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Rio de Janeiro
2014
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Rio de Janeiro
2014
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Aprovada em ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Prof. Dr. José Maria Gomez (Orientador) – Escola de Serviço Social – UFRJ
_____________________________________________________________
Profª. Drª. Marlise Vinagre Silva (Coorientadora) – Escola de Serviço Social – UFRJ
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Iolanda de Oliveira – Faculdade de Educação – UFF
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Magali da Silva Almeida – Escola de Serviço Social - UFBA
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Jorge de Paula Paixão – Instituto de Economia – UFRJ
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marildo Menegat – Escola de Serviço Social – UFRJ
SUPLENTES:
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fatima Cabral Marques Gomes – Escola de Serviço Social – UFRJ
______________________________________________________________
Prof. Dr. José Nilton Sousa – COPE – UFF
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FICHA CATALOGRÁFICA
À minha tia,
Marlene Rocha Inocêncio,
Por estar sempre ao meu lado.
Ao meu esposo,
Sergio de Lima,
Por tudo que já vivemos e ainda viveremos.
À amiga
Franciane Cristina de Menezes (Fran) (in memoriam)
A luta continua! Fran, Presente!
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AGRADECIMENTOS
Ao final desta caminhada, não posso deixar de reconhecer que não estive sozinha. Ao
contrário, muitas pessoas contribuíram de alguma forma para este resultado, umas de modo
mais direto e outras de modo mais difuso, mas igualmente importante. E essa é a razão pela
qual agradeço:
A meus pais, por tudo que representam em minha vida! Sem vocês, talvez nada disso tivesse
tanta importância.
Ao meu irmão Ricardo, por ter decidido ficar com a gente por aqui, neste “plano”.
Ao meu companheiro, esposo, Sergio, por compartilhar todo esse processo, abdicando de
projetos e de momentos de lazer para estar ao meu lado. Que a nossa vida seja uma eterna
Kizomba!
À minha tia Marlene, por todo o amor que temos uma pela outra! Obrigada por tudo!
Aos meus tios José Geraldo, Juvercino Machado e Venâncio Inocêncio. Estão aqui,
guardadinhos no meu coração.
À professora Marlise Vinagre. Obrigada por aceitar o desafio dessa empreitada junto comigo.
O seu amor e o seu compromisso com as lutas do povo negro nos aproximaram e, aí, eu nunca
mais quis me afastar de você. Felicidades e muito Asè!
À professora Iolanda de Oliveira. Obrigada por fazer parte de minha trajetória de vida
acadêmica e profissional, por apostar que a minha história pode ser mais bela e feliz.
À professora Magali da Silva Almeida. Obrigada por toda a sua contribuição para o
fortalecimento da luta do povo negro, dentro e fora da academia. Obrigada pelo incentivo ao
desafio acadêmico e por acreditar que podemos ir mais longe. Acreditar e apostar! Asè!
Aos professores José Maria Gomez, Marcelo Paixão e Marildo Menegat. Obrigada por
aceitarem o desafio de me acompanhar nessa empreitada e pelas ricas contribuições que ainda
virão! Competência, sabedoria e generosidade são atributos que traduzem muito do que vocês
representam para mim.
Ao professor José Nilton de Sousa. Querido amigo de longa caminhada e tempestades.
Obrigada por sempre acreditar em mim e dedicar grande parte do seu tempo para as minhas
conquistas. Você é meu talismã da sorte!
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À professora Maria de Fátima Cabral Marques Gomes. Obrigada por todo o carinho e
incentivo.
Às minhas irmãs, Jurema Araújo, Eliane Barbosa, Luciana Mendonça, Selma Poulet e
Andrea Lopes. Amo vocês!
À minha segunda-mãe, Alaíde Delfina da Conceição. Obrigada por cuidar de mim, sempre!
Ao meu querido amigo João Bosco Gois. Obrigada por todo o carinho e por sua companhia na
alegria e na tristeza!
Às amigas queridas Elaine Nascimento, Dina Carvalho, Albertina Medeiros. Obrigada por
fazerem parte dessa história!
Ao amigo-compadre, Alexandre Nascimento. Sigamos juntos, sempre!
Ao meu amigo-irmão, Ricardo Jonoario. Obrigada por tudo, meu amado, guerreiro Massai!
Às amigas-irmãs, Marcia Brasil e Sheila Dias (Nzingas). Obrigada por toda a dedicação e
carinho!
À amiga-companheira Dolores Vidal. Você é um grande presente em minha vida. Não tenho
palavras para agradecer tudo que você tem sido para mim nesta encarnação. Obrigada por
tudo!
À amiga amada, Marisa Chaves. Que bom saber que você sempre estará por perto!
Às professoras Rosangela Batistone, Marina Maciel, Rodriane Souza, Ana Paula Procópio,
Rita de Freitas, Cenira Duarte, Nivia Valença, Nivia Pereira, Josi Soares, Katia Vallina,
Rita Cavalcante, Isabel Lopes, Janaina Bilate, Jussara Lopes e Sara Martins. Obrigada
pelas valorosas contribuições.
À querida amiga Ana Paula Mauriel e ao amigo Rodrigo Lima. Obrigada por todo o carinho!
À família Lopes: tia Lucia, Seu Amauri, Eliane, Andrea e Alex (este não é Lopes, mas é da
família!). Obrigada pelas preces e por sempre torcerem por mim!
Aos queridos e queridas funcionárias da coordenação da pós-graduação: Luisa, Fernanda,
Fabio e Marcia. A luta continua!
À família do Morro do Palácio! Olha eu aqui, em outro palácio (a universidade), e não é só
atravessar a rua, não! Mas está valendo a pena essa maratona, mesmo com “os pés descalços,
sem pele”! Estamos chegando....
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À minha amiga-comadre, Marta Maria Vieira (in memoriam). Valeu, amiga, por todo o seu
afeto e pelos cuidados.
À querida amiga Jussara Assis. Nem sei o que seria de minha saúde física e mental se não
fosse a sua generosidade! Muito obrigada!
Ao querido Renato Veloso. Obrigada pelo carinho e o S.O.S.!
Ao querido Wilson da UFF. Obrigada por todo o carinho e pela torcida!
Aos queridos professores Flavio Gomes e Jacques D’Adesky. Que prazer tê-los como amigos!
À amiga combatente, Valéria Conceição (Dandara). Querida, estamos chegando...Obrigada
pela torcida!
À minha amada sogra Antonia e ao querido Mario. Obrigada pelas orações e por todo o
carinho!
À minha cunhada Sandra e ao meu cunhado Edson. Querida família!
Ao meu sogrinho Balbino e a sua querida esposa, Dulce. Obrigada por me deixarem fazer
parte da vida de vocês!
A minhas sobrinhas e meus sobrinhos: Roberto Vinicius, Aimé Stephanie, Mayara Inaê,
Mayra Cristina, Julia, Thaiane, Davi Ricardo, Robson e Fernando. Para vocês, todo o meu
amor e alegria! Que o futuro não seja tão obscuro e que o sonho de ser feliz se realize para
cada um de vocês.
A minhas afilhadas e meus afilhados: Jhonattan Luan, Sabrina Winnie, Lailinha, Monara,
Iago, Malcolm X, Patricia e Washington. Obrigada por tornarem a minha vida mais odara!
A todos e todas que lutam por justiça e por um mundo melhor para tod@s e não apenas para
alguns! Para vocês “eu tenho um poema, grande como o Nilo”. Asé!
Outono / 2014 !
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Vozes-Mulheres
(Conceição Evaristo)
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RESUMO
Esta tese apresenta uma análise da inserção da temática étnico-racial no processo de formação
em Serviço Social e a sua implicação para a intervenção profissional, tendo em vista o
fortalecimento do projeto ético-político do Serviço Social. Diante do quadro de expropriação
da classe trabalhadora e de níveis alarmantes de desigualdade social, vê-se que a condição
étnico-racial funciona como um importante mecanismo de seleção para o acesso a direitos em
todas as esferas da vida social. Todavia, sob a égide do mito da democracia racial, as
demandas sociais decorrentes do racismo, mesmo quando visíveis através de indicadores de
desigualdades raciais, quase sempre são invisibilizadas, naturalizadas ou secundarizadas. A
ausência do debate e da pouca produção acerca dessa temática no Serviço Social pode vir a
comprometer a formação profissional, no que tange à capacidade de apreensão crítica dos
processos sociais em uma perspectiva de totalidade, conforme orientam as diretrizes
curriculares do curso de Serviço Social, construídas pelo conjunto da categoria profissional e
sob a coordenação da ABEPSS no ano de 1996. Ademais, a partir do ano de 2004, conforme a
Resolução nº 01/2004 do Conselho Nacional de Educação – CNE/MEC, todas as modalidades
de Ensino, incluindo o Ensino Superior, deverão incorporar em seus currículos o tema
Relações Étnico-Raciais. A partir da análise da inserção da temática étnico-racial nos
currículos dos cursos de graduação das Unidades Federais de Formação Acadêmica filiadas à
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e na produção
teórica dos trabalhos apresentados nos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS),
Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e nas publicações das
revistas Inscrita e Temporalis, constatam-se os avanços já alcançados, as lacunas ainda
existentes, bem como os desafios relativos a esse debate no âmbito do Serviço Social.
ABSTRACT
The incorporation of ethno-racial themes in the Social Work training process: advances
and challenges
Abstract
In view of strengthening the Social Work ethical-political project, this dissertation presents an
analysis of ethno-racial themes insertion in the Social Work training process and its
implications for professional intervention. In a context of working class expropriation and
alarming levels of social inequality, it is noticed that the ethnic and racial condition works as
an important mechanism for the selection of access rights in all spheres of social life.
However, under the aegis of the racial democracy myth, social demands resulting from
racism, even when they are visible by racial inequalities indicators, it is almost always
considered invisible, naturalized or put in second place. The absence of debate and the little
production about ethno-racial themes, in Social Work, may compromise the professional
training, in terms of the critical capacity to understand the social processes in a totality
perspective as recommended by Social Work Course Curriculum Guidelines, constructed by
social workers body and under ABEPSS coordination in 1996. Moreover, since 2004, in the
Resolution: 01/2004 from the National Board of Education - CNE / MEC, all education
levels, including Higher Education, should incorporate into their curricula the Ethnic-Racial
Relations theme. From the analysis the insertion of ethnic and racial themes in the curriculum
of undergraduate Federal Academic Training Units affiliated to the Brazilian Association of
Education and Research in Social Work (ABEPSS) and theoretical production of the articles
presented in Brazilian Congress of Social Workers (CBAS), National Meeting of Researchers
in Social Work (ENPESS), in the publishing academic magazines Inscrita and Temporalis we
noticed the advances already achieved, the remaining gaps, as well as the challenges related to
this debate in the Social Work context.
LISTA DE FIGURAS
Quadro 6 Cursos de Serviço Social, por Região, criados antes e depois de 1996 119
Quadro 7 Número de disciplinas com conteúdo sobre o tema étnico-racial, por período 119
de criação dos cursos (antes e depois de 1996)
Quadro 8 Trabalhos acadêmicos no CBAS, por ano, local, tema central, nº total de 129
trabalhos e nº de trabalhos/ênfase raça/etnia - anos 2001 a 2013
Gráfico 1 Evolução dos trabalhos apresentados nos CBAS (2001 a 2012) 130
Gráfico 2 Trabalhos apresentados com ênfase em raça/etnia por ano de CBAS 130
Gráfico 3 Porcentagem de trabalhos com ênfase em Raça e Etnia em relação ao número 131
total de trabalhos apresentados nos CBAS 2001 a 2013
Quadro 9 Trabalhos com ênfase em Raça e Etnia apresentados nos ENPESS (2001 a 132
2012)
Gráfico 4 Evolução dos trabalhos apresentados nos ENPESS (2000 a 2012) 133
Gráfico 5 Trabalhos apresentados com ênfase em raça/etnia por ano ENPESS 133
Gráfico 6 Porcentagem de trabalhos com ênfase em raça e etnia em relação ao número 134
total de trabalhos (2000/2012)
Gráfico7 Principais temas das produções publicadas nos CBAS com ênfase em “raça e 135
etnia” – 2000 - 2013
Gráfico 8 Principais temas das produções publicadas nos ENPESS com ênfase em “raça 135
e etnia” – 2000 a 2012
Gráfico 9 Principais temas no total das produções publicadas nos CBAS e ENPESS com 136
ênfase em “raça e etnia” – 2000 – 2013
Quadro 10 Presença da temática étnico-racial nos artigos publicados na Revista Inscrita 139
(CFESS) no período de 1997 a 2012
Gráfico 10 Evolução do número de artigos publicados na Revista Inscrita (1997-2012) 139
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................20
2.3 O advento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a sua
apropriação pelo Serviço Social...........................................................................................123
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................162
REFERÊNCIAS....................................................................................................................167
ANEXOS................................................................................................................................185
20
INTRODUÇÃO
Em todos os quadrantes do planeta as fobias étnicas afloram ódios. Não tivesse sido
suficiente a estupidez fetichista do homem branco ter nos levado a esta situação
histórica, parece que ainda precisamos nos preparar para um longo enfrentamento
para restituir a diversidade de modos de produção de vida emancipados, onde
práticas e saberes de muitos povos que haviam sido condenados ao extermínio,
como os negros e índios, se acrescentem às novas práticas e saberes da humanidade
finalmente livre, pérolas multicolores (MENEGAT, 2013).1
As palavras do filósofo Menegat traduzem muito do que nos motivou a enfrentar esse
desafio que é discutir a questão étnico-racial no âmbito da formação em Serviço Social.
Talvez essa não seja uma tarefa fácil em nenhuma área de formação profissional. Talvez,
diante do cenário de múltiplas violações de direitos que se expressam em todas as esferas da
vida social da classe trabalhadora, esse tema seja apenas mais um dentre tantos ainda pouco
discutidos nos fóruns de debates das grandes questões, ou seja, das “questões macro”. No
entanto, essa é uma discussão que está pautada há pelo menos trinta anos pela categoria
profissional. Assim, acredito que, embora seja um tema que ainda mereça ser aprofundado e
ter mais visibilidade nos espaços acadêmicos e de discussão da categoria, ele não é um
assunto novo. Como diríamos “no chão da fábrica” de nossos espaços de trabalho: “Essa é
demanda antiga.”
O fato de ter participado, ao longo de minha graduação em Serviço Social na
Universidade Federal Fluminense (UFF), do Coletivo de Universitários Negros, tendo sido
uma das organizadoras do I Seminário Nacional de Universitários Negros (SENUN), em
1993, em Salvador, e posteriormente ter desenvolvido como tema no meu trabalho de
conclusão de curso (TCC) a questão da política de cotas para negros2 na universidade,
proporcionou-me a oportunidade de realizar o exercício voltado a traduzir a realidade do
ponto de vista teórico, ou seja, conhecer as múltiplas dimensões da realidade social, que
fecundam as questões teóricas, evidenciando que a explicação do todo concreto é incompleta
e débil se não passa pela mediação da realidade. Assim, o tema que orienta o presente estudo
foi nascendo a partir de múltiplas indagações que fui fazendo ao longo de minha trajetória
política e profissional.
1
Menegat, Marildo. Prefácio do livro 500 anos de solidão – estudos sobre desigualdades raciais no Brasil, de
Marcelo Paixão.
2
TCC (1996) intitulado “Rasgando o Silêncio: debate sobre a política de cotas como instrumento de inserção do
Negro na Universidade”, onde realizamos entrevistas com estudantes secundaristas de três escolas públicas de
Niterói.
21
3
Para uma melhor compreensão acerca dos conceitos de racismo, discriminação, preconceito, xenofobia, ver
Borges; Medeiros, D’Adesky (2002). Dentre outros aspectos, os autores ressaltam que a palavra racismo designa
um comportamento de hostilidade e menosprezo em relação a pessoas ou grupos humanos cujas características
intelectuais ou morais, consideradas “inferiores”, estariam diretamente relacionadas a suas características
”raciais”, isto é, físicas ou biológicas. Surgiu no âmbito da sociedade ocidental do século XVIII, quando esta se
apoiou em pretensas bases científicas para explicar as diferenças entre os seres humanos e justificar a dominação
exercida pelos europeus sobre os povos de outros continentes durante a expansão colonial. O argumento
consistia em considerar que o poder de uns sobre os outros não era fruto do acaso, mas resultado de um processo
que se podia explicar por meio da ciência (Borges; Medeiros; D’Adesky, 2002, pp. 48-49).
4
Aqui nos apropriamos do conceito de raça utilizado por Jacques D’Adesky (2001): “existe um consenso na
afirmativa de que raça remete, simbolicamente a uma origem comum. Seja qual for seu grau de indeterminação,
ela evidencia a continuidade das descendências, o parentesco pelo sangue, a hereditariedade das características
fisiológicas, e mesmo das psicológicas e sociais. Mas, do ponto de vista da genética, a ideia de raça é desprovida
de conteúdo de valor científico.” (D’Adesky, 2001:44-45). Todas as pessoas são oriundas de uma mesma raça: a
Raça Humana. Assim, o conceito de raça aqui é discutido sob uma perspectiva sociológica, não biológica.
5
O termo Etnia deriva do grego Ethnikos, adjetivo de ethos, e refere-se a povo ou nação. Em sua forma
contemporânea, “étnico” ainda mantém o seu significado básico, no sentido em que descreve um grupo
possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos em forma
latente, de terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um
setor da população, mas uma agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por
experiências compartilhadas. Fonte: Cashmore, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Raciais. Summus, 2000.
6
Para uma maior compreensão do conceito de cotidiano, utilizamos as reflexões clássicas de Heller, além das de
José Paulo Netto sobre a vida cotidiana como espaço da práxis: “É nela que se consolidam, se perpetuam ou se
transformam, no mundo moderno, as condições de vida mais amplas. E é nela e sobre ela que realizamos nossa
prática.(...) Muitas vezes, buscamos a totalidade fora da vida cotidiana, esquecendo que esta mesma vida contém
a totalidade e nela é que se processam muitas das mediações entre o particular e o global, entre o singular e o
coletivo” (Netto, 1989, p. 50).
22
7
Segundo o Mapa da Violência – a cor dos homicídios (2012), as mortes de negros tiveram aumento de 29,8%
entre os anos de 2002 e 2010. Já o número de homicídios de brancos teve uma queda de 25,5% nesse mesmo
período.
8
O “recolhimento compulsório” tem sido uma política de governo do município do Rio de Janeiro, que tem
como objetivo recolher pessoas que vivem em situação de rua e/ou são dependentes de drogas, principalmente de
crack, e colocá-las em abrigos. Embora o discurso do Poder Executivo municipal seja de que tal política visa
acolher e cuidar da saúde dessas pessoas, o que se vivencia é o que se pode nomear de atualização da política
higienista tão presente no início do século XX. Em relação a essas ações de recolhimento e confinamento, os
Conselhos de Psicologia e de Serviço Social têm denunciado o arbítrio e o atentado aos direitos humanos dessas
populações. Além disso, denunciam a falta de unidades de saúde e de acolhimento institucional adequados para
uma atenção integral à saúde física e mental, bem como a ausência de outras políticas públicas que garantam
moradia e trabalho, o que revela o total descompromisso do governo com a implementação de uma política de
atenção integral à saúde e de garantia de direitos.
9
“Racismo institucional” é o fracasso coletivo de uma organização ou instituição em prover um serviço
profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele pode ser visto ou
detectado em processos, atitudes e comportamentos que denotem discriminação resultante de preconceito,
ignorância, falta de atenção ou estereótipos racistas” (Programa de combate ao racismo institucional –
PCRI/DFID/PNUD) .
10
Constitui dever do assistente social “denunciar falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição em
que trabalha, quando os mesmos estiverem ferindo os princípios e diretrizes desse Código, mobilizando,
inclusive, o Conselho Regional, caso se faça necessário; contribuir para a alteração da correlação de forças
institucionais, apoiando as legítimas demandas de interesse da população usuária” (Código de Ética do Serviço
Social, art. 8º; b e c)
23
11
Princípio do Código de Ética do/a Assistente Social.
12
Categoria utilizada por Moore (2007) ao se referir às sociedades que atribuem status às pessoas a partir de suas
características físicas: “Neste tipo de formação, são as diferenciações da cor da pele, da textura do cabelo, da
forma dos lábios e da configuração do nariz que determinam o status coletivo e individual das pessoas na
sociedade. Por essa razão, os modelos pigmentocráticos são forçosamente sistemas que se baseiam na
miscigenação compulsória por serem fundamentalmente fenotipofóbicos. Mudar o fenótipo, sempre no sentido
de uma maior concordância com as feições e a cor do segmento dominante, é um objetivo obsessivamente
compulsivo neste tipo de sociedade” (Moore, 2007, p. 260).
24
Penso que as políticas de ações afirmativas são estratégicas na luta pela ampliação
de direitos (...) elas colocam na centralidade do debate a produção e a reprodução da
desigualdade a partir da opressão racial. E isso não quer dizer que a opressão racial
seja um dispositivo deslocado da classe, muito pelo contrário, entendemos que na
sociedade de classe o racismo tem uma função, que é manter a subordinação de
negros/as e definir seus lugares na sociedade capitalista (ALMEIDA, 2010, p. 4).
Podemos encontrar diversas definições sobre Ações Afirmativas que, embora tenham
algumas diferenças em relação ao conceito, não se distanciam em sua essência no que se
refere ao seu objetivo fundamental.
Embora essas políticas não sejam novidade no Brasil,13 há ainda muita resistência
com relação a sua adoção como mecanismo de promoção de igualdade para a população
negra. O recurso frequentemente utilizado é o apelo à Constituição Brasileira, que diz que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CF, artigo 5º). A
13
Há políticas voltadas para segmentos populacionais socialmente mais vulneráveis, tais como crianças,
adolescentes e idosos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado no ano de 1990, determina a
precedência na formulação de políticas para as crianças e adolescentes. É garantido à população idosa em
situação de pauperização o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), o direito a atendimento
preferencial em unidades de saúde, gratuidade em transportes coletivos, entre outras medidas legais de proteção.
No âmbito da Previdência Social, há o direito da mulher de se aposentar cinco anos antes do homem. Tal
dispositivo legal discrimina positivamente as mulheres, assim como a cota de 30% reservada a candidaturas
femininas em disputas eleitorais para cargos legislativos.
25
igualdade, nesse caso, é concebida como um direito formal abstrato, sem a apropriação das
mediações existentes na realidade concreta dos indivíduos sociais. E sob a égide do mito da
democracia racial e da lógica da meritocracia sob a qual se sustenta o pensamento burguês, a
defesa de uma igualdade abstrata reforça e reproduz a desigualdade em todas as suas
expressões.
Segundo Moura (1990) o racismo, o mito de superioridade racial de um povo sobre o
outro, encobre os interesses de povos que se julgam “eleitos” e desejam conseguir hegemonia
econômica, social e cultural sobre os povos considerados mais fracos. Esta racionalização do
preconceito14 por meio do racismo exerce papel e função de importância em diversos blocos
de poder de nações que disputam a hegemonia no mundo capitalista (MOURA, 1990, p. 214).
Ainda segundo o autor, no caso particular do Brasil, o etnocentrismo15 do branco em
relação ao negro e ao não branco em geral teve e tem como função exatamente estabelecer
fronteiras hierárquicas do ponto de vista étnico para que os grupos considerados inferiores não
pudessem transpô-las por meio da mobilidade social. Fecha-se, assim, o leque de
oportunidades para os membros considerados inferiores. Ressalta, ainda, que isto aconteceu
desde o Brasil Colônia e durante todo o período imperial, prosseguindo, com modificações
modernizadoras, até os nossos dias (MOURA, 1990, pp. 215-216).
Netto (2008) nos impele à reflexão acerca dos desafios postos na luta contemporânea
pela concretização de direitos. Chama a atenção para que essa luta saia do plano da retórica e
se converta em prática social que envolva todos os trabalhadores sociais. Para tanto, é preciso
abandonar concepções idílicas, ilusórias e falaciosas acerca dos processos e da dinâmica da
sociedade. Ressalta que é preciso abandonar o falso neutralismo, identificando os interesses
em choque e tomando posição diante deles. E é preciso, ainda, compreender que a produção
dos direitos sociais não resulta de fórmulas acadêmicas ou políticas, mas do calor das lutas de
classes. Ademais, é preciso compreender o caráter radicalmente político da fundação e do
exercício de direitos. Essa luta implica a conclusão de que a concretização de direitos não é
14
Conforme Borges, Medeiros e D’Adesky (2002): “Preconceito é um julgamento que formulamos a propósito
de uma pessoa, grupo de indivíduos ou povo que ainda não conhecemos. Trata-se, portanto, de uma opinião ou
sentimento que adotamos irrefletidamente, sem fundamento ou razão (...) os preconceitos estão enraizados em
todas as culturas, balizando as relações que cada uma delas estabelece com as outras e muitas vezes justificando
o tratamento desigual e a discriminação de indivíduos ou grupos” (Borges; Medeiros; D’Adesky, 2002, p. 53).
15
Utilizamos o conceito de etnocentrismo na mesma acepção de Gomes (2005), que o toma como o sentimento
de superioridade que uma cultura tem em relação a outras. Considera os seus valores como universais, sendo
estes os melhores em relação aos valores e à cultura dos outros. “Ele não alimenta necessariamente o desejo de
aniquilar e destruir o outro, mas, sim, de evitá-lo ou até mesmo de transformá-lo ou convertê-lo, pois carrega em
si a ideia de recusa da diferença e cultiva um sentimento de desconfiança em relação ao outro, visto como
diferente, estranho ou até mesmo como um inimigo potencial.” (Gomes, 2005, p. 53)
26
16
Silva, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: CED, 1995; Gomes, Nilma L.
Limites e possibilidades da implementação da Lei 10.639/03 no contexto das políticas públicas em educação. In:
Paula, Marilene de; Heringer, Rosana (orgs.). Caminhos convergentes: Estado e Sociedade na superação das
desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Heinrich Boll, ActionAid, 2009; Santos, Sales Augusto dos. A
Lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In: BRASIL. Ministério da Educação.
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03, Brasília: SECAD, 2006; Paixão, Marcelo
J. P. A dialética do bom aluno – relações raciais e o sistema educacional brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2008;
Pereira, João Baptista Borges. Diversidade, racismo e educação. In: Cadernos Penesb. Relações raciais e
educação: A produção de saberes e práticas pedagógicas. Niterói: EdUFF, n. 3, p. 2000, 13-30, entre tantas
outras obras.
17
Moura, Clovis. Sociologia do negro brasileiro. Série Fundamentos, vol. 34. São Paulo: Ática, 1988; Ianni,
Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004b; Fernandes, Florestan. Significado do
protesto negro. São Paulo: Cortez, Autores Associados – Coleção Polêmica do Nosso Tempo, v. 33, 1989;
Paixão, Marcelo J. P. Manifesto anti-rracista: ideias em prol de uma utopia chamada Brasil. Rio de Janeiro:
DP&A; LPP/UERJ, 2006, entre tantas obras clássicas e contemporâneas.
27
temos nos apropriado com vistas à incorporação da temática étnico-racial como elemento
fundamental para o processo de construção de relações sociais sustentadas em valores
emancipatórios? Em que medida e extensão a questão étnico-racial tem sido tema relevante
para os estudos e pesquisas no processo de formação e exercício profissional? Os currículos
dos cursos de graduação contemplam as diretrizes curriculares no que se refere a incorporação
de estudos das relações étnico-raciais? E para os órgãos de representação da categoria
profissional, esse tema tem sido considerado ponto de pauta importante nos debates e nas
ações empreendidas? Buscando contribuir com o enriquecimento do debate sobre a temática
étnico-racial no processo de formação em Serviço Social com vistas ao fortalecimento do
projeto ético-político profissional, esperamos ter, em alguma medida, alcançado esse objetivo.
Sob a perspectiva da totalidade social, questões relacionadas a classe, gênero, geração,
raça/etnia, sexualidades, entre tantas outras dimensões da diversidade do gênero humano,
devem ser consideradas imprescindíveis para a materialização e consolidação dos princípios
que norteiam o projeto ético-político do Serviço Social. Assim, buscando garantir o exercício
profissional crítico e competente18 frente a violações de direitos por razões de preconceito e
discriminação racial, faz-se necessário trazer para o campo da formação profissional o
aprofundamento desse debate. Este possibilitará a construção, no interior dessa sociabilidade,
de práticas mais efetivas de enfrentamento do racismo, bem como de estratégias que busquem
a ultrapassagem da ordem capitalista de exploração/opressão dos sujeitos.
É preciso conhecer as periferias da realidade social, buscando evidenciar que a
explicação do todo concreto passa pela mediação da realidade em suas múltiplas dimensões,
dentre elas a dimensão étnico-racial. Indubitavelmente, “o concreto é concreto, porque é a
síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 2008, p. 256).
Se a realidade sobre a qual o/a assistente social se debruça é complexa e
multifacetada, tornando-se quase sempre um desafio a ser enfrentado cotidianamente, o que
fazer quando ela apresenta demandas de intervenção relacionadas à violação de direitos por
condição étnico-racial? Embora a discriminação racial seja histórica no Brasil e o Serviço
18
Para uma melhor compreensão do que entendemos como competência profissional, recorremos a Guerra
(2007): “A competência ultrapassa saberes e conhecimentos, mas não se constitui sem eles. É necessário que
haja uma intervenção reflexiva e eficaz, no sentido de articular dinâmicas de conhecimento, saberes, habilidades,
valores e posturas (...)”. Essa competência se dá “questionando critérios de elegibilidade que são focalistas, que
tratam direitos como privilégios; ampliando o quanto possível esses critérios, visando a sua universalização;
qualificando e ou redirecionando os programas focais para o atendimento de demandas dos usuários;
democratizando o acesso pela via da informação; pesquisando e conhecendo os sujeitos que demandam as ações
profissionais, seus modos de vida e formas de resistência; estabelecendo alianças programáticas com eles,
conquistando a legitimidade por parte dos sujeitos que se utilizam dos serviços que são executados e ou
planejados pelo assistente social, estabelecendo compromisso com as denúncias e efetivando o trabalho de
organização popular” (Guerra, 2007, p. 31).
29
Social a considere um fenômeno a ser combatido,19 essa discussão vem sendo travada no
âmbito da formação profissional? Estudos realizados por Marques Júnior (2007), Silva Filho
(2006), Carvalho e Silva (2005), Ribeiro (2004), Pinto (2003) e Rocha (1996) identificam a
baixa produção acadêmica de Serviço Social sobre questões étnico-raciais. Resta saber,
contudo, quais fatores têm contribuído para essa pouca visibilidade teórico-política no interior
do Serviço Social.
Por ocasião da elaboração de nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de
graduação no ano de 1996, buscamos localizar, na biblioteca central da UFF, os TCCs que
tivessem a temática étnico-racial como objeto de estudo. Identificamos, em quase quarenta
anos de existência da ESS/UFF, apenas um trabalho, datado de 1984.20
Silva Filho (2006) também pesquisou sobre essa temática nos TCCs de Serviço Social
disponíveis na biblioteca central da UFF, do ano de criação da ESS/UFF até 2002, tendo
localizado apenas seis TCCs cujos títulos enunciavam a temática étnico-racial.21
O critério racial é utilizado como forte mecanismo de inserção ou não em
determinados espaços profissionais. Determina, ainda, de que maneira e em que condições
esses trabalhadores, que agregam a sua condição de classe o fator racial, serão inseridos na
organização capitalista de produção.
O desemprego estrutural é uma das muitas expressões do aprofundamento das
contradições do capitalismo. A população trabalhadora excedente é produto necessário da
acumulação no sistema capitalista (MARX, 2009). E nessa lógica verifica-se que a grande
maioria da população que engrossa o exército de reserva tem em comum a cor da pele. Esses
fatores se entrecruzam com outros determinantes sociais em uma relação que determina
hierarquicamente quem é absorvido ou não pelo mercado de trabalho e de que maneira e em
que condições esses trabalhadores serão inseridos na organização capitalista de produção.
Segundo dados do IBGE (2009),22 a taxa de desemprego da População
Economicamente Ativa (PEA) residente nas seis maiores regiões metropolitanas23 do Brasil é
19
Um dos princípios preconizados no Código de Ética do/a assistente social é o “empenho na eliminação de
todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e à discussão das diferenças” – Código de Ética Profissional (CFESS, 1993).
20
O TCC cujo título é “A ideologia racial na prisão”, de autoria de Cecília Luiz de Oliveira, foi escrito no ano de
1984.
21
O autor localizou, além do trabalho de Cecilia L. Oliveira (1984), os seguintes TCCs: “Rasgando o silêncio:
debate sobre política de cotas como estratégia de inserção do negro na Universidade (1996), de minha autoria;
“A múltipla exclusão e discriminação social da mulher negra idosa” de Neusa T. S. Lima (1998); “ Memórias de
exclusão: uma experiência com negras idosas do Grupo Vida” de Adriana A. F. Luz (2002); “A identidade negra
e cultura: analisando o trabalho de uma ONG” de Ilana F. S. Lobo (2002); “Sexualidade da mulher negra e o
mundo do trabalho” de Viviane C. C. Santos (2002).
30
de 5,3% de homens brancos, 7,9% de mulheres brancas, 7,5% de homens pretos e pardos e
11,2% de mulheres negras. O total da população branca desempregada representa 6,5%; da
população preta e parda, 9,2%.
A desigualdade racial pode ser constatada em todas as esferas da vida social da
população negra. Entretanto, em determinados espaços sociais, os níveis de desigualdade são
mais visíveis, dentre eles o mercado de trabalho, no qual, segundo dados oficiais, as mulheres
negras são as que aparecem como as mais atingidas pelo desemprego.
Sobre as desigualdades raciais na educação, o Relatório Anual das Desigualdades
Raciais no Brasil 2009-2010 (PAIXÃO et al., 2010) mostra que mesmo com avanços nos
indicadores educacionais, em todo o país, em 2008, das crianças entre 6 e 10 anos de idade,
45,4% não estudavam na série adequada. Entre as brancas, esse percentual era de 40,4%, e
entre as pretas e pardas, alcançava quase metade do contingente. Os dados relevam, ainda, as
incidências desiguais do abandono escolar no meio do ano e da repetência, mais fortes para as
crianças e jovens pretas e pardas do que para as crianças e jovens brancas (p. 244).
Em relação à área da saúde, podemos constatar que o índice de mortalidade materna
no Brasil é muito alto e se torna ainda mais gritante quando se trata de mulheres negras. Sobre
esse tema, Paixão (2013), a partir dos dados de sua pesquisa,24 chega às seguintes conclusões:
Observa-se que, em todo o Brasil, entre os anos de 2000 e 2007, entre as mulheres
brancas o indicador passou de 42,5 para 43 óbitos por 100 mil nascidos vivos. No
mesmo lapso, entre as mulheres pretas o mesmo indicador passou de 192,2 para
388,2 por 100 mil nascidos vivos. No caso das mulheres pardas, a razão bruta de
mortalidade materna passou de 50,7 para 59,3 por 100 mil nascidos vivos
(PAIXÃO, 2013, pp. 210-211).
22
Fonte: LAESER. Tempo em Curso. Publicação eletrônica mensal sobre as desigualdades de cor ou raça e
gênero no mercado de trabalho metropolitano brasileiro. V. 1, n. 1, nov. 2009.
23
As Regiões são: Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
24
Paixão realizou essa pesquisa partir dos dados colhidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e
do Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC), ambos gerados pelo banco de dados do Sistema Único
de Saúde (DATASUS). Utilizou, ainda, indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
do ano de 2006 (Paixão, 2013, p. 180).
31
A população pauperizada e que constitui o maior número dos que demandam por
políticas de assistência social é formada por pretos, pardos e indígenas. Conforme Paixão
(2013), a partir dos dados do IBGE, censo demográfico dos anos de 1980, 1991 e 2000:
Ainda segundo Paixão (2013) os dados evidenciam que a “participação dos pretos e
dos pardos no interior da população abaixo da linha de pobreza e de indigências, nos anos de
1980, 1991 e 2000, supera suas respectivas presenças relativas na população como um todo”
(PAIXÃO, 2013, p. 62). Tal realidade se confirma com base nos dados do programa “Brasil
sem Miséria”25 do governo federal, em que 93% das famílias que recebem Bolsa Família são
chefiadas por mulheres, 73% são de famílias negras e 68% são chefiadas por mulheres negras.
No que tange aos índices de violência, verifica-se que a população negra é a vítima
preferencial de homicídios praticados no Brasil. Conforme o Mapa da Violência 2013
(WAISELFISZ, 2013),26 o número de homicídios da população negra é alarmante,
principalmente quando comparado com os índices de homicídios da população branca. Os
dados revelam que, no conjunto da população, o número de vítimas brancas caiu de 18.867,
em 2002, para 13.895, em 2011, o que representou um significativo decréscimo de 26,4%. Já
em relação à população negra, os números cresceram de 26.952 para 35.297 no mesmo
período, o que representa um aumento de 30,6%. No total de homicídios, a participação da
população branca caiu de 41%, em 2002 para 28,2%, em 2011. Em relação à população negra,
cresceu de 58,6%, em 2002 para 71,4%, em 2011 (WAISELFISZ, 2013).
Se esses números já são estarrecedores ao expressarem o quão violenta é a nossa
sociedade, quando se faz o recorte de raça por faixa etária, a realidade da violência racial fica
ainda mais gritante. Considerando a população jovem de 15 a 24 anos de idade, o número de
homicídios de jovens brancos caiu de 6.596, em 2002, para 3.973, em 2011, ou seja, um
25
Fonte: “Brasil sem Miséria” – diálogos governo-sociedade civil: Brasil sem Miséria – 19 de setembro de 2013.
Disponível em: http://www.secretariageral.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2013/09/20-09-2013-balanco-do-
brasil-sem-miseria-aponta-mulheres-e-negros-como-principais-beneficiarios-do-programa.
26
Waiselfisz utiliza como fonte os dados gerados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) da
Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS).
32
decréscimo de 39,8%. Já em relação aos jovens negros, os números passaram de 11.321 para
13.405, ou seja, um aumento de 24,1% (WAISELFISZ, 2013).
Sobre essa realidade de extermínio da juventude negra, Paixão (2005) faz a seguinte
reflexão:
A máquina moedora de seres humanos vem servindo para poupar o Estado brasileiro
daquilo que deveria ser sua responsabilidade no plano da geração de empregos,
escolas, hospitais, aparatos assistenciais, reforma agrária e, especialmente, na
distribuição da renda e do patrimônio dos ricos (majoritariamente brancos) em favor
dos mais pobres (majoritariamente negros). Assim, em tempos de excesso não
funcional de carne negra – afinal a mais barata –, o abate não parece ser um grande
problema (PAIXÃO, 2005, p. 314).
Em uma análise mais ampla, que tem como cenário a violação de direitos humanos na
América Latina, Gomez (2004) também adverte para essa dura realidade de violência que
incide, mais fortemente, sobre a juventude negra e pobre:
27
Crimes tipificados como: roubo, tráfico de drogas, latrocínio, tráfico qualificado, estupro (Adorno, 1996, p. 2).
33
28
O Índice de Desenvolvimento Humano é uma medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação,
esperança de vida, natalidade e outros fatores para os diversos países do mundo utililizada pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento. O IDH utiliza três dimensões para avaliação do desenvolvimento dos
países: expectativa de vida (longevidade), nível educacional e de renda.
34
Podemos constatar, por meio de dados concretos, que em todas as dimensões da vida
social, seja na expectativa de vida, no acesso à educação ou na inserção no mundo do
trabalho, a população negra aparece como o segmento social mais discriminado. É o que
Paixão (2005) também afirma. Para ele, as desigualdades sociorraciais entre brancos e negros
no Brasil estão presentes em todas as regiões geográficas e se expressam em todos os
indicadores, sejam aos relativos ao mercado de trabalho, à escolaridade, ao acesso a bens de
uso coletivo, ao rendimento, ao nível de pobreza e indigência, à qualidade de vida, entre
tantos outros. Diz, ainda, que essas desigualdades sociorraciais raramente se reduzem, e, em
certos casos, aumentam ao longo do tempo (PAIXÃO, 2005, p. 289).
Um olhar mais atento sobre essa realidade nos revela o quão desiguais são a
distribuição de riquezas e a partilha de poder em nossa sociedade. Assim, para uma apreensão
crítica acerca das múltiplas determinações dessa realidade, somos impelidos, a partir de uma
perspectiva histórica, a uma reflexão mais profunda dos processos sociais que configuram a
dinâmica de opressão e exploração dessa população.
Nessa direção, buscamos contextualizar historicamente a temática étnico-racial no
processo de formação da sociedade brasileira, sobretudo no que diz respeito ao pensamento
racial e seu impacto na vida social da população negra. A discussão do papel da ciência como
instrumento de manutenção das desigualdades étnico-raciais e da relevância dos movimentos
sociais no processo de enfrentamento do racismo estará presente em quase toda a tese.
Todavia, é em seu primeiro capítulo que buscamos aprofundar o debate acerca da influência
do uso da ciência como mecanismo de discriminação racial e manutenção das hierarquias
sociais. E, ainda, seu impacto no pensamento e nas relações sociais brasileiras.
No Capítulo I, abordamos os conceitos de raça, racismo e suas múltiplas expressões nas
relações sociais brasileiras, bem como as diversas formas de resistência criadas pela
população negra.
A historicização do movimento negro como mecanismo de resistência à opressão racial
situa-se no campo de discussão proposto pelas diretrizes curriculares de Serviço Social
quando aborda a relevância do estudo dos movimentos societários. Ademais, elementos
fundantes das relações sociais hierárquicas estabelecidas na sociedade, hoje, têm suas raízes
na história da formação social brasileira, tais como a política de branqueamento e o mito da
democracia racial.
No segundo capítulo, discorremos sobre o processo de construção das diretrizes
curriculares do Serviço Social, seus antecedentes, as tensões e a sua materialização nos
currículos de graduação. Para além da pesquisa teórica e documental, analisamos os
36
CAPÍTULO I
Clovis Moura29
29
Moura, Clovis. Sociologia do negro brasileiro (1988, p. 32).
30
Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado no ano de 2010, a
população do país é composta por 191 milhões de brasileiros. Destes, 91 milhões se classificaram como brancos;
15 milhões, como pretos; 82 milhões, como pardos; 2 milhões, como amarelos; e 817 mil, como indígenas. No
Censo 2000, a proporção de brancos era 53,7%; em 2010, reduziu-se para 47,7%. No último Censo, registra-se
um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%). Sendo assim, a população preta
e parda, considerada no seu conjunto como “população negra”, passou a ser maioria no Brasil (50,7%).
38
Ressalta-se, contudo, que essa forma de hierarquizar os diferentes grupos humanos a partir
das marcas/características que carregam em seus corpos tem sua fundamentação em bases que
um dia foram consideradas reais, concretas e cientificamente comprovadas. Assim, ao nos
remetermos à história das relações sociais brasileiras, verificaremos como o racismo científico
criou e consolidou ideias de supremacia de uma raça sobre outras e contribuiu para elaboração
de instrumentos legais e políticos de valorização de um grupo racial e buscando o
aniquilamento de outros.
No século XVIII, a palavra raça era inicialmente empregada para se referir à descendência
comum de um conjunto de pessoas, e para as suas características distintas, a categoria raça era
utilizada para explicar como as conseguiram. Já no século XIX, raça tornou-se um meio de
classificar as pessoas por meio de suas características (BANTON, 1977, p. 39).
Segundo Cashmore (2000), a palavra raça, desde o início do século XIX, foi sendo usada
com sentidos diversos. E estes, ao longo do tempo, passaram por várias mudanças. A questão
principal, no entanto, não é o que vem a ser raça, mas o modo como o termo é empregado. As
pessoas elaboram crenças a respeito de raça, assim como a respeito de nacionalidade, etnia e
classe, em uma tentativa de cultivar identidades grupais (CASHMORE, 2000, pp. 447- 448).
As variações no uso da palavra raça refletem as mudanças na compreensão popular das
causas das diversidades físicas e culturais. Essas diversidades, expressas em características
físicas, foram interpretadas de três formas:
O botânico sueco Carl Von Linné,31 conhecido em português como Lineu (BANTON,
1977; MUNANGA, 2003;WIEVIORKA, 2007) elaborou uma classificação que contou com
uma grande aceitação no mundo científico. As plantas e as aves eram identificadas
primeiramente como membros de uma classe; depois, de ordens; em seguida, de gêneros; e,
finalmente, de espécies. Integrou o homem no seu esquema, mas só de maneira aproximada,
pois naquele momento ainda era problemática essa linha de investigação, já que a bíblia
apresentava toda a humanidade como descendente de uma mesma origem, ou seja, de Adão e
Eva. (BANTON, 1977, p. 41). Oferece, contudo, um exemplo de classificação racial humana
acompanhada de uma escala de valores que sugere a hierarquização. Divide o Homo Sapiens
31
O nome de Carl Von Linné pode ser encontrado escrito de diferentes formas: Karl Von Limé; Carolus
Linnaeus, Carlos Lineu (1707-1778).
39
em quatro raças: o Americano, que seria moreno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade,
governado pelo hábito, tem corpo pintado; o Asiático, que seria amarelo, melancólico,
governado pela opinião e pelos preconceitos, usa roupas largas; o Africano, que seria negro,
flegmático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes
(despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e quando
amamenta seus seios se tornam moles e alongados; o Europeu, que seria branco, sanguíneo,
musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis, usa roupas apertadas (MUNANGA,
2003, pp. 7-8).
Segundo Michael Banton (1977), o termo tipo, que teve origem nos trabalhos de
George Cuvier32 nos primeiros anos do século XIX, parecia explicar melhor acerca das
diferenças dos grupos humanos, pois o termo raça, naquele momento, aparecia com diferentes
significados em diferentes autores, o que acabava gerando muita confusão. O termo tipo tinha
uma noção muito conveniente por não estar vinculada a qualquer nível classificatório peculiar
na zoologia, tornando assim mais fácil referir tipos físicos característicos de determinadas
nações, tal como, por exemplo, a conformação craniana do tipo Negro (BANTON, 1977, p.
40).
Nesse tipo de argumentação vinha embutido, por outro lado, a noção de virtualidade,
pois a origem uniforme garantiria um desenvolvimento (mais ou menos) retardado,
mas de toda forma semelhante. Pensava-se na Humanidade como um gradiente –
32
George Cuvier, anatomista comparativo francês (Cashmore, 2000, p. 448).
40
que iria do mais perfeito (mais próximo ao Éden) ao menos perfeito (mediante a
degeneração) – sem pressupor, num primeiro momento, uma noção única de
evolução (SCHWARCZ, 1993, p. 48).
33
Eugenia: movimento social originado por Francis Galton (1822-1911), autor de Hereditary Genius. O termo é
corretamente definido como uma ciência voltada para o melhoramento das potencialidades genéticas da espécie
humana. Para Galton a habilidade mental era herdada diferencialmente pelos indivíduos, grupos e raças. Ele
mostrou que essa habilidade, assim como as características físicas, altura, por exemplo, seguiam uma curva
normal de distribuição na população e que parentes de pessoas notadamente capazes tendiam a ser muito capazes
42
“eugenia” significava “eu” (boa) e “genus” (geração) e foi criado em 1883 pelo cientista
britânico Francis Galton. Publicou em 1869 Hereditary Genius, texto que foi considerado
fundador da eugenia. Nessa obra, Galton buscava provar, por meio de um método estatístico
e genealógico, que a capacidade humana era em função da hereditariedade, e não da educação
(SCHWARCZ, 1993, p. 60).
também. A Sociedade de Educação Eugênica foi fundada em Londres em 1908, e outras sociedades similares
seguiram-se em muitos outros países (Cashmore, 2000, pp. 203-204).
43
resultam das conquistas arianas sobre os povos mais fracos. Todavia, há degeneração quando
o sangue ariano se mistura com outros tipos.
A essência da doutrina de Gobineau se encontra mais na teoria que formulou sobre os
efeitos da mistura das raças do que na sua teoria sobre a superioridade da raça ariana.
Entretanto, na essência de sua filosofia surgem várias contradições.
Ele pode ser considerado como o grande profeta da pureza de sangue; porém,
considera a mistura das raças o fundamento essencial de todas as civilizações.
Considera também a mistura como fonte da degenerescência da raça e do declínio da
cultura, ao mesmo tempo que afirma ter a mistura produzido novas qualidades e
fertilizado as capacidades latentes das raças envolvidas. [...] A única possibilidade
de conciliar essas contradições seria negligenciar a pureza de sangue e fazer do
cruzamento das raças a chave para o enigma histórico. Mas, em última análise,
Gobineau diz que a civilização nasce de uma boa dosagem na mistura das raças e
que uma mistura excessiva a destrói. Um cruzamento, pelo menos, é absolutamente
indispensável; um segundo cruzamento será provavelmente nocivo, enquanto que o
terceiro levará, infalivelmente, à ruina da civilização e do povo criador
(MUNANGA, 2004, p. 50).
Conforme Skidmore (1989), por volta dos anos 1600, na Europa as teorias racistas
eram tidas como muito importantes pela ciência e tinham plena aceitação por parte dos líderes
44
políticos e culturais dos Estados Unidos e da Europa. Como vimos, nesse período existiam
três escolas principais de teoria racista: a primeira foi a escola etnológico-biológica, que
sistematizou sua formulação filosófica nos Estados Unidos nas décadas de 1940/50. Defendia
a tese da criação das raças humanas por meio das mutações diferentes das espécies
(poligenia). Os etnógrafos Samuel Morton, Josiah Nott e George Glidden publicaram, na
época, diversas “provas” (medidas cranianas de múmias egípcias e de outras origens) para
concluir que as raças humanas tinham sempre exibido diferenças fisiológicas em sua
conformação racial-genética. Apresentaram uma nova versão da antiga hipótese poligenista da
criação do homem. A base do seu argumento era que a pretendida inferioridade das raças –
índia e negra – podia ser correlacionada com suas diferenças físicas em relação aos brancos; e
que tais diferenças eram resultado direto da sua criação como espécies distintas (SKIDMORE,
1989, p. 65).
A segunda linha de pensamento foi a escola histórica. Nesta perspectiva, as raças
humanas – as mais diversas – podiam ser diferençadas uma das outras – com a branca
permanentemente e inerentemente concedida como superior a todas. A terceira escola de
pensamento racista era o darwinismo social. Embora revelasse diferença de maneira singular
da escola etnográfico-biológica, as duas teorias acabavam mostrando-se conciliáveis. No
campo científico, a tese de Darwin podia ser aceita apenas com o abandono da hipótese
poligenista, porque Darwin defendia um processo evolutivo que, por definição, começava
com uma única espécie (SKIDMORE, 1989, p. 67).
Para os darwinistas sociais, os negros constituíam uma “espécie incipiente”, tornando
assim possível continuar a citar toda a evidência – da anatomia comparada, frenologia,
fisiologia, e etnografia histórica – que oferecia previamente apoio à hipótese poligenista, ao
mesmo tempo que dava à teoria racista uma nova respeitabilidade conceitual (SKIDMORE,
1989, p. 69).
As três escolas de pensamento racista influenciaram as construções teóricas dos
pensadores brasileiros que estudavam o “problema racial”. As ideias geradas pela Europa
reforçavam a inferioridade do negro e do índio e, com o passar do século, os brasileiros,
devido à preferência pela cultura francesa, aproximaram-se de escritores racistas e populares,
como Gustave Le Bon e Victor de Lapouge (SKIDMORE, 1989, p. 69).
A teoria da superioridade ariana era aceita como fato de determinismo histórico, pela
elite intelectual brasileira entre 1888 e 1914. (...) A voga da superioridade europeia
levou alguns escritores brasileiros a endossar a teoria da “degenerescência latina” –
refletida nas frequentes críticas relativas aos portugueses – como os mais atrasados
45
Sob a influência do pensamento determinista, que foi a base para a construção das
teorias racistas do século XIX e que já era bastante difundido no Brasil, o historiador inglês
Henry Thomas Buck, sem nunca ter estado no Brasil, afirmava em tom de pessimismo o que
vislumbrava em relação ao país: “Em nenhum outro lugar há tão penoso contraste entre o
grandioso do mundo exterior e a pequenez do interno (...) porque mesmo no presente, com
tantos aperfeiçoamentos originários da Europa, não há sinais de progresso real...”
(SKIDMORE, 1989, p. 45).
Arthur Gobineau, por sua vez, logo que foi transferido em 1869 para o Rio como
ministro, detestou o país. Além de não ver possibilidade de progresso, acreditava que viver no
Brasil era ter a saúde permanentemente em risco. Desprezava os brasileiros, que, para ele,
estavam para sempre manchados pela miscigenação (SKIDMORE, 1989, p. 46).
Gobineau tecia vários comentários que expressavam fortemente esse seu desprezo e repulsa
pelo povo brasileiro. A crença na mestiçagem como processo irrevogável de degeneração
sustentava ainda mais as ideias que formulava acerca do destino do país:“Nem um só
brasileiro tem sangue puro, porque os exemplos de casamentos entre brancos, índios e negros
são tão disseminados que as nuanças de cor são infinitas, causando uma degeneração do tipo
mais deprimente, tanto nas classes baixas como nas superiores” (SKIDMORE, 1989, p. 46).
Para Gobineau (apud SKIDMORE, 1989) com exceção do clima e dos recursos
naturais favoráveis, a população nativa estaria condenada a desaparecer em menos de
duzentos anos, devido a sua “degenerescência” genética. Dizia ele: “todo mundo é feio aqui,
mas incrivelmente feio: como os macacos” (SKIDMORE, 1989, p. 47).
Outro francês que também comungava dessas mesmas ideias a respeito do Brasil foi
Louis Couty, que em 1884 publicou um livro sobre o país, no qual dizia, no prefácio, suas
opiniões raciais: “Tentei provar que foi a colonização pelos africanos escravizados que
produziu todos os males do Brasil, e indiquei a colonização por homens livres da Europa
como o único remédio possível” (SKIDMORE, 1989, p. 47).
Tais ideias a respeito do Brasil já eram difundidas antes mesmo das declarações de
Gobineau. Em 1865, Louis Agassiz, que veio ao país em uma expedição científica, formulava
suas teorias a partir das mesmas ideias em relação à miscigenação do povo brasileiro. Em seu
relatório de viagem escrito em conjunto com a sua mulher e publicado três anos após ter
estado no Brasil, dizia:
Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por mal
entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam – venha ao
Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais
geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai pagando,
rapidamente, as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um
47
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços
à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o
revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros
dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade
como povo (RODRIGUES, 1935, p. 23).
A Faculdade de Medicina da Bahia deu origem à medicina legal no Brasil, e era tão
fortemente influenciada pelo pensamento de Nina Rodrigues que alguns médicos se
autodesignavam como membros da “Escola Nina Rodrigues”. Tendo sido considerado um dos
precursores da antropologia criminal, da antropometria e da frenologia no país, o referido
médico ganhou notoriedade por meio de suas publicações em relação à raça e, devido a sua
forte relação com pesquisadores da Europa e dos EUA, alcançou respeitabilidade junto aos
cientistas brasileiros. Foi o primeiro pesquisador a estudar a influência africana de maneira
sistemática e explicava que a inferioridade do africano fora estabelecida fora de qualquer
dúvida científica. Em 1894, dizia que representantes de raças inferiores não poderiam atingir
por meio da inteligência o “elevado grau a que chegaram as raças superiores” (SKIDMORE,
1989, p. 75).
Nina Rodrigues afirmava, por meio de suas doutrinas racistas, que seus sentimentos
pessoais nada tinham a ver com a teoria científica, tanto era assim que nutria grande simpatia
pelo negro brasileiro. Entretanto, ao mesmo tempo que a sua pesquisa etnográfica pioneira
gerava dados baseados em testemunhos orais, aplicava a teoria da inferioridade racial em seu
trabalho de medicina legal. Em livro publicado em 1894, ao abordar a relação entre as raças e
responsabilidade penal, afirmava que as características raciais inatas exerciam influência no
comportamento social e assim deveriam ser levadas em conta pelos legisladores e pelas
autoridades policiais. Defendia, desta forma, que deveria existir responsabilização penal
distinta entre as raças (SKIDMORE, 1989, pp. 75-76).
48
A responsabilidade penal das “raças inferiores” não podia ser tratada como igual ou
equivalente à das “raças brancas civilizadas”. Embora uns poucos indivíduos
possam constituir exceção, especialmente mestiços, têm sempre o potencial para
regredir. Os mestiços eram para ele, evidentemente, um problema. Evitou-o,
dividindo-os em três subgrupos – a) o tipo superior (inteiramente responsável, no
qual, é lícito presumir, incluir-se-ia o próprio Nina Rodrigues); b) os degenerados
(alguns parcialmente responsáveis; o resto, totalmente irresponsável; e c) os tipos
instáveis socialmente, como os pretos e os índios, aos quais se podia apenas atribuir
“responsabilidade atenuada” (SKIDMORE, 1989, pp. 75-76).
a civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça branca
a quem ficou o encargo de defendê-la, não só contra os atos antissociais – os crimes
dos seus próprios representantes, como ainda contra os atos antissociais das raças
inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam, ao
contrário, manifestações do conflito, da luta pela existência entre a civilização
superior da raça branca e os esboços de civilização das raças conquistadas ou
submetidas (RODRIGUES apud SKIDMORE, 1989, p. 76).
“Os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de
uma geração. A ciência, que não conhece estes sentimentos, está no seu pleno direito
exercendo livremente a crítica e a estendendo com a mesma imparcialidade a todos
os elemento étnicos de um povo [...]. Se conhecemos homens negros ou de cor, de
indubitável merecimento, e credores de estima e respeito, não há de obstar esse fato
o reconhecimento dessa verdade: que até hoje não puderam os negros constituir em
povos civilizados” (RODRIGUES, 1935, p. 20).
No pensamento de Euclides, o Brasil não pode ser considerado como um povo, uma
nação, porque é etnologicamente indefinido por falta de tradições nacionais
uniformes. Percebe-se que ele ficou preso às doutrinas racistas de sua época na
explicação do comportamento dos sertanejos que considera superiores aos mulatos
degenerados. Embora simpatizasse com os insurgentes de Canudos e condenasse, no
plano administrativo e militar, os tratamentos que lhes foram infligidos, em outro
plano ele os condena, ao atribuir a rebelião, em grande parte, à instabilidade
emocional e especialmente à personalidade atávica do líder Antonio Conselheiro
(MUNANGA, 2004, p. 63).
Ainda sob a luz do darwinismo social, Sílvio Romero, dentre os intelectuais de sua
época, tentou construir, a partir da realidade racial brasileira, uma teoria mais nacionalista.
Contudo, não conseguiu se despir da ideia de hierarquização das raças: “A raça ariana,
34
O sociólogo Clovis Moura (1990) fez várias críticas a Os Sertões, em especial no que diz respeito ao
preconceito contra os negros. “O preconceito antinegrista em Euclides da Cunha evidencia-se em todo o livro e
no resto da sua obra. Por esta razão não podia aceitar de bom grado que aqueles sertanejos por ele idealizados,
elevados à categoria de símbolo, que eram o ‘cerne da nossa raça’, tivessem recebido grande influência do
sangue e das culturas negras” (Moura, 1990, p. 187).
50
reunindo-se aqui às duas outras totalmente diversas, contribuiu para a formação de uma sub-
raça mestiça e crioula, distinta da europeia [...] não vem ao caso discutir se isto é um bem ou
um mal, é um fato e basta (ROMERO apud SKIDMORE, 1989, p. 51).
Ao contrário de teóricos que condenavam a mistura entre raças, Romero defendia a
mestiçagem como saída para a sobrevivência das espécies. Embora seguidor do pensamento
determinista, acreditava que a hibridação racial seria a garantia da “viabilidade nacional”.
Entretanto, não se pode considerá-lo um defensor da igualdade “não tenhamos preconceito,
reconheçamos as diferenças” (ROMERO, 1887 apud SCHWARCZ, 1993, p. 154).
Para Schwarcz (1993), Romero era considerado uma grande influência para a
intelectualidade da época, uma espécie de pai fundador. É por meio de seus estudos sobre o
tema da mestiçagem, o apego aos modelos deterministas biológicos e etnográficos e na fala
radical e cientificista que se tem configurado a força do pensamento desse autor. “A partir de
Romero, o direito ganha um estatuto diferente no Brasil. Passa a combinar com antropologia,
se elege como ‘sciencia’ nos moldes deterministas da época e se dá o direito de falar e
determinar os destinos e os problemas da nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 155).
Romero dizia que não havia mais tipos raciais puros no Brasil e, mesmo que houvesse,
nenhum índio ou negro jamais se notabilizou na História do Brasil. Os brancos predominavam
porque a sua cultura era mais desenvolvida (SKIDMORE, 1989, p. 51). Em 1880, escreveu
que o povo brasileiro descendia de estragado e corrupto segmento da velha raça latina e que
esta se juntou às duas outras raças mais degradadas do mundo, os negros da costa e os peles-
vermelhas da América. Desta forma, o que resultou dessa mistura foi “servilismo do negro”, a
“preguiça do índio” e o “gênio autoritário e tacanho do português”. No entanto, diante da
condenação da ciência europeia em relação à mistura das raças, que acabava colocando o
Brasil como fadado à degeneração, cujo povo seria formado por seres humanos fracos e
potencialmente estéreis, dizia ele sobre o futuro do país:
A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir,
ao branco; mas que esse, para essa mesma vitória atenta às agruras do clima, tem
necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer,
máxime a preta, com que tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de
prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até
mostrar-se puro e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo
aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de
um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e
de outro a emigração europeia (ROMERO, 1880, apud SKIDMORE, 1989, p. 53).
irreversível no que tange à construção do país como uma nação viável. A miscigenação seria,
sim, uma possibilidade real de branqueamento da população. E, nesse processo, a mistura das
raças não seria mais um problema; ao contrário, seria a solução para um problema que até
então era considerado insolúvel. Vê-se aí nascer o embrião da teoria do branqueamento.
O embranquecimento fundamentava-se na concepção de superioridade do branco,
tendo a miscigenação como um processo que viabilizaria a produção de uma população mais
clara. Haja vista a ideia de que o “gene” branco seria mais forte do que os das outras raças.
Essa teoria do embranquecimento foi recebida pela elite brasileira com otimismo, pois
a ameaça da degeneração cedia agora lugar à possibilidade do surgimento de uma população
miscigenada, contudo, sadia e com forte probabilidade de ser branca física e culturalmente.
ao progresso da nação: “não há dúvida que o Brasil teria tido”, diz Von Martius,
“uma evolução muito diferente sem a introdução dos míseros escravos negros”
(RIHGB, 1844 apud SCHWARCZ, 1993, p. 112).
Nos Estados Unidos os negros haviam sido expulsos da comunidade geral branca e
forçados, assim, a organizar instituições próprias a fim de proteger-se. No seu estado
de segregação, provaram também que eram prolíficos e dados à vida familiar. Ficava
implícito, dessa maneira, que o elemento negro crescia ou, pelo menos, permanecia
estável, embora não fossem apresentadas estatísticas. No Brasil, por outro lado, os
negros eram desorganizados, “sem qualquer espécie de iniciativa, perdidos em
estradas não mapeadas, como animais que se desgarraram do rebanho” – o que fazia
inevitável, felizmente, o desaparecimento do negro brasileiro (LACERDA apud
SKIDMORE, 1989, p. 87).
Conforme Azevedo (2004), sob a influência das teorias científicas raciais que se
produziram na Europa e nos Estados Unidos e com o advento da abolição, vários
reformadores passaram a tratar do tema negro livre não mais sob a perspectiva da coação ao
trabalho, mas, sim, a partir de sua substituição física pelo imigrante, tanto na agricultura como
nas diversas atividades urbanas (AZEVEDO, 2004, p. 51).
Já no ano de 1862, o deputado Tavares Bastos defendia a abertura de condições que
proporcionassem a vinda massiva de imigrantes, tendo criado, em 1966, a Sociedade
Internacional de Imigração. Desenvolve a tese de que a defesa do término da escravidão não
se dava apenas por uma questão de compaixão pelo oprimido, mas visava, sobretudo, afastar
os “prejuízos” resultantes desse regime de trabalho. Tais prejuízos eram decorrentes da
inferioridade racial dos africanos. Em cartas publicadas no jornal Correio Mercantil,
expressava suas ideias acerca do negro (AZEVEDO, 2004, p. 53):
Há uma ligação explícita e até mesmo orgânica entre branco e trabalho livre e,
portanto, liberdade/progresso/civilização. O que por sua vez implica pequena
propriedade/cultura intensiva e diversificada/desenvolvimento. Já o negro definia-se
pela falta disso tudo, ou pela negação do que é bom, do que é ideal. O negro era o
real a corrigir, pois denotava a própria escravidão e, por conseguinte, trabalho
compulsório/atraso/barbárie e imoralidade, o que implicava grande
propriedade/monocultura extensiva e rotineira/estagnação (AZEVEDO, 2004, p.
55).
Ainda segundo Moura (1990), o problema racial para Oliveira Viana se sobrepunha a
todos os outros. Em sua obra Evolução do povo brasileiro, via-se a biologização da história,
através da antropologia física, que, sob a respeitabilidade da “ciência” daquela época, acabava
por escamotear os elementos econômicos, sociais, políticos e culturais que subalternizavam o
povo brasileiro enquanto nação. Defendia o estabelecimento de um processo de miscigenação
alternativo capaz de arianizá-lo. Tal processo de arianização por meio do eugenismo não
igualaria as raças porque, para Viana (MOURA, 1990):
36
Oliveira Viana é autor das obras: Populações meridionais do Brasil; Evolução do povo brasileiro;
Recenseamento de 1920, o povo brasileiro e sua evolução; Raça e assimilação – o tipo étnico brasileiro e seus
formadores; La Formation Ethnique du Brésil Colonial; Raça e seleções étnicas, dentre outras. (Munanga,
2004).
55
Quando duas ou mais raças, de desigual fecundidade em tipos superiores, são postas
em contato num dado meio, as raças menos fecundas estão condenadas, mesmo na
hipótese da igualdade do ponto de vista de partida, a serem absorvidas ou, no
mínimo, dominadas pela raça de maior fecundidade. Esta gera os senhores; aquelas,
os servidores. Esta, as oligarquias dirigentes; aquelas, as maiorias passivas e
abdicatórias (OLIVEIRA VIANA apud MOURA, 1990, pp. 198-199).
37
Ramos, Artur. Introdução à antropologia brasileira, 2 vols. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,
1947, vol. II , pp. 424-426.
38
Sodré, Nelson Werneck. Ideologia do colonialismo Rio de Janeiro: Iseb, 1961, pp.190-191.
56
39
Essa visão teológica sobre a inferioridade do negro pode ser encontrada no episódio relatado na Bíblia,
capítulo 9 do livro de Gênesis: “sendo Noé lavrador, passou a plantar vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e
se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai (Noé), fê-lo saber, fora, a seus dois
irmãos (Sem e Jafé). Então, Sem e Jafé tomaram uma capa, puseram-na sobre os próprios ombros de ambos e,
andando de costas, rostos desviados, cobriram a nudez do pai, sem que a vissem. Despertando Noé do seu vinho,
soube o que lhe fizera o filho mais moço. E disse: maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos. E
ajuntou: bendito seja o Senhor, Deus de Sem; e Canaã lhe seja servo. Engrandeça a Deus a Jafé, e habite ele nas
tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo.” Sobre essa história, Borges, D’Adesky e Medeiros (2002) dizem o
seguinte: “Em decorrência da praga rogada por Noé, a história registrou diversas leituras preconceituosas
daquele mito bíblico (...), a vontade divina repartiu o mundo entre os filhos de Jafé (europeus), Sem (semitas) e
Cam (africanos). Um certo ‘direito teológico’ determinou que os filhos de Jafé e Sem deveriam usufruir do
trabalho e das terras dos filhos de Cam, pois somente assim os africanos e os negros em geral alcançariam a
redenção e libertação do pecado original de todos os homens (o de serem filhos de Adão) e o específico (o de
serem filhos de Cam).” (Borges; D’Adesky; Medeiros, 2002, p. 15).
57
Graças a Deus, o problema negro perdeu a gravidade que poderia ter, devido à
facilidade de absorção e de assimilação que o nosso meio físico encerra em si. [...]
Nesse ponto, senhores, fomos nós que andamos certos. Errados andaram os Estados
Unidos. Enquanto, dentro da nação americana, o negro cresce em número e em
poderio, dentro da nação brasileira o negro desaparece, absorvido pela maior
capacidade de fixação e de assimilação da raça branca. Embora o papel do negro na
evolução étnica tivesse sido causa de preocupação, agora “o desaparecimento dessa
mancha negra no sangue branco já está nitidamente desenhado e caminha
francamente para um resultado favorável (MONTEIRO DE BARROS apud
SKIDMORE, 1989, p. 218).
40
Vale ressaltar que já em 1934, através da assembleia constituinte, o artigo 121, seção 6, adotava o princípio
das cotas nacionais. O artigo tinha o seguinte texto: “a entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as
restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo,
porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de 2% sobre o número total dos
respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos.” A Carta Constitucional de 1937,
em seu artigo 151, manteve as mesmas cotas para imigrantes (Skidmore, 1989, pp. 217-219).
58
os mestiços do Brasil em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros
ou escuros” (SKIDMORE, 1989, p. 206).
Outro intelectual que buscou romper com as ideias deterministas que viam o Brasil
como uma nação degenerada devido a sua miscigenação foi Gilberto Freyre, que, a partir de
suas obras, oferece uma redefinição da identidade racial brasileira. Sua principal obra, Casa-
grande & senzala, publicada em 1933, negava a teoria de que a miscigenação era um
problema insolúvel para o Brasil e afirmava que, ao contrário, a mistura das raças seria um
fator positivo no processo de constituição do país.
Conforme Skidmore (1989), a obra de Freyre oferecia uma nova racionalidade para a
sociedade multirracial, em que as “raças” da Europa, África e Índia podiam ser vistas como
igualmente valiosas. Ressalta-se, contudo, que em sua análise o autor não defendia a ideia de
igualdade racial: “a análise servia, principalmente, para reforçar o ideal de branqueamento,
mostrando de maneira vívida que a elite (primitivamente branca) adquirira preciosos traços
culturais do íntimo contato com o africano” (SKIDMORE, 1989, p. 211).
Segundo Munanga (2004), Gilberto Freyre retoma o tema sobre raça não mais para a
compreensão do país, como até então se dava, mas, sobretudo, para a discussão em torno da
identidade nacional. Desloca o eixo da discussão do conceito de raça para o conceito de
cultura, permitindo assim um distanciamento entre o biológico e o cultural (MUNANGA,
2004, p. 87).
Diante de uma sociedade que se formava a partir de uma economia latifundiária
baseada na monocultura da cana-de-açúcar, o mestiço é abordado por Freyre como fruto de
uma relação que revelava a flexibilidade natural do português no que diz respeito à
aproximação sexual com negras e índias, haja vista a escassez de mulheres brancas naquele
período (MUNANGA, 2004, p. 88). Para Freyre:
falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à
imediata miscigenação – contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça,
apenas preconceitos religiosos – foi para o português vantagem na sua obra de
conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para a sua melhor adaptação, senão
biológica, social (FREYRE, 1995, p. 13).
Foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria.
O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do
caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente em sua tristeza [...]. A
risada do negro é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em que se foi
abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu alegria aos são-joões de engenho;
que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de
Reis [...] Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de
bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando
café, nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs
brancos – os negros trabalhavam sempre cantando: seus cantos de trabalho, tanto
quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria
africana a vida brasileira (FREYRE, 1995, p. 462).
A imagem que fora criada acerca das relações raciais no Brasil a partir das obras de
Freyre, cuja miscigenação era apresentada como exemplo de harmonia racial e de integração
das raças, despertou a atenção de intelectuais estrangeiros sobre essa realidade não muito
comum no restante do mundo. Assim, em 1950, a Columbia University e o governo da Bahia
deram início, em conjunto, a um projeto de pesquisa sobre as mudanças sociais naquele
estado, e, no mesmo ano, essa pesquisa foi ampliada (SKIDMORE, 1989, p. 236).
Uma série de estudos sobre relações raciais foi realizada no Brasil entre 1950 e 1953,
com o financiamento da Unesco.41 Dentre os pesquisadores, destacam-se: Florestan
Fernandes, Thales de Azevedo, L.A. Costa Pinto, Oracy Nogueira, René Ribeiro. Além dos
brasileiros, os estudos tiveram também a participação de estrangeiros, tais como: Roger
Bastide (École Pratique des Hautes Etudes, Paris) e Charles Wagley (Columbia University) e
de estudantes norte-americanos, Marvin Harris, Harry Hutchinson e Ben Zimmerman.
(GUIMARÃES, 2005, p. 131)
Charles Wagley, juntamente com os seus alunos, teve como campo de estudo a Bahia,
e suas análises contaram com a forte contribuição de Thales de Azevedo (Universidade da
41
Além da Unesco, os estudos contaram ainda com o financiamento da revista Anhembi, em São Paulo, o
Programa de Pesquisas Sociais do Estado da Bahia – Columbia University (Guimarães, 2005, p. 131).
62
Bahia). Bastide realizou a sua pesquisa com Florestan Fernandes42 em São Paulo.
(SKIDMORE, 1989, p. 236).
Ainda sob o patrocínio da Unesco, uma terceira pesquisa foi realizada no estado de
Recife por René Ribeiro (Instituto Joaquim Nabuco) e no Rio de Janeiro por Luiz Costa Pinto
(da Universidade do Brasil).
Além desses intelectuais, outros nomes, também com grande influência na academia,
participaram desses estudos: Gilberto Freyre e Donald Pierson; Guerreiro Ramos e Pierre van
den Berghe; Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.
Os resultados dos estudos apresentaram diagnósticos diversos. As conclusões dos
estudos realizados na Bahia, em Recife e no norte do país diziam que o preconceito racial era
fraco ou inexistente no Brasil. Estes resultados corroboraram com os estudos pioneiros
realizados por Gilberto Freyre e Donald Pierson. Já os estudos realizados em São Paulo, no
Rio de Janeiro e no sul do país concluíram que havia tensões raciais crescentes e que o Brasil
era um país onde o preconceito era muito forte, mas negado.
Vários fatores43 contribuíram para que os resultados dos estudos fossem distintos.
Todavia, as divergências de caráter ideológico e político teriam contribuído, sobremaneira,
para conclusões tão díspares:
42
Florestan Fernandes funda uma escola de pesquisa, de grande influência, na Universidade de São Paulo,
acompanhado pelos seus alunos e por dois outros pesquisadores, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni
(Skidmore, 1989, p. 236).
43
Telles (2012) acredita que a divergência entre as duas gerações de estudiosos das relações raciais deve-se aos
diferentes focos da pesquisa. Para ele, a primeira geração enfocou a sociabilidade e as relações sociais
principalmente entre pessoas da mesma classe social, enquanto a segunda geração enfatizou a desigualdade e a
discriminação (Telles, 2012, p. 7). Esses diferentes enfoques, para Telles, ocorreram muito em função das
diferenças regionais: “nos anos 1930, Gilberto Freyre (1937, 1986) reduziu a sociedade brasileira à família
patriarcal da região Nordeste, a qual ele descreve como sendo o berço da civilização brasileira e onde a
miscigenação encontra sua maior expressão [...]. Ao contrário, seus contemporâneos brasileiros, como Florestan
Fernandes, concentraram seus estudos nas regiões ao sul, predominantemente brancas, e enfatizaram a
discriminação racial e a desigualdade, geralmente negligenciando a questão da miscigenação” (Telles, 2012, p.
17).
44
Park, Robert Ezra (1864-1944) foi um dos membros da Escola de Chicago. Foi também um dos primeiros
praticantes do método da observação participativa e defendia a importância da pesquisa empírica. Escreveu,
63
formação dos grupos raciais. Uns compreendiam esses grupos a partir de um modo
individualista; outros, a partir de um modo estruturalista. Havia, ainda, divergência quanto à
concepção da natureza desses grupos. Seria status/comunidade ou classe/associação?
(GUIMARÃES, 2005, p. 79).
Vem da tradição americana [...] uma forte orientação no sentido de que os grupos
raciais e étnicos, e mesmos as classes sociais, sejam definidos por seus integrantes,
isto é, sejam grupos de pertença identitária e, portanto, desvendados a partir da
autoclassificação dos indivíduos. Os autores de formação anglo-saxônica, como
Pierson, Wagley, Harris, Thales de Azevedo e Oracy Nogueira adotaram tal
abordagem, em contraste com os autores de formação francesa ou marxista, como
Bastide, Fernandes, Berghe e Costa Pinto, para quem os grupos raciais, tanto
quanto as classes sociais, eram fenômenos de estrutura social, ou seja, lugares
definidos numa estrutura de posições (GUIMARÃES, 2005, p. 80 - grifo no
original).45
[...] ficou patente que quanto mais escuro fosse o brasileiro, mais provável seria
encontrá-lo no fundo da escala socioeconômica – e nisso coincidiram os diversos
indicadores – renda, ocupação, educação. [...] Já não era possível pretender que o
Brasil tinha escapado à discriminação racial, embora ela não tivesse sido codificada
nunca – era pelo menos desde a era colonial. O peso crescente da evidência
demonstrava justamente o contrário, mesmo com linhas de discriminação muito
mais complexas que na sociedade birracial dos Estados Unidos (SKIDMORE, 1989,
p. 236- 237).
entre outros, Race and Culture (Johnson, Allan, G. Dicionário de Sociologia – guia prático da Linguagem
Sociológica,1997 p. 275).
45
Em Racismo e antirracismo no Brasil, Guimarães traça um perfil teórico esquemático de cada um desses
autores (2005, p. 80)
64
A documentação hoje reunida mostra que o tratamento dos escravos no Brasil foi,
muitas vezes, igual em nível de desumanidade ao de qualquer outro lugar do mundo.
Na verdade, a comparação dos sistemas escravocratas em termos de sua relativa
“doçura” ou “dureza” já provou ser uma falsa indicação na compreensão da
dinâmica da mudança social; todavia, pelo fato de documentarem os fatos no
sistema brasileiro, os especialistas contribuíram para solapar também a crença da
elite na singularidade da sua história escravocrata (SKIDMORE, 1989, pp. 237-
238).
Para Wagley (apud GUIMARÃES, 2002) e seus alunos, no Brasil, “em todo seu
imenso território semicontinental, a discriminação e o preconceito raciais estão sob controle,
ao contrário do que acontece em muitos outros países”. Bastide e Fernandes não concordavam
com tal afirmação. Para eles a democracia racial a que se referia Charles Wagley ainda era
algo que não existia concretamente, mas apenas como uma idealização:
A ideia de democracia racial, que por muito tempo vigorou nos discursos sobre
relações raciais nopaís, foi se configurando como mito a partir das denúncias do movimento
65
negro e de novos estudos sobre relações raciais na sociedade brasileira. Sobre o mito da
democracia racial, dizia Fernandes (2008):
Conforme Fernandes (2008), o mito da democracia racial teve utilidade prática desde
que emergiu historicamente. Sua utilidade se evidenciou em três planos distintos. Primeiro,
generalizou um estado de espírito que permitia atribuir à incapacidade ou à irresponsabilidade
do negro os dramas humanos da população de “cor”, como o que eles atestavam como índices
insofismáveis de desigualdades econômica, social e política na ordenação das relações raciais.
Segundo, isentou o “branco” de qualquer obrigação, responsabilidade ou solidariedade
morais, de alcance social e de natureza coletiva. Terceiro, revitalizou a técnica de focalizar e
avaliar as relações entre “negros” e “brancos” por meio de exterioridades ou aparências dos
ajustamentos raciais, forjando uma consciência falsa da realidade racial brasileira.
46
Sobre o pensamento do sociólogo Florestan Fernandes, ver: Ianni (2004c); Cadernos de Estudos ENFF (2009)
e Paixão (2014).
66
(FERNANDES, 2008, p. 311). Essa técnica também contribuiu para difundir e generalizar a
falsa consciência da realidade racial, provocando diversas convicções etnocêntricas:
1º - a ideia de que o negro não tem problemas no Brasil; 2º - a ideia de que, pela
própria índole do povo brasileiro, “não existem distinções raciais entre nós”; 3º - a
ideia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio social e de
poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e
industrial da cidade de São Paulo; 4º - a ideia de que o “preto está satisfeito” com a
sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5º - a ideia de que não existe,
nunca existiu, nem existirá outro problema de justiça social com referência ao
“negro” excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e pela
universalização da cidadania – o que pressupõe o corolário segundo o qual a miséria,
a prostituição, a vagabundagem, a desorganização da família etc. imperantes na
“população de cor” seriam efeitos residuais, mas transitórios, a serem tratados pelos
meios tradicionais e superados por mudanças qualitativas espontâneas
(FERNANDES, 2008, p. 312).
Em sua crítica ao mito da democracia racial, Fernandes (2008) afirma que enquanto o
mito não puder ser utilizado pelos negros como um regulador de seus anseios e ascensão
social, ele será inócuo no que tange à própria democratização da ordem racial, pois o mito se
converteu em uma barreira à autonomia e ascensão social do negro e à democracia racial no
Brasil (p. 327).
Nesse aspecto, vale a pena resgatar, ainda que de forma panorâmica, a importância da
história do movimento negro brasileiro no processo de desmistificação do mito da democracia
racial, as diferentes concepções ideológicas que norteavam as ações e estratégias
empreendidas, as características que aproximavam ou distanciavam uma organização da outra
em momentos históricos distintos, as contradições, os recuos e avanços nessa trajetória.
67
“A liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista. Essa conquista pressupõe que os negros
redefinem a história, para situá-la em seus marcos concretos e entrosá-los com seus anseios
mais profundos de autoemancipação coletiva e de igualdade racial.”47
Florestan Fernandes
Artigo I – Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Brasil,
a “Frente Negra Brasileira”, união política e social da Gente Negra Nacional, para
afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e
moral no passado e para reivindicação dos seus direitos sociais e políticos, atuais, na
comunhão brasileira.
Artigo II – Podem pertencer à “Frente Negra Brasileira” todos os membros da Gente
Negra Brasileira de ambos os sexos, uma vez capazes, segundo a lei básica nacional.
Artigo III – A “Frente Negra Brasileira”, como força social, visa à elevação moral,
intelectual, artística, técnico-profissional e física: assistência, proteção e defesa
social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra (DOMINGUES, 2008, pp.
61-62).
47
Trecho do livro O significado do protesto negro, de Florestan Fernandes (Fernandes, 1989, p. 34).
48
Ver Carneiro, Edison (2011); Freitas, Décio (1978); Moura, Clovis (1981); Gomes, Flavio (2005).
49
Destacam-se no levantamento realizado por Fernandes (2008): Associação José do Patrocínio, Associação dos
Negros Brasileiros, Centro Cívico Beneficente Senhoras Mães Pretas, Centro Cívico Palmares, Clube Negro de
Cultura, Grêmio Recreativo de Kosmos, Legião Negra Brasileira, Movimento Afro-Brasileiro de Educação e
Cultura, Organização de Cultura e Beneficência Jabaquara, Sociedade Beneficente 13 de Maio, União Negra
Brasileira (Fernandes, 2008, p. 54).
68
50
Ver: Pinto, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Tese (Doutorado em
Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1993.
69
Tal fato ilustra parte das contradições existentes no bojo do movimento. Para além dos
conflitos internos que impeliram alguns de seus quadros a abandonar a FNB e a criar outras
entidades,51 a perspectiva integracionista com sustentação em uma ideologia de cunho
nazifascista revela o quão distante estavam suas lideranças – o que não diminui o seu nível de
importância para a organização dos negros daquela época e para a história dos movimentos de
resistência e combate ao racismo no Brasil, – daquilo que almejavam no que tange à inserção
do negro na sociedade brasileira, que era por eles reconhecida como mantenedora de relações
de discriminação racial. Com a ditadura do Estado Novo, em 1937, a FNB foi extinta, assim
como os demais partidos políticos existentes na época, pelo presidente Getulio Vargas.
No ano de 1944, foi fundado o Teatro Experimental do Negro (TEN),52 que surgiu
como um espaço de contestação da discriminação e de formação de atores e dramaturgos afro-
51
Entidades criadas a partir das dissidências da FNB: Legião Negra; Frente Negra Socialista e o Clube Negro de
Cultura social (Nascimento, 2003, pp. 234-235).
52
Inicialmente a União Nacional de Estudante (UNE) emprestou ao TEN espaço físico para a realização das suas
atividades de ensino e debate. Todavia, algum tempo depois, a UNE suspendeu o empréstimo do espaço.
Conforme Nascimento (2003), tal suspensão havia se dado por motivos ideológicos, pois a entidade estudantil,
além de não aceitar a especificidade da questão racial, não queria colaborar com um movimento que propunha
uma posição tida como divisionista da luta operária (p. 291).
71
O TEN foi criado em um momento político de crise e de fim do Estado Novo. Sua
fundação foi motivada pela ideia de protesto em relação à ausência de negros nos palcos
brasileiros. Nessa época, era muito comum os artistas brancos usarem maquiagem preta para
representarem no palco personagens negros. A concepção do TEN surgiu, assim, a partir
dessa constatação de ausência de negros encenando. Segundo Abdias do Nascimento, foi em
uma viagem a Lima, no Peru, que após assistir ao espetáculo O imperador Jones, de Eugene
O’Neil, cujo protagonista era um ator argentino branco pintado de preto, fez a seguinte
reflexão:
53
Negritude – Movimento poético dos africanos de língua francesa. No Brasil, tratava-se da identificação com a
origem africana no contexto brasileiro (NASCIMENTO, Elisa; NASCIMENTO, 2000, p. 207).
72
Florestan Fernandes (2007), ao ter contato com a coletânea de peças teatrais Dramas
para negros e prólogo para brancos – Antologia de teatro negro-brasileiro,54 organizada por
Abdias do Nascimento, faz algumas reflexões acerca da importância dessa obra e, sobretudo,
da relevância do TEN no processo de afirmação e valorização da capacidade criadora do
negro:
Ainda nessa direção, Fernandes (2007) chama a atenção para os desafios postos a
brancos e negros no processo de civilização. Tendo o branco a consciência de sua condição
histórico-cultural, tem que resguardar as condições que permitam ao negro ser mais negro,
não para separá-lo de si – mas para respeitá-lo, para conquistar uma perspectiva da qual possa
valorizá-lo como ser humano. E o mesmo deve ser feito pelo negro, que precisa lutar pela
afirmação de sua identidade. Sem, contudo, segregar-se, “sem disfarçar-se ou ser destruído,
no fluxo de crescimento de uma nação que ainda se envergonha das grandezas de suas origens
étnicas, raciais e culturais” (FERNANDES, 2007, p. 221).
O TEN exerceu, assim, um importante papel político na sociedade brasileira no que
diz respeito à crítica da desigualdade racial. Posicionava-se abertamente em defesa da
afirmação da identidade afro-brasileira e denunciava, por meio da dramaturgia e outras
iniciativas de cunho político-pedagógico,55 as diversas formas de expressão do racismo
brasileiro. Sua criação, contudo, gerou polêmica desde a escolha de seu nome, Teatro
Experimental do Negro. “A afirmação explícita da identidade étnico-racial do grupo soava
como desafio à cômoda posição de uma elite brasileira que pretendia ignorar a existência não
apenas do ‘problema’, como da própria pessoa do negro e sua cultura” (NASCIMENTO,
2003, p. 287).
54
A coletânea contém, além do prólogo para brancos de Abdias do Nascimento, as seguintes peças: O filho
pródigo, de Lucio Cardoso; O castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé; Auto da noiva, de Rosário Fusco; Sortilégio,
de Abdias do Nascimento; Além do rio (Medea), de Agostinho Olavo; Filhos de santo, de José de Morais Pinho;
Aruanda, de Joaquim Ribeiro; Anjo negro, de Nelson Rodrigues; O emparelhado, de Tasso de Oliveira.
55
O TEN desenvolveu atividades como curso de alfabetização, curso básico de iniciação à cultura geral, curso de
teatro (Nascimento, 2003, p. 290).
73
Ressalta-se, contudo, que o TEN, sem desconsiderar o seu valor histórico para o
fortalecimento e visibilidade da luta em defesa dos direitos do negro e da valorização da
tradição africana, também foi criticado por parte da intelectualidade afinada com a matriz
teórica marxista por ser identificado como uma organização de cunho elitista, que não
questionava as estruturas de classes buscando apenas, dentro do marco das relações
capitalistas, oportunidades para os negros.56
O TEN, tal como inúmeras outras organizações democráticas e populares, teve as suas
atividades praticamente extintas no período da ditadura militar, tendo o seu principal
56
Autores como Nascimento, 2003; Pinto, 1993; Moura, 1983; Domingues, 2008 oferecem uma discussão mais
aprofundada acerca dos debates e conflitos existentes entre o pensamento político do TEN e os seus opositores.
74
A fundação do MNU teve como motivação uma série de acontecimentos contra negros
no mês de maio de 1978 em São Paulo. A morte de um trabalhador negro dentro de uma
delegacia, a expulsão de atletas negros do time juvenil do Clube Tietê e o assassinato de um
operário negro por um policial funcionaram como um estopim para as organizações negras.
Conforme Pinto (1993), entidades como os jornais Afro-Latino-América e Abertura, de São
Paulo, e Afro-Latino-América, do Rio de Janeiro, Grupo de Artistas Negros, Associação
Brasileira Jovem e o Grupo de Atletas Negros lançaram uma carta convocatória58 para o Ato
Público contra o racismo.
57
O Movimento Negro Unificado Contra o Racismo e a Discriminação Racial passou a se chamar Movimento
Negro Unificado (MNU) a partir da realização do seu primeiro congresso nacional, em dezembro de 1979.
58
Assinaram esta carta de convocação para o Ato Público contra o racismo: Câmara de Comércio Afro-
Brasileira, Centro de Artes e Cultura Negra, Associação Recreativa Brasil Jovem, Afrolatino América,
Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira, Associação Cristã Beneficente do Brasil, Jornegro, jornal
Abertura, jornal Capoeira, Company Soul, Zimbabwe Soul. Além dessas organizações, algumas associações do
Rio de Janeiro assinaram uma nota conjunta em solidariedade ao Ato: a Quilombo, o Renascença Clube, o
Núcleo Negro Socialista, o Centro de Estudos Brasil-África (CEBA) e o Instituto de Pesquisa das Culturas
Negras (IPCN) (Gonzalez, 1982, pp. 44-45).
75
O Ato Público, que conseguiu reunir mais de 3 mil participantes, criou o MNU. As
ações subsequentes foram de organização da nova entidade. No mesmo mês de sua criação,
realizou, em São Paulo, a primeira Assembleia Nacional. Nessa oportunidade, foram
elaborados a Carta de Princípios, o Programa de Ação e os Estatutos. Sendo todos esses
documentos aprovados na segunda Assembleia Nacional, realizada em setembro, no Rio de
Janeiro. Já na terceira Assembleia Nacional, que ocorreu em novembro do mesmo ano, em
Salvador – BA, foram definidos o nome do movimento, que passou a ser chamado
Movimento Negro Unificado, e os seus objetivos (PINTO, 1993, p. 423): “combater o
racismo, lutar contra a discriminação racial, o preconceito e toda forma de opressão existente
na sociedade brasileira, bem como mobilizar e organizar a população negra, para que esta
pudesse lutar pela sua emancipação política, econômica, social e cultural” (MOURA apud
PINTO, 1993, p. 423).
Nessa direção, a Carta de Princípios do Movimento afirma que a luta pela liberdade do
negro deve ser encampada por ele mesmo. Contudo, a partir do entendimento de que o negro
não está isolado na sociedade, o movimento luta pela construção de uma sociedade onde todos
participem efetivamente. Assim, se solidariza com “toda e qualquer luta reivindicativa dos
setores populares da sociedade brasileira que vise à real conquista de seus direitos políticos,
76
econômicos e sociais”, bem como “com a luta internacional contra o racismo” (GONZALEZ,
1982, p. 66).
Diferentemente das organizações que o antecederam (Frente Negra e TEN), o MNU
situa a questão racial nos marcos do sistema capitalista, que utiliza o critério racial como mais
um elemento de hierarquização das relações sociais e aprofundamento das desigualdades
sociais. Defende a transformação da sociedade como a única possibilidade de superação da
discriminação racial. A perspectiva de classe é, assim, incorporada no Brasil, no âmbito do
movimento negro, aos discursos relativos à questão racial.
Hoje não dá mais para sustentar posições culturalistas, intectualistas, coisas que tais,
e divorciadas da realidade vivida pelas massas negras. Sendo contra ou a favor, não
dá mais pra ignorar essa questão concreta, colocada pelo MNU: a articulação entre
raça e classe (GONZALEZ, 1988, p. 64).
Conforme Santos (2007), a conjuntura política brasileira em 1978 era propícia para a
rearticulação e criação de entidades nacionais de caráter mais combativo e classista, pois
havia em todo o país mobilizações sociais contra a ditadura e suas ações de tortura, prisões
ilegais e várias outras arbitrariedades. É ainda nesse período que acontecem as greves no ABC
paulista organizadas pelo movimento operário. Além desses fatores internos, a conjuntura
política internacional também favorecia aquele processo de rearticulação, uma vez que as
lutas dos negros nos Estados Unidos pelos direitos civis, bem como aquelas por
independência ou libertação de vários países africanos de língua portuguesa contra o racismo
colonial, influenciaram muitos militantes jovens negros brasileiros (SANTOS, 2007, p. 116).
Outro aspecto importante a ser destacado na atuação do MNU foi a visibilidade da
participação da mulher negra, tanto na luta pela emancipação do negro em geral como na luta
que, para o Movimento, guarda certa particularidade no que diz respeito a sua condição de
mulher e negra. Assim, a organização chama a atenção para a necessidade de maior apoio à
“mãe solteira” e à legalização do aborto (PINTO, 1993, p. 426).
Ademais, o movimento defendia a luta pela educação e acreditava que ela podia ser
um forte instrumento de libertação, desde que o seu conteúdo também incorporasse os valores
da população negra. Nas propostas contidas em seu Programa de Ação havia questões que
abarcavam desde aquelas tidas como mais particulares ao negro àquelas mais gerais, que
envolviam toda a população trabalhadora.59
Dentre as várias iniciativas e projetos do MNU,60 a realização do Dia Nacional da
Consciência Negra, no dia 20 de novembro de 1979,61 pode ser considerada um grande marco
59
As propostas foram: “construção de grupos de atuação nas escolas, locais de moradias e trabalho;
fortalecimento das entidades culturais e reinvidicativas voltadas para a questão do negro; reconstrução de uma
imprensa negra dirigida para os interesses da população negra; apoio à luta internacional contra o racismo;
solidariedade à luta de libertação de vários povos africanos (Namíbia, Zimbábue, Zâmbia); apoio a Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe – criação do Comitê Anti-Apartheid –
solidariedade à luta de todos os oprimidos e minorias raciais; organização do trabalhador rural; criação de
cooperativas no campo voltadas para os trabalhadores; garantias trabalhistas ao trabalhador rural; reforma
agrária; aumento salarial trimestral sempre acima do custo de vida; participação dos trabalhadores no lucro das
empresas; luta por melhores condições de trabalho; contrato coletivo de trabalho; liberdade sindical; direito de
greve; livre organização dos trabalhadores; liberdade de organização e expressão; direito de voto ao analfabeto;
eleições livres e diretas; luta contra a carestia, o arrocho salarial, as torturas, a censura; luta a favor da liberdade
de organização de partidos políticos, da anistia, da democracia racial, da libertação do povo negro, dos oprimidos
em geral, de uma sociedade igualitária, de uma Assembleia Constituinte, livre, democrática e soberana"
(Programa de Ação, s.d. apud Pinto, p. 427).
60
Conforme depoimento de Gonzalez (1982), o MNU, dentre as inúmeras atividades, realizou, junto ao Comitê
Brasileiro pela Anistia, denúncias de casos de violência policial. Promoveu diversas manifestações em praças
públicas por ocasião do dia 20 de novembro, tendo realizado, em um desses atos, o “enterro da lei Afonso
Arinos”. (Gonzalez, 1982, p. 60).
61
O Grupo Palmares, fundado por Oliveira Silveira em Porto Alegre, em 1971, teve como primeiro e principal
objetivo propor o dia 20 de novembro (dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695) como a data a ser
celebrada pela população negra, substituindo o dia 13 de maio (dia da abolição da escravatura). Seguindo a
78
de sua existência e atuação política, pois esse acontecimento “atribuiu maior visibilidade tanto
ao movimento negro quanto à importância histórica de Zumbi do quilombo dos Palmares que,
mesmo sem o reconhecimento oficial, passou a ocupar espaços nas programações de várias
escolas municipais e estaduais de todo o país” (SILVA, 2010, p. 130).
A partir da atuação e visibilidade política do MNU, muitas organizações foram se
formando por todo o Brasil. Todavia, a sua organização inicial se deu em meio a muitos
entraves de ordem política. Manifestações como as realizadas pelo movimento eram
consideradas ameaça ao sistema vigente e ao mito da democracia racial. Assim, segundo
depoimento de Gonzalez (1982), muitos participantes da construção do Ato e do MNU foram
abandonando o movimento por temerem represálias e foram inúmeras as dificuldades para
encontrar lugares disponíveis para a realização das assembleias.62
Embora as dificuldades não tenham desaparecido com o passar dos anos, o movimento
negro não deixou de atuar e foi, ao contrário, ampliando suas bandeiras de luta. A
característica de denúncia, muito presente nos discursos e iniciativas dos movimentos da
década de 1970, foi criando espaços a outras estratégias de enfrentamento do racismo. Novas
formas de organização foram surgindo, tais como o movimento de mulheres negras, as lutas
quilombolas e os movimentos culturais, como o movimento hip hop (SILVA, 2010, p. 131).
Ressalta-se, contudo, que em relação ao movimento de mulheres negras há registro de
sua trajetória desde o início do século XX.63 Elas constituíam uma grande parcela da Frente
Negra Brasileira (FNB). E, em 1936, criaram a primeira associação de trabalhadoras
domésticas no estado de São Paulo, sob a liderança da ativista Laudelina Campos Melo,
integrante da Frente. Em 18 de maio de 1950, foi fundado por Maria de Lourdes Vale
Nascimento, autora da coluna feminina no Quilombo,64 o Conselho Nacional das Mulheres
Negras, formado por mulheres vinculadas à cultura, às artes e à política.
proposição do grupo Palmares, durante a segunda Assembleia Nacional do MNU, realizada em 4 de novembro
de 1978, em Salvador, foi deliberado o 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (Pereira,
Amilcar A. 2010, p. 158).
62
A justificativa utilizada pela Associação dos Funcionários Públicos da Bahia para desistir de ceder a sua sede
para a realização da II Assembleia Nacional do Movimento Negro Unificado foi de que a reunião do MNU feria
a “Lei Afonso Arinos”. E a proibição da Polícia Federal foi o argumento utilizado pelo responsável pelo Teatro
Vila Velha para também negar a cessão do espaço” (Gonzalez, 1982, p. 56).
63
Dentre elas: a Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do Sul, fundada em 1908, em Pelotas-RS, e a
Sociedade Brinco das Princesas, de 1925, em São Paulo. Essas organizações eram formadas por mulheres negras
(Araujo, 2013).
64
Quilombo era o nome do jornal criado em 1948 pelo TEN, sob a liderança de Abdias do Nascimento. O
periódico tinha como um dos seus principais objetivos “trabalhar pela valorização do negro brasileiro em todos
os setores: social, cultural, educacional, político, econômico e artístico” (Nascimento, 2008, p. 123).
79
65
O Encontro contou com a participação de 450 mulheres negras de 17 estados do país. Teve, ainda, a presença
de mulheres negras dos Estados Unidos, Equador e Canadá, como observadoras (Carneiro, 2004, p. 313).
80
66
Em relação a essas comemorações, no Rio de Janeiro, no dia 11 de maio de 1988, a “marcha contra a farsa da
abolição” foi duramente reprimida pelas polícias militar e civil por ordem do secretário estadual de segurança.
Os milhares de participantes da marcha foram impedidos de chegar ao busto de Zumbi dos Palmares, situado em
uma das principais avenidas da cidade (Av. Presidente Vargas), sob a alegação de que não poderiam passar em
frente ao monumento de Duque de Caxias, haja vista a suspeita de que os militantes negros poderiam “ofender”
com xingamentos e protestos a memória do patrono do Exército brasileiro (Ver Pereira, 2008, pp. 67-68).
67
A Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.
Foi alterada por meio da Lei no 8.081, de 21 de setembro de 1990. Esta Lei esclarece os crimes e as penas
aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional,
praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza.
68
Documento na íntegra disponível em http://www.irohin.org.br/ref/03.htm.
81
69
III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, que se realizou no
período de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul.
70
Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata – 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, Durban, África do Sul.
Declaração completa disponível em http://www.geledes.org.br/attachments/505_Declaracao_Durban.pdf.
71
Segundo Ronald Walters (1997) a expressão ação afirmativa foi utilizada pela primeira vez nos Estados
Unidos da América, em 1961, por um oficial afro-americano do governo Kennedy, no momento em que esse
presidente buscava atacar as discriminações raciais sofridas pelos negros no emprego. Posteriormente esse
conceito ampliou-se, passando a incluir o combate às discriminações na área educacional e outras áreas.
Incorporou também as mulheres e outras populações entre os seus beneficiários (Walters apud Santos, 2003, p.
89).
72
A reserva de vagas foi assim distribuída: a) 20% (vinte por cento) para alunos oriundos da rede pública de
ensino; b) 20% (vinte por cento) para negros; c) 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência; ou nascidas
no Brasil pertencentes a povos indígenas; ou filhos de policiais civis e militares, bombeiros, inspetores de
segurança e de administração penitenciária, mortos em serviço ou incapacitados permanentemente.
82
73
O então deputado federal Abdias do Nascimento (PDT/RJ) apresentou o Projeto de Lei nº 1.332, de 1983,
que dispunha “sobre ação compensatória, visando a implementação do princípio da isonomia social do negro, em
relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado pelo artigo 153,
parágrafo primeiro, da Constituição da República”. Entre as medidas propostas estavam cotas para homens
negros e para mulheres negras, assegurando-lhes acesso ao ensino público e privado de todos os níveis e ao
emprego nas empresas do setor privado e nos quadros do funcionalismo público; bolsas de estudo em todos os
níveis do ensino; ensino da história e cultura africana e diaspórica com revisão dos currículos; cursos de
orientação antirracista no treinamento para policiais (Nascimento, 2013). No ano de 1993, o então deputado
federal Florestan Fernandes (PT/SP), apesar de o PT ter decidido não participar da revisão constitucional,
apresentou uma proposta de emenda constitucional para incluir políticas afirmativas de inclusão da população
negra à Constituição. A emenda não entrou em votação. Em 1995, a então senadora Benedita da Silva (PT/RJ)
apresentou os Projetos de Lei - PLS 13, de 22/2/1995, que dispunha “sobre a instituição de cota mínima de 20%
das vagas das instituições públicas de ensino superior para alunos carentes” e o PLS 14, de 22/2/1995, que
dispunha “sobre a instituição de cota mínima para os setores etnorraciais, socialmente discriminados em
instituições de ensino superior”. Ainda em 1995, foi encaminhado o Projeto de Lei nº 1.239, pelo então deputado
federal Paulo Paim (PT/RS), que visava a garantir a reparação, com indenização, para os descendentes dos
escravos no Brasil. Em 1998, o deputado federal Luiz Alberto (PT/BA) apresentou os Projetos de Lei nº 4.567,
que criava o Fundo Nacional para o Desenvolvimento de Ações Afirmativas e o de nº 4.568, instituindo o
Conselho Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades. No ano de 1999, o senador Antero Paes de
Barros (PSDB) apresentou o Projeto de Lei nº 298, que estabelecia a reserva de vagas nas universidades públicas
para alunos egressos da rede pública de ensino.
83
políticas de ação afirmativa têm como objetivo igualar a oportunidade, por meio de
mecanismos reparadores de discriminação e desigualdade social, de raça, de gênero, de idade
e de origem. As ações afirmativas buscam, assim, minimizar os efeitos das diversas formas de
desigualdades (CASTRO, 2008, p. 248). Nessa mesma direção, VINAGRE (2009) afirma que
as políticas de ação afirmativa têm como objetivo a garantia de direitos de grupos socialmente
em situação desigual e de desvantagem histórica. Para ela, essas políticas discriminam
positivamente para reparar danos e dívidas historicamente produzidas e herdadas de uma
estrutura socioeconômica que produz determinações contraditórias (VINAGRE, 2009, p.
117). Podemos encontrar diversas definições sobre Ações Afirmativas, que embora tenham
algumas diferenças em relação ao conceito, não se distanciam em sua essência no que tange
ao seu objetivo fundamental.
74
Há políticas voltadas para segmentos populacionais socialmente mais vulneráveis, tais como crianças,
adolescentes e idosos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado no ano de 1990, determina a
precedência na formulação de políticas para as crianças e adolescentes. É garantido à população idosa em
situação de pauperização o acesso ao Beneficio de Prestação Continuada (BPC), o direito a atendimento
preferencial em unidades de saúde, gratuidade em transportes coletivos, entre outras medidas legais de proteção.
No âmbito da Previdência social há direito da mulher se aposentar cinco anos antes do homem. Tal dispositivo
legal discrimina positivamente as mulheres. Assim como a cota de 30% reservada a candidaturas femininas em
disputas eleitorais para cargos legislativos.
84
Uma alegação bastante recorrente, para muitos convincentes, tem sido a afirmação
de que introduzir a dimensão étnico-racial, de gênero e da diversidade sexual na
discussão sobre a democracia e cidadania brasileiras é um equívoco na medida em
que rompe com o princípio igualitário que lhes dá sustentação. Todos são iguais
perante a lei, portanto, para esta visão dominante, seria um equívoco e uma
armadilha reconhecer a condição étnico-racial, de gênero e de orientação sexual
como elementos de análise do significado e alcance dos princípios democráticos e de
cidadania constitucionalmente afirmados. Assim, contraditoriamente, até se admite,
ante a crueza dos dados, que as reais condições de vida e de trabalho dos negros
brasileiros são desiguais quando comparadas às condições de vida e de trabalho dos
não negros no interior de uma mesma classe social. Admite-se também a assimetria
nas relações de gênero e a violação de direitos em face da orientação sexual, no
entanto, recusa-se o conteúdo étnico-racial, de gênero e de orientação sexual das
várias formas de desigualdade em nome da defesa da igualdade e da universalidade
dos direitos. Recusa que, nesse caso, se sustenta por uma visão abstrata dos direitos,
donde a aceitação é meramente formal da universalidade (BRITES, 2011, p. 58).
75
O reconhecimento da constitucionalidade das cotas para negros na universidade teve unanimidade no
julgamento realizado em 25 e 26 de abril de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros julgaram
improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)186, ajuizada na Corte pelo
Partido dos Democratas (DEM). Este ajuizou a ação no ano de 2009, questionando a reserva de vagas oferecidas
pela Universidade de Brasília (UnB).
76
O Estatuto da Igualdade Racial, originalmente apresentado como Projeto de Lei nº 3.198 no ano de 2000, que
instituía o “Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de
sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências”, foi apresentado à Câmara Federal pelo então deputado federal
Paulo Paim (hoje senador). O Projeto sofreu diversas alterações até o seu formato final no ano de 2010. Foi
aprovado pelo Senado Federal em 16 de junho de 2010 e sancionado pela Presidência da República em 20 de
julho do mesmo ano (Lei nº 12.288/2010). O Estatuto é considerado por muitos militantes do movimento negro
85
como o reconhecimento oficial da existência do racismo como um fenômeno histórico vivenciado pelas
populações não brancas, sobretudo os negros e indígenas. Contudo, para outros, o Estatuto, para ser aprovado –
após dez anos tramitando no Congresso Nacional –, perdeu a sua essência mais radical. Recebeu muitas
alterações e mudanças que retiraram de seu conteúdo questões como as que se referiam à demarcação e ao
reconhecimento legal das terras de remanescentes de quilombo, bem como à reserva de vagas ou cotas para
negros na universidade.
77
A Lei nº 12.711, promulgada em 29 de agosto de 2012, determina que “as instituições federais de educação
superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos
de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (Art. 1º). O parágrafo único deste artigo diz que “no
preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos
estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (um salário mínimo e meio) per
capita”. Os estudantes negros e indígenas também são contemplados no artigo 3º, que diz “em cada instituição
federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1 o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por
autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na
população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” (BRASIL, 2012).
78
A partir do I COPENE, no ano 2000, ocorreram: em 2002, o II COPENE, organizado pelo Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos; o III COPENE, em 2004, organizado pelo Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão, em São Luiz; o IV COPENE, em 2006,
organizado pelo CEPAIA e pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia,
em Salvador; o V COPENE, em 2008, em Goiânia, na Universidade Federal de Goiás; o VI COPENE, em 2010,
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; o VII COPENE, em 2012, organizado pelo Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC), em Florianópolis, Santa Catarina.
79
Segundo catálogo dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs), há hoje catalogados 83 NEABs
funcionando em diversas universidades e em todas as regiões brasileiras. As funções gerais dos NEABs são:
desenvolver ações voltadas para avaliação e acompanhamento da implementação do Parecer CNE/CP 003/2004
e da Resolução CNE 001/2004, que tratam das Diretrizes Curriculares para a Educação e Relações Étnico-raciais
e Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, por meio de atividades de pesquisa, ensino e
extensão, de caráter interinstitucional e multidisciplinar; incentivar o fortalecimento e/ou criação de núcleos,
laboratórios e programas de pesquisa especializados nos estudos de temas alusivos aos aspectos
socioeducacionais e culturais das populações afro-brasileiras e indígenas; subsidiar a elaboração,
acompanhamento e avaliação das diferentes agências públicas e sistema de ensino com vistas à implementação
de políticas públicas de diversidade cultural, em especial, voltadas para populações afro-brasileiras e indígenas;
86
Todavia, tão ou mais importante que a aprovação das cotas para negros nos espaços
acadêmicos foi a promulgação da Lei Federal no 10.639/2003,80 que determina a inclusão no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História da África e Cultura
Afro-Brasileira".
A inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira no currículo escolar busca
também atender uma reivindicação histórica do movimento negro. A importância da educação
sempre foi destaque nas reivindicações e iniciativas do movimento negro em toda a sua
trajetória. Assim, a luta pela inserção da História da África na educação pode ser constatada
desde as iniciativas do Teatro Experimental do Negro nos anos quarenta:
Uma das críticas mais contundentes do movimento negro – em suas diversas formas
de organização: política, social, cultural, sindical, religiosa etc. –, especialmente dos
militantes negros com atuação na academia, refere-se à hegemonia do pensamento
eurocêntrico nos espaços de formação, desde os primeiros anos de escolarização à
estimular, no âmbito das instituições, a reflexão acerca das desigualdades étnico-raciais e das políticas de
promoção de igualdade (ABPN, 2014). Sobre a relevância dos NEABs para a formação de professores da Escola
Básica, ver estudo realizado por Lima (2012), “A questão étnico-racial na formação continuada de professores
da Escola Básica: uma análise de quatro Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros do estado do Rio de Janeiro”.
80
Esta lei altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), o seu art. 1o-A, passa a vigorar acrescida dos
seguintes artigos: 26-A, 79-A e 79-B: "Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo
programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os
conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”. “Art. 79-B. O
calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.” E, com a
promulgação da Lei Federal nº 11.645, de 10 de março de 2008, a História e Cultura dos Povos Indígenas
também foi incorporada aos currículos.
87
81
CNE/CP Resolução no 1/2004. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de junho de 2004, seção 1, p. 11.
88
destacamos três, não por serem os mais relevantes, mas por se aproximarem, em alguma
medida, das orientações já incorporadas pelo Código de Ética dos (as) assistentes sociais e
pelas diretrizes curriculares do curso de Serviço Social:
Nesse sentido, o estudo acerca da incorporação dessa temática nos currículos do curso
de Serviço Social e nas produções da categoria está em consonância com as orientações do
projeto ético-político profissional e com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.82
Buscamos nesse primeiro capítulo retratar, ainda que de forma bastante resumida, um
pouco da história do pensamento racial brasileiro e sua influência no processo de formação
social do país. Registramos ainda que, ao longo da história desse país, a população negra
criou formas de resistência ao racismo, tendo obtido algumas conquistas nessa empreitada.
O resgate histórico da constituição das relações de desigualdade racial no Brasil é
fundamental para a apreensão crítica dessas relações no contexto atual. Sobretudo, quando se
almeja analisar a importância da temática étnico-racial para o conjunto da categoria
profissional de Serviço Social, seja no seu processo de formação acadêmica – em suas
modalidades de ensino, extensão e pesquisa –, seja no exercício profissional, por meio das
múltiplas possibilidades de inserção nos espaços sócio-ocupacionais. Tal resgate se justifica,
pois, como já nos dizia Ianni (1978): “enquanto entidades vivas, as pessoas, os grupos e as
classes socais vivificam, refazem, destroem ou simplesmente desprezam passado” (IANNI,
1978, p. 125). Contudo, “o passado explicativamente importante está impregnado e revificado
no presente, na prática dos vivos” (IANNI, 1978, p. 122).
Na prática dos vivos se expressa a consciência social eivada de preconceitos que
explicam e ao mesmo tempo são produto dos antagonismos sociais, inclusive os raciais.
82
Diretrizes que abordaremos mais detalhadamente no capítulo seguinte.
90
intervenção mais qualificada sob o ponto de vista teórico e técnico-operativo, ético e político,
sobretudo no que diz respeito à apreensão das expressões da questão social materializadas na
vida social em desigualdade.
91
CAPÍTULO II
84
Unidades de Ensino de Serviço Social.
93
(ENESSO), realizaram, entre os anos de 1994 e 1996, cerca de duzentas oficinas locais nas 67
unidades acadêmicas filiadas a ABESS, 25 oficinas regionais e duas nacionais (ABESS, 1997,
p. 58).
Após intenso e profícuo debate, a “Proposta nacional de currículo mínimo para o
Curso de Serviço Social” foi apreciada na II Oficina Nacional de Formação Profissional e
aprovada em assembleia geral da ABESS, entre os dias 7 e 8 de novembro de 1996 (ABESS,
1997, p. 59), na cidade do Rio de Janeiro.
Naquele mesmo ano de 1996, em 20 de dezembro, foi aprovada a nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB).85 Assim, a proposta de currículo mínimo é
encaminhada para apreciação ao Conselho Nacional de Educação do MEC.
Como as diretrizes curriculares haviam sido criadas inicialmente no formato de
currículo mínimo, uma Comissão de Especialistas de Ensino em Serviço Social86 foi indicada
pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS)87 e nomeada
pelo MEC para organizar as diretrizes aprovadas pela ABEPSS à nova formatação exigida
pela nova LDB. Após esse trabalho de organização, as diretrizes foram encaminhadas no ano
de 1999 ao MEC para a sua homologação.
Entretanto, em 2002, o Conselho Nacional de Educação promulga as diretrizes do
curso de Serviço Social, “mutilando” os principais elementos que expressavam a radicalidade
dos conteúdos construídos coletivamente pela categoria profissional. Tal processo ainda hoje
recebe duras críticas da ABEPSS e de outros órgãos de representação da categoria, que
defendem uma formação profissional crítica e comprometida com um projeto que busque a
construção de uma outra ordem societária.
85
LDB aprovada através da Lei Federal nº 9.394/1996.
86
Comissão de Especialistas de Ensino em Serviço Social formada por: Maria Bernadete Martins Pinto Rodrigo,
Marilda Villela Iamamoto e Mariangela Belfiore Wanderley.
87
Em dezembro de 1998, por ocasião da mudança do seu estatuto, a ABESS passou a denominar-se Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) (Cardoso, 2000).
94
88
Os pressupostos contidos na revisão curricular são: “O Serviço Social se particulariza nas relações sociais de
produção e reprodução da vida social como uma profissão interventiva no âmbito da questão social, expressa
pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo monopolista; a relação do Serviço Social com a questão
social – fundamento básico de sua existência – é mediatizada por um conjunto de processos sócio-históricos e
teórico-metodológicos constitutivos de seu processo de trabalho; o agravamento da questão social em face das
particularidades do processo de reestruturação produtiva no Brasil, nos marcos da ideologia neoliberal,
determina uma inflexão no campo profissional do Serviço Social. Esta inflexão é resultante de novas requisições
postas pelo reordenamento do capital e do trabalho, pela reforma do Estado e pelo movimento de organização
das classes trabalhadoras, com amplas repercussões no mercado profissional de trabalho; o processo de trabalho
do Serviço Social é determinado pelas configurações estruturais e conjunturais da questão social e pelas formas
históricas de seu enfrentamento, permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado, através das
políticas e lutas sociais” (ABESS, 1997, p. 60).
89
Em relação aos princípios que fundamentam a formação profissional: “flexibilidade de organização dos
currículos plenos, expressa na possibilidade de definição de disciplinas e ou outros componentes curriculares –
tais como oficinas, seminários temáticos, atividades complementares – como forma de favorecer a dinamicidade
do currículo; rigoroso trato teórico, histórico e metodológico da realidade social e do Serviço Social, que
possibilite a compreensão dos problemas e desafios com os quais o profissional se defronta no universo da
produção e reprodução da vida social; adoção de uma teoria social crítica que possibilite a apreensão da
totalidade social em suas dimensões de universalidade, particularidade e singularidade; superação da
fragmentação de conteúdos na organização curricular, evitando-se a dispersão e a pulverização de disciplinas e
outros componentes curriculares; estabelecimento das dimensões investigativa e interventiva como princípios
formativos e condição central da formação profissional e da relação teoria e realidade; padrões de desempenho e
qualidade idênticos para cursos diurnos e noturnos, com um máximo de quatro horas/aulas diárias de atividades
nestes últimos; caráter interdisciplinar nas várias dimensões do projeto de formação profissional;
indissociabilidade nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão; exercício do pluralismo como elemento próprio
da natureza da vida acadêmica e profissional, impondo-se o necessário debate sobre as várias tendências teóricas,
em luta pela direção social da formação profissional, que compõem a produção das ciências humanas e sociais;
ética como princípio formativo perpassando a formação curricular; indissociabilidade entre estágio e supervisão
acadêmica e profissional” (ABESS, 1997, pp. 61-62).
95
Assim, as diretrizes apontam um novo perfil profissional, que deve estar coadunado
com as demandas que exigirão dele uma intervenção qualificada, competência técnico-
operativa, teórico-metodológica e ético-política.
O excerto abaixo, extraído das diretrizes, expressa o perfil defendido:
prática era “uma expressão orgânica destes elementos normativos nos novos conteúdos
teóricos e práticos da formação profissional” (GENTILLI, 1999, p. 13).
É partir dessas orientações ético-políticas que o nosso tema de estudo será investigado.
Ademais, com vistas à superação da fragmentação até então presente nos currículos de
Serviço Social, a nova organização curricular se baseou em um tripé de conhecimentos
constituídos pelos núcleos de fundamentação da formação profissional. São eles:
Ainda segundo a autora, o silêncio sobre os negros nas primeiras produções do Serviço
Social dizia algo sobre a constituição do Serviço Social no Brasil. Chama a atenção para “a
condição negra como uma das mediações possíveis para auscultar a história no Serviço Social
brasileiro, num esforço de distingui-la das demais” (FERREIRA, 2010, p. 13).
98
Esta constatação sobre a ausência do tema raça e etnia nas produções do Serviço
Social permaneceu ainda sentida nos anos posteriores. Pinto (1986), por ocasião da
construção de seu trabalho de conclusão de curso (TCC), no ano de 1986, realizou entrevista
com trinta usuários negros (homens e mulheres) e trinta assistentes sociais de ambos os sexos.
Constatou o desconhecimento dos profissionais sobre a atuação frente às demandas relativas à
questão racial. Segundo o resultado da pesquisa, em resposta à pergunta sobre o que tinha sido
feito pelo Serviço Social quanto à questão do negro no Brasil até aquele momento, 46,7% dos
entrevistados responderam que nada havia sido feito e 30% informaram que desconheciam o
tema (PINTO, 2003, p.148).
Ainda nessa pesquisa, a autora quis saber qual seria a intervenção do profissional
diante de um usuário negro que relatasse uma situação em que tivesse sido vítima de
preconceito racial. Encontrou que:
(...) 63% dos assistentes sociais já passaram por situações nas quais as pessoas por
elas atendidas afirmaram ter sofrido preconceito. (...) ao descreverem as situações
nas quais ocorreram os preconceitos, reportavam-se sempre a fatos e situações nos
quais não conseguiram ter um posicionamento técnico e politicamente adequado
(PINTO, 2003, p. 149).
Em relação à produção teórica do Serviço Social naquele período, a autora sinaliza que
o número de publicações ainda era bem modesto. E, no que se referia à abordagem da questão
étnico-racial pelo Serviço Social, essa discussão era invisibilizada, quase inexistente:
Quais são os livros de Serviço Social que você conhece que abordem a questão
étnico-racial? (...) revelaram que 93,4% não conheciam nenhum livro de Serviço
Social que abordasse as questões étnico-raciais. Apenas uma das entrevistadas
respondeu que lera um artigo a respeito na Revista Serviço Social e Sociedade.
Todavia, no momento de elaboração desta pesquisa, essa revista encontrava-se no nº
21, mas em nenhuma delas encontrei referências às questões étnico-raciais, bem
como nas demais revistas, cadernos e livros de Serviço Social (PINTO, 2003, p.
171).
A pesquisa realizada por Silva Filho (2006), em 2004, junto aos estudantes de Serviço
Social da Escola de Serviço Social da UFF, buscou saber, por meio de questionários
aplicados, o nível de conhecimento acerca dos temas “teoria racial”, “democracia racial”,
“teoria do branqueamento”, “cultura negra”, “religião afro-brasileira”, “racismo, preconceito e
discriminação”. O resultado encontrado aponta para:
99
Podemos verificar que a lacuna sobre o debate da questão étnico-racial não ficou
circunscrita apenas ao período histórico de criação das primeiras escolas de Serviço Social e
tampouco aos cursos de graduação na atualidade. Pesquisa sobre a pós-graduação e suas
produções, realizada por Carvalho e Silva (2005), através dos dados do DATACAPES,
constatou que das 760 teses e dissertações defendidas junto aos Programas de Pós-Graduação
na área de Serviço Social no período de 1998-2002, o eixo “Etnia, gênero, orientação sexual”
representou 4,60% das teses e dissertações defendidas naquele período e 7,64% dos temas
abordados nos projetos de pesquisa dos Programas de Pós-Graduação da área de Serviço
Social do triênio 2001-2003 (CARVALHO; SILVA, 2005, pp. 93-104). Entretanto, quando
destacamos os trabalhos que dão ênfase à questão étnico-racial, as produções são menos
expressivas:
A conclusão mais evidente disso, dentro dos limites dessa pesquisa, é que é possível
afirmar a existência de práticas racistas no Serviço Social em sua gênese. Tirante o
100
simplismo da afirmação, isso não é mais que afirmar, em última instância, o que já
há muito é negado, que existe racismo no Brasil, afinal, “no Brasil, o racismo está
entranhado nas relações sociais”(...). Ora, o Serviço Social, enquanto instituição
profissional, não está fora da sociedade brasileira, nem tampouco seus agentes
(FERREIRA, 2010, p. 172).
a ruptura com a herança conservadora expressa-se como uma procura, uma luta por
alcançar novas bases de legitimidade da ação profissional do Assistente Social, que,
reconhecendo as contradições sociais presentes nas condições do exercício
profissional, busca colocar-se objetivamente a serviço dos interesses dos usuários,
isto é, dos setores dominados da sociedade. Não se reduz a um movimento “interno”
da profissão. Faz parte de um movimento social mais geral, determinado pelo
confronto e a correlação de forças entre as classes fundamentais da sociedade, o que
não exclui a responsabilidade da categoria pelo rumo dado às suas atividades e pela
forma de conduzi-las (IAMAMOTO, 2000, p. 37).
90
A perspectiva conservadora do Serviço Social, que tem a sua gênese na estreita relação com a Igreja Católica,
está expressa, dentre outros documentos, em seus Códigos de Ética de 1947, 1965 e 1975. Conforme Barroco e
Terra (2012), os códigos se fundamentavam nos pressupostos do neotomismo e do positivismo. “O neotomismo
influenciou o Serviço Social desde a sua origem, seja na formação profissional, nas disciplinas de filosofia e
ética, em sua fundamentação filosófica e valorativa tal como aparece nos Códigos de Ética” (Barroco; Terra,
2012, p. 43).
91
Para uma melhor leitura acerca da perspectiva de superação do Serviço Social conservador e sobre o
movimento de Reconceituação, ver: Netto (1994), Iamamoto (2000), Faleiros (2005), Netto (2005) e Grave
(2010).
101
É este “Serviço Social crítico”, ele mesmo diferenciado, marcado por polêmicas e
debates internos, diversificado teoricamente e ideologicamente plural que, no Brasil
contemporâneo, expressa o espírito da Reconceituação e não há nenhum exagero em
afirmar que, sem o movimento dos anos 1960/1970, tal Serviço Social não existiria
(NETTO, 2005, p. 18).
92
Embora a abolição da escravatura tenha entrado para a historiografia oficial como tendo sido proclamada em
13 de maio de 1888, esta data, desde 1978, passou a ter outro significado para o movimento negro brasileiro: Dia
nacional de combate ao racismo. Assim, o “13 de maio” é lembrado como o “dia da falsa abolição”.
102
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS).93 Esta tem 116 cursos
cadastrados e, deste universo, 25 pertencem a Universidades Federais, o que equivale a
22,55% do total das Unidades de Acadêmicas cadastradas.
Devido à heterogeneidade dos cursos de Serviço Social, que podem ser de caráter
público ou privado, presenciais ou à distância,94 buscamos agregar em um bloco unidades
acadêmicas que tivessem de alguma maneira elementos de aproximação, pelo menos no que
tange a sua forma de organização e gestão. Tendo em vista que nos limites deste trabalho não
caberia uma análise mais exaustiva dos currículos de todas as unidades filiadas, realizamos
este recorte no intuito de investigar, de forma mais aprofundada, os elementos contidos nos
currículos dos cursos de Serviço Social das universidades federais filiadas à ABEPSS.
Nos currículos das 25 unidades acadêmicas federais filiadas à ABEPSS, buscamos
analisar em que medida e extensão os cursos de Serviço Social estão em consonância com as
diretrizes curriculares da Associação, no que diz respeito à inserção da temática étnico-racial
em seus currículos.
Para consulta aos currículos, recorremos aos Projetos Político-Pedagógicos dos Cursos
(PPCs) selecionados para a nossa pesquisa. Nosso primeiro contato com os PPCs foi por
intermédio dos sites dos cursos. Contudo, quando estes não estavam disponíveis para consulta
virtual, solicitávamos à coordenação ou docentes dos referidos cursos a sua disponibilização.
Embora tenhamos tido acesso a todos os currículos das unidades selecionadas, nem sempre
foi possível ter acesso a todas as informações relativas aos dados investigados. Em alguns
casos, a grade curricular estava disponível para o público, mas o PPC atualizado, não. Então,
informações tais como data de criação do curso e data da última revisão curricular só nos foi
possível obter através de contato com docentes ou a coordenação do curso. Em outros casos, o
acesso ao currículo não garantia as informações acerca das ementas das disciplinas. O mesmo
procedimento em relação ao contato com a unidade acadêmica foi feito para obtermos os
conteúdos das ementas.
93
As informações relacionadas ao número de Unidades Acadêmicas filiadas à ABEPSS foram obtidas no site da
Associação.
94
Em relação a essa modalidade de ensino, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), no ano de 2011,
manifestou-se publicamente contrário a esse tipo de formação. Através da campanha “Educação não é fast-food:
diga não para a graduação à distância em Serviço Social”, o CFESS é categórico ao defender o direito ao ensino
superior gratuito e de qualidade, que ofereça aos (às) estudantes uma formação crítica para o efetivo exercício
profissional, bem como possibilite a ampliação de condições de atuação em um mundo cada vez mais complexo,
na perspectiva de torná-lo substantivamente igualitário e humano” (CFESS MANIFESTA, 2011). Disponível
em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2011_campanhaEAD_CENSURADO.pdf (Acesso em:
10/02/2014).
103
Quadro 1
Distribuição das 25 Unidades Acadêmicas por Região, conforme organização da ABEPSS
Quadro 2
Disciplinas curriculares abordando a temática étnico-racial
Disciplina Categoria Caráter Carga Horária Período
Relações Gênero e Etnia/raça Obrigatória 60h 5º período
questão social
Acumulação capitalista e Etnia/raça Obrigatória 60h 3º período
questão social
Gênero e etnia Gênero, etnia/raça e classes Obrigatória 64h 5º período
sociais
105
É possível observar que nem sempre o título da disciplina enuncia o seu conteúdo
referente ao tema étnico-racial contemplado na ementa (26 disciplinas): “Relações Gênero e
Questão Social”, “Acumulação Capitalista e Questão Social”, “Envelhecimento e Políticas
Sociais”, “Indivíduo Cultura e Sociedade”, “Serviço Social: Famílias e Segmentos Sociais
Vulneráveis”, “Antropologia II”, “Oficinas sobre Políticas Específicas I”, “Oficinas sobre
Políticas Específicas II”, “Antropologia – Introdução”, “Diversidade e Desenvolvimento
Humano”, “Educação e Movimentos Sociais”, “Classes Sociais e Movimentos Sociais”,
“Sociedade e Gênero, Antropologia Cultural”, “Política Social e Questões Sociais no Brasil”,
“Identidades Culturais e Serviço Social no Brasil, “Relações de Gênero e Serviço Social”,
“Saúde, Gênero e Violência”, “Subjetividade e Cultura”, “Antropologia VI”, “Iniciação
Antropológica”, “Classes e Movimentos Sociais”, “Capitalismo e Questões Sociais”,
“Movimentos Sociais e Serviço Social II”, “Temas Contemporâneos, Diversidade e Serviço
Social”. São os mais diversos conteúdos que fazem mediações com a temática. Há, contudo,
certa predominância nas disciplinas de antropologia e nas que abordam questão social,
movimentos sociais e relações de gênero. Das 39 disciplinas identificadas nos currículos
como as que abordam o tema raça e etnia, apenas 13 já enunciam esse conteúdo em seus
títulos.
Chama-nos a atenção que as disciplinas, normalmente, já enunciam o conteúdo que
será trabalhado através de seus nomes. Mas, há algumas que apresentam nome de caráter mais
geral, como é o caso, por exemplo, da “Oficinas sobre políticas específicas I”. A priori essa
constatação nada de importante acrescentaria, principalmente em se tratando de uma
disciplina obrigatória. Entretanto, em relação às disciplinas optativas ou atividades
complementares, essa informação já registrada no nome da disciplina pode fazer alguma
diferença no momento em que o discente precisará escolher, dentro do universo das
disciplinas optativas, uma para cursar.
107
Se os títulos das disciplinas muitas vezes não dizem, por si sós, se abordarão ou não o
tema raça e/ou etnia, a ementa traz os conteúdos que serão trabalhados, possibilitando assim
o acesso a essa informação. Ressaltamos, no entanto, que isso nem sempre ocorre como uma
regra predeterminada. Em alguns casos, os temas mais específicos somente aparecerão nos
programas e nas referências bibliográficas. Porém, como os programas costumam sofrer
mudanças mais frequentes por estarem associados à autonomia dos docentes no processo de
elaboração de suas aulas, é a ementa a nossa principal fonte de informação sobre os conteúdos
que serão discutidos pela disciplina.
Nas ementas, verificamos um movimento contrário do que constatamos nos títulos das
disciplinas; dentre as 39 disciplinas que abordam a questão étnico-racial, apenas uma não
registra de forma direta este conteúdo – Alteridade e identidade, sendo possível identificá-la
como ementa de uma disciplina que aborda a temática étnico-racial pelo título Identidades e
diferenças, raça, gênero e classe.
Constatamos que a categoria “etnia/raça” é a mais abordada no conjunto das
disciplinas, seguida das categorias “etnia” e “etnocentrismo”. Enquanto as categorias
etnia/raça e etnia estão mais presentes nas disciplinas de Serviço Social, o etnocentrismo se
destaca nas disciplinas de antropologia. Embora não seja possível fazermos grandes
inferências acerca desse dado, é importante destacar que enquanto raça e etnia referem-se à
condição étnico-racial dos sujeitos sociais, ou seja, à forma pela qual os sujeitos se
autodeclaram étnico-racialmente, o etnocentrismo enfoca a relação de superioridade étnica de
um grupo étnico em relação a outro, com base na disseminação de valores como universais e
superiores. Ainda que essas categorias estejam, em alguma medida, interligadas e
relacionadas, sobretudo à dimensão da cultura e à formação identitária dos sujeitos sociais,
muitas vezes podem ser abordadas de modo a desconsiderar a sua dimensão histórica. A
identidade, a segregação ou a integração étnico-racial fazem parte de uma construção sócio-
histórica. O critério étnico-racial não é biológico, ou seja, não faz parte da natureza humana.
Sendo assim, indagamo-nos: desde quando, por quê, e em que condições históricas surgiram
como um “marcador”identitário? É sob a perspectiva histórica de totalidade que essas
categorias devem ser apreendidas no processo de formação profissional. Daí a importância da
apropriação de conceitos que, embora apareçam como sinônimos, são distintos no seu
significado: etnia e raça; etnocentrismo e racismo; preconceito e discriminação; diferença e
desigualdade.
Por outro lado, o movimento negro aparece como um tema a ser estudado em apenas
quatro currículos, o que, de alguma forma, está na contramão das diretrizes curriculares,
108
especialmente no que tange ao tópico de estudo “Movimentos Sociais e Classes Sociais”, que
aborda Relações de gênero, étnico-raciais, identidade e subjetividade na constituição dos
movimentos societários. Nesse sentido nos chama a atenção Iamamoto (2001), quando afirma
que os assistentes sociais trabalham com a questão social em suas diversas expressões
cotidianas, e que, sendo a questão social desigualdade, ela é também rebeldia, pois envolve
“sujeitos que vivenciam as desigualdades e a elas resistem” (IAMAMOTO, 2001, p. 28):
Na pesquisa realizada por Marques e Moro (2011) sobre os trabalhos apresentados nos
ENPESSs e nos CBASs, no período de 1995 a 2008, que abordaram a temática “movimentos
sociais”, foram encontrados 23796 trabalhos dentre os 6.204, representando 3,82% desse
conjunto. Entre os 237, o movimento negro aparece como tema em 1,5%, ficando apenas na
95
Ver: Cardoso, Franci. Os movimentos sociais populares no processo de transformação social. Serviço Social &
Sociedade, n. 33, ano XI. São Paulo: Cortez, 1990; Abramides, Maria Beatriz C.; Cabral, M. do Socorro. O novo
sindicalismo e o Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995; Abreu, Marina Maciel. Serviço Social e organização
da cultura: perfis pedagógicos da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002; Duriguetto, Maria Lucia;
Montano, Carlos. Estado, classe e movimento social. Biblioteca Básica do Serviço Social. São Paulo: Cortez,
2010.
109
frente do movimento indígena, que somou 1,0%. Tanto um quanto o outro, ambos os movimentos
estão dentro do campo de estudo das relações étnico-raciais.
O conhecimento sobre a importância histórica dos movimentos de resistência negra –
sem desconsiderar as lutas empreendidas por outros segmentos sociais – no processo de
construção da identidade e formação social brasileira é matéria fundamental para qualquer
área de formação. Entretanto, para o Serviço Social, que tem a questão social como seu
elemento fundante, a apropriação dessa discussão torna-se imprescindível, pois é sobre as
múltiplas expressões da questão social que irá atuar. Assim, interrogamos: Quem são os
sujeitos sociais historicamente discriminados e alvos preferenciais das ações de violações de
direitos? Quem são os sujeitos que mais demandam a intervenção do profissional de serviço
social em seus diversos espaços sócio-ocupacionais? E, é sobre quem que as políticas de
repressão e controle do Estado agem mais fortemente? Conhecer esses sujeitos vai para além
de conhecer o seu “registro de identidade”. É preciso conhecer a sua história e com ela
apreender as diversas formas de resistência às opressões que são forjadas individual e
coletivamente.
Os profissionais que atuam em defesa do fortalecimento do Projeto ético-político
profissional, tendo como referência teórico-política o pensamento crítico marxista, ao se
eximirem desse debate correm o risco de: primeiro, contribuir com a manutenção de relações
discriminatórias e de ampliação das desigualdades sociais em decorrência do racismo e suas
múltiplas expressões na realidade brasileira; em segundo, de deixar brecha para que outros
referenciais teórico-políticos, de cunho conservador ou pós-moderno, apropriem-se dessa
discussão e ocupem grande parte dos recursos político-pedagógicos (referencial bibliográfico,
atividades de extensão e de pesquisa etc.) utilizados como instrumentos de formação. Ou seja,
ou a categoria profissional incorpora essa discussão, dando relevo ao tema a partir de uma
perspectiva teórico-crítica, ou deixará que esse debate seja realizado de forma a-histórica e
descolada das múltiplas determinações históricas e materiais.
Por outro lado, se sentimos falta de uma presença mais robusta da história da
organização e resistência da população negra nos currículos, não verificamos essa lacuna no
que diz respeito ao debate da articulação raça/etnia/classe/gênero. Pudemos constatar que, em
grande parte dos currículos, há uma preocupação em superar uma visão fragmentada e isolada
dos sujeitos sociais. Isso expressa, portanto, o compromisso com as orientações postuladas
nas diretrizes curriculares.
Essa preocupação em apreender os sujeitos em sua totalidade, considerando as suas
múltiplas determinações em nível das dimensões de universalidade, particularidade e
singularidade, contribui para a superação de uma tendência constatada por Iamamoto (2008)
na pesquisa que realizou no banco de dados da Capes, em relação às linhas de pesquisa em
Serviço Social existentes no ano de 2004. Dentre os eixos temáticos do conjunto da área, o
relativo à Cultura e identidade: processos e práticas sociais aparece representado em oito
linhas de pesquisa e 83 projetos, o que representou 14,4% e 14,3% respectivamente, ocupando
o terceiro lugar em ordem de representatividade. Contudo, neste eixo, que é o que incorpora o
debate sobre temas como cultura afro-brasileira e direitos étnicos, a ênfase recai sobre as
“representações sociais” dos sujeitos individuais em relação às várias dimensões da vida em
sociedade. E, estas, segundo a autora, “se desconectadas das bases materiais e históricas de
sua produção, podem ser campo fértil às reações neoconservadoras no universo do Serviço
Social” (IAMAMOTO, 2008, pp. 460-461).
A crítica dos teóricos pós-modernos à razão moderna tem alcançado nível de adesão
muito forte junto àqueles que não questionam (ou deixaram de questionar) o modelo burguês
de organização social. O pensamento pós-moderno surge como o mais “progressista” e
conectado com as demandas sociais contemporâneas. Sua crítica à razão e à leitura mais
totalizante do real tem encontrado terreno fértil em espaços acadêmicos e setores pouco
críticos em relação ao modelo alicerçado nas relações sociais hierárquicas de dominação e
exploração de classe.
Nesta perspectiva, Boaventura de Souza Santos (1997) afirma que o pensamento pós-
moderno, sendo um conhecimento argumentativo, recusa totalmente duas características da
ciência moderna – a intemporalidade das verdades científicas e a distinção absoluta entre a
aparência e a realidade – por achar que cada uma delas, a seu modo, tem uma vocação
totalitária. Para ele, o novo paradigma (pós-moderno) do conhecimento é tão temporal como
as práticas e a cultura a que se vincula. Assume plenamente a sua incompletude, pois que
sendo um conhecimento presente, só permite a inteligibilidade do presente (SANTOS, 1997,
p. 330).
111
96
Tais considerações sobre o pensamento de Lyotard foram formuladas a partir das aulas da disciplina “Trabalho
e Serviço Social na América Latina”, ministrada pelas professoras Marilda Iamamoto e Maria Ciavatta, no
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da UERJ, no segundo semestre de 2009. As
anotações foram realizadas a partir das exposições e de debates ocorridos especialmente na Unidade A
Mundialização do Capital e o Pós-Modernismo, do programa da referida disciplina.
112
Não é raro encontrarmos leituras acerca das relações étnico-raciais que têm como
referencial de análise essas formulações, que para aquele menos avisado, muitas vezes,
aparecem como “ricas descobertas” e “inovações teóricas”, que fornecem novos elementos
para reflexões e análises acerca de uma realidade concebida de forma fragmentada. Todavia,
uma leitura mais aprofundada e crítica já nos permite identificar os problemas existentes na
condução desse pensamento, que não oferece instrumentos analíticos de apreensão dos
fenômenos sociais em sua totalidade.
113
Nesse sentido, Santos (2008) traz a seguinte contribuição para as nossas reflexões:
Ao agir e ao conhecer, o homem se aperfeiçoa por esse mesmo ato. Mas não se trata
de um processo isolado, individual, e sim parte de uma totalidade de relações
econômicas, políticas, culturais etc., fundamentalmente sociais, construída no ato do
homem de produzir e reproduzir a vida e de se relacionar nessa produção. É o que
Marx chama de concreto real (CIAVATTA, 2009, p. 59).
Embora saibamos que o currículo é avaliado em seu conjunto e que o seu conteúdo,
conforme as diretrizes que o norteiam, tem uma lógica constituída que busca garantir uma
formação profissional competente teórico-crítica, ético-política e técnico-operativa, a sua
estruturação é fruto de embates teórico-políticos e correlações de forças que representam
projetos em disputa na arena acadêmica. Portanto, a sua forma final expressa muito do que os
114
97
Conforme as Diretrizes Curriculares, as disciplinas “constituem-se como particularidades das áreas de
conhecimento que enfatizam determinados conteúdos priorizando um conjunto de estudos e atividades
correspondentes a determinada temática, desenvolvida em um período com uma carga horária prefixada”
(ABEPSS, 1996).
98
As diretrizes curriculares definem os seminários temáticos como “momentos de especificidade e
aprofundamento de temáticas relevantes em diferentes enfoques, visando detalhamento de abordagens voltadas
para a problematização e o estímulo da criatividade” (ABEPSS, 1996).
99
Conforme as Diretrizes Curriculares, as Oficinas / laboratórios são “espaços de vivência que permitam o
tratamento operativo de temáticas, instrumentos e técnicas, posturas e atitudes, utilizando-se de diferentes formas
de linguagem” (ABEPSS, 1996).
115
Quadro 3
Do caráter/ modalidade das disciplinas
Das 39 disciplinas encontradas nos currículos que tiveram suas ementas analisadas, 23
são de caráter obrigatório, oito são eletivas, sete são optativas e apenas uma aparece como
atividade complementar. As disciplinas obrigatórias representam 59% do total das que
abordam a temática étnico-racial.
Quadro 4
Do total de 23 disciplinas de caráter obrigatório, por Período e Região
Região Total
Região Centro- Região Região Região Região Região
Período Oeste Leste Nordeste Norte Sul Sul II
1º período 0 0 0 0 1 1 2
2º período 0 0 3 0 0 0 3
3º período 0 2 0 1 0 0 3
4º período 0 1 2 1 1 0 5
5º período 1 2 0 0 0 0 3
6º período 1 0 1 0 1 0 3
7º período 0 1 0 0 1 0 2
100
As atividades complementares, pelas Diretrizes, são “constituídas por atividades de pesquisa e extensão,
produção científica, visitas monitoradas, monitoria, participação em encontros, seminários e congressos com
apresentação de trabalho. As atividades formativas básicas têm por objetivo dar relevância às atividades de
pesquisa e extensão, afirmando a dimensão investigativa como princípio formativo e como elemento central na
formação profissional e da relação entre teoria e realidade” (ABEPSS, 1996).
116
9º período 0 0 0 1 0 0 1
A partir de 82
0 0 0 0 1 0 1
créditos cursados
Total 2 6 6 3 5 1 23
Fonte: pesquisa realizada pela autora sobre a inserção da temática étnico-racial nos
currículos das Unidades Federais de Formação Acadêmica filiadas à ABEPSS (abril/2013-março/2014)
Quadro 5
Disciplinas por caráter e período letivo
Caráter Total
Atividade
Complementar Eletiva Obrigatória Optativa
Períod 1º período
0 0 2 0 2
o
2º período 1 0 3 0 4
3º período 0 0 3 0 3
4º período 0 0 5 0 5
5º período 0 0 3 1 4
6º período 0 0 3 2 5
7º período 0 1 2 0 3
8º período 0 1 0 3 4
9º período 0 0 1 0 1
A partir de 82
créditos 0 1 1 0 2
cursados
Sem informação 0 1 0 0 1
Sem
0 4 0 1 5
periodização
Total 1 8 23 7 39
Fonte: pesquisa realizada pela autora sobre a inserção da temática étnico-racial nos
currículos das Unidades Federais de Formação Acadêmica filiadas à ABEPSS (abril/2013-março/2014)
101
A pesquisa buscou conhecer a realidade dos grupos de pesquisa, pesquisadores e como se configuram as
disciplinas que discutem a temática de gênero nos cursos de serviço social presenciais no Brasil. Foi realizada
117
dados analisados mostram que, na maioria das universidades do Brasil, as disciplinas que
tratam da temática de gênero se dão predominantemente de forma eletiva, ou seja, os/as
discentes podem terminar o curso de Serviço Social sem cursá-las” (2012, p. 3).
As disciplinas optativas, por sua vez, aparecem de forma bastante diversificada. Há
um leque de alternativas, com números variáveis. Encontramos currículos que contém mais de
vinte disciplinas optativas, outros contêm mais de trinta disciplinas eletivas e ainda há os que
contêm mais de dez disciplinas ou atividades complementares. Ressalta-se, contudo, que o
discente tem que escolher, dentro deste universo, que em alguns casos passam de quarenta
opções, as que deseja cursar. A média de disciplinas não obrigatórias a serem cursadas é de
duas a quatro. Ainda dentro da diversidade curricular, as optativas ou eletivas podem estar
vinculadas a um determinado período do curso ou não. Algumas vezes aparecem como
podendo ser cursadas em qualquer período, ou seja, “sem periodização”.
Das 23 disciplinas obrigatórias que discutem o tema étnico-racial, 13 são ofertadas até
o 4º período, e dez a partir do 5º, ou quando o discente já tiver cursado 82 créditos. Embora a
maioria dos cursos aqui analisados discuta esse conteúdo antes ou no momento da inserção no
campo de estágio, – que, na maioria das vezes, acontece a partir do 5º período do curso –,
uma parcela significativa oferece a disciplina com esse conteúdo somente a partir do 6º
período.
Lima (2012), a partir dos resultados de sua pesquisa, também chama a atenção para
essa questão no que se refere às disciplinas que abordam a temática de gênero e raça/etnia:
durante a Oficina Nacional da ABEPSS, realizada na UFRJ em novembro de 2011. O universo da pesquisa
contemplou 32 universidades, entre públicas e privadas, de todas as regiões do país (Lima, 2013).
118
Quadro 6
Cursos de Serviço Social, por Região, criados antes e depois de 1996
Quadro nº 7
Número de disciplinas com conteúdo sobre o tema étnico-racial, por período de criação dos cursos (antes e
depois de 1996)
Nº de disciplina
temática Cursos criados antes e depois de 1996
Fonte: pesquisa realizada pela autora sobre a inserção da temática étnico-racial nos
currículos das Unidades Federais de Formação Acadêmica filiadas à ABEPSS (abril/2013-março/2014)
Constatamos que dos cursos que têm uma disciplina com conteúdo sobre questão
étnico-racial, seis são de Unidades Acadêmicas criadas até 1996 e quatro foram criados
depois desse período. Das que possuem duas disciplinas, nove são de unidades criadas antes
de 1996 e três após este ano. O curso que tem cinco disciplinas com conteúdo abordando o
tema foi criado após 1996. E dessas disciplinas, duas são obrigatórias e três eletivas.
120
Encontramos dois cursos que não possuem disciplina com conteúdo sobre a temática, um
criado antes da promulgação das diretrizes curriculares e outro criado há cerca de cinco anos.
Embora não haja disparidades em relação ao número de disciplinas com conteúdo
sobre a temática étnico-racial, o currículo que possui cinco disciplinas, dentre as quais duas
obrigatórias, nos chama a atenção positivamente. Primeiro, por definir a temática como
conteúdo obrigatório em mais de uma disciplina e ainda assim incluir essa questão em duas
outras eletivas. Segundo, por ser um currículo de um curso situado no Sul do país, que,
segundo dados do Censo 2010,102 é a região com o menor número de negros (pretos e pardos).
Na direção oposta, em dois cursos (um na Região Nordeste e outro na Região Sul) não
identificamos a presença de conteúdo sobre a temática étnico-racial. O que revela, em alguma
medida, o descompasso em relação às diretrizes curriculares que orienta sobre a inserção
desse tema nos conteúdos curriculares.
Embora os programas e bibliografias das disciplinas não tenham sido por nós aqui
objeto de investigação, Mota (2007), a partir da pesquisa que realizou acerca da categoria
trabalho como conteúdo temático nas disciplinas dos currículos de graduação em Serviço
Social conforme orientação das diretrizes curriculares, faz a seguinte observação:
102
Conforme dados do Censo IBGE -2010, a região, proporcionalmente, com mais autodeclarados pretos ou
pardos entre a população residente é o Norte (73,5% dos 15,8 milhões de habitantes). Em seguida, vem Nordeste
(68,9% dos 53 milhões de habitantes), Centro-Oeste (55,7% dos 14 milhões de habitantes), Sudeste (43,6% dos
80,3 milhões de habitantes) e, por último, Sul (20,5% dos 27,3 milhões de habitantes). Disponível em:
http://m.g1.globo.com/brasil/noticia/2013/11/para-tem-maior-percentual-dos-que-se-declaram-pretos-ou-pardos-
diz-estudo.html. Acesso em: 13/03/2014.
121
apenas em relação à temática étnico-racial. Todavia, em nosso estudo, buscamos analisar para
além dos títulos e ementas, a modalidade/caráter, período e carga horária dispensada às
disciplinas com conteúdo étnico-racial. Constatamos que embora o tema étnico-racial apareça
como conteúdo em 59% das disciplinas obrigatórias, o que podemos considerar um dado
positivo, há currículos cujo tema aparece como disciplina optativa ou eletiva no 8º período. A
possibilidade de o discente concluir o curso sem ter acesso ao conhecimento sobre a temática
étnico-racial é enorme, pois, como já dissemos, as disciplinas optativas e eletivas são
oferecidas dentro de um universo amplo de alternativas, que em alguns cursos chegam a ter
mais de trinta opções de escolha.
Para além do número de disciplinas que abordam o tema étnico-racial, a preocupação
em inserir essa discussão no processo de formação profissional precisa, em consonância com
as diretrizes curriculares do Serviço Social, ser tratada sob a perspectiva da totalidade social.
Não pode ser vista apenas como mais um tópico de um conteúdo curricular. A questão étnico-
racial é elemento estruturante das relações sociais brasileiras, assim, não é possível tratarmos,
por exemplo, da formação social brasileira deixando fora dessa discussão a história das
populações negras e indígenas. Se assim o fizermos (creio que ainda fazemos), estamos
“mutilando” a história da formação social brasileira, pois, “a questão racial sempre foi, tem
sido e continuará a ser um dilema fundamental da formação, conformação e transformação da
sociedade brasileira” (IANNI, 2004a, p. 143). Não é por acaso que, das 23 disciplinas
obrigatórias que contêm o tema étnico-racial, cinco delas são oferecidas pela disciplina de
antropologia. Ainda que reconheçamos a importância dessa área do conhecimento para a
formação profissional, as relações étnico-raciais e suas múltiplas expressões não se restringem
ao campo da cultura. Com vistas ao fortalecimento do projeto ético-político profissional, esse
debate precisa, sobretudo, ser tratado pelo Serviço Social sob a perspectiva da construção de
outra sociabilidade, que passa, sem dúvida, pelo campo da cultura, mas também pelas relações
econômicas, políticas, sociais, regionais, ambientais. É nessa direção que o estudo sobre
temas como o etnocentrismo deve ser tratado. Não como mais um elemento histórico e
cultural das relações sociais de um povo ou povos, mas, sobretudo, como um fenômeno
constituinte de relações de opressão e dominação, que, no caso brasileiro, manifesta-se através
do pensamento hegemônico eurocêntrico que, historicamente, constrói e mantêm relações de
discriminação e desigualdades raciais.
Para Ianni (2004a) quando nos debruçamos sobre a leitura da história do Brasil, nem
sempre encontramos referências substantivas sobre os problemas raciais. Diante dessa
constatação, diz ele:
122
Consideramos importante incorporar de forma mais efetiva nos grupos que estudam
gênero as discussões sobre etnia/raça, diversidade sexual e questões éticas. Essas
mediações se fazem presentes no cotidiano das mulheres e dos homens e, portanto,
precisam ser mais bem aprofundadas no processo de formação nos cursos de
graduação de Serviço Social (LIMA, 2014, p. 65).
2.3 O advento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a sua
apropriação pelo Serviço Social
103
CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de junho de 2004, Seção 1, p. 11.
124
- Registro da história não contada dos negros brasileiros, tal como em remanescentes
de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais;
- Apoio sistemático aos professores para elaboração de planos, projetos, seleção de
conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja a História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana e a Educação das Relações Étnico-Raciais;
- Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino superior,
centros de pesquisa, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, escolas, comunidade e
movimentos sociais, visando à formação de professores para a diversidade étnico-
racial;
- Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Superior, nos
conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de
Educação das Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou
que dizem respeito à população negra;
- Inclusão de bibliografia relativa à história e cultura afro-brasileira e africana às
relações étnico-raciais, aos problemas desencadeados pelo racismo e por outras
discriminações, à pedagogia antirracista nos programas de concursos públicos para
admissão de professores;
-Inclusão, em documentos normativos e de planejamento dos estabelecimentos de
ensino de todos os níveis – estatutos, regimentos, planos pedagógicos, planos de
ensino – de objetivos explícitos, assim como de procedimentos para sua consecução,
visando ao combate do racismo, das discriminações, e ao reconhecimento,
valorização e respeito das histórias e culturas afro-brasileira e africana;
- Incentivo, pelos sistemas de ensino, a pesquisas sobre processos educativos
orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros e indígenas,
com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação
brasileira;
- Adequação dos mecanismos de avaliação das condições de funcionamento dos
estabelecimentos de ensino, tanto da educação básica quanto superior, ao disposto
neste Parecer; inclusive com a inclusão nos formulários, preenchidos pelas
comissões de avaliação, nos itens relativos a currículo, atendimento aos alunos,
projeto pedagógico, plano institucional, de quesitos que contemplem as orientações
e exigências aqui formuladas;
- Disponibilização deste parecer, na sua íntegra, para os professores de todos os
níveis de ensino, responsáveis pelo ensino de diferentes disciplinas e atividades
educacionais, assim como para outros profissionais interessados a fim de que
possam estudar, interpretar as orientações, enriquecer, executar as determinações
aqui feitas e avaliar seu próprio trabalho e resultados obtidos por seus alunos,
considerando princípios e critérios apontados (CNE, 2004a).
104
Constam nas diretrizes 23 itens que deverão ser providenciados pelos sistemas de ensino e os
estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação
Média, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior. Para o conhecimento das providências que precisarão
ser tomadas, disponibilizamos, em anexo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
125
105
A LDB passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos: 26-A e 79-B. O artigo 26-A diz: “os estabelecimentos
de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.” No seu parágrafo 1o: “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil”. E no seu parágrafo 2º: “Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História Brasileiras”. Já o artigo 79-B: “O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro
como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’”(BRASIL, 2003).
106
A Lei Federal nº 11645/2008 inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008).
126
E no que se refere às principais ações para o governo federal, este deve “incluir como
critério para autorização, reconhecimento e renovação de cursos superiores, o cumprimento
do disposto no Art. 1º, § 1º da Resolução CNE/CP nº 1/2004” (BRASIL, MEC/SEPPIR, 2009,
p. 30).
Destacamos, ainda, três das principais ações das instituições de Ensino Superior:
107
Conforme texto introdutório do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação das Relações Étnico-Raciais, no dia 20 de maio de 2008, o ministro da Educação instituiu um Grupo
de Trabalho Interministerial (GTI) com o objetivo de elaborar o documento referência que serviria de base para a
elaboração desse Plano (BRASIL, MEC/SEPPIR, 2009).
127
108
Poesia Nosso tempo, de Carlos Drummond de Andrade.
128
CAPÍTULO III
que revela que, em alguma medida, a categoria tem se dedicado ainda mais ao processo de
investigação, sistematização do exercício profissional e de socialização de suas produções, o
que legitima os CBAS e ENPESS como espaços de produção e socialização do conhecimento.
Quadro 8
Trabalhos acadêmicos no CBAS, por ano, local, tema central, no total de trabalhos e no de trabalhos/ênfase raça/etnia
- 2001 a 2013109
Nº de
Nº total de trabalhos –
Congresso Ano Local Tema Central
trabalhos ênfase
raça/etnia
Trabalho, direitos e democracia:
X CBAS 2001 Rio de Janeiro – RJ assistentes sociais contra a 784 06
desigualdade
O Serviço Social e a esfera
XI CBAS 2004 Fortaleza – CE pública no Brasil: o desafio de 857 05
construir, afirmar e consolidar
direitos
Questão social na América
XII CBAS 2007 Latina: ofensiva capitalista, 835 12
Foz de Iguaçu – PR
resistência de classe e Serviço
Social
Lutas sociais e exercício
profissional no contexto da crise
XIII CBAS 2010 Brasília – DF do capital: mediações e a 1.132 19
consolidação do Projeto Ético-
Político Profissional
Impactos da crise do capital nas
XIV CBAS 2013 Águas de Lindoia – SP políticas sociais e no trabalho 1.120 17
do/a assistente social
Total 4.728 59
Fonte: Elaboração da autora, a partir de dados da pesquisa realizada para tese nos ANAIS dos CBAS (2001-2013)
109
Embora não seja objeto de nossa pesquisa, registramos que nesse período também ocorreu, no ano de 2008, a
19ª Conferência Mundial de Serviço Social na cidade de Salvador–BA. O evento contou com a participação de
assistentes sociais de todo o Brasil e de diversos países. Teve 1.278 trabalhos aprovados, sendo 789 para
apresentação oral e 489 em forma de pôster, distribuídos em 17 sessões temáticas. Do total de trabalhos
aprovados, 14 foram apresentados na sessão temática “Questões étnicas e Serviço Social”, sendo 11 na
modalidade de comunicação oral e três na forma de pôster. Dos 14 trabalhos dessa sessão temática, cinco deram
ênfase na discussão sobre população negra, cinco sobre população indígena, dois sobre Quilombo/quilombola,
um sobre religião de matriz africana e um sobre outro tema, com o título: “Acculturation, Ethnic Identityand Life
Satisfaction Among South Asian Second Generation Immigrant Youth In Britain: an Exploratory Study.”
130
400
200
0 6 5 12 19 17
2.001 2.004 2.007 2.010 2.013
1,80 1,68
1,60 1,52
1,44
1,40
1,25
1,20
1,00
0,77
0,80
0,58
0,60
0,40
0,20
0,00
2001 2004 2007 2010 2013 Total
5.000 4.728
100%
4.500
4.000
3.500
3.000
2.500
2.000
1.500
1.000
59
500
1,2%
0
Total trabalhos Raça etnia
A autora destaca que no 6º CBAS foram identificados dois trabalhos que abordavam a
temática racial. No 7º CBAS, em 1992, não identificou nenhum trabalho relativo ao tema. No
8º CBAS, ocorrido no ano de 1995, foram apresentados três trabalhos com essa discussão. Em
1998, no 9º CBAS, foram apresentados 7 trabalhos distribuídos em áreas temáticas
distintas.110 Sobre este CBAS, Veloso (2007) destaca que o congresso “apontou o patente
reconhecimento das questões de gênero e raça/etnia nos planos acadêmico, profissional e
político do Serviço Social” (2007, p. 19).
Em relação às produções apresentadas nos Encontros Nacionais de Pesquisadores em
Serviço Social (ENPESS), os dados no quadro e nos gráficos abaixo se referem aos trabalhos
expostos nos ENPESS no período compreendido entre os anos de 2000 a 2012.
Quadro 9
Trabalhos com ênfase em Raça e Etnia apresentados
nos ENPESS (2001 a 2012)
Nº de
trabalhos –
Encontro Nº total de
Ano Local Tema Central ênfase
Nacional trabalhos
raça/etnia
O Serviço Social e a questão
VII ENPESS 2000 Brasília – DF 230 0
social: direitos e cidadania
VIII ENPESS 2002 Juiz de Fora – MG Não apresentou tema central 424 4
Os desafios do conhecimento
IX ENPESS 2004 Porto Alegre – RS 546 3
em Serviço Social
Crise contemporânea,
emancipação política e
X ENPESS 2006 Recife – PE emancipação humana: 745 1
questões e desafios do Serviço
Social no Brasil
Trabalho, políticas sociais e
Projeto Ético-Político
XI ENPESS 2008 São Luiz – MA 852 19
Profissional do Serviço Social:
resistência e desafios
Crise contemporânea,
emancipação política e
XII ENPESS 2010 Rio de Janeiro – RJ emancipação humana: 1.293 23
questões e desafios do Serviço
Social no Brasil
Serviço Social, acumulação
XIII ENPESS 2012 Juiz de Fora – MG capitalista e lutas sociais: o 1.348 15
desenvolvimento em questão
Total 5.438 65
Fonte: Elaboração da autora, a partir de dados da pesquisa realizada
para tese nos ANAIS dos ENPESS (2000-2012)
110
Áreas temáticas: “Família e sociedade” ; “Questão agrária, questão indígena e meio ambiente”; “Etnia e
gênero”.
133
1.400
1.348
1.293
1.200
1.000
852
800
745
600
546
400 424
200 230
0 4 3 1 19 23 15
0
2.000 2.002 2.004 2.006 2.008 2.010 2.012
Gráfico 5 - Trabalhos apresentados com ênfase em raça/etnia por ano nos ENPESS
2,5
2,23
2
1,78
1,5
1,20
1,11
0,94
1
0,55
0,5
0,13
0
0
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 Total
Embora seja possível constatar que a produção sobre a temática étnico-racial vem
gradativamente se tornando mais visível no âmbito do Serviço Social, ainda não ocupa espaço
de maior relevância no conjunto das publicações.
6.000 5.438
(100%)
5.000
4.000
3.000
2.000
65
1.000 1,2%
0
Total trabalhos Raça etnia
População negra
Relação direta 22%
com Serviço
Social
População
25%
indígena
Políticas públicas 15%
28%
Movimento
social
6%
Se agregarmos os dados referentes aos CBAS e aos ENPESS, temos os dados ilustrados no
gráfico abaixo, corroborando a mesma direção de análise.
CBAS e ENPESS
Religião Outros temas
2% 3%
Quilombo/quilombolas
6%
Movimento social
7%
No que se refere ao que denominamos “outros temas”, estão os trabalhos cuja temática
aparece apenas uma vez, tais como Processo migratório e integração de imigrantes e Raça,
etnia e dominação. Estes representam 3% do total encontrado.
Ressaltamos ainda, que em alguns trabalhos há mais de um tema em destaque. É o
caso, por exemplo, da discussão sobre a população indígena e o seu atendimento pelo Centro
de Referência de Assistência Social (CRAS). Embora a população indígena seja a população-
alvo do atendimento aí prestado, a ênfase é sobre a política pública que lhe é prestada. E,
neste caso em particular, a política de assistência social. Verificamos que em quase a
totalidade dos trabalhos, há outros elementos sendo discutidos transversalmente ao tema
principal.
A discussão que aparece em maior volume (28%) trata sobre “políticas públicas”,
sendo as análises predominantemente relacionadas ao debate contemporâneo acerca das ações
137
afirmativas com recorte de raça, etnia e gênero, regularização das terras quilombolas, saúde
da população negra, assistência social e educação.
A mulher negra, a juventude e a violência foram os principais elementos discutidos
nas produções que tiveram como ênfase a “população negra” (25%). As análises pautaram
múltiplos aspectos da vida dessa população, desde os aspectos culturais constitutivos das
identidades coletivas até os aspectos que revelam a incidência do racismo na perpetuação de
relações sociais hierárquicas e de aprofundamento da desigualdade racial.
No que se refere às produções que deram ênfase à temática “raça, etnia e Serviço
Social”, ressaltamos que, para fins de análise de nossa pesquisa, este recorte foi feito no
intuito de dar mais visibilidade ao interesse dos(as) pesquisadores(as) que evocavam
diretamente o Serviço Social e essa sua relação com essa discussão, o que representa 19% do
total dos trabalhos apresentados. Por se tratar de dois encontros voltados para os(as)
profissionais de Serviço Social (CBAS e ENPESS), há de se considerar que as produções
teóricas têm relação com essa categoria, e que, direta ou indiretamente, contemplam o campo
de interesse investigativo do Serviço Social.
Os elementos que mais incidem nas produções que têm o Serviço Social como tema
principal: Serviço Social e garantia de direitos; relações étnico-raciais e formação em Serviço
Social; ações afirmativas e Serviço Social; Serviço Social, desigualdades sociais e
discriminação racial; Serviço Social e questão étnico-racial; Serviço Social e desigualdade de
gênero e etnia; gênero e etnia no curso de Serviço Social.
Foram encontrados 10% da produção da temática com ênfase no tema “população
indígena”. Aqui os principais elementos presentes nas análises são: saúde dos povos
indígenas, violência contra a mulher, política de assistência social, afirmação identitária,
juventude indígena, políticas públicas. Os temas chamam a atenção para os diversos aspectos
das culturas indígenas, tais como a autoafirmação identitária e a participação nos espaços de
controle social. Entretanto, é sobre as políticas de saúde e de assistência social que a maioria
das produções desenvolvem suas reflexões.
As diversas formas organizativas de resistência ao racismo e suas expressões
constituem os elementos centrais nas produções que dão ênfase aos “movimentos sociais”
(7%): as organizações de mulheres negras, os cursos de pré-vestibulares para negros,
remanescentes de quilombos e a discussão sobre a importância do movimento negro na luta
política.
Em relação às produções que dão ênfase ao tema “quilombo/quilombola” (6%), os
temas discorreram sobre o cotidiano e as experiências de vida dos(as) quilombolas e sobre as
138
Ainda no campo das produções teóricas verificamos de que forma a temática étnico-racial
é abordada nas publicações das revistas Inscrita e Temporalis, produzidas pelo Conselho
Federal de Serviço Social (CFESS) e Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa de Serviço
Social (ABEPSS), respectivamente. Estas produções teóricas são resultado de processos de
investigação e sistematização de experiências no âmbito do Serviço Social. Assim, coube-nos
fazer a seguinte pergunta: em que medida e com que volume as produções veiculadas pelas
revistas das entidades mais representativas da profissão, no âmbito da formação e da defesa
do exercício profissional, vem expressando a relevância da temática étnico-racial para o
conjunto da categoria profissional?
As revistas Inscrita e Temporalis foram os periódicos escolhidos para o nosso estudo
porque são produções que gozam de legitimidade teórica e política. Todavia, há inúmeros
periódicos de igual importância no que diz respeito às publicações das produções de Serviço
Social.111
111
Destacamos os seguintes periódicos: Revista Katalisys publicada pelo Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da UFSC; Revista Praia Vermelha publicada pela ESS/UFRJ; Revista Em Pauta publicada pela
FSS da UERJ; Revista Ser Social publicada pelo Programa de Pós-graduação em Politica Social do
Departamento de Serviço Social/UNB; Revista Gênero publicada pelo Programa de Estudos Pós Graduados em
Política Social da UFF; Serviço Social em Revista publicada pelo Pós Graduação em Serviço Social e Política
Social da UEL; Revista O Social em Questão publicada pelo Programa de Pós-graduação do Departamento de
Serviço Social da PUC/RJ; Revista Textos e Contextos publicada pelo Programa de Pós-graduação em Serviço
139
Para fins de análise, os dados expressos nos quadros e gráficos abaixo correspondem às
publicações das revistas Inscrita e Temporalis até o ano de 2012. Os números das edições
foram agregados pelos anos de sua publicação.
Em relação à revista Inscrita,112 do seu primeiro número publicado, no ano de 1997, ao nº
13, publicado no ano de 2012, encontramos o seguinte resultado:
20
19
18 18 18
16
Quantidade de artigos
14
12
11
10 10 10 10 10 10
9
8
6
4
2
0
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2004 2007 2009 2012
Fonte: Elaboração da autora, a partir de dados da pesquisa realizada para tese
nas publicações da Inscrita, revista do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) – período: 1997-2012
Social da FSS/PUCRS; Revista Politicas Públicas publicada pelo Programa Pós-graduação em Politicas Públicas
do Departamento de Serviço Social da UFMA.
112
A revista Inscrita teve nos anos de 1998, 1999 e 2009 dois números publicados; nos demais anos, apenas uma
publicação.
140
Constatamos que somente dois artigos discutindo o tema étnico-racial foram publicados
pela revista Inscrita em dez anos. Ou seja, num total de 125 artigos, somente dois abordaram
o tema, o que corresponde a um percentual de 1,6%.
40
35 35
30 30
29 28
Total de artigos
25
20 21 20
19
15 15 16 15
14 14
10
0
2000 2001 2002 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Fonte: Elaboração da autora, a partir de dados da pesquisa realizada para tese nas publicações da Temporalis,
revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS – período: 2000-2012
141
Assim como na revista Inscrita, a Temporalis apresentou também apenas dois artigos
abordando o tema “Questão étnico-racial”. Ou seja, em 13 anos de artigos publicados na
Temporalis, somente 0,74% corresponderam a essa temática.
Entendendo o espaço da pesquisa como fundamental para a valorização da produção
do conhecimento e para a construção de ferramentas teóricas e políticas que possibilitem uma
leitura crítica da realidade social, constamos que há uma lacuna entre o que já se alcançou sob
o ponto de vista das deliberações do conjunto da categoria, dentre elas o Código de Ética de
1993 e as Diretrizes Curriculares do curso de Serviço Social de 1996, e a sua efetiva
concretização no campo da investigação sobre a temática étnico-racial no Serviço Social.
Identificar os possíveis fatores que têm contribuído para esse distanciamento, tanto no âmbito
do processo de formação como no efetivo exercício profissional, se faz necessário, na
perspectiva do fortalecimento do projeto ético-político do Serviço Social. E nesse aspecto,
Netto (2010) corroborando com os princípios postulados em nosso Código de Ética, diz que:
113
Os resultados da Pesquisa foram obtidos a partir de dados colhidos através da aplicação de um questionário,
respondido pelos sujeitos da pesquisa – assistentes sociais, participantes dos eventos comemorativos ao dia da(o)
assistente social, no mês de maio de 2004, inscritos no CRESS e com registro ativo. O questionário incluiu
questões fechadas – com opções definidas – e questões abertas, nas quais o informante poderia acrescentar mais
alternativas, além das previamente oferecidas (CFESS, 2005, p. 14). Em relação ao quesito pertença étnico-
racial, a pesquisa obteve os seguintes resultados: branca, 72,14%; preta/negra, 20,32%; morena, 1,05%;
142
mestiça, 086%; mulata, 0,38%; índio, 0,38%; amarela, 0,38%; caboclo, 0,19%, afrodescendente, 0,10%;
japonesa/branca , 010% e Brasilis, 0,10% (CFESS, 2005, p. 21).
114
Dados disponibilizados pelo CFESS em atenção à nossa solicitação.
143
raça/etnia, o que, por sua vez, ocorreu em todos os quesitos do questionário. Vale ressaltar,
contudo, que os que não responderam sobre gênero, ou seja, se eram do sexo feminino ou
masculino, representaram menos de 20%, mais especificamente, 18,2% do total dos inscritos
(3.261). Mas, no que se refere à condição étnico-racial, esse número foi mais expressivo,
25% não responderam, e em relação à orientação sexual o número foi ainda maior, 26,2% não
responderam.
Poderíamos inferir os possíveis motivos pelos quais o preenchimento desses quesitos
não ocorreu. Por exemplo, o respondente se esqueceu de marcar a resposta, ou teve dúvida
sobre a alternativa que devia marcar ou, ainda, não se identificou com nenhuma das respostas
disponíveis. Tudo isso é possível e é comum acontecer em qualquer pesquisa que utiliza o
questionário como instrumento de investigação. Mas podemos também considerar a
possibilidade de que as lacunas relacionadas principalmente aos quesitos orientação sexual e
raça/etnia estejam associadas à dificuldade que temos em nos posicionar, seja em relação a
nossa sexualidade, seja em relação a nossa condição étnico-racial. Esses marcadores sociais
expressam identidades, que podem ser aceitas positivamente ou não pelo conjunto da
sociedade. Considerando que ainda vivemos sob a égide das culturas heteronormativa115 e do
“branqueamento”, estar fora desses padrões é estar mais suscetível a sofrer
diversas formas de discriminação que, em uma escala de “tolerância”, podem se manifestar
por meio de múltiplas violências, que vão desde uma “inocente” piada racista ou homofóbica
a práticas de torturas e à eliminação definitiva do Ser Humano, a morte.
115
Heteronormatividade refere-se a uma cultura predominante em nossa sociedade, que tem nas relações
afetivossexuais a heterossexualidade como norma e padrão a ser seguido.
144
O fato de hoje o Estado criar políticas de proteção às mulheres, aos indígenas, aos
negros, quilombolas, pessoas com deficiência, entre outros, coloca aos/às assistentes
sociais a necessidade de requalificar o seu olhar para essas questões. As políticas de
combate às iniquidades e de promoção da igualdade são direitos conquistados e
espaço de atuação profissional (...). Definitivamente, está na hora de a categoria
enfrentar esse desafio. Penso que a melhor estratégia é o diálogo, o debate. Não falar
ou não enfrentar os preconceitos acaba por não politizar o debate. E aí não
avançamos efetivamente para a consolidação da democracia (ALMEIDA, 2010, p.
3).
Poderíamos assim nos perguntar: Seria o mito da democracia racial, que ainda está
tão fortemente presente no imaginário social brasileiro, um fator a ser considerado em
nossas análises acerca da ausência ou pouca produção acerca da temática étnico-racial no
116
O autor define relações horizontais como sendo a socialização inter-racial, especialmente entre pessoas de
mesma classe social (Telles, 2003, p. 3).
117
Já sobre relações verticais, o autor define como sendo aquelas entre diferentes classes sociais e indicam
relações de poder socioeconômico (Telles, 2003, p. 3).
146
âmbito do Serviço Social? Seria este um elemento importante para justificar a dificuldade de
incorporação da categoria raça/cor nas pesquisas realizadas pelos(as) pesquisadores(as) em
Serviço Social? Seria esta a razão para as lacunas existentes acerca do quesito raça/cor em
formulários e/ou fichas sociais utilizados como instrumento de trabalho nos diversos espaços
sócio-ocupacionais? Seria esta a resposta para que a questão étnico-racial ainda não tenha
sido apropriada como uma mediação importante para uma apreensão critica das relações de
opressão e exploração da classe trabalhadora?
Estas entre outras questões poderiam ser aqui formuladas, não com o objetivo de obter
respostas prontas e acabadas ou de se chegar a alguma constatação extraordinária. Mas,
sobretudo, com vistas a problematizar o debate sobre a relevância da temática étnico-racial no
processo de fortalecimento das lutas contra a discriminação, opressão e exploração. Lutas
essas que são travadas em diversas trincheiras: no cotidiano da intervenção profissional, nos
espaços de organização política da categoria, nos fóruns de militância em defesa de políticas
públicas e por condições dignas de trabalho, nos movimentos sociais de defesa de direitos,
nos partidos políticos e nos espaços de controle social de políticas públicas. Todavia, é lá no
espaço da formação profissional que esse processo se inicia, com a instrumentalização
teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política que considere a temática étnico-racial
como um determinante, dentre outros, da realidade de desigualdade sobre a qual iremos
intervir.
Ainda sobre a ausência ou inexpressiva produção sobre a temática étnico-racial, há
outro elemento que podemos considerar como importante a esse debate. A aproximação com
o pensamento marxista possibilitou o processo de tentativa de ruptura com o Serviço Social
de tradição conservadora, através do chamado “Movimento de Reconceituação” do Serviço
Social. E é a partir da teoria social crítica que os princípios postulados no Código de Ética
profissional foram construídos, e, posteriormente, as diretrizes curriculares do curso de
Serviço Social. Valores como o reconhecimento da liberdade como valor ético central e das
demandas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos
sociais, e, ainda, a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação/exploração de classe, etnia e gênero expressam
inegavelmente perspectiva marxista. Iamamoto (2001), no entanto, aponta alguns elementos
que deturpam ou reduzem a compreensão acerca do método e da teoria social crítico-dialética.
Segundo a autora, o encontro do Serviço Social com a perspectiva crítico-dialética se deu por
meio da relação político-partidária. E esta relação acabou, em grande medida, gerando uma
identidade entre a militância política e prática profissional. Ao desconsiderar as diferenças
147
existentes entre ambas, uma análise mais criteriosa de suas mútuas relações foi
impossibilitada (IAMAMOTO, 2001, p. 210).
Iamamoto (2001) tece críticas a outra característica dessa aproximação inicial do
Serviço Social com a tradição marxista. Essa relação não ocorreu a partir de fontes clássicas e
contemporâneas, e sim de manuais de divulgação do marxismo oficial e de autores utilizados
pela militância política, “cujas produções foram seletivamente apropriadas, numa ótica
utilitária, em função de exigências prático-imediatas, prescindindo-se de qualquer avaliação
crítica” (IAMAMOTO, 2001, p. 211). Ademais, esse contato inicial do Serviço Social com o
marxismo sofreu forte influência do estruturalismo de Althusser.
A autora chama a atenção para o fato de como a Reconceituação foi moldada aos
múltiplos “marxismos”, deixando de fora o próprio Marx, “foi a aproximação a um marxismo
sem Marx” (IAMAMOTO, 2001, p. 211). Essa configuração teórica, que trazia fortes traços
ecléticos, revelou uma ‘invasão do positivismo’ no discurso marxista do Serviço Social”
(IAMAMOTO, 2001, p. 211).
Sobre essa “invasão” no marxismo, Quiroga (1991) aponta alguns elementos que se
apresentam de forma deformada nas várias visões da obra de Marx:
Iamamoto (2001) também chama a atenção para essa questão quando diz que:
118
Carta de Engels a Bloch, de 21 de setembro de 1880, em [Karl Marx e Friedrich Engels] Ausgewahlte Briefe,
cit., 374; MEW, v. 37, p. 467. De modo semelhante na carta a Mehring, de 14 de julho de 1893 em ibidem, p.
405; MEW, v. 39, p. 96s (Lukács, 2012, p. 408).
149
“Para responder, portanto, pelos seus atos, o sujeito ético deve conhecer as
alternativas possíveis e fazer escolhas livres e conscientes. Isso traz a dimensão da
responsabilidade das agências de formação e das entidades da categoria, em termos
da capacitação continuada e de sua função fiscalizadora, na perspectiva pedagógica
reafirmadora das requisições humano-genéricas.”
Marlise Vinagre119
119
Trecho retirado do artigo “Ética, direitos humanos e o projeto ético-político do Serviço Social”, de autoria de
Vinagre (2014, p. 203).
150
Além de registrar as lacunas existentes sobre o tema raça e etnia no Serviço Social, o
grupo apresenta também as propostas para a superação dessa realidade:
Há, pelo menos, 25 anos, podemos afirmar que já foi apontada como necessária a
apropriação da discussão étnico-racial pelo Serviço Social, ou seja, desde o ano de 1989.
Anos mais tarde, Ribeiro (2004) entrevistou as assistentes sociais que discutiram a temática
étnico-racial naquele VI CBAS e, quando questionadas sobre as motivações que as levaram a
abordar esse tema, a assistente social Suelma Inês Alves disse:
Vejo a conexão [entre a produção teórica e as políticas para gênero e raça dentro do
serviço social] a partir do momento em que as assistentes sociais, brancas e negras,
são obrigadas a, cada vez mais, mudarem a forma de intervir na realidade. [...] não é
possível exercer a atividade profissional sem de fato ter uma compreensão critica da
realidade, sem querer compreender o porquê das contradições sociais, sendo estas
matéria-prima do nosso trabalho” (pp. 154-155).
pouca relevância dada a essa discussão não cederam lugar ao ceticismo e à resignação; ao
contrário, têm ganhado mais força e visibilidade nos espaços de organização da categoria. É o
que podemos constatar através de iniciativas do conjunto CFESS/CRESS, da ABEPSS e da
Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO).120
Um marco importante no Serviço Social sobre o debate do tema étnico-racial foi a
promulgação do Código de Ética profissional de 1993, no qual a temática é expressamente
posta em dois dos seus princípios:
As formas de dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero não são apenas
manifestas na esfera privada das empresas [...], da família, das relações de
vizinhança e comunitárias. Elas são reproduzidas também nas instituições que
educam para o consenso a partir das políticas sociais organizadas pelo Estado, a
partir de mecanismos legais e burocráticos que fracionam os processos de trabalho
institucionais nos quais se inserem os/as assistentes sociais (ALMEIDA, N.L.T.
2013, p. 105).
120
A Executiva Nacional das/dos Estudantes de Serviço Social (ENESSO) é a entidade máxima de representação
das/dos estudantes de Serviço Social do país, sem fins lucrativos, tendo suas coordenações regionais e nacional,
eleitas anualmente no Encontro Regional de Estudantes de Serviço Social (ERESS) e no Encontro Nacional
(ENESS), respectivamente (ENESSO, 2013).
153
Chamo a atenção para a força viva das práticas discriminatórias, pois estas atitudes
são aliadas do conservadorismo e também responsáveis por naturalizar as diferenças
e transformá-las em desigualdades (...). A naturalização é a mediação para a
essencialização da vida social. É por assim dizer, a perpetuação da hegemonia do
capital sob a experiência de vida dos sujeitos sociais concretos: negros(as),
índios(as), população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis),
crianças, idosos, pessoas com deficiência e o legado religioso não hegemônico
(ALMEIDA, M.S. 2013, p. 138).
Além desses princípios que citam de forma mais direta a temática étnico-racial, há o
outro que também convoca os(as) profissionais de Serviço Social a estarem atentos(as) a
manifestações de preconceitos e discriminação: Empenho na eliminação de todas as formas
de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e à discussão das diferenças. Sobre este princípio, Almeida, G. (2013) tece o
seguinte comentário:
Podemos considerar que essa deliberação em defesa das Ações afirmativas para a
população historicamente discriminada por sua condição étnico-racial tem grande importância
para o processo de desnaturalização das desigualdades raciais que, como vimos, são, quase
sempre, invisibilizadas no cotidiano da intervenção profissional. Ademais, contribui para que
essa discussão também ganhe força no âmbito da formação em Serviço Social.
No último Encontro Nacional do Conjunto CFESS/CRESS (42º Encontro), ocorrido
em setembro de 2013, na cidade de Recife – PE, algumas deliberações dizem respeito à
discussão étnico-racial e devem ser implementadas pelo Conjunto:
121
As ações afirmativas já vinham sendo discutidas pela sociedade brasileira há pelo menos nove anos, se
considerarmos como marco referencial a realização da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata e a implementação da política
de cotas nas universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro no ano de 2001.
122
Nessa mesa-redonda, tivemos a oportunidade de participar como palestrante convidada pela direção do
CFESS.
156
Além das deliberações, o Encontro também elege ações que devem fazer parte de uma
agenda permanente do Conjunto CFESS/CRESS. Da agenda do 42º Encontro, destacamos as
que incorporam a temática étnico-racial:
Outro aspecto a ser considerado como avanço desse debate no Serviço Social é a
política de comunicação do CFESS, que, através da publicação CFESS Manifesta, utiliza,
como forma de dar visibilidade e contribuir com a ampliação do debate junto à categoria
profissional, datas comemorativas e/ou de referência sobre temas sociais diversos, tais como o
Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, Dia
Internacional da Mulher, Dia da Luta Indígena, Dia Nacional do(a) Idoso(a), Dia Latino-
Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, Dia
Nacional da Consciência Negra.
O CFESS Manifesta do dia 20 de novembro de 2010 teve como tema Diversidade,
Equidade e Igualdade: a questão racial na agenda do Serviço Social. Esta edição publicou a
entrevista com a assistente social e doutora em Serviço Social Magali da Silva Almeida. A
profissional relatou a experiência como representante do CFESS na Comissão Intersetorial de
Saúde da População Negra (CISPN) do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Na sua
avaliação, a participação do Conselho nessa Comissão tem um significado político importante
no que tange a sua relação com os movimentos sociais: “A representação do CFESS é
pioneira e revela o amadurecimento de uma categoria que vem superando seus limites e
157
contradições internas e cumprindo sua agenda política, articulando-a com as lutas por direitos
em consonância com os movimentos sociais” (ALMEIDA, 2010).
No ano seguinte, o tema abordado foi Zumbis e Dandaras contra a desigualdade
racial. Destacou os índices de desigualdades raciais no país, ressaltou a importância de dar
visibilidade aos ícones da história de luta contra o preconceito e o racismo no Brasil e
convocou a categoria profissional a refletir sobre essa realidade:
Já na edição de 2013, com o tema A violência tem classe e cor, foi discutida a
violência sofrida pela população negra em todas as esferas da vida social:
Como podemos constatar, a discussão étnico-racial integra uma área mais ampla de
pesquisa: Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Geração,
Sexualidades. Cada eixo dessa grande área possui uma coordenação, que busca funcionar de
forma articulada. A escolha do(a) coordenador(a) se dá durante a realização do ENPESS, e há
uma coordenação geral da grande área, que é indicada pela ABEPSS.
Cada GTP define o seu campo de estudo por meio de uma ementa elaborada pela
coordenação e pelos membros integrantes da área temática. Destacamos do GTP “Serviço
Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Geração, Sexualidades” a
ementa do eixo que dá ênfase ao tema “Raça/Etnia”:
Os GTPs devem ter autonomia, ainda que vinculados de forma orgânica à ABEPSS. E,
dentre outros objetivos, devem buscar: romper com situações de isolamento dos
pesquisadores e de suas produções, coletivizar debates de ponta, pautar temas relevantes,
incidir na mudança das subáreas hoje vigentes na Capes e no CNPq (ABEPSS, 2010, p. 5).
159
Visam, ainda, estimular a investigação a partir dos eixos temáticos, por meio de uma rede de
pesquisadores, bem como:
Podemos identificar que, embora ainda não tivesse a sistematização que tem hoje, o
MESS, através de sua representação,123 já apontava, por ocasião do VI CBAS (Congresso
Chico Mendes) no ano de 1989, a importância da discussão étnico-racial, mais
especificamente sobre o racismo, para as reflexões dos estudantes: “O capitalismo gerou
formas além da exploração direta para se manter em funcionamento. Nesse sentido, os
estudantes pretendem implementar uma discussão sobre os demais aspectos da lógica do
capitalismo, como a sexualidade, a opressão da mulher, o racismo [...].” (RODRIGUES,124
1989, p. 153 – grifo nosso).
É imprescindível a participação do MESS nas ações empreendidas pelo conjunto da
categoria profissional, principalmente junto à ABEPSS. Nesse sentido, se a sua participação
foi fundamental no processo de elaboração das diretrizes curriculares, hoje sua contribuição é
indispensável, na perspectiva da implementação das diretrizes em sua integralidade. Portanto,
defender como pauta de seus encontros e fóruns em geral o debate sobre a questão étnico-
racial é parte desse compromisso, bem como defender esse ponto de pauta nos fóruns de
representação profissional, haja vista a importância política que a ENESSO ocupa nos espaços
representativos da categoria profissional.
É possível, assim, observar que ao longo da trajetória político-acadêmica do Serviço
Social há avanços significativos em relação à discussão étnico-racial. Contudo, tais avanços
ainda são bem menores que os desafios postos à garantia da inserção desse tema, com a sua
complexidade e magnitude, nos currículos, nas produções teóricas e publicações de Serviço
Social.
123
Naquele período, era a Subsecretaria de Serviço Social da União Nacional dos Estudantes (SESSUNE) que
representava o MESS.
124
Coordenadora da Subsecretaria de Serviço Social da União Nacional dos Estudantes (SESSUNE).
161
Ademais, é preciso um olhar crítico sobre a realidade que nos cerca. Não é
simplesmente o volume das produções sobre o tema que nos dirá se a sua relevância para o
Serviço Social é maior ou menor. Mas é, sobretudo, na realidade concreta dos sujeitos sociais
que encontraremos os elementos que nos dizem explicitamente o quão importante é a
apreensão crítica sobre a temática étnico-racial. Alguns desses elementos são identificados
por Almeida, G. (2013), quando nos chama a atenção para uma realidade que nos é bem
próxima:
É preciso olhar criticamente para o fato de que, embora nossas turmas de graduação
tanto em IES públicas quanto privadas comportem um grande contingente de jovens
pardas e negras, o número de pessoas com estas características declina à medida em
que voltamos nosso olhar aos cursos de pós-graduação stricto sensu. O número
também declina se olharmos para os espações ocupacionais de maior prestígio da
profissão, como por exemplo, a carreira docente, onde não só o contingente de
mulheres negras diminui drasticamente, como o de homens socialmente brancos
cresce visivelmente. Se recusamos, de fato, explicações determinísticas de base
psicológica e individualizante, precisamos recorrer às Ciências Sociais para
compreender tal fenômeno e cortar a própria carne de nossas atitudes cotidianas
(ALMEIDA, G., 2013, p. 84).
Para que enxerguemos com o olhar de quem quer ir para além da superfície aparente
daquilo que se apresenta como real, precisamos nos despir do senso comum e de nossos
próprios preconceitos e certezas, construídas a partir da crença na democracia racial e/ou na
ideia meramente economicista dos determinantes sociais.
Desta forma, “não podemos olhar o futuro com descrença nem com os olhos
semiabertos” (BOGO, 2010, p. 234). É com a criticidade necessária para ver além da
aparência fenomênica, essencialista, determinista e parcial que devemos buscar olhar e
intervir na realidade que se nos apresenta!
162
Considerações Finais
Buscamos com essa tese contribuir com o aprofundamento do debate sobre a temática
étnico-racial no processo de formação profissional com vistas ao fortalecimento do projeto
ético-político profissional, que tem como compromisso defender os direitos da classe
trabalhadora, combater todas as formas de discriminação e opressão, valorizar a diversidade
humana e lutar pela construção de uma sociabilidade sustentada em valores que buscam a
igualdade substantiva e a total emancipação dos sujeitos – a emancipação humana.
Tendo as diretrizes curriculares da ABEPSS como fio condutor de nossa “empreitada
investigativa”, iniciamos essa desafiadora tarefa apresentando um pouco da história de
resistência e de organização da população negra. Optamos por esse percurso por dois motivos.
Primeiro, nas diretrizes curriculares a temática étnico-racial está inserida no Tópico de Estudo
Movimentos Sociais e Classe Social. Sua localização nesse tópico nos parece indicar que o
estudo sobre esse tema deve se dar tendo como orientação o movimento de resistência dos
grupos historicamente discriminados por sua condição de classe, de gênero e raça/etnia.
Conforme conteúdo desse tópico, o estudo contempla os movimentos sociais em suas relações
de classe, gênero e étnico-raciais, bem como o estudo sobre Identidade e subjetividade na
construção dos movimentos societários (ABEPSS, 1996).
Segundo motivo: essa é uma importante oportunidade de apresentarmos ao Serviço
Social um pouco da história de luta e conquistas do movimento negro, sua trajetória, seus
desafios e contradições. Utilizamos os mais importantes autores que tematizaram a discussão
étnico-racial – sob diferentes matizes teóricas –, tais como Abdias do Nascimento, Antonio
Sergio Guimarães, Clovis Moura, Elisa Larkin do Nascimento, Florestan Fernandes,
Kabengele Munanga, Lélia Gonzalez, Lilia Schwarcz, Maria Célia Marinho Azevedo, Regina
Pahim Pinto, Thomas Skidmore, entre outros. Todos os autores, por diferentes caminhos
teórico-metodológicos, oferecem valorosas contribuições para o estudo sobre a história do
125
Citação de Ademar Bogo no livro Identidade e lutas de classes (2010, p. 234)
163
complementar. Não penso que seja razoável ainda termos currículos que não garantam o
acesso ao conhecimento sobre a temática étnico-racial como conteúdo obrigatório. As
diretrizes curriculares da ABEPSS já estão em vigor há quase vinte anos e as que determinam,
através da Resolução do CNE nº 1/2004, a inclusão do estudo das relações étnico-raciais em
todos os sistemas de ensino, estão completando neste ano dez anos de existência. Não se
justifica, portanto, a não incorporação desse tema nas disciplinas de caráter obrigatório.
Ao longo da tese pudemos demonstrar inúmeros fatores que justificam a importância
dessa discussão pelo Serviço Social como conteúdo imprescindível no processo de formação
profissional. Assim, acreditamos que já não é mais possível aceitar que esse tema seja
abordado como conteúdo secundário ou de menor relevância. A questão étnico-racial se
constitui como um elemento estruturante das relações sociais e, assim, deve ser apreendida
com profundidade e em toda a sua complexidade histórica.
Corroboramos com Yazbek (2009) quando afirma que são múltiplas as mediações que
constituem as relações sociais que envolvem o processo de produção e reprodução social da
vida. Diz a autora:
E assim, chega-se ao final com a certeza de que, agora, foi alcançada a aptidão para
o começo. Mas, se assim é, o começo é o começo, o fim torna-se suposto, e a
jornada pode prosseguir, melhor e mais ampla. Fecha-se um círculo, e
provisoriamente, de um círculo de círculos (J. CHASIN apud SOUZA, 2004, p.
180).
Entretanto, temos consciência dos limites desta tese, que, certamente não esgota toda a
profundidade que o debate sobre o tema étnico-racial suscita e demanda no âmbito da
pesquisa e de outras atividades acadêmicas. Mas ressaltamos o esforço por nós empreendido
no sentido de garantir o rigor investigativo e a análise crítica do tema estudado. Esperamos
com isso que o estudo realizado contribua para uma melhor apreensão deste tema e que outros
pesquisadores se sintam provocados a dar continuidade ao que alcançamos até aqui,
ampliando e aprofundando o conhecimento sobre a questão étnico-racial e o Serviço Social.
Não tivemos a pretensão de esgotar as reflexões em torno da apropriação da discussão
étnico-racial pelo Serviço Social, mas apontar elementos que possam contribuir com esse
processo em uma perspectiva de totalidade, tendo como horizonte a afirmação de direitos, o
fortalecimento do projeto ético-político profissional e, sobretudo, a construção de uma outra
sociabilidade, livre de preconceitos e de todas as formas de discriminação e opressão.
Para concluir, sem, contudo, encerrar o debate, Tonet (2012), a partir das palavras de
Marx, traduz muito do que buscamos contribuir com essa tese, embora tenhamos consciência
do seu limite e alcance: “As ideias apenas transformam a mente, o que certamente é muito
importante. Mas, para que transformem a realidade, é necessário que elas se tornem força
material e isso se dá através da ação prática” (TONET, 2012, p. 85).
167
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185
ANEXOS
186
SUMÁRIO
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana
188
Apresentação do MEC
A constituição da Secad traduz uma inovação institucional. Pela primeira vez, estão
reunidos os programas de alfabetização e de educação de jovens e adultos, as coordenações de
educação indígena, diversidade e inclusão educacional, educação no campo e educação
ambiental. Esta estrutura permite a articulação de programas de combate à discriminação
racial e sexual com projetos de valorização da diversidade étnica. Um dos seus objetivos é
tornar a multiplicidade de experiências pedagógicas dessas áreas em modos de renovação nas
práticas educacionais. Mais do que uma reunião de programas, a tarefa da nova secretaria é
articular as competências e experiências desenvolvidas, tanto pelos sistemas formais de
ensino como pelas práticas de organizações sociais, em instrumentos de promoção da
cidadania, da valorização da
diversidade e de apoio às populações que vivem em situações de vulnerabilidade social.
Para democratizar a educação, é preciso mobilizar toda a sociedade. O MEC, por
intermédio da Secad, tem a missão de promover a união de esforços com os governos
estaduais e municipais, ONG’s, sindicatos, associações profissionais e de moradores,
contando com a cooperação de organismos internacionais para ampliar o acesso, garantir a
permanência e contribuir para o aprimoramento de práticas e valores dos sistemas de ensino.
A presente publicação, parceria entre o Ministério da Educação e a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, tem o mérito de trazer ao conhecimento de
todos os setores interessados da sociedade, questões, informações, bem como os marcos
legais das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino da História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, de acordo com a
homologação, em 18 de maio de 2004, do Parecer 03/2204, de 10 de março, do Conselho
Pleno do CNE aprovando o projeto de resolução dessas diretrizes.
Amplia-se, assim, o debate sobre tema de alta relevância na agenda do Governo Federal.
Tarso Genro
Ministro da Educação
189
Apresentação do SEPPIR
O Brasil, Colônia, Império e República, teve historicamente, no aspecto legal, uma postura
ativa e permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população afro-
descendente brasileira até hoje. O Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia
que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para
adultos negros dependia da disponibilidade de professores.
O Decreto nº 7.031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar
no período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso
pleno dessa população aos bancos escolares.
Nesse sentido, ao analisar os dados que apontam as desigualdades entre brancos e negros na
educação, constata-se a necessidade de políticas específicas que revertam o atual quadro. Os
números são ilustrativos dessa situação. Vejamos: pessoas negras têm menor número de anos
de estudos do que pessoas brancas (4,2 anos para negros e 6,2 anos para brancos); na faixa
etária de 14 a 15 anos, o índice de pessoas negras não alfabetizadasé 12% maior do que o de
pessoas brancas na mesma situação; cerca de 15% das crianças brancas entre 10 e 14 anos
encontram-se no mercado de trabalho, enquanto 40,5% das crianças negras, na mesma faixa
etária, vivem essa situação.
O governo federal, a partir da eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, passou a
redefinir o papel do Estado como propulsor das transformações sociais, reconhecendo as
disparidades entre brancos e negros em nossa sociedade e a necessidade de intervir de forma
positiva, assumindo o compromisso de eliminar as desigualdades raciais, dando importantes
passos rumo à afirmação dos direitos humanos básicos e fundamentais da população negra
brasileira.
O governo federal, por meio da Seppir, assume o compromisso histórico de romper com os
entraves que impedem o desenvolvimento pleno da população negra brasileira. O principal
instrumento, para isso, é o encaminhamento de diretrizes que nortearão a implementação de
ações afirmativas no âmbito da administração pública federal. Além disso, busca a articulação
necessária com os estados, os municípios, as ONGs (Organizações Não-Governamentais) e a
iniciativa privada para efetivar os pressupostos constitucionais e os tratados internacionais
assinados pelo Estado brasileiro.
Para exemplificar esta intenção, cabe ressaltar a parceria da Seppir com o MEC por meio das
suas secretarias e órgãos que estão imbuídos do mesmo espírito, ou seja, construir as
condições reais para as mudanças necessárias.
Por isso, a Seppir, no cumprimento de sua missão, considera importante estabelecer parcerias
para o cumprimento desse desafio, que é, de uma vez por todas, combater o racismo e
promover a igualdade de oportunidades entre os diferentes grupos étnicos que compõem a rica
nação brasileira.
Matilde Ribeiro
I – RELATÓRIO
Este parecer visa a atender os propósitos expressos na Indicação CNE/CP 6/2002, bem como
regulamentar a alteração trazida à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
pela Lei 10.639/2000, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na
Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art.
216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim
como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do
direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.
Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do Movimento Negro
ao longo do século XX, apontam para a necessidade de diretrizes que orientem a formulação
de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos
africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas,
a que tais conteúdos devem conduzir.
(1) Belém – Lei Municipal nº 7.6985, de 17 de janeiro de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no currículo
escolar da Rede Municipal de Ensino, na disciplina História, de conteúdo relativo ao estudo da Raça Negra na
formação sócio-cultural brasileira e dá outras providências”.
Aracaju – Lei Municipal nº 2.251, de 30 de novembro de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no currículo
escolar da rede municipal de ensino de 1º e 2º graus, conteúdos programáticos relativos ao estudo da Raça Negra
na formação sócio-cultural brasileira e dá outras providências. São Paulo – Lei Municipal nº 11.973, de 4 de
janeiro de 1996, que “Dispõe sobre a introdução nos currículos das escolas municipais de 1º e 2º graus de
estudos contra a discriminação”.
192
Em vista disso, foi feita consulta sobre as questões objeto deste parecer, por meio de
questionário encaminhado a grupos do Movimento Negro, a militantes individualmente, aos
Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, a professores que vêm desenvolvendo
trabalhos que abordam a questão racial, a pais de alunos, enfim a cidadãos empenhados com a
construção de uma sociedade justa, independentemente de seu pertencimento racial.
Encaminharam-se em torno de mil questionários e o responderam individualmente ou em
grupo 250 mulheres e homens, entre crianças e adultos, com diferentes níveis de
escolarização. Suas respostas mostraram a importância de se tratarem problemas,
dificuldades, dúvidas, antes mesmo de o parecer traçar orientações, indicações, normas.
Questões introdutórias
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da
população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de
reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele,
de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da
realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem
particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação e produção de
conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos
de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas,
descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação
democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade
valorizada.
É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem
na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia,
individual e coletiva, seus pensamentos. É necessário sublinhar que tais políticas têm,
também, como meta o direito dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem
cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por
professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação
para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e
capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja,
entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições
materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de
qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e
identidade dos descendentes de africanos.
193
A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os
descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e
educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas
ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para
grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa
também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda
sorte de discriminações.
Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem oferecer garantias a essa
população de ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, de valorização do
patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos
conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para
alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, bem
como para atuar como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem com
qualificação uma profissão.
Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem
como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que
compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos, raciocínios, lógicas,
gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras. Requer também que se conheça a sua
história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito
da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os
negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de
interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria
com prejuízos para os negros.
Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua
cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao
sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras,
piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de
seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os
estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em
virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados
de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra.
(2) Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana
195
Medidas que repudiam, como prevê a Constituição Federal em seu Art.3º, IV, o “preconceito
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e reconhecem
que todos são portadores de singularidade irredutível e que a formação escolar tem de estar
atenta para o desenvolvimento de suas personalidades (Art.208, IV).
É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas tensas relações
entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o
conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe
esclarecer que o termo raça é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para
informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre
outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos
sujeitos no interior da sociedade brasileira.
Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias situações, o utiliza
com um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos. É importante,
também, explicar que o emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para
marcar que essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o
são também devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de
mundo, valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática.
Os diferentes grupos, em sua diversidade, que constituem o Movimento Negro brasileiro, têm
comprovado o quanto é dura a experiência dos negros de ter julgados negativamente seu
comportamento, ideias e intenções antes mesmo de abrirem a boca ou tomarem qualquer
iniciativa. Têm, eles, insistido no quanto é alienante a experiência de fingir ser o que não é
para ser reconhecido, de quão dolorosa pode ser a experiência de deixar-se assimilar por uma
visão de mundo que pretende impor-se como superior e, por isso, universal e que os obriga a
negarem a tradição do seu povo.
Como bem salientou Frantz Fanon (3), os descendentes dos mercadores de escravos, dos
senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus
antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo,
as discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros,
construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres
humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de assumir, pelo fato de
usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou ao país.
Assim sendo, a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre brancos e
negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção
de uma sociedade justa, igual, equânime.
Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer
mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu,
reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos.
Isto não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de ser
inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas
nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas.
197
Diálogo com estudiosos que analisam, criticam estas realidades e fazem propostas, bem como
com grupos do Movimento Negro, presentes nas diferentes regiões e Estados, assim como em
inúmeras cidades, são imprescindíveis para que se vençam discrepâncias entre o que se sabe e
a realidade, se compreendam concepções e ações, uns dos outros, se elabore projeto comum
de combate ao racismo e a discriminações.
Temos, pois, pedagogias de combate ao racismo e a discriminações por criar. É claro que há
experiências de professores e de algumas escolas, ainda isoladas, que muito vão ajudar.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ser negro no Brasil não se limita às
características físicas. Trata-se, também, de uma escolha política. Por isso, o é quem assim se
define. Em segundo lugar, cabe lembrar que preto é um dos quesitos utilizados pelo IBGE
para classificar, ao lado dos outros – branco, pardo, indígena - a cor da população brasileira.
Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive da educação, para fins de seus estudos, agregam
dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já que ambos reúnem, conforme
alerta o Movimento Negro, aqueles que reconhecem sua ascendência africana.
Outro equívoco a enfrentar é a afirmação de que os negros se discriminam entre si e que são
racistas também. Esta constatação tem de ser analisada no quadro da ideologia do
branqueamento que divulga a ideia e o sentimento de que as pessoas brancas seriam mais
humanas, teriam inteligência superior e, por isso, teriam o direito de comandar e de dizer o
que é bom para todos. Cabe lembrar que, no pós-abolição, foram formuladas políticas que
visavam ao branqueamento da população pela eliminação simbólica e material da presença
dos negros. Nesse sentido, é possível que pessoas negras sejam influenciadas pela ideologia
do branqueamento e, assim, tendam a reproduzir o preconceito do qual são vítimas. O racismo
imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na dos que os discriminam.
Mais um equívoco a superar é a crença de que a discussão sobre a questão racial se limita ao
Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A escola, enquanto instituição social
responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se
posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação. A
luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer
198
Tais pedagogias precisam estar atentas para que todos, negros e não negros, além de ter
acesso a conhecimentos básicos tidos como fundamentais para a vida integrada à sociedade,
exercício profissional competente, recebam formação que os capacite para forjar novas
relações étnico-raciais. Para tanto, há necessidade, como já vimos, de professores qualificados
para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de
direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimento étnico-racial,
no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. Daí a
necessidade de se insistir e investir para que os professores, além de sólida formação na área
específica de atuação, recebam formação que os capacite não só a compreender a importância
das questões relacionadas à diversidade étnico-raciais, mas a lidar positivamente com elas e,
sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las.
uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade
multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática.
É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz
européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade
cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no
contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições
histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz
africana e européia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei 9.394/1996 provoca
bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem relações étnico-raciais,
sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem,
objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas.
-a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos
alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas
negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e
brancos no conjunto da sociedade;
trazidas pelos escravizados, bem como a produção científica, artística (artes plásticas,
literatura, música, dança, teatro), política, na atualidade .
-O ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira, se fará por diferentes meios, inclusive, a
realização de projetos de diferentes naturezas, no decorrer do ano letivo, com vistas à
divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da
história do Brasil, na construção econômica, social e cultural da nação, destacando-se a
atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação
tecnológica e artística, de luta social (tais como: Zumbi, Luiza Nahim, Aleijadinho, Padre
Maurício, Luiz Gama, Cruz e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, José
Correia Leite, Solano Trindade, Antonieta de Barros, Edison Carneiro, Lélia Gonzáles,
Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento,
Henrique Antunes
Cunha, Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Cuti, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos,
entre outros).
-O ensino de História e Cultura Africana se fará por diferentes meios, inclusive a realização
de projetos de diferente natureza, no decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo
da participação dos africanos e de seus descendentes na diáspora, em episódios da história
mundial, na construção econômica, social e cultural das nações do continente africano e da
diáspora, destacam e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana do-se a
atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação
tecnológica e artística, de luta social (entre outros: rainha Nzinga, Toussaint-L’Ouverture,
Martin Luther King, Malcom X, Marcus Garvey, Aimé Cesaire, Léopold Senghor, Mariama
Bâ, Amílcar Cabral, Cheik Anta Diop, Steve Biko, Nelson Mandela, Aminata Traoré,
Christiane Taubira).
-Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em remanescentes de
quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais.
-Apoio sistemático aos professores para elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos
e métodos de ensino, cujo foco seja a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a
Educação das Relações Étnico-Raciais.
-Mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas, estabelecimentos de
ensino superior, secretarias de educação, assim como levantamento das principais dúvidas e
dificuldades dos professores em relação ao trabalho com a questão racial na escola e
encaminhamento de medidas para resolvê-las, feitos pela administração dos sistemas de
ensino e por Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros.
- Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino superior, centros de
pesquisa, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, escolas, comunidade e movimentos sociais,
visando à formação de professores para a diversidade étnico-racial.
- Instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupo de trabalho para discutir e coordenar
planejamento e execução da formação de professores para atender ao disposto neste parecer
quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais e ao determinado nos Art. 26 e 26A da Lei
9.394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continuada e Certificação de
Professores do MEC.
- Introdução, nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação: de
análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais
204
Estas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na medida em que procedem de
ditames constitucionais e de marcos legais nacionais, na medida em que se referem ao resgate
de uma comunidade que povoou e construiu a nação brasileira, atingem o âmago do pacto
federativo. Nessa medida, cabe aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios aclimatar tais diretrizes, dentro do regime de colaboração e da autonomia de
206
A esses órgãos normativos cabe, pois, a tarefa de adequar o proposto neste parecer à realidade
de cada sistema de ensino. E, a partir daí, deverá ser competência dos órgãos executores –
administrações de cada sistema de ensino, das escolas – definir estratégias que, quando postas
em ação, viabilizarão o cumprimento efetivo da Lei de Diretrizes e Bases que estabelece a
formação básica comum, o respeito aos valores culturais, como princípios constitucionais da
educação tanto quanto da dignidade da pessoa humana (inciso III do art.1O), garantindo-se a
promoção do bem de todos, sem preconceitos (inciso IV do Art.3O), a prevalência dos
direitos humanos (inciso II do art. 4O) e repúdio ao racismo (inciso VIII do art. 4°).
Cumprir a Lei é, pois, responsabilidade de todos e não apenas do professor em sala de aula.
Exige-se, assim, um comprometimento solidário dos vários elos do sistema de ensino
brasileiro, tendo-se como ponto de partida o presente parecer, que junto com outras diretrizes
e pareceres e resoluções, têm o papel articulador e coordenador da organização da educação
nacional.
II – VOTO DA COMISSÃO
-diante da exclusão secular da população negra dos bancos escolares, notadamente em nossos
dias, no ensino superior;
-diante da necessidade de crianças, jovens e adultos estudantes sentirem se contemplados e
respeitados, em suas peculiaridades, inclusive as étnico-raciais, nos programas e projetos
educacionais;
- diante da importância de reeducação das relações étnico/raciais no Brasil;
- diante da ignorância que diferentes grupos étnico-raciais têm uns dos outros,
bem como da necessidade de superar esta ignorância para que se construa uma sociedade
democrática;
- diante, também, da violência explícita ou simbólica, gerada por toda sorte de racismos e
discriminações, que sofrem os negros descendentes de africanos;
-diante de humilhações e ultrajes sofridos por estudantes negros, em todos os níveis de ensino,
em conseqüência de posturas, atitudes, textos e materiais de ensino com conteúdos racistas;
- diante de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em convenções, entre outros
os da Convenção da Unesco, de 1960, relativo ao combate ao racismo em todas as formas de
ensino, bem como os da Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001;
- diante da Constituição Federal de 1988, em seu Art. 3º, inciso IV, que garante a promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
207
b) recomendar que este Parecer seja amplamente divulgado, ficando disponível no site do
Conselho Nacional de Educação, para consulta dos professores e de outros interessados.
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
O Presidente do Conselho Nacional de Educação, tendo em vista o disposto no art. 9º, § 2º,
alínea "c", da Lei nº 9.131, publicada em 25 de novembro de 1995, e com fundamentação no
Parecer CNE/CP 3/2004, de 10 de março de 2004, homologado pelo Ministro da Educação
em 19 de maio de 2004, e que a este se integra, resolve:
Art. 1° A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a
serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da
Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação
inicial e continuada de professores.
§ 2° O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições de ensino,
será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento.
*CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de junho de 2004, Seção 1,
p. 11.
209
Art. 9º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
Mensagem de veto
Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes
arts. 26-A, 79-A e 79-B:
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História
da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 3º (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como 'Dia Nacional da
Consciência Negra'."