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DEBATE

Política de Saúde no Brasil:


a Universalização Tardia como
Possibilidade de Construção do Novo
Elizabeth Barros 1

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para
mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não
se trata absolutamente de fuga para o sonho on o irracional. Quero dizer
que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo
sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.

Ítalo Calvino - Seis propostas para o próximo milênio

Afirmar sem ser cúmplice, criticar sem desertar

Boaventura de Sousa Santos - Pela mão de Alice

Resumo: O texto trata de algumas questões relativas à reorganização do Sistema de Saúde no Brasil,
focalizando avanços e dificuldades do processo. Apresenta dados sobre a evolução recente da rede pública de
saúde e informa sobre transfomações na gestão que vêm sendo observadas como decorrência do processo de
descentralização. Analisa a proposta de reforma do sistema de saúde, que prevê a separação da gestão das
ações básicas e da assistência médico-hospitalar, em elaboração pelo governo federal, no contexto da Reforma
Administrativa. Destaca a oportunidade desse debate durante a realização da X Conferência Nacional de Saúde.

Palavras-chave: Sistema de Saúde no Brasil. Descentralização. Reforma do Sistema de Saúde. X Confe-


rência Nacional de Saúde.

Summary: This paper deals with some issues regarding the reorganization of the Health System in Brazil.
First, it focus on the improvements and difficulties faced in the process of reorganization of the Health System.
It presents data about the evolution of the public health service and information regarding changes in the
management of the System as a result of the decentralization process.
It also discusses the governmental proposal of reforming the Health System, in the light of Administrative
Reform. Finally, the paper highlights the significance of discussing the reform of the Health System during the
X National Health Conference.

Keywords: Health System in Brazil. Decentralization. Reform of the Health System. The X National Health
Conference.

1
IPEA, Brasilia
Introdução ciamento público, detonou um movimento
de crítica e de negação da importância do
A última década deste século 20 tem papel do Estado. Repensar este papel é mis-
como marcas a rapidez das transformações e ter. Mas não corresponde a incorporar a
a incerteza. As mudanças, ininterruptas e máxima predileta do neoliberalismo: "mais
cumulativas, alcançam o processo produtivo, Mercado, menos Estado". O desafio está em
com profundas alterações tecnológicas e de redefinir os contornos do Estado, identificar
organização da produção, aí incluídas as as possibilidades/necessidades que a nova
formas, o processo e as relações de trabalho, configuração econômico-social requer, explo-
e as demais relações sociais, atingidas por rar as alternativas de construção do Novo
intensas transformações culturais e políticas que o ciclo histórico permite e exige.
e por fragmentações fundadas em identida- Felizmente, nos anos recentes, um nú-
des religiosas, étnicas ou regionais, que co- mero cada vez maior de analistas têm se
locam em xeque a concepção mesma de dedicado a pôr em questão os pressupostos
Estado Nacional. Nesse movimento contínuo, e os resultados da implementação de políti-
torna-se difícil identificar a direção das mu- cas operadas sob a lógica neoliberal, no
danças e prever seus resultados, ampliando o contexto dos programas de ajuste, bem como
grau de incerteza sobre o futuro, imediato ou a identificar alternativas para o encaminha-
remoto. mento das mesmas. Com maior freqüência,
Deste contexto, emerge a necessidade os economistas começam a admitir as "exter-
de transformação do Estado, lociis de poder nalidades positivas" das políticas sociais no
onde se entrecruzam as relações econômi- processo de transformação produtiva e de
cas, políticas e sociais. inserção na nova ordem econômica mundial.
O reconhecimento desta necessidade está Agências financiadoras internacionais — prin-
longe de significar o perfilhamento aos argu- cipais avalistas do modelo de ajuste na dé-
mentos do discurso neoliberal que presidiu cada passada — começam a reconhecer os
o debate na década anterior, preconizando a efeitos perversos do mesmo. O Banco Inte-
devolução ao mercado não apenas das fun- ramericano de Desenvolvimento (BID) ques-
ções produtivas como também de muitas das tionou e preconizou, em recente documen-
funções regulatórias e, em particular, a rup- to, a necessidade de novo modelo de ajuste
tura com o padrão de solidariedade que (BID, 1995), que integre e articule os obje-
caracterizou a organização social e orientou tivos de equilíbrio monetário, crescimento
a intervenção estatal até o final dos anos econômico e desenvolvimento social, funda-
setenta, no interior do Estado keynesiano, e do no reconhecimento do incremento da
que se convencionou chamar "Welfare State". pobreza e da desigualdade, como resultado
Ao contrário, o maior desafio que o analista das políticas de ajuste implementadas a par-
de políticas públicas encontra nos dias que tir da década de oitenta nos países latino-
correm — principalmente quando se dedica americanos.
à análise de políticas sociais — é resgatar a A escolha de um caminho alternativo e
capacidade de reflexão crítica frente a tantas a viabilidade de sua construção decorrem de
verdades incontestáveis e certezas absolutiza- variáveis que se situam no plano político-
das pelo discurso neoliberal. ideológico. A tendência tributária da dinâmi-
A crise provocada pelo esgotamento do ca econômica atual, se deixada a seu livre
padrão "fordista" e pela conseqüente dificul- curso, aponta-nos para um mundo marcado
dade de implementação de políticas estatais, pela concentração do capital nos centros di-
dado o impacto sobre a capacidade de finan- nâmicos da economia globalizada, pelo apro-
fundamento da concentração da renda e da o problema do grau de socialização tolerável
exclusão no interior das sociedades nacio- de um certo número de bens e serviços.
nais e entre os países do "primeiro" e dos Draibe ( 1 9 9 4 ) sumariza as diferentes
demais "mundos" da economia mundial. percepções do processo de transformação da
Pensar o Novo implica propor formas economia capitalista a partir dos anos seten-
de se opor a essas tendências, em conceber ta, identificando um primeiro momento, no
formas de Estado e da relação Estado/Socie- qual o mesmo foi percebido apenas por seus
dade capazes de regular e de promover pro- aspectos negativos, particularmente a falên-
cessos de inclusão e emancipação social. cia econômica e o esgotamento do padrão
de regulação. Apenas num segundo momen-
to, que ela assinala c o m o o do final dos
As P o l í t i c a s S o c i a i s c o m o anos oitenta em diante, é que foram melhor
P r o b l e m a e c o m o Desafio percebidas "as dimensões da transformação
p r o d u t i v a e os d e s a f i o s à e l e v a ç ã o d a c o m p e -
Nesse quadro de mudanças econômico- t i t i v i d a d e d a s e c o n o m i a s a p o i a d a s nas n o v a s
sociais, as políticas sociais se tornaram um t e c n o l o g i a s e n a g l o b a l i z a ç ã o f i n a n c e i r a (...).
dos principais objetos de contestação e um A ideologia neoliberal que a c o m p a n h o u e pra-
dos alvos preferidos dos discursos e das ações t i c a m e n t e ' d i r i g i u ' este m o v i m e n t o t a m b é m teve
de desconstrução do Estado. Desde os pri- ênfases e v a r i a ç õ e s nas suas teses e p r o p o s t a s
meiros momentos do processo de transfor- segundo aqueles momentos".
mação produtiva, quando a crise do padrão Essas mudanças de ênfase foram particu-
fordista se explicitou, o Welfare State foi res- larmente visíveis nos países d o primeiro
ponsabilizado pelas dificuldades financeiras mundo no que se refere às políticas sociais.
com que se defrontavam os diversos Estados Como registra a mesma autora, " n o s m o m e n -
nacionais. A crise de financiamento apontava tos m a i s a g u d o s d a crise, o r e d i r e c i o n a m e n t o
caminhos que envolviam a restrição de direi- d a p o l í t i c a s o c i a l q u a s e q u e se r e s u m i a às
tos sociais e de benefícios como única alter- propostas de corte do gasto social, à
nativa de sua superação, e a maior parte das d e s a t i v a ç ã o d e p r o g r a m a s , à efetiva r e d u ç ã o
medidas de política, em diferentes países, se d o p a p e l d o E s t a d o nesse c a m p o , (...) t e n t a t i -
pautou por esse diagnóstico. O thatcherismo vas d e d e s e s t a b i l i z a ç ã o d o s pilares d o Welfare
e a reaganomics constituem referências in- State, r e d u z i n d o a u n i v e r s a l i d a d e e os g r a u s
dispensáveis deste movimento. de cobertura de muitos programas sociais,
Poucos foram os que, de início, discor- ' a s s i s t e n c i a l i z a n d o ' — isto é , r e t i r a n d o d o c a m -
daram do diagnóstico, como o fez p o d o s d i r e i t o s s o c i a i s m u i t o s d o s b e n e f í c i o s e,
Rosanvallon (1981), ao identificar que a fra- q u a n d o possível, privatizando a p r o d u ç ã o , a
gilização do Estado-Providência correspon- d i s t r i b u i ç ã o o u a m b a s as f o r m a s p ú b l i c a s d e
dia a uma crise da solidariedade e que o p r o v i s ã o d o s serviços s o c i a i s . N a b a s e d e tal
impasse não era financeiro, mas político. Se- 'redirecionamento' estava a v o n t a d e de q u e -
gundo sua perspectiva, o crescimento do gas- brar a espinha dorsal dos sindicatos e dos
to público era real, mas soluções financeiras movimentos organizados da sociedade"
teóricas existiam. A questão é que cada uma (Draibe, 1994, p. 16). A fragilização dos ato-
delas implicava a modificação do equilíbrio res historicamente responsáveis pela susten-
social existente entre os indivíduos, as catego- tação da conquista de direitos sociais era
rias sociais e os agentes econômicos. Existia a vista como c o n d i ç ã o necessária para a viabi-
"crise do Welfare Staté\ mas o que a expres- lização das políticas restritivas que se preten-
são "impasse financeiro" designava era, de fato, dia implementar.
No entanto, se na origem do Welfare do se consolidou o Welfare State. Mas não
State era possível identificar com clareza seu necessariamente significarão a negação dos
caráter de conquista de direitos sociais, as- princípios de solidariedade que sustentaram
sentada na capacidade de organização da a garantia de direitos sociais universais. No
classe trabalhadora, não menos verdadeiro é contexto de concentração de capital e renda
o fato de que estes se converteram em direi- — com a crescente dispensa do trabalho hu-
tos universais de cidadania, ao longo de seu mano para a produção da riqueza social, que
processo histórico de construção. Isto talvez se agudiza neste ciclo do desenvolvimento
explique porque a tentativa de desmonte do capitalista — o Estado parece despontar como
Welfare State não tenha ultrapassado, nos a única instância capaz de mediar um pro-
países desenvolvidos, a condição de ajustes cesso redistributivo que assegure ao cidadão
e reduções de benefícios passíveis de rever- as condições básicas de sobrevivência e im-
são, mantendo-se praticamente íntegros os ponha limites ao processo de exclusão.
mecanismos públicos operados pelo Estado, É na busca dos contornos desse novo
não obstante a inegável fragilização das or- Estado que precisamos dirigir a energia cri-
ganizações sindicais. adora. Um Estado "flexível e aberto, para o
Como não eram considerados, nessas sistema mundial e para a sociedade, (...) ca-
propostas, os limites do mercado como ins- paz de descentralizar-se e diversificar-se em di-
tância racional capaz de ordenar as relações reção ao local e a o regional, conectando não
e a convivência social, o resultado foi o com a sociedade civil, mas com as sociedades
surgimento de graves problemas sociais. Os civis" (Castells, 1995). Um Estado que seja
"novos pobres", o crescente aumento do capaz de dar conta da diversidade dos inte-
desemprego estrutural, as novas formas de resses e demandas que o novo contexto faz
exclusão são, hoje, a conseqüência visível dessa emergir, e capaz de promover a integração
assertiva. Lechner (1993, p. 245) adverte que das massas excluídas e garantir os direitos da
"o mercado, por si só não gera e nem sustenta cidadania.
uma ordem social e, pelo contrário, pressupõe
uma política de ordenação (...). Dado o caráter
social do mercado, o ordenamento da socie- A Possibilidade de Construção
dade é um fator determinante da eficiência d o NOVO n a s P o l í t i c a s S o c i a i s
macroeconômica. Se queremos ser fiadores de
uma economia social de mercado, então deve- As sociedades modernas foram profun-
mos considerar o fortalecimento da ordem so- damente marcadas pelo referencial ideológi-
cial." Por isso, nos países centrais, a busca de co do liberalismo e de seus "neo" formatos.
novos mecanismos que atendam a este requi- Os direitos civis e políticos são marcas das
sito incluem alternativas tais como: a garantia sociedades capitalistas modernas. Mesmo o
de renda mínima, a realização de programas Welfare State, viabilizador de direitos sociais
de readaptação e formação de mão-de-obra, e e do "interesse coletivo", hoje alvo de críti-
o apoio ao desenvolvimento de novas áreas cas contundentes, é apontado por Marshall
de trabalho. em seu clássico ensaio (Marshall, 1950) como
Há, crescentemente, o reconhecimento parte da construção do Estado-Nação. É a
de que esse novo ordenamento não pode materialização, no âmbito das instituições
prescindir de um Estado forte. Essa "força" e governamentais, de um processo histórico
as características institucionais do Estado cer- mais amplo: a instalação da democratização
tamente poderão ser diversas daquelas que no interior da construção do Estado-Nação,
prevaleceram na etapa do pós-guerra, quan¬ de sua constituição c o m o espaço público.
Contudo, a crise contemporânea não pôs A focalização — que restringe a ação
em discussão os direitos civis e políticos, estatal e redireciona o gasto social para pro-
apenas os direitos sociais. E o mesmo Marshall gramas e a públicos-alvo específicos, seleti-
já apontava as razões disso. É que os direitos vamente escolhidos pela sua maior necessi-
civis são direitos abstratos e a igualdade for- dade e urgência — pode ser vista como uma
mal encobre desigualdades materiais. Enquan- alternativa atraente para fazer frente à extre-
to os direitos civis e políticos são direitos ma pobreza, que o padrão de desenvolvi-
regulatórios e" estão referidos a pessoas abs- mento atual acentua no contexto de crise.
tratas, os direitos sociais são redistributivos e Draibe (1994, p. 17) enfatiza esse aspecto.
dizem respeito a pessoas concretas e seu Ao discorrer sobre os dilemas trazidos pela
exercício não é garantido pela existência do necessidade de enfrentar a pobreza, agrava-
reconhecimento e da norma. Por isso se da pelas medidas de ajuste na América Lati-
constituiu o Estado de Bem-estar: as suas na, destaca que " . . . é j u s t a m e n t e e m f a c e d a
instituições seriam a contrapartida material questão da pobreza que a discussão dos prin-
dos direitos sociais. cípios d e justiça q u e o r i e n t a m as políticas s o -
É esse padrão de solidariedade social ciais t e m c o n d u z i d o a certos d i l e m a s , e m p a r -
que hoje está sendo alvo de críticas. t i c u l a r os q u e l e v a m a se o p o r e m c o n c e p ç õ e s
No entanto, se nos países desenvolvidos universalistas d e p o l í t i c a s a d e s e n h o s do t i p o
a reorganização do Estado tem se realizado seletivo e f o c a l i z a d o d e p r o g r a m a s e s p e c i a l -
sem que os direitos sociais sejam afetados mente dirigidos à p o p u l a ç ã o pobre. O que
em seus aspectos essenciais, a questão assu- assume contornos de tensão e dilema é que a
me outros contornos em países como o Bra- crise a t u a l t a n t o p õ e c o m o p o s s i b i l i d a d e a a m -
sil, em que a crise no plano e c o n ô m i c o se pliação do direito social, através da
associou a uma crise do regime político, universalização de programas e a multiplica-
coincidindo c o m o início do processo tar- ç ã o d e políticas n ã o c o n t r i b u t i v a s c o m o , a o
dio de construção de cidadania. Aqui, as reduzir os recursos p ú b l i c o s e p r i v a d o s d i s p o -
conquistas ainda estão se consolidando e suas níveis p a r a o g a s t o s o c i a l , i m p õ e o p ç õ e s , se-
forças sociais de sustentação têm densidade leção de políticas e prioridades a alguns de
política que pode ser ainda insuficiente para seus b e n e f i c i á r i o s , o q u e , t e o r i c a m e n t e , c o n -
sustentá-las. tradiz a tendência à universalização anterior-
Para tornar mais complexa a questão, mente afirmada".
há o fato de alguns dos pilares das pro- Mas a exigência de estabelecer priori-
dades não p o d e ser
postas neoliberais (descentralização,focalização confundida com
e privatização) a ne-
convergirem com
genuínas demandas sociais, tornando ne- gação do princípio da universalidade do
bulosos os critérios de escolha de solu- direito c o m o imagem-objetivo para a so-
ções para os problemas que precisam ser ciedade, implícita na proposta de focaliza-
enfrentados. ç ã o . Assim, não se p o d e confundir e apoiar
mecanismos de restrição de direitos, c o m o
Assim, a descentralização, preconizada é o caso da definição de uma "cesta bási-
com base em seu potencial ampliador da efi- ca" de serviços de saúde, com base no
ciência do gasto público, é também reivindi- argumento de q u e , hoje, o Estado não tem
cação social, incorporada ao texto constitucio- condição de o f e r e c e r tudo a todos. Há
nal de 1988, porque representa a possibilida- formas de resolver democraticamente o
de de permitir mais facilmente a democratiza- dilema, mediante processos participativos
ção de processos decisórios, a maior participa- que possam conferir legitimidade às esco-
ção social e o controle sobre a ação estatal. lhas em cada m o m e n t o , sem negar a pos¬
sibilidade de uma ampliação futura das Em sociedades desiguais, n o entanto, so-
condições de exercício do direito. A exis- luções baseadas na seletividade, focalização
tência de programas focalizados é, muitas e privatização significarão, necessariamente,
vezes, uma c o n d i ç ã o necessária à garantia a reprodução de desigualdades e o aprofun-
do acesso a alguns segmentos excluídos damento da segmentação social, no sentido
Mas estes podem ser combinados a políticas de que consagrarão critérios meritocráticos
de corte universal. O estabelecimento de para o acesso às condições de exercício dos
práticas democráticas de planejamento é um direitos sociais.
dos caminhos promissores para alcançar esse Ademais, o pressuposto de que as regras
objetivo, permitindo identificar, com legiti- de mercado se aplicam ao Sistema de Saúde
midade, prioridades e estratégias. desconsidera a especificidade da "mercado-
Da mesma forma, a reconhecida e in- ria" saúde: apenas excepcionalmente existe a
contestável insuficiência da ação estatal para possibilidade de escolha sobre o momento
fazer frente à dimensão da exclusão no país, de consumir esse serviço; mais excepcional
que torna imperativa a incorporação de ou- ainda é a possibilidade de que o usuário
tros agentes — organizações não-governa- conheça o tipo de serviço que precisa con-
mentais, empresas, movimentos sociais — na sumir — estará sempre à mercê da autorida-
luta por sua superação, não pode ser con- de do médico para determinar quanto e o
fundida com a proposta de eximir o Estado que deve consumir. Não existe "autonomia"
das suas responsabilidades para com as po- ou "soberania" do "consumidor" na escolha
líticas sociais universais, implícita nas pro- do produto e de suas quantidades, não exis-
postas de devolução ao mercado — privati- te a possibilidade de postergar o consumo
zação — das ações que se constituíram em (Castro, 1995). O que ele pode é julgar a
objeto das mesmas. No discurso neoliberal, resolutividade e alguns aspectos da qualida-
"a privatização, entendida c o m o deslocar a de do atendimento recebido.
p r o d u ç ã o d e bens e serviços p ú b l i c o s p a r a o Construir o N o v o significa buscar estra-
setor p r i v a d o l u c r a t i v o , f o i a p r e s e n t a d a como tégias viabilizadoras de políticas públicas
u m a r e s p o s t a q u e a l i v i a a crise f i s c a l , evita includentes, tendentes à universalização,
i r r a c i o n a l i d a d e n o uso d e recursos i n d u z i d a p e l a direcionadas à construção de uma socieda-
g r a t u i d a d e d e certos serviços p ú b l i c o s e a u - de mais e q u â n i m e e m e n o s desigual, en-
menta a progressividade do gasto público a o frentando as t e n d ê n c i a s , e n ã o subordinando-se a elas.
e v i t a r q u e o s s e t o r e s d e m a i o r p o d e r se a p r o -
priem de benefícios não proporcionais (mai- A ação estatal precisa, para tanto, ser
ores) à contribuição que realizam para ágil e flexível. Combinar políticas universais
f i n a n c i á - l o s " (Isuani, 1990; apuei Draibe, a intervenções focalizadas para assegurar o
1994). Trata-se, portanto, não apenas de acesso de segmentos excluídos a bens e
transformar o papel do Estado naquilo que serviços essenciais; articular as diversas inter-
diz respeito aos requisitos de sustentação venções setoriais, conferindo-lhes caráter de
da a c u m u l a ç ã o , retirando-o de funções complementaridade e assegurando o trata-
produtivas n ã o mais relevantes para esse mento simultâneo das múltiplas dimensões
fim, mas de devolver ao mercado também dos problemas; buscar formas de autonomia
as atribuições associadas à garantia de di- administrativa e mecanismos estimuladores da
reitos sociais. qualidade dos serviços prestados pode signi-
Nas atuais propostas de reforma do Es- ficar inovações na gestão pública capazes de
tado, muitas das medidas propostas buscam viabilizar o objetivo de eqüidade que res-
expandir a aplicação desses conceitos no país. ponderia aos anseios da população.
Os C o n d i c i o n a n t e s e nacionalização dos fluxos comerciais, a ques-
as Exigências d a Saúde tão da competitividade se associa à existên-
cia de um eficiente sistema público de saú-
A saúde é uma das áreas consideradas de, particularmente no que se refere à ga-
prioritárias no projeto governamental de re- rantia de padrões sanitários dos produtos.
forma administrativa, e diante das propostas Numa sociedade que tem os níveis de
de mudança do sistema de saúde impõe-se, exclusão da nossa, em que pelo menos vinte
para uma correta escolha no campo das ques- por cento da população sobrevive em con-
tões institucionais, uma reflexão sobre a ne- dições extremamente precárias, em decorrên-
cessidade de respostas que o sistema de saúde cia de um processo histórico de desenvolvi-
deve ser capaz de assegurar à sociedade. mento que produziu uma das mais desiguais
Essas respostas estão associadas à deter- distribuições de renda do mundo, a garantia
minação das condições de saúde e às formas do direito à saúde não pode prescindir de
de sua preservação e recuperação. uma estratégia integrada de ação estatal. E se
É desnecessário, hoje, ressaltar o caráter pensarmos nas possibilidades de agravamen-
de multideterminação da saúde, não há mais to desse quadro determinadas pelo processo
quem o coloque em dúvida. Mas ainda é de transformação da economia mundial num
indispensável chamar a atenção para o fato futuro próximo, mais importante ainda se
de que a decorrência natural dessa assertiva afigurará a ação estatal no equacionamento
deve ser a incorporação por todas as áreas da questão social.
de ação do Estado do objetivo de construir Nenhum "ajuste pelo mercado" será ca-
a saúde. A viabilização de ações multisetoriais paz de garantir, por exemplo, acesso a esgo-
se revela muito mais fácil na esfera local, tamento sanitário aos quase dez milhões de
onde é maior a possibilidade de coordenar domicílios urbanos (trinta e nove milhões de
espacialmente as intervenções, razão pela qual pessoas) que não dispõem, no país, desse
a ação dos governos municipais deve ser serviço essencial à saúde, como foi detecta-
fortalecida em todas as áreas de políticas do pelo Censo de 1991.
públicas associadas à garantia de qualidade E, se tomarmos esses mesmos dados
de vida à população. Mas é também neces- distribuídos segundo a renda da população,
sária a incorporação desse objetivo às polí- observaremos que dos 9,2 milhões de domi-
ticas de âmbito nacional, particularmente as cílios urbanos cujos chefes têm renda de até
que repercutem sobre as condições de em- dois salários mínimos, apenas cerca de 4 0 %
prego e renda. possui formas adequadas de esgotamento
Mais do que hospitais, o que precisa ser sanitário e cerca de 6 5 % têm água canaliza-
assegurado aos cidadãos é qualidade de vida. da, enquanto que entre os de renda superior
Essa é mais uma das razões pelas quais a a dez salários mínimos o percentual que conta
existência de um sistema público estatal de com água canalizada é de 99%, e é de cerca
atenção à saúde é importante numa socieda- de 9 0 % o acesso a esgotamento adequado.
de como a brasileira. Ele deve ser também Isto significa que, apenas na faixa de até
um espaço catalizador de ações multisetoriais, dois salários mínimos, cerca de 5,5 milhões
promotor da articulação das políticas públi- de domicílios precisam ter assegurado o aces-
cas necessárias para assegurar a saúde e so ao esgotamento sanitário e 3,2 milhões
interromper os ciclos de transmissão de necessitam de água canalizada. Uma tarefa
doenças. Mesmo na perspectiva estrita da in- monumental, frente à qual o Estado não pode
serção na economia mundial, como condi- se omitir, se quisermos realmente construir
ção para a integração ao processo de inter¬ uma sociedade democrática, para além do ¬
formalismo da democracia representativa. E • Deve ser acessível a todo cidadão,
uma tarefa na qual o papel do sistema de independente de sua capacidade financeira
saúde é crucial, na identificação de priorida- ou de sua forma (ou possibilidade) de inser-
des para a inversão de fundos públicos, sob ção no mercado de trabalho;
a ótica da garantia do direito à saúde, não • Deve ser capaz de responder às exi-
apenas dos setores excluídos, mas de toda a gências postas pela transformação do quadro
população sob risco de contrair doenças demográfico e do perfil epidemiológico, ga-
transmissíveis — como já vem ocorrendo com rantindo a adequação das ações às demandas
a dengue e o cólera — cujo controle é pos- postas pelos diferentes quadros sanitários, nas
sível através da aplicação de tecnologias já diversas regiões do país;
disponíveis. • Deve ter como objetivo a construção
Outra dimensão da questão da atenção à e a preservação da saúde e não apenas a
saúde está relacionada à dinâmica demográfica. cura da doença;
As rápidas mudanças verificadas no país com • Deve operar de modo articulado, sujei-
relação às taxas de crescimento populacional, to aos mesmos princípios e diretrizes, viabili-
fertilidade e mortalidade, nas últimas décadas, zando a integralidade dos cuidados com saú-
com o conseqüente aumento da esperança de de e oferecendo serviços de boa qualidade;
vida e envelhecimento da população, impõem • Deve, para assegurar tudo isso, contar
ao sistema de saúde novos desafios e a neces- com um processo decisório participativo e
sidade de ajustar-se a um novo perfil de de- submeter-se ao controle dos sujeitos sociais.
manda por serviços de saúde. Em resumo, acesso universal, integrali-
Nesse novo quadro, ações de prevenção dade da atenção, ênfase em ações de pro-
relativas a doenças crônico-degenerativas moção e proteção da saúde, descentraliza-
devem se somar àquelas relativas à proteção ção, participação social.
contra doenças transmissíveis, que constituí- Exatamente o que a legislação brasileira
ram até hoje o núcleo das ações preventivas hoje em vigor — e ainda não inteiramente
no país. Outra exigência é a melhoria da implementada — propõe para o SUS.
qualidade da atenção méclico-hospitalar e a
adequação das práticas do sistema para fazer
frente à expansão do contingente de pacien- A Proposta de R e f o r m a
tes idosos, cujas necessidades de atenção do Sistema de Saúde
são diferenciadas. Diante das desigualda-
des sociais e regionais, este é mais um de- O Ministério da Administração Federal e
safio posto ao sistema de saúde. da Reforma do Estado — MARE e o Minis-
Outras questões podem ser arroladas para tério da Saúde — MS estão atualmente traba-
evidenciar a complexidade do quadro ao qual lhando na elaboração de uma proposta de
o sistema de saúde deve dar respostas. A reorganização do sistema de saúde. No do-
subnutrição, as elevadas taxas de mortalida- cumento intitulado "Sistema de Atendimento
de infantil, o recrudescimento de antigas de Saúde do SUS" são apresentados os traços
doenças transmissíveis e o surgimento de gerais das mudanças pretendidas.
novas. E cabe ressaltar que todos esses fenô- A proposta governamental parte do diag-
menos estão desigualmente distribuídos ao nóstico correto da necessidade de conferir
longo do território nacional. melhor qualidade e maior eficiência às ações
Nesse contexto, que características deve e serviços, mas encaminha soluções que sig-
ter o sistema de saúde para que a população nificam a transformação profunda de um sis-
brasileira possa exercer o seu direito ? tema de saúde que apenas começa a ser¬
implementado, sem que nenhuma avaliação tar dentro d o município ou muito freqüente-
consistente dessa experiência, apenas iniciada, m e n t e f o r a d e l e " (p. 7 ) .
tenha sido efetuada. De acordo com o docu- O processo de implementação da refor-
mento acima referido " o q u e se está p r o c u r a n - ma " c o m e ç a r á p e l a c r i a ç ã o d e u m S u b s i s t e m a
d o c o m esta r e f o r m a n ã o é a b r a n g e r t o d o o d e Distritos d e S a ú d e , e m nível d o M i n i s t é r i o
SUS, m a s u m a d a s p a r t e s f u n d a m e n t a i s do d a S a ú d e " que será responsável pelas diretri-
m e s m o — e c e r t a m e n t e a mais c a r a : a assistên- zes e normas que " d e f i n i r ã o as bases o r g a n i -
cia a m b u l a t o r i a l e h o s p i t a l a r " (p. 7) z a c i o n a i s e g e r e n c i a i s c o m u n s a o s Distritos d e
Em sua essência, a proposta envolve a S a ú d e , assim c o m o os m e c a n i s m o s d e a l o c a ç ã o
" m o n t a g e m d e u m Sistema d e A t e n d i m e n t o à e d e c o n t r o l e d o s recursos d e s t i n a d o s a o p a -
S a ú d e e m nível m u n i c i p a l , e s t a d u a l e n a c i o n a l , g a m e n t o d o s serviços especializados a m b u l a t o -
constituído de dois subsistemas: Subsistema de riais e hospitalares p a r a a t e n d e r a o s e n c a m i n h a -
Distritos d e S a ú d e e S u b s i s t e m a d e Referência mentos d e u m d a d o Distrito d e S a ú d e " (p. 8).
A m b u l a t o r i a l e H o s p i t a l a r " . O documento afir- A responsabilidade pelo financiamento
ma que " a i d é i a d e c r i a ç ã o d e u m Sistema d e do Subsistema de Distritos é predominante-
A t e n d i m e n t o à S a ú d e (...) e sua c l a r a s e p a r a - mente do município: " o s recursos p a r a insta-
ção o p e r a c i o n a l e m dois subsistemas n ã o foi l a ç ã o e m a n u t e n ç ã o d o s distritos d e S a ú d e
a i n d a d i s c u t i d a " e considera que se trata de d e v e m ser o r i u n d o s d o s recursos d o T e s o u r o
" u m a proposta que viabiliza a i m p l e m e n t a ç ã o M u n i c i p a l , c o m o contrapartida dos recursos
d o SUS, a o t o r n a r mais r á p i d a e efetiva a f e d e r a i s e e s t a d u a i s d o S U S " (p. 8). Quanto à
d e s c e n t r a l i z a ç ã o " . Aparentemente, os autores gestão, haverá " e m c a d a nível d e g o v e r n o u m a
da proposta desconhecem os antecedentes a u t o r i d a d e r e s p o n s á v e l p e l o s hospitais p ú b l i -
do SUS. O núcleo da proposta é a separação cos o u , m a i s a m p l a m e n t e , p e l o S u b s i s t e m a d e
da gestão das ações básicas e preventivas Referência A m b u l a t o r i a l e H o s p i t a l a r (que n ã o
das de assistência médico-hospitalar, com a d e v e r á ser o g e s t o r do S u b s i s t e m a d e Distritos
atribuição dessas responsabilidades a dife- d e S a ú d e ) " Cp. 12). Ainda que não aprofunde
rentes áreas cie governo. Foi exatamente para essa questão, o documento prevê a transfor-
superar essa perversa dicotomia, institucio- mação dos hospitais públicos em "organiza-
nalizada no país pela Lei 6229/75, que regu- ções sociais" de caráter privado, como meca-
lamentava o Sistema Nacional de Saúde, que nismo para estimular a competitividade e
o SUS foi concebido. aumentar a eficiência. Não há, também aqui,
A proposta apresenta a divisão de atri- nenhuma avaliação das experiências simila-
buições: "cada município deverá montar um res em curso no país para dar sustentação à
Sistema d e A t e n d i m e n t o à S a ú d e , i n t e g r a d o , proposta. Não estão documentadas, por exem-
h i e r a r q u i z a d o e r e g i o n a l i z a d o p a r a seus c i d a - plo, as conseqüências dessa autonomização sob
d ã o s , a p a r t i r d a b a s e m u n i c i p a l . Desse siste- a perspectiva da integração ao sistema de saúde
m a f a r á p a r t e o S u b s i s t e m a d e Distritos d e e a possibilidade de avaliar a "accountability"
S a ú d e , c o n s t i t u í d o d e U n i d a d e s o u Postos d e em relação a essas instituições.
Saúde e / o u de M é d i c o s de Saúde da Família A criação de um sistema de demanda
( m é d i c o s clínicos g e r a i s ) , q u e e s t a r ã o d i r e t a - administrada para ações de maior complexi-
mente subordinados à autoridade de saúde dade, em particular a atenção hospitalar,
m u n i c i p a l , e d e u m S u b s i s t e m a d e Referência privilegia a questão da "gestão das unidades"
Ambulatorial e Hospitalar formado por a m - hospitalares em detrimento da "gestão do
bulatórios e hospitais credenciados, que p o - sistema", sob a ótica do comprador de servi-
d e r ã o ser e s t a t a i s , p ú b l i c o s n ã o e s t a t a i s (fi- ços. Considera a "demanda de serviços hos-
l a n t r ó p i c o s ) o u p r i v a d o s e q u e p o d e r ã o es¬ pitalares" como uma dimensão independente ¬
da gestão. Repõe, assim, condições que de- que tange ao sistema de saúde: pronunciar-
terminaram alguns dos mais graves proble- se, durante a Conferência Nacional de Saú-
mas do sistema de saúde antes existente no de, sobre as diretrizes que deseja ver impri-
país, e que o SUS pretende superar: a frag- midas à política setorial. E nesta X Conferên-
mentação político-institucional e programática cia, que tem lugar em Brasília na primeira
e a recentralização da gestão das ações de semana de setembro, há ainda uma possibi-
maior complexidade, responsáveis por con- lidade adicional: pronunciar-se sobre o mo-
sideráveis distorções, ainda presentes, na ofer- delo institucional que deve ter o sistema de
ta de serviços de saúde à população. saúde no país.
Igualmente, não leva em consideração A reforma do Estado é tema que tem
as dificuldades de gestão e a necessidade de ocupado grande parte do debate político atual
alcançar maior racionalidade na provisão da e poucos são os que não reconhecem a sua
atenção à saúde no interior de um sistema necessidade. Mas a r e s p o n s a b i l i d a d e de
institucionalmente fragmentado, além de sua construir o N o v o implica também a cora-
inadequação ao objetivo de assegurar o prin- gem de r e c o n h e c e r a a d e q u a ç ã o de solu-
cípio da. integralidade da atenção — que não ções já existentes.
é negado nos documentos que contêm a O que o SUS preconiza é a organização
proposta. da oferta de serviços à população, mediante
A proposta atual, além da ameaça ao programação regionalizada baseada em aná-
princípio da integralidade, contém o risco de lise de necessidades e exigências do perfil
retrocesso no processo de implantação do epidemiológico, com a crescente articulação
novo modelo de atenção a partir da frag- das ações de natureza preventiva e curativa
mentação do sistema, pela possibilidade que e a complementaridade entre os diversos
apresenta de privilegiamento ainda maior das níveis de complexidade de atenção na rede
ações curativas. Ao separar os recursos e a de serviços, por meio de um processo deci-
gestão da atenção médico-hospitalar, poderá sório democratizado e sob controle dos ato-
conduzir ao reforço dessa área que, por res- res sociais relevantes. Isso tudo no interior
ponder a interesses poderosos e organiza- de um sistema único enquanto princípio
dos, possui maior densidade política para orientador, mas flexível quanto às formas
enfrentar a luta pela partilha dos fundos organizacionais, de modo a dar conta das
públicos, em detrimento das ações de pro- diversidades econômicas, sociais e culturais
moção da saúde e prevenção de doenças. do país. Isto é, único, mas não padronizado.
Será que é isso o que deseja a socieda- O que é necessário é buscar as condi-
de brasileira para o próximo milênio? ções para que o SUS ofereça à população
serviços de boa qualidade, oportunos e com
maior eficiência, conforme proposto na le-
X C o n f e r ê n c i a Nacional de Saúde: gislação que o regulamenta.
o Momento de Escolher Avanços nessa direção vêm sendo alcan-
çados com o processo de descentralização e
A legislação vigente confere à socieda-
2
o fortalecimento de ações de promoção da
de brasileira uma oportunidade singular no saúde.
A oferta de leitos e de consultas médicas
apresenta hoje desigualdade bem menor entre
2
As Leis 8080/90 e 8142/90 regulamentam a im- as regiões do país do que há cinco anos.
plantação do Sistema Único de Saúde, previsto no artigo Apenas dois estados — Amazonas e Pará —
198 da Constituição Federal de 1988. possuíam, em 1994, leitos cadastrados no SUS
em proporção inferior a 2 leitos/mil habitan- tas, sistemas de referência, apoio laboratorial
tes. Em 1990, de acordo com os dados do eficiente já podem ser encontrados em inú-
DATASUS, oito estados se encontravam nes- meros municípios. Estabelecimentos, inclusi-
sa condição. ve hospitalares, que estavam paralisados, têm
O número de estabelecimentos públicos sido reativados através de parcerias entre mu-
de saúde sem internação identificados pela nicípios; médicos especialistas — cardiolo-
AMS/IBGE quase triplicou, em 1992, em re- gistas, neurologistas, traumatologistas, dentre
lação ao existente em 1980: de 8,8 mil pas- outros — têm sido contratados através de
sou a 24,9 mil. Grande parcela desse aumen- consórcios municipais, assegurando acesso a
to ocorreu no período entre 1989-1992 e se cuidados antes inexistentes. Começam a ser
deveu à ampliação da participação dos go- organizados serviços de vigilância sanitária e
vernos locais na provisão de serviços de epidemiológica.
saúde: a rede municipal passou de 9,5 mil a Avaliações do programa "Saúde da Fa-
17,6 mil estabelecimentos, um incremento de mília" indicam que tem sido possível resol-
85%. Também a rede hospitalar pública cres- ver, sem recorrer à hospitalização, cerca dé
ceu significativamente. Dos 1320 novos esta- oitenta por cento dos problemas de saúde
belecimentos hospitalares incorporados no das p o p u l a ç õ e s cobertas. Estudo recente
período 1980/1992, 897 eram públicos e 423 realizado pela Universidade do Ceará con-
privados. Dos públicos, 698 pertenciam à rede cluiu que em municípios cearenses esse
municipal, como mostra a tabela seguinte. percentual alcançou 94%.

BRASIL - Estabelecimentos de saúde: Total de Estabelecimentos, estabelecimentos


públicos e Estabelecimentos municipais

T o t a l Público + Privado Total Públicos T o t a l Municipais

ANO 1980 1989 1992 1980 1989 1992 1980 1989 1992
c o m intern. 6110 7127 7430 1217 1889 2114 348 747 1046
s e m intern. 12379 27704 42246 8828 20817 24978 2354 9532 17616
TOTAL 18489 34831 49676 10045 22706 27092 2702 10279 18662

Fonte: AMS-IBGE, 1989 & AMS-IBGE, 1992.

Estas são melhorias importantes sob a Mesmo na área da atenção hospitalar,


perspectiva da capacidade de cobertura da onde são mais complexos os problemas, têm
rede de serviços. Há, contudo, muitos outros sido identificados avanços. Mas os problemas
desafios a vencer. O mais importante deles de gestão das unidades hospitalares públicas
se refere à qualidade da atenção e à racio- decorrem, em grande parte, da precária au-
nalização da oferta de serviços, de modo a tonomia administrativa — em sua grande
permitir que a população tenha acesso a uma maioria, os hospitais públicos não se consti-
atenção adequada em todos os níveis de tuem sequer como unidades orçamentárias
complexidade. Mais uma vez a experiência — e do fato de que as normas de gestão
do SUS tem demonstrado que atribuir a res- financeira são padronizadas no setor públi-
ponsabilidade sanitária ao gestor municipal co, não se ajustando às especificidades e ne-
tem resultado em mudanças positivas. Cen- cessidades do setor. No entanto, o equacio-
trais de internação e de marcação de cônsul¬ namento desse problema não pode significar
risco à gestão do sistema de saúde. Existem maior eficiência no gasto, maior controle so-
alternativas capazes de oferecer a necessária bre os serviços terceirizados/adquiridos ao setor
autonomia gerencial às unidades sem privado, melhor qualidade dos serviços pres-
autonomizá-las em relação ao sistema. tados, aperfeiçoamentos no sistema de infor-
Outras distorções hoje existentes na ges- mações, resultando em melhor acompanhamen-
tão da atenção hospitalar estão associadas to de indicadores epidemiológicos e reduções
principalmente a dois fatores: a compra cen- significativas nas taxas de mortalidade infantil.
tralizada de serviços, que torna inviáveis sis- Não se pode esquecer que processos de
temas de controle e avaliação eficazes, e a mudança com a profundidade que o SUS
decorrente ausência de integração, ainda preconiza demandam tempo, e a experiência
prevalecente, entre ações de diferentes graus internacional, como ilustra o caso italiano,
de complexidade, dificultando a implantação onde o processo em curso se iniciou em
de sistemas de referência. Mas, realizada a 1978, nos recomenda cautela. Processos des-
descentralização dessa atribuição, será possí- ta natureza dão lugar ao deslocamento de
vel obter maior controle e contar com outros espaços de poder, transformação de práticas,
mecanismos para o pagamento de serviços reorientação de recursos alocados, e nada
prestados: contratos de gestão, contratos para disso se faz sem resistência, e envolve de-
cobertura populacional (captação), e outras morados processos de negociação.
formas que possam assegurar o acesso sem Algumas questões continuam a exigir
privatizar as unidades públicas e sem impe- resposta. A cios profissionais de saúde é uma
dir a eficácia do gasto. delas — e é crucial para a realização dos
A condição de gestão Semi-Plena atribui objetivos do SUS. Um quadro complexo, onde
às Secretarias Municipais de Saúde a comple- se mesclam fatores como remuneração desi-
ta responsabilidade sobre a gestão da pres- gual e insuficiente, condições de trabalho
tação de serviços: o planejamento, cadastra- precárias, processos de trabalho inadequa-
mento, contratação, controle e avaliação, e dos, formação profissional imprópria, e que
pagamento de prestadores de serviços; o se reflete em desrespeito ao cidadão e pre-
gerenciamento de toda a rede pública, exceto cária qualidade do atendimento e dos resul-
unidades hospitalares de referência sob ges- tados. Também aqui é possível encontrar
tão estadual; a execução e controle das ações soluções, como o indica a recente medida na
básicas de saúde, nutrição, educação, vigilân- área da educação que cria um piso salarial
cia epidemiológica e sanitária e de saúde do nacional. A introdução de mecanismos de
trabalhador de sua competência. avaliação de resultados para a determinação
São hoje 92 os municípios nessa con- da remuneração é outra possibilidade, já
dição, menos de dois por cento dos muni- existente com relação a outras categorias
cípios brasileiros, c o b r i n d o , n o entanto, profissionais na esfera federal, como é o caso
mais de 1 3 % da população do país. São, da GDP — Gratificação por Desempenho e
em geral, municípios de porte médio e gran- Produtividade, que combina critérios de de-
de, não estando ainda incluídas as principais sempenho individual e resultados de equipe
metrópoles, nas quais o problema da aten- na determinação dos valores percebidos. Pro-
ção à saúde adquire contornos críticos. gramas de reciclagem e formação profissio-
As avaliações existentes, ainda que par- nal, novas formas de gestão com processos
ciais, sobre os resultados desse processo mais participativos e responsabilizadores são
que apenas se inicia — os primeiros municí- outras medidas necessárias e possíveis.
pios só puderam ser enquadrados em novem- Mas a descentralização envolve, além
bro de 1994 — são bastante positivas. Incluem ¬ da atribuição da responsabilidade aos muni¬
cípios, a reorganização institucional cias esfe- equacionada, particularmente porque no
ras estadual e federal, às quais compete exer- âmbito municipal se torna mais efetivo o único
cer funções fundamentais de coordenação, controle capaz de realmente mudar a ação
regulação e avaliação do Sistema de Saúde. do Estado e assegurar a efetividade do direi-
Apenas recentemente, algumas secretarias to à saúde — o controle da sociedade.
estaduais superaram a perplexidade que as Com isso, completar-se-ia a mais profun-
acometeu diante do crescimento das respon- da experiência de Reforma do Estado no país,
sabilidades locais e começaram a redesenhar envolvendo a redefinição dos papéis das
seu perfil de intervenção, adequando-o a seu esferas de governo, a democratização do
novo papel. Também aqui há um enorme processo decisório e a reorganização do
campo de possibilidades de ação cooperati- modelo de atenção.
va e de parcerias com as demais esferas de O Novo seria então, a soma das muitas
governo. possibilidades de elaboração de alternativas
Na esfera federal, as resistências e os que a diversidade do país permite, orienta-
conflitos também permanecem, conferindo ao das para uma direção comum: a construção
processo de descentralização um ritmo mais da cidadania, a garantia do direito à saúde,
lento do que o necessário. Caso o governo sob a égide dos princípios do SUS.
federal se empenhasse mais em aprofundar Assim, a política de saúde poderá se
esse processo, regularizar os fluxos de recur- constituir, de fato, em espaço de alavancagem
sos e fortalecer as ações de cooperação téc- para a inclusão social, em vez de espaço de
nica boa parte dos problemas estaria ¬ reprodução da desigualdade.

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