são indicados Frequência: tempo integral
Composição: sorteio entre voluntários Rotação: 3 anos (cada 1/3), não renovável
Frequência: tempo integral c.20 Remuneração: salário
150 Rotação: 3 anos (cada 1/3), não renovável
Remuneração: salário e verbas

230 231
Na segunda fase, é a vez das Plenárias de Interes- plo, uma proposta para a segurança do trânsito é exa-
se, que podem ser apenas uma ou cem. As Plenárias minada pela Plenária de Revisão que trata de mobili-
de Interesse são grupos de doze cidadãos que podem dade pública. Essas plenárias são como as comissões
sugerir, cada uma, uma proposta de lei (ou parte de parlamentares. Não podem propor uma lei nem votá-
uma proposta de lei). Não são sorteadas nem eleitas, -la: devem se contentar em fazer o trabalho interme-
mas se propõem voluntariamente para refletir sobre diário (como o Conselho dos Quinhentos em Atenas).
algum tema. Em uma plenária podem haver doze cida- Com as informações transmitidas pelas Plenárias de
dãos que não se conhecem e que não tenham interesse Interesse, organizam-se as audições, convidam-se es-
comum, mas pode se tratar também de uma reunião pecialistas e elabora-se o texto da lei. Devem compor
para fazer lobby. Não é grave: essas pessoas não têm a todas as Plenárias de Revisão, sugere Bouricius, cerca
última palavra e devem levar em conta que suas pro- de 150 pessoas, que tenham se inscrito voluntaria-
postas serão avaliadas por outros. As Plenárias de Inte- mente. É uma função com enorme responsabilidade.
resse permitem que especialistas aguerridos formulem Cada membro pode permanecer por três anos, traba-
propostas concretas de política pública usando sua lhando em tempo integral e recebendo vencimentos
experiência. Isso é bom para a eficácia. Suponhamos apropriados, semelhantes aos dos parlamentares. A
que a segurança no trânsito esteja incluída na agenda; rotação não é feita no final, todos os 150 ao mesmo
isso despertará o interesse das associações de bairro, tempo, mas com a troca de cinquenta membros a cada
de ciclistas, do sindicato dos motoristas de ônibus, de ano. Os cinquenta novos membros que assumem a
gente do setor do transporte, de familiares de vítimas cada ano se somam aos outros cem, sendo cinquenta
do trânsito, da federação dos automobilistas etc. do primeiro ano e cinquenta do segundo.
Na terceira fase, todas as propostas são levadas às Para se evitar a concentração de poder nas Plená-
Plenárias de Revisão, uma para cada área. Por exem- rias de Revisão, existe um quarto órgão muito impor-

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tante: o projeto de lei é apresentado ao Júri de Políticas apresentadas por funcionários neutros. Como elas re-
Públicas, o órgão mais particular no esquema de Bou- presentam bem todo o conjunto da sociedade, as deci-
ricius. O júri não é constituído de membros perma- sões do Júri de Políticas Públicas têm força de lei.
nentes. Cada vez que uma lei deve ser votada, são sor- Para garantir o bom andamento de todo o pro-
teados quatrocentos cidadãos para se reunir durante cesso, Bouricius defende a instituição de dois órgãos
um dia todo. Em casos excepcionais, por mais tempo, extras: um Conselho de Regulamentação e um Conse-
porém não mais de uma semana. O importante é que lho de Controle, ambos compostos de membros sor-
o sorteio seja feito entre toda a população adulta (não teados. O primeiro ocupa-se do processo de sorteio,
apenas os cidadãos inscritos, lembrando um pouco o das audiências e das votações; o segundo controla se
júri popular). Quem é sorteado deve se apresentar, sal- os funcionários aplicam corretamente os procedimen-
vo dispensa justificável. Isso é importante para a repre- tos e examinam as eventuais reclamações. Ambos têm
sentatividade e, por esse motivo, os participantes são funções metapolíticas, concebendo e defendendo as
muito bem remunerados. O Júri de Políticas Públicas regras do jogo. O Conselho de Regulamentação é sor-
recebe os diferentes projetos de lei elaborados pelas teado entre pessoas que já tenham sido sorteadas para
Plenárias de Revisão, analisa os argumentos favorá- outros órgãos, porque já conhecem todos os detalhes
veis e contra e, em seguida, vota em eleições secretas. dos procedimentos.
Cessam, assim, as discussões; não há disciplina parti- O que chama mais a atenção nesse modelo é seu
dária, grupos de pressão, voto útil, barganha política, caráter evolutivo. Nada é predeterminado. «Um aspec-
favores entre amigos: cada um vota com sua ideia e to crucial é que tudo isso não passa de um esboço de
consciência, que, segundo Bouricius, serve aos interes- um projeto… deve evoluir segundo as determinações
ses no longo termo. Para evitar oradores com carisma do Conselho de Regulamentação», escreve Bouricius
que possam influenciar nas votações, as propostas são em um e-mail.

234 235
A única regra que eu faria de algum modo Para resumir: quem se sente apto a servir a sociedade
permanente é a de que o Conselho de Re- tem a possibilidade de participar das deliberações, po-
gulamentação não pode atribuir poder a
si. Talvez seja necessário acrescentar a re- rém, é a sociedade quem tem a última palavra.
gra de que novas regras do jogo instituídas O equilibro entre ação pública e capacidade de
pelo Conselho de Regulamentação entram ação era inconcebível no final do século XVIII. Os
em vigor somente depois da substituição
de 100% de seus membros.28 revolucionários norte-americanos e franceses con-
sideravam as questões públicas importantes demais
para deixar o povo interferir: tendo escolhido uma
Em vez de conceber tudo em minúcias, ele esta-
aristocracia eleita, afirmavam o primado da eficiência
belece um sistema autogestor. A particularidade des-
sobre a legitimidade. Hoje, pagamos o preço. O povo
se esboço é que a eterna busca da democracia — do
resmunga. A legitimidade do sistema representativo
equilíbrio entre eficácia e legitimidade — apresenta-se
eleitoral é fortemente questionada.
aqui em um sistema baseado puramente no sorteio.
A proposta de Bouricius é particularmente inspi-
A possibilidade de se inscrever livremente para cinco
radora. Ele mostra, de modo estimulante, como uma
dos seis órgãos previstos favorece o poder de ação dos
democracia pode ser organizada de maneira diferente.
cidadãos (para as Plenárias de Interesse não há nem
Inspira-se na Antiguidade ateniense, mas não transfe-
mesmo necessidade de sorteio: pode se apresentar
re arbitrariamente seus procedimentos. Baseia-se em
quem quiser). O fato, porém, de que o último veredito,
pesquisas científicas recentes em democracia delibera-
a última palavra de decisão, esteja submetido ao Júri
tiva e experiências com sorteios; conhece as potenciais
de Políticas Públicas é essencial para a legitimidade.
armadilhas específicas de cada fórmula. Desenvolve
um sistema de freios e contrapesos para evitar essas
armadilhas e a concentração de poder. E, acima de
28  E-Mail de Terrill Bouricius de 14 jun. 2013.

236 237
tudo, traz a política de volta para a população: faz de- plo, um tema tão controverso que os elei-
saparecer por completo a distinção entre governantes tos preferem deixar a responsabilidade
para os cidadãos, ou quando os legislado-
e governados. Volta-se ao ideal aristotélico de alter- res têm conflito de interesses, como dura-
nância entre governar e ser governado. ção de seu mandato, seus salários ou a lei
eleitoral)

Como avançar ainda mais? Foi realizado um bri- 3. Para melhorar a qualidade das delibe-
rações em uma iniciativa dos cidadãos ou
lhante estudo histórico, filósofos e políticos dedicaram em um referendo
obras a respeito, pululam exemplos práticos inspira-
4. Para substituir uma Câmara eleita em
dores e esquemas bem elaborados foram apresenta- um sistema bicameral
dos, com destaque para as propostas de Bouricius. 5. Para cuidar de todo o processo legis-
Agora qual é o próximo passo? lativo em substituição a uma legislatura
O modelo de Bouricius é evolutivo, mas só pode eleita29
evoluir quando começar a ser aplicado. A passagem do
sistema atual para o dele não foi até hoje realizado. Em E se pensarmos nessas cinco aplicações como fa-
um texto escrito anteriormente com seu colega David ses intermediárias de uma transformação histórica?
Schecter, ele afirma que o modelo pode ser aplicado de Iniciar com inibição, terminar com entusiasmo. Na
diferentes maneiras (in a variety of ways): verdade, creio, o processo, em certo sentido, já come-
çou. A fase 1 foi realizada no Canadá. A fase 2 está em
1. Para elaborar apenas uma lei (como a
Assembleia de Cidadãos da Colúmbia Bri-
tânica)
29  Terrill Bouricius e David Schecter, «‘An idealized design for
2. Para elaborar todas as leis de uma área the legislative branch of government», Systems Thinking World
de políticas públicas específica (Por exem- Journal, v. 2, 2013, p. 1.

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processo na Irlanda. A fase 3 foi a primeira a aconte- (jornais e outras mídias unidirecionais como rádio, te-
cer. As fases 4 e 5 são, claro, o grande desafio, e estamos levisão e internet 1.0). Hoje vivemos na era da intera-
bem atrasados. Certamente ainda é muito cedo para se tividade permanente. A comunicação descentralizada,
realizar na íntegra o esquema de Bouricius (fase 5). hiperveloz, provoca uma nova autonomia. Mas qual
A menos que estoure uma revolução, os partidos não democracia corresponde a ela?30
estarão dispostos, de um dia para o outro, a dar o lugar Como a administração pública deve se compor-
a ninguém para tornar o multissorteio possível. Mas tar com os cidadãos de hoje, na linha de frente, ar-
para a fase 4 não falta muito. mados com o teclado? Primeiro: deve recebê-los com
simpatia, não com medo. Por trás da cólera, seja on-
-line ou off-line, esconde-se um aspecto positivo: o
Argumento provisório para engajamento. É uma dádiva cheia de espinhos. A indi-
um sistema birrepresentativo ferença, porém, seria bem pior. Segundo: deve deixa a
coisa rolar. Não dá para querer fazer tudo para o cida-
A democracia é como a argila: adapta-se ao pró- dão. Ele não é uma criança, muito menos um cliente.
prio tempo. As formas concretas que toma são sem- Nesse início de terceiro milênio, as coisas devem ser
pre modeladas pelas circunstancias históricas. Em mais horizontais.
um regime político em que as deliberações têm papel Os médicos têm de aprender a lidar com os pa-
central, é bastante sensível aos meios de comunicação cientes que pesquisam seus sintomas na internet.
disponíveis. Por essa razão, a democracia ateniense O que parecia trabalhar contra, virou a favor: o em-
foi constituída através da cultura oral. Por essa razão
também, a democracia representativa eleitoral dos sé-
culos XIX e XX difundiu-se na era da palavra escrita 30  John Keane, The Life and Death of Democracy, Londres, 2010,
p. 737.

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powerment agora facilita a cura. Na política é a mes- risco de corrupção é menor, dissipa a febre eleitoral e
ma coisa. Mudou a relação com a autoridade. Antes, se reforça a busca do bem comum. Cidadãos sortea-
era preciso ter autoridade. Hoje, tem-se autoridade dos não são especialistas em política, mas têm algo su-
quando se fala. Liderança não consiste mais em tomar perior: liberdade. Não precisam se preocupar em ser
decisões em nome do povo, mas em tomá-las em um eleitos ou reeleitos.
processo conjunto com o povo. Quem trata o cidadão Nessa fase da história da democracia é sensato
autônomo como boiada terá um cidadão indomável; não confiar apenas no poder legislativo e em parla-
quem o trata como adulto terá um cidadão maduro. A mentares eleitos, mas também nos cidadãos sortea-
relação entre governante e governado não é mais entre dos. Confiamos neles no poder judiciário, por que não
adulto e criança, mas entre iguais. Os políticos, para confiar no legislativo? Acalmaria os ânimos. Cidadãos
seu próprio bem, devem prestar atenção nos espinhos eleitos (nossos políticos) deixariam de ser perseguidos
dessa dádiva, confiar no cidadão, levar a sério suas pelas redes sociais e comerciais, e seriam confrontados
emoções e em conta sua experiência. Para isso, con- como uma segunda assembleia, onde a febre eleitoral e
vide-o. Dê-lhe poder. E, para que seja justo, sorteie-o. os números da audiência seriam totalmente irrelevan-
Acredito ser possível remediar a dramática crise tes; uma assembleia em que o interesse geral no longo
do sistema democrático dando ao sorteio uma nova termo está na ordem do dia; uma assembleia de cida-
chance. Seu uso não é um remédio milagroso, não é dãos que podem realmente se expressar, não porque
uma receita perfeita, como as eleições também nun- são melhores do que os outros, mas porque as circuns-
ca foram, mas ele pode corrigir inúmeras falhas do tâncias fazem brotar neles o que têm de melhor.
sistema atual. Sorteio não é irracional, é arracional: A democracia não é o governo dos melhores de
um procedimento consciente e neutro que permite a uma sociedade; isso é aristocracia, mesmo com elei-
igualdade de chances políticas e evita desacordos. O ções. Pode-se adotar esse sistema, mas é preciso mu-

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dar sua nomenclatura. Democracia é uma palavra se interessa por inovações democráticas, porque nele
empregada corretamente somente com a diversidade as inquietações são varridas para debaixo do tapete e
de vozes. Para ter igualdade no poder de decisões, reina a apatia. Infeliz também o país que não acende a
igualdade de direitos em questões políticas, como dis- sirene do temor no futuro da democracia, porque nele
se recentemente o pensador norte-americano, Alex reina a histeria.
Guerrero: «todo indivíduo de uma jurisdição política O pânico que a ideia de sorteio frequentemente
deve ter o tanto de poder quanto tem de realizar uma desperta mostra como dois séculos de sistema repre-
ação política nessa mesma jurisdição».31 Ou seja, tra- sentativo eleitoral instalaram um pensamento hierár-
ta-se de governar e ser governado, em um governo do quico e a crença teórica de que a administração pública
povo, para o povo, mas finalmente também pelo povo. pode ser exercida apenas por indivíduos excepcionais.
Apresento aqui, resumidamente, alguns argumentos
Ainda tem de passar muita água debaixo da pon- contrários a essa tese:
te. «Os cidadãos são incapazes!», «Política é difícil!»,
«Idiotas no poder!», «A plebe no bem-bom, agora É preciso ter consciência de que, atual-
vai!» etc. Antes de avançar, devemos nos deter um mente, os motivos para se descartar o
sorteio de cidadãos são quase sempre os
pouco sobre a crítica que se faz ao sorteio: a de que mesmos dos usados no passado contra
pessoas não eleitas são incompetentes. Há um lado o direito a voto para os camponeses, os
positivo nela: mostra que muita gente se preocupa trabalhadores e as mulheres. À época, os
contrários à extensão do direito a voto
com a qualidade da democracia. Infeliz o país que não diziam que representaria uma ameaça à
democracia.
Um Parlamento eleito tem mais compe-
31  Alex Guerrero, The Lottocratic Alternative, manuscrito ainda tências técnicas do que um sorteado. En-
não publicado.

244 245
tretanto, cada um é especialista na própria conhecer bem os dossiês, ouvir os espe-
vida. Para que serve um Parlamento re- cialistas e deliberar.
pleto de juristas altamente qualificados se
Cada um agrega seus talentos e ambições.
poucos deles sabem o preço do pão? Com
Quem se julga capaz de assumir tarefas
o sorteio, obtêm-se uma amostra melhor
administrativas pode se apresentar ao
da sociedade na legislatura.
Conselho de Agenda, às Plenárias de Revi-
Os eleitos nem sempre são competen- são, ao Conselho de Regulamentação e ao
tes. Por que eles precisam ter assistentes, Conselho de Controle. Quem tem ideias
pesquisadores e instituições de pesquisa concretas relativas a um ponto legislativo
à disposição? Como é possível que de um específico será bem-vindo na Plenária de
dia para outro se troque de ministro? Não Interesse. Quem prefere algo mais tran-
seria por que eles estão cercados de profis- quilo será convidado a participar por um
sionais com todas as competências técni- ou mais dias no Júri de Políticas Públicas.
cas necessárias? Se a pessoa acompanha ou não a política
diariamente, não faz diferença.
Um Parlamento sorteado não estaria
desamparado: especialistas seriam con- Júris populares sorteados no Judiciário
vidados, conselheiros, indagados e os ci- demonstram muita seriedade no cum-
dadãos, consultados. Além disso, todos primento de suas tarefas. O temor de que
teriam direito a tempo hábil para se fami- um desavisado comporte-se de maneira
liarizar com a função e aprender a lidar imprudente e irresponsável é infundado.
com os documentos. Se aceitamos que doze pessoas tenham o
poder decidir sobre o encarceramento ou
Como cidadãos sorteados não têm com-
a liberdade de um concidadão, então de-
promisso partidário, não se submetem a
vemos confiar que serão responsáveis e
campanhas eleitorais e não têm preocu-
capazes de servir aos interesses da socie-
pação com a mídia, terão mais tempo dis-
dade.
ponível do que os parlamentares eleitos da
outra Câmara. Eles podem se dedicar aos Em todas as experiências com fóruns ci-
trabalhos legislativos em tempo integral: dadãos, vê-se como cidadãos sorteados

246 247
demonstram comprometimento e espírito cartografia da sociedade, um reflexo simplificado de
construtivo, e como, muitas vezes, reve- uma realidade complexa. Como o futuro é uma pro-
lam grande sensibilidade em suas reco-
mendações. Conclui-se então que não têm jeção a partir desse reflexo (o que é a política senão
fraquezas? Claro que não, mas um sistema a projeção do futuro?), a cartografia deve ser a mais
eletivo também as tem, e suas leis muitas rica possível: mapa de estratégia e fotos áreas se com-
vezes apresentam falhas.
plementam. O caminho a seguir é o do modelo bir-
Por que aceitamos que lobbies, grupos de
peritos para resoluções de problemas e
representativo, uma representação nacional composta
todo tipo de grupos de interesse influen- da associação entre eleições e sorteio. Ambos têm suas
ciem a política, mas não queremos que qualidades: a proficiência de políticos de carreira e a
cidadãos sorteados, que seriam os mais
interessados, tenham voz ativa? liberdade dos cidadãos não eleitos. Caminham assim
de mãos dadas os modelos eleitoral e aleatório.
Uma Câmara com cidadãos sorteados não
seria a única. Nessa fase da democracia, a O sistema birrepresentativo é, no momento, o
legislatura seria justamente uma colabora- melhor remédio contra a síndrome da fadiga demo-
ção entre as Câmaras eleitas e as sorteadas.
crática da qual sofrem tantos países. A desconfiança
A plebe no poder? Pode chamar assim se
quiser, mas essas pessoas não serão as úni- entre governantes e governados diminui quando os
cas a legislar. papéis não são totalmente distintos. Cidadãos sortea-
dos ao chegar ao poder descobrirão a complexidade
Quem faz hoje uma pesquisa no Google Maps das negociações políticas. O sorteio é uma excelente
tem a opção de escolher entre a imagem de mapa ou escola de democracia. Mas também os políticos des-
de satélite. Em uma, pode-se planejar melhor a rota; cobrirão um aspecto dos cidadãos que subestimam: a
na outra, vê-se melhor os arredores. É assim também capacidade de tomar decisões racionais e construtivas.
na democracia. A representação populacional é uma Constatarão que certas leis são mais facilmente acei-

248 249
tas quando os cidadãos estão envolvidos no processo. reconhecem-se no governo e os governantes ganham
Quando aumenta o apoio, cresce a capacidade de ação. maior capacidade de ação. O modelo birrepresentativo
Ou seja, o modelo birrepresentativo é uma terapia re- faz a democracia navegar em águas calmas.
lacional entre governantes e governados.
Pode ser que um dia esse sistema duplo dê lugar Quando se deve iniciar a transição? Agora. Onde?
a um completamente definido por sorteio (fase 5 no Na Europa. Por quê? Porque a União Europeia tem
modelo de Bouricius); a democracia nunca se esgota. uma vantagem. Qual? Ela propicia proteção aos países
Por enquanto, a combinação entre eleições e sorteio é o membros e os encoraja a inovar em seus fundamentos
melhor remédio possível. Preenche os anseios que são democráticos.
o que a tradição populista tem de melhor (de uma ver- Renovação administrativa é sempre uma tarefa
dadeira representação) sem cair na perigosa ilusão de penosa. Em nível local, estados e cidades começam a
um povo monolítico. Incorpora o que a tradição tec- trabalhar, em grande escala, com a participação dos ci-
nocrata tem de melhor (o respeito pela expertise técni- dadãos depois de incentivos governamentais em nível
ca dos profissionais não eleitos) sem lhes dar a última nacional. A União Europeia pode pensar em medidas
palavra. Satisfaz o que tem de melhor a tradição da de- que estimulem os países membros a introduzir proje-
mocracia direta (a cultura horizontal da oportunidade tos-piloto utilizando o sistema de sorteio. Foi a pró-
de participação) sem seu antiparlamentarismo. Final- pria União Europeia a primeira a utilizar, em grande
mente, valoriza o que a democracia representativa tem escala, modelos aleatórios e democracia deliberativa.32
de melhor (a importância dos administradores) sem Foi também ela quem fez de 2013 o Ano europeo do
o fetichismo eleitoral que sempre a acompanha. Atra-
vés da combinação desses elementos positivos cresce
a legitimidade e aumenta a eficiência: os governados 32  Meeting of the Minds, em 2005, European Citzens’ Consul-
tations, em 2007 e 2009.

250 251
cidadão. De que valem os altos valores de seus ideais Representantes do Povo. Ao mesmo tempo, na última
democráticos se a democracia se desintegra em seus década, parte importante do poder nacional foi trans-
países membros? ferida para as administrações locais: Flandres, Valô-
A crise nos países membros meridionais (Grécia, nia, Bruxelas e a região germanofônica.33 Para manter,
Itália, Espanha, Portugal, Chipre) deflagra o espec- em nível formal, o contato entre seus pares, o Senado
tro de uma pós-democracia. Na Hungria e na Grécia, transformou-se em uma câmara de reflexão, lugar de
movimentos fascistas camuflados deixaram de se ca- encontro entre as diversas regiões do país. Se antes o
muflar. Na Itália e na Grécia, a tecnocracia domina a Senado era reservado à aristocracia belga, como a Câ-
democracia. Nos Países-Baixos, na França e no Reino mara dos Lordes britânica, hoje é uma Câmara da di-
Unido, o populismo tornou-se um fator relevante. A versidade regional, como o Senado norte-americano.
Bélgica permaneceu, não muito tempo atrás, um ano Cinquenta dos sessenta senadores vêm dos Parlamen-
e meio sem governo. E assim por diante. tos regionais, e os outros dez são cooptados. O número
Seria muito interessante aplicar o modelo birre- de senadores eleitos foi diminuindo sistematicamente:
presentativo primeiro na Bélgica. Nenhum dos países em 1830, todos eram eleitos, hoje, nenhum deles. O
membros da União Europeia demonstrou sofrer tão sorteio teria espaço. Depois das mudanças na Cons-
fortemente da síndrome da fadiga democrática quanto tituição, a população entendeu que as eleições não
ela: depois das eleições de 2010, foram precisos 541 são um instrumento inquestionável para a formação
dias para se constituir um governo, recorde mundial
absoluto. Além disso, nenhum país é mais propício
hoje à aplicação do modelo de sorteio. Desde 2014, ela 33  Na verdade, três comunidades (de línguas flamenga, francesa
e alemã) e três regiões (Flandres, Bruxelas e Valônia). Bruxelas
não tem mais Senado eleito. Em nível federal, o poder é oficialmente bilíngue, francesa e holandesa; na Valônia, além
legislativo é exclusivo do Parlamento, a Câmara dos do francês, fala-se também alemão na parte oriental do seu ter-
ritório.

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das assembleias nacionais. Se existe um lugar onde se Em uma Bélgica birrepresentativa, o Senado po-
pode aplicar a democracia representativa aleatória na deria ser constituído de cidadãos sorteados, ao passo
União Europeia, é o Senado belga recém-reformado.34 que o Parlamento permaneceria com cidadãos eleitos.
Não é o caso de se saber agora o número de senado-
res, o sistema de sorteio, as competências atribuídas, a
34  As razões secundárias são: 1) sendo um país pequeno, a Bél- duração do mandato e a remuneração. O importante
gica propicia o sorteio (distâncias pequenas a se percorrer, capital
geograficamente centralizada, proximidade das instituições euro- é refletir sobre a introdução progressiva do sistema de
peias de controle); 2) a existência de três línguas nacionais e a sorteio em diversas instâncias (o multissorteio). Com
diversidade de idiomas falados na capital contribuem para aquilo
que os pesquisadores chamam de «democracia deliberativa em o apoio sólido da União Europeia, as autoridades na-
sociedades divididas»; 3) o país tem tradição em renovação po- cionais poderiam aplicar pela primeira vez o sorteio
lítica, com a Constituição de 1830 e as lei sobre genocídio, casa-
mento entre pessoas do mesmo sexo e eutanásia, que precedem, no contexto da elaboração de uma lei (por exemplo,
em mais de uma década, as de outros países da União Europeia; sobre a definição das competências restantes da Fe-
4) a composição complexa da população exigiu uma tecnologia
constitucional de ponta, como o princípio de «maioria qualifica- deração). Bastaria a reunião de algumas Plenárias de
da», adotado em nível europeu; 5) do ponto de vista legislativo e Interesse, uma Plenária de Revisão e um Júri de Polí-
constitucional, o país sempre foi um laboratório para o resto da
Europa; 6) as autoridades e a população estão se familiarizando ticas Públicas. De antemão, a esfera política decidiria
com mecanismos modernos de participação cidadã; a inovação como seriam acolhidos os resultados. Proposta aceita
democrática não é mais tabu, graças à sociedade civil forte (sin-
dicatos, associações patronais, movimentos de juventude e femi- ou não? Quando passa a ter força de lei?
nistas, associações familiares, vida associativa), aos trabalhos de
inúmeras fundações e instituições (Fundação Rei Baudouin, Fun-
dação Para as Gerações Futuras, G1000), movimentos e grupos
de promoção da participação ou de projetos participativos sobre padrão (Didier Clauwaerts, Min Reuchamps, Filip De Rynck),
temas como meio-ambiente, desenvolvimento sustentável, saúde existência de diversas pequenas empresas especializadas (Levuur,
pública, sociedade e tecnologias (Rede Paticipatie, Instituto Fla- Glassroots, Athanor-Médiations, TriZone) e inúmeras formas de
mengo de Sociedade e Tecnologia, Straten-Generaal, Ademloos, participação cidadã de sucesso (em níveis local, provincial e re-
De Wakkere Burger, Kwadraet), pesquisas internacionais de alto gional).

254 255
Se as experiências forem positivas, a utilização do A Bélgica pode ser o primeiro país europeu a colo-
sorteio pode ser ampliada para áreas específicas, em car em prática o sistema birrepresentativo. Assim como
que são tratadas questões delicadas para ser decididas a Islândia e a Irlanda que se aproveitaram da crise finan-
por partidos políticos (fase 2 no modelo de Bouricius). ceira e econômica dos últimos anos para introduzir, de
Na Irlanda, a Convenção Constitucional colocou em modo audacioso, a colaboração coletiva na elaboração
pauta o casamento de pessoas do mesmo sexo, os di- da Constituição, a Bélgica pode se aproveitar da crise
reitos das mulheres, a blasfêmia e a lei eleitoral. Na política dos últimos anos para rejuvenescer profunda-
Bélgica, poderiam ser tratadas desse modo questões mente sua democracia. Contudo, outros países podem
de meio-ambiente, exílio, migração e temas comunitá- também fazer experimentos-piloto: Portugal, por causa
rios. Para tanto, seria necessário organizar um Conse- da crise, mas também da sua familiarização com o orça-
lho de Agenda, um Conselho de Regulamentação e um mento participativo em sua ainda tão jovem democra-
Conselho de Controle. A participação dos cidadãos ia cia; a Estônia, uma democracia que engatinha, mas que
se tornar uma parte fixa do arquipélago administrati- tem grandes problemas com questões de minoria (por
vo, um conjunto de ilhas da nova democracia que se causa da minoria russa em seu território); a Croácia,
comunica entre si e dá forma à sociedade.35 Na fase membro mais jovem da União Europeia, que promove
seguinte, a classe política decidiria pela implementa- a cidadania ativa e a boa governança; os Países-Baixos
ção permanente do sorteio de cidadãos, tomando as por causa do fórum cidadão para o sistema eleitoral e
medidas necessárias para isso: o Senado poderia ser a grande tradição em decisões coletivas (os chamados
transformado em um órgão legislativo composto de polderen, consensos) etc. Parece-me razoável começar
diferentes partes (fase 4 do modelo de Bouricius). por Estados relativamente pequenos.
Essa proposta é menos futurista do que possa
parecer num primeiro momento. Cidadãos sorteados
35  John Keane, 2010, pp. 695-698.

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já têm poder hoje. Em alguns anos, em toda Europa,
pesquisas de opinião com modelos aleatórios evoluí-
ram de barômetros neutros do clima político para ins-
trumentos importantes nas mãos dos partidos, para
transmitir suas mensagens. Pesquisas não medem
apenas a popularidade dos partidos, de um político ou
de uma iniciativa: tornaram-se fato político em si. Sua
influência é grande. Os governantes dão grande valor
a elas, os tomadores de decisões as levam em conta. As
propostas de sorteio não têm outro objetivo senão o
de tornar o processo existente mais transparente.
Então o que estamos esperando?

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CONCLUSÃO do, na época em que os poderes públicos dialogavam
essencialmente com os sindicatos, os conselhos, as co-
missões e entre eles mesmos.
Estamos destruindo nossa democracia restrin- Os novos instrumentos são de grande valor, so-
gindo-a às eleições, até porque elas nunca foram bretudo hoje, quando as organizações representativas
pensadas como instrumento democrático. Esse é o da sociedade civil perderam seu poder de influência.
resumo, em uma frase, de toda a argumentação que Mas ainda são insuficientes. A iniciativa cidadã apre-
desenvolvi nos três primeiros capítulos deste livro. No senta, de mão beijada, os anseios do povo diante do
quarto, examinei como o sorteio, ao longo da história, legislador. Nada além. O povo cai de paraquedas nos
foi um instrumento muito mais democrático e como referendos para decidir sobre algum projeto de lei. E
poderia ser reintroduzido hoje. é só nesse momento que ele pode demonstrar algu-
E se nada mudar? E se os governos nacionais, ma insatisfação. As conversas com o ombudsman são
os partidos e os políticos disserem: «Sorteio é bom, sempre em ambientes distantes do processo legislati-
mas já não fizemos concessões o bastante aos cidadãos vo. Nada de proximidade. (O ombudsman é uma es-
nos últimos anos? Não inventamos uma série de ins- pécie de dono de bar: bate papo com todo mundo e
trumentos novos?». Verdade. Quem quiser reclamar, ouve reclamações.)
em muitos países, pode se dirigir ao ombudsman do Há novos instrumentos, certamente, mas que
governo. A opinião do cidadão já é expressa nos re- continuam a excluir o cidadão. As portas e as janelas
ferendos. Quem reúne número suficiente de apoiado- da Casa Legislativa permanecem fechadas. Ninguém
res, pode apresentar um abaixo-assinado para que um pode entrar, nem pela passagem do gato. À luz da crise
tema entre na agenda da iniciativa cidadã. São muitas atual, é de espantar que se tenha tanto medo. Parece
as formas de participação que não existiam no passa- que os políticos querem se fechar em seus castelos,

260 261
com medo de abrir as cortinas e deixar entrar o baru- publicava o seu Barômetro da Corrupção Global. Os
lho da rua. Não é a melhor medida, ela só faz aumen- resultados são absolutamente chocantes. No mundo
tar o tumulto. inteiro, os partidos políticos são considerados as ins-
Sem uma mudança drástica, o sistema não vai se tituições mais corruptas do planeta. Em praticamente
sustentar por muito mais tempo. Quando aumentam todas as democracias ocidentais estão em primeiro lu-
cada vez mais as abstenções, a desfiliação partidária, gar nesse quesito. Na União Europeia, os números não
o desprezo aos políticos, governos com dificuldades são menos dramáticos.
para governar, sua incompetência e o rigor com que Quanto tempo isso vai durar? A situação é insus-
são julgados, cresce rapidamente o populismo, a tec- tentável. Se eu fosse político, não dormiria sossegado.
nocracia e o antiparlamentarismo, assim como o nú- Como apaixonado pela democracia, tampouco dur-
mero de cidadãos desejosos de maior participação. mo tranquilo. É uma bomba-relógio. Por hora, parece
Essa aspiração se transforma rapidamente em frustra- reinar a tranquilidade, mas é só a calmaria antes da
ção, e se conclui que a água está no pescoço. Não resta tempestade. É a calmaria de 1850, quando a questão
muito mais tempo. trabalhista fervia sem ainda ter estourado. É a calma
É tudo muito simples: ou os políticos abrem as que reina antes de um período de grande instabilida-
portas ou elas virão abaixo com os cidadãos revolta- de. O que na época se devia à questão do direito ao
dos lançando palavras de ordem como «Nada de ta- voto, hoje se deve à questão do direito de expressão.
xação sem participação!», destroçando os móveis da No fundo, a luta é a mesma: por poder político e parti-
democracia e colocando o lustre do poder no chão. cipação democrática. Temos de descolonizar a demo-
cracia. Temos de democratizá-la.
Infelizmente, não é imaginação minha. Enquanto Repito: o que estamos esperando?
concluía este livro, a ong Tranparency International

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POSFÁCIO cedimento secular, porém esquecido, que exige enor-
me esforço para ser resgatado.
Contudo, também apareceram inúmeros comen-
tários inteligentes. Muitos estudos, análises e debates
É mais fácil consertar um carro em uso do que trouxeram-me novas percepções. Algumas discussões
depois da batida na internet não ficaram restritas às redes sociais. Di-
versos políticos de longa data na Bélgica e nos Paí-
Três anos atrás, escrevi um ensaio que suscitou ses-Baixos reconhecem que há problemas com a de-
muitas controvérsias. Antes de ser publicado, foi lido mocracia de hoje e estão abertos em contribuir para
por três dos mais conhecidos cientistas políticos fla- a democracia representativa ser mais representativa,
mengos. Quando de sua publicação, saíram algumas com um sistema balanceado entre eleições e sorteio.
resenhas críticas sobre o texto e sobre o título. Alguns O que há de tão revolucionário nessa proposta?
políticos e jornalistas conhecidos reagiram de modo Já usamos o sorteio todos os dias em nossas demo-
particularmente irritadiço, como se eu tivesse rouba- cracias, mas em sua pior variante: as pesquisas de opi-
do algo deles — um brinquedinho, um privilégio, uma nião. Nelas, escolhem-se entrevistados aleatoriamente
fatia de poder, sei lá o quê. Seus argumentos são quase para se descobrir suas opiniões — e suas respostas aca-
sempre cordas sem nó. bam influenciando o processo político. Não faria mais
O fundamento do meu pensamento era muito sentido ouvir o que essas pessoas pensam ou deixam
simples: eleição não é sinônimo de democracia e até de pensar? E, então, fazer os políticos ouvirem?
mesmo a prejudica. Não é um disparate; vimos que Vamos imaginar que a sociedade seja uma cum-
dois séculos atrás se tinha consciência de que era o buca com sopa quente. Para saber o gosto, prova-se
contrário da ideia de democracia; e que existe um pro- só uma colherzinha; o resto, conclui-se, terá o mes-

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mo sabor. A questão é: quanto experimentar? Vamos a rotação evita-se que uma minoria diminuta tenha
molhar também a torrada na sopa? O que se recolhe sempre os assentos.
da escumadeira das eleições é totalmente diferente do
que se consegue da colherada do sorteio — obtêm-se Pesquisas de opinião? Sorteio e rotação, mas não
também outras decisões. Instrumentos não são neu- deliberação. Consequência: resultados infundados.
tros. Procedimentos determinam resultados. Pleiteio Debates? Rotação e liberação, mas não sorteio.
uma combinação dos dois, colher e escumadeira, sor- Consequência: democracia de aparência.
teio e eleições, duas formas de participação popular Plenárias cidadãs? Sorteio, deliberação, mas não
complementares para romper com a febre eleitoral rotação. Consequência: frustração dos preteridos.
permanente e o horizonte estreito do sistema atual. Se
a democracia do século XXI insistir nas eleições, per- O equilíbrio entre os três aspectos, a meu ver, aju-
derá sua vitalidade. da a diminuir o abismo entre cidadãos e governantes.
Pleiteio também a introdução da deliberação em Seria uma vantagem para acalmar e trazer de volta o
rotação. Em decisões importantes, sugeri, poderiam debate em nosso sistema parlamentar descarrilado.
ser convidados cidadãos (sorteio) para as discussões Não é um atentado à política, apenas uma tentativa de
sobre os temas (deliberação) e então ser chamados renová-la, revitalizando-a em seu poder de decisão e
novos cidadãos (rotação). Com o sorteio, evita-se desfrutando da confiança do cidadão.
que tenham a palavra apenas homens ricos, brancos A nova dinâmica não será imediata, pois, por cer-
e altamente escolarizados. Com a deliberação, evita- to período, os cidadãos e os políticos manterão mútua
-se que as discussões esquematizadas entre cidadãos e desconfiança, o que é normal quando se deve partilhar
especialistas, e entre os próprios políticos, sejam mo- o poder. O mercado internacional acompanhará esses
nopolizadas pela oratória de um profissional. E com dois equilibristas na mesma corda. Muito poder já foi

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transferido das democracias nacionais para os tecno- sobre o Conselho Nacional, uma das duas Câmaras
cratas internacionais (FMI, Banco Central Europeu, parlamentares, para substituir as eleições por sorteio.
Comunidade Europeia…). Consequência: ainda mais Tudo isso, naturalmente, com o objetivo de desen-
frustração para o cidadão, mais enfraquecimento po- volver a democracia: do direito a voto ao direito a voz.
lítico, ainda desconfiança dos dois lados, mais pressão Esse processo é mais inevitável do que a extensão do
e mais rachaduras no sistema. direito a voto às mulheres no século XX: inicialmente
As coisas começam a mudar. Na cidade de Utre- controverso, mas evidente por si mesmo depois. Em
cht foi dado um passo importante. A prefeitura sorteia uma época com maior nível de instrução da história
regularmente 150 cidadãos para discutir sobre temas e em que as informações circulam a uma velocidade
de longo termo como o plano energético e o plano de jamais vista, nada mais natural do que atualizar nossos
integração dos refugiados. Na Bélgica, várias cida- procedimentos democráticos com o século XXI. Não
des, províncias, partidos políticos e até ministérios já vamos esquecer que as eleições foram introduzidas em
iniciaram experiências com novas formas de partici- um período em que a grande maioria da população
pação cidadã. Em cidades neerlandesas importantes era analfabeta.
(Amsterdam, Haia, Amesfoort, Apeldoorn, Gronin- Mas não vivemos na era da atualização? Vamos
gen, Nimega e outras) há o grupo de cidadãos G1000. ficar estagnados no MS-DOS?
Cidades como Madri e Barcelona começaram a intro- Sem falsa modéstia, orgulho-me que Contra as
duzir o sorteio em nível local. Alguns políticos na Bél- eleições esteja em sua décima segunda edição, com
gica pleiteiam por uma comissão constitucional para suas inúmeras traduções e tendo suscitado debates em
compor o Senado através de sorteio. Na Suíça, país Oslo, Copenhague, Paris, Londres, Berlim e até um
tido como aquele com o melhor sistema democrático simpósio no Senado belga, e, sobretudo, a reunião na
do mundo, recolhe-se assinaturas para um referendo Biblioteca de Alexandria dos vinte chefes de Estado e

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líderes políticos que foram figuras-chave da Primavera Que o sistema democrático deve ser renovado
Árabe, para tratar da questão. não resta dúvida. A questão é: quando? A renovação
Sim, em escala local as coisas estão andando. necessária começará, finalmente, ou só deve se iniciar
Mas e em escala nacional? Se mesmo na Irlanda e na quando se perderem os valores democráticos, estourar
Islândia, países que introduziram um plano de reno- uma revolução, tomarem o poder à força ou derruba-
vação democrática, os políticos eleitos ainda colocam rem o sistema parlamentar? Ou seja, atualizamos o sis-
muitas resistências à participação ampla do cidadão, tema antes ou depois de sua derrocada? Durante mui-
onde estamos pisando? Se em tempo de enorme des- to tempo pensei que não era tarde demais, que haveria
confiança com partidos políticos, políticos em toda força política suficiente para fazer uma amálgama das
Europa ousam alçar a voz no meio do mar de cida- adaptações necessárias como eu desejava. Desde o ve-
dãos, onde estamos pisando? Mesmo a União Euro- rão de 2016, porém, comecei a duvidar. Claro que não
peia, em momentos de discórdia, ainda não se con- é fácil consertar um carro andando. Mas é ainda mais
venceu da necessidade de «se comunicar melhor com difícil consertá-lo depois que ele foi batido.
os cidadãos» e não enxerga que o problema é só a
ponta do iceberg? Estou escrevendo estas linhas no início de setem-
Democracia é uma forma de governo em que bro de 2016. Vivo já há alguns dias na antiga capital
povo governa. Ainda precisamos lembrar isso? O pro- do fascismo. Ontem, pela primeira vez na história da
blema não é se os cidadãos querem e podem participar Alemanha do pós-guerra, a extrema direita obteve
das decisões — a resposta é absolutamente positiva. números expressivos nas eleições: no estado de Me-
O problema é que a maioria dos políticos não quer cklenburg-Vorpommern, o partido Alternativa para
isso. Eles se prendem à aristocracia francesa de 1788 e a Alemanha, até então inexpressivo, tornou-se maior
acham que as coisas devam permanecer assim. do que o CDU da chanceler alemã Angela Merkel.

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Foi o fim do verão da nossa desesperança. O verão de duos de repente começaram a tomar força de organi-
2016 entrará para a história como aquele que levou a zação e a impregnar toda a população. Soma-se a isso
democracia Ocidental ao mais extremo dos seus limi- a longa problemática dos refugiados, a crise bancária,
tes. Uma escolha obtusa do Reino Unido levou a um os paraísos fiscais, a crescente desigualdade, a questão
referendo obtuso (maioria simples, sem necessitar de climática na Europa e no mundo todo e a falta de von-
ratificação do Parlamento ou do governo) e ao con- tade de resolver o problema do sistema democrático
sequente Brexit — o acontecimento político mais im- ocidental.
portante na Europa desde a Queda do Muro de Berlim Três anos atrás, eu previa, nas páginas sobre o
em 1989. Nos Estados Unidos, um louco foi escolhido sorteio no meu ensaio, «um longo período de insta-
para ser o candidato do Partido Republicano, susci- bilidade» se não fizéssemos nada pela democracia. Eu
tando um debate histérico no país. Depois do fracas- realmente não imaginava que as coisas aconteceriam
so do golpe de Estado, o presidente turco, Erdogan, na velocidade atual. Espero não ser esquecido. «O que
se aproveitou para desvencilhar-se da democracia em estamos esperando?», escrevi no final do meu texto,
favor de um modelo de liderança autoritária, como o impaciente mas esperançoso. Continuo a perguntar
de Putin e de Orbán. isso, com a voz ainda mais alta, mas bem menos es-
No Brasil, a presidente que um dia foi a esperança perançoso.
de um continente foi deposta. Políticos espanhóis di- Berlim, 5 de setembro de 2016
gladiaram-se depois de eleições em dois turnos e não
chegam a um acordo para formação de governo. Na
França, nos Países-Baixos e na Áustria surgiram parti-
dos políticos claramente xenofóbicos e que podem ser
eleitos nas urnas. Algumas atitudes isoladas de indiví-

272 273
AGRADECIMENTOS cidi iniciar um projeto de aprimoramento da partici-
pação cidadã na Bélgica, não tinha a mínima ideia de
que a experiência seria tão intensa e aprenderia tantas
coisas. Sou muito agradecido ao grupo extremamente
A ideia deste livro amadureceu no verão de 2012 estimulante que está por trás dessa organização. Não
durante uma excursão que fiz de ponta a ponta dos nos conhecíamos, ou pouco nos conhecíamos, mas
Pirineus. Recluso na névoa de um vilarejo de Aldu- todos sempre foram muito calorosos, inteligentes e
des, no País Basco francês, encontrei numa escola bem entusiasmados comigo. O colunista Paul Hermant
antiga um exemplar de Do contrato social de Jean-Jac- foi o primeiro a me chamar a atenção para a questão
ques Rousseau. A passagem em que ele trata do sorteio do sorteio. O constitucionalista Sébastien van Droo-
me perturbou de tal modo que a copiei inteira no meu ghenbroeck me falou da obra de Bernard Manin em
diário. Ela ficou a semana inteira na minha cabeça. nossa primeira reunião. Nossos especialistas em meto-
Durante as longas caminhadas em direção ao topo da dologia, Min Reuchamps e Didier Caluwaerts, tinham
montanha, compus a estrutura do meu ensaio. Esse li- acabado de encerrar seus doutorados sobre democra-
vro é mais do que Devaneios do caminhante solitário.36 cia participativa e me contaram sobre as experiências
É também o resultado de alguns anos de estudo, via- de James Fishkin. Nosso diretor de campanha, Cato
gens e conversas. Léonard, vinha do setor de telecomunicações e conhe-
Sem a experiência do G1000, eu não poderia nem cia diversas autoridades em eventos de arrecadação
começar este livro. Quando, em fevereiro de 2011, de- de fundos com a crescente importância da ideia de
«cocriação» e gestão das partes interessadas. Guardo
com muito carinho a lembrança de nossas conver-
36  Referência ao livro de Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du sas cheias de curiosidades e entusiasmo. Também foi
promeneur solitaire. (N. T.)

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bom conversar com Benoît Derenne. Ele se tornou o do que ninguém, eles me convenceram da vontade e
porta-voz do movimento para a Bélgica francófona, e da capacidade dos cidadãos de cooperar para o futuro
eu para a flamenga. Como criador da Fundação Para da democracia.
as Gerações Futuras, Derenne adquiriu grande expe- A ideia desse livro nasceu durante o ano acadê-
riência prática de organização da participação cidadã, mico de 2011-2, quando ocupei a cátedra Cleveringa
tanto em nível regional como europeu. Suíço-belga, da Universidade de Lovaina, cátedra honorária ao
ele tinha ideias inovadoras sobre a democracia, como grande e corajoso jurista Rudolph Cleveringa,1 para
quando, em plena reunião, perguntou em voz alta se refletir sobre direito, liberdade e responsabilidade. O
alguns senadores não poderiam ser sorteados. título de minha conferência inaugural foi «A demo-
No G1000, sou grato a Peter Vermeersch, Dirk cracia em asfixia: o perigo do fundamentalismo elei-
Jacobs, Dave Sinardet, Francesca Vanthielen, Miriana toral». Agradeço ao grêmio dos decanos e, em parti-
Frattarola, Fatma Girretz, Myriam Stoffen, Jonathan cular, ao falecido Willem Willems, antigo decano da
van Parys e Fatima Zibouh, que não foram apenas Faculdade de Arqueologia, e ao antigo reitor, Paul van
interlocutores admiráveis, mas também bons amigos. der Heijden, pela confiança depositada. A todos os es-
Aline Goethals, Ronny David, François Xavier Lefe- tudantes de honra da faculdade pelas pesquisas sobre
bvre e muitos outros se somaram a nós ao longo do as eleições e a democratização em países não ociden-
percurso e hoje fazem parte da nossa caravana. Não é tais como o Afeganistão. Aos cientistas belgas como
o lugar apropriado para agradecer aos centenas de vo-
luntários, milhares de doadores e mais de 12 mil sim-
patizantes do projeto, mas sou obrigado a fazer isso, 1  Rudolph Cleveringa (1894-1980), professor de direito privado
e direito comercial da Universidade de Lovaina, protestou publi-
em particular a todos os participantes do Vértice dos camente contra a expulsão, em 1940, de estudantes judeus Foi
Cidadãos de 2011 e do Fórum Cidadão de 2012. Mais detido e permaneceu encarcerado durante boa parte da ocupação
nazista. (N. T.)

276 277
Philippe van Parijs, Chantal Mouffe, Min Reuchamps presidente do Senado belga, e Gerdi Verbeet, então
e Paul De Grauwe, que me permitiram expor minhas presidente da Segunda Câmara Neerlandesa, que me
ideias. A dois extraordinários pesquisadores da Anti- contaram muito sobre as práticas parlamentares. Para
guidade, Morgens Herman Hansen, de Copenhague, me preparar melhor para escrever este livro, tive lon-
e Paul Cartledge, de Cambridge, por compartilharem gos encontros com alguns veteranos da política belga:
suas reflexões sobre o sorteio na Grécia antiga. Devo Sven Gatz, Inge Vervotte, Caroline Gennez, Jos Gey-
muito a todos eles. sels e Hugo Coveliers foram bastante generosos em
Durante minhas viagens ao exterior, tive o prazer me contar suas experiências. Dei-me o direito de não
de encontrar inúmeros cientistas políticos e ativistas citá-los — esse livro não se limita ao contexto belga
democratas. Naos Países-Baixos, aprendi muito com —, mas o que me disseram enriqueceu meu olhar. A
Josien Pieterse, Yvonne Zonderop e Willem Schinkel. todos: muito obrigado.
Na Alemanha, impressionaram-me Carsten Berg e Muitas pessoas responderam às minhas ques-
Martin Wilhelm; Carl Henrik Fredriksson na Áus- tões: Marc Swygedouw, Marnix Beyen, Walter van
tria, assim como Inga Wachsmann e Pierre Calame na Steenbrugge, Filip De Rynck, Jelle Haemers, Fabien
França, Igor Štiks e Srećko Horvat na Croácia e Ber- Moreau, Thomas Saalfeld e Sona N. Golder. Com
nice Chauly e A. Samad Said na Malásia. Esse último Kenneth Carter pude trocar muitas ideias a respeito
é um ícone nacional, um poeta dissidente legendário da Assembleia Cidadã para a Reforma Eleitoral da Co-
que, aos 78 anos de idade, continua a lutar pela demo- lúmbia Britânica, da qual foi o diretor de pesquisas.
cracia com uma coragem contagiante. Muito empolgantes foram meus contatos com Eiríkur
Não pertenço ao grupo de pessoas que menospre- Bergmann e Jane Suiter, devotados e implicados nos
zam, por definição, os políticos. Julgo extremamente processos constitucionais da Islândia e da Irlanda.
instrutivo ter ouvido com atenção Sabine de Bethune, Meus agradecimentos, em particular, aos norte-ame-

278 279
ricanos Terry Bouricius e David Schecter por nossas
trocas de e-mails vivazes e contínuas a respeito do mo-
delo de multissorteio. O mesmo vale para Iain Walker
e Janette Hartz-Karp por seu trabalho extraordinário
e inovador na Austrália.
Peter Vermeersch, Emmy Deschuttere e Luc Huy-
se leram o texto e me maravilharam, como sempre,
com suas observações perspicazes. Sem sua amizade,
eu estaria em maus lençóis. Charlotte Bonduel me aju-
dou com as pesquisas na internet e montou algumas
tabelas. Foi um prazer trabalhar com ela. Wil Hansen
foi um editor excepcional. Foi ele também quem, um
belo dia, no meu ateliê, sugeriu o título do livro. Ins-
pirou-se em Contra a interpretação, de Susan Sontag,
e eu em Contra o método, de Paul Feyerabend. Juntos,
demos a palavra final.
Bruxelas, julho de 2013

280
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Life and Death of Democracy (Londres, 2010), de John
Keane. Mais técnicos, mas não menos impressionan-
tes são os estudos de Pierre Rosanvallon: La contre-
-démocratie (Paris, 2006), La légitimité démocratique
A obra mais importante que li para meu ensaio (Paris, 2008) e La société des égaux (Paris, 2001). Os
foi The Principles of Representative Government, de dois melhores livros sobre a democracia na Antigui-
Bernard Manin (Paris, 1995). Ela inspirou uma série dade clássica são: The Athenian Democracy in the Age
de outros livros, como The Political Potential of Sor- of Demosthenes (Londres, 1999), de Mogens Herman
tition: A Study of the Random Selection of Citizens for Hansen, e Democracy: A Life (Oxford, 2016), de Paul
Public Office (Exeter, 2009), do cientista político bri- Cartledge. Séria e repleta de informações factuais so-
tânico Oliver Dowlen, Demokratie und Lotterie: Das bre o sistema atual é a obra Representative Government
Los als politisches Entscheidungsinstrument von Antike in Modern Europe (Londres, 2011), de Michael Galla-
bis zur EU (Frankfurt, 2009), do professor alemão de gher, Michael Laver e Peter Mair. Do grande cientista
teoria política Hubertus Buchstein, Petite histoire de político irlandês, falecido precocemente, Peter Mair
l’expérimentation démocratique: Tirage au sort et poli- foi publicado postumamente, em 2013, o volume Ru-
tique d’Athènes à nos jours (Paris, 2011), do cientista ling the Void: The Hollowing of Western Democracy
político francês Yves Sintomer e Démocratie: Histoire (Londres, 2013). Seus escritos influenciaram-me mui-
politique d’un mot aux États-Unis et en France (Mon- to na redação do primeiro capítulo.
treal, 2013), do professor canadense de ciência política Argumentos a favor do sorteio foram reexami-
Francis Dupuis-Déri. nados e discutidos nos meios acadêmicos nos últimos
Quem procura um estudo mais geral sobre as anos. Barbara Goodwin, professora de ciência políti-
vicissitudes da democracia aprenderá muito com The ca na Universidade de Anglia Oriental, publicou em

282 283
1992 seu influente Justice by Lottery (Chicago, 1992), Athenian Option: Radical Reform for the House of
onde coloca na ordem do dia o valor dos princípios Lords (Londres, 1998), de Anthony Barnett e Peter
do sorteio em uma democracia. Lyn Carson e Brian Carty, A People’s Parliament: A (Revised) Blueprint
Martin, dois pesquisadores australianos, escreveram for a Very English Revolution (Exeter, 2008), de Keith
em conjunto Random Selection in Politic (Westport, Sutherland, e nas obras já citadas de Sintomer e Bu-
1999). Nos últimos anos, houve uma onda de pesqui- chstein. Trata-se apenas de uma amostra. Uma lista
sas na área. Oliver Dowlen, autor do já citado Political mais completa encontra-se em «A Brief Survey of the
Potential of Sortition e cofundador da Sociedade pela Literature Of Sortition», no volume de Gil Delannoi
Democracia Incluindo Seleção Aleatória, redigiu em e Oliver Dowlen. Na Figura 5, apresento também re-
conjunto com Gil Delannoi o volume Sortition: Theory ferências recentes. O artigo de Terrill Bouricius «De-
and Practice (Exeter, 2010). Ele é autor também de mocracy through multi-body sortition: Athenian les-
Sorted: Civic Lotteries and the Future of Public Parti- sons for the modern day», publicado originalmente no
cipation (Toronto, 2008), disponível gratuitamente em Journal of Public Deliberation em 2013 (v. 9, n. 1, art.
pdf. Terrill Bouricius, por sua vez, trabalha em um 11), também está disponível na internet.
livro com um título provisório promissor: The Trou- Obras sobre democracia deliberativa são abun-
ble with Elections: Everything You Thought You Knew dantes. Menciono particularmente a obra recente de
about Democracy is Wrong [O problema das eleições: James Fishkin: When the People Speak: Deliberative
tudo o que você pensava que sabia sobre democracia Democracy and Public Consultation (Oxford, 2009) e
está errado]. uma recente antologia em língua francesa, La Démo-
Encontrei propostas concretas sobre a reintro- cratie délibérative, anthologie de textes fondamentaux
dução do sorteio em A Citizen Legislature (Berkeley, (Paris, 2010), de Charles Girard e Alice Le Goff. Pode-
1985), de Ernest Callenbach e Michael Phillips, The -se também seguir atualizações das revistas científicas

284 285
International Journal of Public Participation e Journal terbestuur en achterkamerdemocratie (Lovaina, 2013),
of Public Deliberation. de Manu Claeys. Nos Países-Baixos penso primeira-
Sobre participação cidadã, saíram muitas coisas mente em De nieuwe democratie: Naar andere vormen
nos últimos anos. Filip De Rynck e Karolien Dezeu- van politiek (Amsterdam, 2013), de Willem Schinkel,
re publicaram Burgerparticipatie in Vlaamse steden: mas também em Polderen 3.0: Nederland en het alge-
Naar een innoverend participatiebeleid (Bruges, 2009), meen belang (Leusden, 2012), de Yvonne Zonderop,
e Georges Ferreboeuf, Participation citoyenne et ville e Vertrouwen is goed maar begrijpen is beter: Over de
(Paris, 2011). Waardevol apresenta propostas concre- vitaliteit van onze parlementaire democratie (Amster-
tas para a política em nível local em ‘Wij gooien het de dam, 2012), de Gerdi Verbeet. Os estudos científicos
inspraak in’: Een onderzoek naar de uitgangspunten voor mais importantes são dois: Democratie doorgelicht:
behoorlijke burgerparticipatie (Haia, 2009) e em Beslist Het functioneren van de Nederlandse democratie (Lo-
anders beslissen: Het surplus voor besturen als bewo- vaina, 2011), organizado por Rudy Andeweg e Jacques
ners het beleid mee sturen (Bruges, 2011), da Cons- Thomassen e Omstreden democratie: Over de proble-
truir a Sociedade em Flandres-Ocidental. A Fundação men van een succesverhaal (Amsterdam, 2013), orga-
Rei Baudouin publicou um excelente manual prático: nizado por Remieg Aerts e Peter de Goede.
Participatory Methods Toolkit: A Practitioner’s Manual
(Bruxelas, 2006). Disponível na internet em pdf. Algumas organizações de renovação democrática
Também na Bélgica e nos Países-Baixos deba- são particularmente ativas na internet. Penso nos se-
te-se sobre o futuro da democracia parlamentar. Em guintes sites internacionais:
flamengo aponto Een paradijs waait uit de storm: Over
markt, democratie en verzet (Berchem, 2013), de Tho- • openDemocracy.net: independen-
mas Decreus, e Stilstand: Over machtspolitiek, betwe- te, sem fins lucrativos, quase sempre

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com contribuições de alto nível • America Speaks e Global Voices (Es-
tados Unidos): organizam fóruns
• participedia.net: o site internacional
cidadãos em grande escala, com site
mais importante sobre democracia
repleto de conteúdo
participativa
• newDemocracy.com.au (Austrália):
• sortition.net: portal com textos histó-
informações claras e abundantes so-
ricos e diversos links úteis
bre sorteio
• Equality by Lot (equalitybylot.wor-
• We the Citizens (Irlanda): site da ini-
dpress.com): blog repleto de con-
ciativa cidadã na Irlanda
teúdo e com uma comunidade de
«kleroterianos» que debatem sobre • 38 Degrees (Reino Unido): organi-
sorteio zação influente para a participação
cidadã, com mais de 1 milhão de
membros
Muitos países ocidentais têm, cada vez mais, pla- • Mehr Demokratie (Alemanha): tem
taformas nacionais de inovação democrática, com si- mais de 25 anos e se mantém comba-
tes em geral muito interessantes: tiva, militando pelo direito de inicia-
tiva e de referendos
• Democracy International (União Eu-
• The Jefferson Centre for New De-
ropeia): baseada na Alemanha, orga-
mocratic Process (Estados Unidos):
nização pan-europeia que pleiteia há
como o nome diz, é um centro para o
anos a iniciativa cidadã europeia
novo processo democrático
• Teknologi-rådet (Dinamarca): con-
• Center for Deliberative Democracy
selho de tecnologia dinamarquesa,
(Estados Unidos): ligado à Universi-
iniciador de inúmeros processos par-
dade de Stanford, é o centro de James
ticipativos apresentados no site em
Fishkin, repleto de informações sobre
inglês
sondagem em processo deliberativo

288 289
• Netwerk Democratie (Países-Baixos):
Plataforma neerlandesa de renovação
governamental, notadamente na uti-
lização de tecnologias digitais
• G1000 (Bélgica): site quadrilíngue de
iniciativa cidadã, integrado à Funda-
ção Para as Gerações Futuras
• Fundação Rei Baudouin, «Koning
Boudewijnstichting» (Bélgica): ator
internacional renomado que, entre
outros, faz projeto anual sobre o go-
verno
• ¡Democracia Real Ya! (Espanha): or-
ganização militante pela democracia
fundada depois dos protestos de mar-
ço de 2011
• Associação Para uma Democracia
Direta (França): site de uma organi-
zação jovem e dinâmica que pleiteia
mais transparência

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BIBLIOTECA antagon sta

13. LEOPARDI | Pensamentos

14. MARINA TSVETÁEVA | O poeta e o Tempo

15. PROUST | Contra Sainte-Beuve

16. GEORGE STEINER | Aqueles que queimam livros

17. HOFMANNSTHAL | As palavras não são deste mundo

18. JOSEPH ROTH | Viagem na Rússia

19. ELSA MORANTE | Pró ou contra a boma atômica

20. STIG DAGERMAN | A política do impossível

21. MASSIMO CACCIARI - PAOLO PRODI | Ocidente sem utopias

22. ROGER SCRUTON | Confissões de um herético

23.DAVID VAN REYBROUCK | Contra as eleições

24. V.S. NAIPAUL | Ler e escrever


ISBN 000-00-00000-00-0

FONTES: Calibri, Adobe Hebrew


PAPEL: Arcoprint 90 gr. 1:5

IMPRESSÃO: Grafiche Veneziane


PRODUÇÃO: Zuanne Fabris editor

1a edição novembro 2017


© 2017 EDITORA ÂYINÉ

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