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D ireito T r ib u t á r io

H omenagem a H u g o de B r ito M achado

Planejamento Tributário
e o “Propósito Negociai”
Coordenação:
Luís Eduardo Schoueri
Organização:
Rodrigo de Freitas
Urna Teoria do Tributo
Ives Gandra da Silva Martins
Incentivos Fiscais Internacionais:
concorrência fiscal, mobilidade
financeira c crise do Estado
André Elali
A Extrafiscalidade e a Concretização
do Princípio da Redução das
Desigualdades Regionais
Luiz Alberto Gurgei de Faria
Princípios e Limites da
Tributação - Volumes 1 e 2
Coordenação:
Roberto Ferraz
Obrigação Tributária - Fato Gerador e Tipo
Fernando Aurélio Zilveti
Processo Tributário Administrativo
e Judicial - 2“ edição
José Eduardo Soares de Melo
Teoria do Sistema Jurídico
Cristiano Carvalho
Direito Tributário Empresarial
José Eduardo Soares de Melo
Teoria da Norma Tributária - 5" edição
Paulo de Barros Carvalho
Das Fontes às Normas
Riccardo Guastini
Prefácio:
Heleno Taveira Tôrres
Direito Tributário, Societário
e a Reforma da Lei das S/A
Inovações da Lei 11.638 - Volumes 1 e II
Coordenação:
Sergio André Rocha
Processo Administrativo Tributário
Estudos cm Homenagem ao Professor
Aurélio Pitanga Seixas Filho
Coordenação:
Sergio André Rocha
Direito 'IVibutário e o Novo Código Civil
Coordenação:
Betina Treiger Grupenmacher
Hugo de Brito Machado
D ireito T r ibu tário

H omenagem a H ugo de B rito M achado

Q u a r t ie r l a t in
“A Q ua rtier L atin teve o mérito de dar início a uma nova
fase, na apresentação gráfica dos livros jurídicos, quebrando a
frieza das capas neutras e trocando-as por edições artísticas.
Seu pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inúmeras
Editoras seguiram seu modelo.”
I ves G andra d a S ilva M artins

Editora Quartier Latin do Brasil


Empresa Brasileira, fundada em 20 de novembro de 2001
Rua Santo Amaro, 316 - CEP 01315-000
Vendas: Fone (11) 3101-5780
Email: quartierlatinl®quartierlatin. art.br
Site: www.quartierlatin.art.br
Coordenação:
A n d r é E lali
ProfessorAdjunto de Direito Tributário no Departamento de Direito Público da
UFRN. Mestre em Direito Econômicofeia Universidade Mackenzie e Doutor em
Direito Públicopela UFPE, com Estágio e Pesquisa no Departamento de Direito
Tributário do Instituto Max-Planck, em Munique, Alemanha. Advogado.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Doutor em Direito
Constitucionalpela Universidade de Fortaleza. Professor da pós-graduação em
Direito e Processo Tributário da Universidade de Fortaleza. Professor de
Processo Tributário da Faculdade Farias Brito. Professor de Direito Tributário
da Faculdade Christus. Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários -
ICET. Advogado.
T erence T rennepohl
Pós-Doutorpela Universidade de Harvard
Doutor e Mestre em Direito (UFPE)
Professor de Direito Ambiental em cursos de Pós-Graduação
Advogado de Dewey & LeBoeufLLP, em Nova York.

D ireito T r ibu tár io


H omenagem a H ugo de B rito M ach ado

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, verão de 2011
quartierlatin@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br
EDITORA QUARTIER LATIN D O BRASIL
Rua Santo Amaro, 3 16 - Centro - São Paulo
Contato: quartierlatin@quartierlatin.art.br
•www. quartierlatin.art. br

Coordenação editorial: Vinicius Vieira


Diagramação: Miro Issamu Sawada e Thaís Fernanda S. L. Silva
Revisão gramatical: José Ubiratan Ferraz Bueno
e Raimundo José Alves dos Santos
Capa: Miro Issamu Sawada

ELALI, André; M ACH AD O SEGUNDO, Hugo de Brito;


TRENNEPOHL, Terence (coord.). Direito Tributário -
Homenagem a Hugo de Brito Machado. São Paulo: Quartier
Latin, 2011.

ISBN 85-7674-531-3

1. Direito Tributário. I. Título

índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Direito Tributário

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por sistemas gráficos, microíilmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação
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e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610,
de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
S u m á r io

Um Mestre do Direito Tributário 23

1) T e o r ia G eral, 27

P articularidades M anifestadas pela D isciplina Jurídica


F undamental d a T ributação no B rasil, 29
C arlos C ésar Sousa C intra
1. Traços básicos do sistema tributário brasileiro..................................... 31
1.1. Exaustividade ................................................................................... 34
1.2. Rigidez............................................................................................. 37
2. Regime jurídico-constitucional tributário introduzido
pela CF/88: competências tributárias e princípios............................ 42
3. Sintomatologia do vigente sistema tributário nacional....................... 46
O T ributo, 53
C arlos R oberto de M iranda G omes
Palavras iniciais............................................................................................. 55
1. Considerações históricas: origem e evolução........................................ 55
2. Conceitos................................................................................................... 59
3. Conclusões................................................................................................. 66
Referências..................................................................................................... 67
P rincípios e C onseqüências
A T eoria da E scolha R acional como M étodo de P onderação , 69
C ristiano de C arvalho
Introdução..................................................................................................... 71
1. Análise Econômica do Direito e Escolha Racional............................. 72
1.1. Escolha Racional............................................................................. 72
1.2. Levando as conseqüências a sério.................................................. 74
2. Aplicações no Direito: a questão dos princípios.................................. 76
2.1. Valores, escolhas e renúncias......................................................... 76
2.2. O que são “princípios”, afinal?...................................................... 77
2.3. Escolha Racional, externalidades e método de
ponderação na colisão de princípios.............................................. 79
Conclusão...................................................................................................... 81
P r in c ípio d a L eg a lid a d e T ribu tá ria , 83
E dvaldo B rito
1. Prestações pecuniárias compulsórias ..................................................... 85
2. Princípios constitucionais....................................................................... 86
3. Princípio da legalidade tributária.......................................................... 88
4. Princípio da legalidade tributária na Constituição............................. 90
5. Princípio da legalidade tributária no Código Tributário Nacional.... 92
T eo r ia G eral das N orm as A ntielisivas
(R e )D efin iç ã o e C lassificação , 95
J onathan B arros V ita
1. Introdução................................................................................................. 97
2. Elisão e unidade do direito.................................................................... 98
3. As normas antielisivas a partir de uma perspectiva sistêmica:
autopoiesis e autorreferência................................................................... 102
4. As normas antielisivas: classificação...................................................... 104
4.1. Uma (re)definição do conceito elisão fiscal................................. 107
4.2. Norma tributária antielisiva específica geral e específica:
diferenciação estrutural e efeitos................................................... 112
5. Elisão como elemento pressuposto de Teoria Geral do Direito:
teoria da tradução e critérios de comparabilidade
entre sistemas jurídicos........................................................................... 114
6. Planejamento tributário e elisão fiscal.................................................. 121
7. Elisão e evasão fiscais: o problema da ilicitude.................................... 123

A P o nderaçã o d e P r in c ípio s n o D ir eito T ribu tá rio , 129


J uraci M ourão L opes F ilh o
1. Os princípios constitucionais tributários.............................................. 131
2. As modalidades de ponderação.............................................................. 136
3. As modalidades de ponderação noDireito Tributário....................... 140
4. Conclusão.................................................................................................. 143
A lgum as Q uestõ es R elacionadas à T ributação n o E stado
C o n t e m po r â n e o : A rrecadaçã o e G a sto E fic ie n t e s ,
D em o c ra c ia e S eg urança nas R ela çõ es , 145
R aquel C avalcanti R am os M ach a d o
1. Introdução................................................................................................. 147
2. Utilidade do tem a.................................................................................... 148
3. Modelo de Estado - estudo histórico para se
compreender a atualidade...................................................................... 150
4. Repercussões práticas no Direito Tributário........................................ 157
5. Conclusão.................................................................................................. 163
Bibliografia.................................................................................................... 164
E volução H istó r ic a d a T eo r ia H erm en êu tic a : D o F orm alism o
d o S écu lo XVIII a o P ó s -P o sitiv ism o , 165
S ergio A n d ré R o cha
Introdução..................................................................................................... 167
1. O formalismo jurídico na Alemanha, na Inglaterra e na França..... 167
1.1. A jurisprudência dos conceitos e o formalismo jurídico
alemão do Século X IX ................................................................... 167
1.1.1. A escola histórica do direito............................................... 167
1.2. A jurisprudência dos conceitos..................................................... 170
1.3. A escola da exegese e o formalismo jurídico francês
do Século X IX ................................................................................. 172
1.4. A escola analítica e o formalismo jurídico inglês
do Século XIX................................................................................. 174
2. Movimentos de contestação ao formalismo......................................... 177
2.1. François Gény e a livre investigação científica............................ 177
2.2. A segunda fase do pensamento de Rudolf von Ihering............ 179
2.3. A jurisprudência dos interesses..................................................... 180
2.4. O Movimento para o Direito Livre............................................. 182
3. O retorno do formalismo no século X X ................................................ 183
3.1. O positivismo jurídico de Hans Kelsen....................................... 183
3.2. O positivismo jurídico de Herbert L. A. H art........................... 186
4. A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer......................... 187
4.1. Uma crítica ao método................................................................... 188
4.2. A hermenêutica gadameriana e a hermenêutica jurídica.......... 191
4.3. Interpretação e aplicação................................................................ 197
5. A jurisprudência dos valores .................................................................. 199
6. O pós-positivismo.................................................................................... 200
6.1. O pensamento por problemas: A tópica de Theodor Viehweg.... 204
6.2. A teoria da argumentação.............................................................. 207
7. Síntese conclusiva..................................................................................... 209

2) T ributação na C onstituição F ederal e no


CODIGO TRIBUTARIO NACIONAL, 215

A lgum as P o n d er a çõ es a c erc a d a D esco n sid era çã o d o D ir e it o


À F r u iç ã o d a Im u n id a d e T r i b u t á r i a p o r P a r t e d a s E n tid a d e s
E d u c a c io n a is sem F in s L u c ra tiv o s , 217
A n d ré E l a l i
E v a n d ro Z a r a n z a
I. Objeto do estudo...................................................................................... 219
II. O requisito da motivação do ato administrativo................................. 219
III. O ônus da prova no direito tributário................................................ 224
IV. Questões relativas à imunidade da tributação - aplicabilidade,
abrangência e orientação jurisprudencial - as entidades de educação
imunes como complementares ao papel do Estado brasileiro -
o seu correto tratamento jurídico-tributário....................................... 226
V. A questão da suspensão da fruição da imunid4ade em cada
exercício, ano a ano, e não de modo genérico...................................... 230
VI. Presunção de irregularidades versus ônus da prova do lançamento...... 231
VII. Conclusões............................................................................................ 235
A n o ta ç õ e s s o b re o S iste m a T r ib u tá r io B r a s ile ir o , 237
D e n ise L u c e n a C a v a lc a n te
1. Considerações Iniciais............................................................................. 239
2. Federalismo fiscal brasileiro.................................................................... 239
3. Sistema Tributário Brasileiro na Constituição de 1988..................... 244
4. Dos princípios constitucionais tributários........................................... 247
5. Reforma tributária no Brasil.................................................................. 251
6. Considerações finais................................................................................ 253
7. Bibliografia................................................................................................ 254
A I munidade R eligiosa e as L ojas M açônicas, 257
E duardo Sabbag
1. Introdução................................................................................................. 259
2. A imunidade religiosa e a previsão constitucional.............................. 259
3. A imunidade religiosa e os conceitos de culto e tem plo..................... 261
4. A imunidade religiosa e as lojas maçônicas.......................................... 264
5. A isenção de IPTU para as lojas maçônicas ........................................ 267
6. Conclusão.................................................................................................. 267
O U so de P recatórios para P agamento de T ributos após a EC 62,269
F ernando F acury S caff
I. Delimitação do Tema............................................................................... 271
II. Rememorando Conceitos Básicos........................................................ 271
III. Quais as novidades trazidas pela EC 62 sobre o pagamento
de tributos com precatórios?................................................................. 274
IV. Conclusões.............................................................................................. 294
PIS/C O FIN S - IC M S/IPI. M aterialidades e N ão -C umulatividade .
Semelhanças e D iferenças. E feitos Jurídicos , 297
José E duardo S oares de M elo
I. Contribuições - Pressupostos................................................................. 299
II. PIS - COFINS ...................................................................................... 300
1. Operações internas............................................................................ 300
2. Importações......................................................................................... 303
III. Impostos - Características................................................................... 304
IV IC M S ...................................................................................................... 306
1. Operações internas............................................................................. 306
2. Importações......................................................................................... 306
V I P I .............................................................................................................. 307
1. Operações internas............................................................................. 307
2. Importações......................................................................................... 307
VI. Semelhanças do PIS-COFINS com ICMS-IPI -
Efeitos Jurídicos...................................................................................... 308
VII. Não Cumulatividade........................................................................... 310
1. Fundamentos....................................................................................... 310
2. P IS -C O F IN S ................................................................................. 312
3. ICMS - IP I........................................................................................ 313
4. Diferenças............................................................................................ 315
5. Semelhanças........................................................................................ 316
I nterpretação da I senção no C ódigo T ributário N acional (C TN ), 319
José Souto M aior B orges
I. Considerações introdutórias.................................................................... 321
II. Critério legislativo de interpretação literal:
como e por que ele surgiu..................................................................... 322
III. Crítica à interpretação literal de normas excepcionais..................... 324
IV. Conclusões sumárias sobre o CTN, art. 111, I I ............................... 325
A P roteção aos D ireitos do C ontribuinte e a A dequada
I nterpretação C onstitucional , 327
M aria A lessandra B rasileiro de O liveira
1. O Sistema Constitucional Tributário................................................... 330
2. O Estado Democrático de Direito - da Legalidade
à Constitucionalidade............................................................................. 338
3. O Princípio da Proporcionalidade e a Diversidade
Interpretativa Constitucional................................................................ 342
4. O Poder Judiciário e as Garantias Constitucionais
do Contribuinte...................................................................................... 345
E studos sobre a H istória do A rtigo 135 do CTN em H omenagem
ao P rofessor H ugo de B rito M achado , 349
N icolau A. H addad N eto

As E spécies T ributárias e a C lassificação dos T ributos, 377


R oberto F erraz
1. Colocação do problema........................................................................... 379
2. As espécies tributárias............................................................................. 380
3. Os empréstimos compulsórios são tributos.......................................... 386
4. As contribuições e as espécies tributárias.............................................. 387
5. Conclusão.................................................................................................. 389
3) T ributação I nternacional , 391

I n t e r p r e t a ç ã o d o s T r a ta d o s c o n t r a a D u p la T r ib u ta ç ã o I n t e r n a c i o n a l
E s tu d o em H o m e n a g e m a H u g o d e B r it o M a c h a d o , 393
I g o r M a u l e r S a n tia g o
1. Métodos de interpretação das convenções contra a dupla
tributação internacional.......................................................................... 395
2. O problema das qualificações................................................................. 402
2.1. Apresentação e definições.............................................................. 402
2.2. Primeiras considerações acerca do art. 3, alínea 2,
dos Modelos da O C D E ................................................................. 408
2.3. A interpretação do art. 3, alínea 2,do M odelo/IRC................... 413
2.4. Interpretação dinâmica dasconvenções tributárias..................... 420
Bibliografia.................................................................................................... 423

4) T r ib u t a ç ã o n a L e g is l a ç ã o , 425

A P restação d o S erviço c o m o F ato G era d o r


das C on tribu içõ es P revidenciárias
O A r t ig o 43, § 2o d a L ei 8.212/91 c o m o L ei I nterpretativa , 427
E duardo F ortunato B im
í. Introdução................................................................................................ 429
2. A prestação do serviço como fato gerador das
contribuições previdenciárias................................................................. 429
Da interpretação que evita o absurdo: estímulo à fraude/
inadimplência pela manipulação do fato gerador pelo
contribuinte e da desigualdade tributária.................................... 433
3. A tese do pagamento como fato gerador das
contribuições previdenciárias................................................................. 438
4. A refutação dos argumentos infraconstitucionais
da tese do pagamento............................................................................. 439
5. A refutação do argumento constitucional da tese do
pagamento: vedação da interpretação retrospectiva............................ 446
6. O artigo 43, § 2o da Lei 8.212/91 como norma
meramente interpretativa....................................................................... 449
7. Possibilidade de aplicação analógica da doutrina do judicial
deference (Chevron doctrine)-. Parecer 2.952/03/MPAS
e instruções normativas da Administração Tributária
(IN INSS/DC 100/03, SRP 03/05 e,
atualmente, RFB 971/09) .................................................................... 452
8. Corolário do nascimento das contribuições previdenciárias
na prestação de serviço: juros e multa a partir
da prestação do serviço........................................................................... 457
9. A falácia do reforço hermenêutico da tese do fato gerador
pagamento: suposta vedação do crédito tributário
ser maior do que o trabalhista............................................................... 459
Í0. Conclusão................................................................................................ 461
A P rogressivid ade n o I m po sto d e R enda P essoa F ísica , 465
E duardo J osé P aiva B orba
1. Introdução................................................................................................. 467
2. Fundamentos da técnica da progressividade........................................ 468
3. Noção jurídica de renda.......................................................................... 477
4. A eventual regressividade dos abatimentos vinculados
a benefícios fiscais.................................................................................... 483
B rev es C o m e n tá rio s s o b re a A p ro v a ç ã o d a P S V
(P r o p o s ta d e S ú m u la V in c u la n te ) n ° 29,489
F e rn a n d o A n tô n io C . A lv e s d e S o u z a

C o m p en sa ção e M u l t a Is o la d a : O A r t ig o 18 d a L e i n ° 10.833/03,497
G a b r ie l L a c e rd a T r o ia n e lli
1. Introdução................................................................................................. 499
2. O Artigo 18 da Lei n° 10.833/03 ....................................................... 499
3. As Alterações Trazidas pela Lei n° 11.051/04 ................................... 501
4. A Redação dada pela Lei n° 11.196/05............................................... 505
5. A Redação Dada pela Lei n° 11.488/07.............................................. 506
6. A Redação Dada pela Medida Provisória n° 472/09 ......................... 511
C o m pen sação d o C r é d it o -P r êm io d e IP I e R estrições
I n tr o d u zid a s pela L ei 11.051/04, 513
G abriel L acerda T roianelli
1. Introdução................................................................................................ 515
2. A gênese do artigo 74 da Lei n° 9.430/96 e o
âmbito da sua aplicação.......................................................................... 516
3. As regras de aproveitamento próprias do crédito-prêmio
de IPI: o Decreto n° 64.833/69........................................................... 518
4. O artigo 74 da Lei n° 9.430/96 não revogou o
Decreto n° 64.833/69 ........................................................................... 520
5. O artigo 74 da Lei n° 9.430/96 não se aplica à
compensação do crédito-prêmio de IP I............................................. 521
6. A interpretação do artigo 74 da Lein° 9.430/96................................ 526
7. Conclusão.................................................................................................. 535
A pr oveitam ento d e P rejuízos a lém d o s 30% na
E xtinção d e I n c o rpo ra d a , 537
I ves G andra da S ilva M artins

A R edução d e A líquotas d o IP I n o C ontexto


d a C rise E c o n ô m ic a 2008-2009
E xtrafiscalida de e N ormas I n d u to r a s , 557
L iana C arlan P adilha
1. Introdução................................................................................................ 559
2. O Papel Histórico dos Tributos............................................................. 561
3. IPI: Tributo Extrafiscal e Função Indutora........................................ 563
4. Redução de Alíquotas do IPI: Intervenção Estatal Frente
à Crise Econômica 2008-2009................. ........................................... 569
5. Conclusão.................................................................................................. 575
Referências Bibliográficas............................................................................ 576
O C o n c e ito d e “D e s tin a tá r io ” p a ra F in s d e
I n c id ê n c ia d o IC M S -Im p o rta ç ã o , 579
Luís E d u a rd o S c h o u e ri
I. Introdução.................................................................................................. 581
II. O ICMS-Importação............................................................................ 582
11.1. Breves notas acerca do ICMS sobre as importações.......... 582
11.2. A regra matriz do ICMS-Importação segundo
a Lei Complementar n° 87/96............................................... 587
11.3. Entrada Física ou Entrada Jurídica...................................... 589
11.4. O ICMS-Importação e conceito de “destinatário”
previsto na Constituição........................................................... 593
11.5. A Lei Complementar n° 87/96 e o critério da entrada física 597
11.6. O local do desembaraço e a entrada jurídica....................... 603
III. Conclusão .......................................................................................... 603
D ireito T ributário e Súmula V inculante, 605
M arilene T alarico M artins R odrigues
Considerações Iniciais ............................................................................. 607
Objetivos da Súmula Vinculante.......................................................... 608
Aprovação, Revisão ou Cancelamento de Súmula............................ 609
Da Reclamação ao S T F .......................................................................... 610
Críticas à Súmula Vinculante............................................................... 610
Comentários.............................................................................................. 611
A natureza jurídica da Súmula Vinculante........................................ 612
A Função da Súmula Vinculante.......................................................... 612
Edição, Revisão e Cancelamento de Súmulas Vinculantes.............. 613
Regulamentação Legislativa................................................................... 613
Conclusões................................................................................................. 615
Súmulas Vinculantes em Matéria Tributária.................................... 616
Súmula Vinculante 8 ........................................................................ 616
Súmula Vinculante 1 9 ...................................................................... 616
Súmula Vinculante 2 1 ...................................................................... 617
Súmula Vinculante 2 4 ...................................................................... 617
Súmula Vinculante 2 5 ...................................................................... 617
Súmula Vinculante 2 8 ...................................................................... 617
Súmula Vinculante 2 9 ...................................................................... 617
Súmula Vinculante 3 1 ...................................................................... 617
N o ta s s o b re a D e c a d ê n c ia d a In v a lid a ç ã o d e C o n t r a t o d e L o c a ç ã o d e
Im ó v e l U rb a n o P a r t i c u l a r p e la A d m in is tra ç ã o M u n ic ip a l e o U so d o s
C r é d ito s d o L o c a d o r P riv a d o n a C o m p e n sa ç ã o co m D é b ito s
T r ib u tá r io s E x e c u ta d o s n o M u n ic íp io d e N a ta l/R N , 619
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a
1. Considerações gerais sobre os contratos de locação que têm
a Administração Municipal como locatária........................................ 621
2. Aplicação das normas regentes da invalidação dos contratos
administrativos ao contrato de locação de imóvel urbano
particular pela Administração Municipal........................................... 622
3. Inadmissibilidade da arguição, em juízo, da nulidade de contrato
de locação de imóvel urbano privado pelo locador público.............. 624
4. Disciplina da prescrição da cobrança dos aluguéis
inadimplidos pelo locador público....................................................... 626
5. O direito do locador privado à compensação dos créditos
tributários executados pela Fazenda Pública local com
os débitos contratuais da Administração Municipal
em locação de imóvel urbano particular............................................... 629
6. Considerações finais................................................................................ 633
N ã o a p lic a ç ã o d a L e i 11.638 a o R egim e d a s M ic ro e m p re s a s -
D e s n e c e s s id a d e d e A u d ito r ia d e B a la n ç o
a o R egim e d o S u p er Sim ples, 635
W a l t e r G iuseppe M a n z i
1. Introdução................................................................................................. 637
2. Âmbito de aplicação da Lei n° 6.404/76............................................ 637
3. Enquadramento como microempresa (ME) e empresa
de pequeno porte (EPP). Opção pelo Regime do
Super Simples (LC 123/2006)............................................................ 639
4. Da obrigatoriedade de auditoria independente nos
balanços patrimoniais............................................................................. 644
5. Conclusão.................................................................................................. 648
Referências Bibliográficas............................................................................ 648
5) T ributação e P rocesso , 649

CONSTITUCIONAUDADE DA CLÁUSULA GERAL A n TIEVASÃO A t ÍPICA -


A rt. 116, P arágrafo Ú nico do C T N , 651
A ndré G ustavo B arros L eite
1. Evasão fiscal atípica.......................................................................................... 653
2. Ilicitude como característica da evasão e suas excludentes................... 655
3. A liberdade contratual do contribuinte e a imperatividade
da norma elidida - ilicitude axiológica-material................................... 657
4. Delimitação quanto à aplicação da cláusula geral antievasão atípica....... 663
4.1. Simulação e dissimulação...................................................................... 664
4.1.1. O conteúdo da dissimulação do parágrafo
único do art. 116 do C T N ...................................................... 665
5. O objeto da desconsideração dos efeitos fiscais: dissimulação
não simulada ou dissimulação na subsunção.......................................... 668
6. A segurança jurídica e a certeza legal na aplicação da
cláusula geral antevisão atípica..................................................................... 670
7. Valoração crítica - a constitucionalidade da cláusula
geral antievasão atípica................................................................................... 674
7.1. Cláusula antievasão atípica e a vedação à analogia........................ 674
7.2. A indeterminabilidade dos conceitos e a certeza das regras...... 676
7.3. A regra da legalidade como componente do
princípio da segurança jurídica........................................................... 680
8. Conclusões........................................................................................................... 682

A C oisa Julgada no P rocesso C ivil B rasileiro - D o s C onflitos


Individuais às L ides C oletivas, 685
A ndreo A leicsandro N obre M arques
1. C onceito............................................................................................................... 687
2. Coisa julgada como um dos efeitos da sentença..................................... 690
3. Coisa julgada formal e coisa julgada material.......................................... 693
4. Limites subjetivos da coisa julgada............................................................. 698
5. Limites objetivos da coisa julgada................................................................ 703
6. Coisa julgada nas ações que versam sobre interesses metaindividuais..... 705
7. À guisa de conclusão........................................................................................ 712
Bibliografia............................................................................................................... 713
Documentos Legais Consultados............................................................... 713
M andado de S egurança e D ireito T ributário, 715
E dilson P ereira N obre Júnior
I. Controle do poder de tributação............................................................ 717
II. O cabimento do w rit.............................................................................. 719
III. Legitimação passiva e competência. O papel do
Ministério Público................................................................................. 728
IV. Medida liminar e sentença................................................................... 732
V. Mandado de segurança e compensação............................................... 742
VI. A impetração coletiva............................................................................ 745
VII. A caducidade do direito à impetração............................................. 748
Referências..................................................................................................... 750
M edida L iminar em M atéria T ributária e E xigência de G arantia , 753
H ugo de B rito M achado Segundo
1. Introdução................................................................................................ 755
2. O processo e o tem po.............................................................................. 757
3. Tutela de urgência, proporcionalidade e princípios constitucionais.... 761
4. Liminar em mandado de segurança e a exigência de garantia........... 764
5. Liminar destinada à suspensão da exigibilidade e a
exigência de depósito.............................................................................. 766
6. Conclusões................................................................................................. 768
P roteção de D ireitos F undamentais e o P aradoxo da
C ontracautelaridadeno M andado de Segurança , 771
James M arins
1. Introdução histórica: as limitações ao mandado de segurança
germinam nos tempos de totalitarismo............................................... 773
2. A Lei 12.016/2009 e a o mandado de segurança como
garantia das garantias, especialmente as fundamentais...................... 779
3. A faculdade da contracautelaridade e o “ressarcimento” previstos
no art. 7, inc. III, segunda parte da Lei n° 12.016/2009................ 782
4. A falsa “consolidação jurisprudencial” sobre a contracautelaridade
que suporta a exposição de motivos da Advocacia Geral da
União e do Ministério da Justiça......................................................... 789
5. Conclusão: o Estado - quando democrático - deve acautelar o
cidadão e não ser contracautelado pelo indivíduo sob pena
de intolerável retrocesso às práticas totalitárias do
“Estado Novo” e do Código de 19 39........................................................ 793

A mplo C ontrole da L egalidade na Inscrição da D ívida A tiva, 795


M arciane Z aro D ias M artins
1. Introdução........................................................................................................... 797
2. Controle administrativo.................................................................................. 798
2.1. Controle como proteção ao cidadão................................................. 799
2.2. Autocontrole administrativo no ato de inscrição........................... 800
3. Efeitos do controle da legalidade................................................................. 803
3.1. Princípios informadores da atividade de controle........................ 804
4. Nulidade dos Atos Administrativos - V ícios.......................................... 809
5. Amplitude do Controle da Legalidade...................................................... 811
5.1. Defensores do exame dos requisitos formais(extrínsecos).......... 812
5.2. Defensores do exame dos requisitos materiais (intrínsecos)
e formais (extrínsecos)............................................................................ 814
5.3. Pontos em comum entre as duas correntes..................................... 816
5.4. Distinção entre requisitos formais (extrínsecos) e
materiais (intrínsecos)............................................................................ 817
5.4.1. Requisitos formais ou extrínsecos......................................... 818
5.4.2. Requisitos materiais ou intrínsecos....................................... 818
5.5. Possibilidade de amplo controle da legalidade pelo Procurador .... 821
6. Conclusão............................................................................................................ 829
Bibliografia............................................................................................................... 831

A P rescrição I ntercorrente no P rocesso A dministrativo F iscal, 833


Paulo R oberto L yrio P imenta
1. Delimitação do tem a ........................................................................................ 835
2. A prescrição como extinção da pretensão................................................... 835
3. A prescrição no direito tributário................................................................. 836
4. O procedimento administrativo fiscal: premissas necessárias à
compreensão do tem a...................................................................................... 837
5. A prescrição intercorrente no processoadministrativo fiscal................ 838
5.1. Correntes favoráveis à admissão da prescrição intercorrente.... 838
5.2. Nossa posição............................................................................................ 842
6. Conclusões........................................................................................................... 843

Sucumbência do V encedor na E xecução F iscal, 845


S chubert de F arias M achado
1. Introdução........................................................................................................... 847
2. Os fundamentos da responsabilidade pelos encargos do processo..... 849
3. Lançamento tributário e execução fiscal.................................................... 852
4. Conclusões........................................................................................................... 856

T ransação, S oluções A lternativas de C ontrovérsias, R acionalidade


C onjuntural e L egitimação pelo C onsenso .
N ovos paradigmas da relação entre direito tributário e economia ?, 857
Sérgio P apini de M endonça U chôa F ilho
Introdução................................................................................................................ 859
1. Direito e Economia: uma abordagem evolucionista à
luz da sociologia econômica do direito..................................................... 860
2. Direito Tributário e Econom ia..................................................................... 868
3. Transação............................................................................................................. 869
4. Medidas alternativas de resolução de controvérsias................................. 871
5. Regra geral de transação, soluções alternativas de controvérsias,
interesse público e eficiência administrativa........................................... 874
6. Da compatibilização das soluções consensuais com os demais
princípios constitucionais tributários: a questão do controle............ 880
Considerações finais .............................................................................................. 882

6) D ireito P enal T ributário , 887

D o C rime de E xcesso de E xação, 889


O ctavio C ampos F ischer
a) Considerações Iniciais..................................................................................... 891
b) Distorção na Pena-Base.................................................................................. 892
c) Tipo Objetivo: A Importância do Conceito deTributo...................... 893
d) Do Tributo Indevido................................................................................. 899
e) Tipo Subjetivo.............................................................................................. 901

7) D ireito C omparado , 909

II F ederalismo F iscale in Italia


II P rogetto e le P rospettive, 911
Cláudio Sacchetto
1. Premessa introduttiva................................................................................. 913
2. Obiettivi e caratteri delia legge n° 42 in matéria di
federalismo fiscale....................................................................................... 918
3. In particolare: 1’autonomia tributaria degli enti locali......................... 921
4. L’autonomia tributaria degli Enti Locali Comuni,
Province, Citta Metropolitane................................................................ 923
5. I fondi perequativi...................................................................................... 923
6. Luci ed ombre dei progetto di federalismofiscale italiano................. 924

O P rincípio da P roporcionalidade e as N ormas A ntielisivas no


C ódigo T ributário da A lemanha , 929
Ricardo L obo T orres
1. Introdução..................................................................................................... 931
2. O Código de 1919...................................................................................... 931
3. O Código de 1977 (AO 77)..................................................................... 932
4. A Alteração de 2008 .................................................................................. 934
4.1. Generalidades...................................................................................... 934
4.1.1. O teor da nova norma............................................................ 934
4.1.2. Conteúdo................................................................................. 935
4.1.3. A motivação da nova regra.................................................... 935
4.1.4. Ambivalência do tributo...................................................... 936
4.1.5. Direitos fundamentais, tributação eproporcionalidade....... 937
4.2. A norma geral antielisiva.................................................................. 938
4.2.1. O abuso da forma jurídica.................................................... 938
4.2.2. O abuso da forma jurídica e o princípio
da proporcionalidade........................................................... 939
4.3. As normas especiais antielisivas .................................................... 941
4.3.1. Conceito............................................................................... 941
4.3.2. A nova regra do Código Tributário da
Alemanha (art. 42, §I o, item 2 )......................................... 942
5. Conclusão.................................................................. ............................... 943
6. Bibliografia................................................................................................ 943

8) R e s p o n s a b il id a d e T r ib u t á r ia , 945
A lgum as C o n sid era çõ es J uríd icas sobre a R espo n sa b ilid a d e S o lid á ria
T ributária e os “G rupos E c o n ô m ic o s ”, 947
F ern ando R ebelo A nd ra d e
T eren c e T ren n epo h l
I. Introdução.................................................................................................. 949
II. A disciplina da responsabilidade tributária no Código Tributário
Nacional e na legislação ordinária: ne4cessidade de sua interpretação
e aplicação conjunta e harmônica, em obediência ao
art. 146, III, “b”,da Constituição Federal de 1998 ........................... 949
III .A responsabilidade solidária das empresas integrantes de
grupo econômico e a correta interpretação do art. 30, IX,
da Lei n° 8.212/91 em harmonia com a “Disposição
Geral” veiculada pelo art. 128 do CódigoTributário Nacional........ 953
IV. Conclusões....................................................................................... 960
Um M estr e d o D ir e it o T r ib u t á r io

O reino do Direito, muito mais que o domínio do justo, é feito de diver­


sas moradas; e de forma que a apreensão do jurídico, necessariamente, exige a
fundamentação filosófica, a intuição criadora e uma pletora de talentos que
somente os eruditos possuem.
O Direito Tributário, ao lado dos engenhos da Política e da normativi-
dade da Constituição, constitui atividade estatal por excelência e forma supe­
rior de positivação das coisas supremas do Estado.
É ramo do Direito indiscutivelmente voltado à teoria da norma e aos
anseios da cidadania, ainda que jungido à tipicidade da legislação e aos con­
ceitos de relação jurídica e de imposição que se baseia no consentimento.
Se não fossem a dinâmica normativa da Constituição e a expressão das
formas de governo, seria o Direito Tributário a atividade pública mais elo­
qüente e a mais solene de todas as manifestações políticas do Estado.
No Brasil, eminentes cientistas do Direito enveredaram pelo campo do
Direito Tributário, mercê da sua inteligência e da compreensão que acostaram
ao crescimento e à consolidação deste ramo soberbo do Direito, aqui me pare­
cendo justo destacar os nomes de Souto Maior Borges, Aliomar Baleeiro,
Alfredo Augusto Becker e Josaphat Linhares, para glosar a lista com o nome
de um grande pensador cearense.
Não desconheço, na atualidade, os nomes de Roque Antônio Carrazza,
Paulo de Barros Carvalho, Sacha Calmon Navarro Coelho e Ives Gandra da
Silva Martins, mas penso que o maior tributarista do Brasil, sob muitos as­
pectos, é Hugo de Brito Machado, porque nele não residem apenas o magis­
trado, o advogado ou jurista, mas também o teórico da política tributária e o
pensador, por igual, do Direito Financeiro.
Sempre foi Mestre, antes de ser professor de Direito; e sempre amou o
Direito Tributário, antes de ser o respeitável teórico do Direito que o é; e
antes de ser o jurista e o estilista que todos nós admiramos, como exemplo de
erudição e de clarividência.
Penso que os novos tributaristas do Brasil, tais os nomes de Humberto
Ávila, Denise Lucena Cavalcante, Hugo Machado Segundo e André Elali,
são legatários da sua precedência e do seu rigor científico e doutrinário, e
tanto mais porque com eles me afino e conheço o sentido vigoroso que acos­
taram à sua produção.
Hugo de Brito Machado nasceu no Piauí, mas está umbilicalmente liga­
do ao Ceará, onde é professor titular da Faculdade de Direito da UFC, nos
cursos de graduação e pós-graduação, e onde se fez uma figura respeitada e
um ser humano bastante singular.
Tem os títulos de Mestre e de Doutor em Direito, tirado este último na
Universidade Federal de Pernambuco, onde foi juiz e presidente do Tribunal
Regional Federal. Membro do Conselho da Justiça Federal, exerceu, no Ceará, as
funções de Procurador da República e de Juiz do Tribunal Regional Eleitoral.
Tem formação, como sabemos, em Contabilidade e em Direito, mas o
que importa destacar, com relação à sua figura de jurista, são os seus conheci­
mentos e a sua notória capacidade de pesquisa e de reflexão.
Fundador do Instituto Cearense de Estudos Tributários, o qual presidiu, é
Sócio-Honorário do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e do Instituto de
Direito Tributário de Londrina (Paraná), pertencendo, entre outras, às seguintes
instituições: Academia Brasileira de Direito Tributário (São Paulo), Associação
Brasileira de Direito Tributário (BH), Associação Brasileira de Direito Financei­
ro (RJ), Associação Fiscal Internacional (sediada em Gênova, na Itália) e Acade­
mia Ibero-Americana de Direito e Economia, sediada esta última em Madrid.
Jurista de escol e pensador emérito do Direito, sempre labutou na advo­
cacia e na docência, na judicatura e na publicação de livros e ensaios de Direi­
to Tributário, que lhe renderam a notoriedade e o reconhecimento.
Autoridade respeitada em matéria de ICMS, tem lecionado, em cursos
de pós-graduação, diversas disciplinas do seu campo de pesquisa, nas seguin­
tes Universidades: Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Fede­
ral da Bahia, Universidade Mackenzie (SP), Universidade Federal de Caxias
do Sul (RS) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Não vou me alongar, neste texto, sobre temática específica da disciplina
adotada pelo Mestre, porque me falecem aptidão e autoridade para encarar o
Direito Tributário, qual um nicho de primeira grandeza, se bem que os recor­
tes da minha profissão já me honraram como Procurador Fiscal de uma uni­
dade federada, e com o prazer de ter sido aluno de Hugo Machado na
pós-graduação e em proveitosos colóquios acadêmicos.
Este paper, que constitui tão somente um tecido de afetos e cortes de
memória, enseja-se qual tributo ao intelectual e ao scholar, ao Mestre e ao
teórico das ensinanças do Direito Tributário.
Uma quinzena de livros de alta qualidade científica, hermenêutica e fi­
losófica publicou o professor Hugo de Brito Machado, cabendo destacar, en­
tre eles: Imposto de Circulação de Mercadorias (1971), O Conceito de Tributo no
Direito Brasileiro (1987), Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição
de 1988 (1989), Mandado de Segurança em Matéria Tributária (1994), Temas
de Direito Tributário (1994), Crimes Contra a Ordem Tributária (2008) e D i­
reitos Fundamentais do Contribuinte e a Efetividade da Jurisdição (2009).
Deixo propositadamente de fora do elenco o seu monumental Curso de
Direito Tributário (1979), hoje em trigésima edição, o que é uma prova cabal
da sua pertinência e do seu esforço doutrinário. Livro uno e plural a um só
tempo. Livro cristalino e de fino corte literário, qual a claridade da sua lingua­
gem fulgurante e dos seus achados paradigmáticos.
Um livro de Hugo Machado me toca de plano e de primeiro, quais a sua
expressão conceituai e a sua originalidade, qual o seu apego à normatividade
do Direito e não apenas à sua retórica discursiva. Trata-se de Introdução ao
Estudo do Direito (2000), em cujo prefácio lê-se a homenagem com que o
autor pagou o seu tributo à poesia, citando literalmente o meu nome, como se
fosse a extensão do diálogo que sempre mantivemos.
Acrescento, ademais, que nos reconhecemos nas Galerias de Arte por
onde transitamos e onde apreciamos o significado sublime da beleza. Hugo se
agiganta ainda mais para mim nesses momentos: são as estesias da contempla­
ção o que se aí se plasmam e se afirmam, para muito além do universo jurídico
e filosófico que nos alimenta.
E assim, acredito, irmano-me por inteiro com a sua elegância e com o seu
discurso afetuoso, transportando-me para o nicho de sua família, onde reinam
o direito e a cultura, a literatura e a política da aproximação e da diplomacia.
Hugo de Brito Machado me deu um presente precioso em meados da
década de 1990: a oportunidade de ser professor de Hugo Machado Segundo e
de Raquel Machado, os quais hoje se proclamam seguidores das minhas linhas
de pesquisas e dos meus raciocínios de constitucionalista e de filósofo das coisas
do Estado, honrando-me sobremaneira Raquel com a sua vocação de escritora
do campo literário, tomando-me por padrinho da sua belíssima trajetória.
O que sei de Direito Tributário passa, obrigatoriamente, pela minha
admiração pelo Mestre, porque sou leitor atento de praticamente todos os
seus livros.
Costumo dizer que lendo-se o Curso de Direito Tributário, de Hugo de
Brito Machado, não precisa o consulente recorrer a outra fonte de pesquisa
sobre essa rica temática atinente à função impositiva do Estado.
Por último, perdura por completo a força da pesquisa que se fez esclare­
cida entre nós, em 2005: Hugo de Brito Machado é o tributarista mais citado
pela jurisprudência dos nossos tribunais. E é, como sabemos, o tributarista
que mais vende livros no Brasil. E se isto ainda não é tudo, com acerto, é
porque Hugo Machado transbordou, nos abraçando, em bloco, e abraçando
também o Direito Tributário.

Entre Fortaleza e Curitiba, voando pela TAM, em 25/11/2009

D im as M a c ed o
Mestre em Direito eprofessor da Faculdade de Direito da UFC
1) Teoria Geral
Particularidades
Manifestadas pela
Disciplina Jurídica
Fundamental da
Tributação no Brasil

Carlos César Sousa Cintra


Mestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Professor do IB E T —Instituto Brasileiro de Direito Tributário
Membro do IC ET —Instituto Cearense de Estudos Tributários
Advogado em Fortaleza
C a r l o s C ésar S o u s a C in t r a - 31

“Quem vivência a relação tributária sabe muito bem que ela, embora
teoricamente seja uma relação jurídica, na prática é hoje muito mais
uma relação de poder, na medida em que os direitos fundamentais
do contribuinte são pública e flagrantemente desrespeitados pelas
autoridades fazendárias”
HUGO DE BRITO MACHADO1

1 . T raços b á s ic o s d o s is t em a t r ib u t á r io b r a s il e ir o

Ao relacionar o sistema tributário brasileiro com o direito positivo, de­


pendendo do ambiente em que estiver situado o discurso, aquela expressão
pode vir associada ao seguinte:
a) totalidade de textos contidos nos diversos instrumentos ponentes
de normas jurídicas, que têm como conteúdo matéria tributária;
b ) agrupamento de significações isoladas (sentido deôntico não com­
pleto) obtidas a partir da interpretação de tais textos; e
c) conjunto das normas jurídico-tributárias (sentido deôntico
completo).
Por outro lado, nunca é demais realçar que, materialmente, a Constitui­
ção engloba as normas jurídicas (regras e princípios) que, em geral, versam
sobre o seguinte:
a) organização e delimitação do poder estatal (distribuição das com­
petências);
b) exercício da autoridade;
c) forma de governo; e
d) direitos e garantias fundamentais (individuais e sociais).
E mais: pela moderna teoria constitucional, além da ordenação da vida
estatal, a Constituição contém igualmente as bases do regramento daquilo que
tem que ver com a sociedade civil (família, propriedade, educação, cultura etc.).

1 Responsabilidade pessoal do agente público por danos ao contribuinte. In: Dimensão jurídica
do tributo - Estudos em homenagem ao Professor Dejalma de Campos. São Paulo: Meio
Jurídico, 2003, p. 313.
3 2 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifest a d a s p e la D isc ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l ...

Feitas estas iniciais apresentações, destacamos que G ERA LD O


ATALIBA, ao examinar o particular modo como o ordenamento jurídico
anterior à CF/88 regulava a atuação estatal relativa à tributação, esclareceu
que a Constituição “reteve o poder tributário pleno, conferindo à legislatura
meras competências específicas, delimitadas e circunscritas”2.
Comentando aquele peculiar traço do direito tributário brasileiro refe­
rente ao pormenorizado tratamento constitucional da matéria tributária, JOSÉ
SOUTO M AIOR BORGES assim se pronunciou:
“O poder tributário, aspecto particular do poder financeiro, este, por
seu turno, exteriorização do poder geral do Estado, desse modo, está
rigidamente alicerçado em normas constitucionais disciplinadoras do
seu exercício.”3
PAULO DE BARROS CARVALHO, igualmente, prelecionou:
“O legislador constituinte brasileiro dispensou cuidado especial à disci­
plina da matéria tributária, expedindo, à mão larga, um número inusita­
do de preceitos, que talham, até com certa minudência, um sistema
exaustivo e rígido.”4
Levando-se em conta o que preceitua expressamente a vigorante Consti­
tuição, que trouxe em seu bojo uma vastíssima quantidade de comandos nor­
mativos prefixando as condições e limites necessários à colocação em prática da
tributação, seguramente podemos afirmar que no Brasil há um elevado nível de
rigidez bem como uma exaustiva delimitação jurídica do poder tributário.
Em outras palavras: daquela salutar opção axiológica do nosso constituinte
originário provêm importantíssimas conseqüências jurídicas, dentre as quais in­
dicamos, como nota distintiva, a presença de uma nívea contenção do poder
impositivo no plano constitucional, refreamento este que se manifesta por meio
dos apanágios da rigidez e exaustividade.
Antes de examinarmos o modo como tais atributos influenciam o direito
tributário brasileiro, é preciso desmistificar, desde logo, uma orientação doutri­
nária que pode conduzir à extração de conclusões cientificamente inaceitáveis.

2 Sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, p. 38.
3 Isenções tributárias. São Paulo: Sugestões Literárias, 1969, p. 21.
4 A regra matriz do IC M . Tese de livre docência. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica,
1981, p. 12.
C a r l o s C ésar S o u s a C in t r a - 3 3

Sucede que, como os textos constitucionais dos diversos ordenamentos


jurídicos, em maior ou menor escala, contêm preceitos que direta ou indire­
tamente disciplinam a imposição tributária, há quem queira atribuir foros
de autonomia científica e metodológica ao intitulado “direito constitucio­
nal tributário”.
VICTOR UCKMAR, de há muito, prega que “um ramo constitucional
que, sem dúvida, merece tratamento autônomo é o concernente à exigência
dos tributos”5.
Postulando igualmente pela autonomia dogmática do que ele denomi­
nava de “direito tributário constitucional”, ALIOMAR BALEEIRO salien­
tava que a apartação daquele ramo do Direito em geral seria uma tendência
seguida por alguns juristas e financistas6, anotação esta também anunciada
por ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA7.
Todavia, à medida que se concebe o direito como um todo absolutamen­
te incindível (uno universo iure), tem-se como totalmente inadequada a tenta­
tiva de segregar o conjunto de normas tributárias contidas no texto
constitucional, com o intuito de reconhecer autonomia científica àquele mi-
crossistema normativo —direito constitucional tributário8.
Quando muito, vê-se que o direito tributário brasileiro, singularmente, é
composto de um farto número de mandamentos prescritivos situados na Lex
Magna, e isso obriga a visitar, com assiduidade, aquele documento normativo
supremo, sempre que se estiver na iminência de realizar a íngreme tarefa de
construção de sentidos dentro da órbita tributária9.

5 Princípios constitucionais comuns de direito constitucional tributário. Tradução de Marco Auré­


lio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 1.
6 Limitações constitucionais ao poder de tributar, 6a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 6.
7 Direito constitucional tributário e due process o f law, 2a ed. Rio de janeiro: Forense, 1986, p. 4.
8 Conforme repreende ALFREDO A U G U STO BECKER, "pela simples razão de não poder existir
regra jurídica independente da totalidade do sistema jurídico, a 'autonomia' (no sentido de
independência relativa) de qualquer ramo do direito positivo é sempre e unicamente didática
para, investigando-se os efeitos jurídicos resultantes da incidência de determinado número de
regras jurídicas, descobrir a concatenação lógica que as reúne num grupo orgânico e que une
este grupo à totalidade do sistema jurídico" (grifos do autor). Teoria geral do direito tributário, 2a
ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 28-9.
9 JORGE MIRANDA adverte que "a interpretação constitucional não é de natureza diferente da
que se opera noutras áreas. Como toda a interpretação jurídica está estreitamente conexa com
a aplicação do Direito, não se destina à enunciação abstracta de conceitos, destina-se à
conformação da vida pela norma. Comporta especialidades, não desvios aos cânones gerais
(ainda quando se utilizem diversos métodos e vias)". Manual de direito constitucional. Coimbra:
Coimbra Editora, 1988, t. IV, p. 257.
3 4 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s p e la D isc ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l ...

Posto este preâmbulo, tratar-se-á daqueles dois predicados que indivi­


dualizam o nosso sistema tributário: exaustividade e rigidez.
1 . 1 . E x a u s t iv id a d e

Com relação à exaustividade, compreendida nesta seção como sendo aquilo


que se destina a abarcar até os mínimos detalhes, eis aí uma das nuanças
marcantes do direito constitucional tributário brasileiro.
Ao ressaltar o zelo do constituinte brasileiro, que a partir da CF/46
tratou com maior prodigalidade da aludida matéria, ALIOMAR BALEEIRO
sobrelinhou:
“O sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios
e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à econo­
mia e à preservação do regime e dos direitos individuais.”10
Na direção acima descrita, o constituinte de 1988, de forma ímpar,
preocupou-se em tratar da questão atinente aos tributos com invulgar
detalhamento, de maneira quase que exauriente, subtraindo assim a possibilidade
de legislador ordinário estabelecer, motuproprio, a extensão e o alcance das normas
instituidoras de tributos11.
Acerca disso, ROQUE ANTÔNIO CARRAZA expôs:
“... as competências tributárias foram desenhadas, com retoques de
perfeição, por grande messe de normas constitucionais, que operam
como balizas intransponíveis, guiando o legislador (federal, estadual,
municipal ou distrital) na criação, in abstracto, das várias exações.”12
Com efeito, não há nenhum exagero em concluir-se que a Lei Maior
promulgada em 1988, pela notória opulência no respeitante à matéria tribu­
tária, chegou mesmo a ser fronteiriça com um casuísmo descomunal.

I0 Limitações constitucionais ao poder de tributar, 6a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 2.


II Esclarece JOSÉ AR TH U R LIMA GONÇALVES que "consiste essa exaustividade no fato de a
Constituição conter todos os princípios e regras que dão feição ao sistema constitucional
tributário, não deixando espaço ou oportunidade para que a legislação infraconstitucional
contribua para a configuração do sistema. Desenhado, delimitado exaustivamente pela Cons­
tituição, à legislação infraconstitucional só resta dar operatividade ao sistema constitucional
tributário", isonomia na norma tributária. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 16.
12 Entidades beneficentes de assistência social (filantrópicas) - Imunidade do art. 195, §7°, da CF
- Inconstitucionalidade da lei n° 9.732/98 - Questões Conexas. In: CARRAZZA, Elizabeth
Nazar (coord.). Direito constitucional tributário. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 15.
C a r l o s C ésar S o u s a C in t r a - 3 5

Isto fica evidenciado quando se vê que as atribuições concedidas ao le­


gislador tributário subconstitucional foram todas estipuladas com inconfun­
dível rijesa, o que se deu mediante a previsão de um minucioso regime
jurídico-constitucional13aplicável aos tributos admitidos em nosso ordena­
mento jurídico.
Entretanto, se com relação ao assunto “tributação” o legislador infra-
constitucional deve ser circunspecto, porquanto ele tem de comportar-se de
maneira comedida e modesta, nem por isso se pode afastá-lo, por completo,
do exercício da atividade legiferante prevista na própria CF/88.
Deveras, a simples leitura do texto constitucional indica, sim, a presença
de alguns temas (rol taxativo) que reclamam a interposição do legislador sub­
constitucional para que se perfaça a efetivação de certos comandos constitucio­
nais de natureza tributária.
Em confirmação do que se disse, pinçamos, exemplificativamente, os
seguintes dispositivos da CF/88 que peremptoriamente acusam a aduzida
tarefa de regulação: art. 146, III, alíneas “c” e “d”, art. 146-A, art. 149, §4°,
art. 150, inciso VI, alínea “c”, art. 155, §2°, inciso XII, alínea “h”.
Logo, assiste razão a ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA, quando ga­
rante que na Constituição Federal “há extenso rol de disposições que, sem
necessidade de interpositio da legislação ordinária, regulam a ação estatal de
exigir tributos”14.
Porém, é intolerável recusar que existem assuntos tributários específicos
cuja plena efetivação impõe a pronta intervenção do legislador infraconstitu-
cional, que não deve furtar-se de tal mister, nem pode afastar-se dos estreitos
espaços de atuação gizados pelo constituinte originário.
Em todo o caso, continua atual, pelo menos parcialmente, o pensamento
de GERALDO ATALIBA, que, descrevendo o sistema tributário introduzi­
do pela antecedente Carta Constitucional, registrou:
“O sistema constitucional tributário brasileiro é o mais rígido de quantos
se conhece, além de complexo e extenso. Em matéria tributária tudo foi

13 Acordamos com LUCIA VALLE FIGUEREDO , que conceitua regime jurídico como sendo "o
complexo de normas e princípios disciplinadores de determinado instituto". Estudos de Direito
Tributário. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 40.
14 imposto de renda: perfil constitucional e temas específicos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25.
3 6 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s p e la D isc iplin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l ..

feito pelo constituinte que afeiçoou integralmente o sistema, entregan­


do-o pronto e acabado ao legislador ordinário, a quem cabe obedecê-lo,
em nada podendo contribuir para plasmá-lo.”15(grifos do autor)
A adesão apenas parcial àquela ensinança reproduzida reside no fato de
que, segundo cremos, em matéria tributária “quase” tudo foi realizado pelo cons­
tituinte originário, que por um triz não esgotou completamente o assunto.
Então, daquela soberana atuação do nosso legislador constituinte (fato jurídico
complexo), único titular do mencionado poder tributário16, sobreveio, como eficácia
jurídica, um plexo de normas jurídicas (regras e princípios17) timbradas pela
inflexível demarcação das competências tributárias18conjuntamente com a definição
dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes19.
Não é sem motivo que ROQUE ANTONIO CARRAZZA proclama
que, “entre nós, a força tributante estatal não atua livremente, mas dentro dos
limites do direito positivo”20, sendo por tal motivo perfeitamente atribuível à
Constituição21a natureza de lídima lei tributária fundamental.
O citado comentário deflui do patente reconhecimento de que a nossa
Lex Fundamentalis, ao cuidar das questões de índole tributária, não auto­

15 Sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, p. 21.
16 No dizer de RO Q UE AN TONIO CARRAZZA: "Poder Tributário tinha a Assembléia Nacional
Constituinte, que era soberana. Ela realmente, tudo podia, inclusive em matéria tributária"
(grifos do autor). Curso de direito constitucional tributário, 12a ed. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 327.
17 Declara PAULO DE BARROS CARVALHO que "os princípios são normas, com todas as impli­
cações que esta proposição apodítica venha a suscitar". Sobre os princípios constitucionais
tributários. Revista de Direito Tributário, n° 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 149.
18 JOSÉ SO U TO M AIO R BO RGES afirma que "a repartição do poder tributário caracteriza o
princípio da competência tributária". O referido autor, com escora nas lições de HENSEL,
define competência tributária como sendo "a faculdade de exercer o poder tributário, do
ponto de vista material, sobre um setor determinado". Isenções tributárias. São Paulo: Suges­
tões Literárias, 1969, p. 26.
19 Segundo LO U RIVAL VILANO VA, "é uma conquista do Estado de Direito, do Estado Consti­
tucional em sentido estrito ( Verfassungsstaat), a fixação dos direitos reputados fundamentais
do indivíduo, e a enumeração das garantias para tornar efetivos tais direitos, quer em face
dos particulares, quer em face do Estado mesmo". Proteção jurisdicional dos direitos numa
sociedade em desenvolvimento. In: Anais da IV Conferência Nacional da Ordem dos Advo­
gados do Brasil, p. 139.
20 Curso de direito constitucional tributário, 12a ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 327.
21 Observa KO N RA D HESSE: "Puesto que Ia Constitución establece los presupuestos de Ia
creación, vigência, y ejecución de Ias normas dei resto dei ordenamiento jurídico, determinando
su contenido, se convierte en un elemento de unidad dei ordenamiento jurídico de Ia comunidad
en su conjunto, en el senso dei cual viene a impedir tanto el aislamiento dei Derecho
constitucional de otras parcelas dei Derecho como la existencia aislada de esas parcelas dei
Derecho entre ellas mismas." Escritos de derecho constitucional (selección). Madrid: Centro de
Estúdios Constitucionales, 1983, p. 17.
C a r l o s C ésa r S o u s a C in t r a - 3 7

riza que as pessoas políticas ajam com sofreguidão incontrolável, ou seja,


de modo excessivo22.
Ao contrário disso, União, Estados-membros, Distrito Federal e Muni­
cípios, quando do efetivo exercício das competências tributárias outorgadas
por força da partilha do espaço impositivo, devem mover-se exclusivamente
dentro dos intransponíveis lindes impostos pelo nosso vigente sistema jurídi­
co, e de modo todo especial pela Lei das Leis23.
1 .2 . R ig id ez

Consoante se afirmou anteriormente, houve um pormenorizado trata­


mento dispensado pelo legislador da CF/88 referentemente à matéria tribu­
tária, comprovação essa que permitiu AIRES BARRETO arrematar que “a
Constituição Federal, ao outorgar competência tributária aos entes políticos
define e discrimina, de forma rígida e esgotante, o âmbito dentro do qual
contém-se a de cada um deles”24.
Pois bem, quanto à rigidez do sistema constitucional tributário pátrio,
que dimana exatamente daquela disciplina extensa e esmiuçada contida no
diploma básico, sustenta-se que, em razão desse atributo, nenhum veículo
infraconstitucional pode promover alteração (alargadora ou diminutiva) dos
contornos das zonas de atuação (“competências tributárias”) outorgadas pelo
constituinte originário aos entes tributantes.
Em tempo: de um modo geral a partilha de competências tem que ver
com a segmentação do labor político-constitucional-administrativo, que cul­
mina com a especialização de tarefas (unidade), racionalização dos serviços
(organização) e discriminação das funções (finalidade).

22 Em RUY BARBOSA NOGUEIRA lê-se que "o poder tributário é uma das expressões de manifes­
tação do poder de império do Estado, da sua força ou potestade para exigir tributos, mas, no
Estado constitucional moderno, esse poder não é livre ou arbitrário, só pode atuar por meio do
Direito, dentro do campo e limitações deste". Curso de direito tributário, 10a ed. São Paulo:
Saraiva, 1990, p. 45.
23 M ARCELLO CAETANO adverte: "Aquele que detém um poder jurídico não pode exercê-lo
senão dentro dos limites fixados pela norma jurídica e para os fins nela determinados. Quem
na relação jurídica está adstrito ao cumprimento do dever não tem de fazer senão o que nele
estiver contido de acordo com a norma que o rege." Manual de ciência política e direito
constitucional, 6a ed. Coimbra: Almedina, 1992, t. I, p. 39.
24 ISS - atividade-meio e atividade-fim. Revista Dialética de Direito Tributário, n° 5. São Paulo:
Dialética, 1996, p. 74.
3 8 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s p e la D is c ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l ..

Diga-se, por oportuno, que visualizamos as competências tributárias


como sendo o produto resultante das autorizações e limites traçados pela
Constituição quanto ao tema tributação, e que tem como destinatárias as
pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados-membros, Dis­
trito Federal e Municípios)25.
Bem se vê que o legislador constituinte tratou, com ingente amplitude,
sobre as competências relativas à imposição de tributos, discriminando-as e
estabelecendo inclusive a previsão da parcela residual reservada à União (art.
154, inciso I - impostos; art. 195, §4° - contribuições sociais).
Então, pode-se assegurar que a CF/88 não contém nenhuma abertura
horizontal em matéria de competência tributária; quer dizer, do ponto de
vista semântico, no que toca àquele tema, o nosso sistema tributário é marcado
por uma incontestável completude jurídica, que na expressão de LOURIVAL
VILANOVA pode ser assim representada:
“Há completude semântica se um sistema S, face ao universo-de-condu-
ta humana (tempo-espacialmente determinado), tem para qualquer
conduta uma proposição normativa. Em outros termos: se não se dá o
caso de ocorrer pelo menos uma conduta desse universo que não se
encontre quer no descritor (da norma primária), quer no prescritor (da
norma secundária)”26(grifos do autor).
Do mesmo modo se apregoa que o sistema constitucional tributário brasi­
leiro não é dotado de abertura vertical, porquanto sempre é possível proceder à
determinação significativa completa relativamente a certos signos constantes
dos enunciados prescritivos demarcadores das competências tributárias.
Arrimados na lição de J. J. GOMES CANOTILHO27, defende-se que
o nível de precisão semântica das palavras empregadas nos textos que definem
as áreas de atuação de cada ente tributante, quanto à instituição de tributos, é
de determinação máxima.

25 PAULO DE BARROS CARVALHO alude à competência tributária como "significativa da virtualidade


inerente às pessoas políticas de legislar sobre tributos, compondo a unidade normativa e os
preceitos anci lares que lhe dão conteúdo e sentido de praticidade". A regra matriz do ICM. Tese de
livre docência. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1981, p. 22.
26 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1977,
p. 175-6.
27 Cf. Direito constitucional. 5a ed. Coimbra: Almedina, 1992, p. 1.145.
C a r l o s C ésa r S o u s a C in t r a - 3 9

Isto porque, de acordo com o modelo teórico presentemente apropria­


do, o próprio sistema constitucional se encarrega de fornecer os subsídios
necessários à concretização da norma que eventualmente contenha vocábulo
ou expressão possuidora de algum grau de indeterminação significativa (“con­
ceito indeterminado”).
Idêntico raciocínio foi desenvolvido por LUÍS CESAR SOUZA DE
QUEIROZ, que, ao examinar o problema referente à construção do conceito
constitucional de renda e proventos de qualquer natureza, pontificou:
“Se fosse aceita a interpretação de que tais conceitos constitucionais não
apresentam limites máximos, a exaustivaprescrição da competência ordi­
nária discriminada, levada a termo pela Constituição, ficaria sem qual­
quer sentido, isto é, representaria um nada jurídico, pois o legislador
infraconstitucional (complementar) teria a possibilidade de definir o fato
‘renda e proventos de qualquer natureza’ como bem quisesse, podendo
equipará-lo (confundi-lo), por exemplo, ao fato ‘grandes fortunas’, ou
mesmo igualá-lo ao fato ‘propriedade predial e territorial urbana’, ou ain­
da ao fato ‘receita’ (referido como situação que pode ser constituída em
critério material do antecedente e do conseqüente de contribuição social
- art. 195,1, alínea b - CRFB, com a redação da EC n° 20/98), sendo
certo que os demais conceitos, de igual modo, poderiam ser livremente
definidos pelo legislador infraconstitucional, já que não estariam defini­
dos pela Constituição. Essa interpretação, que implica um sem sentido
constitucional, seria um flagrante absurdo, pois transformaria a Consti­
tuição em um nadajurídico. E toda interpretação que conduz ao absurdo
merece ser total e veementemente rechaçada.”28(grifos do autor)
No que respeita à possibilidade de emenda constitucional ampliar ou
restringir o âmbito de atuação impositiva dos Estados-membros, do Distrito
Federal e dos Municípios, repele-se a constitucionalidade de eventual investi­
da neste sentido, sendo aplicável à espécie a vedação constante no art. 60, §4°,
incisos I e IV, da CF/88.
Acontece que se propugna pelo seguinte:
a) os contribuintes têm o direito fundamental de somente sofrer a
oneração compulsória proveniente da tributação naquelas situa­

28 Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p. 207-8.
4 0 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifest a d a s pela D isc iplin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l .,

ções expressamente autorizadas pelo poder constituinte originá­


rio (art. 145, incisos II e III; art. 149, §1°; arts. 155 e 156)29; e
b) aqueles entes políticos a quem foram conferidas parcelas juridi­
camente delimitadas do “poder de tributar” têm incorporado aos
seus respectivos patrimônios públicos subjetivos a faculdade de
exercitarem tais competências tributárias.
A conclusão constante na alínea “b” supra aplica-se igualmente à União,
que recebeu do constituinte originário a possibilidade de angariar recursos para
o custeio de sua atuação mediante a exigência dos tributos por ele autorizados.
Já no que diz respeito à introdução de mudanças, via poder constituinte
derivado, no regime de repartição de competências tributárias estabelecido
pelo constituinte de 1988, em tese, consente-se que excepcionalmente isso
possa vir a ocorrer30.
Para tanto, impende que:
a) aquelas modificações não importem redução dos direitos subje­
tivos atribuídos aos contribuintes; e
b) tais alterações não acarretem comprometimento da autonomia
financeira das pessoas políticas diretamente atingidas por even­
tual mutação no atual cenário tributário.
A respeito da última exigência informada acima, reavivamos que nos
Estados de estrutura federal (Brasil, verbi gratia) a efetiva descentralização
política demanda a presença de mecanismos aptos a gerar a autonomia fi­
nanceira dos entes que formam a Federação, que por sua vez pressupõe a
problemática distribuição das faixas de atuação de cada pessoa política em
matéria tributária.
De fato, o princípio federativo juntamente com o axioma que prevê expli­
citamente as francas autonomias distrital e municipal - primados estes cuja
efetividade mantém íntima relação de dependência da arrecadação de tributos

29 Admitindo a existência de expressos e implícitos limites à tributação, RO Q U E AN TO N IO


CARRAZZA salienta que "nos dias que ora correm, os tributos, no Brasil, devem ser instituídos
e arrecadados sem ferir a harmonia entre os direitos do Estado e os direitos de cada um do
povo". Curso de direito constitucional tributário, 12a ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 57.
30 PAULO DE BARROS CARVALHO relata que tal alterabilidade está "ínsita no quadro das
prerrogativas de reforma constitucional e a experiência brasileira tem sido rica em exemplos
dessa natureza". Curso de direito tributário, 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 217.
C a r l o s C és a r S o u s a C in t r a - 41

tal como delineado pelo constituinte originário - não podem restar em ne­
nhum instante comprometidos por atuação do poder constituinte derivado31.
Contrario sensu, haverá o sufrágio de uma nova forma de Estado estrutu­
rado em um diferente sistema de composição de forças, interesses e objetivos.
Nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO:
“Se aprouver ao legislador, investido do chamado poder constituinte
derivado, promover modificações no esquema discriminativo nas
competências, somente outros limites constitucionais poderão ser
levantados e, mesmo assim, dentro do binômio ‘federação e autono­
mia dos municípios’.”32
A conclusão a que se chegou vai ao encontro da lição de ROQUE
ANTONIO CARRAZZA, quando este autor admoesta que “enquanto a
atual Constituição estiver irradiando efeitos, é terminantemente proibida
proposta de emenda constitucional que, ainda que por via transversa, colime
suprimir ou modificar nossa Federação”33.
Contudo, adverte-se que esta particular visão não encontra guarida no
Poder Judiciário brasileiro. Comprova-se essa realidade pragmática pela posi­
ção assumida pelo Supremo Tribunal Federal, que ao decidir sobre a ADIn
n° 939-DF não ofereceu nenhuma oposição a determinadas inovações trazi­
das pela EC n° 03/93, a saber:
a) supressão da competência tributária dos Estados-membros e
Distrito Federal quanto ao adicional do imposto de renda (art.
155, inciso II, redação original); e
b) retirada da possibilidade de os Municípios cobrarem o imposto
sobre venda a varejo de combustíveis líquidos e gasoso, exceto
óleo diesel (art. 156, inciso III, redação original).

31 Consoante apregoava G ER A LD O ATALIBA, "o princípio federal, em suas mais essenciais


exigências, só pode ser revogado por força de uma verdadeira revolução, que deite por terra o
Texto Constitucional e ab-rogue categoricamente todo o sistema, a partir de suas bases. Só
avassaladora revolução popular pode anular o princípio federal". Competência legislativa
supletiva estadual. Revista de direito Público, n° 62. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 26.
32 Curso de direito tributário, 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 217.
33 Curso de direito constitucional tributário, 12a ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 108.
4 2 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s p e la D isc ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l .,

2 . Regime j u r íd ic o - c o n s t it u c io n a l t r ib u t á r io in t r o d u z id o
PELA CF/88: COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS E PRINCÍPIOS
Segundo elucidamos, no Brasil é noção corrente que o assunto “tributa­
ção” é essencialmente constitucional34. A respeito disso, SACHA CALMON
NAVARRO COÊLHO, bradando que a atual Carta Magna foi inundada
com princípios e regras referentes ao direito tributário, assinala:
“Somos, indubitavelmente, o país cuja Constituição é a mais extensa e
minuciosa em tema de tributação. Este cariz, tão nosso, nos conduz a
três importantes conclusões:
Primus - os fundamentos do Direito Tributário brasileiro estão enrai­
zados na Constituição de onde se projetam altaneiros sobre as ordens
jurídicas parciais da União, dos Estados e dos Municípios;
Secundus - o Direito Tributário posto na constituição deve, antes de
tudo, merecer as primícias dos juristas e dos operadores do Direito,
porquanto é o texto fundante da ordemjurídico-tributária;
Tertius - as doutrinas forâneas devem ser recebidas com cautela, tendo
em vista as diversidades constitucionais.”35
Cravada tal premissa, enfatizamos que o conceito de competência tribu­
tária está atrelado às prerrogativas de que são dotadas as pessoas políticas de
produzirem regras sobre tributos, sendo que esses preceitos que atribuem tais
faculdades se enquadram como típicas normas de estrutura.
PAULO D E BARROS CARVALHO, com quem nos pomos de acor­
do, adverte que aquele assunto é eminentemente constitucional, sendo que
“uma vez cristalizada a limitação ao poder legiferante, pelo seu agente (o cons­
tituinte), a matéria se dá por pronta e acabada, carecendo de sentido sua rea­
bertura em nível infraconstitucional”36.
Porque atinge diretamente os conceitos de liberdade e patrimônio, bens
jurídicos estes cuja proteção tem representado ao longo dos tempos a própria
razão de existência da Constituição, é mais que explicável que a ação estatal

34 R O Q U E A N TO N IO C A R RA ZZA averba que "a Constituição Federai é a fontedireta por


excelência do direito tributário, no Brasil". Imposto de renda: perfil constitucional etemas
específicos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25.
35 Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 45.
36 Curso de direito tributário, 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 223.
C a r l o s C ésa r S o u s a C in t r a - 4 3

de tributar, mediante o exercício das competências, há de merecer estrito tra­


tamento em nível constitucional.
Tomando como referência o regramento dispensado pelas Constituições
pretéritas à matéria tributária, nota-se que o texto da atual Lex Magna avançou,
quantitativa e qualitativamente, no que tem que ver com a distribuição rígida
das competências tributárias, bem como relativamente às condições e limites
impostos àquela atuação do Estado (direitos e garantias dos contribuintes).
Quanto às competências tributárias, a Carta Magna ora indica as mate-
rialidades das hipóteses de incidências tributárias (impostos, taxas, contribui­
ção de melhoria), ora prevê os requisitos para a instituição do tributo
(empréstimos compulsórios, impostos extraordinários de guerra), ora mencio­
na as finalidades cujo alcance dar-se-á pela arrecadação tributária (contribui­
ções sociais)37.
E no concernente às condições e limites constantes na nossa Carta de
Competências, cujo pleno atendimento figura como conditio sine qua non das
indigitadas prerrogativas, repara-se que foi erigido um autêntico “estatuto do
contribuinte”, expressão esta cunhada no passado por LOUIS TROTABAS38.
Acerca desta constatação, PAULO D E BARROS CARVALHO aduz:
“Define-se o estatuto do contribuinte, ao pé de nossa realidade jurí-
dico-pósitiva, como a somatória, harmônica e organizada, dos man­
damentos constitucionais sobre matéria tributária, que positivamente
ou negativamente, estipulam direitos, obrigações e deveres do sujei­
to passivo, diante das pretensões do Estado (aqui utilizado na sua
acepção mais abrangente - entidade tributante). E quaisquer desses
direitos, deveres e obrigações, porventura encontrados em outros
níveis da escala jurídico-normativa, terão de achar respaldo de vali­
dade naqueles imperativos supremos, sob pena de flagrante
injuricidade.”39(grifos do autor)

37 ROQ UE AN TO N IO CARRAZZA evidencia que "as competências tributárias foram desenhadas,


com retoques à perfeição, por grande messe de normas constitucionais, que operam como
balizas intransponíveis, guiando o legislador (federal, estadual, m unicipal ou do Distrito
Federal) na criação, in abstracto, das várias exações". A imunidade tributária das empresas
estatais deiegatárias de serviços públicos: um estudo sobre a imunidade tributária da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 18.
38 Précis de Science et techinique fiscales. Paris: Dalloz, 1958, p. 259.
39 Estatuto do contribuinte. Direitos, garantias individuais em matéria tributária e limitações consti­
tucionais nas relações entre Fisco e contribuinte, Vox Legis, São Paulo, v. 141, p. 36.
4 4 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s pela D isc ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l .,

Dessa maneira, a CF/88 estatui os princípios fundamentais do direito


tributário, primados estes que merecem ser acatados por ocasião do tratamen­
to de questões tributárias40.
Aqui se mostra ajustado esclarecer que, inseridos naquele vasto corpus de
regras e princípios constitucionais que de algum modo influenciam a tributa­
ção41, alguns preceitos normativos se projetam sobre as espécies tributárias de
um modo geral (impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições
sociais e empréstimos compulsórios).
Inseridos na situação descrita, arrolamos, dentre outros, os princípios da
certeza do direito, segurança jurídica, justiça, legalidade, igualdade, irretroati-
vidade, federação, inafastabilidade do controle jurisdicional, ampla defesa e
contraditório, livre iniciativa, propriedade, isonomia das pessoas políticas, su­
premacia e indisponibilidade dos interesses públicos.
Além desses, outros axiomas são preordenados a reger exclusivamente a
atividade tributária na sua acepção ampla, possuindo tais máximas feições de
verdadeiras garantias de direitos fundamentais dos contribuintes.
Destarte, no elenco dos assim denominados “princípios constitucionais
tributários” sobressaem os seguintes: estrita legalidade42, isonomia43, capaci­

40 "O exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos modelos jurídi­
cos positivados no texto constitucional que, de modo explícito ou im plícito, institui em
favor dos contribuintes decisivas lim itações a competência estatal para impor e exigir,
coativam ente, as diversas espécies tributarias existentes. Os princípios constitucionais
tributários, assim, sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contri­
buintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos parti­
culares pelo ordenamento estatal, desde que existem para impor limitações ao poder de
tributar do estado, esses postulados tem por destinatário exclusivo o poder estatal, que se
submete a imperatividade de suas restrições." AD I n° 712-MC/DF, Relator Ministro CELSO
DE M ELLO , DJ 19/02/1993, p. 02032.
41 Sobre o assunto, G ER A LD O ATALIBA assinalava: "Tais princípios, por isso que princípios,
requerem integral adesão do legislador, do administrador e do aplicador - inclusive o judicial
- às suas exigências. E repugnam e invalidam toda e qualquer norma ou ato que se não
conforme inteiramente ao seu conteúdo, sentido e alcance, assim mediatos, como imediatos,
assim diretos, como indiretos." Empréstimos públicos e seu regime jurídico, p. 34.
42 "A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes
do texto consubstanciado na Carta da República, qualifica-se como decisivo instrumento
de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo
em matéria tributária." AD I 1296-MC/PE, Relator Ministro CELSO DE M ELLO , DJ 10/08/
1995, p. 23 55 4.
43 "A igualdade tributária, aliás, inscreve-se, expressamente, na Constituição e constitui um
princípio constitucional tributário geral, porque aplicável a todos os tributos: C .F., art.
150, II. Decorre ele, sem dúvida, do princípio isonômico inerente ao regime democrático
e à república: art. 5o, caput, e inc. I". Excerto do Voto do M inistro C A R LO S M ÁRIO
VELLO SO , no RE n° 153.711-0/MG, Relator para o Acórdão Ministro M OREIRA ALVES, DJ
05/09/1997, p. 4 1 8 9 2 .
C a r l o s C és a r S o u s a C in t r a - 4 5

dade contributiva44, irretroatividade45, anterioridade46, vedação ao confisco47,


imunidades48, liberdade de tráfego49, proibição de dispensa de tratamento

44 "Abrindo o debate, registre-se que o princípio da isonomia implica, no campo tributário, que
se busque alcançar a justiça tributária. Esta, a seu turno, realiza-se através do princípio da
capacidade contributiva, aplicável, no constitucionalismo tributário brasileiro, aos impos­
tos, conforme se verifica da leitura do §1° do art. 145 da Constituição Federal." Trecho do
voto do Relator no RE n° 234.105/SP, Relator Ministro CARLOS MÁRIO VELLO SO , DJ 31/03/
2000, p. 00061.
45 "O princípio da irretroatividade da lei tributária deve ser visto e interpretado, desse modo,
como garantia constitucional instituída em favor dos sujeitos passivos da atividade estatal no
campo da tributação. Trata-se, na realidade, à semelhança dos demais postulados inscritos no
art. 150 da Carta Política, de princípio que - por traduzir limitação ao poder de tributar - é tão-
somente oponível pelo contribuinte à ação do Estado." ADI n° 712-MC/DF, Relator Ministro
CELSO DE M ELLO, DJ 19/02/1993, p. 02032.
46 "Somente por via de lei, no sentido formal, publicada no exercício financeiro anterior, é
permitido aumentar tributo, como tal havendo de ser considerada a iniciativa de modificar a
base de cálculo do IPTU , por meio de aplicação de tabelas genéricas de valorização de
imóveis, relativamente a cada logradouro, que torna o tributo mais oneroso. Caso em que as
novas regras determinantes da majoração da base de cálculo não poderiam ser aplicadas no
mesmo exercício em que foram publicadas, sem ofensa ao princípio da anterioridade." RE n°
234.605/RJ, Relator Ministro ILMAR GALVÃO, DJ 01/12/2000, p. 00098.
47 "A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a
interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no
campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou
dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga
tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional
lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação,
por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da
carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte considera­
do o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos
os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que
os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau
de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de
razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo
Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre
que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela
mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os
rendimentos do contribuinte." AD C n° 8-MC/DF, Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJ 04/
04/2003, p. 00038.
48 "A Emenda Constitucional n° 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir
o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispo­
sitivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, "b" e V I", da Constituição,
porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não
outros): 1 . - 0 princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5.,
par. 2 ., art. 60, par. 4 ., inciso IV e art. 150, III, "b" da Constituição); 2. - o princípio da
imunidade tributaria recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros)
e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso l,e art, 150, VI, "a", da C.F.)". ADI n° 939/
DF, Relator Ministro SIDNEY SANCHES, DJ 18/03/1994, p. 005165.
49 "Primeiro de tudo, deixo expresso o meu entendimento no sentido de que o pedágio, objeto
da causa, é espécie tributária, constitui-se numa taxa. O fato de ter sido o pedágio tratado no
sistema Tributário Nacional exatamente nas limitações ao poder de tributar - CF, art. 150, V -
é significativo. Ora, incluído numa ressalva a uma limitação à tributação, se fosse preço, a
ressalva não teria sentido". Trecho do voto do Relator no RE n° 181.475/RS, Relator Ministro
CARLOS MÁRIO VELLOSO , DJ 02/06/1999, p. 00028.
4 6 - P a r t ic u la r id a d e s M an ifest a d a s p e la D is c ip u n a J u r íd ic a F u n d a m en t a l ...

tributário diferenciado em função da origem ou destino de bens e serviço, de


qualquer natureza50.
Já outros mandamentos têm abrangência restrita a somente algumas
subespécies tributárias, tais como a não cumulatividade (ICMS, IPI, PIS e
COFINS), seletividade (ICMS e IPI), progressividade (Imposto de Renda
e IPTU), generalidade e universalidade (Imposto de Renda).
Em remate, acompanhamos a chamada de H U G O D E BRITO
M ACHADO:
“Tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do
Poder. Em face do elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem
consciência dessa finalidade, busca nesses princípios a efetiva proteção
do contribuinte.”51

3 . S in t o m a t o l o g ia d o v ig en t e sistem a t r ib u t á r io n a c io n a l

Não é objeto de dúvida que no espaçoso território do direito tributário


remanesce solo fertilíssimo para a ocorrência de variegados conflitos.
Sucede que o comportamento último por ele regulado (pagamento de
tributos), que atinge diretamente a esfera subjetiva dos membros de uma
dada sociedade, geralmente é posto em prática sem o devido acatamento aos
direitos fundamentais (propriedade e liberdade, exempli gratia) e suas respec­
tivas garantias, tal como sentencia a Constituição52.
Arrebatado visceralmente pela sanha de angariar valores, postura essa
que no contexto em tela se distancia visivelmente do conceito de interesse
público propriamente dito53, o Fisco, reincidentemente, não tem sido parci-

50 "À primeira visão, contraria a lei básica o estabelecimento de pautas de valores diferenciados
para operações intermunicipais e interestaduais, majorando-se estas em mais de 1.000%". ADI
n° 349-MC/, Relator Ministro M ARCO AURÉLIO , DJ 26/10/90, p. 11976.
51 , Curso de direito tributário, 12a ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 27.
52 SACHA CALM ON NAVARRO C O ÊLH O declara que "se por um lado o poder de tributar
apresenta-se vital para o Estado, beneficiário da potestade, por outro a sua disciplinação e
contenção são essenciais à sociedade c ivil ou, em noutras palavras, à comunidade dos
contribuintes". Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 37.
53 Adotamos a lição de CELSO A N TÔ N IO BANDEIRA DE M ELLO, que define interesse públi­
co como "interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente
têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato
de o serem " (grifos do autor). Curso de direito administrativo, 12a ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 59.
C a r l o s C ésa r S o u s a C in t r a - 4 7

monioso na profanação dos mais basilares princípios, direitos e garantias fun­


damentais cravados explicitamente na CF/88.
De seu turno, apesar do perverso quadro descrito no tópico anterior,
causa espanto o fato de existir uma parcela de verdadeiras vítimas que resis­
tem em pôr em discussão no Poder Judiciário os amplamente conhecidos ex­
cessos (inconstitucionalidades, ilegalidades, arbitrariedades etc.) procedentes
daquela manifesta e incontida avidez fiscal.
Entendemos que aquela indigitada omissão dos sujeitos que têm direi­
tos subjetivos vilipendiados termina propiciando o advento de pelo menos
dois cruéis efeitos:
a) favorecimento da disseminação dos abusos levados a cabo pelos
entes tributantes; e
b) agravamento do estado de evidente asfixia experimentado por
considerável quantidade de contribuintes (pessoas físicas e jurí­
dicas), cumpridores de seus deveres.
Nada obstante, inúmeras são as discussões em torno de assuntos tributá­
rios. JOSÉ AUGUSTO DELGADO, na condição de Ministro do Superior
Tribunal de Justiça, confirma a existência do referido cenário conflituoso com
o seguinte testemunho:
“Como registrado, o movimento forense está crescendo em proporções
geométricas, a atestar a postura do contribuinte em se valer do Poder
Judiciário para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais que
lhe são outorgados pelo ordenamento jurídico brasileiro.”54
No Brasil, dentre outras razões passíveis de serem indicadas como causa
de tantas demandas judiciais, desponta a sinistra, mas patente, avidez fiscal55,
consubstanciada muita vez por meio da superabundante produção legislativa,
que tristemente ainda campeia na mentalidade dos governantes brasileiros56.

54 Direitos Fundamentais do Contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos
Fundamentais do Contribuinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, Centro de Extensão Universi­
tária, 2000, p. 88.
55 Diz OSCAR DIAS CORRÊA que "é unânime a afirmação de que a babel tributária brasileira é
hoje dos mais graves desestímulos ao desenvolvimento nacional. Sabem-no Governo (incluí­
dos os três poderes) contribuintes e povo". Sobre a dimensão jurídica do tributo. In: Dimensão
jurídica do tributo - Estudos em homenagem ao Professor Dejalma de Campos. São Paulo: Meio
Jurídico, 2003, p. 510.
56 ALFREDO AU G U STO BECKER, com sua criativa linguagem metafórica, explanava que "sempre
que a juridicidade do Direito Tributário é desvirtuada, ele veste-se de andrajos jurídicos e
4 8 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifest a d a s pela D isc ip lin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l .,

Especificamente com relação aos mencionados problemas, que não são


exclusivos de nosso país, JOSÉ JUAN FERREIRO LAPATZA dá a seguin­
te explicação:
“Podemos decir que en general, y en todos los países, la complicación de
la normativa tributaria deriva, fundamentalmente, de dos causas: el
excesivo número y frecuencia de las disposiciones que la contienen y, lo
que no es igual, el excesivo afán reglamentista de la Administración.”S7
O que se afirmou acima, em determinados casos, é sobejamente compro­
vado pelo absoluto desrespeito aos mais elementares direitos públicos subjeti­
vos dos contribuintes que se encontram expressamente plasmados quer na
Carta Magna, quer em veículos normativos infraconstitucionais.
A sério, é muito extenso o rol de situações que evidenciam a inadmissível
violação de normas tributárias por parte dos agentes públicos brasileiros58. De
um modo geral, os excessos acontecem tanto no âmbito do Legislativo como
também na órbita do Executivo e do Judiciário, fato este que acaba compro­
metendo a própria juridicidade da pretensão estatal quanto ao pagamento de
determinado tributo.
No que diz respeito à atuação do Poder Legislativo, pode-se aludir a
certos casos de manifestos choques entre as legislações do ICMS e ISS (servi­
ço de provedor de Internet, verbi gratia). Isso sem falar nas ilegítimas tentati­
vas de se violar direitos dos contribuintes expressamente admitidos pela CF/
88 (v. art. 150).
E o Poder Judiciário, guardião maior do cumprimento das leis, por vezes
deixa-se contagiar empiricamente por considerações pré-jurídicas (econômi­
cas, financeiras etc.) sentimentalmente apontadas pela Fazenda Pública, quan­
do do exame de determinadas questões de natureza tributária.
Em tais situações, corre-se o grave risco de se prestigiar esdrúxulos
raciocínios jurídicos, que só na aparência se sustentam (prazo para prática

como Cinderela - envolta num halo de mistério e superstição - foge ao Palácio da justiça,
quando a Despesa ultrapassa a Receita, na meia-noite dos orçamentos deficitários". Teoria geral
do direito tributário, 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 16.
57 Bnsayos sobre metodologia y técnica jurídica en el derecho financieiro y tributário. Barcelona:
Marcial Pons, 1998, p. 29,
58 A LFRED O A U G U S T O BECKER denunciava que "a tributação irracional dos últimos anos
conduziu os contribuintes (em especial os assalariados) a tal estado que, hoje, só lhes resta a
tanga". Carnaval tributário, 2a ed. São Paulo: Lejus, 1999, p. 15.
C a r l o s C é s a r S o u s a C in t r a - 4 9

do lançamento tributário nas hipóteses definidas no art. 150, §4°, do CTN,


in exemplis).
Tratando-se do que se dá no Poder Executivo, salta aos olhos uma sin­
gularidade consagrada no nosso direito posto, que sem dúvida alguma com­
parece como uma das principais causas dos constantes enfrentamentos que se
estabelecem entre o Erário e os contribuintes.
Ocorre que, por força do disposto no vigente direito constitucional bra­
sileiro, os três Poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário) são
convocados a realizar atividades que originariamente não lhes seriam caracte­
rísticas (comunicabilidade do exercício de funções estatais).
Entretanto, se nas searas do Legislativo e do Judiciário circunstancial
atuação que não se encaixa nas respectivas atividades típicas (criação de nor­
mas jurídicas gerais e abstratas e aplicação contenciosa do direito, respectiva­
mente) jamais pode ter por objeto assuntos tributários, o mesmo não acontece
nos domínios do Executivo.
Explicamos: ao desempenhar atipicamente atividade própria do Legis­
lativo (edição de medida provisória pela União) ou do Judiciário (prolação de
decisão em processo administrativo stricto senstí), o Executivo tem à sua dispo­
sição a possibilidade de tratar do tema “tributação”.
Logo, nas mãos do Poder Executivo concentram-se as seguintes poten­
cialidades:
a) criação de normas gerais e abstratas, via medida provisória ou lei
delegada, que inovam originariamente a ordem jurídica (insti­
tuição de tributos, estabelecimento de deveres formais etc.);
b) aplicação dos preceitos normativos, que algumas vezes são por ele
próprio instituídos (medida provisória, ad exemplum), para fins
de cobrança do tributo; e
c) solução dos conflitos que se interpõem entre o Fisco e os ad­
ministrados, mediante a prolação de decisões sobre a juridici-
dade dos lançamentos tributários praticados pelos agentes
administrativos.
Diante disso, não é de se estranhar que seja precisamente no âmbito
do Poder Executivo (federal, estadual e municipal) onde se cometem, quer
do ponto de vista quantitativo, que sob a ótica qualitativa, os mais execrá­
veis abusos.
5 0 - P a r t ic u la r id a d e s M a n ifesta d a s pela D isc iplin a J u r íd ic a F u n d a m en t a l .,

Ainda que este assunto mereça um aprofundamento que não é objeto do


presente escrito, em curtíssimo resumo vejamos, ilustrativamente, algumas tri­
viais situações que comprovam cabalmente o que asseveramos:
a) atividade executiva típica:
a.l.) quando da prática do lançamento tributário (função executiva
típica), instituto previsto nos arts. 142 a ISO, do Código Tribu­
tário Nacional (CTN), não raro a autoridade fiscal deixa de aten­
der a algum preceito jurídico (regra ou princípio) previsto no
ordenamento jurídico pátrio (ausência da enunciação dos moti­
vos de tal ato administrativo, exempli gratià)\
a.2.) edição de ato administrativo (portaria, ad exempluni) preceituan-
do a imposição de medidas coativas (regimes especiais de fiscali­
zação, apreensões de mercadorias etc.) direcionadas a forçar certo
sujeito passivo a cumprir dever de cunho tributário;
a.3.) excessos também são cometidos no momento do exercício da su­
balterna atividade regulamentar posta em prática pelo Fisco;
b) atividade legislativa atípica: contando com o beneplácito do
Poder Judiciário, o Executivo, principalmente a União, aveza-
damente, lança mão de medidas provisórias, que frequente­
mente violam direitos subjetivos dos contribuintes, para versar
sobre matéria tributária, inclusive no que concerne à criação
de tributos; e
c) atividade judicante atípica: em absoluto e frontal desprezo ao
disposto no art. 5o, inciso LV, da CF/88 (dueprocess oflaw, ampla
defesa e contraditório), dentre outras anomalias percebe-se que,
predominantemente, nega-se ao contribuinte o direito à ativida­
de probatória, ofende-se o dever de motivação das decisões e dis­
pensa-se tratamento não isonômico.
No concernente ao contumaz modus operandi por meio do qual se mate­
rializam aquelas nefandas afrontas às garantias que o Texto Básico expressa­
mente consagra, PAULO D E BARROS CARVALHO, sensível às
denunciadas atrocidades, revela:
“Nessa escalada de procedimentos atécnicos, mas que não se podem
considerar inusuais na experiência brasileira, aquilo que chama a aten­
ção é a circunstância de que as violações de preceitos constitucionais
C a r l o s C ésa r S o u s a C in t r a - 51

sempre se manifestaram de maneira mais velada, mais discreta, procu­


rando disfarçar manipulações desautorizadas.”59
Diante, pois, do cenário a que acabamos de descrever, é de se ter em
mente a chamada procedida por RICARDO A. GUIBOURG, que ponde­
rando sobre as relações interpostas entre direito e poder remata:
“Quien ejerce el poder, pues, tiene a su disposición el instrumento dei
derecho. Pero el uso dei instrumento muestra sus proprios requisitos,
entro los que se cuenta evitar la arbitrariedad.”60
Com efeito, cumpre não olvidar que o interesse exclusivamente arreca-
datório manifestado pelo Estado, que como se sabe encontra-se assegurado
pelo executivo fiscal, em tempo algum pode tornar-se mais intenso por meio
do sacrifício de legítimos direitos individuais através de nefandas coações con­
tra a pessoa do contribuinte.

59 Inconstitucionalidade vitanda: o novo regime jurídico das instituições de educação e de


assistência social previsto no art. 12, da Lei n° 9.532/97. Revista Jurídica lus Vivens. Campo
Grande: U CD B, 1998, n° 1, p. 176.
60 Provocaciones em tomo dei derecho. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires,
2002, p. 131.
O Tributo

Carlos Roberto de Miranda Gomes


Membro Honorário Vitalício da OAB/RN,
Membro da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte,
Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte,
Sócio efetivo da União Brasileira de Escritores do RN,
Sócio efetivo do Instituto Norte-riograndense de Genealogia.
C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m es - 5 5

P a l a v r a s in ic ia is

Tendo sido honrado com o convite do jovem tributarista André Elali


para participar de uma coletânea de trabalhos em homenagem ao Professor
HUGO DE BRITO M ACHADO, ao qual acompanho e admiro desde a
sua obra “Curso de Direito Tributário”, de 1979, editado pela Resenha Tri­
butária e, embora tenha me ausentado das lides desse ramo do Direito, decidi
aceitar o encargo, posto que considero de extrema justiça essa iniciativa.
O que deveria escrever? Logo me veio à mente os idos de 1998, quando
defendi a dissertação de mestrado ‘Tipologia Tributária (uma abordagem le­
gal e doutrinária)’, com o Prof. Hugo na banca, presidida pela talentosa Pro­
fessora Denise Lucena, da Universidade Federal do Ceará, minha orientadora
e participação do jurista conterrâneo Paulo Lopo Saraiva.
Naquela ocasião, de forma atrevida, defendi a possibilidade de subsumir
na concepção de ‘tributo’, tanto a prestação em moeda, quanto in natura e in
labore, com a relutância do homenageado em admitir tal entendimento.
Era o que pensava naquele momento e que agora ratifico, pois em 2001,
por conta da Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001 o nosso
Código Tributário Nacional trouxe a primeira possibilidade de pagamento
cm forma diferente da pecúnia, em forma de dação em pagamento em bens
imóveis e, presentemente, existe notícia da imprensa, a qual ainda não pude
confirmar, da preparação de projeto de lei complementar da autoria do Depu­
tado Fábio Faria (PMN-RN), admitindo o pagamento de crédito tributário
devido à União por médicos, através do atendimento profissional a pessoas
carentes, o se caracterizaria em pagamento in labore.

1. C o n s id e r a ç õ e s h is t ó r ic a s : o r ig e m e e v o l u ç ã o

O fenômeno da tributação, originado pela circunstância da criação de


uma exação para cumprimento pelo povo, é tão antigo quanto a própria hu­
manidade. É hoje manifestação do Poder Político do Estado, influenciando
nas suas atividades política, social, administrativa e econômica.
Nasceu, indubitavelmente, pela necessidade de o aglomerado de pessoas,
dentro de uma estrutura organizacional, em qualquer época, atender as carên­
cias comuns.
5 6 - O T r ib u t o

Seja em seu estado primitivo (a horda) ou a partir da feição civilizada


(com o advento da organização familiar), sentiu-se essa real carência cuja so­
lução, de início, ocorreu in natura, para remunerar aqueles que fossem esco­
lhidos para as tarefas em favor da coletividade e, por isso, desatrelada da cultura
de subsistência própria e de sua família.
Até então tínhamos no tributo um fator de desenvolvimento.
Mais adiante, com os prejuízos advindos das contendas, os vitoriosos
impunham encargos aos vencidos, através de indenização às suas perdas e so­
lidificação do seu poder e riqueza, tomando o tributo uma feição de castigo,
sendo as receitas assim obtidas verdadeiras reparações de guerra ou produto da
extorsão, pilhagem, saques, exploração dos vencidos e, por isso, denominadas
de receitas parasitárias.
Do tributo cogitaram os costumes, registrados nos monumentos escritos
que a história noticia, atestando a vocação natural do poder político do ho­
mem para a tributação, como forma de desenvolvimento social ou mesmo
como castigo1.
A primitiva organização do povo chinês já tratava do imposto sobre imó­
veis, das florestas, das águas, dos lagos e dos rios, das pastagens, sobre a indús­
tria e sobre mercadorias - inicialmente na base da “dízima”2dos produtos,
pagáveis in natura e posteriormente em moedas metálicas.
Na índia antiga, no Código de Manu, compilado entre os séculos XVI e
VI a.C., resultou prevista a criação de um corpo funcional composto por
pessoas de confiança e o regulamento da tributação baseando-se na fertilidade
dos terrenos e nos lucros do comércio.
No oriente próximo antigo, registram-se: na Caldeia uma admirável
ordem administrativa; na Pérsia, no VI século a.C. era chamado de pe­
queno estado tributário dos Medas, por manter uma tributação para pa­
gamento das milícias presidiárias, através de “satrapas”, espécie de prefeitos,
que eram fiscalizados por pessoas da confiança do rei, para acompanha­

1 Há quem entenda, como MIRANDA, Paulo. O dinamismo do tributo ao enfoque do universo


tributário de uma região. Rio de Janeiro: ed. do autor, 1977, p. 12, "que o tributo nasceu com
o homem, interpretando a Bíblia, em Gênesis, cap. 4, com 'o gesto de Abel, oferecendo a Deus
as primícias de sua produção, cuja aceitação, em detrimento da oferta de Caim, teria ensejado
o primeiro homicídio de que se tem notícia'."
2 Dízim a: contribuição ou imposto equivalente à décima parte de um rendimento. (NASCEN­
TES, Antenor. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1988).
C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m es - 5 7

mento do lançamento, arrecadação e recolhimento dos tributos ao erário


régio. Em razão disso foram cunhadas as primeiras moedas metálicas, de­
nominadas “dáricas”, em homenagem ao Rei Dário, sucessor de Ciro, que
deu grande organização à questão das Finanças Públicas, criando a figura
do orçamento.
No Egito notabilizou-se uma civilização muito bem estruturada, onde foi
criado um Ministério das Finanças, encarregado da arrecadação de tributos.
A Fenícia, considerada por ARISTÓTELES o maior estado da antigui­
dade, formava uma confederação de cidades (Tiro, Cidão, Útica, Leptis, Car-
tago e outras), onde criou-se uma tributação representada por dinheiro
incidente sobre minas e os impostos alfandegários, enquanto os agricultores
pagavam seus tributos em produtos extraídos da terra3.
O povo de Israel recebeu de MOISÉS o “Pentateuco”, cujo último livro
- “Deuteronômio”, cuidou, dentre outras coisas, do pagamento do dízimo, no
ano da remissão, nas festas da páscoa, de pentecostes e dos tabernáculos4.
Posteriormente, o Rei Salomão, filho de Davi iniciou uma administração
grandiosa, fundando cidades e construindo palácios, o que implicou na
estipulação de tributos extraordinários que, segundo registros, posteriormente
terminaram por arruinar o Estado.
Foi na Grécia antiga, porém, onde aperfeiçoou-se a administração públi­
ca, com a criação de um Ministério de Finanças e dos coletores de tributos
(“mastroi” ou “colacretai”) fiscalizados, por sua vez, por inspetores e magistra­
dos e ainda dos lojistas - espécie de contadores revisores de contas.
Inspirada na sabedoria e experiência grega, o Estado Romano represen­
tou o ápice da organização antiga, adotando um verdadeiro sistema tributário,
consoante muito bem desenvolve o Mestre SILVIO MEIRAS:
“0 sistema tributário romano oferece campo propício para o estudo das
origens de muitos tributos, ainda hoje vigentes em numerosas legislações.
Sua experiência multissecular, estendendo-se no tempo e no espaço, mostra
como surgem, como se transformam e como se extinguem os impostos e
taxas, sob a influência de causas sociais, econômicas epolíticas”

3 D'AURIA, Francisco. Ciência das Finanças: teoria e prática. São Pauio: CEN, 1947.
4 ALTAVILA, Jayme de. Origem dos Direitos dos Povos. 2a ed. São Paulo: Melhoramentos, p. 19.
5 Direito Tributário Romano. São Paulo: RT. 1978, p. 7.
5 8 - O T r ib u t o

Já então eram cobrados impostos diretos e indiretos, isto é, incidentes


sobre pessoas, como a “capitatia humana ou “capitatio plebéia ; tributação
sobre os atos lucrativos das profissões das pessoas - “lustralis conlatio”, (im­
posto sobre a renda atual); impostos in natura de bens, incidentes sobre a
terra (imposto imobiliário ou territorial); impostos indiretos onerando he­
ranças (vicesima hereditatum)\ sobre vendas de bens de consumo produzidos
(venalium ou vectigal rerum venalium)', sobre manumissões - 20a parte do
valor do escravo ( vicesima libertatis)', sobre litígios ( quadragésima litium );
sobre sal, minas etc. e o imposto aduaneiro (portaria ou telônia), além de
contribuições extraordinárias sobre janelas, sobre o ar, postes e colunas, te­
lhas, chaminés e fumaça, latrina e mictórios, reparação de estradas e pontes,
para prêmios e comemorações; em caso de isenção do serviço militar, manu­
tenção dos serviços públicos e de abastecimento dos exércitos.
Após esse período marcante da civilização, sobretudo com a reforma fis­
cal de DEOCLECIANO (284-305 d.C), a evolução da concepção do tribu­
to seguiu a trilha das novas necessidades, mas nunca atacando a essência
solidificada pelos Romanos, senão recebendo as influências das diversas cor­
rentes filosóficas, políticas e sociais, precursoras do Renascimento.
Na Idade Média, caracterizada pelo regime feudal - de predomínio dos
reis, duques, condes, barões, bispos e conventos, a liberdade individual foi
extirpada, razão pela qual não podia subsistir um sistema tributário coerente.
Vivia-se em círculos de economia cerrada dentro dos domínios patrimoniais
de cada feudo. Nessa contingência acontece a dispersão do patrimônio do
Estado, alienado pelos reis, conhecida como fase “dominial”, passando por um
período de transição, com o desenvolvimento da receita realenga (da coroa),
também chamada de regaliana ou regalista, porque obtidas em razão de rega­
lias concedidas pela coroa para exploração de certos serviços pela realeza (pe­
dágios, direitos de passagem, sobre minas, portos etc.).
Numa outra fase da Idade Média, o tributo perde a exigência em
decorrência do poder arbitrário ou discricionário do Estado para transfor­
mar-se numa relação de Direito, vinculando Estado versus Cidadão atra­
vés de um vínculo obrigacional para, em fase posterior, postar-se como
instrumento jurídico de obtenção de receita pública, definido por autori­
zação legal, fazendo surgir a fase moderna, dita capitalista ou tributária,
dentro de uma visão dinâmica ou procedimental do Direito Tributário,
C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m e s - 5 9

cujo estudo não mais se faz estaticamente, mas vinculado aos seus antece­
dentes e conseqüentes6.
Por último, entramos em outro momento da história em que se sobrepõe
o interesse social no sentido da utilização do tributo também para fins extra-
fiscais, isto é, para influir na solução de questões sociais, econômicas e até
políticas, o que vem perdurando até os dias presentes.
Vê-se, assim, que o conceito de tributo teve profundas variações, poden­
do se afirmar que o seu sentido moderno não corresponde ao que primitiva­
mente lhe era atribuído.

2. C o n c e it o s

Dentro dessa linha evolutiva, podemos firmar hoje uma conceituação


para o tributo, observando o que, com singular propriedade ensina o Mestre
RAIMUNDO BEZERRA FALCÃO7:
“0 conceito de tributo tem estado, com muita freqüência, vinculado ao
Direito Positivo. Isso acarreta alguns inconvenientes. Um conceito deve
ser algo abrangente, ter conotações universais .”
É isso também que buscamos neste trabalho —encontrar o entendi­
mento universal, a essência, o que somente é possível a partir da justificação
do seu nascedouro.
De imposição arbitrária nos primeiros tempos, sem atentar para a capa­
cidade contributiva do povo, passou o tributo a ser exigido em virtude de uma
razão lógica - a necessidade8.
Com o desenvolvimento das teorias contratualistas sustenta-se a tese
de que “toda a sociedade humana tem direito a possuir riquezas e de adminis-
trá-las, em ordem ao fim social, distingue TAPARELLI duas sortes de rique­
zas, as quais podem dispor de dois modos, isto é, servindo-se da utilidade
delas e promulgando leis acerca de seu uso”9.

6 GRECO, Marco Aurélio. Dinâmica da Tributação e Procedimento. São Paulo: RT, 1979, p. 64.
7 Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 22.
8 SANTO TOMÁS DE AQ UIN O admitia a tributação em caso de escassez das rendas patrimoniais
dos príncipes e conselhos, para constituição de um tesouro ou fundos necessários nas grandes
crises. A p ud PAGLIANINI, Mauro Fernandes. Direito Financeiro e Finanças Aplicadas. São
Paulo: ed. Julex, 1993, p. 46.
9 A pud GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. O Tributo. São Paulo: Max Limonad, 1983, p. 21.
6 0 - O T r ib u t o

De fato, na primeira ordem, a sociedade ao usar as riquezas possuídas


assume um caráter privado, agindo em consenso com as demais pessoas numa
seqüência natural de regras de cunho eminentemente comutativo, ou seja, no
sentido de uma troca ou permuta. Preside nas ações o domínio civil.
A esse passo seguiu a trilha da liberdade de contratar, sobretudo tendo
por objeto espacial a propriedade que, em grande parte da história, se estrutu­
rou a vida dos povos, ainda latente na fase atual, embora com outra feição.
“Podemos dizer, assim, que o tributo, na sua significação mais simples, é
tão antiga quanto a comunidade humana. Aparece ele com a manifestação
da vida coletiva, como necessidade imperiosa para a manutenção do agre­
gado social,”10
Assim, foi das necessidades das comunidades e da sobrevivência individual,
que surgiu a razão da submissão das pessoas a uma contribuição material para
satisfazer as carências comuns, tanto que a própria palavra oferece esse
significado tributum, do verbo latino tribuere (tribuo-is-ere, tribui, tributum)
com o sentido de dividir ou repartir entre as tribos11.
O instinto de poder motivou a mudança do sentido do tributo, escoi-
mando-o da possibilidade da satisfação de caprichos do chefe, ainda sob a
forma de prestações in labore ou in natura até o advento da moeda, quando
consolidou-se inpecunia.
Diante disso, foram também alterados os pactos sociais, com a neces­
sidade de uma nova ordem constituída através de normas o que obrigou a
organização do grupo social e conseqüente surgimento do embrião do Es­
tado, na concepção em que hoje se encontra. Nele, o tributo ganhou outra
dimensão, constituindo-se num instrumento jurídico para a legal obten­
ção de uma receita pública, dentro de outro tipo de contratualismo, insta­
lando-se o domínio político.
O tributo então passou a ser contribuição paga pelos particulares ao Es­
tado em troca da segurança da obtenção de vantagens promovidas pela ação
pública em forma de serviços essenciais, como no dizer de TAPARELLI12:

10 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Primeiro Volume. Rio de
Janeiro: Forense, 1995, p. 349.
11 idem autor, obra e página antes citados.
12 A p ud YLVES, ob. cit. p. 21.
C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m e s - 61

“opera como tendo autoridade e segundo as proporções da ju stiça


distributiva..!', donde conclui: “se a ordem política é meio para a aquisi­
ção da ordem cívica, a administração social deve ter em vista a prosperida­
de da Fazenda Pública, sem embargo das leis morais que devem orientar a
autoridade no exigir os tributos’'
Com o correr do tempo e com as mutações do Estado, diante da cada vez
maior complexidade das necessidades humanas e públicas, perderam vigor as
teorias contratualistas puras, fazendo renascer a ideia de Estado como resul­
tante de uma necessidade natural e social sem o que não seria possível a con­
tinuidade, a existência do ser humano. Este é o Estado concebido pelas doutrinas
publicistas, para as quais
“o tributo é uma prestação pecuniária que o Estado ou outro E nte Público
tem o direito de exigir em virtude do seu poder de império, apoiado na
lei, com o fito de obter receita. A relação obrigatória que se estabelece
entre o indivíduo e o Estado é inconfundível com as obrigações de D ireito
Privado. Estas têm o seu conteúdo e medida disciplinados entre o devedor
e o credor, p or acordo bilateral de vontades. N a obrigação tributária o
conteúdo e a medida da prestação derivam imediatamente da lei, a qual
substitui a vontade do D ireito P rivado ”n
O respeitável autor italiano G R IZIO TTI14, citado por GIULIANI
FONROUGE, tentou conciliar as doutrinas contratualista e publicista sus­
tentando que:
“a capacidade contributiva era a causa do tributo, no sentido de que os
gastos públicos produzem serviços que, p o r sua vez, aum entam a capa­
cidade contributiva dos cidadãos. Assim, a natureza produ tiva dos gas­
tos públicos origina a teoria causai da capacidade contributiva. O con­
tribuinte, no prim eiro momento, obtém um benefício e, no segundo, é
onerado pelo tributo .”
E atribui à solidariedade o fundamento do dever tributário.
Traçando um conceito flexionai do tributo, J.M. O TH O N SIDOU15
leciona:

13 Cfr. GIANNINI. II Rapporto Giuridico d'lmposta. Apud YLVES, ob. cit. p. 35.
14 Princípios de Ciência de Ias Finanzas. Buenos Aires: Depalma, 1959, p. 152-153, apud YLVES,
idem, p. 36.
15 A natureza Social do tributo. Rio de janeiro: Forense, 1978, p. 1.
6 2 - O T r ib u t o

“M as , que maiores resultados de investigação fluiremos com o definir o tribu­


to como sustentáculo do Estado (VAUBAN); ou como abrandamento departe
dos lucros a que cada um se submete para obter a segurança da outra parte
(M O N T E SQUIEU), ou como abrir mão de parte dos benspara salvaguar­
da do restante (V 0L 1A IR E ) ou ainda como uma troca entre o indivíduo e a
entidade coletiva no intuito da segurança mútua (PR O U D H O N ); oufinal­
mente como um prêmio de seguro ? ( GIRARD IM ).”
Dentro dessas circunstâncias, o ordenamento jurídico brasileiro, como o
de tantos outros Estados, preferiu deixar para a lei a diretriz do assunto, dis­
pondo no seu Estatuto Político Fundamental:
“Art. 5 a. .................
I I —ninguém será obrigado afazer ou deixar de fa ze r algumas coisa
senão em virtude de lei;

A rt. 150. Sem preju ízo de outras garantias asseguradas ao con­


tribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao D istrito Federal e aos
M unicípios:
I —exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”.
Abraçando a ordem constitucional então vigente, a Lei n° 5.172, de 25
de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) assim dispõe:
“A rt. 3°. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade adm inistrativa plena­
mente vinculada!’
Essa definição foi objeto de exaustiva discussão entre três eminentes
tributaristas: Rubens Gomes de Sousa, Geraldo Ataliba e Paulo de Barros
Carvalho, enfeixada numa publicação denominada Comentários ao Código
Tributário Nacional, inicialmente publicada pela Editora dos Tribunais, São
Paulo, em 1975.
Em razão de toda uma ideologia adotada na expressão legal, vale desen­
volver os seus componentes:
* é prestação pecuniária compulsória - a indicar que além de uma con­
duta ditada ao sujeito passivo para cumprir uma obrigação jurídica (deve ser
próprio do Direito), que será expressa em valor pecuniário (soma de dinhei­
C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m es - 6 3

ro), mas não só em dinheiro, como veremos no parágrafo seguinte. Além disso
c uma obrigação compulsória, isto é, obrigatoriamente exigida em razão do
I ’oder Fiscal por ser um instrumento jurídico indispensável ao custeio da ati­
vidade estatal;
* em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir - querendo parecer, à
primeira vista, tratar-se de redundância a alusão à moeda, mas não o é quando
completa: ou cujo valor nela se possa exprimir, porquanto entendemos como
FANUCCHI16, a possibilidade de pagamento, também, in natura, como no
passado acontecia com os minérios e hoje em títulos da dívida pública, duplica­
tas e até com bens imóveis, a teor do que cuidam o Decreto-lei n° 1.184, de 12
de agosto de 1971 e Decreto-lei n° 1.766, de 28 de janeiro de 1980, que
admitem a liquidação de tributos federais vencidos através da dação de imóveis
em pagamento, na forma especificada em lei, induzindo ao pensamento de
idêntica possibilidade no pagamento in labore, quando seja possível admitir o
pagamento através da realização de obras já programadas ou em prestação de
serviços, nas condições estipuladas pelo Poder Público, através de lei específica.
Esse nosso entendimento foi questionado pelos examinadores Denise
Lucena e Hugo de Brito Machado, pedindo mais detalhes sobre a possibili­
dade de tributo in natura e in labore, o que então atendemos, apontando a
opinião de doutrinadores pátrios respeitáveis, a teor de CELSO RIBEIRO
BASTOS ( Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 5a ed. São Paulo:
Saraiva, p. 139) ao comentar o art. 3o do CTN, dizendo: “... esta, contudo, abre
brecha para certos bens —aí incluído o trabalho humano”. Em igual sentido opina
PAULO DE BARROS CARVALHO, em seu Curso de Direito Tributário.
17a ed. São Paulo: Saraiva, p. 25, afirmando o exagero da ampliação do termo,
dando ensancha a albergar até o trabalho humano, que ganharia a possibilida­
de jurídica de formar o substrato de relação de natureza fiscal. Ainda registra­
mos o opinar do consagrado e saudoso ALFREDO AUGUSTO BECKER,
na sua clássica obra muitas vezes invocada nesta dissertação, p. 562, que não
nega a natureza tributária às prestações in natura ou in labore a favor do Esta­
do: “... nos tempos modernos há um recrudescimento dos tributos in natura e in
labore, por ocasião de crises sócio-econômicas de âmbito nacional ou internacional

16 FANUCCHI, Fábio. Curso de Direito Tributário Brasileiro, v.l. São Paulo: Resenha Tributária/
MEC, 1975, p. 52.
6 4 - O T r ib u t o

Um último registro, ainda que em contrário, da autoria de AMARO,


Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 20-21,
onde comenta a existência de corrente no mesmo sentido do nosso entender,
com a qual não concorda, somente admitindo tal extensividade se o texto
legal recebesse a redação que sugere, permissiva dessa forma de pagamento.
Com o advento da Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001,
foi acrescido ao art. 156 do CTN o inciso XI, que dispõe: Art. 156. Extin-
guem o crédito tributário: .... XI - a dação em pagamento em bens imóveis,
na forma e condições estabelecidas em lei.’ Isto deu o primeiro alento ao
nosso modesto entendimento.
Comentando o novo dispositivo encontramos pronunciamentos so­
bre a questão, como no caso do Professor Hugo de Brito Machado Segun­
do17, p. 310:
“Dação em pagam ento. Exceção à regra de que o tributo éprestação
pecuniária —O tributo éprestação pecuniária. Por isso, a dação em paga­
mento de que cuida o art. 156, X I, do CTN , depende da edição de lei, por
cada ente tributante (União, Estados-membros,Distrito Federal e M uni­
cípios), estipulando a form a e condições nas quais poderá ocorrer.”
É bem de ver que o Município de São Paulo, pelo menos, já disciplinou
essa modalidade de extinção de crédito tributária, através da Lei n° 13.259,
de 28/12/2001, o que deve ter ocorrido com outros municípios brasileiros.
No mesmo entender encontramos os ensinamentos de José Francisco da
Silva Neto - Apontamentos de Direito Tributário. Rio de Janeiro: ed. Forense,
2004/31 e 32. E em sentido contrário temos Marcelo Alexandrino e Vicente
Paulo —Manual de Direito Tributário. Niterói-RJ: ed. Impetus, 2006/7, que
entendem que o fato da nova previsão legal não tem nenhuma relação com o
conceito de tributo.
Insistimos em nossa concepção inicial de que, de nenhuma maneira pode
ser tida como inusitada, posto que assim decidiu o legislador pátrio, com base
numa tradição histórica e que agora, com mais razão ainda reafirmamos, ad­
mitindo, além do pagamento do tributo em dinheiro, também por outras
formas, como meio integrativo com o instrumental pecuniário preponderan­
te, quando circunstancialmente seja impossível a satisfação do tributo por essa

17 Código Tributário Nacional - Anotações. São Paulo: ed. Atlas, 2007.


C a r l o s R o b e r t o d e M ir a n d a G o m e s - 6 5

via mais usual, como também acontece nas situações de extinção do crédito
tributário, na forma regulada por lei específica, nesta parte em plena concor­
dância com o Professor HUGO, consoante o Capítulo II do seu Curso invo­
cado várias vezes naquele nosso trabalho.
* que não constitua sanção de ato ilícito - caracterizando que o tributo
não é pena e sim uma obrigação surgida em decorrência da prática de um fato
jurídico (lícito) tributável, embora, se possa admitir a cobrança de prestação
pecuniária, compulsória, quando um fato ilícito alcança resultado positivo em
favor de quem o pratica, como acontece com algumas contravenções penais -
jogo do bicho, por exemplo, que leva à aquisição de riqueza ou à prática de
crime, como a remuneração com o exercício ilegal da profissão.
Nesta parte do conceito legal do tributo, o examinador HUGO DE
BRITO M ACHADO sugeriu fosse explicada a distinção entre hipótese de
incidência e fato gerador, assunto que ele desenvolve, como poucos, com sim­
plicidade e clareza no seu Curso, 10a ed. p. 39-40.
E reconhecida a dicotomia da expressão (parte agora analisada do concei­
to) no plano jurídico, com efeitos idênticos, mas com natureza antagônica, haja
vista os dois momentos em que se apresenta - inicialmente, ainda na fase abs­
trata da hipótese de incidência, calcada numa relação econômica e prevista na
descrição normativa da situação de fato. Neste instante não é admissível a pre­
sença do ilícito, pois existe prévia ciência de um fato lícito no enunciado essen­
cial da lei. Do contrário estaria sendo instituída uma sanção e não um tributo.
Todavia, em um segundo momento, na fase de concretização da hipótese (ocor­
rência do fato gerador) e conseqüente lançamento (quando a obrigação tributá­
ria recebe qualificação e quantificação e se transforma em crédito tributário)
pode o fato alcançar uma circunstancial ilicitude a compor a obrigação, o que
até então era desconhecida e, por isso, irrelevante sob o visor tributário.
Várias são as formas como a doutrina exemplifica essa questão, tendo em
conta a previsão do fato gerador, por exemplo, do ISS —Decreto-lei 406/68,
arts. 8o ao 10, que é a prestação de serviços sem vínculo empregatício, quando
são estes prestados por pessoa que foi afastada da sua atividade profissional,
circunstância em que o tributo é devido mesmo assim, posto que ocorreu o
fato gerador, não interessado na relação jurídico-tributária a natureza ou ob­
jeto do ato, se de maneira lícita ou não, válido ou inválido na sua relação
jurídica comum. (Ver a respeito o estudo do Professor BECKER, p. 548 a
6 6 - O T r ib u t o

561 e as indicações jurisprudenciais do STF=RE 94001-SP, RTJ 104/1129


e RE 111.003-1-SP, de 25.3.1988, apresentadas pelo Professor V ITTÓ-
RIO CASSONE, ob. cit., 10a ed. Atlas, p. 66).
* instituída em lei, diante do princípio inarredável, previsto no sistema
jurídico-tributário, por ser essência do Estado Democrático de Direito, en­
cartado nas disposições da Constituição da República Federativa do Brasil,
arts. 5o, II; 150, II e III, a e b: “O princípio da legalidade é uma das mais
importantes colunas sobre as quais se assenta o edifício do Direito Tributário. A raiz
de todo ato administrativo deve encontrar-se numa norma legal\ nos termos expres­
sos do art. 5o, II, da Constituição da República ’18.
* e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada,
valendo dizer, cobrada em virtude de um procedimento legal de natureza
burocrática atribuído ao Fisco, que declare a ocorrência da hipótese de inci­
dência no mundo fenomenológico, como acontece com o “lançamento”, que é
um ato ou conjunto de atos privativos da autoridade administrativa, por pre­
visão em lei.

3. C o n clu sõ es

Ao findar este artigo, retirado de trabalho mais alentado, especificamen­


te na abordagem sobre ‘o tributo’, firmamos como pontos relevantes anotados,
para formarem o elenco das nossas conclusões, na parte tópica deste trabalho,
o seguinte:
1. O fenômeno da tributação é tão antigo quanto a própria humanidade,
em razão das necessidades do aglomerado de pessoas.
2. Em sua evolução, o tributo passou da condição de pena, depois de
imposição arbitrária, para manifestação do Poder Político do Estado, consen­
tido pelo povo, através de um “Pacto de Cidadania”, como imperativo da ma­
nutenção do agregado social e da justiça distributiva.
3. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo
valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída
em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

18 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. 5a ed. São Paulo:
Malheiros, p. 143-144.
C a r l o s R o b e r t o de M ir a n d a G o m e s - 6 7

4. As formas do pagamento das exações tributárias, conforme a lei, po­


dem ser exercidas em pecúnia, por excelência, mas também em natureza e em
trabalho, na forma da lei.

R e f e r ê n c ia s

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Manual de Direito Tributário. Niterói-RJ:


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Princípios e Conseqüências
A Teoria da Escolha Racional
como Método de
Ponderação

Cristiano de Carvalho
Mestre e Doutor em Direito Tributáriopela PUC/SP. Pós-Doutor em Direito e
Economia pela U.C. Berkeley. Professor nos cursos do IBET, PUC/COGEAE
IDP, UFRGS e Escola da Magistratura do Tribunal Federal da 4a Região.
Advogado no RS e em SP.
C r is t ia n o d e C a r v a l h o - 71

In tro du ção

O tema dos princípios é um dos mais em voga na doutrina jurídica pátria.


De acordo com a nossa tradição de importar a produção da Europa Continen­
tal, muito se escreveu sob influência da doutrina alemã, fundamentalmente de
índole filosófica.
Acredito, entretanto, que uma contribuição teórica muitíssimo mais rica,
prática e bem-sucedida está à nossa disposição há muito tempo, mas que apenas
recentemente foi apresentada ao Brasil. Trata-se da aplicação da Economia ao
Direito, ou, mais simplesmente, Direito e Economia. A sua superioridade en­
contra-se no fato de a Ciência Econômica ser, de longe, a ciência social com
mais êxito até hoje. Seu caráter empírico e sua forte matematização a tornou
uma ciência no mais puro sentido da palavra, pois é capaz de não apenas descre­
ver acuradamente o seu objeto, como também prever, com razoável grau de
precisão, o comportamento futuro desse mesmo objeto.
E qual objeto é esse? A escolha humana, ou seja, como os indivíduos
escolhem agir em face de um mundo onde os recursos são escassos. Tal objeto
c tão amplo que inclui, em rigor, todo o espectro da realidade social, em nível
intra e inter-subjetivo. Isso faz, conforme ensina Gary Becker1, com que a
Economia seja mais um método do que uma Ciência com objeto delimitado,
uma vez que suas ferramentas podem ser aplicadas a todo tipo de comporta­
mento humano2, regido por escolhas individuais.
Como o Direito prescreve condutas e (de)limita o raio dessas escolhas, ao
mesmo tempo que essa própria produção normativa também é realizada por
indivíduos que escolhem, e que os direitos em questão são escassos, nada mais
apropriado que a Análise Econômica para descrever o fenômeno jurídico e
prescrever como ele pode ser mais eficiente.
Isso se aplica de forma ainda mais dramática quando a escolha deve ser
feita de forma a solucionar casos difíceis, onde há lacunas normativas ou a
possibilidade de mais de um princípio ser aplicado ao mesmo caso. Para
tanto, ferramentas precisas e preditivas da Economia são mais do que bem-
vindas ao Direito.

1 The Economic Approach to Human Behaviour. The University of Chicago Press, 2001, p. 5.
2 Daí a interdisciplinaridade da Economia, o que permite aplicações na Psicologia, na Sociolo­
gia e também no Direito.
7 2 - P r in c íp io s e C o n s e q ü ê n c ia s

O que pretendo, com este breve artigo, é, ao invés de trazer uma solução
propriamente dita, dar início a um debate. Entendo que as análises de exter-
nalidades, de trade offs, custos de oportunidade, dentre outras categorias eco­
nômicas, devem ser levadas em conta pelos operadores do direito, principalmente
pelos juizes, que fecham o sistema jurídico através de suas decisões.

1. A n á l is e E c o n ô m ic a do D ir e it o e E s c o l h a R a c io n a l

A Escola jurídica comumente denominada “Direito e Economia” {Law


and Economics), ou “Análise Econômica do Direito”, é tida como o movimen­
to teórico mais bem-sucedido das últimas décadas. Com seu enfoque inter-
disciplinar entre Ciência Jurídica e Ciência Econômica, a Análise Econômica
conquistou posição praticamente hegemônica nos Estados Unidos da Améri­
ca a partir da década de setenta do século passado. O mesmo fenômeno vem
ocorrendo na Europa continental, por meio da criação, na década de oitenta,
da European Association of Law and Economics, bem como da instituição de
diversos cursos nas universidades europeias, além de inúmeras publicações,
entre livros e artigos, abordando o tema.
No Brasil, o movimento chegou recentemente, começando pelo Rio Gran­
de do Sul, na década de noventa, e tendo depois alastrado-se para demais
estados, tais como São Paulo, Minas Gerais, dentre outros.
As premissas básicas da Análise Econômica do Direito são: 1) Indivíduos
são racionais, o que significa que efetuam escolhas e que as escolhas buscam
maximizar o seu próprio interesse, ou, como dizem os economistas, maximizar
a sua utilidade. E, para tanto, reagem a incentivos. 2) Essas escolhas, sejam as
realizadas por criminosos, pagadores de impostos, legisladores ou juizes, acarre­
tam conseqüências.
1 . 1 . E s c o l h a R a c io n a l

Para que uma escolha seja racional, do ponto de vista econômico, é ne­
cessário que ela contenha as seguintes características: 1) seja completa, o que
significa que o indivíduo deve ser capaz de elencar a sua preferência em face
de suas alternativas. Por exemplo, deve ser capaz de dizer que prefere A a B;
2) seja transitiva, isto é, se o indivíduo é capaz de perceber que se prefere A a
B, e B a C, então necessariamente prefere A a C : ( A > B > C ^ A > C).
C r is t ia n o d e C a r v a lh o - 7 3

Nesse sentido, o método econômico aplicado ao comportamento huma­


no implica que os indivíduos normalmente agem de forma racional, buscando
melhorar o seu bem-estar e avaliando as suas escolhas através de uma avaliação
custo/benefício. Cabe não incorrer na confusão freqüente entre escolha racio­
nal e escolha acertada ou correta. Fazer escolhas racionais não implica, de
forma alguma, que, aos olhos dos demais, a alternativa optada pelo sujeito seja
a melhor para si ou para outros.
Como exemplo, temos a situação de um sujeito que, imaginando que
será torturado e morto pelo exército inimigo, prefere tirar a própria vida antes
disso. Ironicamente, um minuto depois, os seus companheiros de farda che­
gam para resgatá-lo, infelizmente tarde demais. Alguns poderiam pensar que
a escolha do pobre soldado foi precipitada e equivocada. Ocorre que, dadas as
circunstâncias e a informação que o mesmo tinha da situação em que se
encontrava, a sua análise custo/benefício lhe indicou que o seu ganho seria
maior se ele se suicidasse do que se caísse nas mãos dos seus inimigos.
A concepção de racionalidade aqui exposta não busca defender qualquer ponto
de vista ideológico, pois não é uma visão normativa do ser humano, mas positiva.
Em outras palavras, a Teoria da Escolha Racional não pretende prescrever como
o homem deve se comportar, mas sim como ele, de fato, se comporta.
Como não poderia deixar de ocorrer com qualquer teoria, a Escolha Ra­
cional tem a sua porção de críticos. Dentre as críticas mais usuais, provenien­
tes de grandes pensadores como, por exemplo, John Searle3e Amartya Sen4,
encontram-se as que defendem uma visão menos reducionista da racionalida­
de, que inclua conceitos morais, tais como obrigações, proibições e deveress.
Seja como for, o fato é que a ponderação custo/benefício é uma proprieda­
de ínsita de todo indivíduo racional. Tal raciocínio funciona como um mecanis­
mo regulador, certamente desenvolvido ao decorrer de milênios de evolução, que
tem a função de adaptar o indivíduo da melhor forma possível ao seu meio.

3 Rationality in Action, MIT Press, 2001.


4 Rationality and Freedom, Harvard University Press, 2002.
5 A maior parte das críticas e revisionismos em relação à Escolha Racional provém atualmente da
própria Escola da Análise Econômica do Direito. Como exemplo, os crescentes estudos
interdisciplinares entre Psicologia e Economia, que levam o nome de Heurística, cujo tema de
análise são as avaliações que sofrem influências que incorrem em parcialidades muitas vezes
não percebidas de forma consciente pelo indivíduo, mas que influem nas suas escolhas. Como
sugestão de leitura, ver o livro Heuristics and the Law (MIT Press, 2006, coordenado por Gerd
Ggerenzer e Christoph Engel).
7 4 - P r in c íp io s e C o n s e q ü ê n c ia s

1 .2 . L e v a n d o a s c o n s e q ü ê n c ia s a sério

Qualquer ação tomada pelo indivíduo requer, como condição necessá­


ria, uma escolha dentre as alternativas que lhe cabiam no momento, de acor­
do com a quantidade de informação de que ele dispunha. Essa escolha que
motivou a ação acarretará, inevitavelmente, toda uma miríade de novas al­
ternativas de ações a serem tomadas. Da mesma forma que no jogo de xa­
drez cada jogada abre toda uma nova gama de possíveis estratégias, assim
também acontece com em nossa vida, desde as situações mais comezinhas
até as mais relevantes.
Todavia, muitas vezes, as conseqüências afetam não apenas quem tomou
as decisões, mas também a terceiros. São as externalidades, que podem ser tanto
positivas quanto negativas. Por exemplo, sei que se eu optar por levar uma vida
desregrada, comendo e bebendo de forma não saudável, mais cedo ou mais tarde
a conseqüência será a perda da minha saúde. Em tese, esse é um problema que
compete apenas a mim, encontra-se dentro da minha esfera de livre-escolha de
como levar a minha própria vida do jeito que bem entendo. Contudo, se os
meus problemas de saúde acarretarem custos para alguns terceiros (família) ou
para todos (Estado), gerarei externalidades negativas6.
Por outro lado, as externalidades geradas para terceiros podem ser tam­
bém positivas. Por exemplo, a implantação de obras públicas podem acarretar
valorização nos imóveis dos contribuintes. Essa externalidade pode ser inter­
nalizada pelo Estado, ao instituir a Contribuição de Melhoria, que será co­
brada na medida dessa valorização. O problema é que nem sempre essa
externalidade pode ser internalizada, gerando o problema àofree rider.
Externalidades positivas efree riders são, na Economia, usualmente asso­
ciados à problemática dos bens públicos. Cabe salientar que a concepção eco­
nômica de bem-público não se confunde com a definição jurídica usualmente
atribuída à mesma expressão. No Direito, bem-público costuma ser aquele
que é de propriedade do Estado, como, por exemplo, hospitais, bibliotecas e
escolas públicas. Para a Economia, no entanto, um bem é público quando
reúne duas características: 1) uso não rival; e 2) não exclusividade.

6 O exemplo de externalidade negativa mais citado na literatura especializada é o da fábrica


poluidora, cujo custo gerado a terceiros (poluição) que não fazem parte da relação fábrica e
cliente não é internalizado nos custos da fábrica.
C r is t ia n o d e C a r v a lh o - 7 5

Uso não rival significa que o fato de um fruir do bem não impede que o
outro possa fruir também. Exemplificando, o fato de eu tomar sol na praia
não impede que outros possam fazê-lo da mesma forma, ou seja, o meu uso
do sol não reduz o uso dos outros (logo, o bem não é escasso).
Não-exclusividade significa que não há como excluir terceiros do uso do
mesmo bem, ou então o custo para possibilitar essa exclusão é tão alto que
nenhuma empresa privada desejará produzi-lo7. Se respiro o ar à minha volta,
não posso impedir que outros também respirem. O contrário, por óbvio, ocor­
re nos bens privados, onde o proprietário tem condições de impedir o uso de
seu bem por outras pessoas.
A externalidade positiva, ao contrário do que o senso-comum possa pen­
sar, também acarreta problemas, pois não gera incentivos para que aquele bem
possa ser produzido ou explorado de forma eficiente.
Exemplificando, temos a situação na qual determinada rua residencial
vem sofrendo constantes roubos e assaltos. Os moradores resolvem se reunir
para, em conjunto, contratar uma empresa de segurança privada. Um deles,
que sofreu mais assaltos, consulta uma empresa de segurança e informa aos
vizinhos o custo que sairá para cada um da contratação do serviço. Os vizi­
nhos desistem da contratação por achar que o serviço é caro demais. Contudo,
o morador vítima de assalto contrata os serviços e coloca o segurança apenas
em frente à sua residência.
A presença do segurança acaba inibindo as atividades criminosas em toda
a rua. Apesar de apenas um dos moradores estar arcando com o custo, todos os
demais se beneficiam. São, portanto, free-riders. Nessa situação específica, a ne­
cessidade impôs ao morador que arcasse com todos os custos, mas em diversas
outras situações em que não ocorresse tal necessidade, também não haveria in­
centivos para que se criasse um bem ou serviço que agregasse free-riders ao seu
uso8. É por isso que, nesses casos, esses bens públicos devem ser implementados

7 Cf. COOTER, Robert D.; UELLEN, Thomas. Law and Economics, Addison Wesley, 2a ed., p. 40.
8 É por isso que em diversas situações existem monopólios necessários, conferidos e protegidos
pelo Estado. É o caso das patentes e dos direitos autorais, Como ideias se disseminam rapida­
mente, a criação de algo por alguém poderia agregar free-riders, uma vez que, ao contrário de
uma propriedade tangível, que pode ser guardada fisicamente pelo seu proprietário (seja um
bem-móvel, seja um bem imóvel), não se pode guardar uma ideia no cofre. No que ela é
disseminada, pode vir a ser explorada por outros. A chamada propriedade intelectual serve
como mecanismo de preservação de incentivos para a criatividade e produção de ideias, de
forma a evitar que invenções e criações intelectuais tornem-se bens públicos.
7 6 - P r in c íp io s e C o n s e q ü ê n c ia s

e explorados pelo Estado. Todo o resto, mesmo aquilo que juridicamente é


definido como bem-público, mas que permite o uso-rival e a exclusividade,
deve ser explorado pela iniciativa privada, que o fará de forma mais eficiente.

2. A p l ic a ç õ e s n o D ir e it o : a q u e s t ã o d o s p r in c íp io s

2 . 1 . V a lo r es , esc o lh a s e r en ú n cia s

O Homem age no mundo. Para agir, o seu aparato de adaptação ao am­


biente, adquirido através de milênios de evolução, é a razão, entendida como a
capacidade humana de processar e conceitualizar abstratamente os dados ad­
vindos da realidade.
A razão permite que o indivíduo possa efetuar escolhas consistentes,
conforme visto acima. Entretanto, como diz o aforisma, para cada escolha,
uma renúncia. Sempre que o indivíduo opta por uma alternativa, exclui as
demais. O termo econômico para essa escolha/renúncia é trade ojf, uma troca
que implicará também num custo de oportunidade.
O custo de oportunidade, por sua vez, é o custo em que incorre o indiví­
duo por deixar de ter escolhido a segunda melhor alternativa. Por exemplo, se
João tem a alternativa de estudar no exterior ou continuar no seu emprego, ao
optar por estudar, o seu custo de oportunidade serão os salários que deixará de
ganhar por não estar trabalhando.
As escolhas efetuadas pelo agente racional são baseadas em preferências
pessoais, sendo que essas preferências, por sua vez, são elencadas com base nos
valores de cada indivíduo. Se João opta por estudar no exterior, é porque essa
opção lhe tem mais utilidade, i.e., ele valora mais a sua formação pessoal do
que o emprego presente.
Não se pode olvidar que o indivíduo racional, ao escolher uma alterna­
tiva de ação, não está isolado da realidade, não se encontra em estado de
suspensão do mundo. Essas escolhas são influenciadas pelos incentivos que
se apresentam para cada uma delas. Se João prefere estudar fora é porque
essa opção foi (mas não unicamente) tomada por influência de incentivos,
que podem ser, v.g., expectativa de ascensão profissional, de aceitação num
determinado grupo, de aperfeiçoamento cultural ou mesmo de satisfação do
próprio ego.
C r is t ia n o d e C a r v a l h o - 7 7

Cabe dizer que, não obstante algumas propostas teóricas tais como a
Teoria dos Sistemas erigirem modelos nos quais o sistema social é subdivi­
dido em subsistemas, tais como o jurídico, o científico, o religioso, o merca­
do, etc., o fato é que isso nada mais é do que uma ficção heurística9. O
sujeito pode ser cientista, operador do direito ou investidor na bolsa, ou
todas as opções conjuntas, e, ainda assim, raciocinará da mesma forma: atra­
vés da escolha racional e da análise custo/benefício. E reagirá aos incentivos
como qualquer outro indivíduo.
Quando transpomos a questão da escolha individual para o Direito, per­
cebemos que o aplicador das normas nada mais faz que efetuar uma escolha
racional. É evidente que o seu leque de escolhas está delimitado pelo próprio
Sistema Jurídico: o juiz deve julgar de acordo com a lei; o fiscal tem que agir
dentro dos limites legais; os contratantes não podem contratar fora dos dita­
mes do Código Civil. Ainda assim, o aplicador/operador do direito não é um
autômato, mas sim um ser racional, que escolhe, seja entre aplicar uma ou
outra norma, seja entre aplicar ou não aplicar nada, ou seja até mesmo em
cumprir ou violar as normas a que ele também está sujeito10.
2 .2 . O QUE sã o " p r in c íp io s ", a f in a l ?

A onda dos “princípios” tomou de assalto a doutrina pátria. É “postula­


do” para cá, “princípio” para lá, “ponderação” aqui, “colisão” acolá. Tal epidemia
lembra a praga dos coelhos na Austrália11, algo que nasceu despretensioso,
mas cuja reprodução exponencial gerou uma verdadeira catástrofe nacional.
Trata-se da “farra principiológica”, na feliz expressão cunhada por Ronaldo
Porto Macedo12, pela qual se acha que todo e qualquer problema jurídico

9 A Ciência frequentemente se utiliza de ficções heurísticas, que são construções dissociadas da


realidade, mas que têm a função de explicar determinada porção do real. Os custos de
transação "zero" de Ronald Coase, no seminal artigo "The Problem of Social Cost" (Journal of
Law and Economics, 1960), é um exemplo.
10 Um fiscal, cuja atividade seja vinculada, pode ter incentivos a não aplicar a lei. Esse incentivo
pode ser meramente ilegal, mas com conteúdo moral positivo para ele (v.g., não autuar um
contribuinte em dificuldades financeiras) ou ilegal com conteúdo moral negativo (v.g., receber
propina para não multar o particular).
11 Ainda no Século XIX, ingleses resolveram levar coelhos para a Austrália. A reprodução descon­
trolada e imprevista dos animais gerou enormes problemas, principalmente para os fazendei­
ros, que viam suas lavouras serem devastadas pelo ataque dos coelhos.
12 Introdução à segunda edição do livro Direito da Empresa e Contratos, Thomson/IOB, 2a ed.
Coordenação de Luciano Benetti Tlmm.
7 8 - P r in c íp io s e C o n s e q ü ê n c ia s

pode ser solucionado por meio de um passe de mágica, como se princípios


fossem coelhos tirados da cartola.
O fato é que invocar princípios deveria ser a exceção e não a norma geral.
O ordenamento jurídico é formado, na maior parte, por regras de razoável
clareza. Regras de direito privado e de direito penal têm um forte grau de
objetividade. Entretanto, quando a situação fática não se enquadra em ne­
nhuma das previsões normativas ou então mais de uma regra pode ser aplicada
à mesma situação, problemas surgem. São os chamados, pela doutrina ameri­
cana, de hard cases, i. e., aqueles casos onde uma mera subsunção do fato à regra
não é suficiente para resolver o problema. Nessas situações, para que o sistema
jurídico retorne ao equilíbrio, o juiz necessita de um grau maior de “criativi­
dade” e, num certo sentido, cria novo Direito.
Sequer cabe falar em conflito entre princípios e regras, pois havendo
regras legais para o caso concreto, elas sempre deverão prevalecer dada a sua
objetividade e também pelo fato de terem sido criadas por um poder cujos
representantes (ao contrário do Judiciário) são eleitos popularmente. Cabe
dizer que a prevalência das regras legais atende à própria regra constitucional
da legalidade, bem como também ao valor fundamental que está por detrás
desta, o do Estado Democrático de Direito.
Mas, e o que são princípios, afinal? Sabemos, desde Austin, Kelsen e Hart,
que o Direito é formado por comandos cuja coercitividade se dá por intermédio
das sanções. Em outras palavras, os elementos do direito são regras que obrigam,
proíbem e permitem, cujo elemento coercitivo se dá através das sanções (estas
também regras, ou, como querem alguns, pertencentes à própria estrutura lógica
da regra dispositiva, que impõe primeiramente a conduta a ser tomada), cuja
aplicação se dá por meio do Estado, detentor do monopólio de uso da força.
Mas não é apenas isso. Regras que impõem condutas são meios que o
Direito tem para implementar certos fins. Seja esse fim meramente a estabiliza­
ção da ordem social (polícia, repressão ao crime, execução de contratos, proteção
aos direitos individuais, preservação da ordem pública, etc.), seja um programa
definido (v.g., políticas públicas), o meio para se alcançá-los é impô-los através
da coercitividade estatal. Mesmo no que tange a direitos e garantias pertencen­
tes à esfera privada do indivíduo, tais como, por exemplo, o direito de proprie­
dade ou o direito à livre expressão, o Estado se faz necessário para, quando
preciso, fazer valer esses direitos individuais.
C r is t ia n o d e C a r v a lh o - 7 9

Ocorre que, às vezes, ou não há regra prevista para o caso, ou as regras


conflitam entre si, ou ainda, são postas no sistema contrariando a Consti­
tuição ou diploma infraconstitucional de hierarquia superior. Aí entram em
cena os princípios13.
Os chamados princípios são enunciados, explícitos ou implícitos, que
buscam traduzir em linguagem normativa valores morais, políticos e sociais
que o legislador constituinte entendeu ser o núcleo duro do sistema jurídico.
Referem-se tanto a direitos e garantias fundamentais, principalmente os de
natureza negativa (artigo 5o da Constituição), como a expedientes de solução
de lacunas e antinomias jurídicas.
Na dinâmica normativa, de autoconstrução constante do sistema por seus
operadores, os princípios são também argumentos. Como argumentos, são
utilizados tanto pelas partes num litígio, quanto pelo seu julgador. Na solu­
ção de hard cases, os princípios funcionam como válvula de escape do ordena­
mento jurídico, pois permite que se possa solucionar um caso concreto que
carece de regra, sem que se instaure uma crise sistêmica.
2 .3 . E s c o l h a R a c io n a l , ex t er n a lid a d es e m é t o d o de
PONDERAÇÃO NA COLISÃO DE PRINCÍPIOS

Como mencionamos linhas acima, há situações onde as regras não dão


conta do serviço. E, para piorar ainda mais, os princípios também não ofere­
cem saída objetiva. Imagine um caso fictício, onde determinado sujeito, pes­
soa pública (por exemplo: apresentadora de tevê) tem a sua intimidade revelada
pelos meios de comunicação. Considere que não há regra prevista para tal
situação específica, logo, há uma lacuna normativa. A apresentadora processa
o veículo de comunicação, por danos à sua imagem. Como deve o juiz decidir?
Dois princípios parecem entrar em “colisão”, no presente caso. O direito
fundamental da privacidade e o direito fundamental à livre expressão (do
qual a livre imprensa é corolária).
Como decidir? Os critérios de solução costumam ser bastante retóricos,
apoiados em noções de ordem moral por vezes indefinidas e ambíguas. Por
que não aplicar um pouco de escolha racional e análise econômica?

13 Por amor ao critério aristotélico de definição, qual seja, gênero próximo e diferença específica,
tanto os princípios quanto as regras têm como gênero próximo a norma jurídica, sendo esta,
portanto, o elemento universal do sistema jurídico.
8 0 - P r in c íp io s e C o n s e q ü ê n c ia s

É importante ressaltar que o consequencialismo não deve ser a única ques­


tão a ser levada em conta. O juiz pode ser um kantiano, i.e., alguém que prefere
a Deontologia do que o Consequencialismo, mas o que se pede é que, ao menos,
as conseqüências também sejam tomadas em consideração, especialmente se a
decisão tiver o efeito de atingir terceiros que não integram a lide. Como isso
acontece frequentemente, as conseqüências sempre deveriam ser levadas a sério
por aqueles que têm o poder de decidir no sistema jurídico.
No caso fictício mencionado, o julgador deve levar em consideração: 1)
haverá externalidades negativas se a sua decisão proteger o direito à privacida­
de da apresentadora? Ou as externalidades serão positivas?; 2) essas externali­
dades acarretarão quais possíveis conseqüências?
Aplicando a teoria econômica dos bens públicos aos direitos e garantias
fundamentais, podemos perceber que a mera irradiação erga omnes destes para
todos os cidadãos os torna bens públicos. Não posso impedir que o sujeito ao
lado também, apriori, tenha a sua liberdade de expressão protegida pela Cons­
tituição, nem tampouco a sua liberdade de expressão excluirá a minha.
Entretanto, quando interesses conflitam, a aplicação efetiva desses direi­
tos fundamentais pelo julgador os converte em bens privados. Há um trade ojf
aqui: se o julgador conceder o direito de privacidade à apresentadora, excluirá
a liberdade de expressão (para o presente caso, é bom lembrar) do veículo de
comunicação. Por outro lado, se proteger a liberdade de expressão deste, ex­
cluirá a apresentadora do uso do seu direito à privacidade14.
Havendo externalidades, positivas ou negativas, o juiz deve avaliar o im­
pacto que elas acarretarão. O argumento de que o que interessa é apenas a
decisão justa entra as partes é falacioso, pois, se terceiros são atingidos pela
decisão, o caso não é mais apenas entre “as partes”. Por exemplo, se a decisão
pelo juiz condenar pesadamente o veículo de comunicação, no exemplo aci­
ma, o efeito poderá ser uma elevação do “custo” avaliado pela mídia em colher
e transmitir esse tipo de informação, privando os consumidores desse bem tão
precioso. Por outro lado, se a decisão for absolver o veículo, o efeito poderá ser

14 Alguns podem argumentar, dependendo da sua opinião, que ou o veículo nunca teve
liberdade de expressão, ou a apresentadora nunca teve direito à privacidade, naquele caso
concreto, Isso em nada muda o argumento econômico acima exposto. Quem decidirá será o
julgador que excluirá o uso de tal direito (existisse ele a priori ou não) de um ou de outro, e
o trade o ff permanece.
C r is t ia n o d e C a r v a l h o - 81

uma “carta branca” para que a imprensa possa invadir a privacidade de qual­
quer um, pois o custo para tanto é baixo.
Uma observação é importante para evitar equívocos e mal-entendidos.
Avaliação de conseqüências não configura uma espécie de inversão de valores,
mas tão somente tem a capacidade de tornar as decisões jurídicas mais eficien­
tes. Se o que o juiz pretende é punir o veículo de comunicação, deve fazê-lo
de forma que o efeito de barreira (deterrence) de fato ocorra15. Se condená-lo a
pagar uma baixa quantia a título de indenização, essa condenação será vista
como um preço baixo para tais ações por parte do infrator, que terá, portanto,
um incentivo para continuar cometendo-as. Em outras palavras, para se reali­
zar a justiça no caso concreto, as conseqüências devem consideradas.

C o n clu sã o

Como se pode ver acima, a avaliação de conseqüências por meio de exter-


nalidades, que deve influenciar a escolha por uma ou por outra alternativa,
não é um critério de índole parcial. Não serve para “atender a interesses de
poderosos” ou para “proteger os mais fracos”. Dependendo de especificidades
do caso concreto, tanto uma quanto outra decisão pode ser a mais eficiente no
que tange às conseqüências acarretadas.
Em síntese, o que importa é tornar o Direito mais eficiente, para que
possa, então, alcançar os seus fins de justiça. E, para tanto, a escolha racional é
um potente instrumento na consecução desses valores tão importantes quanto
difíceis de implementar.

15 No Brasil as condenações por dano moral são relativamente baixas, o que gera poucas barreiras
ao cometimento de novas infrações. Se o infrator condenado considera baixa a condenação e
para ele tem mais utilidade continuar cometendo-a (afinal, ele é um agente racional), o mero
pagamento de danos morais não impedirá reincidências. Logo, se a intenção é impedir a
ocorrência de danos morais, a regra contida na decisão do juiz não tem eficiência.
r
Princípio da Legalidade
Tributária

Edvaldo Brito
Doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo —USP e
Livre-Docente em sua Faculdade de Direito. Mestre em Direito Econômico
pela Universidade Federal da Bahia-UFBA., de onde é Professor Emérito e
leciona no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito.
Professor Emérito da Universidade Presbiteriana Mackenzie —São Paulo.
E Vice-Prefeito de Salvador-Bahia
E d v a l d o B r it o - 8 5

1 . P resta çõ es p e c u n iá r ia s c o m p u l s ó r ia s

O Estado contemporâneo tem as características de prestador de serviços


e de interventor autoritário no domínio do particular, não como um fim em si
mesmo, mas, como instrumento da promoção do desenvolvimento econômico
com o objetivo de realizar o bem-estar social. O Estado brasileiro é desse tipo,
por determinação constitucional (art. 3o da CF).
A primeira característica consiste no seu dever de oferecer utilidades fruí-
veis pelo administrado, até nas atividades típicas do domínio econômico, quan­
do, na perspectiva de preencher lacunas deixadas pelo setor privado, atua para
atender as necessidades do indivíduo, ainda quando se submeta ao regime
jurídico próprio das empresas privadas. A segunda, é a de um agente norma­
tivo e regulador da atividade econômica.
Necessita, então, de recursos financeiros para custear esse desempenho
e, atendendo as respectivas peculiaridades, estes recebem uma classificação em
razão do regime jurídico que os disciplina. O magistério de ALIOM AR
BALEEIRO fala, assim, em entradas, categoria essa que abrange dois gêne­
ros: movimentos de fundo e receitas1.
Este estudo cuida, somente, de uma das espécies de um desses dois gêne­
ros qual seja o tributo, portanto, uma das muitas espécies do gênero receitas.
Lembre-se, de logo, que o tributo - como anunciado supra - é uma das
duas prestações pecuniárias compulsórias. A outra é a contribuição. Distin-
guem-se, entre si, pelo regime jurídico constitucionalmente estabelecido para
cada qual das duas. Enquanto a Constituição reserva um núcleo de doze
princípios para o tributo, para a contribuição dedica somente sete.
TR IB U T O CO N TRIBU IÇÃ O
1. competência tributária 1. competência do sujeito ativo
2. legalidad 2. legalidade
2.1. irretroatividade 2.1. irretroatividade
2.2. tipicidade 2.2. tipicidade
2.3. anterioridade 2.3. anterioridade

1 Cf. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14a ed., rev. e atual. Rio de
Janeiro: Forense, 1984.
8 6 - P r in c íp io d a L e g a l id a d e T r ib u t á r ia

2.4. eficácia da lei complementar 2.4. eficácia da lei Complementar


2.5. anualidade
3. isonomia
3.1. capacidade contributiva
4. proibição de efeito confiscatório
5. garantia da unidade econômica e social
6. imunidade 3. imunidade
Consequentemente, se o regime jurídico é diverso, não se poderá falar,
sob a Constituição de 1988, em categorias iguais. Ela estabeleceu dois sub-
sistemas, o do tributo e o da contribuição. E nunca, que, sob o seu domínio,
contribuição é tributo, sob pena de ferir o princípio lógico da identidade.

2 . P r in c íp io s c o n s t it u c io n a is

O rol dos doze princípios, supra exposto, constitui um núcleo, sem o


respeito ao qual, não há que se falar em tributo. Ele tem a natureza do Estatuto
do Contribuinte a que se referiu - embora em outros termos - LOUIS
TROTABAS2; isto é, trata-se de um conjunto de critérios juridicamente
considerado como limite ao poder de tributar que se encontra inserido na
competência tributária outorgada pela Constituição ao ente político intraestatal.
Estes critérios têm natureza intrínseca diferenciada, embora a sua nature­
za jurídica seja a de um princípio. Pode-se, assim, entender que alguns deles,
“stricto sensu, sejam meras técnicas, desta forma entendidas as regras destinadas
a disciplinar, em cada espécie de imposição, a apuração do quanto devido de
tributo. Mas, se esta técnica estiver revestida das características com as quais se
compõem os elementos do princípio tributário, nem por isso, este se reduz,
juridicamente, àquela, pelos seus próprios fundamentos. É o mesmo critério,
porém, contendo funções diferentes: a de meio de viabilização da imposição e a
de limite de atribuições do sujeito ativo na relação jurídica tributária.
Um princípio é uma norma jurídica, dado que ele está dentro da ordem
jurídica com eficácia deôntica. Esta sua natureza impede que se busque dis­
tinguir entre princípio e norma jurídica. O certo é, portanto, dizer que exis­

2 Cf. Précis de science et technique fiscales. Paris: Dalloz, 1958.


E d v a l d o B r it o - 8 7

tem normas jurídicas que são princípios e outras que não o são, porque, em
natureza, não há diferença. Há, porém, quanto à função. Aquelas normas,
que o são, recebem da ordem jurídica uma função de atuar no sistema jurídi­
co como “cabeça de capítulo”, por isso são geradoras de premissas condicio-
nantes da validez e da eficácia das demais normas.
A ordem jurídica, no plano das prestações pecuniárias compulsórias
devidas pelo administrado, atribuiu a certos critérios - como visto - a fun­
ção de atuar no sistema jurídico tributário como instrumentos de controle
do poder de tributar, em razão de que, nos termos lógico-linguísticos, o
tributo é uma prestação em dinheiro devida por um particular a uma cor­
poração de direito público titular de soberania (daí o caráter compulsório
do cumprimento desta prestação) a qual corporação opera, por esse modo, a
transferência de patrimônio desse particular para a sociedade, a fim de atender
as necessidades públicas, obedecendo a um núcleo legal consistente em cri­
térios que garantem o particular contra possíveis iniqüidades quando do
exercício dessa soberania.
A Constituição jurídica - considerando-se que há, também, a Consti­
tuição essência3- é o repositório desses critérios, valendo lembrar que, entre
nós, desde a primeira, a de 1824, o núcleo formado por eles - o Estatuto do
Contribuinte - vem evoluindo, na medida em que se venha impondo maior
proteção ao patrimônio do particular, quando dessa transferência.
O exposto explica porque o rol dos princípios tributários é maior do que
o das contribuições uma vez que nessas, por natureza, não há essa transferên­
cia e sim uma redistribuição compulsória do patrimônio do particular, em
seu próprio benefício; por isso elas são, stricto sensu, sinalagmáticas, ainda que
se possa encontrar sinalagma em tributos como as taxas.
A conclusão é a de que há no sistema constitucional das prestações
pecuniárias compulsórias, devidas pelo administrado, duas espécies de rol de
princípios constitucionais formando os dois supra falados subsistemas, tendo
razão M ICHELI4ao advertir que “não é possível reduzir o elemento descritivo
da noção jurídica de tributo à coatividade da prestação, visto que, de um lado,

3 Cf. BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1993.
4 Cf. M ICHELLI, Gian Antonio. Curso de direito tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco e
Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 65.
8 8 - P r in c íp io d a L e g a l id a d e T r ib u t á r ia

tal co a tivid a d e pode caracterizar, também, outras prestações devidas pelo


particular ao ente público e, de outro lado, a mesma coatividade pode ser
compreendida (sempre num plano jurídico) de diversos modos e com diferentes
significados: seja como falta de liberdade de escolha no sentido de cumprir ou
não a prestação; seja como falta de liberdade de escolha na utilização de um
serviço da entidade pública”.
Este estudo aprecia um desses critérios, o da legalidade, que opera a
função de princípio.

3 . P r in c íp io d a l e g a l id a d e t r ib u t á r ia

O estudo do princípio da legalidade em matéria tributária deve ser iniciado,


com a noção de lei, porque, entre nós, há uma categoria normativa que, em certas
circunstâncias tem força de lei: é a Medida Provisória.
Lei é um ato jurídico dotado de cinco caracteres: genérico, abstrato,
permanente, compulsório e plural.
Genérico porque descreve um gênero caracterizador de todos os casos
da mesma espécie, que venham a ocorrer, formando tipos enquadráveis nas
suas previsões; por isso, é, também, abstrato e permanente. Abstrato porque
é a regra de uma situação jurídica desgarrada das circunstâncias concretas
específicas, com as quais cada ato se apresentará quando ocorrer. Permanente
porque se destina a gerar efeitos até que outro ato, da mesma natureza, venha
a substituí-lo, pois, enquanto tal não ocorrer, a sua aplicação persiste dado que
não se exaure a sua eficácia ao aplicar-se a cada caso que se identifique com o
tipo legal. A esses três caracteres apontados por B R E T H E D E LA
GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE5, ORLANDO GOMES acrescenta
a compulsoriedade e, aqui, adiciona-se o pluralismo. É compulsório porque
emitido por fonte dotada de soberania, a qual, por isso, tem de ser plural, tal
como estabelece a Constituição jurídica brasileira6.
À Medida Provisória faltam as características de ato permanente e plu­
ral. A lição do, justamente, homenageado, HUGO DE BRITO M ACHA­
DO, é elucidativa quando ensina: “para bem compreender o princípio a

5Cf. Introduction générale a l'etude du droit. Fàris: Librairie du Recueil Sirey, 1947, p. 197 segs.
6 Cf. art. 1, V e seu parágrafo único, combinado com os §§1° e 2°, II, do seu art. 58.
E d v a l d o B r it o - 8 9

legalidade é importante ter presente o significado das palavras lei e criar”7, por
isso, ele pode concluir que “medidas provisórias já não podem instituir nem
aumentar impostos”, apesar da ressalva que faz quanto a possíveis espécies
excluídas dessa proibição8. Consequentemente, a medida provisória, ainda
que tenha, de modo circunstancial, força de lei, contudo, por natureza, lei
não é e, por isso, não pode ser instrumento da legalidade tributária, tanto
mais quanto a Constituição atribui funções peculiares a cada espécie de lei,
nessa matéria, como se esclarece a seguir:
A lei constitucional - já se viu supra - cabe veicular os princípios tribu­
tários; à lei complementar a Constituição incumbiu de estabelecer as normas
gerais apaziguadoras de possíveis divergências próprias da convivência federa­
tiva de diversas fontes normativas, com o objetivo de dirimir conflitos de com­
petência, regular as limitações ao poder de tributar e editar, especificamente,
aquelas sobre definição de tributos e de suas espécies; sobre os fatos geradores,
as bases de cálculo e os contribuintes dos impostos constantes da discrimina­
ção constitucional de rendas; sobre a obrigação tributária e seus consectários
(crédito tributário, lançamento, prescrição e decadência tributários); sobre o
tratamento adequado a ser dado, tributariamente, à cooperativa, à microem-
presa e à empresa de pequeno porte.
O tratamento jurídico tributário diferenciado é, nestes termos, de­
terminação do poder constituinte, ao plasmar a Constituição jurídica bra­
sileira de 1988, no comando que dirigiu às entidades federadas, como
componente da competência tributária (cf. art. 179). O legislador infra­
constitucional que, somente, tem função9e não poder, ou seja, apenas,
está legitimado para editar emenda a essa Constituição, exorbitou, por­
tanto, de sua mera competência reformadora do texto da Constituição
jurídica, quando, pela Emenda Constitucional n° 42 de 19 de dezembro
de 2003, acrescentou a alínea “d” do inciso III e o parágrafo único do art.
146 e o art. 146-A, dispondo sobre matéria que termina por ofender a
forma federativa de Estado, sobretudo porque a lei complementar a que se
refere compromete a autonomia de cada ente federado criando limitação

7 Cf. M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30a ed. rev., atual, e amp. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009, p. 34.
8 Cf. autor e ob. cits. na nota de rodapé n° 7, p. 84.
9 Cf. BRITO, Edvaldo. ob. cit. na nota de rodapé n° 3.
9 0 - P r in c íp io d a L e g a u d a d e T r ib u t á r ia

ao poder de tributar inexistente, originariamente, no conteúdo da compe­


tência tributária outorgada pelo Poder Tributário10.
À lei orgânica de cada tributo cabe a instituição dessa prestação pe­
cuniária por entidade à qual foi outorgada a competência tributária, fa­
zendo-o na plenitude dos elementos constitutivos dessa função. Essa lei
espelha as leis constitucional e complementar no desdobramento que faz
delas, regulando-as, propriamente.

4 . P r in c íp io d a l e g a l id a d e t r ib u t á r ia n a C o n s t it u iç ã o

O conteúdo jurídico do princípio da legalidade tributária na Consti­


tuição é integrado por esses outros critérios listados acima, os quais, em regra,
são estudados em separado, mas, que, para a compreensão da legalidade, de­
vem ser considerados como seus corolários, como se examinará em seguida:
A anualidade é um critério segundo o qual a Constituição determina
que o ente federado utilize a lei de diretrizes orçamentárias - LDO - para
anunciar que modificações introduzirá na legislação tributária a viger no exer­
cício financeiro subsequente, compreendendo bases de cálculo e alíquotas. Se
não o fizer, será proibida qualquer alteração durante o ano que se seguir a essa
lei porque, no sistema constitucional de planos, o respectivo projeto tem de
ser encaminhado ao Legislativo até 15 de abril, devendo ser devolvido para
sanção até 17 de julho quando haverá o encerramento do primeiro período da
sessão legislativa, sob pena de esse encerramento não ocorrer enquanto o pro­
jeto não for aprovado.
O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, à unanimidade do seu Pleno,
julgou inconstitucional o aumento do IPTU - imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana - incidente sobre imóveis da Cidade de Salvador,
previsto para 1991, porque a LDO desse exercício financeiro, votada em 1990,
pela Câmara Municipal, não anunciou essa modificação11.
A anterioridade consiste na disposição constitucional que estabelece
proibição para instituição ou para aumento de tributo, senão mediante lei

I0 Poder Tributário é potestade, por isso, não se confunde com poder de tributar que é a medida
da competência tributária outorgada por esse Poder Tributário.
II Cf. ADIN 1/91, rel. Des. LUIZ PEDREIRA.
E d v a l d o B r it o - 91

editada com a antecedência de um ano para o outro, respeitado, sempre, o


período nonagesimal, pois, antes de decorridos noventa dias da data em que
haja sido publicada a respectiva lei modificadora, não é possível cobrar o tributo
com a modificação sofrida, mesmo sendo no ano anterior, salvo se essa alteração
for, apenas, da base de cálculo do IPTU ou a do IPVA - imposto sobre a
propriedade de veículos automotores - ou se for referente aos impostos sobre
comércio exterior; ao imposto sobre a renda; ao IPI - imposto sobre produtos
industrializados; ao IO F-im posto sobre operações de crédito, câmbio e seguro;
aos impostos extraordinários.
Essa ressalva abrange, também, os empréstimos compulsórios - que o
autor deste trabalho não os considera tributos12- instituídos para atender as
despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra externa
ou sua iminência.
A tipicidade é decorrência do elemento material que a norma de outor­
ga de competência tributária descreve a partir de sua palavra “sobre”. A lei de
instituição do tributo há de ser fiel à materialidade constitucionalmente pos­
ta, porque, dessa forma, evita-se invasão de competência tributária.
O exemplo dessa invasão colhe-se da interpretação imprópria dada aos
arts. 155, I e 156, II da Constituição que atribuem competência, respectiva­
mente, aos Estados e aos Municípios para tributarem atos jurídicos negociais
inter vivos, também, respectivamente, gratuitos, como a doação, e onerosos.
A doação é contrato gratuito porque uma das partes - o disponente -
quer, espontaneamente, empobrecer-se, enriquecendo a outra —beneficiária da
liberalidade. Enfim, aqui se pratica ato de atribuição patrimonial unilateral.
Ato jurídico inter vivos, porém, gratuito. Competente para tributá-lo é o Esta­
do. Já o Município é competente para tributar atribuição patrimonial recíproca
que é ato oneroso praticado inter vivos. Exemplo: a compra e venda.
Ora, existem leis municipais que são inidôneas por estabelecerem a tribu­
tação da doação modal ou com encargo, porque alcançam, erroneamente, tipo
tributável que está fora da materialidade constitucional que lhes foi entregue à
incidência. Encargo não tem natureza onerosa. É, sempre, um elemento aci­

12 Cf. BRITO, Edvaldo. Empréstimo compulsório. In. CAMPOS, Dejalma de (coord.). Congresso
Nacional de Estudos Tributários, 7. O sistema tributário na nova Constituição do Brasil. São
Paulo: Academia Brasileira de Direito Tributário/Resenha Tributária, 1988, p .187-220.
9 2 - P r in c íp io d a L e g a l id a d e T r ib u t á r ia

dental do negócio, que não o onera por inexistir atribuição patrimonial, mesmo
quando é imposto, pelo disponente, como uma condição.
A irretroatividade é requisito fundamental da lei tributária; basta lem­
brar que a sua formulação constitucional, nos termos em que se encontra, é
específica da relação jurídica tributária, porque, enquanto para a lei em geral
é suficiente que a lei nova não alcance fatos ocorridos antes de sua eficácia, a
lei tributária nova é inaplicável aos fatos geradores de obrigação tributária
ocorridos antes de sua vigência, bem assim, inaplicável aos efeitos futuros des­
ses fatos, os quais efeitos são objeto de ultratividade, pois, a eles se aplica a lei
do tempo dos fatos geradores desses efeitos. Há uma ressuscitação da lei anciã.
A irretroatividade, além dessa especificidade referente à ultratividade, tam­
bém, abre espaço para a retroatividade benigna, nos casos expressamente,
arrolados pelo Código Tributário Nacional.
A eficácia da lei complementar - objeto de análise, nas linhas supra -
está disciplinada na Constituição de modo a que essa integrante do princí­
pio da legalidade tributária consista no instrumento sem o qual nenhum
tributo e nenhuma contribuição (cf. art. 149) podem ser instituídos, senão
após a edição da lei complementar que estabelecer normas gerais sobre os
elementos constitutivos de sua lei orgânica. Logo, o titular da competência
tributária não pode editar essa lei orgânica do tributo antes de a lei comple­
mentar emitir as normas gerais.
A incompatibilidade de medida provisória em matéria tributária está
demonstrada nas linhas atrás, nas quais se examinou a diferença entre lei e
medida provisória e quando se analisa a necessidade de respeito aos princípios
da anualidade e da anterioridade que, em si, são incompatíveis com norma de
vigência, eficácia e validade esporádicas, como o é a da medida provisória.

5 . P r in c íp io d a l e g a l id a d e t r ib u t á r ia n o C ó d ig o

T r ib u t á r io N a c io n a l

O Código Tributário Nacional tem o seu fundamento de validez no art.


146 da Constituição. É, assim, materialmente, lei complementar, cuja função
precípua é a de ser norma de integração da Constituição.
Formula, de início, um conceito abrangente para a expressão legislação
tributária porque nele encontram-se elementos que revelam dois aspectos:
E d v a l d o B r it o - 9 3

Primeiro porque engloba toda e qualquer espécie de norma jurídica, seja


esta assentada pela lei constitucional, seja por ato administrativo, alcançando,
por isso, todas as formas de norma jurídica nessa noção.
Segundo porque não é necessário que o ato normativo cuide somente de
matéria tributária, ou seja, pode a legislação estar cuidando de outra situação,
mas, o fato de veicular, também, normas tributárias passa a ser considerado (o
ato normativo) como sendo legislação tributária, portanto, não importa em
que extensão esse ato normativo está cuidando de matéria tributária.
Ora, a importância da identificação do ato normativo na qualidade le­
gislação tributária é porque se ele assim for caracterizado passa a ter vigência
disciplinada por regras específicas, passa a ter uma aplicabilidade submetida
a regras específicas e passa a ser objeto de uma interpretação e de uma inte­
gração regradas, também, especificamente.
Engloba a expressão legislação tributária todas as fontes do Direito Tri­
butário, por isso, é cabível uma classificação que a discrimine entre normas
tributárias principais e normas tributárias secundárias.
Não há, na Doutrina, univocidade nessa maneira de classificar, por isso,
colocam-se, entre as normas principais, as leis, a partir da lei constitucional,
os tratados e as convenções internacionais e entre as secundárias: os decretos
e as denominadas normas complementares definidas no art. 100 do Código
Tributário Nacional. São secundárias porque são regulamentares das prin­
cipais, das quais são acessórias desde quando existem em função daquelas.
A inexistência de univocidade leva a FABIO FANUCCHI que inclui
entre as principais, apenas, aquelas que têm “força constitutiva de direitos e
obrigações de natureza tributária”, fala de fontes intermediárias (o decreto) e
de fontes secundárias ou satélites —expressão que toma de empréstimo a
ORLANDO GOM ES13- para arrolar, entre estas últimas, as chamadas nor­
mas complementares do art. 100 do Código Tributário Nacional; leva, ou-
trossim, a RUBENS GOMES D E SOUSA14que inclui entre as principais,
apenas, a lei e os tratados internacionais e considera como secundárias ou
complementares, a jurisprudência, as circulares, as portarias e outros atos
administrativos de caráter normativo, os usos e costumes.

13 Cf. Introdução ao direito civil, 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, p.51


1 4 Cf. Compêndio de legislação tributária. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET (coord.).
Obra póstuma. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 67.
9 4 - P r in c íp io d a L e g a l id a d e T r ib u t á r ia

Essa classificação somente tem sentido para equacionar a eficácia de


cada qual dessas normas, pois, é em função dessa eficácia que é feita a hierar­
quização dentro do sistema classificatório.
É nesse ponto que se topa com a chamada “matéria de reserva legal”, a
qual já se encontra desde a matriz constitucional, quando o art. 150 da Cons­
tituição estabelece que somente a lei pode legitimar o sujeito ativo da obriga­
ção a exigir - leia-se instituir - ou aumentar tributo.
O Código Tributário Nacional, por isso, desdobra esse princípio consti­
tucional tributário, o da legalidade, no seu art. 97, fixando qual o conteúdo
semântico desse “signo” exigir e qual o desse aumentar, excluindo, diante do
tipo tributário cerrado, o socorro à analogia como meio de exigir tributo não
instituído em lei ou à equidade, para dispensar a sua exigibilidade.
Essa matéria do art. 97 é que se convencionou chamar de reserva legal,
porque somente a lei formal e material pode veiculá-la. À medida provisória -
repita-se, por necessário - é vedado.
Todo o exposto faz retornar ao que se disse supra quanto à amplitude da
expressão legislação tributária que, assim, abrange especificidades sobre a
vigência no espaço e no tempo, da norma tributária, sobre sua eficácia, sobre
sua aplicabilidade, sobre sua interpretação e sobre sua integração, tal como
o regula o Código Tributário Nacional a partir do seu fundamento de validez:
o art. 146 da Constituição.
Teoria Geral das
Normas Antielisivas
(Re) Definição e Classificação

Jonathan Barros Vita


Advogado, Consultor Jurídico, Contador, Especialista em Direito Tributário
pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários —IBET-SP, Mestre em Direito
do Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo —PUC-SP,
Mestre em Segundo Nível em Direito Tributário da Empresa pela
Universidade Comercial Luigi Bocconi —Milão —Itália, Doutorando em
Direito do Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo —
PUC-SP eprofessor das especializações em Direito Tributário da PUC-SP/
COGEAE, FAAP, EPD, UEL eATAME-DF. Sócio do IBDT.
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 9 7

1. In tro dução

Como ponto inicial, deve ser dito que este texto fundamenta-se, princi­
palmente, em formas de visualização do sistema jurídico baseadas em evolu­
ções e acoplamentos entre a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann1e o
construtivismo lógico-semântico de Barros Carvalho2, evolução de Vilanova3
unindo problemas estudados pela Lógica Jurídica e Teoria da Linguagem4.
Com este conjunto de premissas busca-se retirar o foco da análise econô­
mica da elisão para uma análise estrutural dos mecanismos sintáticos envolvi­
dos na elisão, além de uma análise sistêmica da elisão.
Para que esta forma de abordagem metodológica seja seguida, uma pre­
missa chave é determinar que o direito é linguagem/comunicação estruturada,
do que a lingüística, Teoria dos Sistemas, semiótica e lógica são ferramentas
utilizadas exaustivamente.
Obviamente, para a visualização do objeto em questão, que seja, as normas
antielisivas5, com sua classificação em geral e específicas, tende-se a multiangu-
larmente determinar-se focos distintos de visão com o fim de, modificando a
posição do observador, criar-se mais proposições sobre o tema6.
O objetivo deste trabalho é o de delimitar os contornos do termo elisão,
enquanto termo de Teoria Geral do Direito, posteriormente partindo para o
que constituiria, formalmente, esta ideia.
Segue-se com a inserção deste estudo no campo do direito tributário
pela ideia de elisão fiscal enquanto estrutura componente do ordenamento

1 LUHM ANN, Niklas. Law as a social system. Oxford: Oxford University Press, 2004.
2 CARVALHO , Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 2 “ ed. São Paulo:
Noeses, 2008.
3 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema no direito positivo. São Paulo: Noeses, 2006.
4 Rara mais sobre este sistema de referência: VITA, Jonathan Barros. Tributação do câmbio. São
Paulo: Quartier Latin, 2008.
5 Recorda-se que nomenclatura de elusão tributária não será utilizada por um critério pragmáti­
co, pois a expressão elisão fiscal é mais aceita no direito brasileiro, apesar de que as críticas do
professor Taveira Torres (In: TÔRRES, Heleno Taveira. Autonomia privada e simulação no direito
tributário. São Paulo: RT, 2003) e outros à expressão possuem fundamento, porém não poden­
do concordar-se com a ideia da diferenciação entre economia de tributos lícita (elisão) ou
ilícita (elusão), pois inexiste critério de diferenciação entre as duas, como será visto.
6 Este sistema de referência a respeito das normas antielisivas foi inicialmente publicado em:
VITA, Jonathan Barros. The general and specific anti-avoidance tax rule. In: MARINO, Giuseppe
(org.). Temi scelti dui diritto tributário. L'elusione fiscale. Milão: Egea, 2008, tendo sido sofistica­
do e adaptado para os fins de uma análise do direito brasileiro, especialmente com a inversão
da nomenclatura na terceira faixa de classificação.
9 8 - T e o r ia G er a l das N o r m a s A n tielisiv a s

jurídico brasileiro, seguindo a ideia de outros ordenamentos, aqui compara­


dos, em especial o italiano.
Tal comparação vem da ideia, não sancionada neste trabalho, de que há
uma tradução/importação de institutos jurídicos alienígenas sem que haja,
efetivamente, uma inserção, pelos métodos jurídicos próprios destas disposi­
ções no ordenamento nacional.
Por fim, algumas críticas são tecidas a certas tomadas de posição no di­
reito brasileiro, especialmente por uma apropriação indevida de métodos e
critérios estrangeiros por vários doutrinadores e cortes administrativas e judi­
ciais brasileiras.

2 . E l is ã o e u n id a d e d o d ir e it o

Como ponto inicial deste tópico, deve ser dito que as visões clássicas
sobre a elisão serão apenas mencionadas, pois o escopo deste trabalho é apre­
sentar uma visão estrutural da elisão que parte deste conceito como sendo
contido na Teoria Geral do Direito e não no direito tributário, tão somente.
Lembra-se que a linguagem contida nos textos de direito positivo é ple­
na de imperfeições e, portanto, no processo de recombinação para a formação
de proposições/normas jurídicas, a interpretação é fundamental enquanto ten­
tativa de retirar imprecisão, vaguidade e ambigüidade desses textos/enuncia-
dos jurídicos.
A noção clássica sobre as regras e condutas contidas nas normas antieli­
sivas fiscais, a exemplo, é de caráter teleológico, a partir de uma pseudointer-
pretação econômica do direito, em que se busca a economia de tributos como
fator de evidenciação da elisividade ou não de um dado procedimento realiza­
do pelo contribuinte na gestão dos negócios de sua empresa.
Portanto, ser indesejável pelo direito não é uma forma possível de deli­
mitação de uma categoria jurídica, pois os valores estão no interpretante, mas
não no direito enquanto sistema autorreferencial e autopoiético, lembrando
que o código lícito/ilícito é distinto dos códigos bom/mau ou ético/não ético
da moral e ética, respectivamente.
O sistema jurídico é comunicação, que cria realidade a partir de suas
próprias estruturas, normas, programas jurídicos, não importando o que o
sistema social possui de expectativas cognitivas, mas voltado para a satisfação
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 9 9

das expectativas normativas, tão somente, que não possuem um cunho socio-
lógico/axiológico, no sistema de referência adotado.
Logo, buscar procurar no sistema jurídico estes valores ou, ainda, este
aspecto de ser um comportamento não desejável, não é visualizar o sistema
jurídico autorreferente, mas é visualizar a partir de outro prisma, o da sociolo­
gia ou política do direito.
Estas não aceitas formas de aproximação com a elisão fiscal tendem a tratá-
-la como problemas de interpretação de certos eventos, mas não de uma maneira
estrutural, em qUe o elemento central de estudos é a elisão como forma de
(re)determinação dos critérios de ingresso na classe dos fatos que realiza a mediação
entre dois sistemas de referência/ramos, didaticamente autônomos do direito,
distintos a partir de uma primária qualificação por um deles.
Complementando, a tendência natural de se ver as atividades elisivas
como defeitos do sistema ou atividades não éticas do sujeito participante do
sistema (contribuinte) são extremamente problemáticas, pois o conceito de
norma é idêntico para os usuários do sistema, mas as normas construídas,
denotativamente, são diferentes para cada um deles.
Ter-se-ia algo aproximado com a clássica distinção entre intérpretes au­
tênticos e não autênticos, nestes casos, respectivamente, a administração pú­
blica e os contribuintes, em que não havendo critérios claros, ter-se-ia como
prevalente a atividade de lançamento do fisco em substituição àquela realiza­
da pelo contribuinte.
Retomando, a elisão deve ser considerada como um termo de teoria geral
do direito e não, somente, de direito tributário, por tal motivo a classificação
fractal a ser apresentada é útil e logicamente construída.
Lembra-se que, dentro desta visualização, há uma clara contraposição,
pontualizada e normatizada, entre a unidade do direito e a ideia de autopoiesis.
Esta normatização da unidade do direito aludida, no direito tributário
brasileiro, é propalada pelo artigo 110 do CTN7, que trata da impossibilida­
de de que o direito tributário defina conceitos que primariamente são defini­

7 Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos,
conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constitui­
ção Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou
dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
100 - T e o r ia G e r a l das N o r m a s A n tielisiv a s

dos pelo direito privado (e, também, considera-se que o mesmo ocorre com o
direito público).
Este artigo 110, que estabelece a unidade do direito é antagonizado/
excepcionado pela estrutura antípoda contida no dispositivo do artigo 116
parágrafo único8do CTN, que trata da chamada elisão fiscal9.
Logo, a elisão fiscal é forma de quebra da unidade do direito, estabeleci­
da por regra de idêntica hierarquia aquela que estabelece esta unidade (ainda
que seja pressuposta sistemicamente).
Dentro deste contexto de unidade do direito, nota-se, novamente, que a
divisão do direito em vários sistemas jurídicos é rechaçada, lembrando que a
divisão entre ramos do direito é, meramente, didática.
Ainda, não se pode olvidar que estes sistemas de referência didática/
ramos do direito devem, sempre, comunicar-se, perfazendo a harmonização
do sistema pela interação (no plano da coordenação e subordinação por meio
da competência de produção normativa) entre normas e a diferença de crité­
rios adotados para que uma irritação seja ou não percebida por normas que
aparentemente tratam do mesmo evento, mas não do mesmo fato jurídico.
Prosseguindo, analisando a segunda parte da assertiva sobre a autopoiesis
do sistema, lembra-se que a elisão é tomada enquanto uma referência auto-
poiética, em que o sistema dialoga com ele mesmo no plano das estruturas,
observando outras estruturas.
A definição e conceito são temas fundamentais neste contexto elisivo, já
que pode se categorizar em conceitos fundantes e fundados e definições fun-
dantes e fundadas, dando um caráter hierárquico a partir dos agrupamentos
semânticos do direito, quais sejam, os ramos didaticamente autônomos.

8 Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes
os seus efeitos:
I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias
materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente cons­
tituída, nos termos de direito aplicável.
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos
praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza
dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem
estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp n° 104, de 10.1.2001)
9 Toma-se como premissa básica que este artigo perfaz uma norma geral antielisiva para o direito
tributário, a despeito da doutrina em contrário.
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 101

Logo, no direito tributário, as definições vinculadas a negócios jurídicos


são fundadas nas definições do direito civil, enquanto para o direito penal
tributário, as condutas e atos tributários são definidos primariamente pelo
direito tributário e utilizados para ativar a percussão penal.
Lembra-se que o processo de autopoiesis e circularidade normativas es­
tão ligados à ideia de que o conceito é determinado por uma definição que
depende da definição dos conceitos inseridos nesta definição.
Em todo o contexto apresentado, mais um item deve ser levado em conta
sobre os problemas da definição do conceito de elisão fiscal, o da dicotomia
entre norma e seu fato jurídico correspondente.
Diferenciando, a conduta do sujeito que realiza um determinado ato
ativa o processo de aplicação normativa, qualificando juridicamente aquele
fato para o sistema do direito, a partir da referência de um ramo do direito.
Secundariamente, este fato jurídico ou sua relação jurídica correspon­
dente é (re)qualificado pressupondo a necessidade de um critério de valida­
ção/definição diferenciado, mediado por uma terceira norma jurídica, antielisiva.
Exemplificando, com a elisão fiscal, para que aquela operação do direito
civil seja considerada no direito tributário exige-se que ela seja qualificada no
direito tributário a partir do filtro que é a norma antielisiva construída: dado
o fato F no direito civil, deve ser a existência de (critério para atuação da
norma antielisiva) para ser admitida como fato jurídico tributário.
Logo, esta norma tributária antielisiva funciona como o filtro de
(re)validação entre o fato cível (no sentido de fato e de relação jurídica cível
como fato jurídico) e o seu correspondente conseqüente fato no direito tribu­
tário, através da passagem por um critério que é determinado em cada sistema
jurídico nacional.
Portanto, as regras antielisivas tributárias testam, validando, as regras
de direito civil e distinguem entre os efeitos cíveis e tributários da regra
correspondente.
Lembra-se que esta norma antielisiva produz uma ineficácia técnico sin­
tática positiva na regra que poderia ser produzida imediatamente à recepção
do fato jurídico por esta norma, que seja, esquematicamente:
° A regra A é imediatamente relacionada ao evento F e se produz
a norma individual e concreta A’;
1 0 2 - T e o r ia G e r a l d as N o r m a s A n tielisiv a s

• Sucessivamente a norma individual e concreta B’ é produzida


como conseqüência desta norma A’, pois seu antecedente possui
como pressuposto o fato ou relação jurídica contidos em A;
A regra antielisiva C atua gerando a ineficácia técnico sintática
positiva da regra A em relação à possibilidade da produção de B’
gerando uma norma C’, que (re)qualifica a norma A a partir dos
novos critérios antielisivos produzindo a norma B” (se continuar
sendo qualificado o fato mediado pela norma antielisiva) ou X ’
(se o novo fato produzido for relacionado, tributariamente, com
uma outra RM IT X).
Interessante é notar que nesta visão o que ocorre é que a conduta elisiva
perfaz a quebra da unidade do direito, pois as conseqüências de um dado fato
jurídico deveriam ser imediatas através do filtro da onda de choque, porém,
quando se aplica a regra antielisiva, tem-se uma ruptura com este padrão,
como será elucidado no tópico seguinte.
Sinteticamente, a elisão é uma conduta do sujeito que provoca a ruptura
da unidade do direito, ressaltada pela aplicação da norma antielisiva para per­
petuar tal diferenciação entre o fato originário A e o fato (re)qualificado B”.
Por fim, neste tópico, deve ser dito que a observação desta operacionali-
dade das normas antielisivas está ligada ao seu processo de classificação, que
será apresentado a seguir.

3 . AS NORMAS ANTIELISIVAS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA


sistêm ica: a u t o p o i e s i s e a u t o r re fe r ê n c ia

Como pôde ser visto no tópico anterior, algumas premissas sistêmicas


podem ser utilizadas para compreender o fenômeno elisivo, denotando a for­
ma da operação dos critérios de elisão contidos nas normas antielisivas que,
aliadas ao problema da unidade do direito como elemento fundamental do
conceito de elisão, dão uma nova dimensão ao estudo deste fenômeno.
Inicialmente, deve ser reafirmado que o direito é um sistema uno, ou
seja, as divisões de abordagem ou distinções entre os ramos do direito são
meras divisões metodológicas, pois a simplificação é base de qualquer estudo
científico, do que é válido afirmar a existência de uma divisão na ciência do
direito, mas nunca será válido afirmar que o direito positivo divide-se.
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 0 3

Aqui, logo, pode ser dito que o direito positivo pode multifacetar um
dado de sua própria realidade, ou seja, a partir de um dado objeto dinâmi­
co10, cada ramo do direito qualifica de uma dada maneira, transformando
em fatos diversos.
Obviamente, com estes atos de qualificação e requalificação há a preser­
vação de uma espécie de hierarquia material, em que (re)produz-se um fato
jurídico qualificando uma irritação de maneira prevalente, generativa de ine­
ficácia técnico sintática sobre quaisquer outras qualificações.
Em outras palavras, no sistema do direito existem meros conflitos de
qualificações internas, dentro de uma perspectiva espacialmente delimitada,
como em um terremoto, em que a irritação percebida pelo sistema jurídico
(epicentro) se propaga como uma onda de choque, que vai se abrandando à
medida que se afasta do epicentro, gerando uma fragilidade inata naquela
qualificação mais distante deste.
Obviamente a irritação é captada por uma estrutura que está na periferia
do sistema, no caso, o contrato ou ato cível, o direito tributário não verifica
esta irritação externa, mas a interna produzida a partir desta versão em lingua­
gem, sendo uma observação de segundo nível, lembrando que as normas tri­
butárias estão mais próximas do centro do que da periferia do sistema, não
absorvendo a supracitada irritação, mas, tão somente, a irritação interna pro­
duzida pela norma cível, que será confrontada com a irritação originária para
os efeitos da norma antielisiva.
Logo, para os fins de observação da operação da norma antielisiva, sob
uma perspectiva sistêmica, a onda de choque é impedida pela norma antieli­
siva em sua propagação normal, pois a nova norma produzida (re)posiciona-se
em relação a sua posição originalmente pressuposta.
Esta capacidade de reposicionamento revela uma forma de atuação cons­
ciente desta regra, denotando uma alta capacidade de reflexão, ou seja, sendo
um elemento de (re)avaliação da propagação da onda de choque, atua como
estrutura estabilizadora do sistema, atuando no processo de evolução do siste­
ma jurídico.

10 A diferenciação semiótica entre objeto dinâmico e mediato é que o primeiro é o objeto


pressuposto, considerado em sua máxima complexidade no ambiente, um dado bruto, impos­
sível de ser descrito, o qual é empobrecido por uma versão em linguagem dele, formando o
objeto mediato.
1 0 4 - TEORIA G ERAL DAS NORMAS A n TIELISIVAS

Esta capacidade reflexiva desta norma é facilmente visualizada quando


se verifica a substância sobre a forma em uma operação, pois, através das ferra­
mentas da Teoria das Provas, há uma reflexão sobre um elemento jurídico
produzindo um outro melhor adaptado.
Em uma segunda forma de visualizar a norma antielisiva sob uma pers­
pectiva sistêmica, ela atua como forma de evitar distorções juridicamente pres­
supostas pelos outros sistemas sociais.
É dizer, paradoxalmente, esta norma atua como forma de desalinhador à
generalização congruente de expectativas internas aos sistema jurídico, mas
provoca um alinhamento mais forte com as expectativas dos outros sistemas e
as expectativas cognitivas.
Portanto, estruturalmente, a norma antielisiva produz uma forma de
abertura cognitiva mais forte, pois os critérios que norteiam a elisão são pres-
supostamente trabalhados por outros sistemas sociais, especialmente o siste­
ma econômico nas normas antielisivas tributárias.
Exemplificativamente, quando da investigação das válidas razões econô­
micas, a norma antielisiva pressupõe as operações sincronizadas do sistema
econômico que realizam os testes e a adequação eficiente desta operação com
as premissas programáticas daquele sistema.
Neste sentido, o sistema do direito atua frente a uma irritação originária
que, quando atinge a barreira a propagação da onda de choque, ativa o sistema
econômico para (re)processar esta irritação pressupostamente.
Concluído tal processamento econômico, o sistema jurídico utiliza esta
informação de forma a preservar a comunicação originária e a unidade do
direito ou de (re)produzir uma diferença específica na atuação da norma tri­
butária em detrimento da qualificação cível.
Consequentemente, a partir da diferença provocada no sistema do direi­
to, há um alinhamento das expectativas normativas com as expectativas eco­
nômicas e cognitivas.

4. As NORMAS a n t ie l is iv a s : c l a s s if ic a ç ã o

Classificar é um procedimento lógico que é realizado para simplificar as


pesquisas científicas, tendendo a não ser certo ou errado, mas útil ou inútil,
passando de uma visão denotativa para uma conotativa para identificação de
um dado objeto de mundo.
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 0 5

A forma lógica da classificação é encontrar um conjunto de objetos que


sejam homogêneos, ou seja, com as mesmas características, e diferenciá-los por
meio de suas diferenças específicas.
Obviamente, os critérios das homogeneidades e diferenças específicas
são escolhidos de acordo com o sujeito que produzirá a classificação, sen­
do este ato de classificar finalisticamente vinculado aos objetivos desta
classificação.
Dito isto, compreendendo as regras antielisivas como forma de ruptura
com a unidade do direito e, ainda, que a elisividade de condutas é um tema
da Teoria Geral do Direito, várias são as formas possíveis de classificar as
regras antielisivas.
A classificação adotada neste trabalho é distinta das clássicas teorias que
classificam as normas antielisivas, como aquelas constantes em Tabellini11
aplicadas ao direito italiano ou em Xavier12e Gaudêncio13utilizando como
sistema de referência o direito brasileiro.
Na doutrina italiana, por fundamentos pragmáticos que serão elucida­
dos posteriormente, há uma discussão forte sobre o caráter de generalidade ou
especificidade de uma dada norma elisiva a partir da diferenciação do tipo de
regra em sua potência de aplicação14, ou seja, a regra geral possui um escopo
maior que a específica13.
No sentido utilizado neste trabalho, a ideia de generalidade e especi­
ficidade é reproduzida em uma classificação fractal (forma dentro da for­
ma) e assimétrica, pois há o desenvolvimento, tão somente, de um dos
lados da classificação.
Esquematicamente, três são os níveis classificatórios, em que os vocábu­
los geral e específica são combinados entre si:

11 Tabelini produz uma classificação diferenciando as normas antielisivas particulares e gerais, o


que é semelhante na forma, apesar da diferença no conteúdo da última escala da classificação
proposta. In: TABELLINI, Paolo M. L'elusione delia norma tributaria. Milano: Giuffrè, 2007.
12 Xavier utiliza a chamada forma geral das normas antielisivas e as chamadas regras Taylor made
como constantes. In: XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva.
São Paulo: Dialética, 2001.
13 Da mesma forma que Xavier, porém com maior fundamento teórico e aplicação e identificação
destas regras especificamente no campo da extinta CPMF: G AU D ÊN C IO , Samuel Carvalho.
CPMF e Elisão Fiscal. Dissertação (mestrado em direito) - Faculdade de Direito, PUC-SP, São
Paulo, 2007.
14 TABELLINI, Paolo M. L'elusione delia norma tributaria. Milano: Giuffrè, 2007.
15 FALSITA, Gaspare. Manuale di diritto tributário. 5a ed. Padova: CEDAM, 2005.
1 0 6 - T e o r ia G e r a l d as N o r m a s A n tie lisiv a s

No primeiro nível classificatório, tem-se: as regras antielisivas ir­


radiando seus efeitos para todo o sistema jurídico, chamadas,
portanto, de regras gerais antielisivas, representadas notadamen-
te pelos princípios constitucionais, tendendo a realizar este filtro
entre uma dada regra e a sua correspectiva regra de outro subsis-
tema; e, as regras específicas são aquelas vinculadas a um dado
ramo didaticamente autônomo do direito, como por exemplo a
regra tributária antielisiva e, por isto, específica;
Dentro das regras específicas antielisivas, uma nova subdivisão surge:
as regras específicas antielisivas gerais, que irradiam seus efeitos
para todas as áreas daquele subdomínio específico do direito; e as
regras específicas antielisivas específicas, aplicáveis, tão somente, a
parcela deste domínio específico. Como exemplo da primeira es­
pécie tem-se a regra tributária antielisiva geral contida no artigo
116 do CTN, sendo exemplo da segunda as regras antielisivas
aplicáveis, tão somente, ao imposto sobre a renda, parcela do direi­
to tributário ligada, a exemplo, apenas a certos tributos; e
* Internamente às regras específicas antielisivas específicas, uma
nova subclassificação surge: as regras específicas antielisivas espe­
cíficas gerais, ou seja, de aplicação generalizada e realizada de
maneira automática no momento do lançamento; e as regras es­
pecíficas antielisivas, aplicáveis utilizando intermediários quali­
ficados e critérios específicos para tanto sendo exclusivamente
aplicadas pelo fisco em seus lançamentos de ofício substitutivos.
Em outro giro, esta classificação fractal pode ser demonstrada, grafica­
mente, por meio de um circulo maior que contém um círculo menor (Ia
classificação), neste círculo existe outro (2a classificação) que é dividido em
duas outras partes (3a classificação).
Nota-se que ocorreu uma forte tomada de posição com relação aos crité­
rios de classificação, agregando as normas por meio de um critério formal,
descrevendo a norma jurídica antielisiva e diferenciando-a das demais normas
do sistema, em detrimento de um critério material como o de determinar qual
a função teleológica desta norma.
Afastou-se a classificação teleológica, pois estas classificações possuem
problemas vinculados ao estabelecimento, a priori, se uma conduta ou regra
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 0 7

são ou não elisivas, algo contraditório com o processo de generalização aprio-


rística utilizado pela ciência do direito.
Realizar uma classificação finalística ou em função do caso concreto é
subverter a natureza da investigação científica, pois, para esta, o objetivo é
produzir proposições genéricas a partir de observações sobre os dados do
mundo, determinando padrões de comportamento e, assim, gerando classifi­
cações precisas cientificamente.
Finalmente, alguns exemplos da classificação adotada são elucidados,
tendo como exemplo inicial de norma geral antielisiva por excelência, tem-se
o princípio da equidade como forma de impedir a geração espontânea de
efeitos no sistema jurídico, obviamente, contrapondo-se ao princípio da uni­
dade do direito.
O direito tributário perfaz a classe específica destas normas, sendo a
regra do parágrafo único do artigo 116 do CTN a norma tributária antieli­
siva geral.
No plano das normas específicas é simples verificar as normas tributárias
antielisivas específicas do imposto sobre a renda, sendo normas gerais aquelas
que diferenciam entre o balanço civil e o balanço tributário, as normas que
perfazem o chamado doppio binário no direito brasileiro16.
As normas tributárias antielisivas específicas são derivações daquelas do
artigo 116 do CTN, porém, atualmente, não positivadas no direito brasileiro.
4.1. U m a ( re) d e f in iç ã o d o c o n c e it o e lisã o fisc a l

Conforme já pôde ser visto, uma nova abordagem foi produzida sobre o
assunto elisão fiscal, na qual, estruturalmente, não se inclui a intenção do
agente de economia de tributos para qualificar uma determinada conduta de
elisiva ou não.
Neste campo normalmente estudado, a qualificação negativa para o
sistema econômico de uma atividade de planejamento tributário, a cha­
mada economia lícita de tributos por meio de um labor humano não faz o
menor sentido, pois inexiste um critério de comparação entre a carga fiscal

16 Rara um exemplo do uso desta nomenclatura no direito italiano: DAM M ACCO, Salvatore. II
Bilancio civilistico e fiscale: esame analítico voce per voce. Milão: Giuffrè, 2006.
108 - TEORIA GERAL DAS NORMAS ANTIELISIVAS

produzida pelos atos do sujeito em exame e uma carga fiscal teórica, nor­
mal ou parâmetro.
Da mesma forma, inexistem critérios de comparabilidade e equalização
entre as situações de contribuintes diversos, o que inviabiliza esta visualização
da carga tributária como elemento de competitividade entre dois sujeitos dis­
tintos ou como processo de generalização congruente de expectativas através
de uma homogeneização da carga tributária de um grupo de sujeitos.
Ainda, deixa-se clara a crítica à ideia da chamada economia lícita de
tributos17, que possui o problema de que toda a atividade de interpretação
jurídica no direito tributário pressupõe uma tentativa teórica de redução da
carga tributável.
É dizer, há, sempre, a tentativa de otimização de procedimentos operacio­
nais de uma dada empresa, sendo que nenhum sujeito conscientemente produz
a maior ineficiência econômica em suas operações por conta de uma ineficiência
na alocação da mínima carga tributária possível aplicável licitamente.
Neste sentido, assim como em Xavier18, a redução da carga tributária é,
sempre, um dos objetivos empresariais lícitos, pois esta carga produz um au­
mento de preços e perda de competitividade da empresa, mitigando o seu
papel fundamental de geração de novas riquezas.
Da mesma forma, a definição da elisão fiscal através da doutrina dos
negócios jurídicos indiretos, abuso de formas ou dos negócios jurídicos atípi­
cos não geram critérios seguros, pois inexistem critérios juridicamente objeti­
vos para esta qualificação19.
Neste ponto, deve ser dito que a expressão negócios jurídicos atípicos
perfaz uma contradição em termos, pois se os negócios são jurídicos, necessa­
riamente, são típicos e o fato de escolher uma determinada forma da cadeia
negociai para positivação de um evento não pode ser considerada ilícita.

17 Esta economia lícita de tributos é chamada, em Taveira Tôrres, com base na doutrina especial­
mente italiana e espanhola, de elisão tributária. In: TÔ RRES, Heleno Taveira. Autonomia
privada e simulação no direito tributário. São Paulo: RT, 2003.
18 Xavier utiliza a chamada forma geral das normas antielisivas e as chamadas regras Tayior made
como constantes. In: XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva.
São Paulo: Dialética, 2001.
19 Para uma investigação profunda sobre estas clássicas doutrinas, especialmente na interação
entre direito tributário e direito privado: TÔRRES, Heleno Taveira. Autonomia privada e simu­
lação no direito tributário. São Paulo: RT, 2003.
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 0 9

Em outras palavras, a operação cível é lícita, regular, não sendo anulada


pela regra tributária antielisiva, mas o fato jurídico tributário derivado da
norma cível é diverso, pois este primeiro fato ou relação jurídica cível não
contém o requisito necessário, dado pela norma antielisiva, para ser fato jurí­
dico tributário.
É dizer, para o direito civil, aquela comunicação jurídica a partir da irri­
tação apresentada produz o código lícito/válido, mas a sua correspondente
direta comunicação para o direito tributário acaba tendo como código aplicá­
vel o ilícito/inválido.
Logo, o sistema jurídico possui reações distintas no tratamento de uma
mesma irritação externa/evento20, a onda de choque, portanto, produz uma co­
municação cível e outra tributária, mas uma não consegue anular a outra, já que
os agentes competentes para a fiscalização tributária (administração pública)
não são competentes, no entanto, para revogar aquela norma cível produzida.
Como interessante ponto cego destas teorias, tem-se a potencial situação
em que o sujeito pratica certos atos com o fim exclusivo de economia tributária,
ou seja, realiza os chamados negócios jurídicos atípicos, que produzem indese-
jadamente uma carga tributária superior aquela normal e, ainda assim, esta con­
duta poderia ser punível como elisão fiscal vedada pelo sistema.
Prosseguindo, importante é realizar algumas considerações a respeito da
doutrina que estabelece a ilegalidade de certas normas antielisivas por alterar,
fora do campo de competência normativa constitucionalmente delimitado, o
critério material de certas normas jurídicas tributárias.
É dizer, neste sentido, a norma tributária antielisiva perfaria uma forma
de alargamento, fora do âmbito da competência tributária do critério material
do antecedente da RMIT, positivando uma marca de ingresso no antecedente
que não estaria permitida pela constituição.
Para infirmar tal argumento, deve ser estabelecido que o que a norma
antielisiva produz é um critério para validação de algo como elemento do
critério material da RMIT, não criando mais critérios de ingresso na classe
antecedente normativo.

20 Lembra-se que esta irritação, também pode ser interna, se se tratar do conseqüente da relação
cível gerando a obrigação tributária, do que seria uma forma de observação (no sentido
luhmaniano) de 2o nível interna ao sistema jurídico, ou seja, uma estrutura observando outra
estrutura comunicativa operando.
110 - T EORIA G ERAL DAS N o RMAS ANTIELISIVAS

Esta norma antielisiva estabelece, portanto, critérios de validação da nova


versão do fato jurídico originário (cível) como fato jurídico tributário, não
v/riando ingressos na classe fato jurídico tributário, mas, tão somente, criando
uma regra que é sobreposta àquela regra de qualificação originária, criando
uma ineficácia técnico sintática positiva da propagação de certos efeitos da
regra civil para todo o direito.
Em giro oposto, para fins argumentativos, ainda que se aceitasse que
ocorreu um acréscimo ao critério de ingresso no antecedente normativo por
meio de uma regra de antielisão, lembra-se que esta regra é pressuposta no
campo da Teoria Geral do Direito e, portanto, a criação normativa derivante
da competência pode e deve possuir critérios de validação do fato originário
para o fato derivado através de um critério que evite distorções da aplicação
automática entre duas regras.
Da mesma forma, lembra-se que a regra tributária antielisiva funciona
como metanorma geral em matéria tributária contida em lei complementar
que se sobrepõe as RMIT, pois condiciona a sua operação e formação.
Sintetizando, a regra tributária antielisiva é aquela que cria este duplo
circuito, ruptura da unidade do direito, diferenciação entre o direito tributá­
rio e direito privado, contraposta ao artigo 110 do CTN, distinguindo o sis­
tema tributário do sistema civil, criando a obrigação de (re/des)qualificação
dos eventos em diferentes fatos.
Ainda, pode ser dito que as normas antielisivas tributárias não tratam de
um novo critério para o ingresso em um critério já existente no antecedente da
RMIT, mas produzem uma intermediação necessária entre duas normas jurí­
dicas, permitindo a (re)validação de uma norma para uso de seus enunciados
constituintes em uma segunda norma.
Neste sentido, interessante é notar que as normas antielisivas perfazem,
ainda que indiretamente, a mesma função da presunção (absoluta ou relativa) e
ficção jurídicas, diferenciando o mundo do ser do mundo do dever ser ou per­
fazendo diferenciações entre os dois campos do mundo do dever ser, reiterando
que ambas não são consideradas como ilícitos para o direito tributário202.

21 Em mesmo sentido: CARVALHO, Cristiano. Ficções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2008.
22 Em sentido contrário com relação às ficções e presunções absolutas como não passíveis de uso
para tributação: FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no direito tributário. 2a ed. São Paulo:
Quartier Latin, 2005.
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 1 1

Exemplificando, o fato jurídico tributário possui três critérios: o espacial,


temporal e o material e, neste contexto, a regra antielisiva cria uma
impossibilidade do ingresso automático do fato cível23no critério material,
devendo aquele fato, para ser reconhecido no direito tributário como
comunicação/fato lícito, adimplir um critério dado pela norma antielisiva.
Analisando esta interação normativa é simples verificar que choque
sintático é semelhante ao das regras de isenção tributária, já que se gera a
ineficácia técnico sintática positiva da regra de tributação, porém os crité­
rios são distintos.
No caso da isenção, a nova regra cria um critério de exclusão da possibi­
lidade de positivação da RM IT de um dado do mundo.
Simetricamente, a regra antielisiva cria o critério para que o fato ou rela­
ção jurídica cível não seja reconhecido pelo direito tributário senão com a
realização de outro critério não existente nas regras cíveis, originárias.
É dizer, a ineficácia técnico sintática não está localizada no direito tribu­
tário, mas na conexão/interface cibernética deste com o direito civil, como por
exemplo, no caso italiano, das válidas razões econômicas.
Esta última assertiva demonstra que as regras antielisivas (reforçando o
seu caráter de Teoria Geral do Direito) operam da mesma forma em todos os
sistemas jurídicos, conforme será apontado em tópico posterior, sendo que o
ponto variável é o critério de seleção para produzir a ineficácia técnico sintáti­
ca positiva em questão.
Neste sentido, as normas antielisivas são pressupostas em todos os siste­
mas jurídicos nacionais e internacionais, sendo a distinção entre eles o critério
de validação da norma (ou enunciados) de qualificação originária para aquela
norma(s) de qualificação(ões) derivada(s).
Retomando, esquematicamente: dada a produção de norma individual e
concreta A, deve ser a realização do teste antielisivo Y para que ela possa ser
utilizada como substrato lingüístico isolado para produção da NIC B’ direta­
mente relacionada à regra B ou uma NIC X’, vinculada a uma RMIT X.

23 Aqui e nos pontos seguintes utiliza-se fato cível como sinônimo do: fato cível contido no
antecedente da norma concreta; ou a relação individualizada contida no conseqüente da
norma cível entendida como fato jurídico para o antecedente da RMIT, como denotado em
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. São Paulo: Saraiva, 1989.
1 1 2 - T e o r ia G e r a l das N o r m a s A n tie lisiv a s

Assim, sempre as regras antielisivas operam como requalificação, uma


obrigação de escolha entre uma forma específica, fato, que faça com que um
dado do mundo ou dado já jurídico ingresse no campo de ação da norma Y
(antielisiva) afetando a produção da norma individual e concreta B’.
Uma forma de demonstrar este raciocínio é dizer que o encadeamento
do processo de positivação é o seguinte:
1. Um evento que é reproduzido primariamente através de uma
NIC cível relacionável com uma norma tributária;
2. Segue-se a ação da norma tributária antielisiva que obriga que,
para a recepção deste fato cível pelo direito tributário, deve haver
uma mudança de perspectiva, por meio de uma barreira, um tes­
te para ingressar nos critérios da RMIT; e,
3. Há a produção de uma NIC tributária a partir do novo fato
produzido através da mediação pela norma antielisiva.
Por fim, lembra-se que o único ponto de similaridade da teoria apresen­
tada com aquela que trata da definição finalística da conduta elisiva24é o
simples fato de se aceitar a manutenção dos efeitos civis dos fatos primaria­
mente/ civilmente qualificados e a obrigação de requalificação/ desconsidera­
ção deste fato através dos critérios da norma antielisiva escolhidos pelo sistema
nacional em exame.
4 .2 . N o rm a t r ib u t á r ia a n t ie lis iv a esp ec ífic a g er a l e
e sp e c íf ic a : d if e r e n c ia ç ã o est r u tu r a l e efeito s

Como complemento à classificação apresentada, deve ser dito que para a


correta determinação do que seriam, na terceira classificação, as normas tribu­
tárias antielisivas específicas gerais e específicas, mais algumas considerações
devem ser produzidas2S.
Em primeiro ponto, deve ser dito que a chamada regra geral antielisiva
contida no artigo 116, parágrafo único do CTN deve ser considerada como

24 Lembrando que esta noção não é adotada neste trabalho pelo seu elevado grau de subjetividade.
25 Neste trabalho houve uma inversão da nomenclatura adotada para o terceiro elo da classifica­
ção das normas antielisivas. In: VITA, Jonathan Barros. The general and specific anti-avoidance
tax rule. In: MARINO, Giuseppe (org.). Temi scelti dui diritto tributário. Ueíusione fiscale. Milão:
Egea, 2008.
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 1 3

regra específica para a primeira classificação e regra geral para a segunda clas­
sificação apresentada26.
Prosseguindo, a distinção no terceiro nível classificatório entre as normas
gerais e específicas se dá através da determinação do modal das condutas do
conseqüente e dos sujeitos envolvidos, contidos nas normas antielisivas espe­
cíficas gerais ou específicas.
A norma tributária antielisiva específica geral possui como sujeitos en­
volvidos o aplicador da norma (fisco ou contribuinte) e a sociedade, por sua
vez, a norma específica possui como sujeitos envolvidos o fisco e a sociedade.
Exemplificando os dois casos: para a norma geral, o contribuinte (ou o
fisco) deve, obrigatoriamente, produzir um fato jurídico tributário diferenciado
do fato cível, sem utilizar o critério de aferição elucidado; no caso da norma
específica, tem-se a circunstância de o fisco, a partir de um dado fato concreto,
no imposto sobre a renda, investigar se aquele evento se subsume aos critérios de
válidas razões econômicas.
Interessante é que nas normas gerais há a criação de presunções absolutas
ou ficções legais para a aplicação no direito tributário, enquanto nas normas
específicas tais presunções são relativas, pois dependem daquele aludido crité­
rio de validação específico.
Prosseguindo, dentro do contexto apresentado da diferenciação entre a
norma tributária antielisiva específica geral e específica uma série de efeitos
diferenciados entre as duas podem ser aduzidos, em especial a possibilidade,
existente no ordenamento nacional e no ordenamento internacional de não
efetivação da elisão no campo individual e concreto, especialmente, nas nor­
mas tributárias antielisivas específicas.
Neste sentido, alguns pontos estruturais podem ser elucidados para deter­
minar quais as diferenças no campo de aplicação das duas normas, especialmen­
te, com o uso de argumentos derivantes da Lógica Jurídica, especialmente na
forma do processo de integração do ordenamento e análise pragmática da siste­
mática procedimental destas normas.

26 Não se irá, aqui, discutir sobre a natureza de norma antielisiva geral desta regra, já que,
conforme dito anteriormente, pelas definições dadas neste artigo, em especial no que trata da
contraposição entre o artigo 110 do CTN com esta regra, ficou clara a esta posição.
114 - T e o ria G e r a l das N o rm a s A n tie lis iv a s

Esquematicamente, sob o ponto de vista pragmático, para a norma tri­


butária antielisiva específica geral, três são os passos: a norma cível; a norma
específica antielisiva específica tributária; e a norma do lançamento.
Diversamente, quatro são os passos para a norma específica: a norma
cível; a norma do lançamento originário; a norma geral antielisiva específica
tributária; e a norma substitutiva do fisco.
Por esta forma, pode ser visualizado que existe uma relação imediata
entre a atividade do lançamento e a aplicação da norma geral como pressupos­
ta, no primeiro caso, enquanto no segundo, a relação entre a primeira norma
(cível) e a norma tributária antielisiva somente ocorre em um momento pos­
terior, no momento da fiscalização.
Interessante é notar que o contribuinte, normalmente, não possui uma
relação direta no plano da aplicação da norma tributária antielisiva específica,
pois não é sujeito daquela relação jurídica, sofrendo, meramente, as suas con­
seqüências por meio da norma substitutiva do seu lançamento, esta sim, ata-
cável, mas, apenas após a sua produção.
No caso das normas tributárias antielisivas específicas gerais, há um pro­
cesso de autoaplicação por parte do contribuinte, que em sua produção do
lançamento já pressupõe e aplica a norma antielisiva, diferenciando os efeitos
cíveis daqueles tributários, sendo presunção absoluta ou ficção legal, impassí­
vel de não aplicação.
Diversamente, o contribuinte deve participar do procedimento ad­
ministrativo do novo lançamento no caso da norma tributária antielisiva
específica pelo cumprimento dos primados da ampla defesa, devido pro­
cesso legal e contraditório que são pressupostos em todos os procedimen­
tos administrativos.

5 . E l is ã o com o elem en to pr essu po sto de T e o r ia G er a l

do D ir e it o : t e o r ia d a t r a d u ç ã o e c r it é r io s d e

c o m p a r a b il id a d e e n t r e sis t em a s j u r íd ic o s

Alguns sistemas de aferição de elisão fiscal já foram citados neste traba­


lho, mas algumas considerações sobre as diferenças de aplicação entre eles a
partir de premissas estruturadas devem ser produzidos, especialmente sob o
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 1 5

ângulo do problema da Teoria da Tradução27e da forma de incorporação de


normas a um sistema jurídico vigente.
Esta teoria foi criada sob os auspícios de Flusser28, que estabeleceu que
cada língua constitui uma realidade distinta e que o processo de tradução é
considerado como a transferência de realidade e de sentido de uma língua/
realidade para outra por meio de um processo de comparação de repertórios e
estruturas, produzindo uma versão na segunda língua escolhida.
Desde já, nota-se que esta operação é extremamente funcional para o
direito, pois, verificando o processo de diferenciação entre a linguagem natu­
ral e jurídica, dos fatos para os fatos jurídicos, existe uma distinção de estrutu­
ra e repertórios, já que a realidade do direito possui repertório reduzido e
técnico, guiados por estruturas sintáticas positivadas, mediadas pela forma
hipotético-condicional de suas proposições, diversamente das regras de cons­
trução da língua social.
Obviamente,-sob o ângulo heterorreferente da mediação da língua social
para a língua do direito existe uma tradução entre sistemas diversos de refe­
rência por meio da simplificação.
Outrossim, deve ser dito que o direito sempre traduz, pois compara es­
truturas e significantes e os traz para dentro do direito.
Sob o ângulo interno ao direito, autorreferente, há a tradução de um
ramo do direito para os demais, pois as lógicas internas ao sistema e os princí­
pios servem como diferenças entre estados de uma mesma língua, jurídica,
requerendo tradução.
É dizer, de um mesmo fato para uma norma deve haver tradução para as
demais, seguindo o repertório diferenciado entre elas, como no caso de uma
infração tributária que se torna um crime contra a ordem tributária, lembran­
do que tal crime somente advém do direito tributário e não da conduta hu­
mana existente no plano da facticidade.
Sinteticamente, a ideia de tradução, para os fins deste texto é visuali­
zada sob os dois ângulos, porém, mais exacerbada quando visualizada a

27 Este sistema de referência foi inicialmente elucidado em: FLUSSER, Vilém. Para uma teoria da
tradução. In: Revista brasileira de filosofia. São Paulo: Instituto brasileiro de filosofia, 1969,
jan.-mar. Vol. 19, fase. 63, p. 16-22.
28 FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3a ed. São Paulo: Annablume, 2007.
1 1 6 - T e o r ia G e r a l das N o r m a s A n tielisiv a s

tradução entre sistemas jurídicos distintos, algo incompatível com a capa­


cidade dos sistemas jurídicos de produzir realidades autônomas de outros
sistemas jurídicos.
É dizer, os sistemas jurídicos nacionais não admitem normas ou estrutu­
ras de outros sistemas jurídicos (nacionais ou internacionais) trazidos em seu
eixo pragmático, por uma tradução mal realizada no que diz respeito a com­
paração entre sistemas jurídicos e a incorporação não positivada de certos pos­
tulados ou formas de atuação deste direito alienígena (nacional ou internacional)
no direito nacional, auxiliando o processo de decisão e evolução do direito
interno de um dado país.
Neste contexto, a comparação de sistemas jurídicos parciais é interessan­
te para verificar a possibilidade de aprendizado de um sistema em relação aos
demais, verificando o seu nível de eficiência, além de servir como instrumento
de referência de política legislativa.
Tais comparações não podem, portanto, ser tomadas como base para a
interpretação de um dado sistema jurídico, pois apenas aquilo que é positiva­
do é que pode ser utilizado para produzir normas individuais e concretas que
infirmem outras normas produzidas regularmente pelos participantes do sis­
tema jurídico.
Exemplificativamente, os critérios de aferição da validade ou não de
negócios jurídicos para o direito tributário não podem ser subordinados a
experimentos da economia ou, mesmo, o uso de critérios adotados em ou­
tros sistemas jurídicos, pois estes sistemas possuem uma lógica diferenciada
de ação e não podem ser incorporados, apenas, no campo aplicativo por um
sistema jurídico nacional.
Neste campo, reitera-se que o sistema brasileiro criou uma norma an­
tielisiva indefinida, um conceito não definido denotativa ou conotativamente,
que não determina os critérios de aplicação das normas tributárias antielisi­
vas específicas, inexistindo, portanto, uma elucidação do sistema de como
aplicar a norma tributária antielisiva geral contida no artigo 116, parágrafo
único do CTN.
Logo, a ideia de importação de critérios para a aplicação das normas
antielisivas é extremamente grave, pois não autorizada pelo sistema pelos ar­
gumentos vinculados ao problema da estrita legalidade no direito tributário,
além do problema da garantia da soberania nacional pela impossibilidade de
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 1 7

aplicação de direito estrangeiro ao súdito nacional sem sua internalização pelo


sistema brasileiro.
Como exemplo de importação ilícita na pragmática da aplicação das
normas tributárias antielisivas tem-se o uso indiscriminado do critério antie-
lisivo das válidas razões econômicas, advindo do direito italiano, pelas cortes
administrativas e judiciais brasileiras.
Reitera-se que cada sistema jurídico possui critérios diferenciados no
núcleo do conseqüente da regra antielisiva, ou seja, cada um destes sistemas
possui critérios específicos para a sua aferição, apesar de a operacionalidade
das regras antielisivas, conforme já foi demonstrado, é idêntica em todos os
sistemas existentes no mundo.
Como exemplificação dos sistemas de elisão fiscal, no sentido já elucida­
do (enquanto norma que diferencia os fatos cíveis dos tributários através de
um critério contido na norma antielisiva), já foi citado o critério utilizado
pelo sistema italiano das válidas razões econômicas que, aparentemente já
estaria em vigor no Brasil sem qualquer norma a respeito sendo editada.
Basicamente, tal sistema está positivado no direito italiano no artigo
37-bis do Decreto 600 do Presidente da República de 29 de setembro de
197329, que possui uma série de problemas de atecnia, além da ausência de

29 37-bis. Disposizioni antielusive.


1. Sono inopponibili all'amministrazione finanziaria gli atti, i fatti e i negozi, anche collegati
tra íoro, privi di valide ragioni econom iche, diretti ad aggirare obblighi o divieti previsti
dall'ordinamento tributário e ad ottenere riduzioni di imposte o rimborsi, altrimenti indebiti.
2. L'amministrazione finanziaria disconosce i vantaggi tributari conseguiti mediante gli atti, i fatti e
i negozi di cui al comma 1, applicando le imposte determinate in base alie disposizioni eluse, al
netto delle imposte dovute per effetto dei comportamento inopponibile aH'amministrazione.
3. Le disposizioni dei commi I e 2 si applicano a condizione che, nell'ambito dei comportamento
di cui al comma 2, siano utilizzate una o piu delle seguenti operazioni: a) trasformazioni, fusioni,
scissioni, liquidazioni volontarie e distribuzioni ai soei di somme prelevate da voei dei patrimonio
netto diverse da quelle formate con utili; b) conferimenti in società, nonché negozi aventi ad
oggetto il trasferimento o il godimento di aziende; c) cessioni di crediti; d) cessioni di eccedenze
d'imposta; e) operazioni di cui al D.Lgs. 30 dicembre 1992, n° 544, recante disposizioni per
1'adeguamento alie direttive comunitarie relative al regime fiscale di fusioni, scissioni, conferimenti
d'attivo e scambi di azioni; f) operazioni, da chiunque effettuate, incluse le valutazioni, aventi ad
oggetto i beni ed i rapporti di cui all'articolo 81, comma 1, lettere da c) a c-quinquies), dei testo
unico delle imposte sui redditi, approvato con D.P.R. 22 dicembre 1986, n° 917. f-bis) cessioni
di beni effettuate tra i soggetti ammessi al regime delia tassazione di gruppo di cui all'articolo 117
dei testo unico delle imposte sui redditi. f-ter) pagamenti di interessi e canoni di cui all'articolo 26-
quater, qualora detti pagamenti siano effettuati a soggetti controllati direttamente o indirettamente
da uno o piú soggetti non residenti in uno Stato dell'Unione europea. f-quater) pattuizioni
intercorse tra società controllate e collegate ai sensi dell'articolo 2359 dei codice civile, una
1 1 8 - T e o r ia G er a l das N o r m a s A n tielisiv a s

definição do conceito de elisão (elusão) fiscal, e, ainda, apresenta como seus


pilares a ideia da necessidade de válidas razões econômicas para a validação
dos atos dos contribuintes.
Como tradução livre do parágrafo primeiro do artigo 37-bis:
37-bis, 1 - “Não é contrastável à administração pública, os atos, fatos e
negócios jurídicos, ligados uns aos outros, sem que haja válidas razões
econômicas, direcionadas a iludir as obrigações e proibições contidas
nas normas tributárias e, ainda, obter redução do quanto tributável ou
da restituição de tributos”.

Nesta tradução nota-se a atecnia de comparar fatos, atos e negócios


jurídicos, que são a mesma matéria para a Teoria da Linguagem, pois todos
são fatos.
Ainda, na segunda parte do citado parágrafo, a própria expressão sem
válidas razões econômicas faz com que surja a possibilidade de uma interpre­
tação econômica do direito, misturando o sistema jurídico com o econômico.

delle quali avente sede legale in uno degli Stati o nei territori a regime fiscale privilegiato, individuati
ai sensi dell'articolo 167, comma 4, dei testo unico delle imposte sui redditi, di cui al decreto dei
Presidente delia Repubblica 22 dicembre 1986, n° 917, aventi ad oggetto il pagamento di
somme a titolo di dausola penale, multa, caparra confirmatoria o penitenziale.
4. Uavviso di accertamento è emanato, a pena di nullità, previa richiesta al contríbuente anche
p er lettera raccomandata, di chiarimenti da inviare per iscritto entro 60 giorni dalla data di
ricezione delia richiesta nella quale devono essere indicati i motivi per cui si reputano applicabili
i commi 1 e 2.
5. Fermo restando quanto disposto dall'articolo 42, Pavviso d'accertam ento deve essere
specificamente motivato, a pena di nullità, in relazione alie giustificazioni fornite dal contríbuente
e le imposte o le maggiori imposte devono essere calcolate tenendo conto di quanto previsto al
comma 2.
6. Le imposte o le maggiori imposte accertate in applicazione delle disposizioni di cui al comma 2
sono iscritte a ruolo, secondo i criteri di cui alPart. 68 dei D.Lgs. 31 dicembre 1992, n° 546,
concernente il pagamento dei tributi e delle sanzioni pecuniarie in pendenza di giudizio, unitamente
ai relativi interessi, dopo Ia sentenza delia commissione tributaria provinciale.
7. I soggetti diversi da quelli cui sono applicate le disposizioni dei commi precedenti possono
rich ied ere il rim borso delle im poste pagate a seguito dei com portam enti d iscon osciuti
dall'amministrazione finanziaria; a tal fine detti soggetti possono proporre, entro un anno dal
giorno in cui l'accertam ento è divenuto definitivo o è stato definito mediante adesione o
conciliazione giudiziale, istanza di rimborso airamministrazione, che provvede nei limiti dell'imposta
e degli interessi effettivamente riscossi a seguito di tali procedure.
8. Le norme tributarie che, alio scopo di contrastare comportamenti elusivi, limitano deduzioni,
detrazioni, crediti d'imposta o altre posizioni soggettive altrimenti ammesse dall'ordinamento
tributário, possono essere disapplicate qualora il contribuente dimostri che nella particolare
fattispecie tali effetti elusivi non potevano verificarsi. A tal fine il contribuente deve presentare
istanza al direttore regionale delle entrate competente per territorio, descrivendo compiutamente
l'operazione e indicando le disposizioni normative di cui chiede Ia disapplicazione. Con decreto
dei Ministro delle finanze da emanare ai sensi dell'articolo 17, comma 3, delia legge 23 agosto
1988 n° 400, sono disciplinate le modalità per l'applicazione dei presente comma.
J o n a t h a n B a r r o s V it a - 1 1 9

Esta interpretação econômica do direito não é algo possível sem um pro­


cesso de positivação que defina o conceito de “válidas razões econômicas”, algo
inexistente no sistema italiano ou, mesmo, no sistema brasileiro.
Interessante, ainda, é notar que, no sistema italiano, há uma assime­
tria de tratamento da norma tributária antielisiva específica, pois se o con­
tribuinte produz um resultado mais gravoso para si mesmo, não há a
possibilidade de sua revisão, mas, caso contrário, esta revisão é realizada
em benefício do fisco.
Como outro exemplo de critérios de elisão contidos nas normas tributárias
antielisivas e utilizados na pragmática nacional, tem-se o chamado BPT -
Business Purpose Test dos sistemas anglo saxões ( Common Law, em especial,
EUA e Reino Unido) e na Alemanha, o qual seria uma forma de teste se
aquele negócio seria ou não possível pelas práticas usuais de mercado.
Outro critério adotado, em especial pela França, Espanha, Alemanha e
Holanda é a ideia de abuso de direito, abuso de formas e fraude à lei, deriva­
dos dos seus direitos civis nacionais, mas esbarram em certas premissas adota­
das neste trabalho, pois tais situações são consideradas como ilícitas no direito
civil, o que seria caso de evasão e não de elisão, conforme será elucidado no
ponto seguinte.
Ainda, no direito anglo saxão (Reino Unido e EUA), é muito utilizada a
ideia do substance overform, do que investiga-se o evento para fins tributários
e não o fato cível, verificando se ocorreu alguma espécie de problema na posi­
tivação deste negócio, o que, novamente, possui problemas de contorno sobre
a interpretação econômica do direito.
Como um novo dado que alterou, ainda que indiretamente, o panorama
das normas antielisivas, constituindo um novo elemento a ser considerado na
operacionalização destas, a introdução das regras do IFRS - International
Financial Report Standards - pela lei 11.638 acabou por alterar o panorama
das regras cíveis e, por conseqüência, altera o substrato sob o qual as normas
tributárias irão atuar.
É dizer, sendo este IFRS vinculado à ideia do sistema Common Law , ele
foi nitidamente influenciado pela doutrina do law and economics em suas
ponderações (como no uso disseminado da substância econômica sobre a for­
ma {substance overform), a exemplo), recordando que esta é a doutrina preva-
lente nestes sistemas.
1 2 0 - T e o r ia G e r a l das N o r m a s A n tielisiv a s

Nesta doutrina há uma hetero-observação de todos os sistemas sociais


pelo sistema econômico, incluindo o sistema jurídico, sendo uma forma de
recondução artificial que leva, em muitos casos, a problemas graves interpre-
tativos, pois se perde de perspectiva a auto-observação e capacidade de reflexi-
vidade de cada um dos sistemas sociais e um mais forte multifacetamento dos
dados do mundo abrangidos por cada um destes sistemas.
Neste sentido, indubitavelmente, há uma influência forte na formatação
das regras antielisivas (e contábeis, incluindo aquelas tributarias antielisivas
específicas gerais que produzem o doppio binário) por esta forma de ver o
mundo, ainda que possua como fundo um alinhamento não positivado, mas
meramente pressuposto em via interpretativa, entre as expectativas normati­
vas e econômicas.
Logo, interessante é mencionar que a utilização do critério de
(inter)mediação antielisivo das válidas razões econômicas acaba sendo uma
contradição em termos com as ideias do law and economics, em que o tributo
é considerado uma ineficiência econômica que deve ser evitada.
Portanto, a livre-iniciativa e livre concorrência são mitigadas, pois o com­
portamento permitido legalmente para evitar esta ineficiência é limitado, ar­
tificialm ente, apenas a ganhos operacionais e estruturais e, nunca,
prevalentemente ou exclusivamente (quando o ganho tributário anular a per­
da operacional provocada) tributários, que passam a delimitar negativamente
a classe possível de válidas razões econômicas para efeitos das normas antieli­
sivas fiscais criando uma nova forma de elisão através do direito em sua capa­
cidade de produção de realidades autônomas.
Deixa-se claro que tal critério deve ser positivado e, não, pressuposto
como ocorre atualmente no Brasil, apesar da introdução do IFRS, que forma­
tará o fato cível e, por conseqüência, o fato tributário, mas não pode servir
como critério para a norma tributária, o sendo, apenas, para a norma cível.
Da mesma forma a anomalia ou não usualidade como um critério elisão
para desconsiderar os efeitos tributários de tais negócios não perfaz um uso
seguro de critérios de (re)inclusão na classe, obviamente quando não se tratar
simulação que é um ilícito civil que não pode produzir, por óbvio, efeitos
tributários, sendo permitido apenas a nova norma civil não simulada produzir
as conseqüências tributárias.
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 2 1

Sob outro ângulo, ressalta-se que, classicamente no direito internacional,


as normas antielisivas são vinculadas ao treaty shopping e rule shopping além das
previsões específicas da cláusula Umitation of benefits dos tratados internacio­
nais para evitar a dupla tributação.
Os conflitos de qualificação entre estados como forma de conduta elisiva
não pode, neste sentido ser tomado como forma de elisão do contribuinte,
pois inexiste competência de gravar como elisão tais condutas, pois a qualifi­
cação em sua bi-implicação deve ser mediada pelo tratado que funciona como
mínimo denominador comum que limita a aplicação da lei interna, que não
pode ser aplicada em detrimento do tratado.
Nos casos internacionais não se pode, portanto, se aplicar as leis antie­
lisivas internas em detrimento do tratado, pois o tratado se aplica quando
gera benefício.
Finalmente, os critérios de elisão utilizados nas circunstâncias mediadas
pelos tratados somente podem ser aquelas contidas nos tratados e, não, aque­
las das leis internas dos países envolvidos.
Sinteticamente, portanto, os critérios de elisão são distintos em cada sis­
tema jurídico, porém a forma de operação da norma antielisiva é idêntica, não
podendo um sistema jurídico adotar, sem positivar, o critério antielisivo exis­
tente em outro país.

6 . P l a n e ja m e n t o t r i b u t á r i o e e l is ã o f is c a l

Retorna-se, aqui, ao problema encontrado em pontos anteriores sobre a


definição do conceito de economia lícita de tributos e a sua natureza de con­
tradição em termos, pois o pagamento de tributos e a forma menos gravosa
para pagar tributos são lícitas, devendo-se tratar sobre a definição dos termos
planejamento tributário e economia lícita de tributos e contrapô-los à ideia
de elisão fiscal criada neste trabalho.
Ainda, sob o ângulo da tensão entre planejamento tributário e elisão
fiscal, compara-se a situação das atividades elisivas com aquelas em que o
estado oferece incentivos fiscais como redução da base de cálculo ou, mesmo,
o diferimento de certos impostos.
Neste sentido, indaga-se qual a distinção de esta economia de tributos
ser realizada através de ação de política fiscal ou com um mecanismo de pre­
122-1 e o ria G e r a l das N o rm a s A n tie lisiv a s

servação da dinâmica do tributo como elemento de estabilização da livre con­


corrência, diferenciando cada um dos contribuintes em sua capacidade de
adaptação às regras do jogo.
Retomando, tratar elisão como forma de redução da carga tributária de
maneira ilícita para o sistema tributário comporta, sinteticamente, dois pro­
blemas: primeiro, estabelecer um critério jurídico de comparação da carga
tributária de um sujeito com os demais; segundo, a existência da possibili­
dade de haver conduta elisiva e, ainda assim, não ocorrer benefício de redu­
ção da carga fiscal.
Com relação ao primeiro ponto, ainda, não existe um critério para deter­
minar a comparabilidade de uma carga tributária com outras, pois o procedi­
mento abstrato de homogeneização de cargas tributárias pela média do sistema,
apesar de ser possível, deve ser contraposto ao princípio da livre concorrência.
Prosseguindo, segundo conceito contraposto ao de elisão fiscal é o da
expressão planejamento tributário, que é definida normalmente como ope­
rações complexas de estruturação de uma empresa, produzidas através do
estudo de um especialista em direito tributário, que visam a diminuição da
carga tributária.
Esta expressão possui uma série de problemas, pois a complexidade ou o
estudo são termos vinculados ao exercício de qualquer profissão, o que permi­
tiria dizer que qualquer procedimento fiscal ou estruturação fiscal realizados
por uma empresa são formas de planejamento tributário.
Elucidando, não existe nenhuma diferença entre um fato tributário re­
gular e o fato tributário do planejamento tributário, pois esta maior comple­
xidade do fato planejado não pode ser reconhecida pelas estruturas normativas.
Da mesma forma, inexiste qualquer critério que estabeleça que uma dada
operação é ou não planejada ou complexa em função do número de passos
que se seguiram para completar um negócio jurídico tributável.
Da mesma forma, considerar o planejamento tributário como processo
para diferenciá-lo das demais atividades, também, é negar a clássica ambigüi­
dade processo/produto da palavra planejamento, do que não se apresenta como
critério possível.
Por fim, tratar sobre a economia lícita de tributos em contraposição à
elisão fiscal é uma contradição em termos, já que a esta economia sempre é
lícita, mas o que não é lícito, para o direito tributário, é a tradução direta
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 2 3

entre o fato jurídico cível sem passar pelo teste de (re)validação contido na
norma antielisiva.

7. E l is ã o e e v a s ã o f is c a is : o p r o b l e m a d a i l ic it u d e

Antes de mais nada, deve ser dito que a diferenciação entre a elisão e
evasão30tributárias não será realizada pelos clássicos métodos de determinação
temporal ou da tentativa de se encontrarem os limites materiais da elisão fren­
te a sua classe disjunta, evasão, sob o ponto de vista econômico, como tenta o
direito italiano, criminalizando, a partir do montante sonegado a ilicitude
criminal de uma conduta fiscal.
Tratando do problema da ilicitude como forma de distinção entre evasão
e elisão, algumas considerações devem ser produzidas, pois caráter de ilicitude
do código é parcial na elisão e na evasão é total.
Logo, a afirmação clássica de que a evasão é ilícita e a elisão é lícita é
apenas parcialmente verdadeira, devendo-se elucidar o ponto de observação
no sistema jurídico, ou seja, a estrutura (no caso entendida como norma ou
núcleo semântico (sistema parcial ou didaticamente autônomo do direito))
que está realizando esta observação para elucidar estas afirmações.
E dizer, o ilícito da norma que trata da elisão tributária é, apenas, autorre-
ferente, enquanto o da evasão fiscal é auto e heterorreferente, ou seja, a evasão
tributária trabalha com a ilicitude de um fato tributário no código do direito
tributário e, também, no elemento primário de percepção, perfazendo um du­
plo ilícito, enquanto a elisão pressupõe a licitude para o direito civil e a ilicitude
para o direito tributário da programação originária.
A elisão fiscal trata da ilicitude de um fato apropriado de outro ramo
didaticamente autônomo do direito, funcionando como o já tão elucidado
filtro entre direito civil e suas conseqüências no direito tributário, sendo, por­
tando um lícito primário (civil) e um ilícito secundário (tributário).

30 Reitera-se que nomenclatura de elusão tributária não será utilizada por um critério pragmático, já
que elisão no sistema de referência adotado é reconhecida como situação em que se aplicam as
regras antielisivas e seria definido identicamente a elusão para o professor Taveira Torres, op. c/t.
Entretanto, a elisão no sentido de economia lícita de tributos não está de acordo com as
premissas postas neste trabalho, como já elucidado em momentos anteriores, pois a busca pela
menor carga tributária é um processo lícito, inexistindo, ainda, uma carga tributária teórica e a
outra aplicada, o que impede, sob este ângulo a comparação de cargas tributárias como critério
de diferenciação entre conceitos.
124 - T e o ria G e r a l das N o rm a s A n tie lis iv a s

| ,o<ro, as
normas antielisivas e antievasivas não são distintas no que trata
da ilicitude para o direito tributário, pois a tradução de ambas é considerada
como ilícita sem a aplicação de normas que realizem tal intermediação.
E dizer, as normas antievasivas tratam de que uma aplicação primária
ilícita gera uma aplicação secundária ilícita de maneira necessária, enquanto as
normas antielisivas utilizam como processo a necessidade de passagem pelo
filtro antielisivo para determinar esta adequação entre a norma tributária e o
sistema tributário que se distingue do sistema civil.
Obviamente, a evasão fiscal trata de problemas em que existe uma con­
duta que foi positivada de forma ilícita, originalmente, ou seja, o fato positi­
vado que impulsionou a norma tributária foi construído a partir de um ilícito.
Exemplo do ilícito primário evasivo é dado pelo não preenchimento de
certos deveres instrumentais como a versão em linguagem do fato jurídico
tributário/lançamento, mas esta assertiva não infirma a ideia de que existem
dois códigos na cadeia comunicativa da elisão, passando do código lícito do
direito civil (com a manutenção desta comunicação no sistema de direito ci­
vil) para o código ilícito no direito tributário.
Portanto, a despeito das proposições produzidas anteriormente, é sim­
ples verificar a ilegalidade das condutas evasivas, já que toda a cadeia é conta­
minada pela evasão, ou seja, há um encadeamento de condutas ilícitas que
tem como fim evasão, não pagamento ilícito de tributos.
Abre-se um parêntese sobre a figura típica penal utilizada para a defini­
ção de evasão, de acordo com a lei 4.729, que estabelece que a evasão seria
uma forma qualificada de sonegação fiscal, em que uma série de atos são
praticados com o fim de não pagamento de tributos.
Obviamente tal definição opera-se para os fins estritos de persecução
penal, entretanto, há a necessidade de que os atos praticados para viabilizar
este não pagamento tributário sejam ilícitos, o que valida a tese do duplo
ilícito adotada neste trabalho, recordando que há uma excludente de ilicitude
que determina que o mero não pagamento de tributos não perfaz a figura
penal da evasão.
Prosseguindo, algumas notas são produzidas sobre a segunda distinção
clássica entre evasão e elisão tributárias, a distinção temporal entre elas, pois é
tomado com premissa que ambas podem ocorrer tanto antes como depois do
evento tributário.
J o n a t h a n B a r r o s V ita - 1 2 5

Diversamente, na doutrina tradicional, há a pressuposição de que a elisão


é anterior ao evento tributável e a evasão é posterior.
Como exemplo para infirmar esta distinção temporal clássica, tem-se
evasão anterior ao evento tributável, no caso de fraude ou simulação para evi­
tar o acontecimento de um fato tributável.
Obviamente, não se olvida que é evasiva a conduta de não verter em lingua­
gem competente um determinado ato ou série de atos que seriam tributáveis.
Prosseguindo, a elisão anterior ao evento tributável pode ser descrita como
aquela em que a estruturação do negócio que potencialmente deve ser tribu­
tado é distinta.
Como forma conduta elisiva fiscal posterior ao evento, tem-se que, no
momento de sua versão em linguagem, os procedimentos adotados interna­
mente para o tratamento de um dado fiscal na empresa diferenciam o direito
tributário daquele direito civil, como no caso de amortização acelerada fiscal
em detrimento daquela cível.
Sinteticamente, inexiste diferenciação possível entre elisão e evasão sob o
ponto de vista temporal, pois não há norma que determine esta forma, lem­
brando que, empiricamente, há muito mais casos de evasão posteriores e elisão
anteriores aos eventos tributários, o que pode levar a esta falsa generalização.
Como terceiro e último ponto utilizado para distinguir elisão e evasão,
tem-se a análise dos conceitos de: simulação (art. 167 do C C 31), abuso de
direito (art. 187 do CC32) e fraude à lei (art. 166, VI do CC33).
Estes conceitos são definidos pelo código civil e serviriam, para alguns
autores, como eixo de diferenciação entre o elisão e evasão fiscais, lembrando
que a posição adotada é de que sendo duplo ilícito há evasão e não elisão fiscal.
Logo, por estas premissas adotadas, obviamente, nestes casos não existi­
ria elisão fiscal, mas evasão fiscal, pois tendo como fundamento a vinculação
entre a validade de uma norma para o direito civil e a validade de sua versão

31 Art. 167 - É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido
for na substância e na forma.
32 Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes.
33 Art. 166 - É nulo o negócio jurídico quando:
VI - tiver por objeto fraudar lei imperativa.
1 2 6 - TEORIA G ERAL DAS NORMAS ANTIELISIVAS

conseqüente para o direito tributário são distintas apenas quando aplicáveis as


regras antielisivas, sendo estas condutas ilícitas para o direito civil, não pode­
riam ser para o direito tributário sem sua (re)adequação para o direito civil.
E dizer, sendo vinculadas as causas e conseqüências do direito civil para
o direito tributário (algo idêntico ao preconizado no artigo 110 do CTN e
reelaborado no tema sobre a unidade do direito positivo), quando forem qua­
lificados certos atos como ilícitos no seu sistema de referência, eles serão ilíci­
tos para o direito tributário, exigindo uma (re)qualificação originária para sua
posterior qualificação derivada (tributária).
Lembra-se que a situação retratada na simulação e congêneres do direito
civil é justamente o procedimento oposto ao da elisão fiscal, pois nesta invali­
da-se a qualificação, apenas, para os fins de direito tributário e, naquela inva-
lida-se para efeitos cíveis sendo correspondente a invalidação dos efeitos
tributários de norma inválida.
Em outro giro, na evasão os problemas originários não são de qualifica­
ção no direito tributário, mas no próprio direito civil, pois são consideradas
como ilícito neste sistema, não podendo ser utilizadas as consequências/efei-
tos deste ato ilícito no direito tributário.
Logo, a operacionalidade é dada a partir da causa, em que, se este negó­
cio jurídico for eivado de algum destes vícios, não será válido para o direito
civil e, por via de conseqüência, para o direito tributário.

8. C o n clu sõ es

Os objetivos da investigação científica são os de agregar novas formas


de aproximação com relação a um dado objeto, ou, mesmo, consolidar as
visões tradicionalmente apresentadas a partir de novos testes e novos pontos
de observação.
O baixo número de citações neste trabalho é proposital, pois a visão
apresentada leva em conta as tradicionais para ser afirmada, infirmando as
demais e determinando os clássicos critérios usualmente utilizados.
Com relação às premissas adotadas, a primeira delas é a utilização do
direito como linguagem/comunicação jurídica estruturada através da imputa-
ção de um conseqüente normativo a um antecedente, sendo o antecedente um
fato e o conseqüente composto de relação jurídica entre dois sujeitos, sendo
Jo n a th a n B a r r o s V it a - 127

esta estrutura o ponto de partida para a identificação da norma antielisiva e


sua diferenciação funcional das demais normas do sistema jurídico.
Como ponto de partida para o estudo da elisão fiscal, esta é tomada
como um conceito de Teoria Geral do Direito que faz a ligação entre normas
de um ramo do direito a outro ramo do direito que, sendo a norma antielisiva
aquela que realiza a intermediação entre sistemas distintos, normas jurídicas
distintas vinculadas por relações intrincadas.
Exemplificando tal ideia, no direito tributário, a norma antielisiva no
direito tributário funciona como o filtro de validação entre o fato cível e o seu
correspondente fato no direito tributário, através da passagem por um critério
antielisivo que é determinado em cada sistema jurídico.
Portanto, as regras antielisivas testam, validando, as regras de direito civil
e distinguem entre os efeitos tributários da regra correspondente.
No contexto das normas antielisivas, estabeleceu-se a forma de classifi­
cação destas regras, a partir de um sistema fractal e assimétrico (forma dentro
da forma, mas em apenas um de seus lados), do que:
Existem as normas antielisivas gerais do sistema jurídico, aplicá­
veis a qualquer parte do ordenamento; e a correspectiva norma
específica, vinculada a cada uma das partes (eixo semântico ou
institucional) do sistema jurídico;
No interior das normas específicas do grupo anterior, subdivi­
dem-se as: normas gerais, ou seja, aplicáveis a qualquer parte deste
subsistema didaticamente autônomo; e as específicas, que são
aplicáveis a certas partes deste subsistema, como no caso tributá­
rio aos seus tributos em espécie; e
8 Nestas normas específicas antielisivas gerais, há a subdivisão final
entre as normas gerais e específicas, a partir da distinção do
sujeito competente e da existência ou não da compulsoriedade
para sua aplicação, sendo: as normas gerais aquelas de aplicação
imediata, por presunção absoluta ou ficção jurídica, pelo
contribuinte ou fisco no momento do lançamento; e as normas
específicas aquelas que dependem de presunção relativa, ou seja,
de um critério para sua aplicação pelo fisco na sua função
fiscalizatória, tão somente.
128 - T eo r ia G er a l das N o r m a s A n tielisiv a s

Neste contexto, o efeito desta última diferenciação é o da possibilidade


de desaplicação das normas específicas, mas não ocorre a possibilidade de de-
saplicação das normas gerais.
Como tópico coligado à ideia já apresentada de que as normas antielisivas
são conceitos de Teoria Geral do Direito, a ideia de tradução e de comparação
entre sistemas jurídicos foi empreendida, demonstrando que vários dos critérios
atualmente adotados pelas cortes nacionais são formas indevidamente importa­
das por estes usuários, pois não foram positivadas pelo sistema brasileiro.
Obviamente tal aplicação de critérios de elisão alienígenas não se justifi­
ca do ponto de vista jurídico, entretanto é empreendida pela constatação que
forma de aplicação e estrutura da norma antielisiva é idêntica em todos os
sistemas jurídicos.
Neste sentido, como proposta de política legislativa, lembra-se que uma
forma de evitar a elisão é estabelecer regras claras e caminhos específicos para
gerenciar o sistema tributário, do que as presunções contidas nas regras anti­
elisivas acabam por conferir uma padronização do sistema jurídico tributário,
perfazendo com que as condutas dos participantes do sistema sejam homogê­
neas, facilitando a fiscalização e ordenando as condutas dos contribuintes e
sua previsibilidade para melhorar a eficiência da administração tributária.
Por fim, uma distinção, também foi realizada entre a evasão e elisão tri­
butárias, com a conclusão, assemelhada à clássica, de que a evasão possui so­
mente o código ilícito (para o direito como um todo) e que a elisão possui dois
códigos, o lícito para todo o sistema, e o ilícito para o direito tributário.
Não se olvida que, em ambos os casos, o aspecto temporal não é critério
de distinção, já que tanto a elisão podem ocorrer antes como depois do fato
jurídico tributário.
Em outro giro, a conduta elisiva não é ilícita para o direito civil, pois não
pressupõe quaisquer das formas vedadas do direito civil, mas não há a sua
recepção/validação pelo sistema tributário, para a qual a comunicação emite
um código ilícito, se não atendidos os outros requisitos.
A Ponderação de
Princípios no
Direito Tributário

Juraci Mourão Lopes Filho


Doutorando em Direito Constitucionalpela UNIFOR. Mestre em Direito
Constitucionalpela UFC. Professor —Graduação e Pós-Graduação —da
Faculdade Christus. Procurador do Município de Fortaleza. Advogado.
J u r a c i M o u r ã o L o p e s F il h o - 1 3 1

O estudo dos princípios jurídicos vem passando nos últimos anos por
profundas mudanças devidas aos novos aportes teóricos de autores como
Robert Alexy e Ronald Dworkin, além de decisões de cortes constitucionais
europeias, em especial da Alemanha.
Relevante instituto dessa nova perspectiva é a ponderação. Seu uso é cada
vez mais difundido. Vem se tornando comum ouvir que não existem direitos
absolutos, já que todos poderiam ceder diante de uma proporcionalidade com
outros de igual relevância. Contudo, é preciso que o uso da ponderação guarde
correlação lógica com o modelo teórico de que é fruto, a fim de evitar um sincre-
tismo metodológico pernicioso para a eficácia de disposições mais relevantes do
sistema jurídico.
Conquanto no D ireito Tributário essa mudança de paradigm a
principiológico ainda não possua a mesma ênfase de outros ramos, é importante
expor como pode se dar nele o uso da ponderação. Assim, exporemos quais as
mais relevantes conseqüências de uma distinção entre regras e princípios, bem
como se dá o enquadramento dos clássicos princípios tributários da tradição
brasileira nessa nova classificação. Em seguida, trataremos sobre os modos de
ponderação existentes nesse novo modelo, para, então, expor quais são as
espécies possíveis de serem operadas no Direito Tributário e o controle que
pode ser feito sobre tal ponderação.
Certamente o tema é instigante e complexo, daí porque nossa pretensão
não é exauri-lo, mas apenas apresentar seus contornos fundamentais e lançar
luzes sobre os pontos que reputamos mais relevantes.

1. Os PRINCÍPIOS c o n s t it u c io n a is t r ib u t á r io s
A nova perspectiva jurídica que compreende uma distinção entre regras
e princípios já é bastante conhecida na doutrina1e indica que princípios são
mandados de otimização a serem observados e cumpridos na medida do que
for fática e juridicamente possível, enquanto as regras trazem juízos definiti­
vos, mediante a descrição de uma hipótese fática e atribuição de uma conse-

1 Cfr. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. SILVA, V irílio Afonso. Direitos Fundamentais: Conteúdo essencial,
restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da
Definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5a ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BONAVIDES,
Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9a ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
1 3 2 - A P o n d e r a ç ã o d e P r in c íp io s n o D ir eit o T r ib u t á r io

quência segundo os modais de obrigatório proibido e permitido (H~»C). O


critério distintivo, portanto, reside na estrutura lógica da norma: enquanto as
regras possuem estrutura fechada, os princípios possuem estrutura aberta.
Deve ser destacado que por norma não deve ser entendido o texto legis­
lativo, mas o produto da interpretação/aplicação realizada a partir desses tex­
tos, devendo, ainda, ser levado em conta os elementos contextuais. Assim, por
via interpretativa é possível se chegar a um juízo deôntico aberto (princípio)
ou fechado (regra). A norma não é um dado apriorístico imposto de maneira
objetiva ao intérprete/aplicador. Virgílio Afonso da Silva2bem expõe:
“É ponto pacífico que a distinção entre regras e princípios não é um
distinção entre textos, mas entre normas. Nesse sentido, portanto, não
há grandes problemas no fato de que o texto e seus operadores deônticos
não dêem indicação precisa sobre o tipo de norma que surgirá de sua
interpretação. E tarefa do intérprete definir se a norma, produto da
interpretação, é uma regra ou um princípio.”
Os princípios são aplicados por meio de regras, ou seja, do juízo aberto
de um princípio é extraído um juízo fechado ao qual será subsumido o caso.
É o que comumente se chama de concretização dos princípios, que, como se
verá, implicará no uso de uma ponderação ad hoc.
Essa regra fruto da concretização não demanda um texto legislativo in­
tercalar, é inferida mediante a concretização do princípio. Assim, dizer que os
princípios se aplicam por regras não significa que precise de uma posterior lei
para veicular essa regra, mas que o juízo aberto do princípio se traduz em uma
regra que será aplicada. Tudo é operado diretamente a partir do princípio.
Com isso em mente, percebe-se que a subsunção não é excluída da apli­
cação dos princípios, mas dependerá ela de uma concretização prévia.
Exemplifiquemos para ficar mais claro. Do enunciado constitucional
“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (art. 5o, I, da Consti­
tuição Federal), se obtém o princípio cuja enunciação pode se dar mais preci­
samente da seguinte maneira: “sempre que for fática e juridicamente possível,
deve ser a obrigação de homens e mulheres serem tratados igualmente, na
medida dessa desigualdade”. Como se vê, não se tem a descrição dos fatos

2 SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São
Paulo: Malheiros, 2009, p. 57.
J u r a c i M o u r ã o L o p e s F il h o - 1 3 3

sobre os quais incidirá o princípio, nem a específica conseqüência. Contudo,


nas diferentes situações fáticas possíveis, extrai-se, desse juízo aberto, uma
regra para ser aplicada ao caso concreto, por exemplo: “dado o fato de o legis­
lador criar um tributo por lei, deve ser a proibição de estabelecer alíquotas
diferentes entre homens e mulheres”. O momento de criação de um tributo é
uma situação em que é fática e juridicamente possível realizar o princípio
constitucional da igualdade. Outro: “dado o fato de um professor corrigir as
provas de seus alunos, deve ser a proibição de atribuir notas distintas em fun­
ção do sexo do respectivo aluno”. São inúmeras as regras que podem ser obti­
das a partir da concretização do princípio, daí porque se fala de uma estrutura
aberta, sem juízo definitivo. Tais regras não precisam vir expressas em um
enunciado legal, pois, repita-se, são a concretização direta do princípio cons­
titucional em cada um dos casos citados (criação de um tributo e correção de
provas por um professor).
Essa concretização (tradução de princípio em regra) também pode ser
feita pelo Legislativo que inserirá em um texto legal seu produto. Neste caso,
o intérprete/aplicador desse enunciado legal labora sobre regra fruto de uma
ponderação abstrata já realizada pelo legislador.
E possível ilustrar a operação, tanto do legislador quanto do intérprete/
aplicador da seguinte forma:

Texto
+
Contexto

Norma (rega ou princípio)

Princípio Regra (aplicável ao caso por subsunção)

(concretização)

regra', regra", regra'"...(aplicáveis ao caso por subsunção)


1 3 4 - A P o n d e r a ç ã o d e P r in c íp io s n o D ir e it o T r ib u t á r io

Essa forma de compreender a distinção entre regras e princípios deriva


necessariamente da perspectiva teórica da chamada Teoria dos Princípios, mais
precisamente do modelo proposto por Robert Alexy.
Acontece que, na tradição jurídica brasileira, o que se entende por princí­
pio não é definido pela estrutura lógica da norma, como propõe Alexy, mas sim
por seu grau de importância para a ordem jurídica ou para determinado ramo
do Direito, independentemente de sua estrutura, se aberta ou fechada. É essa a
perspectiva de Roque Antônio Carraza3quando escreve que “princípio é o co­
meço, alicerce, ponto de partida. Pressupõe, sempre, a figura de um patamar
privilegiado, que torna mais fácil a compreensão ou a demonstração de algo.
Nesta medida, é, ainda, a pedra angular de qualquer sistema”.
É nesse sentido que se alude aos princípios da legalidade tributária, da
vedação de retroatividade da lei tributária e a outros, que, na perspectiva de
Alexy, são regras, porque não se traduzem em mandados de otimização a
serem observados quando fática e juridicamente possíveis, mas sim em juí­
zos definitivos.
A legalidade tributária, por exemplo, se traduz no seguinte enunciado:
“dada a inexistência de prévia cominação legal, deve ser a proibição de cobran­
ça do tributo”. Não é demandada uma concretização da hipótese de incidên­
cia e da conseqüência normativa de um princípio, elas são decorrência direta
da interpretação realizada a partir do enunciado normativo.
É com isso em mente que podemos destacar que muitos dos clássicos
princípios constitucionais da ordem tributária são, na nova perspectiva de
Teoria dos Princípios, em verdade, regras.
São apontados como direitos fundamentais dos contribuintes e, portan­
to, princípios do Direito Tributário a legalidade, a anterioridade, igualdade,
capacidade contributiva, vedação de confisco, liberdade de tráfego e compe­
tência4. Com exceção da igualdade e da capacidade contributiva, todos os
demais são regras.
Outros clássicos direitos do contribuinte são regras, como a inviolabili­
dade do sigilo fiscal, a não cumulatividade, as imunidades, entre outros.

3 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25a ed. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 42.
4 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 1998,
p. 29/35.
J u r a c i M o u r ã o L o p es F il h o - 1 3 5

Não é de se estranhar a proeminência de regras entre as normas mais


relevantes do Direito Tributário, pois este ramo do Direito busca uma maior
segurança jurídica e previsibilidade das relações que disciplina, o que é mais
bem satisfeito por regras e não por princípios.
Com efeito, a estrutura da regra garante uma maior previsibilidade das
conseqüências dos atos praticados, pois prescinde da concretização. Entretanto,
essa segurança não pode chegar ao extremo de considerar uma invariabilidade
absoluta da regra, porquanto para se chegar a ela é necessária toda a etapa prévia
de interpretação do enunciado normativo em função do contexto que demandará
uma ponderação de definição (definitional balacing), como se verá adiante.
Essa clara colocação da questão é importante para evitar o enfraqueci­
mento do Sistema Constitucional Tributário mediante o sincretismo meto­
dológico denunciado por Virgílio Afonso da Silva5, especialmente mediante o
uso da ponderação ad hoc em situações em que não incorrem princípios (no
sentido de mandado de otimização).
É muito comum encontrar na doutrina indicação de que os direitos
fundamentais (entre eles, naturalmente, os direitos fundamentais dos
contribuintes) não são, nenhum deles, absolutos porque veiculados
exclusivamente por normas princípios. Contudo, nem todo direito fundamental
tem estrutura lógica de princípio, pois nem todos são mandados de otimização.
É o caso, como se viu, da legalidade tributária e de vários outros princípios
constitucionais da ordem tributária que têm estrutura de regra.
Como dito, se tradicionalmente esses direitos fundamentais são conhe­
cidos como princípios é porque o termo em tal hipótese tem outro referencial
metodológico que o liga à ideia de norma fundamental de um sistema, o que
não implica necessariamente que deva ter a estrutura de mandado de otimiza­
ção (princípio no sentido utilizado por Robert Alexy).
A afirmação de que todo direito fundamental é relativo e se submete a
uma ponderação ad hoc não é verdadeira, pois esta, por definição, somente
pode ser utilizada quando há conflito de princípios (mandados de otimiza­
ção), o que nem sempre ocorre, porque não faz parte da definição de direito
fundamental ser ele veiculado por princípio e não por regra.

5 SILVA, Luiz Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.
In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Número 1, janeiro/junho de 2003.
1 3 6 - A P o n d e r a ç ã o d e P r in c íp io s n o D ir e it o T r ib u t A r io

De fato, como muito bem indica Gregório Robles6, a fundamentalidade


de um direito não decorre da estrutura lógica da norma que o veicula, mas sim
de seu conteúdo específico (pauta ético-jurídica em cuja essência se encontra a
dignidade da pessoa humana), aliada ao fato de estar no topo de hierarquia
normativa (na Constituição) e de possuir uma garantia diversa das que possuem
outros direitos. O que define um direito como fundamental são três elementos
(dois formais e um material) e nenhum deles traz a indicação de que deva ser
prescrito por norma com estrutura de princípio.
Contudo, não é de todo afastado o uso da ponderação de princípios no
Direito Tributário. Para que essa nossa afirmação seja mais bem detalhada, é
necessária uma análise mais detida da ponderação.

2 . AS MODALIDADES DE PONDERAÇÃO

A ponderação, também denominada de balanceamento ou sopesamento,


consiste numa avaliação contrabalanceada entre princípios que concorrem ou
se chocam em um determinada situação de interpretação/aplicação a fim de
decidir qual deve prevalecer nas circunstâncias. Robert Alexy compreende a
ponderação como a proporcionalidade em sentido estrito, último estágio da
proporcionalidade, exercitável depois da adequação e da essencialidade. É tra­
duzido no dever de quanto maior for a interferência em um princípio, maior
deve ser a importância em se realizar outro.
É comum se tentar apartar ponderação e interpretação, mas não vemos
como realizar tal tarefa plenamente, sobretudo porque é possível se verificar,
num plano ideal, uma ponderação que opere no campo preponderantemente
interpretativo (definitional balacing) e outra no âmbito eminentemente de
aplicação (ponderação ad hoc).
É precisa a lição de Jane Reis Gonçalves Pereira, conquanto defenda a
autora a diferença entre ponderação e interpretação7:
“Em certos casos, a idéia de contrapeso é utilizadapara demarcar o alcan­
ce de conceitos e fórmulas constitucionais de forma abstrata. Nessa mo­
dalidade hermenêutica, fundem-se elementos da categorização com tra­

6 ROBLES, Gregório. Los Derechos Fundamentales y La ética em La sociedad actual. Madrid:


Editorial Civitas, 1992.
7 PEREIRA, Jane Reis. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Reno­
var, 2006, p. 268.
J u r a c i M o u r ã o L o p es F il h o - 1 3 7

ços da retórica ponderativa, porquanto o processo de balanceamento é


empregado como um passo anterior à fixação dos contornos de certas
categorias constitucionais.”
O defmitional balacing utilizado como um instrumento hermenêutico
atua, portanto, no processo de construção da norma, determinando seus con­
tornos iniciais. Marcelo Lima Guerra possui entendimento análogo8.
Nesse âmbito, o intérprete considera preponderantemente elementos
abstratos e hipotéticos, projeta situações futuras de aplicação, antevê que prin­
cípios podem ser implicados na espécie e busca, em função disso, definir o
possível alcance dos termos dos enunciados normativos. Ademais, o caso con­
creto fornece elementos novos não imaginados no plano abstrato que são úteis
para definir o âmbito de proteção da norma. Daí se falar, adicionalmente, em
uma ponderação abstrata e outra concreta.
No direito constitucional, a ponderação delineadora é utilizada, por exem­
plo, para definir o que é casa para fins de determinação do alcance da prescrição
de que a “casa é asilo inviolável”. Para determinar o âmbito de proteção desse
direito fundamental, é necessário considerar princípios que concorram ou se
choquem. No plano eminentemente abstrato, é possível se antever a concorrên­
cia com os valores da segurança e o interesse da investigação criminal, sem pre­
juízo de modificações e contribuições posteriores do caso concreto que pode
fazer chocar ou concorrer outros princípios não antecipados numa análise abs­
trata. Tudo para definir o âmbito de proteção da norma. A partir de uma análise
contrabalanceada desses valores concorrentes, chega-se a uma definição de casa,
a qual, entretanto, não será definitiva e imutável diante de verificação de uma
situação nova diante de um caso concreto.
Ao lado do defmitional balancing há a ponderação adhoc, modalidade mais
conhecida, tanto que chamada de ponderação em sentido estrito ou ponderação
propriamente dita. Ela é operada no plano majoritariamente de aplicação da
norma já delineada. E critério para definir que princípio (ou melhor, que regra
derivada do princípio) deve prevalecer no caso. Não há que se confundir essas
duas modalidades ponderativas. Nesse sentido, Jane Reis Gonçalves Pereira9:

8 GUERRA, Marcelo Lima. A proporcionalidade em sentido estrito e a fórmula do peso de Robert


Alexy: significância e alguma implicações. In: Revista da Procuradoria Ceral do Estado do Rio
Grande do Sul, v. 31, n° 65, janeiro/junho de 2007, 27/41.
9 Ibid. p. 270.
1 UB - A P o n d e r a ç ã o d e P r in c íp io s n o D ir e it o T r ib u t á r io

“Fica claro, assim, que é preciso apartar conceitualmente a ponderação


em sentido estrito - que os norte-americanos chamam de ponderação
adhoc- da ponderação delineadora ou definitória. Isso não significa,
contudo, menosprezar o papel desse critério como instrumento eficien­
te para muitos casos de interpretação dos direitos. A estratégia
interpretativa consiste em estabelecer soluções abstratas para solucio­
nar casos futuros, em diversas hipóteses, ostentando, ainda, avantagem
de evitar a necessidade de ponderações posteriores.”
A ponderação delineadora também é um modo de ponderação. A gran­
de diferença é que o definitional balancing se presta a definir o alcance da
norma (regra ou princípio), enquanto a ponderação ad hoc se volta para a não
aplicação de um princípio em um caso que, a priori, seria aplicável, isto por
força do maior peso de outro princípio. Nesta última, não se trata de buscar o
âmbito de proteção dos princípios aplicáveis. Este já está definido. Trata-se de
se determinar qual deve prevalecer no caso, a qual regra (derivada de que
princípio) deverá o fato ser subsumido.
Podemos ilustrar as duas formas de ponderação pelo seguinte quadro:

Texto 1 Texto 2
+ +
Contexto 1 Contexto 1

(defintional balacing) {defintional balacing)

Norma A Norma B

Princípio A Regra A Princípio B Regra B

(concretização) (concretização)

regra' •+ regra//
(choque)

(ponderação ad hoc)

Regra derivada do princípio prevalecente (regra' ou regra")


J u r a c i M o u r ã o L o p e s F il h o - 1 3 9

Como se disse, o legislador também realiza ambas as ponderações quan­


do da criação de uma lei, a qual conterá o produto das ponderações feitas por
ele. De fato, a tarefa do Legislativo é, precisamente, emitir leis e outros atos
normativos que harmonizem os vários princípios que convirjam em situações
padrões de aplicação antevistas por ele.
Precisamente por ser a lei o produto de uma ponderação, ela poderá ter
sua constitucionalidade controlada por esse mesmo critério, abrindo-se, en­
tão, para o Judiciário, um novo modo de julgar a atividade legislativa, além da
simples incompatibilidade vertical entre a lei e a Constituição.
Por toda a descrição feita até aqui, percebe-se que a ponderação ad hoc
somente se realiza diante de princípio. Não pode haver ponderação ad hoc de
regras constitucionais. A própria definição de regra como mandato definitivo
impende a aplicação gradual própria da atividade ponderativa. Em sendo a
regra constitucional válida e eficaz, ela incide na verificação dos fatos que
compõem sua hipótese de incidência.
Em se tratando de regra infraconstitucional, derivada de princípios cons­
titucionais ponderados pelo legislador, ainda é possível o intérprete/aplicador
julgar a ponderação legislativa mediante uma análise direta dos princípios
constitucionais, fazendo, ele mesmo, uma nova ponderação segundo as cir­
cunstâncias do caso concreto. Em tal situação, é possível que a regra infra­
constitucional deixe de ser aplicável ao caso concreto por inconstitucionalidade,
sem prejuízo de sua válida aplicação em outras situações futuras em que a
ponderação legislativa se mostre válida. Mas não se trata de ponderar direta­
mente a regra legislativa, mas julgar sua constitucionalidade, ou, mais precisa­
mente, a constitucionalidade da ponderação legislativa de que ela é fruto.
Destaque-se que essa não aplicação da regra legal por força de uma
ponderação ad hoc direta dos princípios constitucionais somente é permiti­
da pelo controle concreto de constitucionalidade que autoriza uma ponde­
ração substitutiva. Mas isso é impossível de ocorrer em se tratando de regra
constitucional, pois não há um princípio que lhe seja superior e que autori­
ze um controle de validade vertical. Nem mesmo se pode falar que a regra
constitucional seja produto de uma ponderação de princípios que lhe são
superiores. Portanto, regras constitucionais não podem deixar de ser aplica­
das por força de uma ponderação ad hoc.
1 4 0 - A P o n d e r a ç ã o d e P r in c íp io s n o D ir e it o T r ib u t á r io

3 . A S MODALIDADES DE PONDERAÇÃO NO DlREITO TRIBUTÁRIO

Conquanto o Direito Tributário não tenha incorporado a nova Teoria


dos Princípios com a mesma profundidade de outros ramos, conforme nos
alerta Humberto Ávila10, é muito comum se referir à proporcionalidade como
critério de controle da atividade tributária do Estado. Em sede jurisprudencial,
o Supremo Tribunal Federal possui firme precedente11:
“TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE.
- O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir
imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condi­
cionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à
ação normativa do Poder Legislativo.
- O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está
necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental,
que, encontrando suporte teórico no princípio daproporcionalidade, veda
os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O
princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a
inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas
funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria
constitucionalidade material dos atos estatais.
- A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo
reconhece ao Estado, não lhe outorgao poder de suprimir (ou de inviabilizar)
direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao
contribuinte. E que este dispõe, nos termos daprópriaCartaPolítica, de um
sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos
cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis
veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado.”
Por essa decisão, percebe-se o primeiro uso importante da proporcionali­
dade/ponderação no Direito Tributário, qual seja, para controle do balancea­
mento de direitos feito pelo Legislador. Aqui é perfeitamente válida a ideia de
ponderação como proporcionalidade em sentido estrito de Alexy: o direito de

I0 ÁVILA, Humberto. A teoria dos princípios e o Direito Tributário. In: Revista Dialética de Direito
Tributário. n° 125, fevereiro de 2006, p. 33/49.
II ADI 2.551-M-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-03, DJ de 20-4-06
J u r a c i M o u r ã o L o p es F il h o - 1 4 1

propriedade de um contribuinte somente dever ser restringido na exata medida


da satisfação de outros direitos. A restrição exagerada é passível de controle de
constitucionalidade que poderá julgar desproporcional a ponderação de princí­
pios subjacente à norma legislativa.
A atividade do legislador de criação de tributos e multas implica, inega­
velmente, em uma ponderação de vários princípios. Comumente, se tem de
um lado capacidade contributiva, isonomia, propriedade e, do outro, os prin­
cípios que prescrevem direitos sociais (os quais impõem atividade positiva do
Estado que demanda recursos). Sempre se deverá ter em mente que a tributa­
ção e a punição não possuem fim em si mesmo, mas sim realizar a tarefa
estatal que pode de maneira geral ser descrita pelos fins do art. 3o da Consti­
tuição Federal e, mais precisamente, pela satisfação, fomento e realização dos
demais direitos fundamentais, em especial os sociais.
Portanto, o Judiciário pode averiguar a ponderação legislativa subja­
cente para julgar a constitucionalidade da norma legal. Eis um ponto rele­
vante, pois essa averiguação não se restringe a um julgamento de mera
incompatibilidade vertical e definitiva de uma norma legal com a constitui­
ção, nem se trata apenas da análise abstrata (segundo perspectiva padroniza­
da e genérica) da proporcionalidade. Permite, também, um julgamento numa
perspectiva concreta, se valendo de dados fáticos adicionais não contempla­
dos no plano abstrato para demonstrar a inconstitucionalidade da aplicação
da norma à situação específica.
Em outras palavras: o caso concreto poderá fornecer elementos novos,
não antecipados num plano abstrato pelo legislador, que alterarão o sopesa-
mento dos princípios envolvidos, demandando aplicação de regra diversa in­
ferida diretamente dos princípios constitucionais e não a regra legislativa,
afastada por inconstitucional, ao menos naquele caso. Essa é uma constatação
importante, pois, no Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países
em que o controle de constitucionalidade é abstrato e concentrado, ao juiz é
dado o poder de julgar a ponderação previamente inserida em um enunciado
legislativo, autorizando uma permanente utilização da ponderação de princí­
pios que concorrem no caso.
Nem sempre é possível o Legislativo antever os elementos do contex­
to fático de aplicação dos princípios. Mesmo a determinação de quais de­
les podem vir a entrar em choque é impossível de ser exaurida em uma
atuação abstrata. Assim, pode o Judiciário verificar dados factuais que es­
1 4 2 - A P o n d e r a ç ã o d e P r ín c íp io s n o D ir e it o T r ib u t A r io

tão diante de si e que não foram levados em conta pelo legislador ao reali­
zar a ponderação abstrata inserida na lei. Em tais situações, ele pode dei­
xar de aplicar a lei àquele caso concreto para fazer prevalecer uma solução
específica gerada em função de uma nova ponderação, desta vez fruto do
caso concreto.
Deve ser advertido, porém, que aqueles “princípios constitucionais tri­
butários” (no sentido de normas nucleares do Sistema Tributário Nacional)
que têm estrutura de regras não podem entrar nessa ponderação legislativa ou
judicial pelas razões já expostas. Legalidade, vedação de confisco, anteriorida­
de, competência, entre outros, não podem ser ponderados, embora a definição
de seus alcances demande a categorização (definitional balancing).
A legalidade desempenha papel fundamental no sistema tributário, es­
pecialmente porque veiculada por regra. Uma ponderação substitutiva feita
pelo intérprete/aplicador jamais poderá ensejar aumento e instituição de tri­
buto, sendo tal proibição inviável de ser ponderada. Assim, embora seja válida
uma ponderação ad hoc direta dos princípios constitucionais para controle da
legalidade da regra legislativa, ela jamais poderá substituir o papel do legisla­
dor reservado pela legalidade.
São nesses termos gerais que deve ser compreendida a ponderação ad hoc
no Direito Tributário.
Por sua vez, a ponderação delineadora tem ampla aplicação da definição
dos fatos tributáveis trazidos pela Constituição Federal. Com efeito, definir o
que seja renda, circulação de mercadoria ou propriedade territorial urbana,
por exemplo, envolve uma análise ponderativa de vários princípios não só tri­
butários, como também de outros domínios constitucionais, como da Ordem
Econômica. Essa atividade demanda consideração de questões não só de di­
reito, mas também de fato, autorizando a incorporação do aspecto econômico
dos mesmos.
Isso evidencia que a análise econômica do Direito Tributário, em alguma
medida, não é uma postura ideológica de como enfrentar a interpretação dos
institutos jurídicos, mas uma conseqüência inexorável do modo de ser do
próprio Direito Tributário.
Ao se ter em mente o papel da ponderação delineadora na determinação
do alcance desses termos, evita-se a ilusão de acreditar que os fatos tributáveis
trazidos pela Constituição como limites impositivos do Fisco e critério para
J u r a c i M o u r ã o L o p e s F il h o - 1 4 3

repartição das competências dos entes federativos sejam dados acabados e


imutáveis. Nesse âmbito hermenêutico, não se pode falar de certeza ou imu­
tabilidade quanto ao significado.

4 . C o n clu sã o

O uso da ponderação no Direito Tributário deve guardar coerência lógi­


ca com a Teoria dos Princípios de que é fruto. Esse uso adequado e coerente
das modalidades existentes garante maior eficácia das disposições do Sistema
Tributário Nacional. A ponderação ad hoc autoriza um controle mais amplo
da constitucionalidade das normas tributárias e a ponderação delineadora de­
sempenha papel de incomensurável relevância na definição do alcance dos
fatos tributáveis. Muitos dos classicamente denominados princípios constitu­
cionais tributários possuem, nessa nova perspectiva, estrutura de regras, insus­
cetíveis, então, de uma ponderação ad hoc, mas possíveis de serem submetidos
a uma categorização no plano hermenêutico.
Algumas Questões
Relacionadas à Tributação
no Estado Contemporâneo:
Arrecadação e Gasto
Eficientes, Democracia e
Segurança nas Relações

Raquel Cavalcanti Ramos Machado


Advogada em Fortaleza
Mestra em Direito pela Universidade Federal do Ceará
Professora de Direito Financeiro, Administrativo e Tributário
Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Tributário da Faculdade
Sete de Setembro —FA7

Ra q u e l C a v a lc a n ti R am o s M a c h a d o - 1 4 7

1. I n t r o d u ç ã o

O Prof. Hugo de Brito Machado há muito tem insistido, em escritos e


conferências, na importância do respeito às normas jurídicas e aos valores que
elas consagram, como condição para que a relação de tributação se legitime
como relação jurídica, e não meramente de poder, tornando-se, com isso, tam­
bém mais eficaz. Respeito que, para ele, transcende a mera arrecadação, de­
vendo haver, subjacente ao estudo do fenômeno da tributação, também uma
preocupação com as suas causas e com os seus fins, o que abrange desde uma
maior clareza e transparência na elaboração e na aplicação das normas tributá­
rias até uma melhor aplicação do produto por meio delas arrecadado. Por isso,
neste volume, por meio do qual a ele se presta uma justa e merecida homena­
gem, resolvi, atendendo ao gentil convite dos coordenadores, examinar algu­
mas questões relacionadas à tributação e ao gasto eficientes, e à segurança na
relação de tributação.
A crise econômica desencadeada em Outubro de 2008 demonstrou, mais
uma vez, que o Estado não pode se manter mínimo quanto à intervenção na
vida econômica e privada. O Estado é mesmo indispensável, enquanto indu­
tor de condutas.
É certo que essa constatação decorre da própria criação do Estado e se
fez mais evidente após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929. A ques­
tão, porém, é: quanto de Estado e de que forma deve estar ele presente na
vida da sociedade?
Os fatos atuais parecem contestar os modelos de Estado anunciados e
demandam uma análise sobre sua atual classificação, a fim de que se tenha
uma justificação teórica para o modelo concreto, com relevantes repercussões
práticas, sobretudo para o Direito Tributário: até que ponto deve subsidiar
atividades e adquirir direitos de empresas? Pode intervir sem exigir, em con­
trapartida, o atendimento de certas condutas sociais pelos agentes econômicos
privados? Como tributar de forma a estimular a economia e qual a liberdade
para o uso do dinheiro arrecadado? Como deve ser organizado e imposto o
conjunto de normas jurídicas que impõe a tributação nesse cenário em que o
tributo cresce de importância?
Trata-se de questionamentos que, apesar de variados, têm como base, em
verdade, o papel e os limites da tributação no atual modelo de Estado. Sendo
1 4 8 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R e la c io n a d a s à T r ib u t a ç ã o n o E st a d o C o n t em p o r â n e o

o tributo receita essencial ao Estado, deve, em regra, ser um reflexo da forma


como o Estado se relaciona com a sociedade e com o indivíduo.
É com o intuito de trilhar reflexões geradas por esses questionamentos
que se desenvolve o presente estudo.

2 . U t il id a d e d o t e m a

Antes de examinar os limites da tributação no atual modelo de Estado,


importa considerar a crítica que se faz à própria tentativa de enquadramento
do Estado a um modelo específico em uma dada sociedade.
Dois são os pontos principais apontados por quem discorda da tentativa
de classificação, quais sejam:
a) Na história, sobretudo na brasileira, não existe um modelo puro
de Estado, em um dado momento, podendo, por exemplo, a um
só tempo, o Estado adotar condutas condizentes com o modelo
liberal e do bem-estar social.
b) Não há utilidade prática na classificação, já que se trata de
uma mera descrição de modelo de Estado que não se realiza
de modo uniforme.
Essas duas observações, porém, não retiram a utilidade da classificação
de um modelo de Estado.
Quanto à primeira, deve-se considerar que ainda que não exista na his­
tória uma atuação pura do Estado, existe uma prevalente, e essa que deve ser
analisada pelo estudioso do Direito, na busca de compreensão dos comporta­
mentos a serem disciplinados.
Vivemos em uma sociedade intitulada pós-moderna. E esta tem como
característica principal exatamente a multiplicidade de condutas e valores
adotados a um só tempo. Mas viver em uma sociedade pós-moderna não sig­
nifica a inexistência de uma identidade do Estado. Quem é plural é a socieda­
de, com suas inúmeras facetas, mas o Estado é um só, tendo que lidar com a
multiplicidade por meio de condutas identificáveis.
É certo também que vivemos ainda em uma época de transição, em que
o papel preponderante do Estado e sua forma de se relacionar com a sociedade
inegavelmente se alteram, ainda que exista uma concomitância de papéis. Isso
não quer dizer, porém, que não haja prevalência de uma forma sobre outra,
Ra q u e l C a v a lc a n ti R am o s M a c h a d o - 1 4 9

em alteração paradigmática. Será que se pode afirmar que o Estado do come­


ço do século XX é o mesmo de agora? E que o do meio do século XX é o
mesmo de agora? Resposta positiva parece configurar artificialismo destinado
apenas a manter a afirmação dogmática de que em todas as épocas um mesmo
Estado comporta uma multiplicidade de condutas.
Realmente, como observa Eduardo Bittar,
[ojbviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou
uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o
viver transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois
tempos, entre dois universos de valores, enfim entre passado erodido e
presente multifário.
A transição paradigmática envolve, necessariamente, um processo de
resistência contínua e conjugada contra os fortes, complexos, arraigados
e enraizados valores da modernidade que se insculpiram com ares de
eternidade no horizonte da sociedade ocidental.1
Tendo em conta essa alteração no papel do Estado, é que Ulrich Beck
atesta:
Podem-se dizer coisas contraditórias sobre o Estado moderno, por um
lado, ele está definhando, mas, por outro, está mais importante do que
nunca, e as duas coisas têm suas razões. Talvez isso não seja tão
absurdo quanto parece à primeira vista. Reduzindo a uma fórmula:
definhar mais inventar igual a metamorfose do Estado. È assim que
se pode esboçar e completar a imagem de um Estado que, como uma
cobra, está perdendo a pele de suas tarefas clássicas e desenvolvendo
uma nova pela de tarefas globais.2
Importa justamente compreender quais as novas tarefas globais que es­
tão a cargo do Estado.
Ultrapassada, portanto, a análise da primeira objeção, passemos ao exame
da segunda, relativa à suposta inutilidade da classificação, já que se trataria
apenas de uma descrição da realidade, sem capacidade para alterá-la.

1 BITTAR, Eduardo. O Direito na pós-modernidade: reflexões frankfurtianas. 2a ed. Rio de Janei­


ro: Forense Universitária, 2009, p. 108.
2 BECK, U lrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In:
GIDDENS; BECK; LASH. Modernização reflexiva', política, tradição e estética na ordem social
moderna, 1997, p. 52 apud O Direito na pós-modernidade: reflexões frankfurtianas. 2a ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 137.
1 5 0 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R e la c io n a d a s à T r ib u t a ç ã o n o E st a d o C o n t em p o r â n e o

Nesse ponto, o que se deve levar em consideração é que as classificações


jurídicas não são apenas descritivas, mas também prescritivas. Para compreen­
der melhor a afirmação, basta considerar o seguinte: quando se afirma que
determinado Estado tem como modelo o Estado do bem-estar social, não se
está simplesmente a descrever uma situação fática existente e atual, mas um
conjunto de normas ao qual esse mesmo Estado se sujeita. E tais normas,
como é da própria natureza das normas jurídicas, são prescrições que impõem
inúmeras obrigações. Assim, um Estado do bem-estar social não é apenas
aquele que entrega direitos sociais, mas aquele que deve entregar tais direitos
ainda que não o faça, e se já o faz, deve assim permanecer, porque esta é uma
obrigação que o ordenamento lhe impõe.
Descobrir, portanto, o modelo de Estado atual é descobrir seus deveres
para com a sociedade.

3 . M o d e l o d e E s t a d o - e s t u d o h is t ó r ic o pa r a se
COMPREENDER A ATUALIDADE

Apenas para tornar mais sistematizado o estudo, antes de simplesmente


analisar o modelo de Estado prevalente na atualidade, importa fazer breve
análise histórica, a fim de compreender melhor sua alteração ao longo do tem­
po, acompanhando a própria alteração da organização da sociedade.
O Estado é uma realidade político-jurídica que pode ser percebida na
História desde a antiguidade, ainda com o Estado Egípcio, o Grego, o Roma­
no. Trata-se de uma organização político-jurídica mais complexa que enfeixa
poderes ou competências e deveres para com uma dada sociedade. Como ob­
serva Paulo Bonavides, porém, “o Estado na Antiguidade é a Cidade, conden­
sação de todos os poderes”3.
Após a Antiguidade, durante a Idade Média, as invasões bárbaras leva­
ram ao declínio desse poder concentrado, que se manteve, então, em parte,

3 BONAVIDES, Raulo. Teoria do Estado. São Raulo: Malheiros. 4a ed. p. 19. A palavra Estado, nesse
contexto, é usada em sentido evidentemente amplo, e não em seu sentido estrito, tal como hoje
delineado, sendo certo que este último originou-se sobretudo ao final da Idade Média. Sobre o
uso da expressão no sentido lato, confira-se: MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constitui­
ção. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 19. Para o exame de sua origem no sentido mais estrito,
a partir de elementos surgidos nos séculos XII e XIII: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constitui­
ção: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 50.
Ra q u e l C a v a lc a n ti R am o s M a c h a d o - 1 5 1

pulverizado entre os senhores feudais, sendo na outra parte detido pela Igreja
Católica. Com o passar do tempo, esse domínio foi gradativamente assumido
pelos reis, dentro dos recém-surgidos Estados nacionais. Desse modo, como o
concebemos atualmente, em sua estrutura organizacional, o Estado é fruto,
sobretudo, de movimentos havidos no século XVI4, quando surgiu a necessi­
dade de se encontrar um feixe de poderes que ofertasse segurança para o de­
senvolvimento de atividades comerciais.
Inicialmente, como o que importava era a concentração de poder para per­
mitir uma unidade nacional e segurança, a figura do governante reuniu em si todo
o feixe de competência. Assim, a princípio, configurou-se sob o regime absolutis-
ta. Depois, porém, por conta da própria lógica do poder, detido na mão de um só
governante ou grupo, a prática de abusos tornou-se mais evidente. Ao mesmo
tempo, já tendo o Estado consolidado suas fronteiras e trazido certa segurança
para o comércio, a sociedade passa a clamar por respeito a liberdades individuais.
Assim é que ao impor limites ao poder do Estado, este se transforma em Estado
Constitucionals, que, por sua vez, já passa também por considerável evolução.
Como se percebe, o que se tem alterado ao longo da História, gerando
uma classificação distinta do modelo de Estado, é exatamente o conjunto de
poderes ou competências e deveres que este possui.
Em relação ao Estado Constitucional, considerando sua interferência na
Ordem Econômica e seu papel na concretização de direitos assegurados pelo
Ordenamento Jurídico, pode-se afirmar que, na sociedade ocidental, três são os
modelos marcantes de Estado: a) o Estado Liberal; b) o Estado do Bem-estar
social e o Estado Subsidiário.
O Estado liberal, fruto da aversão ao poder absoluto, tinha por papel principal
intervir o mínimo possível na vida dos particulares, a fim de garantir a liberdade

4 Paulo Bonavides anota que "a expressão 'Estado' foi, segundo a versão mais aceita, criada por
Maquiavel, que a introduziu nas primeiras linhas de sua célebre obra intitulada O Príncipe.
Mas seu uso só ficou consagrado muito tempo depois, porquanto faltava o dado estabilizados
e legitimidade do conceito que unicamente a face jurídica lhe havia de ministrar para associá-
lo, em definitivo, à instituição nascente, ou seja, o Estado, definido já em seus elementos
constitutivos e positivado num sistema de organização permanente e duradoura/' (BONAVIDES,
Paulo. Teoria do Estado. 4a ed. São Paulo: Malheiros, p. 23)
5 "Verifica-se, portanto, que a premissa capital do Estado Moderno é a conversão do Estado
absoluto em Estado constitucional; o poder já não é de pessoas, mas de leis. São leis, e não
personalidades, que governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máximo de
valor supremo e traduz com toda energia no texto dos Códigos e das Constituições." (Teoria do
Estado. 4a ed. São Paulo: Malheiros. p. 29)
1 5 2 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R e la c io n a d a s à T r ib u t a ç ã o n o E s t a d o C o n t em p o r â n e o

individual. Preponderou por longa data até que sua hegemonia passou a ser
contestada diante da percepção de que as desigualdades naturais e sociais fazem
com que alguns homens sejam reféns de outros homens e de sua própria sorte.
A própria História faz com que algumas pessoas nasçam já em condições de
desigualdade que lhes impossibilita sequer desenvolver liberdades concretamente.
No caso do modelo capitalista de economia, que levou à criação do Estado
liberal, a desigualdade decorria, sobretudo, do acúmulo de riqueza por parte dos
que detinham os meios de produção, retirando de trabalhadores não só excessivas
horas de vida, em trabalho mal remunerado, mas a própria liberdade para escolher
negociar condições de emprego, e ainda a dignidade e o acesso a serviços de
saúde e de educação que possibilitasse o desenvolvimento de suas potencialidades.
A não intervenção do Estado6, portanto, levou a que a liberdade excessiva do
homem gerasse um cenário de dominação por parte de poucos em relação a uma
grande classe de assalariados. Com o tempo, as deficiências do modelo capitalista
e a não regulamentação do mercado pelo Estado levaram a que os próprios
agentes de mercado passassem a atuar de forma desleal, prejudicando o
desenvolvimento da economia com base em talentos reais. Assim foi que as
revoltas das classes trabalhadoras e a quebra da bolsa de Nova York, em 1929,
ensejaram um repensar do Estado liberal nas sociedades capitalistas, ao ensejar a
criação do modelo de Bem-estar social, tendo por base a doutrina econômica de
John Keynes.
O Estado do Bem-estar social se caracteriza, por sua vez, pela interferên­
cia do Estado na economia, seja para regular, de alguma forma, os agentes de

6 Ou até, quem sabe, a existência de intervenções destinadas apenas a assegurar a manutenção


da propriedade e da liberdade a quem já as possuía. Com agudeza, Eça de Queirós observa, em
A Cidade e as Serras, que "Só uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais
que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só
nela existem! Deste terraço, junto a esta rica basílica consagrada ao coração que amou o pobre
e por ele sangrou, bem avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva sob esse antigo
opróbrio de que nem religiões, nem filosofias, nem morais, nem a sua própria força brutal a
poderão jamais libertar! A í jaz, espalhada pela cidade, como esterco vil que fecunda a cidade.
Os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles,
através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e este
pranto dos pobres, meu príncipe, se edifica a abundância da cidade! Ei-la agora coberta de
moradas em que eles se não abrigam; armazenada de estofos, com que eles se não agasalham;
abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a neve, quando a neve cai,
e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das
pontes de Paris... A neve cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam nos seus trapos; e
a polícia, em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que
amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três mil francos."
QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Nova cultural, 2002, p. 73.
Ra q u e l C a v a lc a n ti R a m o s M a c h a d o - 1 5 3

mercado, seja para prestar diretamente à sociedade serviços considerados es­


senciais. Com essa atuação, possibilitaria o desenvolvimento de uma liberdade
de vida real, e, portanto, a igualdade. Seu problema, porém, reside na geração
de muitas despesas ao Estado, e, em muitos casos, ao colapso da própria má­
quina administrativa, que passa a se tomar um aparelho ineficiente, com a
prestação de serviços de má qualidade e a geração excessiva de burocracia
vazia, apesar do custo excessivo gerado para mantê-la.
Na busca de um reequilíbrio entre o campo de liberdade dos indivíduos e a
interferência estatal na vida privada, surge o modelo de Estado subsidiário, que
seria o então vigente e teria por característica o fato de que o conjunto de atribuições
de que está incumbindo convive com o espaço de liberdade e responsabilidade da
sociedade, que deve em alguns campos da vida, atuar de forma autônoma. Como
observa Thomas Fleiner Gester, no Estado subsidiário, conduz-se “a uma
interdependência entre o Estado e sociedade, na qual cada comunidade deve
cumprir parte das tarefas”7. Frederik Reinfeldt, primeiro-ministro da Suécia em
2006, por sua vez, pretendendo implementar políticas mais liberais de redução de
impostos e livre comércio, mesmo depois da crise econômica de 2008, afirmou:
“Na Europa fazem uma ideia falsa sobre o modelo sueco. Ele não se baseia na
onipresença do Estado, mas sim em uma sólida responsabilidade individual”8.
Ricardo Lobo Torres, por sua vez, assim teoriza, de forma bastante clara,
o Estado subsidiário:
O Estado subsidiário é o Estado da Sociedade de Risco, assim como o
Estado do Bem-estar Social foi o Estado da Sociedade Industrial, que
entrou em crise pela voracidade na extração de recursos financeiros da
sociedade para financiar as políticas desenvolvimentistas e o pleno em­
prego. Não se cuida de um Estado pós-moderno, que passe a se condu­
zir pelos mecanismos da desregulamentação ou da autoregulação, mas
de um Estado pós-positivista, ainda no âmbito da modernidade, que
procura pautar as suas ações com base no princípio da transparência,
para superar os riscos sociais.9

7 FLEINER-GERSTER. Thomas. Teoria Cera! do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São


Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 648
8 Novo presidente da União Européia é um liberal na terra dos social-democratas. Le Monde de
06 de Julho de 2009. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2009/
07/06/ult580u3798.jhtm>. Acessado em 17 de Julho de 2009.
9 Liberdade, consentimento e princípios de legitimação do Direito Tributário. In: Revista Interna­
cional de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey. Vol 5. jan/jun. 2006. p. 227.
1 5 4 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R e la c io n a d a s â T r ib u t a ç â o n o E s t a d o C o n t em p o r â n e o

Não se confunde com o Estado liberal, porque à época deste não havia
organizações sociais e instituições estatais para o controle da atuação do
mercado. Além disso, a ideia é desenvolver, na sociedade, a consciência de
que ela tem um papel a desempenhar. Os agentes da sociedade devem com­
portar-se como seres mais evoluídos, conscientes de que, a par de um con­
junto de direitos, têm responsabilidades, decorrentes do laço de solidariedade.
Por outro lado, o Estado também tem o dever de solidariedade, e, mesmo
interferindo menos na sociedade, sua política não deve ser desregrada, mas
realizada com o propósito de atender aos anseios mais caros da sociedade.
Como observa Thomas Fleiner-Gester:
Responsabilidade e solidariedade significam, além disso, que as auto­
ridades públicas devem exercer suas atribuições de uma forma plena­
mente responsável e solidária. Nesse contexto, os funcionários públi­
cos não podem abusar do seu poder, nem passar a sua preocupação de
fazer carreira à frente das suas responsabilidades em relação aos inte­
resses dos cidadãos. (...) Se os funcionários públicos não estão dispos­
tos a aprender, se não desejam se informar e informar a população, a
relação de parceria, indispensável entre o Estado e sociedade, não
poderájamais se concretizar.10
O Estado subsidiário, portanto, seria parcialmente liberal, com uma teóri­
ca carga ética mais elevada, na medida em que não aceita qualquer conduta dos
particulares, mas espera deles uma colaboração na consecução dos fins almeja­
dos pela sociedade.
No Brasil, afirma-se que o Estado social é o modelo, de certa forma,
previsto na Constituição.
Em verdade, porém, no Brasil, nunca preponderou uma forma definida de
Estado. Antes de se passar para um modelo mais definido, por insuficiências
administrativas e de desenvolvimento, ou mesmo por falha no diálogo com a
sociedade, o Brasil não chegou a concretizar todas as características do modelo
anterior. Realmente, ao contrário do que ocorreu em países como Suécia, Noruega,
Dinamarca, a assistência prestada pelo Estado por meio de serviços públicos
essenciais não teve a qualidade e a eficiência suficiente para afastar a grande
desigualdade social, existindo muitas pessoas em faixa de pobreza tal que as

10 FLEINER-GERSTER. Thomas. Teoria Geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São


Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 645.
Ra q u e l C a v a lc a n ti R a m o s M a c h a d o - 1 5 5

impossibilita de exercer sua liberdade com dignidade. Por outro lado, não se
pode afirmar que no Brasil não haja a realização de prestações sociais por parte
do Estado. O sistema público de saúde e educação, apesar de não ser eficiente,
existe. Mais precisamente no caso da saúde, inclusive, por intermédio de demandas
judiciais, o Estado tem entregado serviços variados e com maior qualidade. E foi
nesse cenário de Estado do Bem-Estar não implementado que o Brasil iniciou
seu processo de entrada no modelo subsidiário, por meio de alterações
constitucionais que trouxeram a reforma da Administração (Emenda
Constitucional n° 19 e 32), a reforma da Previdência (Emendas Constitucionais
n° 20, 41 e 47).
Como observa Ricardo Lobo Torres11:
O Estado Democrático de Direito vai se afirmando, cada vez mais,
como Estado Subsidiário. No Brasil, essa característica fica muito dara a
partir das reformas constitucionais da década de 90. O Estado
Subsidiário reflete um novo relacionamento entre Estado e Sociedade,
no qual a Sociedade tem a primazia na solução de seus problemas, só
devendo recorrer ao Estado de forma subsidiária.12
Essa era mesmo uma tendência mundial, até que, em 2008, sobreveio
uma nova crise econômica global, que teve como carro-chefe o abalo do crédi­
to, com a negociação de subprimes, empréstimos de alto risco a pessoas que não
ofereciam tanta garantia de adimplemento aos bancos. A constante elevação
da taxa de juros e a recessão no mercado como um todo levaram ao não paga­
mento de inúmeros empréstimos dessa natureza. É certo que a crise é com­
plexa, mas sobretudo dois são os fatores que a ocasionaram: a) a falta de um
disciplinamento mais severo quanto à negociação do crédito por instituições
financeiras; b) uma política fiscal irresponsável por parte do governo america­
no, em período de elevados custos com guerras desencadeadas a partir de 11
. de setembro13.

11 Usando ainda outra terminologia, Ricardo Lobo Torres refere-se a Estado de Segurança, "que
supera o Estado Liberal e o Estado Social, pelo novo ajuste entre poderes do Estado, pela nova
relação entre saber e dinheiro e pelos princípios do discurso e da democracia." (O direito ao
mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 59)
12 TORRES, Ricardo Lobo. Liberdade, consentimento e princípios de legitimação do Direito
Tributário. In: Revista Internacional de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, Vol 5. jan/
jun. 2006, p. 227.
13 Como observa Paul Krugman, Nobel de Economia, ao analisar a relação entre os cortes de
impostos e a guerra, no período pré-crise, "uma análise lúcida da situação concluiria que Bush
1 5 6 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R e la c io n a d a s à T r ib u t a ç â o n o E s t a d o C o n te m p o r â n e o

Depois dessa crise, o que se viu em vários países foi a interferência do


Governo na economia, com a injeção de dinheiro e concessão de benefícios
fiscais, na tentativa de restabelecer o crédito. O cenário, apesar de semelhante
ao pós-quebra da bolsa de 1929, é diferente, pois o perfil do Estado e da
sociedade agora são outros.
Importa, a essa altura, observar, de toda forma, que a nova intervenção não
tem, diretamente, natureza social, mas econômica. Assim, não se está a vivenciar
um retorno pleno do Estado do Bem-estar social e uma desconsideração pelos
deveres e competências do Estado subsidiário. Tanto é assim que parte das
discussões travadas quanto ao alcance da interferência estatal partia do
reconhecimento de que os agentes de mercado devem suportar as conseqüências
de uma má-gestão. A interferência deveria ocorrer apenas para a preservação
global do equilíbrio econômico.
O Estado, portanto, mantém-se subsidiário. Apenas diante de deter­
minada conjuntura teve, exatamente, de interferir mais na vida em socieda­
de. Essa afirmação decorre da constatação de que, mesmo diante da crise,
expressivos grupos sociais, como associações de consumidores, de pessoas
preocupadas com o meio ambiente, continuarão a agir no seio social de for­
ma independente, para tentar proteger os valores que lhes são caros. A inter­
venção por conta da crise econômica não alterou a relação do Estado por
completo com os demais agentes sociais, alem dos econômicos.
Seja como for, a questão crucial está em saber até que ponto o Estado
pode ofertar essa ajuda econômica a determinados setores econômicos sem
fazer condicionamentos à implementação de direitos sociais, ou até mesmo
em prejuízo destes. Por exemplo, pode o Estado fomentar, por meio de incen­
tivos fiscais, alguns setores da economia, sem exigir, em contrapartida, a ma­
nutenção de empregos? Pode o Estado deixar de prestar, diretamente, direitos
sociais para ofertar auxílio a esses mesmos seguimentos? Pode tributar para

estava comprometido com essa postura e que seus objetivos era bastante radicais - como
acabou se tornando evidente. Como Dan Altman assinalou em The N ew York Times, se
considerarmos como um todo as propostas de redução de impostos apresentadas pelo gover­
no, elas satisfazem plenamente a antiga meta da direita radical: o fim de todos os impostos
sobre o rendimento do capital, abrindo caminho para um sistema em que somente o rendimen­
to proveniente do trabalho é taxado, aquele que não é resultado de trabalho fica isento."
(KRUGMAN, Paul. A desintegração americana: EUA perdem o rumo no século XXI. São Paulo:
Record, 2006. p. 45)
Ra q u e l C a v a l c a n t i R a m o s M a c h a d o - 1 5 7

aumentar a arrecadação a fim de repor os elevados custos com a ajuda presta­


da, sem se ater a princípios de justiça fiscal?
Afinal, o surgimento do Estado subsidiário não decorre da superação
dos valores consagrados pelo Estado do bem-estar social, mas da ideia de que
talvez seja mais interessante para a própria sociedade ter certa margem de
liberdade, para promover por si certos valores. Assim, o Estado subsidiário,
além de ser caracterizado por esse campo em que a sociedade deve atuar, quando,
por uma ventura qualquer, tenha que intervir, deve fazê-lo comprometido
com os direitos sociais. A questão, portanto, do Estado, sobretudo se consi­
derado quanto à sua legitimidade e legitimação, é e sempre será a melhor
forma de operacionalizar os direitos caros a uma dada sociedade, em um tem­
po da História. Direitos sociais, marcadamente os relacionados à manutenção
de empregos e a uma política tributária justa são, com evidência, valores caros
no presente momento da sociedade.

4 . R e p e r c u s s õ e s p r á t ic a s n o D ir e it o T r ib u t á r io

Seria inocência ignorar a importância do Direito Tributário no atual mo­


mento, em que o papel do Estado perante a sociedade capitalista se redefine. Não
se trata apenas de prestar auxílio a algumas empresas, diretamente através de com­
pra de ações ou outros tipos de subvenções. A tributação adequada é essencial para
a manutenção de um mercado econômico equilibrado, seja para manter a susten-
tabilidade da realização de atividades econômicas, seja para não sobrecarregar so­
bremaneira contribuintes pessoas físicas14, com tributação regressiva, seja ainda
para garantir a clareza do diálogo democrático e assim possibilitar o planejamento
de atividades. Até porque é este mesmo mercado que sustenta a própria atuação
estatal, com a entrega das chamadas receitas derivadas.
Nas palavras de Hugo de Brito Machado, não é próprio do Estado o
exercício de atividade econômica, “que é reservada ao setor privado, de onde o
Estado obtém os recursos financeiros de que necessita.” Entretanto, prosse-

14 Vale recordar que, como observa Dworkin, " taxes are the principal mechanism through wich
government plays this distributive role. It collects money in taxes at progressive rates so that the
rich pay a higher percentage o f their income or wealth than the poor, and it uses the money it
collects to íinance a variety o f programs that provide unemployment and retirement benefits,
heath care, aid to children in poverty, food supplements, subsidized housing, and other benefits."
Is democracy possible here? (principies for a new political debate). Princeton University Press:
Princeton, 2006. p. 92.
158 - A lg u m a s Q u e stõ e s R e la c io n a d a s à T rib u ta ç ã o n o E sta d o C o n te m p o rân e o

^ue, c importante “que a carga tributária se não torne pesada ao ponto de


desestimular a iniciativa privada”15.
No mesmo sentido, Luis Eduardo Schoueri observa, ao tratar do duplo
dividendo do tributo, que
...se o tributo depende da prosperidade econômica, então se chegará
ao chamado ‘duplo dividendo’ da tributação: esta não apenas produ­
zirá efeito arrecadatório (primeiro ‘dividendo’ do tributo), como poderá
servir de alavanca para a prosperidade econômica (segundo ‘dividen­
do’ da tributação).16
Logo após, complementa:
O “bom tributo” não é mais aquele que melhor arrecada, se o
enxugamento de recursos da sociedade pode impedi-la de exercer seu
papel na construção da liberdade coletiva.17
Da mesma forma, seria inocência pretender que o Direito Tributário não
evolua, mantendo-se a tradicional visão de que se compõe de um conjunto de
normas limitadoras do poder de tributar do Estado, em cujo topo estão os
princípios da legalidade, anterioridade, capacidade contributiva, isonomia, não
confisco, etc., sem se atentar para a utilidade prática de tais princípios ante o
novo quadro social. Os princípios são os mesmos, mas seu significado é ampliado,
para, agora, ter-se maior utilidade direta da tributação e ainda clareza mais
efetiva no diálogo entre Estado-sociedade-contribuinte.
Não é realmente possível manter uma linha de interpretação jurídica
que não se ajusta à forma como a Ciência, de um modo geral, e a Ciência
Jurídica, de forma mais específica, analisam seu objeto de estudo18.
Assim, na nova sociedade, a adequação da finalidade da tributação tanto
ao correto gasto público, como à boa indução econômica19, e ainda a clareza

15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 25a ed. São Raulo: Malheiros, 2004, p. 46.
16 SCH O UERI, Luís Eduardo. Tributação e Indução econômica: os efeitos econômicos de um
tributo como critério de sua constitucionalidade. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho.
Princípios e Limites da Tributação 2. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 145.
17 Op. cit., p. 148.
18 A propósito dessa relação epistemológica, Jane Reis pondera: "Como então manter a teoria do direito
acorrentada a um estatuo epistemológico que já não se sustenta mesmo em relação às disciplinas
para as quais foi forjado? A dogmática jurídica, que historicamente sempre buscou importar das
ciências naturais seus modelos metodológicos, também sofre o influxo da crise de paradigmas"
(,interpretação ConstitucionaJ e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar. 2006, p. 30).
19 "Cabe ao Estado, portanto, assumir um papel de agente de normalização das relações econô­
micas, promovendo, dentre outras coisas: 1) o controle da carga tributária; b) o controle dos
Ra q u e l C a v a l c a n t i R a m o s M a c h a d o - 1 5 9

no diálogo são novos critérios para se avaliar a justiça tributária20. O exame de


alguns exemplos facilitará a compreensão desse ponto.
No auge da crise econômica, o Governo tanto ofertou auxílio direto a
algumas empresas, como reduziu a alíquota de alguns tributos, sobretudo
dos chamados impostos flexíveis, para tentar baratear custos e garantir
alguma lucratividade a setores importantes da economia. Evidentemente,
o fim maior dessa ajuda era manter o equilíbrio econômico, ante a espe­
rança de prosperidade.
O que ocorreu, porém, em relação a algumas dessas empresas? Apesar do
auxílio recebido do Governo, mantiveram cortes significativos de mão de obra.
Ou seja, o motivo que teria justificado o incentivo tributário estava sendo
esquecido. E as reduções estavam a se transformar em um fim em si mesmo,
como se os agentes econômicos não fossem, eles também, meios de realizar a
justiça econômica e social do pleno emprego. A prosperidade econômica não
deve privilegiar um grupo específico, mas atingir o máximo de pessoas possí­
vel. Para evitar a frustração de condutas extrafiscais dessa natureza, o Governo
deveria condicionar a concessão de algumas reduções e isenções à manutenção
de empregos. Nesse caso, não se trata da aplicação de uma teoria do bem-estar
social, mas subsidiário contemporâneo, pois o Estado não presta diretamente
direitos sociais, mas intervém na economia, reduzindo a carga tributária, pos­
sibilitando o desenvolvimento econômico, mas com preocupações sociais.
Outro exemplo que demonstra a possibilidade de uso da tributação para
intervir na economia e realizar princípios sociais, ao mesmo tempo em que
simplifica o diálogo, legitimando a tributação, é o correto uso da progressivi­
dade de tributos e a vedação da regressividade.

gastos públicos, priorizando investimentos em educação e tecnologia, para que as pessoas se


habilitem ao novo mercado de trabalho; 3) incentive, como de fato vem fazendo, a moderni­
zação das empresas através de estímulos fiscais; 4) a mudança de dispositivos do ordenamento
jurídico, como a recente Lei de Recuperação de Empresas que alterou o impacto das dificulda­
des financeiras das empresas sobre o processo econômico, renovando a possibilidade de
recuperação, através de um programa mais eficiente para a ordem econômica." (ELALI, André.
Um exame da desigualdade da tributação em face dos princípios da Ordem Econômica. In:
FERRAZ, Roberto Catalano Botelho. Princípios e Limites da Tributação 2. São Paulo: Quartier
Latin, 2009, p. 244)
20 Como observa Ricardo Lobo Torres, "boa parte dos problemas das finanças públicas atuais, no
Brasil e no estrangeiro, veio do corte observado entre poder de tributar e poder de gastar ou
entre direito tributário e direito financeiro, que conduziu à irresponsabilidade fiscal e à própria
crise fiscal que desestruturou o Estado do Bem-estar Social." (Tratado de direito constitucional,
financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. 1, p. 4)
1 6 0 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R ela c io n a d a s à T r ib u t a ç ã o n o E s t a d o C o n t em p o r â n e o

Sabe-se que uma tributação progressiva é aquela na qual há aumento da


alíquota na proporção em que aumenta a base de cálculo. A questão, porém,
não está apenas na existência de tributos progressivos (v.g., IPTU, IR, ITR),
mas em fazer com que essa progressividade seja acentuada, e não tênue. E
mais: em evitar que seus efeitos sejam neutralizados por uma pesada tributa­
ção sobre o consumo, a qual, como se sabe, é regressiva.
Essa regressividade da tributação incidente sobre o consumo decorre do
fato de que quanto menor o rendimento do cidadão, maior é a parcela dele
comprometida com o consumo e, portanto, maior é a parcela atingida pela
tributação incidente sobre os bens consumidos. Dessa forma, proporcional­
mente, os impostos indiretos, que oneram o consumo, pesam muito mais so­
bre pobres do que sobre ricos. Aliomar Baleeiro, a esse respeito, observa que
impostos proporcionais, quando incidem sobre o consumo em geral -
gêneros de primeira necessidade e coisas que não são de luxo operam
regressivamente, porque a maior parte da população, em todos os paí­
ses, é composta de proletários e classes submédias, que aplicam a quase
totalidade de seus rendimentos na aquisição do estritamente indispen­
sável. Uma tributação sobre alimentos, roupas de uso comum, aluguéis
de casa, objetos de uso doméstico, remédios, artigos de higiene e coisas
imprescindíveis àvida tem como efeito retirar das classes menos remu­
neradas fração maior do que a exigida das classes abastadas, que
despendem naqueles bens apenas uma parte reduzida de seus
proventos. Christian L. E. Engel, há cerca de um século, já provara
estatisticamente que quanto menor for a renda de uma família tanto
maior será a proporção gasta com alimentos.21
Evidentemente, não se pode dizer, por isso, que a tributação sobre o
consumo seja inconstitucional. Aliás, a própria Constituição a determina, ao
tratar da competência da União para instituir o imposto sobre produtos in­
dustrializados e as contribuições conhecidas como PIS e COFINS, e dos
Estados-membros para instituir o imposto sobre operações relativas à circula­
ção de mercadorias e sobre serviços de transporte interestadual e intermunici-
pal e de comunicação (ICMS). Mas pode-se dizer que a tributação sobre o
consumo não deve ocorrer por alíquotas elevadas, como atualmente acontece,

21 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16a ed. atual, por Dejalma de
Campos. Rio de janeiro: Forense, 2008, p. 269.
R a q u e l C a v a lc a n t i R am o s M a c h a d o - 161

devendo haver tributação mais intensa sobre o patrimônio e a renda, por meio
de tributos com alíquotas progressivas.
Além disso, a tributação indireta deve ser transparente, sendo imperioso
abolir o discurso contraditório em tomo dela utilizado pelo Poder Público no
País, o que aliás viola não apenas a transparência mas o princípio do legislador
coerente. Exemplificando, o tributo indireto, quando ao poder público interes­
sa (v.g., quando há inadimplência do consumidor final), é considerado como
uma dívida do vendedor, pouco importando se há ou não transferência do en­
cargo ao consumidor final. Mas, quando se trata da restituição do indébito, o
discurso é modificado para dizer-se que o pagamento é “na verdade” feito pelo
consumidor final, servindo isso de justificativa para a denegação da restituição
ao vendedor que eventualmente efetuou um recolhimento indevido.
Transparência também pode ser obtida com a regulamentação do disposto
no art. ISO, § 5o, da CF/88, segundo o qual “[a] lei determinará medidas para
que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre
mercadorias e serviços”. Com essa regulamentação, poderia ser afastada certa
anestesia que há em torno da tributação indireta, que, não obstante excessiva,
não é objeto de contestação mais intensa nem por empresários, que acreditam
sempre repassá-la aos consumidores, e nem por estes, consumidores, que não
têm ideia do que está embutido no preço dos produtos que adquirem.
Como registra Hugo de Brito Machado,
[ajspecto de grande relevância no que diz respeito aos direitos funda­
mentais do contribuinte, em especial aos direitos inerentes àjustiça, é o
da transparência na relação tributária, hoje praticamente inexistente.
Realmente, hoje a maioria das pessoas não sabe que suporta o ônus dos
denominados impostos indiretos, que incidem sobre o consumo.22
Essa transparência é indispensável não só para que se possa aferir a vali­
dade ou a invalidade de normas atualmente em vigor, mas especialmente para
que possa haver um debate sincero entre o poder público e a sociedade em
torno da elaboração de leis tributárias, ou seja, no plano do traçado das políti­
cas públicas. O acompanhamento da votação de normas, cuja adequação o
povo se sente apto a avaliar, gera inibição nos representantes políticos, como é

22 M ACHADO, Hugo de Brito. Direitos fundamentais do contribuinte e a efetividade da jurisdição.


São Paulo: Atlas, 2009, p. 93.
1 6 2 - A l g u m a s Q u e st õ e s R e la c io n a d a s A T r ib u t a ç ã o n o E s t a d o C o n t em p o r â n e o

prova o caso da não aprovação da CPMF. Além disso, a mera conscientização


sobre a utilidade de uma dada forma específica de tributação oferta aos cida­
dãos conhecimento para exercer melhor a liberdade.
Quanto ao gasto do produto arrecadado, durantes anos da história da
Teoria do Estado, do Direito Administrativo, Tributário e Financeiro, foi
consagrada a ideia de que somente os Poderes Executivos e Legislativo pode­
riam controlar política orçamentária, como se se tratasse realmente de assunto
meramente político e livre de controle, não sujeito à realização políticas pú­
blicas já traçadas na Constituição e à observância de gradação de valores caros
para a sociedade e possível de ser delineada por normas jurídicas.
A questão é relevante para o Direito Tributário em sua interseção
com a Teoria do Estado na contemporaneidade, na medida em que, é pro­
vável que uma maior racionalidade no uso do dinheiro público leve a uma
carga tributária ao mesmo tempo menos severa e mais justa. Menos severa,
porque se sabe que grande problema enfrentado pela máquina adminis­
trativa no Brasil não se relaciona à falta do dinheiro para realizar os fins do
Estado, mas, sobretudo, ao mau uso do dinheiro, à ineficiência e descami­
nhos23. Garantir que os recursos sejam redirecionados para fins adequados
certamente pode trazer uma redução da carga, ou, no mínimo, um aumen­
to de legitimidade, portanto. E leva a uma carga mais justa porque não se
pode ignorar que o peso do tributo será tanto menor, quanto maior for a
utilidade do montante arrecadado em prol de serviços públicos efetiva­
mente prestados.
Por fim, na sociedade contemporânea, como já se afirmou ao longo do
texto, importa que o diálogo seja o mais claro possível. Assim, a legislação
tributária deve ser simplificada, tanto para permitir uma aplicação mais fácil,
como para possibilitar sua maior compreensão e aceitação.
Só entendendo o que efetivamente paga e como deve pagar é que o con­
tribuinte poderá compreender a dimensão do preço da cidadania. Assim, nes­

23 Como observa Hugo de Brito Machado, o problema da carga tributária brasileira não é apenas
o seu percentual elevado, mas o fato de que "o Estado é perdulário. Gasta muito, e ao fazê-lo
privilegia uns poucos, em detrimento da maioria, pois não investe nos serviços públicos
essenciais dos quais esta carece, tais como educação, segurança e saúde". M ACHADO, Hugo
de Brito. Curso de Direito Tributário. 25a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 46. Ainda sobre
gastos públicos desnecessários e injustificados, confira-se, do mesmo autor: M ACH AD O ,
Hugo de Brito. Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização, interesse público.
Curitiba: Notadez, ano VIII, n° 38, p. 177-186, 2006, p. 179.
Ra q u e l C a v a l c a n t i R a m o s M a c h a d o - 1 6 3

se ponto, importa, que a Administração Tributária cumpra a norma do art. do


CTN. Em sua ausência, em caso de dúvida, não poderá o contribuinte ser
punido pelo pagamento inadequado de um tributo.
Além disso, norma incongruente, seja por falta de clareza, seja por tra­
to irrazoável a contribuintes em idêntica situação, pode ser considerada in­
constitucional.
Examinando a legislação tributária que implementou a não cumulativi-
dade do PIS e da COFINS, e trouxe inúmeras incongruências ao sistema
tributário, Luis Eduardo Schoueri conclui:
... merece a pecha de inconstitucional legislação que - a exemplo da­
quela afeita às contribuições ao PIS/COFINS - gere tamanha insegu­
rança quanto aos parâmetros de sua aplicação, carecendo de qualquer
lógica que implique o mínimo de racionalidade, oferecendo brechas
para interpretações díspares em situações análogas.24
Aceitar que a legislação tributária permaneça como está, com defeitos
como os apontados por Schoueri, é jogar no vazio a ideia de um efetivo Estado
democrático. Ou, por outras palavras, implica contribuir para a construção de
uma Constituição simbólica, por meio da qual se consagram princípios, metas
ou valores que apenas servem de álibi destinados a conformar aqueles que, de
outra forma, se insurgiriam contra as estruturas que exercem o poder, mas
que, por ações concretas, não só não efetivam essas metas, mas caminham no
sentido oposto a isso25.

5 . C o n clu sã o

No Estado contemporâneo, diante das novas demandas sociais, sobretu­


do quanto à sua forma de organização e controle, a tributação exerce papel
ainda mais relevante do que em outras épocas.
Mesmo mantendo o modelo de Estado subsidiário, em que a sociedade
tem espaço para realizar por si parte dos interesses que considera relevantes,
não se pode evitar a intervenção estatal na economia, através da tributação.

24 SCH O UERI, Luís Eduardo. Tributação e Indução econômica: os efeitos econômicos de um


tributo como critério de sua constitucionalidade. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho.
Princípios e Limites da Tributação 2. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 162-163.
25 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, passim.
1 6 4 - A l g u m a s Q u e s t õ e s R ela c io n a d a s à T r ib u t a ç ã o n o E st a d o C o n t em p o r â n e o

Considerando, porém, o duplo dividendo do tributo, essa intervenção


deve considerar a possibilidade de, apesar da tributação, garantir o desenvolvi­
mento do indivíduo em uma economia de mercado.
Além disso, se por um lado, a tributação cresce de importância, por ou­
tro, também cresce a possibilidade de controle da finalidade pela qual a tribu­
tação foi realizada, assim como a possibilidade de controle dos gastos com o
valor arrecadado.
Da mesma forma, a cidadania se redimensiona pela conscientização do
valor que por ela se paga, e assim, aumenta a necessidade de clareza no diálogo
entre Estado e sociedade.

B i b l io g r a f ia

BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16a ed. atual, por Dejalma de
Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição', para uma crítica do constitucionalismo. São
Paulo: Quartier Latin, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4a ed. São Paulo: Malheiros.
DWORKIN, Ronald. Is democracypossible here? (principies for a new political debate). Princeton
University Press: Princeton, 2006.
ELALI, André. Um exame da desigualdade da tributação em face dos princípios da Ordem
Econômica. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho. Princípios e Limites da Tributação 2.
São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 225-249.
FLEINER-GERSTER.Thomas. Teoria Geral do Estado. Tradução deMarlene Holzhausen. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
KRUGMAN, Paul. A desintegração americana'. EUA perdem o rumo no século XXI. São Paulo:
Record, 2006.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 25a ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
______ . Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização. In: Interessepúblico. Curi­
tiba: Notadez, ano VIII, n° 38, p. 177-186,2006.
______ . Direitosfundamentais do contribuinte e a efetividade dajurisdição. São Paulo: Atlas, 2009.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Tributação e Indução econômica: os efeitos econômicos de um
tributo como critério de sua constitucionalidade. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho.
Princípios e Limites da Tributação 2. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 162-163.
TORRES, Ricardo Lobo. Liberdade, consentimento e princípios de legitimação do Direito
Tributário. In: Revista Internacional de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey. Vòl 5. jan/
jun. 2006. p. 223-244.
______ . O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
Evolução Histórica da
Teoria Hermenêutica: Do
Formalismo do Século
XVIII ao Pós-Positivismo

Sergio André Rocha


Mestre e Doutor em Direito pela UGF
Professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da FGV-RJ.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 6 7

Foi para mim uma grande honra receber o convite para participar desta
obra em homenagem ao Professor Hugo de Brito Machado, sem nenhum
exagero, uma das instituições do nosso Direito Tributário.
O Curso de Direito Tributário do Professor Hugo de Brito vem sendo a
porta de entrada dos estudantes de Direito para o Direito Tributário há déca­
das. Sua bibliografia extensa inclui, entre outros títulos, os indispensáveis Co­
mentários ao Código Tributário Nacional, além dos clássicos Mandado de
Segurança em Direito Tributário e Os Princípios Jurídicos da Tributação na
Constituição de 1988.
A abrangência da obra do Professor é verificada em trabalhos como o
livro Uma Introdução ao Estudo do Direito, que justifica homenageá-lo com
o presente estudo sobre hermenêutica, o qual tem importantes interseções
com o Direito Tributário contemporâneo.
Todos que já assistiram às aulas, palestras e exposições do Professor Hugo
de Brito Machado, sem dúvida alguma sentiram a força do entusiasmo com que
defende suas ideias e que combate medidas que possam enfraquecer os direitos
conquistados pelos contribuintes após anos de evolução do Direito Tributário.
Saudamos o ilustre professor e o agradecemos, com esta humilde contri­
buição, por tudo que fez pelo Direito Tributário brasileiro.

In tr o d u çã o

O propósito deste estudo é a apresentação de considerações acerca de


aspectos relevantes das principais escolas hermenêuticas que se sucederam ao
longo dos dois últimos séculos, com vistas a formar uma compreensão de
como se apresenta a questão da interpretação jurídica hodiernamente.
1 . O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA, NA INGLATERRA
e na F rança

1 . 1 . A JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS E O FORMALISMO JURÍDICO


a lem ã o d o S é c u l o X IX

1. 1. 1. A ESCOLA HISTÓRICA D O DIREITO

O formalismo jurídico na Alemanha e a reação ao direito natural forja­


ram-se ao longo do século XIX, em princípio com o desenvolvimento da
1 6 8 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

escola histórica do direito e posteriormente com o surgimento da jurispru­


dência dos conceitos.
O historicismo, que teve início com Gustav Hugo (1764 - 1844) e
encontrou seu mais célebre expoente na figura de Friedrich Karl von Savigny
(1779 - 1861), legou à jurisprudência dos conceitos a ideia de sistema, extre­
mamente relevante para o seu desenvolvimento1. Ademais, a escola histórica
colocava-se em ponto de colisão com as ideias jus naturalistas, na medida em
que, como destaca Norberto Bobbio, “ao direito natural a escola histórica con­
trapõe o direito consuetudinário, considerado como a forma genuína do direi­
to, enquanto expressão imediata da realidade histórico social e do Volksgeist”2.
Todavia, o historicismo rejeitava a possibilidade de que as leis pudessem ser
criadas ex nihilo pelo legislador, sendo estas, na verdade, um fenômeno histórico3.
Tal característica encontra-se relacionada com a própria fragmentação que
a Alemanha ostentou até a segunda metade do Século XIX. Não havendo ainda
um Estado alemão, não havia a crença na prevalência de um direito posto4.
Nesse contexto se encaixa a separação feita por Savigny entre as regras de
direito e os institutos jurídicos, a qual de certa forma aproxima seu historicismo
da jurisprudência dos conceitos, na medida em que se sustenta que os institutos
jurídicos, forjados pelo espírito do povos, é que devem servir de baliza para a

1 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3a ed. Tradução de José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 19; G U ER R A FILH O , W illis Santiago. Teoria da
Ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 31.
2 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio
Pugliesi; Edson Bini; Carlos E. Rodrigues. São Paulo: ícone, 1995. p. 53. Ver, ainda: RADBRUCH,
Gustav. Filosofia do Direito. 6a ed. Tradução de L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio
Amado, 1997. p. 64 e 65; KAUFMANN, Arthur. Filosofia dei Derecho. Tradução de Luis Villar
Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 70; ADEODATO, João Maurí­
cio. Positividade e Conceito de Direito, in: Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática
Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 20 e 21; ROBLES, Gregorio. Introducción a Ia teoria dei
derecho. 6a ed. Barcelona: Debate, 2003. p. 137; CO ELH O , L. Fernando. Lógica jurídica e
Interpretação das Leis. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 233-234.
3 Cf. ATIENZA, Manuel. El Sentido dei Derecho. 2a ed. Barcelona: Ariel, 2003. p. 232; FERRAZ
JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 76.
4 Cf. HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica Européia: Síntese de um M ilênio. Mem
Martins: Europa-America, 2003. p. 270.
5 Cf. SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema dei Derecho Romano Actual. 2a ed. Tradução de
Jacinto Mesía; Manuel Poley. Madrid: Editorial de Góngora, [s/d], t. I. p. 66 e 67. Ver também:
RECASENS SICHES, Luis. Tratado General de Filosofia dei Derecho. 14a ed. México: Editorial
Porrúa, 1999. p. 441; OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de. Introdução à Ciência do Direito. 3a ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 163; DEL V ECCH IO , Giorgio. Filosofia dei Derecho. 9a ed.
Barcelona: Bosch, 1997. p. 120 e 121.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 6 9

compreensão das regras de direito, de forma que “o legislador cria a regra isolada
a partir da idéia que ele formou do instituto jurídico como um todo”6.
É evidente que esses traços de aproximação não significam que o histo-
ricismo se confunda com a jurisprudência dos conceitos. De fato, consideran­
do a gênese consuetudinária dos institutos jurídicos de Savigny, jamais se
poderia ver os mesmos como conceitos. Como bem ponderam Jean-Cassien
Biller e Aglaé Maryioli, “o enfoque histórico redundou em um trabalho de
genealogia de conceitos que não é mais histórica, é lógica”7.
Outro importante legado de Savigny foi sua teoria da interpretação.
Com efeito, destacava o mestre alemão a indispensabilidade da interpre­
tação como forma de interação entre o intérprete e o texto, ressaltando que a
interpretação “é indispensável para toda aplicação da lei à vida real”, de forma
que esta “não está restrita, como crêem alguns, ao caso acidental de obscurida­
de da lei”8.
Para Savigny, a interpretação seria “a reconstrução do pensamento conti­
do na lei”, podendo a mesma ser decomposta em partes constitutivas, as quais
corresponderiam aos seus quatro elementos (note-se que Savigny fala em
elementos e não em métodos): gramatical, lógico, histórico e sistemático9.
Estes seriam os elementos constitutivos de todo e qualquer processo inter-
pretativo, não se podendo escolher um deles em detrimento dos demais, sendo
o exame de todos os elementos indispensável para a interpretação da lei10.

6 Cf. C O IN G , Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradução de Elisete


Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 315. Nas palavras de Savigny: "A
solução de um caso prático não é possível senão referindo-o a uma regra geral, que domine os
casos particulares. Esta regra se chama direito, ou direito geral, ou às vezes também direito em
sentido objetivo. Se manifesta sobretudo na lei, isto é, na regra promulgada pela autoridade
suprema de um Estado.
Se a decisão de um caso particular é de natureza restrita e subordinada; se encontra sua raiz
viva e sua força de convicção na apreciação da relação de direito, a regra jurídica e a lei, que
é sua expressão, têm por base as instituições cuja natureza orgânica se mostra no conjunto
mesmo de suas partes constitutivas e em seus desenvolvimentos sucessivos. Assim, pois,
quando não se quer limitar-se às manifestações exteriores, mas sim penetrar a essência das
coisas, reconhece-se que cada elemento da relação de direito refere-se a uma instituição que
o domina e lhe serve de tipo, da mesma forma que cada decisão está dominada por uma regra
e este segundo encadeamento, ligando-se ao primeiro, encontra ali a realidade e a vida"
(SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema dei Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 81).
7 BILLIER, Jean-Cassien;M ARYIO LI,Aglaé. História daFilosofia do Direito. Barueri: Manole,
2005. p. 191.
8 SAVIGNY, Friedrich Karl von.Sistemadei Derecho Romano Actual, [s/d], t. I, p. 184.
9 Idem, p. 187.
10 Idem, p. 189.
1 7 0 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Diante do exposto, é possível afirmar que a escola histórica do direito


legou à jurisprudência dos conceitos alguns dos fundamentos sobre os quais
esta se desenvolveu: seu caráter positivo11, sua sistematicidade12e a própria
busca de justificação do mais específico no mais geral13.
1 . 2 . A JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS

Vimos que a jurisprudência dos conceitos partiu de alguns alicerces lan­


çados pela escola história, os quais foram trabalhados por Friedrich Puchta
(1798-1846), discípulo de Savigny, para o desenvolvimento de sua genealo­
gia dos conceitos14.
Os principais expoentes da jurisprudência dos conceitos foram o supra­
citado Friedrich Puchta e Rudolf von Ihering (1818-1892), embora este úl­
timo tenha posteriormente tornado-se um de seus maiores opositores15.
A jurisprudência dos conceitos reflete uma teoria jurídica lógico-racio-
nalista, na medida em que atribui aos conceitos jurídicos a possibilidade de
enclausurar o direito, sendo desnecessária qualquer valoração para a compre­
ensão das regras jurídicas, mas sim a sua recondução a conceitos superiores16.
Tem-se aqui o cerne da genealogia dos conceitos de Puchta, explicitada por
Karl Larenz nos seguintes termos:
A idéia de Puchta é a seguinte: cada conceito superior autoriza cert as
afirmações (por ex., o conceito de direito subjetivo é de que se trata de
‘um poder sobre um objeto’); por conseguinte, se um conceito inferior

11 Cf. ALCHO URRÓ N , Carlos E. Introducción a Ia Metodologia de Ias Ciências Jurídicas y Sociales.
Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 90.
12 Cf. HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia-, Síntese de um Milênio, 2003, p.
274; AN D RAD E, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP
Editora, 2006. p. 47.
13 Mencionando a relação entre a escola histórica e a jurisprudência dos conceitos, ver: DEL
V E C C H IO , Ciorgio. Filosofia dei D erecho, 1997, p. 121; LARENZ, Karl. M etodologia da
Ciência do Direito, 1997, p. 19; ATIENZA, Manuel. El Sentido dei Derecho, 2003, p. 233;
FERN ÁN DEZ-LARGO , Antonio Osuna. La Hermenêutica Jurídica de Hans-Georg Gadamer.
Valladolíd: Secretariado de Publicaciones, 1992. p. 20.
14 Cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 2001, p. 77; LARENZ, Karl.
Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 23; HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica
Européia: Síntese de um Milênio, 2003, p. 274. /
15 Sobre a teoria conceitualista de Ihering, ver: HART, H. L. A. Jhering's Heaven of Concepts. In:
Essays in Jurisprudence and Philosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 265-277.
16 Sobre o tema, ver: KAUFM ANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da
história. In: KAUFM ANN, Arthur; ACEDER, W. (Ufrgs.). Introdução à Filosofia do Direito e à
Teoria do Direito Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste
Culbenkian, 2002. p. 168.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 7 1

se subsumir ao superior, valerão para ele ‘forçosamente’todas as afir­


mações que se fizerem sobre o conceito superior (para o crédito, como
espécie de direito subjetivo, significa isto, por ex., que ele é ‘um poder
sobre um objeto que esteja sujeito à vontade do credor e que se pode­
rá então vislumbrar, ou na pessoa do devedor, ou no comportamento
devido por este último’). A ‘genealogia dos conceitos’ensina, portanto,
que o conceito supremo, de que se deduzem todos os outros,
codetermina os restantes através do seu conteúdo. Porém, de onde
precede o conteúdo desse conceito supremo? Um conteúdo terá ele
que possuir, se é que dele se podem extrair determinados enunciados,
e esse conteúdo não deve proceder dos conceitos dele inferidos, sob
pena de ser tudo isto um círculo vicioso. Segundo Puchta, este conteú­
do procede da filosofia do Direito: assim, consegue um ponto de par­
tida seguro com que construir dedutivamente todo o sistema e inferir
novas proposições jurídicas.17
Partindo-se dessas ideias, é possível compreender a jurisprudência dos
conceitos como uma doutrina formalista, segundo a qual a atividade de inter­
pretação/aplicação do direito dar-se-ia de forma lógico-dedutiva, mediante a
subsunção de conceitos inferiores a conceitos superiores18.
A genealogia dos conceitos implica um sistema jurídico organizado de
forma piramidal, de forma que os conceitos inferiores se legitimam na medida
em que podem ser reconduzidos subsuntivamente a conceitos superiores, até
se chegar ao conceito supremo que, segundo Puchta, procederia da filosofia19.
Assim, percebe-se que a validade dos conceitos inferiores é definida
em term os puram ente lógicos, sem qualquer implicação axiológica.
Conforme salienta Helmut Coing, “com isto, tanto o trabalho da ciência como
o do juiz, torna-se uma atividade puramente lógica: os interesses e valores em
jogo não mais aparecem”20.
Na lição de Oliveira Ascenção, decorrência da forma de pensar conceitua-
lista é a ideia de completude do sistema jurídico, de modo que “por processos

17 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25.


18 Ver: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese deum Milênio, 2003, p.
283; ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma Tributária, 2006, p. 48.
19 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 25.
20 CO IN G, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 318.Para Arthur
Kaufmann, "o método da jurisprudência dos conceitos serviu aos seus representantes para
provar que a lei seria fecunda por si mesma, sem recurso às situações da vida" (KAUFMANN,
Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 168).
1 7 2 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

lógicos, o jurista extrairia do sistema sempre a regra adequada para regular uma
situação. Pode aparentemente essa regra faltar e existir uma lacuna; mas no
fundo toda a regra estará ao menos implícita no sistema”21.
Aspecto interessante do formalismo alemão do Século XIX é que o mes­
mo desenvolveu-se antes que a Alemanha tivesse concretizado sua codifica­
ção, o que somente viria a acontecer com a edição do Código Civil Alemão
que entrou em vigor no ano de 1900.
Como se sabe, o próprio Savigny era um opositor da ideia da codificação
na Alemanha, o que deu azo à célebre contenda com Anton Justus Friedrich
Thibaut (1772-1840), defensor do esforço codificante22.
Tal fato já denuncia um traço diferencial entre a jurisprudência dos con­
ceitos alemães e a escola da exegese francesa, a ser examinada a seguir. Embora
tratem-se de duas escolas formalistas, o formalismo alemão forjou-se com
base na consciência histórica e na lógica conceituai, enquanto o formalismo
exegético francês tinha como ponto de partida um monumento jurídico-po-
sitivo: o Código Civil Napoleônico de 1804.
1 . 3 . A ESCOLA DA EXEGESE E O FORMALISMO JURÍDICO FRANCÊS DO
SÉCULO XIX

A escola da exegese francesa desenvolveu-se no século X3X principalmente


a partir da edição do Código Civil Francês de 1804, o Código de Napoleão,
tendo entre seus expoentes Jean Ch. F. Demolombe, Troplong, Alexandre

21 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de. Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 458. Também nesse
sentido: HECK, Philipp. El Problema de la Creación dei Derecho. Tradução de Manuel Entenza.
Granada: Comares, 1999. p. 35; FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito,
2001, p. 79. Os principais traços da jurisprudência dos conceitos encontram-se bem sintetiza­
dos nas seguintes palavras de Maria Margarida Lacombe Camargo: "A atividade científica
consistia em estabelecer conceitos bem definidos, que pudessem garantir segurança às rela­
ções jurídicas, uma vez diminuída a ambigüidade e a vaguedade dos termos legais. E foi por
meio da elaboração de conceitos gerais, posicionados na parte superior da figura de uma
pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros conceitos de menor alcance numa união
total, perfeita e acabada, que o direito alcançou seu maior grau de abstração e autonomia
como campo de conhecimento. Esse alto grau de racionalidade deu origem ao 'dogma da
subsunção' que irá se impor no século seguinte. O direito era tido como fruto de um desdobra­
mento lógico-dedutivo entre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusão que servisse
de juízo concreto para cada decisão. [...]" (CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica
Jurídica e Argumentação'. Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 2a ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 87).
22 Sobre o movimento pela codificação de Thibaut e sua contenda com Savigny, ver: BOBBIO,
Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 53-62.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 7 3

Duranton, Proudhon, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau e Pothier, entre


outros juristas franceses23.
Como visto, ao contrário da jurisprudência dos conceitos, o exegetismo
francês representou um formalismo legalista, na medida em que, tendo por
base a magnífica obra legislativa que foi o Código de Napoleão, pensavam os
juristas franceses da época ser possível encontrar, no texto da lei, respostas para
todas as controvérsias surgidas no âmbito do convívio social24.
Com isso, relegou-se ao intérprete/aplicador do direito uma tarefa mera­
mente mecânica de aplicação das normas codificadas25, as quais sequer deve­
riam ser objeto de interpretação. Conforme destaca Garcia Máynez, “a
interpretação é, pois, partindo desse ponto de vista, esclarecimento dos textos,
não interpretação do direito. Ignoro o direito civil - exclamava Bugnet - ‘só
conheço o Código de Napoleão”’26.
Esse aspecto foi ressaltado por François Gény, crítico da escola exegética.
Segundo o jurista francês, principalmente por obra dos estudiosos que se de­
senvolveram após a vigência do Código houve uma importante mudança no
papel assumido pelo intérprete. Em suas palavras27:
Daí a regra insculpida no artigo 4o do Código, segundo a qual os juizes
não poderiam deixar de julgar um caso particular ao argumento de que a lei
seria obscura ou omissa, chegando-se, portanto, ao dogma da completude do
ordenamento jurídico, o qual deve conter respostas para todas as perguntas28.

23 Nas palavras de Maria Helena D iniz, "a escola da exegese reuniu a quase-totalidade dos
juristas franceses [...] durante a época da codificação do direito civil francês e o tempo que se
sucedeu à promulgação do célebre Código de Napoleão" (DINIZ, Maria Helena. Compêndio
de Introdução à Ciência do Direito. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 47).
24 Sobre o tema, ver: CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumenta­
ção: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 87; HESPANHA, Antônio Manuel.
Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milênio, 2003, p. 268-269; SALDANHA, Nelson. Da
Teologia à Metodologia: Secularização e crise do pensamento jurídico. 2a ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005. p. 77; RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama dei Pensamiento Jurídico en el Siglo
XX. México: Porrua, 1963. t. I. p. 31.
25 Cf. AFTALIÓ N , Enrique R.; O LA N O , Fernando G arcia; VILA N O V A , José. Introducción al
Derecho. 7a ed. Buenos Aires: La Ley, [196-]. p. 804; COELHO , L. Fernando, Lógica Jurídica e
Interpretação das Leis, 1981, p. 226.
26 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Introducción al Estúdio dei Derecho. 53a ed. México: Editorial
Porrúa, 2002. p. 334. Ver, ainda: WARAT, Luiz Alberto. Introdução Ceral ao Direito. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. v. I. p. 69-70; BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do
Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 325.
27 GÉNY, François. M étodo de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo. 2 a ed.
Madrid: Editorial Reus, 1925. p. 23. Nesse sentido, ver também: BONNECASE, Julien. Science
du Droit et Romantisme. Paris: Librarie du Recueil Sirey, 1928. p. 9-13.
28 Como observa Chaím Perelman, "o artigo 4 do Código de Napoleão, ao proclamar que o juiz
não pode recusar-se a julgar sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da
1 7 4 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Norberto Bobbio, partindo das lições de Bonnecase, sintetizou as princi­


pais características da escola da exegese nos seguintes termos: (a) inversão das
relações tradicionais entre direito natural e direito positivo, reconhecendo-se
a existência de princípios pré-positivos, mas sustentando-se que os mesmos são
irrelevantes para o jurista enquanto não positivados; (b) defesa de uma concep­
ção estatal do direito, de modo que somente seriam jurídicas as regras postas
pela organização do Estado; (c) defesa de uma teoria subjetivista da interpre­
tação, no sentido de que se deveria buscar a revelação da vontade do legislador
contida no texto legal; (d) apego à literalidade do texto legal; e (e) apego ao
princípio da autoridade, com o que se atribuía relevância não só ao texto do
código, mas também às lições de seus primeiros comentadores29.
1 .4 . A ESCOLA a n a lític a e o form alism o ju r íd ic o inglês d o
S é c u lo XIX

Paralelamente à escola da exegese francesa, desenvolveu-se teoria jurídica


semelhante na Inglaterra do Século XIX, a qual ficou conhecida como escola
analítica e teve em John Austin (1790-1859) seu principal expoente30.
Todavia, embora Austin seja a principal figura da escola analítica, não é
possível examinar o formalismo inglês desse período sem mencionar a pessoa
de Jeremy Bentham (1748-1832), cujas ideias influenciaram o pensamento
do primeiro.
Em primeiro lugar, Jeremy Bentham era um crítico da common law e um
entusiasta da codificação e da legislação. Sobre esse ponto, é arguta a seguinte
passagem de Norberto Bobbio, ao comparar as visões alemã, francesa e inglesa
sobre a codificação do direito:
Observamos o curioso destino da idéia da codificação: dela não houve
vigênda na Alemanha (no período histórico por nós examinado), porque

lei, obriga-o a tratar o sistema de direito como completo, sem lacunas, como coerente, sem
antinomias e como claro, sem ambigüidades que dêem azo a interpretações diversas. Somente
diante de um sistema assim é que o papel do juiz seria conforme à missão que lhe cabe, a de
determinar os fatos do processo e daí extrair as conseqüências jurídicas que se impõem, sem
colaborar ele próprio na elaboração da lei. Foi nesta perspectiva que os juristas da escola da
exegese se empenharam em seu trabalho, procurando limitar o papel do juiz ao estabelecimen­
to dos fatos e à sua subsunção sob os termos da lei" (PERELMAN, Chaím . Lógica Jurídica.
Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 34-35).
29 BO BBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 84-89.
30 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19a ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 417-418.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 7 5

os homens cultos que a ela eram contrários (principalmente Savigny,


que podemos chamar de teórico da anticodificação) conseguiram fazer
prevalecer seu ponto de vista; na França houve codificação sem ter
havido uma teoria da codificação (os juristas da Revolução propuseram
de fato a codificação sem, entretanto, teorizá-la; e Montesquieu, o maior
filósofo do direito do iluminismo francês, não pode, com certeza, ser
considerado um teórico da codificação); na Inglaterra, pelo contrário,
ondejá no séculoXVII existiu o maior teórico da onipotência do legislador
(Thomas Hobbes), não houve a codificação, mas foi elaborada a mais
ampla teoria da codificação, a deJeremy Bentham, chamado exatamente
de o “Newton da legislação”.31
Ademais, além de defensor da legislação, Jeremy Bentham, com seu prin­
cípio da utilidade, impunha sobre o direito e demais relações sociais uma
relatividade moral que o opunha ao jusnaturalismo.
Tal princípio da utilidade parte da ideia de que a humanidade é guiada
por duas grandes forças: sofrimento e prazer, de forma que os indivíduos
agiriam sempre em busca de evitar o sofrimento e maximizar o prazer32.
Embora Bentham fosse um entusiasta da legislação, vê-se que seu utili-
tarismo não era comparável às posições formalistas da jurisprudência dos con­
ceitos e da escola da exegese. Tanto que Bobbio chega a afirmar que, em parte,
as ideias de Bentham se aproximam da jurisprudência dos interesses33, a ser
estudada mais adiante.
O ideário de Jeremy Bentham influenciou o desenvolvimento da escola
analítica que teve em John Austin seu maior expoente34.
Traço importante dessa escola é a separação do direito positivo das de­
mais ordens normativas, como a moral. Conforme Angel Latorre, “Austin

31 BO BBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 91.


32 Em suas palavras: "A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres sobera­
nos, sofrimento e prazer. Cabe a eles determinar o que devemos fazer. De um lado, os standards
de certo e errado e de outro, a cadeia de causas e efeitos, estão presos ao seu trono. Sofrimento
e prazer nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que falamos, em tudo o que
pensamos: todo esforço que podemos fazer para afastar nossa sujeição servirá apenas para
confirmá-la. Em palavras um homem pode pretender abjurar seu império, mas em realidade ele
permanecerá sujeito a eles todo o tempo. O princípio da utilidade reconhece tal sujeição e
assume-a como sendo o fundamento de um sistema cujo objeto é erguer a fábrica da felicidade
pelas mãos da razão e da lei" (BENTHAM, Jeremy. The Principies o f Morais and begislation. New
York: Prometheus Books, [s/d]. p. 1 e 2).
33 BO BBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico'. Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 98.
34 Cf. ATIENZA, Manuel. El Sentido dei Derecho, 2003, p. 234.
1 7 6 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

considera, em primeiro lugar, que se deve distinguir o direito positivo de ou­


tros tipos de normas, como os usos sociais ou outros preceitos independentes
daquele, que se considera o único verdadeiro direito”35. Trazendo à colação as
palavras do próprio Austin:
Leis propriamente ditas, ou propriamente assim denominadas, são co­
mandos; leis que não são comandos são leis impróprias ou impropria­
mente assim denominadas. Leis propriamente ditas juntamente com
as leis impróprias, podem ser dividas nas quatro espécies a seguir:
1. Leis divinas ou leis de Deus: ou seja, leis estabelecidas por Deus
para as suas criaturas humanas.
2. Leis positivas: ou seja, leis que são simplesmente e estritamente
assim denominadas e que compõem a matéria apropriada da teoria
jurídica geral e particular.
3. Moral positiva, regras de moralidade positiva ou regras morais positivas.
4. Leis em sentido metafórico ou figurativo.36
Tal finalidade é verificada no próprio título de seu trabalho principal,
The Province ofjurisprudence Determined, que pode ser traduzido como A De­
terminação do Campo do Direito. Segundo Austin, seu objetivo era “distinguir
o direito positivo (o verdadeiro tema do direito) dos objetos ora enumerados,
objetos com os quais aquele está ligado apenas por semelhança ou analogia”37.
Deixando de lado as leis divinas, para Austin apenas os comandos com­
punham o direito positivo, devendo-se entender por comando uma ordem
cujo descumprimento é seguido de uma conseqüência (sanção) negativa para
o inadimplente38.
Assim, as regras morais quedar-se-iam fora do campo do jurídico, com­
pondo o que Austin denomina moralidade positiva. São chamadas morais
para que sejam distinguidas das normas jurídicas e são denominadas positivas,
para que não sejam confundidas com as leis divinas39.

35 LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Tradução de Manuel de Alarcão. Coimbra: Almedina,


2002. p. 157.
36 AUSTIN, John. The Province o f Jurisprudence Determined. New York: Prometheus Books, [5/
d], p. 1.
37 AUSTIN, John. The Province o f Jurisprudence Determined, [s/d], p. 2.
38 Idem, p. 13.
39 Idem, p. 12.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 7 7

2 . M o v im e n t o s d e c o n t e s t a ç ã o a o f o r m a l is m o

2 .1 . F r a n ç o is G én y e a liv r e in v e s t ig a ç ã o c ie n t íf ic a

Ainda no curso do Século XIX as escolas formalistas francesa e alemã


foram objeto de crítica.
Na França, a Escola da Exegese foi alvo de contestação por François Gény
(1861-1959) e sua doutrina da livre pesquisa do direito. Na Alemanha, surgi­
ram a jurisprudência dos interesses, cujo expoente maior foi Philipp Heck, e o
movimento do direito livre, expressão aparecida em uma conferência de Eugen
Ehrlich em 190340.
Ao examinar a livre investigação científica, Vicente Ráo manifesta-se no
sentido de que esta “encontra sua melhor e mais exata qualificação dentro da
teoria das lacunas do direito, pois sua finalidade consiste em suprir, mediante
livre apuração de novas regras, as omissões, os vazios, que por outro modo se
não possam preencher, das normas jurídicas existentes”41.
De fato, parece que o alvo principal da crítica de Gény era a ideia de
esgotamento do direito na legislação42, tão ao gosto dos juristas franceses do
Século X3X, à qual se ligava também uma crítica à teoria hermenêutica que
considerava que a interpretação/aplicação do direito se resumia à subsunção
de um fato a uma lei preexistente43. Esta crítica fica clara na lição de Gény:
As fontes formais do direito privado positivo, das quais procurei, no
capítulo precedente, precisar o justo alcance e determinar o uso legíti­
mo, dotam seguramente, no limite permitido em sua esfera de ação, da
mais segura direção ao intérprete. Mas não pode ocultar-nos que, por
penetrante e sutil que possa ser a interpretação dessas manifestações
positivas do Direito, não se pode desconhecer sua natureza, e seria
exceder seu próprio poder pretendèr que somente ela satisfizesse todas
as aspirações da vidajurídica. Sobretudo - para não falar aqui mais do

40 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 78.


41 RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 514.
42 Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 57.
43 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; M ARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito, 2005, p. 270 e
271; CAM ARGO , Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação'. Uma
Contribuição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71; RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama dei
Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 27.
1 7 8 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H er m e n êu t ic a

que da perfeita e mais fecunda, atualmente, das fontes mencionadas, a


lei escrita - é claro que examinando-a tal como devemos fazê-lo, como
um ato da inteligência e da vontade humana necessariamente limitada
em seus propósitos, restrita também em seu alcance efetivo, pode-se
assegurar que, por maior que seja aprofundidade a que se chegue e por
mais engenho que se ponha em solicitar a fórmula, não se poderá dedu­
zir a plena totalidade das soluções que reclamam imperiosamente a
infinita complexidade das relações sociais.44
O papel da livre investigação científica seria exatamente oferecer ao in-
térprete/aplicador do direito instrumental para superar as limitações imanen-
tes ao direito positivo45. Segundo Maria Margarida Lacombe Camargo “de
acordo com Gény, uma vez não obtida a resposta para o problema no sistema,
o aplicador da lei poderia, por meio da atividade científica, encontrar a solu­
ção jurídica fora do âmbito restrito da lei positiva”.
Todavia, conforme adverte François Gény, a ideia de superação da vin-
culação absoluta entre o juiz e o direito positivo, não significa o império do
subjetivismo judicante, com a prevalência do entendimento pessoal do ma­
gistrado. É seguindo esta linha de raciocínio que afirma que pode o traba­
lho do juiz ser qualificado como “livre investigação científica', investigação
livre, tendo em vista que se encontra subtraída à ação própria de uma auto­
ridade positiva; investigação científica, ao próprio tempo, porque não pode
encontrar bases sólidas além dos elementos objetivos que somente a ciência
pode revelar”46.
Assim, segundo Gény as fontes do direito dividem-se em quatro catego­
rias distintas, enunciadas por Jean-Cassien Billier e Aglaé Maryioli: 11dados
reais que constituem as realidades sociais, econômicas, físicas e também mo­
rais, sobre as quais se inscrevem as regras jurídicas; os dados históricos que
constituem a tradição, a história institucional e tudo o que se liga à história
particular de um país; os dados racionais que constituem tudo o que se refere
à ‘natureza das coisas ou do homem’, a sua essência, apresentando as caracte­
rísticas da necessidade, da imutabilidade e da universalidade, em suma, que

44 GÉNY, François. Método de Interpretación y Fuerttes en Derecho Privado Positivo, 1925, p. 520.
45 CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contri­
buição ao Estudo do Direito, 2001, p. 71.
46 GÉNY, François. Op. cit., p. 524.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 7 9

constituem ‘o irredutível do direito natural’; os dados ideais que correspondem


às aspirações mais profundas do homem”47.
2 . 2 . A SEGUNDA FASE DO PENSAMENTO DE RUDOLF VON IHERING

Na Alemanha, a crítica ao formalismo da jurisprudência dos conceitos


ganhou força na pena de Rudolf von Ihering que, como visto, inicialmente
fora um de seus principais arautos.
Ihering pode ser considerado o precursor das concepções sociológicas do
direito48e da chamada jurisprudência dos interesses49, na medida em que sus­
tenta que “o direito é referido a um fim social, do qual recebe o seu conteúdo”50.
A teoria de Ihering encontra-se claramente exposta em sua obra O Fim
no Direito, sendo que logo no capítulo primeiro do aludido trabalho ele asse­
vera que:
Um ato de vontade sem causa final é um impossível tão absoluto como
o movimento de uma pedra sem causa eficiente. Tal é a lei da causalida­
de: psicológica no primeiro caso, puramente mecânica no segundo. Para
abreviar, chamarei desde logo a primeira lei definalidade, para indicar
assim, por seu mesmo nome, que a causa final é a única razão psicológi­
ca da vontade. Enquanto à lei de causalidade mecânica, o termo lei de
causalidade bastará para designá-la daqui adiante. Esta lei, neste último
sentido, pode explicar-se assim: nenhum acontecimento se produz no
mundo físico sem um acontecimento anterior no qual encontra aquele
sua causa. É a expressão habitual: não há efeito sem causa. A lei de
finalidade diz: não há ação sem causa?1
Nesse contexto, o direito já não se pode separar dos fins sociais que se
buscam alcançar, com o que não se pode enclausurar o jurídico nos concei­
tos aplicados de forma lógico-subsuntiva. Com Larenz podemos afirmar
que para Ihering, o direito é “a norma coercitiva do Estado posta a serviço
de um fim social”S2.

47 BILLIER, Jean-Cassien; M ARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito, 2005, p. 272.


48 Cf. LATORRE, Angel. Introdução ao Direito, 2002, p. 185.
49 Cf. BILLIER, Jean-Cassien; M ARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito, 2005, p. 277.
50 Cf. KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, 2002, p. 172.
51 IH ERIN G , Rudolf von. El Fin en el Derecho. Tradução de Leonardo Rodriguez. Pamplona:
Analecta Editorial, 2005. p. 8
52 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 61.
1 8 0 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Veja-se que Ihering não contesta a natureza do direito como um con­


junto de normas alicerçadas no poder coativo do Estado, pelo contrário, resu­
me o direito ao exercício da coação para a proteção dos fins sociaisS3.
Nesse cenário, o próprio Ihering questiona: “Qual é, pois, o fim do direi­
to?” Ao que responde: “Vimos que o fim dos atos do ser animado reside na
realização de suas condições de existência. Partindo dessa definição, podemos
dizer que o direito representa a forma de garantia das condições da vida da
sociedade, assegurada pelo poder coativo do Estado”54.
Como bem percebido por Recaséns Siches, “segundo Ihering, o Direito
não é a coisa mais alta que há no mundo, não é um fim em si mesmo. É somente
um meio a serviço do fim. Este fim consiste na existência em sociedade”55.
2 . 3 . A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES

Conforme referido, pode-se considerar Rudolf von Ihering o precursor


da jurisprudência dos interesses. Todavia, o maior expoente dessa linha de
pensamento foi Philipp Heck (1858-1943).
Heck era crítico da jurisprudência dos conceitos, a qual ele acusava de
haver limitado o papel do juiz a uma “pura atividade gnosiológica”, de modo
que “a tarefa do juiz teria que se limitar a subsumir o caso ao conceito jurídi­
co, negando-se-lhe toda atividade criadora do direito”56.
Parte Philipp Heck do entendimento de que a lei criada pelo legislador
não consegue englobar toda realidade social, de modo que caberia ao juiz, a
partir de pontos de vistas teleológicos, criar a norma aplicável ao caso concre­
to57. Conforme suas palavras, “o pensamento legislativo é necessariamente in­

53 Em textual: "Depois de muitas voltas chegamos ao final à forma superior de emprego da força
para os fins humanos, a organização social da coação; em uma palavra: o Estado. Poderíamos
facilitar a tarefa apoderando-nos imediatamente da idéia de a coação social realizada pelo
Estado. Mas necessitávamos demonstrar que o direito não pode realizar sua missão enquanto
não repouse sobre o Estado. Unicamente no Estado encontra o direito a condição de sua
existência: a supremacia sobre a força. Somente no interior do Estado alcança o direito este fim.
No exterior, no conflito entre os Estados, a força ante o mesmo se levanta como inimiga tão
poderosa como antes de sua aparição histórica nas relações de indivíduo a indivíduo. Nesta
região a questão do direito se converte de fato em uma questão de superioridade de forças"
(IHERING, Rudolf von. El Fin en el Derecho, 2005, p. 194 e 195).
54 IHERING, Rudolf von. El Fin en el Derecho, 2005, p. 274.
55 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama dei Pensamiento Jurídico en el Siglo XX, 1963, p. 271.
56 HECK, Philipp. El Problema de Ia Creación dei Derecho, 1999, p. 21.
57 Idem, p. 52.
S e rg io A n d ré R o c h a - 181

suficiente, especialmente quando se trata da nova codificação de um grande


âmbito de relações. Também a lei bem elaborada apresenta lacunas e contra­
dições que exigem uma atividade complementadora”58.
Seguindo essa linha de entendimentos, a interpretação jurídica deveria
transcender o direito positivo, sendo integrada pela noção de interesse, corpo-
rificando a denominada jurisprudência dos interesses. Para Heck, “a caracte­
rística peculiar dessa tendência consiste em que ela utiliza como conceitos
metódicos auxiliares o conceito de interesse e a série de noções que estão com
conexão com ele: estimação de interesses, situação de interesses, conteúdo de
interesses, etc. Utilizam-se estes conceitos na análise dos problemas normati­
vos, e na estruturação da reflexão desses conceitos auxiliares é ademais impres­
cindível para uma mais profunda penetração”59.
É assim que para Heck “toda decisão deve ser interpretada como uma
delimitação de interesses contrapostos e como uma estimação desses interes­
ses, conseguida mediante juízos e idéias de valor”60.
Verifica-se, portanto, que com a jurisprudência dos interesses critica-se
de modo implacável a ideia de que o direito limita-se à legislação positivada e
sua aplicação silogística aos casos concretos, inserindo no processo hermenêu­
tico a consideração teleológica dos interesses em jogo61. Daí a ponderação de
Larenz no sentido de que:
[...] Ao exortar o juiz a aplicar os juízos de valor contidos na lei com vista
ao caso judicando, ajurisprudência dos interesses - embora não que­
brasse verdadeiramente os limites do positivismo - teve uma atuação
libertadora e fecunda sobre uma geração de juristas educada num pen­
samento formalista e no estrito positivismo legalista. E isto na medida
tanto maior quanto aconselhou idêntico processo para o preenchimento
das lacunas das leis, abrindo desta sorte ao juiz a possibilidade de

58 HECK, Philipp. El Problem a de laCreación d e i D erecho, 1999, p. 52.


59 Idem , p. 61.
60 Idem , p. 65.
61 Cf. LATORRE, Angel.In trod uçã o ao D ireito, 2002, p. 187;KAUFMANN, Arthur. A problem á­
tica da filosofia d o direito ao longo da história, 2002, p. 173; CAM ARGO, Maria Margarida
Lacombe. H erm en êutica Ju ríd ica e A rgum en tação : Uma Contribuição ao Estudo do Direito,
2001, p. 97; BILLIER, Jean-Cassien; M ARYIO LI, Aglaé. História da Filosofia d o D ireito, 2005,
p. 279; C O IN G , Helmut. E lem en tos Fund am entais da Filosofia d o D ire ito , 2002, p. 333;
AFTALIÓN, Enrique R.; O LANO , Fernando Garcia; VILANO VA, José. In trod ucció n ai D erech o ,
[196-], p. 814; RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama d e i Pensam iento Ju ríd ico en el Siglo XX,
1963, p. 275.
1 8 2 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t io \

desenvolver o direito não apenas na fidelidade à lei, mas de harmonia


com as exigências da vida. [...].'62
Vê-se, portanto, que a jurisprudência dos interesses representa uma im­
portante modificação na consideração do papel do intérprete, o qual passa a
ter nos interesses outros horizontes além da letra do texto legal.
2 .4 . O M o v im e n t o para o D ir e it o L ivre

A expressão movimento para o direito livre foi cunhada por Eugen Ehrlich
(1867-1922), embora para Larenz essa linha teórica tenha em Oskar Büllow
seu precursor63.
Assim como os demais movimentos de crítica ao formalismo, o movi­
mento para o direito livre volta-se contra a aplicação silogistico-mecânica do
direito. Ainda segundo Larenz, “contra uma aplicação puramente esquemáti-
ca do preceito da lei à situação da vida, acentua Ehrlich a importância de uma
livre investigação do Direito’. Com o que não procura uma jurisprudência
segundo a apreciação discricionária do juiz chamado a dar a decisão, mas uma
jurisprudência que arranque a tradição jurídica e aspire ao ‘Direito justo’, no
sentido de Stammler”64.
Assim como na livre investigação científica de Gény, o movimento para o
direito livre buscava solucionar o problema das lacunas jurídicas. Todavia, havia
uma importante distinção entre o que seria uma lacuna para as duas escolas.
Com efeito, para os juristas do movimento para o direito livre haveria
uma lacuna não só nos casos em que determinada situação fática houvesse se
quedado fora do regramento legislativo, estando-se igualmente diante de uma
lacuna nas situações em que a lei não dispusesse claramente qual seria a solu­
ção apropriada a um dado caso65. Nesses casos, caberia ao julgador buscar, fora
do direito positivo, a solução do caso concreto.

62 LARENZ, Karl.Metodologia daCiência do Direito,1997, p. 69.


63 Idem, p. 78.
64 Idem, p. 79.
65 Seguindo o magistério deArthurKaufmann: "Direito Livre quer dizer, no fundo: livre da lei. É
certo que os representantes desse movimento sempre se opuseram à 'fábula-contra-fegen', à
acusação de que eles queriam permitir ao ju iz Ignorar a lei (vigente) e até decidir contra ela. De
fato, os juristas do direito livre nunca ensinaram tal coisa. Eles apenas queriam indicar qual o
procedimento a adotar o juiz, quando a lei apresentasse lacunas. Contudo, e é este o busílis da
questão, segundo a concepção da doutrina no direito livre, a lei não tem lacunas apenas
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 8 3

3. O RETORNO DO FORMALISMO NO SÉCULO XX


3 .1 . O POSITIVISMO JURÍDICO DE HANS KELSEN

Como vimos anteriormente, durante o século XIX e início do século XX


desenvolveram-se diversos movimentos jurídicos que buscavam a superação
das escolas formalistas, buscando-se integrar ao direito dados factuais ocorri­
dos no meio social.
Foi exatamente contra essa “contaminação” do jurídico por outras ciências
como a sociologia, a política e a psicologia que se insurgiu o jusfilósofo austríaco
Hans Kelsen (1881-1973).
É impossível resumir em poucos parágrafos uma obra que, como apontado
porTércio Sampaio Ferraz Júnior, entre traduções e reimpressões alcança mais
de 620 títulos e cujos textos elaborados sobre a mesma supera o número 1.20066.
Dessa forma, trataremos brevemente aqui apenas de dois aspectos da
teoria pura do direito: a relação entre direito e moral e a questão da interpre­
tação jurídica.
Logo na introdução de sua teoria pura do direito Kelsen deixa claro seu
propósito de estabelecer uma teoria baseada nas normas jurídicas, excluindo
tudo que em seu sentir lhes fosse alheio, elevando a ciência jurídica a um
patamar científico nunca dantes alcançado67. Vejam-se os primeiros parágra­
fos da referida obra:
ATeoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do direito
positivo em geral, não de uma ordemjurídica especial. É teoria geral do

quando não contenha, de todo em todo, uma regulamentação aplicável ao caso, mas já aí
onde não resolve o caso de forma expressa e inequívoca (hard case no sentido de H .L.A. Hart).
E naturalmente que isto é o que acontece quase sempre, pelos menos em todos os casos
discutíveis" (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história,
2002, p. 175). Nesse mesmo sentido: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia-,
Síntese de um Milênio, 2003, p. 289; KLUG, Uirich. Lógica Jurídica. Tradução de J.C. Gardella.
Bogotá: Themis, 2004. p. 11-12.
66 FERRAZ JÚN IO R, Tércio Sampaio. Por que ler Kelsen, hoje. In: CO ELHO , Fábio Ulhoa. Para
Entender Kelsen. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. XIII.
67 Assim leciona Karl Larenz, para quem "foi Hans Kelsen quem, com admirável energia e
improbo rigor de pensamento, se desempenhou de semelhante missão. A sua 'teoria pura do
Direito' constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como
ciência - mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo
das respectivas limitações - que o nosso século veio até hoje a conhecer" (LARENZ, Karl.
M etodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 92).
1 8 4 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Direito, não interpretação de particulares normasjurídicas, nacionais ou


internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio obje­
to. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas
já lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como
deve ele ser feito. E ciênciajurídica e não política do Direito.
Quando a si própria se designa como “pura”teoria do Direito, isto signi­
fica que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao
Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto se não possa, rigoro­
samente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende
libertar a ciênciajurídica de todos os elementos que lhe são estranhos.
Esse é o seu princípio metodológico fundamental.68
Diferentemente do que muitas vezes se afirma na doutrina, a teoria pura
do direito não nega a grande importância da ética, da moral e da justiça para
o direito, mas sim a inexistência de uma moral69ou de uma justiça70absolutas,
que devam ser acolhidas pelas normas jurídicas. Separa-se, aqui, o campo da
ciência jurídica, preocupada com as normas positivadas, e da filosofia jurídica,
voltada para análise dos fins que deveriam ser perseguidos pelo ordenamento
e das normas em vigor como aptas para realizá-los71.
Seguindo essa linha de raciocínio, a teoria da interpretação jurídica apre­
sentada por Kelsen mostra-se igualmente avalorativa.
Parte Kelsen de sua estrutura piramidal do ordenamento jurídico para
definir a interpretação como “uma operação mental que acompanha o proces­
so da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um
escalão inferior”72.
Assim, o legislador deve interpretar a Constituição para poder elaborar
as leis infraconstitucionais, da mesma forma que o juiz e o administrador
devem interpretar as normas do ordenamento jurídico para emitirem suas

68 KELSEN, Hans. Teoria Pura do D ireito. 6a ed. Tradução de João Baptista Machado. Coimbra:
Armênio Amado, 1984. p. 17.
69 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102.
70 Cf. KELSEN, Hans. O Problem a da Ju stiça . Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 65.
71 Ver: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Ju ríd ica E u ro p éia : Síntesede umMilênio, 2003,
p. 310.
72 KELSEN, Hans. Teoria Pura d o D ireito, 1984, p. 463.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 8 5

sentenças e atos administrativos, no contínuo movimento de positivação/con-


cretização das normas jurídicas em atos de aplicação.
Nesse contexto, separa Kelsen a interpretação realizada por um órgão de
aplicação do direito (ou seja, a interpretação apta à criação de uma norma indi­
vidual e concreta) e a interpretação realizada por quem não é aplicador da regra
interpretada (por exemplo, interpretação realizada pelas pessoas de direito pri­
vado que devem observar o direito e aquela oferecida pela ciência jurídica).
Aspecto importantíssimo da teoria da interpretação kelseniana é a inde-
terminação dos textos normativos da qual decorre a ideia de que estas são
molduras, dentro das quais podem ser identificadas mais de uma norma jurí­
dica. Em suas palavras:
Se por “interpretação”se entende a fixação por via cognoscitiva do senti­
do do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica so­
mente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpre­
tar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que
dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei
não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a
única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em
que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que
apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do
Direito - no ato do Tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença
judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se con­
tém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que
ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais
que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.73
Ao afirmar que o texto legal é apenas uma moldura dentro da qual se
encontram diversas normas jurídicas passíveis de serem criadas pelo aplica­
dor do direito, Kelsen rejeita a possibilidade de que se desenvolva qualquer
método jurídico capaz de definir qual seria a norma jurídica correta extraí-
vel do texto74.
Seguindo essa linha de raciocínio, sustenta Hans Kelsen que a escolha
de uma entre as diversas normas jurídicas contidas na moldura do texto

73 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 1984, p. 467.


74 Idem, p. 468.
186 - E v o lu ç ã o H is t ó r ic a da T e o ria H erm e n ê u tica

legal sequer seria uma atividade jurídica, mas sim uma atividade de política
do direito75.
Portanto, não sendo a eleição de uma entre as normas constantes no
texto legal uma atividade jurídica, pode a mesma muito bem ser guiada por
critérios metajurídicos, como a moral e a justiça.
Em assim sendo, jamais seria possível determinar se a norma eleita seria
efetivamente a “correta”, já que pautada tal escolha por elementos estranhos
ao direito. Como aduz Kelsen, “do ponto de vista do Direito positivo, nada se
pode dizer sobe a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas
as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamen­
te: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo”76.
3 .2 . O p o sit iv is m o ju r íd ic o de H erbert L. A . H art

O jusfilósofo inglês Herbert L. A. Hart (1907—1992) foi o outro gran­


de nome do positivismo jurídico no século XX.
Assim como Kelsen, Hart reconhece a indeterminação dos textos legais,
desenvolvendo a teoria da textura aberta da linguagem.
Segundo o professor inglês, “qualquer instrumento, precedente ou legislação,
seja escolhido para a comunicação de padrões de comportamento, estes, a despeito
do quão bem funcionem em um grande número de casos ordinários, em algum
ponto em que sua aplicação esteja em questão, irão provar-se indeterminados; eles
terão o que foi denominada uma textura aberta. Até aqui nós apresentamos tal
fato, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana;
incerteza nos limites é o preço a ser pago pelo uso de termos gerais classificatórios
em qualquer forma de comunicação relativa a temas factuais”77.

75 Segundo sua lição: "A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam
nos quadros do Direito a aplicar, a 'correta', não é sequer - segundo o próprio pressuposto de
que se parte - uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema
de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter,
a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no
essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas
leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair
as únicas leis corretas, tão-pouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas
sentenças corretas" (KELSEN, Hans, Teoria Pura d o Direito, 1984, p. 469).
76 KELSEN, Hans. Teoria Pura do D ireito, 1984, p. 470.
77 HART, H. L. A. The C oncept o f Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 1997. p. 128.
Sobre a textura aberta da linguagem, ver: STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem : Uma Análise
da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 8 7

Partindo da textura aberta das normas jurídicas, critica Hart o formalis­


mo conceitualista, que pretendia enclausurar a realidade em conceitos78.
A indeterminação legal confere às cortes e autoridades encarregadas de
aplicar a norma jurídica certa margem para “ponderar, diante das circunstân­
cias, entre interesses conflitantes que podem variar em peso de caso para caso”79.
Dessa forma, a textura aberta das normas jurídicas deixa ao juiz um
poder criativo, a ser exercido mediante interpretação/aplicação de precedentes
ou estatutos aos casos concretos. De outro lado, cabe às cortes dar a última
palavra sobre o que é o direito80, no exercício de sua discricionariedade81.
A textura aberta das normas de Hart difere, porém, da ideia do texto legal
como moldura trazida por Kelsen. De fato, para Hart a abertura das normas
pode levar a uma situação de ausência de qualquer norma jurídica, verdadeira
lacuna a ser superada pela discricionariedade do juiz82. Já o texto-moldura de
Kelsen significaria a existência de várias normas que poderiam ser potencial­
mente extraídas de um dado texto legal e não a existência de uma lacuna.
Para Hart, tal competência discricionária atribuída ao juiz não é ilimita­
da, não sendo equivalente à competência atribuída aos órgãos legislativos.
Com efeito, Hart sustenta que o exercício desta competência discricio­
nária se dá dentro dos limites do próprio ordenamento jurídico, de onde o
julgador extrairá os parâmetros para sua decisão. Exatamente por tal motivo,
pelo fato de que o próprio ordenamento orienta o juiz na apreciação dos casos
concretos é que para Hart uma decisão jurídica racional não depende de ape­
lação para critérios morais de como a lei deveria ser83.

4 . A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE H a N S -G e O R G GADAM ER

O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), mesmo não sendo


filósofo do direito e, portanto, não tendo posto a hermenêutica jurídica entre suas
principais preocupações, desenvolveu, a partir da virada ontológica conduzida por

78 HART, H. L. A. The C on cept o f Law, 1997, p. 129.


79 Idem , p. 135.
80 Idem , p. 145.
81 Idem , p. 252.
82 Idem , p. 272.
83 HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morais. In: Essays in Ju risprudence
a n d P hilosophy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 68-69.
t8 8 - E v o lu ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e rm e n ê u tica

seu mestre Martin Heidegger, uma hermenêutica filosófica cujos fundamentos


acabam por impor uma modificação no pensar a hermenêutica jurídica.
Entre as modificações trazidas pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg
Gadamer, destacamos três em especial: (a) a crítica quanto à crença na possibilidade
de se alcançar a verdade nas ciências do espírito através da utilização de um méto­
do; (b) a revisão da ideia do distanciamento do intérprete em relação ao objeto
interpretado, com o reconhecimento de que é no intérprete, com sua tradição e
pré-conceitos, que se realiza o processo interpretativo; e (c) a indusão da aplicação
no âmbito do processo hermenêutico, a qual abala os alicerces do entendimento,
difundido na seara jurídica, de que a aplicação seria um momento pós-interpreta-
tivo, em que o intérprete, estranho ao texto legal e aos fatos sob exame, aplica a estes
o resultado da interpretação do texto, resolvendo uma controvérsia jurídica.
Uma breve reflexão acerca desses três pontos revela que os mesmos estão
intimamente conectados. Com efeito, a partir do momento que intérprete e
objeto implicam-se mutuamente, perde força a ideia de que intérprete e objeto
relacionam-se por intermédio de um método que permite que aquele conheça e
interprete este, aplicando-o a outro objeto externo, ao final.
4.1 . U m a c r ít ic a a o m é t o d o

A obra principal de Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, editada pela


primeira vez no ano de 1960, tem como um de seus principais propósitos apre­
sentar críticá à ideia de que se pode alcançar a verdade, no campo das ciências do
espírito, mediante a mera aplicação de um método objetivo, nos moldes das
ciências naturais.
Conforme afirma Gadamer logo na introdução de seu pensamento,
“na origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um pro­
blema de método”84.
A crítica ao pensamento metodológico é tão presente em sua obra que
alguns de seus críticos e revisores apontam que seu trabalho devia ser intitula­
do Verdade ou Método8S, ou ainda Verdade versus Método86.

84 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e M étod o I: Traços de uma hermenêutica filosófica. 5a ed.


Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 29.
85 Cf. RICOEUR, Paul. H erm en eutics & the H um an S c ie n d e s. Tradução de John B. Thompson.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 60.
86 Cf. GADAM ER, Hans-Georg. G a da m er in Con versation . Tradução de Richard Palmer. New
Haven/London: Yale University Press, 2001. p. 41.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 8 9

A crítica de Gadamer, que pode certamente ser trazida para o campo da


hermenêutica jurídica, deve, todavia, ser bem apreendida, de modo a se evitar
uma má-compreensão de suas ideias.
De fato, os aportes gadamerianos não são contra a existência dos méto­
dos. Como o próprio Gadamer afirma em entrevista concedida a Carsten Dutt,
“é claro que há métodos, e certamente deve-se aprendê-los e aplicá-los”87.
O foco da crítica do antigo professor de Heidelberg, portanto, não é a
existência de métodos, mas sim a crença na objetivação da verdade por inter­
médio de seu uso, assim como a exterioridade metodológica do intérprete em
relação ao objeto interpretado.
A crítica de Gadamer, portanto, tem por fim uma mudança da função do
método nas ciências humanas. Seu objeto consiste na ideia de que a legitimação
nas ciências do espírito se dá por intermédio da participação dialética do
sujeito no processo hermenêutico, e não pela aplicação de qualquer método.
Ao responder questão acerca da crítica metodológica contida em sua
obra, o próprio Gadamer responde que o que buscou “demonstrar é que o
conceito de método não era caminho apropriado para se atingir legitimidade
no campo das ciências humanas e sociais”88. Conforme conclui “essa é a razão
pela qual sugeri que o ideal de conhecimento objetivo, que domina nossos
conceitos de conhecimento, ciência e verdade, precisa ser superado pelo ideal
de compartilhar algo, de participação”89.
A hermenêutica filosófica gadameriana é mesmo incompatível com a
ideia de que se pode ter acesso à verdade através de um método aplicável
pelo intérprete.
Com efeito, a teoria de Gadamer funda-se na concepção de que o ho­
mem tem acesso ao mundo pela linguagem, a qual deve ser interpretada (com­
preendida) pelo ser-aí (Dasein), sendo assim pautada por sua tradição e suas
pré-compreensões.
Ora, se a interpretação se desenvolve no âmbito do horizonte do intér­
prete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de um méto­
do exterior ao mesmo. Como destaca Maria Margarida Lacombe Camargo,

87 Gadamer in Conversation, 2001, p. 41.


88 Idem, p. 40.
89 Idem.
1 9 0 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H er m e n êu t ic a

“Gadamer defende a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir


métodos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da
própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde
mais especificamente à compreensão”90.
Parece-nos evidente, à primeira vista, que os aportes teóricos de Hans-Georg
Gadamer abalam a noção tradicional de método jurídico, ordinariamente enten­
dido como instrumento à disposição do intérprete para se alcançar a verdade con­
tida no texto legal.
Castanheira Neves dá-nos clara visão acerca do formalismo metodológi­
co que por longo período dominou o cenário jurídico, o qual partia de uma
deificação do ato legislativo que somente poderia ser alcançada mediante a
neutralização do intérprete pela supervalorização do método jurídico91.
Esse pensamento metodológico formalista, nas palavras de François Gény,
busca “dar alcance ao pensamento do legislador contido nos textos. Sempre
que se compreenda e interprete bem a lei, subsumirá quantas soluções jurídi­
cas sejam necessárias”92.
Todavia, tendo por base as inflexões de Gadamer, tem-se que a relação
sujeito-objeto não se dá por intermédio do método, mas sim dentro do
próprio ser-aí, de modo que o objeto não é revelado pelo método, mas
compreendido pelo ser.
Resta perguntar, então, qual o papel dos chamados métodos de interpre­
tação jurídica?
Os ditos métodos jurídicos (elementos ou critérios de interpretação) nada
mais são do que uma referência aos diversos aspectos envolvidos na compreen­
são dos textos legislativos e dos fatos jurídicos93.
Com efeito, tais métodos (gramatical, sistemático, teleológico, histórico,
axiológico, etc.) lembram apenas os diversos aspectos envolvidos no fenômeno

90 CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. H erm enêutica Jurídica e Argumentação-, Uma Contri­
buição ao Estudo do Direito, 2001, p. 32.
91 Cf. NEVES, A. Castanheira. M etodologia Jurídica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra
Editora, 1993. p. 28.
92 GÉNY, François. M é to d o d e Interpretación y Fuentes em D erech o Privado Positivo. Madrid:
Editorial Réus, 1925. p. 26.
93 Cf. MÜLLER, Friedrich. M étod os de Trabalho do D ireito Constitucional. 3a ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005. p. 27-30.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 9 1

jurídico, não garantindo qualquer certeza ou correção ao resultado da inter­


pretação em um caso particular94.
Seguindo as observações acima e tendo por fundamento as críticas de
Gadamer à objetivação metodológica como instrumento à descoberta da ver­
dade no âmbito das ciências humanas, é de se concluir que a crença nos méto­
dos jurídicos como meios para o alcance da correção no campo da hermenêutica
jurídica oferece algo que não pode alcançar.
Com efeito, é de se concordar com Eros Grau quando afirma que “a
reflexão hermenêutica repudia a metodologia tradicional da interpretação e
coloca sob acesas críticas a sistemática escolástica dos métodos, incapaz de
responder à questão de se saber por que um determinado método deve ser, em
determinado caso, escolhido”95.
Pode-se concluir, portanto, que a correção das ciências humanas não
pode ser objetivamente alcançada pela aplicação de métodos, o que implica
em uma revisão da própria noção de hermenêutica jurídica, como passamos
a examinar.
4 .2 . A HERMENÊUTICA GADAMERIANA E A HERMENÊUTICA JURÍDICA

E vetusto o entendimento de que a interpretação jurídica seria um mé­


todo para a descoberta da norma contida no texto ou, melhor dizendo, para a
descoberta do verdadeiro sentido do texto legal.
Não se reconhecia qualquer caráter criativo a tal atividade, pressupondo
que, por via da interpretação, seria possível a descoberta do único sentido já
contido no texto legal.
Exposição nessa linha encontra-se, por exemplo, em Carlos Maximiliano,
para quem “interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, ati­
tude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado;

94 Sobre o tema, ver: STREC K, Lenio Luiz. O Efeito Vinculante das Súmulas e o Mito da
Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica. In: Crítica à D og m á tica : Dos Bancos Acadêmicos à
Prática dos Tribun ais. Porto Alegre: Instituto de Herm enêutica Ju ríd ica, 20 05 . p. 92;
ST R EC K , Lenio Lu iz. A herm enêutica filo só fica e as possibilidades de superação do
positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: STRECK, Lenio Luiz; RO CH A , Leonel Severo
(org.). C o n stituição , Sistem as S o cia is e H erm en êu tica . Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005. p. 167.
95 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e D iscurso so bre a Interpretação/Aplicação d o D ireito. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 90 e 91.
1 9 2 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou


norma, tudo o que na mesma se contém”96.
Embora tal concepção acerca da interpretação tenha sido abandonada há
muito, até mesmo por autores positivistas como Kelsen e Hart, a mesma ainda
é sustentada aqui e alhures.
Tal doutrina encontra-se, portanto, em cheque, podendo tal fato ser ex­
plicado a partir da hermenêutica filosófica gadameriana.
Com efeito, um primeiro fundamento para a crise do conceito tradicio­
nal de interpretação jurídica o temos nas próprias críticas formuladas à obje­
tividade metodológica nas ciências humanas.
Partindo-se da premissa de que não há um método que possa ser aplica­
do pelo sujeito a um objeto com vistas a se alcançar a verdade nas ciências
humanas, a ideia de que a interpretação de um texto presta-se ao alcance de
tal verdade mostra-se inviável.
Além da crítica à objetividade metodológica, também o reconhe­
cimento de que toda tarefa hermenêutica encontra-se influenciada pela
pré-com preensão do intérprete tam bém abala os alicerces de uma
concepção estéril da interpretação jurídica.
A questão dos pré-conceitos e de sua influência no processo hermenêu­
tico encontra-se vinculada à ideia de tradição ou, em outras palavras, à inser­
ção do sujeito em uma determinada tradição, a qual pauta e condiciona sua
forma de compreender o mundo97. Como destaca Gadamer:

96 MAXIMILIANO, Carlos. Herm enêutica e A p licação do Direito. 18a ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999. p. 9. A ideia de que a interpretação consiste em uma atividade voltada para a descoberta
do "verdadeiro" sentido de um texto legal encontra-se presente nos trabalhos de estudiosos da
teoria geral do direito e nos compêndios gerais dos diversos "ramos" jurídicos, como em:
MÁYNEZ, Eduardo Garcia. Introducción ai Estúdio d e i D erech o , 2002, p. 327; COIN G, Helmut.
Elem entos Fundam entais da Filosofia d o Direito, 2002, p. 326; GUSM ÃO, Paulo Dourado de.
Introdução ao Estudo do Direito. 26a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 219; DINIZ, Maria
Helena, Com pêndio d e Introdução à Ciência do D ireito, 1993, p. 381; LOPES, Miguel Maria de
Serpa. Curso de D ireito Civil. 7a ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. I. p. 114; RODRIGUES,
Silvio. Direito Civil. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 1989. v. I. p. 24; ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema
de D ireito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 157; BEVILAQUA, Clovis. Teoria G eral do
D ireito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 45; JESUS, Damásio E. de. D ireito Penal. 19a
ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. I. p. 27; MIRABETE, Julio Fabrini. M anual de Direito Penal. São
Paulo: Atlas, 1998. v. I. p. 51; DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Cons­
titucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1995. p. 83.
97 Para Maria Margarida Lacombe Camargo, "Gadamer legitima a pré-compreensão na tradição
como processo histórico que o intérprete experimenta. A autoridade da tradição, no entanto,
não tira a liberdade do intérprete, uma vez que passe a ser racionalmente conhecida, pois, a
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 9 3

[...] encontramo-nos sempre inseridos na tradição, e essa não é uma


inserção objetiva, como se o que a tradição nos diz pudesse ser pensado
como estranho ou alheio; trata-se sempre de algo próprio, modelo e
intimidação, um reconhecer a si mesmos no qual nosso juízo histórico
posterior não verá tanto um conhecimento, mas uma transformação
espontânea e imperceptível da tradição.98
Segundo Gadamer, pré-conceito “quer dizer um juízo que se forma an­
tes do exame definitivo de todos os momentos segundo a coisa em questão”99.
Ora, o experimentar o mundo dos seres humanos lhes proporciona um
conjunto de juízos prévios que condicionam o seu agir hermenêutico em rela­
ção a tudo quanto os cerca, de modo que nenhuma experiência sua será plena­
mente objetiva100.
Nessa linha de entendimento, na medida em que o ser-no-mundo não
consegue interagir com a realidade ignorando seus pré-conceitos, dados pela
tradição, caem por terra os ideais de objetivismo e neutralidade do intérprete,
apregoados pelo formalismo jurídico.
É de se salientar, contudo, que a crítica ao objetivismo e o reconheci­
mento inevitável dos pré-conceitos no processo hermenêutico não transfor­
mam a interpretação em um fenômeno subjetivo. Nas palavras de Gadamer, “a
compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade e mais
como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição”101.
De fato, em primeiro lugar deve-se ter em conta que os valores trazidos
pela tradição não são experimentados com exclusividade pelo sujeito-intér-
prete, mas por toda a coletividade, a qual compartilha determinada tradição.

partir do momento que formamos uma consciência metódica da compreensão, somos capazes
de controlá-la. Mas a compreensão não consiste em uma busca do passado feita por uma razão
independente, como procedia o romantismo histórico, considera Gadamer. Consiste, outrossim,
na determinação universal do estar aí, isto é, na futuridade do estar aí, feita por uma razão
comprometida historicamente. O estar a í faz parte de um processo histórico enquanto experiência
humana da qual participamos" (Herm enêutica Jurídica e Argum entação: Uma Contribuição ao
Estudo do Direito, 2001, p. 57 e 58).
98 Verdade e M étod o I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 374.
99 /c/em, p. 360.
100 Ver: BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência
jurídica. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. H erm enêutica Plural.
São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 184 e 185; HESSE, Konrad. Elem entos d e D ireito Consti­
tu cion al da R ep ú b lica Federal da Alem anha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 61 e 62.
101 O p . cit., p. 385.
1 9 4 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

Por outro lado, o fato de que somos guiados por pré-conceitos, dados
pela tradição, não significa que nunca tenhamos qualquer controle sobre os
mesmos ou, melhor dizendo, que não devamos questioná-los. Assim, como
observa Gadamer:
[...] Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão
ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do
texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível - até que
este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreen­
são. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar dis­
posto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciên­
cia formada hermenêuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se
receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressu­
põe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um
anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriação
das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se
conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa
apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua ver­
dade com as opiniões prévias pessoais.102
Ponto dos mais importantes presentes na passagem acima consiste, portan­
to, na necessidade de o intérprete não se fechar em suas opiniões prévias,
abrindo-se para a alteridade do texto. Nesse ponto, parte Gadamer da dialé­
tica platônica para sustentar a primazia hermenêutica da pergunta. Citando
uma vez mais suas lições:
Nós perguntamos pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a
consciência hermenêutica, e é bom que não esqueçamos a importância
do conceito ò&pergunta na análise da situação hermenêutica. Ê claro
que toda experiência pressupõe a estrutura da pergunta. Não se fazem
experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que
algo é assim, e não como acreditávamos inicialmente, pressupõe evi­
dentemente a passagem pela pergunta para saber se a coisa é assim ou
assado. Do ponto de vista lógico, a abertura que está na essência da
experiência é essa abertura do “assim ou assado”. Ela tem a estrutura
da pergunta. E assim como a negatividade dialética da experiência
consumada, onde temos plena consciência de nossa finitude e limita­

1 02 Verdade e M étodo I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 358.


S e r g io A n d r é R o c h a - 1 9 5

ção, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é


inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no
saber que não sabe. E a famosa docta ignorantia socrática que abre a
verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da
aporia. É preciso então que nos aprofundemos na essência dapergunta,
se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização
da experiência hermenêutica.103
Dessa forma, o intérprete deve ter consciência de seus pré-conceitos (o
que nem sempre é possível) para então iniciar uma relação dialética com o
texto, abrindo-se para o mesmo mediante o procedimento de perguntas e
respostas104. Forma-se então o círculo da compreensão.
Com efeito, as opiniões prévias do intérprete permitem que ele interpele
o texto, abrindo-se para o mesmo. Com a compreensão as opiniões prévias são
substituídas por novas opiniões e assim por diante, em um constante “projetar
de novo”10S. Essa questão foi bem posta por Josef Bleicher, que ao analisar a
hermenêutica filosófica gadameriana assim se manifesta:
A principal tarefa do intérprete é descobrir a pergunta a que o texto
vem dar resposta; compreender um texto é compreender a pergunta.
Simultaneamente, um texto só se torna um objeto da interpretação se
confrontar o intérprete com uma pergunta. Nesta lógica de pergunta e

103 Verdade e M étod o I: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 473.


1 04 Cf. GADAMER, Hans-Georg. La hermenêutica y la escuela de Dilthey. In: El Giro H erm enêutico.
Tradução de Arturo Parada. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. p. 146.
1 05 Segundo Gadamer: "[...] o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio
pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a
lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unicidade de sentido; que a
interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados.
Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreen­
der e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões
prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do
compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses
que só devem ser confirmadas 'nas coisas elas mesmas'. Aqui não há outra 'objetividade' além
da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai
diretamente ao 'texto', a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à
prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade,
o que significa, sua origem e sua validade" (GADAM ER, Hans-Georg. Sobre o Círculo da
Compreensão. In: Verdade e M étod o II. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 75). Esse aspecto
circular da compreensão é ressaltado por Gregorio Robles: "[...] a interpretação 'projeta', já que
em todo momento começa com um 'projeto de compreensão' (pré-compreensão) que irá verificar-
se e contrastar-se com a experiência. Este contraste mostrará a insuficiência do projeto emitido e
a necessidade de substituí-lo por outro. Neste ir e vir da compreensão, para utilizar a expressão
de Engisch, radica o chamado círculo hermenêutico" (ROBLES, Gregorio. Introducción a la Teoria
de i D erecho . 9a ed. Barcelona: Debate, 2003. p, 192).
1 9 6 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser atualizado na


compreensão, que representa uma possibilidade histórica. Conseqüen­
temente, o horizonte do sentido é limitado e a abertura, tanto do texto
como do intérprete, constitui um elemento estrutural da fusão dos hori­
zontes. Nesta concepção dialógica, os conceitos usados pelo Outro, seja
um texto, seja um tu, ganham nova força, por se inserirem na compreen­
são do intérprete. Ao entendermos a pergunta colocada pelo texto, fize­
mos já perguntas a nós próprios e, por conseguinte, abrimo-nos a novas
possibilidades de sentido.106
Ponto importante da hermenêutica filosófica de Gadamer reside no re­
conhecimento de que o homem somente recebe o mundo por intermédio da
linguagem107. Em suas palavras, a linguagem é “o centro do ser humano, quando
considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivên­
cia humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispen­
sável à vida humana como o ar que respiramos”108.
Ora, se experimentamos o mundo por intermédio da linguagem, deve-se
concluir que o homem é um ser hermenêutico, ou seja, um ser que tem
acesso ao mundo através da interpretação, de forma que é possível afirmar que
estamos a todo tempo interpretando109. É assim que, nas palavras de Gadamer,
“todo compreender é interpretar e todo interpretar se desenvolve no medium
de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo,
a própria linguagem do intérprete”110.
O reconhecimento de que recebemos o mundo pela linguagem e que o
tomamos por meio da interpretação torna inviável a ideia de uniformidade in-

1 06 BLEICHER, Josef. H erm enêutica Contem porânea. Tradução de Maria Georgina Segurado. Lis­
boa: Edições 70, [s/d], p. 161.
107 Cf. PALMER, Richard. H erm eneutics, 1969, p. 205.
108 GADAM ER, Hans-Georg. Homem e Linguagem, in: Verdade e M é to d o II. 2a ed. Petrópolis:
Vozes, 2004. p. 182. Ver, também: GADAMER, Hans-Georg. La Diversidade de Ias Lenguas y
Ia Comprensión dei Mundo. In: A rte y Verdad d e Ia Palabra. Tradução de José Francisco Zuniga
Garcia. Barcelona: Paidós, 1998. p. 119.
109 Como leciona Lenio Streck: "Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que
somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo.
Esse poder-dizer é lingüisticamente mediato, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo
é limitado e capitaneado pela linguagem. Como diz Heidegger, todo o processo de compreensão
do ser é limitado por uma história do ser que limita a compreensão. Gadamer, assim, eleva a
linguagem ao mais alto patamar, em uma ontologia hermenêutica, entendendo, a partir disto, que é
a linguagem que determina a com preensão e o próprio objeto hermenêutico. O existir já é um ato de
compreender e um interpretar" (Hermenêutica Jurídica (em) Crise, 2003, p. 200).
110 Verdade e M étod o /: Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 503.
S e r g io A n d r é R o c h a - 1 9 7

terpretativa, já que cada intérprete participa do processo hermenêutico munido


de seus pré-conceitos, de modo que sua abertura ao texto se fará a partir de um
determinado referencial de razões prévias, as quais pautarão às perguntas apre­
sentadas e a formação do círculo da compreensão. Torna-se inevitável, então,
reconhecer o caráter criativo do fenômeno hermenêutico111.
Em resumo, pode-se afirmar que a hermenêutica é o próprio modo de o
homem se relacionar com o mundo, de se apropriar do mundo, e não um
instrumento de que se pode valer para interpretar certos textos ou fatos, mediante
a aplicação de um método. Nas palavras de Richard Palmer, na conclusão de sua
análise sobre a teoria de Gadamer, “as chaves para compreensão não são
manipulação e controle, mas participação e abertura, não é conhecimento, mas
experiência, não é metodologia, mas dialética. Para ele [Gadamer], o propósito
da hermenêutica não é estabelecer regras para uma compreensão objetivamente
válida, mas conceber compreensão em si tão abrangente quanto possível”112.
4 .3 . I n terp reta ç ã o e a p l ic a ç ã o

Uma das conseqüências do objetivismo metodológico antes descrito é a


separação dos momentos de interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Com efeito, sob os influxos dessa linha de pensamento tem-se uma separação
bem definida entre o intérprete, o objeto da interpretação e a questão que se
pretende solucionar.
Nesse cenário, o processo hermenêutico se daria em duas etapas distin­
tas: em primeiro lugar, o intérprete desvelaria o sentido do texto legal para,
então, aplicar a norma jurídica descoberta a uma determinada situação fática.
É nesse sentido que se distinguem os momentos de interpretação e aplicação
das normas jurídicas113.

111 Ver: STRECK, Lenio Luiz. H erm enêutica Jurídica (em ) Crise, 2003, p. 203.
112 PALMER, Richard. H erm en eutics, 1969, p. 215.
11 3 Essa distinção entre interpretação e aplicação ainda encontra-se presente na doutrina. Nesse
sentido, ver: MAXIMILIANO, Carlos. Herm enêutica e A plicação do Direito, 1999, p. 6-8; FRANÇA,
Limongi. H erm enêutica Jurídica. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 35 e 36; PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Instituições d e Direito Civil. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. I. p. 134;
FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4a ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987.
p. 185; ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à Ciência do Direito, 2005, p. 591; MÁYNEZ,
Eduardo Garcia. Introducción al Estúdio dei D erecho, 2002, p. 319; COING, Helmut, Elementos
Fundamentais da Filosofia do Direito, 2002, p. 340 e 341; DINIZ, Maria Helena. Com pêndio de
Introdução à Ciência do Direito, 1993, p. 374; LOPES, Miguel Maria de Serpa, 1989, p. 111;
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 1989, p. 24; PECES-BARBA, Gregório; FERNÁNDEZ, Eusébio;
1 9 8 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Gadamer irá alocar todos os “momentos” da relação intérprete-objeto no


âmbito da hermenêutica. Assim, a subtilitas intelligendi (o poder de compreen­
der), a subtilitas explicandi (o poder de interpretar) e a subtilitas applicandi (o
poder de aplicar) estão todas contidas no fenômeno hermenêutico114.
Nas palavras do mestre alemão, “‘aplicar’ não é ajustar uma generalidade
já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situa­
ção particular. Diante de um texto, por exemplo, o intérprete não procura
aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário,
pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa”115.
A inclusão da aplicação no processo hermenêutico é uma conseqüência
lógica do abandono do objetivismo metodológico, já que a situação de fato
que se põe ao intérprete será interpretada juntamente com o texto objeto da
interpretação, implicando-se mutuamente e inserindo-se no âmbito da tradi­
ção (pré-compreensão) do intérprete.
Como salienta Josef Bleicher, “a aplicação’, como articulação entre o pas­
sado e o presente, surge como terceiro momento da unidade da compreensão,
da interpretação e da aplicação, que constituem o esforço hermenêutico: a
compreensão adequada de um texto, que corresponde às suas necessidades e
mensagem, muda com a situação concreta a partir da qual tem lugar; é já
sempre uma aplicação”116.
Esse aspecto da teoria de Hans-Georg Gadamer tem particular importân­
cia no âmbito jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre
norma e fato, não havendo que se falar em uma interpretação isolada dos textos
normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso concreto117.
Como fala-nos Lenio Streck, aprendemos com Gadamer “que hermenêutica

ASÍS, Rafael. C u rso d e Teoria d e i D e re c h o . 2 a ed. M adrid: M arcial Pons, 2000. p. 232;
AM ATUCCI, Andrea. La Interpretación de Ia Ley Tributaria. In: AM ATUCCI, Andrea (org.).
Tratado d e D e re c h o Tributário. Bogotá: Themis, 2001. p. 579-580; CARVALHO , Paulo de
Barros. Curso de D ireito Tributário. 15a ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 88-90.
114 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Cadam er in Conversation, 2001, p. 37; GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e M étod o i. Traços de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 407.
115 GADAM ER, Hans-Georg. O p rob lem a da c o n sciê n c ia h istó rica , 1998, p. 57. Ver também:
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica. In: Verdade e M é ­
todo II. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 131.
116 BLEICHER, Josef. H erm enêutica Contem porânea, [s/d], p. 170.
117 Nas palavras de Eros Grau: "Interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O
intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a
interpretação do direito consiste em concreta r a lei em cada caso , isto é, na sua aplicação.
S e rg io A n d ré R o c h a - 199

não é método, é filosofia”. E prossegue: “Ora, se interpretar é aplicar, não há um


pensamento teórico que ‘flutua’ sobre os objetos do mundo, apto a dar sentido
ao ‘mundo sensível’. O sentido é algo que se dá; ele acontece”118.

5. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o assombro quanto à impo­


tência do direito para evitar a solução final posta em curso pelo nacional-
socialismo alemão, voltaram-se os teóricos jurídicos para o desenvolvimento
de uma teoria que superasse o positivismo jurídico avalorativo, exatamente
mediante a busca de justificação da validade das normas em valores superio­
res ao direito positivo.
Nas palavras de Karl Larenz “o Direito é uma parte da cultura; a cultura
é uma realidade referida a valores; o Direito é, portanto, uma realidade deter­
minada, em sua peculiaridade, pela referência ao valor especificamente jurídi­
co, a justiça”119.
Representante dessa linha de pensamento foi o jusfilósofo alemão Gustav
Radbruch (1878-1949), para quem “o direito só pode ser compreendido dentro
da atitude que refere as realidades aos valores {wertbeziehend). O direito é um
fato ou fenômeno cultural, isto é, um fato referido a valores”120.
Em seus “Cinco Minutos de Filosofia , Radbruch sustenta que a validade
do direito positivo não pode ser aferida tendo em vista apenas parâmetros
formais. Com efeito, para o jurista alemão “há também princípios fundamen­
tais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico
positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser
privada de validade”121.

Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos aqui diante de dois
momentos distintos, porém frente a uma só operação. Interpretação e aplicação consubstanciam
um processo unitário, se superpõem" (Ensaio e D iscurso so bre a Interpretação/Aplicação do
D ireito, 2002, p. 76). Ver também: STRECK, Lenio Luiz. O Efeito Vinculante das Súmulas e o
M ito da Efetividade: Uma Crítica Hermenêutica, 2005, p. 162; TORRES, Ricardo Lobo. Normas
d e Interpretação e Integração d o D ireito, 2006, p. 61.
118 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e H erm enêutica: Uma Nova Crítica do Direito. 2a
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 32.
119 LARENZ, Karl. La Filosofia Contem porânea de i D erech o y d e i Estado. Tradução de E. Galán
Gutiérrez; A. Truyol Serra. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1942. p. 98.
120 RADBRUCH, Gustav. Filosofia d o Direito, 1997, p. 45.
121 Idem , p. 45.
2 0 0 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n ê u t ic a

Uma teoria jurídica voltada à realização de valores implica uma reforma


na própria forma de legislar, uma vez que se faz necessária uma maior abertu­
ra dos textos legais com a delegação de maior atribuição ao julgador para
ponderar os valores em jogo em cada caso concreto.
Torna-se então cada vez mais comum a utilização nos textos legais de
conceitos indeterminados e tipos, os quais impõem uma mudança na pró­
pria forma mediante a qual os operadores jurídicos devem examinar o fenô­
meno hermenêutico.
A jurisprudência dos valores, na medida em que impõe uma interpretação
jurídica que não se limita ao direito positivo, impõe a ponderação de valores
extrajurídicos. Como destaca Karl Larenz, “a passagem a uma ‘jurisprudência
de valoração’ só cobra, porém, o seu pleno sentido quando conexionada na
maior parte dos autores com o reconhecimento de valores ou critérios de
valoração ‘supralegais’ ou ‘pré-positivos’ que subjazem às normas legais e para
cuja interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob
determinadas condições”122. O sistema jurídico seria então, segundo Canaris,
uma ordenação axiológica123.
Questão relevante no campo da jurisprudência dos valores consiste na
fundamentação da decisão judicial. De fato, considerando que, como dito, as
valorações partem de aspectos não auferíveis pela lógica subsuntiva, impõe-se
então o desenvolvimento de novas fórmulas de justificação das decisões judi­
ciais, como a tópica e a teoria da argumentação.

6. O p ó s -p o s it iv is m o

O termo pós-positivismo não designa uma corrente uniforme de pensa­


mento, referindo-se às correntes jurídicas contemporâneas decorrentes dessa
reaproximação entre direito e valores124.

122 LARENZ, Karl, M etodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 167.


123 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 2a
ed. Tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 66-67.
124 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de D ireito Constitucional Financeiro e Tributário : Valores e
Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 57; CALSAMIGLIA,
Albert. Postpositivismo. D oxa. Cuadernos de Filosofia de i D erech o , Alicante, n° 21, 1998, p.
209, CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Eficácia Constitucional: Uma Questão Hermenêutica.
In: BOUCALT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (coord.). Herm enêutica Plural. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 377.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 0 1

Um dos marcos desse pensamento voltado a valores é a teoria da justiça


de John Rawls (1921-2002).
A teoria da justiça de John Rawls, cujo refinamento teórico impõe redobrada
cautela ao se expor seus fundamentos de forma concisa é, em linhas gerais, uma
tentativa de se estabelecer critérios para uma justiça pública, relativos à estrutura
básica da sociedade12S, a qual somente pode ser aplicável a uma sociedade bem
ordenada126(com regras institucionalizadas democraticamente). Caracteriza-se
por ser uma teoria contratualista, determinando que os princípios fundamentais
de justiça devem ser pactuados, em uma posição original de igualdade, por
pessoas racionais e razoáveis, as quais, protegidas por um véu de ignorância,
estariam aptas a estabelecer tais princípios de forma equitativa127. Por seu turno,
tais pessoas tenderiam a estabelecer, na posição original, dois princípios distintos:
um que garantisse as liberdades fundamentais a todos e outro que previsse que as
desigualdades entre os homens somente seriam justas na medida em que
beneficiassem os menos favorecidos, e que as oportunidades sociais e econômicas
deveriam ser isonomicamente acessíveis128.
A teoria de Rawls é basicamente uma teoria de justiça distributiva, a
partir da qual se busca estabelecer mecanismos para distribuir os bens coleti­
vos de forma isonômica entre todos, de forma que todos devem ter iguais
oportunidades para atingir as posições socialmente vantajosas, redistribuin-
do-se pela coletividade as vantagens gozadas arbitrariamente por determina­
dos sujeitos (dons naturais e posições originárias de vantagem).
O ressurgimento das relações direito-moral-justiça, impulsionam,
portanto, a teoria jurídica do pós-positivismo, como apontam Luís Roberto
Barroso e Ana Paula de Barcellos129.
Nessa mesma linha de ideias, ressalta Maria Margarida Lacombe Camargo
que “o pós-positivismo, como movimento de reação ao modelo Kelseniano de
negação dos valores, abre-se a duas vertentes. Uma delas, que segue a linha de

125 RAWLS, John. A Theory o f Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 6 e 7.
126 RAWLS, John. A Theory o f Ju stice, 2001, p.397-405.
127 Idem , 102-160,
128 Idem , p. 53.
129 Cf. BARRO SO , Luís Roberto; BARCELLO S, Ana Paula de. O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís
Roberto (org.). A N ova Interp retaçã o C onstitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e
Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 336.
2 0 2 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

Dworkin e Alexy, busca recuperar a força normativa dos princípios de direito,


com todo seu potencial valorativo. A outra procura, nos fundamentos que
sustentam as decisões judiciais, sua força lógico-legitimante, como faz Cháím
Perelman, por exemplo”130.
Característica, portanto, do pós-positivismo é a valorização dos princípios
jurídicos, principalmente a partir dos aportes de Ronald Dworkin131(1931- ) e
Robert Alexy (1945- ) e suas teorias para a distinção entre princípios e normas.
Para Ronald Dworkin, princípio é “um padrão que deve ser observado,
não porque irá alcançar ou assegurar uma situação econômica, política, ou
social supostamente desejada, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüi­
dade, ou alguma outra dimensão de moralidade”132.
Já segundo Robert Alexy, “o ponto decisivo para a distinção entre regras
e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realiza­
do na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais exis­
tentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que
a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais
mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determi­
nado pelos princípios e regras opostas”133.
Partindo dessas e outras ideias, Humberto Ávila forjou sua definição
de princípios jurídicos, os quais seriam “normas imediatamente finalísticas,
primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de
parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre
o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havi­
da como necessária à sua promoção”134.

130 CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. H erm enêutica ju rídica e Argum entação: Uma Contri­
buição ao Estudo do Direito, 2001, p. 141.
131 Interessante a observação de Albert Calsamiglia, quando aponta que a obra de Ronald Dworkin
seria o primeiro grande ataque à Escola Analítica de Austin, depurada no positivismo light de
Herbert Hart (CALSAM IGLIA, Albert. ^Por que es Importante Dworkin? Doxa. Cuadernos de
Filosofia d e i D erech o , Alicante, n° 2, 1985, p. 159-161).
132 DW ORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1999. p. 22.
133 ALEXY, Robert. Teoria d e los D erech o s Fundam entales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 86.
134 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 70.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 0 3

Tendo os princípios jurídicos, positivados ou não, como diretrizes a se­


rem alcançadas pelo direito, busca-se superar as limitações do positivismo
jurídico, tão criticado por Dworkin135.
É pertinente aqui o comentário de Albert Calsamiglia, para quem o
“pós-positivismo põe atenção sobre a pergunta que se deve fazer ante a um
caso difícil. A resposta do positivismo era acudir ao legislador intersticial. Mas
quando o raciocínio judicial se efetua fora do domínio do direito encontra-
mo-nos em terra incógnita. Não deixa de ser curioso que quando mais neces­
sitamos orientação, a teoria positivista emudece”136.
Nada obstante, não se pode ter a falsa ideia de que o próprio positivismo
jurídico não pode lidar com a revolução principiológica.
Nesse sentido é a lição de Neil MacCormick, que vem trabalhando com
os princípios jurídicos dentro de uma perspectiva positivista.
Para MacCormick, “os princípios de um sistema jurídico são as normas
gerais conceitualizadas por meio das quais funcionários racionalizam as normas
que pertencem ao sistema em virtude de critérios observados internamente”137.
Segundo o professor catedrático da Universidade de Edimburgo, “o prin­
cípio estabelece o limite dentro do qual são legítimas decisões judiciais plena­
mente justificadas por argumentos conseqüencialistas. Sua existência torna
possível que um juiz chegue a uma decisão que, de outro modo, deveria caber
à legislatura”138.
Todavia, conforme mencionado anteriormente, a reaproximação entre
direito e os valores, com a superação da lógica subsuntiva, traz problemas de
justificação e legitimação da interpretação/aplicação do direito pelos tribu­
nais, que necessitam demonstrar as razões e motivos de suas valorações. Sobre
a questão podemos destacar como contribuições importantes para a nova for­
ma de compreensão do direito tanto a tópica, de Theodor Viehweg139, quan­
do a teoria da argumentação jurídica, as quais serão examinadas a seguir.

135 DW ORKIN, Ronald. Law's Em pire. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
136 CALSAM IGLIA, Albert. Postpositivism o, 1998, p. 212.
1 37 MacCORMICK, Neil. Argum entação /urídica e Teoria do Direito. Tradução de Waldéa Barcellos.
São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 201.
138 MacCORMICK, Neil. Argum entação lurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 209.
139 Conforme salienta Paulo Bonavides, "a tópica tem que ser com preendida portanto no
quadro das conseqüências advindas da reação ao positivismo jurídico clássico e no clim a de
2 0 4 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H er m e n êu t ic a

6 . 1 . O PENSAMENTO POR PROBLEMAS: A TÓPICA DE


T h e o d o r V ie h w e g

O pensamento tópico, que remonta a Cícero e Aristóteles, ressurgiu da


década de 50 como uma alternativa ao formalismo jurídico e o raciocínio
lógico-dedutivo, encontrando seu maior expoente na figura de Theodor
Viehweg (1907-1988)140.
Posta por terra a crença na possibilidade de se extrair comandos norma­
tivos verdadeiros e desvinculados dos fatos em causa por intermédio da lógica
dedutiva, com o ressurgimento dos valores e dos princípios jurídicos, torna-se
necessária a discussão de uma forma de pensar o direito que dê conta não
apenas do texto normativo, mas de todos os elementos que influenciam a
decisão do órgão de aplicação do direito. Esse é, exatamente, o papel da tópica
jurídica, a qual é muito bem descrita por Antonio Manuel Hespanha:
A tópica é, como já se disse, o nome dado pela antiga teoria do discurso
à técnica de encontrar soluções no domínio dos saberes problemáticos,
ou seja, dos saberes em que não existem certezas evidentes, como o
direito, a moral, etc. Nestes casos, a legitimação da solução encontrada
não decorre tanto da validade das premissas em que esta se baseia
como no consenso que suscitou no auditório. Aplicada ao direito, esta
idéia vem a colocar o juiz (ou o jurista) na primeira linha da atividade de
achamento ou de declaração do direito, o qual, para decidir um caso
concreto, lança mão de argumentos (tópicos) disponíveis (princípios
doutrinais, precedentes, disposições legislativas), no sentido de ganhar
o assentimento (das partes, mas também do público em geral) para a
solução. Neste contexto, alei é apenas um dos argumentos, cuja eficácia
argumentativa dependerá tanto da sua consonância com o sentido con­
creto de justiça vigente no auditório como do prestígio de que a forma
“lei” (e, em geral, a entidade “Estado”) aí goze. Para além de constituir
uma crítica ao legalismo, a tópica constitui também uma crítica ao

inteira descrença quanto a uma reestruturação jusnaturalista, como a que se intentou na


Alemanha no fim da década de 40, após as feridas abertas na consciência do Ocidente pela
tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial" (BONAVIDES, Raulo. Curso d e D ireito Constitu­
cio n a l. 13a ed. São Paulo: M alheiros, 2003. p. 497). No mesmo sentido: BUSTAM ANTE,
Thomas da Rosa de. Tópica e argumentação jurídica. Revista de Inform ação Legislativa, Brasília,
n° 163, jul.-set. 2004, p. 154-155.
140 Ver: V IEH W EG , Theodor. Tó p ica e Ju risp ru d ê n cia . Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 0 5

normativismo, ou seja, à idéia de que a norma geral e abstrata está no


princípio de um processo de subsunção que conduziria ao achamento
do direito. Pelo contrário, a tópica defende que é o caso, com o seu
caráter concreto e situado, que sugere os argumentos ou pontos de vista
relevantes, bem como que os permite hierarquizar.141
Como pontua José de Oliveira Ascenção a tópica procura chegar a “um
repertório de pontos de vista que darão a solução de casos concretos”142. Para
Cháím Perelman “a importância dos lugares específicos do direito, isto é, dos
tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permitem afastar soluções
não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida em que estas negligenciam as
considerações que os lugares permitem sintetizar e integrar em uma visão
global do direito como ars aequi et bom'1Ai. Segundo Viehweg:
A função dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a
uma discussão de problemas. Segue-se daí que sua importância tem
que ser muito especial naqueles círculos de problema em cuja natureza
está não perder nunca o seu caráter problemático. Quando se produ­
zem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar
novos dados para tentar resolver os problemas. Os topoi, que intervém
com caráter auxiliar, recebem por sua vez sentido a partir do problema.
A ordenação com respeito ao problema é sempre essencial para eles. À
vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados,
conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável.
Devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de
orientação e como fios condutores do pensamento.144
Tal repertório de pontos de vista, de topoi, é sempre provisório e cambiante
em função do problema. Como destaca Viehweg, “a tópica não pode ser enten­
dida se não se admite a sugerida inclusão em uma ordem que está sempre por
ser determinada”145.

141 HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Ju ríd ica Europ éia: Síntese de um M ilênio, 2003, p.
3 3 8-339.
142 OLIVEIRA ASCENÇÃO, José de. Introdução à Ciência d o D ireito, 2005, p. 464.
143 PERELMAN, Chaím. Lógica ju rídica , 2000, p. 120.
144 VIEHW EG, Theodor. Tópica e ju rispru d ên cia , 1979, p. 38.
145 VIEHW EG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 35. Sobre anecessidade de abertura e
flexibilidade dos topoi, vale a pena destacar outra passagem de Viehweg, onde afirma que "os
topoi e os catálogos de topoi oferecem um auxílio muito apreciável. Porém, o domínio do
problema exige flexibilidade e capacidade de alargamento" (VIEH W EG, Theodor. Tópica e
Ju rispru dên cia, 1979, p. 41).
2 0 6 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

Portanto, pode-se caracterizar a tópica como uma forma de pensar em fun­


ção do problema. Nas palavras de Viehweg, “o sistema tópico está em permanente
movimento. Suas formulações respectivas indicam meramente os estágios pro­
gressivos da argumentação ao tratar de problemas particulares. O sistema pode
razoavelmente ser chamado um sistema aberto, já que sua discussão, quer dizer,
seu enfoque de um problema particular, está aberta a novos pontos de vista”146.
Para um melhor entendimento da tópica é importante a caracterização
do problema. Segundo Viehweg:
Para nosso fim, pode chamar-se problema - esta definição basta - toda
questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que re­
quer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o
qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há
que buscar uma resposta como solução. [...].147
Como bem notado por Paulo Roberto Soares de Mendonça, as soluções
dadas aos problemas podem ser agrupadas em catálogos de soluções, compondo
assim um sistema a partir do qual venham a ser solucionados os problemas no
futuro. O pensamento tópico funciona de forma inversa, questionando sempre
as premissas e extraindo novos pontos de vista a partir dos problemas148.
Nota-se, portanto, que, como salienta Thomas da Rosa de Bustàmante,
“o papel central da tópica é encontrar as premissas que serão utilizadas no
raciocínio .
A tópica abre o pensamento jurídico para além do texto normativo, o qual
figura como mais um tópico a ser levado em consideração, o tópico de partida,
mas, como adverte Juan Antonio Garcia Amado, “por sua generalidade, a rigidez
de sua forma e sua textura aberta, precisa ser concretizado mediante outros tópi­
cos que determinem seus sentidos possíveis e façam viável a discussão tendente a
obter o significado que melhor se adeqüe à realidade de cada caso a resolver”150.

146 VIEHW EG, Theodor. Algunas Consideraciones acerca dei Razonamiento Jurídico. In: Tópica y
Filosofia d e i D erech o . Tradução de Jorge M. Sena. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 127.
147 VIEHW EG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 34.
148 M ENDONÇA. Paulo Roberto Soares de. A Tópica e o Suprem o Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 100.
149 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Tópica e argum entação ju ríd ica , 2004, p. 159.
150 G A R C ÍA AM ADO , Juan Antonio. T ó p ica , D e re c h o y M é to d o ju ríd ic o , 1987, p. 174. Ver,
ainda: CRISTÓVAM , J osé Sérgio da Silva. C olisões entre P rincípios Constitucionais. Curitiba:
Juruá: 2006. p. 129.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 0 7

É de se assinalar, com Luiz Alberto Warat, que “a tópica não assegura


decisões certas e incontrovertíveis, mas dá soluções aceitáveis dentro do marco
da ideologia que adota. Admite a alterabilidade significativa da lei, que origi­
na a problemática interpretativa e decisória”151.
O próprio Viehweg alertava para o fato de que a tópica “não é um méto­
do, mas sim um estilo. Ela tem, como qualquer outro estilo, muito de arbítrio
amorfo e muito pouco de demonstração”1S2.
6 . 2 . A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

As teorias de argumentação encontram-se inseridas nesse contexto de


questionamento da lógica formal como forma de realização concreta do direi­
to, aproveitando da tópica a inserção dos fatos (do problema) no processo de
criação jurídica. Conforme salienta Maria Margarida Lacombe Camargo:
Procuramos também destacar a dimensão concreta própria do pensar
jurídico, orientado que é para o problema que se pretende resolver.
Coube a Chaim Perelman realizar a grande guinada na área da
metodologia jurídica, quando apontou para as dimensões retórica e
argumentativa que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-se
da prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surge e é orientado
pelas teses construídas sob os parâmetros do fato e da lei, num confron­
to de idéias que vêm legitimar cada decisão tomada dt per si. Ressalta­
mos, assim, algumas das contribuições mais significativas para a refle­
xão jurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógico-linear
para, em lugar desta, uma proposta mais voltada para a intersubjetividade
e para o desafio constante de lidar com situações que requerem respos­
tas convincentes e criativas.153
Uma das críticas voltadas contra a tópica jurídica consiste em não forne­
cer à mesma um método para a utilização dos diversos tópicos jurídicos, sendo
mais uma forma de pensar do que uma metodologia que possa substituir a
lógica formal. Como vimos, o próprio Viehweg negava à tópica o caráter de

151 WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito, 1994, p. 88.


152 VIEHW EG , Theodor. Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71.
153 CAM ARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma Contri­
buição ao Estudo do Direito, 2001, p. 262.
2 0 8 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

método jurídico1S4. As teorias de argumentação diferem da tópica por terem


por fim a apresentação de uma nova metodologia jurídica.
Essa é a posição de Manuel Atienza, que ao analisar a função prática da
argumentação jurídica afirma:
Por função prática ou técnica da argumentação jurídica, entendo basi­
camente que esta deve ser capaz de oferecer uma orientação útil nas
tarefas de produzir, interpretar e aplicar o Direito. Para que uma teo­
ria da argumentação jurídica possa cumprir essa função de caráter
instrumental (dirigida tanto aos práticos do Direito como aos
cultivadores da dogmática jurídica) ela terá de poder oferecer um
método que permita reconstruir o processo real da argumentação, além
de uma série de critérios para fazer um julgamento sobre a sua corre­
ção; como se acaba de indicar, essa é uma tarefa que, em considerável
medida, ainda está para ser cumprida.1SS
Entendo que a argumentação não pode ser vista como um método jurí­
dico a partir do qual seja possível atestar a correção das decisões jurídicas,
sendo, isso sim, uma forma de pensar o direito que leva à tomada de decisões
justificáveis, a qual é especialmente necessária nas situações em que o texto,
por si só, é vago e ambíguo156.
Nessa linha, Neil MacCormick sustenta que o dever judicial de fazer
justiça é o dever de proferir decisões que sejam fundamentadas em argumen­
tos satisfatórios157. O arbítrio judicial seria, portanto, “um arbítrio de proferir
a decisão que seja mais bem justificada”158.
Segundo Cháim Perelman, “motivar uma sentença é justificá-la, não é
fundamentá-la de um modo impessoal e, por assim dizer, demonstrativo. É
persuadir um auditório, que se deve conhecer, de que a decisão é conforme às
suas exigências”159.

154 VIEH W EG , Theodor. Tópica e Jurisprudência, 1979, p. 71.


155 ATIENZA, Manuel. A s Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, 2002, p. 333.
156 Conforme destaca Humberto Ávila, "[...] Uma teoria jurídica da argumentação não se confun­
de com uma teoria racional da argumentação, que opta, entre os argumentos que podem ser
utilizados, pelo mais racional, plausível ou sustentável. Uma teoria jurídica da argumentação
procura fundamentar no próprio ordenamento jurídico a escolha entre os argumentos" (ÁVILA,
Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 203).
157 MacCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 326.
158 Idem, p. 327.
159 PERELMAN, ChaTm. Ética e Direito. Tradução de Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 569-570.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 0 9

Já que busca a adesão dos destinatários da decisão à mesma, a argumen­


tação jurídica deve se dar no âmbito do diálogo, permitindo a participação
daqueles na formação desta. Sobre a adesão dos destinatários ao resultado da
interpretação salienta Perelman que “a interpretação da lei, para ser aplicada a
um caso específico, deve ser considerada uma hipótese, que só será adotada
definitivamente se a solução concreta em que redunda afigurar-se aceitável”160.
E no âmbito da argumentação que serão ponderados os bens, interesses e
valores em jogo, de modo que somente em cada caso é que o texto normativo
concretizar-se-á em norma jurídica individual e concreta.
Na medida em que a teoria do pós-positivismo tem trabalhado com a
teoria da argumentação e a justificação das decisões pelo juiz, verifica-se,
como ressalta Calsamiglia, a mudança do centro das atenções do Legislativo
para o Judiciário161.
Como mencionado, não há uma teoria da argumentação, mas teorias de
argumentação, podendo-se destacar, entre os autores que trabalham com a ar­
gumentação jurídica, Robert Alexy162, Klaus Günther163, Chaim Perelman164e
Stephen Toulmin165.

7 . S ín t e s e c o n c l u s iv a

Ao fim dessa análise da evolução histórica do pensamento jurídico a


partir dos formalismos do século XVIII, chega-se à conclusão de que a her­

160 PERELMAN, Cháím. Lógica Jurídica, 2000, p. 115. Em outra passagem, afirma Perelman que
"em nítida oposição aos métodos da lógica formal, vimos que toda argumentação deve partir
de teses que têm a adesão daqueles a que se quer persuadir ou convencer. Negligenciando esta
condição, o orador, aquele que apresenta uma argumentação, arrisca-se a cometer uma petição
de princípio" (PERELMAN, Chaím. Lógica Jurídica, 2000, p. 158). Ver: GARCÍA AM ADO, Juan
Antonio. Tópica, D erech o y M étodo Jurídico, 1987, p. 174; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva.
Colisões entre Princípios Constitucionais, 2006, p. 129; CRETTON, Ricardo A ziz. O s Princípios
da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua A plicação no D ireito Tributário. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001. p. 38.
161 Cf. CALSAM IGLIA, Albert. Postpositivism o, 1998, p. 215.
162 ALEXY, Robert. Teoria da A rg u m e n ta çã o : A Teoria do Discurso Racional como Teoria da
Justificação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.
163 G ÜN TH ER, Klaus. Teoria da Argum entação no D ireito e na M oral: Justificação e Aplicação.
Tradução de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.
164 PERELMAN, Chaím; O LBRECH TS-TYTECA, Lucie. Tratado da A rg u m en ta çã o . Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
165 TO U LM IN , Stephen. Os U sos d o A rg u m en to . Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
210 - E v o lu ç ã o H is t ó r ic a d a T e o ria H erm en êu tica

menêutica contemporânea se desprendeu das balizas impostas pela jurispru­


dência conceituai e as escolas analítica e exegética.
Hodiernamente, mesmo o ideário positivista como Herbert Hart acolhe
a influência dos valores sobre o direito, reconhecendo-se, portanto, o caráter
axiológico do processo hermenêutico.
Foi superado também o objetivismo metodológico de algumas correntes
formalistas, que pretendiam que o intérprete encontrasse no texto legal uma
única norma verdadeira que seria alcançada pela aplicação dos métodos inter-
pretativos, normalmente derivações dos elementos da interpretação apresen­
tados por Savigny.
Com efeito, a partir dos aportes de Hans-Georg Gadamer tornou-se
evidente que o processo hermenêutico se dá no intérprete, de forma que não
se pode segregar este do texto interpretado e do objeto sobre o qual se “aplica­
ria” o direito, como se as normas fossem uma massa de concreto trabalhada
pelo intérprete e aplicada sobre os tijolos na construção de uma decisão.
Essa nova colocação da questão tornou relevante a situação do intérprete,
passando a ter destaque o exame da sua pré-compreensão, a partir de sua
inserção em uma cultura que afeta sua vida hermenêutica166.
Por outro lado, a inevitável abertura da linguagem167, que torna letra mor­
ta o objetivismo metodológico antes pretendido, aliado à transferência do pro­
blema hermenêutico para o intérprete, o qual se encontra inserido numa
determinada cultura, que afeta a sua pré-compreensão, e à prevalência dos valo­
res, torna certamente possível que de um mesmo texto legal sejam extraídas
normas jurídicas igualmente válidas, mas de distinto conteúdo.

1 66 Segundo Wilson Engelmann: "A pré-compreensão é a responsável pela antecipação do sentido


das coisas que nos circundam no mundo. Entre a compreensão, como parte integrante do
processo de interpretação, e a pré-compreensão estabelece-se a configuração de um círculo.
Dito de outro modo, sempre existe um procedimento prévio já conhecido que se projeta sobre
a compreensão e vice-versa. [...]" (ENGELMANN, Wilson. Direito Natural, Ética e Herm enêutica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 221).
167 Ver: CARRIÓ, Genaro R. N otas so b re D e re c h o y Lenguage. 4a ed. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, 1994. p. 31; A LC H O U R R Ó N , Carlos R .; B U LY G IN , Eugênio. In tro d u c c ió n a Ia
M etodologia de Ias Ciências Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2002. p. 62-65;
HART, H. L. A ..T h e C oncept o f Law, 1997, p. 129; STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem :
Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito, 2002, p. 68; ROSS,
Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 167; ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da Norma
Tributária, 2006, p. 81-90; BASTOS, Celso Ribeiro. Herm enêutica e Interpretação Constitucio­
nal. 2a ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 28-29; GRECO, Marco Aurélio. Planeja­
mento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 159.
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 1 1

Conforme salienta Ricardo Guastini, “muitas disposições —talvez todas as


disposições - têm um conteúdo de significado complexo: exprimem não apenas
uma única norma, mas sim uma multiplicidade de normas associadas”168.
Trata-se aqui da discussão quanto à possibilidade de uma única resposta
correta como resultado do processo de interpretação.
Embora importantes vozes, como a de Ronald Dworkin e169, no Brasil,
Lenio Streck170, sustentem a possibilidade de se ter uma única resposta corre­
ta como resultado do processo hermenêutico, tal não parece refletir a natureza
das normas jurídicas171.
De fato, como destaca Neil MacCormick, mesmo que haja uma só respos­
ta correta na interpretação das normas, o problema é que não há como identifi­
car se a decisão alcançada em um determinado caso reflete esta única resposta172.
Cabe inteira razão a Marco Aurélio Greco quando este afirma que “o intér­
prete tem um dever de fidelidade ao texto, mas isto não significa que o resultado
da interpretação seja algo meramente matemático ou lógico dedutivo”173.
Não há se negar, portanto, que dentro dos lindes lingüísticos do texto
normativo exerce o intérprete uma função criativa, consistente em determinar
qual dos sentidos possíveis do texto comporá a norma individual e concreta174.

1 68 GUASTINI, Ricardo. D as Fontes às N orm as. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin,
2005. p. 35. Ver, também: GUASTINI, Ricardo. Teoria e Dogmatica delle Fonti. Milano: Giuffrè,
1998. p. 17; GRAU, Eros Roberto. Ensaio so bre a Interpretação/Aplicação d o Direito, 2002, p.
30; GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3a ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 153.
169 DW ORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1999, p. 279-290.
1 70 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e C onsenso : Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 183-195.
1 71 Nesse mesmo sentido, negando a possibilidade de se alcançar uma única resposta correta ao
cabo da interpretação jurídica, ver: AARN IO , Aulis. Sobre Ia Ambigüedad Semântica en Ia
Interpretación Jurídica. Doxa. Cuadernos d e Filosofia dei D erecho, Alicante, n° 4, 1987, p. 109-
117; AARN IO , Aulis. La Tesis de Ia Única Respuesta Correcta y el Principio Regulativo dei
Razonamiento Jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofia dei D erecho, Alicante, n° 8, 1990, p. 23-
38; BARRAGÁN, Julia. La Respuesta Correcta Única y Ia Justificación de Ia Decisión Jurídica.
Doxa. C uadernos d e Filosofia de i D erech o , Alicante, n° 8, 1990, p. 64-74; FARALLI, Carla. A
Filosofia Contemporânea do Direito: Temas e Desafios. Tradução de Candice Premaor Gullo. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 46-47; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 1984, p. 100-102;
FREITAS, Juarez. A Melhor Interpretação Constitucional versus a Única Resposta Correta. Revista
Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n° 2, jul.-dez. 2003, p. 313.
1 72 MacCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e Teoria do Direito, 2006, p. 321. Ver também: GRAU,
Eros Roberto. Ensaio e D iscurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 100-102.
173 GRECO, Marco Aurélio. Planejam ento Fiscal. São Paulo: Dialética, 2004. p. 377.
1 74 Ver: CARVALHO, Paulo de Barros. Proposta de Modelo Interpretativo para o Direito Tributário.
Revista de D ireito Tributário, São Paulo, n° 70, 1995, p. 41-42; GRAU, Eros Roberto. A Ordem
Econ ôm ica na Constituição de 1988. 11a ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163.
2 1 2 - E v o l u ç ã o H is t ó r ic a d a T e o r ia H e r m e n êu t ic a

O reconhecimento de que a interpretação compreende uma função


criativa175não significa que o intérprete crie a norma do nada, ex nihilo. Como
afirma Eros Roberto Grau, “o produto da interpretação é a norma expressada
como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invó­
lucro do texto, invólucro do enunciado”176.
Portanto, o intérprete cria, mas não cria do nada nem tampouco tal tare­
fa deixa de ser pautada por limites constantes no próprio texto interpretado,
nos valores e interesses em jogo, os quais afastam qualquer decisionismo.
A abertura da linguagem implica a necessidade de superação da lógica
binária que tomou conta do processo de subsunção177.

175 Sobre a função criativa da interpretação, ver: BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade
de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucional
adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA,
Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (org.). Os Princípios da Constituição d e 1988. 2a ed.
Rio de janeiro: Lumen juris, 2006. p. 258-259; RECASÉNS SICHES, Luis. Nueva Filosofia de la
Interpretacion d e i D e re c h o . México: Editorial Porrua, 1980. p. 211-213; COSSIO, Carlos. El
D erecho em el D erecho Judicial. Las Lagunas dei D erecho. La Valoración Judicial. Buenos Aires:
Librería El Foro, 2002. p. 121-122; TORRES, Ricardo Lobo. N orm as d e Interpretação e Integração
do Direito Tributário, 2006, p. 45; LATORRE, Angel. Introdução ao Direito, 2002, p. 109-111;
GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2002, p. 73-75; STRECK,
Lenio Luiz. H erm enêutica Jurídica e(m ) crise: uma exploração hermenêutica da constituição do
direito, 2003, p. 91-92; SCHROTH, Ulrich. Hermenêutica Filosófica e Jurídica. In: KAUFMANN,
A.; HASSMER, N. (org.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 383-384; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
M étodo: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2003, p. 432-433; LARENZ, Karl.
M etodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 283-284; ROSS, Alf. Direito e Justiça, 2000, p. 139;
RADBRUCH, Gustav. Filosofia d o Direito, 1997, p. 230-231; TÔRRES, Heleno Taveira. Interpre­
tação e Integração das Normas Tributárias - Reflexões e Críticas. In: TORRES, Heleno Taveira
(coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: Estudos em Homenagem a Paulo de Barros
Carvalho. São Fàulo: Saraiva, 2005. p. 112; CARDOZO, Benjamin N. The Nature o f the Judicial
Process. New Haven: Yale University Press, 1991. p. 112-115; ABRAHAM, Marcus. O Planeja­
mento Tributário e o Direito Privado, 2007, 118-119.
176 GRAU, Eros Roberto. Ensaio so b re a Interpretação/Aplicação do D ireito, 2002, p. 72-73.
1 77 Marco Aurélio Greco destaca a dificuldade de interpretar o direito com base no instrumental
da lógica binária, em longa passagem a seguir transcrita: "Esta dificuldade enfrentada pela
doutrina tem sua origem na premissa de que seria possível reconduzir toda realidade sempre
a duas categorias opostas e, por conseqüência, a interpretação deveria orientar-se no sentido
de identificar a qual delas pertenceria o objeto. Esta idéia de interpretar a realidade, inclu­
sive jurídica, a partir de categorias opostas (lícito/ilícito; direito interno/internacional; vigên-
cia/não-vigência; tributo/não-tributo, etc.) retrata um modelo de compreensão do mundo
apoiado numa lógica bivalente que, em última análise, encontra sua origem no princípio da
n ã o -co n tradição formulado p o r Aristóteles. Admitida a idéia de uma lógica bivalente é,
então, possível criar uma tabela de verdade das afirmações feitas sobre a realidade. De fato,
se algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, determinada conduta, se for lícita, não será
ao mesmo tempo ilícita, e assim por diante.
Ocorre que esta visão bivalente está passando por uma profunda revisão. Todo modelo teórico
de compreensão da realidade implica uma simplificação do objeto para fins de permitir seu
exame, a partir de elementos que constituiriam seu núcleo essencial. Esta lógica bivalente (sim/
não; certo/errado; 0/1 etc.) está se demonstrando insuficiente ou inadequada para explicar a
S e r g io A n d r é R o c h a - 2 1 3

Como salienta Marco Aurélio Greco, a lógica difusa (lógica,fuzzy) seria


a mais adequada para tratar com a indeterminação da linguagem, posição
também defendida por Arthur Kaufmann178.
Ao descrever o funcionamento da lógicafuzzy, Susan Haack explica que
o mesmo se dá aplicando-se variáveis fuzzy a conceitos não -fuzzy179.
Tomando por exemplo o significante verdade, partindo da lógica clássica
bivalente trabalharíamos com as noções de verdadeiro/falso. Já a lógica fuzzy
trabalha com as noções de muito falso, pouco falso, falso, pouco verdadeiro,
muito verdadeiro, etc.180. Tal é exatamente a realidade da interpretação jurídica,
onde, como destaca Arthur Kaufmann, “não há uma única solução correta,
mas muitas soluções corretas’, isto é, soluções ‘defensáveis’, plausíveis, suscetíveis
de consenso”181.
Em um cenário como o descrito acima, temos que o relevante é a justifi­
cação, é que a decisão alcançada possa ser justificada de forma a ser aceita
como a decisão do caso em disputa, sem que se afirme, com isso, que a decisão
correta foi proferida.
São interessantes aqui as colocações de Dworkin sobre a justificação, quando
este afirma que a mesma tem duas dimensões: uma primeira, segundo a qual
uma justificação deve ao menos de modo geral servir para suportar o que se
pretende justificar. A título de exemplo, ensina Dworkin que atualmente uma
justificação de caráter teológico não seria bastante para sustentar uma decisão. A

realidade por corresponder a uma simplificação exagerada de um mundo complexo (simplifi­


cação, portanto, irreal).
Aliás, inúmeras são as dificuldades que uma lógica bivalente traz ao intérprete do ordenamento
jurídico positivo (ou seu aplicador) que pretenda utilizá-la rigorosa e cegamente diante de uma
situação concreta. Basta lembrar que, se a experiência jurídica se resumisse a uma lógica formal
redutível a padrões absolutos de verdade, não existiria uma quantidade tão elevada de diver­
gências e litígios.
Atualmente, estão em andamento vários estudos teóricos que partem de uma lógica não-
bivalente e que se reúnem no conjunto que se convencionou denominar de "lógicas deviantes"
a que pertence o sistema de lógica fuzzy, particularmente adequado para explicar a experiência
jurídica, pois ela parte da idéia da imprecisão da linguagem e de que - por isso - os conceitos
sempre apresentam certa margem de vaguedade" (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tribu­
tário. São Paulo: Dialética, 2004. p. 374-375).
178 KAUFMANN, Arthur. Filosofia de i D erech o , 1999, p. 82.
179 HAACK, Susan. D eviant Logic. F u zzy Logic. Chicago: The Universityof Chicago Press,1996.
p. 234.
1 80 Cf. HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Tradução de Cezar Augusto Mortari; Luiz Henrique de
Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 222-223.
181 KAUFMANN, Arthur. Filosofia de i D erech o , 1999, p. 82.
214 - E v o lu ç ã o H is t ó r ic a d a T e o ria H erm e n ê u tica

segunda dimensão implica que a justificação deve se sustentar sobre algum valor
suficientemente importante que a decisão venha proteger182.
Cresce, nessa assentada, a importância dos valores e dos princípios, os
quais aparecem como instrumentos de justificação de decisões, até mesmo
para que em um determinado caso concreto opte-se pela interpretação menos
óbvia de acordo com a literalidade de um texto em detrimento da interpreta­
ção literal mais óbvia.
A atividade hermenêutica, portanto, se desenvolve nos marcos do plura­
lismo metodológico183, não havendo fórmulas que garantam a correção na
interpretação de textos normativos184. Nessa perspectiva, os elementos de in­
terpretação devem ser vistos como pontos de partida, tópicos a serem utiliza­
dos no processo hermenêutico185.
Ora, vê-se portanto que o problema hermenêutico atual, como pontua­
do acima, é de argumentação, participação e justificação. Diante da plurali­
dade de decisões possíveis muitas vezes presentes, a legitimidade da norma
individual e concreta criada diante de dado caso dependerá exatamente do seu
processo de criação.
Daí a grande relevância dos órgãos de aplicação do direito, responsáveis
pela criação das normas individuais e concretas, principalmente, em um siste­
ma de jurisdição una como o brasileiro186, do Poder Judiciário, em cujo âmbi­
to as atividades de argumentação, participação e justificação se realizam.
Nesta assentada se reafirma a impossibilidade de separação dos momen­
tos de interpretação e aplicação do direito.
De fato, toda interpretação é já aplicação, já que realizada no intérprete
tendo em vista o texto normativo e os fatos da questão sob apreço, o que
ressalta a importância dos órgãos de aplicação no processo hermenêutico.

182 DW ORKIN, Ronald. Justice in R obes. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 15.
1 83 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. N orm as d e Interpretação e Integração d o Direito Tributário, 2006,
p. 153-154; CO ELHO , L. Fernando. Lógica ju rídica e Interpretação das Leis, 1981, p. 203-204;
ABRAHAM, Marcus. O Planejamento Tributário e o D ireito Privado, 2007, 124-125.
184 Ver: AFTALIÓ N , Enrique R.; O LA N O , Fernando Garcia; V ILAN O VA, José. In tro d u cció n al
D erech o , [196-], p. 453.
1 85 Como destaca Recaséns Siches, "o verdadeiro núcleo da função judicial não se radica, nem
remotamente, o silogismo que se possa formular, mas sim consiste na eleição de premissas, por
parte do juiz. Uma vez eleitas as premissas, a mecânica silogística funcionará com toda facilida­
de" (RECASÉNS SICHES, Luis. N ueva Filosofia de Ia Interpretacion dei D erecho, 1980, p. 237).
1 86 Sobre a jurisdição una pátria, ver: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscah Controle
Administrativo do Lançamento Tributário. 3a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 120.
2) Tributação na
Constituição Federal e
no Código Tributário
Nacional
Algumas Ponderações
acerca da Desconsideração
do Direito à Fruição da
Imunidade Tributária por
Parte das Entidades
Educacionais sem Fins
Lucrativos
André Elali
ProfessorAdjunto de Direito Tributário no Departamento de Direito Público da
UFRN. Mestre em Direito Econômicopela Universidade Mackenzie e Doutor em
Direito Públicopela UFPE, com Estágio e Pesquisa no Departamento de Direito
Tributário do Instituto Max-Planck, em Munique, Alemanha. Advogado.

Evandro Zaranza
Professor de Direito Tributário na FARN. Especialista em Direito Tributário
pelo IBE T e Mestre em Direito Constitucionalpela UFRN. Advogado.
A n d r é E la li & E v a n d r o Z a r a n z a - 2 1 9

I. O b jeto d o estu d o

Tem sido muito comum, em todas as esferas da Federação brasileira, a


constituição, pelos respectivos Fiscos, de créditos tributários em face de enti­
dades imunes. Mais comum ainda tem sido a desconsideração da imunidade
tributária por parte dos órgãos da administração tributária por meras presun-
ções, partindo-se da premissa de que o ônus de provar o pleno atendimento
dos requisitos legais seria das entidades e não das autoridades que detêm a
atribuição do lançamento.
Este estudo, em homenagem ao grande Mestre Hugo de Brito Macha­
do, referência nordestina do direito público contemporâneo, visa a analisar
alguns pontos relativos ao tema da desconsideração, por presunção, das imu-
nidades tributárias.

II. O REQUISITO DA MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO

Não é novidade alguma a sujeição do processo e do procedimento admi­


nistrativos a determinados princípios específicos e genéricos, provenientes tanto
da legislação processual, quanto da própria Constituição Federal, inserindo-se
na temática, de modo especial, dois princípios: i) o princípio da motivação; ii)
o princípio da vinculação.
No mesmo sentido, a expedição de atos administrativos se submete a
limitações objetivas, que são, em verdade, garantias do Estado Democrático,
para o fim de se evitar o arbítrio, o excesso, práticas contrárias ao que se enten­
de por razoável. A propósito, ensina Vladimir da Rocha França:
“São pressupostos de validade dos atos administrativos: (i) o sujeito; ii) o
motivo; iii) os requisitos procedimentais; iv) a finalidade; v) a causa; e vi)
a formalização. O vício em um desses pressupostos torna o ato adminis­
trativo passível de invalidação administrativa ou judicial, caso em que a
invalidade é declarada em outro ato administrativo ou numa sentença
judicial. Por conseguinte, compreende-se ainvalidade como o defeito em
pressuposto de validade previsto pela lei para o ato jurídico.”1
Ainda das lições do citado autor, observa-se que a motivação do ato ad­
ministrativo possui duas dimensões: i) a formal e ii) a substancial. Enquanto

1 Cf. FRANÇA, Vladim ir da Rocha. Estrutura e Motivação do Ato Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 76.
2 2 0 - A l g u m a s P o n d e r a ç õ e s a c e r c a d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir eit o à F r u iç ã o .

a primeira diz respeito à exposição das razões de fato e de direito que enseja­
ram a edição do ato, a segunda “é um meio que permite a recondução do
conteúdo do ato a um parâmetro jurídico que o torne compatível com as
demais normas do sistema do direito positivo. Noutro giro: confere ao ato um
laço de validade com o ordenamento jurídico”2.
Destarte, a motivação não é qualquer exposição ilógica e sem coerência.
De fato, como aduz Rocha, “faz-se necessário que haja a exposição de elemen­
tos que sejam idôneos para justificar sua expedição. Noutras palavras, que a
motivação seja suficiente”3.
Como aduz Odete Medauar, “se o ato administrativo contém defeitos,
desatendendo aos preceitos do ordenamento, é nulo, em princípio”4. E o lan­
çamento tributário segue essa mesma regra, pois se trata de ato administrativo
que constitui o crédito tributário, resultante de um procedimento adminis-
trativo-tributário próprio do poder de tributar.
O lançamento, pois, se trata, no dizer de Lúcia Vale Figueiredo, de “ato
constitutivo formal, resultante de procedimento administrativo, que, decla­
rando quantum debeatur, habilita a Administração a poder exigir a importân­
cia devida”5, submetendo-se ao mesmo regime jurídico de qualquer ato
administrativo, por óbvio.
Sendo assim, evidencia-se a necessidade de submissão do lançamento ao
princípio da motivação, posto que o ato de constituir o crédito tributário deve
se fundamentar em uma exposição lógica e clara da interpretação-aplicação
do direito pelo Estado.
Isso quer dizer que a motivação não é a mera referência a algum disposi­
tivo normativo ou parecer. Como anotam Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari,
“O princípio da motivação determina que a autoridade administra­
tiva deve apresentar as razões que a levaram a tomar uma decisão.
‘Motivar’ significa explicitar os elementos que ensejaram o convenci­
mento da autoridade, indicando os fatos e os fundamentos jurídicos
que foram considerados. Sem a explicação dos motivos torna-se extre­

2 Cf. FRANÇA, Vladim ir da Rocha. Estrutura e Motivação do Ato Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 92.
3 Idem, ibidem, p. 129.
4 Cf. M EDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, p. 153.
5 Cf. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, p. 174.
A n d r é E la li & E v a n d r o Z a r a n z a - 2 2 1

mamente difícil sindicar, sopesar ou aferir a correção daquilo que foi


decidido. Sem a motivação fica frustrado ou. pelo menos. prejudica­
do o direito de recorrer, inclusive perante o Poder judiciário. Não
basta que a autoridade invoque um determinado dispositivo legal
como supedâneo de sua decisão: é essencial que aponte os fatos, as
inferências feitas e os fundamentos de sua decisão [...] Motivação
não se confunde com fundamentação, que é a simples indicação da
específica norma legal que supenadeou a decisão adotada. Motivar é
muito mais que isso.” (Grifos propositais)6
Tem sido constante a discussão, no Poder Judiciário, de lançamentos
tributários realizados sem observância da motivação, sendo reiterada a mani­
festação de que em casos tais os efeitos do ato administrativo devem ser ime­
diatamente afastados. Nesse diapasão:
“DIREITO ADMINISTRATIVO - [...] - AUTO DE INFRA­
ÇÃO - ATO^^ROÇEjDIMENTO^AJDMINISTRAITVO^
FALTA DE MOTIVAÇÃO - INVAT JDADE - [...] 3. É nula a
decisão administrativa e. conseqüentemente, o procedimento ad­
ministrativo instaurado (com contaminação do auto de infração),
em virtude de ausência de motivação para a conclusão a respeito da
existência de infração administrativa eventualmente praticada pela
impetrante. 4. A ausência de motivação vicia inexoravelmente o ato
administrativo impugnado, não sendo possível que a administração
pública atue sem que haja demonstração clara e segura da ocorrência
da infração supostamente praticada pelo administrado. Faz-se mister
que o ato administrativo seja revestido de legalidade substancial, aí
incluída a motivação da decisão no âmbito do procedimento admi­
nistrativo instaurado. 5. Apelação e remessa necessária conhecidas e
improvidas.” (TRF 2a R. - AMS 96.02.40401-9 - 8aT. - Rel. Juiz
Fed. Conv. Guilherme Calmon Nogueira da Gama - DJU 18.09.2006
- p. 449) - (Destaques propositais).
“ATO ADMINISTRATIVO - FUNDAMENTAÇÃO E MOTI­
VAÇÃO-AUSÊNCIA-NULIDADE- [...] É dever da adminis­
tração analisar eventual recurso que possa ser interposto visando à
desconstituição do ato administrativo. Exigência constitucional do art.

6 Cf. FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Princípios do Processo Administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 58 e ss.
2 2 2 - A lg u m a s P o n d e r a ç õ e s a c e r c a d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir eit o à F r u iç ã o .

93, inciso IX. A motivação abrange não só a série de circunstância de


fato e de direito da decisão administrativa, mas também seus funda­
mentos jurídicos e o resultado final almejado. E imprescindível, para
avaliação da razoabilidade. conhecer os motivos que levaram a ad­
ministração a adotar determinada medida (objeto do ato adminis­
trativo) para alcançar a finalidade que decorre implícita ou explicita-
mente da lei. Daí a necessidade de motivação. Não se exige fórmula
sacramental para a motivação; o que se entende necessário é que fi­
quem documentados, de algum modo, os motivos, para posterior apre­
ciação, seja pela própria administração, seja pelos demais poderes do
estado, nos limites de suas competências constitucionais. Recurso
(TJSP - AC 13 7 .9 7 0 -5 / 9 -0 0 - 9a CDPúb. - Rel. Des.
improvido.”
Antonio Rulli - DJSP 0 4 .12 .2 0 0 3 - p. 47) - (Grifos acrescidos).
Em numerosos recursos examinados no Superior Tribunal de Justiça,
destaca-se a necessidade de haver a devida motivação de qualquer ato admi­
nistrativo, sob pena de nulidade e posterior invalidação:
Processo____________________________________________________________________________________________
MS 1 3 4 0 7 / D F
M AN D AD O DE SEG U R A N Ç A
2008/0055867-3_______________________________________________________________________________________
Relator(a)
Ministro FELIX FISCHER (1109)______________________________________________________________________
Órgão Julgador
S3 _ TER C E|RA SEÇÃO

Data do Julgamento

_____
05/12/2008_____________________________________________________________________________________________
Data da Publicação/Fonte

Ementa______________________________________________________________________________________________
"MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CARGO PÚBLICO. HABILITAÇÃO LEGAL. FALTA. EXONERAÇÃO EX
OFFICIO. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. MÁ-FÉ. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. ART. 54 DA LEI N°
9.784/99. I - O prazo decadencial para a Administração anular atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis aos administrados decai em cinco anos, contados de 172/1999, data da entrada em vigor
da Lei n° 9.784/99. Contudo, o decurso do tempo não é o único elemento a ser analisado para verificação
da decadência administrativa. Embora esta se imponha como óbice à autotutela tanto nos atos nulos
quanto nos anuláveis, a má-fé do beneficiário afasta sua incidência. II - Na hipótese dos autos, a
impetrante foi contratada em 15/6/1985 e retornou ao serviço público por meio de portaria concessiva de
anistia de 24/11/1994. Muito posteriormente, em 20/8/2007, teve contra si instaurado processo
administrativo disciplinar, que culminou na sua exoneração ex officio em 24/1/2008. III - Incumbiria à
Administração Pública expor, no ato decisório, as razões de fato e de direito que fundamentariam a não-
aplicação do art. 54 da Lei n° 9.784/99, analisando especificamente a existência de má-fé da impetrante. A
falta de motivação, neste ponto, acarreta a nulidade do ato de exoneração. Segurança concedida para
reconhecer a nulidade da Portaria 8/2008 por vício de motivação, determinando-se a reintegração da
impetrante no cargo em que retornou por anistia."
A ndré E la li & Ev a n d r o Z aran za - 223

Processo____________________________________________________________________________________________
RMS 19439 /M A
RECURSO O RD IN Á R IO EM M AN D AD O DE SEGURAN ÇA
2005/0009447-5_______________________________________________________________________________________
Relator(a)___________________________________________________________________________________________
Ministro A R N A LD O ESTEVES LIM A (1128)_________________________________________________________
Órgão Julgador____________________________________________________________________________________
T 5 - Q U IN TA TU RM A________________________________________________________________________________
Data do Julgamento
14/11/2006
Data da Publicação/Fonte_______________________________________________________________________
DJ 04/12/2006 p. 338
Ementa______________________________________________________________________________________________
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. REMOÇÃO EX OFEICIO. MOTIVAÇÃO.
AUSÊNCIA. NULIDADE DO ATO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. 1. É nulo o ato que determina a
remoção ex officio de servidor público sem a devida motivação. Precedentes. 2. Recurso ordinário provido.

Acórdão_____________________________________________________________________________________________
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da
QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dippe LauritaVaz votaram
com o Sr. Ministro Relator.

Como se sabe, o lançamento tributário, se impugnado, passa a ser objeto


do processo administrativo, que visa, primordialmente, à busca da verdade
real. Assim, uma vez não atendido o requisito da motivação, fica ainda mais
complexa a comprovação da verdade real, seja pelo particular, seja pelo Estado.
Não se pode deixar de lado, portanto, a noção de que, como pondera, dentre
outros, Celso Antônio Bandeira de Mello, a busca da verdade material é prin­
cípio indeclinável da Administração tributária no âmbito de suas atividades
procedimentais e processuais7. Destarte, como acentua James Marins,
“A exigência da verdade material corresponde à busca pela aproxima­
ção entre a realidade factual e sua representação formal; aproximação
entre os eventos ocorridos na dinâmica econômica e o registro formal de
sua existência; entre a materialidade do evento econômico (fato
imponível) e sua formalidade através do lançamento tributário.
[•••]

7 Cf. BA N D EIRA DE M ELLO , Celso Antônio. C u rso d e D ire ito A d m in istra tiv o . São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 24 6. No m esm o diapasão, infere-se a lição de Odete Medauar e de
Hely Lopes Meirelles. Veja-se: M EDAUAR, Odete. P rocessu alidade no D ireito A d m inistrati­
vo. São Paulo: RT, 1993; M EIRELLES, Hely Lopes. D ire ito A d m in istra tiv o B ra sileiro . São
Paulo: M alheiros, 1999.
224 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u iç ã o .

As faculdades fiscalizatórias da Administração tributária devem ser uti­


lizadas para o desvelamento da verdade material e seu resultado deve ser
reproduzido fielmente no bojo do procedimento e do processo adminis­
trativo. O dever de investigação daAdministração e o dever de colabora­
ção por parte do particular têm por finalidade propiciar a aproximação da
atividade formalizadora com a realidade dos acontecimentos.”8

I I I . O ÔNUS DA PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

É indiscutível, no direito brasileiro, que o ônus da prova, em matéria


tributária, é incumbência do próprio ente tributante, conforme noticia Paulo
de Barros Carvalho:
“Com a evolução da doutrina, nos dias atuais, não se acredita mais na
inversão da prova por força da legitimidade dos atos administrativos e
tampouco se pensa que esse atributo exonera a Administração de pro­
var as ocorrências que afirmar terem existido. Na própria configuração
oficial do lançamento, a lei institui a necessidade de que o ato jurídico
administrativo seja devidamente fundamentado, o que significa dizer
que o Fisco tem que oferecer prova concludente de que o evento ocor­
reu na estrita conformidade da previsão genérica da hipótese normativa.
Caso o sujeito passivo venha a contestar a fundamentação do ato
aplicativo lavrado pelo Fisco, o ônus de exibir a improcedência dessa
iniciativa impugnatória volta a ser, novamente, da Fazenda, a quem
quadrará provar o descabimento jurídico da impugnação, fazendo
remanescer a exigência.”9
Ou seja, uma coisa é a presunção de legitimidade da existência do ato
administrativo; outra coisa é o conteúdo em si do ato administrativo. Como
ensina Suzy Gomes Hoffman, a presunção de legitimidade em questão não
diz respeito ao conteúdo do ato administrativo, mas à sua existência no mun­
do jurídico10.
Nesse contexto, é insustentável o lançamento tributário ou qualquer ato
administrativo expedido sem suporte em provas. E mesmo nas hipóteses de

8 Cf. MARINS, James. Processo Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 177-178.
9 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Notas sobre a Prova no Processo Administrativo Tributário.
In: Direito Tributário - Homenagem a Alcides Jorge Costa, p. 859-860.
10 Cf. HOFFMAN, Suzy Gomes. Teoria da Prova no Direito Tributário, p. 127.
A ndré E la li & E v a n d r o Z aran za - 225

presunções fiscais, ainda continua competindo à autoridade administrativa


“apresentar provas do fato a partir do qual se estabelece o raciocínio presunti-
vo. Qualquer que seja a modalidade de presunção, é imprescindível a prova
dos indícios para, a partir deles, demonstrar a existência de causalidade”11.
Sobre o assunto, assim se manifesta reiteradamente o CARF, antigo
Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda:
“IRPJ - OMISSÃO DE RECEITAS - INDÍCIOS - A atividade
administrativa de lançamento há de se submeter ao princípio da reser­
va legal, o que faz com que as exigências tributárias somente possam
ser formalizadas com prova segura dos fatos que revelem o auferimento
da receita passível de tributação ou mediante a demonstração de que
ocorreram os fatos expressamente arrolados pela lei como presunção de
omissão de receitas.” (CC, 3a Câmara, 2a Turma, Acórdão 103-21-
652, Relator Cons. Paulo Jacinto do Nascimento, j. 18.06.2004).
“RECURSO VOLUNTÁRIO - OMISSÃO DE RECEITA -
PRESUNÇÃO SIMPLES - Incumbe à fiscalização apresentar um
conjunto de indícios que permita aojulgador alcançar a certeza neces­
sáriapara seu convencimento, afastando possibilidades contrárias, mes­
mo que improváveis. A certeza é obtida quando os elementos de prova
confrontados pelo julgador estão em concordância com a alegação trazida
aos autos. Se remanescer uma dúvida razoável de Improcedência da
exação, o julgador não poderá decidir contra o acusado. No estado
de incerteza, o Direito preserva a liberdade em sua acepção mais
ampla, protegendo o contribuinte da inferência do Estado sobre seu
patrimônio.” (Câmara Superior de Recursos Fiscais, Ia Turma,
Acórdão 01-05-095, Rel. Marcos Vinícius Neder de Lima, j.
17.10.2004) - (Grifos propositais).
Concorda-se, também, com Fabiana Del Padre Tomé, que afirma:
“Tratando-se de lançamento realizado pela autoridade administrativa,
esta precisa motivar seu ato mediante emprego de linguagem das pro­
vas. Sendo a norma individual e concreta emitida pelo particular, a ele
incumbe demonstrar a veracidade dos fatos alegados (Essa comprova­
ção pode consistir em deixar à disposição da fiscalização os documentos
relativos ao fato relatado no antecedente da norma individual e concre­

11 Cf. TOMÉ, Fabiana Del Padre. Teoria da Prova no Direito Tributário Brasileiro, p. 623.
226 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca da D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u i ç ã o ...

ta). Caso o ato de lançamento não se fundamente em provas, estará


irremediavelmente maculado, devendo ser retirado do ordenamento.”12
Com base nessas ponderações, nota-se que, para gerar efeitos no âmbito
do sistema, o lançamento deve fiel obediência à motivação. Não motivado o
ato de constituição de crédito tributário, especialmente quando afastada hi­
pótese de imunidade, põe-se de lado a própria segurança jurídica, porquanto
se afasta a certeza em face de uma dúvida, uma presunção não revestida de
prova. Se for o caso, deve a autoridade provar; não o fazendo, não pode sim­
plesmente desnaturar a figura da entidade imune.

IV. Q u e s t õ e s r e la t iv a s à im u n id a d e d a t r i b u t a ç ã o -
APLICABILIDADE, ABRANGÊNCIA E ORIENTAÇÃO
JURISPRUDENCIAL - AS ENTIDADES DE EDUCAÇÃO IMUNES
COM O COMPLEMENTARES AO PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO
- O SEU CORRETO TRATAMENTO JURÍDICO-TRIBUTÁRIO

Por outro lado, comente-se que a imunidade da tributação consiste numa


efetiva limitação às competências tributárias, ou seja, limitação ao chamado
poder tributante, impedindo que os entes federativos criem e cobrem tributos
por evidente falta de competência tributária.
Veja-se, nesse sentido, que é indubitável que as entidades de educação e
de assistência social obtiveram uma proteção constitucional em face da tribu­
tação, na forma do art. 150 da Carta:
“Art. 150. [...] E vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
[...]
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas
fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições
de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os
requisitos da lei; [...].”

12 Prova e Aplicação do Direito Tributário. In: Direito Tributário - Homenagem a Paulo de Barros
Carvalho. SCHO UERI, Luís Eduardo (coord.), p. 621.
A ndré E la li & E v a n d r o Z aranza - 227

Assim sendo, presente hipótese de imunidade à tributação, fala-se em


falta de competência tributária ou até mesmo em incompetência. Dessa for­
ma, tendo em vista que “competência tributária é a faculdade que as pessoas
políticas têm para criar, ‘in abstracto, os vários tributos que, nos termos da
Constituição Federal, lhes são afetos”13. Presente a imunidade, faltará ao ente
federativo a necessária competência tributária.
Nesse sentido, veja-se que as imunidades tributárias mantêm íntima re­
lação com os direitos fundamentais, com os objetivos do Estado, conforme a
lição, dentre outros, de Ricardo Lobo Torres:
“A imunidade há que ser vista como limitação absoluta ao poder tribu­
tário pelas liberdades preexistentes. A liberdade individual é que se
autolimita, abrindo o espaço para a atuação ilimitada do poder fiscal. Há
reserva dos direitos humanos diante da fiscalidade. A imunidade é,
portanto, intributabilidade (...).”14
Em seu Tratado de Direito Financeiro e Tributário, Ricardo Lobo Torres
ratifica essa interdependência entre a imunidade tributária, o mínimo existen­
cial e as liberdades sociais, aduzindo:
“É um dos aspectos da proteção ao mínimo existencial. O art. 150, VI,
c, protege a educação, a cultura, a saúde e a assistência social, que, em
sua expressão mínima, constituem direitos humanos inalienáveis e
imprescritíveis, ainda que implícitos no elenco do art. 5odo texto básico.
Em outros países a garantia aparece sob o apelido de isenção, posto
que, como vimos, não desenvolveram a teoria das imunidades. Mas a
extensão, o fundamento e o significado devem ser o mesmo que preva­
lece entre nós. [...]
O fundamento da imunidade das instituições de educação e de assistên­
cia social é a proteção da liberdade. [...] De feito, a imunidade visa a
proteger os direitos da liberdade compreendidos no mínimo existencial,
nas condições iniciais para a garantia da liberdade de chance. As insti­
tuições de educação e de assistência social são imunes aos impostos

13 Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Imunidade, Isenção e Não-incidência. In: C urso de Iniciação
em D ireito Tributário. BARRETO, Aires F; BOTTALLO, Eduardo Domingos (coord.). São Paulo:
Dialética, 2004, p. 95.
14 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. O s D ireitos H um anos e a Tributação - Im unidades e Isonom ia. Rio
de Janeiro: Renovar, 1995. p. 231.
228 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca da D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u iç ã o .

em consideração ao direito à sobrevivência dos pobres e desassistidos.


[...] A justificativa da imunidade, por conseguinte, está em não se
poder cobrar imposto sobre atividade que substancialmente se equi­
para à própria ação estatal ou que a substitui no amparo à pobreza; na
expressão de Silvestre Pinheiro Ferreira, não se deve ‘lançar um im­
posto sobre outro imposto’.”15
Em outros dizeres, tratando-se de entidade reconhecidamente vinculada
à educação, sem fins lucrativos, inexiste competência tributária relativamente
aos impostos. O que se impõe, de qualquer sorte, é o atendimento aos requi­
sitos do CTN, que dispõe:
“Art. 14.0 disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9° é subordinado
à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
I - não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas
rendas, a qualquer título;
II - aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção
dos seus objetivos institucionais;
III - manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros
revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão” (Des­
taque proposital).
Sobre o assunto, já se manifestou Carlos Vaz, aduzindo:
“Convém lembrar, inicialmente, que as entidades de educação se dis­
tinguem de acordo com a origem dos recursos que as constituem e as
mantêm. Assim, há entidades que asseguram a sua existência com
recursos exclusivamente do poder público; outras, como as autarquias e
fundações que, além dos recursos orçamentários do governo, possuem
outras fontes de receitas próprias (Decreto-lei n° 200/67, art. 5o, inciso
I) e, outras, ainda, com fins lucrativos, que são mantidas apenas com
recursos dos particulares, sujeitas aos tributos e contribuições em geral.
Existem, porém, aquelas outras instituições de educação particu­
lares, sem fins lucrativos, que são amparadas pela imunidade,
por prestarem serviços para os quais houverem sido instituídas e
que os colocam à disposição da população em geral, em caráter

15 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. V. III. 3a ed.
Rio de janeiro: Renovar, 2004, p. 265-267.
A n d r é E la li & E v a n d r o Z a r a n z a - 2 2 9

complementar às atividades do Estado, além de atenderem, obri­


gatoriamente, a determinados requisitos de lei, que serão exami­
nados mais adiante.”16(Grifos propositais)
Infere-se, pois, que das várias espécies de instituições de educação, desta­
ca-se a entidade sem fins lucrativos, à qual se dirigiu a Constituição, prote­
gendo-lhe da tributação em face de sua importância na concretização dos
próprios objetivos do Estado brasileiro.
Mais adiante, explicita o autor o conceito das entidades educacionais:
“3. Conceito de instituição de educação
Embora as instituições de educação e de assistência social encontrem-
sejuntas como imunidade prevista no art. 150, inciso VI, alínea c, elas se
diferem em seus conceitos.
Com efeito, como lembra RICARDO LOBO TORRES, ‘o conceito de
instituições de educação abrange assim as que se dedicam à instrução
formal, como as que promovem a formação extracurricular, bem como as
instituições de fins culturais. As instituições de assistência social são as
que socorrem a maternidade, a infância, a velhice e a pobreza’.
Para serem consideradas imunes, essas entidades que prestam ser­
viços para os quais tenham sido instituídas devem colocá-los à dis­
posição da população em geral, em caráter complementar às ativida­
des do Estado.
Na imunidade das entidades de assistência social há, por assim dizer,
uma real troca de serviços prestados à comunidade carente, em caráter
complementar aos serviços também prestados pelo governo, ao invés de
um virtual pagamento de impostos que poderia ser feito por essas mes­
mas entidades ao governo para que este o empregasse em benefício
dessa mesma comunidade.
Essa deve ser a função social das entidades imunes. [...].”17
Infere-se, pois, que das várias espécies de instituições de educação, desta-
ca-se a entidade sem fins lucrativos, à qual se dirigiu a Constituição, prote­
gendo-lhe da tributação em face de sua importância na concretização dos

16 Cf. VAZ, Carlos. A Imunidade das Instituições de Educação sem Fins Lucrativos. In: Revista de
Direito da UFF, 2000, p. 213 e ss.
17 Idem, ibidem.
230 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca da D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o A F r u iç ã o .

próprios objetivos do Estado brasileiro. As referidas entidades, desde que res­


peitando os requisitos legais, acabam auxiliando o Estado brasileiro a promo­
ver a ordem econômica proposta na Constituição.
O Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar questões relativas à temática
sob exame, já se manifestou no sentido de que “A natureza pública da insti­
tuição não provém da generalidade de seus participantes e beneficiários,
mas dos fins sociais a que atende”18. Assim, é de se concordar totalmente
com a lição de Humberto Ávila, que pondera:
“A natureza das entidades de educação e assistência social depende da
finalidade estatutária. E o estatuto social que dispõe sobre as finalidades
a serem atingidas. E o fim social atendido é o elemento caracterizador da
entidade. [...] As instituições de educação e assistência social podem
exercer outras atividades, bem como podem receber contraprestação pelo
seu exercício. [...] Eqüivale a dizer-comojá elucidado-que a finalidade
da entidade resulta de seus estatutos, não podendo os mesmos prever
qualquer forma de distribuição de lucros aos seus sócios. [...].”19

V. A QUESTÃO DA SUSPENSÃO DA FRUIÇÃO DA IMUNIDADE EM


CADA EXERCÍCIO, ANO A ANO, E NÃO DE M ODO GENÉRICO

Atente-se, ainda, para a disposição contida no CTN, que tem a se­


guinte redação:
“Art. 14. [...]
§ Io Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § Io
do artigo 9o, a autoridade competente pode suspender a aplicação
do benefício.”
Depreende-se, do texto, que a suspensão requer ato administrativo pró­
prio, vinculado a um exercício em específico, não podendo ser genérico e des­
motivado. O texto é aquele: a norma é esta!!! Este inclusive é o entendimento
do STF exemplificado no Ag. Reg. RE n° 481.364-5-SP, que teve como
relator o Min. Eros Grau, em que parte agravada foi o Instituto Presbiteriano
Mackenzie de São Paulo/SP.

18 STF - RE n° 108.796 - Rel. Min. Carlos Madeira - DJ 12.09.86 - p. 16426.


19 Cf. ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 226-227.
A ndré E la li & E v a n d r o Z aran za - 231

Sobre o tema, adverte Humberto Ávila:


“ [ . . . ] À autoridade administrativa é vedado cassar a imunidade. Ela

não pode 'tirar' a imunidade tributária de uma instituição de educa­


ção e assistência social indefinidamente. Essas entidades têm direi­
to à imunidade sobre o patrimônio, a renda ou os serviços relaciona­
dos com suas finalidades essenciais se forem instituições de educa­
ção e assistência social sem fins lucrativos. Realizadas essas condi­
ções previstas em nível constitucional, existente está o direito à
imunidade. A existência desse direito é indiferente à autorização
administrativa. Isso eqüivale a dizer que a entidade de educação
e assistência social, relativamente à não-observância dos requisi­
tos legais, não corre o risco de perder a imunidade, mas tão-só
possui a possibilidade de ter suspensa sua fruição, algo bem di­
verso, na medida em que, restabelecidos os requisitos, renovado
estará o direito à fruição, mesmo que isso tenha que ser feito
judicialmente.”20(Grifos propositais)
Isso impõe que a administração tributária, em eventual circunstância de
não preenchimento dos requisitos constitucionais e do CTN por parte de
entidade educacional ou assistencial, tem o DEVER D E RESTABELE­
CER A FRUIÇÃO SE SANADO SUPOSTO VÍCIO.

V I . P r e s u n ç ã o de ir r e g u l a r id a d e s versu s ô n u s da
PROVA DO LANÇAMENTO

O uso de presunções no direito tributário não é apenas possível como


necessário. O Estado, para viabilizar seus objetivos e tomar eficientes suas
políticas, necessita de instrumentos que viabilizem a arrecadação fiscal. No
entanto, no tema do lançamento, especialmente no que tange às entidades
educacionais imunes, o dever de provar alguma irregularidade é do Fisco, não
sendo admissível a presunção contraria à regra geral, de que há o atendimento
aos requisitos legais.
O ponto de vista ora defendido, apesar de não ser pacífico, vem revelan­
do a tendência de alguns precedentes jurisprudenciais, que são importantes
orientações à sociedade:

20 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 224.
232 - A lg u m a s P o n d era ç õ es acerca d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u i ç ã o ..,

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - LIMINAR EM


AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA ANULAÇÃO DE “CEBAS/
CNAS” - INTIMAÇÃO PESSOAL ANTERIOR À DECISÃO
PROFERIDA NOS TERMOS DO ART. 557, §1°-A DO CPC:
DESNECESSIDADE - AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
I —Compete ao relator dar provimento ao recurso contra decisão que
esteja em manifesta desconformidade com súmula ou comjurisprudên­
cia dominante do respectivo tribunal, do STF ou de Tribunal Superior’
(art. 557, caput, do CPC), sem que isso signifique afronta ao princípio do
contraditório (ou à ampla defesa), porque atende à agilidade da prestação
jurisdicional. Quando o relator assim age não usurpa’ competência do
colegiado, mas atua dentro do permissivo legal. 2 -Tratando-se de deci­
são sumária (superficial cognição) e passível de, após melhor instrução,
reversão, se o caso, pela sentença, importa perquirir se há fumaça do bom
direito e risco do retardo. 3 - Se a entidade goza de imunidade há longos
anos, jamais contestada, deferida pelaAdministração Publica (em prol
de quem militam presunções várias), não se pode - de inopino -
pressupor dolo, simulação, fraude (sem prova plena em cognição
exauriente), nem determinar-se o lançamento das contribuições da ré.
4 - Agravo interno não provido. 5 - Peças liberadas pelo Relator, em 02/
06/2009, para publicação do acórdão.” (AGTAG 200801000499203,
DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO
AMARAL, TRF1 - SÉTIMA TURMA, 12/06/2009)
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMEN­
TO. PROCESSUAL CIVIL ETRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FIS­
CAL. IPTU. SINDICATO. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. EM­
BARGOS DO DEVEDOR. ÔNUS DA PROVA. FATO
IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO DO DIREI­
TO DO AUTOR. ART. 333, II, DO CPC. DESPROVIMENTO. 1.
Se o embargante fez a prova de que teve o seu direito à imunidade
expressamente reconhecido pela Fazenda Municipal por meio de
processo administrativo, competia ao exequente/embargado a
contraprova, porquanto a existência do título executivo, por si só,
não é apta a desconstituir o mencionado processo, constituído com
a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Precedentes do STJ. 2. Agravo regimental desprovido.”
(AGA 200801277385, DENISE ARRUDA, STJ - PRIMEIRA
TURMA, 04/05/2009)
A ndré E la li & E v a n d r o Z aran za - 233

“MANDADO DE SEGURANÇA. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA.


ART. 150, § 2°, CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COBRANÇA
IPTU. IMÓVEL DE AUTARQUIA FEDERAL. FINALIDADE
ESSENCIAL. ÔNUS PROBATÓRIO DO FISCO. 1. A imunidade
tributária prevista no art. 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição
Federal é extensiva ao patrimônio, à renda e aos serviços das autarquias,
desde que estejam vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas
decorrentes (art. 150, VI, § 2o, da CF). 2. Cabe ao Fisco a produção de
prova impeditiva ao direito do contribuinte, de modo a comprovar
que o bem não se encontra vinculado às finalidades essenciais da
autarquia. 3. A ausência de provas nesse sentido impede que a imu­
nidade tributária seja afastada. 4. Apelação e remessa oficial
improvidas.” (AMS 200338000481811, JUIZ FEDERAL
ROBERTO CARVALHO VELOSO (CONV.),TRFl - OITAVA
TURMA, 05/10/2007)
“PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL.
AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA DIVERGÊNCIA
JURISPRUDEN CIAL. ARTIGO 255, DO RISTJ. EXECUÇÃO
FISCAL. IPTU. INSTITUIÇÃO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.
IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. EMBARGOS DO DEVEDOR.
ÔNUS DA PROVA. ART. 333, II, DO CPC. 1. A admissão do Re­
curso Especial pela alínea “c” exige a demonstração do dissídio na for­
ma prevista pelo RISTJ, com a demonstração das circunstâncias que
assemelham os casos confrontados, não bastando, para tanto, a simples
transcrição das ementas dos paradigmas. 2. Os embargos à execução
constituem uma ação de conhecimento no organismo do processo exe­
cutivo e visam, através de sentença, desconstituir o crédito exeqüendo,
o título ou a relação processual. 3. Tratando-se de ação desconstitutiva
e considerando que, em princípio, o direito do exeqüente é exibido
prima facie pelo título executivo, cabe ao embargante, como autor, aten­
der à regra do art. 333, II, do CPC, comprovando o fato constitutivo do
seu direito. 4. Deveras, se a parte embargante - executada fez a prova
do preenchimento dos requisitos imunizatórios, competia ao exeqüente-
embargado a contraprova, porquanto o título executivo por si só não
responde a essa questão suscitada e relevante para o desate da causa. 5.
Assim como cabe ao executado o ônus da prova de sua pretensão
desconstitutiva, posto introduzir no organismo do processo de exe­
cução, ação de cognição plenária, incumbe ao exeqüente-embargado,
234 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u i ç ã o ..

na forma do art. 333, II, do CPC a contraprova de tudo quanto não


encontra resposta imediata e prima facie, no título executivo. 6.
Omitindo-se a Fazenda quanto a esse ônus que lhe competia, man­
tém-se a justeza do acórdão recorrido. 7. Recurso especial, parcial­
mente, conhecido pela alínea “a”, e improvido.”(RESP 200200882673,
LUIZ FUX, STJ - PRIMEIRA TURMA, 01/03/2004).
Em outra situação, o Poder Judiciário deixou ainda mais clara essa in­
cumbência ao Fisco de provar alguma situação que afaste a fruição da imuni­
dade tributária:
“TRIBUTÁRIO. IPTU. UNIÃO BRASILEIRA DE EDUCA­
ÇÃO E ENSINO -UBEE. INSTITUIÇÃO DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ÔNUS DA PROVA.
A Constituição da República, em seu art. 150, inciso VI, alínea ‘c’,
prevê a imunidade tributária das instituições de assistência social,
impondo assim limitações ao Poder Tributante de instituir obrigações
fiscais contra aquelas entidades, desde que satisfeitos os requisitos
legais definidos no art. 14, do CTN. A imunidade constitucional co­
bre patrimônio, rendas e serviços, não importando se os imóveis de
propriedade da instituição de assistência social são de uso direto ou se
são locados. Precedentes do Excelso Supremo Tribunal Federal. Em
relação à cobrança do IPTU relativo a imóvel de instituição
beneficiária da imunidade tributária que se encontra locado, cabe
ao Fisco provar que os recursos advindos da locação do imóvel
foram destinados a fins diversos dos previstos no Estatuto (artigo
333, II, do CPC).” (TJMG-Número do processo: 1.0000.00.310075-
7/000(1) - Relator: BRANDÃO TEIXEIRA - Data do Julgamen­
to: 01/04/2003 - Data da Publicação: 23/05/2003).
Também o Superior Tribunal de Justiça vem manifestando que o ônus
da prova é do fisco em situações como a deste estudo:
“PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - IMU­
NIDADE - FATO IMPEDITIVO - ART. 331, IV, DO CPC -
ÔNUS DA PROVA - VIOLAÇÃO REFLEXA. 1. Presunçãojuris
tanturn quanto à imunidade da autarquia municipal, por força da
própria sistemática legal (art. 334, IV, do CPC), de forma que
caberia ao Município, mesmo em sede de embargos à execução,
apresentar prova de fato impeditivo em relação a esse favor cons­
titucional (art. 333,1, do CPC), através da comprovação de que os
A ndré E la li & E v a n d r o Z aran za - 235

serviços prestados pelo ente administrativo ou seu patrimônio estão


desvinculados dos objetivos institucionais. 2. Violação reflexa a dispo­
sitivos federais não ensejam a interposição de recurso especial - pre­
cedentes. 3. Recurso especial improvido.” (REsp 320948 / MG RE­
CURSO ESPECIAL. 2001/0049573-7 Relator(a) Ministra
ELIANA CALMON (1114) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA
TURMA Data do Julgamento 22/04/2003 Data da Publicação/Fonte
DJ 02/06/2003 p. 244).

V I I . C o n clu sõ es

O tema das imunidades, por si só, revela uma grande complexidade no


âmbito do direito tributário, por envolver a exceção à regra geral da tributa­
ção, porquanto as entidades imunes não revelam capacidade contributiva. Para
a fruição da imunidade tributária, são obrigatórios os requisitos do art. 14 do
CTN, que vinculam a finalidade das entidades aos objetivos do Estado, por­
quanto se está, aqui, diante de auxílio de Estado, ou seja, com a figura do
incentivo, subsídio ou subvenção. Entidades imunes, portanto, são sim auxi­
liadas financeiramente pelo Estado, daí porque devem obediência aos limites
do CTN, instrumento normativo hábil a regular tais elementos por se tratar
de lei complementar.
O problema de entidades imunes não atenderem aos requisitos legais
diz respeito ao lançamento tributário, eis que, sendo atividade vinculada à
constituição de créditos tributários em face de pessoas “protegidas” da tribu­
tação, que, a rigor, não deveriam revelar capacidade contributiva, se torna fun­
damental a produção de prova da falta de atendimento dos tais requisitos (art.
14, CTN, em especial).
Não sendo possível a produção de prova no sentido de que a entidade
imune não atende aos requisitos do CTN, não se pode presumir alguma irre­
gularidade em prol do lançamento. Quem tem o ônus de apontar e provar
qualquer irregularidade é o Fisco, não o contrário. Presume-se, sempre, a boa-
fé, a regra geral sendo a de respeito ao sistema. O desrespeito ao sistema há de
ser provado. Se de um lado o Estado subsidia essas figuras, por auxiliarem, por
outro lado, na promoção da ordem econômica teorizada na Constituição, por
outro as entidades acabam sendo de fundamental relevância para a sociedade,
merecendo, por isso mesmo, tratamento excepcional.
236 - A lg u m a s Po n d era ç õ es acerca d a D e s c o n s id e r a ç ã o d o D ir e it o à F r u i ç ã o .,

O uso de entidades imunes para desvio de sua finalidade não pode ser
entendido como regra geral, mas sim exceção, devendo, inclusive, ser objeto de
procedimento criminal, até porque sé está, eventualmente, diante de prática
concorrencial desleal no mercado, o que é ainda mais nocivo ao sistema.
Anotações sobre o Sistema
Tributário Brasileiro

Denise Lucena Cavalcante


Professora de Direito Tributário e Financeiro da graduação e pós-
graduação da Universidade Federal do Ceará — UFC. Vice-coordenadora
da Pós-graduação em Direito/UFC. Doutora em Direito Tributário pela
PUC/SP. Procuradora da Fazenda Nacional.
D e n is e L ucen a C a v alcan te - 239

1 . C o n s i d e r a ç õ e s I n ic ia is

É com muita honra que aceitei o convite dos organizadores desta obra em
homenagem ao grande tributarista Professor Doutor Hugo de Brito Machado.
Tive o privilégio de ter sido aluna do homenageado e professora de um dos
organizadores, o jovem e brilhante Professor Doutor Hugo de Brito Machado
Segundo, que é um exemplo admirável de amor filial que acompanho em mui­
tos dos seus passos. Talvez o jovem Professor Hugo Segundo não se recorde,
neste momento, quando circulei o nome em sua prova e escrevi: Vocêfazjus ao
seu nome! Esta afirmação traduz a minha admiração ao homenageado.
O Professor Hugo de Brito Machado é o grande responsável por despertar
em seus alunos a paixão pelo estudo do Direito Tributário e desenvolver o espírito
crítico em relação ao próprio Direito. Sem dúvida, considero-me privilegiada por
participar, desde 1988, quando ainda aluna nos bancos da Faculdade de Direito
da Universidade Federal do Ceará, dos mais instigantes debates realizados pelo
Professor Hugo de Brito em tomo do Direito Tributário Brasileiro.
Com ele aprendi que as mais importantes lições têm que ser claras e ex­
postas de forma simples, para que todo e qualquer cidadão possa compreender.
Para compor esta obra apresento o presente artigo, esclarecendo, desde logo,
que se trata de um texto explicativo, objetivando apresentar o modelo tributário
brasileiro aos participantes do Curso Virtual de Direito Tributário Internacional
promovido pelo CIAT - Centro Interamericano de Direito Tributário.

2 . F e d e r a l is m o f is c a l b r a s il e i r o

Para bem compreender o sistema tributário de um país, é preciso antes


conhecer a sua estrutura e organização estatal, daí iniciar-se a presente apre­
sentação pela forma como está organizada a federação brasileira, conforme
minuciosa exposição no texto constitucional.
A Constituição brasileira alberga os princípios fundamentais do sistema
jurídico, como muito bem esclarece Hugo de Brito Machado1:
A Constituição, além de estabelecer a estrutura e o funcionamento dos
órgãos mais importantes do Estado, alberga as normas fundamentais

1 Uma introdução ao estudo do direito. São Fàulo: Dialética, 2000, p. 147.


240 - A n o ta çõ es so bre o S is t e m a T r ib u t á r io B r a s il e ir o

de um sistemajurídico e os princípios com os quais restam positivados


os valores fundamentais da comunidade. Por isto mesmo é que se colo­
ca na posição de maior hierarquia do sistema de norma que compõem o
direito positivo. Assim, entende-se que a Constituição é a base do
sistema jurídico. Base no sentido de que todas as demais normas do
sistema nela têm o seu fundamento de validade.
O Brasil caracteriza-se por sua forma federativa de Estado, composta
pela União Federal, 26 Estados-membros, 5.564 Municípios e o Distrito
Federal, integrando todos a República Federativa do Brasil2.
Os entes da federação são dotados de autonomia, abrindo mão da sobe­
rania para que a República Federativa do Brasil atue no âmbito internacional.
Quando se estabelece a autonomia dos entes federados significa que eles
não possuem uma relação hierárquica entre si, sendo capazes de ter sua pró­
pria administração e gestão3. Contudo, ressalta-se que no Brasil ainda existe
uma grande dependência econômica dos Estados e Municípios, comprome­
tendo severamente a autonomia proclamada na Constituição, pois não há que
se falar em autonomia sem a devida capacidade financeira.
Um dos grandes desafios do Brasil é, exatamente, desenvolver-se econo­
micamente neste sistema federado4.
O sistema federativo fiscal brasileiro precisa propiciar aos Estados e
Municípios não só a autonomia política, mas, principalmente, a autonomia
financeira, alcançando a independência prevista por Paulo Bonavides5:

2 Assim estabelece a Constituição:


"Art. I o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada;
V - o pluralismo político."
3 Neste sentido estabelece Roque Carrazza: "Laboram em erro os que vêem uma relação hierár­
quica entre o governo central e os governos locais. O que há, na verdade, são para cada uma
dessas entidades políticas, campos de atuação autônomos e exclusivos, estritamente traçados
na Carta Suprema, que lei alguma pode alterar." (Curso de direito constitucional tributário. São
Paulo: Malheiros, 1 996, p. 96).
4 O federalismo é cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4o, I, da Constituição Federal: "Não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado".
5 Ciência política. 7a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 207-208.
D e n ise L u c e n a C a v a lc a n t e - 241

No Estado federal, deparam-se-nos vários Estados que se associam


com vistas a uma integração harmônica de seus destinos. Não possuem
esses Estados soberania externa e do ponto de vista da soberania inter­
na se acham em parte sujeitos a um poder único, que é o poder federal,
e em parte conservam sua independência. Movendo-se livremente na
esfera da competência constitucional que lhes for assinalada para efeito
de auto-organização. Como dispõem dessa capacidade de auto-organi-
zação, que implica o poder de fundar uma ordem constitucional própria,
os Estados-membros, atuando aí fora de toda a submissão a um poder
superior e podendo no quadro das relações federativas exigirem do
Estado Federal o cumprimento de determinadas obrigações, se conver­
tem em organizações políticas incontestavelmente de caráter estatal.
Há no contexto brasileiro uma grande submissão econômica dos Esta­
dos e Municípios frente à União Federal, vez que esta detém a maior parte da
arrecadação tributária e, ainda, condiciona os repasses financeiros obrigatórios
a regras flexíveis por ela própria estabelecidas, causando uma visível agressão
ao princípio federativo e caracterizando-se numa utopia de autonomias, como
bem afirma André Elali6.
A previsão do constituinte originário em 1988 determinava no art. 160
a proibição da vedação dos repasses constitucionais, porém, logo depois, pela
Emenda Constitucional n° 29, de 13 de setembro de 2000, tal vedação foi
restringida, permitindo a retenção e bloqueio no caso de dívidas dos entes
estatais, nos seguintes termos:
Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao
emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos
relativos a impostos.

6 André Elali faz uma crítica bem fundamentada sobre o assunto: "Não que a centralização total
seja um caminho sem volta, mas uma menor descentralização é que deve estruturar as relações
no Brasil, adequando-se à realidade concreta, e não permanecendo numa utopia de autonomias.
Autonomias que, como visto, não existem materialmente de forma ampla e na grande maioria
dos entes, mas apenas formalmente. Isso em função da necessidade de redução dos problemas
que um federalismo fiscal como o brasileiro tem causado, como, por exemplo, o caótico
sistema jurídico tributário em sua amplitude de normas, a constante invasão de competências,
a concessão incentivos como forma de atração de investimentos ("guerra fiscal") e desnaturações
de institutos e entidades de Direito. De outra sorte, o fenômeno impositivo brasileiro tem
constituído um dos maiores óbices do crescimento econômico sustentável, por onerar, de
forma absurda, a produção e circulação de produtos e serviços. Deveria, ao contrário, seguindo
modelos mais desenvolvidos, priorizar as exações sobre a renda e o capital. (O federalismo
fiscal brasileiro e o sistema tributário nacional. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 88).
2 4 2 - A n o t a ç õ es s o b r e o S is t e m a T r ib u t á r io B r a s ile ir o

Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e


os Estados de condicionarem a entrega de seus recursos:
I - ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;
II - ao cumprimento do disposto no art. 198, § 2o, II e III. \Este artigo
trata da aplicação dospercentuais obrigatóriospara a saúde\.
O dispositivo constitucional supra transcrito ainda hoje é alvo de críti­
cas, pois permite uma retenção de recursos que originalmente pertenciam aos
entes federados, não devendo ter restrições, nem mesmo no caso de dívidas. O
fato de haver dívidas, por si, só não justificaria as retenções e bloqueios, prin­
cipalmente no contexto brasileiro, onde quase todos os Municípios são deve­
dores da Previdência Social.
Além das discrepâncias econômicas entre os entes federados brasilei­
ros, ainda existem as diferenças econômicas da população. Percebe-se, pois,
as dificuldades em administrar o quinto maior país do mundo, que tem de
fronteira terrestre 15.700 Km, com uma população de mais de 190 milhões
de habitantes.
Só para se ter uma ideia da distorção econômica que prevalece no Brasil,
de sua imensa população, somente cerca de 25 milhões de brasileiros são con­
tribuintes do imposto de renda, ou seja, pouco mais de 10% da população, o
que caracteriza a má distribuição da renda per capita no país7.
Neste país de proporções continentais as dificuldades são muitas, mo­
tivo pelo qual o constituinte originário em 1988 determinou como um dos
princípios fundamentais previstos na República Federativa do Brasil a bus­
ca da redução das desigualdades sociais e regionais, assim dispondo na Cons­
tituição Federal:
Art. 3o. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

7 "O Brasil é um dos países que carrega o peso de ser o país mais injusto do mundo, aquele em
que a distribuição de renda é pior. A injustiça não decorre da pobreza - o Brasil é a 11a
economia do mundo, em termos de produção bruta - , mas de sua péssima distribuição. A
injustiça decorre do contraste entre os mais ricos e os mais pobres, entre o pólo de riqueza -
similar ao de países de Primeiro Mundo - e o pólo de pobreza, similar ao dos países mais
pobres do mundo" (SADER, Emir. Perspectivas. Coleção: Os porquês da desordem mundial. Rio
de Janeiro: Record, 2005, p. 129).
D en ise L u c en a C a v a l c a n t e - 2 4 3

II - garantir o desenvolvimento nacional;


III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV-promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Tal previsão constitucional é importante, pois exerce uma maior pressão
legislativa nas políticas públicas visando a estabelecer condutas que sejam vol­
tadas para a minimização dos problemas socioeconômicos decorrentes das
desigualdades regionais.
Por isso, mesmo diante de tantas discrepâncias entre o texto formal e a
realidade social, a Constituição exerce um papel importante na luta constante
de controlar os excessos decorrentes da má compreensão da soberania estatal,
limitando o poder de tributar e repetindo insistentemente o elenco dos direi­
tos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte.
Daí a relevância do chamado Direito Constitucional Tributário, e não
Direito Tributário Constitucional, como bem ressaltou José Osvaldo Casás8,
devendo a Constituição ser sempre a base de todo e qualquer estudo das
normas de tributação.
Também, neste sentido, esclarece Rodolfo Spisso9que toda análise jurí­
dica deve partir da perspectiva constitucional:
Es por ello que la institución tributaria, al igual que las demás
instituciones jurídicas que integran nuestro ordenamiento, no puede
ser suficientemente comprendida ni explicada si no es a la luz de la
perspectiva constitucional. El programa constitucional ilumina y
condiciona de tal manera a las concretas instituciones jurídicas, que
estás, para responder a critérios dejusticia, no deben estar sólo al servicio

8 Com propriedade, assim esclarece José Osvaldo Casás: "El sector ju ríd ico en el que nos
desenvolveremos, conforme a las mejores tradiciones de la doctrina latina de la tributación -
americana y europea - encuentra su mas correcta caracterización cuando se alude a él como
"D erech o constitucional tributário", y no com o "D erecho tributário constitucional". ( ...)
Dentro dei vasto espectro que conforma el "Derecho constitucional tributário" se vislumbran
claramente dos secciones; una elaborada a partir de la parte dogmática de las constituciones
en los Estados de Derecho o "Derecho constitucional de la Hbertad", que corporiza todo un
sistema de derechos y garantias dei ciudadano que actúa como limite y cauce al ejercicio de la
potestad tributaria normativa d ei Estado ( ...) ." (D erechos y garantias constitucionales dei
contribuyente. Buenos Aires: Ad Hoc, 2002, p. 119).
9 SPISSO, Rodolfo R. Derecho constitucional tributário. 2a ed. Buenos Aires: Depalma, 2000, p. 3.
2 4 4 - A n o t a ç õ es s o b r e o S is te m a T r ib u t á r io B r a s ileir o

de sus fines y objetivos específicos, sino también al servido de los fines


y objetivos constitucionales. De ahí, la necesidad de que el análisis dei
plan o programa constitucional haya de constituir en el futuro uno de
los puntos básicos en la elaboración doctrinal de los estudiosos de
cualquier ciênciajurídica. Desde esa perspectiva, la Constitución se nos
presenta como un instrumento no exclusivamente regulador de los
princípios cardinales de la organización y funcionamiento dei gobierno,
sino, esencialmente, de restricción de poderes en amparo y garantia de
la libertad individual.
Diante desta peculiaridade, compartilhamos do pensamento de Humberto
Ávila quando afirma que o Direito Tributário Brasileiro é, essencialmente, um
Direito Constitucional Tributário10.

3 . Sistem a T r ib u t á r io B r a s ile ir o n a C o n s t i t u iç ã o
de 1 9 8 8

O Brasil destaca-se por conter em seu texto constitucional um extenso


capítulo sobre o Sistema Tributário Nacional11.
Pode-se afirmar que a Constituição Brasileira, por sua extensão e detalhes,
é reglamentarista, adotando aqui o termo aprendido com Domingo Garcia
Belaunde em sua obra Constitución ypolítica12'.
Y el punto es el siguiente; o se elabora una constitución principista (o
analítica) o se prefiere una constitución extensa (o reglamentarista). La
idea que anima a la primera es que la constitución, sin ser un texto largo,
debe ser sobria en su exposición, conteniendo solamente los principios
más generales en lo que se refiere a los derechos fundamentales y a los
medios para protegerlos, así como los mecanismos precisos para el
comportamientoy control entre los poderes. Los demás aspectos, deberán
irtratados en leyes o estatutos constitucionales (como decía en dias pasados

10 ÁVILA, Humberto. Sistem a constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 110.
11 "O sistema tributário nacional é o conjunto de normas positivas e princípios que, tendo como
ápice a Constituição Federal, regula os direitos e deveres tributários tanto dos contribuintes
quanto do Poder Público. O dever de pagar tributos é tão fundamental quanto os direitos assim
denominados na CF (saúde, educação, moradia, liberdade), pois a arrecadação é o antecedente
lógica da despesa, meio público de efetivação do direitos fundamentais." (WEISS, Fernando
Lemme. Princípios tributários e financeiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 140).
12 C o n stitu ción y P o lítica . 3a ed. Biblioteca Peruana de Derecho Constitucional n° 2. Lima.
2007, p. 107.
D en ise L u c e n a C a v a l c a n t e - 2 4 5

Alberto Borea O., en estas mismas páginas) y cuya modificación debe


tener un trâmite especial. Lo contrario es caer en toda nuestra tradición
republicana, de textos muy cenidos y detallados, que envejecen con el
tiempo. Es preciso hacer hincapié en esta idea fundamental, ya que una
constitución no puede serun memorial de agravios ni un catecismo político.
Excessivamente detalhista é o Sistema Tributário Brasileiro na Consti­
tuição de 1998, tendo muitas normas que poderiam mesmo estar na legisla­
ção ordinária13.
O Capítulo I, do Título VI, da Constituição Brasileira - CB/88 - trata
da Tributação e do Orçamento, em 19 (dezenove) artigos e mais de 100
(cem) incisos e alíneas, apresentando o Sistema Tributário Nacional. Tantos
dispositivos constitucionais podem ser justificados se considerar que a Cons­
tituição Brasileira foi promulgada em 1988, ou seja, mais de vinte anos depois
do Código Tributário Nacional - CTN, que foi promulgado pela Lei n°
5172, de 25 de outubro de 1966. Sendo o CTN anterior à CB/88, esta o
recepcionou como Lei Complementar, atendendo ao disposto no art. 146, da
CB/88 que determina que somente Lei Complementar14poderá tratar de
Normas Gerais de Direito Tributário.
O Sistema Tributário Nacional está disposto em seis seções da Consti­
tuição da República Federativa do Brasil, com os seguintes subtítulos:
Art. 145 ao art. 162:
• Dos Princípios Gerais
Das Limitações ao Poder de Tributar
• Dos Impostos da União
• Dos Impostos dos Estados e Distrito Federal
• Dos Impostos dos Municípios

13 "A Constituição de 1988 [brasileira] é uma das mais progressivas do mundo, embora o seu
caráter detalhista possa fazê-la conter elementos materialmente espúrios. Contudo, é um marco
na construção constitucional, e especialmente preocupada com a cidadania, por isso mere­
cendo o cognome de Constituição Cidadã." (CUNHA, Paulo Ferreira da. D ireito constitucional
geral. Lisboa: Guid Juris, 2006, p. 225).
14 No Brasil, as leis podem ser complementares ou ordinárias. A regra geral é lei ordinária, sendo
a lei complementar a exceção, portanto, quando necessária, dependendo da matéria, o cons­
tituinte determina expressamente. De forma clara expõe José Afonso da Silva: "Quanto a estas
últimas [lei complementar] nada mais carece dizer senão que só diferenciam do procedimento
de formação das leis ordinárias na exigência do voto da maioria absoluta das Casas, para sua
aprovação (art. 69), sendo, pois, formadas por procedimento ordinário com quorum especial."
(Curso de direito constitucional po sitivo. 32a ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 531).
2 4 6 - A n o t a ç õ es so b re o S istem a T r ib u t á r io B r a s ile ir o

Da Repartição das Receitas Tributárias


Em relação à repartição dos impostos, o constituinte delimitou quais os
impostos que cada ente da federação poderá instituir. Por isso se diz que no
Brasil a discriminação constitucional de competência é rígida, não podendo
os outros entes estatais instituir novos impostos15, ressalvada somente a com­
petência residual da União Federal16.
Pelo quadro a seguir tem-se uma síntese dos impostos existentes no Brasil17:

IMPOSTOS

/ 1 ^
UNIÃO FEDERAL ESTADOS E MUNICÍPIOS
DISTRITO FEDERAL
IR - IP I- II- IE - IT R
ICMS - IPVA - ITCMD ISS - IPTU - ITBI
IO F - IG F

1S "As competências privativas antes referidas implicam, de um lado, numa afirmação do poder
fiscal de seu titular; e de outro, porém, implicam numa negação deste mesmo poder. De fato,
com base em sua soberania o Estado tudo poderia fazer. A Constituição, entretanto, limita esse
poder à medida que o partilha entre as ordens parciais de governo que compõem a Federação.
Tal é feito através de atribuição de campos econômicos determinados a cada um. Assim, tem
0 legislador competente a possibilidade de instituir o imposto dentro dos lindes de seu campo.
Se, entretanto, extravasá-lo de qualquer forma ou captar manifestação de riqueza diversa da
que lhe foi atribuída, haverá inconstitucionalidade por invasão de competência. Daí a impor­
tância de investigar se os fatos de exteriorização escolhidos pela lei tributária estão compreen­
didos no campo reservado à competência da entidade tributante ou ainda se os critérios de
determinação de tributo não o desnaturam." (SO UZA, Hamilton Dias de. A competência
tributária e seu exercício: a racionalidade como limitação ao poder de tributar. In: FERRAZ,
Roberto (coord.). Princípios e limites da tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 260).
16 Art. 154. A União poderá instituir:
1 - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam
não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados
nesta Constituição;
II - na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou
não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as
causas de sua criação.
17 Para esclarecer as siglas utilizadas, transcreve-se o texto da Constituição que assim dispõe:
DOS IMPOSTOS DA UNIÃO
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I - importação de produtos estrangeiros [II];
II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados [IE];
III - renda e proventos de qualquer natureza [IR];
IV - produtos industrializados [IPI];
V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários [IOF];
VI - propriedade territorial rural [ITR];
D en ise L u c e n a C a v a lc a n te - 2 4 7

Esclarece-se, por oportuno, que no Brasil o tributo representa o gênero,


cujas espécies são: impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos
compulsórios e contribuições sociais.
As contribuições sociais no direito brasileiro merecem destaque, sendo
hoje de grande relevância na arrecadação tributária, representando um elevado
percentual no total da arrecadação, o que faz questionar sua natureza origi­
nalmente extrafiscal para fiscal, se é que ainda se pode fazer tal distinção.

4 . D o s PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS

Os princípios dispostos na Constituição brasileira refletem as mudanças his-


tórico-políticas do Direito Brasileiro, quando instaura em 1988 a democracia no
Brasil. Apesar de muitas das previsões normativas ainda não gozarem de plena
eficácia, as normas previstas no capítulo referente ao Sistema Tributário Nacional
já representam um grande avanço. Cabe agora ao jurista brasileiro fazer com que
a eficácia destas normas alcance a realidade, como ensina Paulo Bonavides18:
Como toda Constituição é provida pelo menos de um mínimo de eficá­
cia sobre a realidade - mínimo que o jurista deve procurar converter, se
possível, em máximo - é claro que o problema constitucional toma em
nossos dias nova dimensão, postulando a necessidade de colocá-lo em
termos globais, no reino da Sociedade. Essa sociedade, invadida de
interferências estatais, não dispensa, por conseguinte, o reconhecimen-

V II - grandes fortunas, nos termos de lei complementar [IG F ], (Este im p o sto n u n ca fo i


reg u la m en ta d o ).

DOS IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL


Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I - transmissão causa m ortis e doação, de quaisquer bens ou direitos [ICMD];
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se
iniciem no exterior [ICMS];
III - propriedade de veículos automotores [IPVA],
DOS IMPOSTOS DOS MUNICÍPIOS
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana [IPTU];
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza
ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de
direitos a sua aquisição [ITBI];
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art, 155, II, definidos em lei
complementar [ISS].
18 Curso d e direito constitucional. 11a ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 79.
2 4 8 - A n o t a ç õ es s o b r e o S istem a T r ib u t á r io B r a s ileir o

to das forças que nela atuam poderosamente, capazes de modificar com


rapidez e freqüência, o sentido das normas constitucionais, maleáveis e
adaptativas na medida em que possam corresponder, de maneira
satisfatória, às prementes e fundamentais exigências do meio social.
O constituinte, ao estabelecer tantas diretrizes, buscou consolidar o com­
promisso de transformação da sociedade brasileira através da nova ordem
constitucional19em contraponto à desordem socioeconômica que insiste em
permanecer no país20.
Daí, a princípio, numa primeira leitura da Constituição brasileira, se ter
a sensação de que muitas regras sejam redundantes ou óbvias, porém, o que
pretendeu o constituinte foi, essencialmente, resguardar os direitos funda­
mentais do cidadão-contribuinte limitando os poderes do Estado aos estritos
liames legais, por intermédio de princípios constitucionais.
As limitações constitucionais ao poder de tributar são tratadas como
Princípios Gerais (Seção I - Art. 145/149-A) da Constituição Brasileira.
Esses princípios21representam, de um lado, as garantias fundamentais
do cidadão-contribuinte e, do outro, um freio ao poder do Fisco, conforme
define Hugo de Brito Machado22^ 8^ :

19 Ives Gandra da Silva Martins comenta com propriedade: "Os vinte anos da 7a Constituição
Brasileira demonstram que o regime jurídico por ela instituído propiciou uma estabilidade
institucional jamais alcançada, sob as Constituições anteriores. (...). Em outras palavras: o regime
democrático funcionou perfeitamente, o que, a meu ver se deveu ao fato de a Constituição de
1988 ter conformado um equilíbrio de Poderes, desconhecido, por exemplo, de nossos vizinhos
(Venezuela, Equador e Bolívia), cujas Constituições, mais recentes do que a nossa, não foram
capazes de instituir. Com efeito, nestes países, as Constituições privilegiam apenas o Poder
Executivo - são quase ditaduras - tornando os outros 2 Poderes (Legislativo e Judiciário) vicários
e subordinados ao Executivo. Talvez tenha sido o grande mérito da Lei Suprema de 1988, que,
nada obstante as 62 emendas (56 no processo ordinário e 6 no revisional) e os 1.600 projetos
de emenda em trânsito no Congresso, mantém a estabilidade democrática, graças a estabilidade
das instituições. Neste particular, a efetividade da Constituição é inequívoca. No campo tribu­
tário, todavia, permanecem indiscutíveis impasses, que têm levado a sucessivas modificações."
(Efetividade da Constituição em matéria tributária. In: Revista Brasileira de D ireito Tributário e
Finanças Públicas. São Paulo: Magister e CEU. Vol. 12, jan./fev. 2009, p. 23).
20 Sobre a questão da desordem mundial, sugere-se a leitura: SADER, Emir. Perspectivas. Coleção:
O s po rq uês da desordem m undial. Rio de Janeiro: Record, 2005.
21 "Conforme ensinou Jean Boulanger, os princípios são um indispensável elemento de fecundação
da ordem jurídica positiva. Eles contêm, em estado de virtual (à 1'état de virtualitê), um grande
número de soluções exigidas pela realidade. Uma vez afirmados e aplicados pela Jurisprudência,
os princípios constituem o material graças ao qual a doutrina pode edificar com confiança as
construções jurídicas. E conclui aquele autor francês: 'Le constructions juridiques ont les príncipes
po u r armature’ . A concepção do Direito como um sistema normativo alicerçado em princípios
requer uma visão de ordem jurídica diferente daquela construída no passado. Aceitar o fato de
que a ordem jurídico-positiva é articulada em torno de princípios, que conferem sistematicidade
D enise L u c e n a C a v a l c a n t e - 2 4 9

Em sentido amplo, é possível entender-se como limitação ao poder de


tributar toda e qualquer restrição imposta pelo sistemajurídico às enti­
dades dotadas desse poder. Aliás, toda atribuição de competência im­
plica necessariamente limitação. A descrição da competência atribuída,
seu desenho, estabelece seus limites.
O Sistema Tributário Brasileiro reconhece os princípios gerais de direito
tributário no texto da Constituição23, dentre os quais destacam-se os seguintes:
1) Capacidade contributiva (Art. 145, § 1°)
2) Legalidade (Art. 150, I)
3) Isonomia (Art. 150, II)
4) Irretroatividade (Art. 150, III, a)
5) Anterioridade (Art. 150, III, b)
6) Não confisco (Art. 150, IV)
7) Liberdade de tráfego (Art. 150, V)
Além dos princípios acima especificados, o constituinte também esta­
beleceu na Constituição Brasileira a imunidade referente aos impostos, re­
presentando esta imunidade também uma limitação constitucional ao poder
de tributar.

orgânica ao real funcionamento do Direito, tem como conseqüência uma profunda alteração
na forma de pensar e de se aplicar o Direito." (PONTES, Helenilson Cunha. O p rin cípio da
prop orcion a lid ade e o D ireito Tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 28).
22 Curso de D ireito Tributário. 30a ed. São Paulo: Malheiros, p. 274.
23 DAS LIMITAÇÕES DO PODER DE TRIBUTAR (Constituição Federa!):
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente,
proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
lil - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver
instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou
aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu
ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais
ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo
Poder Público.
2 5 0 - A n o t a ç õ es s o b r e o S is t e m a T r ib u t á r io B r a s ile ir o

A imunidade tributária significa a impossibilidade da União, dos Esta­


dos e dos Municípios instituírem impostos sobre o patrimônio, renda ou ser­
viços nos casos previstos na Constituição. Trata-se, pois, de uma garantia
constitucional, conforme expresso no texto a seguir24:
A não-incidência constitucional representa mesmo uma garantia
aos cidadãos quando devidamente prevista. Havendo uma norma
limitadora determinando que pessoas, bens e serviços não sejam
tributados, tal norma estará gerando direito, qual seja, a garantia da
não exação.
Ao contrário da incidência da norma, que uma vez ocorrida faz nascer
direitos para o Fisco, precisamente o direito de constituir um crédito, a
norma que impede a incidência, ou mesmo veda de antemão qualquer
interferência em determinados casos, também cria direitos, só para o
cidadão e não para o Fisco.
Como mencionado anteriormente, a imunidade restringe-se somente aos
impostos, não alcançando as demais espécies tributárias.
Neste século XXI, os princípios têm crescido e passam a direcionar mais
diretamente o Direito, superando a fase da estrita aplicação das regras. Perce-
be-se isto nas decisões jurisprudenciais que já não se limitam à mera aplicação
da regra por subsunção.
Como afirma Hugo de Brito Machado, o direito brasileiro vem mos­
trando uma certa tendência para oprestígio dos precedentes, que aos poucos se vão
consubstanciando em súmulas dos tribunais25.
Novos paradigmas prevalecem nesta época, onde se deve buscar muito
mais os ideais de justiça, do que a mera aplicação de lei genérica, seja ela boa
ou má. Neste contexto, pode-se afirmar que a “má-lei” deve ser expurgada do
sistema através da força constitucional dos princípios gerais do Direito.
Nas palavras de Paulo Ferreira da Cunha, seria a tutela do caso concreto
e não da lei geral26:

24 RODRIGUES, Denise Lucena. A imunidade como limitação à competência impositiva. Malheiros:


São Paulo, 1995, p. 21.
25 Hugo de Brito Machado aborda esta questão quando explica as características do sistema do
direito legislado e o sistema do direito do caso. (In: Uma introdução ao estudo do Direito. São
Paulo: Dialética, 2000, p. 48).
26 Geografia constitucional - sistemas juspolíticos e globalização. Lisboa: Quid Juris. 2009, p. 314.
Denise Lu ce n a C a v a lc a n te - 251

Um Direito do concreto. Direito mais da tutela do casoconcreto que da lei


geral (Perelman, Müller). Ousaríamos dizer que se deverá ir pelo pen­
samento tópico-problemático e não pelo pensamento dogmático, pelo
judicialismo e não pelo normativismo e, até, pelo pluralismo jurídico
(desde logo pluralismo nas fontes consideradas) e não pelo monismo
jurídico - sobretudo na suaveste de positivismo legalista do dura lex sed
lex e, pior ainda, na sua versão portuguesíssima, <são ordes>, com ou
sem acompanhamento do argumentandum baculinum... Também o di­
reito pós-moderno dá prioridade ao cumprimento de um conjunto mí­
nimo de leis, contra a selva normativa, que banaliza ou trivializa a nor­
ma: e a má norma, como a má moeda, expulsa a boa.
Estas ideias são muito importantes para o Direito Tributário, visto que
este é um dos ramos mais rígidos do Direito e está sempre relacionado com
conflitos patrimoniais entre o Fisco e o cidadão-contribuinte.
O Direito Tributário também tem que se adaptar aos novos paradigmas
da pós-modernidade, minimizando seu aspecto coerdvo e burocrático e, mui­
tas vezes, ameaçador, conforme exposto pelo próprio símbolo da Receita Fe­
deral do Brasil, que ainda hoje é a figura do “leão” como animal representativo
deste órgão.
A simbologia leonina é completamente incompatível com o atual Esta­
do Democrático de Direito, além de prejudicar a imagem do Fisco, que insis­
te em uma figura propagandista da década de setenta, onde ainda reinava a
ditadura militar no Brasil27.
As grandes mudanças no sistema tributário brasileiro devem começar nos
pequenos detalhes (sugere-se, desde logo, a extinção do inapropriado símbolo
do leão), partindo da mudança burocrática dos balcões de atendimento dos
órgãos fazendários até a reafirmação dos princípios constitucionais tributários.

5 . R efo rm a t r ib u t á r ia n o B r a sil

Já faz algum tempo que se discute no Brasil a necessidade de uma Re­


forma Tributária. Alguns textos legislativos já foram propostos, porém, o mais

27 A figura do leão fazendário é, inclusive, o destaque do programa "cidadania fiscal" que,


embora de excelente qualidade, a nosso ver, não deveria insistir na figura do "leão fazendário".
Disponível em: <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br. Acesso em: 12/10/2009>.
2 5 2 - A n o t a ç õ es s o b r e o S is tem a T r ib u t á r io B r a s ile ir o

recente está em tramitação no Congresso Nacional através da Proposta de


Emenda Constitucional n° 233 (PEC n° 233/2008).
O contexto da Reforma Tributária no Brasil vem sendo alterado fre­
quentemente e o texto final que hoje tramita no Congresso Nacional já está
com tantas alterações que não mais representa uma reforma que possa melho­
rar o sistema tributário vigente.
Desde a promulgação da Constituição em 1988, mais de 60 (sessenta)
alterações nos dispositivos constitucionais já foram instauradas no Sistema Tri­
butário Nacional, através das 10 Emendas Constitucionais a seguir elencadas:
1. EC n° 3, de 17/03/1993
2. EC n° 20, de 15/12/1998
3. EC n° 29, de 13/09/2000
4. EC n° 33, de 11/12/2001
5. EC n° 37, de 12/06/2002
6. EC n° 39, de 19/12/2002
7. EC n° 41, de 19/12/2003
8. EC n° 42, de 19/12/2003
9. EC n° 44, de 30/06/2004
10. EC n° 55, de 20/09/2007
Tantas alterações têm fundamento na própria Constituição Brasileira, que
tem previsão expressa sobre a necessidade de avaliação periódica da funcionali­
dade do sistema tributário nacional e, considerando que as principais diretrizes
do sistema encontram-se no texto constitucional, quase todas as alterações só
podem ser feitas por emendas constitucionais.
Assim prevê o art. 52, da Constituição Federal:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
XV - avaliar periodicamente a funcionalidade do SistemaTributário
Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das
administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Fede­
ral e dos Municípios. (Texto incluído pela Emenda Constitucional
n° 42, de 19.12.2003).
As mudanças já ocorridas ainda não conseguiram suprir as necessidades
contemporâneas do país, dentre elas, a vigência de um sistema eficiente que
D en ise L u c e n a C a v a l c a n t e - 2 5 3

viabilize a justiça fiscal; a criação de uma estrutura estatal compatível com as


mudanças efetivadas e a existência de condições concretas para enfrentar a
litigiosidade fiscal em massa que predomina no Brasil.
A exposição de motivos do Projeto de Emenda Constitucional n° 233/
2008 estabelece teoricamente como objetivos principais: 1. simplificação do
sistema tributário, reduzindo e desburocratizando a legislação; 2. fim da guerra
fiscal; 3. correção de distorções na estrutura tributária que prejudicam o in­
vestimento e a eficiência; 4. desoneração tributária, com foco nos tributos que
mais prejudicam o crescimento; 5. melhora da Política de Desenvolvimento
Regional; 6. melhoria da qualidade das relações federativas.
Não obstante a clareza dos objetivos acima expostos, a íntegra da PEC
n° 233/2008 muito longe está de alcançar as ambiciosas diretrizes elencadas
na exposição de motivos, sendo o projeto muito mais de uma reforma admi-
nistrativo-fiscal do que mesmo uma reforma tributária.

6. C o n s id e r a ç õ e s fin a is

Pretendeu-se, no presente estudo, fazer uma abordagem do atual Sis­


tema Tributário Nacional conforme as diretrizes constitucionais, desta­
cando a sua aplicabilidade nos casos concretos, bem como enfatizar a
necessidade de adaptação deste sistema aos novos paradigmas do Direito
neste século XXI.
Quando se apresenta determinada estrutura jurídica de um país, deve
dar uma visão de como as instituições que instrumentalizam o Direito atuam,
deixando claro como é a realidade advinda dos casos concretos.
No Brasil, o Sistema Constitucional Tributário obteve grandes avanços
com a disposição expressa das Limitações ao Poder de Tributar, reforçando no
âmbito constitucional os direitos do cidadão-contribuinte.
Nesta era principiológica deve-se buscar uma reafirmação dos princí­
pios expressos no texto Constitucional, enfocando a materialização destes
em regras específicas, ou seja, em medidas simples e de grande alcance,
como por exemplo, na desburocratização no atendimento direto ao cida­
dão-contribuinte; na necessidade de cordialidade nos guichês de atendi­
mento; na elaboração de diretrizes coletivas de esclarecimento de novas
regras; simplificação e disponibilização do sistema de atendimento eletrô­
254 - A n o ta ç õ e s so b re o S is te m a T rib u tá rio B ra s ile ir o

nico; enfim, atos concretos e diretos que facilitem cada vez mais a rotina
fiscal do cidadão-contribuinte.
O importante, neste contexto contemporâneo, é fazer com que a Justiça
Fiscal, princípio fundamental que é, esteja cada vez mais adequada à realida­
de brasileira28.

7 . B ib l io g r a f ia

Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.


ÁVILA, Humberto.
BELAUNDE, Domingo Garcia. Constitución y política. 3a ed. Lima: Biblioteca Peruana de
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32a ed. São Paulo: Malhei­
ros, 2009.

28 Como bem afirma Klaus Tipke: "La Justicia se garantiza primordialmente mediante Ia igualdad
ante Ia ley, en el Derecho tributário mediante Ia igualdad en el reparto de Ia carga tributaria.
Quien desee comprobar si se respeta o se lesiona el principio de Ia de igualdad necesita un
término de comparación adecuado a Ia realidad. Este se obtiene a partir de los principios
adecuados a Ia realidad en los que idealmente debe fundarse el Derecho positivo. Quien
desee encontrar el principio adecuado a Ia realidad debe estar familiarizado con dicha realidad."
(TIPKE, Klaus. Moral tributaria dei Estado y de los contribuyentes. Traducción de Pedro M.
Herrera Molina. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 30).
D enise L u c en a C a v a l c a n t e - 2 5 5

SOUZA, Hamilton Dias de. A competência tributária e seu exercício: a racionalidade como
limitação ao poder de tributar. In: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e limites da tribu­
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SPISSO, Rodolfo. Derecho constitucional tributário. 2a ed. Buenos Aires: Depalma, 2000.
TIPKE, Klaus. Moral tributaria dei Estado y de los contribuyentes. Traducción de Pedro M. Herrera
Molina. Madrid: Marcial Pons, 2002.
WEISS, Fernando Lemme. Princípios tributários efinanceiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
A Imunidade Religiosa e
as Lojas Maçônicas

Eduardo Sabbag
Advogado; Doutorando em Direito Tributário na PUC/SP; Mestre em Direito
Público e Evolução Socialpela UNESA/RJ; Professor de Direito Tributário e de
Língua Portuguesa na Rede de Ensino LFG; Coordenador e Professor do Curso
depós-graduação, em Direito Tributário na Rede de Ensino LFG.
E d u a rd o Sabbag - 2 5 9

1. In tro d u ção

O texto constitucional prevê a imunidade religiosa para os templos de


qualquer culto, desonerando-os de impostos sobre o patrimônio, a renda e
os serviços.
Nessa medida, entende-se que deve prevalecer a intributabilidade dos
templos, que passarão ao largo da incidência de impostos como o IPTU (so­
bre o local destinado ao culto e seus anexos), o IR (sobre as rendas, dízimos e
espórtulas), entre outros, desde que relacionados às suas finalidades essenciais.
É evidente que o conceito de “templo” mostra-se aberto ao intérprete, que
deverá perquirir, à luz da jurisprudência e doutrina, a exata extensão semântica
do termo, separando a benesse razoável daquela proteção desproporcional.
Daí surgirem questionamentos pertinentes que povoam o tema e que
nos instigam a enfrentá-lo em análise detida: “conventos são templos?”; “ce­
mitérios são templos?”; “o bem imóvel, de propriedade do templo, locado a
terceiros é templo?”; “as lojas maçônicas são templos?”; entre tantos outros.
Conquanto tenha tratado da investigação de tais temas alhures1, ater-me-ei
ao último questionamento no presente artigo.

2 . A IMUNIDADE RELIGIOSA E A PREVISÃO CONSTITUCIONAL

A imunidade dos templos, também denominada “imunidade religiosa”,


está prevista na alínea “b” do inciso VI do art. 150 da Carta Magna:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte,
é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)

VI - instituir impostos sobre:


b) templos de qualquer culto; (...)
De início, é importante frisar que o Brasil é um país majoritariamente
católico, porém laico (ou leigo), isto é, um Estado que não professa, desde a
Proclamação da República, uma dada “religião de Estado”, dita “religião

1 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
27 7-297.
2 6 0 - A I m u n id a d e R e l ig io s a e a s L o ja s M a ç ô n ic a s

oficial”. O fato de sermos um Estado laico não significa que deixamos de ser
“teístas”. O Preâmbulo do texto constitucional indica que entre nós subsiste
a crença na existência de Deus e em Sua ação providencial no Universo.
No Brasil republicano, a religião de Estado, que até então permanecia,
cedeu passo a um Estado “de religiões”, ou seja, a um Estado não confessional,
à semelhança da maioria dos países espalhados pelo mundo.
No plano do Direito Comparado2, impende registrar que os países ten­
dem a proteger e a estimular a fé dos cidadãos, afastando a tributação das
igrejas e, de modo reflexo, incentivando sua proliferação.
Nos Estados Unidos, há desoneração por meio de legislação ordinária, na
forma de isenção, haja vista não se ter desenvolvido por lá a teoria das imuni-
dades; na Alemanha, as entidades religiosas são consideradas “corporações de
direito público” (Constituição, art. 140), entretanto subsiste o “imposto ecle­
siástico” (Kirchensteuer), todavia o Estado subvenciona as igrejas; no Uruguai
(Constituição/1996, art. 5o), há regra desonerativa para todos os impostos; no
Chile (Constituição/1981, art. 19, §6°), os templos ficam livres de toda classe
de contribuições.
Voltando ao Brasil Pós-Império, sabe-se que no período que mediou
a proclamação da República e a Carta Magna de 1937, a intributabilida-
de das religiões se deu por meio de legislação ordinária e, somente com o
advento da Constituição Federal de 1946, a não incidência ganhou a esta­
tura constitucional3.
E nesse contexto que exsurge a atual norma imunitória, constante do art.
150, VI, b, CF, no bojo da laicidade, cujo teor prevê a desoneração de impos­
tos dos templos de qualquer culto.
Vale destacar, em tempo, que o elemento teleológico que justifica a nor­
ma em comento atrela-se à liberdade religiosa (art. 5o, VI ao VIII, CF) e à
postura de “neutralidade ou não identificação do Estado com qualquer religião”
(art. 19, I, CF)4.

2 V. TORRES, Ricardo Lobo. Tratadode direito constitucional,financeiro, tributário: Os direitos


humanos e a tributação.Imunidade e Isonomia. V. III. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p. 238.
3 Idem.
4 Ibidem, p. 240.
E d u a r d o Sa bbag - 2 6 1

Dessarte, a liberdade religiosa significa que o cidadão poderá professar a


fé, no culto e templo que lhe aprouverem, ou, ainda, não devotar preces a
nenhuma religião, em livre escolha5. Esse modo de pensar, que pode ser inti­
tulado de laicismo ou secularismo, veio dar espaço no texto constitucional ao
pluralismo religioso, na seara das religiões, corroborando o Estado de Direi­
to, que prima pela necessária equidistância entre o Estado e as Igrejas, servin­
do como “um dos pilares do liberalismo e do Estado de Direito ”6. A laicidade
implica que, havendo privilégio, todos os templos devem dele usufruir.
Na temática da desoneração em decorrência da imunidade, diz-se que
esta prevê a intributabilidade das religiões, como um direito fundamental,
afastando dos templos os impostos, independentemente de fatores extrínse-
cos, v.g., a extensão da igreja ou do seu número de adeptos.
Ademais, a imunidade para os templos de qualquer culto trata do desven-
cilhamento de impostos que possam recair sobre a propriedade, a renda e os
serviços adstritos ao patrimônio da entidade. Nessa medida, não estão exonera­
dos os demais tributos, diversos dos impostos, que terão a normal incidência,
porquanto, “uma vez que o texto constitucionalfala em ■ impostos’, relaciona-se ao
fato de tal imunidade (...) não se aplicar ‘às taxas, à contribuição de melhoria, às
contribuições sociais ou parafiscais e aos empréstimos compulsórios”"7. Esse tem sido,
de há muito, o pensamento emanado da jurisprudência doméstica8.
Posto isso, a exoneração em tela visa afastar os impostos dos templos
de qualquer culto, que se mantêm suscetíveis à tributação de outros gra-
vames tributários9.

3 . A IMUNIDADE RELIGIOSA E OS CONCEITOS DE CULTO E TEMPLO

Para a compreensão exata do alcance da imunidade religiosa, o estudioso


deve, preliminarmente, delimitar os conceitos de culto e templo.

5 V. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro, tributário: Os direitos


humanos e a tributação. Imunidade e Isonomia. V. III. Rio de janeiro: Renovar, 1999, p. 239.
6 Idem.
7 ICHIHARA, Yoshiaki. Direitos Tributários. 7a ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 240.
8 V. RE 129.930/SP, 2a T., rel. Min. Carlos Velloso, j. em 07-05-1991.
9 V. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro, tributário: Os direitos
humanos e a tributação. Imunidade e Isonomia. V. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 244.
2 6 2 - A Im u n id a d e R e l ig io s a e a s L o ja s M a ç ô n ic a s

Em breve incursão conceituai, afirmamos que culto é a manifestação reli­


giosa, cuja liturgia adstringe-se a valores consonantes com o arcabouço valorati-
vo que se estipula, programática e teleologicamente, no texto constitucional.
Assim, o culto deve prestigiar a fé e os valores transcendentais que a
circundam, sem colocar em risco a dignidade das pessoas e a igualdade entre
elas, além de outros pilares de nosso Estado. Com efeito, é imprescindível à
seita a obediência aos valores morais e religiosos, no plano litúrgico, conectan-
do-se a ações calcadas em bons costumes (arts. I o, III, 3o, I e IV; 4o, II e
VIII, todos da CF), sob pena do não reconhecimento da qualidade imunitó-
ria. Portanto, não se protegem seitas com inspirações atípicas, demoníacas e
satânicas10, que incitem a violência, o racismo, os sacrifícios humanos ou o
fanatismo devaneador ou visionário.
De outra banda, o conceito de templo (do latim templu) detém larga
amplitude semântica. A doutrina tem enfrentado dificuldades em reduzi-lo a
planos cartesianos, enquanto a prática tem mostrado uma inaudita expansão
das igrejas, frustrando a tentativa de precisa definição do papel que tais enti­
dades vêm ocupando, de fato, na realidade hodierna.
Em resumo, pode-se afirmar que várias teorias tentam traçar o conceito
de templo. Em homenagem à celeridade textual, pedimos vênia para esmiu­
çar exclusivamente aquela à qual nos filiamos, na linha da doutrina abaliza­
da11: a que prima pela concepção do “templo-entidade
Trata-se de teoria que conceitua o templo como entidade, na acepção de
instituição, organização ou associação, mantenedoras do templo religioso, en­
caradas independentemente das coisas e pessoas objetivamente consideradas12.
No sentido jurídico, possui acepção mais ampla que a mera pessoa jurídica,
indicando o próprio “estado de ser” ou a sua “existência”, vista em si mesma.
Nessa medida, o templo-entidade extrapola, no plano conceituai, o for­
mato da mera universitas rerum ou da própria universitasjuris, aproximando-se

I0 V. SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. A Imunidade Religiosa. In: ROCHA, Valdir de
Oliveira (coord.) RD D T, n° 4, janeiro de 1996, p. 61.
II Como defensores dessa concepção, aproximam-se José Eduardo Soares de Melo, Marco Auré­
lio Greco, Celso Ribeiro Bastos, entre outros. A ratificar a citação dos doutrinadores, vide
CAMPOS, Flávio. Imunidade Tributária na Prestação de Serviços por Templos de Qualquer
Culto. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Revista Dialética de Direito Tributário, n° 54,
março de 2000, p. 44-53 (p. 50).
12 V. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 27a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 533.
E d u a r d o Sabbag - 2 6 3

da concepção de organização religiosa, em todas as suas manifestações, na


dimensão correspondente ao culto.
A propósito, o art. 150, § 4o, da CF, oferta subsídios importantes à linha
argumentativa aqui expendida. Observe-o:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte,
é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
§ 4o- As vedações expressas no inciso VI, alíneas “b” e “c”, compreen­
dem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as
finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas, (grifo nosso).
O grifo no dispositivo prenuncia a nossa preocupação com um importante
detalhe nele inserto, que ofertará argumentação decisiva para a defesa da imuni­
dade aos templos maçônicos. É que o artigo 150, § 4o, da CF, que deve ser lido
em conjunto com a alínea “b” ora estudada, em uma interpretação sistemática,
estatui que haverá desoneração sobre “(...) patrimônio, renda e os serviços rela­
cionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”.
É evidente que a dicção do comando tem servido para corroborar, entre
outros pontos importantes, a ideia de que o legislador constituinte tendeu a
prestigiar a Teoria Moderna, na esteira de uma interpretação ampliativa,
por tratar, textualmente, do vocábulo “entidade”, chancelando, a nosso ver, a
adoção da concepção do templo-entidade.
Curiosamente, segundo Flávio Campos13, o texto constitucional registra o
vocábulo entidade “exatas cinqüenta e duas vezes e, em todas elas, emprega-o
com este sentido de ‘instituição’, associação’, ‘organização’”.
A nosso sentir, a concepção moderna tem-se mostrado a mais adequada à
satisfação da problemática que circunda a tributação dos templos religiosos,
que, em virtude do dinamismo que tem orientado a atividade, com questões
jurídicas as mais variadas possíveis, requerem do exegeta um certo desprendi­
mento das estruturas formais, a fim de atingir a ratio legis e propor a justiça fiscal
aos casos concretos. É nesse contexto que verificamos a clara possibilidade de
defesa da imunidade às lojas maçônicas, o que se provará nos tópicos seguintes.

13 CAMPOS, Flávio. Imunidade Tributária na Prestação de Serviços por Templos de Qualquer


Culto. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Revista Dialética de Direito Tributário, n° 54,
março de 2000, p. 44-53 (p. 48).
2 6 4 - A I m u n id a d e R e l ig io s a e as L o ja s M a ç ô n ic a s

4 . A IMUNIDADE RELIGIOSA E AS LOJAS MAÇÔNICAS

O tema da imunidade religiosa para as lojas maçônicas é de escasso


tratamento na doutrina e na jurisprudência. Diante do cenário incipiente
sobre o assunto, propomos uma investigação a partir de algumas referên­
cias jurisprudenciais.
É que o caso foi tratado, em mais de uma vez, pelo Tribunal de Jus­
tiça do Distrito Federal, que considerou as lojas maçônicas “templos”, para
fins de imunidade tributária, afastando-se a incidência do IPTU. Obser­
ve os entendimentos:
EMENTA 1: TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. RECONHECI­
MENTO PELO PODER PÚBLICO. MAÇONARIA. ENTIDA­
DE RELIGIOSA. A imunidade tributária para as entidades religio­
sas, dentre estas as lojas maçônicas, decorre da letra constitucional e
dispensa qualquer procedimento administrativo para que exista e pro­
duza todos os seus efeitos. Apelo provido. Unânime. (APC 5.176.5999,
Relator VALTERXAVIER, l aTurma Cível, julgado em 28/06/1999,
DJ 09/09/1999 p. 44).
EMENTA 2: EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - IPTU -
MAÇONARIA - IMUNIDADE TRIBUTÁRIA - POSSIBILIDA­
DE - INTELIGÊNCIA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTI­
GO 8° DA LEI COMPLEMENTAR N° 363/2001.1. “A maçonaria é
uma religião, no sentido estrito do vocábulo, isto é na “harmonização da
criatura ao Criador.”É religião maior e universal”. (Proc. 2003.0150093525
-APC, RelatorASDRUBAL NASCIMENTO LIMA, 5*Turma Cível,
julgado em 15/03/2004, DJ 24/06/2004 p. 64)
EMENTA 3: EMBARGOS Â EXECUÇÃO FISCAL - IPTU -
MAÇONARIA - RELIGIÃO - IMUNIDADE TRIBUTÁRIA -
LEI COMPLEMENTAR DISTRITAL - ISENÇÃO - HONO­
RÁRIOS ADVOCATÍCIOS - VALOR EXARCEBADO. 1. A
imunidade é forma qualificada de não incidência, que decorre da su­
pressão da competência impositiva sobre certos pressupostos previstos
na Constituição. A maçonaria é uma sociedade de cunho religioso e
suas lojas guardam a conotação de templo contida no texto constitucio­
nal, devendo, portanto, ficar imunes aos impostos. (...) (Proc.
2000.0150021228 - APC, Relator SANDRA DE SANTIS, 3aTur-
ma Cível, julgado em 03/12/2001, DJ 03/04/2002 p. 38)
E d u a r d o Sa b ba g - 2 6 5

No embate processual que marcou os julgados em epígrafe, notou-se


que a Fazenda Pública do Distrito Federal defendeu a tese de que a loja
maçônica não pode ser considerada uma entidade imune, porquanto as suas
salas de reuniões não são “templos”, as reuniões da maçonaria não são cultos e,
ainda, não são religiosas as finalidades da entidade. Em resumo, a maçonaria
não se confundiria com uma religião.
A propósito, outros argumentos têm sido expendidos na direção contrária
à defesa da imunidade para as lojas maçônicas. Resumidamente, são eles: (I) que
os rituais da maçonaria são apenas “filosofias de vida”, dissociadas do conceito de
“divino”; (II) que o fato de ocorrer acessibilidade restrita às reuniões - o que não
é comum aos templos, em geral - coloca em xeque a subsunção do fato à norma
de imunidade; (III) que a imunidade para a maçonaria é fruto de “achismo”,
violador do princípio da isonomia.
Com a devida vênia, passo a ofertar o entendimento que reputo plausí­
vel, discordando dos argumentos apresentados.
A análise da questão avoca alta indagação, cuja complexidade emerge
da própria natureza semissecreta ou sigilosa da maçonaria, o que dificulta o
iter a ser trilhado, na identificação segura da existência do caráter religioso
nas lojas maçônicas.
Com efeito, não se mostra simples a tarefa de definir os contornos proce­
dimentais de uma sociedade considerada “secreta”, mormente para aqueles
não iniciados, como é o caso deste autor.
Felizmente, a literatura especializada sobre o tema propicia uma satisfa­
tória “iluminação” sobre o tema, levando-nos a crer que há, em verdade, um
caráter místico-religioso no templo maçônico.
A nosso sentir, a maçonaria deve ser considerada, para fins de imunidade
tributária, uma verdadeira religião, à semelhança de tantas outras que harmo-
nicamente coexistem em nosso Estado laico. Tal identidade se mostra eviden­
te quando a instituição aspira harmonizar a criatura ao Criador, por meio do
sistema sacramental que lhe é inerente.
O rito litúrgico que imanta as suas reuniões cerca-se de cerimonial, dou­
trina e símbolos, sob os quais se estende a espiritualidade do maçom, que é
levado à aprendizagem e ao estímulo de sua imaginação espiritual.
Se o “culto” é prática que se destina ao aperfeiçoamento dos sentimentos
humanos, e as cerimônias ritualísticas dos encontros maçônicos visam melhorar
2 6 6 - A Im u n id a d e R e l ig io s a e as L o ja s M a ç ô n ic a s

o caráter e a vida espiritual do homem, permitindo-o meditar sobre sua missão


e seus valores, não nos parece prudente dissociar o rito maçônico de culto.
Quanto à tese de que o ritual secreto viria de encontro ao necessário caráter
público de um templo merecedor da imunidade, não nos parece crível. Em toda
liturgia religiosa há mistérios que serão alcançáveis apenas a alguns, quer porque
ocupam posição sacerdotal privilegiada, quer porque se elevam na fé. Aliás, é da
natureza das religiões o seu alto grau de esoterismo. Na História Antiga, nem
todos se aproximavam das divindades, mas apenas os faraós e sacerdotes. Entre
os gregos, o conhecimento do “divino” era segregado a alguns iniciados. Os índios,
em seus rituais místicos, enaltecem o “transcendente”.
Nesse passo, não vejo o caráter secreto da maçonaria como inibitório da
configuração de “templo”, por acreditar que o esoterismo é atributo imanente
de qualquer religião.
E fato que tais argumentos passam ao largo do plano jurídico, o que, em
tese, enfraqueceria a sua robustez. Entretanto, a defesa da imunidade aos tem­
plos pode ser empreendida com o apoio do texto constitucional.
Se partirmos da ideia de que o templo é “entidade” e, portanto, uma
instituição ou organização que deve ser encarada independentemente das coi­
sas e pessoas objetivamente consideradas, perceberemos que sua dimensão
extravasa o parâmetro da universitas rerum, aproximando-se do próprio “esta­
do de ser”, da “existência humana”, analisados na essência.
No ideal de bem conceituar o “templo”, evita-se a sua “coisificação”, que
leva ao amesquinhamento da norma; enaltece-se o transcendental propósito
eclesiástico, na busca da certificadora mens legislatoris.
Ainda que saibamos que a loja maçônica não se mostre como “igreja”, no
sentido restrito do termo, não se pode afastar dela o contexto de religiosidade.
Aliás, o dispositivo constitucional não imuniza “igreja”, mas o templo, em sua
perspectiva axiológica, e não em um predeterminado standard ou formato este­
reotipado. Tem-se o templo na medida em que se busca, em seus rituais, o
caminho superior da fé, da crença em Deus, na perquirição do aperfeiçoamento
espiritual do homem. E o templo, em verdade, uma organização, nas mais dife­
rentes manifestações, desde que se prenda à dimensão correspondente ao culto.
Não se pode perder de vista que o conceito de religião é aberto, inexis-
tindo um regramento legal ou constitucional. Vale dizer que a conceituação
de religião, longe de ser substancial —em que se perscruta aleatoriamente o
E d u ardo Sabbag - 267

elemento conteudístico deverá ser funcional, abrindo-se para quaisquer


agrupamentos litúrgicos em que os participantes se coobriguem moralmente
a agir sob certos princípios. Nessa medida, o intérprete deve buscar o sentido
mais abrangente, sob pena de colocar em risco as crenças ou associações de
grupos minoritários14.

5 . A ISENÇÃO DE IPTU PARA AS LOJAS MAÇÔNICAS

Na linha da desoneração de impostos das lojas maçônicas, o legislador


infraconstitucional tem procurado decididamente estatuir o que a Lei Maior
deixou para o campo da interpretação. Não são incomuns as leis de isenção do
IPTU, reforçando a tese de que tais entidades, à semelhança dos templos
religiosos, são merecedoras do beneplácito estatal.
Cite-se, em tempo, o parágrafo único do artigo 8o da lei Complementar
n° 277, de 13 de janeiro de 2000, acrescido pela Lei Complementar n° 363, de
19 de janeiro de 2001, ambas do Distrito Federal, que prevê a isenção de IPTU
para imóveis construídos e ocupados por “templos maçônicos”. É curioso obser­
var que o legislador distrital, ao dispor sobre a indigitada isenção de IPTU para
as lojas maçônicas, referiu-se textualmente a estas como “templos religiosos”.
Note o artigo mencionado:
“Ficam isentos do pagamento do imposto sobre a propriedade predial e
territorial urbana - IPTU os imóveis construídos e ocupados por tem­
plos maçônicos e religiosos, de qualquer culto, ficando remidos os
respectivos débitos inscritos e não inscritos na dívida ativa, ajuizados e
por ajuizar”, (grifo nosso)

6. C o n clu sã o

Num cenário de proliferação de templos, o qual estamos presenciando


nos últimos anos, em vários países do mundo, somos instados a refletir critica­
mente sobre a extensão do fenômeno e suas conseqüências.
Negar a imunidade às lojas maçônicas e permitir a benesse a alguns que
tendem a burlar a norma constitucional é evidente paradoxo. Tem-se notado

14 V. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro, tributário: Os direitos


humanos e a tributação. Imunidades e Isonomia. V. III. Rio de janeiro: Renovar, 1999, p. 241.
2 6 8 - A I m u n id a d e R e l ig io s a e as L o ja s M a ç ô n ic a s

o cenário fraudulento em que se inserem, sob a capa da fé, algumas “pseudoi-


grejas” que, difusoras de uma religiosidade hipócrita, chegam a mascarar ativi­
dades ilícitas sob a função de “representantes do bem”. De fato, tem sido
corriqueira a divulgação na Imprensa de casos retumbantes, em que certas
entidades religiosas realizam negócios ilícitos, valendo-se da imagem puritana
que a atividade naturalmente impinge.
Diante desse expressivo crescimento das igrejas, nos tempos hodiernos, é
importante tecermos alguns comentários finais, ainda que o dito popular nos
ensine que “religião é tema que não se discute”, em razão do fato de que o
consenso nesse assunto é praticamente inviável.
A imunidade religiosa é norma sublime que permite garantir a intribu-
tabilidade das religiões, entretanto, a nosso sentir, esvazia-se, na essência, quando
se pretende amesquinhá-la. O conceito de religião é aberto, não sendo facul­
tado ao exegeta fechá-lo, hermeticamente, a seu talante, em pura vaidade in-
terpretativa. Se há um agrupamento litúrgico com difusão comum de princípios
morais, será possível enquadrá-lo como entidade religiosa para fins de imuni­
dade. Se não se apresenta como “templo” na forma, sê-lo-á na essência.
Posto isso, a maçonaria é, sim, uma sociedade de cunho religioso, e suas
lojas guardam a conotação de templo, contida no texto constitucional, deven­
do, portanto, ficar imunes aos impostos, em prol da liberdade religiosa que
marca o ordenamento constitucional doméstico.
O Uso de Precatórios
para Pagamento de
Tributos após a EC 62

Fernando Facury Scaff


Professor da Universidade de São Paulo e Professor da Universidade Federal
do Pará (licenciadoj. Advogado.
F ern a n d o F a c u r y S ca ff - 271

I. D elim it a ç ã o d o T ema

1. Em setembro de 2009 foi realizado o 13° encontro organizado pela


editora Dialética denominado “Grandes Questões Atuais de Direito Tributá­
rio”, onde apresentei o trabalho intitulado “O Uso de Precatórios para Paga­
mento de Tributos”1. A luz do Direito Constitucional brasileiro analisei a
situação peculiar do sistema de pagamento de sentenças judiciais transitadas
em julgado contra a Fazenda Pública no Brasil (precatórios) e a alternativa
inserida no §2° do art. 78 do ADCT, que expressamente prevê a possibilida­
de de uso de precatórios para pagamento de tributos.
De setembro para cá surgiu a Emenda Constitucional 62, de 11-11-2009,
promulgada em 09-12-2009, com 7 artigos que alteraram substancialmente a
sistemática “transitória” do uso de precatórios, através da criação de um “regime
especial constitucionalizado” para quitação do “estoque” de dívida judicial não
paga nas datas anteriormente fixadas pela Constituição.
Desta forma, decidi revisitar o tema e analisar as alterações efetuadas no
texto constitucional sobre a matéria, em especial quanto ao uso de precatórios
para pagamento de tributos.

II. R em e m o r a n d o C o n c e it o s B á sic o s

2. Como referi acima, este trabalho deve ser entendido como uma atua­
lização do que escrevi anteriormente na obra acima referida. Portanto, não me
deterei nas noções básicas acerca do que é um precatório ou sobre as normas a
ele já aplicáveis na Constituição brasileira. Apenas relembrarei o seguinte:
“Precatório é uma ordem de pagar quantia certa decorrente de deci­
são judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública. O mon­
tante de precatórios se constitui em dívida consolidada do Poder Pú­
blico correspondente.
(...)
Originalmente o sistema de precatórios da Constituição de 1988 foi
inscrito no artigo 1002, que manteve o sistema anteriormente existente

1 ROCHA, Valdir Oliveira (org.). Grandes Questões Atuais de Direito Tributário, 13° vol. São
Paulo: Dialética, 2009, p. 102 a 116.
2 Redação atual, pós-EC 62: "Art. 100: Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federai,
Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente
272 - O Uso de P r e c a tó r io s p a ra P ag am e n to de T r ib u t o s ap ós a E C 6 2

de pagamento de sentenças judiciais transitadas em julgado contra a


Fazenda Pública, através de exclusiva ordem cronológica de sua apre-

na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida
a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos
para este fim. § 1o Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de
salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e
indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de
sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais
débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2° deste artigo. § 2o Os débitos de natureza alimentícia
cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório, ou
sejam portadores de doença grave, definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre
todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do disposto
no § 3o deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago
na ordem cronológica de apresentação do precatório. § 3o O disposto no caput deste artigo
relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em
leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial
transitada em julgado. § 4o Para os fins do disposto no § 3o, poderão ser fixados, por leis próprias,
valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas,
sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social. § 5o É
obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao
pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios
judiciários apresentados até 1o de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte,
quando terão seus valores atualizados monetariamente. § 6o As dotações orçamentárias e os
créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do
Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requeri­
mento do credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou
de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o seqüestro da
quantia respectiva. § 7o O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo,
retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatórios incorrerá em crime de responsabilidade
' responderá, também, perante o Conselho Nacional de Justiça. § 8o É vedada a expedição de
precatórios complementares ou suplementares de valor pago, bem como o fracionamento, reparti­
ção ou quebra do valor da execução para fins de enquadramento de parcela do total ao que dispõe
o § 3o deste artigo. § 9o No momento da expedição dos precatórios, independentemente de
regulamentação, deles deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos
débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original
pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aque­
les cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.§10. Antes
da expedição dos precatórios, o Tribunal solicitará à Fazenda Pública devedora, para resposta em
até 30 (trinta) dias, sob pena de perda do direito de abatimento, informação sobre os débitos que
preencham as condições estabelecidas no § 9o, para os fins nele previstos. §11. É facultada ao
credor, conforme estabelecido em lei da entidade federativa devedora, a entrega de créditos em
precatórios para compra de imóveis públicos do respectivo ente federado. § 12. A partir da
promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, após sua
expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice
oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora,
incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança,
ficando excluída a incidência de juros compensatórios. § 13. O credor poderá ceder, total ou
parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do
devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2° e 3o. § 14. A cessão de precatórios
somente produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao tribunal de
origem e à entidade devedora. § 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, lei complementar a esta
Constituição Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios
de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e
forma e prazo de liquidação. § 16. A seu critério exclusivo e na forma de lei, a União poderá
assumir débitos, oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-
os diretamente."
F ern a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 7 3

sentação, que deve ocorrer até o dia 30 de junho de cada ano e ser pago
até o final do exercício seguinte, atualizado monetariamente. Foi
estabelecida a proibição de indicação de casos ou de pessoas nas dota­
ções orçamentárias. O orçamento público é o grande garantidor do pa­
gamento dos valores envolvidos. A requisição do dinheiro (daí o nome
de precatório requisitório) é feita pelo Presidente do Tribunal onde o
processo transitou em julgado e o pagamento também é determinado
pela mesma Corte. Se a ordem de preferência no pagamento dos
precatórios foi violada, o Presidente do Tribunal, a requerimento do
credor, pode determinar o seqüestro da quantia necessária à satisfação
do débito.3
(...)
Créditos de natureza alimentícia são: salários, vencimentos, proventos,
pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indeni­
zações por morte ou invalidez fundadas na responsabilidade civil, e
também os honorários advocatícios. Este tipo de créditos possui prefe­
rência e deve ser pago com precedência em face dos demais.
(...)
Posteriormente, através da Emenda Constitucional 30, de 13 de
setembro de 2000, foi instituído outro parcelamento compulsório,
tendo sido também criada a possibilidade de uso dos precatórios
não pagos para a quitação de tributos através da inclusão do §2° ao
art. 78 no ADCT.
(...)
Este artigo estabeleceu que os precatórios pendentes em 13/12/2000
e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de
1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acres­
cido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no pra­
zo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. Observe-se
que foram expressamente afastados os que se referiam ao
parcelamento anterior, do art. 33 do ADCT e os de natureza alimen­
tícia, dentre outros.”4

3 Como se pode verificar, esta afirmativa foi alterada pela EC 62.


4 Transcrições do meu artigo publicado no volume Grandes Questões Atuais de Direito Tributário
- 13° vol. Valdir Oliveira Rocha (org.). São Paulo: Dialética, 2009, p. 102 a 116.
274 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pag a m en to de T r ib u t o s a p ó s a EC 62

A partir deste ponto, no trabalho mencionado, concentrei-me no uso


dos precatórios para pagamento de tributos, sob vários aspectos da casuística
jurisprudencial, a saber: “É necessária lei do ente subnacional para permitir a
compensação dos precatórios com tributos? Qual o conceito de “entidade de-
vedora” para fins do §2°, do art. 78 do ADCT? E possível usar estes precató­
rios para garantir a penhora em caso de Embargos? É possível usar créditos
próprios ou de terceiros para a quitação fiscal? A cessão de créditos desnatura
sua origem? Qualquer precatório não pago pode ser usado para quitar tribu­
tos?” Como as respostas foram dadas naquele trabalho, dirijo a ele o eventual
leitor interessado.
Concentremos nossos esforços a partir de agora em saber como ficou o
sistema de precatórios e seu uso para pagamento de tributos após a EC 62.

III. Q u a is as n o v id a d e s t r a z id a s pela EC 6 2 so b re o
PAGAMENTO DE TRIBUTOS COM PRECATÓRIOS?

3. Em primeiro lugar deve-se fazer uma distinção entre a parte perma­


nente e a transitória do texto constitucional acrescido pela EC 62.
a) Com referência à parte permanente do Texto Constitucional:
4. No que se refere à parte permanente do texto constitucional, alterado
pela EC 62, as regras para o uso de precatórios para o pagamento de tributos
foram parcialmente alteradas, tendo sido introduzida uma sistemática de com­
pensação automática, prévia e obrigatória entre credor e devedor antes mes­
mo da expedição do precatório.
5. Em linhas gerais o sistema passou a ser organizado da seguinte forma:
Existindo uma decisão transitada em julgado, que condene a Fazenda Públi­
ca a pagar valor certo, já tornado líquido, o procedimento será:
a. Expedição de precatório contra a Fazenda Pública devedora, obrigan­
do-a a pagar o valor consignado na decisão.
b. O prazo de pagamento dos precatórios que tiverem sido expedidos até
30 de junho de cada ano será entre o início e o final do exercício seguinte,
quando terão seus valores atualizados monetariamente.
1. O que estiver dentro do limite de RPV - Requisição de Peque­
no Valor prescinde de expedição de precatório, devendo ser pago
de imediato.
F ern a n d o Fa c u r y Sc a ff - 2 7 5

2. O valor de RPV para os Estados que não tiverem regulamentado


em valor superior, é de 40 salários mínimos; e para os Municípios
que igualmente não tiverem regulamentado em montante
superior, é de 30 salários mínimos. Para a União o valor é de 60
salários mínimos.
c. O pagamento continuará a ser feito exclusivamente na ordem
cronológica de apresentação dos precatórios.
d. Os precatórios de natureza alimentícia das pessoas que tiverem
60 ou mais anos na data de sua expedição terão preferência sobre todos os
demais, no valor equivalente a três vezes o limite máximo estabelecido pela
Fazenda Pública para os RPV’s.
1. Os precatórios de natureza alimentícia, bem como o saldo dos
precatórios dessa natureza que tiver ultrapassado o valor de três vezes estabe­
lecido como RPV, terão preferência sobre os precatórios “gerais”.
2. As dotações orçamentárias permanecerão sendo consignadas di­
retamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que profe­
riu a decisão exequenda determinar o pagamento integral do crédito. Cabe ao
Presidente do Tribunal ordenar o seqüestro da quantia respectiva em duas
hipóteses, sempre a requerimento do credor:
a. Preterição de seu direito de preferência e
b. Não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do
débito.
3. O Presidente do Tribunal que não proceder da forma estabeleci­
da na norma poderá incorrer em crime de responsabilidade e também respon­
der por infração funcional perante o CNJ - Conselho Nacional de Justiça.
Até aqui, como visto, a despeito de algumas alterações, nada foi estabele­
cido acerca da parte tributária.
6. A partir do § 9o do art. 100 do corpo permanente da Constitui­
ção é que a questão tributária entra em cena.
Quais as implicações fiscais pertinentes à sistemática de precatórios?:
a. Antes da expedição dos precatórios o Tribunal solicitará à Fa­
zenda Pública devedora que informe em até 30 dias o valor de
seus créditos fiscais contra o credor originário do precatório, sob
pena de perda do direito de compensação.
2 7 6 - 0 Uso de P r e c a t ó r io s para P a g a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

b. Na expedição do precatório será feita a cofnpensação com todos


os créditos fiscais que tiverem sido informados pela Fazenda
Pública devedora contra o credor originário do precatório. A
exceção são aqueles créditos cuja exigibilidade esteja suspensa
em virtude de contestação administrativa ou judicial. Esta nor­
ma independe de regulamentação, a teor do que dispõe a pró­
pria Constituição.
Ou seja, haverá uma compensação entre créditos e débitos, que
poderá ensejar um contencioso fiscal de monta nesta fase de ex­
pedição dos precatórios.
O escopo é que o valor dos precatórios corresponda ao montante
líquido de dívidas para com o devedor, facilitando sua comercia­
lização para com terceiros.
1. Observe-se que o valor dos precatórios será corrigido e remune­
rado pelos mesmos índices da caderneta de poupança, usualmente
bastante mais baixos que o índice dos créditos fiscais, corrigidos
pela SELIC5.
c. É permitida a cessão do crédito de precatórios, não se aplicando
ao novo credor, cessionário, as preferências estabelecidas para pa­
gamento de precatórios alimentícios das pessoas com 60 anos ou
mais, como acima informado.
1. A cessão somente produzirá efeitos após protocolizada no Tri­
bunal de origem do precatório e perante a Fazenda Pública
devedora.
7. Como visto, foi substancialmente modificado o parâmetro de co­
brança de tributos nesta fase prévia à expedição do precatório através da
introdução de um sistema de compensação compulsória, sem que tenha ha­
vido nenhuma possibilidade de contraditório nesta fase. Observe-se que
não se trata de uma causa extintiva do direito de a Fazenda Pública cobrar
seus créditos; pela dicção constitucional ela apenas perderá o direito de com­
pensar caso não informe ao Tribunal, antes da expedição do precatório, o
montante a que se acha credora. A cobrança, pelos demais meios jurídicos,
poderá ser efetuada.

5 fndice usado para correção dos créditos fiscais federais e de algumas outras unidades da Federação.
F er n a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 7 7

Certamente nesta fase surgirão muitos problemas em face da compen­


sação de créditos públicos que o credor do precatório não reconhecer como
devidos. Na prática, muitos lançamentos são efetuados pela Fazenda Públi­
ca sem que o contribuinte tenha conhecimento de sua existência. Basta ver
os arquivos da Dívida Ativa da União e a composição de dívidas que é feita
nos parcelamentos voluntários que usualmente ocorrem (Refis, Paes, Paex,
etc.), e constatar a correção desta assertiva. Muitas vezes aparecem débitos
acerca dos quais os contribuintes jamais foram intimados - mas constam
como créditos fiscais.
Se não for instaurada uma espécie de contraditório nesta fase os pro­
blemas se multiplicarão, atrasando ainda mais a determinação do valor de
cada precatório.
Este procedimento de compensação compulsória prévia é uma ino­
vação na sistemática constitucional permanente, que anteriormente havia
sido tentada pela via legislativa, com muitas contestações no Judiciário. Agora,
constitucionalizado, o debate não mais será sobre a validade da norma, mas
sobre a casuística dos valores lançados.
Enfim, foi instituído um sistema que teoricamente permitirá maior
circulação dos precatórios e maior certeza jurídica na determinação de seu valor,
mas que poderá ocasionar problemas procedimentais em sua implantação. Por
certo é um passo para a federalização das dívidas, podendo futuramente a União
assumir o pagamento dos precatórios estaduais e municipais e descontar este
valor das transferências obrigatórias intergovernamentais. Há norma constitucional
que permite este tipo de compensação intergovernamental (art. 160, parágrafo
único e art. 100, §15°), bem como norma que permita a federalização aqui
preconizada (art. 100, §16). Adotados estes parâmetros certamente haverá maior
facilidade para manter em dia os pagamentos decorrentes de precatórios.
8. Uma última palavra sobre esta parte permanente do regramento sobre
a expedição e pagamento dos precatórios: Quando as normas aqui expostas
serão utilizadas em sua plenitude, tornando as disposições transitórias (art.
97, ADCT) verdadeiramente transitórias?
A resposta encontra-se no caput do art. 97 do ADCT, que estabelece a
aplicação das normas transitórias “inclusive (para os precatórios)6emitidos

6 Parênteses apostos.
278 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pa g a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo”.


Ou seja, a plenitude das normas permanentes só ocorrerá no ano de 2025,
pelo menos. Tal diferimento das regras permanentes é, para dizer o mínimo,
uma excrescência, uma inversão de valores constitucionais, além de má técnica
normativa ao inverter o sentido de disposição transitória.
a.l) Breve sugestão de aperfeiçoamento do sistema: Aplicação de pena
de Inelegibilidade
9. Este novo sistema de pagamento de precatórios poderia ter recebido
um impacto maior caso tivesse sido introduzida uma norma que sancionasse
este tipo de inadimplência pública através da imposição da pena de inelegibi­
lidade7 ao Chefe do Poder Executivo do nível federativo correspondente, em,
pelo menos, duas hipóteses:
a) caso deixasse de incluir no Projeto de Lei Orçamentária Anual
o valor necessário para pagamento dos precatórios expedidos a
cada ano;
b) caso o valor consignado no orçamento não fosse repassado ao Tri­
bunal correspondente.
A mesma pena de inelegibilidade seria aplicada aos membros do Poder
Legislativo que, na votação do Projeto de Lei Orçamentária Anual, de alguma
forma concorressem para que o valor dos precatórios anuais não fosse integral­
mente disponibilizado no Orçamento.
Esta seria a forma mais adequada para impedir que novos passivos públicos
fossem formados a partir de uma ação iníqua dos governantes de plantão em nossa
República. Ordens judiciais devem ser cumpridas, e sendo o caso de pagamento,
estes devem ser realizados. Simples como isso. Postergar o pagamento deveria im­
plicar em pena de inelegibilidade. Por qual motivo só são estabelecidas penas para
o desvio de conduta do Presidente do Tribunal que processa o precatório?
Uma vez que se trata do corpo permanente da Carta, esta penalidade
imprimiria maior eficácia para impedir o acúmulo de débitos hoje existente

7 Esta ideia foi exposta oralmente pelo Prof. Hugo de Brito Machado no Seminário acima
referido, promovido pela Editora Dialética, em setembro de 2009, durante a apresentação de
meu trabalho publicado no volume Grandes Questões Atuais de Direito Tributário - 13° vol.
Valdir Oliveira Rocha (org.). São Paulo: Dialética, 2009, p. 102 a 116. Agradeço ao mestre
Hugo a ideia e a tomo de empréstimo, indicando a fonte da sabedoria. O breve detalhamento
da ideia aqui exposto, com os risco inerentes ao mesmo, não é de sua responsabilidade.
F er n a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 7 9

em algumas unidades da Federação. Por qual motivo a União (até aqui) con­
segue cumprir suas obrigações anuais com precatórios e alguns Estados não?
Mais ainda: porque alguns Estados e Municípios conseguem fazê-lo e outros
não? Trata-se de uma questão de má-gestão e de aproveitamento escuso dos
recursos públicos para finalidades que deslustram a obediência republicana às
decisões judiciais.
Uma vez que são agentes políticos a fazê-lo, nada melhor do que apenar
sua conduta com a pena de inelegibilidade.
b) Com referência à parte transitória do Texto Constitucional
10. O novo calote público propriamente dito, e que gerou várias ADIns
contra a EC 62, foi estabelecido nesta parte do texto constitucional, compos­
ta pela adição do art. 97 ao ADCT e outros artigos que não foram inseridos
no corpo da Carta, mas constam isolados na referida Emenda. Comecemos a
análise por estes artigos isolados.
b .l) Os artigos isolados da EC 62 e a injustiça com os precatórios
alimentícios e os do art. 33 do A DCT
11. A EC 62 é composta, ao todo, por 7 artigos.
O artigo Io traz as alterações na parte permanente da Constituição, es­
pecificamente no art. 100 da mesma. Foi comentado acima no que tange à
parte fiscal.
O artigo 2o acresce o art. 97 ao ADCT e será comentado adiante.
O artigo 3o traz uma regra de eficácia jurídica, estabelecendo que a im­
plantação do regime criado pelo art. 97 do ADCT deverá ocorrer até 90 dias
após a publicação da EC 62.
O artigo 4o estabelece uma hipótese de opção entre o regime permanen­
te - previsto no art. 100 - e o “regime especial” criado pelo art. 97, mas que
pode ser alterado por lei complementar.
O artigo 7o estabelece a vigência da EC 62: “na data de sua publicação”.
Os dois artigos que trazem implicações fiscais são o 5o e o 6o.
12. Estabelece o art. 5o: “Ficam convalidadas todas as cessões de precató­
rios efetuadas antes da promulgação desta Emenda Constitucional, indepen­
dentemente da concordância da entidade devedora”.
Este é um aspecto muito importante para as operações fiscais anteriores
à EC 62, pois havia várias dúvidas no âmbito judicial sobre a possibilidade de
280 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pa g a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

cessão de créditos de precatórios. Alguns desses dissídios jurisprudenciais fo­


ram apresentados no meu trabalho antes mencionado.
Logo, a disposição expressa convalidando todas as operações antes efe­
tuadas é positiva pois afasta as dúvidas existentes nos tribunais - desde que
realizadas de conformidade com o Direito então vigente, pois não pode ha­
ver convalidação contrária ao Direito, mesmo pela via constitucional.
13. A outra norma que merece maior atenção é a do art. 6o:
“Ficam também convalidadas todas as compensações de precatórios
com tributos vencidos até 31 de outubro de 2009 da entidade devedo-
ra, efetuadas na forma do disposto no § 2o do art. 78 do ADCT, realiza­
das antes da promulgação desta Emenda Constitucional.”
E o que diz o mencionado artigo 78, §2° do ADCT?
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno
valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os
que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em
juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda
e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de
1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido
de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo má­
ximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.
§2° As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se
não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório
do pagamento de tributos da entidade devedora.”
Portanto, o “poder liberatório para pagamento de tributos” a que se refe­
re o §2° do art. 78, ADCT, alcança a quais créditos?
1) Inegavelmente alcança a todos “os precatórios pendentes na data de
promulgação desta Emenda (13 de setembro de 2000)8e os que decorram de
ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999”.
2) Igualmente não tenho dúvidas de que não alcança os precatórios que
foram ressalvados no caput da norma, quais sejam: “os créditos definidos em lei
como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste

8 Parênteses aposto.
F ern a n d o Fa c u r y Sca ff - 281

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os


que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo”.
14. Não faltará quem enxergue nesta restrição uma perversidade9, com o
que concordarei. É um tratamento perverso, em especial porque a natureza
das exceções é bastante diversa dentre si, pois:
a) Os RPV's devem ser pagos à vista. A rigor, eles sequer se submetem ao
mesmo tratamento dos precatórios que, hoje, se constituem em apenas uma
das formas de pagamento das decisões judiciais. Portanto, trata-se de uma
exceção inócua, pois na verdade nada excepciona.
b) Os precatórios que já estavam liberados ou depositados em juízo en­
contravam-se praticamente pagos, motivo pelo qual seu afastamento do rol de
contemplados pela possibilidade de compensação também se justifica. Ou
seja, outra exceção inócua.
c) Porém as duas outras espécies de precatórios não merecem o mesmo
tratamento: os alimentícios e os que foram parcelados anteriormente, em 1988,
na forma do art. 33 do ADCT. Isto porque:
1. O afastamento dos alimentícios se deu em razão do pressuposto
de que sempre seriam pagos antes dos demais. Ocorre que este
pressuposto se revelou falso na prática, uma vez que os atrasos se
sucederam e esta classe de precatório permanece no fim da fila de
recebimento. É um típico caso em que se evidencia a diferença
usualmente exposta pela doutrina norte-americana entre law in
books e law inpractice. O que era para ser um privilégio se revelou
um malefício.
2. E os do art. 33, ADCT, porque o Congresso pressupôs que esta­
vam sendo pagos regularmente - quiçá quitados -, fruto do par­
celamento estabelecido em oito anos a partir de 1988, motivo
que ensejou a edição da EC 30, de 13-09-2000. Tudo indica
que não foram pagos em face do estoque monstruoso de dívida
com precatórios que alguns Estados ainda acumulam.
Aqui há a permanência de uma injustiça, infelizmente constitucionali-
zada e que deve ser revertida no Supremo Tribunal Federal, pois o que deveria

9 Outra observação efetuada por Hugo de Brito Machado na exposição acima referida.
282 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pa g a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

ser um “privilégio” concedido aos precatórios alimentares tornou-se um “ma­


lefício”, acabando por colocá-los no fim da fila e impedindo sua utilização
para pagamento de tributos. E no que tange aos precatórios do art. 33, em
razão de que tudo indica que ainda remanescem pendentes de pagamento em
vários Estados.
15. Para confirmar estas assertivas, analisemos duas evidências.
A primeira é a entrevista realizada pela revista eletrônica Consultor
Jurídico10com o Procurador Geral do Estado de São Paulo, Marcos Nusdeo,
em 29-03-2009. Vale a pena ler o trecho abaixo transcrito, pois bastante
esclarecedor da matéria:
“Conjur - Mas o senhor não acha que os credores têm o direito
de serem pagos pelo governo? Alguns aguardam desde 1988.
Marcos Nusdeo - Os credores têm o direito de receber sim. O gran­
de problema é a sistemática de pagamento de precatórios prevista
na Constituição de 1988, aliada à hiperinflação da época e, depois,
à conversão para o Plano Real dos valores devidos. O governo paga­
va sempre no final do exercício, como previa a Constituição. Mas,
com a inflação alta, o saldo acumulado ficava muito grande. Pio­
rou depois que esses valores foram convertidos para real.
Conjur - A situação não melhorou depois da Emenda Constitu­
cional 30 de 2000?
Marcos Nusdeo —A aprovação pelo Congresso Nacional da Emenda
Constitucional 30 partiu de uma premissa equivocada. Os parlamen­
tares acharam que os precatórios alimentares estavam em dia e que o
problema eram os não-alimentares. Por isso, a emenda determinou o
parcelamento apenas dos não-alimentares em até 10 anos, uma parcela
por ano. Já foram pagas oito parcelas dos precatórios não-alimenta-
res que estavam atrasados. Para os credores alimentares, a norma
não previu nenhuma medida.
Conjur - Como é feito pagamento dos alimentares?
Marcos Nusdeo - O governo tem um orçamento anual para pa­
gar os credores. Pela E C 30, se não paga parcela dos precatórios

10 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-mar-29/entrevista-marcos-nudeso-procurador-


geral-estado-sao-paulo>,site acessado pela última vez em 14-10-2010.
F ern a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 8 3

não alimentares, há possibilidade de seqüestro do valor dos cofres


públicos. Então eles são pagos em dia. Como o governo está compro­
metido com a parcela dos não-alimentares, que é alta, sobra pouco
para os alimentares, pagos em ritmo mais lento. A única alternati­
va possível para mudar este quadro é a aprovação pelo Congres­
so Nacional de outra emenda constitucional para mudar isso.
Não há nada a fazer se não for assim porque a regra vem justa­
mente com uma emenda.
Conjur - Quanto o estado de São Paulo deve em precatórios?
Marcos Nusdeo - A dívida do estado chega a R$ 16 bilhões, sendo
que R$ 12 bilhões são referentes a precatórios alimentares. Hoje
em dia é mais fácil ser credor de precatório não-alimentar do que de
alimentar. As pessoas não acreditam quando eu digo isso, mas aE C 30
assim ofez. Esta emenda também criou as chamadas Obrigações
de Pequeno Valor, que são pequenos precatórios, principalmente
de servidores, de até R$ 17,9 mil em 2009. A cada ano aumento
o número de OPVs11. No ano passado, foram pagos R$ 283
milhões em OPVs. A Emenda Constitucional 30 cuidou do
passado ao parcelar os precatórios não-alimentares. Também re­
solveu um problema de fluxo porque, de lá pra cá, esses valores
pequenos, que dão origem a OPVs, devem ser pagos em 90 dias,
independente de previsão orçamentária. No entanto, não resol­
veu o problema de estoque de alimentares, já que muitos não
foram atingidos pelas obrigações de pequeno valor.
Conjur - Quanto o estado pagou em precatórios em 2008?
Marcos Nusdeo — O valor fo i recorde, o maior pago na história do
estado e do pais —R$ 2 bilhões. Em não-alimentares, foram pagos
quase R$ 1,5 bilhão. O restante foi distribuído entre alimentares
e OPVs. O governo suplementou o orçamento previsto para pre­
catórios no ano passado em mais de R$ 400 milhões. Para 2009,
estão reservados R$ 1,7 bilhão, mas o total deve girar em torno
de RS 2,1 bilhões. São Paulo tem pagado acima do previsto pela
lei orçamentária.”

11 OPV - Obrigações de Pequeno Valor é outra nomenclatura para RPV - Requisições de Peque­
no Valor.
284 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pa g a m en to de T r ib u t o s a p ó s a EC 62

Deve-se destacar e louvar a correção e a transparência com que o Procu­


rador Geral Marcos Nusdeo expôs o problema, que não é do governo estadual
atual, mas de uma série de governos anteriores. Bem como por sua acertada
percepção do erro cometido na aprovação da EC 30, que partiu de um pres­
suposto falso - o de que os precatórios alimentares estavam sendo pagos em
dia —o que, como visto, era incorreto.
Basta ver os números mencionados: em 2008 (ano a que se refere o Procu­
rador) o Estado de São Paulo pagou R$ 2 bilhões em precatórios, dos quais R$
1,5 bilhão (o equivalente a 75% do total) de precatórios não alimentares. Ou seja,
os alimentares, que deveriam ser pagos “em dia” de de forma privilegiada se
tomaram os últimos da fila, como os próprios números oficiais indicam.
16. A segunda evidência pode ser vista pelo Relatório de Gestão Fiscal
disponibilizado pelo sistema de Contas Públicas, no qual o estoque de débi­
tos com precatórios é dividido entre os que pendem de pagamento antes e
depois de 05-05-2000, data em que foi promulgada a Lei de Responsabili­
dade Fiscal, LC 101/2000. Esta norma estabeleceu em seu artigo 30, §7°12,
que o valor de precatórios não pagos deve compor o conceito de dívida públi­
ca, a qual possui rígidos limites globais pela referida Lei. Com esta divisão,
entram no cálculo da “dívida pública” os precatórios posteriores a 05-05-
2000, sendo que os anteriores não ingressam neste cômputo13.
A importância desta distinção para o presente trabalho é que cria um
marco divisor que demonstra a existência de débitos antes e depois de 05-
05-2000 o que corresponde, grosso modo, ao divisor de águas estabelecido
pela EC 30, de 13-09-2000, que promoveu um reparcelamento das dívidas
existentes —o que inclui os valores que deveriam ter sido pagos na forma do
primeiro parcelamento criado pelo art. 33, ADCT. Logo, se até hoje remanes­
cem dívidas antes de 05-05-2000, tudo indica que são os valores do parcela­
mento estabelecido pelo art. 33, ADCT, que não foram pagos.

12 Art. 30, §7° Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que
houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites.
13 A pesquisa que apresentou a divisão efetuada nos Relatórios de Gestão Fiscal entre precatórios
antes e depois da LFR foi apresentada pelo mestrando César Augusto Seijas de Andrade, em
sala de aula, em seminário ocorrido no segundo semestre de 2009, na Faculdade de Direito da
USP, com foco no Estado de São Paulo. Parece-me curiosa a aplicação de efeitos futuros para
a referida norma e a divisão dos débitos a partir de sua consolidação, em especial pela
finalidade que se busca com a mesma, porém este não é o local adequado para analisar este
aspecto normativo.
F ern a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 8 5

Para comprovar esta assertiva, observemos três diferentes Estados da


Federação brasileira, de três distintas regiões geográficas e com diferentes
perfis econômicos.
O Estado de São Paulo, segundo o Relatório de Gestão Fiscal do se­
gundo quadrimestre de 2009 (janeiro a agosto de 2009), tinha a seguinte
situação de “Dívida Consolidada Líquida”14:
a) Precatórios posteriores a 05-05-2000 (inclusive): R$ 6.227.
630.581,96
b) Precatórios anteriores a 05-05-2000: R$ 13.527.341.045,49
Isso demonstra a existência de precatórios não pagos no valor de quase
RI 20 bilhões, sendo cerca de 2/3 anteriores a maio de 2000. Tudo leva a crer
que até hoje existem débitos não pagos referentes ao parcelamento compulsó­
rio estabelecido pelo art. 33 do ADCT, além das pendências com os alimen­
tares, conforme mencionou o Procurador Geral do Estado de São Paulo, em
trecho acima transcrito.
Situação diversa encontraremos analisando os dados do Estado do Pará.
Segundo o Relatório de Gestão Fiscal do segundo quadrimestre de 2009 a
situação da “Dívida Consolidada Líquida” daquele Estado era a seguinte15:
a) Precatórios posteriores a 05-05-2000 (inclusive): R$ 0,00
b) Precatórios anteriores a 05-05-2000: R$ 0,00
Ou seja, o Estado do Pará encontra-se plenamente em dia com o paga­
mento de precatórios, diversamente do que acontece com São Paulo, mesmo
considerando a divisão entre antes e após a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Outro tipo de enquadramento se verificará ao analisarmos o Estado do
Ceará. Nele, analisando as mesmas contas no mesmo período16, constataremos:
a) Precatórios posteriores a 05-05-2000 (inclusive): R$
203.489.731,00
b) Precatórios anteriores a 05-05-2000: R$ 0,00

14 Disponível em: <http://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/consultaDeclara


coes.do?acao=imprimir&numeroDeclaracao=177617>. Site consultado em 14-01-2010.
1S Disponível em: <http://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistnconJnternet/consultaDeclara
coes.do?acao=imprimir&numeroDeclaracao=173812>. Site consultado em 14-01-2010.
16 Disponível em: <http.7/w w w .contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/consultaDeclara
coes.do?acao=imprimir&numeroDeclaracao=1 74337>. Acessado em 14-01-2010.
286 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pag a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

O Estado do Ceará, portanto, não possui precatórios anteriores à LRF,


só posteriores, o que demonstra que seu passivo com precatórios é todo poste­
rior ao ano 2000 - ou seja, após a EC 30, não havendo débitos remanescentes
do parcelamento de 1988, imposto pelo art. 33 do ADCT.
Apenas pela curiosidade, consultada a mesma base de dados acerca da
União17, constata-se que possuía no mesmo período apenas dívidas posterio­
res à LRF no valor de R$ 57.961.831,28 o que corresponde a míseros 3%
(três por cento) da dívida consolidada paulista com precatórios e a cerca de
25% da dívida cearense.
17. Após a apresentação das evidências acima, dentre outras existentes,
conclui-se que:
a) os titulares de precatórios alimentares, a despeito do alegado pri­
vilégio constante do art. 100 da Constituição, sofreram uma enor­
me injustiça, pois o que seria uma benção se revelou uma maldição,
uma vez que o recebimento de seus créditos tem sido rotineira­
mente postergado, conforme corajosa declaração do próprio Pro­
curador Geral do Estado de São Paulo, acima transcrita.
b) os titulares de créditos decorrentes do parcelamento instituído
pelo art. 33 do ADCT, ainda não receberam integralmente os
recursos a que têm direito.
Com isso, entendo que o discrímen estabelecido pelo §2° do art. 78 do
ADCT, e ora reiterado pelo art. 6o da EC 62 é absolutamente injusto e deve
ser revisto pelo STF, pois as normas da EC 30 foram editadas partindo de um
pressuposto normativo (pagamento em dia) quando, na realidade, os débitos
se acumulavam no ano 2000 e ainda remanescem inadimplidos.
É necessário que o STF, através de decisão com efeito vinculante e
erga omnes, corrija esta injustiça e retire do rol de vedações instituído pelo
§2° do art. 78 do A DCT, os precatórios alimentícios e os do art. 33 do
A D C T porque o pressuposto para sua exclusão acabou por se tornar a
causa de seu malefício, agravado pelo texto do art. 6o da EC 62, que man­
teve o odioso discrímen.

17 Disponível em: <http://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/consultaDeclara


coes.do?acao=imprimir&numeroDeclaracao=176252>. Acessado em 14-01-2010.
F ern an d o Fa c u r y S caff - 2 8 7

Permitir o uso de precatórios oriundos destas duas classes (alimentícios e


provindos do parcelamento imposto pelo art. 33 do ADCT) na quitação de
tributos é uma questão de justiça, que deve ser determinada pelo STF através
de decisão com efeito vinculante e erga omnes, pois só desta forma se poderá
reverter para todos a injustiça constitucionalizada pela letra fria da lei.
18. Aqui é necessário que seja feito um contraponto importante de cará­
ter exegético.
A Constituição estabeleceu que os precatórios alimentícios e os do art.
33, ADCT, deveriam ser excluídos do reparcelamento previsto pelo art. 78,
ADCT, bem como seu uso excluído do pagamento de tributos (art. 78, §2°),
conforme afirmei em meu artigo acima mencionado.
Constato que este entendimento é injusto, a despeito de constitucio­
nalmente previsto de forma explícita. A injustiça decorre de que os pressu­
postos fáticos que justificaram a exclusão estavam errados, conforme se
constata pela pesquisa efetuada, que traz à luz as evidências acima mencio­
nadas, dentre outras.
Todavia, não posso afirmar que a Constituição no art. 78, A DCT per­
mitiu o parcelamento dessas duas classes de precatórios (alimentares e os do
art. 33, ADCT) ou seu uso para a quitação de tributos.
O que posso fazer - e ora faço - é afirmar que há margem segura para o
STF declarar em caráter geral e com efeito vinculante que a referida norma
impeditiva é inconstitucional em face de que os pressupostos fáticos que ge­
raram a decisão que motivou a excepcionalidade estavam errados, conforme
demonstrado, causando injustiça que não pode ser admitida pela Constitui­
ção. O que deveria ser um privilégio se revelou um malefício.
Enquanto estas normas não forem declaradas inconstitucionais, elas per­
manecem vigentes e eficazes, gerando injustiça.
b.2) O art. 97 do ADCT:
19. Conforme acima referido, o art. 2o da EC 62 criou o art. 97 ao
ADCT da CF/8818, o qual estabeleceu diversas regras transitórias para o pa­
gamento do estoque de precatórios de Estados e Municípios.

18 Art. 97: Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição
Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta
288 - O Uso de P r e c a t ó r io s para Pag a m en to d e T r ib u t o s a p ó s a EC 62

De início destaca-se outra injustiça, pois como acima demonstrado,


este novo reparcelamento só está sendo editado porque existem Estados e

Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às


suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do
regime especial instituído por este artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a
seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal,
exceto em seus §§ 2o, 3o, 9o, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos
conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional.§1° Os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial de que trata este artigo
optarão, por meio de ato do Poder Executivo: I - pelo depósito em conta especial do valor
referido pelo § 2° deste artigo; ou II - pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15
(quinze) anos, caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o
§ 2o deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido
do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no
mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensa­
ção da mora, excluída a incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e
dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. § 2o Para saldar os
precatórios, vencidos e a vencer, pelo regime especial, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios devedores depositarão mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12
(um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes
líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento, sendo que esse percentual,
calculado no momento de opção pelo regime e mantido fixo até o final do prazo a que se refere
o § 14 deste artigo, será: I - para os Estados e para o Distrito Federal: a) de, no mínimo, 1,5%
(um inteiro e cinco décimos por cento), para os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-
Oeste, além do Distrito Federal, ou cujo estoque de precatórios pendentes das suas adminis­
trações direta e indireta corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) do total da receita
corrente líquida; b) de, no mínimo, 2% (dois por cento), para os Estados das regiões Sul e
Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta
corresponder a mais de 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida; II - para
M unicípios: a) de, no mínimo, 1% (um por cento), para M unicípios das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, ou cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações
direta e indireta corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida;
b) de, no mínimo, 1,5% (um inteiro e cinco décimos por cento), para Municípios das regiões
Sul e Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta
corresponder a mais de 35 % (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida. § 3° Entende-
se como receita corrente líquida, para os fins de que trata este artigo, o somatório das receitas
tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, transferên­
cias correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do § 1o do art. 20 da Constitui­
ção Federal, verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 (onze) meses
anteriores, excluídas as duplicidades, e deduzidas: l - nos Estados, as parcelas entregues aos
M unicípios por determinação constitucional; II - nos Estados, no Distrito Federal e nos
M unicípios, a contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e
assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no § 9o do art.
201 da Constituição Federal. §4° As contas especiais de que tratam os §§ 1o e 2o serão
administradas pelo Tribunal de Justiça local, para pagamento de precatórios expedidos pelos
tribunais. §5° Os recursos depositados nas contas especiais de que tratam os §§ 1o e 2o deste
artigo não poderão retornar para Estados, Distrito Federal e Municípios devedores. § 6o Pelo
menos 50% (cinqüenta por cento) dos recursos de que tratam os §§ 1o e 2o deste artigo serão
utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, respeitadas
as preferências definidas no § 1o, para os requisitórios do mesmo ano e no § 2o do art. 100, para
requisitórios de todos os anos. § 7o Nos casos em que não se possa estabelecer a precedência
cronológica entre 2 (dois) precatórios, pagar-se-á primeiramente o precatório de menor valor. §
8o A aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida por Estados, Distrito
Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Executivo, obedecendo à seguinte forma,
que poderá ser aplicada isoladamente ou simultaneamente: I - destinados ao pagamento dos
precatórios por meio do leilão; II - destinados a pagamento a vista de precatórios não quitados
F er n a n d o Fa c u r y S ca ff - 2 8 9

Municípios que não cumpriram o que determina a Constituição e não pa­


garam suas dívidas - o que só reforça a necessidade de ser instituída a pena

na forma do § 6o e do inciso I, em ordem única e crescente de valor por precatório; III -


destinados a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por lei
própria da entidade devedora, que poderá prever criação e forma de funcionamento de câmara
de conciliação. § 9o Os leilões de que trata o inciso I do § 8o deste artigo: I - serão realizados
por meio de sistema eletrônico administrado por entidade autorizada pela Comissão de
Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil; II - admitirão a habilitação de precatórios,
ou parcela de cada precatório indicada pelo seu detentor, em relação aos quais não esteja
pendente, no âmbito do Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza,
permitida por iniciativa do Poder Executivo a compensação com débitos líquidos e certos,
inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra devedor originário pela Fazenda Pública
devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja
suspensa nos termos da legislação, ou que já tenham sido objeto de abatimento nos termos do
§ 9o do art. 100 da Constituição Federal; II! - ocorrerão por meio de oferta pública a todos os
credores habilitados peio respectivo ente federativo devedor; IV - considerarão automatica­
mente habilitado o credor que satisfaça o que consta no inciso II; V - serão realizados tantas
vezes quanto necessário em função do valor disponível; VI - a competição por parcela do
valor total ocorrerá a critério do credor, com deságio sobre o valor desta; VII - ocorrerão na
modalidade deságio, associado ao maior volume ofertado cumulado ou não com o maior
percentual de deságio, pelo maior percentual de deságio, podendo ser fixado valor máximo
por credor, ou por outro critério a ser definido em edital; VIII - o mecanismo de formação de
preço constará nos editais publicados para cada leilão; IX - a quitação parcial dos precatórios
será homologada pelo respectivo Tribunal que o expediu. § 10. No caso de não liberação
tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1o e os §§ 2o e 6o deste artigo: I - haverá
o seqüestro de quantia nas contas de Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por
ordem do Presidente do Tribunal referido no § 4o, até o limite do valor não liberado; II -
constituir-se-á, alternativamente, por ordem do Presidente do Tribunal requerido, em favor dos
credores de precatórios, contra Estados, Distrito Federal e M unicípios devedores, direito
líquido e certo, autoaplicável e independentemente de regulamentação, à compensação
automática com débitos líquidos lançados por esta contra aqueles, e, havendo saldo em favor
do credor, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de tributos de Esta­
dos, Distrito Federal e Municípios devedores, até onde se compensarem; III - o chefe do Poder
Executivo responderá na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade
administrativa; IV - enquanto perdurar a omissão, a entidade devedora: a) não poderá contrair
empréstimo externo ou interno; b) ficará impedida de receber transferências voluntárias; V - a
União reterá os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal
e ao Fundo de Participação dos Municípios, e os depositará nas contas especiais referidas no
§ 1o, devendo sua utilização obedecer ao que prescreve o § 5°, ambos deste artigo. §11. No
caso de precatórios relativos a diversos credores, em litisconsórcio, admite-se o desmembramento
do valor, realizado pelo Tribunal de origem do precatório, por credor, e, por este, a habilitação
do valor total a que tem direito, não se aplicando, neste caso, a regra do § 3o do art. 100 da
Constituição Federal. §12. Se a lei a que se refere o § 4° do art. 100 não estiver publicada em
até 180 (cento e oitenta) dias, contados da data de publicação desta Emenda Constitucional,
será considerado, para os fins referidos, em relação a Estados, Distrito Federal e Municípios
devedores, omissos na regulamentação, o valor de: I - 40 (quarenta) salários mínimos para
Estados e para o Distrito Federal; II - 30 (trinta) salários mínimos para M unicípios. §13.
Enquanto Estados, Distrito Federal e Municípios devedores estiverem realizando pagamentos
de precatórios pelo regime especial, não poderão sofrer seqüestro de valores, exceto no caso
de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1o e o § 2o deste artigo.
§ 14. O regime especial de pagamento de precatório previsto no inciso I do § 1o vigorará
enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos vinculados, nos
termos do § 2o, ambos deste artigo, ou pelo prazo fixo de até 15 (quinze) anos, no caso da
opção prevista no inciso II do § 1o. § 15. Os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do
art. 78 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e ainda pendentes de pagamen­
to ingressarão no regime especial com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas a
290 - O Uso de P r e c a tó r io s p a ra P ag am e n to de T r ib u to s após a EC 62

de inelegibilidade, conforme já exposto, para coibir esta má-gestão impune


e que só gera maior descaso e descrença nas decisões proferidas por alguns
Tribunais brasileiros, que condenam a Fazenda Pública a pagar e a decisão
não é cumprida.
Este regime transitório de pagamento de tributos vigorará “até que seja
editada a lei complementar” prevista no art. 100, §15° da CF, a qual poderá
estabelecer um regime especial permanente para pagamento de precatórios vin­
culado à receita corrente líquida, com forma e prazo de liquidação específicos.
20. Como ficou o sistema de pagamento do estoque de precatórios após
a EC 62?
a) Aos entes públicos devedores foram estabelecidas duas possibili­
dades de parcelamento, a serem depositados em contas especificamente cria­
das para tal finalidade e administradas pelos Tribunais que expediram os
precatórios pendentes de pagamento:
1) Parcelar em 15 anos o estoque de precatórios, corrigido e remu­
nerado pelo índice das cadernetas de poupança, pagando 1/15
avos de seu saldo, em parcelas anuais.
2) Ou parcelar de acordo com percentuais sobre sua receita corrente
líquida, que deverão ser recolhidos mensalmente.
b) Os percentuais estabelecidos para esta segunda opção são os seguintes:
1) Os Estados das Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e o Dis­
trito Federal deverão pagar mensalmente o mínimo de 1,5% de
sua receita corrente líquida.
a. Para os Municípios desses Estados: 1% sobre a mesma base de
cálculo.

cada precatório, bem como o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais. § 16. A partir da
promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, até o
efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de
remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão
juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança,
ficando excluída a incidência de juros compensatórios. § 17. O valor que exceder o limite
previsto no § 2o do art. 100 da Constituição Federal será pago, durante a vigência do regime
especial, na forma prevista nos §§ 6o e 7° ou nos incisos I, II e III do § 8o deste artigo, devendo
os valores dispendidos para o atendimento do disposto no § 2o do art. 100 da Constituição
Federal serem computados para efeito do § 6o deste artigo. §18. Durante a vigência do regime
especial a que se refere este artigo, gozarão também da preferência a que se refere o § 6o os
titulares originais de precatórios que tenham completado 60 (sessenta) anos de idade até a data
da promulgação desta Emenda Constitucional."
F er n a n d o Fa c u r y S caff - 2 9 1

2) Aqueles Estados cujo estoque de precatórios corresponder a até


35% de sua receita corrente líquida: deverão pagar mensalmente
o mínimo de 1,5% de sua receita corrente líquida.
a. Para os Municípios que se enquadrarem nesta situação: 1% so­
bre a mesma base de cálculo.
3) Os Estados das Regiões Sul e Sudeste cujo estoque de precatórios
for superior a 35% de sua receita corrente líquida: deverão pagar
mensalmente 2,0% de sua receita corrente líquida.
a. Para os Municípios que se enquadrarem nesta situação: 1,5%
sobre a mesma base de cálculo.
4) Entende-se por RCL - Receita Corrente Líquida a soma das
receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de
contribuições e de serviços, transferências correntes e outras re­
ceitas correntes, incluindo a compensação financeira pela explo­
ração de recursos minerais, no período entre o mês de referência
e os 11 (onze) meses anteriores, excluídas as duplicidades, e as
transferências obrigatórias mencionadas no §3° do art. 97, ADCT.
c) Dos valores depositados nestas contas correntes para pagamento de
precatórios:
1) Pelo menos metade do valor depositado servirá para pagamento
dos precatórios sob a regra da ordem cronológica de sua apresen­
tação, conforme estabelecido pelo art. 100 do corpo permanente
da Constituição, respeitadas as preferências lá constantes.
2) A outra parte poderá ser aplicada para quitação dos precatórios
sob três modalidades, a serem escolhidas por ato do Poder Exe­
cutivo de cada ente federado:
a. Através de leilão, considerado o critério de deságio;
b . Para pagamento à vista, por ordem única e crescente do valor do
precatório;
c. Através de acordo direto com os credores, na forma de lei própria
de cada ente federativo, que poderá inclusive prever comissões de
conciliação.
Estas são, em muito breves linhas, as diretrizes estabelecidas pelo novel
artigo 97 do A DCT para pagamento do estoque de precatórios.
292 - O Uso de P r e c a t ó r io s p a ra P ag am e n to d e T rib u to s ap ós a EC 62

21. Os aspectos fiscais atinentes à matéria ficam por conta de três normas.
O art. 97, §10°, II, prevê sanções para a hipótese de não liberação tem­
pestiva dos recursos pelos entes públicos devedores, seja através da fórmula de
parcelamento em 15 anos, seja pela fórmula de pagamento percentual sobre a
receita corrente líquida. As sanções são:
a) Seqüestro da quantia por ordem do Presidente do Tribunal ex­
pedidor dos precatórios, até o limite do valor não liberado;
b) Ou, alternativamente, por ordem do Presidente do Tribunal re­
querido, em favor dos credores, “direito líquido e certo, autoapli-
cável e independente de regulamentação” de compensar
automaticamente débitos lançados pelos entes públicos devedores.
1. E havendo saldo em favor do credor, o valor terá automaticamen­
te poder liberatório do pagamento de tributos do ente federativo
devedor, até onde se compensarem.
Cabe observar que a opção pelo seqüestro ou compensação é do Presi­
dente do Tribunal, e que a primeira parte da hipótese de compensação repete
aquilo que foi inserido no art. 100 da Constituição, que é a compensação
compulsória prévia à expedição do precatório. Uma vez que o artigo ora sob
comento trata do estoque de precatórios, ou seja, precatórios já expedidos e
não pagos, esta hipótese visa equacionar as duas situações, estabelecendo com­
pensação compulsória também nesta hipótese, sejam os créditos públicos tri­
butários ou não - tal como determinado no art. 100, § 9o, CE
O poder liberatório para pagamento de tributos através de “compensa­
ção livre” só com os recursos que sobejarem da “compensação compulsória”.
22. Outra norma que trata de aspectos tributários é o art. 97, § 9o, II,
ADCT, que dispõe sobre a habilitação de precatórios para venda através do
sistema de leilões.
Prevê a mesma “compensação compulsória” a critério do Poder Executi­
vo acima descrita, limitada, contudo, até “a data de expedição do precatório”,
ressalvados aqueles que estejam com sua exigibilidade suspensa ou que já
tenham sido objeto do abatimento previsto pelo art. 100, §9°, na parte per­
manente da Constituição.
Observa-se que há coerência neste procedimento, pois segue o mesmo
parâmetro estabelecido pelo art. 100, que regra a parte permanente da Carta
F er n a n d o Fa c u r y S caff - 2 9 3

acerca da matéria. Retoma-se a crítica anteriormente efetuada acerca da au­


sência de previsão específica para o exercício do contraditório nesta hipótese.
23. A última norma que dispõe sobre aspectos tributários na atual siste­
mática de precatórios é o art. 97, §15°, e que contém uma “casca de banana
interpretativa” em seu bojo.
Estabelece a norma que os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou
do art. 78 do A DCT e ainda pendentes de pagamento ingressarão no regime
especial criado pelo art. 97 (EC 62) com o valor atualizado das parcelas não
pagas relativas a cada precatório, bem como com o saldo dos acordos judiciais
e extrajudiciais.
A “casca de banana interpretativa” está no fato de que os precatórios
alimentícios encontram-se expressamente excluídos dos parcelamentos com­
pulsórios estabelecidos tanto pelo art. 33, quanto pelo art. 78 do ADCT. Ou
seja, aparentemente, em uma leitura apressada, poder-se-ia concluir que os
precatórios alimentícios teriam ficado de fora deste grande reparcelamento
estabelecido pelo art. 97, ADCT.
Todavia, interpretar desse modo seria um erro, pois, embora seja verídico
que os precatórios alimentícios não tenham entrado nos parcelamentos dos
arts. 33 e 78 do ADCT, uma vez que deveriam ser pagos à vista - e muitos
não o foram, como acima comprovado -, o caput do art. 97 alcança todos os
valores que “estejam em mora na quitação de precatórios vencidos”. Logo, os
alimentares que estejam em mora encontram-se incluídos no parcelamento
do art. 97 do ADCT.
Desta forma, mesmo os precatórios alimentícios podem ser usados para
pagamento de tributos, na hipótese do art. 97, § 10°, II, A D C T e estão
sujeitos à compensação compulsória prevista no art. 97, §9°, II, ADCT.
24. Após ler estas normas transitórias constata-se a existência de um
“silêncio eloqüente”. Não há nem uma única palavra sobre “cessão” de direitos
sobre os precatórios, como existe no art. 78, ADCT e no art. 6o da EC 62,
convalidando os que foram efetuados.
Será que não existe direito a cessão do estoque de precatórios? Por
certo existe na parte permanente do texto, mas nenhuma palavra é dita na
parte transitória.
Certamente existe este direito. Este é um direito consolidado no corpo
permanente da Constituição, art. 100, § 14, e que, sendo obedecidas suas con-
294 - O Uso de P re c a tó r io s p a ra P ag am e n to d e T rib u t o s após a EC 62

dicionantes (comunicação ao Tribunal e ao ente público devedor) pode ser im­


plementado. Nada obsta este procedimento. O fato de estar localizado na parte
permanente não afeta sua aplicação como regra geral a ser implementada.
Outros aspectos reforçam este entendimento. O uso da palavra “deten­
tor” no art. 97, §9°, II, CF indica a possibilidade de cessão. Uma coisa é o
titular originário de um direito, outra é o detentor daquele direito. Na refe­
rida norma, ao tratar da habilitação do crédito com precatórios para fins de
participação nos leilões, é mencionada a palavra “detentor” do direito de indi­
car o valor do precatório que será levado a leilão. Correlato a este entendimen­
to está a expressão “titulares originais de precatórios” constante do art. 97,
§18, A D C T Ao mencionar a manutenção da preferência no pagamento dos
precatórios quando seus “titulares originários” tenham 60 anos na data da
promulgação da EC 62, admite-se a possibilidade de cessão, dentre outras
formas de circulação dos créditos, tal como por herança.

IV . C o n c l u s õ e s

25. Mário de Andrade declarou, através de seu personagem Macunaíma,


que os males do Brasil são pouca saúde e muita saúva. Posso acrescentar vários
outros, dentre eles a pouca seriedade no trato com o dinheiro público, e, mais
ainda, com o pagamento dos precatórios por parte de alguns Estados e Municí­
pios de nossa Federação.
Basta ver que, nessa matéria, já foram realizados parcelamentos compul­
sórios, impostos pelo próprio devedor, que empurraram o pagamento de seus
débitos para mais de 33 anos após a promulgação da Constituição. E muitos
desses valores já estavam pendentes de pagamento antes de sua promulgação,
o que joga para as calendas gregas o cumprimento do dever dos entes públicos
de pagar suas dívidas judiciais.
É claro que existe quem pague em dia, mas os Estados mais ricos não o
fazem, e, com isso, levam vantagem competitiva no manejo dos recursos orça­
mentários e deslustram sua própria Justiça. O sistema de precatórios previsto
pela Constituição é bastante útil e inteligente, pois permite que seja realizado
um planejamento orçamentário para o pagamento dos débitos judiciais, porém
o desvirtuamento ocasionado por diversos entes federativos causa sua falência e
soluções ad hoc como a que vemos na EC 62. Aliás, já vistas no art. 33 e no art.
78 (EC 30) do ADCT. Restam frangalhos do sistema original, desvirtuados.
F er n a n d o F a c u r y S caff - 2 9 5

A EC 62 se insere nesse rol de procrastinações acima referido, e projeta a


quitação de todo o passivo nos próximos 15 anos - quiçá tenha êxito, a despeito
do dilatadíssimo prazo imposto aos credores. Além disso, impôs alguns institu­
tos injustos e perversos na parte transitória - transitoriedade que afasta as regras
permanentes por 15 anos - tais como o leilão e a possibilidade de acordo direto
entre as partes para quitação do precatório. Quem tem uma decisão judicial
obrigando a Fazenda Pública a pagar certo valor ainda será compelido a dar
deságio para receber o que a decisão judicial determina? É patético.
De todo modo, a EC 62 convalidou as cessões de precatórios e as compen­
sações com tributos efetuadas antes de sua promulgação, criou institutos per­
versos, como acima referido, e estabeleceu uma espécie de compensação
tributária compulsória prévia à expedição dos precatórios (o que pode ocasio­
nar novos retardos na determinação do valor líquido a ser consignado no preca­
tório), permitindo apenas uma espécie de compensação tributária livre com os
valores que sobejarem e perante a mesma Fazenda Pública.
Parafraseando Tomaso di Lampedusa pode-se dizer da EC 62, em suma,
que ela tudo mudou para que o sistema permanecesse igual. É urgentemente
necessário republicanizar este assunto e fazer com que o Estado Democrático
de Direito prevaleça, submetendo o Poder Público às mesmas regras aplicáveis a
todos, sem mudanças ad hoc como as que foram efetuadas visando procrastinar o
que já retarda: o pagamento do que é devido pelo Estado por decisão judicial.
PIS/COFINS - ICMS/IPI.
Material idades e
Não-Cumulatividade.
Semelhanças e Diferenças.
Efeitos Jurídicos

José Eduardo Soares de Melo


Doutor e Livre Docente em Direito. Professor Associado e Coordenador do
Curso de Processo Tributário da PUC-SP. Visiting Scholar da Universidade da
Califórnia (Berkeley). Consultor Tributário.
Jo sé Ed u a r d o So a r es d e M elo - 2 9 9

I. C o n t r ib u iç õ e s - P ressu po sto s

Contribuição “é o tributo vinculado cuja hipótese de incidência consiste


numa atuação estatal indireta e mediatamente (mediante uma circunstância
intermediária) referida ao obrigado” (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Inci­
dência Tributária, 6a ed. 7a tir. São Paulo: Malheiros Editores, p. 152).
A Constituição Federal qualifica as contribuições como tributos em ra­
zão de sua natureza (receitas derivadas e compulsórias), e, por consubstancia­
rem princípios peculiares ao regime jurídico dos tributos, que se encontram
previstos no texto constitucional.
A parafiscalidade constitui a singularidade das contribuições, represen­
tando a autorização para que edição das respectivas normas, dispondo sobre a
legitimidade dos órgãos destinatários para exigi-las, e a destinação do produto
de sua arrecadação, como legítimos titulares de conformidade com a legislação
instituidora das diversas contribuições (Instituto nacional da Seguridade So­
cial, Fundo Nacional de Educação, etc.).
Esta sistemática tem implicação com o aspecto pessoal da norma de in­
cidência, correspondente à capacidade tributária que é “a aptidão de uma pes­
soa figurar no pólo positivo da obrigação tributária. Correlaciona-se com o
sujeito que ocupa a posição de credor dentro da obrigação tributária”, tratan-
do-se de transferência (ou delegação) de tal capacidade, na figura de ‘auxilia-
res dos sujeitos ativos’” (CARRAZZA, Roque Antonio. 0 Sujeito Ativo da
Obrigação Tributária. São Paulo: RT, 1977, p. 101 e 40).
Em realidade, a “capacidade tributária ativa” consiste na arrecadação e
emprego dos valores tributários (contribuições), por parte de terceiros (ór­
gãos previdenciários, entidades corporativas, ou de setor econômico), também
denominados “entidades paraestatais”, diversas das pessoas políticas dotadas
de “competência para instituir tributos”, como a União, Estados, Distrito Fe­
deral e Municípios.
Não se cogita de simples expediente financeiro, mera técnica de cobran­
ça ou facilidade operacional. Por inarredável diretriz constitucional, a lei deve
contemplar o legítimo titular do direito à percepção do tributo (contribui­
ção), observando o regime jurídico-tributário.
O Supremo Tribunal Federal consagrara a natureza tributária das con­
tribuições sociais (Re n° 138.284/CE, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j.
01.07.92, DJU de 28.08.92), ressaltando-se o voto do relator:
3 0 0 - P I S / C O F I N S - IC M S /IP 1 . M a t er ia l id a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

“As contribuições parafiscais têm caráter tributário. Sustento que


constituem essas contribuições uma espécie de tributo ao lado dos im­
postos e das taxas, na linha aliás, da lição de Rubens Gomes de Sousa
(“NaturezaTributária da Contribuições ao FGTS”, RDA112/27, KDP
17/305). Quer dizer, as contribuições não são somente as de melhoria.
Estas são uma espécie do gênero contribuição; ou uma subespécie da
espécie contribuição.
(...)

O citado art. 149 institui três tipos de contribuições: a) contribuições


sociais; b) de intervenção; c) corporativas. As primeiras, as contribui­
ções sociais, desdobram-se, por sua vez, em: a.l) contribuições de
Seguridade Social; a.2) outras de Seguridade Social; e a.3) contribui­
ções sociais gerais”.
(destaco).
A circunstância de determinadas contribuições estarem enquadradas no
âmbito da “seguridade social” (art. 195, da CF), em tópico distinto do sistema
tributário (art. 149 da CF), não desnatura sua característica tributária. Signi­
fica (art. 194 da CF) que devem ser considerados os objetivos seguintes: (I)
universalidade da cobertura e do atendimento; (II) uniformidade e equiva­
lência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; (III) seletivi­
dade e distributividade na prestação na prestação dos benefícios e serviços;
(IV) irredutibilidade do valor dos benefícios; (VI) diversidade da base de
financiamento; (VII) caráter democrático e descentralizado da administra­
ção, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos
empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

II. PIS - C O F I N S

1. O per a çõ es in t er n a s

As contribuições para o PIS (Programa de Integração Social), e para a


COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), têm
como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas
auferidas pela pessoa jurídica (contribuinte), independentemente de sua de­
nominação ou classificação contábil.
Jo sé Ed u a r d o S o a r es d e M elo - 3 0 1

A totalidade das receitas (base de cálculo) compreende a receita bruta


da venda de bens e serviços nas operações em conta própria, ou alheia, e todas
as demais receitas auferidas.
Contabilmente, o Instituto Brasileiro de Contadores (IBRACON) emi­
tira os conceitos seguintes:
“2. Receita corresponde a acréscimos nos ativos ou decréscimos nos
passivos, reconhecidos e medidos em conformidade com os princípios
da contabilidade geralmente aceitos, resultantes dos diversos tipos de
atividades e que possam alterar o patrimônio líquido. Receita e despe­
sa, como conceituadas nesse pronunciamento, se restringem generica­
mente às atividades de empresas comerciais e industriais, não abran­
gendo, conseqüentemente, as empresas que exploram recursos natu­
rais, transportes, e outras entidades, inclusive as sem fins lucrativos.
3. Acréscimos nos ativos e decréscimos nos passivos, designados como
receita, são relativos a eventos que alteram bens, direitos e obrigações.
Receita, entretanto, não inclui todos os acréscimos nos ativos ou decrés­
cimos nos passivos. Recebimento de numerário por venda a dinheiro é
receita, porque o resultado líquido da venda implica alteração do
patrimônio líquido. Por outro lado, o recebimento do numerário por
empréstimo tomado ou o valor de um ativo comprado a dinheiro não são
receita, porque não alteram o patrimônio líquido. Nem sempre a receita
resulta, necessariamente, de uma transação em numerário ou seu equi­
valente, como, por exemplo, a correção monetária de valores ativos”.
(.Princípios Contábeis, 2a ed. São Paulo: Adas, p. 112).
O Conselho Federal de Contabilidade expediu Resolução n° 750, de
29.12.93, estabelecendo os “princípios fundamentais da Contabilidade”, e,
em especial (art. 9o), o seguinte: § 3o As receitas consideram-se realizadas: I -
nas transações com terceiros, quando estes efetuarem o pagamento ou assumi­
rem compromisso firme de efetivá-lo, quer pela investidura na propriedade
de bens anteriormente pertencentes à Entidade, quer pela fruição de serviços
por esta prestados; II - quando o desaparecimento, parcial ou total, de um
passivo, qualquer que seja o motivo; III - pela geração natural de novos ativos,
independentemente da intervenção de terceiros, e IV - no recebimento de
doações e subvenções”.
No âmbito das receitas públicas, clássica doutrina assentara o seguinte:
3 0 2 - P IS / C O F IN S - IC M S /IP 1 . M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

“3. Entradas ou ingressos - As quantias recebidas pelos cofres públicos


são genericamente designadas como ‘entradas’ ou ‘ingressos’. Nem to­
dos esses ingressos, porém, constituem receitas públicas, pois alguns
deles não passam de ‘movimentos de fondo’, sem qualquer incremento
do patrimônio governamental, desde que estão condicionados a resti­
tuição posterior ou representem mera recuperação de valores empres­
tados ou cedidos pelo Governo.
Exemplificam esses ‘movimentos de fandos’ ou simples ‘entradas de
caixa’, destituídas de caráter de receitas: as cauções, fianças e depósi­
tos recolhidos ao Tesouro; os empréstimos contraídos pelos Estados,
ou as amortizações daqueles que o Governo acaso concedeu; enfim,
as formas que se escrituram sob reserva de serem restituídas ao
depositante ou pagas a terceiro por qualquer razão de direito e as
indenizações devidas por danos causados às coisas públicas e liqui­
dados segundo o direito civil”.
(BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 5a ed.
Rio de Janeiro: Forense, p. 130).
Um resumo dos conceitos firmados nos âmbitos contábil e jurídico de­
monstra que “receita é um conceito jurídico, no sentido de ser um aumento
quantitativo pactuado sobre um direito já existente no patrimônio, eis que o
resultado de qualquer um desses fatores é um aumento na soma algébrica dos
valores positivos (direitos) e negativos (obrigações) que constituem o patri­
mônio”, na ótica de Ricardo Mariz de Oliveira (Fundamentos do Imposto de
Renda, Quartier Latin, 2008, p. 97).
Promovendo distinção da receita com renda, lucro, ganho de capital,
alocação de capital e investimentos, movimentação financeira, primorosa dou­
trina firma o conceito seguinte:
“Receita é qualificada pelo ingresso de recursos financeiros no patrimônio
da pessoajurídica, em caráter definitivo, proveniente dos negóciosjurídi­
cos que envolvam o exercício da atividade empresarial, que corresponda
à contraprestação pela venda de mercadorias, pela prestação de serviços,
assim como pela remuneração de investimentos, ou pela cessão onerosa e
temporária de bens e direitos a terceiros, aferido instantaneamente pela
contrapartida que remunera cada um desses eventos”.
(MINATEL, José Antonio. Conteúdo do Conceito de Receita e Regime
Jurídicopara sua Tributação, MP/APET, 2005, p. 124).
J o sé E d u a r d o S o a r es d e M elo - 3 0 3

Assim, não constituiriam receita o valor recebido antecipadamente; o


ressarcimento ou recuperação de despesa e de custo anteriormente suportado
pela pessoa jurídica; a recuperação de tributo; as mercadorias recebidas em
bonificação e descontos obtidos na liquidação de obrigações; os ajustes inter­
mediários e periódicos realizados antes da efetiva liquidação do contrato de
câmbio; os ingressos provenientes de doações, contribuições e patrocínios; a
subvenção governamental, o perdão da dívida; a troca (permuta de bens e
direitos); e a reversão de provisões”, {ob. cit. p. 201-249).
Para determinação do montante das contribuições devem ser aplicadas à
base de cálculo as alíquotas seguintes:
- PIS - 0,65% (regime cumulativo); e 1,65% (regime não-cumulativo);
- COFINS - 3% (regime cumulativo); e 7,6% (regime não-cumulativo)
2 . I m po rta çõ es

O fato gerador é: (I) a entrada de bens estrangeiros no território nacio­


nal; ou (II) o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de
valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação por
serviço prestado.
Para efeito de cálculo das contribuições (relativas aos bens), considera-se
ocorrido o fato gerador: (I) na data do registro da declaração de importação de
bens submetidos a despacho para consumo; (II) no dia do lançamento do
correspondente crédito tributário, quando se tratar de bens constantes de
manifesto ou de outras declarações de efeito equivalente, cujo extravio ou
avaria for apurado pela autoridade aduaneira; (III) na data do vencimento do
prazo de permanência dos bens em recinto alfandegado, se iniciado o respec­
tivo despacho aduaneiro antes de aplicada a pena de perdimento, em específi­
ca situação; e (IV) na data do pagamento, do crédito, da entrega, do emprego
ou da remessa de valores.
Os serviços tributados são os provenientes do exterior, prestados por
pessoa física ou pessoa jurídica residente ou domiciliada no exterior, nas se­
guintes hipóteses: (I) executados no país, ou (II) executados no exterior, cujo
resultado se verifique no país.
São contribuintes: (I) o importador, assim considerada a pessoa física ou
jurídica que promova a entrada de bens estrangeiros no território nacional;
(II) a pessoa física, ou jurídica, contratante de serviços de residente ou domi­
3 0 4 - P I S / C O F I N S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

ciliado no exterior; e (III) o beneficiário do serviço, na hipótese em que o


contribuinte também seja residente ou domiciliado no exterior.
A base de cálculo será (I) o valor aduaneiro, assim entendido, para os
efeitos da lei, o valor que servir ou que serviria de base para cálculo do
ICMS, incidente no desembaraço aduaneiro, e o valor das próprias contri­
buições; ou (II) o valor pago, creditado, entregue, empregado ou remetido
para o exterior, antes da retenção do IR, acrescido do ISS e do valor das
próprias contribuições.
As contribuições serão calculadas mediante a aplicação, sobre a base de
cálculo, das alíquotas básicas seguintes: (I) 1,65% para o PIS-Importação e
(II) 7,6% para a COFINS-Importação.

I I I . Im p o st o s - C a r a c t e r ís t ic a s

Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação
independentemente de qualquer atividade estatal específica relativa ao con­
tribuinte (art. 16 do CTN). Este conceito guarda plena consonância com as
diretrizes constitucionais, que apenas indicam as materialidades relativas às
competências dos Poderes Públicos (arts. 153, 155 e 156).
O fato imponível não se refere a um comportamento das pessoas jurí­
dicas de direito público interno; ao contrário, prende-se a um fato, ato,
situação inerente a um particular, indicados de sua capacidade contributiva
(art. 145, § I o, da CF). O Estado não oferece qualquer utilidade, comodi­
dade ou serviço fruível (direto ou mediante relação indireta), não havendo
vinculação entre o pressuposto de fato previsto na norma instituidora do
imposto e a atuação estatal.
Implicitamente, “a Constituição determina que a lei coloque na hipó­
tese de incidência dos impostos fatos regidos pelo Direito Privado, isto é, da
esfera pessoal dos contribuintes, e, portanto, desvinculados da ação do Esta­
do (esta sim, regida pelo Direito Público). Realmente, o Texto Magno, nos
mencionados arts. 153, 155 e 156, autoriza o legislador ordinário a adotar,
como hipótese de incidência de impostos, o fato de alguém: a) importar
produtos; b) exportar produtos; c) auferir rendimentos; d) praticar opera­
ções de crédito; e) ser proprietário de imóvel rural; f) praticar operação
mercantil; g) ser proprietário de veículo automotor; h) ser proprietário de
imóvel urbano; i) prestar, em caráter negociai, serviços de qualquer nature­
J o s é E d u a r d o S o a r e s d e M elo - 3 0 5

za, etc.” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional


Tributário. 22a ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 502).
O autor acentua que “todos esses fatos, como facilmente podemos perce­
ber, têm a propriedade de, em si mesmos, revelar ou, pelo menos, fazer presu­
mir, a capacidade econômica das pessoas que os realizam (capacidade
contributiva). Melhor dizendo, são fatos signospresuntivos de riqueza" (Becker)
...{ob. cit., p. 502).
Os impostos têm sido objeto de diversas classificações:
a) direto, quando o valor econômico é suportado exclusivamente pelo
contribuinte, como é o caso do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veí­
culos Automotores - art. 155, III, da CF). O proprietário do automóvel arca
com o ônus do tributo, cujo valor não é repassado a terceiro.
b) indireto, quando a respectiva carga financeira tem condição de ser
transferida a terceiro, como é o caso do ICMS (Imposto sobre Operações
Relativas à Circulação de Mercadorias - art. 155, II, da CF). O contribuinte
do tributo é o comerciante, que fica obrigado a recolher o seu respectivo valor,
mas pode ser ressarcido (financeiramente) por ocasião do pagamento do preço
por parte do adquirente;
c) pessoal, quando a quantificação do tributo decorre de condições pe­
culiares do contribuinte, como é o caso do IR (Imposto sobre a Renda e
Proventos de Qualquer Natureza - art. 153, III, da CF). A carga do tributo
será menos elevada na medida em que a pessoa física tenha realizado maior
volume de gastos com saúde, educação, etc.;
d) real, quando o montante do tributo leva em conta o valor da coisa, como
é o caso do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana - art. 156,1,
da CF), conforme diretriz judicial (STF, RE n° 153.771-0-MG, j. 20.11.96).
Referidas classificações revestem caráter prático (não propriamente cien­
tífico), uma vez que o aspecto marcante do imposto reside na materialidade
(negócio ou estado jurídico). A nota característica desta exação é tratar-se de
tributo não vinculado à atividade estatal.
306- PIS/CO FIN S- ICMS/IPI. M a t e r ia u d a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

IV. IC M S

1. O per a çõ es in t er n a s

O ICMS tem como fatos geradores:


a) operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o forne­
cimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e esta­
belecimentos similares;
b) prestações de serviços de transporte interestadual e intermunici-
pal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;
c) prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer
meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a
retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qual­
quer natureza;
d) fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não com­
preendidos na competência tributária dos Municípios;
e) fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos
ao imposto sobre serviços de competência dos Municípios, quando
a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidên­
cia do imposto estadual.
Contribuinte é qualquer pessoa física, ou jurídica, que realiza habitual­
mente ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circula­
ção de mercadoria ou prestação de serviços de transporte e de comunicação.
Base de cálculo é o valor da operação mercantil; e o preço dos serviços de
transporte e de comunicação; enquanto que as alíquotas são variáveis (fixadas
pelo Senado, ou pelos Estados e Distrito Federal, nas operações internas).
2 . I m po rta çõ es

O fato gerador é a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior,


tendo como contribuintes a pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contri­
buinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como
sobre o serviço prestado do exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver
situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem
ou serviço.
Jo sé E d u a r d o S o a r es d e M elo - 3 0 7

A base de cálculo (importação de bem ou mercadoria) será a somatória


do valor constante dos documentos de importação, do imposto de importa­
ção, do imposto sobre produtos industrializados, do imposto sobre operações
de câmbio, e de quaisquer outros impostos, taxas, contribuições (inclusive
PIS e COFINS), e despesas aduaneiras. Na prestação de serviço no exterior, a
base de cálculo é o respectivo preço. As alíquotas são fixadas pelos Estados e
Distrito Federal.

V. IPI

1. O per a çõ es in tern a s

O fato gerador é a saída do produto do estabelecimento industrial, de­


corrente de industrialização (transformação, beneficiamento, montagem, acon-
dicionamento ou reacondicionamento, renovação ou recondicionamento).
Contribuinte é o industrial (“fabricante”), ou seja, a pessoa que efetua a
industrialização e promove o respectivo negócio jurídico pertinente à saída de
produto de seu estabelecimento.
A base de cálculo é o valor da operação de que decorrer a saída do
estabelecimento industrial, enquanto que as alíquotas constam de Tabela
de Incidência do IPI, de conformidade com classificações fiscais, sendo fi­
xadas de conformidade com o princípio da seletividade, em razão da es-
sencialidade dos produtos.
2 . I m po rta çõ es

O fato gerador é o desembaraço aduaneiro de produto de procedência


estrangeira, decorrente de despacho promovido pela fiscalização, em que é
verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador em relação ao pro­
duto importado, aos documentos apresentados, e à legislação vigente.
Contribuinte é a pessoa (física ou jurídica) que promove o desembaraço
aduaneiro de procedência estrangeira, em razão de sua titularidade.
A base de cálculo é o valor que servir de base para o cálculo dos tributos
aduaneiros, por ocasião do despacho de importação, acrescido do montante
desses tributos, e dos encargos cambiais efetivamente pagos pelo importador
ou dele exigíveis.
3 0 8 - P IS / C O F IN S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d es e N ã o - C u m u l a t iv id a d e ..

As alíquotas estão previstas em Tabela de Incidência do IPI, de confor­


midade com classificações fiscais, fixadas de conformidade com o princípio da
seletividade, em razão da essencialidade dos produtos.

VI. S e m e lh a n ça s do PIS-COFINS co m IC M S-IP I -


E fe ito s J u r íd ic o s

Nas operações internas, as contribuições são semelhantes aos referidos


impostos, uma vez que “faturamento” (fato gerador do PIS e da COFINS),
mantém correspondência com “operações mercantis, prestações de serviços, e
operações com produtos industrializados”.
“Fatura é, em direito mercantil, o documento relativo à venda de merca­
dorias, discriminando-as por quantidade, qualidade, espécie, tipo e ou­
tras características, o preço das mesmas e as condições de entrega e
pagamento. A emissão de fatura nas vendas é obrigatória, nos termos
da Lei 5.474,de 18.6.1968”.
{Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 36, p. 375-376).
“Fatura, na técnicajurídico-comercial, é especialmente empregada para
indicar a relação de mercadorias ou artigos vendidos, com os respectivos
preços de venda, quantidades e demonstrações acerca de sua qualida­
de e espécie, extraída pelo vendedor e remetida por ele ao comprador.
É o documento representativo da venda já consumada ou concluída,
mostrando-se o meio pelo qual o vendedor vai exigir do comprador o
pagamento correspondente, se já não foi paga, e leva o correspondente
recibo de quitação”.
(DE PLÁCIDO E SILVA. VocabulárioJurídico, vol. II, p. 681-682).
O PIS e a COFINS são devidos pela realização de faturamentos decor­
rentes da venda de produtos, mercadorias; e prestação de serviços (negócios
jurídicos mercantis e civis).
O IPI e o ICMS são devidos em razão de venda de produtos, mercado­
rias, e prestações de serviços (negócios jurídicos), objeto de faturamento.
Nas importações as contribuições também se assemelham aos im­
postos, porque referidas espécies tributárias são devidas no recebimento
de bens, mercadorias, ou produtos; ou, devido à aquisição de serviços pres­
tados no exterior.
J o sé E d u a r d o S o a r es d e M elo - 3 0 9

Tratando-se de tributos (contribuições e impostos) não vinculados à


atuação estatal, devem ser observados os princípios seguintes:
a) legalidade, em que a instituição, majoração e extinção (art. 150,1,
III, a e b, da CF) devem ser sempre previstos em “lei”, compreendi­
da como espécie normativa editada pelo Legislativo (excepcional­
mente pelo Executivo, nos casos de medidas provisórias previstas no
art. 62 da CF), contendo preceitos vinculantes;
b) tipicidade, que significa os elementos contidos na norma tribu­
tária, tendo como caracteres a observância de numerus clausus (ve­
dando a utilização de analogia e a criação de novas situações
tributáveis); taxatividade (enumeração exaustiva dos requisitos
necessários à tributação), exclusivismo (elementos suficientes), e
determinação (conteúdo da decisão rigorosamente observada pre­
vista em lei), na temática de Alberto Xavier (apud OLIVEIRA,
Yonne Dolácio de. A Tipicidade no Direito Tributário Brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 1980, p. 39041).
A tipicidade cerrada funda-se na premissa de que o legislador contempla
todos os elementos da hipótese de incidência tributária relativos à obrigação
(credor, devedor, materialidade, base de cálculo, alíquota, momento e local da
ocorrência do denominado fato gerador). Significa a completude do sistema
jurídico, prestigiando-se os princípios da segurança e da certeza do direito.
c) capacidade econômica, que constitui o elemento básico de onde
defluem as garantias materiais diretas, de âmbito constitucional,
como a generalidade, igualdade e proporcionalidade. É revelada
pelo valor do objeto (materialidade). Tendo em vista que a tribu­
tação quantifica-se por uma base de cálculo (à qual se aplica uma
alíquota, salvo os casos excepcionais de alíquota fixa), sempre
será possível medir a intensidade (econômica) de participação do
contribuinte no montante do tributo.
d) vedação de confisco, positivando-se sempre que o tributo absorva
parcela expressiva do patrimônio do faturamento, da receita, ou da
propriedade dos contribuintes. Alíquotas e bases de cálculo exces­
sivas sobre as materialidades tributárias representarão considerável
(e condenável) subtração do patrimônio dos contribuintes; que,
em muitos casos, poderão prejudicar o direito à livre atividade
3 1 0 - P IS / C O F IN S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e ...

empresarial, ainda que os valores tributários sejam traslados a ter­


ceiros diretamente (caso do ICMS e do IPI), ou indiretamente
(situação do PIS e da COFINS), dentro de um ciclo negociai,
e) anterioridade das normas jurídicas, que constitui um dos
postulados básicos da atividade legislativa, iluminando as regras
de edição das regras de qualquer natureza, o procedimento da
administração pública, as decisões judiciais, e a atuação dos seus
destinatários. Permite conferir aos contribuintes a certeza do
quantum a ser recolhido aos cofres públicos, podendo planejar
seus negócios, traduzindo a diretriz de que a lei não pode retroagir
em prejuízo do contribuinte, nem atingir fato imponível que já
teve seu início, ou que estava em formação.

VII. N ão C u m u l a t iv id a d e

1. F u n d a m en t o s

Trata-se de sistemática de apuração dos valores tributários a serem efeti­


vamente devidos em relação a determinadas espécies de operações e negócios.
Constitui um sistema operacional destinado a minimizar o impacto do tribu­
to sobre os preços dos bens e serviços. Tem origem na evolução cultural, social,
econômica e jurídica do povo. Sua supressão do ordenamento jurídico acarre­
taria um enorme abalo na estrutura tributária, gerando um custo artificial e
indesejável dos preços dos produtos e serviços, onerando o custo de vida da
população, encarecendo o processo produtivo e comercial, e reduzindo os in­
vestimentos empresariais.
Os princípios da igualdade e da capacidade contributiva mantêm con­
gruência com o princípio da não cumulatividade. O consumidor final é o
objetivo último da produção e circulação de mercadorias e da prestação de
serviços. É para satisfação de sua necessidade que está direcionada a ativi­
dade dos produtores, industriais, comerciantes, prestadores de serviços,
etc. Estes, por sua vez, submetem-se ao comando constitucional previsto
no art. 170 e seguintes, que impõe o dever de observância à valorização do
trabalho, da existência digna e da justiça social, obrigando o respeito e a
defesa do consumidor.
J o s é Ed u a r d o S o a r es d e M elo - 3 1 1

Desta forma, o legislador deverá impor aos agentes do ciclo de produ­


ção/comercialização/prestação de serviços uma única regra de comportamen­
to, para que seja uniforme a carga tributária incorporada ao preço das
mercadorias e dos serviços.
A lei não poderia estabelecer que, em certa etapa do ciclo, a não cumula­
tividade seja abolida. A igualdade e a capacidade contributiva de cada um dos
agentes do ciclo de produção, de comercialização ou de prestação de serviços
estão intimamente ligadas à capacidade econômica dos mesmos. A sua preser­
vação pelo legislador ordinário faz com que se mantenha o poder do consumi­
dor de adquirir esses produtos e serviços.
Também estará acarretando efeito confiscatório, porque sobre o mesmo
preço está ocorrendo mais de uma incidência do mesmo tributo, a retirar de
cada um dos agentes do ciclo um montante maior de tributo do que o efeti­
vamente devido (MELO, José Eduardo Soares de; LIPPO, Luiz Francisco. A
não cumulatividade tributária, 3a ed. São Paulo: Dialética, 2008).
São diversos os métodos de cálculo para a exigência de tributos não cu­
mulativos:
a) método direto subtrativo: consiste na aplicação da alíquota do tribu­
to sobre a diferença entre as saídas e as entradas. Deduz-se da base de cálculo
do tributo (preço de venda, do serviço, valor da receita, etc.) o montante cor­
respondente às entradas necessárias ao desenvolvimento da atividade tributa­
da, para, sobre esse resultado, aplicar-se a alíquota;
b) método direto aditivo: determina a aplicação da alíquota tributária sobre
o valor efetivamente agregado. Nesse caso, o quantum devido é calculado mediante
a incidência da alíquota sobre o somatório da mão de obra, matérias-primas,
insumos, margem de lucro e quaisquer despesas do contribuinte, tendo em vista
ser essa soma acrescida ao preço da atividade sujeita à tributação;
c) método indireto subtrativo: determina o valor devido por meio da
diferença entre a alíquota aplicada sobre as saídas, e a alíquota correspon­
dente às entradas;
d) método indireto aditivo: estipula seja o tributo calculado por meio
da somatória da aplicação da alíquota a cada um dos elementos que compõem
o valor agregado pelo contribuinte. Por exemplo: o somatório da alíquota
incidente sobre os fatores mão de obra, matérias-primas, margem de lucro e
demais despesas voltadas à consecução da atividade do contribuinte. (TOMÉ,
3 1 2 - P IS / C O F I N S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e ...

Fabiana Del Padre. Natureza jurídica da não-cumulatividade da contribui­


ção ao PIS/PASEP e da COFINS: conseqüências e aplicabilidade. In: PEI­
XOTO, Marcelo Magalhães; Fischer, Octávio Campos (coord.). PIS/COFINS
— Questões Atuais e Polêmicas, APET e MP, p. 542-543).
O cânone da não cumulatividade não integra a estrutura da norma
tributária (sujeito ativo e passivo, materialidade, base de cálculo e alíquota),
tendo operatividade em momento posterior à configuração do débito. Nas­
ce, age, e interfere no quantum debeatur por meio de mecanismos compensa­
tórios de tributos ou encargos suportados financeiramente, com os tributos
suportados juridicamente.
2 . PIS - CO FIN S

Constituição Federal (art. 195, §§ 12 e 13)


“§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as
contribuições incidentes na forma dos incisos I, “b”, e IV do caputào art.
195 serão não-cumulativas.
§ 13. Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição
gradual, total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I,
a, pela incidente sobre a receita ou o faturamento”.
Observação: O inciso I, “b” refere-se à contribuição sobre a receita ou
faturamento (COFINS), e o inciso IV concerne à importação de bens e
serviços (COFINS-Importação).
O crédito será determinado mediante a aplicação de alíquotas específicas
(1,65% para o PIS, e 7,6% para a COFINS), sobre os valores de determina­
dos bens e dispêndios, salvo restrições legais (vedação de crédito).
Relativamente às importações poderão ser abatidos créditos para fins de
sua determinação: (I) bens adquiridos para revenda; (II) bens e serviços utili­
zados como insumo na prestação de serviços e na produção e fabricação de
bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustível e lubrificantes;
(III) energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica; (IV)
aluguéis e contraprestações de arrendamento mercantil de prédios, máquinas
e equipamentos utilizados na atividade da empresa; (V) máquinas, equipa­
mentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos para uti­
lização na produção de bens destinados à venda, ou na prestação de serviços.
J o sé E d u a r d o S o a r es d e M elo - 313

O direito ao creditamento aplica-se em relação às contribuições efetiva­


mente pagas quando da importação de bens e serviços; caso não seja possível o
aproveitamento do crédito em determinado período, poderá o mesmo ser uti­
lizado nos meses subsequentes.
3. ICMS - IPI

ICMS (Constituição Federal - art. 155, § 2o, I, II, e XII, c)


“O imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em
cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de ser­
viços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo, ou outro
Estado, ou pelo Distrito Federal”.
“Aisenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legis­
lação: a) não implicará crédito para a compensação com o montante
devido nas operações ou prestações seguintes; b) acarretará a anulação
do crédito relativo ás operações anteriores”.
“Cabe à lei complementar disciplinar o regime de compensação do
imposto”.
IPI (Constituição Federal - art. 153, § 3o, II).
“O imposto será não cumulativo, compensando-se o que for devido em
cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.
A eficácia da não cumulatividade é realizada segundo um regime de
compensação dos valores tributários, mediante o encontro de contas (crédi­
tos e débitos), num determinado período de tempo.
O crédito origina-se das operações, e prestações anteriores relativas à
aquisição de bens e serviços pelo contribuinte, e que são utilizados (direta ou
indiretamente) na fabricação, comercialização e prestação de serviços, deven­
do compreender os insumos (matérias-primas, produtos intermediários, ma­
teriais auxiliares e de embalagem), bens do ativo (imobilizado), e energia elétrica.
O débito decorre da realização de negócios jurídicos, tendo por objeto
produto industrializado, mercadoria e prestação de serviço.
No âmbito do ICMS, a Lei Complementar n° 87, de 13.9.96, estabe­
lecera diversas restrições e condições:
a) é proibido o crédito decorrente de entradas de mercadorias ou
utilização de serviços resultantes de operações ou prestações
3 1 4 - P IS / C O F IN S — IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou


serviços alheios à atividade do estabelecimento;
b) é vedado o crédito relativo à mercadoria entrada no estabeleci­
mento, ou prestação de serviços a ele feita, (I) para integração ou
consumo em processo de industrialização ou produção rural,
quando a saída do produto resultante não for tributada ou esti­
ver isenta do imposto, exceto se tratar de saída para o exterior;
(II) para comercialização ou prestação de serviço, quando a saída
ou a prestação subsequente não forem tributadas, ou estiverem
isentas do imposto, exceto as destinadas ao exterior;
c) os créditos decorrentes da entrada de bens destinados ao ativo
permanente somente poderão ser apropriados à razão de 1/48
(um quarenta e oito avos) por mês. No caso de alienação dos
bens, antes de decorrido o prazo de quatro anos contado da data
de sua aquisição, não será admitido, a partir da data da alienação,
o creditamento em relação à fração que corresponderia ao restan­
te do quadriênio;
d) as mercadorias destinadas a uso e consumo do estabelecimento
somente poderão ser objeto de fruição de crédito, a partir de Io
de janeiro de 2011;
e) somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no
estabelecimento (i) quando for objeto de operação de saída de
energia elétrica; (ii) quando consumida no processo de indus­
trialização; (iii) quando seu consumo resultar em operação de
saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as
prestações ou prestações totais; e (iv) a partir de I o de janeiro
de 2011, nos demais casos.
f) o recebimento de serviços de comunicação utilizados no es­
tabelecimento, somente permitirá o crédito, quando (i) te­
nham sido prestados na execução de serviços da mesma
natureza; e (ii) quando sua utilização resultar em operação de
saída ou prestação para o exterior; na proporção desta sobre as
saídas ou prestações totais; e (iii) a partir de I o de janeiro de
2011, nas demais hipóteses.
Jo sé E d u a r d o S o a r es d e M elo - 3 1 5

No âmbito do IPI (Decreto federal n° 5.544, de 26.12.00) também são


estabelecidas restrições relativas às matérias-primas, produtos intermediários
e material de embalagem, que tenham sido (a) empregados na industrializa­
ção, ainda que para acondicionamento, de produtos não tributados; (b) em­
pregados na industrialização de produtos saídos do estabelecimento industrial
com suspensão do imposto; (c) vendidos a pessoas que não sejam industriais
ou revendedores, etc.
O STF consagrou o entendimento seguinte:
“IPI. Insumo. Alíquota zero. Ausência de direito ao creditamento.
Conforme o disposto no inc. II, do § 3o, do art. 153 da Constituição
Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade, compensando-
se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas
anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o
insumo entra na mesma indústria considerada a alíquota zero.
IPI. Insumo. Alíquota zero. Creditamento, Inexistência do direito.
Eficácia.
Descabe, em face do Texto Constitucional regedor do Imposto sobre
Produtos Industrializados e do sistemajurisdicional brasileiro, a modu­
lação de efeitos de pronunciamento do Supremo, com isso, sendo em­
prestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-
se o princípio da segurança jurídica”.
(RE 353.657-PR - Rel. Min. Marco Aurélio - j. 25.6.2007, DJe
6.3.2008, p. 49).
4 . D iferen ça s

A não cumulatividade das contribuições é facultativa, uma vez que a


CF apenas refere-se à possibilidade da lei discriminar os contribuintes (seto­
res da economia). Do valor apurado (totalidade dos faturamentos e das recei­
tas), a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a
determinados dispêndios (bens adquiridos para revenda, aluguéis de prédios,
máquinas e equipamentos, edificações e benfeitorias, energia elétrica, etc.)
realizados pela pessoa jurídica, mediante método subtrativo indireto. ‘
Os referidos gastos (créditos) nem sempre dizem respeito a bens materiais,
não sendo objeto de escrituração em livros fiscais; o mesmo ocorrendo com os
débitos, para efeito de abatimento.
3 1 6 - P IS / C O F IN S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e .

Entretanto, na medida em que a legislação ordinária estabeleça a siste­


mática não cumulativa, não poderia estabelecer restrições, porque, devendo
ser aplicadas alíquotas mais elevadas, acabarão distorcendo ou comprometen­
do a aparente vantagem (não cumulação das contribuições).
A não-cumulatividade dos impostos é obrigatória. Deve ser realizada a
escrituração dos valores tributários relativos à aquisição de bens, e serviços,
indicados nas respectivas notas fiscais decorrentes de negócios legítimos, bem
como a escrituração dos débitos de IPI e ICMS (operações mercantis, indus­
triais, prestação de serviços). Utiliza-se o método crédito de imposto.
Não há condição segura para serem aplicados, ao PIS e à COFINS, os
critérios jurídicos pertinentes à apuração do quantum devido de IPI e ICMS,
assentados em elementos determinados (operações com produtos e mercado­
rias). Na sistemática do PIS e da COFINS não há nenhum meio para se
considerar o faturamento/receita auferido pelo fornecedor dos insumos, em se
tratando de realidade estanque, sem nenhuma vinculação ou atinência ao fa­
turamento/receita do devedor tributário.
5 . S em elh a n ç a s

A Administração Tributária Federal (respostas a consultas de contribuin­


tes) tem fixado critérios para a consideração (ou desconsideração) da não cumu-
latividade das contribuições, relativamente aos gastos realizados pelo contribuinte,
levando em conta dispositivos regulamentares do IPI.
De modo exemplificativo destacam-se os entendimentos seguintes:
“Solução de Consulta n° 337, de Io de outubro de 2009
COFINS - NÃO-CUMULATIVA. DIREITO DE CRÉDITO.
INSUMO.
Consideram-se insumos, para fins de desconto de créditos na apuração
da Cofins não-cumulativa, os bens e serviços adquiridos de pessoas
jurídicas, aplicados ou consumidos diretamente na prestação de servi­
ços ou na fabricação de bens destinados à venda.
O termo insumo não pode ser interpretado como todo e qualquer bem
ou serviço que gera despesa necessária para a atividade da empresa,
mas, sim, tão somente, como aqueles adquiridos de pessoa jurídica,
que, efetivamente, sejam aplicados ou consumidos diretamente na
J o sé E d u a r d o S o a r es de M elo - 3 1 7

prestação de serviço da atividade-fim ou na fabricação de bens desti­


nados à venda;
(Delegacia da Receita Federal do Brasil emTaubaté - Divisão de Tri­
butação - DOU 1 de 9.11.09).
“Solução de Consulta n° 10 de 11 de fevereiro de 2009
Ementa: COFINS. Despesas Não Vinculadas Diretamente à Fabri­
cação de Produtos. Créditos. Impossibilidade.
Para efeito de cálculo dos créditos da Cofms não-cumulativa, somente
são considerados insumos utilizados na fabricação de produtos os bens
e os serviços aplicados ou consumidos diretamente no respectivo servi­
ço prestado.
Excluem-se, portanto, desse conceito, as despesas que se reflitam indi­
retamente na prestação do serviço, como, por exemplo, despesas com
equipamentos de segurança; tratamento de efluentes; materiais de la­
boratório; vales-transporte, planos de saúde, uniforme e treinamento
de pessoal; serviços de georreferenciamento e reposição florestal; ex­
portação; comissões pagas a pessoas jurídicas no mercado nacional;
seguros, publicidade, e propaganda.
A energia elétrica produzida pelo contribuinte, para utilização em seu
processo produtivo, não gera direito a crédito da Cofins por não ter sido
adquirida de pessoa jurídica em operação submetida à incidência da
contribuição”.
(3a Região Fiscal - DOU 1 de 25.3.09).
“Solução de Divergência n° 11/07 da COSIT
COFINS. Apuração não-cumulativa. Créditos de despesas com fretes.
Por não integrar o conceito de insumo utilizado na produção e nem ser
considerada operação de venda, os valores das despesas efetuadas com
fretes contratados, ainda que pagos ou creditados a pessoas jurídicas
domiciliadas no país para realização de transferências de mercadorias
(produtos acabados) dos estabelecimentos industriais para os estabele­
cimentos distribuidores da mesma PJ, não geram direito a créditos a
serem descontados da COFINS (e do PIS) devida.
Somente os valores das despesas realizadas com fretes contratados
para entrega de mercadorias diretamente aos clientes adquirentes, des-
3 1 8 - P I S / C O F I N S - IC M S / IP I. M a t e r ia lid a d e s e N ã o - C u m u l a t iv id a d e ...

de que o ônus tenha sido suportado pela PJ vendedora, é que geram


direito a créditos a serem descontados da COFINS (e do PIS) devida”.
“Solução de Divergência n° 35/08 - COSIT
Cofins não-cumulativa. Créditos. Insumos.
As despesas efetuadas com aquisição de partes e peças de reposição que
sofram desgaste ou dano ou a perda de propriedades físicas ou químicas
utilizadas em máquinas e equipamentos que efetivamente respondam
diretamente por todo o processo de fabricação dos bens ou produtos desti­
nados àvenda, pagas àpessoajurídica domiciliada no País, apartir de Iode
fevereiro de 2004, geram direito à apuração de crédito a seremdescontados
da Cofins, desde que às partes e peças de reposição não estejam obrigadas
a serem incluídas no ativo imobilizado, nos termos da legislação vigente”.
Observações:
Discordo das restrições contidas nas orientações fazendárias (Instruções
Normativas da Receita Federal (ns. 247/02, 359/03, e 404/04) que procura­
ram estipular o conceito de insumos, compreendendo as matérias-primas,
produtos intermediários, embalagens e bens que sofram alteração, como o
desgaste, dano ou perda de propriedades físicas ou químicas, desde que não
sejam incluídos no ativo imobilizado.
Acolho a lição de que, “insumos (bens e serviços utilizados na prestação de
serviços e na produção ou fabricação de bens), para fins de fruição do direito de
abatimento, deveriam ser considerados para efeito de PIS/PASEP e COFINS
todos os fatores de produção, abrangendo capital e trabalho” (GRECO, Marco
Aurélio. Não-cumulatividade do PIS/PASEP e da COFINS, Instituto de Estu­
dos Tributários/Thomson IOB, 2004, p. 109).
Realmente, não tem nenhum cabimento a utilização de critérios de perti­
nência exclusiva às atividades industriais, e mercantis, que tomam como pressu­
posto básico sua participação nos bens corpóreos (produtos, mercadorias). Questões
adstritas às perdas, desgastes, consumo (imediato, integral, etc.) somente têm con­
dição de ser ponderadas relativamente a bens que participam de ciclos operacio­
nais (plurifásicos), envolvendo sua modificação ou circulação para o consumo.
Não há nenhum sentido cogitar-se da aplicação de parâmetros do IPI e
ICMS, centrados em elementos físicos; para a sistemática não cumulativa do
PIS e da COFINS, adstrita a elementos financeiros (gastos), de natureza
estanque, sem efetiva continuidade em ciclo operacional.
Interpretação da Isenção
no Código Tributário
Nacional (CTN)

José Souto Maior Borges


Professor Emérito da PUC-São Paulo. Yní-Professor Titular de Direito
Tributário na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) e de Filosofia do
Direito na Graduação da Faculdade de Direito do Recife. Advogado.
J o s é S o u t o M a io r B o r g e s - 3 2 1

I. C o n s id e r a ç õ e s in t r o d u t ó r ia s

1.1. Condutas humanas passíveis de regulação jurídica são (a) contingen­


tes, i.e. comportamentos que podem concretamente realizar-se, ou não. Por
exemplo, norma tributária prescreve que, ocorrendo certos pressupostos, “hipó­
tese de incidência” (Geraldo Ataliba), “suporte fáctico” (Pontes de Miranda) ou
“fato gerador” (CTN, art. 114), deve o contribuinte pagar o tributo. Se efetiva­
mente ocorrer uma operação relativa à circulação de mercadorias, então deve o
contribuinte, sujeito passivo da relação, pagar o ICMS. É, assim, uma relação
consequencial normativa, situada no plano do dever-ser. Formalizando: “dado
A deve ser B” (relação de imputabilidade). Instaurada em conseqüência de ha­
ver incidido a norma sobre o seu pressuposto de fato. Incidir é o modo próprio
de produção da eficácia dg normas jurídicas.
1.2. Em conseqüência da circunscrição do direito às condutas contingen­
tes, é equivocado invocar o axioma de plenitude do ordenamento, como norma
de fechamento do sistema: “O que não está juridicamente autorizado ou proi­
bido, está juridicamente permitido”. E fazê-la recair com um âmbito de referi-
bilidade tal que ignorasse, no plano conceituai, as condutas (b) impossíveis (“é
proibido ultrapassar a velocidade da luz”) ou (c) necessárias (“é obrigatório
respirar”). Na primeira hipótese, a impossibilidade fáctica constitui óbice con­
ceituai intransponível à sua regulação jurídica. Na segunda, e suposto que o ato
de respiração corresponde a uma conduta, a norma recairia no vazio, dada a
necessidade biológica de o homem respirar. Consequentemente, nem tudo 0
que não está juridicamente autorizado ou proibido é permitido, porque a con­
duta remanescente será impossível ou necessária, insusceptível de regulação ju­
rídica. E, ademais de sua delimitação conceituai, os princípios lógicos vinculam-se
à língua em que se expressam as respectivas realidades.
1.3. Observados esses limites conceituais do normativo, ou seja, a cir­
cunscrição da conduta normada ao campo da contingência, as normas jurídi­
cas - e pois normas jurídico-tributárias - classificam-se, segundo o modo de
regulação da conduta normada, nas seguintes classes alternativas de regulação
comportamental: a) obrigacionais, b) proibitivas, c) autorizativas. São os de­
nominados modais deônticos, especificações ou particularizações do dever-
ser instituído em normas jurídico-positivas.
Respeitada a outorga de competência tributária na CF e limitações cons­
titucionais ao poder de tributar, a norma tributária pode regular a conduta
3 2 2 - In t e r p r et a ç ã o d a I s e n ç ã o n o C ó d ig o T r ib u t á r io N a c io n a l (C T N )

humana concreta do modo como lhe aprouver. Porém, ela de regra - não
exclusivamente -, disciplina obrigações tributárias e seus desdobramentos.
Os incentivos fiscais e as isenções tributárias, não se referem a condutas
proibidas, nem obrigatórias. Porque são elas normas-estímulo, contrapõem-se
às sanções penais tributárias, instituídas em normas repressivas da conduta in­
desejável. Normas-estímulo são normas autorizativas de condutas incentivadas.

II. C r it é r io l e g is l a t iv o d e in t e r p r e t a ç ã o l it e r a l : c o m o e

p o r q u e ele s u r g iu

2.1. A tríplice modalidade de regulação de condutas normadas é, porém


exaustiva. Não há, para além delas, outra modalidade de regulação da conduta
humana. Aplica-se aqui a regra do 4o excluído: o comportamento é esgotan-
temente autorizado, proibido ou obrigatório. Não há outra classe de condutas
normadas no campo do direito positivo.
2.2. Delicados problemas de exegese normativa surgem quando um pre­
ceito legal institui, com pretensão à vinculabilidade do Executivo e Judiciário,
normas de interpretação dos comandos que o legislador emite.
Não é porém lícito ao legislador instituir critérios restritivos de interpre­
tação dos textos legais. Normas restritivas da interpretação ampla são restri­
ções à conduta do intérprete. Instituem limitações conceituais ao ato de
interpretar, em si mesmo e pois com mutilação da função interpretativa. In­
terpretar literalmente é quase não interpretar.
2.3. No âmbito do direito tributário, o problema mais delicado emerge
do CTN, art. 111, em cujos termos:
“Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
(iomissis)
II. outorga de isenção”.
Esse preceito é geralmente analisado pela doutrina e jurisprudência
de modo muito superficial. Acata-se, pura e simplesmente, a sua formula­
ção literal, sem nenhuma vinculação - sistemática ou problemática - do
seu efeito. E, no entanto, o art. 111, II demanda, ele próprio, um esforço
de interpretação que busque conciliá-lo com as exigências do ordenamen­
to jurídico.
J o s é S o u t o M a io r B o r g e s - 3 2 3

2.4. Para reverter o predomínio da tendência persistente à superficia­


lidade exegética, o primeiro passo a ser dado é a recomposição das circuns­
tâncias que originaram o dispositivo em análise (hermenêutica histórica).
O art. 111, II do CTN, sob esse aspecto iluminador, é um resíduo da con­
cepção tradicional da isenção como favor ou privilégio fiscal. Essa concep­
ção era indisputada, não apenas predominante, na época da inserção do
art. 111, II no CTN. O direito tributário institui obrigações de caráter ge­
ral. Subtrair-se ao pagamento do tributo dá origem a norma excepcional,
em contraposição à obrigação generalizada do pagamento do tributo (CTN,
art.113, § I o, obrigação tributária dita principal).
Como as isenções historicamente estavam ligadas a privilégios de classe
(nobreza, guerreiros, clero etc.) era natural fossem interpretadas estrita e mes­
mo restritivamente. Trata-se de reação doutrinária contra privilégios de preté­
ritos regimes e que inspiraram a sua incorporação ao texto legal. Fonte material
do direito legislado é essa circunstância histórica peculiar. Não é pois sem
motivo que a isenção mostrava-se definida como favor ou privilégio legal. Essa
compreensão é revelada pela hermenêutica histórica.
2.5. Todavia, a hermenêutica histórica cessa aí. Abre-se doravante espaço à
interpretação histórico-evolutiva. A evolução histórica do ordenamento jurídi-
co-positivo, erradicou do seu corpus os favores ou privilégios fiscais, com a intro­
dução da isonomia nos textos constitucionais, (na CF de 1988, art. 5o, caput e
item I e, para o setor tributário, art. 150, II). Onde está qualquer preceito da
CF, está a isonomia a reger as situações subjacentes. Por isso nos foi possível
certa feita assim sintetizar o seu papel eminente: “a isonomia não está na CF, ela
é a CF”. Não há, nesse campo normativo, hora e vez para privilégios. Nenhuma
discriminação, nenhum favorecimento é tolerado pela CF. Assim sendo, a ve­
tusta regra do art. 111, II do CTN não deve hoje ser objeto de subserviência
interpretativa; mera repetição pedestre de sua literalidade.
2.6. Dito noutras palavras e mais claramente: a isenção não é um favor ou
privilégio fiscal, porque deve ser inspirada sempre por considerações sociais
relevantes, por exemplo, incapacidade contributiva, e razões extrafiscais de
desenvolvimento social e econômico regional, etc. A isenção decorre assim de
ponderação relevante dos princípios constitucionais aplicáveis, às vezes em antinomia
(por exemplo, desenvolvimento econômico versus preservação do ambiente).
Nenhum privilégio, porém, é tolerado pelo sistema constitucional tributário.
3 2 4 - In t e r p r et a ç ã o d a I s e n ç ã o n o C ó d i g o T r ib u t ã r io N a c io n a l (C T N )

III. C r ítica à in ter p r eta ç ã o litera l d e n o r m a s ex c ep c io n a is

3.1. Assentada a excepcionalidade da isenção diante da generalidade da


obrigação tributária, ainda assim não deve acatar-se a literalidade da interpre­
tação do preceito, preconizada no CTN, art. 111, II, porque essa literalidade
não passa de um preconceito. Nenhum critério restritivo de interpretação,
como a literal, deve aplicar-se a normas excepcionais. A lei não abandona a
regra geral por capricho, mas porque as exigências do caso particular excetua­
do devem prevalecer. Não há maior iniqüidade do que, sob aparência formal
de isonomia (CF. art. 150, II), tratar igualmente os desiguais. Isenção não é
ato de competência legal ou administrativa discricionária.
3.2. Deve-se pois aplicar a preceitos excepcionais todos os métodos de
interpretação (sistemático, estrutural, funcional, histórico, teleológico, etc.).
Assim sendo, descabe vedar a interpretação extensiva de normas isentantes,
porqüe sua extensibilidade não envolve a criação de direito pelo intérprete
(extensão meramente conceituai da literalidade na formulação legal). Até
mesmo a analogia não deve ser a priori banida do campo tributário. Porque
ela só está afastada do direito obrigacional tributário (CF, arts. 5o, II e 150,1,
combinados). Fora do campo obrigacional, deve aplicar-se a regra: “onde está
o mesmo motivo, deve estar o mesmo preceito”; regra que legitima até a ana­
logia em matéria tributária (CTN, art. 108, I).
3.3. Desta sorte, descabe aplicar-se analogia desconsiderando-se esses
limites normativos, no campo do direito tributário obrigacional e reflexamen-
te no âmbito da isenção tributária. É essa uma decorrência da legalidade tri­
butária: nullurn tributum sine lege. Se a analogia cria direito, ao contrário da
interpretação extensiva, o faz à margem da lei e pois a aplicação analógica do
preceito violaria o princípio da reserva legal. Não se daria, em tais circunstân­
cias, a coincidência entre incidência e aplicação da lei.
3.4. Não é entretanto possível cindir os processos gramatical e lógico de
interpretação das isenções tributárias, sob pretexto da sua excepcionalidade.
Mas, demonstrando indigência exegética, passa-se ao largo da consideração de
que o art. 111, II do CTN é, também ele interpretável. O que soa quase como
um truísmo. Mas de regra o intérprete e aplicador desse preceito contenta-se
em reiterar a literalidade da determinação do CTN: basta reproduzir-lhe a
enunciação, num exercício de superficialidade exegética congênita.
J o s é S o u t o M a io r B o r g e s - 3 2 5

3.5. A lógica, porém nos ensina: não devemos empregar o argumento a


contrario sensu em qualquer hipótese de enunciação restritiva. Na hipótese
do art. 111, II esse argumento em contrário pode ser assim enunciado: “se
não estão os outros métodos exegéticos incluídos no âmbito do preceito,
então devem ser eles excluídos nas isenções”. Trata-se de um equívoco. Para
aplicação do argumento a contrario, excludente de outras técnicas interpre-
tativas, seria necessário, por exemplo, diverso enunciado: interpreta-se só
literalmente a isenção.
O advérbio de modo (só, somente, tão só, exclusivamente, etc.) funcio­
naria como um quantificador, como advertem os lógicos. Porém, do enuncia­
do de uma autorização, como a do art. 111, II do CTN, não é cabível extrair-se
uma proibição no sentido contrário ou diverso.
3.6. As aparências enganam. Esse preceito parece envolver menores con­
seqüências na interpretação legal, É mais um erro dessa posição ora criticada.
A determinação de métodos interpretativos pelo legislador não passa de um
enorme “disparate” (sic, Luis Recaséns Siches). Não é uma determinação ino­
cente. Envolve reversamente um dever de coerência e consistência na argu­
mentação. Porque, se fazemos concessões ao art. 111, II do CTN, teremos de
aceitar e - o pior - acatar iniquidades históricas dramáticas para os destinos
da humanidade. Ter-se-ia que validar a barbárie de repulsivos textos, dos quais
há exemplos históricos. Recorde-se a Lei de Adaptação Impositiva Alemã
(Steueranpassungsgesetz), de 16.10.34:
“As leis tributárias devem interpretar-se segundo as concepções do
nacional socialismo”.
A diferença entre esse preceito do regime nazista e o art. 111, II do
CTN não é de essência, mas de graduação. Nada mais estranho, entretanto ao
regime jurídico-positivo em vigor no Brasil, do que esse mais que incômodo
parentesco entre atos legais relativos a interpretação. Apenas diversificados
entre si por um critério de graduação e que deixa intacta a sua essência auto­
ritária comum.

IV . C o n c lu s õ e s su m á ria s so b re o C T N , a r t . 1 1 1 , II

Ia) O dispositivo não prescreve que as isenções somente devem ser in­
terpretadas literalmente. É ponto de partida. Não ponto terminal de exegese.
E confunde o primeiro estágio com o terminal da interpretação.
326 - In te rp re ta ç ã o da Ise n ç ã o n o C ó d ic o T r ib u t á r io N a c io n a l (CTN)

2a) A interpretação literal é apenas o primeiro estágio da exegese, que


não estanca, nem pode estancar, nela.
3a) O legislador não pode ditar para o Executivo e o Judiciário critérios
de interpretação dos comandos que ele edita, porque veda-o a CF, art. 2o
(tripartição de poder).
4a) Interpretar literalmente o art. 111, II, seria interpretar um texto com
abstração do seu contexto, mutilando a função interpretativa.
5a) Manifestação de arqueologia jurídica, a isenção como favor ou privi­
légio fiscal deve ser sumariamente erradicada da linguagem jurídica.
A Proteção aos Direitos
do Contribuinte e a
Adequada Interpretação
Constitucional

Maria Alessandra Brasileiro de Oliveira


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará; Pós-graduada “lato
sensu”pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará; Professora de
Direito Tributário e Previdenciário (Graduação e Pós-graduação);
Coordenadora dos Cursos de Especialização em Direito e Processo Tributário e
de Direito Previdenciário da Universidade de Fortaleza (UNIFOR);
Advogada em Fortaleza.
M a r ia A l e s s a n d r a B r a s il e ir o d e O liv e ir a - 3 2 9

O tema supremacia constitucional será sempre, em qualquer ordenamen­


to jurídico caracterizado por uma rigidez normativa, um assunto relevante.
Embora possa parecer óbvia a ideia de que toda a atuação infraconstitucional
deve pautar-se em completa consonância com os ditames constitucionais,
principalmente quando a própria Constituição, em várias passagens, faz expressa
referência à intangibilidade de seus preceitos, nunca será, sem dúvida, despicienda
a sua reflexão; em especial, quando o assunto é matéria tributária, uma vez que
se tem presenciado, inclusive como um fenômeno universal, o desenvolvimento,
cada vez maior, de práticas arbitrárias em matéria de tributação.
Entretanto, tais práticas não se manifestam como um fenômeno novo. O
arbítrio, sobretudo em matéria tributária, sempre existiu, em maior ou menor
proporção. O que ocorreu, ao longo do tempo, foi a ampliação dos protago­
nistas, dos sujeitos ativos dessa atuação contrária ao Direito. Antes, o arbítrio
era perpetrado pelos governantes, monarcas, que detinham toda a potestade
impositiva de agredir o patrimônio dos contribuintes.
Mas, pouco a pouco, essa titularidade de praticar desmandos, excessos,
ampliou-se na medida em que o Parlamento (Poder Legislativo), em contra­
dição às próprias finalidades, como representante dos interesses do povo, pas­
sou, também, e aqui de uma maneira bem mais gravosa, porquanto titular, de
regra, da produção normativa, a laborar, frequentemente, de forma teratológi-
ca, desconsiderando toda uma construção histórica, política, doutrinária que
conduziu à concepção de supremacia constitucional.
No âmbito tributário, não é nenhuma novidade, presencia-se diversas
situações em que os sujeitos passivos de relações tributárias têm-se deparado
com atuações absurdas por parte do Poder Executivo, sobretudo Federal, usur­
pando competência legislativa, por meio do uso indiscriminado de medidas
provisórias, recebendo, infelizmente, a chancela do legislador ordinário, em
total inobservância à ordem constitucional, por meio de interpretações casuís-
ticas e desconectadas da realidade social.
Daí a grande importância de se promover discussões acerca do tema. A
reflexão sobre a supremacia constitucional em matéria tributária não tem
importância apenas para países como o Brasil, cuja Constituição possui inú­
meros dispositivos concernentes à tributação, haja vista não se ter como negar
sua inexorável manifestação como garantia do contribuinte na luta contra o
arbítrio, através de uma adequada interpretação constitucional.
3 3 0 - A P r o t e ç ã o a o s D ir eit o s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

A real compreensão desse imperativo tem reflexo profundo na estrutura


normativa infraconstitucional, sobretudo no pertinente às espécies de normas
e suas inter-relações de respeito às limitações impostas, expressa ou tacita-
mente, em face do devido processo legislativo, que, sem dúvida, se manifesta
como um direito fundamental somente observável diante da percepção cons­
ciente dessa opção político-normativa.
1 . O S istem a C o n s t it u c io n a l T r ib u t á r io

A opção do legislador constituinte originário em pormenorizar, no corpo


constitucional, normas versando sobre matéria tributária, não produz, como
conseqüência pura e simples desta conduta, o enfraquecimento da suprema­
cia constitucional1. Não se caracteriza como um aspecto destrutivo dos fun­
damentos jurídicos da ordem constitucional.
Paulo Bonavides enumera as causas que levaram as Constituições a tal
pormenorização de matérias, da seguinte forma:
A preocupação de dotar certos institutos de proteção eficaz, o senti­
mento de que a rigidez constitucional é anteparo ao exercício discricio­
nário da autoridade, o anseio de conferir estabilidade ao direito legisla­
do sobre determinadas matérias e, enfim, a conveniência de atribuir ao
Estado, através do mais alto instrumento jurídico que é a Constituição,
os encargos indispensáveis à manutenção da paz social.2
Paulo de Barros Carvalho3nos chama atenção para a existência de
vários subconjuntos ou subclasses que compõem um sistema de amplitu­
de global chamado constitucional, sendo as suas matérias “o ponto de con­
fluência do direito positivo”, ressaltando a pouca mobilidade conferida
pelo sistema constitucional tributário ao legislador ordinário, “em termos
de exercitar seu gênio criativo”, como fator negativo à harmonia do orde­
namento jurídico, pelo excesso de rigidez que impede o legislador de
modelar o conjunto normativo.

1 Segundo H U G O DE BRITO M ACHAD O , o trato minudente da Constituição "talvez tenha


tolhido a mente do intérprete e aplicador da Constituição", acabando porenfraquecer a
supremacia constitucional (A supremacia constitucional como garantia do contribuinte. In:
Revista Dialética n° 68. São Paulo: Dialética, 2001, p . 49).
2 Curso de direito constitucional. 11a ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 74.
3 Curso de direito tributário. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 140-141.
M a r ia A le s s a n d r a B r a s ile ir o d e O l iv e ir a - 3 3 1

Com efeito, seria um contrassenso afirmar as constantes arbitrariedades


ultimadas pelo Legislativo e, ao mesmo tempo, conceber como mais acertada
a conferência a essa atividade legislativa infraconstitucional, da competência
complementar para minudenciar e preencher o conteúdo normativo tributá­
rio de uma forma mais fluida.
Sem dúvida, uma Constituição concisa4, como o professor Paulo Bonavides
ensina, gera maior estabilidade5e, ao mesmo tempo, maior flexibilidade das
normas constitucionais, uma vez que permite adaptá-las a situações novas em
decorrência da constante evolução social.
Mas será que essa postura, principalmente em um ordenamento jurídico
como o brasileiro, não induziria maior facilidade de manipulação da ordem
jurídico-tributária, principalmente diante do que se tem constatado por parte
do Legislativo?
Por outro lado, será que essa menor mobilidade atribuída ao legislador
infraconstitucional pelo constituinte originário, ao minudenciar normas tri­
butárias no Texto constitucional, caracterizando essa maior rigidez, efetiva­
mente assegura o contribuinte contra os abusos do poder de tributar?
O problema está além da adoção de uma ou de outra postura constitu­
cional. Entende-se tratar-se, na verdade, de uma questão de compreensão e
correta aplicação, pelos protagonistas do Direito, em especial pelos poderes
públicos, de paradigmas interpretativos consentâneos com o modelo jurídi­
co-político adotado no que diz respeito aos preceitos constitucionais, qual
seja, o Estado Democrático de Direito.
Em excelente estudo intitulado a “Interpretação Jurídica no Estado De­
mocrático de Direito”, Marcelo Neves6chama atenção para o fato de que “os
modelos de interpretação jurídica sempre variam conforme o tipo de socieda­

4 A Constituição norte-americana é considerada a mais antiga Carta Constitucional em vigor


(1789), tendo quem atribua tal fato à extrema generalidade e vaguidade de suas disposições,
justamente por serem as constituições mais concisas mais facilmente adaptáveis às situações
novas, sem necessidade de novas formulações normativas.
5 MARCOS BERNARDES DE M ELLO, em artigo integrante do livro Direito tributário moderno,
coordenado por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, publicado pela José Bushatsky, 1977, p. 56,
intitulado, a lei complementar sob a perspectiva da validade, assevera que "não devem, as
constituições, ser casuísticas e descer à normatização exaustiva das espécies de que trata. Suas
regras, de ordinário, contêm a enumeração dos princípios basilares da estrutura estatal e das
garantias outorgadas aos cidadãos, sem contudo ir a minudências normativas".
6 AMARAL, Roberto... et al. In: GRAU, Eros Roberto & GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.). Direito
constitucional - estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 356.
3 3 2 - A P r o t e ç ã o a o s D ir eit o s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o ...

de e a respectiva forma jurídico-política dominante”, demandando, por con­


seguinte, no ordenamento pátrio, uma interpretação jurídico-constitucional,
sempre dentro dos quadros do Estado Democrático de Direito.
Mesmo diante da inexistência de normas específicas e detalhadas sobre a
matéria tributária no texto constitucional, poder-se-ia perfeitamente buscar
os fundamentos da atuação tributária nos princípios constitucionais funda­
mentais e gerais, que se refletem, como em qualquer outra matéria, sobre o
âmbito tributário.
Na prática, mesmo diante desse leque de normas constitucionais concer­
nentes a tributos, o que se tem verificado é o amesquinhamento dos direitos
fundamentais do contribuinte, por se tratar de uma questão, repita-se, de
correta interpretação das normas constitucionais, por intermédio da adoção
de métodos ou elementos interpretativos adequados e condizentes com o Es­
tado Democrático de Direito.
Talvez esse trato minudente, de certo modo, contribua para a incorreta
interpretação constitucional, estreite a consciência do intérprete-aplicador da
Constituição, fazendo-o encarar os regramentos tributários constitucionais
como um sistema autônomo, como um sistema independente em relação às
demais normas constitucionais, desprezando, na sua atividade interpretativa,
os inafastáveis elementos sistemático e teleológico.
A interpretação7, como atividade criadora de direito8, é o processo se­
gundo o qual o intérprete procura identificar ou determinar o conteúdo
exato de palavras, dando significado9ao texto normativo10diante dos

7 Segundo evidencia EROS ROBERTO GRAU, interpretar e aplicar o direito é a mesma operação.
"Interpretar é, assim, dar concreção (= concretizar) ao direito. Neste sentido, a interpretação (=
interpretação/aplicação) opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter
geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na
vida" (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 28).
8 Corrobora-se, mais uma vez, o autor, quando ele afirma que o intérprete não cria, literalmente,
o direito, no sentido de fabricá-lo, mas sim no sentido de reproduzi-lo, uma vez que "ela já se
encontra, potencialmente, no invólucro do texto normativo". (GRAU, Eros Roberto. Obra cit.
p. 22).
9 A ideia de interpretar conduz à ideia de compreensão, como tradicionalmente tem-se conceituado
esta palavra, o que leva ao entendimento de que somente seria necessário interpretar os textos
normativos quando estes não fossem suficientemente claros. Todavia, tal afirmação é impossível
em vista da corriqueira vaguidade e ambigüidade das expressões jurídicas, motivo pelo qual vem
tal concepção passando, ainda com muita resistência, por um processo de transformação (GRAU,
Eros Roberto. Obra cit. p. 15).
10 Ainda segundo EROS ROBERTO GRAU, "o que em verdade se interpreta são os textos normativos;
da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é
interpretação do texto normativo". (Obra cit. p. 17).
M a r ia A les s a n d r a B r a s ile ir o d e O l iv e ir a - 3 3 3

fatos11com os quais ele se relaciona. Na verdade, é uma escolha entre várias


opções possíveis, contidas naquilo que Kelsen chamou de “moldura norma­
tiva”12, fazendo-se sempre necessária por mais bem formuladas que sejam as
prescrições legais.
O intérprete, pois, ao realizar sua função, deve ter como ponto de partida a
ordem constitucional, buscando sempre a sua preservação. As modernas formas
de interpretação constitucional têm permitido ao intérprete fazer alargamentos
ou restrições no sentido da norma, de modo a deixá-la compatível com a Consti­
tuição Federal, buscando uma interpretação que a coadune com a Lei Maior13, até
mesmo naquelas normas que, à primeira vista, só parecem comportar interpreta­
ções inconstitucionais, por meio da ingerência da Corte Suprema.
O intérprete deve, no seu mister, obrigatoriamente e em qualquer cir­
cunstância, trilhar o seu caminho a partir do texto normativo sob análise em
direção à Constituição, pois, nas palavras de Eros Roberto Grau, “um texto de
direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa sig­
nificado normativo algum”14.
O princípio da interpretação conforme à Constituição permite uma re­
núncia ao formalismo jurídico e às interpretações convencionais em nome da
ideia de justiça material e de segurança jurídica, elementos indispensáveis em
um Estado Democrático de Direito, porquanto da própria essência do Direito.
Desse modo, sempre que possível, a norma deve ser interpretada de ma­
neira a torná-la eficaz, só devendo declarar-se a sua inconstitucionalidade e
conseqüente banimento do ordenamento jurídico quando a inconstituciona­
lidade do dispositivo em questão for flagrante e incontestável.

11 O mencionado doutrinador ensina, ainda, que "o intérprete procede à interpretação dos textos
normativos e, concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimen­
tos que compõem o caso se apresentam vai também pesar de maneira determinante na produ­
ção da(s) norma(s) aplicável (veis) ao caso". (Obra cit. p. 16).
12 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 390.
13 A respeito da importância dos princípios constitucionais na atividade interpretadora, escreve
LUIS ROBERTO BARROSO: "(...) Ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso
e seguir-lhes as prescrições. A generalidade, abstração e capacidade de expansão dos princípios
permite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a
solução mais justa, superadora do summum jus, summa injuria, Mas são esses mesmos princípios
que funcionam como limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista
dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do
aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento". (interpretação e
aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São
Paulo: Saraiva, 1996, p. 150).
14 Obra cit. p. 34.
3 3 4 - A P r o t e ç ã o a o s D ireito s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

Todavia, o intérprete, sobremaneira o legislador, seja de forma culposa


ou dolosa, na maioria das vezes, interpreta as normas constitucionais, mais
especificamente as concernentes à tributação, sem levar em consideração os
demais princípios constitucionais que a elas se relacionam, que têm de nortear
toda e qualquer atuação jurídica, desconsiderando garantias fundamentais do
contribuinte como a irretroatividade das leis, a exigência de motivação dos
atos administrativos, em particular, no que diz respeito à flexibilização tribu­
tária (tributos flexíveis), à igualdade que deve ser buscada em qualquer rela­
ção jurídico-tributária, consubstanciada no estabelecimento de fatos geradores
sempre como “signos presuntivos de capacidade contributiva”, para utilizar a
expressão de Alfredo Augusto Becker15, que deve prevalecer, bem como o res­
peito à autonomia normativa da lei complementar e sua superioridade em
relação à lei ordinária diante de uma situação conflituosa e, em especial, nos
casos de reserva legal.
As inconstitucionalidades têm sido realizadas, inclusive, em sede constitu­
cional, por meio da violação de cláusulas pétreas, como por exemplo, conforme
será posteriormente explicitado, no caso das contribuições sociais, estatuídas no
art. 195, da Constituição Federal, que foram indevidamente alteradas, através
da Emenda constitucional n° 20/98, modificando regra constitucional, cuja
regulação se manifesta como direito subjetivo do contribuinte; situando-se, as­
sim, no campo material de limitação do poder constituinte reformador16.
A atuação legislativa, nesse sentido, feriu o art. 60, § 4o, da Lei Maior,
criando novas fontes de custeio para a Seguridade Social sem a observância
aos aspectos de ordem material e formal estabelecidos no próprio texto cons­
titucional, como é o caso da reserva legal, que exige sua veiculação sempre por
intermédio de lei complementar.
Com efeito, a lei, considerada isoladamente, ainda nas palavras de Alfredo
Augusto Becker, não tem existência como regra jurídica, ou seja:
Isolada em si mesma, a lei existe apenas como fórmula literal legislativa
sem conteúdo jurídico ou como simples fenômeno histórico. Alei não é
um pássaro que o legislador solta abrindo as portas do Congresso. A lei
tributária não é um falcão real que do punho do Executivo alça vôo para

15 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário, 3a ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 503.
16 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 16a ed. rev., atual e
ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 511.
M a r ia A le s s a n d r a B r a s ile ir o de O liv e ir a - 3 3 5

ir à caça do “fato gerador”. A regrajurídica contida na lei (fórmula literal


legislativa) é a resultante lógica de um complexo de ações e reações que
se processam no sistemajurídico onde foi promulgada. A lei age sobre
as demais leis do sistema, estas, por sua vez reagem; a resultante lógica
é a verdadeira regrajurídica da lei que provocou o impacto inicial.17
A ideia da vedação da análise isolada dos elementos que compõem o
fenômeno jurídico está ligada à interdisciplinaridade do Direito. A interdis-
ciplinaridade, no estudo jurídico, está diretamente relacionada com o caráter
sistêmico18desse fenômeno. Por uma conveniência didática, o estudo do Di­
reito é fragmentado, deixando transparecer a falsa noção da existência de uma
completa autonomia entre esses chamados ramos do Direito.
Não se pode negar que essa ideia de autonomia entre os ramos do Direi­
to tem o grande mérito de, com essa especialização, mais facilmente viabilizar
a tutela dos direitos ou interesses albergados por aquele ramo, em vista do
surgimento de legislações específicas, de estudos doutrinários voltados para o
seu entendimento, enfim, em vista de ser-lhe reconhecido um papel específi­
co, precípuo no ordenamento jurídico, ressaltando a sua importância.
Por outro lado, entretanto, não se pode perder de vista a unidade do
Direito, no sentido de que a real compreensão de qualquer fenômeno, seja
qual for o âmbito científico, demanda um conhecimento de outros fenôme­
nos, de outras áreas de conhecimento. Da mesma forma ocorre com o Direito.
A sua real compreensão não só necessita do conhecimento de áreas afins, como
a Sociologia, a Economia, a Filosofia, a Ciência Política, como, principalmen­
te, não pode prescindir dos ramos jurídicos e das conseqüências que advirão
desse entrelaçamento.
Se o fenômeno jurídico requerer, inexoravelmente, uma interface com
outras áreas de conhecimento, impossível será, mais ainda, conceber poder ser
visto e estudado de forma rigidamente compartimentada.

17 Obra cit. p. 115.


18 LUHM ANN entende o Direito como um sistema autopoiético, ou seja, para ele "o sistema
jurídico consegue seu fechamento operativo, pois está codificado através da diferença entre
direito (Recht) e não-direito (unrecht) e não há nenhum outro sistema operando com este
código. Através dessa codificação bipolar do sistema jurídico, nasce a certeza de que, quando
se está no direito, está-se no direito e não no não direito". Todavia, como nos ensina HABERMAS,
a teoria luhmanniana não nega que no "código jurídico" se introduzam conteúdos do "código
moral" e do "código do poder", significando que, neste ponto, o sistema jurídico não é
fechado (A pud HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Tradu­
ção de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 229).
3 3 6 - A P r o t e ç ã o a o s D ireito s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

Qualquer entendimento contrário importa a negação do Direito como


sistema de normas19. Não aquela noção ultrapassada de sistema no sentido de
que as normas jurídicas devem guardar relação apenas formalmente20, sem
qualquer compatibilidade de conteúdo. Não é possível estabelecer uma com­
pleta separação entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser como condição
de compreensão do fenômeno jurídico.
O ordenamento jurídico necessita de um grau mínimo de coerência
lógica que possibilite uma percepção conceituai harmônica no que tange a
princípios, normas e valores, no intuito de fazê-los ora complementares, ora
relativos, ora mútua e parcialmente excludentes. Mas em todos os casos,
sempre dando-lhes uma conotação harmônica e consonante com os impera­
tivos de coerência e de unidade, que requerem soluções para as contradições
inerentes ao sistema jurídico21.
A linguagem22é o instrumento de transmissão de conhecimento das re­
gras jurídicas. Todavia, embora indispensável, tratando-se da linguagem jurí­
dica, é ela insuficiente para expressar a sua ideia com plenitude e inteireza.

19 Para NORBERTO BO BBIO, sistema é "uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os
quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes
que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num
relacionamento de coerência entre si" (Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria
Celeste C. J. Santos. 8a ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 71).
20 Para a teoria kelseniana, o ordenamento jurídico é um sistema dinâmico, ou seja, aquele em
relação ao qual as normas que o compõem derivam umas das outras simplesmente por meio de
"sucessivas delegações de poder", sem levar em consideração seu conteúdo. O que determina­
ria pertencer uma norma ao sistema jurídico não é o seu aspecto material, mas seu aspecto
formal. Contrapondo-se a essa teoria, NORBERTO BO BBIO sustenta que "se é assim, parece
difícil falar apropriadamente do ordenamento jurídico como de um sistema, isto é, chamar
'sistema' ao sistema de tipo dinâmico com a mesma propriedade com que se fala em geral de
sistema como totalidade ordenada, em particular de um sistema estático. Que ordem pode
haver entre normas de um ordenamento jurídico, se o critério de enquadramento é puramente
formal, isto é, referente não à conduta que elas regulam, mas unicamente à maneira com que
foram postas? (...) Ora, atendo-se à definição de sistema dinâmico como o sistema no qual o
critério do enquadramento das normas é puramente formal, deve-se concluir que num sistema
dinâmico duas normas em oposição são perfeitamente legítimas. E de fato, para julgar a
oposição de duas normas é necessário examinar o seu conteúdo; não basta referir-se à autori­
dade da qual emanaram. Mas um ordenamento que admita no seu seio entes em oposição
entre si pode ainda chamar-se 'sistema'?" (Obra cit. p. 73/74).
21 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2a ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 25.
22 Com leciona GERMANA DE OLIVEIRA MORAES, "no Direito, parece ser mais evidente do que
na compreensão dos fenômenos quotidianos, que seus limites são traçados pela linguagem,
ou, em outros termos, pela leitura dada pelo intérprete e aplicador da norma jurídica, no
momento da sua concretização, acerca dos fatos e processos sociais e dos valores aceitos em
determinado tempo e em determinado lugar" (Controle jurisdicional da administração pública.
São Paulo: Dialética, 1999, p. 55).
M a r ia A les s a n d r a B r a s ile ir o d e O liv e ir a - 3 3 7

Por isso, qualquer forma de linguagem demanda, necessariamente, do in­


térprete, um esforço de integração de sentido, conotando a “função e natureza
elíptica da linguagem jurídica”, ideia brilhantemente concebida por Backer23.
Ademais, a linguagem jurídica é, por natureza, ambígua e vaga24, o que
sempre dará ensejo a interpretações divergentes, principalmente em razão da
complexidade da sociedade moderna, caracterizada por uma multiplicidade
de valores e interesses, que se ressaltam com maior intensidade em relação à
Constituição, condicionada, pragmaticamente, pelos valores e interesses pre­
sentes na esfera pública pluralista25.
Entretanto, não se pode conceber essa vaguidade e ambigüidade, inerentes
à linguagem jurídica, como algo suscetível ao arbítrio, inclusive, porque há de­
terminados sentidos construídos socialmente e que ultrapassam a disposição
subjetiva do intérprete, caracterizados como limites naturais ao poder impositi-
vo estatal, mesmo que não estejam estabelecidos de forma literal no Corpo cons­
titucional, o que não pode ser desprezado no processo interpretativo.
Não se trata, portanto, de extrair, arbitrariamente, de uma infinidade de
sentidos do texto normativo, aquela decisão que pareça, subjetivamente, a
mais acertada, já que não se pode conceber racionalmente a existência de úni­
ca solução possível para o caso concreto.
A diversidade interpretativa à luz dos princípios e regras constitucionais é
inevitável, o problema está, justamente, em demarcar os limites entre as inter­
pretações justificáveis, legítimas, e as que são incompatíveis com a ambiência
constitucional em um Estado Democrático de Direito - portanto, ilegítimas.
Esses limites, é claro, não são estanques. Eles podem ser, e efetivamente
são, alterados por meio da mudança de paradigmas, ocasionada pelas evolu­
ções e metamorfoses das relações sociais. O que não se pode aceitar é interpre­
tações absurdas, irracionais, desconectadas da realidade.
Com efeito, Eros Roberto Grau chama atenção para o fato de que não
existem regras ordenando, de forma hierárquica, o modo de utilização dos ele­
mentos hermenêuticos, sendo, por conseguinte, utilizados convenientemente

23 Teoria geral do direito tributário. 3a ed. São Raulo: Lejus, 1998, p. 119.
24 "As características de imprecisão e de contextualidade do significado das palavras, presentes
na linguagem comum, projetam-se na linguagem jurídica e geram dificuldades no processo de
interpretação e de aplicação dessas normas" (MORAES, Germana de Oliveira. Obra cit. p. 56).
25 NEVES, Marcelo. Obra cit. p. 364-365.
3 3 8 - A P r o t e ç ã o a o s D ireito s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r e t a ç ã o .

pelos intérpretes para justificar e, assim, legitimar o resultado pretendido, razão


pela qual, a fim de evitar interpretações-aplicações arbitrárias, deve-se partir do
seguinte entendimento:
Não obstante, a prudência recomenda seja a interpretação adequada
a algumas pautas..., (i) a primeira relacionada à interpretação do direi­
to como seu todo; a (ii) segunda, à finalidade do direito; (iii) a terceira,
aos princípios.26
2 . O E s t a d o D e m o c r á t ic o d e D ir e it o - d a L e g a l id a d e
À C o n s t it u c io n a l id a d e

O Direito, irrefutavelmente, manifesta-se como instrumento de con­


tenção das irracionalidades humanas, perpetradas no exercício de suas liber­
dades individuais.
O homem, quando no uso de sua liberdade, naturalmente tende a trans­
por obstáculos à sua realização, necessitando, assim, de poder para opô-los
frente aos outros, o que, se não houvesse um mínimo de intervenção externa,
ocasionaria, fatalmente, desigualdades sociais, indo de encontro à própria ideia
de liberdade.
O conceito de liberdade foi alvo, historicamente, de várias modificações. Na
Antiguidade, a liberdade adquiriu uma feição política. Media-se a liberdade pelo
grau de participação no exercício do poder político. Era uma integração total do
homem à Pólis. Era essa dimensão que, existindo para o homem, fazia-o Evre. A
igualdade e participação, assim, refletiam a liberdade dos antigos.
Desta maneira, a Antiguidade não conhecia, propriamente, a ideia de
direitos fundamentais, a qual só veio a surgir modernamente. Para esta, a
liberdade tem caráter não político, mas individual, de cidadania, fundamen-
tando-se na ideia de independência do indivíduo frente ao poder estatal.
O liberalismo retratou a noção de liberdade com maior nitidez. Para ele,
a liberdade significa que cada homem pode pensar, exprimir-se, agir como
entender, sendo, em princípio, a liberdade dos outros o único limite à liberda­
de de cada um. O Estado assume uma posição absenteísta frente às relações
dos indivíduos.

26 Obra cit. p. 33
M a r ia A l e s s a n d r a B r a s ile ir o d e O l iv e ir a - 3 3 9

Com efeito, não se pode estabelecer a noção de liberdade contrapon­


do-a à ideia de autoridade. Esta pressupõe aquela, é condição indispensável
à ordem social. A liberdade incondicional contraria a própria noção de Es­
tado, que deve proporcionar meios de limitação da mesma para coexistência
pacífica dos indivíduos. Todavia, esta limitação deve ocorrer dentro da legi­
timidade e normalidade decorrentes desse poder, de modo a estabelecer um
equilíbrio capaz de incutir no ser humano a existência de um ambiente
necessário e propício à expressão de sua personalidade. O que não se pode
conceber é a restrição da liberdade (intervenção estatal) de maneira desarra-
zoada, desproporcional, abusiva.
Canotilho27ensina, com muita lucidez, que os direitos fundamentais
cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos. Sob a perspectiva jurí-
dico-objetiva, são normas de competência negativa para os poderes públicos,
proibindo, fundamentalmente, as ingerências destes na esfera jurídica indivi­
dual. Sob o plano jurídico-subjetivo, implicam o poder de exercer, positiva­
mente, direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos
poderes públicos, a fim de que seus direitos sejam exercidos sem impedimen­
tos ou discriminações, de forma a evitar agressões lesivas por parte desses po­
deres (liberdade negativa).
Na verdade, em uma visão atual, os direitos fundamentais têm de ser
vistos sob o aspecto da sua multidimensionalidade. Os direitos fundamen­
tais, mesmos os direitos de primeira dimensão, não são, suficientemente, na
sociedade contemporânea, resguardados apenas com a abstenção do Estado,
pois eles costumam demandar também uma interferência do Estado (auto­
ridade), seja para coibir a ofensa a esses direitos praticados por terceiros
(função de proteção perante terceiros), por outros cidadãos, individual ou
coletivamente, seja para fornecer meios necessários aos indivíduos de exercí­
cio dos seus direitos; assumindo, assim, a feição de limitadores das liberda­
des individuais.
Assim, os direitos fundamentais se expressam como limitadores de po­
der, seja aquele decorrente da autoridade, do Estado, seja decorrente do uso
indiscriminado pelos indivíduos de suas liberdades individuais.

27 Direito constitucional. 3a ed. Coimbra: Aimedina, 1998, p. 1177-1183.


3 4 0 - A P r o t e ç ã o a o s D ir eit o s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o ..

O Estado Democrático de Direito28é um Estado que se alicerça primor­


dialmente na Constituição, viabilizando a transmutação do que é, essencial­
mente, político em normativo.
A Democracia assegura o reconhecimento de uma dignidade29equivalente
em todos os indivíduos, consolidada no convívio social, justiça e na segurança
resguardada ao indivíduo, indispensável ao respeito à dignidade humana.
O Estado de Direito30atende, essencialmente, às exigências de legalida­
de. A Democracia é um princípio de legitimidade. A legalidade tem um cará­
ter formal, cujo conteúdo é revestido pela legitimidade. Os princípios
democráticos dão legitimidade ao Estado de Direito.
Com o surgimento do chamado Estado de Direito, os direitos individuais
eram consagrados de forma absoluta. Falava-se em liberdade, igualdade,
propriedade, privacidade, mas não se dimensionava os limites, para efeitos de
concretização. O juiz não era habilitado para aplicar diretamente a Constituição
e sim para aplicar a lei: não podendo realizar o sopesamento entre os princípios
constitucionais para a solução dos casos concretos, tinha de aguardar o
pronunciamento do legislador.
Entendia-se que uma liberdade maior dada ao juiz, na aplicação do Di­
reito, implicava um prejuízo para a separação dos poderes, pois haveria um
âmbito muito amplo de atuação, uma liberdade interpretativa enorme que se
tornaria criadora, adentrando, assim, a esfera legislativa.

28 Prefere-se, neste trabalho, a utilização da terminologia Estado Democrático de Direito de modo a


não destoar daquela usada pela Constituição Federal de 1988 (art. 1o), mas sem se omitir à
existência de questionamentos em torno da expressão. Alguns acham terminologicamente mais
preciso falar-se em Estado de Direito Democrático, como, por exemplo, CANOTILHO (Estado de
Direito. Cadernos Democráticos n° 7, Coimbra: Fundação Mário Soares, 1999, p. 18).
29 Corroborando o pensamento de INGO SARLET, ensina-nos, ainda, PAULO BONAVIDES que "a
dignidade da pessoa humana desde muito deixou de ser exclusiva manifestação conceituai
daquele direito natural nnetapositivo, cuja essência se buscava ora na razão divina ora na razão
humana, consoante professava em suas lições de teologia e filosofia os pensadores do período
clássico e medievo, para se converter, de último, numa proposição autônoma, do mais subido
teor axiológico, irremissivelmente presa à concretização constitucional, dos direitos fundamen­
tais... É o que se preconiza numa sociedade açoitada de inumeráveis lesões aos direitos funda­
mentais e de freqüente desrespeito às garantias mais elementares do cidadão livre, aquele que se
prepara para compor os quadros da democracia participativa do futuro" (Obra cit., p. 231-232).
30 Para J.J. COM ES CAN O TILHO , "Estado de Direito é um Estado ou uma forma de organização
político-estadual, cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. Estado de não Direito
será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites
jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo
direito" (Estado de Direito. Cadernos Democráticos n° 7. Coimbra: Fundação Mário Soares,
1999, p. 12).
M a r ia A le s s a n d r a B r a s il e ir o d e O liv e ir a - 3 4 1

Com o surgimento do Estado Democrático de Direito31, a Constituição


passou a ser um meio de argumentação contra a lei. Tornou-se aquele modelo
que tem a estrutura e o ambiente propício para a efetivação dos direitos fun­
damentais. Resgatou-se a verdadeira concepção do Estado de Direito, cuja
mera sujeição à lei não é suficiente para caracterizá-lo.
O grande traço característico dessa nova ordem político-jurídica é ser
um ponto de encontro de tais vertentes, na busca da harmonização dessas
duas forças antitéticas, uma vez que, vistas isoladamente, negam-se mutua­
mente. O Estado de Direito sem a Democracia, como restou comprovado,
termina gerando um disfarce para a imposição da vontade dos que detêm o
poder na sociedade.
Desse modo, os direitos fundamentais também protegem os contribuin­
tes contra os desmandos dos poderes públicos. O exercício da competência
tributária, no Estado Democrático de Direito, exige a observância aos limites
constitucionais, manifestados por meio do fornecimento de mecanismos ga-
rantidores do respeito aos direitos subjetivos públicos32dos indivíduos.
Os indivíduos estão, compulsoriamente, obrigados a verter aportes aos
cofres públicos por meio do pagamento de tributos, de modo a propiciar ao
Estado recursos para o suprimento das despesas públicas - função fiscal,
bem como para a realização de justiça social —função extrafiscal33, mas

31 Para PAULO BONAVIDES, "a unidade da Constituição na melhor doutrina do constitucionalismo


contemporâneo, só se traduz, compreensível mente, quando tomada em sua imprescritível
bidimensionalidade, que abrange o formal e o axiológico, a saber, forma e matéria, razão e valor.
Ambos os termos conjugados assinalam, com a revolução hermenêutica, o momento definitivo
da supremacia principiológica dos conteúdos constitucionais sobre os conteúdos legislativos
ordinários da veiha dogmática e, ao mesmo tempo, exprimem a ascensão da legitimidade
material que põe em grau de menor importância por carência de préstimo superior nas soluções
interpretativas da Constituição, o formalismo positivista e legalista do passado, peculiar à
dogmática jurídica do século XIX. Formalismo que interpretava regras e não princípios. Por isso
mesmo, mais atento ao texto das leis que a Direito propriamente dito" (Teoria constitucional da
democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 233).
32 RUI BARBOSA explica que "as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem
existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em
defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorren­
do, não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia,
com a declaração do direito (A pud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
positivo. 19a ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 416).
33 Quanto à busca de realização de justiça através da imposição de tributos, já se teve oportuni­
dade de escrever que "todo tributo pode e deve ter função extrafiscal, direita ou indiretamente,
mas não de forma exclusiva. (...) Existem tributos cuja função predominante é a meramente
arrecadatória, fiscal, visando à obtenção de recursos para suprir as despesas públicas (obtenção
de receitas), embora, indiretamente, sempre busquem a realização de justiça social, enquanto
3 4 2 - A P r o t e ç ã o a o s D ireito s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

possuem uma série de direitos e garantias, constitucionalmente previstos,


que os salvaguardam de atuações arbitrárias intentadas pelo Estado no exer­
cício da sua competência impositiva, cujo papel atuante do Judiciário é fun­
damental à sua realização34.
Ver-se-á que o Estado, na sua voracidade arrecadatória, desprestigia, em
total afronta à ordem jurídica, o escalonamento hierárquico traçado pela Cons­
tituição Federal, demolindo, assim, as bases do Estado de Direito assentado
na legitimidade popular (Democracia), em busca da efetivação de justiça har­
monizada com os dogmas de segurança jurídica, indispensáveis à manutenção
da ordem e da paz social.
3 . 0 P r in c íp io d a P r o p o r c io n a l id a d e e a D iv er sid a d e
I nterpretativa C o n s t it u c io n a l

Como visto, não se pode conceber, de forma racional, dentro da dinâmi­


ca do ordenamento jurídico, a existência de única solução possível para deter­
minado caso concreto. A diversidade interpretativa, em especial no campo
constitucional, é inescapável, principalmente diante do fenômeno da colisão
de princípios.
A restrição de princípios, quando diante de uma situação concreta, é não
só inevitável, mas desejável, para que eles possam, nessa divergência mútua,
não adquirir caráter absoluto e, por conseguinte, fixar seus limites.
Assim, não há princípio em que se possa pretender seja acatado de forma
absoluta. Daí dizer-se que há uma necessidade lógica e axiológica de postu­
lar-se o princípio da proporcionalidade para que se possa respeitar tais nor­
mas, tendentes ao atrito e, em face da diversidade interpretativa constitucional,

produção normativa estatal, não se podendo mais entender a fiscalidade como sinônimo de
neutralidade. Na tentativa de concreção dessa justiça social, aspectos caracterizadores da
extrafiscalidade poderão, concomitantemente, existir, mesmo de forma secundária, naquele
momento, à função fiscal" (OLIVEIRA, Maria Alessandra Brasileiro de. A extrafiscalidade como
instrumento de realização de justiça. Revista do Instituto Cearense de Estudos Tributários. Ano
2, jan./jul. Fortaleza: 2001, p. 256/257).
34 R O Q U E A N TÔ N IO C A R RA ZZA chama atenção para fato de que "convém, neste ponto,
afastarmos, de uma vez por todas, a superadíssima idéia de que o interesse fazendário
(meramente arrecadatório) eqüivale ao interesse público. Em boa verdade científica, o interes­
se fazendário não se confunde nem muito menos sobrepaira o interesse p ú b lico . Antes,
subordina-se ao interesse p ú b lico e, por isso, só poderá prevalecer quando em perfeita
sintonia com ele" (Curso de direito constitucional tributário. 16a ed. rev., atual e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 408).
M a r ia A les s a n d r a B r a s ile ir o d e O l iv e ir a - 3 4 3

adotar a postura normativa mais adequada, ou seja, uma “solução de compro­


misso”, utilizando a expressão de Willis Santiago Guerra Filho35.
Então, o que se pode fazer diante da possibilidade abstrata de aplicação
de dois princípios fundamentais a uma mesma situação? Ou seja, quando eles
entram em colisão, qual princípio deve prevalecer?
Parece irrefutável que as liberdades hão de conter-se naquilo que Kant
considerava ser a definição mais exata do Direito: a de que o Direito é uma
justa restrição à liberdade de cada um para que todas as liberdades coexistam.
O princípio da proporcionalidade visa, então, a coibir a violação dos di­
reitos fundamentais e, diante da variedade de interpretações possíveis em face
desses mesmos direitos, viabilizar a aplicação ponderada entre os valores em
jogo, já que é diante de uma situação fática que se delineará o conteúdo essen­
cial dos direitos, ou seja, no momento de sua aplicação/violação.
Citado posicionamento não significa afastar o Estado de Direito, não se
pode negar vigência a determinadas normas em nome do princípio da propor­
cionalidade, o que se trata é de compatibilizar todas elas.
Diante do caso concreto, deve-se proceder a uma interpretação conformado-
ra da Constituição36 de acordo com as opções valorativas fundamentais veiculadas
no Texto Constitucional. No campo da hermenêutica constitucional, dentre essas
diversas normas, ocorre uma interdependência, formando um sistema integrado,
onde cada norma encontra justificativa nos valores mais gerais, expressos em outras
normas. A interpretação constitucional sempre tem um cunho ideológico, que
não deve ser o do intérprete, mas daquele em que se baseia a própria Constituição.
Dessa forma, para resolver o grande dilema da interpretação constitucio­
nal, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais, em
um primeiro momento, deve-se igual obediência, em decorrência da posição

35 Princípio da proporcionalidade e teoria do direito. In: Direito constitucional - estudos em


homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 269,
36 Segundo WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, "praticar a 'interpretação constitucional' é dife­
rente de interpretar a Constituição de acordo com os cânones tradicionais da hermenêutica
jurídica, desenvolvidos, aliás, em época em que as matrizes do pensamento jurídico assentavam-
se em bases privatísticas. A intelecção do texto constitucional também se dá, em um primeiro
momento, recorrendo aos tradicionais métodos filológico, sistemático, teleológico etc. Apenas
haverá de ir além, empregar outros recursos argumentativos, quando com o emprego do instru­
mental clássico da hermenêutica jurídica não se obtenha como resultado da operação exegética
um "interpretação conforme à Constituição (...)" (Teoria processual da Constituição. São Paulo:
Celso Bastos Editor - Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, p. 175-176).
344 - A P r o te ç ã o a o s D ire ito s d o C o n t rib u in t e e a A d e q u a d a In te rp re ta ç ã o .

isonômica que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso ao


princípio da proporcionalidade, que determina a busca por aquela “solução de
compromisso” na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos
princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo possível o outro, de
modo a não ferir o seu núcleo essencial.
O meio escolhido deve ser exigível e adequado para atingir o resultado
almejado, revelando conformidade e utilidade ao seu fim, além de ser o menos
excessivo possível à sua consecução.
Essa ponderação axiológica, entretanto, não ocorre apenas no campo cons­
titucional, mas deve nortear a postura do legislador infraconstitucional, com­
pelindo-o sempre à adoção de formulações legais razoáveis e proporcionais,
pois só assim estarão em sintonia com o espírito constitucional.
Na seara tributária, é incisiva a incidência de atuações desarrazoadas e
desproporcionais, por intermédio de criações legais constritivas das liberdades
individuais, sem respeito, sobretudo, ao princípio da igualdade. Na verdade,
nas palavras de Hugo Machado, a “verdadeira igualdade reside, induvidosa-
mente, na proporcionalidade”37.
De modo a evitar grandes divergências interpretativas, o critério valorati-
vo constitucionalmente estabelecido para a preservação do princípio da isono­
mia, no campo tributário, é o da capacidade econômica, por isso, a necessidade
de erigir-se um princípio próprio, dentro do subsistema constitucional tribu­
tário, consubstanciador dessa ideologia, qual seja, o princípio da capacidade
contributiva, mas que, mesmo assim, mostra-se frequentemente vilipendiado
pelos poderes públicos.
No campo do direito tributário, como nos relata Germana de Oliveira
Moraes38, o Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, já adotou o princí­
pio da proporcionalidade, tanto na sua vertente da adequação quanto na proi­
bição de excesso, não havendo mais lugar para resistência à aplicação, em face
da sua existência jurídica como princípio constitucional implícito, nos termos
do art. 5o, § 2o. Sua existência é axiomática ao Direito Constitucional39, por­
tanto, ao Estado Democrático de Direito.

37 Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988. 4a ed. São Paulo: Dialética,


2001, p. 59.
38 Obra cit. p. 136.
39 BONAVIDES, Raulo. Obra cit. p. 363.
M a r ia A le s s a n d r a B r a s il e ir o d e O liv e ir a - 3 4 5

4 . O P o d e r J u d ic iá rio e as G a r a n t ia s C o n s titu c io n a is
d o C o n trib u in te

Em face das constantes arbitrariedades perpetradas, em especial, no âm­


bito da tributação, deve-se desenvolver mecanismos cada vez mais incisivos,
de modo a evitar ou reprimir essa manifestação dos poderes públicos; entran­
do, aqui, o Poder Judiciário como o único capaz de compelir essa atuação a
limites racionais, dando real efetividade às normas constitucionais por meio
de interpretações, sempre no sentido de realizar a supremacia constitucional e
maximizar os direitos fundamentais.
Desse modo, destaca-se, não de forma despicienda, o relevante e decisivo
papel do Judiciário como restabelecedor do equilíbrio e da harmonia do orde­
namento jurídico, atuando na minimização de prejuízos aos hipossuficientes,
abandonando a já ultrapassada postura de absoluta passividade frente às de­
mandas judiciais, corporificado no adversary systemAÜdo Common Law, assu­
mindo o juiz uma postura ativista e de operador social, indispensável diante
das novas relações socioeconômicas típicas das sociedades capitalistas, por que
não dizer, do mundo globalizado.
O Judiciário não pode submeter-se a essas investidas, nem adotar
uma postura agnóstica41, mas, ao contrário, ativa e proporcionadora de
decisões eficazes.
Como lembra Paulo Bonavides, “o juiz da democracia participativa
não será, como no passado, ao alvorecer da legalidade representativa, o juiz
“boca da lei”, da imagem de Montesquieu, mas o magistrado boca da Cons­
tituição e do contrato social; aquele que figuraria decerto na imagem de
Rousseau redivivo”42.

40 CAPELLLETTI, Mauro, juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro O liveira. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993/1999, p. 17.
41 "Na maioria das vezes, o Poder Judiciário, despercebido que é um poder autônomo, colocado
no mesmo plano do Legislativo e do Executivo, prefere, como diz Cappelletti, uma atitude
agnóstica: espécie de irônico gosto de pôr em evidência a imperfeição das leis e de fazer recair
todas as culpas sobre a inércia do legislador e do administrador. Tal comportamento atenta
contra o princípio da economia processual na sua faceta de eficiência da administração,
porquanto 'não correspondem já aos deveres constitucionais da ordem judicial, na qual, para
se dar conta da Constituição e das metas que ele assinala, não tem que passar pelos trâmites do
legislador" (CAPPELLETTI, 1974, p. 568.)" (PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3a
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 27).
42 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 22.
3 4 6 - A P r o t e ç ã o a o s D ir eit o s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

Relembre-se, ainda, o art. Io, da Lei Fundamental de 1988, que consa­


gra o regime republicano. A República, que não pode ser encarada apenas do
ponto de vista formal, em contrapartida à monarquia, é o regime em que os
exercentes de funções políticas manifestam-se como legitimados populares,
representando a vontade do povo, com total responsabilidade, escolhidos por
meio de processo eletivo e mediante mandatos renováveis periodicamente43.
A principal característica, portanto, da República é essa responsabilida­
de no exercício de qualquer parcela do poder, fazendo com que os agentes
públicos (neles compreendidos os agentes políticos) possam responder civil,
penal, administrativa e politicamente pelos atos que praticarem no exercício
de suas funções, caso contrarie o interesse público, primário ou secundário44.
Ninguém desempenha função pública por direito próprio.
Isso decorre da máxima de que todo poder emana do povo e em seu
nome é exercido. Quem executa função por delegação, em nome de outrem,
deve fazê-lo com responsabilidade, dentro de limites preestabelecidos, cuja
concreção é obtida por meio do oferecimento de mecanismos de controle in­
terno e externo, sobretudo, pela via jurisdicional4S.
Com efeito, na tentativa de estabelecer mecanismos de contenção dessas
práticas abusivas, diversas são as providências reclamadas pelos operadores do
Direito. Preconiza-se, por exemplo, no âmbito administrativo, a necessidade
de concretização da responsabilidade pessoal do agente administrativo.
Possibilitar ao particular prejudicado acionar judicialmente o agente, de
forma direta, a fim de que ele seja pessoalmente responsabilizado pela conduta
arbitrária, terá um duplo aspecto: permanecerá tendo um caráter compensató­
rio, do ponto de vista patrimonial, na medida em que a interpelação do agente
não será individual, mas conjuntamente46com o ente público, já que, nesse ponto,

43 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19a ed. Rio de Janeiro: Malheiros,
2001, p. 107.
44 Segundo Renato Alessi, o interesse público primário diz respeito ao Estado, ao bem geral,
enquanto que o interesse público secundário corresponde ao interesse da Administração
Pública, ou seja, ao modo como os governantes veem o interesse público. Desse modo, nem
sempre o interesse público primário coincide com o secundário.
45 Surge aqui, diga-se de passagem, tema de total relevância, que é o da motivação na prática dos
atos desempenhados no exercício de função pública, cuja compreensão e observância ainda
mostra-se bastante mitigada. Mas como viabilizar o controle jurisdicional e imputar responsa­
bilidades sem que se possa conhecer os motivos que conduziram à prática do ato? O assunto
é palpitante, mas o aprofundamento do tema foge ao objetivo desse trabalho.
46 O que não se pode pretender é excluir-se o ente público da relação jurídica processual, em face
da denunciação da lide.
M a r ia A le s s a n d r a B r a s ile ir o de O liv e ir a - 347

o que se visa com o acionamento judicial é ao ressarcimento patrimonial e o


agente público, de regra, não terá como indenizar, satisfatoriamente, o particu­
lar. E, o mais importante, do ponto de vista do respeito à supremacia constitu­
cional, importará desestímulo às práticas excessivas de poder.
Canotilho47entende que a responsabilidade, nas relações Estado-socie-
dade-cidadão, deverá ser sempre objetiva, sempre do Estado, pessoa jurídica
de direito público, nunca do agente, inclusive, porque essa imputação subje­
tiva, em muitos casos, seria extremamente difícil e, às vezes, até inviável diante
da impossibilidade de identificação do agente.
É claro que diante de uma arbitrariedade, de uma conduta ilegal ou
inconstitucional, o Direito não se contenta, tão somente, com a responsabili­
zação do Estado e a eventual indenização ao particular prejudicado. A impu­
tação pessoal do agente tem uma finalidade talvez mais importante do que o
ressarcimento ao particular, como se evidenciou, que é desestimular as práticas
abusivas desses agentes, e essa tomada de consciência não deve ficar completa­
mente a cargo da própria Administração Pública, que deverá, de forma re­
gressiva, responsabilizar seu agente, conforme o caso.
Hugo de Brito Machado também preconiza “a responsabilidade do agente
público por lesões que pratique a direitos do contribuinte, sem prejuízo da
responsabilidade objetiva do Estado”48.
Nesse contexto, uma questão importante surge: quando o agente pratica
ato arbitrário ou inconstitucional em obediência expressa a disposição legal,
caso em que não poderá eximir-se, salvo exceções49, de assim proceder?
Em outras palavras, quando a arbitrariedade ou inconstitucionalidade
advém da atuação legislativa, no desempenho de suas funções precípuas de

47 Posicionamento externado durante uma palestra proferida na Escola Superior da Magistratura


no Estado do Ceará - ESMEC, em parceria com o Curso de Mestrado em Direito da Universida­
de Federal do Ceará - UFC, no dia 25 de maio de 2001, intitulada Aplicação e Concretização
do Direito Constitucional.
48 Exemplificando caso comum de desrespeito aos direitos individuais do contribuinte, assevera
que "o agente do fisco, que formula em auto de infração exigência que sabe ou deveria saber
indevida, não sofre nenhuma conseqüência de seu ato ilícito, não obstante esteja este legal­
mente definido como crime de excesso de exação. Não se conhece um único caso de ação
penal por excesso de exação, e não é razoável acreditar-se que nenhum agente do fisco o tenha
praticado" (A supremacia constitucional como garantia do contribuinte. In: Revista Dialética n°
68. São Paulo: Dialética, 2001, p. 49-50).
49 O Chefe do Poder Executivo (Federal, Estadual e Municipal) poderá determinar a agentes
pertencentes a órgãos de sua subordinação que deixem de aplicar leis ou atos normativos
reputados inconstitucionais.
3 4 8 - A P r o t e ç ã o a o s D ireito s d o C o n t r ib u in t e e a A d e q u a d a I n t e r p r et a ç ã o .

criação normativa, manifestando-se, na esfera administrativa, apenas como um


reflexo, como o particular (contribuinte) poderia responsabilizar pessoalmen­
te tais agentes públicos, senão por meio das urnas, uma vez que aqueles agen­
tes não poderão sofrer qualquer sanção nesse sentido?
Quando se trata de contornar a atuação legislativa arbitrária, inconstitu­
cional, já realizada ou na iminência de ser, em detrimento dos princípios e
regras constitucionais, caberá ao Judiciário, tão somente, restabelecer a har­
monia e coerência do ordenamento jurídico por intermédio da declaração de
sua inconstitucionalidade, mecanismo que, infelizmente, não tem sido bem
utilizado, principalmente pelo Guardião Constitucional.
Corroborando as ideias de Hugo Machadoso, entende-se que a decisão
que declara a inconstitucionalidade de lei só pode ter efeito retroativo (ex
tunc) para beneficiar o cidadão, já que a determinação de que as normas infra-
constitucionais devem ser elaboradas em consonância com a Constituição Fe­
deral se manifesta como uma garantia do cidadão. O princípio da irretroatividade
das leis não pode, por conseguinte, ser utilizado contra o contribuinte, de
modo a preservar-se o princípio da segurança jurídica.
Portanto, a título de solução prática para as constantes arbitrariedades im­
plementadas pelos poderes públicos, em especial, quando no exercício de ativi­
dade legislativa, a pretexto de integrar a Constituição Federal, dando plena
efetividade às suas disposições, onde se encarta a lei complementar como foco de
incidentes interpretações desarrazoadas; clama-se, sem a pretensão de trazer
algo de inovador, manifestando-se, tão só, como mais um eco na busca da pre­
servação da supremacia constitucional, com todos os seus corolários, por uma
maior tomada de consciência por parte do Judiciário, no sentido da adoção de
uma postura não passiva, mas comprometida, exclusivamente, com o Direito,
pois compromisso com a ordem jurídica é compromisso com a justiça.

50 A supremacia constitucional como garantia do contribuinte. In: Revista Dialética n° 68. São
Paulo: Dialética, 2001, p. 57.
Estudos sobre a História
do Artigo 135 do CTN em
Homenagem ao Professor
Hugo de Brito Machado

Nicolau A. Haddad Neto


Advogado e Professor de Direito Tributário. Mestre em Direito Político e
Econômico pela Universidade Mackenzie.
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 5 1

HUGO D E BRITO M ACHADO dedica vinte e duas laudas de uma


de suas obras mais completas1para comentários acerca do artigo 135 do
CTN, ao qual reputa “enorme importância”, evidenciada pela “grande quan­
tidade de julgados nos quais tem sido posta a questão”, posto que, como diz
o autor, “a norma tem sido aplicada com alcance que efetivamente não tem,
ensejando soluções que não se harmonizam com as garantias fundamentais
que o nosso ordenamento jurídico oferece, ou que negam vigência a dispo­
sitivos expressos de lei”2.
Dessa forma, por acedermos ao mestre cearense, vemos como meio de
prestarmos a homenagem que sua doutrina enseja trazer à discussão acadêmi­
ca novamente esta norma, agora sob o viés de seus antecedentes históricos.
E, para levarmos a cabo a tarefa de adentrarmos a história do artigo 135
do Código Tributário Nacional3, preliminarmente, se faz imperioso breve
enfrentamento do texto legal:
“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos corresponden­
tes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso
de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II —os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de
direito privado.”
O que é importante neste momento atentar é exatamente a literalidade
do caput do artigo. Nela, o ponto causticante das discussões jurídicas tem
residido na expressão “infração de lei”. Por isso, é necessário que a verifique­
mos sintaticamente no discurso da norma.
Diz o dispositivo que algumas pessoas serão responsáveis por determi­
nadas obrigações tributárias. Pelo que está positivado, tais obrigações serão
resultantes de atos praticados com infração de lei. Situa-se aí o ponto que
requer mais atenção. É que a ordem invertida da frase não permite que o

1 A referência é até novembro de 2005, ocasião em que foi redigido este texto e alude ao
segundo volume de seu Comentários ao Código Tributário Nacional: artigos 96 a 138, confec­
cionada pela editora Atlas em fins de 2004 e posta à venda em 2005.
2 M ACHADO, 2004: 584.
3 Código Tributário Nacional - CTN: lei n° 5.172 de 25 de outubro de 1966.
3 5 2 - E s t u d o s s o b r e a H is t ó r ia d o A r t ig o 135 do CTN.

texto se aclare com um simples passar de olhos. Veja-se que ser responsável
por obrigações tributárias resultantes de atos praticados com infração de lei,
significa, primeiramente, praticar um ato adjetivado como sendo ato com
infração de lei e, posteriormente, ver, por causa deste tal ato, aparecer uma
obrigação tributária.
Não entendemos como em vão esse nosso esforço em falar obviedades.
Devemos lembrar que o não pagamento de tributo também é infração de lei,
posto que a obrigação tributária é, por lei, determinada. A questão é perceber
que a infração de lei, correspondente ao não pagamento de tributo, é posterior
à obrigação e a letra do artigo 135 do CTN fala em infração anterior. Confi­
ramos novamente: Diz o artigo que se algumas pessoas cometerem determi­
nados atos, qualificados como sendo atos praticados com infração de lei e, a
partir deles, surgir uma obrigação tributária, haverá, então, a responsabiliza­
ção das citadas pessoas. A ordem temporal fica clara: primeiramente, o ato
com infração de lei; em segundo, a obrigação tributária.
No caso de infração de lei por não pagamento de tributo temos outra
seqüência. Primeiramente, a obrigação tributária, em segundo, o não paga­
mento e a conseqüente infração de lei.
Por isso essa simplória explicação da literalidade do artigo 135, princi­
palmente de seu caput, como ponto de partida à nossa pretensão. Da mesma
forma, entendemos que devem proceder os que defendem que o citado artigo
abriga a hipótese de não pagamento de tributo: obrigam-se a partir do texto
da lei e, ao trazerem suas colocações, ainda que lastreadas na Teoria Geral do
Direito, como foram as nossas, para então concluir sobre o porquê de o referi­
do texto ser acatado ou desprezado ou, ainda, sobre o que seriam as tais infra­
ções de lei que teriam o condão de deflagrar uma obrigação tributária.
Cabe-nos, agora, retornarmos a algumas das mais relevantes explicações
de H UGO DE BRITO M ACHADO sobre o tema. O insigne professor
teoriza que “se o tributo (direto ou indireto) não é pago pela pessoa jurídica,
que não dispõe de recursos, ou os utiliza para outros fins lícitos (e. g., paga­
mento de folha de salários), tem-se uma dívida da sociedade, não paga pela
sociedade. Entretanto, se esse mesmo tributo (direto ou indireto) não é pago
porque desfalcado o patrimônio da pessoa jurídica pelos que a dirigem, que
dolosamente não recolhem o tributo e do valor respectivo se apropriam, em
infração da lei societária, tem-se nítida a incidência da norma contida no
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 5 3

artigo 135, III, do CTN. Neste último caso, ressalte-se, não foi da pessoa
jurídica o ato que infringiu a lei, não pagando o tributo, mas do seu diretor ou
gerente, enquanto pessoa natural”4.
De fato, muito relevantes são suas lições, que indicam harmonia com
intensa pesquisa realizada, por ocasião da elaboração de nossa dissertação de
mestrado, realizada em 2005s. E porque HUGO DE BRITO não reconhece
a mera substituição tributária no tema, afirma que “constitui elemento essen­
cial para a existência da responsabilidade dos terceiros mencionados no art.
135 a ocorrência de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, con­
trato social ou estatutos, sendo evidente a necessidade de prova, em cada caso,
dessa ocorrência sem a qual não se pode atribuir a responsabilidade àquelas
pessoas”6. Chegamos à mesma conclusão por outros fundamentos, os quais
vemos como também apropriados à mencionada necessidade de prova. É que
verificamos a real existência da pessoalidade, porque, como diz MARÇAL
JUSTEN FILHO, a hipótese do artigo 135 retrata relação pessoal e direta
das pessoas ali referidas com o fato gerador7. Também verificamos que à asser­
tiva de BRITO M ACHADO, que dá relevo à prova, deve cingir-se ao ato de
lançamento, o que, se inexistir, impede a inclusão dos sócios e dos administra­
dores no polo passivo da ação de execução fiscal.
Por outro lado, muitas vozes da doutrina se levantam contra o reconhe­
cimento do caráter pessoal da responsabilidade apresentada no artigo. E nossa
pesquisa percebeu como hipótese aceitável desse não reconhecimento da pes­
soalidade em comento a açougada de assertivas que faz acerca dos ilícitos e de
sua relação com o crédito tributário. Como sabemos, o crédito resulta da obri­
gação, e esta, de um fato, que ordinariamente é lícito, porque previsto em lei,
mas pode corresponder a ilícito.
A pesquisa que realizamos nos permite inferir que os esforços de cons­
trução teórica sobre o artigo 135 do CTN foram potencializados pela dificul­
dade de correlacionar os ilícitos à obrigação tributária. HUGO D E BRITO

4 M A C H A D O , 2000: 590.
5 HADDAD NETO, Nicolau Abrahão. A responsabilidade tributária dos sócios e dos administra­
dores da sociedade limitada: uma análise à luz da teoria da pessoa jurídica. São Paulo, 2005.
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - U niversidade Presbiteriana
Mackenzie, 2005. Orientador: Alcides Jorge Costa. Bibliografia: p. 282-304.
6 M A C H A D O , 2000: 600.
7 JUSTEN FILH O , 1986: 316.
354 - E s tu d o s so b re a H is t ó r ia d o A r t i g o 135 do C T N .

M ACHADO bem recorda que “não é razoável, [...] considerar-se a atividade


de tributação de forma inteiramente isolada da atividade de preservação da
ordem jurídica, que ao Estado cabe desenvolver”, o que, segundo ele, poderia
até impedir a tributação sobre atos ilícitos, posto que isso poderia representar
um incentivo à prática deles8. Mas exatamente por inexistir tal isolação é que
não se pode fechar os olhos para os sinais de riqueza encontrados em atos e
fatos, sejam eles normalmente lícitos ou eventualmente ilícitos: a falta desse
olhar pode representar não um desestímulo, mas uma verdadeira norma tri­
butária indutora9.
Outro mérito de BRITO M ACHADO julgamos estar no fato de que
também reconhece a evidência de que o CTN “nada estabeleceu a respeito da
responsabilidade pessoal dos dirigentes de pessoas jurídicas, a não ser com a
norma do art. 135, para os colocar na condição de responsáveis tributários se
concretizada a hipótese nele prevista [...]”10.
Passemos, pois, a considerar fatos que envolveram a criação do artigo 135
do Código Tributário Nacional, visando encontrar seus fundamentos históri­
cos e a nução de uma conclusão se eles permanecem válidos na atualidade,
buscando-se esquadrinhar também o alcance atual da norma.
O professor ALCIDES JORGE COSTA, por conta da prudente orien­
tação em nossa dissertação de mestrado, que tivemos o privilégio de receber,
indicou-nos a busca de uma jurisprudência de 1943, a fim de que trouxésse­
mos esclarecimentos importantes para nossa pesquisa. E, nesse ponto, o eter­
no “buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á”11fez-se presente e logramos a
obtenção de julgado que trata de um episódio, do qual inferimos que tenha
sido a base para as disposições que deram origem ao artigo 135 do CTN,
aquiescidos que fomos por aquela auspiciosa orientação.
O citado episódio vem retratado em um acórdão, como dissemos, de
1943, proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da apelação cível
n° 8.344-DF (à época, Rio de Janeiro), em que as partes foram a União

8 M AC H AD O , 2004: 402.
9 LUIS EDUARDO SCHO UERI, emimportante estudosobre asnormas tributárias indutoras, ao
qual remetemos o leitor para o devido aprofundamento, assevera que "sendo a norma tributária
indutora um desincentivo, então deve ela conformar-se à exigência de que seja oferecida ao
contribuinte a possibilidade de deixar de adotar o comportamento agravado". (2002: 72)
10 M AC H AD O , 2004: 593.
11 Expressão bíblica, atinente às lições de Jesus deNazaré (Mateus, VII, 7-11).
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 5 5

Federal e a empresa multinacional americana Sydney Ross Company12. Esta


companhia se insurgira contra multa de 300% que lhe fora atribuída por
fraude cometida por seu diretor, mas por ela mesma detectada, ao que, incon-
tinente, pagara o tributo. A multa foi reduzida judicialmente para 30%, o
que fez com que tanto a multinacional como a União levassem o caso ao
Supremo Tribunal Federal, que manteve a referida redução.
A referida companhia era de grande notoriedade na época. CLOVIS
REIS explica que nos idos de 1940 o rádio era o principal veículo de comu­
nicação de massa em nosso país, ouvido por cerca de sessenta por cento da
população. Na ocasião, continua o autor, o laboratório farmacêutico Sydney
Ross se transformou em uma referência na pesquisa de audiência do rádio.
“O laboratório realizava suas pesquisas em todo território nacional, através
de sua equipe de vendas. Por este motivo, as emissoras que veiculavam os
anúncios de Sydney Ross eram consideradas as mais ouvidas e influentes em
sua área de cobertura geográfica. Conta ainda o autor que aquele fora o
momento de máximo prestígio do rádio em toda sua história, tendo, por
isso, despertado a atenção do governo federal, que se mostrou bastante par­
ticipante, tendo, inclusive, editado, em 1934, o Decreto-lei n° 24.655, que
fixava em 20% do tempo de cada programa o limite permitido para a publi­
cidade e, em 1940, assumido o controle da Rádio Nacional do Rio de Janei­
ro, cujos proprietários eram devedores da União e realizado nela um aporte
significativo de recursos públicos”13.
Ainda com referência ao caso, retomemo-lo, extraindo do relatório
breve resumo, posto que a nitidez de visão do ocorrido importará na com­
preensão dos trabalhos que redundaram nas normas hoje apresentadas e
aqui estudadas.
Primeiramente, verificamos que houve uma decisão da Diretoria do Im­
posto de Rendas, confirmada pelo I o Conselho de Contribuintes e pelo M i­

12 Os dados do decisum foram obtidos por intenso trabalho de pesquisa, capitaneado pelo Sr.
Márcio Antônio Ribeiro, Chefe Substituto da Seção de Arquivo do Supremo Tribunal Federal,
a quem desejamos homenagear pela presteza e colaboração demonstradas para com aquele
trabalho acadêmico.
13 REIS, Clovis. In: "A expansão e consolidação dos investimentos publicitários (1930-1960) - O
rádio e a publicidade radiofônica viveram o seu período dourado entre as décadas de 1930 e
19 6 0 ", pesquisado no endereço eletrô n ico : <http://w w w .sulradio.com .br/destaques/
destaque_9523.asp>, acessado em 24/11/2005, às 12h 19min.
3 5 6 - E s t u d o s s o b r e a H is t ó r ia d o A r t ig o 1 3 5 d o C T N .

nistro da Fazenda, que aplicou multa de 300% à filial brasileira da empresa


Sydney Ross Company. A decisão envolveu a seguinte situação, que ficou
provada nos autos da ação retro citada:
Os lucros reais eram fielmente registrados nos balanços, porém, não con­
feriam com os números apresentados à Administração tributária, que sobre
eles recebia declaração falsa. O gerente da empresa no Brasil falsificava os
balanços e visava, com isso, aumentar sua participação percentual nos lucros
sonegados. Contudo, a sociedade, por meio de auditoria contratada, descobriu
que isso ocorrera no período de 1934 a 1939 e levou o fato ao conhecimento
da Administração tributária, retificou sua escrita contábil e recolheu a dife­
rença de imposto devida, com acréscimo de 10%, a título de multa de mora.
Realizou o pagamento em 30 de dezembro de 1939. Porém, dois dias antes,
em 28 de dezembro de 1939, iniciara-se uma fiscalização na sociedade, orde­
nada pelo Diretor do Imposto de Rendas, com o propósito de fazer verifica­
ções específicas —verbas relativas a gratificações a empregados, a origem da
conta contábil “lucros não divididos” e a forma de transferência dos lucros à
matriz. Dessa fiscalização resultou a multa de 300% sobre a diferença de
imposto devida.
A multa foi mantida pela Administração, após recurso. A sociedade
ajuizou, em face da União, ação anulatória da decisão administrativa. Na
sentença, o juiz afastou a possibilidade de responsabilidade pessoal do ge­
rente e entendeu que a denúncia da infração, por parte da autora, não hou­
vera sido espontânea, já que realizada dois dias depois de iniciada a fiscalização.
Porém, alterou a penalidade porque não reconheceu o dolo da sociedade,
situando o caso, por analogia, na hipótese de lançamento ex ojficio. Com
isso, a multa caiu de 300% para 30%. Houve apelação de ambas as partes,
além de recurso de ofício. A apelação foi julgada pelo Supremo Tribunal
Federal, como determinava a regra adjetiva. A sentença acabou mantida porque
o acórdão não conheceu da apelação da sociedade Sydney Ross (sobre isto,
vencidos os Ministros Castro Nunes e Barros Barreto) e negou provimento
às apelações “ex officio” e da União (neste aspecto, vencidos os Ministros
Philadelfo Azevedo - relator - e Annibal Freire).
Se observarmos o anteprojeto de RUBENS GOMES DE SOUZA e o
Projeto de Código Tributário, poderemos perceber que houve uma fixação de
atenção na questão de atos ilícitos praticados contra pessoas jurídicas. Para
colaborar com a percepção das normas, elaboramos um quadro sinótico.
N ic o la u A . H a d d a d N e to - 3 5 7

Nele, apresentamos na primeira coluna o anteprojeto, fruto do trabalho


individual de Rubens Gomes de Souza, na segunda coluna, o Projeto de Có­
digo elaborado em 1954 e na terceira, o Código Tributário Nacional. Esta
última coluna, referente ao CTN, contém o artigo 135, objeto principal de
nosso estudo e o artigo 137, que, por sua vez, apresenta disposições também
de importância para o clareamento de nosso tema. As colunas anteriores mos­
tram as normas correlatas aos citados dois dispositivos do CTN.
Observemos, pois, o quadro que se segue:
Anteprojeto Projeto Código
Art. 247. As pessoas naturais ou Art. 171. As pessoas naturais ou Art. 135. São pessoalmente
ju ríd ic a s são pessoalm ente ju ríd ic a s são pessoalm ente responsáveis pelos créditos
responsáveis [...] peios créditos responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações
correspondentes a obrigações correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos
tributárias decorrentes de atos tributárias decorrentes de atos praticados com excesso de poderes
regularmente praticados por seus regularmente praticados por seus ou infração de lei, contrato social
m an d atário s, fu n c io n á rio s, mandatários. ou estatutos:
prepostos ou empregados. § 1° Quanto às pessoas jurídicas de I - as pessoas referidas no artigo
Parágrafo único. Quanto às pessoas direito privado, o disposto neste anterior;
jurídicas de direito privado, o artigo aplica-se às obrigações II - os mandatários, prepostos e
disposto neste artigo aplica-se às tributárias decorrentes de atos empregados;
obrigações tributárias decorrentes praticados pelos respectivos III - os diretores, gerentes ou
de atos p ra tic a d o s pelo s d i r e t o r e s , g e r e n t e s ou representantes de pessoas jurídicas
respectivos diretores, gerentes ou administradores, ainda que com dedireito privado.
administradores, ainda que com excesso de poderes ou infração de Art. 137. A responsabilidade é
excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. pessoal ao agente:
lei, contrato social ou estatutos. § 2o Nos casos previstos neste I - q u a n to às in fr a ç õ e s
artigo e no parágrafo anterior, conceituadas por lei como crimes
o b s e r v a r - s e - á , q u a n to à ou contravenções, salvo quando
responsabilidade por infrações, o praticadas no exercício regular de
disposto na alínea III do art. 173. administração, mandato, função,
Art. 173. A responsabilidade é cargo ou em prego, ou no
pessoal do agente: cumprimento de ordem expressa
III. Quanto às infrações que emitida por quem de direito;
decorram direta e exclusivamente II - quanto às infrações em cuja
de dolo específico do mandatário, definição o dolo específico do
preposto ou empregado contra o agente seja elementar;
m an d an te , prepo nente ou III - quanto às infrações que
empregador. decorram direta e exclusivamente
de dolo específico:
a) das pessoas referidas no artigo
134, contra aquelas por quem
respondem; [...]
c) dos diretores, gerentes ou
representantes de pessoas jurídicas
de direito privado, contra estas.

Sobre os artigos, é importante explicarmos que: 1) a parte suprimida no


artigo 247 do anteprojeto não lhe extrai a utilidade para os fins de compara­
ção apresentados. A referida parte contém a seguinte expressão: “nos têrmos
do disposto no art. 230”. O artigo 230 se refere à universalidade patrimonial
3 5 8 - E s t u d o s s o b r e a H is t ó r ia d o A r t ig o 135 do CTN.

do sujeito passivo14; ainda sobre o artigo 247 do anteprojeto, importa saber


que é dispositivo alocado no Livro V, “Do Crédito Tributário”, Título VI,
“Das Garantias do Crédito Tributário”, Capítulo V, “Da responsabilidade
tributária dos terceiros”15; 2) os artigos 171 e 173 do projeto são dispositivos
respectivamente alocados no Livro V, “Do Crédito Tributário”, Título VII,
“Da Responsabilidade Tributária”, Capítulo III, “Da Responsabilidade dos
Terceiros” e Capítulo IV, “Da Responsabilidade por Infrações”16; 3) os artigos
135 e 137 do CTN são dispositivos respectivamente alocados no Livro Se­
gundo, “Normas Gerais de Direito Tributário”, Título II, “Obrigação Tribu­
tária”, Capítulo V, “Responsabilidade Tributária”, Seção III, “Responsabilidade
de Terceiros” e Seção IV, “Responsabilidade por Infrações”.
Contrapondo-se o caso “Sydney Ross” aos dispositivos apresentados, lem­
bremos que naquela situação houve a ocultação de um fato gerador e essa
ocultação foi gerada apenas pelo comportamento isolado de um órgão da so­
ciedade e conforme a decisão judiciária de 1943, não foi o citado órgão a
quem foi atribuída a responsabilidade pela multa. Na redação original do
dispositivo aplicável ao caso (parágrafo único do artigo 247 do anteprojeto) a
locução “infração de lei”, essencial a nosso estudo, foi apresentada da seguinte
forma, no que tange à sua relação com a obrigação tributária:
“[...] obrigações tributárias decorrentes de atos praticados pelos respec­
tivos diretores, gerentes ou administradores, ainda que com excesso de
poderes ou infração de lei”.
De antemão, cabe-nos observar que nos parece não ter havido precisão
no texto a identificar a situação ocorrida no caso “Sidney Ross”. Dizemos isso
porque a obrigação de pagar o imposto de renda surgiu de uma atividade em
que não havia infração de lei, uma vez que adveio do lucro auferido por ativi­
dade lícita. No entanto, a fraude correspondente à ocultação do lucro pelo
gerente estava relacionada com a obrigação, a qual, todavia, daquela não de­
corria. Vê-se aí a imprecisão redacional que apontamos.

14 "Art. 230. Sem prejuízo dosprivilégios especiais sôbre determinadosbens,previstos neste


Código ou em lei tributária, responde peio pagamento do crédito tributário a totalidade dos bens
e rendas, de qualquer natureza, do contribuinte, ou do seu espólio ou massa falida, inclusive os
gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade,
seja qual fôr a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e
rendas que êste Código declaraabsolutamenteimpenhoráveis."(Fazenda, 1954: 325.)
15 Fazenda, 1954: 329.
16 Fazenda, 1954: 69 e 70.
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 5 9

O projeto, por sua vez, procurou evidenciar a responsabilidade do agente


que ocultou o fato gerador, realçando que a ele caberia a responsabilidade por
infrações, ou seja, a responsabilidade pela penalidade. Veja-se que o artigo
171 do projeto mantém, em seu § Io, idêntica redação à do parágrafo único
do artigo 247 do anteprojeto, dispondo sobre a responsabilidade da pessoa
jurídica, valendo para aquele as mesmas observações que fizemos acerca deste.
Entretanto, apresenta um § 2o que determina a aplicação à situação descrita
no parágrafo I o do que dispõe o inciso III do artigo 173 do projeto, que
impõe a responsabilidade pessoal ao agente pelas penalidades, quando este
(que o dispositivo classifica como mandatário, preposto ou empregado) agir
dolosamente contra o mandante, preponente ou empregador.
O Código Tributário Nacional, no entanto, já apresentou alterações
significativas.
Repare-se que trouxe um dispositivo específico para tratar da responsa­
bilidade por infrações ou por penalidades que envolvam a atuação do sócio ou
do administrador: o artigo 137.
Outro ponto que impõe que atentemos é a alteração do verbo principal,
para nossa análise, utilizado no anteprojeto e no projeto. Em ambos, a dispo­
sição que concernia à expressão “infração de lei” fazia uso do verbo decorrer,
para unir a locução à obrigação tributária. No código, o verbo mudou para
resultar. Os léxicos apontam as palavras quase integralmente como sinônimas,
no que toca a “ter origem em, proceder, derivar”. Porém, ao verbo resultar
acrescentam a sinonímia de “ser a conseqüência, ser o efeito natural, ser a
conclusão lógica de”17.
Entendemos que a tão só mudança de termo seria insuficiente para am­
pliar a extensão do dispositivo; no entanto, como vimos, ela não veio sozinha.
Um dispositivo em apartado, para tratar da responsabilidade por infrações (o
artigo 137), aliou-se à aludida mudança de palavra.
Por isso, observamos que no artigo 135 foi feito uso de um verbo que
entendemos denotar um grau a mais de exatidão, demonstrando a obrigação
tributária como efeito natural ou conseqüência lógica da infração de lei prati­
cada pelo agente.

17 Vide Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1998, p.
1.498; e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2.443.
360 - E s t u d o s s o b re a H i s t ó r i a d o A r t i g o 135 do CTN .

Essa dupla alteração (o artigo 137 a indicar em específico o caso de


responsabilidade por penalidade e a mudança de termo de “decorrentes” para
“resultantes”) permite-nos conceber a ampliação do alcance da norma do arti­
go 135. Passou, pois, a contemplar os casos de obrigação tributária resultante
diretamente de ato ilícito praticado pelo sócio ou pelo administrador, apesar
de manter o mesmo caráter protetor em relação ao instituto da pessoa jurídica
que verificamos no anteprojeto e no projeto, como trataremos mais adiante.
Assim, do cotejo das disposições apresentadas no quadro sinótico, pode­
mos extrair três conclusões importantes, que demandam comentários:
Io) Desde o anteprojeto, RUBENS GOMES DE SOUZA deixava cla­
ro o respeito à personalidade jurídica da pessoa jurídica. Veja-se que nada
falava em responsabilizar os sócios ou administradores, pelo contrário, deixava
evidente a objetividade na responsabilidade pelo inadimplemento, atribuin-
do-a à pessoa jurídica, ainda que não decorresse de atividade regular desta,
como era a hipótese apresentada no parágrafo único do artigo 247, que deter­
minava a responsabilidade objetiva das sociedades privadas, ainda que em re­
lação às obrigações que fossem decorrentes de atos praticados com excesso de
poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
Podemos ver a evidência dessa conclusão pelas assertivas do relatório do
Projeto, elaborado por RUBENS GOM ES D E SOUZA e aprovado pela
comissão que redigiu o projeto, a partir do anteprojeto deste professor, como
já mencionamos. O relatório faz menção tanto ao artigo original (artigo 247),
como para o que dele resultou (artigo 171):
“O art. 171, oriundo do art. 247 do Anteprojeto, consagra o princípio pací­
fico em matéria de responsabilidade tributária pelos atos praticados no
exercício regular de mandato, cargo ou emprego. Todavia, no § Io, abre-se
exceção à regra, para determinar que as pessoasjurídicas respondem pelas
conseqüências tributárias dos atos praticados por seus diretores, gerentes
ou administradores com excesso de poderes ou infração de lei, contrato
social ou estatutos. Visou-se com isso derrogar expressamente, para efeitos
fiscais, aregra do art. 121 da Lei das Sociedades por Ações (decreto-lei n°
2.627 de 1940)18, que consagra, em tais casos, a responsabilidade pessoal

18 "Art. 121. Os diretores não são pessoalmente responsáveis pelas obrigações que contraírem em
nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão.
§ 1o Respondem, porém, civilmente, pelos prejuízos que causarem, quando procederem:
N ic o l a u A. H addad N eto - 361

dos diretores para com os terceiros prejudicados: além de não se poder


considerar o fisco como um terceiro no tocante aos efeitos tributários dos
atos de direito privado, a exceção é necessáriaparaimpedir que, na prática,
a pessoa jurídica se pudesse exonerar de responsabilidade por manobras
de evasão ou de fraude concertadas, em beneficio daquela, pelos seus
próprios administradores [...]. No § 2o, foi entretanto aberta exceção, omis­
sa no Anteprojeto, ao princípio da objetividade das infrações.”19
Note-se que o relatório fala em princípio da objetividade de infrações
em matéria tributária. Sobre tal princípio nos deteremos de forma mais por­
menorizada adiante, quando tratarmos da compreensão da expressão “infra­
ção de lei”, cabendo-nos, por ora, realçar que, por ele, a responsabilidade pelo
descumprimento da obrigação principal, qual seja, a de pagar o tributo é do
sujeito passivo da obrigação, sem que seja verificada qualquer circunstância
subjetiva acerca do comportamento de tal sujeito. Ainda é importante frisar
que vislumbramos que a menção à responsabilidade objetiva da pessoa jurídi­
ca reforça ainda mais o respeito à divisão patrimonial. Por óbvio que esse
reforço é secundário à gritante menção no caput, tanto do artigo 247 do ante­
projeto, quanto no do 171 do projeto, de que as pessoas naturais ou jurídicas
são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tri­
butárias dècorrentes de atos regularmente praticados por seus mandatários.
Finalmente, acerca da personalidade jurídica da pessoa jurídica, chama­
mos também a atenção para a regra comercial que RUBENS GOMES DE
SOUZA evoca em seu relatório, mencionando a então conhecida por Lei das
S/A. Evidentemente, há estreita correlação histórica entre as sociedades anô­
nimas e as limitadas ou por cotas de responsabilidade limitada, como se deno­
minavam à época. A isto já fizemos menção no item 5.1. Evoquemos, apenas,
as lições de RUBENS REQUIÃO, que mostra que a sociedade limitada é,
verdadeiramente, filha da sociedade anônima. A par da controvérsia sobre seu
exato local e momento de nascimento, que, como explica o autor, é atribuído
por alguns à Inglaterra, por outros à França e por outros mais à Alemanha, o

I, dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;


II, com violação da lei ou dos estatutos.
§ 2o Quando os estatutos criarem qualquer órgão com funções técnicas ou destinado a orientar
ou aconselhar os diretores, a responsabilidade civil de seus membros apurar-se-á na conformi­
dade das regras deste capítulo".
19 Fazenda, 1954: 243.
362 - E s t u d o s s o b re a H i s t ó r i a d o A r t i g o 135 do CTN.

ponto pacífico é que em todos esses países procura-se alcançar uma forma de
preenchimento do hiato existente entre as sociedades em nome coletivo -
com responsabilidade ilimitada dos sócios - e as sociedades anônimas, nas
quais os sócios só respondem pela integralidade de suas contribuições, repre­
sentadas em ações. Dessa referida busca adveio a sociedade de responsabilida­
de limitada20. Portanto, nenhum óbice em apropriar as referências de
RUBENS GOMES D E SOUZA, feitas as sociedades anônimas, às socieda­
des limitadas, objeto de nosso trabalho.
2o) Verificamos como evidente a conotação protetiva à pessoa jurídica
que determina o cotejo dos artigos. O professor ALCIDES JORGE COSTA
nos permitiu chegar ao case que influenciou os dispositivos. Ao que tudo
indica, RUBENS GOMES D E SOUZA não contemplara o caso no ante­
projeto de forma específica na chamada responsabilidade de terceiros, uma
vez que no § 2o do artigo 291 de seu anteprojeto apresentava disposição
semelhante21. Contudo, as discussões da comissão, muito provavelmente pela
repercussão do caso “Sydney Ross”, resolveram apresentar clara proteção à pessoa
jurídica. Asseverou-se, pois, no artigo 171 do Projeto, que nos casos de exces­
so de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, em que tais
infrações decorram direta e exclusivamente de dolo específico do mandatário,
preposto ou empregado contra o mandante, preponente ou empregador, a
responsabilidade será exclusiva do mandatário, preposto ou empregado. En­
xergamos claramente o caráter protetivo demonstrado.

20 REQUIÃO-1, 1995: 321 a 326.


21 "Art. 291. 'É pessoal a responsabilidade penal: I) Quanto a tôdas as infrações conceituadas por
lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercfcio regular de adminis­
tração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida
por quem de direito; II) Quanto a todas as infrações em cuja definição o dolo específico do
agente seja elementar; III) Em todos os casos em que a lei tributária determine expressamente a
responsabilidade tributária de terceiro em caráter exclusivo, ou com exclusão do direito de
regresso;'" (Fazenda, 1954: 340.) (Este inciso foi suprimido porque a comissão entendeu que
suas disposições se incluem na regra geral do artigo 164 do Projeto, que diz que: "Art. 164.
Sem prejuízo do disposto neste Título, a lei tributária poderá atribuir de modo expresso a
responsabilidade pela obrigação tributária principal a terceira pessoa, vinculada de fato ou de
direito ao respectivo fato gerador, com exclusão da responsabilidade do sujeito passivo, ou em
caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação por parte deste.
Parágrafo único: Aplica-se ao responsável tributário o disposto neste Código quanto aos
devedores solidários.") (Fazenda, 1954: 67.)
"§ 2° Excluem-se do disposto no § 1o deste artigo, quanto à responsabilidade penal do
mandante ou preponente por fato do mandatário ou preposto, os casos em que a infração seja
conseqüência direta e exclusiva de dolo específico do mandatário ou preposto contra o
mandante ou preponente." (Fazenda, 1954: 341.) (A parte final deste dispositivo abarca as
infrações decorrentes de dolo do sócio ou administrador contra a sociedade.)
N ic o l a u A . H a d d a d N eto - 3 6 3

O artigo 135, por sua vez, mantém a mesma índole. O texto de seu
caput reflete as mesmas preocupações demonstradas nos dispositivos retro
mencionados. Note-se que estabelece uma responsabilidade pessoal, ou seja,
exclusiva, a agentes que pratiquem atos com excesso de poderes ou infração
de lei, contrato social ou estatutos, atos esses que deflagrem uma obrigação
tributária que, se não fosse a existência do já apontado dolo, deveria ser das
pessoas a que estivessem ligados tais agentes. Muito relevante é a considera­
ção dos passos que influíram na criação do dispositivo. Importante porque
dirime questões várias, como a que pertine à responsabilidade subsidiária.
Clarifica-se, assim, por tudo o que foi pesquisado, que o artigo 135 não traz
hipótese de responsabilidade subsidiária da pessoa jurídica ou das demais
pessoas por ele protegidas.
Tocando nas demais pessoas protegidas pelo artigo, quando faz menção
ao artigo 134 do CTN, podemos concluir que o código ampliou a referida
assistência, o que, obviamente, não repele a já existente à sociedade comercial.
A manutenção das expressões “infração de contrato social” ou “infração de
estatutos” torna esta essa questão indiscutível. Entendemos, ainda, que a lim-
pidez de tais expressões faz desnecessário maior aprofundamento, o mesmo
valendo no que tange à expressão excesso de poderes. Claro está, ainda mais
com a regência do Código Civil de 2002, que o contrato social pode e deve
estatuir a atividade e os poderes dos sócios e administradores, que, em se afas­
tando das disposições contratuais, entram no campo de ação do tipo do artigo
135. Maiores detalhamentos sobre tais expressões podem ser obtidos nos co­
mentários que H UG O DE BRITO M ACHADO alinha sobre elas em: Co­
mentários ao Código Tributário Nacional, Artigos 96 a 138, vol. II. São Paulo:
Ed. Atlas, 2004. O que, isto sim, é dos aspectos mais discutidos no referido
artigo é a expressão infração de lei, cuja análise, nos termos aqui compassados,
acreditamos possa também trazer esclarecimentos, como veremos em seguida.
Sobre o caráter protetivo verificado, resta-nos asseverar que o vemos como
que adequado ao sistema jurídico pátrio, que tem na personalidade jurídica
da pessoa jurídica um ícone de caráter geral, necessário para a certeza das
relações. A respeito dessa harmonia com o sistema jurídico traremos mais
especificidades adiante, ao pincelarmos alguns aspectos constitucionais rele­
vantes para a constatação do alcance do artigo 135 do CTN, principalmente
no que tange à proteção à sociedade comercial.
364 - E s tu d o s so b re a H is t ó r ia d o A r t i g o 135 d o CTN...

3o) A conclusão final que enxergamos como exarada do quadro é a


inaplicação da expressão infração de lei para o inadimplemento de obriga­
ção tributária da pessoa jurídica. Já verificamos que o dolo do agente em
obter vantagem ilícita, em detrimento da pessoa a que está ligado, está pre­
sente nos dispositivos estudados - veja-se a indubitável expressão do § 2o
do artigo 171 e do caput do artigo 135. As normas afirmam que as obriga­
ções tributárias referidas devem decorrer e resultar desse ato doloso. Já pro­
curamos esclarecer a diferença existente entre a infração de lei que pode
originar a obrigação tributária e a que dela pode derivar, como é o caso da
falta de pagamento de tributo. Mas os comentários apresentados no relató­
rio de RUBENS GOM ES D E SOUZA nos trazem mais luzes.
O autor, ao explicar as infrações tributárias, nas quais, indiscutivelmente,
está o não pagamento de tributos, refere-se à escassez de produção doutrinária
da época, fazendo a seguinte afirmação, na qual evoca sua própria teorização:
“Falta, entretanto, uma análise sistemática da natureza das próprias infrações
tributárias, cuja característica conceituai parece residir na circunstância de
não configurarem um ilícito jurídico por si mesmas, senão apenas em conexão
com uma obrigação de outra natureza, a obrigação tributária principal ou
acessória (GOMES DE SOUZA, Compêndio de Legislação Tributária, 105)”22.
Muito significativa é a colocação de que as infrações tributárias não têm a
configuração de ilícito por elas mesmas, porque entendemos que dela se pode
extrair nítida distinção que o autor do anteprojeto e co-autor do projeto e do
código faz do inadimplemento tributário e da infração de lei, referenciada no
artigo 135 do CTN.
Ainda no diapasão das elucidações apresentadas no relatório do projeto,
muito pertinentes ao tema de estudo são as que o doutrinador apresenta, em
relação ao caráter objetivo e, por conseqüência, não subjetivo das infrações
tributárias: “Esta mesma conclusão, entretanto, justifica a eliminação do ele­
mento subjetivo na conceituação das infrações fiscais. Com efeito, a prática de
ação ou omissão que, não tendo conteúdo jurídico próprio, nem sendo susce­
tível de efeitos práticos outros que o descumprimento de uma obrigação legal,
justifica a presunção absoluta de que a motivação do agente tenha sido exata­
mente aquêle descumprimento”23. Sobre tal colocação, é bom que lembremos

22 Fazenda, 1954: 243 e 24 4,


23 Fazen da, 1 9 5 4 : 2 4 4 .
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 6 5

que o que marca a responsabilidade das pessoas do artigo 135 é, justamente, o


caráter subjetivo do comportamento delas, ou seja, o dolo no sentido amplo
de prejudicar, que, na didática lição de RUBENS GOMES DE SOUZA,
está ausente das infrações tributárias e, ipsofacto, ausente do inadimplemento
tributário - ordinariamente, não se deixa de pagar o tributo, visando prejudi­
car a Administração tributária ou o Estado. Lembremos a importância dessa
constatação, pois que à sociedade limitada nesta dissertação só pode ser impu­
tado o simples inadimplemento de obrigação tributária, porquanto conside­
ramos essa pessoa jurídica no que chamamos de funcionamento normal, dele
por nós excluída qualquer hipótese de atividade perniciosa da sociedade.
Entendemos, ainda, que põe termo a qualquer dúvida a elucidação que
RUBENS GOM ES D E SOUZA nos fornece quando trata do próprio arti­
go 173 do projeto, que esclarece ter se desenvolvido a partir do § 2o do artigo
291 do anteprojeto24:
“Em lugar dessa alínea III, o art. 173 reproduz disposição extraída do
§ 2o do art. 291 do Anteprojeto, visando uma delimitação necessária do
princípio da objetividade das infrações. Este, como já foi dito, inclui na
presunção do elemento intencional o próprio conhecimento da infração
pelo seu responsável. Por isso mesmo, entretanto, cumpria abrir exce­
ção para os casos em que a infração fiscal seja simples decorrência
indireta de fraude exercida pelo agente contra o responsável, o que se
configura nos casos em que o mandatário, preposto ou empregado,
exercendo atividade dolosa em proveito próprio, venha a dar causa a
infração fiscal pela qual, de outro modo, responderia a vítima do dolo e
não o seu autor intelectual. Com o dispositivo do texto, evitam-se apli­
cações excessivas do princípio da objetividade, que já tem ocorrido na
jurisprudência (ArquivoJudiciário 71/10, Revista Forense, 115/142).”25
Verificamos que este esclarecimento joga a pá de cal que faltava. A explica­
ção permite o arremate da diferenciação entre a expressão infração de lei, quando
referida à infração tributária e quando referida a infração ao ordenamento jurídi­
co. Também permite a nítida constatação da exclusividade da responsabilidade do
agente, protegendo, assim, a pessoa que responderia pela obrigação tributária em
circunstâncias em que não houvesse o ato doloso do agente.

24 Vide nota 541.


25 Fazenda, 1 9 5 4 : 2 4 5 .
366- E s tu d o s so b re a H is t ó r ia d o A r t i g o 135 d o CTN.

Nota-se, pois, que, diversamente do que apontamos em relação ao artigo


247 do anteprojeto e 171 do projeto, nada de errado existe com a literalidade
do texto do artigo 135. O que fez seu texto foi ampliar o alcance da previsão
normativa. Observe-se que o artigo 135 aborda uma situação em que o ilícito
acabou por influenciar diretamente no nascimento de uma obrigação tributá­
ria. Por isso, o artigo não permite, nem poderia permitir, a simples desconside­
ração da personalidade jurídica quando houvesse descumprimento do dever
legal de pagar tributo. Constatação em contrário atentaria contra a Teoria
Geral do Direito e contra todo o Direito.
Por tudo que estudamos e pesquisamos, verificamos que o artigo 135 do
CTN representou a progressão de um tratamento que, originalmente, se refe­
ria a crimes correlacionados à seara tributária, para abarcar também a hipótese
de ilícito que pode dar origem à obrigação tributária.
Quando da versão definitiva do Código Tributário Nacional, em 1966,
sem que houvesse alteração significativa no dispositivo, posto que não destoava
da Emenda Constitucional n° 18/65, inferimos que houve uma melhor
elaboração da norma (já como artigo 135 do código), por meio de um texto
que não somente abarcava o ilícito doloso, e.g., do mandatário contra o
mandante, mas todo o ilícito que tivesse o condão de fazer exsurgir uma
obrigação tributária. Observemos, pois, que a redação do artigo 135 conseguiu
uma coerência plena com o código porque, além da já apontada, em relação ao
dolo das infrações, logrou harmonia também em relação à indiferença entre os
ilícitos para com a obrigação tributária, que admite a presença deles no núcleo
do fato gerador do tributo.
Inúmeros são os exemplos que os fatos podem admitir para tal hipótese.
Vejamos o caso de um médico, sócio-diretor de uma clínica obstétrica
que, obviamente sem o conhecim ento dos demais sócios, esconde
abortamentos ilegais que pratica, simulando-os como serviços de curetagem.
Vemos como uma situação da qual não pode decorrer uma obrigação tributária
para a clínica, que nada tem de correlação com o fato, porque não pertence
às suas atividades sociais e porque não autorizou o ilícito. É, em verdade, o
sócio responsável pelo abortamento que deve responder pela obrigação
tributária, decorrente da pseudocuretagem. Compreendemos que esse é um
caso que também deve ser considerado como típico do artigo 135 do CTN,
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 6 7

até porque, como bem notou MARÇAL JUSTEN FILH O 26, é esse sócio
que tem relação pessoal e direta com o fato gerador, adequando-se à definição
de contribuinte do código27.
E vamos mais longe. Entendemos que, ainda que a receita obtida com a
prática ilegal tenha sido destinada à clínica, porquanto disfarçada em ativida­
de regular de curetagem, as obrigações tributárias decorrentes da aludida re­
ceita devem ser todas atribuídas ao sócio que praticou os abortamentos e os
omitiu. Evidentemente, essa posição traz implicações.
A primeira delas diz respeito à verificação da ocorrência do fato gerador.
Em nosso exemplo, o fato gerador era desconhecido da sociedade. Se, outros-
sim, ela viesse a ser fiscalizada e o fiscal observasse indícios da ocorrência do
abortamento, acreditamos que seria dele, fiscal, o dever de realizar o lança­
mento para apontar como sujeito passivo tributário o sócio aborteiro e excluir
cabalmente a pessoa jurídica da obrigação tributária, como aplicação do artigo
135 do CTN. Neste caso, todos os consectários deste lançamento deveriam
ser observados. A receita obtida com os abortamentos deve ser excluída da
sociedade, com os reflexos dessa exclusão sendo verificados em relação a todos
os tributos que tivessem considerado como fato gerador a receita indevida­
mente atribuída à pessoa jurídica.
Também estaríamos diante de uma das situações contempladas no arti­
go 165 do Código Tributário Nacional, que dispõe sobre hipóteses de repeti­
ção de indébito por parte do sujeito passivo. Assim se apresenta o dispositivo:
“Art. 165.0 sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio
protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modali­
dade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4o do artigo 162,
nos seguintes casos:
I - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior
que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza
ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;

26 JUSTEN FILH O , 1986: 297.


27 Art. 121 do CTN:
"Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou
penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o
respectivo fato gerador".
3 6 8 - E s t u d o s s o b r e a H is t ó r ia d o A r t ig o 1 3 5 d o C T N .

II - erro na edificação28do sujeito passivo, na determinação da alíquota


aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou confe­
rência de qualquer documento relativo ao pagamento;
III - reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.”
Aceitamos que em nosso exemplo podem estar presentes as hipóteses do
inciso I e do II. Caberia a repetição com base no primeiro, porque o paga­
mento derivou das circunstâncias materiais do fato que efetivamente ocorreu
e que foram descobertas posteriormente. O segundo inciso é, também, funda­
mento, porque as obrigações teriam sido pagas em flagrante erro na identifi­
cação do sujeito passivo, que, como vimos, deveria ter sido o sócio.
Não é o caso de nos determos em todas as especificidades dos consectá-
rios que o caso permitiria, pois que estes merecem, verdadeiramente, outra
dissertação. Acenamos apenas para o problema, que entendemos ser a correta
aplicação do Direito Tributário e da justiça tributária.
Retornando aos exemplos, podemos, ainda, afirmar que muitos outros
podem ser concebidos, conforme os intrincados caminhos que a práxis permi­
te vislumbrar. Ilustramos que neles se incluem a renda advinda de atividade
ilícita, a prestação de qualquer serviço ilícito, a venda de qualquer mercadoria
proibida, o pagamento de salário por atividade ilícita. No que pertine à pessoa
jurídica, o rol de hipóteses deverá abarcar todos os eventos que possibilitem o
surgimento de obrigações tributárias de atos ilícitos ou, em outras palavras,
contemplará todas as situações em que o fato gerador do tributo, que deveria
ser próprio de pessoa jurídica, advenha de ato ilícito praticado por seu admi­
nistrador ou sócio, não se cingindo, portanto, à seara comercial, apenas.
Ainda sobre os ilícitos e a obrigação tributária, lembremos que a expres­
são “infração de lei”, quando utilizada para se referir ao não pagamento de
tributo, ocorre em momento posterior à infração de lei que origina a obriga­
ção tributária. Inferência lógica é a que nota que para existir um inadimple­
mento tributário é necessário, primeiramente, o surgimento de uma obrigação
tributária. Numa tentativa didática de resumo, então, teríamos: I o) Infração
de lei; 2o) Obrigação tributária dela resultante; e 3o) Infração de lei represen­

28 E unânime em todas as publicações do CTN que consultamos a asserção de que a palavra


"edificação" foi redigida no lugar da "identificação", que dá o correto sentido ao texto.
Aliomar Baleeiro redige "identificação", de forma definitiva. (BALEEIRO, 1977: 508.)
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 6 9

tada pelo não pagamento da obrigação tributária. A literalidade do artigo 135


do CTN apresenta a primeira infração de lei. E, por tudo que vimos, uma
interpretação literal, neste caso, não destoa dos fundamentos do código, pelo
contrário, os materializa.
É nosso dever frisar que tudo o que falamos é, certamente, aplicável aos
sócios, porquanto se encontram na referência que o inciso I do artigo 135 do
CTN faz ao artigo 134. O artigo 135 dá a responsabilidade nele prevista a
todas as pessoas referenciadas no artigo 134. E nele os sócios são mencionados
no inciso VII.
É relevante também ponderar que a verificação com precisão da respon­
sabilidade tributária dos administradores e, principalmente, dos sócios, por
tudo o que tratamos, é imperiosa, principalmente diante de regras positivadas
em nosso ordenamento, como as que verificamos nos artigos 59229e 59630 do
Código de Processo Civil, que asseveram que os bens particulares dos sócios
só respondem pelas dívidas da sociedade nos casos previstos em lei. Da mesma
forma, a referência à lei se encontra no artigo 4o da Lei n° 6.830, de 22 de
setembro de 1980, a chamada Lei de Execuções Fiscais, que permite que a
execução fiscal seja promovida contra o responsável por dívidas de pessoas
jurídicas, “nos termos da lei”31.
Importa-nos, ainda, anotar uma referência ao Direito alemão. Oswaldo
Aranha, como Ministro da Fazenda que solicitara a feitura do Projeto de
Código Tributário, asseverou, na exposição de motivos do projeto, que “com
as cautelas e ressalvas decorrentes da orientação geral já indicada, a Comissão
utilizou como subsídios, em primeiro lugar a legislação tributária vigente da
União, dos Estados e dos principais Municípios; e, num segundo plano, os
códigos tributários e as leis com o caráter parcial de códigos, existentes na
legislação comparada. Dentre as leis do primeiro tipo, a primazia compete
indiscutivelmente à Reichsabgabenordnung alemã, em seu texto original de

29 "Art. 592. Ficam sujeitos à execução os bens: [...]


II - do sócio, nos termos da lei".
30 "Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão
nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir
que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade".
31 "Art. 4o - A execução fiscal poderá ser promovida contra: [...]
V - o responsável, nos termos da lei, por dívidas, tributárias ou não, de pessoas físicas ou
pessoas jurídicas de direito privado".
3 7 0 - E s t u d o s s o b r e a H is t ó r ia d o A r t ig o 1 3 5 d o C T N .

1919, anterior às alterações introduzidas sob a influência de ideologias políti­


cas”32. Essa menção já justifica nosso breve comentário sobre aquele direito
alienígena, no que pertine ao nosso tema. Contudo, a referência que a ele
fizeram alguns autores e as constatações que nossa pesquisa alinhou, reme­
tem-nos a ensejar um breve olhar sobre a questão da responsabilidade dos
administradores, como tratada atualmente naquele Direito.
O chamado Novo Código Tributário Alemão (AO 1977) trata em sua
segunda parte do que nomeia de Direito Tributário Obrigacional. Sob este
título está o § 33, que trata do contribuinte, o qual assevera que é contribuinte
quem: I o) deve imposto; 2o) é responsável pelo imposto; 3o) tem de reter e
recolher o imposto por conta de terceiro; 4o) tem de apresentar declaração tri­
butária; 5o) tem de prestar garantia; 6o) tem de manter livros e registros; e 7o)
tem de cumprir outros deveres que lhe forem impostos pelas leis tributárias33.
Assemelha-nos que do rol exposto não se pode inferir que nele estejam
os sócios de pessoas jurídicas e seus administradores. Explicamos. O segundo
enumerado é o chamado responsável pelo imposto e nele parece-nos estarem
incluídos terceiros outros, como é a menção do § 48 do referido código34. A
sétima enumeração, que fala dos que tenham a imposição de outros deveres
legais, também nos leva a concluir que é hipótese na qual não se incluem os
sócios e administradores, pois o texto que se segue no código traz tratamento
específico aos administradores.
O dispositivo seguinte, § 34, trata dos deveres dos representantes
legais e dos administradores de bens. Assevera que: I o) os representantes
legais de pessoas naturais e jurídicas; e 2o) os dirigentes de associações de
pessoas e massas patrimoniais sem personalidade jurídica devem cumprir
os respectivos deveres tributários e que devem, especialmente, fazer com
que os impostos sejam pagos com os recursos que lhes cabe administrar.
Também determina que: 3o) os membros ou associados de associações de
pessoas sem personalidade jurídica devem cumprir os mesmos deveres. E,

32 Fazenda, 1954: 13 e 14.


33 Alemanha, 1978: 15.
34 § 48 - Prestação por Intermédiode Terceiros - Responsabilidade de Terceiros:
(1) As prestações decorrentes darelação dedébito de impostopodem ser cumpridas perante as
autoridades fiscais também por intermédio de terceiros.
(2) Terceiros podem obrigar-se contratualmente para responder por prestações no sentido do
inciso I. (Alemanha, 1978: 19.)
N ic o l a u A . H a d d a d N et o - 3 7 1

finalmente, comanda que: 4o) se os administradores ou representantes le­


gais não forem os proprietários do patrimônio, os deveres tributários so­
mente serão cumpridos nos limites de administração que lhes tiver sido
atribuída35. Aqui, deve-se realçar que o texto fala apenas em dever de
cumprimento, não em responsabilidade patrimonial pessoal pelo tributo
não pago. A disposição específica acerca dos representantes, trazida a se­
guir, justamente indica este entendimento.
O referido código, ao tratar da responsabilidade dos representantes, no
§ 69, assevera que se as pessoas designadas no § 34, acima explicitadas,
tiverem agido por dolo ou culpa grave e, desse modo, tiverem violado seus
deveres tributários, então, serão responsáveis pelas pretensões fiscais36.
SZKLAROWSKY, em 1978, disse que no Direito alemão “os repre­
sentantes legais das pessoas jurídicas [...] são pessoalmente responsáveis pelas
infrações às leis fiscais”, fazendo alusão nítida ao não pagamento de tributos
pelas pessoas jurídicas37. Mas o cotejo das normas do Código Tributário Ale­
mão parece-nos impor a conclusão de que naquele país, atualmente, não há
responsabilidade imediata dos sócios e administradores das pessoas jurídicas
pelo não pagamento de tributos. Como se viu, todas as indicações são que a
responsabilidade decorre exclusivamente de dolo ou culpa grave, o que, com
nitidez, permite-nos a inferência de que não estão presentes no mero inadim­
plemento tributário, abordado nesta dissertação.
No início deste item, asseveramos que a verificação da história do artigo
135 do Código Tributário Nacional teria o escopo principal de verificar se
seus fundamentos originais permanecem válidos na atualidade. VANONI,
ao tratar da interpretação das leis tributárias, apresenta-nos, na tradução de
Rubens Gomes de Souza, considerações pertinentes:
“Para completar o trabalho orientado no sentido de esclarecer o pleno
alcance da norma, esta deve ser examinada em relação aos fatos a que
se refere, para verificar como se adapta às exigências da vida prática, e
para esclarecer a influência que a evolução das manifestações da vida
exerce sobre o conteúdo da regra de direito.

35 Alemanha, 1978; 15.


36 Alemanha, 1978: 27.
37 SZKLAROW SKY, 1978: 25.
3 7 2 - E s tu d o s so b re a H is t ó r ia d o A r t i g o 135 d o CTN.

A necessidade de levar em conta a natureza intrínseca das relações


que a norma se propõe regular manifesta-se de duas maneiras no
trabalho interpretativo.
Por um lado, a lei pode ter sido levada a adotar determinada norma de
conduta por situações de fato consideradas pela lei de certa maneira, que pos­
teriormente o intérprete verifica ser insubsistente, ou que constata apresentar
características diversas das presumidas pela lei. HECK lembra a situação aná­
loga do oficial que recebe ordem de bombardear uma posição que se supõe
ocupada pelo inimigo. Se o oficial verifica que as tropas, ao contrário, são
amigas, e que o superior que lhe deu a ordem enganou-se na sua verificação
dos fatos, ou ainda se ocorre que o inimigo abandone a posição, parece lógico
que não cumpra a ordem, por mais vivo que seja o seu sentimento de discipli­
na militar (HECK. Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz, cit., p. 202
sgs.). Igualmente o intérprete, quando verifica que os fatos não correspondem
aos pressupostos adotados pela lei, deve guiar-se pelo princípio de não aplicar
uma norma instituída em relação a determinadas necessidades, quando tais
necessidades não subsistam, ou quando assumam um alcance completamente
diverso do previsto pela lei38.
Lembremos que, em linhas gerais, destacamos do cotejo dos dispositivos
que influenciaram na criação do artigo 135 do C TN três inferências
importantes: a preservação da personalidade jurídica da pessoa jurídica, a
diferenciação entre inadimplemento tributário e infração de lei, descrita no
artigo 135 do CTN, e o caráter protetivo da referida norma em relação a
dadas pessoas, dentre elas, a sociedade limitada, abordada em nosso estudo.
Ainda observamos a presença das três. Vejamos:
Io) A pessoa jurídica e, particularmente, a sociedade limitada, é verdadeira
instituição, no mais amplo sentido de estrutura social presente e necessária para
a consecução das relações sociais. Insita à sua manutenção está o ordinário res­
peito à sua personalidade jurídica, estando, mesmo os casos de desconsideração,
muito mais próximos à manutenção do instituto do que à sua anulação, posto
que existem, eminentemente, pelo desvio de função da sociedade. A sociedade
limitada, como vimos, tem no núcleo de seu tipo a função social, que inclusive já
foi positivada pela lei civil brasileira, como também observamos.

38 F a ze n d a , 1 9 5 4 : 2 7 5 e 2 7 6 .
N ic o l a u a . H a d d a d N e t o - 3 7 3

2o) O ilícito como originador de obrigação tributária é evidência que


exsurge da norma, o que, 11per se', denota a permanência da diferenciação entre
o inadimplemento tributário e a “infração de lei” apresentada no artigo 135
do CTN.
3o) Entendemos que os moldes jurídicos positivados do Estado brasi­
leiro apresentam, de forma inegável, a proteção à sociedade empresária. Veja-
se que um dos fundamentos de nosso Estado, que aparece jungido ao
trabalho, é a livre iniciativa, cuja materialização é, sem dúvida, efetivada por
meio da sociedade empresária. Salta isto aos olhos com a redação do artigo
I o de nossa Constituição:
“Art. Io. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
IV —os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.
O mesmo há de se falar quanto à ordem econômica, na positivação cons­
titucional. Vejamos:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existên­
cia digna, conforme os ditames da justiça social, observados os se­
guintes princípios”.
Por isso, o cunho protetivo à pessoa jurídica, mais do que mantido, é
materialização da congruência da norma tributária com todo o sistema jurídi­
co positivado. Da mesma forma que outros pontos tangenciados neste traba­
lho, a questão das normas tributárias protetivas à sociedade limitada daria azo
a outra obra. Então, apenas desejamos frisar que não se pode apartar o artigo
135 do caráter protecionista à pessoa jurídica que detém e realçar que se o
verificamos antes, também o verificamos agora. Sobre ele, podemos conjectu-
rar que é provável que seja o traço mais relevante da norma referida, sobre o
qual tudo nos aponta para sua longevidade.
Dessa forma, cabe-nos concluir que:
1. O artigo 135 do CTN é dispositivo existente que pode ser apreciado
em relação ao funcionamento normal da sociedade limitada, mas como um
seu protetor, contrariamente ao uso que muitos lhe têm atribuído. Implica
em atribuição de responsabilidade ao sócio e ao administrador em casos em
que estes atuem de forma irregular.
374 - E s tu d o s so b re a H is t ó r ia d o A r t i g o 135 d o CTN.

2. A aludida irregularidade não corresponde ao inadimplemento tribu­


tário de sociedade limitada em funcionamento normal. Corresponde a atos
irregulares dos sócios e dos administradores dos quais exsurjam obrigações
tributárias. O eventual inadimplemento tributário pode ser considerado irre­
gularidade, mas é posterior ao surgimento da obrigação tributária.
3. Nas irregularidades referidas há as que se referem ao Direito de
Empresa, correspondentes ao excesso de poderes e à infração ao contrato
social, assim como, e principalmente, há as que atinem ao Direito como um
todo, consubstanciadas nas ditas “infrações de lei”, conforme é a locução do
citado artigo 135.
4. As infrações de lei significam ilícitos jungidos ao próprio fato gerador
da obrigação tributária, como a renda advinda de atividade ilícita, a prestação
de qualquer serviço ilícito, a venda de qualquer mercadoria proibida, o paga­
mento de salário por atividade ilícita.
5. Em todos os casos nos quais a obrigação tributária, que deveria ser
própria da sociedade limitada, surge de um ilícito praticado pelo sócio ou
administrador por dolo próprio, destes será a responsabilidade tributária, com
exclusão total da responsabilidade da sociedade.
6. O reconhecimento do ilícito e da conseqüente responsabilidade do
sócio ou do administrador faz parte dos deveres de ofício da Administração
tributária, correlatos ao ato de lançamento, que não foram aqui estudados,
devido à especificidade que exigem.
7. A exclusão de responsabilidade tributária da sociedade pelo ilícito
praticado pelo sócio ou administrador tem consectários diversos, que também
não foram estudados porque ensejam pesquisa específica.
8. Os fundamentos originais da norma em análise foram mantidos, deles
se destacando o caráter protetivo à sociedade. Houve, porém, ampliação do
alcance da norma do artigo 135 do CTN, também no diapasão protetivo,
para abarcar os casos de ilícitos dos quais derivem obrigação tributária.
9. O referido alcance da norma se coaduna com as demais disposições do
CTN e com as de todo o sistema jurídico pátrio, do qual ora destacamos as
disposições constitucionais que consagram a livre iniciativa como fundamen­
to do Estado e da ordem econômica.
N ic o l a u A . H a d d a d N e t o - 3 7 5

B ib lio g r a fia

ALEMANHA. Leis, decretos etc. Novo Código tributário alemão: com índices sistemático e analí­
tico. Apresentação do Professor NOGUEIRA, Ruy Barbosa, tradução de SCHMID, Alfred
J. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 1978.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
FAZENDA, Ministério da. Trabalhos da comissão especial do Código Tributário Nacional. Rio de
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JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição Passiva Tributária. Belém: CEJUP, 1986.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2000.
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REQUIAO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1995. V.I.
SCHOUERI, Luis Eduardo. Contribuição ao estudo do regimejurídico das normas tributárias indu-
toras como instrumento de intervenção sobre o domínio econômico. Tese apresentada como em
concurso de Professor Titular do Departamento de Direito Econômico e Financeiro, área de
Legislação Tributária, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: 2002.
SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Responsabilidade Tributária : dos administradores de empresa;
Execução fiscal contra o responsável tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1978.
As Espécies Tributárias e a
Classificação dos Tributos

Roberto Ferraz
Advogado e Consultor em Curitiba
Mestre em Direito Público pela UFPR
Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP
Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
R o b e r t o F erra z - 3 7 9

Inicialmente - em se tratando de um trabalho que visa compor volume


de Estudos em Homenagem ao Professor Hugo de Brito Machado - cabem,
como mínimo, breves palavras em louvor de ao menos um dos inúmeros as­
pectos admiráveis de sua querida figura.
O Professor Hugo tem a grande virtude de instigar o estudo. Com sua
figura apaixonada e generosa, abraça os argumentos com o ardor de quem conhece
a verdade; ao mesmo tempo tem a humildade de aceitar os contra-argumentos
de todos, e de mudar sua opinião sempre que se convence deles.
Há algum tempo provocou-me a reflexão sobre a verdade, dizendo: “O
que é a verdade? A verdade para uns não é a verdade para outros.” Mostrou
seu desapego, mas ao mesmo tempo a paixão com que defende seus argumen­
tos caracteriza precisamente a postura de quem está visceralmente engajado
na busca da verdade.
Como entender essa aparente contradição? Como, ainda, entender a vi­
bração do professor Hugo ao lado de seu desprendimento e compreensão para
com as opiniões divergentes da sua?
Nas lindas palavras de Santa Teresa de Ávila pode-se encontrar a solução
para o dilema: A humildade é a verdade.
O Professor Hugo de Brito Machado é um homem tão sinceramente
engajado na busca da verdade que além de entregar-se de corpo e alma nessa
tarefa está pronto a reconhecer a igualdade de condições que todos têm nessa
procura, isto é, de reconhecer-se apenas mais um nesse caminho.

1. C o lo ca çã o do pro blem a

O tema de quantas e quais sejam as espécies tributárias tem sido contro­


vertido na doutrina brasileira. Igualmente o tema de sua classificação, cuja
própria necessidade ou validade é também discutida1.
Na jurisprudência não foi diferente, havendo até decisões que reconhe­
cendo natureza tributária às contribuições a negam para determinado tipo
muito particular2.

1 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29a ed. São Paulo: Malheiros, p. 62 e ss.
2 Por ocasião do julgamento do RESP 273.674/RS o Superior Tribunal de Justiça assentou que:
"TRIBUTÁRIO - CONTRIBUIÇÃO PARA CATEGORIAS PROFISSIONAIS - NATUREZA JURÍDICA.
3 8 0 - As E sp é cie sT rib u tá ria s e a C la s s if ic a ç ã o d o s T rib u t o s

Muitos sustentaram, especialmente quando invocando Gennaro Carrió,


que não há classificações nem certas nem erradas, mas simplesmente úteis ou
inúteis. Essa afirmação, de fundo nitidamente relativista, passou a ser tida
como uma incontestável (em clara contradição com suas premissas).
O presente trabalho pretende analisar se há divisão e classificação de
tributos correta, isto é, se é possível sustentar a correção de certa ou de certas
divisões e classificações dos tributos, com exclusão de outras. Além disso, pre­
tende mostrar as conseqüências dessa(s) classificação(ões).
O estudo demonstrará, enfim, que existem sim divisões e classificações
corretas em oposição a outras que simplesmente estão erradas e que, as classifi­
cações se justificam como instrumentos imprescindíveis à correta aplicação do
sistema jurídico, especialmente no que estabelecido na Constituição Federal.

2 . A s ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS

A análise das espécies tributárias e de suas classificações é essencial à


compreensão da natureza e regime jurídico de todos os tributos e, em particu­
lar, das contribuições e dos empréstimos compulsórios3.
As opiniões nesse tema oscilam. Podem-se identificar posições tão
distintas como as de Ives Gandra da Silva Martins em “As contribuições
especiais numa divisão quinquipartida dos tributos”, de 19774, e a de Marco
Aurélio Greco em “Contribuições - uma figura sui generis” de 20005. De
destacar ainda a posição de Hugo de Brito Machado que, destacando que
muitas são as classificações possíveis, conforme o critério distintivo eleito6,

1. Doutrina e jurisprudência entendem ter natureza tributária, submetendo-se às limitações das


demais exações, as contribuições para os Conselhos Profissionais.
2. Excepciona-se apenas a O AB, por força da sua finalidade constitucional (art. 133).
3. Recurso especial improvido."
3 A classificação em Direito somente se justifica se tratar de regimes jurídicos distintos. Assim,
por exemplo, a antiga distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, existente quando da edição
do Código C ivil de 1916, deixou de ter qualquer significado quando se igualou o regime
jurídico aplicável àquelas antigas categorias. Hoje a distinção não é jurídica.
Já em matéria de tributos a classificação não é indiferente, pois a depender da espécie
tributária, têm-se diferentes regimes jurídicos, configurados pela própria Constituição.
A ideia bastante repetida de que as classificações são mais ou menos úteis, mas nunca certas
ou erradas, é desprovida de lógica e de fundamento.
4 In: SO U ZA, Hamilton Dias de;TILBERY,Henry; M ARTINS, Ives Gandra daSilva (coord.).
Comentários ao Código TributárioNacional.São Paulo: EditoraBushatsky, 1977, p. 251-69.
5 São Paulo: Dialética, 2000.
6 Curso... ob. cit., p. 65.
R o b e r t o F erra z - 3 8 1

paralelamente nega aos empréstimos compulsórios natureza tributária,


reconhecendo a estes sim uma categoria à parte7.
Tanto o entendimento que identifica nas contribuições (e nos emprésti­
mos compulsórios) figuras distintas dos impostos, taxas e contribuições de
melhoria, mas formando com elas cinco espécies tributárias, numa mesma
classificação, como o que as visualiza como uma figura à parte, com uma
classificação própria, isolada das demais espécies tributárias, está equivocado
e leva a conclusões igualmente equivocadas quanto a seus regimes jurídicos.
2.1. O erro das classificações citadas, como a de muitas outras, está em
pretender usar um único critério classificatório para tributos vistos e analisa­
dos a partir de dois critérios distintos. Praticado esse erro, qualquer classifica­
ção torna-se interminável e incoerente.
Interminável porque em se admitindo diversos critérios distintivos de es­
pécies numa mesma classificação ela torna-se inesgotável, pois são inesgotáveis
os aspectos segundo os quais se podem examinar uma determinada realidade.
Incoerente porque, em se admitindo diversos critérios distintivos de es­
pécies numa mesma classificação, ela de nada serve, pois as espécies não serão
mutuamente excludentes.
Em outras palavras, esse engano consiste em pretender utilizar diferen­
tes critérios de classificação e depois unir todas as espécies identificadas numa
só classificação (chegando a cinco ou mais espécies tributárias numa só classi­
ficação, no tema em exame); ou em pretender utilizar diferentes critérios de
classificação e depois separar cada espécie identificada em uma classificação
própria (sui generis).
2.2. O exemplo que se dá a seguir é muito simples, mas mostra bem a
confusão referida.
Podemos classificar os alunos de uma sala de aula conforme sejam torce­
dores de um ou outro time de futebol. Podemos ainda classificar os mesmos
alunos com base em outros critérios distintivos: conforme suas cidades de
origem, sua altura, seu peso, etc. O que não podemos fazer é pretender unifi­
car o resultado sob uma única classificação e contar-lhes as espécies (nem
separá-los em espécies únicas).

7 Curso... ob. cit., p. 62-3.


3 8 2 - A s E spéc ies T r ib u t á r ia s e a C la s s if ic a ç ã o d o s T r ib u t o s

Pelo primeiro critério de diferenciação e classificação (chamado em lógica


de “nota distintiva de espécies”) se chegará a que há alunos são-paulinos, fla-
menguistas, corintianos, adeticanos etc. Pelo segundo, identificam-se paulista­
nos, cariocas, curitibanos, brasilienses etc. Pelo terceiro, altos e baixos. Pelo quarto,
magros e gordos. Não haverá coincidência entre as espécies identificadas de
acordo com cada um daqueles critérios (pois são distintos), ainda que possa
haver uma tendência de maior coincidência em certas espécies identificadas em
um ou outro critério. Provavelmente os alunos torcedores do São Paulo e do
Corinthians serão predominantemente encontrados entre os paulistanos, ao passo
que os do Flamengo tenderão a verificar-se mais entre os cariocas, e assim por
diante. Porém, ainda que haja até mesmo uma tendência de coincidência entre
as diferentes espécies identificadas por diferentes critérios, dentro de um mes­
mo e único gênero (alunos), não se pode entender que cada uma daquelas espé­
cies (corintianos, gordos, altos, paulistanos, etc.) seja espécie daquele mesmo
gênero (alunos de tal turma), numa mesma e única classificação.
Não se pode pretender que os alunos sejam classificáveis como paulista­
nos, cariocas, brasilienses, flamenguistas, corintianos, atleticanos, são-pauli­
nos, altos, baixos, gordos e magros. Repetindo, não se pode pretender unificar
classificações, de um mesmo gênero, feita sob diferentes critérios, para ‘j un­
tar’ as respectivas espécies. Nem se pode fazer o mesmo e, ao final, ‘apartar’
cada um como espécie única, que esgota seu gênero.
Quando se faz a classificação, a Lógica exige que se adotem critérios
distintivos que permitam identificar espécies mutuamente excludentes, isto
é, inconfundíveis entre si —uma vez separadas pelo critério distintivo —e
guardando as características que as colocam sob o mesmo gênero.
O que não se pode fazer é classificar espécies de um mesmo gênero se­
gundo diversos critérios distintivos, e depois unir todas as espécies resultantes
como se fossem espécies daquele mesmo gênero. Essas múltiplas novas ‘espé­
cies’ são realmente espécies daquele gênero, mas não serão mutuamente exclu­
dentes (ou o serão totalmente para formar novas espécies).
É que o básico princípio de não contradição exprime que “algo não pode
ser e não ser, ao mesmo tempo, e sob um mesmo aspecto”. Portanto, algo
tomado em diferentes aspectos pode ser e não ser ao mesmo tempo.
2.3. Voltando ao problema proposto. Da mesma forma como posso ter de­
terminados alunos que são paulistanos e flamenguistas ao mesmo tempo (ainda
R o b e r to F er r a z - 3 8 3

que analisados sob aspectos diferentes), posso ter tributos que são impostos (sob
o ponto de vista da classificação segundo a hipótese de incidência) e, ao mesmo
tempo, (sob outro ponto de vista, consistente na diferente forma de atribuição de
competência legislativa, não mediante indicação da hipótese de incidência, mas da
finalidade a ser atendida) são contribuições.
A chamada contribuição social sobre o lucro, por exemplo, é - quanto à
natureza jurídica específica, verificada pelo critério diferencial da natureza da
hipótese de incidência -, um típico imposto (e sobre a renda), por não estar
vinculada a uma prestação estatal específica relativa ao contribuinte.
Analisada sob outro critério distintivo - o da norma de competência
impositiva de que faz parte essencial a vinculação do produto da arrecada­
ção -, identifica-se na mesma exação uma típica contribuição social, por
estar configurada de acordo com os pressupostos de imposição do art. 195,
que a diferenciam (parcialmente) do regime do imposto sobre a renda, colo-
cando-a, por exemplo, sob o regime o § 6o daquele artigo e afastando-a,
portanto, do de anterioridade.
Além disso, caracterizada a exigência tributária apenas como imposto,
não poderia ela ter o produto da arrecadação vinculada a órgão, fundo ou
despesa, como prevê o art. 167, inciso IV, da Constituição. E somente de sua
caracterização também como contribuição social que essa afetação da arreca­
dação é não apenas permitida, mas exigida pela Constituição.
2.4. Portanto, a necessária vinculação do produto da arrecadação, confi-
guradora principal (ao lado de outras características) da regra de competência
tributária constitucionalmente estabelecida, não caracteriza espécie (nem gê­
nero) distinta, dentro da tradicional classificação dos tributos, mas defme ou­
tro critério de classificação, não assimilável àquela.
Em termos mais diretos, o bem identificado “método de validação fina-
lística”, indicado por Marco Aurélio Greco8(utilizado pela Constituição para

8 Contribuições..., ob. cit., p. 144 (item 6.2.3), onde se lê: "Uma vez que a Constituição adota
dois critérios para atribuir competências, e estando as contribuições submetidas a um critério
de validação diferente do aplicável aos impostos, disso resulta que a contribuição não pode
ser reconduzida a impostos ou taxas. Contribuição é categoria distinta dos tributos cujas leis
instituidoras estão validadas condicionalmente".
Cfr. ainda GRECO, Marco Aurélio. In: Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. X, p. 27: "(...) podemos
identificar dois tipos de competência consagrados pela nossa Constituição Federal. Esses tipos
- uma vez que toda norma de competência é norma que serve de fundamento de validade da
norma que for editada nos termos previstos pela norma de competência - referem-se às técnicas
3 8 4 - A s E s p é c ie s T r ib u t á r ia s e a C l a s s if ic a ç ã o d o s T r ib u t o s

estabelecer competência impositiva da União relativamente aos empréstimos


compulsórios e às contribuições especiais), é outro critério de classificação dos
tributos, distinto do de hipóteses de incidência (classicamente adotado), mas
não leva nem a uma multiplicação das espécies tributárias, nem a uma singu-
larização das mesmas em gêneros próprios.
Esse também o entendimento de Roque Antonio Carrazza9, de Paulo
de Barros Carvalho10e de André Parmo Folloni11, dentre outros, ainda que
desenvolvido com pouco destaque, naqueles dois primeiros.

de validação que o Constituinte, ao editar as normas da Carta Magna escolheu para permitir a
edição de normas inferiores que comporão os vários dados a partir dos quais o cientista do
direito irá formular suas proposições".
"Nesse sentido, duas são as técnicas de validação hipoteticamente utilizáveis".
"Em primeiro lugar, a norma superior que outorga uma competência pode dar validade à norma
inferior desde que descreva certos fatos abstratamente indicados pela norma superior. Por
outro lado, a norma superior pode imunizar a inferior à impugnação (validá-la), não mais se a
norma inferior atende aos pressupostos indicados na norma superior, mas, isto sim, se uma
finalidade vier a ser atingida".
"Em outras palavras, a norma superior de competência poderá prever que as inferiores são
válidas desde que ocorram certos fatos (validação condicional) ou então desde que a finalida­
de seja aquela consagrada (validação finalfstica)".
Cfr., também ATALIBA, Geraldo. In: H ipótese de Incidência Tributária, 5a ed., São Paulo:
Malheiros, 1992, p. 170, in verbis:
"Ao assim dispor - não indicando qual a materialidade das hipóteses de incidência das demais
contribuições - a Constituição veio dar uma disciplina sui generis à matéria, deixando ao
legislador ordinário liberdade no estabelecê-la. Não está ele preso, como nos demais casos de
tributos, a fatos determinados. Essa liberdade, evidentemente, é relativa, porque os parâmetros
constitucionais gerais deverão ser respeitados em qualquer hipótese".
9 CARRAZZA, Roque Antonio. In: Curso de Direito Constitucional Tributário, 18a ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 514: "Estamos, portanto, em que estas 'contribuições' são verdadeiros
tributos (embora qualificados pela finalidade que devem alcançar). Podem, pois, revestir a
natureza jurídica de imposto ou taxa, conforme as hipóteses de incidência e bases de cálculo
que tiverem".
10 CARVALHO , Paulo de Barros. In: Curso de Direito Tributário. 17a ed. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 35: "O interesse científico dessa classificação está no seu ponto de partida: o exame
das unidades normativas, visualizadas na conjugação do suposto (hipótese de incidência),
e da base de cálculo (que está na conseqüência da norma), mantendo plena harmonia com
a diretriz constitucional que consagra a tipologia tributária no direito brasileiro. Convém
aduzir, entretanto, que a acolhemos com a seguinte latitude: os tributos podem ser vincula­
dos a uma atuação do Estado - taxas e contribuições de melhoria - e não vinculados -
impostos. As outras contribuições, por revestirem ora o caráter de tributos vinculados, ora o
de impostos, não constituem categoria à parte, pelo que hão de subsumir-se numa das
espécies enumeradas".
11 FOLLONI, André Parmo. In: Tributação sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Dialética, 2005,
p. 36 e ss. destacando-se: "Sob o ângulo da norma tributária (a relação jurídico-tributária e a
hipótese de incidência à qual é imputada) rigorosamente não há nenhuma diferença entre as
contribuições que existem no direito positivo brasileiro e os impostos. Não havendo diferença
a apontar, impossível outorgar natureza jurídica diversa. Serão, sob esse primeiro ponto de
vista, tributos com idêntica natureza jurídica. Tratemos primeiramente da hipótese e, em
seguida, do conseqüente normativo" (cit. p. 37-8).
R o b e r t o F erra z - 3 8 5

2.5. As contribuições serão ao mesmo tempo impostos, taxas ou con­


tribuições de melhoria12, submetendo-se ao regime próprio dessas figuras
tributárias, naquilo em que o regime das contribuições não seja expressa­
mente excepcionado.
Portanto, nada há de equivocado ou revogado no artigo 4o do Código
Tributário Nacional, nem na redação dada ao art. 145 da Constituição Fede­
ral (a que corresponde o art. 5o do CTN).
De fato, a doutrina tradicional espelhada tanto no texto constitucional,
em seu artigo 145, como no Código Tributário Nacional, em seus artigos 4o e
5o - de que as espécies tributárias seriam três, com impostos, taxas e
contribuições de melhoria -, tem sido questionada, sobretudo em função da
afetação do produto da arrecadação (nos empréstimos compulsórios e nas
contribuições especiais) que consta das regras definidoras dessas competências
tributárias específicas da União Federal (artigos 148 e 149 da CF).
Resumidamente, pode-se dizer que a doutrina tradicional foi questionada
porque, além do uso do critério para definir competência tributária, pela indi­
cação de hipótese de incidência, a Constituição passou a utilizar também outro
critério, o de afetação do produto da arrecadação a determinada finalidade, para
estabelecer uma competência tributária suplementar em favor da União.
Essa diferença no estabelecimento dos pressupostos de imposição das con­
tribuições e dos empréstimos compulsórios não configura espécies distintas do
imposto, da taxa e da contribuição de melhoria, que continuam sendo identifi­
cadas por suas hipóteses de incidência típicas. A classificação em espécies (do
CTN) corresponde a um determinado critério de diferenciação, o da hipótese
de incidência (art. 4o) consistente ou não numa atividade estatal específica rela­
tiva ao contribuinte (art. 16), ao passo que a identificação de contribuições e de
empréstimos compulsórios corresponde a outro critério, o da afetação do pro­
duto da arrecadação, feito pela Constituição (artigos 148 e 149). Não se pode
misturar ou confundir esses critérios, e suas respectivas classificações.

12 Roque Antonio Carrazza, em seu Curso..., ob. cit. p. 514, faz interessante observação de que, em
seu entender, revisando entendimento anterior, "as contribuições do art. 149 da CF não podem,
nem mesmo em tese, revestir a natureza de contribuição de melhoria, já que, pelas finalidades
que devem alcançar não se coadunam com a regra-matriz deste tributo (valorização imobiliária
causada por obra pública)". Nesse ponto discorda-se, pois se vislumbra a possibilidade de que
se configure intervenção no domínio econômico apoiada em contribuição de melhoria, isto é,
vinculada a obra pública que valorize imóvel. A esse respeito: Tributação Ambientalmente
Orientada e espécies tributárias no Brasil, in: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário
Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 333-353, especialmente item 5.4 e ss.
3 8 6 - A s E spéc ies T r ib u t á r ia s e a C la s s if ic a ç ã o d o s T r ib u t o s

3 . O S EMPRÉSTIMOS COMPULSÓRIOS SÃO TRIBUTOS

3.1. O argumento de que os empréstimos compulsórios não seriam


sequer tributos porque não configuram receitas definitivas, mas apenas va­
lores que transitoriamente passam pelos cofres públicos, como receita fi­
nanceira, mas não econômica13, também não resiste a uma correta classificação.
E que nesse caso o que se utiliza para isolar os empréstimos compulsórios
dos demais tributos não é uma diferente nota diferencial, mas um diferente
conceito de tributo.
Efetivamente, para a classificação adotada pelo Código Tributário
Nacional a definição de tributo é a dada por seu artigo 3o, que lhe dá nítido
caráter jurídico pois destaca o aspecto da cobrança compulsória do tributo,
deixando de lado outros aspectos também relevantes, mas que dizem respeito
mais a outras áreas como a ciência das finanças, a economia, etc.
Já os artigos 9o e 11 da Lei 4.320/64 dão tratamento aos tributos sob
outro ponto de vista, o do direito financeiro. Aliás, as definições da Lei
4.320/64 serviram de base à comissão que elaborou o CTN, mas em suas
discussões prevaleceu a ideia de dar novo tratamento ao tributo e suas
espécies dado o objetivo de servir à configuração do sistema encarregado
da cobrança plenamente vinculada do tributo14. Enfim, a Lei 4.320/64
dá uma diferente definição de tributo, pois a formula desde um ponto de
vista diferente.
Adotadas diferentes definições de tributo, não é de surpreender que um
tributo analisado à luz de uma delas (o empréstimo compulsório analisado à
luz da L. 4.320) seja visto como não assimilável às espécies de tributo formu­
ladas com base em outra (a do artigo 3o do CTN).
Ora, os empréstimos compulsórios são tributos quando considerados
à luz da definição de tributo do Código Tributário Nacional (art. 3o da Lei
5.172/66), mas nada impede que não o sejam quando analisados sob a óptica
de outras definições, que correspondem a outras ciências ou outros ramos do
Direito diferentes do Tributário, como na da Lei 4.320.

13 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29a ed. São Paulo: Malheiros, p. 65-6.
14 Vejam-se SOUSA, Rubens Comes de; ATALIBA, Geraldo; CARVALHO, Paulo de Barros. Co­
mentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: RT, 1975; e também COSTA, Alcides
Jorge. O Conceito de Tributo, Imposto e Taxa. RT 344/20.
R o b er to F erraz - 3 8 7

3.2. Verifica-se uma vez mais que pode haver um grande número de
classificações diferentes de tributo, todas elas corretas, conforme se ado­
tem diferentes definições de tributo ou ainda diferentes notas distintivas
de suas espécies.
Naturalmente essas variantes ocorrerão conforme o aspecto que se pre­
tende estudar ou destacar do tributo. Daí que Hugo de Brito Machado des­
taque que: “Do ponto de vista da Ciência das Finanças podem ser feitas diversas
classificações para os tributos”ls.
Os tributos, além de poderem ser definidos eles mesmos de acordo com
variados aspectos (da Ciência das Finanças, do Direito Financeiro, do Direito
Administrativo, do Direito Tributário, da Economia, etc.) podem ser classifica­
dos de acordo com muito variadas notas distintivas, conforme sejam, por exem­
plo: de competência federal, estadual ou municipal; reais ou pessoais;
prevalentemente fiscais ou extrafiscais; sobre a renda, o patrimônio, o consumo,
etc. Haverá tantas categorias quantos forem os aspectos que se pretenda estudar.

4 . A S CONTRIBUIÇÕES E AS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS

4. No Brasil, na análise de qualquer tributo caberá verificar que posição


encontra na classificação de acordo com a hipótese de incidência (arts. 3 a 5
do CTN) e também seu possível enquadramento na categoria dos tributos
com arrecadação afetada (arts. 148 e 149 da CF). Outras análises podem ser
feitas sob outros aspectos, mas essas duas são obrigatórias para conhecer-se o
regime jurídico tributário das exações.
A depender de sua classificação em cada uma dessas categorias é que se
terá identificado seu regime jurídico completo.
4.1. Um tributo poderá ser simplesmente taxa, como as municipais de
coleta de lixo, e submeter-se-á apenas ao regime próprio dessa espécie tribu­
tária (com base de cálculo no custo do serviço obrigatório, exigibilidade de­
pendente de efetiva existência do serviço organizado, mas não dependente de
sua efetiva fruição etc.).
Mas poderá também ser caracterizado (ao mesmo tempo, sob outro
aspecto) como contribuição, por ter sua instituição seguido norma de compe-

15 Curso..., ob. cit., p. 66.


3 8 8 - A s E spéc ies T r ib u t á r ia s e a C l a s s if ic a ç ã o d o s T r ib u t o s

tência própria dessa figura, com a afetação do produto da arrecadação defini­


da na própria atribuição de competência constitucionalmente realizada, além
de trazer ainda outras características necessárias, como, por exemplo, ser cons­
tituída no interesse de categoria profissional e como instrumento de atuação
da União na respectiva área. Seria o caso, da contribuição para o CREA -
Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, ou de qualquer outra enti­
dade federal de fiscalização de categorias profissionais.
Nessa hipótese, além do regime próprio das taxas instituídas pelo exercí­
cio do poder de polícia (no exemplo, pela fiscalização do exercício da profis­
são de engenheiro e de arquiteto), esse tributo estará também sujeito ao regime
ditado pelas peculiaridades das contribuições, notadamente a afetação de sua
arrecadação ao atendimento daquela finalidade que justificou sua instituição.
Assim, a prestação pecuniária compulsória instituída em favor do CREA
está sujeita ao regime tributário, como contribuição profissional assentada
em taxa, ficando, portanto, sua exigência limitada pelo regime das taxas e
das contribuições profissionais, cumulativamente. Os limites constitucio­
nais impostos às contribuições variam conforme sua espécie, bastando por
ora ressaltar a referibilidade da exigência ao grupo a que destinada a inter­
venção estatal.
4.2. O tributo incidente sobre o lucro das empresas configurará típico
imposto, por ter hipótese de incidência desvinculada de qualquer atividade
estatal específica relativa ao contribuinte, nos termos do art. 16 do CTN e da
clássica definição de Geraldo Ataliba.
No entanto, caso um tributo com essas mesmas características seja insti­
tuído em favor da Seguridade Social, estará configurada a existência de con­
tribuição social sobre o lucro, prevista no art. 195 da Constituição.
Nesse caso, o tributo em questão não deixa de ser imposto sobre a renda,
pois não perde nenhuma das características que nos levam a assim identificá-
lo. Apenas ganha ainda outras características mais, que nos permitem (e nos
exigem) tratá-lo de maneira parcialmente distinta dos impostos sobre a renda
em geral. Afetado ao sistema de Seguridade Social esse tributo terá anteriori-
dade de 90 dias para entrada em vigor, fugindo ao regime geral, do art. 150,
inciso III, alínea b> mas não deixará de ser tipicamente um imposto sobre a
renda, sendo necessária, para sua exigibilidade, a disponibilidade de que trata
o art. 43 do CTN, e demais dados configuradores desse imposto.
R o b e r t o F er r a z - 3 8 9

5. C o n clu sã o

5. Muitas são as possíveis classificações dos tributos. Porém, ao contrário


do que sustenta a maior parte da doutrina brasileira, essa variedade de classi­
ficações não é uma questão de opinião ou preferência e, menos ainda, de sim­
ples utilidade.
As classificações dos tributos serão corretas ou incorretas, conforme se­
jam adequadamente feitas segundo as regras da Lógica para a classificação de
gênero e espécies.
São incorretas as classificações que apontam a existência de mais de três
espécies tributárias, quando identificadas a partir de suas hipóteses de inci­
dência. Notadamente é errada a classificação que entende haver cinco espécies
tributárias, a saber, os impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribui­
ções especiais e empréstimos compulsórios. Igualmente erradas são as classifi­
cações que excluem as contribuições ou os empréstimos compulsórios do gênero
tributário para considerá-las categorias sui generis.
Os motivos dos erros dessas classificações são: a) adoção de mais de
uma definição de tributo para analisar as figuras, terminando por chegar a
que são inconciliáveis sob a mesma classificação; e b) adoção de mais de uma
nota diferencial para distinguir as espécies tributárias, terminando por
multiplicá-las indefinidamente.
Dentre as muitas classificações corretas possíveis dos tributos, duas são
obrigatórias no sistema brasileiro para que se lhes bem identifiquem os regi­
mes jurídicos correspondentes: a) segundo o fato gerador; e b) conforme se­
jam advindos de norma de competência impositiva que exige vinculação do
produto da arrecadação ou não.
Conforme essas duas classificações diferentes (pois analisam diferentes
aspectos dos tributos) todos os tributos haverão de ser classificados em duas
diferentes categorias.
Primeiro, serão impostos, taxas ou contribuição de melhoria, conforme
seus fatos geradores.
Segundo, serão contribuições especiais ou empréstimos compulsórios caso
criados com base em norma de competência que lhes vincule o produto da
arrecadação (arts. 148 e 149 da CF); ou serão desvinculados nos demais casos,
em que criados com base em norma de competência que lhes define a hipóte­
se de incidência.
3 9 0 - A s E s p é c ie s T r ib u t á r ia s e a C la s s if ic a ç ã o d o s T r ib u t o s

Todos os tributos haverão de ser classificados simultaneamente em ambas


essas classificações para que se conheça com precisão seus regimes jurídicos.
Assim, por exemplo, o tributo instituído com base no art. 195 da CF
incidente sobre o lucro das empresas será, ao mesmo tempo, mas sob as­
pectos diferentes classificado em duas categorias: a de imposto, guardan­
do-lhe todas as características e seu regime jurídico integral, salvo no que
excepcionado expressamente (como a anterioridade ou a vedação à vincula-
ção do produto da arrecadação) pelo regime das contribuições em que se
classifica igualmente. Já o empréstimo compulsório que vise atender cala­
midade pública, além de empréstimo porque constituído de acordo com a
norma de competência do art. 148 da CF, será imposto se, ainda por exem­
plo, exigido com base em rendimentos financeiros. O imposto sobre a ren­
da, instituído com base no art. 153 da CF será imposto na classificação
segundo a hipótese de incidência e não afetado, quando analisado à luz da
norma de competência que autoriza sua instituição.
Essa é a forma correta de se identificar espécies tributárias e de clas-
sificá-las, e que permite sejam adequadamente aplicados seus regimes ju­
rídicos específicos.
3) Tributação
Internacional
r'\-
Interpretação dos
Tratados contra a Dupla
Tributação Internacional
Estudo em Homenagem a
Hugo de Brito Machado

Igor Mauler Santiago


Mestre e Doutor em Direito Tributário pela UFMG. Advogado.
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 3 9 5

1 . M é t o d o s d e in t e r p r e t a ç ã o d a s c o n v e n ç õ e s c o n t r a a
DUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL

E intuitivo que qualquer tratado só atinge completamente os seus fins se


for compreendido de maneira uniforme pelas partes. A tal desiderato se vol­
tam os arts. 31 e 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
(doravante, CVDT)1, que, constituindo mera consolidação do costume inter­
nacional na matéria, orientam a exegese inclusive de tratados anteriores à Con­
venção e são observados mesmo por países que não a ratificaram2, caso do
Brasil, o que justifica o seu estudo nesta sede3.
Afirma REZEK4que os dispositivos, até porque muito mais voltados à
determinação do objeto do que dos critérios da interpretação, não exaurem

1 "Art. 31. Regra geral de interpretação.


1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum dos termos do
tratado em seu contexto e à luz de seu objeto e finalidade.
2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreende, além do texto, seu
preâmbulo e anexos:
a) qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes por ocasião da conclu­
são do tratado;
b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes por ocasião da conclusão do
tratado e aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao tratado;
3. Será levado em consideração, juntamente com o contexto:
a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo à interpretação do tratado ou à aplicação
de suas disposições;
b) qualquer prática seguida posteriormente na aplicação do tratado pela qual se estabeleça o
acordo das partes relativo à sua interpretação;
c) qualquer regra pertinente de direito internacional aplicável às relações entre as partes.
4. Um termo será entendido em sentido especial se estiver estabelecido que essa era a intenção
das partes.
Art. 32. Meios suplementares de interpretação.
Pode-se recorrer a meios suplementares de interpretação, em particular aos trabalhos prepara­
tórios do tratado e às circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar o sentido resultante
da aplicação do artigo 31 ou de determinar o sentido quando a interpretação de conformidade
com o artigo 31:
a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro;
b) conduz a um resultado que é manifestamente absurdo ou desarrazoado."
O art. 33 da CVDT, também relacionado com o tema, cuida exclusivamente das formas de
superação das disparidades entre versões autênticas em idiomas diversos de um mesmo trata­
do, não interessando para o presente estudo.
2 Nesse sentido, DIHN, DAILLIER e PELLET (1999, p. 242), VO G EL e PROKISCH (1993, p. 66),
BORRÁS RODRfGUEZ (1979, p. 65), XAVIER (2002, p. 156-157), citando BAKER, e SINCLAIR
(In: AVERY JONES, SINCLAIR, VAN RAAD, VO GEL e WARD, 1986, p. 75).
3 PARAÍSO ROCHA (1993, p. 254) afirma, entretanto, que a C V D T não é considerada no Brasil
como direito internacional consuetudinário, não sendo aplicad a na prática. Pesquisa
jurisprudencial que empreendemos nos TRF's, no STJ e no STF confirma a assertiva, sendo de
notar que quase todas as menções à CVDT fazem-se, não para aplicar, mas para excluir as suas
normas, por não ter sido ratificada pelo País.
4 1984, p. 452 e 455-456.
3 9 6 - I n ter p r et a ç ã o d o s T r a ta d o s c o n t r a a D u p la T r ib u t a ç ã o I n t er n a c io n a l

estes últimos, não referindo, entre outros, o princípio do efeito útil, segundo o
qual o tratado não contém disposições inúteis, e a regra contra proferentem,
que determina a interpretação contra a parte que a sugeriu ou redigiu de
qualquer disposição convencional obscura ou ambígua5.
De todo modo, deixam claro que o ponto de partida da interpretação é o
texto do tratado (acrescido de “avenças complementares, ainda que não escritas”6,
contemporâneas ou subsequentes à sua celebração —art. 31, alíneas 2 e 3) e que o
objetivo final do processo é a elucidação de seu conteúdo normativo, e não da
suposta vontade recôndita das partes7. Isso não exclui, na linha do art. 32, a per-
quirição subjetiva e a histórica (trabalhos preparatórios, v.g.), úteis para confirmar
a conclusão obtida com base no contexto ou para esclarecê-lo, nas circunstâncias
excepcionais de este ser obscuro ou conduzir a resultado absurdo.
VOGEL e PROKISCH8ressaltam que a CVDT não distingue para
fins de interpretação entre tratados-leis (que editam regras jurídicas válidas
pro futuro) e tratados-con tratos (que instrumentalizam operações jurídicas),
não predicando sequer para estes últimos a exegese voluntarista aplicável aos
contratos de Direito Privado9. Segundo os Autores, o afastamento desse mé­
todo é tanto mais aconselhável para as convenções contra a dupla tributação
internacional (que incluem entre os tratados-contratos10) quanto se recorda
que não criam direitos e deveres só para os Estados-partes, mas também para
os particulares, assemelhando-se às leis, e que são cada vez mais modelados
segundo as prescrições da OCDE ou da ONU, o que lhes retira em grande
medida o caráter de ajustes recíprocos negociados caso a caso.

5 Essas regras são também referidas por MELLO (1994, vol. 1, p. 216). Para DIHN, DAILLIER e
PELLET, a regra do efeito útil está referida de forma implícita na menção do art. 31(1) da CVDT
ao objeto e ao fim do tratado.
6 A expressão é de REZEK (1984, p. 454).
7 Nessa linha, REZEK (1984, p. 454) e VO GEL e PROKISCH (1993, p. 73). DIHN, DAILLIER e
PELLET (1999, p. 237-238), apesar de fixarem como objetivo da interpretação a averiguação
da vontade das partes, sustentam que esta vem expressa no contexto do tratado, ressaltando,
ademais, que os trabalhos preparatórios têm pouco valor probante, por serem "caóticos" e em
regra "confidenciais". Em sentido contrário parece ir MELLO (1994, vol. 1, p. 215), ao afirmar
que o fim da interpretação é "verificar qual a verdadeira intenção dos contratantes".
8 1993, p. 67-68.
9 Até porque, acrescentamos, a distinção "vem padecendo de uma incessante perda deprestí­
gio", devida, entre outras razões, pela inexistência de tratados contratuais em forma pura, dado
o caráter normativo de toda avença (REZEK, 2002, p. 28-29).
10 A nosso ver sem razão, dado o evidente caráter normativo destas. XAVIER (2002, p. 125) e
G O D Ó I (2002, p. 1004), apesar de negarem importância à distinção para fins de sua suprema­
cia sobre a lei interna, também as classificam como tratados-leis. Na mesma linha vai a
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 3 9 7

Indagação relevante a respeito dos tratados tributários é se devem rece­


ber interpretação meramente literal ou se comportam a utilização dos demais
critérios hermenêuticos (e, em especial, do critério teleológico).
BAUMGARTNER11, “em prol da liberdade fiscal dos Estados-partes”,
advoga a primeira alternativa, partindo do princípio de que as restrições à
soberania fiscal devem ser expressas12. Desse modo, prossegue, a falta de regu­
lamentação de um determinado ponto deve ser tomada como indício de au­
sência de vontade negociai das partes a seu respeito, não se podendo
tecnicamente falar em lacunas nas convenções tributárias.
Opinião semelhante é sustentada por VOGEL e PROKISCH13, que
partem de uma crítica genérica à alusão do art. 31, alínea 1, da CVDT à
finalidade do tratado. Confundindo-se com a vontade das partes, dizem, cuja
obtenção constitui o objetivo final do processo interpretativo, não pode, por
isso mesmo, ser um dos métodos deste. Daí concluem não ser legítimo o afas­
tamento da dupla tributação em hipóteses não previstas no tratado.
De outro lado, M ICH EL14, mesmo admitindo não existir um princípio
geral impeditivo da dupla tributação internacional, defende a possibilidade
de interpretação ampla dos tratados pelos juizes nacionais, desde que adstrita
aos seus escopos objetivo e subjetivo (impostos e pessoas contempladas), so­
bretudo em caso de alteração subsequente da legislação interna.
TORRES15também defende que a interpretação dos tratados contra a
dupla tributação internacional deve ser generalizante e abrangente, “para uma
melhor congruência com os ordenamentos internos e a realidade cambiantè\
O Conseil d ’É tat francês, conquanto se diga prioritariamente vincu­
lado pela letra do tratado, não deixa de perquirir os seus fins, mormente
por meio da análise dos Comentários, e de esforçar-se para dotar as suas

jurisprudência do STJ, que daí retira a sua não submissão ao art. 98 do CTN (1a Turma, REsp.
n° 37.065/PR, Rel. Min. DEM ÓCRITO REINALDO, DJ 21.02.94), como também fez o Min.
CORDEIRO CERRA no RE n° 80.004/SE (Pleno, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQ UERQ UE, maio­
ria, DJ 29.12.77, p. 9.433).
11 1951, p. 77-78 e 81.
12 A noção é também referida por REZEK (1994, p. 455), cuidando dos tratados em geral e
fazendo menção às cláusulas que importem limitação à soberania ou submissão a juízo arbitrai
ou permanente. Também MELLO (1994, vol. 1, p. 216) a menciona.
13 1993, p. 72.
14 1951, p. 13-14 e 17.
15 2001, p. 646.
3 9 8 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra ta d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n ter n a c io n a l

decisões de sistematicidade (que extrai das —ou antes infunde às —con­


venções que interpreta)16.
Quer parecer-nos que haja mais concordância do que divergência nas
opiniões mencionadas. Deveras, todos estão de acordo em que o intérprete
não pode estender os benefícios do tratado a pessoas ou situações nele não
contempladas, conclusão a que nos alinhamos sem dificuldade. Já não nos
parece necessário (e sequer possível) aderir à premissa de que a extraem
V O G E L e P R O K IC S H , a qual, levada ao extrem o, im pediria a
consideração teleológica de todo texto normativo, tida por LARENZ como
imprescindível —ao lado das abordagens literal, contextual (ou sistemática)
e histórica —“para que o resultado da interpretação deva poder impor a
pretensão de correção (no sentido de um enunciado adequado)”17.
No caso das convenções tributárias, o intérprete se aterá aos limites de
suas atribuições, não descambando para a criação do direito, se tiver em mente
que a finalidade daquelas é evitar a dupla tributação e a dupla não tributação
nas hipóteses e para as pessoas nelas contempladas (e não em todas as situa­
ções tributáveis em que tenham interesse comum os Estados-contratantes).
Dentro desses rígidos limites, tem não somente a faculdade, mas também o
dever, de dar preferência, entre diversas leituras possíveis, àquela que melhor
realize os objetivos do tratado (tais como nele inscritos, e não como presumi­
velmente concebidos pelos seus negociadores).
Tal atitude, ver-se-á adiante quanto ao problema das qualificações, é de
fundamental importância para combater o solipsismo a que podem tender os
fiscos nacionais, premidos por respeitáveis necessidades arrecadatórias, e cujo
resultado é uma virtual anulação, ainda que com base em argumentos juridi­
camente sustentáveis (exegeses pro domo sua), dos compromissos assumidos
por seus Estados na cena internacional.
Outra técnica - a nosso aviso bem menos legitimada pela CVDT do que
a exegese finalística - de que a doutrina especializada lança mão, na tentativa
de evitar os inconvenientes da aplicação unilateral (i.e., pelo órgãos de jurisdi­

16 G O U TH IÈRE (2001, p. 157).


17 1997, p. 450. Tratando do que chama critérios teleológicos-objectivos da interpretação, afirma
o Autor que "o intérprete há-de, portanto, dar preferência, nos quadros do sentido literal
possível e da cadeia de significação (do contexto), à interpretação por meio da qual se evite uma
contradição de valoração adentro do ordenamento jurídico" (1997, p. 487).
Ig o r M a u l e r S a n t ia g o - 3 9 9

ção de cada Estado) das convenções tributárias, é a ampliação do sentido do


termo contexto, para os fins do art. 31, alínea 1, da Convenção de Viena, no
que se refere a elas.
XAVIER18, esteira dos Comentários da OCD E ao art. 3, alínea 2, do
Modelo/IRC19, inclui no contexto a intenção das partes no momento da assi­
natura do acordo20e o significado dado aos termos convencionais pela legisla­
ção do outro Estado-contratante. Não vai ao ponto, porém, de atribuir idêntico
status aos próprios Comentários, especialmente para os países que não inte­
gram a organização21.
AVERY JONES22também segue os Comentários. A diferença23está em
que os considera, eles mesmos, integrantes do contexto, quer para os países
membros da OCDE, quer para os não membros que, como permitido pela
organização nos últimos tempos, manifestam as suas restrições quanto a eles.
Na visão do Autor, os Comentários vigentes ao tempo da celebração do trata­
do, ou são um acordo no mesmo momento feito pelas partes (CVDT, art. 31,
alínea 2, letra a), ou são a forma pela qual estas definem o sentido especial que
querem dar aos termos nele empregados (CVDT, art. 31, alínea 4). Num e
noutro caso, naturalmente, ficam ressalvadas as objeções que os Estados ha­
jam exteriorizado na forma devida.
Conquanto continue a defender uma concepção larga do contexto das
convenções tributárias - indo mesmo além da OCDE, para nele incluir as
legislações relevantes de ambos os Estados-partes —VOGEL reconsiderou há
pouco a sua opinião anterior quanto aos Comentários.

18 2002, p. 160.
19 "12. (...) The context is determined in particular by the intentíon o f the Contracting States when
signing the Convention as well as the meaning given to the term in question in the legislation of
the other Contracting State (an implicit reference to the principie o f reciprocity on wich the
Convention is based)." (2003, p. 76)
20 O que conduz a uma exegese voluntarista, sendo - aqui, sim, a nosso aviso - aplicável a crítica
de VO G EL e PROKISCH referida acima no texto.
21 Interessante notar que ospróprios Comentários não se arrogam esse status.No item 29 da sua
introdução, registra aO CDE que“although the Commentariesarenot designed to be annexed
in any manner to the conventions signed by Member countries, which unlike the M odel are
legally binding international Instruments, they can nevertheíess be o f great assistance in the
application and interpretation o f the conventions and, in particular, in the settlement o f any
disputes" (2003, p. 14-15).
22 1993, p. 609-610.
23 2002, p. 102.
4 0 0 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ratad o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n t er n a c io n a l

Abandonando posição antes defendida individualmente e em conjunto


com PROKISCH24—no sentido de que integrariam o contexto dos tratados
firmados pelos membros da OCDE que não lhes tivessem oposto ressalvas,
dada a resolução do Conselho da organização que lhes determina adotarem os
modelos em suas negociações - sustenta agora o Autor25que a primeira alterna­
tiva proposta por AVERY JONES (com base no art. 31, alínea 2, letra a, da
CVDT) exigiria que os integrantes do Comitê Fiscal da OCDE agissem na
condição de plenipotenciários dos Estados ali presentes, “o que seria uma inter­
pretação ousada” e não dispensaria a submissão dos Comentários ao crivo parla­
mentar. Opta, pois, pela segunda solução (estribada no art. 31, 4, da CVDT),
esclarecendo que só vale para a versão dos Comentários em vigor quando da
assinatura do tratado e que só cobre os membros da OCDE que não lhes te­
nham oposto “qualquer reserva” (mais apropriado seria, ao nosso ver, excluir para
cada Estado somente o sentido especial atingido por suas objeções).
Para os Estados não-membros da organização que negociam as suas con­
venções a partir dos modelos (caso do Brasil), parece-nos mantida a sua tese,
expressa no artigo conjunto com PROKISCH26, de que constituem não mais
do que material preliminar, no sentido do art. 32 da CVDT.
GOUTHIÈRE27adota uma atitude ainda mais restritiva em relação aos
Comentários: afirmando que em diversos casos vão além do texto, na tentativa
de “criar direito em vez de o explicitar”, reserva-lhes simples status de traba­
lhos preparatórios, mesmo para os países integrantes da OCDE.
De uma ou de outra maneira, a verdade é que os Comentários têm gozado
de prestígio nos tribunais dos países-membros da OCDE. Reportam VOGEL
e PROKISCH28julgamentos proferidos nos EUA, na Áustria e na Alemanha
em que foram invocados para interpretar tratados celebrados antes mesmo da
edição dos modelos. AVERY JONES29, que relata casos similares ocorridos
nos EUA, no Canadá e na Austrália, defende que os Com entários
supervenientes sejam vistos como acordo posterior entre as partes relativo à
interpretação do tratado, com status idêntico ao do contexto (CVDT, art. 31,

24 VO GEL (1997, p. 215), V O G EL e PROKISCH (1993, p. 64-65).


25 2003, p. 967.
26 V O G EL ePROKISCH (1993, p. 64-66).
27 1999, p. 153.
28 1993, p. 65.
29 2002, p. 103.
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 0 1

alínea 3, letra a). A proposta esbarra nas mesmas censuras expressas por VOGEL
quanto à versão coetânea à assinatura do tratado, aqui agravadas pelo fato de
que os novos Comentários, obviamente, sequer poderiam ter sido levados em
conta pelo Legislativo ao tempo do referendo.
GOUTHIÈRE30informa que a retroatividade em exame é rejeitada pelo
Conseil dE tat francês.
VOGEL31tampouco a aplaude, defendendo que o novo texto seja aco­
lhido apenas como manifestação de opinião do Comitê Fiscal da OCDE, sem
qualquer efeito vinculante em relação aos tratados anteriores.
A retroação de novos Comentários, quando não devidos a alterações
substanciais no texto do dispositivo a que se referem, é recomendada pela
OCD E nos §§ 35 e 36 da Introdução aos Comentários, sob a justificativa
de que “they reflect the consensus o f the OECD Member countries as to theproper
interpretation o f existingprovisions and their application to specific situations”32.
Fica por definir o que seja uma alteração substantiva.
Ressalvando as cautelas que se deve ter na matéria, admitem ainda VOGEL
e PROKISCH a existência de um contexto entre diferentes tratados tributários,
mesmo que celebrados com países diferentes33.
Defendem, por fim, que as autoridades administrativas ou judiciais de
um Estado-parte levem em consideração as decisões tomadas pelos fiscos ou
tribunais do outro, só se afastando delas com apoio em fundamentação explí­
cita e convincente. Referem exemplos dessa prática por parte de cortes neoze­
landesas, canadenses e da Suprema Corte americana34.
Na forma da CVDT, devem ser levados em conta, juntamente com o
contexto, os acordos interpretativos celebrados entre os Estados-partes ao ter­
mo de um procedimento amigável, nos termos do art. 25, alíneas 1, 2 e 3 (Ia
frase), do Modelo da OCDE/IRC35.

30 2001, p. 153.
31 2003, p. 968-970.
32 2003, p. 16.
33 1993, p. 70. G O U TH IÈR E (2001, p. 152) também alude a uma "m éthode comparative",
consistente na comparação de diferentes convenções com vistas ao esclarecimento de estipu-
lações obscuras. No mesmo sentido, ainda, TÔRRES (2001, p. 653).
34 1993, p. 63-64.
35 "Article 25. Mutual agreement procedure.
1. Where a person considers that the actions o f one or both o f the Contracting States result or
4 0 2 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra ta d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n ter n a c io n a l

Tais acordos, para os quais não se cogita de referendo parlamentar, ou


bem veiculam interpretação autêntica do tratado, como predica o art. 31, alí­
nea 3, letra a, da CVDT e aceita REZEK36, ou quando nada constituem
prática comum posterior à assinatura, na forma do art. 31, alínea 3, letra b, da
Convenção de Viena.
A sua vinculatividade sobre os juizes internos é, entretanto, altamente
questionável no Direito Comparado, ficando a depender do Direito Consti­
tucional positivo de cada país.
Cuidemos agora do problema logicamente anterior das qualificações, de
longe o ponto mais polêmico no estudo da interpretação dos tratados contra a
dupla tributação internacional.

2 . O PROBLEMA DAS QUALIFICAÇÕES

2.1 . A pr esen ta ç ã o e d e f in iç õ e s

Sendo o Direito Tributário matéria especializada, parece evidente que os


termos de um tratado contra a dupla tributação internacional devem, sempre que
possível, ser tomados em sua acepção técnica (CVDT, art. 31, alínea 4), e não no
sentido que lhes atribua a linguagem comum (CVDT, art. 31, alínea 1).

will result for him in taxation not in accordance with the provisions o f this Convention, he may,
irrespective o f the remedies provided by the domestic law o f those States, present his case to the
com petert authority o f the Contracting State o f which he is a residert or, if his case comes under
paragraph 1 o f Article 24 [non-discrimination], to that o f the Contracting State o f which he is a
national. The case must be presented within three years from the first notification o f the action
resulting in taxation not in accordance with the provisions o f the Convention.
2. The competent authority shall endeavour, if the objection appears to it to be justified and if
it is not itself able to arrive at a satisfactory soiution, to resolve the case by mutual agreement
with the competent authority o f the other Contracting State, with a view to the avoidance o f
taxation which is not in accordance with the Convention. Any agreement reached shall be
implemented notwithstanding any time limits in the domestic law o f the Contracting States.
3. The competent authorities o f the Contracting States shall endeavour to resolve by mutual
agreement any difficulties or doubts arising as to the interpretation or application ofthe Convention.
They may also consult together for the elimination o f double taxation in cases not provided for
in the Convention.
4. The com petent authorities o f the Contracting States may communicate with each other
directly, including through a joint commission consisting o f themselves or their representatives,
for the purpose o f reaching an agreement in the sense o f the preceeding paragraphs."
36 1984, p. 446-448. O Autor exige o referendo congressual, todavia, para a nem sempre
facilmente distinguível alteração do tratado - caso de alteração é, v.g., o previsto no art. 25,
alínea 3, 2a frase, dos Modelos da OCDE.
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 0 3

A questão está em saber de onde se inferirá esse sentido técnico: do pró­


prio tratado ou da lei interna dos Estados-partes, à qual os Modelos da OCDE
fazem freqüentes remissões, explícitas ou implícitas. Na hipótese de reenvio,
importa ainda determinar a qual dos dois direitos em causa se há de recorrer.
Exemplos de reenvio explícito, que TÔRRES37chama de integrativo,
são o do art. 4, alínea 1, de ambos os Modelos da OCD E38e o do art. 10,
alínea 3, do Modelo/IRC39.
Reenvio implícito, que TÔRRES40designa como interpretativo, dá-se
sempre que a análise do texto e do contexto da convenção não baste para o
esclarecimento do significado de um termo por esta empregado. O impasse se
resolve pela adoção do sentido que aquele tenha nas leis do Estado que aplica
o tratado (e, preferencialmente, nas leis fiscais relativas ao tributo em ques­
tão), a teor do art. 3, alínea 2, dos Modelos da OCDE41.
O prejuízo que esses reenvios, e sobretudo o interpretativo, trazem na
busca de uma exegese comum para as convenções é evidente, visto que em
princípio, as autoridades de um Estado não se sujeitam ao direito do outro (e,
pois, tampouco ao enquadramento a partir dele feito), o que pode conduzir a
situações de dupla tributação ou dupla não tributação.

37 2001, p. 648.
38 "Article 4. Resident.
1. For the purposes o f this Convention, the term 'resident o f a Contracting State' means any
person who, under the laws o f that State, is liable to tax therein by reason o f his domicile,
residence, place o f management or any other críterion o f a similar nature, and aiso includes that
State and any political subdivision or local authority thereof. The term, however, does not
include any person who is liable to tax in that State in respect only o f income from sources in that
State or capital situated therein."
"Article 4. Domicile fiscal.
1. A u sens de Ia p resen te con ven tion , l'expression 'personne d om iciliée dans un État
contractant'désigne toute personne dont Ia succession ou Ia donation est, en vertu de Ia
législation de cet État. soumise à 1'impôt dans ce État en raison de son domicile, de sa résidence,
de son siège de direction ou de tout autre critère de nature analogue. Toutefois, cette expression
ne comprend pas les personnes dont Ia succession ou Ia donation n'est soumise à l'impôt dans
cet État que pour les biens qui y sont situés."
39 "Article 10, paragraph 3. The term 'dividends' as used inthis Article means income from shares,
'jouissance' shares or 'juissance' rights, mining shares, founder's shares or other rights, not being
debt-claims, participating in profits, as well as income from other corporate rights which is
subjected to the same taxation treatment as income from shares by the laws o f the State o f which
the companv makine the distribution is a resident."
40 2001, p. 644.
41 "Article 3, paragraph 2. As regards the application o f theConvention at any time by a Contracting
State, any term not defined therein shall, unless the context otherwise requires, have the meaning
that it has at that tim e u n d er the la w o f that State fo r the p u rp o se s o f the taxes
4 0 4 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra ta d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n t er n a c io n a l

Para minorar tais desencontros, registram VOGEL e PROKISCH42


que alguns tratados têm evitado referências à legislação interna, definindo
autonomamente os termos mais relevantes43ou fixando regras para a sua pró­
pria interpretação que limitem o recurso às leis domésticas.
O Tratado Alemanha-Suécia de 1992, v.g., inverte a regra do artigo 3,
alínea 2, do Modelo/IRC, determinando que a referência ao direito interno
só se fará quando o contexto o exigir e as autoridades não conseguirem chegar
a um acordo no âmbito de um procedimento amigável44.
Entretanto, nem mesmo a definição autônoma dos termos no texto ou
no contexto do tratado basta para evitar os conflitos. A uma porque a dúvida
pode estar na exata configuração dos fatos. A duas porque, evidentemente,
também as definições autônomas estão sujeitas a interpretação, que não dis­
pensará o reenvio à lexfori sempre que o contexto não ofereça elementos bas­
tantes. Noutras palavras, é apenas de grau a diferença existente entre as
expressões não definidas, de um lado, e as autonomamente definidas, de ou­
tro, já que estas últimas o são forçosamente com o emprego de termos a sua
vez não definidos na convenção, o que torna inevitável um certo nível de
remissão ao direito interno45.

to which the Convention applies, any meaning under the applicable tax laws o f that State
prevailing over a meaning given to the term under other laws o f that State."
"Article 3, alinéa 2. Pour l'application de la Convention par un État contractant, toute expression
qui n'y est pas définie a le sens que lui attribue le droit de cet Etat concernant les impôts
auxquels s'applique la Convention, à moins que le contexte n'exige une interprétation différente."
(OCDE/SD)
42 1993, p. 75.
43 Como fazem ambos os Modelos da O CDE quanto a estabelecimento permanente (art. 5 do
Modelo/IRC e art. 6 do Modelo/SD) e faz o Modelo/IRC relativamente a juros (art. 11, alínea 3),
royalties (art. 12, alínea 2) e diversas outras expressões.
Exemplo de combinação das técnicas de reenvio integrativo e definição autônoma é o art. 6,
alínea 2, do Modelo/IRC, segundo o qual:
"Article 6, paragraph 2. The term 'immovable p rop erty' shall have the meaning which it has
under the law o fth e Contracting State in which the property in question is situated. The term
shall in any case include property accessory to immovable property, livestock and equipment
used in agriculture and forestry, rights to which the provisions o f general law respecting
landed property apply, usufruct o f immovable p roperty and rights to variable or fixed payments
as consideration for the working of, or the right to work, mineral deposits, sources and other
natural resources; ships, boats and aircraft shall not be regarded as immovable property"
44 A informação é de VO G EL (1997, p. 209).
45 A assertiva é enunciada também por TÔRRES (2001, p. 647-648), que, entretanto, não a leva
ao extremo, admitindo a existência de expressões "cujo conteúdo é captável sem a necessida­
de de qualquer reenvio".
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 0 5

Figure-se - numa simplificação do sempre citado caso Pierre Boulez, pas­


sado entre os EUA e a Alemanha46—que um músico foi contratado para
fazer, fora de seu país, um concerto do qual resultará um disco. A paga que
recebe pode ser enquadrada como remuneração de serviço independente, tri­
butável apenas no Estado da fonte47, posição dos EUA, como royalty, tributá­
vel apenas no Estado da residência (Modelo/IRC, art. 12, alínea l 48), posição
da Alemanha, ou ainda - numa terceira possibilidade não invocada por qual­
quer dos países envolvidos no caso concreto - como rendimento de artista,
tributável em ambos os Estados (Modelo/IRC, art. 17, alínea l 49), a depen­
der da visão que as autoridades de cada país tenham das definições autônomas
constantes do tratado.
No caso concreto, o maestro - que residia na Alemanha e atuou nos
EUA —ficou irremediavelmente sujeito à dupla tributação.
É a dessintonias como a descrita no exemplo acima, decorrentes seja da
disparidade de visões sobre uma definição convencional autônoma, seja da
diversidade dos direitos internos a que o tratado remete, que a doutrina reser­
va o epíteto de conflitos de qualificação.
O acerto da designação - oriunda do Direito Internacional Privado -
não é indisputado na doutrina tributária.

46 Descrito em detalhe por W ARD (In: AVERY JONES, SINCLAIR, VAN RAAD, VO GEL e WARD,
1986, p. 77-78).
47 O art. 14, que previa tal categoria de rendimento, foi suprimido do Modelo/IRC, tendo em vista
as dificuldades interpretativas que ocasionava. Entretanto, disposições nele baseadas encon-
tram-se em diversas convenções ainda em vigor, como aquela que vincula o Brasil e a Alema­
nha, referendada pelo Decreto Legislativo n° 72/75 e promulgada pelo Decreto n° 76.988/76.
É ver a sua redação:
"Artigo 14. Profissões Independentes.
1. Os rendimentos que um residente de um Estado Contratante obtenha pelo exercício de uma
profissão liberal ou de outras atividades independentes de caráter análogo só são tributáveis
nesse Estado, a não ser que o pagamento desses serviços e atividades caiba a um estabeleci­
mento permanente situado no outro Estado Contratante ou a uma sociedade residente desse
outro Estado. Nesse caso, esses rendimentos são tributáveis nesse outro Estado.
2. A expressão 'profissão liberal' abrange, em especial, as atividades independentes de caráter
científico, técnico, literário, artístico, educativo e pedagógico, bem como as atividades inde­
pendentes de médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, dentistas e contadores."
48 "Art. 12, paragraph 1. Royalties arising in a Contracting State and beneficiaily owned by a
resident of the other Contracting State shall be taxable only in that other State."
49 "Art. 17, paragraph 1. Notwithstanding the provisions of Articles 7 and 15, income derived by
a resident of a Contracting State as an entertainer, such as a theatre, motion picture, radio or
television artist, or a musician, or as a sportsman, from his personal activities as such exercised
in the other Contracting State, may be taxed in that other State."
4 0 6 - I n t e r p r e t a ç ã o d o s T r a t á d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç a o I n t er n a c io n a l

XAVIER50lembra a diferença a entre a interpretação de um conceito


(definição de todos os seus conteúdos possíveis) e a operação logicamente
posterior de subsunção de um quid concreto nesse conceito (qualificação),
para concluir que a aplicação das convenções tributárias exige duas qualifica­
ções sucessivas: a primária, do fato no conceito da lei interna do Estado com
vocação para regulá-la, e a secundária, do conceito legal a que o fato se subsu-
miu no conceito aplicável do tratado.
Não pensamos que seja assim. A nosso aviso, o mecanismo descrito vale
somente para as normas de conflitos (categoria em que não se incluem as
normas de Direito Tributário Internacional), e mesmo assim apenas para
uma categoria daquelas: as que empregam conceitos jurídicos gerais inte­
grantes do que LARENZ51chama de sistema externo do direito52. O tes­
temunho que XAVIER invoca para referendar a sua tese bem demonstra o
acerto de nossa ressalva53.
De diversa natureza são definições constantes dos tratados contra a du­
pla tributação internacional, que se referem:
a) às mesmas categorias existentes na lei interna dos Estados-partes (em­
presas vinculadas, dividendos, juros, royalties, etc.), e não a conceitos mais
largos em que aquelas devessem ser enquadradas;
b) a termos ignorados pelo direito interno dos Estados-partes, como es­
tabelecimento permanente (para o Direito brasileiro); ou

50 2002, p. 162-164 e 168.


51 1997, p. 397-398, 621-627 e 674-686 (estas últimas referentes ao sistema interno).
52 Ordenação das normas jurídicas segundo a presença de notas distintivas que vão sendo
progressivamente eliminadas, em direção a uma abstração sempre maior. A utilidade desse
sistema está em facilitar a identificação das normas potencialmente aplicáveis a cada caso
concreto. Opõe-se ao sistema interno, fundado em princípios ético-jurídicos e que orienta a
interpretação e a integração das normas aplicáveis ao caso. Exemplos de sistemas externos são
a seqüência compra-e-venda < contratos < obrigações < Direito Privado, ou a distinção entre
direitos pessoais e direitos reais,
53 2002, p. 169. Trata-se da seguinte citação de CO LLAÇ O , retirada da p. 108 de suaobra A
Qualificação no Direito Internacional Privado e referente a um dentre vários tipos de normas
de conflitos:
"Na verdade, uma coisa será pretender que entre A e B se estabeleceu, por exemplo, uma relação
jurídica de arrendamento, à face dos preceitos materiais desta ou daquela ordem jurídica e outra
coisa será sustentar que essa concreta relação jurídica de arrendamento deve ter-se por uma
relação creditóría, para o efeito de poder ser subsumida na norma de conflitos que se reporta a
relações de crédito. Do ponto de vista do direito de conflitos só a respeito desta última operação
pode em rigor falar-se de qualificação. "
Ig o r M a u le r S a n tia g o - 407

c) nos casos de reenvio integrativo, a termos a que não dão qualquer


definição específicaS4, de modo que toda situação que se encaixe na lei interna
se subsume, só por isso, nà disposição convencional55.
No primeiro caso (letra a), na óptica de um mesmo Estado, não há duas
subsunções sucessivas (num juízo de pertinência ou não pertinência), mas
paralelas (num juízo de coincidência ou disparidade). Uma e outra levam em
conta diretamente o fato concreto - a primeira observando-o à luz da lei
interna, a segunda focalizando-o a partir da definição do tratado (que, ade­
mais, pode ser completada por disposições do direito interno, quanto a termos
não definidos no texto ou no contexto da convenção).
Nas duas últimas hipóteses (letras b e c), também sob a óptica de um
mesmo Estado, não há sequer dois enquadramentos, mas um só.
Nada disso exclui, obviamente, a possibilidade de essas subsunções se­
rem diferentes em cada um dos Estados, o que é problema diverso do que se
discute neste momento.
Acertada, assim, a afirmação de VOGEL56de que o Direito Tributário
Internacional não conhece problemas de qualificação, tais como entendidos
pelo Direito Internacional Privado. Já não podemos concordar com o Au­
tor57quando, depois de aceitar a expressão também para aquele campo, dada
a sua consagração doutrinária58, pretende limitá-la às situações em que um
tratado emprega expressões derivadas do direito interno (definindo-as de
forma autônoma ou procedendo a reenvio). Para o Autor, são de diferentes
naturezas os problemas:
a) de como uma instituição ou um ato estrangeiros são acolhidos no
direito interno (a que denomina substituição59); e
b) de um rendimento sofrer dupla tributação ou dupla não tributa­
ção, apesar do tratado, em virtude de os Estados adotarem crité­

54 É conferir o art. 3, alínea 1, letra c, do Modelo/IRC: "the term company means any body
corporate nr any entitv that is treated as a body corporate for tax ptirposes".
55 A menos que o caso não seja de reenvio integrativo puro, mas de miscigenação desta técnica
com a da definição autônoma, como no caso referido em nota precedente.
56 1997, p. 52. No mesmo sentido,BORRÁS RODRÍGUEZ (1979, p. 68).
57 1997, p. 52-53.
58 Postura que também seguimos.
59 No mesmo sentido, com base nas lições de VO GEL, vai SCHOUERI, (2002, p. 132-133).
4 0 8 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra t a d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n te r n a c io n a l

rios diferentes para a definição da sujeição passiva tributária (a


que denomina conflito de atribuição60).
A sua vez, os Comentários da OCD E reservam a expressão conflitos
de qualificação para as situações em que a aplicação de disposições conven­
cionais diversas pelos Estados-contratantes decorre de disparidades em suas
leis internas61.
Estamos em que as distinções - além de aumentarem a confusão na
matéria - não merecem acolhida. Com XAVIER62- que invoca a norma im-
positiva portuguesa que trata diferentemente os não residentes, segundo se­
jam pessoas físicas ou jurídicas, perante a qual se apresenta a questão de saber
como será tratada uma partnership estrangeira (um caso de conflito de substi­
tuição, na terminologia de VOGEL) - somos da opinião de que a discussão
é sempre a mesma: decidir qual Estado, e principalmente com base em que
critérios (os seus próprios ou os do outro) pode dar a última palavra sobre a
conceituação dos fatos em exame, para que sobre eles se aplique o tratado ou
a lei (impositiva ou exonerativa) local.
2 .2 . Prim eiras co n sid eraçõ e s acerca d o a rt. 3, alínea 2 , dos
M o d e lo s da O CD E

Apesar de algumas convenções isoladas restringirem ao mínimo o reen­


vio aos direitos internos (Tratado Alemanha-Suécia de 1992, referido no item
precedente), o fato é que, continuando a figurar nos Modelos da OCDE, o
art. 3, alínea 2, goza ainda de largo curso internacional, sendo reproduzido na
maioria absoluta das convenções tributárias atualmente em vigor. Consta, por
exemplo, de todas as 25 convenções63em matéria de imposto de renda e capi­
tal mantidas pelo Brasil, sendo de notar que só aquelas celebradas com a
Argentina e o Equador preveem de forma expressa a instauração de procedi­

60 O Autor dá como exemplo a renda de um espólio, que nos EUA são atribuídos a este, ao passo
que na Alemanha pertencem aos herdeiros.
61 Ver parágrafos 32.3 a 32.5 dos comentários aos arts. 23 A e 23 B (2003, p. 240-241).
62 2002, p. 166. E embora discordemos da sua afirmação de que a qualificação no Direito
Tributário Internacional é idêntica à do Direito Internacional Privado.
63 As convenções ratificadas foram, na verdade, 24. Com a cisão da Tchecoslováquia em 1993,
porém, tanto a República Tcheca quanto a República Eslovaca sucederam o país no tratado
que mantinham com o Brasil desde 1991.
Ig o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 0 9

mento amigável para a solução dos conflitos dela decorrentes64- embora seja
claro que tal mecanismo pode, nos demais casos, ser adotado com base em sua
previsão genérica, constante das disposições especiais do tratado (o já referido
art. 25 do Modelo/IRC).
Cuidando especificamente do dispositivo em tela, registra KOCH65que
constitui a causa maior de divergências na interpretação dos tratados.
VOGEL e PROKISCH66, reproduzindo a opinião do relator norue­
guês para o Congresso da IFA de 1993, questionam se o dispositivo não cria
mais problemas do que resolve.
VOGEL, em sua obra principal, depois de afirmar que a O CD E acei­
ta as interpretações divergentes que dele decorrem como inevitáveis67, chega
a declarar incrível que não tenha sido suprimido nas recentes revisões do
M odelo/IRC68.
O comando —inaugurado no Tratado Estados Unidos-Reino Unido de
1945, disseminado sobretudo pela prática convencional britânica e incluído
no Modelo da OCDE/IRC desde a sua primeira versão, de 196369- tem, é
certo, também a sua serventia.
BAUMGARTNER70, em 1951, afirmava que a remissão à lexfori era a
única alternativa que sobrava para o juiz diante de termos não definidos no
tratado e nos trabalhos preparatórios, se aquele quisesse manter-se nos lindes
da interpretação, sem resvalar na integração.

64 É ver o art. 3, alínea 2, do Tratado Brasil-Argentina, referendado pelo Decreto Legislativo n° 74/
81 e promulgado pelo Decreto n° 87.976/82:
"Art. 3, alínea 2. Para a aplicação da presente Convenção por um Estado Contratante, qualquer
expressão que não se encontre de outro modo definida terá o significado que lhe é atribuído
pela legislação desse Estado Contratante relativa aos impostos que são objeto da presente
Convenção, a não ser que o contexto imponha interpretação diferente. Caso os sentidos
resultantes sejam opostos ou antagônicos, as autoridades competentes dos Estados Contratan­
tes estabelecerão, de comum acordo, a interpretação a ser dada."
Redação praticamente idêntica tem o art. 3, alínea 2, do Tratado Brasil-Equador, aprovado pelo
Decreto Legislativo n° 4/86 e promulgado pelo Decreto n° 75.717/88.
65 1981, p. 56.
66 1993, p. 77.
67 1997, p. 42.
68 1997, p. 209.
69 A resenha está em VO G EL (1997, p. 169). Afirma ainda o Autor (1997, p. 209) que ao tempo
da introdução do dispositivo, todos os tratados celebrados pelos EUA e pelo Reino Unido
baseavam-se no sistema do crédito, o que impedia que ele acarretasse dupla não tributação.
70 1951, p. 79-80.
4 1 0 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra ta d o s c o n t r a a D u p w T r ib u t a ç ã o I n ter n a c io n a l

VOGEL e PROKISCH71evidenciam ainda as vantagens práticas que


acarreta, ao dispensar o tratado de alongar-se em definições, que tornariam
a sua aplicação mais difícil, e ao permitir que os contribuintes, os fiscos e
os juizes continuem a lidar com os institutos de direito interno, que
conhecem bem.
AVERY JO N ES72chega ao extremo de predicar a superioridade do
dispositivo em tela sobre uma definição autônoma das categorias redituais
pelo tratado.
Afirma que, se a definição convencional fosse mais ampla do que a da lei
interna, essa amplitude adicional:
a) ou seria sem efeito (quando o rendimento em discussão não fosse
incluído pela lei interna em outra categoria reditual), porque:
a.l) um Estado não pode tributar apenas com base em tratado73; e
a.2) se o tratado previsse a tributação exclusiva pelo outro Estado ou
a isenção, o rendimento que recaísse naquela amplitude adicio­
nal seria de todo modo intributável no primeiro Estado (por fal­
ta de previsão legislativa);
b) ou modificaria a classificação diversa que a lei interna atribuísse
ao rendimento incluído naquela amplitude adicional, podendo
com isso alterar a sorte que teria se fosse submetido ao artigo da
convenção que disciplina a categoria em que a lei interna o en­
quadrava.
Se, ao contrário, a definição convencional fosse mais estreita que a da lei
interna, o rendimento subsumido na amplitude adicional desta última (a menos
que, nos termos do tratado, recaísse em outra categoria reditual) seria enqua­
drado como other income (art. 21, alínea 1, do Modelo/IRC74), ficando livre

71 1993, p. 77.
72 1993, p. 608.
73 O chamado princípio do efeito negativo dos tratados tributários, corolário do princípio da
legalidade da tributação (XAVIER, 2002, p. 138).
74 "Art. 21. Other income.
1. items o f income o f a resident o f a Contracting State, wherever arising, not deait with in the
foregoing Articles o f this Convention shall be taxed only in that State.
2. The provisions o f paragraph 1 shall not apply to income, other than income from immovable
property as defined in paragraph 2 o f Article 6, if the recipient o f such income, being a resident
o f a Contracting State, carries on business in the other Contracting State though a permanent
Ig o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 1 1

de imposto no Estado da fonte, o que seria indiferente se este já o isentasse,


mas mudaria a sua sorte se o Estado da fonte em princípio o tributasse.
Na situações previstas na letra b supra e no parágrafo anterior, em vez de
uma desvantagem, como apontado por AVERY JONES, enxergamos uma
superioridade da definição autônoma em face da remissão à lei interna. Deve­
ras, o que aquela faz nas hipóteses descritas é corrigir - a partir de critérios
estáveis, consensados entre as partes e cujos efeitos são de todo previsíveis —a
classificação realizada com base no direito interno de um dos Estados, sujeito
a alterações inopinadas sob o influxo, inclusive, de suas necessidades de caixa.
Sobre a interpretação do art. 3, alínea 2, do Modelo/IRC, a doutrina é
uníssona no sentido de que não procede a uma abertura imediata ou geral
para o direito interno. A uma porque diz respeito somente à definição dos
termos não conceituados no tratado, e não à disciplina de quaisquer outras
situações. A duas porque condiciona o recurso à lexfori à prévia exaustão das
possibilidades exegéticas a partir do texto e do contexto do tratado75.
A atribuição de sentido lato ao termo contexto nos tratados tributários
visa precisamente a ampliar a ressalva contida na fórmula unless the context
otherwise requires, de modo a reduzir as hipóteses de reenvio para o direito
interno e, em conseqüência, os riscos de dupla tributação ou dupla não tribu­
tação dele decorrentes.
Transparece, nesse ponto, o ilogismo da proposta da OCD E de incluir
no contexto, visto da perspectiva de cada Estado-contratante, as definições
atribuídas pela legislação do outro país aos termos convencionais (parágrafo
12 dos comentários ao artigo 3). A ser assim, o Estado que aplica o tratado
teria sempre, à falta de conceito convencional bastante em si, de seguir a legis­
lação do outro, só recorrendo à sua própria quando aquela fosse omissa, o que

establishment situated therein and the right or property in respect o f which the income is paid is
effectiveiy connected with such permanent establishment. In such case the provisions o f Article
7 shall apply."
75 Ambas as restrições são expressas por XAVIER (2002, p, 159-160) e TÔRRES (2001, p. 644 e
655-656), para quem, ademais, a remissão se faz apenas à lei reguladora dos tributos discipli­
nados pela convenção, e não ao direito interno (ou sequer ao Direito Tributário) como um
todo. A ressalva não encontra mais apoio na redação do dispositivo, que, desde a alteração
sofrida em 1995, faz menção ao direito doméstico como um todo, apenas dando primazia para
as leis fiscais. Nesse sentido, o parágrafo 13.1 dos comentários da O CDE ao art. 3. Quanto à
primeira restrição, ver ainda VO GEL e PROKISCH (1993, p. 79-80). Em relação à segunda, a
visão de V O G EL é mais moderada, como se verá mais à frente no texto.
4 1 2 - I n ter p r et a ç ã o d o s T r a ta d o s c o n t r a a D u p l a T rib u ta ç Ao I n t er n a c io n a l

não resolve nada (visto que, se numa mesma situação os dois Estados tivessem
de aplicar o tratado, e cada um atendesse às leis do outro, o conflito se insta­
laria da mesma maneira, com a diferença única de que com sinais invertidos)
e ofende a letra do art. 3, alínea 2, do Modelo/IRC, que determina que cada
país observe a sua própria lei.
O problema não é solucionado por VOGEL, ao incluir no contexto as
disposições aplicáveis de ambos os sistemas tributários76. E isso porque, ou elas
são coincidentes, e a referência ao contexto para evitar o recurso à lei interna é
inútil, ou são díspares, não formando um contexto harmônico e, assim, não
impedindo o reenvio.
De um modo geral, sustenta VOGEL77que, à falta de definição de um
termo no tratado, a remissão à lei interna só pode ser afastada quando o contexto
o exija, e não quando tão só o permita. Desse modo, a definição obtida com
arrimo na lei doméstica não cederia ante uma interpretação apenas razoável
decorrente do contexto, só o fazendo quando esta última se fundasse em razões
especialmente fortes. Em suma, nega o Autor que o dispositivo imponha um
dever de exaustão das possibilidades exegéticas da convenção antes do recurso
à lei local.
Não podemos concordar com a tese, por entendermos que o contexto de
um tratado exige, sempre que esta seja possível, leitura que o prestigie, não
nos parecendo coerente admitir que dê preferência à interpretação que con­
trarie os fins por ele expressos e que lhe negue força vinculante, pondo-o em
desvantagem ante estipulações em contrário de leis locais.
Esse também o parecer de VAN RAAD78e de AVERY JONES79, o
qual dá o exemplo da definição de artistas e esportistas, para efeito do art. 17
do Modelo/IRC. Na sua visão, sendo certo que os Comentários discutem
amplamente o significado desses termos, dando-lhes acepção particular (para
incluir artistas de palco, mas excluir diretores de cinema, por exemplo80), fica
excluída pelo contexto (no qual inclui os Comentários) a aplicação da lei

76 1997, p. 215.
77 1997, p. 213-214.
78 In: AVERY JONES, SINCLAIR, VAN RAAD, VO G EL e WARD (1986, p. 80).
79 2001, p. 221.
80 O que, a bem dizer, decorre da letra do tratado, que usa a palavra inglesa artiste, em vez da mais
abrangente artist.
I g o r M a u le r S a n t ia g o - 413

interna, qualquer que seja o seu conteúdo. Nesse sentido, ainda, decisão da
Corte Fiscal alemã mencionada por SCHOUERI81, na qual ficou dito que “o
recurso ao direito interno somente será permitido e obrigatório quando for
impossível uma interpretação a partir do próprio acordo”.
2 .3 . A INTERPRETAÇÃO DO ART. 3 , ALÍNEA 2 , DO M O DELO /IRC
Há mais de vinte anos, uma corrente de juristas vem se esforçando para
dar ao dispositivo uma exegese que vá além da sua mera literalidade, de modo
a evitar que a remissão do intérprete, em todo e qualquer caso, ao seu direito
local, solapasse a eficácia das convenções tributárias.
O objetivo é definir que Estado - e principalmente a partir de que crité-
rios: os seus próprios ou os do outro contratante - pode enquadrar as situações
da vida nas diversas disposições convencionais que remetem à lei local (reenvio
integrativo ou interpretativo).
A reação contra a interpretação literal do dispositivo em exame partiu de
AVERY JONES e seu International Tax Group9,2. A viga-mestra de sua teoria
é um particular conceito de aplicação (lembre-se que é ao Estado que aplica
o tratado que se reconhece o direito de, sendo o caso, interpretar as definições
convencionais à luz de sua lei local). Para o Autor83, aplicar uma norma signi­
fica pô-la em contato com os fatos, colocá-la em prática.
A seu juízo84, no que tange à qualificação dos rendimentos, a não ser no
caso dos serviços civis previstos no art. 19 do Modelo/IRC8S, é sempre o Es­

81 1995, p. 38.
82 A informação está em V O G EL (2003, p. 972). Nestetrabalho,seguiremos as exposições do
pensamento do Autor constantes de European Taxation e dos CDFI LXXVIIIa, ambos de 1993.
Para diferenciá-los, referiremos o primeiro pelo ano e mês de sua publicação.
83 1993 (august), p, 254. No relatório do CDFI (1993, p. 609), AVERY JONES dá conceito ainda
mais restritivo de aplicação, dizendo que "significa que um Estado está fazendo algo em razão
do tratado que não faria com base na sua lei interna". A se adotar esta acepção, nem o Estado
da fonte aplicaria o tratado, quando este lhe atribuísse poder para tributar livremente o
rendimento (i.e., sem redução de alíquota pela submissão a um teto).
84 Para este parágrafo e o próximo: 1993, p. 608.
85 Conforme referido por VO GEL e PROKISCH (1993, p. 78).Veja-se aletra do dispositivo:
"Article 19. Government Service.
1. a) Salaries, wages and other similar remuneration, other than a pension, paid by a Contracting
State or a political subdivision or a local authority thereof to an individual in respect o f services
rendered to that State or subdivision or authority shall be taxqble only in that State,
b) Hnwever. such salaries. waees and other similar remuneration shall be taxable only in the other
Contracting State if the services are rendered in that State and the individual is a resident o f that
State w ho:
4 í 4 - I\ . ERPRETAÇÃO DOS TRATADOS CONTRA A ÜUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL

tado da fonte quem aplica o tratado, razão por que somente este pode, sendo
o caso, invocar a sua lei doméstica.
Ao Estado da residência, para os fins da alínea 1 do art. 23 A ou B do
Modelo/IRC86, cabe no máximo aferir se o primeiro tinha mesmo - na forma
da convenção e de sua própria (do Estado da fonte) lei interna - poder para
tributar o rendimento, tal como ali qualificado. Ao fazê-lo, sempre na visão
do Autor, não aplica o tratado, mas somente o lê, para verificar se a outra parte
o aplicou de forma correta. Se a conclusão for positiva, fica obrigado a conce­
der a atenuação, ainda que, com base em sua lei interna, devesse enquadrar o
rendimento em categoria intributável na origem.
Um exemplo clareia o horizonte: uma empresa residente no Estado A
(que considera as partnerships fiscalmente opacas87) vende os direitos que de­
tém sobre uma partnership estabelecida no Estado B (que as considera trans­
parentes). O Estado B trata a operação como venda dos ativos da partnership

(i) is a natinnal o f that State: or


(ii) did not become a resident o f that State soleiv for the purpose o f rpndering the services.
2. a) Any pension paid, or out o f funds created by, a Contracting State or a political subdivision
or a local authority thereof to an individual in respect o f services rendered to that State or
subdivision or authority shall be taxable only in that State.
b) However. such pension shall be taxahle onlv in the other Contracting State if the individual is
a resident of. and a national of. that State.
3. The provisions o f Articles 15, 16, 17, and 18 shall apply to salaries, wages and other similar
remuneration, and to pensions, in respect o f services rendered in connection with a business
carried on by a Contracting State or a political subdivision or a local authority thereof."
86 "Art. 23 A Exemption method
1. Where a resident o f a Contracting State derives income or owns capital which, in accordance
with the provisions of this Convention. mav be taxed in the other Contracting State, the first-
mentioned State shall, subject to the provisions o f paragraphs 2 and 3, exempt such income or
capital from tax."
"Art. 23 B. Credit method
1. Where a resident o f a Contracting State derives income or owns capital which, in accordance
with the provisions o f this Convention. may be taxed in the other Contracting State, the first-
mentioned State shall allow:
a) as a deduction from the tax on the income o f that resident, an amount equal to the income
tax paid in that other State;
b) as a deduction from the tax on the capital o f that resident, an amount equal to the capital tax
paid in that other State."
87 Segundo o International Tax Glossary (p. 257), partnership é termo que não tem um sentido
unívoco em todos os países que o adotam, significando em regra uma associação de duas ou
mais pessoas com as seguintes notas (contudo, renunciáveis): ausência de personalidade
jurídica e de órgãos de administração separados; ânimo de lucro, que será dividido entre os
partners em proporções definidas (ainda que o seu capital não seja dividido em ações); e
responsabilidade ilimitada. A maioria dos países as trata como fiscalmente transparentes (não
as tributando como pessoas jurídicas e gravando os seus lucros desde logo nas pessoas dos
partners), mas alguns os consideram opacas (tributando-as à moda das pessoas jurídicas).
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 4 1 5

(que toma como um estabelecimento permanente da empresa partner em seu


território), tributando o partner pelos ganhos de capital daí decorrentes, na
forma do art. 13, alíneas 1 e 2, do Modelo/IRC88.
O Estado A fica obrigado a conceder a atenuação ainda que, na forma de
seu direito interno, o negócio fosse equiparável à venda das ações da empresa na
partnership (porque considerada como entidade autônoma), gerando ganhos de
capital que, ex vi do art. 13, alínea 5, do Modelo/IRC, não poderiam ser tribu­
tados pelo Estado B89.
Admite AVERY JONES90que quem aplica a convenção, no sentido de
fazer algo por força exclusiva desta, é o Estado da residência (que dá a isenção
ou o crédito). Sustenta, porém, que o faz num segundo momento lógico,
depois de superada, com aceitação da solução dada pelo Estado da fonte, a
questão da qualificação.
Concede ainda91que o Estado da residência requalifica o rendimento
para fim de o tributar (não ficando, para tanto, preso à categorização feita na
origem), mas que tal objetivo não é relacionado com o tratado, que apenas se
preocupa com a garantia da atenuação92.

88 "Art. 13. Capital gains.


1. Gains derived by a resident o f a Contracting State from the alienation o f immovable property
referred to in Article 6 and situated in the other Contracting State may be taxed in that other State.
2. Gains from the alienation o f movable property forming part o f the business property o f a
permanent establishment which an enterprise o f a Contracting State has in the other Contracting
State, including such gains from the alienation o f such a permanent establishment (alone or with
the whole enterprise), may be taxed in that other State.
3. Gains from the alienation o f ships or aircraft operated in International traffic, boats engaged in
inland waterways transport or movable property pertaining to the operation o f such ships,
aircraft or boats, shall be taxable only in the Contracting State in which the place o f effective
management o f the enterprise is situated.
4. Gains derived by a resident o f a Contracting State from the alienation o f shares deriving more
than 50 per cent oftheir value directly from immovable property situated in the other Contracting
State may be taxed in that other State.
5. Gains from the alienation o f any property, other than that referred to in paragraphs 1, 2, 3 and
4, shall be taxable only in the Contracting State o f which the alienator is a resident."
89 O exemplo foi retirado dos Comentários ao art. 23 do Modelo/IRC (2003, p. 240), que adotam
por outros fundamentos, como adiante se verá, a solução ora discutida.
90 1993 (august), p. 255.
91 1993, august, p. 255.
92 A afirmação, embora possa parecer errônea - já que o fim primeiro dos tratados é dividir o
poder impositivo entre os Estados, por meio das normas de atribuição de competência, só
depois, sendo o caso, cuidando de atenuar a dupla tributação - é correta quanto ao Estado da
residência, a quem o Modelo/IRC, ressalvadas as hipóteses previstas no art. 19, permite tributar
a totalidade da renda de seus residentes, não importa onde obtida.
4 1 6 - I n ter p r et a ç ã o d o s T ra ta d o s c o n t r a a D u p l a T r ib u t a ç ã o I n t er n a c io n a l

A solução é decerto criativa, mas o seu fundamento —conceito restrito de


aplicação - parece-nos insustentavelmente artificial.
Com VOGEL e PROKISCH93, pensamos que há aplicação em "toda
decisão de autoridade administrativa ou judicial relativa a questão tributária
em que a convenção tenha ou devesse ter sido considerada".
Se é assim, voltamos ao ponto de partida: qualificação do rendimento
pelo Estado da residência, para efeito de atenuação da dupla tributação (que
não deixa de ser aplicação do tratado), com base em sua própria lei, ex vi do
art. 3, alínea 2, do Modelo/IRC.
O passo decisivo na justificação da exegese restritiva do comando foi
dado por WARD, em artigo publicado na Inglaterra em 1984, cuja essência
foi reiterada em debate de 198694e em artigo conjunto com DERY, incluído
no CDFI LXXVIIIa95.
O seu mérito consistiu em enfatizar a relevância para o debate do art. 23
A e B do Modelo/IRC, e em especial da passagem “which, in accordance with
the provisions of this Convention, may be taxed in the other Contracting
State”, relativo ao capital ou ao rendimento a que Estado da residência fica
obrigado a conceder atenuação.
O cerne de sua tese está em que, se ambos os Estados concordaram com
a inclusão do art. 3, alínea 2, na convenção, não é dado ao Estado da residência
negar que a qualificação feita (e a tributação imposta) pelo Estado da fonte
com base em sua lei interna é conforme ao tratado. Daí resulta o dever para
aquele de conceder a atenuação, ainda que o seu próprio direito conduzisse à
categorização diversa (que negasse a competência do Estado da fonte para
tributar), só ficando autorizado a negar o alívio se demonstrar que o Estado
da fonte interpretou mal o tratado ou a sua própria (do Estado da fonte) lei.
Em síntese, a invocação da lei interna do Estado da residência fica afastada
pela cláusula “unless the context otherwise requires”, constante do art. 3, alínea 2,
do Modelo/IRC. O contexto, in casu., é o próprio texto do art. 23 A ou B, na
sólida interpretação defendida96.

93 1993, p. 77.
94 AVERY JONES, SINCLAIR, VAN RAAD, VO GEL e W ARD (1986, p. 78).
95 1993, p. 259-293. Ver, em especial, p.279-286.
96 DÉRY e W ARD (1993, p. 281-282),
Ig o r M a u ler S a n tia g o - 4 1 7

A proposta - na prática, igual à de AVERY JONES, mas com melhor


fundamentação do que esta - elimina praticamente todos os casos de dupla
tributação e de dupla não tributação por diversa qualificação de rendimentos
decorrente do reenvio à lei interna, tendo sido consagrada nos Comentários da
OCDE (ao art. 23 A e B) em abril de 2000.
De dupla não tributação nesse quadro só se cogita quanto a tratados que
adotam o sistema da isenção, já que a tributação em base universal pelo Esta­
do da residência afasta esse risco para os que seguem o regime do crédito97.
Pois mesmo nos primeiros, o fenômeno fica afastado, visto que a não tributa­
ção na origem exclui a aplicação do art. 23 A ou B (que cuida de rendimentos
que podem ser tributados pelo Estado da fonte, segundo a lei deste), deixan­
do o Estado da residência livre para qualificar e tributar, ainda que o seu
direito leve à subsunção do rendimento em tela numa categoria que, segundo
o tratado, seria tributável no outro Estado98.
Dupla tributação tampouco vai remanescer, pelas razões longamente
expostas acima. Cumpre a essa altura expor e refutar a ressalva de VOGEL,
que, mesmo abandonando a sua antiga teoria da competência qualificatória
cumulativa - segundo a qual o Estado da residência podia negar o alívio se as
suas leis apontassem para a subsunção do rendimento em categoria não tribu­
tável pelo Estado da fonte99- para aderir à tese de DERY e WARD100, en­
tende-a inapta para obviar certos casos de dupla tributação.
Parte o Autor101da distinção, que formula, entre normas de atribuição
de competência completas e abertas.

97 A única exceção que vislumbramos ocorreria se o Estado da residência qualificasse um rendimento


como remuneração ou pensão pública, só tributável no Estado da fonte (ex vi do art. 19 do Modelo/
IRC), e o Estado da fonte o tivesse qualificado como algo que só o Estado da residência pudesse
tributar (other income, por exemplo). Conquanto se trate de caso claramente residual, não pode­
mos concordar com WARD (In: AVERY JONES, SINCLAIR, VAN RAAD, VOGEL e WARD, 1986, p.
78) em que a não tributação decorreria da incapacidade do Estado da residência de tributar com
base em sua lei doméstica, "irrespective o f the treaty", pois o Estado da residência em princípio
tributaria esse rendimento de fonte estrangeira, só não o fazendo por força do art. 19 do tratado.
98 A explicação, sem a ressalva da nota anterior,consta dos Comentários daO CDE ao art. 23 A
e B do Modelo/IRC (2003, p. 241).
99 Rara a antiga posição do Autor, conferir VO GEL (1997, p. 59-60); VO GEL ePROKISCH (1993,
p. 79). A única concessão que fazia com vistas a evitar os "resultados inapropriados" de sua
teoria era, no que se refere à qualificação dos rendimentos (ligada ao que denomina
Metatatbestand), e para fim de aplicação da fórmula "unless the context otherwise requires", dar
preferência a qualquer interpretação contextual, e não somente àquela dotada da força espe­
cial que exige para afastar a referência à lei doméstica (1997, p. 215-216).
100 2003 (February), p. 41; 2003, p. 971-973.
101 2003 (February), p. 43.
4 1 8 - In terp reta ç ã o d o s T ratado s c o n tra a D u p ia T r ib u t a ç ã o I n t e r n a c io n a l

Abertas são as que autorizam um Estado (normalmente o da fonte) a


tributar (“may be taxed'), sem nada dizer sobre o comportamento que deverá
ser adotado pelo outro (isenção ou creditamento), que fica a depender da
versão do art. 23 adotada no tratado.
Completas são as que indicam o tratamento a ser dado a um certo
rendimento ou bem por ambos os Estados, definindo desde logo que sejam
tributados somente em um (“shall be taxable only ’) e, consequentemente,
não no outro.
Lembra, a seguir, que o art. 23 A e B do Modelo/IRC determina que o
Estado da residência atenue a dupla tributação de rendimentos ou bens que
“may be taxed in the other Contracting State”.
Assim, conclui, quando o Estado da residência, aplicando os critérios
do Estado da fonte, verifica que um rendimento que também se conside­
ra apto para tributar podia ser onerado na origem, fica obrigado a conce­
der a atenuação.
Quando, sempre nos termos da lei do Estado da fonte, conclui que o
rendimento podia ser tributado naquele, enquanto a qualificação com base
em sua lei interna lhe dá competência exclusiva para gravá-lo, diz VOGEL
ser discutível que fique obrigado a conceder a atenuação prevista no tratado.
Quando, porém, a qualificação com base nas leis do Estado da fonte leve
à conclusão de que este tinha competência exclusiva para tributar, não se po­
deria obrigar o Estado da residência a conceder o alívio, visto que isso violaria
a redação do art. 23 do Modelo/IRC, que fala em rendimentos que “may be
taxed’ (e não “shall be taxable only”) na origem.
Estamos em que a diferença terminológica não tem relevância lógica.
Em nossa opinião, se o rendimento, ao ver do Estado da fonte, só podia ser
tributado ali, é claro que, do ponto de vista do Estado da residência, de todo
modo podia ser onerado na origem, o que não o autoriza a deixar de lado o
art. 23 A ou B do Modelo/IRC.
Eliminando praticamente todos os casos de dupla tributação e dupla
não tributação decorrentes do reenvio à lei interna, o critério interpretativo de
DÉRY e WARD, mesmo não sendo o único logicamente possível, deve im-
por-se sobre os demais, por ser o que melhor atende à finalidade das conven­
ções tributárias.
I g o r M a u l e r S a n t ia g o - 419

Além dos próprios Autores102, também XAVIER103—que no particular


adota visão semelhante, com a especificidade de que estruturada em termos
de Direito Internacional Privado104- põe em relevo o elemento fmalístico na
interpretação dos tratados contra a dupla tributação internacional.
A par da qualificação dos rendimentos, outras hipóteses há em que o con­
texto pode levar que o Estado que aplica o tratado não observe a sua lei, como as
que dizem respeito à residência ou à nacionalidade do contribuinte, que hão de
ser definidas, em qualquer lugar, segundo as leis do Estado em que se alega que
aquele resida, ou de que se pretenda seja ele nacional. A bem dizer, tais situações
estão contempladas no texto no Modelo/IRC, arts. 4, alínea 110S, e 3, alínea 1,
letra g106. Contudo, parece-nos que assim seria mesmo à falta de regulamenta­
ção expressa, pela impossibilidade lógica da solução contrária.

102 DÉRY e W ARD (1993, p. 282).


103 2002, p. 172-175.
1 04 Outra particularidade da visão de XAVIER reside em que, fundado na premissa de que o escopo
das convenções tributárias impõe sempre uma competência qualificatória exclusiva, vai além da
teoria em exame (que a admite apenas para a qualificação dos rendimentos ou bens, para efeito
de atenuação da dupla tributação pelo Estado da residência), enumerando matérias qualificáveis
exclusivamente com base na lei do Estado com vocação natural para as regular, o que exige
abordagem casuística e em certos casos subjetiva (a nacionalidade, pela lei do Estado de cuja
nacionalidade se trata; a personificação jurídica de um trust, pela lei do Estado onde constituído,
etc.), e matérias qualificáveis exclusivamente pelo Estado da residência, quer com base em sua
lei, quer com base naquela do Estado da fonte (2002, p. 175-185). Parece-nos que a proposta
interpretativa, apesar de extremamente bem urdida, não encontra apoio em nenhum dispositivo
do Modelo da OCDE/IRC. Ao contrário, por uma valorização excessiva da cláusula "unless the
context otherwise requires" (associada a uma ampliação que julgamos demasiada do termo
contexto), acaba por reduzir à total inutilidade o art. 3,alínea 2, contrariando o princípio do
efeito útil das regras convencionais, referido acima no texto. Registramos, mais, que vários do
resultados a que chega dispensam a sua elaborada formulação, decorrendo diretamente do texto
do Modelo/IRC (como se dá, v.g., com a questão da residência, que o art. 4, alínea 1, remete
expressamente à lei do Estado de cuja residência se trata).
105 "Article 4
The following principies shall be observed in the application o f this Convention:
1. Where:
(a) an enterprise o f a Contracting State participates directly or indirectly in the management,
control or capital o f an enterprise o f another Contracting State, or
(b) the same persons participate directly or indirectly in the management, control or capital o f an
enterprise o f one Contracting State and an enterprise o f another Contracting State, and in either
case conditions are made or imposed between the two enterprises in their commercial or financial
relations which differ from those which would be made between independent enterprises, then
any profits which would, but for those conditions, have accrued to one o f the enterprises, but,
by reason o f those conditions, have not so accrued, may be included in the profits o f that
enterprise and taxed accordingly.
106 "Article 3, paragraph 1. For the purpose o f this Convention, unless the context otherwise
requires:
(...)
g) the term 'national' in relation to a Contracting State, means:
420 - In terp reta ç ã o dos T ratado s c o n tr a a D u pla T r ib u t a ç ã o I n t e r n a c io n a l

Para concluir, permitimo-nos recordar que a construção exposta neste


item, embora bem urdida, evita apenas a dupla (não) tributação causada por
conflitos de qualificação de rendimentos decorrentes da diversidade das leis
internas dos Estados-partes a que o tratado tenha remetido.
Nenhum lenitivo traz para as controvérsias sobre a subsunção de um
rendimento em categorias de que os Estados tenham idêntico entendimento
(variando o conceito que façam do fato), como no caso Pierre Boulez, ou das
quais, mesmo no quadro de uma exegese exclusiva ou predominantemente
contextual, tenham diversa compreensão (a questão de saber, por exemplo, se
um escritório em funcionamento num trailer em movimento pelo país deve
ser considerado um lugar fixo de negócios107).
Nem evita as divergências quanto à identificação do contribuinte, que
podem levar à inaplicação do tratado, por falta de identidade subjetiva (um
Estado que não conhece as partnerships, aplicando a sua lei interna, como lhe
autoriza o art. 3, alínea 2, do Modelo/IRC, tenderá a considerar o pagamento
feito a uma delas como realizado às pessoas dos partners).
Para todas essas hipóteses, só o procedimento amigável do art. 25 do
Modelo/IRC ou outro método de solução de litígios previsto no tratado pode
oferecer solução.
2 . 4 . In t e r p r e t a ç ã o d in â m ic a d as c o n v e n ç õ e s t r ib u t á r ia s

Um último tema merece atenção dentro do tema das qualificações.


Trata-se do debate sobre a identificação temporal da lei interna a que
o art. 3, alínea 2, remete: se aquela em vigor ao tempo da celebração do
tratado (interpretação estática) ou se aqueloutra vigente no momento da sua
aplicação, ou melhor, da ocorrência do fato em discussão (interpretação evo­
lutiva ou ambulatória).
A doutrina majoritária sempre prestigiou a segunda solução, que veio a ser
expressamente incorporada no dispositivo, por meio da cláusula at that time. Esta­

(/) any individual possessing the nationality or citizenship o f that Contracting State; and
(ii) any legal person, partnership or association deriving its status as such from the laws in force
in that Contracting State."
1 07 A resposta à questão será relevante para enquadrarem-se ou não os ganhos atribuíveis a este
escritório como lucros de um estabelecimento permanente, tributáveis no Estado da fonte.
Ig o r M a u ler S a n t ia g o - 4 2 1

mos em que essa é a solução que se impõe mesmo para os tratados que não contêm
a locução adverbial de tempo, como aqueles que seguem o Modelo/SD e todos,
menos dois108, dos firmados pelo Brasil em matéria de impostos sobre a renda e o
capital. E isso não só porque essa é a atitude que melhor compatibiliza o tratado
com o direito interno109, aliás especialmente dinâmico nessa matéria; que mais
prestigia a interpretação sistemática do próprio Modelo/IRC, que, no art. 2, alí­
nea 4, impõe aos Estados trocarem informações a respeito da evolução de suas
legislações tributárias110; ou que se impõe para os dispositivos que requerem o
reenvio integrativo111, mas também porque nos parece que, se a intenção fosse
congelar as definições veiculadas pelas leis locais quando das negociações, muito
mais lógico e eficiente seria transcrevê-las no texto do tratado.
A primazia dada, para efeito de aplicação do art. 23 do Modelo/IRC, à
qualificação feita, com base em suas próprias leis, pelo Estado da fonte, põe em
situação de fragilidade o Estado da residência, na hipótese de aquele, com vistas a
aumentar às expensas deste a sua arrecadação, decidir alargar as definições internas
das categorias convencionais que pode tributar (com ou sem exclusividade), des­
truindo o equilíbrio estabelecido no momento da negociação do tratado. A esta
conduta, que não se confunde com o treaty override (já que não se trata de contra­
riar o texto do tratado, mas apenas de manipular as leis cuja aplicação ele mesmo
requer), tem-se dado o nome de treaty dodging ou treaty circumvention112-m .

1 08 As exceções são os tratados celebrados com Portugal - aprovado pelo Decreto Legislativo n°
188/2001 e promulgado pelo Decreto n° 4.012/2001 - e com o Chile, aprovado pelo Decreto
Legislativo n° 331/2003 e promulgado pelo Decreto n° 4.852/2003. Confira-se o dispositivo
relevante do Tratado Brasil-Portugal:
"Art. 3, alínea 2. No que se refere à aplicação da Convenção, num dado momento, por um
Estado Contratante, qualquer termo ou expressão que nela não se encontre definido terá, a não
ser que o contexto exija interpretação diferente, o significado que lhe for atribuído nesse
momento pela legislação desse Estado que regula os impostos a que a Convenção se aplica,
prevalecendo a interpretação resultante desta legislação fiscal, na definição dos respectivos
efeitos tributários, sobre a que decorra de outra legislação deste Estado."
Sem embargo de pequenas diferenças redacionais, o tratado com o C hile contém norma
essencialmente igual.
109 Como realça XAVIER (2002, p. 162).
110 Como aponta TÔRRES (2001, p. 659). VO GEL e PROKISCH (1993, p. 64)informam que o art.
2(2) da US Treasury M odel Convention determina que os Estados-partes informem um ao outro
as modificações relevantes feitas em suas leis tributárias, bem como todo material relativo à
aplicação do tratado, como instruções internas, consultas e decisões judiciais.
111 Como lembra, sem usar essa terminologia, VO GEL (1997, p. 64).
112 Ver VO GEL (1997, p. 65-67); AVERY JONES (1993, p. 609-610); SINCLAIR (In:AVERY JONES,
SINCLAIR, VAN RAAD, VO GEL e WARD, 1986, p. 85); DÉRY e W ARD (1993, p. 285).
113 A noção é incorporada aos Comentários da O C D E ao Modelo/IRC, como se verifica no
seguinte parágrafo, referente ao art. 3, alínea 2:
4 2 2 - In te r p r e ta ç ã o d o s T ratado s c o n tr a a D u pla T r ib u t a ç ã o I n t e r n a c io n a l

O instituto, embora impreciso em seus contornos, que dependem da


definição do patamar a partir do qual uma modificação legislativa passa a ser
definível como abusiva, funciona como um freio à interpretação ambulatória
das convenções tributárias. Os seus fundamentos são o art. 27 da CVDT114-
conquanto não se possa tecnicamente falar em descumprimento do tratado —
a pretensa inclusão no contexto do tratado das leis internas dos Estados-con-
tratantes (agora definidas como aquelas em vigor no momento das negocia­
ções) e o princípio da boa-fé.
Concede-se que as partes previram e aceitaram a possibilidade de modi­
ficações nas respectivas legislações (ou não teriam convindo no art. 3, alínea 2,
sobretudo após a expressa consagração no dispositivo do caráter evolutivo da
referência a estas). Mas objeta-se que não poderiam concordar com alterações
que negassem o objetivo principal do tratado - combater a dupla tributação à
custa do igual sacrifício das partes.
Parece-nos que o argumento seria muito mais facilmente acolhido por um
juiz interno do que por uma jurisdição internacional. Deveras, a violação de um
tratado (e não está claro para nós que é disso que aqui se trata) só justifica a sua
extinção ou a suspensão da sua execução quando consista “na rejeição do trata­
do, não autorizada pela presente Convenção” ou “na violação de uma dispo­
sição essencial para a consecução do objeto ou da finalidade do tratado”115.
Idênticos efeitos só podem decorrer da mudança fundamental das
circunstâncias subjacentes à conclusão do acordo quando “não prevista pelas
partes”, quando “a existência dessas circunstâncias tenha constituído uma
condição essencial do consentimento das partes em se obrigarem pelo tratado”
e quando “essa mudança tenha por efeito a transformação radical da natureza
das obrigações ainda pendentes de cumprimento em virtude do tratado”116. A

"13. Consequently, the wording o f paragraph 2 provides a satisfactory balance between, on the
one hand, the need to ensure the permanency o f commitments entered into by States when
signing a convention (since a State should not be allow ed to make a convention partiallv
inoperative bv amendins afterwards in its domestic law the scope o f terms not defined in the
Convention ) and, on the other hand, the need to be able to apply the Convention in a
convenient and practical way over time (the need to refer to outdated concepts should be
avoided)." (2003, p. 76).
114 "Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno como justificativa para o
inadimplemento de um tratado."
115 CVDT, art. 60, alínea 3, letras a e b.
11 6 CVDT, art. 62, alínea 1, caput e letras a e b.
Ig o r M a u ler S a n t ia g o - 4 2 3

aferição do cumprimento dessas condições é tão estrita que, segundo DIHN,


DAILUER e PELLET117, nenhuma decisão de uma corte internacional, arbitrai
ou permanente, jamais declarou extinto um tratado por esse motivo.
No caso do treaty dodging em matéria tributária, parece-nos evidente não
estarem configurados os requisitos, seja do art. 60, seja do art. 62, da CVDT,
impondo-se a solução negociai ou, no limite, a denúncia do tratado.

B iblio g ra fia

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4) Tributação
Legislação
A Prestação do Serviço
como Fato Gerador
das Contribuições
Previdenciárias
O Artigo 43, § 2o da Lei 8.212/
91 como Lei Interpretativa

Eduardo Fortunato Bim


Procurador Federal.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 2 9

1. In tro dução

Discute-se quando as contribuições previdenciárias (Lei 8.212/1991,


art. 11, parágrafo único, alíneas a,bt c) passam a ter existência jurídica e, ipso
facto, são devidas. Uma corrente sustenta que elas nasceriam com a prestação
do serviço (STJ); outra que seria com a intimação da sentença de liquidação
na justiça do trabalho (TST).
A diferença entre estas duas correntes é importante porque indica o ter­
mo a quo da incidência de juros e multa das contribuições previdenciárias em
atraso, uma vez que esse somente é deflagrado quando o tributo não é pago
nos prazos previstos na legislação tributária (“não integralmente pago no ven­
cimento” - CTN, art. 161), ou seja, quando há mora tributária.
A questão ganhou complexidade com o advento da Lei 11.941/09 (art.
26) - fruto da conversão da M P 449/08 - porque essa inseriu o § 2o no
artigo 43 da Lei 8.212/91 (Lei de Custeio) para deixar expresso que o fato
gerador das contribuições previdenciárias é a prestação do serviço.
O presente trabalho discorre sobre qual é o momento em que nasce a
contribuição previdenciária, para identificar, a partir daí, o termo inicial da
cobrança de juros e de multa, antes e depois da alteração promovida pela Lei
11.941/09 na Lei de Custeio.
Não obstante se faça distinção entre a hipótese de incidência tributária e
a do fato gerador do tributo1, utiliza-se nesse trabalho a expressão fato gera­
dor em vez de hipótese de incidência, por ser de uso geral no trato da questão
a que o texto se propõe a enfrentar.

2 . A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO COMO FATO GERADOR DAS


CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

No direito tributário, o fato gerador “é a situação definida em lei como


necessária e suficiente a sua ocorrência” (CTN, art. 114). Ocorrida a situação
prevista na lei, está configurado o fato gerador da obrigação tributária, geran­
do o dever de pagar o tributo.

1 Cf. o excelente apanhado histórico da expressão fato gerador em SCHOUERI, Luís Eduardo "Fato
gerador da obrigação tributária. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito Tributário - Home­
nagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003, vol. I, p. 125- 173.
4 3 0 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d as C o n t r ib u iç õ e s .

No tocante às contribuições previdenciárias, a norma constitucional im­


põe como limite da incidência da legislação ordinária —que é quem efetiva­
mente institui o tributo - “a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço,
mesmo sem vínculo empregatício” (art. 195,1, a).
Qualquer rendimento do trabalho (haja ou não relação de emprego) pago
ou creditado, a qualquer título, autoriza a incidência das contribuições
previdenciárias.
Só que não foi diante desse quadro constitucional que a Lei 8.212/91
foi editada. A redação do dispositivo constitucional era mais enxuta e autori­
zava a incidência “sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro” (art. 195,
I). Com a Emenda Constitucional 20/98, a redação do dispositivo foi altera­
da para a retrocitada.
Mesmo diante da redação constitucional menos restritiva, a redação ori­
ginal da Lei 8.212/91 já falava em remunerações pagas ou creditadas (arts. 22,
I, 2 8 ,1, 30,1, b), no que apenas seguiu a Lei 7.787/89. Esta lei estipulou que
a contribuição das empresas em geral e das entidades ou órgãos a ela equipa­
rados, destinada à Previdência Social, incidente sobre a folha de salários, será
de 20% sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título,
no decorrer do mês (art. 3o, I).
Em 1997 a Lei 9.528/97 (conversão da M P 1.571/97) adicionou o
termo “devidas” ao artigo 28 da Lei de Custeio. Em 1999, com a Lei 9.878/
99, foi acrescentado este mesmo termo (devidas) aos artigos 22, I, 30, I, b,
da Lei 8.212/91.
A título histórico, note-se que a legislação previdenciária era categórica
em citar a remuneração “efetivamente percebida” (Lei 3.807/60, art. 76 ,1), o
que em 1982, no Regulamento da Previdência (Decreto 83.081/79, art. 41,
I), se traduziu como “importâncias efetivamente recebidas”. Por isso Ivan
Kertzman e Sinésio Cyrino ressaltam que “a Instituição Previdenciária não
estava autorizada a exigir a contribuição previdenciária, se o tomador de servi­
ço provasse, pelos meios próprios, que o pagamento do crédito trabalhista não
ocorrera”2. Posteriormente, em 1984, com a nova edição da Consolidação das

2 KERTZMAN, Ivan; CYRIN O, Sinésio. Salário-de-Contribuição: a base de cálculo previdenciária


das empresas e dos segurados. Salvador: Juspodivm, 2007, p. 20-21.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 3 1

Leis da Previdência Social (CLPS) pelo Decreto 89.312/84, substitui-se a


expressão “importâncias” por “remuneração” (art. 135, I), mas se manteve a
necessidade de efetivo recebimento.
Ocorre, como dito, que a Lei 7.787/89 provocou uma mudança de pa­
radigma ao determinar a incidência sobre remunerações pagas ou creditadas
(art. 3°, I).
Sendo esse o quadro dos textos legais da matéria, deve-se perquirir agora o
seu conteúdo normativo, porque norma não se confunde com texto/disposição3.
Embora não haja expressa previsão sobre o nascimento do fato gerador das
contribuições na Lei 8.212/91, esta reconhece que o fato gerador da contribui­
ção é tanto a remuneração paga quanto a remuneração creditada ou devida.
Não obstante, a legislação infraconstitucional tenha incluído o vocábulo de­
vidas em 1997 (art. 28) e em 1999 (art. 22,1, 30,1, b), na verdade ele nada mais
significa que um desdobramento do termo creditadas. Devido é o que está cre­
ditado à disposição do trabalhador. O crédito não pode ser “físico”, mas econô­
mico, caso contrário haveria pagamento. Por exemplo: não se poderia considerar
o crédito como depósito em conta corrente porque isso não seria creditar, mas
pagar. Crédito deve ter um significado diferente, sob pena de ser redundante e se
tornar palavra inútil no texto constitucional e na legislação infraconstitucional.
O creditado deve ser entendido como devido, como algo que se deve ao
prestador do serviço a título oneroso. E a outra face da moeda. O débito do empre­
gador/tomador de serviço tem como contrapartida o crédito decorrente da presta­
ção de serviço. É a esse crédito que se referem a Constituição e a Lei 8.212/91.
O crédito remuneratório nasce pelas horas trabalhadas, mas também pode
aparecer - não surgir, frise-se - na emissão da folha de pagamento (crédito
contábil ou escriturai), caso essa reflita a realidade.
Se o contribuinte não emite a folha corretamente, nem por isso o crédito
deixou de existir; o direito não pode prestigiar a má-fé daquele que não ape­
nas se contenta em não pagar, como também esconde a ocorrência do fato

3 Cf., dentre outros, BIN, Roberto; PITRUZZELLA, Giovanni. Dirítto Pubblico. 5a ed. Torino: C.
Giappichelli, 2007, p. 252; CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamen­
tos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 47; COSTA, Adriano Soares da. Teoria
da Incidência da Norma Jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 1-10, passim; GRAU, Eros
Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 17, 69-72; JORI, Mario; P1NTORE, Anna. Manuale di Teoria Cenerali dei Dirítto. 2a ed.
Torino: G . Giappichelli, 1995, p. 240.
4 3 2 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r da s C o n t r ib u iç õ e s .

gerador do tributo. Não é o crédito contábil que faz nascer a obrigação tribu­
tária previdenciária-, o mero registro contábil ou o mero preenchimento da
obrigação acessória (GFIP), não tem tal aptidão, mormente porque ele pode
ser fraudado. O crédito em questão é de natureza jurídica.
Se o raciocínio da escrituração/declaração fosse procedente, os tributos
nasceriam da DCTF, da GFIP etc., o que seria um absurdo. Obrigações aces­
sórias ou meros deveres de contabilizar na folha de pagamento não são fatos
geradores da obrigação tributária principal.
Assim é que Fábio Zambitte Ibrahim, ao falar em remunerações devidas
ou creditadas, frisa que as empresas não poderão deixar de pagar as contribui­
ções previdenciárias alegando que não remuneraram os seus empregados. Ele
também entende que o fato gerador é a prestação do serviço onerosa (que gera
a remuneração), concluindo: “O que interessa é o crédito jurídico, não o efe­
tivo pagamento”4. A doutrina é categórica quando, endossando a tese do cré­
dito jurídico, aduz que não se faz necessária a declaração formal (contábil) de
sua existência, basta que o trabalhador tenha direito à remuneração5.
Quando a Constituição Federal e a Lei 8.212/91 se utilizam da expressão
“creditadas”, elas se referem à remuneração devida (daí a redundância do termo
na Lei de Custeio, meramente declaratório), pois, com a prestação do serviço,
surge a obrigação do devedor e, em conseqüência, o direito do credor à remune­
ração. Crédito é um direito que se tem em face do devedor; não significa que o
credor tenha que receber o dinheiro (pagamento), tendo o crédito saldado ou
extinto. Para esse caso, o vocábulo legal adequado é “pagos”, o que pressupõe

4 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 9a ed. Niterói: Impetus, 2007, p. 193.
5 MARTINEZ, Wladimir Novaes. O Salário-de-Contribuição na Lei Básica da Previdência Social.
São Paulo: LTr, 1993, p. 110-111; IBRAHIM, Fábio Zambitte. O fato gerador da contribuição
previdenciária patronal incidente sobre remunerações pagas, devidas ou creditadas e seu
prazo de reco lh im en to, R D D T 64/64; IB R A H IM , Fábio Zam bitte. C u rso de D ireito
Previdenciário, 9a ed., p. 253; SILVA, Alexandre de Azevedo. O fato gerador da contribuição
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do, 2005, p. 111; JO RGE, Társis Nametala Sarlo. O Custeio da Seguridade Social. 2a ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 63; LEITÃO, André Studart. In: BALERA, Wagner (coord.).
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p. 28 5; D IA S, Eduardo Rocha; M A C ÊD O , José Leandro Monteiro de. Curso de Direito
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E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 3 3

pagamento, embora não necessariamente haja crédito do prestador, como no


caso das antecipações pagas pelo tomador do serviço/empregador.
Irretocável a conclusão de Ivan Kertzman e Sinésio Cyrino ao defender
que o pagamento, “que há 25 anos reinava sozinho e absoluto como o mo­
mento de aperfeiçoamento do fato gerador da contribuição previdenciária foi,
ao longo do tempo e na prática, defenestrado, não obstante continuar a inte­
grar expressamente os textos legais”6. Para Fábio Zambitte Ibrahim a única
razão de o pagamento continuar constando dos textos normativos é submeter
o pagamento das contribuições nos casos de adiantamentos ao regime de cai­
xa7, como reconhece o item 10 do Parecer 2.952/03/MPAS. Percebe-se que
o pagamento como fato gerador é tão raro que se transformou em exceção.
Por isso, nada mais natural, tendo havido a prestação de serviços re­
munerada, que a obrigação tributária nasça, em regra, nesse instante. Com a
prestação se criou crédito em favor do prestador do serviço, mesmo que
ainda não tenha havido pagamento. A inserção do termo devidas na legisla­
ção infraconstitucional teve efeito meramente declaratório, facilitando a com­
preensão do dispositivo.
D a in t er p r eta ç ã o q u e evita o a b s u r d o : estím u lo à fr a u d e /
INADIMPLÊNCIA PELA MANIPULAÇÃO DO FATO GERADOR PELO
CONTRIBUINTE E DA DESIGUALDADE TRIBUTÁRIA

Carlos Maximiliano doutrinava que o direito deve ser interpretado inte­


ligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo8.
A tese que defende o pagamento como fato gerador, ignorando o sentido
de creditadas, gera situações completamente absurdas.
A primeira delas não é defendida nem mesmo por aqueles que advogam
o pagamento como fato gerador das contribuições previdenciárias: se fosse o
pagamento que constituiria o fato gerador das contribuições, não faria sentido
ter a intimação da sentença de liquidação como termo inicial do nascimento.
A simples sentença não seria o pagamento, nem mesmo a penhora do dinhei­

6 KERTZMAN, Ivan; CYRIN O, Sinésio. Salário-de-Contribuição: a base de cálculo previdenciária


das empresas e dos segurados, 2007, p. 23.
7 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário, 9a ed., 2007, p. 193-194.
8 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 12a ed. Rio de Janeiro: Forense,
1992, p. 165-166.
4 3 4 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d as C o n t r ib u iç õ e s ..

ro, mas apenas o recebimento do devido pelo trabalhador. E se esse não qui­
sesse receber, tampouco se poderia falar de fato gerador, vez que não houve
pagamento, exceto mediante consignação em pagamento ao devedor.
A segunda situação absurda afrontaria os mais elementares princípios de
direito tributário. Com efeito, se fosse assim, caso o tomador de serviço nunca
pagasse os seus prestadores de serviço ele jamais seria devedor de contribui­
ções previdenciárias. Assim, a exação tributária estaria dependente única e
exclusivamente da vontade do contribuinte, o que seria um absurdo.
O Superior Tribunal de Justiça, pelo voto da lavra do Ministro José
Delgado, percebeu o absurdo dessa tese no REsp 221.362/RS9, ao endossar o
entendimento de que se a tese do pagamento fosse correta, “deixaria de existir
um recolhimento mensal à Previdência, pois os empregados poderiam ser pagos
(formalização através da folha de pagamento) ou creditados trimestral, semestral
ou anualmente. Somente com esse argumento vê-se o absurdo da tese
invocada”. Segundo o TRT da 15a Região, a tese do pagamento “beneficiaria
o empregador que não cumpre suas obrigações legais e incentivaria ainda mais
o descumprimento da legislação trabalhista”10.
Tal exegese deixaria o contribuinte se beneficiar da sua própria torpeza,
tanto em relação ao crédito tributário quanto à proteção do trabalhador, por­
que ele poderia não pagar o trabalhador apenas para não recolher o tributo,
uma vez que o fato gerador não teria ocorrido. Seria um prêmio ao emprega­
dor inadimplente, causando inclusive prejuízos aos direitos trabalhistas lato
sensu, permitindo, desse modo, a manipulação da data de nascimento das con­
tribuições previdenciárias ao seu bel prazer.
Se nem mesmo nos casos de parcelamento e de denúncia espontânea
existe a dispensa de juros moratórios, mais absurda se afigura a situação da sua
dispensa nos casos de inadimplemento da remuneração relativa à prestação
dos serviços11.

9 STJ, 1a T., V .U ., REsp 221.362/RS, rel. Min. José Delgado, j. em 09/11/1999, DJU 17/12/
1999, p. 332.
10 TR T da 15a Região, 6a Turma (11a Câmara), AP 00990-1996-005-1S-86-2 (008858/2005-
PATR), rel. Des. Fany Fajerstein, j. em 22/02/2005, DJ 11/03/2005.
11 "CON TRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. JUROS E MULTA MORATÓRIA. FATO GERADOR. CONS­
TITUIÇÃO EM MORA. O fato gerador das contribuições previdenciárias ocorre com a presta­
ção de serviços (art. 30, I, 'b', da Lei 8.212/91), razão pela qual a constituição em mora nasce
no momento em que se torna devida a remuneração pela prestação dos serviços, ainda que não
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 3 5

Reconhecer a tese da prestação do serviço evita essas leituras absurdas do


direito positivo que propicia fraudes, protelando o fato gerador por ato de
mera vontade do empregador/tomador de serviço.
Em leitura sistemática, o próprio CTN desabonaria a tese do pagamen­
to. Ele é claro em rechaçar a influência da vontade dos particulares em relação
ao nascimento da obrigação tributária, embora seja expresso em relação ape­
nas à mudança do sujeito passivo da obrigação tributária (art. 123).
Se fosse permitido ao particular o poder de alterar o fato gerador da obri­
gação tributária, ela não seria legal, derrogando um dos pilares do Estado demo­
crático de direito, a legalidade tributária. Conforme Hugo de Brito Machado, a
“obrigação tributária nasce sem que a vontade seja seu elemento formador, e
sendo assim não se poderia mesmo admitir que a vontade pudesse alterar ele­
mentos essenciais da relação, como são os seus sujeitos”12. Por isso os eventuais
deslizes contratuais das partes, como seria o inadimplemento do tomador do
serviço remunerado, não poderia alterar o nascimento das contribuições previ-
denciárias na medida em que não operam efeitos perante a Fazenda Pública.
Essa questão também ficou bem delineada na exposição feita por Carlos
Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari:
“(...) tendo a norma legal apenas o condão de indicar que ofato imponível
não se revela apenas no auferir remuneração, mas nofazerjus a ela, ainda
que o empregador, violando a lei e o contrato de trabalho, deixe de remune­
rar corretamente o trabalhador, impedindo a invocação de que, não tendo o
empregadorfeito qualquerpagamento de remuneração (como na hipótese
de mora salarial), nenhuma contribuição seria devida, nem pelo mesmo,
nem pelo segurado, em relação ao mês em que não houve pagamento.
(...)
Ofato imponível da contribuição previdenciária em questão não é o
pagamento do salário, mas sim a prestação de serviço pelo trabalhador,
verdadeiro critério material da hipótese de incidência da referida contri-

pagos os salários ou demais consectários legais, pois a sua exigibilidade ocorre a partir do
momento em que deveriam ter sido pagos à época, e não após a sentença trabalhista, em
execução. Entendimento contrário implicará benefício ao empregador inadimplente, pois haverá
dispensa judicial dos juros e da multa moratória, que nem sequer ocorre nos casos de parcelamento
ou denúncia espontânea." (TRT da 12a Região, 2a T., AP 01459-2007-038-12-01-5, rel. Juíza
Sandra Mareia Wambier, j. em 15/04/2009, D O E 08/05/2009 - grifou-se)
12 M ACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional (arts. 96 a 138). São
Paulo: Atlas, 2004, vol. II, p. 441.
4 3 6 - A P r e s t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d a s C o n t r ib u iç õ e s ..,

buição, devendo ser entendido como mês de competência aquele efe­


tivamente trabalhado.”13
O Superior Tribunal de Justiça pormenorizou com maestria a matéria,
fincando importantes precedentes de ambas as Turmas de sua Primeira Seção,
que valem ser citados pela clareza de suas ementas:
“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE O PAGA­
MENTO DE SALÁRIOS. FATO GERADOR. DATA DO RE­
COLHIMENTO.
1. O fato gerador da contribuição previdenciária do empregado não é o
efetivo pagamento da remuneração, mas a relação laborai existente
entre o empregador e o obreiro.
2. O alargamento do prazo conferido ao empregador pelo art. 459 da
CLT para pagar a folha de salários até o dia cinco (05) do mês subse­
qüente ao laborado não influi na data do recolhimento da contribuição
previdenciária, porquanto ambas as leis versam relações jurídicas dis­
tintas; a saber: a relação tributária e a relação trabalhista.
3. As normas de natureza trabalhista e previdenciária revelam nítida
compatibilidade, devendo o recolhimento da contribuiçãoprevidenciária
ser efetuado a cada mês, após vencida a atividade laborai doperíodo, inde­
pendentemente da data dopagamento do salário do empregado.
4. Em sede tributária, os eventuais favores fiscais devem estar expres­
sos na norma de instituição da exação, em nome do princípio da legali­
dade.
5. Raciocínio inverso conduziria a uma liberação tributária nãoprevista
em lei, toda vez que o empregador não adimplisse com as suas obrigações
trabalhistas, o que se revela desarrazoado à luz da lógicajurídica!’14
“TRIBUTÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SO­
CIAL. FATO GERADOR.
(...)

13 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARl, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 8a
ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 223-224 - destacou-se.
14 STJ, 1a T., v.u., REsp 501.918/SC, rel. Min. Luiz Fux, j. em 21/08/2003, DJU 15/09/2003, p.
254 - grifos nossos. No mesmo sentido, cf. STJ, 1a T., v.u., REsp 419.667/RS, rel. Min. Luiz Fux,
j. em 11/02/2003, DJU 10/03/2003, p. 97; STJ, 1a T., v.u., REsp 478.465/SC, rel. Min. José
Delgado, j. em 25/03/2003, DJU 12/05/2003, p. 226.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 3 7

4. Improvimento do recurso. Homenagem prestada ao acórdão recor­


rido que entendeu materializar-se o fato gerador da contribuição do
empregado com a prestação do serviço decorrente da relação de em­
prego e o direito, no final do período mensal ajustado, a receber o
salário devido.
5. Inconsistência da tese de que ofato gerador, na espécie, só ocorre com o
efetivo pagamento.”15
“TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. PRA­
ZO DE RECOLHIMENTO.
1. O fato gerador da contribuição previdenciária é a relação laborai
onerosa, da qual se origina a obrigação de pagar ao trabalhador (até o
quinto dia subseqüente ao mês laborado) e a obrigação de recolher a
contribuição previdenciária aos cofres da Previdência.
2. A folha de salário é a base de cálculo da exação, sendo irrelevante
para o nascimento do fato gerador o pagamento.
3. Disposição expressa do art. 30,1, ‘b’ da Lei 8.212/91 prevendo o
recolhimento da contribuição previdenciária até o segundo dia do mês
seguinte ao da competência.
4. Recurso improvido.”16
Ironicamente, a tese do fato gerador das contribuições sociais no paga­
mento contraria a vedação de instituir tratamento desigual entre contribuin­
tes que se encontrem em situações equivalentes (CF, art. 150, II).
Como se sabe, a igualdade tributária veda privilégios, “de modo que os
contribuintes que se encontrem em idênticas situações sejam submetidos a
idêntico regime fiscal”17. O tratamento diversificado somente seria autorizado
para aqueles “que se diversificam segundo critérios de Justiça racionalmente
postos e suficientemente motivados”18. Nao há critério de discriminação váli­

15 STJ, 1a T., v.u., REsp 221.362/RS, rel. Min. José Delgado, j. em 09/11/1999, DJU 17/12/1999,
p. 332.
16 STJ, 2a T., v.u ., REsp 502.650/SC, rel. Min. Eliana Calmon, j. em 16/12/2003, D JU 25/02/
2004, p. 149. No mesmo sentido, cf.: REsp 381.367/RS, REsp 685.698/RS, REsp 686,728/SC,
REsp 72 5.119/SC, REsp 384.372/RS.
17 UCKM AR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. 2a ed. Tradução de
Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 67.
18 RO CHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade. Belo Horizonte:
Jurídicos Lê, 1990, p. 39.
4 3 8 - A P r e s t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d a s C o n t r ib u iç õ e s .

do para que o contribuinte, na seara trabalhista, tenha tratamento diferencia­


do (no caso, mais benéfico) que na justiça comum ou mesmo se resolver pagar
sem a intervenção do Judiciário.
Reforça o impedimento desse critério de desigualdade, seja ele qual for,
além dos absurdos supra narrados, o estímulo ao desrespeito da legislação social
que esse entendimento traz. Acrescente-se que é exatamente quem é processa­
do e descumpre a legislação trabalhista é que leva a vantagem no caso. As nor­
mas tributárias que preveem a incidência das contribuições previdenciárias são
as mesmas, não havendo como modificá-las por causa do ramo do Judiciário no
qual estão sendo cobradas.
Esse é o quadro da questão fora da esfera trabalhista. Na Justiça do Tra­
balho, fruto de uma série de distorções, a questão assumiu rumo diverso, como
se verá.

3 . A TESE DO PAGAMENTO COMO FATO GERADOR DAS


CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

A corrente que entende ser o pagamento o fato gerador das contribuições


previdenciárias se embasa em diversos argumentos infraconstitucionais e, recen­
te e explicitamente, em um constitucional. Os infraconstitucionais são:
(i) a redação do caput do artigo 43 da Lei 8.212/91. A funda­
mentação se atém ao fato de que o dispositivo legal fala em
pagamento;
(ii) artigo 276 do Decreto 3.048/99 - que nada traz sobre o nasci­
mento da obrigação tributária (e nem poderia, por sua condição
de ato infralegal) e apenas dispõe sobre a data do pagamento das
contribuições previdenciárias. Tal argumentação foi recentemente
reforçada com a inserção do § 3o do artigo 43 da Lei de Custeio;
(iii) o Provimento 2/93 (art. 5o) e a Consolidação dos Provimentos
(art. 83), de 06/04/2006, da Corregedoria-Geral da Justiça do
Trabalho, que, embora revogados, ainda fundamentam algu­
mas decisões.
O único embasamento constitucional, evidenciado depois que a M P 449/
08 (Lei 11.941/09) inseriu o § 2o do artigo 43 na Lei 8.212/91, consiste em:
E d u a rd o F o rtu n a to B im - 4 3 9

(iv) negar a possibilidade da prestação de serviços ser fato gerador das


contribuições previdenciárias porque a Constituição fala em “pa­
gos ou creditados” (art. 195,1), e não devidos, tornando inconsti­
tucional qualquer tentativa de tributar fora do alcance das
expressões pagos ou creditados, embora não se cite o termo credi­
tados, limitando-se ao pagos.
Como reforço argumentativo dessa corrente, aduz-se que a tese da pres­
tação do serviço violaria o espírito da lei ao possibilitar a absurda situação de
que o crédito previdenciário ultrapasse o valor do crédito principal devido
ao trabalhador.
Todos esses argumentos somente prosperam na jurisprudência traba­
lhista, notadamente no TST e nos Tribunais Regionais do Trabalho, motivo
pelo qual a sua refutação constantemente se referirá aos problemas que sur­
gem nesse ramo do Judiciário.

4 . A REFUTAÇÃO DOS ARGUMENTOS INFRACONSTITUCIONAIS


DA TESE DO PAGAMENTO

O primeiro equívoco do pensamento no qual o caput do artigo 43 da Lei


de Custeio fundamentaria a tese do pagamento como fato gerador das contri­
buições previdenciárias é o de que o pagamento nele citado não se refere ao
momento da ocorrência do fato gerador, mas à conduta do juiz do trabalho. A
leitura do dispositivo deixa tal fato claro:
“Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar opagamento de direitos
sujeitos à incidência de contribuição previdenciária, ojuiz, sob pena de
responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das importân­
cias devidas à Seguridade Social.” (destacou-se)
Assim, quando houver sentença condenatória ou homologatória (“resultar o
pagamento de direitos”) sobre as quais haja verbas sujeitas ‘a incidência de contri­
buição previdenciária”, deve o juiz cobrá-las, sob pena de responsabilidade.
O artigo em tela não disciplina o momento da incidência do fato gerador
das contribuições previdenciárias, que está implicitamente disciplinado nos
artigos 22, I, 28, 30, I, b, da Lei 8.212/91, agora reforçado pela expressa
redação do § 2o do artigo 43 desse mesmo diploma normativo; trata somente
da obrigatoriedade de o juiz observar a quitações destas. É ordem endereçada
440 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r d as C o n trib u iç õ e s ..,

ao Judiciário para cooperar com a administração tributária, como bem fri­


sou Wladimir Novaes Martinez19.
Na redação original do artigo 43 da Lei 8.212/91 não havia previsão
para que o magistrado cobrasse as contribuições; apenas previa que em caso de
extinção de processos trabalhistas, inclusive com acordo, se fosse o caso, deve­
riam ser recolhidas incontinente as contribuições previdenciárias. Essa res­
ponsabilidade do magistrado somente veio com a Lei 8.620/93, reforçando o
argumento de que ele nunca quis regular o fato gerador, apenas impor ao juiz
a responsabilidade pela cobrança.
Ressalte-se que a redação da Lei de Custeio, antes da inserção do § 2o do
artigo 43, englobava as verbas pagas e também as creditadas (crédito jurídico,
como visto), o que existia desde a Lei 7.787/89.
Qual seria a relação entre o juiz cobrar, sob pena de responsabilidade
funcional, as contribuições previdenciárias quando em face de sentença com
verbas que as originam e o momento do nascimento da obrigação tributária?
Nenhuma. As verbas não nascem com a sentença trabalhista ou com o acordo
no processo trabalhista, mas são devidas por causa da prestação de serviço,
momento a partir do qual as verbas salariais e as previdenciárias deveriam ser
pagas. A sentença e o acordo têm o efeito meramente declaratório em relação
ao dever de pagar o tributo, que sempre foi devido.
A alegação de incerteza sobre a existência da obrigação tributária não
poderia ser aceita porque o contribuinte tem o dever de saber quando ocor­
rem os fatos que geram o dever de pagar o tributo ou, no mínimo, de correr o
risco por não sabê-lo. Risco, esse, imanente ao sistema capitalista, e que se
repete em inúmeras situações tributárias nas quais o contribuinte, por ques­
tões fáticas ou jurídicas, acaba descobrindo que deve determinado tributo.
Ademais, o Código Tributário Nacional estipula que sobre o crédito não in­
tegralmente pago no vencimento se acrescerá juros de mora, “seja qual for o
motivo determinante da falta” (art. 161).
Não existem dois fatos geradores das contribuições previdenciárias, a sa­
ber: um na justiça do trabalho e outro fora dela. Mesmo se fosse considerado
que é o juiz do trabalho o agente que lança o tributo, não haveria nenhuma

19 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Social. 6a ed. São Paulo:
LTr, 2008, tomo I, p. 509.
E d u a r d o F o r t u n a t o Bim - 441

especificidade nesse lançamento que justificasse, a partir da prestação do ser­


viço a título oneroso, o não cômputo dos encargos moratórios. Seria o mesmo
que um auditor-fiscal computasse somente os juros e multa a partir da inti­
mação do lançamento, mesmo que os fatos geradores tivessem ocorridos há
vários anos. Tal só poderia acontecer com categórica previsão legal nesse senti­
do, e mesmo nesse caso se poderia contestar a norma em face dos princípios da
igualdade e da razoabilidade.
A distinção trabalhada pela doutrina entre tempo do fato e tempo no
fato do lançamento tributário certamente ajuda a compreender a questão. Aquele
seria o momento citado no ato que lança o tributo, o outro, o momento no qual
esse lançamento ingressasse no mundo. Para o objetivo do texto, a sentença
trabalhista é o tempo do fato e a prestação de serviços é o tempo no fato: este é
o marco temporal para o início da cobrança dos encargos moratórios.
O segundo equívoco consiste em utilizar o artigo 276 do Decreto 3.048/
99 para embasar o nascimento do fato gerador. Dispõe o dispositivo infralegal:
“Art. 276. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direi­
tos sujeitos à incidência de contribuição previdenciária, o recolhimento
das importâncias devidas à seguridade social será feito no dia dois do
mês seguinte ao da liquidação da sentença.
§ Io No caso do pagamento parcelado, as contribuições devidas à
seguridade social serão recolhidas na mesma data e proporcionalmente
ao valor de cada parcela.”
O problema na exegese de tal dispositivo infralegal - o que já seria insu­
ficiente para lhe imprimir autonomia criadora do fato gerador por conta do
artigo 150, I, da CF e 97, III do CTN - reside na confusão do mero prazo
para recolher o tributo com o do nascimento da obrigação tributária.
O caput do artigo 276 do Decreto 3.048/99 é categórico em falar em
recolhimento (“recolhimento das importâncias devidas à seguridade social será
feito no dia dois do mês seguinte ao da liquidação da sentença”), bem como a
Lei 8.212/91: “recolher os valores arrecadados na (...) até o dia 20 (vinte) do
mês subsequente ao da competência” (art. 30,1, b).
Note-se que o recolhimento já foi previsto no dia dois do mês subse­
quente ao da competência, depois no dia 10 e, por último, no dia 20. Obvia­
mente que nunca houve regulação do nascimento da obrigação tributária,
apenas da data de recolhimento. O próprio Capítulo X da Lei de Custeio,
442 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r das C o n trib u iç õ e s .

no qual está inserido o dispositivo legal, fala sobre recolhimento, não sobre
fato gerador ou criação da obrigação tributária.
Observe-se que a possibilidade de recolher até o dia 20 do mês seguinte ao
da competência mostra que passada tal data (dia 20 da competência) há mora.
A Lei não se refere a qualquer tipo de dia 20, mas ao dia 20posterior ao da competên­
cia. Mês seguinte ao da competência significa “mês imediatamente posterior ao
da prestação do trabalho”20. Se a sentença vem depois da competência, há inegá­
vel mora desde a competência na qual houve a prestação do serviço.
O artigo 276 do Decreto, ao citar o dia dois do mês seguinte ao da
liquidação da sentença, não pretendeu (e nem poderia, sob pena de atentado
ao princípio da legalidade) alterar o fato gerador das contribuições previden­
ciárias que ocorre com a prestação do serviço, mas apenas colocar um termo
para o devedor quitar a sua dívida - que hoje é o dia 20, por força legal (Lei
8.212/91, art. 30, I, b). Como não existiria competência na sentença traba­
lhista de liquidação - o crédito já estaria vencido -, o Decreto estipulou um
prazo a partir dela, evitando-se a insegurança para o devedor, mas não impon­
do uma moratória ou anistia.
Sabe-se que o prazo para recolher o tributo pode ser regulado por outro
veículo que não a lei21, mas apenas no que concerne ao dia do mês - pode
escolher qualquer um sem desvirtuar a mensalidade do aspecto temporal do
fato gerador das contribuições previdenciárias. Não pode o veículo infralegal
postergar ad infinitum o cumprimento da obrigação tributária ou deixá-lo ao
sabor das circunstâncias (v.g., propositura da ação perante a Justiça do Traba­
lho), especialmente da vontade do contribuinte, como quer a exegese do artigo
276 do Decreto 3.048/99, que reconhece o pagamento, mesmo que seja diferi­
do com o parcelamento, como o fato gerador das contribuições previdenciárias.
Nicolau Konkel Junior - antes de defender que é irrelevante para a inci­
dência da contribuição o efetivo pagamento da remuneração - confirma a
mensalidade, independentemente do pagamento, aduzindo que a previsão do

20 STUDART, André. In: BALERA, Wagner (coord.). Previdência Social Comentada: Lei 8.212/91
e Lei 8.213/91, 2008, p. 161.
21 Exemplificadamente, cf.: STF, Pleno, RE 154.273, rel. Min. limar Calvão, j. em 21/06/1995,
D/U 14/06/1996, p. 21.077; STF, Pleno, RE 172.394, rel. p/ ac. Min. limar Galvão, j. em 21/
06/1995, RTJ 176/2/894; STF, Pleno, RE 140.669/PE, rel. Min. limar Galvão, j. em 02/12/
1998, RT) 178/1/361; ST], 2 a T., v.u., AR no AR no REsp 846.744/RS, rel. Min. Humberto
Martins, j. em 18/12/2008, D/e 13/02/2009.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 4 3

período mensal para o recolhimento da contribuição previdenciária fixa o “úl­


timo dia de cada mês como critério temporal dessa contribuição”22. Em outras
palavras, o critério ou aspecto temporal das contribuições previdenciárias é
mensal23, contemporâneo à prestação dos serviços.
Não convence o argumento de que o período mensal seria o fato gerador
das contribuições durante o contrato de trabalho, mas não quando da reclama­
ção trabalhista porque nesse caso haveria data específica. Se isso fosse admitido
não haveria fato gerador de contribuições creditadas, apenas das pagas (no sen­
tido fraco do termo, eqüivalendo a título executivo judicial), violentando-se a
autorização constitucional sem razoabilidade hermenêutica alguma.
Na mesma linha, não pode prevalecer a distinção entre o momento no
qual o fato gerador da obrigação previdenciária surge e a partir do qual o
empregador deve quitar os encargos previdenciários, visando justificar o atraso
no recolhimento do tributo e, ipsofacto, das multas e juros.
O aspecto temporal é mensal, isto é, no mês da prestação do serviço,
podendo haver recolhimento após tal mês até o dia 20. E inadmissível trans­
formar o momento do recolhimento das contribuições na Justiça do Traba­
lho em moratória ou anistia, uma vez que não se cobrariam juros e multa
desde o nascimento da contribuição previdenciária, não podendo prevalecer
mera exegese desvirtuada sem norma expressa nesse sentido.
Ademais, apenas para frisar, o regime em regra é o de competência. Quando
o artigo 30 da Lei de Custeio preceitua que a empresa é obrigada a recolher os
valores “até o dia 20 (vinte) do mês subsequente ao da competência” (art. 30,
I, b), deixa claro que o regime adotado é o de competência. Segundo Nicolau
Konkel Junior, “adotando a legislação brasileira, na escrituração contábil e fis­
cal, o regime de competência, é irrelevante que a despesa (no caso a folha de
salários) seja efetivamente paga”24. Confirma assim a tese de que não há ne­
cessidade de haver pagamento, apenas remuneração devida ao trabalhador,
afinado com a Constituição, que prevê o termo creditados.
Reforça tal argumento o fato de a Constituição, ao atribuir à justiça do
trabalho a competência para cobrar as contribuições, prever os acréscimos le­

22 KONKEL JU N IO R, Nicolau. Contribuições Sociais, 2005, p. 233.


23 BALERA, Wagner; MUSSI, Cristiane Miziara. Direito Previdenciário. 2a ed. São Raulo: Método,
2005, p. 75.
24 KONKEL JUN IO R, Nicolau. Contribuições Sociais, 2005, p. 168.
444 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r d as C o n trib u iç õ e s .,

gais (art. 114, VIII). Acréscimos legais que decorrem das contribuições pre­
vistas no dispositivo. A Constituição frisou os acréscimos legais porque natu­
ralmente eles preexistem à sentença trabalhista, consagrando o regime de
competência-, se eles somente surgissem com ela, a previsão seria desnecessária,
resolvendo-se a questão com a regra de que o acessório segue o principal.
Mesmo com a inserção na Lei 8.212/91 do § 3o no artigo 432S, tal
quadro não se altera, por várias razões.
Primeiro porque ele preceitua que as contribuições são apuradas com
referência ao período da prestação de serviços. Em segundo lugar, como se isso
não bastasse, ainda há a expressa referência aos acréscimos moratórios relativos
às competências abrangidas, evidenciando o regime de competência. A refe­
rência às competências abrangidas veda a tese de que o fato gerador seria
somente o pagamento porque implicaria na exclusão dos acréscimos morató­
rios relativos às competências abrangidas, já que o acréscimo moratório so­
mente incide de uma só vez, após a intimação da sentença de liquidação.
Não se pode fazer exegese dos dispositivos infraconstitucionais para al­
terar o alcance da Constituição. A interpretação deve ser da Constituição para
a legislação infraconstitucional. Não se pode usar o artigo 276 do Decreto
3.048/99 ou o § 3o do artigo 43 da Lei 8.212/91 para desvirtuar o conceito
de crédito previsto na Constituição, reduzindo-o ao de pagamento. O alcance
da norma constitucional não deve ser alterado somente porque as contribui­
ções estão sendo cobradas na Justiça do Trabalho. O fato gerador das contri­
buições previdenciárias é o mesmo, abrangendo não somente as verbas pagas,
mas também as creditadas.
Pretender que o fato gerador das contribuições previdenciárias na Jus­
tiça do Trabalho seja apenas o pagamento, é reduzir o alcance da norma
constitucional (art. 195, I) sem nenhum motivo para tanto, fazendo tábula
rasa da expressão creditados. Como se isso não fosse suficiente, a própria

25 Dispõe o novo dispositivo:


"§ 3o As contribuições sociais serão apuradas mês a mês, com referência ao período da
prestação de serviços, mediante a aplicação de alíquotas, limites máximos do salário-de-
contribuição e acréscimos legais moratórios vigentes relativamente a cada uma das competên­
cias abrangidas, devendo o recolhimento ser efetuado no mesmo prazo em que devam ser
pagos os créditos encontrados em liquidação de sentença ou em acordo homologado, sendo
que nesse último caso o recolhimento será feito em tantas parcelas quantas as previstas no
acordo, nas mesmas datas em que sejam exigíveis e proporcionalmente a cada uma delas."
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 4 5

Magna Carta diz que a competência para cobrar as contribuições inclui os


acréscimos legais (art. 114, VIII). Não faz sentido que se escolha a exegese
redutora da norma constitucional: os acréscimos legais não poderiam ser os
trabalhistas ou o serem até a sentença de liquidação. Ao contrário, tudo
indica que estes acréscimos devam ser os de caráter tributário, que correm
desde o momento no qual a contribuição previdenciária é devida: mês se­
guinte à prestação do serviço. Essa exegese poria os acréscimos em sintonia
com a matéria sobre a qual eles incidiriam, o tributo, devendo acompanhar
a data de pagamento dele, que certamente está sempre atrasado quando o
crédito é cobrado na Justiça do Trabalho.
Apenas o recolhimento deve ser feito no mesmo prazo dos créditos tra­
balhistas ou, em caso de acordo, nas datas do pagamento do acordo, como já
havia previsão no § I o do artigo 276 do Decreto 3.048/99. Em relação aos
acordos, frise-se que oprazo elástico para pagá-lo não elimina a incidência dejuros
e multa conforme o tempoforpassando. O prazo para pagar o acordo não implica
numa moratória ou anistia para o contribuinte, que nunca foi aventada nem
mesmo pelos defensores da tese do pagamento. Se nem mesmo o parcelamen­
to tributário elimina os encargos moratórios (CTN, art. 155-A, § I o), mesmo
durante o seu cumprimento, o que se dirá do mero recolhimento na Justiça do
Trabalho, ainda que parcelado pela vontade das partes.
Por último, algumas decisões ainda citam o Provimento 2/93 (art. 5o) e a
Consolidação dos Provimentos (art. 83), de 06/04/2006, da Corregedoria-Ge-
ral da Justiça do Trabalho (CGJT).
Embora esses artigos fossem expressos em prever, como fato gerador da
incidência da contribuição previdenciária, o pagamento de valores resultante
de sentença condenatória ou de conciliação homologada, ambos foram revo­
gados pela Consolidação dos Provimentos CGJT, de 28/10/2008. Esta revo­
gou expressamente o Provimento 2/93 (art. 117) e tacitamente, pela revogação
global, o artigo 83 da Consolidação dos Provimentos CGJT, de 06/04/2006,
uma vez que em sua atualização nada constou sobre a matéria, tendo sido tal
dispositivo extirpado da atual Consolidação dos Provimentos CGJT.
Conclui-se, dessa forma, que os argumentos infraconstitucionais não
subsistem a exame mais acurado, mas ainda resta o argumento constitucional,
cuja autonomia pode pôr em cheque a tese da prestação de serviço como fato
gerador das contribuições previdenciárias.
446 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r das C o n trib u iç õ e s .

5. A REFUTAÇÃO DO ARGUMENTO CONSTITUCIONAL DA TESE DO


PAGAMENTO: VEDAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO RETROSPECTIVA

A questão constitucional é o verdadeiro argumento subjacente à tese que


defende o pagamento como fato gerador das contribuições previdenciárias.
Isso ficou evidente após a Lei 8.212/91 ser aditada para que constasse
indubitavelmente que o nascimento do fato gerador ocorreria na prestação de
serviço (art. 43, § 2o). Com o advento desse dispositivo legal, inúmeros juizes
começaram a expor o verdadeiro motivo de seu entendimento, antes baseado
naqueles argumentos meramente infraconstitucionais; muitos declararam o
novo dispositivo inconstitucional porque extrapolava o termo pagamento pre­
visto na Constituição.
Não podendo negar o texto legal como outrora, começa-se a declarar
inconstitucional a norma inserida na Lei 8.212/91 (art. 43, § 2o) pela Lei
11.941/09, revelando a verdadeira questão que estava subjacente (inconstitu-
cionalidade da cobrança na prestação de serviço por violar a única autorização
constitucional de incidência: o pagamento) e que era dissimuladamente ven­
tilada como questão infraconstitucional. Tal atitude, além de camuflar a in-
constitucionalidade branca sob o pálio da interpretação infraconstitucional26,
tinha por fim precípuo evitar que a questão constitucional viesse à baila, con­
forme se demonstrará adiante.
O argumento constitucional do pagamento como fato gerador reside na
expressão do artigo 195, I, da Constituição: “pagos ou creditados”.
Só haveria fato gerador diante do pagamento: considerar que as contri­
buições seriam devidas pela simples prestação do serviço extrapolaria os limi­
tes da norma constitucional.
Ocorre que essa corrente, como ressaltado, não mantém a coerência con­
sigo ao considerar a intimação da sentença trabalhista o momento em que
nasce o fato gerador das contribuições previdenciárias. Isso porque não há
pagamento com a sentença trabalhista de liquidação, apenas a formação de
um título executivo judicial.

26 Conforme tratado em artigo sobre o tema: BIM, Eduardo Fortunato. A inconstitucionalidade


branca ou não declarada (velada) e o papel da ação declaratória de constitucionalidade (ADC).
In: BONIFÁCIO, Artur Cortez; ELALI, André; FRANÇA, Vladimir Rocha (coord.). Temas Atuais de
Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Paulo Lopo Saraiva. Curitiba: Juruá, 2010.
E d u a rd o F o rtu n a to Bim - 447

Se fosse para seguir a coerência, independentemente do que previsse


a lei, somente poderia haver a cobrança das contribuições previdenciárias
após o pagamento, ou seja, o efetivo recebimento da quantia pelo presta­
dor do serviço.
Não defendendo a coerência com o pagamento, a única explicação para a
tese do pagamento adviria da expressão creditados (CF, art. 195,1). Embora
se desconheça decisões nesse sentido, há que se admitir a possibilidade teórica
desse posicionamento para enfrentá-lo.
Como não existe qualquer relação entre intimação da sentença traba­
lhista de liquidação com o pagamento das verbas devidas, deslocar o su­
porte da tese na palavra “creditados” parece ser a escolha mais razoável, ou
menos desarrazoada.
Para se sustentar que o creditados do dispositivo constitucional não abran­
geria o crédito jurídico, aquilo que é devido, é necessário defender que o cre­
ditados eqüivaleria a algo mais restrito, ele seria sinônimo de título executivo
judicial. Só assim faria sentido o nascimento do fato gerador das contribui­
ções previdenciárias com a sentença trabalhista.
Essa concepção peca por ser extremamente restritiva ao termo credita­
dos, equiparando-o a título executivo judicial, como se o crédito não o prece­
desse. Considerar que apenas com a sentença haveria crédito seria impossibilitar
a correção e os juros antes da condenação, o que se afigura absurdo mesmo na
seara do processo. O absurdo seria maior em termos tributários se for visuali­
zado que manobras processuais poderiam protelar o nascimento do fato gera­
dor das contribuições previdenciárias, consistindo em verdadeiro perdão de
juros sem base legal. Em outras palavras, haveria espécie de remissão do crédi­
to tributário por ato de vontade do particular (tanto o que protela a ação
trabalhista, tanto daquele que não a propõe).
Também se poderia entender creditados como depositados na conta cor­
rente do prestador do serviço, mas o equívoco ficaria evidente na medida em
que o depósito na conta corrente é pagamento, não crédito: não há diferença
em pagar com notas ou com depósito bancário.
O histórico da matéria também demonstra que o quadro da matéria pré-
Constituição de 1988 era regido pela remuneração “efetivamente percebida”
(Lei 3.807/60, art. 76, I), e foi alterado em 1989 (Lei 7.787/89) para tam­
bém admitir o crédito. Quando a CF/88, alterada pela EC 20/98, previu a
4 4 8 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d a s C o n t r ib u iç õ e s ...

expressão creditados, ela expressamente encampou a regulamentação infra-


constitucional da matéria, autorizando a incidência sobre algo mais do que o
pagamento, no caso o crédito jurídico. Entender que o vocábulo creditados,
previsto na Constituição e na legislação infraconstitucional (Leis 7.787/89 e
8.212/91, na sua redação original), se circunscreveria ao pagamento, seria uma
autêntica interpretação retrospectiva, uma vez que “procura interpretar o tex­
to novo de maneira a que ele não inove em nada, mas, ao revés, fique tão
parecido quanto possível com o antigo”27.
Aliás, é de se notar que o efetivo pagamento - que se traduzia na
previsão “efetivamente percebida” (Lei 3.807/60, art. 76, I) - sumiu da
legislação infraconstitucional bem antes do advento da EC 20/98, não fa­
zendo sentido defender uma concepção tão restrita do termo pagamento
previsto no artigo 195,1, a, da CF, como sendo o efetivo recebimento. Tal­
vez, até por isso, a corrente, que defende que o fato gerador é o pagamento,
se contente com a mera sentença trabalhista de liquidação (título executivo
judicial), mesmo que ainda não tenha havido o efetivo pagamento. Até ela
reconhece que o pagamento previsto na Constituição difere do efetivo rece­
bimento da remuneração.
Não se pode interpretar o novo (creditados da CF/88 e das Leis 7.787/
89 e 8.212/91) como se fosse o velho (efetivo pagamento - remuneração
“efetivamente percebida” - da legislação infraconstitucional de 1960).
Pelos motivos acima mencionados, essa exegese constitucional restriti­
va não pode prevalecer. Como dito, o pagos da Constituição se restringe aos
adiantamentos decorrentes da prestação de serviço e o creditados ao crédito
jurídico, ao que é devido ao prestador do serviço/trabalhador a título onero­
so. Ambos se sustentam pela evolução legislativa infralegal do tema, não
encontrando os propalados óbices constitucionais.

27 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 5a ed. São Paulo: Sarai­
va, 2003, p. 71. Cunhador dessa expressão, José Carlos Barbosa Moreira, estigmatizando a
equivocidade desta postura hermenêutica, aduziu: "Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se
um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina
da matéria, afinal das contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. E um tipo de
interpretação a que não ficaria mal chamar 'retrospectiva': o olhar do intérprete dirige-se
antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da
realidade que uma sombra fantasmagórica." (O Poder Judiciário e a efetividade da nova
Constituição. RF 304/152).
E d u a r d o F o r t u n a t o Bim - 449

6 . O a r t i g o 4 3 , § 2 o d a Lei 8.212/91 c o m o n o rm a
MERAMENTE INTERPRETATIVA

O dispositivo do artigo 43, § 2o da Lei 8.212/91, que previu expressa­


mente a prestação do serviço, como fato gerador das contribuições previ­
denciárias, é meramente interpretativo.
Não apenas o STJ entendia que tal fato gerador era a prestação de servi­
ços, como a lei já falava em remunerações creditadas desde 1989 (Lei 7.787/
89, art. 3o), o que apenas foi consolidado com a Lei 8.212/91.
Viu-se que a inserção da palavra devidas na Lei de Custeio teve o efeito
meramente aclaratório, nada mudando em relação ao nascimento das contri­
buições previdenciárias, que já era o direito à remuneração (crédito) decorren­
te do trabalho. Como frisou Fábio Ibrahim, “a inclusão da expressão
remuneração devida não inovou na hipótese de incidência da contribuição
nem tampouco definiu o conceito de crédito jurídico, já perfeitamente deter-
minável mesmo anteriormente à Lei n° 9.528/97”2S.
Inseriu-se o § 2o no artigo 43 da Lei 8.212/91 visando pacificar o en­
tendimento na Justiça do Trabalho, completamente discrepante do STJ e do
claro teor das normas constitucionais e infraconstitucionais que regem a ma­
téria. A estratégia de inseri-lo no artigo 43 se deveu ao fato de que ele era
muito usado - equivocadamente, como se viu - pelo Judiciário trabalhista
para adotar a tese do pagamento como único fato gerador.
Tal inserção está longe de ser inovação jurídica, não contando com a
retroatividade vedada para as leis interpretativas.
Inobstante as críticas, a lei meramente interpretativa é aceita por nossa
jurisprudência, especialmente a do STF:
“E plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reco­
nhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram
instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada inter­
pretação autêntica. As leis interpretativas - desde que reconhecida a sua
existência em nosso sistema de direito positivo - não traduzem usurpação

28 IBRAHIM , Fábio Zambitte, O fato gerador da contribuição previdenciária patronal inciden­


te sobre remunerações pagas, devidas ou creditadas e seu prazo de recolhimento. R D D T
64/66. No mesmo sentido: IBRAHIM , Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário, 9a
ed., 2007, p. 256.
4 5 0 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d a s C o n t r ib u iç õ e s .

das atribuições institucionais doJudiciário e, em conseqüência, não ofen­


dem o postulado fundamental da divisão funcional do poder. (...)
Na medida em que a retroprojeção normativa da lei não gere e nem
produza os gravames referidos, nada impede que o Estado edite e
prescreva atos normativos com efeito retroativo.”29
A inserção do novo dispositivo nada agregou à situação normativa da
matéria, porque já havia, desde 1989, a previsão do creditados ou, o que se
aceita apenas para argumentar, o devidos desde 1997. Se não alterou o qua­
dro normativo da matéria não existe, na verdade, aplicação retroativa30.
O direito tributário italiano é expresso em admitir a lei interpretativa em
matéria tributária, embora exija que ela seja excepcional, por meio de lei e se
anuncie expressamente como tal (Legge 212/00, art. I o, 2).
Entretanto, nem todas esses requisitos podem ser aplicadas em nosso
ordenamento jurídico, com exceção da exigência de lei e da excepcionalidade
da medida (ela só deve existir quando necessária).
A exigência de lei é perfeitamente aplicável porque, tendo em vista a lega­
lidade tributária, somente a lei deve interpretar a lei tributária, uma vez que o
ato interpretativo deve ser resultado da mesma fonte normativa do ato interpre­
tado31. Como o primeiro ato interpretativo veio em 1997 (inserção de devidas
na Lei de Custeio pelas Leis 9.528/97 —conversão da M P 1.571/97 —e 9.878/
99, visando esclarecer o termo creditados previsto desde 1989: Lei 7.787/89,
art. 3o), a adição do § 2o do artigo 43 na Lei 8.212/91 em nada alterou o
quadro normativo que já existia desde 1989, cumprindo o requisito da mesma
fonte normativa.
A excepcionalidade da medida é exigida porque a lei interpretativa é
atividade anômala, não se contentando com a simples vontade do legislador

29 STF, Pleno, v.u., ADI-MC 605/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. em 23/10/1991, RT) 145/463. A
previsão da anômala competência para expedir leis interpretativas já vinha prevista na Constitui­
ção do Império (art. 15, VIII), sendo reconhecida pelo Código Tributário Nacional (art. 106, I).
30 STF, Pleno, v.u., HC 89.976/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 26/03/2009, DJe 24/09/2009
("Considero não haver aplicação retroativa da regra contida no art. 44, caput, da Lei n° 11.343/
06, ao presente caso, eis que o sistema jurídico anterior ao seu advento já não permitia a
substituição da pena corporal por pena restritiva de direito em relação aos crimes hediondos
e a eles equiparados").
31 "A configuração da interpretação autêntica impõe que o ato interpretativo emane da mesma
fonte de produção normativa e ostente o mesmo grau de validade e de eficácia jurídica da regra
de direito positivo interpretada." (voto do Min. Celso de Mello na ADi-MC 605)
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 5 1

de interpretar algo. Deve haver justa causa para a lei interpretativa. Esta
deve consistir na insegurança decorrente da divergência no âmbito de sua
aplicação, com posicionamentos divergentes, sem pacificação em sua aplica­
ção. Hugo de Brito Machado parece abonar a justa causa como divergência
interpretativa sobre o alcance da lei ao doutrinar:
“E razoável, portanto, admitir que o legislador, uma vez instaurada a
divergência a respeito da interpretação de uma lei, possa editar uma lei
nova com o objetivo de esclarecer o sentido e o alcance da lei anterior,
aplicando-se o entendimento consagrado na lei nova para a solução dos
casos ocorridos desde o início da vigência da lei interpretada. Com isso
se evitariam os longos e penosos processos judiciários, que se arrastam
por muitos e muitos anos, envolvendo inclusive ações rescisórias, com os
quais as partes buscam tratamento isonômico.”32
É exatamente o caso do nascimento das contribuições previdenciárias
aqui retratado, com o conseqüente termo inicial para juros e multa. O STJ
decide de uma maneira, a maioria da Justiça do Trabalho de outra (mesmo
após as Leis 9.528/97 e 9.878/99), justificando a excepcional intervenção do
legislador a esse título. “Só é lei interpretativa aquela que adota um dos signi­
ficados possíveis da lei interpretada. Em especial, significado que tenha sido
enunciado em manifestações jurisprudenciais reiteradas, em contraposição a
outras manifestações que atribuam significado diverso para a mesma lei”33.
O fato de a legislação (Lei 11.941/09, art. 26) não ser expressamente
interpretativa não constitui óbice para o reconhecimento da lei interpretativa.
Interpretativa é aquele diploma que não inova. Se inova, não será interpreta­
tiva ainda que expressamente diga que o é.
Segundo Hugo de Brito Machado, se a lei se limita a esclarecer o sentido
da anterior, “não é necessário dizer expressamente que apenas está interpre­
tando a lei anterior. Sendo possível encontrar na lei anterior regra jurídica
contida na lei nova, que apenas se expressa de forma mais clara, tem-se uma
lei interpretativa”34. Por isso o STF, no H C 89.976/RJ35, entendeu que não

32 M ACHADO, Hugo de Brito.Comentários aoCódigo Tributário Nacional (arts. 96 a138), 2004,


vol. II, p. 172.
33 Idem, p. 174.
34 Idem, ibidem.
35 STF, Pleno, v.u., HC 89.976/RJ, rel. Min.Ellen G rade, j. em 26/03/2009,DJe 24/09/2009.
4 5 2 - A P r es t a ç ã o d o S e r v iç o c o m o F a t o G e r a d o r d a s C o n t r ib u iç õ e s .

haveria aplicação retroativa em certa lei que previa restrição já existente na


legislação, ainda que ela não fosse expressa em se reconhecer como interpreta­
tiva ou não inovativa.
Ademais, a eventual inexatidão formal (no caso, a ausência de autodecla-
ração sobre a sua natureza interpretativa) de norma elaborada mediante pro­
cesso legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento
(LC 95/98, art. 18). Não apenas para o seu descumprimento, mas também
para forçar uma inovação legislativa inexistente.

7 . P o s s ib il id a d e d e a p l ic a ç ã o a n a l ó g ic a d a d o u t r in a
DO JUDICIAL DEFERENCE (CHEVRON DOCTRINE): PARECER
2 .9 5 2 / 0 3 / M P A S e in s t r u ç õ e s n o rm a tiv a s d a
(IN IN S S / D C 100/03,
A d m in is t r a ç ã o T r ib u t á r ia
SR P 0 3 / 0 5 E, ATUALMENTE, RFB 971/09)

Nos Estados Unidos, no precedente Chevron v. NRDC (Chevron U.S.A.,


Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc —1983) entendeu-se que a Admi­
nistração Pública detém primazia na interpretação dos conceitos indetermina­
dos das leis a ela dirigidas, somente podendo intervir o Judiciário em casos
teratológicos. Porque o Judiciário deveria respeitar, em regra, a exegese do Exe­
cutivo, a doutrina ficou conhecida como judicial deference. A deferência judicial
remete “ao livre juízo da Administração a interpretação que esta se digne a fazer
dos conceitos ambíguos, imprecisos ou indeterminados das Leis”36.
Não existe, nesse caso, campo para a aplicação da doutrina Chevron porque
não existe ambigüidade na lei, segundo o que aqui se defende. Segundo o
Justice Stevens, o primeiro passo {step one) para a aplicação da doutrina Chevron,
antes de se prestigiar a leitura do Executivo, seria a ambigüidade da lei37. A lei
conteria vaguidade, indefinição, havendo espaço para que seu sentido dúbio
seja precisado.
Conforme visto, a lei é clara em prever, desde 1989, a remuneração
creditada (crédito jurídico) como fato gerador das contribuições previden-

36 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. Uma nota sobre el interés general como concepto jurídico
indeterminado. Revista do Tribunal Regional Federal da 4 a Região 25/31, nota 10 - tradução livre.
37 SCALIA, Antonin. Judicial deference to administrative interpretations of law. Duke Law Journal,
vol. 1989, n° 3, Twentieth Annual Administrative Law Issue, p. 511 e 515.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 5 3

ciárias, o que foi super aclarado (lei interpretativa) em 1997 e 1999 - pela
inserção do termo “devidas” - e novamente reforçado em 2008 - com a
inserção do § 2o do artigo 43 da Lei 8.212/91.
Poder-se-ia argumentar que o fato de existirem leis interpretativas seria
claro sinal de que haveria dubiedade, mas o que ocorre está bem longe disso.
Trãta-se de mero desrespeito ao teor legal/constitucional. Por isso, defende-se
que a aplicação da doutrina Chevron ocorre por analogia, não de forma direta.
O segundo passo (step two) da doutrina Chevron seria a razoabilidade da
regulamentação legal38. Frise-se que, com talvez uma exceção (A T& T Corp.
v. lowa Utilities Board), a Suprema Corte nunca invalidou uma construção do
Executivo com base no segundo passo39. Admitindo-se, ad argumentadum
tantum, que haveria lacuna, vamos ver como a Administração Pública vem
tratando da matéria.
A matéria atinente ao fato gerador das contribuições restou elucidada no
Parecer 2.952, da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência e Assis­
tência Social (DOU 17, de 23/01/2003, p. 38-39), aprovado pelo Ministro
de Estado, com a seguinte ementa:
“SEGURIDADE SOCIAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DA
EMPRESA E CONTRIBUIÇÃO DO EMPREGADO. FATO
GERADOR. OCORRÊNCIA COM A EFETIVA PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO. O fato gerador da contribuição previdenciária da em­
presa incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos e contri­
buição do empregado sobrevêm com a efetiva prestação do serviço, quan­
do surge para a empresa o dever de remunerar o trabalhador. Inteligência
dos artigos 22, inciso 1,28 e 30, da Lei n° 8.212, de 24 dejulho de 1991.”
Admitindo-se, por analogia, a ambigüidade na lei, ela teria sido resol­
vida pelo próprio órgão estatal destinado a tutelar a previdência social, ou
seja, o Ministério da Previdência Social, que é o órgão técnico extremamen­
te especializado para tais questões, mormente quando se pronuncia por suas
ramificações técnicas, no caso a Consultoria Jurídica, gerando a aplicação da
doutrina do judicial deference ou Chevron.

38 SCALIA, Antonin. Judicial deference to administrative interpretations of law. Duke Law Journal,
vol. 1989, n° 3, Twentieth Annual Admihistrative Law Issue, p. 512.
39 Segundo M AGILL, M. Elizabeth. In: DUFF, John F.; HERZ, Michael (eds.). A Cuide to Judicial
and Political Review o f Federal Agencies. Chicago: American Bar Association, 2005, p. 86.
454 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r das C o n trib u iç õ e s ..

Mas além de tal parecer, a Diretoria Colegiada do INSS editou instru­


ção normativa que trata especificadamente dessa matéria (IN INSS/DC 100/
03, art. 71-72). Tal entendimento foi substituído pela extinta Secretaria da
Receita Previdenciária, IN SRP 3/2005 (arts. 65-66), que, por sua vez, foi
substituída pela IN RFB 971/09. Esta, em seus artigos 51 e 52, seção I e II,
intituladas “Do Fato Gerador das Contribuições” e “Da Ocorrência do Fato
Gerador”, dispôs:
“Art. 51. Constitui fato gerador da obrigação previdenciária principal:
I - em relação ao segurado empregado, empregado doméstico, trabalha­
dor avulso e contribuinte individual, o exercício de atividade remunerada;
II —em relação ao empregador doméstico, a prestação de serviços pelo
segurado empregado doméstico, a título oneroso;
III - em relação à empresa ou equiparado à empresa:
a) a prestação de serviços remunerados pelos segurados empregado,
trabalhador avulso, contribuinte individual e cooperado intermediado
por cooperativa de trabalho;
b) a comercialização da produção rural própria, se produtor rural pessoa
jurídica, ou a comercialização da produção própria ou da produção pró­
pria e da adquirida de terceiros, se agroindústria, observado o disposto
nos incisos II e III do art. 166;
c) a realização de espetáculo desportivo gerador de receita, no territó­
rio nacional, se associação desportiva que mantém equipe de futebol
profissional;
d) o licenciamento de uso de marcas e símbolos, patrocínio, publicidade,
propaganda e transmissão de espetáculos desportivos, a título oneroso,
se associação desportiva que mantém equipe de futebol profissional,
inclusive para participar do concurso de prognóstico de que trata a Lei
n° 11.345, de 14 de setembro de 2006;
IV - em relação ao segurado especial e ao produtor rural pessoa física, a
comercialização da sua produção rural, na forma do art. 166, observado
o disposto no art. 167;
V - em relação à obra de construção civil de responsabilidade de
pessoa física, a prestação de serviços remunerados por segurados que
edificam a obra.
E d u a r d o F o r t u n a t o Bim - 455

Art. 52. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato


gerador da obrigação previdenciária principal e existentes seus efeitos:
I - em relação ao segurado:
a) empregado e trabalhador avulso, quando for paga, devida ou credita­
da a remuneração, o que ocorrer primeiro, quando do pagamento ou
crédito da última parcela do décimo terceiro salário, observado o dispos­
to nos arts. 96 e 97, e no mês a que se referirem as férias, mesmo quando
recebidas antecipadamente na forma da legislação trabalhista;
b) contribuinte individual, no mês em que lhe for paga ou creditada
remuneração;
c) empregado doméstico, quando for paga ou devida a remuneração, o
que ocorrer primeiro, quando do pagamento da última parcela do déci­
mo terceiro salário, observado o disposto nos arts. 96 e 97, e no mês a
que se referirem as férias, mesmo quando recebidas antecipadamente
na forma da legislação trabalhista;
II - em relação ao empregador doméstico, quando for paga ou devida a
remuneração ao segurado empregado doméstico, o que ocorrer primei­
ro, quando do pagamento da última parcela do décimo terceiro salário,
observado o disposto nos arts. 96 e 97, e no mês a que se referirem as
férias, mesmo quando recebidas antecipadamente na forma da legisla­
ção trabalhista;
III - em relação à empresa:
a) no mês em que for paga, devida ou creditada a remuneração, o que
ocorrer primeiro, a segurado empregado ou a trabalhador avulso em
decorrência da prestação de serviço;
b) no mês em que for paga ou creditada a remuneração, o que ocorrer
primeiro, ao segurado contribuinte individual que lhe presta serviços;

Ressalte-se que o Parecer 2.952/03/MPAS e as Instruções Normati­


vas INSS/DC 100/03 e SRP 03/05 sempre estiveram em vigor, mesmo
com a criação da Super Receita (Lei 11.457/07, art. 48, I e II40), consti-

40 "Art. 48. Fica mantida, enquanto não modificados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil,
a vigência dos convênios celebrados e dos atos normativos e administrativos editados: I - pela
456 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o co m o F a to G e r a d o r das C o n trib u iç õ e s .

tuindo, depois da sua criação, atos da Secretaria da Receita Federal do


Brasil (RFB)41.
Poder-se-ia argumentar que a dúvida foi causada pela própria Adminis­
tração Tributária ao editar a OS Conjunta INSS/DAF/DSS 66/1997, que
em seu item 12 previu que o fato gerador seria o pagamento dos valores cor­
respondentes ao salário-de-contribuição. Como disse Giuseppe Melis, a dú­
vida interpretativa pode ser causada pela própria Administração ao adotar
atos contraditórios42.
Como não era apenas com o pagamento que surgia o fato gerador, a
Administração Tributária continuava recorrendo nos tribunais com a tese de
que seria o serviço o fato gerador, além do pagamento; tanto que na própria
OS Conjunta INSS/DAF/DSS 66/1997, a partir do item 18, estipulava que
o Fisco deveria calcular mês a mês, em conformidade com a planilha dos
créditos trabalhistas, as contribuições previdenciárias, evidenciando que elas
seriam devidas desde então.
Esse estado de coisas gerava dúvidas no alcance do item 12 da OS Con­
junta INSS/DAF/DSS 66/1997, bem como na própria atitude da Adminis­
tração, motivando a edição do Parecer 2.952/03/MPAS e, posteriormente,
dos artigos 71 e 72 da IN INSS/DC 100/03, referendados nos artigos 65 e
66 da IN SRP 3/2005 (atuais arts. 51 e 52 da IN RFB 971/09)43.

Secretaria da Receita Previdenciária; II - pelo Ministério da Previdência Social e pelo INSS


relativos à administração das contribuições a que se referem os arts. 2° e 3o desta Lei;"
41 A Ordem de Serviço do INSS (OS Conjunta INSS/DAF/DSS 66/1997), aduzindo que o fato
gerador seria o pagamento dos valores correspondentes ao salário-de-contribuição (item 12),
embora tenha sido expressamente revogada pela IN INSS/DC 100/03 (art. 791), não poderia
ser lida de maneira a abarcar todo o fato gerador (vez que deixou o creditadas de lado), sob
pena de ser ilegal porque contrária ao termo "creditados" - legalmente vigente desde 1989 - ,
além de nunca ter sido confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça. Tal equívoco foi corrigido
de forma expressa pelos artigos 71 e 72 da IN INSS/DC 100/03.
42 MELIS, Giuseppe. Hinterpretazione nel Diritto Tributário. Radova: CEDAM, 2003, p. 517.
43 Obviamente não significa que toda a normatização da Receita Federal do Brasil esteja de
acordo com a legislação e a Constituição, ou pelo menos sua leitura literal. O § 1o do artigo 72
da IN 971/09 considera "creditada a remuneração na competência em que a empresa contra­
tante for obrigada a reconhecer contabilmente a despesa ou o dispêndio ou, no caso de
equiparado ou empresa legalmente dispensada da escrituração contábil regular, na data da
emissão do documento comprobatório da prestação de serviços." A primeira parte do disposi­
tivo é razoável, eis que foca na obrigatoriedade de se reconhecer contabilmente a despesa ou
o dispêndio, mas a segunda parte, caso se entenda em termos absolutos, pode ensejar o
entendimento de que se não houver emissão de documento comprobatório da prestação de
serviços, não haverá creditamento, possibilitando a fraude, deixando o nascimento da obriga­
ção tributária na mão do contribuinte. O § 2o do mesmo artigo parece ser igualmente
desarrazoado, caso seja lido literalmente. Não há motivo para considerar, para os órgãos do
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 5 7

Como se isso não fosse suficiente, a própria Corregedoria-Geral da


Justiça do Trabalho (CGJT) revogou o entendimento dela constante no
Provimento 2/93 (art. 5o) e na Consolidação dos Provimentos de 2006 (art.
83), que definiam o fato gerador da contribuição previdenciária como sen­
do “o pagamento de valores alusivos a parcelas de natureza remuneratória
(salário-de-contribuição), integral ou parcelado, resultante de sentença con-
denatória ou de conciliação homologada”.
A revogação pela CGJT do dispositivo específico que tratava da matéria
pode ser outro sinal do reconhecimento de que o nascimento da obrigação
tributária não era exclusivamente o pagamento, mas também o crédito jurídi­
co do prestador do serviço.
Dessa forma, não apenas a doutrina e jurisprudência, ainda que não unâ­
nime, defendem como momento do fato gerador a prestação do serviço, mas
também diversos órgãos estatais (v.g., Ministério da Previdência Social, ex­
tinta Secretária de Receita Previdenciária e RFB), em interpretação mais do
que razoável, atraindo a aplicação da doutrina Chevron, caso se entenda haver
dúvida sobre o nascimento das contribuições previdenciárias.

8 . C o r o l á r i o d o n a s c im e n t o d a s c o n t r i b u i ç õ e s
PREVIDENCIÁRIAS NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO: JUROS E
MULTA A PARTIR DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO

Entretanto, surge uma corrente jurisprudencial que se nega a reconhecer


os efeitos de se considerar que as contribuições previdenciárias são devidas
com a prestação do serviço a título oneroso. Ela não aplica os juros Selic desde
a época da prestação de serviços, mas apenas depois da intimação da sentença
de liquidação (às vezes somente após o trânsito em julgado da sentença de
liquidação); entre esse período ela aplica juros trabalhistas.
Ficando claro que o vencimento da contribuição previdenciária seria
no mês seguinte ao da prestação do serviço, com a sua natural exigibilidade,

Poder Público, o creditamento "na competência da liquidação do empenho, entendendo-se


como tal, o momento do reconhecimento da despesa". Tal visão literal poderia ensejar a
manipulação do momento do fato gerador das contribuições pelo Poder Público, justamente
aquele que deve dar o exemplo, porque poderia haver atraso no reconhecimento da despesa.
Melhor ler ambos os parágrafos como o que ordinariamente acontece, escrituração contábil
regular, não como abarcando todas as possibilidades de creditamento.
458 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r d as C o n trib u iç õ e s ..

devem ser aplicados os juros a partir de tal data porque o termo inicial dos
juros é o atraso.
Mas qual juros? Certamente o previsto na legislação tributária (Lei 8.212/
91, art. 3544), a Selic4S. Se não bastasse a legislação tributária nesse sentido, a
Consolidação das Leis do Trabalho (art. 879, § 4o) também é categórica: “A
atualização do crédito devido à Previdência Social observará os critérios esta­
belecidos na legislação previdenciária”.
Não se afinaria com a ordem jurídica considerar como fato gerador a
prestação de serviços e aplicar os juros Selic somente depois da intimação da
sentença trabalhista de liquidação (ou do seu trânsito) ou da data do cumpri­
mento do acordo. O argumento de que não se pode computar juros Selic de
um débito tributário que não existia ou não era de conhecimento do contri­
buinte peca pelas mesmas razões da tese do pagamento, sendo apenas uma
maneira de escamotear a sua adoção.
O juro tributário é ex re, ou seja, automático, não depende de interpela­
ção (CTN, art. 161), motivo pelo qual ele não depende da intimação de ne­
nhuma sentença, ainda que trabalhista. Por isso não procede o argumento de
que não se pode confundir a data de constituição da obrigação com data de
configuração em mora.
Os juros trabalhistas nada têm a ver com os tributários previdenciários.
A própria diferença de natureza entre ambos os créditos desautoriza a aplica­
ção dos juros trabalhistas. Há distinção entre o pagamento de remuneração
pelo serviço prestado e o das contribuições sociais, ou seja: existem duas rela­
ções jurídicas distintas com destinos - e juros - autônomos. O caso trabalhis­
ta é ilustrativo. O salário pode ser pago até o quinto dia útil do mês (CLT, art.
459, § I o), as contribuições devem ser pagas até o dia vinte de cada mês. O
salário decorre do acordo de vontade das partes, a contribuição previdenciária,
da lei. Um é devido ao empregado, o outro é devido à União. Um pode ser

b e c do parágrafo único do art. 11


44 "Art. 35. Os débitos com a União decorrentes das contribuições sociais previstas nas alíneas a,
desta Lei, das contribuições instituídas a título de
substituição e das contribuições devidas a terceiros, assim entendidas outras entidades e
fundos, não pagos nos prazos previstos em legislação, serão acrescidos de multa de mora e
juros de mora, nos termos do art. 61 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996."
45 Na impossibilidade de ser a Selic porque ela ainda não foi divulgada para o mês, deve-se usar
1% (CTN, art. 160, § 1o).
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 5 9

objeto de transação na Justiça do Trabalho ou mesmo na cível, o outro, no


atual estágio jurídico, não pode ser transacionado.
Quando a Constituição fixa a competência da Justiça do Trabalho, para
cobrar as contribuições, é expressa em incluir os acréscimos legais (art. 114,
VIII); esses acréscimos são os juros (Selic) e as multas tributárias previstas na
legislação, não são os acréscimos trabalhistas, caso no qual ela não precisaria
prever nada.
Não se deve deixar entrar pela janela o que se expulsou pela porta. A
correção do crédito tributário deve ocorrer pela Selic desde a data na qual o
tributo deveria ter sido pago (mês seguinte ao trabalhado), não havendo base
jurídica para aplicar em determinado período os juros trabalhistas, que corri­
gem o débito trabalhista, não o tributário.

9 . A FALÁCIA DO REFORÇO HERMENÊUTICO DA TESE DO FATO


GERADOR PAGAMENTO: SUPOSTA VEDAÇÃO DO CRÉDITO
TRIBUTÁRIO SER MAIOR DO QUE O TRABALHISTA

Como reforço argumentativo da tese do pagamento, aduz-se que não se


coadunaria com o espírito da lei a tese da prestação do serviço porque ela pode­
ria levar a situação inusitada: deixar o valor das contribuições previdenciárias
maior do que os créditos trabalhistas. Nessa linha, o TST, ao acatar a tese do fato
gerador no pagamento, argumentou:
“(...) Considera-se que esse critério se coaduna com o espírito da Lei
que, ao prever a possibilidade de execução das contribuições
previdenciárias por estaJustiça do Trabalho, inclusive incidentes sobre
os salários pagos no curso da relação de emprego reconhecida
judicialmente, com certeza não pretendeu onerar excessivamente os
contribuintes, com a criação de possíveis situações inusitadas como, por
exemplo, a do crédito previdenciário ultrapassar o valor do crédito
principal devido ao trabalhador.”46
Para essa corrente de pensamento, existiria esse reforço argumentativo
consistente em evitar a priori que o Fisco tivesse crédito maior do que o traba­

46 TST, 6a T., v.u., RR 115/2007-147-15-00.9, rel. Min. Maurício Codinho Delgado, j. em 05/08/
2009, DEJT 14/08/2009.
460 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r das C o n trib u iç õ e s .

lhador. Em outras palavras, seria um valor a ser perseguido pelo sistema que os
créditos tributários fossem inferiores aos trabalhistas.
Ocorre que não existe norma em nosso ordenamento proibindo o crédi­
to tributário de ser maior do que o devido ao trabalhador, ainda que arrecada­
do na Justiça do Trabalho. Não há nenhum valor que prestigie tal entendimento.
Além do crédito do trabalhador se submeter a regime jurídico distinto
do tributário, pagar menos juros tem um lado perverso para o próprio traba­
lhador, comprometendo a tutela de seus direitos sociais. Ainda mais quando o
pagamento somente pode ser “relevado” na Justiça do Trabalho, tendo como
efeito deletério o abuso do Judiciário para pagar menos tributo e a inadim­
plência da prestação dos serviços prestados; caso contrário não haveria recla­
mação trabalhista e nem como relevar esse crédito tributário.
Richard Posner expõe que o pragmatismo “é interessado nos ‘fatos’ e
também deseja estar bem informado sobre a operação, propriedades e prová­
veis efeitos de cursos alternativos de ação”47. O entendimento de que o fato
gerador somente ocorre na intimação da sentença de liquidação prejudica o
trabalhador porque estimula o empregador ou tomador do serviço a não re-
gistrá-lo ou pagá-lo.
Para que pagar o tributo hoje, se amanhã, caso o contribuinte seja proces­
sado na Justiça do Trabalho, ele pode pagá-lo com juros bem menores, uma vez
que o termo inicial seria a intimação da sentença de liquidação? Mais, para que
pagar o tributo se mesmo condenado ele poderá fazer acordo discriminando
apenas verbas indenizatórias, além da garantia mínima de pagar menos juros?
O argumento de que a aplicação dos juros poderia levar o crédito tribu­
tário a valor maior do que o trabalhista é completamente desarrazoado. Não
guarda vinculação alguma com a proteção ao trabalhador e a educação fiscal;
apenas estimula a inadimplência tributária e o desrespeito às regras trabalhis­
tas48. Ademais, pragmaticamente falando, viu-se que esse entendimento tam­
bém prejudica o trabalhador.

47 POSNER, Richard A. Overcoming Law. 3a ed. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 5 -
tradução livre.
48 Já que usualmente a inadimplência tributária tem que vir acoplada à trabalhista para realmente
valer a pena pagar na Justiça do Trabalho menos verbas trabalhistas, juros e, até mesmo,
contribuições previdenciárias, eis que o acordo pode prever diversas verbas indenizatórias sem
que essas sejam proporcionais ao pedido na inicial.
E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 6 1

Por último, vale lembrar que o argumento de que o crédito tributário


pode ser maior que o trabalhista se baseia em uma exceção. O próprio TST
reconhece isso ao falar em “criação de possíveis situações inusitadas”. Se o
argumento se baseia numa exceção, ele dificilmente deveria sustentar a regra
ou ser considerado seriamente como reforço hermenêutico. O que deveria ser
levado em conta é a regra: o contribuinte, sabendo que ele pode pagar menos
juros ou mesmo nem pagar o principal (se fizer acordo indenizatório), des-
cumpre a legislação social e a previdenciária.

10. C o n clu sã o

A evolução legislativa do fato gerador das contribuições previdenciárias


demonstra que a tese do pagamento, adotada pela Lei 3.807/60 (“remuneração
efetivamente percebida”), foi abandonada em 1989, quando a Lei 7.787/89
falou em verbas creditadas, além das pagas. Por isso, quando a EC 20/98 alterou
a redação do artigo 195,1 (repetindo o pagos e creditados da legislação infracons-
titucional, à época já a Lei 8.212/91), já não havia mais razão para entender que
o pagamento era a única autorização para a legislação infraconstitucional.
O posicionamento isolado majoritário da Justiça do Trabalho em consi­
derar que o fato gerador das contribuições ocorre somente com a sentença,
sendo esse o marco inicial dos juros e multas, não tem base legal - além de
estar em desarmonia com a evolução histórica do fato gerador constitucio­
nal ou mesmo jurisprudencial que a antecedeu, vez que o STJ sempre enten­
deu ser ele a prestação de serviços. Some-se a isso os absurdos que a corrente
do pagamento leva.
O primeiro é o de não considerar o pagamento propriamente dito como
o fato gerador, como poderia parecer à primeira vista, contentando-se com a
sentença trabalhista de liquidação. O segundo é deixar que o contribuinte
simplesmente escolha o momento do nascimento das contribuições previden­
ciárias para o cômputo inicial de juros e multa - uma vez que ele pode não
pagar somente para fazê-lo na justiça do trabalho - ou mesmo tentar “isen­
ção” na Justiça do Trabalho ao fazer acordo com verbas 100% indenizatórias.
Isso sem contar a possibilidade de não haver ação trabalhista e ele nem chegar
perto de pagar algo. Por fim, induz a desigualdade no tratamento entre os
contribuintes pelo simples fato dele estar ou não sendo processado na Justiça
do Trabalho. Pior: se beneficia quem é processado e condenado.
462 - A P re s ta ç ã o d o S e rv iç o c o m o F a to G e r a d o r d as C o n trib u iç õ e s ..

Embora o STF já tenha dito que a questão do fato gerador das contri­
buições seja matéria infraconstitucional, vez que enfrentaria somente a inter­
pretação de regras legais49, tal na verdade não ocorre.
O que está em jogo não se limita apenas a dispositivos infraconstitucio-
nais. Embora o fato gerador seja previsto em lei para poder fazer nascer o
tributo, seus limites são constitucionais, sendo que a exegese emprestada pela
majoritária jurisprudência trabalhista nada tinha de infraconstitucional no
sentido puro do termo. O que ela fazia era escamotear o seu verdadeiro argu­
mento, que era o constitucional: só deveria existir contribuições previdenciá­
rias sobre o pagamento, que ela entendia como sinônimo de intimação da
sentença de liquidação (ciência do título executivo judicial).
Havia a declaração branca (ou não declarada) de inconstitucionalidade, o
que se evidenciou com três posicionamentos que começaram a surgir para
continuar sustentando a tese do fato gerador pagamento.
O primeiro simplesmente julga inconstitucional o aditamento do artigo
43, § 2o, da Lei de Custeio, porque se afasta da tese do pagamento, que teria
estatura constitucional. O segundo, mantendo a tradição de escamotear o argu­
mento constitucional, é o de que o § 3o do artigo 43 da Lei 8.212/91 mantém
a tese do fato gerador no pagamento, embora haja norma específica em sentido
contrário no parágrafo anterior. O terceiro é o de que a fato gerador é a prestação
de serviços, mas os juros Selic somente são aplicados depois da intimação da
sentença de liquidação; até ela se aplicam os juros trabalhistas.
A partir do momento no qual os magistrados do trabalho começam a
afastar a aplicação do § 2o do artigo 43 da Lei 8.212/91, sob o fundamento
da sua inconstitucionalidade, revelou-se a verdadeira exegese praticada: a de
que o fato gerador estaria delimitado na Constituição e se restringiria apenas
ao pagamento.
Como reforço argumentativo à tese do nascimento das contribuições pre­
videnciárias no pagamento, sustenta-se também que a tese da prestação de ser­
viço poderia levar à inusitada situação de que o crédito tributário seja maior do
que o trabalhista. Tese que não se baseia em nenhuma norma ou valor de nosso
ordenamento, eis que não existe nada que diga que o crédito tributário não

49 Cf. exemplificadamente, AR no Al 508.398/RS, 545.124/SC, 497.815/RS e 533.602/SC.


E d u a r d o F o r t u n a t o B im - 4 6 3

possa ser maior do que o trabalhista. Ademais, tal entendimento só prejudica o


trabalhador na medida em que o contribuinte não pagará a verba devida para
justificar a propositura da reclamação trabalhista pelo trabalhador, arena no
qual aquele poderá pagar juros menores ou mesmo conseguir isenção do paga­
mento pelo acordo constituído apenas por verbas indenizatórias.
O instinto de sobrevivência da própria decisão, aliado à negativa do STF
em conhecer recursos extraordinários sobre a matéria, camuflaram a verdadeira
exegese que deveria ser imposta à matéria. Ao invés do julgador mostrar as
verdadeiras razões pela qual ele decidia, ficava na confortável posição de fazê-lo
a partir das normas infralegais, o que é equivocado, uma vez que nenhuma das
fundamentações usadas serve para tal objetivo, como visto nos itens 3 e 4.
Diante desse quadro, a existência da declaração branca de inconstitucio-
nalidade é patente, reforçando-se com a persistência de alguns juizes de ten­
tar anular a clareza do § 2o do artigo 43 da Lei 8.212/91 com o § 3o do
mesmo dispositivo ou mesmo deixar as coisas como estavam a partir da não
aplicação da Selic desde a prestação do serviço, mas tão somente a partir da
intimação da sentença trabalhista de liquidação.
Como se defendeu em outro artigo50, a ação declaratória de constitucio-
nalidade é o melhor instrumento de que dispõe o ordenamento para resolver
esses casos de inconstitucionalidade branca, velada ou não declarada.
Outra causa autônoma para o cabimento da ADC é o patente divórcio
na aplicação da mesma legislação perante à Justiça comum e à trabalhista.
Como não existe recurso no sistema constitucional brasileiro para uniformi­
zar tal entendimento, o recurso ao controle concentrado de constitucionalida-
de seria razoável e justificado. Poder-se-ia usar a ADC para evitar que essas
radicais discrepâncias hermenêuticas sejam uniformizadas, pacificando a ques­
tão, eliminando ou não as divergências, vez que o STF poderia entender que
ambos os posicionamentos são perfeitamente compatíveis.

50 BIM, Eduardo Fortunato. A inconstitucionalidade branca ou não declarada (velada) e o papel


da ação declaratória de constitucionalidade (ADC). In: BO N IFÁCIO , Artur Cortez; ELALI,
André; FRANÇA, Viadimir Rocha (coord.). Temas Atuais de Direito Constitucional - Estudos em
Homenagem a Paulo Lopo Saraiva. Curitiba: Juruá, 2010.
A Progressividade no
Imposto de Renda
Pessoa Física

Eduardo José Paiva Borba


Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, Presidente Substituto da I aTurma
da Delegacia da Receita Federal do Brasil deJulgamento no Rio deJaneiro.
Mestre em Direito Político e Econômicopela Universidade Mackenzie.
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 4 6 7

1 . In t r o d u ç ã o

O presente trabalho pretende analisar a técnica da progressividade apli­


cada no I mposto de R enda P essoa F ísica (IRPF), principalmente a relação
existente entres as deduções/abatimentos reconhecidos pela legislação fiscal e
as alíquotas estabelecidas para fins de cálculo da efetividade da técnica no
âmbito do IRPF.
De imediato, é importante relembrar que o art. 153 da Constituição
Federal de 1988 dispõe que compete à União instituir impostos sobre renda
e proventos de qualquer natureza. Diz ainda que o imposto será informado
pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade (Art.
153. Compete à União instituir impostos sobre: [...] III - renda e proventos
de qualquer natureza; [...]§ 2o - O imposto previsto no inciso III: I - será
informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressivi­
dade, na forma da lei [...]). Isto é, determina o dispositivo que a cobrança do
Im posto d e R enda seja feita considerando alíquotas crescentes em função da
faixa de renda de cada contribuinte. Em outras palavras, a imposição deve se
dar mediante alíquotas crescentes quanto maiores as bases tributáveis, e não
por meio de alíquota uniforme para qualquer base de cálculo.
Existem estudos sobre a progressividade no âmbito do IRPF que apu­
ram a efetividade da mencionada técnica relacionando os rendimentos do
contribuinte, a parcela a deduzir da tabela progressiva e a alíquota nominal,
para ao final apurar a alíquota efetiva. Consequentemente, costumam con­
cluir que existem inúmeras alíquotas efetivas, a satisfazer a norma do art.
153 da Constituição Federal1.
Duas críticas merecem ser feitas ao pensamento acima aludido. A pri­
meira crítica é a pouca importância dada à alíquota nominal, conquanto seja
justamente dela de que dispõe a norma do art. 153 da Constituição Federal.
Com efeito, o que determina o texto constitucional, em primeiro lugar, é que
as alíquotas nominais serão progressivas. Já a segunda crítica refere-se à adoção
do rendimento como parâmetro para apurar a efetividade da técnica da pro­
gressividade no âmbito do Im posto d e R enda P essoa Física, visto que o pa­
râmetro deve ser obrigatoriamente a renda do contribuinte, ou seja, é preciso

1 Nesse mesmo sentido, vide o sítio da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB). Disponível em:
<https://www.receita.fazenda.gov.br/Aplicacoes/ATRJO/Simulador/SimlRPFAnual2009.htm>.
468 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a Pessoa Física

abater dos rendimentos auferidos todos os abatimentos vinculados à ideia do


mínimo existencial. Aliás, se adotarmos as receitas, no caso de pessoa jurídica,
e os rendimentos, no caso de pessoa física, como citado, seremos forçados a
concluir que inexoravelmente teremos impostos progressivos, ainda que se
estabeleça uma única alíquota proporcional, visto ser inafastável a existência
de inúmeros custos, depesas e deduções/abatimentos.
É justamente a segunda observação que será objeto do presente artigo.
Com efeito, quer-se demonstrar que, além de alíquotas crescentes em função
da base de cálculo, exige o art. 153 da Constituição Federal de 1998 que a
efetividade da técnica da progressividade no âmbito do Im posto d e R enda
P essoa FIsica seja calculada apenas em decorrência dos abatimentos vincula­
dos à meros benefícios fiscais concedidos independentemente da concretiza­
ção do mínimo existencial.
Por outro lado, a importância do presente estudo cinge-se à percepção de
que a concessão de abatimentos decorrentes de objetivos extrafiscais, a dimi­
nuir a base tributável, conjugados com certas alíquotas progressivas, pode causar
um efeito indesejado pelo texto constitucional transcrito acima, isto é, a re-
gressividade do Im posto d e R enda, visto que geralmente favorecem os contri­
buintes de maior poder aquisitivo, ao contrário dos abatimentos derivados do
mínimo existencial.

2 . F u n d a m e n t o s d a t é c n ic a d a p r o g r e s s i v id a d e

Identificar qual a técnica, isto é, se a progressividade, vista como imposi­


ção fiscal através de alíquotas crescentes quanto maiores as bases tributáveis,
ou a proporcionalidade, vista como imposição fiscal por intermédio de alí­
quota uniforme para qualquer base de cálculo, melhor se compatibiliza com a
igualdade é questão muito problemática, requerendo saber, inclusive, se po­
demos afirmar que só uma delas, ou as duas, decorre diretamente do princípio
da capacidade contributiva2.

2 Cf. SO USA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. 2a ed. Rio de Janeiro:
Editora Financeiras, 1954. p. 171: "Progressão simples é aquela em que cada alíquota maior se
aplica por inteiro a toda matéria tributária. Progressão graduada é aquela em que cada alíquota
maior calcula-se apenas sobre a parcela do valor compreendida entre um limite inferior e outro
superior, de modo que é preciso aplicar tantas alíquotas quantas sejam as parcelas de valor e
depois somar todos esses resultados parciais para obter o imposto total a pagar".
E d u a r d o Jo sé P a iv a B o r b a - 469

Com efeito, a partir do século XVIII, com a obra de A dam Sm ith3, A


R iqueza DAS N a çõ es, prevaleceu o entendimento de que os cidadãos deveriam
contribuir proporcionalmente aos benefícios auferidos sobre a proteção do
Estado - teoria do benefício. A progressividade somente ganhou importância
na segunda metade do século XIX, quando surge o conceito de utilidade
marginal de riqueza - teoria do sacrifício4. Já a doutrina jurídica da
progressividade decorrendo diretam ente do princípio da capacidade
contributiva entrou em refluxo nas duas últimas décadas do século passado,
retornando à intensa defesa da tributação proporcional.
VlCTOR U ckm ar5 ratifica o que foi dito acima, concluindo que com o
descrédito das inúmeras teorias (criadas com a finalidade de demonstrar que a
capacidade contributiva aumenta progressivamente em função direta da de­
crescente utilidade marginal da riqueza), carece a definição das alíquotas pro­
gressivas e proporcionais ser delegada à Ciência Econômica e aos políticos,
pois cumpre a eles estabelecer o que é mais justo na concretização do princí­
pio da igualdade tributária.
N este mesmo sentido, Liam M urphy e Thom as N a g e l6 entendem que
os estudos econômicos sobre a tributação não foram capazes de eliminar todas
as dúvidas sobre o fundamento e o grau perfeito da progressividade, embora,
ainda que intuitivamente, esta deva ser um instrumento de justiça, compati­

3 Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
4 Para mais detalhes: Cf. CONTI, José Maurício. Princípios Tributários da Capacidade Contributiva
e da Progressividade. São Paulo: Dialética, 1996. p. 31 e 32; Cf. LIV IN G STO N , Michael.
Progressividade e Solidarietà: uma perspectiva norte-americana. In: GRECO, Marco Aurélio et.
ail. Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005. p. 190.
5 Cf. UCKM AR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. 2a ed. rev. e atual.
São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 92.
6 Cf. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O Mito da Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 189: "Mas há uma conclusão muito importante a se tirar das lições dos economistas sobre
a distinção entre meios e fins. Se eles nos dizem que alíquotas mais baixas associadas a uma
renda mínima universal seriam, mesmo do ponto de vista de uma teoria de justiça fortemente
igualitária, melhores do que uma gradação progressiva de alíquotas coroadas por uma alíquota
bastante alta na faixa de renda mais elevada, isso não nos dá absolutamente nenhum motivo
para deixar de lado as alíquotas altas sem introduzir um programa de renda mínima universal
[...] Costuma-se afirmar [...] que as conclusões dos estudos de otimização tributária influenci­
aram a tendência de redução das alíquotas na década de 1980. Essa tendência não se vincula
à atribuição de um papel mais importante às transferências de dinheiro vivo, muito pelo
contrário. Ninguém que se preocupe com o bem-estar, nem mesmo os utilitaristas, pode
encarar as desigualdades que tem crescido nos Estados Unidos nos últimos vinte anos como
uma melhora do ponto de vista de justiça. É possível que, em suas conseqüências práticas de
curto prazo, o interesse dos economistas pelos efeitos comportamentais da tributação tenha
feito mais mal do que bem à causa da justiça social".
470 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a Pessoa Física

bilizado com um programa de renda mínima universal - até porque, como


acreditam, a corrente conservadora que opinou pela redução das alíquotas nos
últimos anos produziu muito mais desigualdades do que justiça social nos
Estados Unidos da América, berço, aliás, do ocaso da técnica da progressivida­
de no século passado.
Nada obstante, é fácil constatar que a maioria dos juristas ainda reco­
nhece a importância da progressividade, ora encontrando seu fundamento na
capacidade contributiva, ora no princípio da igualdade ou ainda no princípio
do Estado Social. Com suporte na unicidade do imposto e na capacidade
contributiva, M a d a len a S o fia Paum ier-B ianco7 defende em Portugal que a
progressividade é justificável, máxime pela sua eficácia como justiça corretiva,
ao ponderar que pelo emprego da progressividade é possível efetuar uma cor­
reção da distribuição primária do rendimento, possibilitando uma redistri-
buição orientada por critérios de justiça.
José C a sa lta N abais8preleciona que o imposto progressivo decorre do
princípio do Estado Social. Em compêndio, informa que a técnica em co­
mento é um fator importante para a realização da solidariedade social, a per­
mitir, na seara do imposto incidente sobre a renda, uma redistribuição forçada
de rendimentos, além de diminuir ou eliminar a regressividade de outros im­
postos do sistema, ou, quiçá, por conduzir a uma determinada progressivida­
de do sistema fiscal global.
Na Itália, P asqu ale Russo percebe que a tributação crescente, em relação à
base tributável, legitima, em função da solidariedade e da capacidade contribu­
tiva, “uma ação igualitária voltada para remover os obstáculos de ordem econô­
mica e substancial que limitam de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos”9.
Já na Espanha, Eusebio G o n zá lez e T ereza G o n zá lez defendem que a
progressividade busca seu fundamento na igualdade, com a função de alcançar
os vários objetivos constitucionais, entre eles, a busca pela relativa igualdade dos

7 Cf. PAUMIER-BIANCO, Madalena Sofia. Família e Imposto: a tributação da casa de morada de


família. Lisboa: Coimbra Editora, 2002. p. 68.
8 Cf. NABAIS, José Casalta. Direito Fiscal. 3a ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 163.
9 Cf. RUSSO, Pasquale. Os Princípios Fundamentais. In: FERRAZ, Roberto et. ali. Princípios e Limites
da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 405; Sobre a relação do princípio da capaci­
dade contributiva e a técnica da progressividade na doutrina e na Constituição italiana: Cf.
MAFFEZZONI, Federico. II Principio dl Capacita Contributiva nel Diritto Finanziario. Torino: UTET,
1970. p. 299; Cf. MANZONI, Ignazio. II Principio delia Capacita Contributiva Nell'Ordinamento
Constituzionale Italiano. Torino: Giappichelli, 1965. p. 181.
E d u a r d o Jo sé P a iv a B o r b a - 471

indivíduos após o pagamento dos tributos, ou, nas suas palavras, “mejorar, con
ocasión dei pago de los tributos y a través de los mismos, la redistribución de la
renta y la riqueza, objetivo explicitamente buscado por la Constitución”10.
Na Alemanha, K laus Tipke11entende que embora a capacidade contri­
butiva exija uma base de cálculo adequada, não nos permite deduzir dela
diretamente a alíquota progressiva. Contudo, também salienta que em todos
os países marcados pelas preocupações de índole de justiça social, sua admis­
sibilidade se justifica através do princípio do Estado Social. No mesmo racio­
cínio anterior, KARL L arenz preleciona que a justiça distributiva, ao requerer
o postulado da proporcionalidade, exigiria retirar de todos uma mesma quan­
tidade de renda, ou seja, da capacidade contributiva de cada devedor, através
de alíquotas iguais. Contudo, esta seria uma verdade incompleta, pois, com
efeito, “afectaría de modo desigual y seria mucho más duro para quien tuviera
unas rentas más muy próximas al mínimo vital que para el que obtiene rentas
más elevadas”12. Desta forma, com base no princípio do equilíbrio social, ou
de nivelamento social, conclui que o legislador tem o dever de fixar alíquotas
progressivas, favorecendo a igualdade de oportunidades.
Na França, o jurista PiERRE B eltram e defende a progressividade também
com fundamento no princípio da capacidade contributiva, vinculando-a, ainda,
à noção de mínimo existencial: “Así, hasta un cierto umbral de renta
considerado como mínimo vital, la utilidad social de aquélla es máxima y, por
consiguiente, la capacidad contributiva sobre esa fracción de renta es nula.
Pero la medida que la renta crece, su utilidad social disminuye, si bien la
capacidad contributiva dei sujeto aumenta bajo la influencia simultânea dei
incremento de renta y de la correlativa disminución de la utilidad social de
dicha renta. Es, pues, razonable, para lograr que el impuesto se ajuste a la
capacidad contributiva de cada sujeto, instaurar la progresividad -
especialmente dei impuesto sobre la renta”13.

I0 Cf. G O N Z Á LEZ , Eusebio; G O N Z Á LEZ , Tereza. D erecho Tributário - I. Salam anca: Plaza
Universitaria Ediciones, 2005. p. 65 e 66.
II Cf. TIPKE, Klaus. Fundamentos de Justiça Fiscal. In: TIPKE, Klaus; YAM ASHITA, Douglas.
Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
p. 35.
12 Cf. LARENZ, Karl. D erecho Justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Editorial Civitas,
1993. p. 141.
13 Cf. BELTRAME, Pierre. Introducción a la Fiscalidad en Francia. Barcelona: Ateliê, 2004. p.
255 a 257.
472 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a Pessoa Física

No Brasil, R o q u e ANTONIO C a r r a z z a 14leciona que a capacidade


contributiva sempre demanda a progressividade, sendo ofendida quando
estabelecida alíquota proporcional. Por outro lado, F ernand o A u ré lio Z ilv e ti
não demonstra ser muito simpático à posição acima citada, pois afirma que a
“justiça social tem como forte aliada a progressividade, divorciada da igualdade
e da capacidade contributiva”, ou seja, do seu conceito de justiça fiscal, pois
esta técnica seria, “portanto, um critério econômico tendencioso, que aplica a
maior carga tributária àquele que, somente em tese, teria melhores condições
econômicas para custear o Estado”. Contudo, conclui que a “progressividade
não é, em si, contrária nem conforme ao princípio da igualdade na tributação”15,
sendo justificável somente como meio de distribuição de riquezas e não com
a finalidade de melhorar a arrecadação.
Já H um berto Á v ila 16defende que a progressividade, como técnica geral
da tributação, não decorre do princípio da capacidade contributiva, mas do
princípio da solidariedade social. O professor José M a rco s D om ingues d e
O liv eira 17, por sua vez, busca o fundamento da progressividade no princípio
da igualdade, a qual exige que a contribuição para o gasto seja feita por quem
possui mais riqueza.
Em nossa opinião, a capacidade contributiva exige somente uma base de
cálculo adequada à riqueza do indivíduo, admitindo tanto a alíquota propor­
cional, como as alíquotas progressivas. O princípio do Estado Social apenas
reforça a necessidade do uso de alíquotas crescentes para a diminuição das
desigualdades sociais - ideia que poderia derivar diretamente do princípio da
igualdade ou da capacidade contributiva. Como prova, basta constatar que a
forte tributação sobre a renda, conceituada a partir da ideia de mínimo exis­
tencial, e sobre a herança, ainda que por meio de alíquotas proporcionais, em

14 Cf. C ARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17a ed. rev.,
amp. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 75 e 76; Cf. LACO M BE, Américo
Masset. P rin cípios C on stitucion ais Tributários. São Paulo: M alheiros, 1997. p 28; Cf.
ATALIBA, Geraldo. IPTU - Progressividade. Revista de Direito Tributário (5 6 ). São Paulo:
M alheiros, 1991. p. 80.
15 Cf. ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São
Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 122, 123 e 185: "A igualdade material é, assim, identificada
com a justiça social, uma causa nobre, porém comprovadamente pouco realizável".
16 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário: de acordo com a Emenda Constitucio­
nal n° 42, de 19.12.03. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 379 e 380.
17 Cf. OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário: capacidade contributiva, conteú­
do, eficácia do princípio. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p 59.
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 4 7 3

detrimento à tributação sobre o consumo, já é uma forma de impedir uma


maior concentração de riquezas. Vale dizer, a depender da concretização dada
à capacidade contributiva é viável usá-la, ao lado ou não da progressividade,
como um instrumento de mudança social.
Ademais, embora verdadeira a assertiva que propõe que a progressividade
das alíquotas se adapta perfeitamente aos impostos pessoais, principalmente
por considerar um aspecto mais amplo da riqueza individual, não se deve
olvidar da importância, para a redução das desigualdades sociais, em primeiro
lugar, de um sistema tributário progressivo e, em segundo lugar, de um sistema
jurídico que seja redistributivo de renda. É por esta ideia que LlAM M urphy
e Thom as N a g e l18alegam que estudar exclusivamente a alíquota ou o imposto
progressivo é evitar se aprofundar na questão central, qual seja, os efeitos da
tributação e do sistema jurídico sobre o regime da propriedade privada. Assim,
os abatimentos derivados do mínimo existencial e a progressividade são somente
alguns dos instrumentos viáveis para o incremento da arrecadação e para a
realização de certos objetivos estatais, de acordo com uma visão de justiça
social escolhida politicamente.
No Brasil, por decorrência do art. 153, § 2o, inciso I, da Constituição
Federal, a tributação por meio de alíquotas nominais progressivas é obrigató­
ria no âmbito do imposto sobre a renda. Quanto aos impostos reais, grande
parte da doutrina e da jurisprudência refuta sua aplicação. O Supremo Tribu­
nal Federal tem decidido que apenas é possível a progressividade quando au­
torizada pela Constituição.
Quem, decerto, explicita com maiores detalhes porque tamanha dificul­
dade de efetivação da técnica em comento é MlSABEL DE A breu MACHADO
D erzi, já que faz uma lúcida constatação da dificuldade do implemento da
progressividade no imposto sobre a renda auferida nos países com ideologia
liberal. Ressalta que o dilema da eficácia da regra reside entre favorecer a
eficiência, a criatividade e o trabalho de cada indivíduo, ou nas suas palavras, o
“sentimento de felicidade dos ricos, que se nutre exatamente da diferença”;
ou, por outro lado, alcançar a justiça distributiva [a nosso juízo: justiça redis-
tributiva ou corretiva] com a redução das desigualdades econômicas, pois esta
é uma necessidade do sistema capitalista de produção, visto que “a miséria

18 Cf. MURPHY, op. cit. (nota 6), p. 178.


4 7 4 - A P r o g r e s s iv id a d e n o Im p o s t o d e R e n d a P e sso a F ísica

compromete o consumismo, a preparação da mão-de-obra especializada, o


desenvolvimento e a eficácia econômica”19.
Foi neste sentido que M ichael L ivingston indicou os argumentos
utilizados contra a progressividade: (i) em primeiro lugar, a noção de liberdade
individual, ou seja, “os indivíduos devem ter o direito de dispor de seus
rendimentos com o entenderem adequado sem interferência estatal”; (ii) e m '
segundo lugar, m enciona o efeito de incentivo ou desincentivo, isto é, “a
tributação progressiva atinge mais pesadamente aqueles com maior iniciativa
que irão em conseqüência trabalhar com menor intensidade, em prejuízo de
toda sociedade”20. C om efeito, a questão central é a definição do papel do
indivíduo na melhoria de vida da sociedade.
Já M arcian o Sebrae d e G od oi21 pensa ser incorreto o argumento con­
trário à progressividade, consubstanciado no incentivo à fuga de capitais e à
depressão econômica e ao desestímulo ao crescimento, ao lembrar que no in-
terregno entre 1945 a 1973, período que coincidiria com a instituição do
Estado do Bem -Estar Social, todas as economias capitalistas cresceram a taxas
altíssimas, mesmo com a exacerbação da progressividade. Reforçando o inte­
resse da ideologia socialista pela progressividade, lembra o professor Aliom aR
B a le eiro que o filósofo KARL M A R X defendeu, através do M anifesto C o­
munista, a implementação da tributação de forma extremamente progressiva
como “arma enérgica na luta de classes”22.
Impera, entretanto, considerar que a configuração da economia atual, já
em perspectiva globalizada23, já não nos permite aceitar as ideias acima sem

19 Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Atualizado por Misabel
Abreu Machado Derzi. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 523 a 525.
20 Cf. LIVINGSTON, op. c/t. (nota 4), p. 192.
21 Cf. G O D O I, Marciano Seabra de. Justiça, Igualdade e DireitoTributário. São Paulo: Dialética,
1999. p. 219.
22 Cf. BALEEIRO, op. c/t. (nota 19), p. 753.
23 Cf. FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada.1a ed. 3a tir. SãoPaulo: Malheiros,
2000. p. 283: "Este fenômeno pôs em cheque a eficiência governamental no sistema de preços
e nos mecanismos de formadores dos custos de mão-de-obra e levou ao prevalecimento da
visão da agenda contemporânea pelas instituições financeiras internacionais, pelos conglome­
rados transnacionais'e pelos organismos multilaterais, impondo temas recorrentes como
desregulamentação dos mercados, estabilização e unificação monetária, cortes drásticos de
gastos públicos, flexibilização das leis trabalhistas, privatização dos monopólios estatais e
deslegalização [...] Neste contexto, portanto, em cujo âmbito setores, cidades, regiões e
nações correm permanentemente o risco de perder do dia para a noite sua base econômica por
causa tanto das possibilidades de deslocamento imediato dos ativos financeiros para onde
podem obter maiores lucros quanto da flexibilidade que as empresas possuem para sediar suas
E d u a r d o Jo sé P a iv a B o r b a - 475

maiores aprofundamentos. Com efeito, se antes tínhamos um Estado soberano


em seu território, senhor das decisões, hoje constatamos a universalização das
decisões políticas, tomadas na maioria das vezes com fulcro em interesses dese­
jados por grupos econômicos fortes e internacionalizados, divorciados do desejo
de redução da concentração de renda e das desigualdades sociais dentro do solo
nacional que não é o seu. Além do mais, constatamos que as decisões tributárias
estatais tomadas alhures causam efeitos imediatos em todos os países que parti­
cipam do comércio internacional, mesmo que sejam simplesmente abrindo seus
mercados aos produtos externos, pois sabemos que o tributo integra o cálculo
do custo das mercadorias. De tal modo, quanto maior o custo imposto aos agen­
tes econômicos, menos poder competitivo as indústrias nacionais terão, o que
leva a uma reação em cadeia, pois a redução de tributos e encargos sociais por
determinado país impõe quase obrigatoriamente a adoção da mesma medida
pelos demais países. Por certo, é o fim do Estado-nação e que o futuro diga se
isso é bom ou ruim.
Outrossim, o professor R icardo L obo T o rres24 constata que a partir da
década de 80 do século XX a progressividade saiu de moda, a coincidir com a
desestruturação dos regimes socialistas e com a ascensão de governos liberais
como os de Reagan e Margareth Tatcher. Afirma ainda que se constatou (i)
que as alíquotas progressivas levavam à obesidade do Estado Fiscal, que se
tornava cada vez mais gastador; (ii) que a progressividade, aplicada, sobretu­
do, ao imposto de renda, provocava o aumento dos casos de elisão abusiva,
com a queda final da arrecadação e com a transferência da carga tributária
para os assalariados, que não tinham possibilidade de elidir o tributo, o que o
transformava em exação injusta; (iii) por fim, que a tecnologia moderna faci­
litava a transferência de recursos financeiros dos países que adotavam a pro­
gressividade salgada, o que levava da mesma maneira à diminuição da
arrecadação tributária.

empresas produtivas nos locais que julgarem mais adequadas, em termos de custos de insumos,
valor da mão-de-obra e concessão de incentivos, subsídios e créditos favorecidos, o 'direito
social' carece de condições de efetividade [...] Como depende necessariamente do monopólio
da titularidade legislativa do Estado-nação soberano para sua conversão em obrigações legal­
mente definidas e em exigibilidades formais quer para agentes privados quer para as diversas
instâncias do próprio setor público, e como as forças impessoais do mercado se afirmam sobre
as jurisdições territoriais, envolvendo-as com sua normatividade policêntrica em escala mun­
dial, em princípio o 'direito social' revela-se implausível".
24 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, Vol. II;
Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 294 e 314.
476 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a P essoa Física

Entrementes, no caso brasileiro, julgamos acertado que as críticas contra


a progressividade não procedem quando analisadas dentro dum contexto glo­
bal, de maneira não estanque, visto que eventuais decisões sobre novos inves­
timentos econômicos, principalmente aqueles vinculados com o mercado
externo, não são, imaginamos, pautadas na diferença entre o que o rico e o
pobre pagam a título de tributo dentro do mesmo país, mas, sim, comparati­
vamente com o tamanho da carga tributária final de outros países. Ademais,
no âmbito interno, as alterações legislativas promovidas no imposto sobre a
renda não conseguiram diminuir a obesidade do Estado Fiscal, não diminuí­
ram os casos de elisão abusiva e não impediram a transferência da carga tribu­
tária para os assalariados, até porque, caso estes fossem os reais objetivos, seria
plausível pensar em manter, por um lado, alíquotas variadas conforme a base
de cálculo, como um instrumento de justiça corretiva, e, por outro lado, esta­
belecer a simplificação da regras e a busca pela redução da carga tributária
total. O que estamos tentando asseverar é que progressividade não é sinônimo
de tributação excessiva ou de confisco, embora a história possa refutar tal
argumento25. Em suma, as técnicas da progressividade e proporcionalidade
não são boas ou más em si mesmas, mas, sim, as ideologias que as acompa­
nham e que as corporificam, fazendo com que elas sejam aceitas ou rejeitadas
pela sociedade em decorrência direta de seus efeitos históricos.
Não que se deva elevar a progressividade à bandeira maior, vez que se
a primeira vista parece ser possível através dela efetuar a tão sonhada dis­
tribuição de renda, na prática, podemos perceber que ela pode ser pouco
eficaz nesse desiderato, podendo até representar confisco, além de inviabi­
lizar o incentivo à eficácia, à criatividade, ao trabalho e ao acúmulo de
riqueza necessária em um sistema capitalista que carece sempre de maio­
res investimentos. Ademais, como diz R icard o L ob o T o r r e s26, uma tri­
butação progressiva somente alcança seus objetivos distributivo e corretivo
quando é concretizada em conjunto com outras políticas públicas que

25 Cf. HAYEK, Friedrich. Reexaminado a Taxação Progressiva. In: FERRAZ, Roberto et. aII. Princípios
e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 742.
26 Cf. TORRES, op. cit. (nota 24), p. 348: "[a] redistribuição de rendas é de natureza orçamentária.
Leva em conta simultaneamente as vertentes da receita e da despesa, ao fito de transferir renda
dos mais ricos para os pobres e miseráveis [...] O princípio da distribuição de rendas afeta a
vertente da receita e da imposição tributária. Não se preocupa com as transferências, mas com
a tributação de acordo com a capacidade contributiva e com a justa mensuração, a fim de
evitar a concentração de rendas. A incidência progressiva dos impostos, por exemplo, pode
fazer o rico menos rico, mas não conduzirá necessariamente ao enriquecimento do pobre".
E d u a r d o Jo sé P a iv a B o r b a - 477

venham alocar os recursos financeiros retirados das elites econômicas em


intervenções positivas que promovam a distribuição efetiva de riqueza na
sociedade, como, por exemplo, através de políticas que favoreçam o pleno
emprego, o incremento de salários, o controle de preços e a prestação de
serviços vinculados à seguridade social. Neste mesmo sentido, A lc id e s
J o rg e C o sta 27 defende que a progressividade se coaduna melhor com o
princípio da capacidade contributiva, conquanto ressalte que se a arreca­
dação dos tributos for dirigida às classes mais abastadas seu efeito distri-
butivo terá insucesso.

3 . N o ç ã o ju ríd ic a de renda

E importante estabelecer alguns fundamentos para o melhor entendi­


mento do trabalho. A primeira delas é a noção jurídica de renda. Com efeito,
a definição de um conceito jurídico de renda que não suscite debates é algo
reconhecido pela doutrina como problemático. Nesse diapasão, já assegura­
ram juristas de renome em nosso país, como José Luiz B u lh õ es P ed reira28.
Impende relembrar que o principal motivo das disparidades das definições
históricas está, a nosso juízo, na inexistência de um objeto “renda” encontrada
na natureza, isto é, ao não encerrar uma essência concreta, fica seu conceito à
mercê de convenções humanas.

27 Cf. COSTA, Alcides Jorge. Capacidade Contributiva. Revista de Direito Tributário (55). São
Paulo: RT, 1991. p. 301.
28 Cf. PEDREIRA, José Luiz Bulhões, imposto de Renda. Rio de Janeiro: APEC Editora, 1969. p.
2.4: "A noção de renda no direito fiscal e nas finanças públicas não é questão pacífica, e as
diferenças de opinião documentam a dificuldade de precisá-la. Várias foram as definições
propostas por economistas e contadores, partindo de pontos de vistas muitas vêzes bastante
divergentes. E a compreensão de renda no direito fiscal varia de um sistema jurídico para
outro, sofrendo as influências dos conceitos econômicos e contábeis, mas refletindo tam­
bém considerações de justiça tributária, de exeqüibilidade pratica na administração do
impôsto e de política econômica". No mesmo sentido: Cf. TILBERY, Henry. Arts. 43 a 45. In:
M ARTINS, Ives Gandra da Silva et. aII. Comentários ao Código Tributário Nacional. São
Paulo: Saraiva, 1998. p. 285: "Na verdade, os doutrinadores em diversos países e em vários
momentos da história, apenas procuraram desenvolver as bases teóricas adequadas para
fundamentar aquela sistemática da tributação de renda que melhor se ajuste ao regime
vigente, às condições sócio-econômícas, aos postulados da justiça fiscal e às necessidades
de arrecadação". Cf. SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. 2a ed.
Rio de Janeiro: Editora Financeiras, 1954. p. 197: "[...] a natureza específica de um tributo
é definida pelo seu fato gerador. Nessas condições, para definir o impôsto sôbre a renda,
seria preciso começar definindo o conceito de renda. Entretanto este é um conceito econô­
m ico e não jurídico, e mesmo sob aquele aspecto os economistas não estão de acordo,
podendo-se dizer que o conceito econôm ico de renda ainda não está doutrinariamente
fixado e permanece no terreno das questões abertas".
478 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a P essoa Física

Adotaremos assim o pensamento de José C a sa lta Nabais, que afirma


que a capacidade contributiva requer um conceito amplo de rendimento, que
capte a generalidade dos acréscimos patrimoniais, proveniente ou não da sua
atividade produtora e caracterizado ou não pela nota da periodicidade. Em
seguida, explicita que a primeira conseqüência da formulação é a impossibili­
dade de consideramos rendimentos tributáveis os falsos acréscimos patrimo­
niais, como costumam ser as indenizações percebidas exclusivamente para
reposição patrimonial. A segunda conseqüência é a necessidade de um con­
ceito de rendimento-acréscimo, que poderá ser restringido apenas “quando
razões de praticabilidade ou exigências de outros princípios constitucionais
assim o imponham”29. Contudo, sua descrição de renda perpassa por duas
segregações importantes para o nosso tema, pois nos possibilitam precisar a
diferença entre as deduções e os abatimentos, expressões utilizadas pela dou­
trina e pela legislação tributária até a Lei n° 7.713/1988.
Assim, partindo dos princípios da capacidade contributiva e da renda,
chega ao princípio do rendimento líquido. Explicitando sua finalidade, de­
manda que de “cada categoria de rendimento sejam deduzidas as despesas
específicas para a sua obtenção”, ou colocando em diversos termos, “todos os
gastos necessários à produção de determinado rendimento” devem ser consi­

29 Cf. NABAIS, José Casalta. Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreen­
são constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998. p. 513 a 520:
"Desde logo, deduz-se dum tal princípio a exigência dum conceito amplo de rendimento, que
abranja não apenas o rendimento em sentido estrito ou rendimento-produto, o acréscimo
patrimonial obtido durante um dado período a título de participação na actividade produtora,
mas antes o chamado rendimento-acréscimo [...], identificado com o acréscimo patrimonial
(líquido) proveniente ou não da actividade produtora e caracterizado ou não pela nota da
periodicidade. O que, contudo, não significa que o conceito de rendimento tenha de integrar
todo e qualquer aumento de valor aquisitivo, o que levaria a incluir nele desde logo os
rendimentos em espécie - sejam os rendimentos em natura [...], sejam os chamados rendimen­
tos imputados ou virtuais [...], passando pela totalidade das mais-valias (incluindo portanto
também as não-realizadas), até à generalidade das aquisições a título gratuito (doações,
heranças e legados), das prestações sociais (aos indivíduos e às famílias), das subvenções (às
empresas), etc. E que, o princípio da capacidade contributiva tem de harmonizar-se com outros
princípios e exigências constitucionais, como: o princípio da praticabilidade a afastar do
conceito de rendimento os rendimentos em natura, a generalidade dos rendimentos imputados
e das mais-valias não realizadas, por se tratar de rendimentos não cognoscíveis do Fisco ou de
valor difícil, ou mesmo impossível, de apurar; o princípio do estado social a permitir excluir do
rendimento, as transferências ou prestações sociais; e o princípio da liberdade do legislador na
adopção da política ou políticas econômicas a justificar que nem todas as mais-valias realiza­
das sejam tributadas, ou que algumas destas sejam tributadas de forma atenuada, ou ainda que
as subvenções sejam excluídas do rendimento tributável das empresas. Isto, para além de as
aquisições a título gratuito por toda a parte serem tradicionalmente objecto duma tributação
especial em sede, de resto, do imposto sobre o patrimônio (do transmitente ou do adquirente)".
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 4 7 9

derados para apuração do imposto a pagar. Por último, alcança ao princípio


do rendimento disponível, que determina que do somatório de todos os ren­
dimentos líquidos se procedam as “deduções de despesas privadas, sejam as
imprescindíveis à própria existência do contribuinte (mínimo de existência
individual), sejam as necessárias à subvenção do casal ou da família (m ín im o
de existência conjugal ou familiar)”30. Pode-se dizer que até a Lei n° 7.713/
1988 eram chamados de dedução os gastos necessários à produção de deter­
minado rendimento; os abatimentos eram as despesas privadas, entre elas,
todas as imprescindíveis à existência do contribuinte e as necessárias à sub­
venção do casal ou da família - mínimo existencial individual ou familiar.
A lição do mestre português adapta-se ao sistema positivo brasileiro, já
que dificilmente teremos mais do texto da Constituição Federal de 1988 que
o aludido entendimento de renda como o aumento patrimonial verificado
entre dois marcos temporais, ou seja, como toda a universalidade de riqueza,
auferida por toda a generalidade dos indivíduos, graduada progressivamente,
dentro da pessoalidade originada do confronto entre os ingressos com os cus­
tos e as despesas úteis e necessárias, no caso da pessoa jurídica; com as dedu­
ções de custeio necessárias à percepção da receita e da manutenção da fonte e
o mínimo existencial, já no âmbito do trabalho não assalariado; ou com as
deduções e os abatimentos do mínimo existencial, no que se relaciona com o
trabalho assalariado. Assim sendo, pode-se dizer que adotamos o conceito
legal de renda, desde que respeitadas as notas obrigatórias e facultativas saca­
das da interpretação do texto constitucional.
Ainda em relação aos abatimentos, é importante destacar que existem
duas espécies de abatimentos. Com efeito, a primeira foi citada acima e versa
sobre os dispêndios para a satisfação das necessidades indispensáveis para manter
a vida individual e familiar com dignidade humana, principalmente quando
se reconhece que certo Estado possui a obrigação constitucional de disponibi­
lizá-las a todos os cidadãos. Sua fundamentação é encontrada na Constitui­
ção, mais precisamente no princípio da capacidade contributiva, no conceito

30 Cf. NABAIS, op. cit. (nota 29), p. 513 a 520. No mesmo sentido, vide: Cf. LAN G, Joachim.
Tributación Familiar, in: Hacienda Pública Espahola (94). Madrid: IEF, 1979. p. 410: "[...] los
critérios de capacidad fiscal se dividen en dos aspectos básicos, el de la capacidad fiscal
objetiva e ei de la subjetiva"; Cf. HERRERA MOLINA, Pedro Manuel, Capacidad Econômica y
Sistema Fiscal: análisis dei ordenamiento espahol a la luz dei Derecho alemán. Madrid: Marcial
Pons, 1999. p. 113 e 114.
480 - A P r o g r e s s iv id a d e n o Im p o s to de R e n d a P e s s o a F ís ic a

de renda e nas normas sobre direitos fundamentais. A segunda espécie de


abatimento vincula-se aos gastos imbricados com os princípios da ordem eco­
nômica. Essa espécie de abatimento representa hipótese de simples benefício
fiscal, a depender de lei ordinária.
Para deixar m ais claro, convém registrar um exem plo sobre os
fundam entos dos abatim entos. Infere-se do estudo de L uís E d u a rd o
S c h o u e r i31 ser possível encontrar um a norm a tributária elaborada de
maneira a com patibilizar um efeito indutor sobre a ordem econôm ica e o
Im posto sob re a R enda d e P esso a F ísica, sem abandonar as demandas da
capacidade contributiva. Vejamos o caso dos dispêndios com dependentes.
Informa o jurista que um a regra que reconheça o direito à dedução pode
ser visualizada com o um benefício fiscal, com o objetivo de estimular o
crescim ento populacional, ou seja, com o um a ajuda do E stado para a
m anutenção das crianças. Por outro ângulo, os dispêndios com dependentes,
conform e R ica r d o L ob o T o r r e s 32, podem ser entendidos com o uma
imunidade, inerente à capacidade contributiva, à noção de renda líquida e
à ideia de m ínim o existencial, pois sua natureza deriva diretam ente da
dignidade hum ana e tam bém de outras norm as constitucionais sobre
direitos fundam entais, com o os arts. 226, 227 e 229 da C onstituição de
1988 que dem andam a proteção da família.
Impende frisar, em relação ao mínimo existencial, que o reconhecimento
dos seus efeitos no Im posto d e R enda P essoa Física pela doutrina é pacífica.
Para resumir, citemos R o b erto Q u iroga M osquera, que define o mínimo
existencial como imunidade, ou como hipótese de inexistência de capacidade
contributiva, consistente na obrigação estatal de adotar ações que satisfaçam
as necessidades básicas do cidadão, “e que lhe permitam assegurar a vida, a
saúde, o bem-estar, a dignidade e a liberdade”, o que bem traduz as “condi­
ções mínimas de existência”. Decorre, portanto, a total impossibilidade de se
“tributar os valores recebidos e utilizados na consecução desse objetivo”, o que
o qualifica como “insuscetível de tributação”. Em resumo, leciona o jurista:
“Usando outras palavras, os rendimentos recebidos a título de mínimo vital

31 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 25, 65 e 299.
32 Cf. TORRES, op. cit. (nota 24), p. 168: "O imposto de renda não incide sobre as quantias
necessárias à subsistência dos dependentes, dedutíveis da base de cálculo".
E d u a r d o Jo s é P a iv a B o r b a - 481

não acarretam qualquer espécie de mutação patrimonial que acresça um con­


junto de direitos reais e pessoais pré-existente”33.
Outra premissa importante é o costume da legislação pátria estabelecer
um valor dito de isenção para apuração do Im posto sobre A R enda d e P essoa
Física. Contudo, acreditamos que não se trata de verdadeira isenção, mas de
hipótese de imunidade, visto que indica inexistencia de competência tributá­
ria e é construído com fundamento em normas reconhecedoras de direitos
fundamentais. Para por em outros termos, pensamos que a parcela a deduzir
da citada tabela progressiva concretiza a ideia de mínimo existencial no IRPF.
Assim sendo, tal não incidência não pode ser considerada isenção ou incentivo
fiscal, visto que integra o conceito constitucional de renda, ou seja, formata o
próprio fato gerador do IRPF34.
Desta forma, impera destacar que a opção da legislação pela instituição
de um montante fixo, vulgarmente chamado de tabela progressiva, com a
finalidade de demonstrar inexistência de capacidade contributiva ou, com
outros termos, para concretizar o mínimo existencial, não é a única solução
existente para se proteger a riqueza necessária para suportar as despesas consi­
deradas inevitáveis do contribuinte e de sua família. Com efeito, o legislador
ordinário poderia preferir individualizar detalhadamente, com fundamento
no princípio da pessoalidade, as discriminações qualitativas e quantitativas da
riqueza de cada indivíduo, fazendo com que a pressão tributária sobre as
rendas menores fosse amenizada. Assim, poderiamos ter abatimentos ou cré­
ditos fiscais vinculados a gastos com moradia, alimentação, educação, saúde,
lazer, vestuário, transporte e previdência.

33 Cf. M OSQUERA, Roberto Quiroga. Renda e Proventos de Qualquer Natureza: o imposto e o


conceito constitucional. São Paulo: Dialética, 1996. p. 127 a 129. Outros juristas também
afirmam que o conceito constitucional de renda exige que a legislação reconheça o direito de se
abater, da base de cálculo do tributo, não só as despesas necessárias à obtenção da riqueza nova,
como as que garantem a subsistência individual e familiar. Neste sentido, vide: Cf. LEMKE,
Cisele. Imposto de Renda: os conceitos de renda e de disponibilidade econômica e jurídica. São
Paulo: Dialética, 1998. p. 51: "Outra idéia contida no princípio da capacidade contributiva é a
do mínimo vital. Como já referido diversas vezes, não basta a existência de riquezas, é preciso
que ela seja superior ao mínimo necessário à sobrevivência. Ou seja, só pode ser tributada a
riqueza além daquela utilizada pelo indivíduo para sobrevivência sua e de sua família".
34 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos Constitucionais do fato gerador do Imposto de Renda. In:
BRITO, Edvaldo et. ali. Dimensão Jurídica do Tributo. São Paulo: Editora Meio Jurídico, 2003.
p. 570 e 571: "Tal não-incidência é vera imunidade, e não isenção ou incentivo fiscal, por
formatar o próprio fato gerador. [...] Basta ver o absurdo em que se converteu a reserva de
intributabilidade para as importâncias inferiores a R$ 900,00 [...], que não sofreu atualizações
em decorrência da inflação, o que tornava manifestamente inconstitucional e só foi corrigido
com a MP 22, de 2001, que a elevou para R$ 1.058,00".
482 - A P r o g r e s s iv id a d e n o Im p o s to de R e n d a P e s s o a F ís ic a

Acontece que, neste último caso, a lei poderia se deteriorar em irrelevan­


tes minúcias, trazendo um custo de fiscalização considerável para a Adminis­
tração. E por este motivo que a legislação vigente estabelece um método híbrido,
ao prever abatimentos de saúde, pensão, previdência e despesas registradas no
livro caixa, sem limite quantitativo, e de educação e dependente, com limite
quantitativo; sem ignorar o emprego de um valor fixo através da tabela pro­
gressiva. Como exemplo, transcrevemos a tabela anual aprovada pela Lei n°
11.119/2005, com a redação fornecida pelo art. I o da Lei n° 11.311/2006 e
suas alterações posteriores:
Base de cálculo anual em R$ Alíquota % Parcela a deduzir do imposto em R$
Até 17 ,2 15 ,0 8 - -
De 17 .2 15 ,0 9 até 2 5 .8 0 0 ,0 0 7,5 1.291,13
De 25.800,01 até 3 4 .4 0 0 ,4 0 15,0 3 .22 6,13
De 34.400,41 até 4 2 .9 8 4 ,0 0 22,5 5.8 0 6 ,1 6
A cim a de 4 2 .9 8 4 ,0 0 27,5 7.95 5,36

Em apertada síntese, acreditamos que somente se alcança o rendimento


disponível após a consideração dos abatimentos derivados do mínimo existen­
cial, verdadeira imunidade implícita, a significar inexistência de competência
tributária e descrita pela interpretação de normas constitucionais reconhece-
doras de direitos fundamentais. Assim, para se apurar a eficácia da progressi­
vidade no Im posto de R enda, o u as alíquotas efetivas, é necessário relacionar
o rendimento disponível, desconsiderando, portanto, a renda bruta; com os
abatimentos representativos de meros benefício fiscais, dependentes de lei
concessiva; e as alíquotas nominais.
Portanto, cabe afirmar, com o devido respeito, que não concordamos com
o pensamento defendido por PAULO A yres BARRETO35, quando preleciona
que a denominada parcela a deduzir, inserta pela legislação do Im posto sobre
A R enda d e P essoa Física, em conjugação com a nominada alíquota nominal,
faria surgir a “alíquota efetiva, aplicável a cada caso concreto, evidenciadora de
inequívoca progressividade”. Acontece que esquece o jurista um detalhe bem
ressaltado em sua obra, isto é, rendimento bruto não é renda. Com certeza,
acreditamos que a parcela a deduzir decorre da aplicação da praticabilidade

35 Com maiores detalhes, vide as tabelas feitas pelo jurista: Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Imposto
sobre a Renda e Preços de Transferência. São Paulo: Dialética, 2001. p. 95 e 96.
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 4 8 3

para concretização da imunidade do mínimo existencial, pois, como diz DlEGO


M arín -B arn u evo Fabo36 legislador pode optar por uma forma simplificada
o

para determinação do imposto a pagar, afastando-se assim da capacidade


contributiva. Como prova do alegado, convém notar que na verificação da
progressividade do Im posto sobre a Renda d e P essoa Jurídica jurista adota o

como referência a base de cálculo, a noção de lucro, e não o rendimento bruto.


Até porque, se partíssemos de cada rendimento bruto, em comparação com os
custos e as deduções, teríamos infinitas alíquotas efetivas, o que demandaria
notar que dificilmente teremos imposto proporcional.

4 . A EVENTUAL REGRESSIVIDADE DOS ABATIMENTOS


VINCULADOS A BENEFÍCIOS FISCAIS

Como defendemos neste trabalho, a progressividade do Im posto de R en­


da PESSOA Física, requer, além da apuração do citado rendim ento líquido,
alcançado depois da dedução das despesas específicas para a sua obtenção, o
cálculo do também mencionado rendim ento disponível, verificado apenas
após o abatimento das despesas privadas consideradas imprescindíveis à exis­
tência com dignidade humana, ainda que expressos sob a forma da tabela
progressiva. Se assim for, a alíquota efetiva decorrerá diretamente dos efeitos
gerados pelos benefícios fiscais facultativamente criados por lei, desconside­
rando as deduções e os abatimentos imanentes ao conceito constitucional de
renda e proventos de qualquer natureza.
Assim, faz-se interessante refletir sobre um problema inerente aos bene­
fícios fiscais e que já foi muito bem ressaltado por Luís E du ardo Schoueri.
Preleciona o jurista que uma dedução com dependente, compreendida como
mero incentivo, ao buscar fornecer maiores recursos ao contribuinte para a
manutenção das crianças, favorece o indivíduo com maior riqueza, visto que
“este incentivo de nada serve para aqueles que ganham pouco (e por isso estão
isentos do imposto de renda) e é sempre crescente conforme maior seja a
renda do contribuinte beneficiado”37.

36 Cf. MARÍN-BARNUEVO FABO, Diego. La Protección dei Mínimo Existencial en el Âmbito dei
I.R.P.F. Madrid: Colex, 1996. p. 39, 56 e 57.
37 Cf. SCHOUERI, op. cit. (nota 31), p. 299. A ideia central, aliás defendida por muitos juristas,
consiste na variação crescente do benefício em função da renda: uma pessoa com renda bruta
4 8 4 - A P r o g r e s s iv id a d e n o Im p o s t o d e R e n d a P esso a F ísica

Com efeito, merece elogios a questão suscitada, pois, como salienta, faz-se
necessário justificar porque o incentivo fiscal foi ou será desigualmente distribuí­
do. Contudo, convém tecer alguns comentários que julgamos pertinentes, mesmo
que restringindo o debate a um dos temas já tratados - a necessidade de proteção
do montante da riqueza do contribuinte indispensável para o acesso a determina­
dos bens e serviços entendidos como decorrentes do núcleo de observância cogen-
te do princípio da dignidade humana, ou, quiçá, de princípios da ordem econômica
que maximizam a eficácia dos direitos sociais na sua região periférica, qualificados
como objetivos públicos opcionais por dependerem de recursos orçamentários.
De imediato, estamos de acordo que, quando se estabelece um método
de apuração do imposto sobre a renda com deduções e abatimentos qualitati­
vamente variados e quantitativamente ilimitados, termina-se por favorecer
aquele indivíduo que tem rendimento com valor significativo, principalmen­
te por permitir o resultado zero ou negativo. Entretando, isto não significa
que devemos adotar uma posição radicalmente contra estes elementos negati­
vos da base de cálculo. Em primeiro lugar, porque o imposto sobre a renda e
proventos de qualquer natureza requer, por força dos princípios constitucio­
nais da capacidade contributiva e da dignidade humana, como antes pugna­
do, o reconhecimento obrigatório de certos dispêndios. Desta feita, descabe
qualquer comentário contrário ao seu reconhecimento legal, por decorrerem
da repartição de competências tributárias e da imunidade implícita do míni­
mo existencial. Em segundo lugar, porque o patrimônio do indivíduo pobre
somente estará livre da tributação quando a apuração da base de cálculo sofrer
os efeitos das despesas consideradas vitais, inclusive para a família, quer atra­
vés de abatimentos individualmente considerados, ou por meio da tabela pro­
gressiva. Em terceiro lugar, porque a legislação fiscal que preveja poucos
abatimentos, máxime os obrigatórios em função da dignidade humana, ou os
facultativos com base em princípios ligados a direitos sociais, ainda que limi­
tados quantitativamente, pode adequar as alíquotas progressivas de modo a
anular o efeito regressivo causado pela maior diminuição da base de cálculo
dos contribuintes mais abastados. Em quarto lugar, porque é possível reduzir

de R$ 3.000,00 por mês, quando realiza uma despesa de saúde de R$ 1.000,00, reduz o
pagamento do imposto em R$ 275,00 (uma vez que esta pessoa paga o imposto à alíquota de
27,5%) enquanto que uma pessoa que ganha R$ 2.000,00 brutos por mês e realiza a mesma
despesa com saúde teria uma redução de apenas R$ 150,00 no pagamento do imposto, visto
que paga à alíquota de 15% - considerando a tabela progressiva vigente até 31/12/2008.
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 485

o efeito indesejado por meio da limitação quantitativa do direito ou, quiçá, a


sua substituição por um crédito tributário.
Em resumo, pugnamos que não fere a igualdade o fato de uma pessoa com
rendimento assalariado de R$ 100.000,00 abater a despesa com instrução no
valor de RS 10.000,00, enquanto uma pessoa com rendimento assalariado de R$
10.000,00 considerar seu gasto com instrução no montante de RS 1.000,00, já
que a noção de renda decorre justamente da diferença entre entradas, ou receitas,
e saídas, ou despesas, patrimonais. Acreditamos que o importante é o montante a
pagar do imposto, que deve ser sempre maior quanto mais rico for o contribuinte.
Em diversas palavras, o superior beneficio auferido pelos cidadãos mais ricos quando
do reconhecimento de abatimentos somente será justificado quando as alíquotas
progressivas forem instituídas de maneira a compensar o decréscimo de arrecadação,
gerando para estas pessoas um valor de imposto a pagar superior. Aliás, o eventual
efeito indutor é potencializado neste caso, pois se o contribuinte direcionar sua
riqueza para o gozo de bens e serviços considerados pela lei como irrelevantes para
a definição da renda líquida, desconsiderando então a norma de exoneração parcial
que reconheça a despesa, seu imposto será incrementado.
Em suma, o Estado pode instituir o imposto de maneira a proteger as opções
dos contribuintes em relação aos bens e serviços fixados como de importância
fundamental para a melhoria da vida familar, ainda que em patamares superiores
à média do resto da população. O que não pode fazer é instituir o imposto através
de alíquota proporcional, com faixas de progressividade incapazes de anular os
citados efeitos regressivos e com um volume de arrecadação insuficiente para dis­
ponibilizar os mesmos bens e serviços, ainda que apenas no patamar mínimo para
fruição dos direitos fundamentais reconhecidos a todos os cidadãos.
De forma parecida se posicionaram, no Brasil, M isabel de Abreu M ach ado
D erzi38 e Fernando A u rélio Z ilv etti39. Na Espanha, citamos D ieg o M arín-

38 Cf. BALEEIRO, op. cit. (nota 19), p, 754: "A progressividade nos tributos é a única que permite
a personalização dos impostos, como determina expressamente o art. 145, § 1o, da Constitui­
ção de 1988. É que na medida em que o legislador considera as necessidades pessoais dos
contribuintes, passa também a conceder reduções e isenções. Tais renúncias de receitas,
ocorrentes em favor do princípio da igualdade, têm de ser compensadas por meio da
progressividade a fim de que o montante da arrecadação a mantenha no mesmo nível".
39 Cf. ZILVETTI, op. cit. (nota 15), p. 202: "No imposto de renda da pessoa física, quando se fala
em permitir a dedução de despesas com a manutenção da pessoa e da família, constantemente
levantam-se críticas quanto a tal faculdade, sob o argumento falacioso de que a dedução
beneficia os ricos, uma vez que seu efeito maior se dá quanto mais alta for a renda. Esse
raciocínio não é aceitável, pois a simples progressão pode gerar um efeito inverso para a justiça
486 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a P e sso a F(sica

-B arnuevo Fabo40e P ed ro M an u el H errera M olin a41. Este último jurista,


com fundamento em posição similar de KlAUS TlPKE, resume a ideia ora defendida,
assegurando que os rendimentos utilizados para satisfazer as necessidades vitais
do contribuinte e de sua família não são indicativos de capacidade econômica,
independentemente do volume total de ingressos. Assegura que somente depois
de considerar estes indicativos de inexistência de capacidade econômica, convém,
quando se deseja manter um semelhante nível de progressividade, introduzir as
correções pertinentes nas alíquotas nominais do imposto sobre a renda.
Em Portugal, J osé C asalta N abais, propõe que os dispêndios derivados de
direitos fundamentais sejam deduzidos diretamente da base de cálculo por meio
de abatimentos, enquanto as despesas com os bens e serviços qualificados como
meros benefícios fiscais sejam diminuídos do imposto devido pela concessão de
créditos fiscais, permitindo assim a plena identificação da renúncia fiscal gerada,
bem como os efeitos regressivos mencionados. Transcrevemos suas palavras:
Adiantam-se a favor desse entendimento diversos argumentos, entre
os quais cabe destacar o do efeito regressivo das deduções ao rendi­
mento colectável [...] Na verdade, estas são maiores para os detento­
res de rendimentos mais elevados, pois quanto maiores são os rendi­
mentos mais os seus detentores podem realizar despesas dedutíveis
ao rendimento colectável, sejam despesas com a realização de direitos
sociais como a saúde, educação, habitação e segurança social, sejam
despesas com puras actividades que o Estado visa estimular contem-
plando-as com benefícios fiscais, isto é, com prestações passivas. Um
efeito regressivo que se agrava em virtude de a taxa do IRS ser pro­
gressiva [...] Ora bem, trata-se duma argumentação que, por via de
regra, suscita adesão da generalidade dos autores, com a qual também
nós concordamos. Mas não em toda a linha, pois impõe-se aqui uma
importante distinção. Efectivamente há que separar as despesas com
a satisfação dos direitos sociais até àquele nível que o Estado social,
na sua concreta configuração e nas suas reais possibilidades econômicas
e financeiras, pode assegurar a todos e a cada um dos cidadãos, das
despesas que vão além desse nível e das despesas com actividades

fiscal, de modo que é preciso analisá-la com critério, levando em conta a necessidade de
redução da carga fiscal daqueles que necessitem, elegendo formas de tributação que proteja,
a renda da família"; Cf. CARRAZZA, op. cit. (nota 14), p. 308.
40 Cf. MARÍN-BARNUEVO FABO, op. cit. (nota 36), p. 39, 56 e 57.
41 Cf. HERRERA M OLINA, op. cit. (nota 30), p. 124.
E d u a r d o J o s é P a iv a B o r b a - 4 8 7

objecto de verdadeiro benefício fiscal [...] As primeiras, porque indis­


pensáveis à satisfação das necessidades essenciais à salvaguarda da
dignidade da pessoa humana, devem continuar a ser objecto de de­
duções ao rendimento colectável e, portanto integradas nos chamados
abatimentos, pois só assim se respeita a exigência constitucional, de­
corrente do princípio da capacidade contributiva, de não tributar o
rendimento socialmente indisponível [...] E que, constituindo rendi­
mento indisponível, situam-se fora da zona de tributação, não poden­
do assim ser objecto de impostos. Por outras palavras estamos perante
rendimentos constitucionalmente protegidos pela intangibilidade fis­
cal [...] Já as segundas, porque se concretizam em efectivas prestações
passivas do Estado com objectivos de política econômica e social, de­
vem ser deduzidas à colecta, pois só por esta via o Estado sabe
exactamente o que dá a cada beneficiário, ficando em condições, no­
meadamente, de fazer exigências correspondentes.42
Para demonstrar matematicamente a veracidade das alegações elaboramos
três quadros ilustrativos de hipotéticas formas de apuração do imposto devido. No
primeiro quadro, inexistem abatimentos; no segundo, há somente um abatimen­
to com valor fixo; e, no terceiro, existe um abatimento com valor fixo e outro com
valor variável. Conclui-se que o imposto a recolher é idêntico nas três hipóteses
aventadas, o que conduz à conclusão que se pode instituir a garantia do mínimo
existencial sem proteger às camadas sociais mais abastadas economicamente:
Riqueza Abatimento Abatimento
pré-tributária com valor com valor Base de Cálculo Alíquota IRPF
fixo variável
1 .00 0,00 1.00 0,00 0 ,0 0 % 0
10 .0 00 ,0 0 10 .0 00 ,0 0 10 ,0 0% 1.000,00
10 0.00 0,00 10 0.00 0,00 2 0 ,0 0 % 20 .0 0 0 ,0 0
1.0 0 0 .0 0 0 ,0 0 1.00 0.00 0,0 0 3 0 ,0 0 % 3 0 0.00 0,00
1 0 .0 00 .0 00,00 1 0 .0 00 .0 00,00 4 0 ,0 0 % 4.0 0 0 .0 0 0 ,0 0

Riqueza Abatimento Abatimento


pré-tributária com valor com valor Base de Cálculo Alíquota IRPF
fixo variável
1.00 0,00 1 .00 0,00 - 0 ,0 0 % 0
10 .0 00 ,0 0 1 .0 0 0 ,0 0 9 .00 0,00 1 1 ,1 1% 1.00 0,00
1 0 0.00 0,00 1 .00 0,00 99 .0 00 ,0 0 2 0 ,2 0 % 2 0 .0 0 0 ,0 0
1.0 0 0 .0 0 0 ,0 0 1.0 0 0 ,0 0 9 9 9.00 0,00 3 0 ,0 3 % 30 0.00 0,00
1 0 .0 00 .0 00,00 1 .00 0,00 9 .9 9 9 .0 0 0 ,0 0 40 ,0 0% 4 .0 0 0 .0 0 0 ,0 0

42 Cf. NABAIS, op. cit. (nota 8), p. 514 e 515.


488 - A P ro g re ssiv id a d e n o Im posto de R e n d a Pessoa Física

Riqueza Abatim ento Abatimento


pré-tributária com valor com valor Base de Cálculo Alíquota IRPF
fixo variável
1.00 0,00 1 .0 0 0 ,0 0 - 0 0
10 .0 00 ,0 0 1 .00 0,00 1.00 0,00 8 .00 0,00 12 ,5 0% 1 .00 0,00
10 0.00 0,00 1.00 0,00 10 .0 00 ,0 0 8 9 .0 00 ,0 0 2 2 ,4 7 % 2 0 .0 0 0 ,0 0
1.00 0.00 0,0 0 1 .00 0,00 10 0.00 0,00 8 9 9 .0 0 0 ,0 0 3 3 ,3 7 % 30 0.00 0,00
1 0 .0 00 .0 00,00 1 .00 0,00 1.00 0.00 0,0 0 8 .9 9 9 .0 0 0 ,0 0 4 4 ,4 5 % 4 .0 0 0 .0 0 0 ,0 0
Breves Comentários sobre
a Aprovação da PSV
(Proposta de Súmula
Vinculante) n° 29

Fernando Antônio C. Alves de Souza


Advogado Criminalista. Especialista em Ciências Criminaispela UFPE.
Professor de Direito Penal da F M N —Faculdade Maurício de Nassau (Recife/
PE) e Professor Orientador do Grupo de Estudo em Ciências Criminais Prof
Dr. Roque de Brito Alves pela mesma instituição.
F e r n a n d o A n t ô n io C . A lv es d e S o u z a - 4 9 1

O site (sítio) do STF noticiou1em data de 02.12.2009:


“A Proposta de Súmula Vinculante (PSV 29) foi a mais debatida em
Plenário, a partir da intervenção da vice-procuradora-geral da República,
Deborah Duprat. A representante do Ministério Público alertou que embora
houvesse condições formais para a aprovação da súmula, a matéria não estava
madura o suficiente para tornar-se vinculante.
A PSV foi aprovada por maioria de votos, vencidos os ministros Joaquim
Barbosa, Ellen Gracie e Marco Aurélio. A maioria dos ministros, entretanto,
aprovou a nova súmula no sentido de que não se tipifica crime material contra
a ordem tributária, previsto no artigo I o, inciso I, da Lei n° 8.137/90, antes
do lançamento definitivo do tributo.
Relator da PSV, o ministro Cezar Peluso afirmou que a jurisprudência
do STF atualmente não admite processo-crime sem que esteja predefmido o
crédito, embora a posição da Corte esteja baseada em fundamentos concor­
rentes - a respeito da condição de procedibilidade e da inexistência de ele­
mento normativo do tipo penal, por exemplo.
‘Nós temos um conjunto de fundamentos, mas isto não é objeto da sú­
mula. O objeto da súmula é a conclusão da Corte de que não há possibilidade
de exercício de ação penal antes da apuração da existência certa do crédito
tributário que se supõe sonegado’, explicou Peluso.
Verbete: ‘Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, pre­
visto no artigo Io, inciso I, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento defini­
tivo do tributo’.”
Em recente notícia2, veiculada pelo mesmo site no dia 08.12.2009, lê-se:
“Elas foram apresentadas como Proposta de Súmula Vinculante (PSV),
uma nova classe processual criada no Supremo em 2008, e depois de aprova­
das em Plenário ganharam um número que passa a identificar os verbetes que
devem ser seguidos pelo Poder Judiciário, Legislativo e Executivo, de todas as
esferas da Administração Pública.”
Ao final:

1 N otícias STF. Plenário aprova três novas Súmulas Vinculantes. D isponível em: <http://
www .stf.jus.br>. Acesso em :03.12.2009.
2 Notícias STF. Site traz os verbetes das 24 Súmulas Vinculantes aprovadas até agora pelo STF.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 09.12.2009.
4 9 2 - B r ev es C o m e n t á r io s s o b r e a A p r o v a ç ã o d a P S V ..

“PSV 29 —Necessidade de lançamento definitivo do tributo para tipifi­


car crime tributário”.
Verbete: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, pre­
visto no artigo Io, inciso I, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento defini­
tivo do tributo”.
A edição de nova súmula vinculante (ainda sem número) diferentemen­
te do que disse a vice-procuradora-geral da República, com a devida venia,
estava sim, por demais madura, para se tornar vinculante.
Como se disse acima, não foi ainda numerada a referida súmula, como
também não fora publicado o acórdão, porém com o encurtamento das dis­
tâncias através da TV Justiça, e mais recentemente dos julgamentos postados
no You Tube, podemos inferir dos Ministros presentes à sessão —preferiu-se os
votos vencedores -, algumas considerações .sobre o debate da edição da nova
súmula em matéria penal-tributário.
Na ensinança de Mariângela Gama de Magalhães Gomes3sobre a sú­
mula vinculante - com a Reforma do Judiciário (EC 45/2004), o Direito
Constitucional brasileiro passou a contar com o art. 103-A, que introduziu a
“súmula vinculante”4-, faz-se mister destacar que: “Sem desprezar os traços
individuais e peculiares de cada caso concreto, os arestos consolidados por
uma jurisprudência reiterada e constante revestem-se de indiscutível autori­
dade quando se tem em vista a legitimidade de uma tendência à uniformida­
de jurisprudencial como uma das formas de garantir a certeza do direito.”
Este nova súmula penal-tributária, na esteira da criação da Súmula Vin-
culante n° 14, foi aprovada mediante provocação do Supremo Tribunal Fede­
ral, André Ramos Tavaress doutrina: “A aprovação dessa súmula vinculante
apresentou especial relevância procedimental, pois por meio dela passou a ser
esclarecido, parcialmente, o procedimento que deverá ser observado para o
trâmite deste instrumento. Com efeito, após quase quatro anos depois da
aprovação da Emenda constitucional 45, que instituiu o instrumento consti­
tucional da súmula vinculante, no art. 103-A, assim como após quase dois

3 GOMES, Mariângela Gomes de Magalhães. Direito penai e interpretação jurisprudencial: do


princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008. p. 110.
4 TAVARES, André Gomes. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de
19.12.2006. 3a ed. São Paulo: Método, 2009. p. 27.
5 Idem, p. 166.
F e r n a n d o A n t ô n io C . A lv es d e S o u z a - 4 9 3

anos da regulamentação de referido dispositivo pela Lei n° 11.417/2006,


inexistia qualquer procedimento claro, delineando os caminhos a serem tri­
lhados para se apresentar a proposta de edição, revisão ou cancelamento de
súmula vinculante quando não deriva da vontade direta do STF.”
Faz-se mister ressalvar que além de madura para se tornar vinculante,
basta que se observem os precedentes, além de a matéria ser nos dizeres do
eminente decano do STF, Min. Celso de Mello, em seu voto: “(...). De natu­
reza eminentemente constitucional da tipicidade penal. (...).”, arduamente
conquistada no séc. XVIII, integrada nos Códigos Penais e Constituições
Democráticas, o princípio constitucional da tipicidade penal, a edição de
nova súmula se faz necessária para que não acarrete grave insegurança jurídica
e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão, pois apesar do
leading case do habeas n° 81.611 do STF, vez por outra o cimeiro do Poder
Judiciário se deparava com o tema, daí preenchidos os requisitos de que trata
a Lei n° 11.417/2006, no seu art. 2o e seguintes.
Uma tentativa de síntese da matéria foi dada com precisão cirúrgica pelo
Min. Eros Grau, quando de sua intervenção no debate quando em uma “ten­
tativa de síntese”, fulminou: “(...). O que se pode dizer é que não há débito
tributário e nem penal sem crédito tributário. E o crédito tributário só de dar
quando o lançamento estiver completado. disse, em outras palavras, o
que André Gide, escritor francês dizia: “Tudo já foi dito uma vez, mas como
ninguém escuta épreciso dizer de novo”.
O Min. Carlos Ayres Britto busca correto amparo nos arts. 5o, inc. LV e
37, inc. XVIII da CF/88, ainda vigente, para fundamentar seu importante
voto, ou na ensinança de Damásio de Jesus6: “Com o passar dos anos, depois
de muito estudo e meditação, as idéias amadurecem, os conceitos vão se sedi­
mentando, e o autor se descobre submetendo a revisão crítica as suas próprias
condições. Nílton Bonder, em o segredojudaico de resolução de problemas, lembra
que, de acordo com a tradição cabalística, ‘a realidade existe em camadas,
como uma cebola, (...). Não se trata de simples ‘mudança de idéias’. É ama­
durecimento, avanço. Um passo a mais na busca de um Direito Penal garanti-
dor”, e o voto do Min. Ayres Britto revela isso, senão vejamos.

6 JESUS, Damásio. Teoria do domínio do fato no concurso de pessoas. São Pàuio: Saraiva, 1999.
Nota do autor, IX e XI.
494 - B re ve s C o m e n tá rio s so b re a A p ro v a ç ã o d a PSV..

Min. Carlos Britto: “(...). O litigante em Processo Administrativo tem


direito de usar de todos os meios e recursos para ver o Processo Administrati­
vo chegar àquela fase de provação de ato central e conclusivo na linguagem de
Pietrovirga. Exatamente como se dar no Processo Judicial. (...).”, assegurando
em outras palavras ao contribuinte a ampla defesa e seus corolários, naquilo
que procurou e encontrou no art. 37, inc. XVIII da CF/88, na chamada
Jurisdição Fiscal.
O Min. Dias Toffoli, por “questão de consciência”, nas suas palavras vo­
tou a favor da criação da nova súmula, ou melhor, ser possível sumular, “por ser
favorável ao cidadão”, além de com pertinência fazer observações ao voto do
Min. Ayres Britto, quando a matéria envolvia questão tributária.
A cereja do bolo fica com o voto-aula do Min. Cezar Peluso, quando
este aduz: “(...). O Direito Penal é o último, o último recurso, de que as
ordens jurídicas se valem para defender de valores que não podem ser defen­
didos de outro modo. Não é o caso da arrecadação de tributo.(...)”, neste
ponto é importante o voto do Min. Peluso, pois vem corroborar aquilo que
incansável e insistentemente vem doutrinando o Prof. Luiz Flávio Gomes7:
“1.2 Princípio da intervenção mínima\ a intervenção penal deve ser fragmentá­
ria e subsidiária. Isso é que caracteriza o chamado direito penal mínimo. O
princípio da intervenção mínima, que está na base do Direito Penal mínimo,
possui dois aspectos relevantes: (a) fragmentariedade; e (b) subsidiariedade. A
fragmentariedade do Direito Penal significa, por sua vez, duas coisas: (a) so­
mente os bens jurídicos mais relevantes devem merecer a tutela penal; (b)
exclusivamente os ataques mais intoleráveis é que devem ser punidos penal­
mente. Como se vê, o direito tem condições de oferecer aos bens uma proteção
diferenciada, que pode ser civil, administrativa, penal etc. A tutela penal deve
ser reservada para aquilo que efetivamente perturba o convívio social. Em
outras palavras, ao estritamente necessário (nesse ponto o princípio da inter­
venção mínima coliga-se com o princípio da proporcionalidade). O Direito
penal, de outro lado, é subsidiário, isto é, só tem lugar quando outros ramos do
Direito não solucionam satisfatoriamente o conflito. O Direito penal, em suma,
é direito de ultima ratio\

7 GOMES, Luiz Fiávio. Direito penal: parte geral, vol.1: introdução. 3a ed. rev., atual, e ampl. São
Paulo: RT: LFC - Rede de Ensino Luiz Flávio Comes, 2006. p. 100-101. Há versão mais
atualizada da obra: Direito Penal: parte geral. São Paulo: RT, 2007. v. 2, p. 307.
F e r n a n d o A n t ô n io C . A lv es d e S o u z a - 4 9 5

Ou seja, como doutrina o mestre alemão Claus Roxin8: “Onde bastem


os meios do direito civil ou do direito público o direito penal deve retirar-se,
conseqüentemente, e por ser a reacção mais forte da comunidade, apenas se
pode recorrer a ela em último lugar”.
Daí, ser referência no leading case quando do voto do Min. Peluso no
H C n° 81.611, a referência ao mestre alemão Roxin: “O Direito Penal é
um mal necessário, e quando se ultrapassa o limite da necessidade resta
apenas o mal”.
Eis algumas passagens da discussão do voto do Min. Peluso: “O Estado
não pode cobrar Administrativa ou Judicialmente na via cível. Como é que
pode exigir na via criminal mediante uma pretensão punitiva?”.
Mais adiante fulmina: “A postura da Corte hoje é que não se admite
processo crime sem, que esteja predefinido o crédito (...) o Art. 151, inc. III
do CTN [...], suspende a exigibilidade do crédito, em outras palavras: Como
é que se pode considerar criminosa a atividade de uma suposta imputação de
sonegação quando o próprio CTN diz que o crédito é inexigível?”.
Com estas breves considerações sobre a aprovação em plenário no STF
da PSV n° 29, que por tratar de matéria de natureza eminentemente consti­
tucional da tipicidade penal, traga mais agilidade na prestação jurisdicional,
trata-se como aduz a acima citada Prof. Mariângela Gama de Magalhães
Gomes9: “(...) Trata-se, na verdade, de um importante instrumento [súmula
vinculante] para a promoção de uma aplicação mais igualitária e previsível do
direito —e, portanto, mais próxima daquilo que se buscava com a afirmação
do princípio da legalidade penal.”
Estava por demais maduro o debate e edição de uma nova súmula vincu­
lante, agora em matéria penal-tributária.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s

GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral, vol. 1: introdução. 3a ed. rev., atual, e ampl. São
Paulo: RT: LFG - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, 2006.

8 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3a ed. Lisboa: Veja, 1998. p. 28.
9 GOMES, Mariângela Gomes de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do
princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008. p. 3.
4 9 6 - B r ev es C o m e n t á r io s s o b r e a A p r o v a ç ã o d a P S V ..

GOMES, Mariângela Gomes de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudenciah do


princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008.
JESUS, Damásio. Teoria do domínio dofato no concurso de pessoas. São Paulo: Saraiva, 1999.
ROXIN, Claus. Problemasfundamentais de direito penal. 3a ed. Lisboa: Veja, 1998.
TAVARES, André Gomes. Nova lei da súmula vinculante'. estudos e comentários à Lei 11.417 de
19.12.2006. 3a ed. São Paulo: Método, 2009.
Compensação e Multa
Isolada: O Artigo 18 da
Lei n° 10.833/03

Gabriel Lacerda Troianelli


Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Mestre em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes
(UCAM), Professor e Advogado.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 4 9 9

1. I n t r o d u ç ã o

Recebi com extrema alegria o convite formulado para contribuir com


esta justa homenagem ao Professor Hugo de Brito Machado, mestre de gera­
ções que tanta influência teve e tem na minha formação jurídica.
Não fosse a obra do professor Hugo suficiente para justificar esta home­
nagem, que sejam mencionadas suas qualidades como ser humano, especial­
mente o carinho e a atenção com que sempre tratou os jovens que se iniciavam
nos passos do Direito Tributário, situação em que um dia me encontrei, e não
tenho como esquecer a intensa felicidade que senti quando, ainda jovem e
desconhecido, pela primeira vez tive um artigo citado na Doutrina, e logo
pelo Professor Hugo!
Foi um grande estímulo para que continuasse meu caminho, buscando
no Professor aquele exemplo de doutrinador que não evita os assuntos polê­
micos —pelo contrário, os procura e os enfrenta —e que tem coragem para
sustentar publicamente suas opiniões, mesmo quando não forem respaldadas
pela Doutrina ou Jurisprudência dominantes.
Como ambos temos nos dedicado muito ao tema da compensação tribu­
tária, escolhi, para prestar esta homenagem ao Professor Hugo, um tema que
ainda está a merecer maior estudo e desenvolvimento por parte da Doutrina:
as multas isoladas previstas no artigo 18 da Lei n° 10.833/03, aplicáveis às
compensações não homologadas ou não declaradas.

2. O A r t ig o 18 da L ei n ° 1 0 . 8 3 3 / 0 3

Antes que a Lei n° 10.637/02 introduzisse, no artigo 74 da Lei n°


9.430/96, a figura da declaração de compensação, o contribuinte que preten­
desse compensar tributos de espécies diferentes arrecadados pela então Secre­
taria da Receita Federal tinha que protocolar pedido de compensação, que
não extinguia o crédito tributário sob condição resolutória nem implicava
confissão de dívida que dispensasse a constituição do crédito tributário pela
autoridade fiscal por meio do lançamento. Tal lançamento era previsto pelo
artigo 90 da Medida Provisória n° 2.158/01, nos seguintes termos:
“Art. 90. Serão objeto de lançamento de ofício as diferenças apuradas,
em declaração prestada pelo sujeito passivo, decorrentes de pagamen­
to, parcelamento, compensação ou suspensão de exigibilidade, indevidos
500 - C o m p e n sação e M u lt a Is o la d a

ou não comprovados, relativamente aos tributos e às contribuições ad­


ministrados pela Secretaria da Receita Federal.”
Tal lançamento, na prática, resultava na exigência do valor do tributo
indevidamente compensado atualizado pela SELIC e acrescido da multa ca­
bível, nos termos do artigo 44 da Lei n° 9.430/96.
Quando, com a Lei n° 10.637/02, foi introduzida a figura da declaração
de compensação, esta, muito embora já extinguisse o crédito tributário sob
condição resolutória de sua ulterior homologação, ainda não era considerada
confissão de dívida, razão pela qual permanecia a necessidade da constituição
do crédito tributário pelo lançamento e continuava a se aplicar, em sua inte-
gralidade, a regra do artigo 90 da Medida Provisória n° 2.158/01.
Somente quando a Lei n° 10.833/03 atribuiu à declaração de compen­
sação a natureza de confissão de dívida, documento hábil para a exigência dos
débitos indevidamente compensados que, por si só, já permitia a inscrição em
dívida ativa independentemente do lançamento, o artigo 90 da Medida Pro­
visória n° 2.158/01, tal como originalmente concebido, perdeu em parte sua
razão de ser, tendo a própria Lei n° 10.833/03, no artigo 18, restringido sua
aplicação à imposição de multa isolada, nos seguintes termos:
“Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida
Provisória n° 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à impo­
sição de multa isolada sobre as diferenças apuradas decorrentes de
compensação indevida e aplicar-se-á unicamente nas hipóteses de o
crédito ou o débito não ser passível de compensação por expressa dis­
posição legal, de o crédito ser de natureza não tributária ou em que ficar
caracterizada a prática das infrações previstas nos arts. 71 a 73 da Lei
n° 4.502, de 30 de novembro de 1964.
§ Io Nas hipóteses de que trata o caput, aplica-se ao débito
indevidamente compensado o disposto nos §§ 6o a 11 do art. 74 da Lei
n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
§ 2o A multa isolada a que se refere o caput é a prevista nos incisos I e
II ou no § 2o do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996,
conforme o caso.
§ 3o Ocorrendo manifestação de inconformidade contra a não-homolo-
gação da compensação e impugnação quanto ao lançamento das mul­
tas a que se refere este artigo, as peças serão reunidas em um único
processo para serem decididas simultaneamente.”
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 501

Portanto, a multa isolada criada pelo artigo 18 da Lei n° 10.833/03


destinava-se, originalmente, a ser aplicada em três hipóteses: (i) crédito ou
débito não passível de compensação por expressa determinação legal, ou seja,
nas situações descritas no § 3o do artigo 74 da Lei n° 9.430/96, e que eram a
compensação do saldo a restituir apurado na DIPF, a compensação de débitos
relativos a tributos devidos no registro da Declaração de Importação, a com­
pensação de débitos já encaminhados para a PGFN para a inscrição em dívida
ativa, a compensação de créditos tributários com débitos consolidados no âmbito
do REFIS ou do PAES e compensação com débitos que já tenham sido ob­
jeto de compensação não homologada por parte da Receita Federal.
Quanto aos percentuais da multa a serem aplicados, o § 2o, ao deter­
minar que “A multa isolada a que se refere o caput é a prevista nos incisos I
e II ou no § 2o do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996,
conforme o caso”, permitia, de acordo com a redação do artigo 44 da Lei n°
9.430/96 vigente na época, a imposição das seguintes multas isoladas: nas
situações em que não houvesse evidente intuito de fraude, de 75% (inciso
I), ou 112,5% (inciso I c/c § 2o) na hipótese de não atendimento ou emba­
raço à fiscalização; na situações em que estiver presente o evidente intuito
de fraude, de 150% (inciso II) ou 225% (inciso II c/c § 2o) na hipótese de
não atendimento ou embaraço à fiscalização.
Portanto, verifica-se que na dicção original do artigo 18 da Lei n°
10.833/03, o mero fato de fazer compensação legalmente vedada ou de
crédito não tributário por si só ensejava a aplicação de multa isolada, inde­
pendentemente de haver ou não a conduta dolosa (fraude, simulação, sone­
gação, conluio) por parte do sujeito passivo.

3 . A s A lt e r a ç õ e s T r a z id a s pela Lei n ° 1 1 .051/04


Tal situação perdurou até que a Lei n° 11.051, de 29 de dezembro de
2004, ao criar a figura da “compensação não declarada” mediante o acréscimo
de um parágrafo (§ 12) ao artigo 74 da Lei n° 9.430/96, também alterou o
artigo 18 da Lei n° 10.833/03, que passava a ter a seguinte redação:
“Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida
Provisória n° 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à impo­
sição de multa isolada em razão de não-homologação da compensação
declarada pelo sujeito passivo nas hipóteses em que ficar caracterizada
5 0 2 - C o m p e n s a ç ã o e M u lta Is o l a d a

a prática das infrações previstas nos arts. 71 a 73 da Lei n° 4.502, de 30


de novembro de 1964.”
§ Io Nas hipóteses de que trata o caput, aplica-se ao débito
indevidamente compensado o disposto nos §§ 6o a 11 do art. 74 da Lei
n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
§ 2o A multa isolada a que se refere o caput deste artigo será aplicada
no percentual previsto no inciso II do caput ou no § 2o do art. 44 da Lei
n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996, conforme o caso, e terá como
base de cálculo o valor total do débito indevidamente compensado.
§ 3o Ocorrendo manifestação de inconformidade contra a não-homolo-
gação da compensação e impugnação quanto ao lançamento das mul­
tas a que se refere este artigo, as peças serão reunidas em um único
processo para serem decididas simultaneamente.
§ 4oA multa prevista no caput deste artigo também será aplicada quan­
do a compensação for considerada não declarada nas hipóteses do inciso
II do § 12 do art. 74 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996.”
Com esta nova redação, portanto, a miilta isolada prevista no caput para as
compensações não homologadas deixou de se aplicar nas situações em que o con­
tribuinte fizesse compensação legalmente vedada ou compensasse crédito não tri­
butário sem que se comprovasse conduta dolosa. Somente quando presente a
conduta dolosa, ou, em outras palavras, “nas hipóteses em que ficar caracterizada a
prática das infrações previstas nos arts. 71 a 73 da Lei n° 4.502, de 30 de novem­
bro de 1964”, é que seria cabível a imposição da multa isolada. O que se confirma
pelo fato de que o § 2o do artigo 18, em sua nova redação dada pela Lei n°
11.051/04, determinava que “a multa isolada a que se refere o caput deste artigo
será aplicada no percentual previsto no inciso II do caput ou no § 2o do art. 44 da
Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996, conforme o caso”, percentuais estes
que, na redação legal vigente à época em que de deu a alteração em exame, eram de
150% (inciso II), aplicável na hipótese de dolo por parte do contribuinte, e de
225% (§ 2o), quando ao dolo se somasse o embaraço à fiscalização.
Destaque-se que por se tratar de norma que impõe penalidade, a redação
dada pela Lei n° 11.051/04 ao caput do artigo 18 da Lei n° 10.833/03, ao
excluir a imposição de multa isolada quando inexistir conduta dolosa, retroa-
ge às compensações anteriormente efetuadas por força do artigo 106, II, do
Código Tributário Nacional.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 0 3

Quanto às compensações não declaradas, o § 4o do artigo 18 da Lei n°


10.833/03, também introduzido pela Lei n° 11.051/04, simplesmente dispu­
nha no sentido de que: “A multa prevista no caput deste artigo também será
aplicada quando a compensação for considerada não declarada nas hipóteses do
inciso II do § 12 do art. 74 da Lei n2 9.430, de 27 de dezembro de 1996”.
Muito embora o Fisco tenha buscado, em um primeiro momento, apli­
car a regra do § 4o a compensações efetuadas antes da sua introdução, tal
pretensão tem sido sistematicamente afastada pela Jurisprudência adminis­
trativa. É o que demonstram, a título exemplificativo, as decisões proferidas
pela Primeira, Segunda e Quarta Câmara do antigo Segundo Conselho de
Contribuintes, assim ementadas:
“COFINS. MULTA ISOLADA. COMPENSAÇÃO INDEVIDA.
ART. 74. A multa isolada de ofício (art. 18 da Lei n° 10.833/2003)
somente deve ser aplicada nas estritas hipóteses em que o crédito ou o
débito não seja passível de compensação por expressa disposição legal,
entre as quais se contam as de: a) saldo a restituir apurado na Declaração
de Ajuste Anual do Imposto de Renda da Pessoa Física; b) débitos
relativos a tributos e contribuições devidos no registro da Declaração de
Importação; c) débitos relativos a tributos e contribuições administrados
pela Secretaria da Receita Federal que já tenham sido encaminhados à
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ati­
va da União; d) débito consolidado em qualquer modalidade de
parcelamento concedido pela Secretaria da Receita Federal —SRF; e)
débito quejá tenha sido objeto de compensação não homologada, ainda
que a compensação se encontre pendente de decisão definitiva na esfera
administrativa; e f) valor objeto de pedido de restituição ou de ressarci­
mento já indeferido pela autoridade competente da Secretaria da Receita
Federal - SRF, ainda que o pedido se encontre pendente de decisão
definitiva na esferaadministrativa. Somente com aedição da Lei n° 11.051/
2004 (art. 4o- DOU de 30/12/2004) é que se passou a considerar não
passível de compensação e, conseqüentemente, como não declaradas as
compensações que tivessem por objeto, além das estritas hipóteses
retromencionadas, as novas hipóteses em que o crédito: a) seja de tercei­
ros; b) refira-se a crédito-prêmio instituído pelo art. Iodo Decreto-Lei n°
491/69; c) refira-se a título público; d) seja decorrente de decisão judicial
não transitada em julgado; e e) não se refira a tributos e contribuições
administrados pela Secretaria da Receita Federal - SRF. PRINCIPIO
504 - C o m p e n sação e M u lt a Is o la d a

DA IRRETROATIVIDADE DA LEI FISCAL. A pretendida apli­


cação da multa isolada de ofício à compensação relativa a fatos geradores
ocorridos no período de outubro de 2003 ajunho de 2004, sob invocação
das novas hipóteses (utilização de créditos adquiridos de terceiros), so­
mente criadas com a edição da Lei n° 11.051/2004 (DOU de 30/12/
2004 - art. 4o), viola concretamente o disposto nos arts. 104, inciso II,
113, § Io, 114, e 144, do CTN, que obstam a aplicação da nova lei às
situaçõesjurídicas definitivamente consolidadas ao abrigo da lei tributá­
ria anterior. Recurso de oficio negado.”1
“Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI - Período de apura­
ção: 01/10/2000 a 20/10/2000 MULTA DE OFÍCIO ISOLA­
DA. RETROATIVIDADE DA LEI. IMPOSSIBILIDADE. Não
satisfeitas as hipóteses previstas no art. 106 do CTN, não há que se
falar em retroatividade da lei. Somente é cabível a aplicação, e conse­
qüentemente a exação de ofício, da multa prevista no art. 18 da Lei n°
10.833, de 2003, com a redação dada pela Lei n° 11.051, de 2004, ou
mesmo no art. 90 da Medida Provisória n° 2.158-35, de 2001, para
os períodos subseqüentes à entrada em vigor de tais normas. Recurso
de ofício negado.”2
“NORMAS PROCESSUAIS. MULTA ISOLADA, POR COM­
PENSAÇÃO INDEVIDA. CRÉDITO DE TERCEIRO.
DESCABIMENTO. A multa isolada, por compensação indevida de
débitos, aplicava-se, na época, unicamente nas hipóteses de: o crédito
ou o débito não ser passível de compensação, por expressa disposição
legal; de o crédito ser de natureza não tributária; ou em que ficar carac­
terizada a prática de sonegação, fraude ou conluio, restando descabida,
fora das infrações citadas. Recurso de ofício negado.”3
Não resta dúvida, portanto, que a multa isolada por compensação consi­
derada não declarada não podia ser imposta às compensações efetuadas antes
de 30 de dezembro de 2004, quando foi introduzido o § 4o do artigo 18 da
Lei n° 10.833/03.

1 Acórdão 201-79.377, proferido pela Primeira Câmara do Segundo Conselho no recurso


132.416 em 28 de junho de 2006.
2 Acórdão 202.19432, proferido pela Segunda Câmara do Segundo Conselho de Contribuintes
no recurso n° 134.719, em cinco de novembro de 2008.
3 Acórdão 204-01.788, proferido pela Quarta Câmara do Segundo Conselho no recurso n°
135.678 em 20 de setembro de 2006.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 0 5

Outro ponto que merece atenção muito embora nem a Doutrina nem a
Jurisprudência tenham até o momento suscitado a questão, é a discutível pos­
sibilidade, naquele primeiro momento que se seguiu à introdução do § 4o do
artigo 18 da Lei n° 10.833/03, da imposição da multa isolada quando a
compensação fosse considerada não declarada sem que se comprovasse a ocor­
rência de dolo por parte do contribuinte.
Isto porque se o § 4o do artigo 18 da Lei n° 10.833/03, com a redação
dada pela Lei n° 11.051/04, determinava que a multa “prevista no caput” se
aplicava também quando a compensação fosse considerada não declarada, es­
tendendo, assim, a multa aplicável às não homologações de compensação
{caput) aos casos de compensação não declarada, conclui-se que a multa pre­
vista no § 4o do artigo 18 da Lei n° 10.833/03, com a redação dada pela Lei
n° 11.051/04, somente poderia ser imposta nos casos em que, considerada
não declarada a compensação, fosse comprovado o comportamento doloso por
parte do contribuinte.
Em outras palavras, se o caput do artigo 18 previa a imposição de multa
isolada para a hipótese X (não homologação) quando ocorresse Z (conduta
dolosa), é certo que o § 4o, ao estender a aplicabilidade da multa do caput para
a hipótese Y (compensação não declarada), só pode ser aplicado também na
presença de Z (conduta dolosa), não sendo lógico que se suponha que tam­
bém pudesse se aplicar na ausência de Z.
O que se demonstra também pelo fato de que, no período considerado,
a multa imposta só poderia se dar nos percentuais então previstos no § 2o do
artigo 18, de 150% ou 225%, cabíveis somente em razão de conduta dolosa.

4 . A R e d a ç ã o d a d a pela Lei n ° 1 1 . 1 9 6 / 0 5

Tal situação só se alterou quando a Lei n° 11.196, de 21 de novembro de


2005, deu ao § 4o do artigo 18 da Lei n° 10.833/03 a seguinte redação:
“Art. 18. (...)
(...)
§ 4o Será também exigida multa isolada sobre o valor total do débito
indevidamente compensado quando a compensação for considerada não
declarada nas hipóteses do inciso II do § 12 do art. 74 da Lei n° 9.430, de
27 de dezembro de 1996, aplicando-se os percentuais previstos:
5 0 6 - C o m p e n s a ç ã o e M u lta Is o l a d a

I - no inciso I do caput do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro


de 1996;
II - no inciso II do caput do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro
de 1996, nos casos de evidente intuito de fraude, definidos nos arts. 71,
72 e 73 da Lei n° 4.502, de 30 de novembro de 1964, independente­
mente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.”
Como se vê, somente com a redação dada ao § 4o do artigo 18 da Lei n°
10.833/03 pela Lei n° 11.196/05 é que a multa prevista neste parágrafo
deixou de ser “a multa prevista no caput” e passou a ser outra multa, uma
“também exigida multa isolada” imposta às compensações não declaradas e
aplicável tanto na ausência de conduta dolosa (inciso I do § 4o) quanto na sua
presença (inciso II do § 4o). Ou seja, somente a partir da Lei n° 11.196/05 é
que a multa prevista no § 4o para a hipótese Y (compensação não declarada)
que anteriormente só podia ser aplicada na presença de Z (conduta dolosa),
passou a ser aplicável na sua ausência.
A Lei n° 11.196/05 acrescentou ainda ao artigo 18 da Lei n° 10.833 o §
5o, no qual se estabelece que: “Aplica-se o disposto no § 2o do art. 44 da Lei n°
9.430, de 27 de dezembro de 1996, às hipóteses previstas no § 4o deste artigo”.

5 . A R e d a ç ã o D a d a pela Lei n° 1 1 .4 8 8 / 0 7

A Lei n° 11.488, de 15 de junho de 2007, alterou o caput e os §§ 2o, 4o


e 5o do artigo 18 da Lei n° 10.833/03, que passou a ter a seguinte redação:
“Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida
Provisória n° 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à impo­
sição de multa isolada em razão de não-homologação da compensa­
ção quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo
sujeito passivo.
§ Io Nas hipóteses de que trata o caput, aplica-se ao débito
indevidamente compensado o disposto nos §§ 6o a 11 do art. 74 da Lei
n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
§ 2o A multa isolada a que se refere o caput deste artigo será aplicada
no percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei n° 9.430,
de 27 de dezembro de 1996, aplicado em dobro, e terá como base de
cálculo o valor total do débito indevidamente compensado.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 0 7

§ 3o Ocorrendo manifestação de inconformidade contra a não-homolo-


gação da compensação e impugnação quanto ao lançamento das mul­
tas a que se refere este artigo, as peças serão reunidas em um único
processo para serem decididas simultaneamente.
§ 4o Será também exigida multa isolada sobre o valor total do débito
indevidamente compensado quando a compensação for considerada
não declarada nas hipóteses do inciso II do § 12 do art. 74 da Lei n°
9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicando-se o percentual previsto
no inciso I do caput do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de
1996, duplicado na forma de seu § Io, quando for o caso.
§ 5o Aplica-se o disposto no § 2o do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de
dezembro de 1996, às hipóteses previstas nos §§ 2o e 4o deste artigo.”
Conquanto as alterações nos §§ 2o, 4o e 5o tenham-se limitado a adaptar
tais parágrafos à atual redação do artigo 44 da Lei n° 9.430/96, também intro­
duzida pela Lei n° 11.488/07, a alteração do caput foi relevante, na medida em
que a multa isolada, antes cabível “nas hipóteses em que ficar caracterizada a
prática das infrações previstas nos arts. 71 a 73 da Lei n° 4.502, de 30 de
novembro de 1964”, torna-se passível de imposição apenas “quando se compro­
ve falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo”.
Com isso, o critério determinante da aplicação da multa ganhou maior
grau de objetividade, que antes da alteração era a conduta dolosa do contribuin­
te, elemento de difícil aferição em razão do seu caráter subjetivo, na medida em
que sua presença depende da intenção do agente. Já o atual critério da falsidade
da declaração apresentada pelo sujeito passivo é bem menos difícil de se de­
monstrar, já que é, senão objetivo, dotado de grau bem maior de objetividade, já
que ou há falsidade na declaração, ou não há. Substituiu-se, assim, um critério
centrado no sujeito (conduta dolosa do sujeito passivo) por outro centrado no
objeto (falsidade da declaração apresentada).
Muito embora o termo falsidade não seja de uso tradicional no Direito
Tributário, ele é tipificado, com a ementa de falsidade ideológica, no artigo
299 do Código Penal, nos seguintes termos:
“Art. 299. Omitir, em documento público ou particular, declaração que
dela deva constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou
diversa da que deva ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar
obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.”
5 0 8 - C o m p e n s a ç ã o e M u lta Is o l a d a

Com tal alteração, o critério determinante da aplicação da multa tor-


nou-se mais objetivo, pois a “falsidade da declaração apresentada pelo sujei­
to passivo” é elemento que se encontra na própria declaração, até certo ponto
independente, portanto, da intenção do contribuinte. Muito embora a ex­
pressão falsidade ainda seja dotada de certo grau de subjetividade, na medi­
da em que supõe a intenção do contribuinte de prestar informação inexata
para obter determinada vantagem, a regra é mais objetiva do que a anterior,
que dependia da comprovação da conduta dolosa do contribuinte, elemento
de difícil aferição em razão do seu caráter subjetivo, pois sua presença de­
pende por inteiro da intenção do agente.
Pode-se dizer, assim, que enquanto na antiga redação do caput do artigo
18 da Lei n° 10.833/03 era o Fisco que tinha o ônus de demonstrar a inten­
ção dolosa do contribuinte, na atual redação é o contribuinte que deve de­
monstrar a ausência de falsidade, ou seja, que o elemento inexato na declaração
não teve como finalidade lesar a Fazenda.
Nesse contexto, e levando-se em conta especialmente a absoluta dificul­
dade de se fazer prova negativa, há que se aplicar o artigo 112 do Código
Tributário Nacional, segundo o qual:
“Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalida­
des, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de
dúvida quanto:
I —à capitulação legal do fato;
II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou
extensão dos seus efeitos;
III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.”
Em tais condições, bastaria ao contribuinte apresentar motivo plausível
para o preenchimento inexato da declaração para afastar a pecha de falsidade,
já que, se forem de igual força os argumentos ou indícios para sustentar a
falsidade ou para afastá-la, deve prevalecer a interpretação mais benéfica para
o contribuinte.
Com efeito, não se pode presumir a existência de dolo quando não se
verificar, no caso concreto, o evidente intuito do contribuinte de cometer ato
ilícito. Na acepção jurídica, que é a que aqui se busca, intuito, segundo De
Plácido e Silva, é:
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 0 9

“(...) o que se quer, o que se deseja, o que se tem em vista, quando se faz
alguma coisa.
É ofim desejado, o objetivopensado, ou o resultado querido. É afinali­
dade que se tem em mente, quando se pratica o ato ou se executa
qualquer coisa.”4
O intuito a que se refere o legislador da Lei n° 4.502/64 é o dolo, a
vontade que tem o agente de realizar a conduta ilícita. Compreende o dolo
dois elementos: um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui
a ação típica - fraude, no caso) e um elemento volitivo (vontade de realizá-la).
Por tal motivo é que o dolo não pode ser presumido, ele deve ser cabal­
mente comprovado por quem o alega. Daí porque o artigo 44 da Lei n° 9.430/
96 determina que seja evidente o intuito de fraudar. Evidente é o que “não
oferece dúvida; que se compreende prontamente, dispensando demonstração;
claro, manifesto, patente”5. Se qualquer elemento do fato oferecer dúvida
quanto à conduta recriminada, o fato tipificado torna-se apenas possível, dei­
xando de ser patente, manifesto, evidente. E essa evidência, por óbvio, tem
que ser inequivocamente demonstrada por quem alega: a fiscalização.
Os Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda compuseram
vasta jurisprudência sobre o assunto ao decidir sobre a aplicação da multa de
150%, como demonstram as seguintes ementas:
“Multa Qualificada de 150% - Lei 9430/96, Art. 44, II —Necessida­
de de Comprovação do Dolo - A hipótese prevista no art. 44, II, da
Lei 9430/96, deve ser interpretada restritivamente, e aplicada so­
mente nos casos de evidente intuito fraude em que tenha sido
tipificada a ação em um dos institutos dos artigos 71 a 73 da Lei
4502/94, e desde que tenha ficado demonstrado pela fiscalização
que o contribuinte agiu dolosamente.”6
“Recurso Ex Ojficio - IRPJ - Multa Qualificada - Justificativa para
Aplicação - Evidente Intuito de Fraude - O lançamento da multa
qualificada de 150% deve ser minuciosamente justificada e comprova­

4 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, vol. II, 8a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 511.
5 HOLAN DA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2a ed. 36a
reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 736.
6 Acórdão CSRF/01 -05.435, proferido pela Câmara Superior de Recursos Fiscais do Primeiro
Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda em 21 de março de 2006.
5 1 0 - C o m p e n s a ç ã o e M u lta Is o l a d a

da nos autos. Além disso, exige-se que o contribuinte tenha procedido


com evidente intuito de fraude, nos casos definidos nos arts. 71,72 e 73
da Lei n° 4.502/64. Inadmissível a qualificação da multa de ofício
sobre a diferença do imposto de renda exigido, calculado sobre a receita
declarada, originariamente tributada pelo contribuinte com base no lu­
cro presumido, e posteriormente arbitrada em vista da desclassificação
da escrituração contábil, por imprestável. A falta de comprovação da
origem dos recursos depositados em conta-corrente bancária caracteri­
za falta simples de presunção de omissão de receitas, porém, não carac­
teriza evidente intuito de fraude a ensejar a exasperação da multa de
ofício prevista no inciso II do artigo 44 da Lei n° 9.430/96.”7
“Multa Qualificada —A falta de declaração ou a prestação de declara­
ção inexata, por si sós, não autorizam o agravamento da multa, que
somente se justifica quando presente o evidente e intuito de fraude,
caracterizado pelo dolo específico, resultante da intenção criminosa e da
vontade de obter o resultado da ação ou omissão delituosa, descrito na
Lei n° 4.502/64.”8
“Decadência - Tributos Sujeitos a Lançamento Por Homologação -
Art. 150, § 4o do CTN - Ausência de Prova de Dolo, Fraude ou
Simulação - Em se tratando de tributos sujeitos a lançamento por ho­
mologação, o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário
se extingue, pela decadência, a partir do quinto ano seguinte ao da
ocorrência do respectivo fato gerador, salvo quando comprovada a ocor­
rência de dolo, fraude ou simulação, quando o qüinqüênio legal se con­
tará a partir do primeiro dia do exercício seguinte, nos termos do art.
173,1 do CTN. Não basta à comprovação do dolo, fraude ou simulação
o fato de se ter lançado multa de ofício qualificada, com base no art. 44,
II da Lei n° 9430/96, ou mesmo de haver Representação Fiscal para
Fins Penais, sendo necessária a prova e a demonstração, no auto de
infração, da existência de dolo, fraude ou simulação.”9
“Penalidade Agravada - Não se justifica a aplicação da multa de ofício
qualificada, prevista no inciso II do artigo 44 da Lei n° 9.430/96, se não

7 Acórdão 101-95233, proferido pela Primeira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes


do Ministério da Fazenda em 20 de outubro de 2005.
8 Acórdão 103-22211, proferido pela Terceira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes
do Ministério da Fazenda em 08 de dezembro de 2005.
9 Acórdão 105-15402, proferido pela Quinta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes
do Ministério da Fazenda em 10 de novembro de 2005.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e l l i - 5 11

restar devidamente comprovado o evidente intuito de fraude. Não basta


ao fisco entender presentes ‘fortes evidências de intuito de fraude’.”10
“Multa de Ofício Qualificada - Justificativa para Aplicação - Intuito
de Fraude não Evidenciado —Qualquer circunstância que autorize a
exasperação da multa de lançamento de ofício de 75%, prevista como
regra geral, deverá ser minuciosamente justificada e comprovada nos
autos. Além disso, para que a multa qualificada seja aplicada, exige-
se que o contribuinte tenha procedido com evidente intuito de fraude,
fato não caracterizado nos autos pelo órgão lançador. Restando
incomprovada a conduta dolosa da contribuinte, improcede a aplica­
ção da multa qualificada.”11
Em face do exposto, embora a atual redação do caput do artigo 18 da
Lei n° 10.833/03, ao se referir à falsidade, tenha tornado mais objetivo o
critério para a aplicabilidade da norma, ela não dispensa a demonstração,
por parte da administração, de ter o elemento falso sido introduzido in­
tencionalmente pelo sujeito passivo com o intuito de enganar a fiscaliza­
ção, não se aplicando assim o referido artigo sempre que o contribuinte
oferecer indício plausível de que o elemento falso na verdade foi introdu­
zido por engano.

6. A R ed ação D a d a pela M e d id a P r o v is ó r ia n ° 4 7 2 / 0 9

Por fim, o artigo 27 da Medida Provisória n° 472, de 15 de dezembro


de 2009, dá nova redação ao caput e ao § 2o do artigo 18 da Lei n° 10.833/
03, que passam a ter a seguinte redação:
“Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida
Provisória n° 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à impo­
sição de multa isolada em razão de não-homologação da compensação
quando não confirmada a legitimidade ou suficiência do crédito infor­
mado ou quando se comprove falsidade da declaração apresentada
pelo sujeito passivo.
(...)

10 Acórdão 107-07683, proferido pela Sétima Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes do


Ministério da Fazenda em 16 de junho de 2004.
11 Acórdão 108-08896, proferido pela Oitava Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes do
Ministério da Fazenda em 21 de junho de 2006.
5 1 2 - C o m p e n s a ç ã o e M ulta Is o l a d a

§ 2o A multa isolada a que se refere o caput deste artigo será aplicada


sobre o total do débito indevidamente compensado, no percentual:
I - previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de
dezembro de 1996, na hipótese em que não for confirmada a legitimi­
dade ou suficiência do crédito informado; ou
II - previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei n° 9.430, de 27 de
dezembro de 1996, duplicado na forma de seu § Io, quando se compro­
ve falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.
(•••)”
Cria-se, desta forma, a multa de 75% para as compensações não homolo­
gadas, aplicável quando não comprovada a legitimidade ou suficiência do cré­
dito. O motivo para tal alteração é revelado pela Exposição de Motivos
Interministerial n° 00180/2009 - M F/M DIC, nos seguintes termos:
“O art. 27 altera a redação do caput e do § 2o do art. 18 da Lei n°
10.833, de 2003, visando aperfeiçoar a imposição de penalidades na
compensação. Atualmente é aplicada apenas a multa de mora na hipó­
tese de compensação indevida, pelo fato de o débito declarado na De­
claração de Compensação constituir confissão de dívida, de forma que,
não raro, esse fato tem servido para que alguns contribuintes se utili­
zem de créditos inexistentes como forma de obter certidão negativa ou
para não pagar o crédito tributário, contando com a homologação da
compensação pelo decurso de prazo. Assim, o caput do art. 18 prevê a
aplicação da penalidade na hipótese de compensação indevida, ficando
determinado, no inciso I do § 2o, que o percentual a ser aplicado, na
hipótese em que não for confirmada a legitimidade ou suficiência do
crédito informado, é o previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei n°
9.430, de 27 de dezembro de 1996.”
Na prática, tal alteração autorizará a imposição da multa isolada sempre
que a compensação não for homologada, já que a expressão “não confirmada a
legitimidade ou suficiência do crédito” é de tal forma vaga que poderá ser
utilizada pela autoridade fiscal em qualquer caso, o que leva a indagar se a
solução legislativa adotada não será desproporcional, já que, para coibir “al­
guns contribuintes” que abusam do procedimento de compensação, afetará
absolutamente todos os contribuintes que tiverem suas compensações rejeita­
das, mesmo aqueles em relação aos quais não se comprovar qualquer intenção
de lesão ao Erário.
Compensação do
Crédito-Prêmio de IPI e
Restrições Introduzidas
pela Lei 11.051/04

Gabriel Lacerda Troianelli


Doutor em Direito Público pela UERJ, Mestre em Direito Tributário pela
Universidade Cândido Mendes (UCAM), Professor e Advogado.
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 515

1. In tro d u ção

Desde o seu ingresso no Superior Tribunal de Justiça e mesmo antes,


quando Juiz do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, tem o Ministro
José Delgado dedicado especial atenção, com a habilidade que lhe é peculiar,
a um tema tributário de grande importância: a compensação do indébito tri­
butário, que desde a edição da Lei n° 8.383/91 ocupa significativa parcela da
doutrina e da jurisprudência tributárias.
O Ministro José Delgado também tem se dedicado, com igual maestria,
a outra questão que, apesar de antiga, tem assumido relevante papel nas dis­
cussões judiciais: o crédito-prêmio de IPI.
Nesse contexto, nada mais oportuno, para render ajusta homenagem ao
Ministro Delgado, do que tratar de uma questão recente que abrange esses
dois temas: as alterações promovidas pela Lei n° 11.050/04 no artigo 74 da
Lei n° 9.430/96, que passou a ter a seguinte redação na parte que interessa ao
presente estudo:
“Art. 74. (...)
(...)
§ 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses:
(...)

II - em que o crédito:
a) seja de terceiros;
b) refira-se a ‘crédito-prêmio’instituído pelo art. Io do Decreto-Lei n°
491, de 5 de março de 1969;
c) refira-se a título público;
d) seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado; ou
e) não se refira a tributos e contribuições administrados pela Secretaria
da Receita Federal - SRF.
(.••)”
Dada a grande quantidade de exportadores contemplados por decisões
judiciais - liminares ou definitivas e muitas, inclusive, transitadas em julga­
do - que lhes asseguram a possibilidade da compensação do crédito-prêmio
516 - C o m p e n sação d o C r é d ito - P rê m io de IP I e R e s triç õ e s .

com tributos federais próprios ou de terceiros, é de extrema relevância de­


terminarmos em que medida o § 12 do artigo 74 da Lei n° 9.430/96 afeta­
rá essas compensações.

2. A g ê n e s e d o a r t ig o 74 da L ei N ° 9 . 4 3 0 / 9 6 E O
ÂM BITO DA SUA APLICAÇÃO

O primeiro ponto que merece ser examinado é o exato contexto no qual


surgiu o artigo 74 da Lei n° 9.430/96.
Muito embora o Código Tributário Nacional, no artigo 156, inciso II,
previsse a compensação como forma de extinção do crédito tributário, e, no
artigo 170, delegasse à lei ordinária a previsão sobre como o sujeito passivo
poderia utilizar a compensação como forma de extinção de seus créditos tri­
butários, somente a Lei n° 8.383, de 1991, passou a prever, no seu artigo 66,
a possibilidade de que o contribuinte pudesse compensar créditos decorrentes
de tributos e contribuições pagos indevidamente ou a maior com débitos de
tributos e contribuições, desde que da mesma espécie.
Ainda que essa regra tenha contribuído para melhorar, significativamen­
te, a dinâmica da recuperação dos tributos indevidamente pagos pelo sujeito
passivo, ainda havia diversas situações em que ele não conseguia compensar
seus indébitos com tributos da mesma espécie, tanto pelo fato de o tributo
indevidamente pago ter sido extinto (por exemplo, o FINSOCIAL) como
pelo fato de o tributo não ser devido pelo contribuinte que o pagou indevida­
mente (por exemplo, imposto de renda pago por pessoa imune ou isenta).
Outras vezes, muito embora o contribuinte conseguisse, em tese, com­
pensar seus créditos com tributo de mesma espécie, essa compensação, dada a
magnitude dos créditos do contribuinte e a relativa insignificância dos débi­
tos, levaria quinze ou vinte anos para compensar tudo, tempo mais longo do
que o de uma ação de repetição de indébito seguida do pagamento por meio
de precatório.
Foi assim que, para flexibilizar ainda mais o mecanismo de compensação
dos tributos indevidamente pagos, a Lei n° 9.430, de 1996, na seção sobre
“Restituição e compensação de tributos e contribuições”, assim dispôs:
“Seção VII
Restituição e compensação de tributos e contribuições
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e l l i - 5 1 7

Art. 73. Para efeito do disposto no art. 7o do Dec.-lei 2.287, de 23 de


julho de 1986, a utilização dos créditos do contribuinte e a quitação de
seus débitos serão efetuados em procedimentos internos à Secretaria
da Receita Federal, observado o seguinte:
I —o valor bruto da restituição ou do ressarcimento será debitado à
conta do tributo ou da contribuição a que se referir;
II - a parcela utilizada para a quitação de débitos do contribuinte ou
responsável será creditada à conta do respectivo tributo, ou da respec­
tiva contribuição.
Art. 74. Observado o disposto no artigo anterior, a Secretaria da Receita
Federal, atendendo a requerimento do contribuinte, poderá autorizar a
utilização de créditos a serem a ele restituídos ou ressarcidos para a
quitação de quaisquer tributos e contribuições sob sua administração.”
Como se vê, muito embora o artigo 74 não se refira, expressamente, a
crédito tributário do contribuinte, o título da seção, que trata da restitui­
ção e compensação de tributos e contribuições, restringe o âmbito da com­
pensação prevista no artigo 74, que não poderia ser feita, por exemplo, com
créditos do contribuinte gerados pelo não pagamento de um serviço por ele
prestado à União.
Além disso, a aplicabilidade exclusiva do artigo 74 aos créditos do con­
tribuinte de índole tributária também se deduz em virtude da referência ao
artigo 73, que por sua vez se reporta ao artigo 7o do Decreto-lei n° 2.287, de
1986, assim redigido:
“Art 7oA Secretaria da Receita Federal, antes de proceder a restituição
ou ao ressarcimento de tributos, deverá verificar se o contribuinte é
devedor à Fazenda Nacional.
§ Io Existindo débito em nome do contribuinte, o valor da restituição
ou ressarcimento será compensado, total ou parcialmente, com o valor
do débito.
§ 2o O Ministério da Fazenda disciplinará a compensação prevista no
parágrafo anterior.”
Conclui-se, portanto, que se trata o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 de
uma regra geral sobre compensação de tributos ou contribuições aos quais o
sujeito passivo tenha direito à restituição ou ressarcimento com os tributos
518 - C o m p e n sação d o C ré d ito - P r ê m io de IP I e R e s triç õ e s .

ou contribuições devidos, administrados, tanto uns quanto outros, pela Se­


cretaria da Receita Federal. É, em síntese, uma regra geral de compensação
de tributos.

3 . AS REGRAS DE APROVEITAMENTO PRÓPRIAS DO CRÉDITO-PRÊMIO


de IPI: o D ecreto n° 6 4 .8 3 3 / 6 9

Há que se examinar, agora, em que medida a regra do artigo 74 da Lei n°


9.430/96 terá influenciado a disciplina relativa à utilização do crédito-prê-
mio de IPI.
Muito embora o crédito-prêmio seja, no dizer do artigo Io do Decreto-lei
n° 491/69, um crédito tributário, é certo, também segundo esse artigo, que ele
se trata de um estímulo fiscal, distinguindo-se, neste particular, de outros crédi­
tos tributários.
A utilização do crédito-prêmio, que se encontra prevista de forma espe­
cífica no artigo Io do Decreto-lei n° 491/69, bem como no artigo 3o do
Decreto n° 64.833/69, comporta as seguintes formas: dedução no valor do
IPI devido; transferência para outro estabelecimento da mesma empresa ou
de empresa interdependente; pagamento (compensação) de outros tributos
federais; ressarcimento em espécie.
Como se vê, a regra que dispõe sobre a utilização do crédito-prêmio de
IPI, além de ser uma regra especial para tal crédito, admite outras modalida­
des de utilização do crédito que não a compensação.
Assim, enquanto o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 é uma regra geral sobre
compensação de tributos, a regra de utilização do crédito-prêmio de IPI (ar­
tigo Io do Decreto-lei n° 491/69 c/c o artigo 3o do Decreto n° 64.833/69) é
uma regra especial aplicável apenas a este crédito que não diz respeito exclu­
sivamente à compensação.
Muito embora o Decreto n° 64.833/69 tenha sido “declarado revogado”
por um Decreto s/n de 24 de abril de 1991, entendemos que tal decreto não
revogou norma alguma, tendo apenas “declarado revogadas” diversas normas
que tinham perdido a eficácia, ou por já terem consumado seus efeitos (como
o Decreto n° 14, de 25 de novembro de 1889, que nomeava, há mais de cem
anos, chefes de repartição), ou por regulamentarem normas já revogadas, que
é, justamente, o que o Presidente da República, em 1991, supunha que tives­
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 1 9

se ocorrido com o artigo I o do Decreto-lei n° 491/69. Tanto é assim que a


instância administrativa e a judicial vêm admitindo a permanência do Decre­
to n° 64.833/69 em nosso ordenamento jurídico, bem como a sua aplicabili­
dade quanto à regulação da utilização do crédito-prêmio de IPI. Nesse sentido
foi a decisão proferida pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
assim ementada:
“Processual Civil e Tributário - Embargos de Divergência - Imposto
Sobre Produtos Industrializados (IPI) —Crédito-Prêmio - Decreto-Lei
N° 491/69 e Decreto N° 64.833/69 - Ressarcimento em Espécie -
Autorização Legal - Possibilidade.
1. Conforme estabelecido na legislação de regência, o benefício fiscal
previsto no art. Io do DL 461/69 (crédito prêmio do IPI), tanto pode
ser recebido em moeda, como pode ser usado para o pagamento de
outros tributos.
2. Embargos de divergência recebidos por unanimidade.”1
Mesmo no âmbito administrativo vem sendo admitida, expressamente, a
aplicabilidade do Decreto n° 64.833/69 na regulação do aproveitamento do
crédito-prêmio instituído pelo Decreto-lei n° 491/69, como bem demonstra
a decisão proferida pela Primeira Câmara do Segundo Conselho de Contri­
buintes do Ministério da Fazenda:
“IPI - Crédito-Prêmio relativo a insumos empregados em produtos
exportados. O titular desse crédito é a empresa, não sendo oponível o
princípio da autonomia dos estabelecimentos. Crédito de natureza fi­
nanceira e não tributária. Ressarcimento efetuado a título de "restituição'
(art. 10, c/c art. 3o, do Dec. 64.833/69) rege-se pela legislação própria
desta, inclusive quanto à atualização do valor. Recurso provido.”2
No mesmo sentido foi a decisão proferida pela Segunda Câmara do Se­
gundo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, ementada nos
seguintes termos:
“(...) IPI - Crédito-Prêmio (...) - Reconhecido, não só a legitimidade
dos créditos, como o direito de sua transferência para estabelecimento

1 Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 44.727/DF. Ementa publicada em 14 de


dezembro de 1998. Os destaques são nossos.
2 Acórdão n° 201-69.653.
520 - C o m p e n sação d o C r é d ito - P rÊ m io de IP I e R e s triç õ e s .

com o qual a empresa mantenha relação de interdependência, conforme


previsto no Decreto n° 64.833/69.”3

4. O a r t ig o 74 da L ei n ° 9 . 4 3 0 / 9 6 n ã o r e v o g o u o
D e c r e t o im° 6 4 . 8 3 3 / 6 9

Afastada a revogação da norma de utilização do crédito-prêmio de IPI


pelo Decreto s/n de 25 de abril de 1991, há que se indagar se o artigo 74 da
Lei n° 9.430/96 teria revogado tal norma.
Recorremos, neste ponto, à lição de Tércio Sampaio Ferraz Junior sobre
a dinâmica da revogação das normas jurídicas:
“Já mencionamos duas regras estruturais que regulam a dinâmica: a
mais importante diz que uma norma perde a validade se revogada
por outra. Esta regra se especifica em três outras: a lex superior (a
norma superior revoga a inferior na hierarquia), a lexposterior (a que
vem por último, no tempo, revoga a anterior), e a lex specialis (a
norma especial revoga a geral no que esta tem de especial, e geral só
revoga a especial se alterar totalmente o regime no qual está aquela
incluída). (...)”4
No presente caso, não se aplica o critério da lex superior, já que ambas têm
o mesmo grau na hierarquia das normas, já que um decreto-lei eqüivale a uma
lei ordinária. Também não se aplica o critério da lex posterior, uma vez que este
somente pode ser utilizado entre leis de igual abrangência, ou seja, duas leis
gerais ou duas leis especiais sobre a mesma matéria. Aplicar-se-á, por conse­
guinte, o critério da lex specialis, que, aplicado ao caso concreto, em que a lei
geral é posterior à especial, determina que a lei geral só revoga a especial se
alterar totalmente o regime no qual está aquela incluída.
A inaplicabilidade do critério da lex posterior em detrimento do critério
da lex specialis é, aliás, confirmada pelo mencionado autor um pouco mais
adiante5, quando se afirma que, “entre os critérios de especialidade e cronoló­
gico (uma norma anterior especial e outra posterior geral)” valeria “a meta-

3 Acórdão n° 202-12.467.
4 FERRAZ JUN IO R, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2a ed. São Paulo: Atlas,
1994, p. 202.
5 FERRAZ JUNIOR. Op. cit. p. 210.
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 521

-regra lex posterioris generalis non derrogatpriori specialí', ou seja, a regra geral
posterior não revoga regra especial que lhe anteceda.
Aplicada essa regra ao caso ora examinado, há que se concluir que a
norma geral que dispõe sobre a compensação de créditos tributários não tem,
evidentemente, o condão de revogar norma especial sobre a utilização do cré­
dito-prêmio, na qual a compensação é apenas um dos quatro modos possíveis
de utilização.

5. O a r t ig o 74 da L e i n ° 9 . 4 3 0 / 9 6 n ã o se a p l ic a à
co m pen sação do c r é d i t o - p r ê m io de IPI
Outra questão é saber se o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 teria derrogado
ou revogado parcialmente a regra própria da utilização do crédito-prêmio de
IPI apenas no que se refere à sua compensação.
Para tanto, é necessário sabermos se a compensação do crédito-prêmio
de IPI segue um regime jurídico próprio, para ele específico, ou em nada
difere das compensações tributárias genericamente consideradas. De acordo
com o artigo I o do Decreto-lei n° 491/69:
“Art IoAs empresas fabricantes e exportadoras de produtos manufatu­
rados gozarão a título estímulo fiscal, créditos tributários sobre suas ven­
das para o exterior, como ressarcimento de tributos pagos internamente.
§ Io Os créditos tributários acima mencionados serão deduzidos do
valor do Imposto sobre Produtos Industrializados incidente sobre as
operações no mercado interno.
§ 2o Feita a dedução, e havendo excedente de crédito, poderá o mesmo
ser compensado no pagamento de outros impostos federais, ou aprovei­
tado nas formas indicadas por regulamento.”
Vemos, no § 2o do artigo acima transcrito, dois aspectos extremamente
relevantes para nosso tema.
Primeiramente, a norma estabelece que a compensação com outros tri­
butos federais é condicionada à prévia utilização do crédito-prêmio no paga­
mento do IPI devido, incidente sobre as operações no mercado interno, sendo,
portanto, a compensação subsidiária à utilização no pagamento do IPI. So­
mente depois de pago o IPI é que, em havendo excedente de crédito-prêmio,
poderá este ser usado na compensação dos demais tributos federais.
522 - C o m p e n sação d o C r é d ito - P rê m io de IP I e R e s triç õ e s .

Em segundo lugar, uma vez satisfeito o requisito anterior, ou seja, que o


crédito-prêmio tenha sido utilizado no pagamento do IPI devido interna­
mente, havendo excedente de crédito, “poderá o mesmo ser compensado no
pagamento de outros impostos federais”, o que dá ao exportador o direito
subjetivo de compensar o crédito-prêmio remanescente com outros tributos
federais. Assim, o direito à compensação decorre diretamente do decreto-lei, e
não de algum eventual regulamento do Poder Executivo, que, ainda de acordo
com o § 2o do artigo I o do Decreto-lei n° 491/69, poderia estabelecer outras
formas de aproveitamento do crédito-prêmio, como, aliás, o fez quanto ao
ressarcimento em espécie ou à transferência do crédito para estabelecimento
da mesma empresa ou de empresa interdependente.
Vejamos, agora, o que dispôs o artigo 3o do Decreto-lei n° 64.833/69:
“Art 3o Os créditos tributários previstos no art. Io deste Decreto so­
mente poderão ser lançados na escrita fiscal à vista de documentação
que comprove a exportação efetiva da mercadoria, atendidas as normas
baixadas pelo Ministério da Fazenda.
§ Io Os créditos tributários serão deduzidos do valor do imposto sobre
produtos industrializados devido nas operações do mercado interno.
§ 2o Feita a dedução e havendo excedente de crédito, poderá o estabe­
lecimento industrial exportador;
a) manter o crédito excedente para compensações parciais e sucessivas,
inclusive transferi-lo, total ou parcialmente, para os exercícios seguintes:
b) transferi-lo, mediante prévia comunicação por escrito ao órgão da
Secretaria da Receita Federal a que estiver jurisdicionado para a es­
crita fiscal:
I - de outro estabelecimento industrial, ou equiparado a industrial, da
mesma empresa;
II - de estabelecimento industrial ou equiparado a industrial com o qual
mantenha relação de interdependência, atendida a conceituação do arti­
go 21, § 7o, do Decreto número 61.514, de 12 de outubro de 1967.
§ 3oNos casos, limites, e, atendidas as normas, condições e modelo que
o Ministro da Fazenda vier a estabelecer, poderá ser admitida a emis­
são de documento denominado “Nota de Crédito Fiscal de Exporta­
ção”, a ser utilizado:
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 523

a) no pagamento de outros tributos federais;


b) na comprovação de excedente de crédito para recebimento em espé­
cie, a título de restituição, nos termos e condições do § Io, do artigo 7o e
inciso 2, do artigo 31 e seu parágrafo único, da Lei n° 4.502, de 30 de
novembro de 1964;
c) em outras modalidades de compensação indicadas ou aceitas pelo
Ministro da Fazenda.”
Como se observa, a norma regulamentar, fiel ao decreto-lei, manteve a
necessidade da utilização do crédito-prêmio, em primeiro lugar, no pagamen­
to do IPI, tendo, todavia, admitido a possibilidade de que os créditos exce­
dentes sejam transferidos para outros estabelecimentos da mesma empresa ou
de empresa interdependente.
Quanto ao direito à compensação com outros tributos federais, o decreto
dispôs que seu exercício dar-se-ia mediante a emissão de um documento de­
nominado “Nota de Crédito Fiscal de Exportação”, que poderia ser utilizado
tanto “no pagamento de outros tributos federais”, ou seja, na compensação
com outros tributos federais, quanto no ressarcimento em espécie ou outras
modalidades de compensação (possivelmente com dívidas não tributárias) in­
dicadas ou aceitas pelo Ministro da Fazenda.
Essa Nota de Crédito Fiscal de Exportação originou-se no fato de que o
crédito-prêmio de IPI, inicialmente reservado às empresas industriais, era re­
gistrado na escrita fiscal do estabelecimento industrial, ou seja, no seu livro de
IPI. Ora, conquanto a utilização do crédito-prêmio registrado no livro de IPI
fosse normalmente compensado com o IPI devido nas operações internas ou
transferido, sempre por meio das escritas fiscais, para outros estabelecimentos
industriais da mesma empresa ou de empresa interdependente, a utilização
do seu excedente na compensação com outros tributos federais ou mediante o
seu ressarcimento em espécie requereu que o crédito-prêmio ganhasse auto­
nomia em relação ao IPI e “saísse” dos seus livros fiscais, o que foi feito, justa­
mente, por meio da Nota de Crédito Fiscal de Exportação.
Mais tarde, a partir do momento em que, com o Decreto-lei n° 1.894,
de 17 de dezembro de 1981, as empresas comerciais exportadoras (que nem
sempre são contribuintes de IPI) passaram a fazer jus ao crédito-prêmio, o
que impossibilitaria a escrituração do incentivo nos livros fiscais de IPI, ine­
xistentes para tais empresas, a Portaria do Ministro do Estado de Fazenda n°
524 - C o m p e n sação d o C r é d ito - P rê m io de IP I e R e s triç õ e s .

292, do mesmo dia 17 de dezembro de 1981 vedou, no item 1.2, a escritura­


ção do crédito-prêmio em livros previstos na legislação do IPI, ao mesmo
tempo em que, no item 1.1, estabeleceu o seu registro por meio da denomina­
da “declaração de crédito”, cujo modelo foi instituído pela CACEX.
Esse mecanismo da declaração de crédito permaneceu em vigor até a
suposta extinção do crédito-prêmio de IPI em 1985, quando, evidentemente,
cessaram de existir os formulários e mecanismos próprios da utilização, inclu­
sive, compensação com outros tributos federais, do incentivo fiscal.
Assim, muito embora o direito à compensação do crédito-prêmio de IPI
tenha sido garantido pela sua legislação específica, que é o Decreto-lei n°
491/69, regulamentado pelo Decreto n° 64.833/69, os exportadores, a partir
da suposta extinção do crédito-prêmio, ficaram sem um mecanismo específi­
co para a compensação do incentivo fiscal.
Por tal motivo, as empresas que ajuizaram ações no final da década de 90
para garantir e exercer o direito à compensação do crédito-prêmio com outros
tributos federais, bem como à transferência dos créditos para terceiros, for­
mularam seus pedidos mediante a menção dos únicos instrumentos então
existentes, os PCs e PCCs emitidos na forma da Instrução Normativa n° 21/
97, que regulamentava, à época, a compensação de créditos tributários previs­
ta nos artigos 66 da Lei n° 8.383/91 e 74 da Lei n° 9.430/96. O que não
quer dizer, frise-se bem, que os exportadores quisessem que a compensação se
desse de acordo com os parâmetros estabelecidos por estes artigos legais, de­
vendo-se a menção à Instrução Normativa n° 21/97 apenas o fato de que era
a única norma que, à época, previa mecanismos capazes de assegurar a com­
pensação do crédito-prêmio de IPI com outros tributos federais e a transfe­
rência dos créditos para terceiros.
Nessas hipóteses, portanto, muito embora os exportadores venham se va­
lendo dos PCs e PCCs, instrumentos criados pela Instrução Normativa n° 21/
97 para, respectivamente, a compensação entre tributos de diferentes espécies e
a transferência do crédito para terceiros, isso não quer dizer que a eles sejam
aplicáveis as regras gerais de compensação previstas no artigo 74 da Lei n° 9.430/
96, mas apenas que na falta de instrumento próprio (a antiga declaração de
crédito) para a utilização do crédito-prêmio de IPI na compensação com outros
tributos, são usados os PCs e PCCs para tais funções, mantidas, todavia, as
regras de utilização do crédito-prêmio de IPI estabelecidas na sua legislação
específica, a saber, o Decreto-lei n° 491/69 e o Decreto n° 64.833/69.
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 525

Feita essa distinção entre a compensação específica do crédito-prêmio de


IPI com outros tributos federais, regulada pelo Decreto-lei n° 491/69 e pelo
Decreto n° 64.833, e a compensação geral de tributos federais, disciplinada
pelo artigo 74 da Lei n° 9.430/96, é hora de concluirmos se esta última terá
derrogado a primeira. Para tanto, vejamos o que dispõe a Lei de Introdução ao
Código Civil:
“Art. 2o. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até
que outra a modifique ou revogue.
§ Io. Alei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare,
quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a
matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2o. A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou específicas a
par das já existentes, não revoga nem modifica a revoga nem modi­
fica a lei anterior.
§ 3o. Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter
a lei revogadora perdido a vigência.”
As três modalidades de revogação previstas no § Io acima transcrito fo­
ram chamadas, pela doutrina, expressa, tácita e global. Sobre tais modalida­
des, ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr:
“A norma revogadora pode ser manifesta ou implícita. Ela é manifesta
quando nela a autoridade determina a norma revogada declaradamente.
E implícita quando, numa nova disposição da matéria, não se determi­
na a norma revogada declaradamente. Segue-se daí que a revogação
pode ser: a) ou expressa', b) ou tácita', c) ou global. A revogação expressa
exige uma norma revogadora manifesta que determina declaradamente
qual a norma revogada: ‘fica revogado o art. x da lei z ’, ou ‘fica revogada
a lei tal’, isto é, todas as suas normas. A revogação tácita ocorre quando
a norma revogadora é implícita e a revogação resulta na incompatibili­
dade entre a matéria regulada e as disposições antes vigentes: por exem­
plo, editam-se as normas a, b, ccujos dispositivos são incompatíveis com
o das normas x, v, z, sendo as primeiras normas revogadoras implícitas
destas últimas; muitas leis costumam terminar com o conhecido dispo­
sitivo: ‘revogam-se as disposições em contrário’, fórmula desnecessária,
embora usual, que não se confunde com uma norma revogadora mani­
festa, tratando-se de uma norma revogadora implícita, pois não indica a
norma revogada. Por fim, a revogação global ocorre por meio de uma
526 - C o m p e n sação d o C ré d ito - P rê m io de IPI e R e s triç õ e s .

norma revogadora implícita, sem a necessidade de incompatibilidade,


bastando que a nova norma, por exemplo, discipline integralmente uma
matéria, mesmo repetindo certas disciplinas da norma antiga. Assim, se
viesse a ser promulgada uma lei geral das obrigações, ainda que esta
repetisse muitas disposições do Código Civil e Comercial, todas elas
ficariam revogadas porque a matéria foi reformulada integralmente.”6
Na hipótese ora examinada, a regulação específica sobre a compensação
do crédito-prêmio de IPI não foi expressamente revogada pelo artigo 74 da
Lei n° 9.430/96. Não foi, também, tacitamente revogada, já que a existência
de uma regra geral sobre compensação de créditos tributários não é incompa­
tível com a permanência de regra especial sobre a compensação de um incen­
tivo fiscal no âmbito do IPI com outros tributos federais, especialmente quando
consideramos, que esta última compensação tem, como conditio sine qua non, a
prévia utilização do crédito-prêmio no pagamento do IPI, o que impõe a
necessidade de uma regra especial para este tipo de compensação, diversa da
regra geral. Da mesma forma, não se deu a revogação global, que somente
ocorreria na hipótese de um regramento geral sobre compensação de créditos
tributários vir a substituir, por inteiro, norma de mesma índole, ou seja, regra
geral sobre compensação tributária.
Aplica-se, por outro lado, o § 2o do artigo 2o da Lei de Introdução ao
Código Civil, já que, por ser o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 uma norma que
estabelece disposições gerais sobre compensação de créditos tributários a par
das disposições sobre a compensação do crédito-prêmio de IPI com outros
tributos federais contidas na norma específica, esta não é revogada por aquela.
Nossa conclusão, portanto, é no sentido de que o artigo 74 da Lei n°
9.430/96 não se aplica à compensação do crédito-prêmio de IPI com outros
tributos federais ou à sua transferência para terceiros, regidos por regra própria
(Decreto-lei n° 491/69 e Decreto n° 64.833/69), não se aplicando a esta, as­
sim, as limitações recentemente impostas pelo artigo 74 da Lei n° 9.430/96.

6 . A INTERPRETAÇÃO DO A R TIG O 7 4 DA LEI N ° 9 . 4 3 0 / 9 6

Na verdade, tal conclusão é obtida por meio do exame do próprio artigo


74 da Lei n° 9.430/96, com a redação dada pela Lei n° 11.051/04:

6 FERRAZ JUN IO R. Op. cit., p. 203-204. Destaques no original.


G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 2 7

“Artigo 74. O sujeito passivo que apurar crédito relativo a tributo ou


contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível
de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação
de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições admi­
nistrados por aquele Órgão.
§ Io. A compensação de que trata o caput será efetuada mediante a entre­
ga, pelo sujeito passivo, de declaração na qual constarão informações relati­
vas aos créditos utilizados e aos respectivos débitos compensados.
§ 2o.A compensação declarada à Secretaria da Receita Federal extingue
o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação.
(...)

§ 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses:


(•••)
II - em que o crédito:
a) seja de terceiros;
b) refira-se a ‘crédito-prêmio’instituído pelo art. Io do Decreto-Lei n°
491, de 5 de março de 1969;
c) refira-se a título público;
d) seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado; ou
e) não se refira a tributos e contribuições administrados pela Secretaria
da Receita Federal - SRF.
(.••)”
Alguém que lesse apenas o caput e o § 12, II, “b” do artigo 74 da Lei n°
9.430/96, com a redação dada pela Lei n° 11.051/04, poderia ser induzido a
pensar que o legislador teria, pura e simplesmente, vedado a compensação do
crédito-prêmio de IPI. Há que se considerar, todavia, como alerta o Ministro
Eros Roberto Grau, que:
“A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não
de textos isolados, desprendidos do direito.
Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.
A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sem­
pre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta
5 2 8 - C o m p e n s a ç ã o d o C r é d it o - P r êm io d e IP I e R e s t r iç õ e s .

a partir dele - do texto - até a Constituição. Um texto de direito isolado,


destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado
normativo algum.”7
Para que não se interprete o artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n° 9.430/96
“em tiras”, procederemos à interpretação dessa regra em conjunto com: (i) as
outras partes do artigo 74 da Lei n° 9.430/96; (ii) as normas específicas sobre
crédito-prêmio; (iii) a Constituição Federal; (iv) provimentos jurisdicionais
que assegurem a compensação do crédito-prêmio em termos diversos.
Iniciemos pela interpretação do artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n° 9.430/
96, no âmbito do próprio artigo.
Como já vimos, o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 surgiu no contexto da
compensação de tributos indevidamente pagos, ao possibilitar que o sujeito
passivo pudesse, mediante solicitação, compensar tributos indevidamente pa­
gos com outros tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal, sendo
que naquela época a compensação entre tributos de mesma espécie, prevista
no artigo 66 da Lei n° 8.383/91, podia ser feita por iniciativa do próprio
contribuinte, independentemente de prévia solicitação à Receita Federal.
Por ocasião da Medida Provisória n° 66/02, posteriormente convertida
na Lei n° 10.637/02, o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 foi alterado para permi­
tir ao sujeito passivo, anteriormente sujeito à necessidade de um pedido ad­
ministrativo para compensar tributos de espécies diversas, pudesse efetuar tal
compensação automaticamente, o que passou a se fazer mediante uma decla­
ração de compensação, prevista no § I o deste artigo. Esse § I o, note-se bem,
dispõe apenas que a compensação de que trata o caput seja feita por meio da
declaração de compensação, o que não significa, de modo algum, que toda e
qualquer compensação deva ser feita mediante declaração de compensação.
O fato de o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 ser uma regra geral de compen­
sação de créditos tributários não faz com que ela seja a única regra de compen­
sação de créditos do sujeito passivo com tributos federais; pelo contrário, ela
pode conviver com regras específicas relativas a determinados créditos.
Na verdade, como o artigo 74 nasceu no contexto dos créditos decor­
rentes do pagamento indevido de tributos, a presunção é deve ser a de que o

7 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 34.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 2 9

artigo se refere apenas a tais créditos, e a sua aplicação a créditos de outra


natureza deve ser não presumida, mas expressa. Foi o que ocorreu, por exem­
plo, com o crédito de IPI acumulado em decorrência da aquisição de maté­
ria-prima, produto intermediário e material de embalagem, em relação ao
qual o artigo 11 da Lei n° 9.779/99 assim dispôs:
“Art. 11.0 saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados -
IPI, acumulado em cada trimestre-calendário, decorrente de aquisição
de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, apli­
cados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à
alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devi­
do na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com
o disposto nos arts. 73 e 74 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996,
observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do
Ministério da Fazenda.”
Dessa forma, deve-se presumir que a regra do artigo 74 da Lei n° 9.430/96
somente se aplique aos créditos do sujeito passivo decorrentes de tributo indevi­
damente pago, ou então àqueles outros em relação aos quais a norma legal, a
exemplo do artigo acima transcrito, expressamente remeter ao regime do artigo 74
da Lei n° 9.430/96, o que faz com que outros créditos que o sujeito passivo tenha
contra a União Federal não possam, em princípio, ser compensados na forma
prevista no citado artigo.
Como, todavia, muitos contribuintes, provavelmente de má-fé, utiliza­
vam-se da declaração de compensação prevista no § Io do artigo 74 da Lei n°
9.430/96 para tentar compensar toda sorte de créditos, por mais discutíveis que
fossem, contando com que a demora no exame da declaração de compensação
por parte da Receita Federal lhes garantisse um bom período de suposta “regu­
laridade fiscal” quando ela, na verdade, não existia, o § 12 deste artigo, introdu­
zido pela Lei n° 11.051/04, listou as hipóteses mais freqüentes em que abusos
eram cometidos pelos contribuintes e esclareceu que em tais hipóteses, seria
considerada não declarada a compensação, ou seja, a declaração dessas compen­
sações na forma do § Io não produziriam efeito jurídico algum.
Isto, frise-se bem, significa apenas que a compensação de créditos pre­
vistos no § 12 do artigo 74 da Lei n° 9.430/96, não pode ser feita por meio
da declaração de compensação prevista no § Io, mas não quer dizer, de forma
alguma, que tais compensações não possam ser feitas sob outra forma.
530 - C o m p e n sação d o C ré d it o - P r ê m io de IP I e R e s triç õ e s .

Tomemos, por exemplo, a compensação em que o crédito seja de tercei­


ros, em relação à qual o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 expressamente veda, no
§ 12, II, “a”, a sua efetivação mediante declaração de compensação. Todavia, a
compensação com créditos de terceiros é plenamente viável para as pessoas
jurídicas inscritas no Refis, tendo em vista que o artigo 2o da Lei n° 9.964/00
assim dispõe:
“Art. 2°. (...).
(...)

§ 7o Os valores correspondentes a multa, de mora ou de ofício, e ajuros


moratórios, inclusive as relativas a débitos inscritos em dívida ativa,
poderão ser liquidados, observadas as normas constitucionais referen­
tes à vinculação e à partilha de receitas, mediante:
I - compensação de créditos, próprios ou de terceiros, relativos a tributo
ou contribuição incluído no âmbito do Refis;
(...)”
Justamente por isso a Instrução Normativa n° 460/04, ao tratar da im­
possibilidade da compensação de créditos de terceiros, assim dispôs:
“Art. 40. E vedada a compensação de débitos do sujeito passivo, relati­
vos aos tributos e contribuições administrados pela SRF, com créditos
de terceiros.
Parágrafo único. A vedação a que se refere o caput não se aplica ao
débito consolidado no âmbito do Refis ou do parcelamento a ele alter­
nativo, bem assim aos pedidos de compensação formalizados perante a
SRF até 7 de abril de 2000.”
Temos, então, a seguinte situação: enquanto a regra geral (artigo 74 da
Lei n° 9.430/96) não permite a compensação de créditos de terceiros, sendo
vedada, nessas circunstâncias, a apresentação de declaração de compensação,
uma regra especial (artigo 2o, § 7o, I, da Lei n° 9.964/00) permite essa com­
pensação por parte de contribuintes inscritos no Refis.
Nessas circunstâncias, a solução adotada foi a de se continuar utilizan­
do, para as empresas inscritas no Refis que pretendessem compensar crédi­
tos de terceiros, o mecanismo do PCC, instituído pela Instrução Normativa
n° 21/97 quando esta, em seu artigo 15, autorizava a todos a compensação
de créditos de terceiros.
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 531

Como se vê, temos aí um caso em que, sendo inviável, por força das
normas gerais do artigo 74 da Lei n° 9.430/96, que o contribuinte efetue a
compensação mediante declaração de compensação, possa ele, por força de
legislação específica, lançar mão de outro mecanismo de compensação, no
caso, o PCC.
Ora, se mesmo vedada a utilização da declaração de compensação no caso
de compensação de crédito de terceiro pode o contribuinte, quando legitima­
do a efetuar tal compensação, usar outro mecanismo para compensar créditos
de terceiro, há que se concluir que, da mesma forma, muito embora o expor­
tador não possa compensar o crédito-prêmio via declaração de compensação,
poderá ele, também, lançar mão de outros meios (no caso, PCs e PCCs) para
efetuar a compensação do crédito com tributos federais devidos, de acordo
com a legislação específica sobre o crédito-prêmio de IPI.
Há que se concluir, portanto, que as regras do artigo 74 da Lei n° 9.430/96
não se aplicam à compensação do crédito-prêmio de IPI.
Interpretemos, a seguir, o artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n° 9.430/96 em
conjunto com a legislação do crédito-prêmio de IPI.
Como vimos anteriormente, a norma geral não revoga a norma espe­
cial anterior.
Partindo-se desta premissa, é certo que a norma geral prevista no artigo 74
da Lei n° 9.430/96 em nada afetou as normas especiais sobre crédito-prêmio
de IPI, que outorgam ao exportador o direito de, uma vez pago o IPI devido,
compensar o crédito-prêmio com outros tributos federais.
Assim sendo, a vedação de que se utilize a declaração de compensação
para compensar crédito-prêmio de IPI, contida no § 12 do artigo 74 da Lei
n° 9.430/96, não tem o condão de impedir que o exportador utilize outros
meios de compensação que não lhe seja legalmente vedado, o que ocorre, por
exemplo, com os PCs e os PCCs.
Procedamos, agora, à interpretação do artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n°
9.430/96 à luz da Constituição Federal.
Se o exportador até hoje precisa ir a juízo para assegurar o seu direito ao
crédito-prêmio de IPI, e, mesmo assim, passa por uma verdadeira via crucis
para fazer o seu direito valer perante a administração tributária, isso se deve
unicamente ao fato de que o crédito-prêmio de IPI, ao ser revogado por por­
taria ministerial o foi em desobediência ao princípio da legalidade. E, ilegiti­
532 - C o m p e n sação d o C r é d ito - P rê m io de IP I e R e s triç õ e s .

mamente suprimido o crédito-prêmio mediante ofensa ao princípio da lega­


lidade, este mesmo princípio exige que tal crédito venha a ser, finalmente,
utilizado por parte daqueles que sempre lhe fizeram jus.
Encontrando-se, assim, o direito à utilização do crédito-prêmio de IPI
amparado pelo princípio da legalidade, há que se interpretar o artigo 74, § 12,
II, “b” da Lei n° 9.430/96 conforme a Constituição, em homenagem ao prin­
cípio hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, assim definido
por Inocêncio Mártires Coelho:
“Princípio da interpretação conforme a Constituição: em face de nor­
mas infra-constitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, deve-se
dar prevalência à interpretação que lhes confira sentido compatível e
não conflitante com a Constituição (...)”8
Com efeito, o artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n° 9.430/96 pode ter dois
sentidos: ou a compensação do crédito-prêmio não pode ser efetuada somente
por meio de declaração de compensação, podendo, todavia, ser feita por outras
formas (PC e PCC); ou a compensação do crédito-prêmio não pode ser feita
de forma alguma. Para determinar qual desses sentidos deve ter a norma é de
grande utilidade a interpretação conforme a Constituição, cujo papel é mos­
trado por Paulo Ricardo Schier:
“Dessa forma, ‘o papel da interpretação conforme a Constituição é,
precisamente, o de ensejar, por via da interpretação extensiva ou restritiva,
conforme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de uma
norma que se apresenta suspeita’, substanciando verdadeira técnica de
salvamento de atos normativos infraconstitucionais.”9
Na presente hipótese, são possíveis, como vimos, duas interpretações:
uma que veda apenas a compensação do crédito-prêmio de IPI por meio de
declaração de compensação e a remete a outras formas de compensação; outra
que veda, completamente, a compensação do crédito-prêmio de IPI. No pri­
meiro caso, o exportador, mesmo sem poder usar a declaração de compensação
para extinguir, de início, o crédito tributário relativo ao débito que pretende
compensar, poderia solicitar à receita federal a compensação do crédito (PC)

8 CO ELHO , Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 92.
9 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Construindo uma Nova Dogmática Jurídica.
Porto Alegre: Fabris, 1999, p. 133. O trecho transcrito entre aspas é de BARRO SO , Luís
Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 176.
G a b r ie l L a c e r d a T r o ia n e lli - 5 3 3

ou a transferência para terceiros (PCC); no segundo caso, o exportador não


poderia compensar de modo algum o crédito-prêmio de IPI. Nessa última
situação, das quatro modalidades legítimas de utilização do crédito-prêmio,
que são o pagamento do IPI, a compensação com outros tributos federais, a
transferência para pessoa interdependente e o ressarcimento em espécie, so­
mente duas delas (pagamento do IPI e ressarcimento em espécie) poderiam
ser utilizadas, já que tanto a compensação quanto a transferência do crédito
para terceiros estariam vedadas pelo § 12, II, “a” e “b” da Lei n° 9.430/96.
Além disso, há que se alertar para o fato de que, no caso das empresas comer­
ciais exportadoras, a interpretação absolutamente restritiva da compensação
resultaria na impossibilidade concreta da utilização do crédito-prêmio, já que
a empresa que só exporta não tem IPI algum a pagar o que a remeteria, neces­
sariamente, ao pedido de ressarcimento em espécie do crédito-prêmio de IPI,
que depende do beneplácito da autoridade administrativa e é, na prática, por
ela sistematicamente recusado ou simplesmente ignorado.
Ora, se considerarmos que o direito do exportador à utilização do crédi-
to-prêmio que deixou de fruir na época própria em razão da sua ilegítima
revogação é amparado pelo princípio da legalidade tributária, é certo que a
contrapartida desse direito, que é o dever da União de não obstar, sem justa
razão, a utilização desse crédito, também decorre da obediência ao princípio
da legalidade.
Muito embora a administração tributária federal possa ter motivos de
índole organizacional para não admitir a compensação do crédito-prêmio -
bem como de outros créditos não decorrentes do pagamento de tributos inde­
vidos - por meio da declaração de compensação, não há justificativa razoável
para que não se admita a sua compensação via PC ou PCC, na qual a dívida
tributária que se pretende compensar com o crédito-prêmio não é extinta
antes de a autoridade fiscal verificar a liquidez e a certeza do crédito-prêmio
e do tributo compensado.
Dessa forma, o único sentido da norma adequado ao princípio da legali­
dade é, sem dúvida, o da restrição da compensação do crédito-prêmio apenas
por meio de declaração de compensação - ou seja, segundo as regras do artigo
74 da Lei n° 9.430/96 - mantida a possibilidade da sua compensação via PC
ou PCC, devendo, portanto, ser afastado, como incompatível com a Consti­
tuição, a vedação absoluta à compensação do crédito-prêmio de IPI. A conse-
5 3 4 - C o m p e n s a ç ã o d o C r é d it o - P r êm io d e IPI e R e s t r iç õ e s .

quência disso é que o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 é, como um todo, inapli-


cável à compensação do crédito-prêmio de IPI.
Por fim, interpretaremos o artigo 74, § 12, II, “b”, da Lei n° 9.430/96
em conjunto com a decisão judicial que ampare o direito do exportador de
compensar na forma da Instrução Normativa n° 21/97, sem qualquer das
restrições estabelecidas posteriormente.
Ao cotejarmos tal decisão judicial com as alterações legislativas promovi­
das pela Lei n° 11.051/04 no artigo 74 da Lei n° 9.430/96 teremos o seguinte:
por um lado, uma decisão judicial que permite à SAB a compensação do crédi­
to-prêmio de IPI na forma da Instrução Normativa n° 21/97; por outro, o
artigo 74, § 12, II, “b” da Lei n° 9.430/96, que veda a compensação do crédito-
-prêmio por meio de declaração de compensação. Não é difícil vermos que as
duas regras, a judicial e a legislativa, tratam de coisas absolutamente distintas.
Mal comparando, a situação é semelhante a uma regra concreta que estabeleces­
se que José pode comer bananas assadas de outra regra, abstrata e genérica, que
proibisse que as pessoas comessem bananas em compota. Ora, assim como a
regra que impede as pessoas de comerem bananas em compota não revoga a
regra que autoriza José a comer bananas assadas, a regra que impede a compen­
sação do crédito-prêmio por meio de declaração de compensação não revoga ou
afeta, de forma alguma, a decisão que permite ao exportador compensar os cré-
ditos-prêmio de IPI nas formas previstas pela Instrução Normativa n° 21/97.
Nessas situações, a própria Receita Federal já tem admitido a aplicação dos
mecanismos de compensação previstos pela Instrução Normativa n° 21/97. É o
que se depreende da Solução de Consulta SRRF/7a RF/DISIT n° 145, de 30
de maio de 2003, respondida nos seguintes termos:
“Compensação. Direitos Creditórios de Terceiros.
Embora a legislação atual proíba a compensação que envolva direitos
creditórios de terceiros, bem como antes do trânsito emjulgado da deci­
são judicial que reconheça tais direitos creditórios, em havendo deter­
minação judicial em sentido oposto, ela há de ser prontamente cumpri­
da pelos órgãos fazendários.
Na ausência de previsão na atual legislação acerca do procedimento a
ser seguido, as eventuais lacunas devem ser integradas pelos critérios
da legislação revogada, que admitia a compensação envolvendo crédi­
tos de terceiros.
G a b rie l L a c e rd a T r o ia n e lli - 535

Observe-se, por fim, que o Superior Tribunal de Justiça vem, em algu­


mas decisões, entendendo que o artigo 74 da Lei n° 9.430/96, com a redação
dada pela Lei n° 10.637/02, não se aplica às ações judiciais sobre compensa­
ção propostas antes da entrada em vigor desta última lei. Nesse sentido, há
decisões proferidas pela Primeira e Segunda Turmas, a saber:

5. In casu, opedido de compensação (protocolo da ação)foifeito em 21/12/


1999. Não se lhe aplica a Lei n° 10.637/2002. (...).
0..)”10
“Processo Civil e Tributário - PIS - Compensação - Fato Superveniente
Inexistente - Nova Legislação: Lei 10.637, de 30/12/2002.
1. Decidida a lide à luz da Lei 9.430/96, nãopode ser aplicada legisla­
çãoposterior.
2. Agravo regimental improvido.”11

7. C o n clu sã o

Em face de todo o exposto e interpretado o artigo 74, § 12, II, “b” da Lei
n° 9.430/96 à luz do resto do próprio artigo, das regras específicas sobre o
crédito-prêmio de IPI, da Constituição Federal e de decisão judicial que ampa­
re o direito do exportador à compensação do crédito-prêmio, nossa conclusão é
no sentido de que o artigo 74 da Lei n° 9.430/96 não se aplica à compensação
do crédito-prêmio de IPI, o que faz com que as restrições à compensação pre­
vistas nesse artigo não sejam, igualmente, aplicáveis ao crédito-prêmio de IPI.
Poderá o exportador, portanto, continuar a utilizar o crédito-prêmio de IPI na
forma estabelecida pelo Decreto n° 64.833/69, ou, então, na forma da decisão
judicial que tenha sido proferida a seu favor, cujos efeitos não foram suprimidos
de forma alguma pela alteração legislativa promovida pela Lei n° 11.051/04.

10 Recurso Especial n° 675.353, julgado pela Primeira Turma e relatado pelo Ministro José
Delgado. Ementa publicada no DJ de 12 de dezembro de 2004.
11 Agravo Regimental no Recurso Especial n° 465.677, julgado pela Segunda Turma e relatado
pela Ministra Eliana Calmon. Ementa publicada no DJ de 25 de agosto de 2003.
I
Aproveitamento de
Prejuízos além dos 30% na
Extinção de Incorporada

Ives Gandra da Silva Martins


Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito
foi Titular de Direito Constitucional
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 3 9

Pretendo abordar, neste artigo, interessante questão, que se discute ainda


em Conselhos Administrativos, mas que, necessariamente, chegará ao Poder
Judiciário. A questão é de se saber se na extinção de uma empresa - assim
determina a lei comercial, artigo 227, § 3o da Lei das S/As, nos casos das
empresas incorporadas - 1, em havendo lucro, poderia ela compensar a tota­
lidade de seus prejuízos e não apenas os 30%, a que faz menção a Lei n°
9.065/95, no artigo 152 para empresas em funcionamento3.
E esta única questão deve ser examinada à luz de um único princípio,
qual seja, o da legalidade.
Pretendo, neste estudo, demonstrar:
a) o correto entendimento das decisões administrativas favoráveis à
tese de que, na extinção de empresa incorporada, há possibilida­
de de aproveitamento de todo o prejuízo acumulado, em haven­
do lucro, por força de texto expresso da lei fiscal4;

1 Reza o artigo 227, § 3o da Lei n° 6.404/76: "Art. 227 A incorporação é a operação pela qual uma
ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos direitos e obrigações

§ 3o Aprovado pela assembléia-geral da incorporadora, extingue-se a incorporada, competindo


à primeira promover o arquivamento e a publicação dos atos de incorporação" (grifos meus).
2 O artigo mencionado está assim redigido: "Art. 15. O prejuízo fiscal apurado a partir do
encerramento do ano-calendário de 1995, poderá ser compensado, cumulativamente com os
prejuízos fiscais apurados até 31 de dezembro de 1994, com o lucro líquido ajustado pelas
adições e exclusões previstas na legislação do imposto de renda, observado o limite máximo,
para a compensação, de trinta por cento do referido lucro líquido ajustado.
Parágrafo único. O disposto neste artigo somente se aplica às pessoas jurídicas que mantiverem
os livros e documentos, exigidos pela legislação fiscal, comprobatórios do montante do
prejuízo fiscal utilizado para a compensação."
3 Fernando Albino, Plínio Garcia, Ricardo Barreto Ferreira da Silva e Fernando Sálvia aconse­
lham na extinção da incorporada a cautela com seus acionistas: "A partir da data da publica­
ção da ata desta assembléia da incorporada passará a fluir o prazo de 30 (trinta) dias para o
exercício do direito de retirada dos acionistas dissidentes conforme previsto no art. 230. Em
função disso, na prática, é conveniente que, antes de se dar seqüência aos trâmites posteriores
da operação de incorporação, aguarde-se o decurso desse prazo. Outra alternativa seria a de,
antes mesmo de se iniciar o procedimento da incorporação, acautelarem-se os interessados em
obter, de todos os acionistas, um acordo, visando a garantir o exercício do direito de voto
nessa assembléia, em favor da incorporação, ou ainda, comprarem as ações ou quotas daque­
les que sabidamente não concordarão com a operação.
Como último passo dessa fase deliberativa, reúnem-se novamente, em assembléia geral, os
sócios ou acionistas da incorporadora para aprovar o laudo de avaliação e concretizarem a
incorporação, extinguindo-se, conseqüentemente, a incorporada." (grifos meus). MARTINS,
Ives Gandra; V ID IG A L, Geraldo de Camargo (coord.) Comentários à Lei das Sociedades por
Ações. 1a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 735.
4 "A C Ó R D Ã O CSRF/01-05.100
Órgão: Câmara Superior de Recursos Fiscais - CSRF
5 4 0 - A p r o v e it a m en t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

b) todas as decisões administrativas, contrárias à tese do aproveita­


mento, macularam o princípio da legalidade, nitidamente ex­
posto no artigo 15 da Lei n° 9.065/95, de rigor, aplicável apenas
às empresas em funcionamento;

Ementa: IRPj - COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZO - LIMITE DE 30% - EMPRESA INCORPORADA -


À empresa extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido na compen­
sação do prejuízo fiscal.
Recurso provido.
Número do Recurso: 101-122596
Turma: PRIMEIRA TURM A
Número do Processo: 10980.011045/99-90
Tipo do Recurso: RECURSO DE DIVERGÊNCIA
Matéria: IRPJ
Recorrente: ELETROLUX DO BRASIL S.A. (SUC. DA EMBEL - EMPRESA BRAS. ESP. NO COM.
DE ELETRODOM ÉSTICOS LTDA. E DA PRO SDÓ CIM O - ASSIST. TÉCNICA DE ELETRO DO ­
M ÉSTICOS LTDA.)
Interessado(a): FAZENDA NACIONAL
Data da Sessão: 19/10/2004 09:30:00
Relator(a): José Henrique Longo
Acórdão: CSRF/01 -05 .1 00
Decisão: DPU - DAR PROVIMENTO POR UNANIM IDADE
Texto da decisão: Por unanimidade de votos, DAR provimento ao recurso. - Fez sustentação
oral o advogado da recorrente Dr. Dicler de Assunção - OAB/PR n° 7.498. - Presente ao
julgamento o Sr. Procurador da Fazenda Nacional Dr. Sérgio de Moura.
Data de decisão: 19/10/2004
Processo n°:10980.011045/99-90
Recurso n°: RD 101-122596
Matéria: IRPJ (EXERCÍCIO 1997)
Recorrente: ELETROLUX DO BRASIL S/A
Recorrida: 1a CÂMARA DO 1o CONSELHO DE CONTRIBUINTES
Interessada: FAZENDA NACIONAL
Sessão de: 19 de outubro de 2004
Acórdão n°: CSRF/01-05.100
IRPJ - COM PENSAÇÃO DE PREJUÍZO - LIMITE DE 30% - EMPRESA IN CORPO RADA - À
empresa extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido na compen­
sação do prejuízo fiscal.
Recurso provido.
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de recurso interposto por ELETROLUX DO
BRASIL S/A.
ACO RDAM os membros da Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, por
unanimidade de votos, DAR provimento ao recurso, nos termos do relatório e voto que passam
a integrar o presente julgado.
MANOEL AN TÔ N IO GAD ELH A DIAS - Presidente
JOSÉ HENRIQUE LO N GO - Relator
Participaram, ainda, do presente julgamento, os Conselheiros: ANTONIO DE FREITAS DUTRA;
MARIA GORETTI DE BULHÕES CARVALHO; CÂN DIDO RODRIGUES NEUBER; VICTO R LUÍS
DE SALLES FREIRE; LEILA MARIA SCHERRER LEITÃO; REMIS ALMEIDA ESTOL; JOSÉ CLÕVIS
ALVES; JOSÉ CARLOS PASSUELLO; JOSÉ RIBAMAR BARROS PENHA; W ILFRIDO AUGUSTO
MARQUES; MARCOS VIN ÍCIUS NEDER DE LIMA; CARLOS ALBERTO GONÇALVES NUNES;
DORIVAL PADOVAN e MÁRIO JUN QUEIRA FRANCO JÚNIO R" (grifos meus). Disponível em:
<www.decisoes.com .br/>.
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 4 1

c) o Superior Tribunal de Justiça, claramente, cuidou da legalidade


da restrição de 30% de aproveitamento, somente às sociedades não
extintas, preservando-lhes, todavia, o direito de compensarem, no
tempo, o prejuízo, direito QUE NÃO LHES É TIRADO5;
d) é correto o disposto no artigo 33 do D.L. n° 2341/87, que proíbe
o aproveitamento do prejuízo da incorporada na incorporadora,
pois esta foi extinta e, se extinta, quando da incorporação, não
pode seu prejuízo ser transladado para a incorporadora6;
e) não há lacuna na lei que limitou a 30% a compensação de pre­
juízos fiscais, pois apenas dedicada a empresas em funciona­
mento, como o STJ e a exposição de motivos das MPs e projetos
de conversão em lei resultantes esclareceram7;
f) a lei objetivou, exclusivamente, distender, no tempo, o aproveita­
mento de prejuízo, MAS NÀO eliminá-lo, em havendo lucros;
g) a interpretação sistemática do artigo 15 da Lei n° 9.065/95, à
luz do princípio da legalidade, é a única que se adequa à Consti­
tuição Federal, ao Código Tributário Nacional e, a unanimidade,
da doutrina brasileira8.

5 STJ - Recurso Especial n° 183.155:


"Tributário - Dedução de Prejuízos Fiscais - Limitação Lei n° 8.981/1995 - Legalidade.
1 - A limitação estabelecida na Lei n° 8.981/1995, para a dedução de prejuízos das empresas,
não alterou o conceito de lucro ou de renda, porque não se im iscuiu nos resultados da
atividade empresarial.
2 - 0 art. 52 da Lei n° 8.981/1995 diferiu a dedução para exercícios futuros, de forma
escalonada, começando pelo percentual de 30% (trinta por cento), sem afronta aos arts. 43 e
110 do CTN ." (grifos meus). In: BEZERRA, Maurício Dantas. Da inaplicabilidade da limitação
à compensação de prejuízos fiscais nos casos de incorporação, fusão e cisão de sociedades.
Revista Dialética de Direito Tributário, n° 96, p. 54.
6 "Art. 33. A pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar
prejuízos fiscais da sucedida" (grifos meus).
7 "No D iário O ficial do Congresso Nacional de 14 junho de 1995, a fls. 3270, consta a
exposição de motivos da Medida Provisória n° 998/95, reedição das Medidas Provisórias n°s.
947/95 e 972/95 e convertida na Lei n° 9.065/95. Dela se pode destacar o seguinte excerto:
'Arts. 15 e 16 do Projeto: decorrem de Emenda do Relator, para restabelecer o direito à
compensação de prejuízos, embora com as limitações impostas pela Medida Provisória n° 812/
94 (Lei 8.981/95). Ocorre hoje "vacatio legis" em relação à matéria. A limitação de 30%
garante uma parcela expressiva da arrecadação, sem retirar do contribuinte o direito de
compensar, até integralmente, num mesmo ano, se essa compensação não ultrapassar o valor
do resultado positivo." (grifos meus) (1° CC, 8a Câmara, Acórdão n° 108-06.682, Conselheiro
Relator Mário Junqueira Franco Jr., j. 20.09.2001, D .O .U . 28.02.2002).
8 Pedro Anan Jr. e Juliana Grandino Latorre escrevem: "Face a essas considerações, entendemos
que não há qualquer impedimento na utilização do prejuízo fiscal e da base negativa da CSLL
5 4 2 - A pr o v e it a m en t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

Passo, agora, a expor minha inteligência da questão, à luz das premissas


retroapresentadas.
O imposto sobre a renda não tem definição constitucional. Elencado
entre os impostos da União como incidente sobre:
“renda eproventos de qualquer natureza" (art. 153, III),
houve por bem, o constituinte, transferir sua conformação para a lei com­
plementar, nos termos do artigo 146, inciso III, letra “a”, assim redigido:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:.....
III —estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, espe­
cialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impos­
tos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes.>%>
Como se percebe, a definição de
Fatos geradores,
Bases de cálculo e
Contribuintes
do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza só pode ser
ofertada —e exclusivamente - por lei complementar. O que não se enqua­
drar no perfil estabelecido pela lei complementar, não passará pelo crivo de
constitucionalidade.

sem a trava de 30% , em caso de extinção da sociedade incorporada; tampouco quanto à


incorporação da empresa controladora pela controlada; bem como na incorporação de empre­
sa lucrativa por deficitária, quando pertencentes ao mesmo Grupo Econômico.
As operações por ora referidas foram analisadas pelo Conselho de Contribuintes e possuem
bons precedentes jurisprudenciais acerca da respectiva viabilidade. Na hipótese de obtenção
de decisão administrativa favorável e eventual questionamento por parte do Ministério Públi­
co Federal ou da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, visando a submissão da decisão
administrativa pelo Judiciário, o contribuinte estará amparado por decisões judiciais, tanto do
STF quanto do STJ, rechaçada tal possibilidade de interferência, e ratificando a perenidade da
decisão administrativa". ANAN JR ., Pedro (coord.). Incorporação - Aspectos relevantes e a
posição do Conselho de Contribuintes. Imposto de renda pessoa jurídica - Teoria e prática. São
Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 305-6.
9 Escrevi: "Nos debates com constituintes e nos contactos não só com os membros da Comissão,
mas também com o denominado grupo 'Centrão', que pediu a Hamilton Dias de Souza e a mim
a preparação de um anteprojeto articulado, concordaram conosco e colocaram, por decorrência,
no Texto o princípio de que nenhum tributo, qualquer que fosse a sua espécie, poderia ingressar
no cenário jurídico sem que houvesse, antes, sua definição em lei complementar.
Ives G a n d r a d a S ilv a M a r t in s - 543

Nitidamente, a lei complementar não pode estabelecer, como determi­


nou o legislador com tal nível de elaboração legislativa, quaisquer parâmetros,
mas apenas o desenho implicitamente constante da lei suprema. Em outras
palavras, não poderá o legislador complementar declarar que o imposto sobre
a renda incide sobre a propriedade territorial urbana, pois estaria mudando o
denominado conceito implícito da Lei maior.
Por esta razão, a lei complementar, enquanto versando sobre normas ge­
rais, é apenas explicativa10.
Acacianamente, diria que a lei complementar honra seu próprio nome,
complementando a Constituição na explicitação dos implícitos conceitos, não
podendo nada criar que não esteja implicitamente constando da lei suprema.
Tanto a Constituição, quanto a lei complementar, enquanto veiculando nor­
mas gerais, dispõem sobre competências e regulações, mas não são auto-aplicáveis.
Dependem de lei ordinária. Estabelecem, todavia, os parâmetros a orientar o legis­
lador ordinário11.

A letra 'a', portanto, diz que a lei complementar cuidará: da definição dos tributos e suas
espécies, mas em relação aos impostos, além da definição, faz menção à necessidade de
previsão dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. À evidência, dever-
se-ia falar em 'tributo' e não 'tributos', posto que o tributo é gênero do qual pendem as cinco
espécies tributárias hospedadas pelo sistema.
Por entender que tal definição é estruturalmente uma norma geral, considero que também a
definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes das demais espécies
tributárias deve ser veiculada por lei complementar. O advérbio 'especialmente' não exclui,
antes inclui, por sua natureza e não por sua indicação, tais aspectos como reguláveis apenas
por lei complementar também em relação às demais espécies". O sistema tributário na Constitui­
ção. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 140-1.
I0 O Ministro Moreira Alves esclarece o que seja a explicitação por lei de conceitos implícitos da
lei suprema: "E, a meu ver, está absolutamente correto. Porque não é possível se admitir que
uma lei complementar, ainda que a Constituição diga que ela pode regular limitações à
competência tributária, possa aumentar restrições a_essa competência. Ela pode é regulamen­
tar. - Se é que há o que regulamentar, em matéria de imunidade, no sentido de ampliá-la ou
reduzi-la. Porque isso decorre estritamente da Constituição. Quando se diz, por exemplo,
'para atender às suas finalidades essenciais', não é a lei que vai dizer quais são as finalidades
essenciais. Quem vai dizer quais são as finalidades essenciais é a interpretação da própria
Constituição. Porque Constituição não se interpreta por lei infraconstitucional, mas a lei
infraconstitucional é que se interpreta pela Constituição" (grifos meus). MARTINS, Ives Gandra
(coord.). Pesquisas Tributárias - Nova Série n° 5, Processo Administrativo Tributário. 2a ed. São
Paulo: co-Ed. CEU/Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 31-2.
II Escrevi: "Em direito tributário, como, de resto, na grande maioria das hipóteses em que a lei
complementar é exigida pela Constituição, tal veículo legislativo é explicitador da Carta
Magna. Não inova, porque senão seria inconstitucional, mas complementa, esclarecendo,
tornando clara a intenção do constituinte, assim como o produto de seu trabalho, que é o
princípio plasmado no Texto Supremo.
É, portanto, a lei complementar norma de integração entre os princípios gerais da Constituição
e os comandos de aplicação da legislação ordinária, razão pela qual, na hierarquia das leis,
5 4 4 - A p r o v e it a m en t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

No caso do imposto sobre a renda, o artigo 43 do CTN define o que seja


a renda tributável e o que seriam proventos de qualquer natureza.
Está assim redigido:
Sírt. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda eproventos de
qualquer natureza tem comofato gerador a aquisição da disponibilidade
econômica oujurídica:
I —de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da
combinação de ambos;
I I —de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos
patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ I o-A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do
rendimento, da localização, condiçãojurídica ou nacionalidade dafonte, da
origem e daforma depercepção. (Incluídopela Lcp n° 104, de 10.1.2001)
§2° —Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei
estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade,
parafins de incidência do imposto referido neste artigo. (Incluídopela Lcp
n° 104, de 10.1..2001).m
A aquisição da disponibilidade material constitui, de rigor, o fato gera­
dor do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, distinguindo
o legislador complementar - o CTN foi recepcionado desde a Constituição
de 1967 com eficácia de lei complementar -, a aquisição de disponibilidade
econômica da jurídica.
A meu ver, toda a disponibilidade jurídica é também econômica, pois
caso contrário o tributo não poderia incidir. Organizei, inclusive, Simpósio

posta-se acima destes e abaixo daqueles. Nada obstante alguns autores entendam que tenha
campo próprio de atuação - no que têm razão tal esfera própria de atuação não pode, à
evidência, nivelar-se àquela outra pertinente à legislação ordinária. A lei complementar é
superior à lei ordinária, servindo de teto naquilo que é de sua particular área mandamental".
Comentários à Constituição do Brasil. 6o vol., tomo I. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 79-80.
12 José Luiz Bulhões Pedreira, ao distinguir "fluxo" de "acréscimo", identifica o "acréscimo"
como "acumulação" (visão estática) e a "entrada" (visão dinâmica). Representam, pois, sob o
aspecto temporal, isto é, no momento de sua ocorrência, um acréscimo, vocábulo inclusive
utilizado pelo legislador complementar para definir o suporte fático do imposto sobre a
renda e proventos de qualquer natureza. Assim, se expressa o eminente jurista: "O sentido
vulgar da renda é o produto do capital ou trabalho, e o termo é usado como sinônimo de
lucros, juros, aluguéis, proventos ou receitas. A expressão "proventos" é empregada como
sinônimo de pensão, crédito, provento ou lucro. No seu sentido vulgar, tanto a expressão
"renda" quanto a "proventos" im plica a idéia de fluxo, alguma coisa que entra, que é
recebida". (Imposto de Renda. APEC, p. 2 a 21).
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 4 5

Nacional, com a presença de um dos autores do anteprojeto do Código (Gil­


berto de Ulhôa Canto) para conformar, doutrinariamente, o fato gerador do
I.R. Por força daquele evento e da própria jurisprudência administrativa e
judicial resultante, ficou claro que o cerne do fato gerador está no acréscimo
patrimonial decorrente do produto do capital, do trabalho, de ambos ou de
outros acréscimos não decorrentes do capital, do trabalho ou de ambos13.
Tanto é que, na definição de proventos, utiliza-se, o legislador comple­
mentar, da expressão
“outros acréscimos patrimoniais”(grifos meus),
vale dizer, que a aquisição de disponibilidade que constitui renda é tam­
bém “um acréscimo patrimonial”.
Não entrarei, por força do escopo do presente estudo, a discutir a dife­
rença entre disponibilidade econômica ou jurídica, POIS AMBAS CONS­
TITUEM ACRÉSCIMOS, mas lembro que alguns autores projetam sua
interpretação à luz do artigo 116 do CTN, que definiu o fato gerador e as
circunstâncias de fato e de direito de sua ocorrência14.

13 O Simpósio Nacional citado teve como fulcro o Caderno de Pesquisas Tributárias, vol. 1 1 - 0
fato gerador do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Coordenação de Ives
Gandra Martins e escrito por Antonio Carlos Garcia de Souza, Antonio Manoel Gonçalez,
Carlos da Rocha Guimarães, Gilberto de Ulhôa Canto, Gustavo Miguez de Mello, Hugo de
Brito Machado, lan de Porto Alegre Muniz, Ives Gandra da Silva Martins, José Eduardo Soares
de Melo, Luciano da Silva Amaro, Ricardo Mariz de Oliveira, Wagner Balera, Waldir Silveira
Mello e Ylves José de Miranda Guimarães. Co-ed. Resenha Tributária/CEU, 1986.
14 Escrevi: "Por essa razão, explicita o legislador complementar que a renda e os proventos
implicam, necessariamente, uma aquisição. A aquisição correspondente a algo que se acres­
centa, que aumenta a patrimonialidade anterior, embora outros fatores possam diminuí-las. Por
isto, o aumento, como sinônimo de fluxo, lhe é pertinente.
Por outro lado, o legislador complementar aclara que tipo de aquisição seria de fato imponível
do tributo questionado, ou seja, aquele das disponibilidades econôm icas e jurídicas. O
discurso corresponde, por decorrência, a uma limitação. Não a qualquer tipo de aquisição,
mas apenas àquele correspondente à ostentação de disponibilidade econômica ou jurídica
refere-se o comando intermediário.
Os intérpretes têm, algumas vezes, tido dificuldades em esclarecer o que seria disponibilidade
jurídica, mormente ao se levar em consideração que o simples fato de uma disponibilidade
econômica ter tratamento legal, tal tratamento a transforma também em disponibilidade jurídica.
Temos nos insurgido contra a impropriedade redacional, a partir da concepção de que não há
objeto ajurídico no Direito. E distinguir, no Direito, situações a partir da adjetivação 'jurídica'
é tornar o gênero, espécie.
No caso, todavia, passando por cima da impropriedade, a matéria tem campo próprio de
explicitação, a partir do disposto nos arts. 113, 114, 116 e 117 do C TN ". (grifos meus).
MARTINS, Ives Gandra (coord.). Caderno de Pesquisas Tributárias vol. 11 - O fato gerador do
IR e proventos de qualquer natureza. São Paulo: co-ed. Ed. Resenha Tributária e Centro de
Extensão Universitária, 1986, p. 266/267.
546 - A p ro ve ita m e n to de P re ju ízo s além d o s 3 0 % n a E x tin ç ã o de In c o r p o ra d a

Para efeitos deste estudo o que cumpre realçar é que o “acréscimo patri­
monial” é que constitui fato gerador do I.R.
Por outro lado, o artigo 44 do CTN, nitidamente, define a base de cál­
culo para três situações referentes à aquisição de disponibilidade ou acrésci­
mo patrimonial.
A primeira é o montante real. Só o que estiver definido em lei como
AQUISIÇÃO REAL D E DISPONIBILIDADE pode, na primeira hipó­
tese, ser incidido pelo imposto sobre a renda15.
Em outras palavras, a diferença entre o custo da aquisição de dispo­
nibilidade e o gasto para esta aquisição é que constitui O ACRÉSCIM O
PATRIM ONIAL TRIBUTÁVEL, não podendo, ainda por lógica aca-
ciana, uma não “aquisição de disponibilidade” ser tributada, como se aqui­
sição fosse.
Não sem razão, a respeito deste aspecto, a Ministra Eliana Calmon declarou:
"limitada a dedução deprejuízos ao exercício de 1995, não existia empeci­
lho de que os 70% restantes fossem abatidos nos anos seguintes, até o
seu limite total, sendo integral a dedução.
A prática do abatimento total dosprejuízos afasta o sustentado antago­
nismo da lei limitadora com o CTN, porque permaneceu incólume o
conceito de renda, com o reconhecimento doprejuízo, cuja dedução ape­
nas restou diferida. (...)
Como visto no início deste voto, não houve subversão alguma,porque não
olvidou oprejuízo, mas apenasfoi ele disciplinado de talforma que tor­
nou-se escalonado”. (grifos meus) (RESP 993.975).

15 Henry Tilbery hospeda a mesma inteligência ao comentar o artigo 44 do CTN:


"b) No caso das pessoas jurídicas, aplica-se para apurar o lucro real, seguindo o conceito do
acréscimo patrimonial, a teoria do balanço, que revela, além do resultado das atividades
normais da empresa (lucro operacional), também outras variações patrimoniais, provenientes
de operações ou ocorrências estranhas ao objeto social (transações eventuais). (Hodiernamente
denominadas não operacionais).
Para fins da tributação pelo imposto de renda o resultado do balanço comercial fica sujeito
a vários ajustes. De acordo com a lei ordinária determinados itens são adicionados ao lucro
real, outros são excluídos, para assim chegar ao lucro tributável. Para designar esse cômputo,
que leva ao resultado, sobre o qual incide o imposto de renda da pessoa jurídica diferente
do lucro apresentado pela contabilidade, usa-se a expressão balanço fiscal". MARTINS, Ives
Gandra (coord). Com entários ao Código Tributário N acional. 5a ed., vol. 1. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 370.
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 4 7

Vale dizer, manifestou, com muita clareza, que a postergação no tempo


do aproveitamento do prejuízo não implicaria a sua eliminação, visto que seria
sempre mantido o direito de aproveitamento. Em outras palavras, firmou com
nitidez a tese de que um “não acréscimo patrimonial” não poderia ser incidido
pelo I. R. pois, se suprimido fosse o direito de compensação do prejuízo, um
“não acréscimo patrimonial” seria matéria tributável pelo imposto sobre a ren­
da, em um “lucro” incompensável por um prejuízo real, que jamais poderia
ser, entretanto, utilizado!!!
Manifestamente e de acordo com o estrito princípio da legalidade, fir­
mou o STJ a inteligência que:
a) postergação, no tempo, de aproveitamento do prejuízo não eli­
mina o inalienável direito de aproveitá-lo, em havendo lucro;
b) o aproveitamento segmentado só pode ser feito em empresas em
funcionamento, pois nas empresas extintas, não há possibilidade
de postergação, no tempo, para seu aproveitamento16;
c) o “acréscimo patrimonial” é que constitui o montante real a ser
considerado, como base de cálculo do imposto sobre a renda;
d) um “não acréscimo patrimonial” não constitui montante real para
base de cálculo do imposto de renda, pois se não, não teria decla­
rado o autor da lei que:
“A limitação de 30%garante umaparcela expressiva de arrecadação, sem
retirar do contribuinte o direito de compensar, até integralmente, num
mesmo ano, se essa compensação não ultrapassar o valor do resultadoposi­
tivo". (grifos meus)17

16 O Conselheiro Mário Junqueira Franco Jrv com meridiana nitidez, esclarece, em voto vencedor
proferido na 8a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes (Acórdão N° 108-06.682): "A
expressão 'sem retirar do contribuinte o direito de compensar' reforça o meu entendimento de
que, em casos de descontinuidade da empresa, na declaração de encerramento cabe integral
compensação dos prejuízos acumulados, sendo inaplicável a trava.
Todo o interesse protegido foi somente regular o fluxo de caixa do Governo, sem extirpar do
contribuinte o direito à compensação de prejuízos. Qualquer hipótese na qual o efeito seja
eliminar a compensação não estará abrangida pelo campo de incidência da norma de limitação.
É matéria de pura interpretação de lei.
'Ex positis', conheço do recurso, para no mérito dar-lhe integral provimento.
É como voto; Senhor Presidente.
Sala das Sessões - DF, em 20 de setembro de 2001."
17 Exposição de Motivos da MP 998/95, reeditando as MPs n°s. 947/95 e 972/95, convertida na
Lei n° 9.065/95 e publicada no Diário Oficial do Congresso Nacional de 14/06/1995.
5 4 8 - A p r o v e it a m e n t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

Como se percebe, o artigo 44 do CTN, ao falar em montante real da


base de cálculo, explicita, com clareza, o disposto no artigo 43, que cuida de
“aquisição de disponibilidade” que implique “acréscimo patrimonial”18.
As outras duas formas de base de cálculo são complementares e de
nenhum interesse para o presente estudo. O “montante presumido” é de
opção do contribuinte, que pode aceitar ou não a receita como parâmetro
tributário para não ter que demonstrar as despesas dedutíveis como elemen­
tos redutores do tributo, o que ocorre com aqueles pagadores de tributos
que, por facilidade operacional, adotam a declaração de pessoa jurídica, com
base na receita e não no lucro. E no montante arbitrado, aquele contribuin­
te que não mantiver sua escrituração, de tal forma que se possa determinar
as receitas e as despesas pertinentes, ou seja, que não tenha o Fisco como
calcular o imposto sobre a renda, poderá ser punido, adotando-se o arbitra­
mento do lucro, à luz da receita aferível.
Para o presente estudo o que interessa, todavia, são as disposições dos
artigos 43 e 44 do CTN, que foram, a meu ver, rigorosamente, seguidas pelo
legislador ordinário19.
Com efeito, reza o artigo 250, inciso III, do RIR que:
‘!drt. 250. Na determinação do lucro real,poderão ser excluídos do lucro líqui­
do doperíodo de apuração (Decreto-Lei n° 1.598, de 1977, art. 6o, § 3o):
I —os valores cuja dedução seja autorizadapor esteDecreto e que não tenham,
sido computados na apuração do lucro líquido doperíodo de apuração;

18 Zuudi Sakakihara interpreta o artigo 44 do CTN afirmando:


"Embora o CTN não estabeleça nenhuma restrição expressa à atuação do legislador ordinário
na disciplina da matéria pertinente à base de cálculo do imposto sobre a renda, não se podem
desconhecer certas limitações decorrentes de normas superiores, que devem ser obrigatoria­
mente observadas.
A primeira delas decorre do fato de ser a renda e os proventos um acréscimo patrimonial, como
define o CTN. O ra, como já se viu, somente uma riqueza nova na sua dimensão líquida é
capaz de acrescer o patrimônio, o que leva a concluir que a base de cálculo deverá refletir o
acréscimo patrimonial na sua expressão monetária líquida, isto é, excluídas as despesas que
foram necessariamente feitas na aquisição da renda ou dos proventos. Tais despesas, portanto,
devem ser obrigatoriamente deduzidas da base de cálculo, quer a lei ordinária preveja, quer
não", (grifos meus). FREITAS, Vladimir Passos de (coord.). Código Tributário Nacional Comen­
tado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 138.
19 Luciano da Silva Amaro ensina: "Em suma, o que, honestamente, pretendeu o CTN foi
consagrar a teoria do acréscimo patrimonial para a conceituação do fato gerador do imposto
de renda. E isso ele poderia fazer, como disposição (materialmente) complementar à Constitui­
ção, sem fugir, aliás, à tradição do Direito pátrio." (grifos meus). MARTINS, Ives Gandra da
Silva (coord.). Curso de Direito Tributário. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 379.
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 4 9

I I - os resultados, rendimentos, receitas e quaisquer outros valores incluí­


dos na apuração do lucro líquido que, de acordo com este Decreto, não sejam
computados no lucro real;
III—oprejuízofiscal apurado emperíodos de apuração anteriores, limita­
da a compensação a trinta por cento do lucro líquido ajustadopelas adições
e exclusõesprevistas neste Decreto, desde que apessoajurídica mantenha os
livros e documentos, exigidospela legislaçãofiscal, comprobatórios dopre­
juízofiscal utilizadopara compensação, observado o disposto nos arts. 509
a 515 (Lei n° 9.065, de 1995, art. 15 eparágrafo único).”x>
Como se percebe, o “lucro real”, vale dizer, o “montante real” do acrésci­
mo patrimonial, corresponde ao lucro líquido com exclusão, entre outros, de
“prejuízo fiscal”
de
“períodos de apuração anteriores"
com
“limitação de compensação a 30%".21

20 Maurício Dantas Bezerra esclarece: "Assim, mediante uma interpretação sistemática e teleológica
de toda a disciplina analisada, consta-se claramente que a limitação à compensação prevista
no art. 15 da Lei n° 9.065/95 não alcança a última apuração de resultado por parte da
sociedade a ser incorporada, isto porque:
a) o intuito da norma é, nitidamente, diferir e escalonar o aproveitamento dos estoques de
prejuízos fiscais, de forma a assegurar um fluxo de arrecadação mínimo e não impedi-lo;
b) a norma limitadora e as decisões, proferidas pelo STJ e pelo Conselho de Contribuintes
possuem como premissa básica na sua fundamentação a continuidade das empresas; e
c) por estar expressamente vedada a possibilidade da sucessora (sociedade incorporadora)
compensar o saldo de prejuízos fiscais que anteriormente pertencia à sociedade incorporada,
qualquer limitação ao aproveitamento deste estoque por parte desta em sua última declaração
representará, ind ubitavelm ente, tribu tação de seu patrim ônio e não da renda". Da
inaplicabilidade da limitação à compensação de Prejuízos Fiscais nos casos de Incorporação,
Fusão e Cisão de Sociedades. Revista Dialética de Direito Tributário n° 96, p. 57.
21 Leia-se, neste sentido, o acórdão:
"A C Ó R D Ã O 107-09.243
1o Conselho de Contribuintes - 7a Câmara
1o Conselho de Contribuintes / 7a Câmara / ACÓ RD ÃO 107-09.243 em 05.12.2007
IRPJ - Ex.: 1999
IRPJ - COM PENSAÇÃO DE PREJUÍZO - LIMITE DE 30% - EMPRESA IN CORPO RADA - À
empresa extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido na compen­
sação do prejuízo fiscal. (Acórdão CSRF/01-05.100, em Sessão de 19 de outubro de 2004,
publicado no D O U de 28/02/2002).
Decisão: Por unanimidade de votos, DAR provimento ao recurso.
Marcos Vinicius Neder de Lima - Presidente.
Publicado no DO U em: 27.02.2008
550 - A p ro ve ita m e n to de P re ju ízo s além d o s 3 0 % n a E x tin ç ã o de In c o r p o ra d a

A disposição, que corresponde à Lei 9.065 de 1995, art. 15 e parágrafo


único cuida, pois, com absoluta nitidez de empresas em funcionamento, vez
que fala em
"períodos anteriores”,
o que pressupõe uma continuidade de operação e uma partição temporal
no aproveitamento de prejuízos pretéritos.
E chega-se ao ponto fulcral da disposição. Antes de 1995, o aproveita­
mento de prejuízo não tinha restrição percentual. O dispositivo criou uma
restrição de aproveitamento percentual para as empresas em funcionamento,
permitindo, todavia, o aproveitamento total dos prejuízos distribuídos em
períodos posteriores.
Os que defendem tese contrária não perceberam, entretanto, que a trava
de 30% era exclusivamente para as empresas em funcionamento, algo clara­
mente detectado pelo Superior Tribunal de Justiça e perfeitamente definido
pelo autor de lei, ou seja, o de que o PREJUÍZO SEMPRE PODERIA SER
APROVEITADO COM O ELEM ENTO REDUTOR DO LUCRO.
E, repito, que a proibição de aproveitamento dos prejuízos, nas incorpo-
radoras, fortalece tal entendimento, visto que a incorporadora absorve uma
empresa extinta e o que é extinto não pode gerar direito de aproveitamento
em outra empresa, nada obstante os reflexos patrimoniais22.

Relator: Luiz Martins Vaiero


Recorrente:------------------
Recorrida: 4a TURMA/DRJ-CAMPINAS/SP
Data de decisão: 05/12/2007
Data de publicação: 27/02/2008."
22 Leia-se a seguinte decisão do 1o Conselho de Contribuintes:
"ACÓ RDÃO 107-09.243
1o Conselho de Contribuintes - 7a Câmara
1o Conselho de Contribuintes / 7a Câmara /ACÓRDÃO 107-09.243 em 05.12.2007
IRPJ - Ex.: 1999
IRPJ - COM PENSAÇÃO DE PREJüfZO - LIMITE DE 30% - EMPRESA IN CORPO RADA - À
empresa extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido na compen­
sação do prejuízo fiscal. (Acórdão CSRF/01-05.100, em Sessão de 19 de outubro de 2004,
publicado no DO U de 28/02/2002)
Por unanimidade de votos, DAR provimento ao recurso.
Marcos Vinicius Neder de Lima - Presidente.
Publicado no DO U em: 27.02.2008
Relator: Luiz Martins Valero
Recorrente:-------------------
Iv es G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 5 1

Que se trata de extinção, o § 3o do artigo 227 da Lei n° 6.404/76 não


oferece dúvida, em redação que repito:
“§ 3o-Aprovadospela assembléiageral da incorporadora olaudo de avaliação
ea incorporação, extingue-se a incorporada, competindo àprimeirapromover
o arquivamento e apublicação dos atos da incorporação. ”(grifos meus)
A empresa incorporada extingue-se com a aprovação pela Assembleia
Geral da incorporadora, cujos efeitos jurídicos perante terceiros SOM ENTE
OCORRERÃO a partir do arquivamento e publicação dos atos de incorpo­
ração. Tal determinação mostra que —para efeitos de validade perante tercei­
ros, inclusive perante o fisco —apenas após o arquivamento da publicação dos
atos da incorporação, já com a extinção da empresa incorporada, passa a ga­
nhar a incorporação a plenitude de sua existência legal23.
A análise do artigo 227, § 3o justifica, pois, o não aproveitamento dos
prejuízos pela incorporadora, se não forem compensáveis, na incorporada ex­
tinta. A lei fiscal, desta forma, respeita o disposto nos artigos 109 e 110 do
CTN, que não lhe permite alterar conceitos próprios do direito privado, im­
plícita ou explicitamente conformados pela lei suprema, considerando que se
extinta foi a incorporada e não aproveitado o prejuízo, à falta de lucros, não
poderá a incorporadora aproveitá-lo, pois a empresa incorporada extinguiu-se
no ato da incorporação24.

Recorrida: 4a. TURMA/DRJ-CAMPINAS/SP


Data de decisão: 05/12/2007
Data de publicação: 27/02/2008".
23 Depois de elencar inúmeras decisões do Conselho de Contribuintes, Pedro Anan Jr. e Juliana
Grandino Latorre declaram: "É clarividente a orientação extraída do voto do M. Conselheiro, que
se preocupa em garantir a aplicabilidade da limitação da compensação de prejuízos fiscais, desde
que esta não resulte na retirada do direito da compensação, do contribuinte. Se assim o é, ou seja,
na hipótese do limite recair sobre empresa objeto de extinção, torna-se incabível a trava de 30%.
Com base nos argumentos ora indicados, entendemos que a utilização do prejuízo fiscal e da
base negativa da CSLL, em decorrência da incorporação de qualquer sociedade, não estará
sujeita à limitação de 30% do lucro líquido ajustado, e que as decisões por ora apresentadas
configuram sólidos argumentos, bem como importantes precedentes jurisprudenciais, caso
eventual fiscalização venha eventualmente questionar a limitação contida nos artigos 15 e 16
da Lei n° 9.065/96." (Ob. cit., p. 296)
24 Os artigos 109 e 110 do CTN estão assim redigidos:
"Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do
conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos
respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos,
conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constitui­
ção Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou
dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias." (grifos meus).
5 5 2 - A p r o v e it a m en t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

Em nenhum momento, todavia, a lei fiscal (art. 250, § 3o do RIR)


proíbe —para as empresas em extinção - o aproveitamento integral do pre­
juízo de 30% até porque se o fizesse estaria maculando os artigos 43 e 44 do
CTN, tornando um “não acréscimo patrimonial” (a parcela de lucro não
compensável do prejuízo existente) tributado pelo imposto de renda, em
montante, portanto, não real.
A interpretação sistemática dos dispositivos, única realmente possível no
exame do direito mais abrangente, demonstra, pois, que:
a) as empresas em funcionamento podem sempre aproveitar os
prejuízos de períodos anteriores distendidos no tempo, à razão
de 30%;
b) as empresas incorporadoras não podem aproveitar os prejuízos
das empresas incorporadas extintas, pois só estas poderiam apro­
veitar o prejuízo, visto que o que extinto está não pode gerar
elemento redutor em outra empresa no que concerne a seus lu­
cros próprios;
c) as empresas em extinção podem aproveitar a totalidade do pre­
juízo dos períodos anteriores, se tiverem lucro, pois do contrá­
rio jamais poderiam-no aproveitar, o que violaria os artigos 43 e
44 do CTN;
d) a trava dos 30% só foi colocada pela lei 9.065/95 para as empre­
sas em funcionamento; e
e) para as empresas em extinção permanece a possibilidade de apro­
veitamento integral, em havendo lucro25.

25 Lembro trecho do voto impecável do Conselheiro Mário Junqueira Franco Jr., já atrás mencio­
nado: "Procuremos portanto o elemento histórico da finalidade da norma impositiva da 'trava'.
E para isso não podemos deixar de vislumbrar as lições do saudoso amigo e ex-conselheiro
Edson Vianna de Brito, verdadeiro autor da norma, quando ainda ocupava, com incontestável
brilhantismo, posição relevante nos quadros da Receita Federal. Edson assim discorreu sobre
a norma de limitação, em seu livro Imposto de Renda. São Paulo: Frase Editora, 1995, p. 161
e segs.: 'Este dispositivo estabelece uma base de cálculo mínima, para efeito da determinação
do imposto de renda devido, através da fixação de um limite máximo de redução - por
compensação de prejuízos fiscais - do lucro tributável apurado em cada ano-calendário. Em
outras palavras, as pessoas jurídicas que detenham estoque de prejuízos fiscais apurados em
anos anteriores passam a sujeitar-se a um imposto de renda mínimo, uma vez que o lucro
tributável só poderá ser reduzido em no máximo trinta por cento.
Note-se, preliminarmente, que em nenhum momento, o texto legal cerceou o direito do
contribuinte de compensar os prejuízos fiscais apurados até 31 de dezembro de 1994 com o
Ives G a n d r a d a S ilv a M a r t in s - 553

É esta, rigorosamente, a inteligência não só de diversos conselheiros do


Conselho de Contribuintes, mas principalmente - e o que é mais relevante -
do Superior Tribunal de Justiça que, ao considerar
a) legal a trava de 30%,
declarou que tal trava não tiraria o direito de compensação dos prejuízos
pretéritos com seu
b) aproveitamento integral, no tempo,
e tal aproveitamento, nas empresas em extinção, só poderia ser feito
c) no próprio exercício da extinção;
d) sem trava nenhuma, pois, do contrário
e) jamais seria aproveitado26.
O princípio da legalidade, portanto, impõe para o caso esta inteligência.
A tese segundo a qual a lei não cuidou da espécie, que foi a defendida pelos
ilustrados julgadores no processo que examinei, não procede, pois, por inte­
gração analógica, estenderam uma restrição de direito (trava de 30%) apenas
aplicável a empresas em funcionamento para empresas em extinção, que são
detentoras do direito, que o CTN lhes outorgou, de não terem que pagar
tributos sobre um “não acréscimo patrimonial”27.

lucro real obtido a partir de 1o de janeiro de 1995. Pelo contrário, ao fixar um limite máximo
para compensação em cada ano-calendário, o dispositivo legal, em seu parágrafo único,
faculta a compensação da parcela que seria compensável se não houvesse a limitação com o
lucro real de anos calendário subseqüentes" (Ac. N° 108-06.682).
26 O Conselheiro José Henrique Longo fundamenta, com clareza, seu voto ao dizer: "Esse
raciocínio já está pacificado neste Conselho de Contribuintes. A norma (Lei 9065/95, art. 15),
ao impor a 'trava' na compensação, não pretendeu tolher o direito do contribuinte de não
recolher IRPJ sobre a recuperação do capital, correspondente ao lucro após prejuízo. Preten­
deu sim uma arrecadação mínima, se apurado lucro líquido, com a limitação de utilização do
prejuízo acumulado. Em contrapartida, extinguiu o prazo de aproveitamento do prejuízo (de
4 anos), para que o contribuinte pudesse compensar integralmente seu saldo de prejuízo
fiscal, ainda que em muitos anos.
Desse modo, e considerando que à empresa incorporadora é vedado o aproveitamento do
saldo de prejuízo fiscal da empresa incorporada (Decreto-lei 2341/87, arts. 32 e 33), deixa de
existir a premissa de inexistência de limitação de aproveitamento do prejuízo com os lucros
futuros, o que compromete a legitimidade da trava do prejuízo." (Processo 10980.011045/99-
90, A c. N° CSRF/01-05.100)
27 A integração analógica é proibida por força do § 1o do artigo 108 do CTN, assim redigido: "Art.
108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação
tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia;
(...)
§ 1o O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei."
5 5 4 - A p r o v e it a m en t o d e P r e ju íz o s a lé m d o s 3 0 % n a E x t in ç ã o d e I n c o r p o r a d a

O princípio da tipicidade fechada, da estrita legalidade e da reserva ab­


soluta de lei formal não permitiria que se fulminasse o direito absoluto de
aproveitamento integral de prejuízos, em havendo lucros das empresas em
extinção, pois não pode haver incidência do imposto sobre a renda sobre
uma não renda28.
O nosso raciocínio é extensivo à contribuição social sobre o lucro, cujo
regime jurídico segue aquele do imposto de renda sobre o lucro.
Por fim, é de se lembrar que, se dúvida houvesse, que para mim, para o
Poder Judiciário, para muitos Conselheiros do Tribunal Administrativo, para
o autor da lei e para a esmagadora maioria da doutrina não há, mas há nas
decisões conflitantes da própria Administração Pública, um outro artigo do
CTN dever-se-ia aplicar, qual seja, o artigo 112 do CTN assim disposto:
'Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe cominapenalida­
des, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de
dúvida quanto:
I —à capitulação legal dofato;
I I —à natureza ou às circunstâncias materiais dofato, ou à natureza ou
extensão dos seus efeitos;

28 Yonne Dolácio de Oliveira lembra que: "Na criação e alteração dos tributos, o Legislativo dos
entes de governo, por força da norma constitucional que lhes outorga a competência impositiva
(e que é norma de organização da atribuição de poderes), recebe o poder para traçar na lei de
incidência, o fato-tipo legal, a que vai ligar, como conseqüência ou estatuição, o tributo. Tal
atribuição assegura ao legislador ordinário, com exclusividade, a opção para a escolha dos
fatos tributáveis, o poder de proceder à qualificação tipológica, isto é, a seleção de tais fatos
de acordo com os fins por ele objetivados para defini-los na hipótese de incidência. Também,
com exclusividade, toca-lhe o poder de determinar o "quantum" do tributo (base de cálculo e
alíquota) e o sujeito passivo.
Essa competência atribuída pela Constituição, por exigência desta, quando exercida deve
observar a norma geral do art. 97 do C.T.N ., isto é, o legislador ordinário deve proceder à
definição exaustiva dos elementos do fato-tipo legal ou hipótese de incidência, do sujeito
passivo, e dos elementos da quantificação do tributo - a base de cálculo e a alíquota.
Visto esse poder do legislador ordinário de proceder a uma qualificação tipológica ou tipificação
normática que transpõe para a hipótese de incidência da norma, cumpre anotar seus limites
previstos na Constituição e leis complementares, entre elas o C.T.N. Naturalmente o legisla­
dor deve observar os marcos da atribuição rígida das competências aos entes de governo; e,
ainda que o tributo se inclua no âmbito da sua competência, deve observar as normas gerais
de organização, da Constituição e das leis complementares que, em encadeamento sistemáti­
co, definem em maior grau de abstração na escala conceituai, os limites circundantes da
atuação normativa do legislador ordinário" (grifos meus). MARTINS, Ives Gandra (coord.).
Caderno de Pesquisas Tributárias n° 6. São Paulo: co-edição CEEU/ed. Resenha Tributária,
1991, p. 503-504.
Iv e s G a n d r a d a S il v a M a r t in s - 5 5 5

III—à autoria, imputabilidade, oupunibilidade;


IV —à natureza dapenalidade aplicável, ou à sua graduação."
Por tal artigo, optou o legislador complementar, sempre que a dúvida se
instalasse na penalização do contribuinte, que a interpretação mais favorável
ao contribuinte fosse adotada. E na questão objeto deste estudo, a interpreta­
ção mais favorável é, manifestamente, aquela que o CTN determina, e a legis­
lação ordinária indica29.

São Paulo, 28 de outubro de 2009.

29 Antonio J. Franco de Campos interpreta: "Acreditamos não se tratar de especificações taxativas,


mas exemplificativas. Dessa forma, sempre que ocorrer dúvida, mesmo fora daqueles casos,
poderá empregar-se a interpretação benévola, na esfera da ilicitude tributária: 'benigna amplianda.'
Admite-se que o art. 112 reflete o velho brocardo 'in dúbio pro reo1 ou 'in dubio contra fiscum',
inspirado em medida liberal", acrescentando:
"Parece mesmo que o art. 112 acolhe o adágio de Modestino, formulado como reação às
características do sistema jurídico romano. Em verdade, não parece injusta a posição de dúvida
favorecer o contribuinte, principalmente em se tratando de ilícito tributário - teoria do
favorecimento do contribuinte na interpretação da norma financeira (‘di oscuro significato').
Outros autores firmam idêntico princípio: 'se a incerteza deriva de texto não claro, vale a regra
'in dubiis questionibus reofavorendum est... se', ao contrário falta prova certa, a norma finan­
ceira é interpretada 'contra fiscum', pois - 'meiior est conditio possidentis'.
92. Finalmente, nos casos de dúvida, adota-se a solução mais favorável ao contribuinte,
segundo uma preponderante corrente de opinião". Martins, Ives Gandra (coord). Comentários
ao Código Tributário Nacional. 5a ed. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 144-5.
A Redução de Alíquotas do
IPI no Contexto da Crise
Econômica 2008-2009
Extrafiscalidade e Normas
Indutoras

Liana Carlan Padilha


Advogada. Pós-graduanda pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte no Curso de Especialização em Direito Tributário.
L ia n a C a r l a n P a d il h a - 5 5 9

1. In tro dução

Os estudos de Direito Tributário usualmente se concentram em ques­


tões técnicas e teóricas, de suma importância para o desenvolvimento da ciên­
cia jurídica, mas que por vezes se afastam de questões da vivência prática, que
suplantam o mundo unicamente jurídico.
Aspectos econômicos e políticos envolvidos na prática jurídica, eventual­
mente decorrentes da aplicação das normas de direito, acabam por sofrer certo
ostracismo da doutrina, apegada ao aspecto formalista, também fundamental,
mas não exclusivamente determinante. Já ensinou Ives Gandra da Silva Mar­
tins que o direito formal é insuficiente por permitir que ao jurista caiba ape­
nas a função da verificação da adequação do modelo à roupagem determinada
pelo legislador1.
Ao Estado é constitucionalmente garantida a competência para exercer
suas atividades arrecadatórias, desde que obedecidos os requisitos básicos para
a imposição tributária (previsão constitucional, lei que o instrumentalize e
institua forma de arrecadação e fiscalização2), e sempre com observância dos
princípios constitucionais.
Ocorre que a atividade de arrecadação do Estado não pode ser vista so­
mente pelo seu âmbito financeiro, mas também pela sua decorrência econô­
mica, pois é pela tributação que o Estado intervém de forma mais acentuada
na economia3.
Conforme ensinamentos de Luis Eduardo Schoueri, o constituinte da
Carta Política de 1988 idealizou uma realidade que à época era inexistente,
pela qual o Estado se afastaria da ideia de mero vigilante da economia, a
qual se autorregulava, e passaria, por meio das finanças funcionais, a intervir
no campo socioeconômico, com fins de tutela, redistribuiçao, equilíbrios,
dentre outros4.
Assim, em observância a princípios constitucionais e aos objetivos fun­
damentais do Estado brasileiro, tais como o princípio da redistribuição de

1 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária, p. 46.


2 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 76.
3 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cit., p. 48.
4 SCHO UERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, p. 1-3.
560 - A R e d u ç ã o de A líq u o t a s d o IPI n o C o n t e x t o d a C rise ..

riquezas, do superior interesse nacional5, da garantia do desenvolvimento na­


cional, a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, e redução das
“desigualdades sociais e regionais”6, dentre outros, o Estado pode atuar no
âmbito econômico não com fins mercantis ou de exploração de determinada
atividade7, mas direcionando os agentes econômicos8para o sentido que venha
a assegurar o desenvolvimento da economia do país, gerando benefícios dos
mais diversos para seus cidadãos.
Nesse sentido, apresentam-se as funções parafiscal, e extrafiscal
(incluindo-se nesta última a função indutora9), funções tais paralelas e
complementares à função fiscal dos tributos (essencialmente arrecadatória10).
E em decorrência de tais funções, nascem instrumentos impositivos aptos a
coordenar a política tributária capaz de intervir no âmbito econômico: os
incentivos ou estímulos fiscais11, ou, conforme Luis Eduardo Schoueri,
“normas de intervenção por indução”12.
Verificada, pois, a influência da atuação estatal, por intermédio da tribu­
tação, no âmbito econômico, valendo-se da função extrafiscal dos tributos,
constata-se, igualmente, a utilização de tributos federais, como o Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI), como instrumento de atuação estatal

5 Seguindo a linha de ensinamentos de Ives Gandra da Silva Martins, podem ser citados princí­
pios os mais diversos, dentre os quais o da igualdade, da desigualdade seletiva, da inter-
relação espacial, da imposição equitativa, da tríplice função integrativa. In: Teoria da imposi­
ção Tributária, p. 59 e seguintes.
6 Nesse sentido, SCHOUERI, Luis Eduardo. Op. c/f., p. 2.
7 Luis Eduardo Schoueri cita em seu livro Normas tributárias indutoras e intervenção econômica
(p. 41-42) diversas denominações utilizadas, tais como Washington Peluso Albino de Souza
referindo-se a "atuação do Estado Empresário", ou Eros Graus com a expressão "intervenção no
Domínio Econômico", nas situações em que o Estado assume o controle dos meios de produ­
ção, atuando em regime de monopólio.
8 Pode-se citar como exemplo de norma constitucional exemplificativa dessa atuação o art. 174
da Constituição Federal que dispõe Como agente normativo e regulador da atividade econômi­
ca, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
9 Cf. SCHOUERI, Luis Eduardo. Op. c it, p. 68.
I0 De acordo com ensinamentos de J. Albano Santos em sua obra Teoria Fiscal (p. 152), dois são
os procedimentos, meios de o Estado se financiar: "1) pelo exercício de uma actividade
econômica e, de um modo geral, pela gestão do seu patrimônio, sem fazer uso dos poderes que
detém enquanto ente soberano, actuando, pois em circunstâncias análogas às de qualquer
agentes econômico privado; 2) pelo uso do seu poder de império sobre pessoas e bens,
prerrogativa de que, no plano nacional, é titular exclusivo e lhe permite coagir todos quantos
se encontram sob sua jurisdição a ceder-lhe determinados valores".
II MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária, p. 382.
12 SCHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, p. 43.
Lia n a C a r la n P a d ilh a - 561

na economia para reduzir ou abrandar os efeitos das oscilações do mercado


nacional e internacional, constitui exemplo prático da indução estatal e mere­
ce estudo para que seus efeitos principais possam ser identificados.

2. O Papel H is t ó r ic o d o s T r ib u t o s

O fenômeno fiscal não é algo recente na história. De acordo com J. Alba-


no Santos, em sua obra Teoria Fiscal, tábuas de argila descobertas em escava­
ções no túmulo de um “rei-escorpião”, no Sul do Egito, registravam impostos
pagos em linho e azeite, comprovando que já em tal período já se observava
atividades estatais de tributação.
Passando-se pelas diversas civilizações e períodos da história que se segui­
ram (mesopotâmicos, Grécia Clássica, Civilização Helenística, Império Roma­
no, período feudal, do Renascimento às Monarquias Absolutas, o período da
Revolução Francesa até o Século XX)14, em todos se verifica a existência de
tributos, sejam eles diretos ou indiretos15.
A cobrança de impostos mesmo nas civilizações antigas já gerava descon­
tentamento, levando os cidadãos a apresentarem reclamações como no caso da
Baixa Mesopotâmia, cidade-estado de Lagash, na qual foram encontradas
tábuas de barro datadas de 2.700 a 2.500 a.C., nas quais cidadãos reclama­
vam por acharem os impostos excessivos16.
Transpondo-se de períodos mais antigos e chegando-se a uma realidade
mais atual, tem-se que é possível estabelecer-se ao menos um ponto caracte­
rístico entre impostos cobrados ao longo da história, qual seja, a função de
fonte de recursos para o Estado17.
No decorrer da história, os tributos foram adquirindo características va­
riadas, inicialmente sendo forma de contribuição voluntária ou “entrega es­

13 P. 26.
14 SANTOS, J. Albano. Op. cit. p. 24-108.
15 O mesmo autor afirma que já no Império Romano verificava-se a existência de impostos indiretos
relativos á circulação de bens (portorium), imposto sobre transações (centesima rerum venalium),
impostos sobre o consumo do sal, dentre outros (SANTOS, J. Albano. Op. cit. p. 53-56).
16 SANTOS, J. Albano. Op. cit. p. 26.
17 Ensina o autor luso J. Albano Santos que "importa, contudo, não perder de vista que o alcance
do imposto, enquanto fonte de recursos para o Estado, era diferente da que tem nos tempos
actuais (...)" (Teoria Fiscal, p. 28). Por óbvio que existem diferenças decorrentes da evolução da
cobrança e da função dos tributos, mas em sua função primordial, os tributos visam essencial­
mente arrecadar, ser fonte de recurso para o Estado.
562 - A R e d u ç ã o de A líq u o t a s d o IPI n o C o n t e x t o d a C ris e .

pontânea” por razões de preservação da comunidade, de interesses coletivos,


conforme cita J. Albano Santos18, passando pelo saque ou pilhagem19das co­
munidades com maior capacidade bélica contra as de menor capacidade, che­
gando às funções mais contemporâneas, modalidades da extrafiscalidade,
incluindo-se a função indutora20.
Sejam tributos de função arrecadatória, relacionada ao poder fiscal do
Estado, sejam de função extrafiscal, relacionada ao poder regulador do Esta­
do21, em geral as exações correspondem ao que Ives Gandra da Silva Martins,
em sua Teoria da Imposição Tributária, conceitua como “correspondente à par­
ticipação do Estado no trabalho e produção de riqueza de todos”22. São, as­
sim, imiscuídos de caráter econômico.
E diferente não poderia ser. O Estado, desde que assumiu funções regu­
ladoras e interventivas na economia, utiliza-se de diversas formas disponíveis
para atuar perante os processos econômicos. Nos dizeres de Eros Roberto
Grau, a intervenção econômica do Estado é a “ação desenvolvida pelo Estado
no e sobre o processo econômico”23.
Algumas das técnicas utilizadas para tal intervenção são observadas no
âmbito do Direito Tributário, sendo oportuno citar a lição de Ives Gandra da
Silva Martins, o qual afirma “o direito tributário acoberta a participação maior
do Estado, na economia, que se faz por intermédio da tributação”24.
Uma das formas de intervenção dá-se pela tributação. O Professor Luis
Eduardo Schoueri, em sua obra Normas Tributárias Indutoras e Intervenção

18 Op. cit., p. 21.


19 Idem, ibidem, p. 21.
20 SCHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, p. 32-33.
21 Sobre as duas facetas dos tributos relacionadas aos poderes do Estado, válido citar parágrafo
contido na Monografia de Mestrado do Dr. André de Souza Dantas Elali, que em capítulo
introdutório leciona: "Ruy Barbosa Nogueira foi quem, no Brasil, melhor explicou a distinção
entre os referidos poderes, já que, em razão da soberania, o Estado pode impor tributação
sobre as relações econômicas ocorridas em seu território (poder de tributar e soberania fiscal)
e, por outro lado, impor regulamentação (soberania reguladora) para garantir o bem-comum.
Ademais, o poder de regular é o poder de promover o bem público pela limitação e regulação
da liberdade, do interesse e da propriedade." (Tributação e Desenvolvimento Econômico Regi­
onal: um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução
das desigualdades regionais, 2006, p. 13).
22 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária, p. 48.
23 GRAU, Eros Roberto. Elementos de Direito Econômico, p. 62, apud SCHOUERI, Luis Eduardo.
Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica, p. 34.
24 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cit. p. 48.
L ia n a C a r la n P a d ilh a - 563

Econômica2S, ensina que as normas tributárias, por seu critério finalístico, po­
dem ser consideradas primárias ou secundárias, na conceituação de Siegbert
Morscher, quando tenham como objetivos, respectivamente, arrecadar e al­
gum outro diverso do primeiro; ou podem ser ainda utilizados com fins de
política econômico-social, estando o legislador quando da edição da norma
imiscuído do desejo de influir na ordem econômica26.
A despeito das referidas teorias, Luis Eduardo Schoueri adota uma visão
diferenciada, que se distancia da questão fiscal-extrafiscal, afeiçoando-se com
a Unha de Klaus Vògel. A doutrina deste dispõe que as normas tributárias,
além da função de arrecadar, presente em toda norma que verse sobre impos­
tos, possuiriam outras três funções, as quais poderiam coexistir, simultanea­
mente ou não, em todas as normas: i) função de distribuir a carga tributária
(justiça distributiva); ii) função indutora; e iii) função simplificadora.
Ao valer-se de normas tributárias para regular, de forma indutora e/ou
diretiva27, a economia, o legislador ordena que o sujeito passivo da relação
tributária adote certo comportamento28.
É através, pois, de normas indutoras ou diretivas que o Estado poderá
regular os agentes econômicos no sentido de estimular ou desestimular, atra­
vés de incentivos/desincentivos, para que atuem no sentido proposto pelo le­
gislador, de forma que, não adotando o comportamento, ensejar-se-á a aplicação
de conseqüências imputadas pelo ordenamento29.

3 . IPI: T r ib u t o E x t r a f is c a l e F u n ç ã o I n d u t o r a

De acordo com ensinamentos de André de Souza Dantas Elali, as normas


indutoras têm como característica a existência de alternativas de comportamen­
to, através de estímulos e desestímulos, albergando inclusive a possibilidade de

25 P. 17.
26 SCHOUERI, Eduardo. Normas Tributárias indutoras e Intervenção Econômica, p. 17.
27 Cf. ELALI, André de Souza Dantas, que cita emsua Tese deDoutoradoapresentada perante a
Universidade Federal de Pernambuco: "Em outros dizeres, entender-se-á a regulação econômi­
ca como qualquer medida estatal de intervenção que tenha por objetivo a direção e/ou a
indução, por parte do Estado, visando-se à correção de falhas do sistema, com base no que
determina, principalmente, a Constituição." (Concorrência Fiscal Internacional: A Concessão
de Incentivos Fiscais, Integração Econôm ica, Desenvolvim ento e Degradação Estatal.
Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco, 2008, p. 36)
28 SCHO UERI, Luis Eduardo. Op, c i t p. 31.
29 Idem, ibidem, p. 43.
5 6 4 - A R e d u ç ã o d e A l íq u o t a s d o IP I n o C o n t e x t o d a C r is e .

os agentes econômicos receberem sanções premiais em função do comporta­


mento escolhido30.
Luís Eduardo Schoueri, leciona que por meio de normas indutoras rece­
be o agente econômico “estímulos e desestímulos que, atuando no campo de
sua formação de vontade, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo
legislador”, assegurando-se ao agente a “possibilidade de adotar comporta­
mento diverso, sem que por isso recaia no ilícito”31.
Valendo-se, portanto, da função extrafiscal dos tributos, pode o poder
público orientar a ordem econômica, para que siga os seus interesses. Contu­
do, tal atuação estatal está adstrita aos limites constitucionais, estabelecidos
por regras e princípios já analisados em momento anterior, aplicáveis tanto ao
âmbito tributário, quanto ao econômico.
Assim que, ao instituir exação ou alterar alíquota de tributo já existente,
o Estado deverá observar as normas constitucionais aplicáveis. Alguns dos
tributos que têm reconhecidamente função extrafiscal, como o é o IPI32, por
exemplo, têm autorização constitucional para, em caso de necessidade ou in­
teresse público em reduzir a alíquota, não ser mister a observância aos princí­
pios da legalidade e anterioridade tributárias33.
As feições basilares do tributo se moldam nos termos dos §§1° e 3o do
art. 153 da Carta Magna brasileira, os quais se transcrevem abaixo:
Art. 153. Compete àUnião instituir impostos sobre:
(...)
IV - produtos industrializados;
(...)

§ Io - E facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os


limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumera­
dos nos incisos I, II, IV e V.
(...)

30 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência Fiscal internacional: A Concessão de Incentivos


Fiscais, Integração Econômica, Desenvolvimento eDegradação Estatal, p. 37.
31 SCHOUERI, Luis Eduardo. Op. cit., p. 43-44.
32 Cf. ELALI, André de Souza Dantas. IPI: aspectos práticos eteóricos, p.99.
33 Idem, ibidem, p. 99.
L ia n a C a r la n P a d ilh a - 565

§ 3o- O imposto previsto no inciso IV:


I —será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação com o montante cobrado nas anteriores;
III - não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior.
IV - terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital
pelo contribuinte do imposto, na forma da lei.
A partir de tais disposições constitucionais, depreendem-se a regra-ma-
triz de incidência do tributo, suas características principais, os princípios apli­
cáveis ou não e a importância econômica do IPI.
Segundo a doutrina de Paulo de Barros Carvalho, a hipótese pode ser
examinada sob três critérios que permitirão a identificação do fato jurídico: a)
o critério material apresenta-se sob a forma de um comportamento humano
traduzido por um verbo e seu complemento (por exemplo: industrializar pro­
dutos); b) o critério espacial consiste no local em que se considera ocorrido o
fato (por exemplo: localidades específicas, território do município de Natal,
território nacional, etc.); e c) o critério temporal predica o marco temporal em
que se reputa acontecido o fato.
Já a segunda parte da norma, denominada conseqüente da regra-matriz
de incidência ou prescritor normativo, elementos nos quais se alojam os efei­
tos jurídicos, é composta por dois critérios: a) o critério pessoal, o qual aponta
os sujeitos ativo e passivo da relação jurídica; e b) o critério quantitativo, o
qual é expresso pela base de cálculo (referência abstrata que permite a fixação
da expressão econômica da hipótese), conjugado à alíquota, que consiste numa
parcela ou fração da base de cálculo, embora também possa ser expressa em
um valor monetário fixo34.
a) Critério Material
Conforme ensinamentos de André de Souza Dantas Elali, o critério
material está adstrito às operações com produtos industrializados (por força
do disposto no art. 153, inciso IV da Constituição Federal)35. A grande difi­

34 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 331-375.


35 ELALI, André de Souza Dantas. IPI'. aspectos práticos e teóricos, p. 53.
5 6 6 - A R e d u ç ã o d e A líq u o t a s d o IP I n o C o n t e x t o d a C r is e .

culdade, segundo o mesmo autor, é estabelecer a conceituação de industriali­


zação e produto industrializado, posto que, conforme observado por Eduardo
Domingos Bottallo, a Carta Magna não traz em si definição alguma referente
a tais aspectos36.
A respeito do tema, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o
conceito de produtos industrializados é pressuposto do texto constitucional,
o qual “utiliza os conceitos de direito no seu sentido próprio”37. No mesmo
sentido, Hugo de Brito Machado leciona que “o conceito de produto indus­
trializado independe de lei. É um conceito pré-jurídico. Mesmo assim, para
evitar ou minimizar conflitos, a lei complementar pode e deve estabelecer os
seus contornos”38.
A determinação critério material estaria demasiado inconsistente se não
fosse pelo fato de o poder público federal editar uma tabela específica para o
IPI, na qual constam todas as atividades e produtos capazes de ensejar a co­
brança do referido tributo.
Denominado T IPI (Tabela de Incidência do Imposto sobre Produ­
tos Industrializados), o referido documento é objeto de Decreto do Presi­
dente da República, sendo a edição mais recente a publicada pelo Decreto
n° 6.006, de 28 de dezembro de 2006, com última alteração publicada
pelo Decreto n° 6.996, de 30 de outubro de 200939. Estando o item
(produto, mercadoria, atividade) constante da T IPI, incidirá o IPI, na
alíquota prevista em tal documento.
b) Critério temporal
Considerando-se o critério temporal como o “grupo de indicações, con­
tidas no suposto da regra, e que nos oferecem elementos para saber, com exa­
tidão, em que preciso instante acontece o fato descrito” gerando a obrigação
do pagamento de certa prestação pecuniária40, pode-se considerar que com
relação ao IPI tal critério encontra respaldo no art. 46 do CTN.

36 BOTTALLO, Eduardo Domingos. Fundamentos do IPI, p. 39.


37 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial N° 817.182 - RJ (2006/0025257-7), Relator
Ministro Luis Fux.
38 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 350.
39 Cf. sítio do Planalto: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/
_decretos2009.htm>, acessado em 18 de novembro de 2009.
40 CARVALHO, Raulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 295.
L ia n a C a r l a n P a d il h a - 5 6 7

O referido dispositivo alberga as seguintes previsões, quanto ao momen­


to em que devido o IPI: i) desembaraço aduaneiro de produtos industrializa­
dos, quando de procedência estrangeira; ii) saída dos estabelecimentos de
importadores, industriais, comerciantes ou arrematantes; e iii) no momento
da arrematação, quando o produto tenha sido apreendido ou abandonado e
levado a leilão.
c) Critério espacial
O terceiro elemento a ser tratado, apresentado por Paulo de Barros Car­
valho como formador da hipótese tributária, é o critério espacial, que deter­
mina os lugares em que o fato deve ocorrer a fim de ensejar a aplicação dos
efeitos característicos das regras jurídicas41.
Segundo o próprio autor, exações como o IPI e o ICMS não possuem
tanto apego ao condicionante espacial, posto que, em qualquer local que ocorra,
ensejam-se a aplicação dos efeitos, coincidindo em tais situações, com o âmbi­
to de vigência territorial da lei42.
d) Critério pessoal
No critério pessoal trata-se das pessoas que se acham vinculadas entre si,
tendo como objeto da ligação a prestação pecuniária devida. Nesse liame que
se cria, a primeira pessoa envolvida na estrutura tributária a ser citada é o
sujeito ativo, ou seja, aquele que, nos termos de Roque Antonio Carraza,
exerce a capacidade tributária ativa.
O referido autor conceitua a capacidade ativa como o direito de arrecadar
o tributo (criado pelo ente competente), após a ocorrência do fato imponível43.
Como citado em momento posterior, o IPI é tributo de competência
federal e o ente que exerce a capacidade tributária ativa, ou seja, o sujeito
ativo, que realiza a arrecadação do referido imposto é a União, nos termos do
supramencionado art. 153, IV da Lex Mater.
Por outro lado, como polo contrário da obrigação tributária gerada a partir
da ocorrência da hipótese de incidência tributária, há o sujeito obrigado ao
pagamento da quantia pecuniária devida (prestação), qual seja, o sujeito passivo.

41 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 291.


42 Idem, ibidem, p. 292.
43 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 495.
5 6 8 - A R e d u ç ã o de A l íq u o t a s d o IPI n o C o n t e x t o d a C r is e .

É no contexto do art. 51 do CTN que se identifica a base para a identi­


ficação do sujeito passivo, pois dispõe o referido artigo que
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
I - o importador ou quem a lei a ele equiparar;
II - o industrial ou quem a lei a ele equiparar;
III - o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos
contribuintes definidos no inciso anterior;
IV - o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados
a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuin­
te autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, co­
merciante ou arrematante.
Críticas há na doutrina acerca da amplitude do conceito, que acaba por
abranger em si atividades que não passaram por industrialização, cuja ocor­
rência deveria ser a efetiva hipótese de incidência do tributo44.
e) Critério quantitativo
É no critério quantitativo que reside a chave para que se determine o
objeto prestacional, qual seja, o quantum que deve o sujeito passivo pagar e
que pode o sujeito ativo exigir. Conforme lição de Paxolo de Barros Carvalho,
forma-se pela base de cálculo e a alíquota aplicada.
Para o referido autor, a base de cálculo apresenta três funções distintas,
quais sejam: i. Medir as proporções reais do fato (função mensuradora,
formada por índices avaliativos ou padrões dimensíveis ínsitos ao núcleo de
incidência, indicados pelo legislador, capazes de mensurar as proporções re­
ais do fato); ii. Compor a específica determinação da dívida (função objeti­
va, demarcando o conteúdo do objeto da relação obrigacional, é a base de
cálculo em sua função objetiva, formada de números que comporão o cálcu­
lo do debitum)', iii. Confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério
material (função comparativa, comparando-se a base de cálculo ao critério
material da hipótese, é possível confirmar este, infirmá-lo ou afirmá-lo, caso
encontre-se previsto de forma obscura no texto legal)45.

44 ELALI, André de Souza Dantas. IPI: aspectos práticos e teóricos, p. 72.


45 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 363-368.
L ia n a C a r l a n P a d il h a - 5 6 9

Além da base de cálculo, o critério quantitativo é formado pela alíquota,


a qual é um componente aritmético46ou o percentual47que aplicado à base de
cálculo, determina o valor ou o quantum a ser pago pelo sujeito passivo, após a
ocorrência do fato gerador.
No caso do IPI, tem-se que a base de cálculo terá variação conforme a
hipótese de incidência: em se tratando de produto importado, a base de cál­
culo será determinada pelo preço normal acrescido do imposto sobre impor­
tação mais taxas e encargos cambiais exigidos em decorrência da importação;
no caso de produto que saia de estabelecimento industrial ou a ele compara­
do, a base de cálculo será o valor da operação ou o preço corrente da mercado­
ria; no caso de arrematação, a base de cálculos será o valor da arrematação48.
Os percentuais aplicados variam em observância à seletividade (pautada na
essencialidade do produto, a alíquota deve ser inversamente proporcional a essa)
e extrafiscalidade (servindo de instrumento de controle e intervenção do poder
público em setores da economia nacional), ambas as características do IPI49.

4 . R e d u ç ã o de A líq u o t a s d o IPI: In t e r v e n ç ã o E s t a t a l
F re n te à C rise E c o n ô m ic a 2 0 0 8 - 2 0 0 9

Em decorrência do art. 153 e seus parágrafos Io e 3o, ao IPI são aplicáveis


alguns princípios peculiares (como o da seletividade e não cumulatividade),
além dos princípios gerais de Direito Tributário (tais como o da noventena, da
isonomia tributária, da capacidade tributária, etc.), mas excetua-se a aplicação
de outros, como o princípio da estrita legalidade tributária e da anterioridade.
Nesse sentido, tem-se como um dos princípios característicos do referi­
do tributo o da seletividade, pelo qual são tributados com maiores alíquotas
aqueles produtos menos essenciais, que o poder público considere supérfluos,
e reduzindo-se a alíquota daqueles considerados mais essenciais. É inversa­
mente proporcional: quanto mais essencial, deve ser menor a alíquota50. E em
face de tal determinação constitucional, muitos dos produtos constantes da

46 Idem, ibidem, p. 373.


47 Cf. M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 164.
48 Cf. ELALI, André de Souza Dantas. IPI: aspectos práticos e teóricos, p. 75.
49 Nesse sentido ELALi, André de Souza Dantas. IPI: aspectos práticose teóricos, p. 77.
50 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 351.
570 - A R ed ução de A l íq u o t a s d o IPI n o C o n texto da C r is e ..,

TIPI deveriam ser isentos da cobrança de IPI, mas de fato são apenas dispen­
sados do pagamento através do regime de alíquota zero, excluindo-se tais
produtos temporariamente do ônus do IPI, sem os isentar51.
Tal manobra torna-se possível, pois, nos termos do art. 153, §1° da Car­
ta Magna, é cabível à União proceder à modificação da alíquota do IPI por
meio de decreto (e não lei em sentido formal, constituindo-se exceção à lega­
lidade tributária) nos limites estabelecidos em lei. E, em conformidade com o
art. 64 do RIPI, “quando se tornar necessário atingir os objetivos da política
econômica governamental, mantida a seletividade em função da essencialida-
de do produto, ou, ainda, para corrigir distorções, poderão as alíquotas ser
reduzidas até zero ou majoradas até trinta unidades percentuais”52.
De forma que, não havendo submissão do IPI aos princípios da legalida­
de e anterioridade por força do art. 153, §1° da Constituição, e permitindo a
lei que se estabeleça alíquotas-zero, possível que sejam modificadas as alíquo­
tas por meio de decreto (e não por lei, em sentido formal)53e tenham limite
mínimo 0%.
Em função do dinamismo decorrente das regras especiais aplicáveis ao IPI,
tal exação foi utilizada como uma das medidas de combate à crise do governo
federal, por meio da desoneração tributária de alguns setores da economia.
A utilização do IPI em sua característica extrafiscal, como instrumento
de intervenção na economia, não é algo inédito. Diversos Decretos foram edi­
tados pelo Poder Executivo federal, ao longo dos anos, alterando as alíquotas
do IPI, constantes das Tabelas de Incidência do referido imposto. Mas a im­
plementação constitucional do IPI como exceção à anterioridade, a partir da
Emenda Constitucional n° 42/0354, reforçou o seu uso como meio de atuação
do Estado na economia.
Referente ao assunto da extrafiscalidade, aponta a doutrina que as nor­
mas constitucionais de cunho extrafiscal distinguem-se em normas que vi­

51 M ACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 351.


52 BRASIL. Decreto n° 4.554, de 26 de dezembro de 2002.
53 RUSCHMANN, Cristiano Frederico. Direito Tributário, p. 169.
54 A partir de uma mini reforma tributária elaborada pelas Casas do Congresso Nacional, objeto
da Emenda Constitucional n° 42 de 19 de dezembro de 2003, o IPI passou a ter seu caráter
extrafiscal mais evidenciado, posto que, em virtude de alteração no art. 150, §1°, passou a ser
exceção ao princípio da anterioridade, podendo ter sua alíquota alterada e vigorando dentro
do mesmo exercício fiscal.
L ia n a C arlan P a d il h a - 571

sam tanto a consecução de metas de desenvolvimento econômico quanto à


justiça social55.
É possível estabelecer-se um paralelo a partir de tal constatação e tra­
zê-la ao âmbito infraconstitucional. Somente a título ilustrativo, pode-se
citar o Decreto n° 5.298, de 6 de dezembro de 2004 o qual reduziu a
alíquota do biodiesel para zero, e o Decreto 6.227, de 8 de outubro de
2007, o qual reduziu a zero a alíquota de equipamentos de televisão digital,
ambos trazendo em si o intuito de incentivar a fabricação dos produtos
objetos das respectivas reduções. Já como exemplo da função de implemen­
tar a justiça social pode-se citar o Decreto 6.677, de 5 de dezembro de
2008, o qual reduziu a zero a alíquota sobre produtos doados às vítimas das
enchentes ocorridas no Estado de Santa Catarina naquele ano.
A intervenção estatal no domínio econômico não é um fenômeno recen­
te, remontando à fase pós-Primeira Guerra Mundial, quando os Estados, in­
fluenciados pelos vestígios ainda presentes do pensamento iluminista, a
crescente influência comunista e dos Estados Sociais (tendo como ícones as
Constituições Mexicana e de Weimar), a própria eclosão da Primeira Guerra
Mundial e o colapso do liberalismo econômico com a ocorrência da “Grande
Depressão”, aspectos que determinaram o recuo das grandes economias capi­
talistas liberais dos princípios de transações livres, determinando a busca pela
autoproteção, o que demandou dos Estados ocidentais a darem prioridade às
considerações sociais sobre as econômicas em suas políticas estatais.
No decorrer do século XX, a evolução das tendências econômicas, políti­
cas, sociais e jurídicas determinou a configuração do Estado Democrático de
Direito. Convergindo com este, o Brasil admite que, dentro de determinados
limites (constitucionais e infraconstitucionais), haja a atuação do Estado frente
à economia e suas oscilações, suprimindo suas deficiências (denominada por
Fábio Nusdeo como motivações de caráter negativo); ou orientando-se o com­
portamento, estabelecendo-se, conscientemente, objetivos da política econô­
mica, ou seja, posições e resultados a serem alcançados pelo sistema econômico
em seu desempenho (motivações de caráter positivo)56.

55 BOTTALLO, Eduardo Domingos. Fundamentos do IPI, p. 59.


56 Nesse sentido NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico, p. 200
apud SCHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias indutoras e Intervenção Econômica, p. 72.
5 7 2 - A R e d u ç ã o d e A líq u o t a s d o IP I n o C o n t e x t o d a C r is e .

Dentro desse âmbito, Luís Eduardo Schoueri leciona que a intervenção


estatal na economia motivada por fatores de caráter negativo visam à correção
das imperfeições de mercado, e que nesse sentido a atuação estatal não é mais
vista como ocasional, mas como necessária para o funcionamento do mercado57.
O referido autor estabelece algumas das hipóteses de intervenção do
Estado nos casos por ele enumerados, com base nos ensinamentos de Fábio
Nusdeo. Seriam, conforme Luís Eduardo Schoueri, os casos de intervenção58
para correção de falhas na mobilidade de fatores; correção de falhas no acesso
à informação; correção de falhas de concentração econômica; correção de fa­
lhas de externalidades; e correção de falhas nos bens coletivos.
Explica Luís Eduardo Schoueri que no caso da correção de falhas na
mobilidade de fatores o Estado atua permitindo ao mercado que a oferta e a
demanda se ajustem em equilíbrio. A intervenção estatal ocorreria visando
configurar a necessária velocidade aos movimentos de crescimento ou redução
de oferta e demanda (podendo dar-se a atuação por meio de vultuosa produ­
ção ou aquisição de produtos, ou por meio de atuação mediata, conduzindo os
agentes do mercado ao comportamento esperado).
Nesse sentido, tem-se que normas como as desonerações tributárias de
determinados produtos visam o estímulo do setor, corrigindo, dessa forma,
possíveis falhas na mobilidade de fatores.
Como resultado da crise econômica que se alastrou globalmente nos anos
de 2008-2009, vivenciou-se a queda da produtividade industrial, incluindo a
de setores-chave como a indústria automobilística. Dados do Ministério da
Fazenda apontam uma redução abrupta na produção industrial e na fabrica­
ção de automóveis no final do ano de 200859.

57 SCHOUERI, Luis Eduardo. Op. c/t., p. 72.


58 Idem, ibidem, p. 74-78.
59 Dados do Ministério da Fazenda, pautados em números do IBGE, apontam que a produção
industrial brasileira, que até setembro de 2008 vinha variando entre 3 e -1%, vivenciou uma
queda abruta, saindo de 3 para -12,5%. Já no setor automobilístico, a produção que vinha
variando entre 2.322.000 unidades em março de 2008, chegando ao pico de 2.882.000 de
unidades em julho de 2008, e 2.687.000 unidades em setembro de 2008, caiu para 1.778.000
unidades em novembro do mesmo ano, queda decorrente da baixa na aquisição de unidades,
medida pelo licenciamento de veículos (cf. BRASIL. Ministério da Fazenda. Economia Brasileira
em Perspectiva. Disponível no site: <http://www.fazenda.gov.br/portugues/docs/perspectiva-
economia-brasileira/edicoes/Economia-Brasileira-Em-Perpectiva-23-10-09.pdf>, acessado em
29 de novembro de 2009, p. 46-50).
L ia n a C a r l a n P a d il h a - 5 7 3

A crise de que ora se trata, refere-se à recessão mundial iniciada após a


crise financeira originada no mercado imobiliário norte-americano e das
hipotecas de alto risco (subprimes) lá concedidas massivamente à população.
Foram diversos títulos de crédito concedidos sem a devida análise de risco, e
sem qualquer regulação por parte do Estado, operações que acabaram de­
monstrando falhas e, como o próprio nome indica, exibiram o alto risco dos
negócios envolvidos.
Em estudo específico sobre o mercado imobiliário elaborado para o Fundo
Monetário Internacional, Haibin Zhu afirmava que os preços crescentes de
residências, juntamente com as baixas taxas de juros, impulsionaram as ativi­
dades de refinanciamento de hipotecas, encorajando os gastos dos consumi­
dores e deram o suporte para a performance macroeconômica60.
Depois de ocorrida a desvalorização da moeda americana, que se seguiu
nos anos posteriores a esse boom imobiliário, e com o subsequente fracasso
no mercado imobiliário, especialmente no setor comercial, verificaram-se os
maiores problemas bancários61.
No mesmo sentido, Ramiro Gonçalez afirma que a partir de setembro
de 2008 as famílias americanas que tinham dívidas hipotecadas não tiveram
condições de arcar com as dívidas assumidas, submetendo o mundo a uma
expressiva redução de riqueza62. Com a redução de recursos, diminuiu-se o
crédito disponível no mercado e as operações financeiras. E tendo em vista
ser o crédito o “dínamo do mercado”, a economia mundial foi alvo de uma
estagnação brusca63.
Em razão da globalização, fenômeno vivenciado mundialmente desde a
década de 80, os efeitos da crise atingiram as economias de forma ampla e
rápida, disseminando-se em proporções sem precedentes64.
Em face de tal contexto, diversas medidas de combate aos efeitos da
crise foram tomadas pelo Estado brasileiro, podendo-se citar, somente a

60 ZH U, Haibin. The importance o f property markets for monetary policy and financial stability, p. 1.
61 ZH U , Haibin. Op. cit., p. 1.
62 G O N ÇALEZ, Ramiro. Que Crise é Essa? Manual Prático para Entender a Crise e Dicas para
Enfrentá-la, p. 18-19.
63 Idem, ibidem, p. 19.
64 C f. denominação utilizada por Pascal Lamy em G lobal financial crisis, Doha and least-
developed countries.
574 - A R ed ução de A l íq u o t a s d o IPI no C o n texto da C r is e .

título exemplificativo: redução de compulsório, financiamento das exporta­


ções e da dívida externa, financiamento à agricultura, incentivo à construção
civil, desonerações e incentivos fiscais, estímulos para aumento do crédito
(redução do IOF)65.
As medidas tomadas em relação ao IPI beneficiaram diversos ramos in­
dustriais, que passaram a ser favorecidos pela desoneração tributária decorren­
te da redução a zero da alíquota do IPI.
Em 2009, diversos Decretos foram editados alterando alíquotas de produ­
tos industrializados, podendo citar-se: Decreto n° 6.743, de 15 de janeiro de
2009 (que reduziu as alíquotas de veículos com motor de cilindrada superior a
l.OOOcm3); decreto n° 6.809, de 30 de março de 2009, o qual foi posterior­
mente alterado pela edição do Decreto 6.890, de 28 de junho de 2009, e pelos
qual se reduziu as alíquotas de diversos produtos industrializados constantes da
TIPI, estabelecendo novos limites para a validade das novas alíquotas, referen­
tes a automóveis, eletrodomésticos, móveis, reatores nucleares, partes de refrige­
radores de ar, dentre outros; Decreto n° 6.905, de 20 de julho de 2009, o qual
reduziu as alíquotas de produtos relativos a impressão; Decreto 7.016, de 26 de
novembro de 2009, o qual reduziu a alíquota de móveis; e Decreto 7.017, de
26 de novembro de 2009, o qual estabeleceu novos prazos para as reduções das
alíquotas de alguns dos produtos que haviam sido regulamentados pelo Decre­
to 6.890/09, tais como automóveis e eletrodomésticos.
Importa, neste ponto, que se faça menção à lição de José Carlos Graça Wagner,
que, em análise às características do IPI, ensina que o referido tributo sempre foi
considerado como imposto sobre o consumo, de forma que o preço final do produto
estaria vinculado ao ônus incidente sobre a atividade da produção66. Em que pese
o referido autor discordar de tal assertiva, indicando que na realidade os preços são
determinados pelo mercado, pela lei da demanda (oferta e procura), dados sobre o
aumento do consumo de produtos como automóveis, que tiveram suas alíquotas
reduzidas a partir do final do ano de 2008, demonstram que houve repasse da
redução das alíquotas aos preços dos produtos, incentivando, dessa forma, o
consumo, aumentando a produção e a contratação de mão de obra67.

65 BRASIL. Ministério da Fazenda. Atravessando a crise.


66 W AGNER, José Carlos Graça. IPI, p. 67.
67 Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA). In: Carta
da ANFAVEA (Novembro 2009). Disponível no site:<http://www.anfavea.com.br/cartas/
L ia n a C arlan P a d il h a - 5 7 5

Os resultados falam por si. Comparado ao ano de 2008, o ano de 2009


vivenciou fases de declínio e recuperação. No entanto, foram os estímulos
governamentais, através de normas indutoras de condutas e estimuladoras de
setores fundamentais da economia que sustentaram a situação brasileira.
A regulação do mercado, a presença do Estado, a quebra com os princi­
pais fundamentos do liberalismo, passando para uma situação de intervenção
e atuação constante do Governo, o qual se absteve de ser omisso, fizeram com
que, comparado com diversas outras nações do mundo, o Brasil atingisse um
dos menores níveis de desemprego68.
Resta, portanto, inegável a importância que a desoneração tributária, os
incentivos fiscais do governo, o estabelecimento da alíquota zero em diversos
produtos considerados essenciais para o desenvolvimento da política econô­
mica, e, assim, o IPI, utilizado como instrumento da efetivação da extrafisca-
lidade, inerente a alguns dos tributos introduzidos pela Constituição Federal
no ordenamento jurídico pátrio, todos esses fatores podem ser unidos e, uma
vez executados, trazerem consigo resultados expressivos para a economia, fra­
gilizada pelos acontecimentos globais.
E a conjunção, por parte do Estado, de fatores fiscais, políticos e econô­
micos, setores que não se desvinculam, que pode determinar uma estrutura
capaz de embasar a recuperação econômica e, assim, a manutenção do desen­
volvimento de um país.

5. C o n clu sã o

A intervenção do Estado no domínio econômico passou a ser considera­


da não mais como uma exceção, mas como necessária para o saudável desen­
volvimento da economia nacional.

Carta282.pdf>, acessado em 04 de dezembro de 2009) demonstram que comparando-se o


volume de licenciamento dos últimos 12 meses (novembro de 2008 a outubro de 2009) com
o mesmo período do ano anterior (novembro de 2007 a outubro de 2008) houve um aumento
de cerca de 1,4% no licenciamento de veículos, demonstrando o aumento no consumo. No
mesmo relatório, a entidade demonstra que a tendência de queda nos postos de trabalho no
setor foi reduzida, e passou a crescer a partir de mês de agosto de 2009.
68 Segundo o Ministério da Fazenda (In: Economia Brasileira em Perspectiva. Disponível no site:
<http://www.fazenda.gov.br/portugues/docs/perspectiva-economia-brasileira/edicoes/Economia-
Brasileira-Em-Perpectiva-23-10-09.pdf>, acessado em 29 de novembro de 2009, p. 14), o
Brasil ficou em segundo lugar no nível de desemprego após a crise, comparado com países
como Alemanha, França, Estado Unidos, Japão. Canadá, Austrália, Hong Kong e Suécia, tendo
sido o menos afetado a Alemanha e o mais afetado a Suécia.
5 7 6 - A R ed ução de A l íq u o t a s d o IPI no C o n texto da C r is e .

Regulando as atividades econômicas, e atuando de forma direta (através


da exploração de atividades econômicas) ou de forma indireta (intervindo por
meio normas indutoras), o Estado pode, de forma eficaz, atuar no sentido de
minimizar os efeitos de falhas no mercado, decorrentes de fatores diversos,
como situações de recessão.
Valendo-se da redução de alíquotas do IPI como forma de incentivo, foi
possível ver-se os resultados, tendo o Brasil sentido de forma menos crítica os
efeitos da crise internacional, cujo epicentro deu-se na nação norte-americana.
Foi assim que, repassando-se a redução da tributação para os consumi­
dores, através da redução dos preços dos produtos beneficiados e aumentando
o crédito disponível no mercado, tornou-se possível o aquecimento do consu­
mo interno e, destarte, o menor impacto na produção.
Não é apenas a redução de alíquotas do IPI que torna possível o combate
a situações de fragilidade ou turbulência do mercado, mas sem o devido estí­
mulo à produção e, dessa forma, ao consumo, não haveria como manter-se a
circulação de riquezas e a disponibilidade de recursos.
Pelo exposto, conjuminando-se fatores econômicos e fiscais, dentre estes
a concessão de estímulos à produção, com a redução de alíquotas de impostos
que recaiam sobre produtos considerados chave para o aquecimento do con­
sumo, é possível que se mantenha a economia nacional em patamares de segu­
rança, capazes de assegurar o menor impacto das turbulências econômicas de
nível internacional.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s

ASSO CIAÇÃO Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA). Carta ãa


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L ia n a C arlan P a d il h a - 577

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O Conceito de
"Destinatário" para Fins
de Incidência do
ICMS-Importação

Luís Eduardo Schoueri


Professor Titular de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP;
Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Vice-Presidente do
Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT'); Vice-Presidente da
Associação Comercial de São Paulo (ACSP); e advogado em São Paulo.
Luís E duardo Sch o u eri - 581

I. I n t r o d u ç ã o

Hugo de Brito Machado, um dos juristas mais renomados do Brasil,


há muito tem se dedicado ao exame das relevantes questões que permeiam o
Direito Tributário pátrio. Não sem motivos, o Imposto sobre a Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS) é assunto recorrente em sua vasta obra1,
haja vista as intrincadas indagações que surgem ao se examinar com mais
vagar os aspectos atinentes a tal tributo. No presente artigo, examinarei uma
das facetas desse tributo tão caro ao Ilustre Professor: a incidência do ICMS
sobre as importações.
A principal justificativa para que as importações sejam tributadas pelo
ICMS, tal como ocorre com as mercadorias produzidas no mercado nacional,
reside na necessidade de se garantir ao produto interno competitividade fren­
te ao produto importado.
Como é sabido, a prática no comércio internacional é a desoneração das
exportações, no que se conhece como princípio do destino. Os produtos es­
trangeiros chegam ao Brasil, portanto, livres de imposições tributárias em seus
países de origem.
Assim, para não distorcer a concorrência e tornar os produtos nacionais
competitivos em face dos importados, faz-se necessário igualar a carga tri­
butária incidente sobre o produto importado àquela que onera a produção
nacional2. Foi nesse contexto, portanto, que surgiu a tributação das impor­
tações pelo ICMS.

1 Nesse sentido, mencionam-se as seguintes publicações do autor, dentre tantas outras: As


Multas na Legislação do ICMS. In: Revista Dialética d e D ireito Tributário, n° 161, 2009, p. 28-
34; Solidariedade e Substituição Tributária no ICMS. In: Revista Dialética d e D ireito Tributário,
n° 167, 2009, p. 68-76; O ICMS no Fornecimento de Energia Elétrica: Questões da Seletividade
e da Demanda Contratada. In: Revista Dialética de D ireito Tributário, n° 155, 2008, p. 48-56;
ICMS. Crédito de Bens Destinados ao Ativo Fixo. Lei Complementar 102/2000. In: Revista
Dialética de D ireito Tributário, n° 76, 2002, p. 131-147; e O Princípio da Legalidade e o ICMS
na Emenda 33. In: RO CHA, Valdir de O liveira (org.). G ran d es Q u estõ es A tu ais d o D ireito
Tributário, v. 6, São Paulo: Dialética, 2002, p. 149-170.
2 Misabel Derzi afirma, na atualização da clássica obra de Aliomar Baleeiro: "O ICMS deve ser
neutro, não devendo distorcer as regras da concorrência. É que, como se sabe, a norma adotada
no mercado internacional é aquela de desoneração das exportações, de tal modo que os
produtos e serviços importados chegam ao país do destino livres de todo imposto. Seria agressivo
à regra da livre concorrência e aos interesses nacionais pôr em posição desfavorável a produção
nacional, que, internamente, sofre a incidência do IPI e do ICMS. Daí a necessidade de se fazer
incidir o ICMS sobre a importação das mercadorias em geral, além da incidência do IPI, quando
se tratar de produto industrializado." Cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11a ed.
atual, por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 381.
582 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im po r ta ç ã o

No entanto, desde a sua introdução no ordenamento jurídico-tributário


brasileiro, o ICMS sobre as importações foi alvo de diversas controvérsias
doutrinárias e jurisprudenciais, geralmente por conta de sua regulamentação,
que por vezes parece fugir do quanto disposto em âmbito constitucional.
Nesse sentido, problemática é a questão da determinação do Estado com­
petente para exigir o tributo nas hipóteses em que os bens ou mercadorias não
chegam a entrar fisicamente no estabelecimento do importador. Afinal, são
comuns os casos nos quais as mercadorias ou bens são desembaraçados em um
Estado e enviados diretamente ao estabelecimento de um comprador, locali­
zado em um terceiro Estado, que acertou a compra de tais produtos com o
importador, no mercado interno.
Enquanto a Constituição Federal dispõe que o ICMS caberá ao Estado
onde estiver situado o “estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem
ou serviço”, a Lei Complementar n° 87/96 determina que o tributo caberá ao
“estabelecimento onde ocorrer a entrada física”.
O presente artigo tem como finalidade esclarecer esse aparente conflito
entre a Constituição Federal e a Lei Complementar n° 87/96. Para tanto,
inicialmente será feita uma breve análise do histórico do ICMS-Importação,
seguida do estudo da regra matriz de tal tributo, de acordo com a Lei Com­
plementar n° 87/96. Por fim, tendo por base os critérios de entrada física e
entrada jurídica, buscar-se-á compatibilizar o texto constitucional com o que
foi disposto pelo legislador complementar.

II. O IC M S - I m p o r t a ç ã o

11.1. Breves n o tas acerca d o ICM S sobre as im portações

O então denominado Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM)


incidente sobre as importações somente passou a ter previsão constitucional
com a edição da Emenda Constitucional n° 23/83, que alterou o texto da
Constituição Federal de 1967, já com a redação dada pela Emenda Constitu­
cional n° 1/69. Eis a redação do art. 23 da Constituição de 1967:
“Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impos­
tos sôbre:
Luís E duardo S ch o u eri - 583

II - operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por pro­


dutores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e
do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A
isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legisla­
ção, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele inciden­
te nas operações seguintes.
(...)

§ 11 - O imposto a que se refere o item II incidirá, também, sobre a


entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor,
de mercadoria importada do exterior por seu titular, inclusive
quando se tratar de bens destinados a consumo ou ativo fixo do
estabelecimento.
(...)” (grifei)
Desde aquele momento, vê-se que não havia dúvida acerca do Estado ao
qual caberia cobrar o imposto, já que se firmava a hipótese de incidência pelo
critério da entrada no estabelecimento importador; assim, cabia ao Estado
onde este se localizasse a cobrança do imposto.
Ocorre que se a solução constitucional era precisa quanto ao aspecto
espacial do tributo, acabava ela por implicar a fixação do aspecto temporal no
momento em que se desse a entrada física, não o desembaraço. Em época de
altíssima inflação, não é difícil compreender que os Fiscos estaduais não tole­
rassem a espera até que a mercadoria ingressasse fisicamente no estabeleci­
mento industrial ou comercial, pleiteando fosse o imposto recolhido já no
momento do desembaraço.
Além da evidente vantagem financeira, a antecipação da cobrança para
o momento do desembaraço aduaneiro tinha a vantagem, para o Fisco, de
permitir um controle muito mais eficiente, uma vez que as importações já
se submetiam a estrito controle por parte do Fisco federal: bastaria um
convênio para que este passasse a fiscalizar, também, o recolhimento do
imposto estadual. A pretensão dos Fiscos estaduais em antecipar a incidên­
cia do imposto para o momento do desembaraço aduaneiro, contrariando o
texto da Constituição e do próprio Decreto-Lei n° 406/68, que fazia as
vezes de lei complementar, foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal.
Tantas foram as ocasiões em que este tema veio à tona, que afinal houve por
584 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r t a ç ã o

bem aquele Tribunal editar a Súmula n° S773, que definitivamente fixava o


aspecto temporal do imposto.
Conquanto já presente a discussão acerca do momento em que se daria
por concretizada a hipótese tributária, a Constituição Federal de 1988 não
parecia ter inovado sobre o assunto, pois previu a incidência do ICMS sobre
as importações da seguinte maneira:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir:
I - impostos sobre:
(...)

b) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de


serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação,
ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
(...)

§ 2o- O imposto previsto no inciso I, b, atenderá ao seguinte:


(...)
IX - incidirá também:
a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando
se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento,
assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao
Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da merca­
doria ou do serviço;
Q ”
Uma leitura atenta do dispositivo acima, entretanto, mostra que o cons­
tituinte de 1988, diferentemente de seu antecessor, não vinculou o imposto
à entrada física no estabelecimento. Afinal, enquanto o texto anterior se
referia a uma “entrada em estabelecimento”, dando razão a quem sustentas­
se que apenas com a entrada física é que se daria o imposto, o texto de 1988
foi silente a esse respeito. Refere-se à entrada, mas não impõe seja ela física.
Basta que ocorra uma entrada de um bem e que haja um estabelecimento

3 STF, Súmula n° 577, DJ 03.01.77: "Na importação de mercadorias do exterior, o fato gerador
do imposto de circulação de mercadorias ocorre no momento de sua entrada no estabeleci­
mento do importador."
Luís E duardo Sch o u eri - 585

destinatário. Ficava, assim, o legislador complementar livre para fixar a hi­


pótese tributária, escolhendo entre o critério temporal da entrada física ou
da entrada jurídica.
Apenas para que a evolução constitucional não fique olvidada, resta men­
cionar o texto atual do art. 155, § 2o, IX, “a”, com a redação dada pela Emen­
da Constitucional n° 33/01:
“(...)
IX - incidirá também:
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior, por
pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do
imposto, qualquer que seja sua finalidade, assim como sobre serviço
prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver
situado o domicílio ou estabelecimento destinatário da mercadoria,
bem ou serviço;
(•••)”

Vê-se que a Emenda Constitucional n° 33/01 estendeu a incidência do


ICMS aos casos em que não se trate de operação realizada por comerciante,
titular de estabelecimento. Para o tema de que versa este artigo, a Emenda não
trouxe mudança relevante.
Tendo em vista a complexidade da aplicação do novo regime do ICM S
trazido pela Constituição de 1988, o § 8o do art. 34 do Ato das Disposi­
ções Constitucionais Transitórias (ADCT) determinara que, caso em até
60 dias após a promulgação da Constituição Federal, não fosse editada a
lei complementar necessária à instituição do imposto, então os Estados e o
Distrito Federal deveriam celebrar convênio para regular provisoriamente
a matéria.
De fato, a lei complementar reguladora do ICMS somente veio a ser
editada anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, mais
precisamente em 1996: trata-se da Lei Complementar n° 87/96, conhecida
como Lei Kandir. Portanto, até a entrada em vigor da Lei Complementar n°
87/96, foi o Convênio ICM n° 66/88 que disciplinou a matéria. Contudo,
a competência delegada aos Estados pelo art. 34, § 8o, do A D C T para
regular o ICMS deveria limitar-se às lacunas existentes na legislação. As­
586 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r ta ç ã o

sim, somente os pontos não tratados pelo Decreto-Lei n° 406/68 poderiam


ser objeto de regulamentação específica pelo Convênio ICM n° 66/884.
Não obstante as limitações apontadas, no que tange à incidência do ICMS
nas operações de importação, o art. 2o, inciso I, do Convênio ICM n° 66/88
inovou, ao descrever, como critério espacial, que o tributo incidiria na “entrada
no estabelecimento destinatário ou no recebimento pelo importador de mer­
cadoria ou bem, importados do exterior”.
Este posicionamento provocou questionamentoss visto que o Convê­
nio ICM n° 66/88 estabeleceu, como um dos aspectos temporais da hipó­
tese de incidência do ICM S-Importação, o desembaraço aduaneiro das
mercadorias (“recebimento pelo importador de mercadoria ou bem, impor­
tados do exterior”), enquanto o Decreto-Lei n° 406/68, como visto, deter­
minava que tal aspecto correspondia à entrada das mercadorias no
estabelecimento do importador.
O art. 2o, inciso I, do Convênio ICM n° 66/88 divergia, portanto, do
art. I o, inciso II, do Decreto-Lei n° 406/68, que apenas apontava a incidên­
cia do ICMS na “entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou pro­
dutor, de mercadoria importada do exterior pelo titular do estabelecimento”.
Ou seja: para o Convênio ICM n° 66/88, o legislador ordinário estaria livre

4 "Tributário. Exportação de café em grão. ICMS. Base de cálculo. Quota de contribuição do IBC.
DL 406/68, art. 2, par. 8. Convênio ICM 66/88, art. 11, editado sob invocação do art. 34, par.
8., do ADCT. Princípio da imunidade tributária recíproca. A competência delegada aos Estados,
no art. 34, par. 8, do ADCT, para fixação, por convênio, de normas destinadas a regular
provisoriamente o ICMS, limita-se pela existência de lacunas na legislação. Se a base de calculo
em referência já se achava disciplinada pelo art. 2, par. 8, do DL 406/68, recepcionado pela nova
carta com o caráter de lei complementar, até então exibido (art. 34, par. 5, do ADCT), não havia
lugar para a nova definição que lhe deu o Convênio ICM 66/88 (art. 11), verificando-se, no
ponto indicado, uItrapassagem do linde cravado pela norma transitória e conseqüente invasão
do princípio constitucional da legalidade tributária. Acertado entendimento do acórdão impug­
nado, suficiente para respaldar sua conclusão, dispensando-se, por isso, o exame da tese da
imunidade tributária, sem prejuízo do registro de sua absoluta impertinência, já que não se esta
diante de exigência fiscal dirigida a qualquer dos entes de direito público beneficiários dessa
lim itação ao poder de tributar. N ão-conhecim ento do recurso, com declaração da
inconstitucionalidade do art. 11 do Convênio ICM 66/88, de 14 de dezembro de 1988." (STF,
RE n° 149.922/SP, Tribunal Pleno, Relator Ministro limar Galvão, DJ 29.04.94, p. 9.733)
5 "Esse dispositivo foi objeto de acesa polêmica em razão da interpretação quanto ao aspecto
temporal dessa hipótese de incidência do ICMS. De um lado, os contribuintes defendiam a
aplicação do art. 1o, II, do Dec.-lei 406/1968 e da Súm. 577 do STF, que somente admitiam a
incidência do imposto na entrada da mercadoria no estabelecimento do importador. Os
Estados, por sua vez, entendiam que o imposto era devido por ocasião do desembaraço
aduaneiro, ainda antes do recebimento da mercadoria no estabelecimento do importador." Cf.
PEREIRA, João Luís de Souza. ICMS na importação e na exportação: questões atuais. In: Revista
Tributária e de Finanças Públicas, ano 11, n° 53, 2003, p. 49.
Lufs E duardo S c h o u er i - 587

para escolher entre a entrada física e a entrada jurídica, uma ou outra sendo
suficiente para atender a exigência constitucional.
A Lei Complementar n° 87/96 dirimiu a questão, disciplinando em seu
art. 12, inciso IX, que se considera ocorrido o fato jurídico tributário no
momento do desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do
exterior. Legitimou-se, portanto, a cobrança do ICMS como condição necessária
à realização do desembaraço aduaneiro. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal
declarou que a Súmula n° 577 não é aplicável às importações de mercadorias
realizadas após o advento da Constituição Federal de 19886.
11.2. A REGRA MATRIZ DO IC M S-lM PO R TA Ç Ã O SEGUNDO A LEI
C o m plem en ta r n ° 87/96

Deve-se a Paulo de Barros Carvalho o mérito de ter introduzido nos


estudos do Direito Tributário a expressão “regra matriz de incidência tributá­
ria”, buscando captar, num só momento, a hipótese de incidência e a relação
jurídico-tributária que dali se instaura7. A regra matriz é apresentada como
um método, um recurso para a compreensão do fenômeno jurídico-tributá-
rio. Partindo da premissa segundo a qual toda norma jurídica tem estrutura
lógica de um juízo hipotético, ao qual é ligada uma conseqüência jurídica,
quando acontecido o fato precedente, chega-se ao esquema proposto.
No polo antecedente, o esquema da regra matriz tributária aponta a
descrição hipotética de uma situação que, uma vez concretizada, motivará o
surgimento da relação em questão. Na formulação da regra matriz de inci­
dência, o jurista busca identificar critérios que, uma vez presentes, darão por
satisfeita (concretizada) a hipótese, identificando-se um “fato jurídico tribu­
tário”. Para Paulo de Barros Carvalho, tais critérios são o material (verbo +
complemento), o espacial e o temporal.

6 "EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - ICMS - MERCADORIAS IMPORTADAS - FATO GERA­


DOR - DESEMBARAÇO ADUANEIRO - CF, ART. 155, § 2o, IX, "a" - RECURSO IMPROVIDO. - A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em tema de importação, reconhece que o fato
gerador pertinente ao ICMS concretiza-se no momento da entrada, no Brasil, da mercadoria
importada, revelando-se legítima a cobrança desse imposto estadual, quando da efetivação do ato
de desembaraço aduaneiro. Precedentes. - A Súmula 577/STF - considerada a norma inscrita no
art. 155, § 2o, IX, "a", da Carta Federal - não mais se aplica às importações de mercadoria realizadas
a partir da vigência da Constituição de 1988. Precedentes." (STF, Al n° 299.800 AgR/PE, Segunda
Turma, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 18.10.02, p. 53)
7 Cf. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 146 e ss.
588 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r ta ç ã o

Por sua vez, o prescritor da regra matriz de incidência apresenta a relação


jurídica que se instaura a partir da concretização do fato gerador. Essa relação
tem a natureza obrigacional, implicando que o sujeito passivo tem a obrigação
de pagar um valor ao sujeito ativo. Surgem, assim, os critérios pessoal (i.e.: as
pessoas que se vinculam pela relação jurídica assim estabelecida —sujeitos
ativo e passivo) e quantitativo (o montante a ser recolhido, expresso pela base
de cálculo e a alíquota).
É certo que somente com o estudo da lei ordinária de cada Estado Mem­
bro se pode definir, com exatidão, a regra matriz do ICMS; o estudo da lei
complementar, entretanto, já oferece guia seguro para conhecer seus contor­
nos, visto que o art. 146, III, “a”, da Constituição Federal atribui àquele ins­
trumento legislativo a tarefa de definir o “fato gerador” dos impostos
discriminados na Constituição.
Não é o caso de esmiuçar, no presente trabalho, todos os critérios apon­
tados pelo legislador complementar na construção dos contornos da regra
matriz de incidência do ICMS-Importação. Entretanto, é impressionante o
cuidado metodológico do legislador complementar quando versou sobre o
assunto, tratando de cada um dos critérios acima mencionados de modo siste­
mático, dedicando um dispositivo legal para cada um deles.
Com efeito, da mera leitura da lei complementar já se encontram os
seguintes critérios da regra matriz de incidência do ICMS-Importação:

Critério Dispositivo da Lei Complementar n° 87/96

Art. 2 o O imposto incide sobre:

§ 1 ° 0 imposto incide também:


Material0 I - sobre a entrada de m ercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa
física ou ju ríd ica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto,
qualquer que seja a sua finalidade;

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:


Temporal (...)
IX - do desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do
exterior;

8 Por não ser o foco do presente artigo, não se reproduzem os dispositivos referentes a isenções
ou reduções de base de cálculo, relevantes para a melhor compreensão da regra matriz.
Luís E duardo S c h o u er i - 589

Art. 1 1 . 0 local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do


imposto e definição do estabelecimento responsável, é:
1- tratando-se de m ercadoria ou bem:
Espacial (...)
d) importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física;
e) importado do exterior, o do dom icílio do adquirente, quando não
estabelecido;

Art. 13. A base de cálculo do imposto é:


(...)
V - na hipótese do inciso IX do art. 12, a soma das seguintes parcelas:
a) o valor da mercadoria ou bem constante dos documentos de importação,
Quantitativo
observado o disposto no art. 14;
(base de cálculo)
b) imposto de importação;
c) imposto sobre produtos industrializados;
d) imposto sobre operações de câmbio;
e) quaisquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras;

Art. 4oC on trib u in teé(...).


Parágrafo único. É também contribuinte a pessoa física ou jurídica que,
Pessoal
mesmo sem habitualidadeou intuitocom ercial:
(contribuinte)
I - importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua
finalidade;

Do quadro apresentado, merece nota a distinção entre os critérios espa­


cial e temporal: enquanto o primeiro leva em consideração a entrada física, o
último toma por base o desembaraço aduaneiro. Ou seja: a entrada física é
irrelevante para a determinação do critério temporal do tributo, apenas sendo
apontada quando da definição do critério espacial.
Dada a técnica legislativa de dedicar dispositivos legais para cada um dos
critérios, não se há de utilizar o art. 12 senão para sua finalidade (definição do
critério temporal), já que para o critério espacial, o legislador complementar
dedicou outro dispositivo (o art. 11).
11.3. E n tr a d a F ísic a o u E n tr a d a J u r íd ic a

Do que se viu acima, verifica-se que quando se editou a Lei Kandir havia
questionamento acerca do aspecto temporal do ICMS-Importação: se seria
necessária a entrada física no estabelecimento importador, ou não. A Lei Kan­
dir tratou de fixar aquele aspecto temporal, elegendo o desembaraço aduanei­
ro como momento adequado para a incidência.
Afinal, o texto constitucional de 1988 não era claro com relação à entra­
da física. Ao contrário, a modificação em relação ao texto constitucional ante­
rior sugere que o constituinte não via na “entrada no estabelecimento” a
importância que fora dada pela doutrina e jurisprudência na ordem anterior.
590 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r ta ç ã o

Relevante, no texto anterior, era apenas que houvesse uma “entrada” e que se
conhecesse o “destinatário”.
O desembaraço aduaneiro é o momento a partir do qual se considera
ocorrida a entrada do bem no território nacional.
A relevância do desembaraço aduaneiro se evidencia quando se considera
o imposto de importação: este incide quando da entrada do produto importa­
do no território nacional, sendo o desembaraço aduaneiro o critério temporal
escolhido pelo legislador para que se considere tal ingresso9. Embora houvesse
quem pretendesse encontrar no ingresso físico no território o critério consti­
tucionalmente exigido para que se desse aquela entrada, a jurisprudência pa­
cificou-se no sentido de que é com o desembaraço aduaneiro que se dá o fato
jurídico tributário, sendo irrelevante o momento da entrada física no territó­
rio nacional10.
Acertada é a jurisprudência. Não se poderia conceber fosse o ingresso
físico suficiente para que se desse a importação de bens; se assim se con­
cluísse, então entender-se-ia que a cada vez que um avião cargueiro atra­
vessasse o território nacional em direção a um país vizinho, haveria
importação de bens, sujeita à tributação. O exemplo é absurdo, mas revela
a necessidade de que se reconheça que a importação a que se refere o
constituinte para que se dê o imposto de importação há de ser algo além
da mera entrada física no território nacional. Importa que o produto passe
a integrar a economia nacional. Exige-se que, juridicamente, aquele bem,
fisicamente ingressado noutro instante, passe a ser parte dos bens disponí­
veis no mercado brasileiro. Esse momento, de natureza jurídica, é o do
desembaraço aduaneiro. Com esse procedimento, a mercadoria importada
passa a integrar a economia nacional.

9 De fato, consoante estabelece o caput do art. 1o do Decreto-Lei nD 37/66, "o Imposto sobre a
Importação incide sobre mercadoria estrangeira e tem como fato gerador sua entrada no
Território Nacional."
10 "IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. FATO GERADOR. MERCADORIA DESPACHADA PARA CONSU­
MO. CÓ D IGO TRIBUTÁRIO NACIONAL, ART. 19. DECRETO-LEI 37/66 (COMPATIBILIZAÇÃO)
- Inexistência de contradição ou antinomia entre a norma genérica do art. 19 do CTN e a norma
específica do art. 23 do DL 37/66, posto que a caracterização de um necessário momento
naquela não previsto, e o condicionamento de indeclináveis providências de ordem fiscal, não
a desfiguram nem contraditam, porém, a complementam para tornar precisa, no espaço, no
tempo e na circunstância, a ocorrência do fato gerador. Recurso extraordinário conhecido mas
não provido." (STF, RE n° 91.337/SP, Tribunal Pleno, Relator Ministro Cordeiro Guerra, DJ
20.02.81, v. 1200-02, p. 621)
Luís E d u a r d o S c h o u e r i - 591

Quando se examina a Lei Kandir, vê-se que igual raciocínio pode ser
estendido ao ICMS-Importação: o legislador complementar entendeu que,
já com o desembaraço aduaneiro, o bem importado passa a integrar o estabe­
lecimento importador.
É certo que, fisicamente, o desembaraço não implica entrada da merca­
doria no estabelecimento; juridicamente, entretanto, com o desembaraço o
bem já faz parte do patrimônio do importador e é imputado ao estabeleci­
mento que efetua a importação.
Eis um ponto que não deve passar despercebido: enquanto na lingua­
gem coloquial a expressão “estabelecimento” se vincula a um local físico, im­
plicando, daí, que a entrada somente poderia se dar por um movimento físico,
a expressão “estabelecimento” representa, juridicamente, uma universalidade à
disposição do comerciante.
O art. 1.142 do Código Civil prioriza esse aspecto, ao conceituar estabe­
lecimento como “todo complexo de bens organizado, para exercício da em­
presa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Segue, nesse diapasão, a
tradição do sistema brasileiro. Já J.X. Carvalho de Mendonça se referia ao
estabelecimento comercial como universalidade de fato, que encontra em sua
destinação a sua unidade11. No Código Civil, a universalidade é reconhecida
juridicamente, já que seu art. 1.143 admite que seja o estabelecimento “obje­
to unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos,
que sejam compatíveis com a sua natureza”.
Desta forma, a entrada no estabelecimento já não se dá, apenas, como
um fenômeno físico, mas também pode ser vista como fato jurídico, reputado
perfeito com o desembaraço. Afinal, com o desembaraço aduaneiro, o bem é
nacionalizado e imputado ao estabelecimento importador. É assim que se
justifica o raciocínio do legislador complementar, ao eleger o desembaraço
como critério temporal para a exigência do ICMS-Importação.
A tal raciocínio, poder-se-ia opor o argumento de que conquanto a le­
gislação comercial admita um conceito amplo de estabelecimento, a legislação
tributária adota conceito mais restrito. A própria Lei Kandir, aliás, refere-se a
um “local” ao definir estabelecimento, no § 3o do art. 11:

11 Cf. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, v. V, livro III, 1a parte, 3a ed. Rio de janeiro: Freitas
Bastos, 1938, p. 19.
592 - O C o n c e it o de " D e s tin a t á rio " para Fin s de In cid ê n cia d o IC M S -Im p o rta ç ã o

“Art 11.
(...)

§ 3o Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local,


privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde
pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter tem­
porário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas
mercadorias (...)”
Uma análise mais detalhada da legislação, entretanto, revelará que mesmo
nas operações internas, a circulação física não supera o fenômeno jurídico para
efeito de incidência. Basta ter em conta os casos em que se exige a emissão de
notas fiscais refletindo operações simbólicas, ao lado de outras emitidas para
acompanhar as mercadorias, e ver-se-á a relevância das operações jurídicas.
Assim, se uma empresa adquire matéria-prima e solicita ao fornecedor que
ela seja entregue diretamente no estabelecimento de outrem, contratado para
industrializar o bem (industrialização por encomenda), haverá, fisicamente, um
único trânsito entre o fornecedor e o industrializador, embora o legislador exija
a emissão de nota fiscal simbólica do fornecedor em favor do adquirente da
mercadoria e outra, igualmente simbólica, de remessa de industrialização.
Vê-se, a partir do exemplo citado, que é da sistemática do ICMS que se
considerem as operações jurídicas, em detrimento dos fenômenos físicos que
possam ser verificados.
Coerente se revela o legislador complementar quando despreza a entrada
física e prestigia a jurídica para o critério temporal. Por outro lado, ao definir
como critério temporal o desembaraço aduaneiro, a Lei Kandir acabou por
tornar irrelevante, juridicamente, o momento da efetiva entrada do bem no
estabelecimento do destinatário, já que naquele momento não haverá de se
cogitar de fato jurídico tributário.
O legislador complementar, com vista a resolver o tema do momento em
que se dá por concretizada a hipótese tributária, acabou por deixar de lado o
critério da entrada física, substituindo-o pelo momento do desembaraço: na­
quele momento, considera o legislador complementar entrada a mercadoria
no estabelecimento. O desembaraço é hipótese escolhida pelo legislador para
que se dê por ocorrida a entrada.
Se para a definição do critério temporal não assumiu qualquer relevo a
entrada física, o mesmo não se pode dizer quanto ao aspecto espacial, visto
Lufs E d u a r d o S c h o u e r i - 593

que o legislador complementar não seguiu idêntico critério, optando por se


referir à entrada física.
Esta distinção não pode ser deixada de lado: como já ressaltado acima, o
art. 12, versando sobre o critério temporal, refere-se à entrada jurídica (de­
sembaraço), enquanto o art. 11, que busca o critério espacial, prestigia a en­
trada física. Ao jurista, cabe investigar as razões de tal distinção.
Passa-se, por isso, a examinar qual o conteúdo possível e o alcance da refe­
rência à entrada física, previsto na lei complementar. Tal análise será iniciada
pela exegese constitucional.
11.4. O I C M S - I m p o r t a ç ã o e c o n c e it o de " d e s t in a t á r io "

p r e v is t o na C o n s t it u iç ã o

Nas operações de importação, não são raras as situações em que o impor­


tador promove o desembaraço aduaneiro das mercadorias importadas e as re­
mete diretamente ao estabelecimento de um terceiro, comprador de tais
produtos, em negociação que foi acertada no mercado interno, sem qualquer
relação com o exportador no exterior.
Afinal, não haveria sentido em se exigir que as mercadorias fossem enviadas
ao estabelecimento do importador para que, então, pudessem ser remetidas ao
estabelecimento do comprador, o qual, muitas vezes, se situa em outro Estado.
Tal hipótese criaria custos de transporte desnecessários, que facilmente poderiam
ser evitados pela remessa direta dos produtos ao comprador final.
Como bem pontuou José Eduardo Soares de Melo, não é razoável que
um importador situado no Estado A tenha que desembaraçar os bens em seu
próprio Estado, fazer com que o bem ingresse fisicamente em seu estabeleci­
mento no Estado A, para só então remetê-lo ao destinatário situado em um
Estado B12.
Assim, nas situações aventadas, não serão coincidentes o Estado do esta­
belecimento do importador e o Estado do estabelecimento do comprador da
mercadoria no mercado interno, onde ocorre a entrada física desta. Em tais
casos, é relevante determinar para qual dos Estados mencionados será devido
o ICMS-Importação.

12 Cf. ICMS na importação em face da Constituição Federal e da Lei Complementar. In: Revista
Dialética de Direito Tributário, n° 15, 1996, p. 53.
594 - O C o n c e it o de " D e s t in a tá rio " para Fin s de In c id ê n cia d o IC M S -Im p o rta ç ã o

A resposta é dada pelo próprio texto constitucional, o qual dispõe, no


art. 155, § 2o, inciso IX, alínea “a”, que o ICMS caberá ao Estado onde estiver
situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem
ou serviço.
É bem compreensível o raciocínio do constituinte: se o imposto incide
sobre a importação (critério material), seu contribuinte (critério pessoal) ha­
verá de ser o estabelecimento destinatário da mercadoria, bem ou serviço. Ora,
na repartição de competências entre os Estados da Federação, pode o consti­
tuinte utilizar, como elemento de conexão, o aspecto material ou o pessoal.
Num e noutro caso, não há como escolher outro Estado senão aquele onde se
encontra o estabelecimento destinatário, já que é ali que se completa a hipó­
tese descrita pelo constituinte (entrada) e também ali está o contribuinte.
Nesse passo, fica evidente o conceito de “estabelecimento destinatário”
trazido pela Constituição Federal, a fim de determinar em qual dos Estados
estaria localizado tal estabelecimento e que, portanto, seria competente para
cobrar o ICMS, em uma importação seguida de revenda na qual a mercadoria
é encaminhada diretamente ao comprador no mercado interno.
Ao usar o termo “destinatário” no art. 155, § 2o, IX, “a”, o constituinte
não cogita das demais operações ocorridas no mercado interno, até mesmo
porque o produto importado pode ser revendido sucessivas vezes, o que difi­
cultaria a determinação de seu destinatário último. Este em nada se relaciona
com a situação descrita na hipótese de incidência.
Antes, por “destinatário” do produto importado deve-se entender aquele
que toma parte na operação de importação, contratando a compra do pro­
duto com o exportador no exterior: trata-se do importador, que negocia
questões como preço, quantidades e demais condições do negócio com a
parte no exterior.
É ao importador que a mercadoria do exterior é destinada; é o nome do
importador que consta da Declaração de Importação: portanto, deve ser reco­
lhido o ICMS ao Estado em que está localizado seu estabelecimento. É o
importador o responsável por fazer nascer a importação, ao encomendar de­
terminada mercadoria do exterior e celebrar o contrato de compra e venda
internacional com o exportador. É o importador que pode exigir do exporta­
dor o cumprimento da obrigação, caso aquele não o faça espontaneamente;
também é dele que será exigido o preço, na hipótese de não vir a pagá-lo.
Luís E d u a r d o S c h o u e r i - 595

Se o ICMS incide sobre a importação, o importador é o seu contribuin­


te, i.e., aquele que, nos termos do art. 121, parágrafo único, I, do Código
Tributário Nacional, tem “relação pessoal e direta com a situação que consti­
tua o respectivo fato gerador”. Se o contribuinte do imposto é o importador,
não há como cogitar seja o imposto cobrado por outro Estado, senão aquele
onde se encontra o importador.
Em suma, é o importador, e somente ele, quem assume os direitos e
obrigações decorrentes da celebração do contrato de compra e venda com o
exportador no exterior13.
Ainda que as mercadorias importadas não transitem fisicamente pelo
estabelecimento do importador, sendo enviadas diretamente a um estabeleci­
mento terceiro, com o qual tenha sido contratada a revenda dos produtos, não
haverá aí uma mudança no destinatário da importação, que permanece como
sendo o importador. O terceiro não é o importador. Não foi ele quem intro­
duziu a mercadoria no território nacional. Ocorrem dois negócios jurídicos
distintos - importação e revenda - sendo que este último não tem qualquer
influência sobre o primeiro.
Nesse mesmo sentido, cumpre mencionar o entendimento de Paulo de
Barros Carvalho14:
“Caso a importação tenha sido feita para terceiros, mediante contratação
de revenda do bem importado, é desnecessário o ingresso físico da
mercadoria no estabelecimento do importador, podendo esta ser direta­
mente remetida ao adquirente interno. Neste caso, temos duas opera­
ções: uma de importação; outra, interna. E sendo o destino jurídico do
produto importado o critério de determinação do sujeito ativo, esse per­
manece inalterado em face de negócios jurídicos posteriores.”
Quando da definição do critério temporal, já se viu acima, a Lei Kandir
sequer cogita da entrada física como critério relevante para a incidência do
ICMS-Importação: basta o desembaraço aduaneiro para que se dê por ocor­
rido o fato jurídico tributário. A entrada, enquanto critério temporal, foi subs­
tituída pelo desembaraço aduaneiro. A entrada física apenas aparece no critério

13 Cf. O LiVEIRA, Júlio M. de; GOMES, Victor. ICMS devido na Importação - Fundap - Competên­
cia Ativa. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n° 35, 1998, p. 109.
14 Cf. op. cit. (nota 7), p. 228.
5 9 6 - O C o n c e it o d e " D e s t in a t á r io " p a r a F ins d e I n c id ê n c ia d o IC M S - I m p o r t a ç ã o

espacial e, por conta disso, passa-se a analisá-la. Nos termos constitucionais,


entretanto, importa frisar que a identificação do estabelecimento importador
- esta sim - é que ganha relevância, já que apenas a partir de sua determinação
é que se conhecerá a competência tributária.
Consoante já se mencionou, é cada vez mais comum que mercadorias
sejam importadas por um estabelecimento localizado no Estado A, de­
sembaraçadas em porto ou aeroporto no Estado B e enviadas diretamente
a um estabelecimento comprador no Estado C. Esse tipo de operação é
justificado pela agilidade e pela economia que a atividade comercial exige
de quem a pratica.
A revenda das mercadorias importadas e sua remessa direta ao compra­
dor no mercado interno são situações que nada têm a ver com a importação de
tais mercadorias. Em outras palavras, a compra e venda realizada no mercado
interno não tem o condão de alterar as partes da importação: o destinatário da
importação, a que se refere o texto da Constituição Federal, continuará sendo
o importador, isto é, aquele cujo nome consta na Declaração de Importação
relativa à operação, qualquer que seja o destino que se venha a dar no mercado
interno às mercadorias importadas.
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar situa­
ções semelhantes a esta ora descrita, em que ocorre a importação e remessa
direta das mercadorias a terceiro, que adquiriu as mercadorias, do importador,
no mercado interno.
No julgamento do Recurso Extraordinário n° 299.079/RJ15, consignou-se
que o Estado competente para exigir o ICMS sobre as importações é o do estabe­
lecimento do importador, que é o destinatário jurídico da mercadoria.
Cumpre transcrever trecho do voto do Ministro Carlos Britto, relator do
acórdão, em que a questão é perfeitamente esclarecida:

15 "EMENTA: RECURSO EXTRA O RD IN Á RIO . TR IBU TÁ R IO . IM POSTO SOBRE CIR CU LA ÇÃ O


DE M ERCADORIAS E SERVIÇOS. ICMS. IM PORTAÇÃO. SUJEITO ATIVO. ALÍNEA "A" DO
INCISO IX DO § 2o D O ART. 155 DA M AGNA CARTA. ESTABELECIMENTO JU R ÍD IC O DO
IM PO RTAD O R. O sujeito ativo da relação jurídico-tributária do ICMS é o Estado onde
estiver situado o dom icílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria
(alínea "a" do inciso IX do § 2o do art. 155 da Carta de Outubro); pouco importando se o
desembaraço aduaneiro ocorreu por meio de ente federativo diverso. Recurso extraordiná­
rio desprovido." (STF, RE n° 299.079/RJ, Primeira Turma, Relator Ministro Carlos Britto, DJ
1 6 .0 6 .0 6 , p. 20)
Luís E d u a r d o S c h o u e r i - 597

“9. De mais a mais, o dispositivo constitucional, ao se referir a ‘estabele­


cimento destinatário’, não especifica o tipo de estabelecimento: se é
final ou se não é.
10. Dessa forma, quando a operação se inicia no Exterior, o ICMS é
devido ao Estado em que está localizado o destinatáriojurídico do bem,
isto é, o importador. (...)”
Resta evidente o entendimento de que as operações ocorridas no mercado
interno após a nacionalização de mercadorias importadas em nada interferem
na determinação do destinatário jurídico da importação, que é somente um.
E indiferente, para tais fins, que a mercadoria tenha sido desembaraçada
em segundo Estado, e remetida diretamente para terceiro Estado: o importa­
dor, sujeito do contrato de compra e venda internacional celebrado com o
exportador no exterior, permanece sendo o destinatário das mercadorias im­
portadas, independentemente do fato de tais mercadorias entrarem ou não
em seu estabelecimento16.
Deve-se mencionar que o Supremo Tribunal Federal repetiu esse enten­
dimento no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n°
396.859/RJ17, julgado em 2004.
11.5. A L ei C o m plem en ta r n° 87/96 e o c r it é r io da

EN T R A D A F ÍS IC A

Conforme se explicitou, a Constituição Federal é clara ao dispor que o


ICMS sobre as importações é devido ao Estado em que se localiza o estabele­
cimento destinatário. Demonstrou-se, desta forma, que o estabelecimento
destinatário, para fins de aplicação do dispositivo, é o estabelecimento do im­

16 "Nos termos desse entendimento, o que realmente importa para a identificação do sujeito ativo
na situação em questão é o local em que se encontra estabelecido o efetivo responsável
jurídico pela operação realizada, sendo irrelevante o fato de o desembaraço aduaneiro da
mercadoria importada ter ocorrido em outro Estado, bem como o de a mercadoria ter sido
remetida diretamente para empresa que a adquiriu da importadora e sediada no Estado em que
ocorreu o desembaraço ou em terceiro ente federativo." Cf. COSTA, Rafael Santiago. ICMS/
Importação: entendimento do STF acerca da legitimidade ativa. In: Revista Dialética de Direito
Tributário, n° 133, 2006, p. 91-92.
17 "EMENTA: O ICMS incidente na importação de mercadoria é devido ao Estado onde estiver
localizado o destinatário jurídico do bem, isto é, o estabelecimento importador: precedente
(RE 299.079, Carlos Britto, Inf/STF 354)" (STF, RE n° 396.859 AgR/RJ, Primeira Turma, Relator
Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 10.12.04, p. 36)
5 9 8 - O C o n c e it o d e " D e s t in a t á r io " para F ins d e I n c id ê n c ia d o IC M S - I m p o r t a ç ã o

portador, como parte do contrato de compra e venda internacional celebrado


com o exportador, no exterior.
No entanto, a Lei Complementar n° 87/96, ao dispor sobre o local da
operação para fins de cobrança do ICMS na importação e determinação do
estabelecimento responsável pelo seu recolhimento, parece, em um primeiro
momento, ter-se afastado do parâmetro constitucional. Vejamos:
“Art. 11.0 local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobran­
ça do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:
I - tratando-se de mercadoria ou bem:
a) o do estabelecimento onde se encontre, no momento da ocorrência do
fato gerador;
b) onde se encontre, quando em situação irregular pela falta de docu­
mentação fiscal ou quando acompanhado de documentação inidônea,
como dispuser a legislação tributária;
c) o do estabelecimento que transfira a propriedade, ou o título que a
represente, de mercadoria por ele adquirida no País e que por ele não
tenha transitado;
d) importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a en­
trada física;
e) importado do exterior, o do domicílio do adquirente, quando não
estabelecido;
(...)”(grifei)
Nota-se que a Lei Complementar n° 87/96, ao determinar que o local
da prestação na hipótese de mercadoria ou bem importado será o do estabele­
cimento onde ocorrer a entrada física de tal mercadoria ou bem, sendo o ICMS
devido ao Estado em que está localizado referido estabelecimento, parece se
distanciar do quanto disposto na Constituição sobre o assunto18.

18 "Conquanto numa primeira leitura o tratamento dispensado às importações aparentemente


esteja em conformidade com a Constituição, um exame mais detido revela que, ao indicar o
estabelecimento onde ocorra a entrada física da mercadoria ou bem como local da operação
de importação, inovando em relação às normas anteriormente vigentes, a lei complementar
(art. 11, "d") enseja inconsistências que impedem a eficácia do sistema de arrecadação do
ICMS nas hipóteses em que a mercadoria ou bem sejam importados por estabelecimento de
determinado contribuinte e, por qualquer razão, remetidos diretamente para local diverso,
Luís E d u a r d o S c h o u e ri - 599

De fato, conforme reproduzido acima, o art. 155, § 2o, inciso IX, alínea
“a”, dispõe que o ICMS incidirá “sobre a entrada de bem ou mercadoria impor­
tados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte
habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o
serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o
domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço
Ora, a Constituição Federal é clara ao estabelecer que o ICMS é devido
ao Estado onde estiver localizado o estabelecimento do destinatário da merca­
doria, em nenhum momento determinando que o imposto deve ser recolhido
ao Estado em que se localiza o estabelecimento onde ocorrer a entrada física
do produto. E, como se apontou, na economia moderna cada vez menos o
estabelecimento do destinatário e o estabelecimento em que ocorre a entrada
física da mercadoria irão coincidir.
Estaria a Lei Complementar n° 87/96, desta forma, em dissonância com
o texto constitucional?
Para demonstrar a conformidade do art. 11, inciso I, alínea “d”, da Lei
Complementar n° 87/96 com o quanto disposto no art. 155, § 2o, inciso
IX, alínea “a”, da Constituição Federal, far-se-á uma breve digressão a res­
peito do papel da lei complementar em matéria tributária, sobretudo com
relação ao ICMS.
É o art. 146 da Constituição que determina as funções da lei comple­
mentar na seara tributária, verbis:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária,
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos
impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos
geradores, bases de cálculo e contribuintes;

após o desembaraço aduaneiro." Cf. FUNARO, Hugo. ICMS - a questão da entrada física da
mercadoria ou bem no estabelecimento importador. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n°
108, 2004, p. 95.
6 0 0 - O C o n c e it o d e " D e s t in a t á r io " pa r a F ins d e I n c id ê n c ia d o IC M S - I m p o r t a ç ã o

(•••)”
Por sua vez, o art. 155, § 2o, inciso XII, da Constituição Federal explici­
ta o papel da lei complementar especificamente no que tange ao ICMS:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir im­
postos sobre:
(...)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre presta­
ções de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no
exterior;
(...)
§ 2o O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
XII - cabe à lei complementar:
(...)
d) fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento
responsável, o local das operações relativas à circulação de mercado­
rias e das prestações de serviços;
(.••)”
Em suma, a partir da leitura conjunta dos dois artigos, pode-se dizer que
em matéria de ICMS, a lei complementar deverá cumprir, dentre outros, os
seguintes papéis:
(i) dirimir conflitos de competência;
(ii) definir “fato gerador”, base de cálculo e contribuintes;
(iii) fixar, para efeito de cobrança do imposto e definição do estabele­
cimento responsável, o local das operações relativas à circulação
de mercadorias e às prestações de serviços.
Cabe aqui perguntar: quais são os limites que devem ser observados pelo
legislador complementar no desempenho das funções que lhe foram atribuí­
das pela Constituição Federal? Poderá o legislador complementar, em matéria
de ICMS, dispor como quiser sobre “fatos geradores”, base de cálculo, confli­
tos de competência ou definição do local das operações?
Lu(s E duardo S ch o u er i - 601

Evidentemente não. A lei complementar somente terá o espaço que a


própria Constituição Federal a ela atribuir. Em outras palavras: situações há
que a lei complementar não poderá definir, por já estarem tais situações
definidas pela Constituição. A lei complementar somente tem espaço onde
houver conflito, dúvida, situações para as quais o texto constitucional não
oferece solução.
Assim, onde não houver conflito de competência, ou existir conflito de
competência eventualmente dirimido pela Constituição, não será papel da lei
complementar “dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária,
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”, ainda que seja
essa, em princípio, sua função.
O papel da lei complementar somente se cumpre quando houver neces­
sidade para tanto. E quando é necessário à lei complementar definir? Essen­
cialmente, quando há dúvida a respeito de determinada questão.
Voltando especificamente à questão do local da operação para fins de
incidência do ICMS-Importação. O art. 155, § 2o, IX, “d”, da Constituição
esclarece caber à lei complementar “fixar, para efeito de sua cobrança e defini­
ção do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação
de mercadorias e das prestações de serviços”.
Contudo, o próprio texto constitucional, no art. 155, § 2o, IX, “a”, deter­
mina a incidência do ICMS sobre mercadorias e bens importados do exterior,
“cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabele­
cimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”.
Aparentemente, a Constituição já definiu, para fins de cobrança do
ICMS-Importação, qual é o local da operação: será o Estado em que estiver
localizado o estabelecimento do destinatário da mercadoria, que, como se viu,
é o importador.
No entanto, veio a Lei Complementar n° 87/96, por meio de seu art.
11,1, “d”, para determinar que o local da operação, para efeitos da cobrança
do ICM S sobre as importações, é o do “estabelecimento onde ocorrer a
entrada física”.
Como deve ser lida a Lei Complementar n° 87/96, desta forma, con-
siderando-se que ela traz critério aparentemente incompatível com o crité­
rio constitucional?
602 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r t a ç ã o

Somente é possível chegar à interpretação correta do art. 11, I, “d”, da


Lei Kandir, partindo do pressuposto de que a função da lei complementar é,
justamente, disciplinar aquilo que a Constituição não tratou.
Portanto, o critério objetivo da entrada física, previsto no art. 11 da Lei
Complementar n° 87/96, somente será cabível se houver dúvida com relação
ao estabelecimento destinatário.
Ou seja: nos termos constitucionais, o critério espacial da regra ma­
triz do ICMS deve vincular-se ao destinatário. A lei complementar não
poderia afastar-se de tal mandamento. Não se pode conceber tenha a lei
complementar eleito critério espacial desvinculado do destinatário, sob
pena de inconstitucionalidade.
O espaço que se abre para a lei complementar é, apenas, na hipótese de
haver mais de um destinatário. Nesse caso, surge o conflito de competência a
que se refere o constituinte, já que qualquer dos destinatários cumpriria o
critério constitucional. A Constituição Federal vincula o imposto ao estabele­
cimento destinatário, mas não trata da hipótese de serem muitos os destinatá­
rios na mesma importação. Nesse caso —e apenas aí —surge o papel da lei
complementar: ela escolhe, dentre os destinatários, aquele onde ocorrer a
entrada física do bem.
Um exemplo ajuda a esclarecer esse ponto. Na economia moderna, é
razoável e comum que vários estabelecimentos de uma determinada empresa
atuem em conjunto em uma importação. Imagine-se, por exemplo, a impor­
tação de um caminhão de entregas, que servirá aos vários estabelecimentos da
empresa, localizados em diversos Estados, e que será financiada por todos
estes estabelecimentos.
Em uma situação como a que se apresenta, como determinar o local da
operação e, consequentemente, o Estado a que caberá o ICMS?
O critério constitucional, aqui, não é suficiente. Afinal, todos os estabe­
lecimentos podem ser considerados destinatários do caminhão, já que fizeram
surgir o contrato de compra e venda internacional. Todos os estabelecimentos
podem ser reputados importadores do bem.
Deve-se recorrer, portanto, ao critério trazido pela Lei Complementar
n° 87/96, no exato cumprimento de seu papel de dirimir dúvidas e confli­
tos: não sendo possível determinar quem é o importador, levar-se-á em con­
ta o critério objetivo e facilmente mensurável, que é a entrada física do bem
no estabelecimento.
Luís E duardo S ch o u eri - 60 3

Do mesmo exemplo, entretanto, já fica notório que a escolha da lei com­


plementar se fez entre os destinatários. Não se poderia interpretar o dispositivo
da lei complementar no sentido de se chegar a um estabelecimento que não
seja o destinatário da mercadoria, sob pena de inconstitucionalidade. Assim, o
fato de o referido caminhão de entregas levar mercadorias a estabelecimentos
de terceiros não torna estes destinatários daquela importação, já que nada têm
a ver com a operação de comércio exterior. A entrada física do caminhão é fato
alheio à importação.
Desta forma, a Lei Complementar n° 87/96 e a Constituição Federal
não apresentam textos incompatíveis no que tange à determinação do local da
operação para fins de incidência do ICMS-Importação. Isso porque somente
será aplicável o texto da Lei Kandir quando, por existir mais de um destina­
tário possível, não for suficiente o texto da Constituição.
II.6 . O LOCAL DO DESEMBARAÇO E A ENTRADA JURÍDICA

Tendo em vista a importância dada ao desembaraço aduaneiro para a


definição do critério temporal da regra matriz de incidência, importa esclare­
cer sua irrelevância para os efeitos do critério espacial.
A demonstração é imediata do texto constitucional, já que o imposto é
devido, nos termos constitucionais, “ao Estado onde estiver situado o domicí­
lio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”.

II I. C o n c l u s ã o

O “destinatário” da mercadoria ou bem importado, referido na Consti­


tuição Federal ao tratar do ICMS incidente sobre as importações, é aquele
que toma parte na operação de importação, ao contratar a compra do produto
com o exportador no exterior.
Assim, de acordo com a Constituição Federal, o critério espacial da
regra matriz do ICMS deve vincular-se ao destinatário. A lei complementar
não poderia afastar-se de tal mandamento. É irrelevante, para fins de deter­
minação do critério espacial, o momento do desembaraço aduaneiro: este
somente importa para fins do critério temporal da regra matriz de incidên­
cia do ICMS-Importação.
Nesse sentido, deve-se entender que a Lei Complementar n° 87/96, ao
determinar que o local da operação, para os efeitos da cobrança do imposto e
604 - O C o n c e it o d e "D e s t in a t á r io " p a r a F in s de I n c id ê n c ia do IC M S - Im p o r t a ç ã o

definição do estabelecimento responsável, é o do estabelecimento onde ocor­


rer a entrada física do bem ou mercadoria, somente pode ser aplicada na hipó­
tese de haver mais de um destinatário.
Em situações como essa, haverá um conflito, que deverá ser resolvido pela
lei complementar, já que é justamente esse o seu papel: ela determinará, entre os
vários destinatários possíveis, que o imposto será devido ao Estado em que se
localiza o estabelecimento em que se der a entrada física do bem ou mercadoria.
Lida dessa forma, a Lei Complementar n° 87/96 apresenta-se como ple­
namente compatível com a disciplina constitucional conferida ao ICMS sobre
as importações, não havendo que se falar em qualquer inconstitucionalidade.
Direito Tributário e
Súmula Vinculante

Marilene Talarico Martins Rodrigues


Advogada em São Paulo, integrante da Advocacia Gandra Martins,
Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária,
Membro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado
de São Paulo, Membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/
SP —CEAT, Membro do Conselho do IASP, Membro da Diretoria da
Academia Brasileira de Direito Tributário —ABD T e Membro da Academia
Paulista de Letras Jurídicas.
M a r il e n e T a l a r ic o M a r t in s R o d r ig u e s - 6 0 7

“A Constituição é o instrumento do mandato outorgado aos vários poderes do


Estado. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade
para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem
ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito
eqüivale a cair em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis...”
(Ruy Barbosa)

Em homenagem ao Professor Hugo de Brito Machado, dedico este es­


tudo, pela oportuna iniciativa de seus organizadores.
Falar sobre o homenageado - a quem aprendi, desde cedo, a admirar - é
falar do dedicado professor, jurista e magistrado, reconhecido estudioso do
direito e intérprete da Constituição. Sua preocupação é constante não só com
o direito tributário e com as garantias fundamentais do contribuinte, mas
com as instituições e cumprimento da Constituição, fundamentos do Estado
Democrático de Direito.
A iniciativa dos coordenadores merece aplauso de toda comunidade
jurídica.

C o n s id e r a ç õ e s I n ic ia is

Um dos problemas mais discutidos e relevantes no Poder Judiciário é o


acesso à Justiça. No Estado Democrático de Direito, o acesso de todos à justi­
ça é indispensável e um direito fundamental que consta do rol do art. 5o,
inciso XXXV da Constituição Federal/88: “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Essa garantia, contudo, não foi suficiente para proteger o acesso à
justiça, já que, apesar de todos poderem levar seus litígios ao Poder
Judiciário, não havia nenhuma garantia de que o processo seria apreciado
em um tempo razoável.
A partir da EC n° 45/2004, que introduziu a Reforma do Poder Judi­
ciário, foram incluídos alguns dispositivos na Constituição para maior celeri­
dade dos processos e segurança jurídica, como segue:
(1) Inciso LXXVm, ao art. 5o, da CF:
“a todos no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade
de sua tramitação.”
6 0 8 - D ir e it o T r ib u t á r io e S ú m u l a V in c u l a n t e

(2) Art. 103-A da CF, que instituiu a Súmula Vinculante, nos seguin­
tes termos:
“Art. 103-A - O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício, ou por
provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que,
a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante
em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração
Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,
bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma
estabelecida em lei.”

O b jetivos da S ú m u la V in c u la n te
“§ 1°, do art. 103-A: A Súmula terá por objetivo a validade, a inter­
pretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja
controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a admi­
nistração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos sobre questão idêntica.”
Tal como colocado no § I o do art. 103-A da CF, a Súmula terá por
objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas,
sobre as quais haja controvérsia entre órgãos judiciários ou entre esses e a
Administração Pública que resulte insegurança jurídica e multiplicação de
processos sobre questão idêntica.
Requisitos para a Súmula Vinculante
a) deve haver controvérsia atual entre órgãos do Judiciário ou entre esses
e a Administração Pública;
b) essa controvérsia deve resultar insegurança jurídica e relevante multi­
plicação de processos sobre questão idêntica;
c) o STF deve proferir reiteradas decisões sobre a matéria constitucio­
nal (o que revela a própria natureza constitucional da controvérsia), pois é a
seu respeito que o STF deverá se manifestar;
d) necessidade de aprovação de pelo menos dois terços dos membros
do Tribunal.
O âmbito material para a criação de Súmulas vinculantes será a valida­
de, a eficácia e a interpretação das normas.
M a rile n e T a la r ic o M a r t in s R o d rig u e s - 609

Um dos principais objetivos a serem perseguidos com a instituição da Sú­


mula Vinculante é a redução dos processos repetitivos no âmbito do STF,
pois um dos requisitos para sua criação é a existência de controvérsia atual que
acarrete “multiplicação de processos sobre questão idêntica” (§ I o, art. 103-
A, CF). O objetivo, portanto, é descongestionar o Poder Judiciário.
A Súmula Vinculante igualmente se concretiza como sedimentação de
uma linha interpretativa que o STF consolidou ao construir sua Jurispru­
dência sobre determinada questão. Ela representa a opção jurídico-consti-
tucional que a Suprema Corte, reiteradas vezes, considerou como devida para
uma série de situações semelhantes. À medida que atribui efeito vinculante
às diretivas interpretativas constantes das Súmulas, devendo ser aplicadas às
situações em andamento, elas significam um relevante instrumento de pa­
dronização da interpretação jurídica da Constituição.
De tal forma que a Súmula Vinculante é a síntese da Jurisprudência
constitucional consolidada pelo STF, órgão encarregado de dizer o direito,
interpretando a Constituição. A interpretação constitucional firmada pelo
STF pode se sobrepor às demais interpretações desenvolvidas pelos ou­
tros intérpretes da Constituição.
Com a edição da Súmula Vinculante, o que se pretende é impor a visão
consolidada do STF e acabar com decisões conflitantes de outros Tribu­
nais. Se houver descumprimento da linha Jurisprudência! da Suprema Corte,
caberá, diretamente, RECLAMAÇÃO.

A provação, R e v is ã o ou C a n c ela m en to de S ú m u la
“§ 2°, do art. 103-A: Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei,
a aprovação, revisão ou cancelamento de Súmula poderá ser provocada
por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.”
A aprovação, revisão ou cancelamento de Súmula poderá ser provoca­
da por aqueles que podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade
(art. 103 da CF).
Quem pode pedir a Edição de Súmula Vinculante?
O rol dos legitimados consta do art. 103 da CF:
- o Presidente da República;
- a mesa do Senado Federal;
6 1 0 - D ir e it o T r ib u t á r io e S ú m u l a V in c u l a n t e

- a mesa da Câmara dos Deputados;


- a mesa da Assembleia Legislativa ou a Câmara Legislativa do Dis­
trito Federal;
- o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
- o Procurador Geral da República;
- o Conselho Federal da OAB;
- Partido Político com representação no Congresso Nacional;
- Confederação Sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

D a R e c la m a ç ã o a o STF

“§ 3°, do art. 103-A: Do ato administrativo ou decisão judicial que


contrariar a Súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá
reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a proceden­
te, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial recla­
mada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplica­
ção da Súmula, conforme o caso.”
O alcance da vinculação da Súmula estende-se não só aos órgãos do Po­
der Judiciário, mas, também à Administração Pública direta e indireta em
todas as esferas (Federal, Estadual e Municipal).
Nos termos do § 3o do art. 103-A da CF, do ato Administrativo ou da
Decisão Judicial que contrariar a Súmula aplicável, caberá Reclamação ao Su­
premo Tribunal Federal, que julgando-a procedente anulará o ato adminis­
trativo ou cassará a decisão judicial, e determinará que outra seja proferida.
A Súmula Vinculante é de observância obrigatória não apenas contra
decisão judicial, mas também pela Administração Pública.

C r ít ic a s à S úmula V in c u la n t e
A Súmula Vinculante tem sido objeto de grandes debates com argu­
mentos favoráveis e contrários à sua adoção:
Argumentos Favoráveis:
a) a Súmula Vinculante torna a justiça mais ágil;
b) é injustificável a repetição de demandas sobre teses jurídicas idênticas,
já pacificadas na Corte Superior;
M a r il e n e T a l a r ic o M a r t in s R o d r ig u e s - 6 1 1

c) a preservação do princípio da igualdade de todos perante a interpreta­


ção da lei, eliminando o perigo de decisões contraditórias;
d) necessidade de resguardar o princípio da segurança jurídica, assegu­
rando a previsibilidade das decisões em causas idênticas;
e) a inexistência do perigo do engessamento da Jurisprudência, por ser
possível o cancelamento e a revisão dos enunciados sumulares.
Argumentos Contrários:
a) a Súmula Vinculante seria uma atribuição de função de natureza le­
gislativa ao Poder Judiciário, contrariando o princípio da Separação dos Pode­
res e a liberdade de decidir dos Juizes, com a supressão do duplo grau de
jurisdição, violando cláusulas pétreas da Constituição;
b) a Súmula restringe a criação do direito pela Jurisprudência, impedin­
do o seu progresso;
c) a Súmula leva a uma demasiada concentração de Poder nos Tribu­
nais Superiores;
d) a Súmula restringe o princípio constitucional do direito de ação.

C o m e n t á r io s

1. Trata-se de analisar o que merece ser mais prestigiado - a segurança


jurídica e a celeridade processual ou a vontade subjetiva de amplos e cons­
tantes debates sobre a mesma tese.
2. O STF, sobre a matéria constitucional, tem a última palavra sobre as
questões afetas à sua competência, cuja apreciação deve ser unificada em nome
da necessidade de segurança jurídica e de resguardar a Federação e o orde­
namento jurídico.
3. A Súmula Vinculante torna mais célere a prestação jurisdicional e
mais efetivo o respeito à Jurisprudência consolidada da Corte.
4. As Súmulas Vinculantes surgem a partir de decisões reiteradas sobre
determinada matéria constitucional. O seu conteúdo é a interpretação feita
pelo STF de enunciados normativos em casos concretos de forma reiterada.
5. Desta forma, o STF não estaria legislando, uma vez que o “enunciado
da Súmula apenas sintetiza a essência do entendimento consolidado juris-
prudencialmente sobre determinada matéria”, a fim de assegurar a estabili­
612 - D ir e it o T r ib u t á r io e S ú m u ia V in c u la n te

dade judicial e a segurança jurídica. Esse entendimento jurisprudencial é


produto da interpretação de enunciados normativos que foram elaborados
pelos legisladores, em confronto com a Constituição.
6. Ao interpretar os enunciados normativos, os Ministros do STF não
estariam criando normas, mas interpretando a lei em face da Constituição.
A NATUREZA JURÍDICA DA SÚMULA VlNCULAIMTE
As Súmulas Vinculantes são na verdade, a fixação de determinado senti­
do interpretativo a determinada norma, vinculado à hipótese fática que deu
origem a esse sentido interpretativo.
Vincula-se não a atividade jurisdicional pela criação de uma norma, mas
a partir do estabelecimento de um sentido interpretativo, vinculam-se as
decisões futuras a esse sentido.
A atribuição do efeito vinculante à Súmula não muda a sua natureza de
decisão jurisdicional consolidada a partir da repetição sistemática de enten­
dimento em um mesmo sentido.
Cria-se, no máximo, uma norma de decisão, específica para um caso con­
creto que, em razão da repetição de hipóteses idênticas, vincula a interpretação
de casos futuros. Não se cria proposição hipotética, abstrata e geral, mas a obri­
gatoriedade de seguir determinado entendimento sobre o assunto.
A Função d a S ú m u la V in c u l a n t e

A Súmula Vinculante possui três funções principais:


a) tomar conhecida a Jurisprudência consolidada no âmbito do STF,
facilitando a sua observância;
b) evitar que sejam tomadas decisões discrepantes daquela Sumulada
por economia, celeridade processual e política judiciária;
c) dar segurança jurídica ao sistema e às relações sociais.
A Súmula Vinculante reflete a necessidade de assegurar a segurança
jurídica. A experiência tem demonstrado que, além da celeridade e econo­
mia processual, é essencial para que se tenha outra forma de dar segurança
jurídica ao sistema.
Existe a norma geral que, interpretada pelo Supremo Tribunal Federal,
dá origem a uma decisão que, se refletir a posição dominante na Corte, será
M a rile n e T a l a r i c o M a r t in s R o d rig u e s - 61 3

vinculativa, obrigando aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administra­


ção Pública. Isto ocorre para que não haja divergência do posicionamento
consolidado do STF e cause insegurança jurídica com decisões em diferen­
tes sentidos.
E d iç ã o , R e v is ã o e C a n c e l a m e n t o d e S ú m u l a s V in c u l a n t e s

A própria Constituição Federal trata da edição, revisão ou cancela­


mento da Súmula Vinculante no art. 103-A.
A edição ocorrerá após reiteradas decisões sobre matéria constitucio­
nal, o STF, por decisão de dois terços de seus membros, aprovar a Súmula
com efeito vinculante (que obrigará os demais órgãos do Poder Judiciário e
a Administração Pública), ficam com sua Jurisprudência vinculada pela edi­
ção da Súmula.
A revisão e/ou cancelamento de Súmulas pode ocorrer apenas quan­
do houver real necessidade em face de nova argumentação e de aspectos
novos do problema.
Em razão da alteração da realidade social e da percepção dos fatos da
mesma problemática, os motivos que levaram à edição de uma Súmula po­
dem ser modificados e o enunciado consolidado, vir a ser revogado. Some-
se a possibilidade de a atividade legislativa ser alterada acelerando o processo
de alteração da realidade, regulamentando ou modificando normas que te­
nham servido de base para o entendimento sumulado.
A alteração da Súmula Vinculante convive em conflito constante: imu­
tabilidade (segurança jurídica) x mutabilidade (realidade social) e a sua fun­
cionalidade ideal depende da correta e razoável valorização entre esses valores
constitucionais e a realidade social.
R e g u l a m e n t a ç ã o L e g is l a t iv a

A Lei 11.471 de 19/12/2006, regulamentou o art. 103-A da CF.


Dois artigos são importantes para comentar:
“Art. 3o- São legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamen­
to de enunciado de Súmula Vinculante:”
Além do rol constante do art. 103 da CF,
6 1 4 - D ir eit o T r ib u t á r io e S ú m u l a V in c u l a n t e

“IX - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do


Distrito Federal;
X - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
XI - osTribunais Superiores, os Tribunais deJustiça ou do Distrito Fede­
ral eTerritórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais
do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.
§ Io- O Município poderá propor, incidentalmente ao curso do proces­
so em que sejaparte, a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado
de Súmula Vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo.”
O art. 3o, da Lei 11.471/2006, alargou o número de legitimados
para propor a edição, revisão ou cancelamento da Súmula Vinculante,
não constantes do texto constitucional, o que tem sido objeto de críticas
sobre a sua constitucionalidade.
“Art. 4o- A Súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o
Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus
membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só
tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse público.”
Como regra geral, a Súmula Vinculante tem eficácia imediata, mas o
STF, por decisão de 2/3 de seus membros, poderá restringir os efeitos vincu­
lantes, a partir de outro momento, por razões de segurança jurídica ou inte­
resse público.
Em matéria processual sobre a Jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, Humberto Theodoro Junior lembra que:
“Em matéria de direito processual civil, o clamor social maior é contra a
morosidade da prestação jurisdicional, e para contornar essa mazela
sucessivas alterações têm sido introduzidas no Código de 1973, todas
justificadas com argumentos relacionados à efetividade e à celeridade
do processo. Reconhecidamente a causa maior da demora processual
decorre quase sempre de um sistema de recursos obsoleto e propício a
manobras protelatórias dos litigantes de má-fé. Nada obstante, as re­
formas do CPC não conseguem abolir recursos (nem mesmo quando se
trate de figuras estranhas e injustificáveis como os embargos infringentes
e a remessa ex officio) e, ao contrário, criam cada vez mais recursos
internos nos tribunais. Por outro lado, medidas que sabidamente pode­
riam contribuir para expurgar atos e provas desnecessários, como a au­
M a r ile n e T a l a r ic o M a r t in s R o d r ig u e s - 6 1 5

diência preliminar (CPC, art. 331, § 3o) são reformadas para pior, por­
que de expediente obrigatório acabou por se transformar em mera fa­
culdade dos juizes, graças à infeliz alteração provocada pela Lei 10.444,
de 07.05.2002.”(A Onda Reformista do Direito Positivo e suas Impli­
cações com o Princípio da Segurança Jurídica. Revista Autônoma de
Direito Privado, n° 2, p. 227'. Ed. Juruá, jan./março de 2007).
Tanto é assim que, para dar efetividade à uniformidade das decisões
judiciais em nome da segurança jurídica, existem, na legislação infraconsti­
tucional, diversos dispositivos destinados a evitar a proliferação de discus­
sões judiciais de matérias sobre as quais já haja entendimento pacífico do
Supremo Tribunal Federal.
O art. 557 do CPC, ao dispor sobre os processos nos tribunais, consagra
a inadmissibilidade de recursos que contrariem jurisprudência consolidada
do STF, do STJ ou do próprio Tribunal ad quem.
‘Art. 557 - O relator negará seguimento a recurso manifestamente
inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou
jurisprudência dominante do respectivo tribunal ou do Supremo Tri­
bunal Federal ou de Tribunal Superior.” (não destacado no original)
O art. 475 do CPC, com a nova redação da Lei 10.352/01, ao estabele­
cer que a sentença está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo
efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal, prevê, entretanto, exceção a
essa regra, no seu § 3o, ao dispor:
“§ 3o —Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sen­
tença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo
Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal Supe­
rior competente.”
Como se vê, o ordenamento positivo está, todo ele, voltado a prestigiar a
uniformidade da jurisprudência, principalmente quando emana do intérprete
máximo da Constituição Federal, o que autoriza não apenas a celeridade na pres­
tação jurisdicional, mas também o tratamento isonômico e de segurança jurídica.

C o n clu sõ es

— No contexto do elevado volume de recursos no STF, a ideia é positiva,


por obrigar os órgãos inferiores (Judiciais e Administrativos) a respeitar as
Súmulas da Suprema Corte.
6 1 6 - D ir e it o T r ib u t á r io e S ú m u l a V in c u l a n t e

- Devem ser considerados certos valores, como: (a) o acesso à Justiça;


(b) a celeridade processual; (c) a isonomia no tratamento de questões cons­
titucionais, interpretadas de forma uniforme. Esses valores são indispensáveis
ao Estado Democrático de Direito.
- De fato, se uma questão constitucional foi apreciada e já está consolidada
no âmbito da Suprema Corte, nada justifica que seja reexaminada inúmeras vezes.
- Segurança jurídica é o valor principal do sistema, obtido por meio da
garantia de que determinada lei preexistente será aplicada pelo magistrado,
conforme o entendimento do STF.
- A partir da previsibilidade das decisões judiciais, toda a sociedade
organiza-se e adota condutas de forma segura, antevendo as conseqüências
futuras no caso de questionamentos judiciais. É essa previsibilidade que ga­
rante a segurança jurídica e é fundamental para a vida organizada e para que
seja possível a pacífica convivência em sociedade.
- Não seria coerente, a partir de decisões reiteradas da Suprema Corte,
sobre determinada matéria, que deu origem à Súmula Vinculante, que essa
mesma matéria continuasse a ser interpretada de forma diversa por magistra­
dos de instâncias inferiores ou pela própria Administração Pública, razão pela
qual a Súmula Vinculante é necessária para dar estabilidade às relações pro­
cessuais e concretizar a Segurança Jurídica.
- A Súmula Vinculante é positiva e merece a confiança da sociedade.
A segurança jurídica e a celeridade processual serão prestigiadas, valores
fundamentais, constitucionalmente consagrados.

S ú m u la s V in c u la n t e s em M a t é r ia T ributária
S ú m u la V in c u l a n t e 8

“São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5o do Decreto-Lei n°


1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei n° 8.212/1991, que tratam de
prescrição e decadência de crédito tributário.”
S ú m u la V in c u l a n t e 1 9

“A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta,


remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de
imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal.”
M a r il e n e T a l a r ic o M a r t in s R o d r ig u e s - 6 1 7

S ú m u l a V in c u l a n t e 21

“É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de


dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.”
S ú m u l a V in c u l a n t e 2 4

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no


art. Io, incisos I a IV, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento defini­
tivo do tributo.”
S ú m u la V in c u la n t e 25
“É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modali­
dade de depósito.”
S ú m u l a V in c u l a n t e 2 8

“E inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de


admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a
exigibilidade de crédito tributário.”
S ú m u l a V in c u l a n t e 2 9

“É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais


elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde
que não haja integral identidade entre uma base e outra.”
S ú m u l a V in c u l a n t e 31

“É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qual­


quer Natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis.”
Vale recordar as lições sempre precisas de Carlos Maximiliano quanto à
interpretação do direito:
“Deve o direito ser interpretado inteligentemente, não de modo a
que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências,
vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”
(Hermenêutica Interpretação eAplicação do Direito. Rio de Janeiro: Fo­
rense, ed. 1999, p. 183)
Notas sobre a Decadência
da Invalidação de
Contrato de Locação de
Imóvel Urbano Particular
pela Administração
Municipal e o Uso dos
Créditos do Locador
Privado na Compensação
com Débitos Tributários
Executados no Município
de Natal/RN
Vladimir da Rocha França
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor
em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Curso de Direito da
Faculdade Câmara Cascudo. Advogado e Consultor em Natal/RN.
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 2 1

1. C o n sid e r a ç õ e s g erais sob re o s c o n t r a t o s de lo c a ç ã o


q u e têm a A d m in is tr a ç ã o M u n ic ip a l c o m o lo c a t á r ia

Os contratos de locação celebrados entre locador privado e locatário pú­


blico municipal são considerados contratos de Direito Privado da Adminis­
tração por injunção do art. 62, § 3o, I, da Lei Federal n° 8.666, de 21.6.19931.
Segundo a doutrina majoritária, os contratos de Direito Privado da
Administração encontram-se subordinados aos preceitos de Direito Privado que
sejam compatíveis com o regime jurídico-administrativo2. Ao contrário dos contratos
administrativos, esses pactos somente admitem a presença de prerrogativas especiais
para o contratante público quando expressos no instrumento contratual3.
Como a União tem competência privativa para legislar sobre o Direito
Civil e sobre as normas de contratação pública, a Administração Municipal
não tem legitimidade para recusar aplicação às regras veiculadas em lei federal
que dispõem sobre a matéria4.
Em rigor, a locação de imóvel urbano na qual a Administração Municipal é
locatária tem naturalmente caráter não residencial, estando submetida aos precei­
tos da Lei Federal n° 8.245, de 18.10.19915, sem prejuízo à aplicação subsidiária

1 O art. 62, § 3o, da Lei Federal n° 8.666/1993, apresenta o seguinte enunciado: "Art. 62. (...) § 3o
Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber: I -
aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e
aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado" (grifos
acrescidos). Registre-se que o art. 2o, parágrafo único, da Lei Federal n° 8.666/1993 determina a
definição de contrato que deve ser empregada na interpretação desse texto normativo.
2 Nesse sentido, consultar: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo,
13a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 151-153; Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
D ireito administrativo, 22a ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2009, p. 251-258; FRANÇA, Vladimir
da Rocha. Conceito de contrato administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo:
Malheiros Editores, n° 41/2003, p, 116-122; GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo, 14a
ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 705-706; e JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de
licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialéctica, 2004, p. 519-520.
3 Como assevera Maria Sylvia Zanella Di Pietro: "Quando a Administração celebra contratos
administrativos, as cláusulas exorbitantes existem implicitamente, ainda que não expressamen­
te previstas; elas são indispensáveis para assegurar a posição de supremacia do Poder Público
sobre o contratado e a prevalência do interesse público sobre o particular. Quando a Adminis­
tração celebra contratos de direito privado, normalmente ela não necessita dessa supremacia e
a sua posição pode nivelar-se à do particular; excepcionalmente, algumas cláusulas exorbitantes
podem constar, mas elas não resultam implicitamente do contrato; elas têm que ser expressa­
mente previstas, com base em lei que derrogue o direito comum. Por exemplo, quando a lei
permite o comodato de bem público, pode estabelecer para a Administração a faculdade de
exigi-lo de volta por motivo de interesse público" (op. cit., p. 257; grifos no original).
4 Vide art. 22, I e XXVII, da Constituição Federal.
5 Vide art. 1o, caput, e art. 55, ambos da Lei Federal n° 8.245/1991.
6 2 2 - N o tas s o b r e a D e c a d ê n c ia d a I n v a l id a ç ã o d e C o n t r a t o ...

do Código Civil em vigor6. Levando-se em consideração a expressão “no que


couber” do art. 62, § 3o, da Lei Federal n° 8.666/1993, admite-se a incidência
dos preceitos deste diploma legal desde que não violem o direito de propriedade
do locador7e nem descaracterizem o regime jurídico desse contrato8.
Apesar do art. 37, XXI, da Constituição Federal não estabelecer expressa­
mente, o ato administrativo que autoriza a celebração do contrato de locação de
imóvel urbano privado exige a realização de processo licitatório9, salvo na hipótese
de dispensa de licitação constante do art. 24, X, da Lei Federal n° 8.666/199310.
Logo, a formação do contrato de locação entre locador privado e locatá­
rio público não se encontra submetida ao regime jurídico de Direito Privado.

2. A plicação das n o r m a s regen tes d a in v a lid a ç ã o d o s

c o n t r a t o s a d m in istr a tiv o s a o c o n t r a t o d e l o c a ç ã o de

im ó v el u r b a n o pa rticula r pela A d m in ist r a ç ã o M u n icip al

Em contrato de locação não residencial de bem imóvel que envolve parti­


culares, a parte interessada em invalidá-la deverá exercer o seu direito de ação e
solicitar ao Poder Judiciário a expedição de um provimento que o faça11. O
mesmo não pode ser dito quanto a contratos como o que compõe o objeto do
presente trabalho.
Com amparo na conjugação do art. 49 da Lei Federal n° 8.666/199312
com o art. 59 do mesmo diploma legal13(p-sc&), a Administração Municipal tem

6 Vide art. 2°, §§ 2o e 3o, da Lei de introdução ao Código C ivil (Decreto-lei n° 4.657, de
4.9.1942). Vide art. 79 da Lei Federal n° 8.245/1991. Vide art. 2.036 do Código Civil de 2002
(Lei Federal n° 10.406, de 10.1.2002).
7 Cf. JUSTEN FILHO, Marçal, Comentários..., cit., p. 519. Vide art. 5o, caput, e XXII, da Consti­
tuição Federal. Vide art. 1.228, caput, do Código Civil de 2002.
8 Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 152.
9 O art. 2o da Lei Federal n° 8.666/1993 tem a seguinte redação: "Art. 2° As obras, serviços,
inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Adminis­
tração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licita­
ção, ressalvadas as hipóteses previstas nesta lei" (grifos acrescidos).
10 O art. 24, X, da Lei Federal n° 8.666/1993 tem a seguinte redação: "Art. 24. É dispensável a
licitação: (...) X - para compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades
precípuas da Administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua
escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia"
(grifos acrescidos).
11 Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, v.
1, p. 632-635. Vide art. 5o, XXXV, da Constituição Federal. Vide art. 168 do Código Civil de 2002.
12 O art. 49 da Lei Federal n° 8.666/1993 tem a seguinte redação: "Art. 49. A autoridade
competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 2 3

a competência de invalidar o contrato administrativo que tenha celebrado com


vício quanto ao seu procedimento de celebração14. Não é ocioso lembrar que o
regramento previsto para a invalidação dos atos administrativos municipais pelo
seu próprio emissor é plenamente exigível no exercício daquela prerrogativa15.
Já foi exposto que os contratos de locação de imóveis urbanos privados
pela Administração Municipal precisam ser precedidos de processo adminis­
trativo (licitação ou dispensa de licitação). Para garantir a defesa da legalidade
desses negócios jurídicos privados, não há como recusar ao Poder Público local
a prerrogativa de invalidá-los na esfera administrativa16.
Noutro giro: a invalidação do contrato de locação de imóvel urbano
particular pela Administração Municipal se encontra submetida ao mesmo
regime jurídico da invalidação dos contratos administrativos.
Nesse diapasão, chega-se à natural conclusão de que a Administração
Municipal deve observar em relação ao locador privado os mesmos limites
que a lei lhe impõe na invalidação administrativa dos contratos inteira­
mente regidos pelo Direito Público.

de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e


suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por
provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado. § 1o A anula­
ção do procedimento licitatório por motivo de ilegalidade não gera obrigação de indenizar,
ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 59 desta Lei. § 2o A nulidade do procedimen­
to licitatório induz à do contrato, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 59 desta
Lei. § 3o No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a
ampla defesa. § 4o O disposto neste artigo e seus parágrafos aplica-se aos atos do procedimento
de dispensa e de inexigibilidade de licitação".
13 O Art. 59 da Lei Federal n° 8.666/1993 tem a seguinte redação: "Art. 59. A declaração de nulidade
do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele,
ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. Parágrafo único. A
nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver
executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados,
contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa".
14 Atualmente, o processo de invalidação dos contratos administrativos do Município se encon­
tra disciplinado nos arts. 73 a 77 da Lei Municipal n° 5.872/2008.
15 Vide Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal. Vide art. 53 a. 55 da Lei Municipal n° 5.872,
de 4.7.2008. Sobre a matéria, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
adm inistrativo, 26a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 454-478 e 623; Dl PIETRO,
Maria Sylvia Zanella, op. c it., p. 273-274; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Extinção dos contratos
adm inistrativos, 2a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 67-88; FRANÇA, Vladimir da
Rocha. Estrutura e m otivação d o ato adm inistrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p.
136-142; e JUSTEN FILHO , M arçal. C u rso d e direito adm inistrativo, 4a ed. São Paulo: Ed.
Saraiva, 2009, p. 469-472.
16 Assim, reformamos ponto de vista anterior no sentido de recusar à Administração a prerrogativa
de desconstituir os seus atos jurídicos de Direito Privado mediante a invalidação administra­
tiva. Cf. FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura..., cit., p. 149.
6 2 4 - N o ta s s o b r e a D e c a d ê n c ia d a I n v a lid a ç ã o d e C o n t r a t o ..

3 . I n a d m is s ib il id a d e d a a r g u iç ã o , em j u íz o , d a n u l id a d e

DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL URBANO PRIVADO


PELO LOCADOR PÚBLICO

O negócio jurídico sob apreciação goza de presunção de validade diante


da presença de autoridade administrativa municipal que tenha competência
para celebrá-lo17.
Inicialmente, deixe-se claro que a Administração Municipal não tem
legitimidade para arguir a nulidade desse contrato de locação perante o
Poder Judiciário18, salvo se houvesse invalidação administrativa anterior
com observância ao devido processo legal19.
Pensar o contrário, com a devida vênia, é ignorar o devido processo legal20e
as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa21, também
previstas na Lei Federal n° 8.666/199322. Ressalte-se que essas proteções ao

17 Vide art. 49, art. 55, II, art. 57 e art. 58, todos da Lei Orgânica do Município.
18 Como já asseveramos em outra oportunidade: "Deve ser observado que a invalidação judicial e a
invalidação administrativa são competências estatais diversas. A invalidação judicial do ato admi­
nistrativo é uma via quase que exclusiva do administrado. Somente se justificaria o recurso da
Administração ao Poder Judiciário para se retirar um ato administrativo do sistema do direito
positivo quando: este provimento não foi expedido por ela, ou o ordenamento jurídico não lhe
outorgue alternativa que não seja a via judicial [referíamo-nos ao ato administrativo municipal
fundado em lei inconstitucional]. Ora, se a Administração tem um instrumento mais célere para
retirar um ato seu que se encontra eivado de invalidade, o que justificaria a opção por um caminho
reconhecidamente mais moroso e incerto? Basta que a Administração realize a invalidação admi­
nistrativa segundo os ditames do devido processo legal e conforme os princípios do regime
jurídico-administrativo" (FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura..., cit., p. 151; grifos no original).
19 Em situação similar, assim decidiu o Tribunalde Justiça de São Paulo (TJSP): "Ementa:Locação
de imóveis. Embargos à execução de título extrajudicial. Fazenda Pública que alega nulidade
do contrato de locação gerador da obrigação executada. Suposta nulidade apurada em proce­
dimento administrativo que não observou os arts. 5o, LIV, da CF, e 49, § 3o, da Lei 8.666/93.
Inadmissibilidade. Regularidade formal do título. Reconhecimento. Recursos oficial e volun­
tário improvidos" (TJSP, Apelação com Revisão n° 969.440-0/0, 34a Câmara de Direito Priva­
do, Relator Des. Nestor Duarte, Revisor Des. Rosa Maria de Andrade Nery, julgado em
3 0 .3 .2 0 0 9 , registrado em 1 4 .5 .2 0 0 9 , disp o nível em : <http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg /
getArquivo.do?cdAcordao=3607248)>.
20 Vide art. 5° LIV, da Constituição Federal.
21 Vide art. 5°, LV, da Constituição Federal.
22 Vide art. 49,§ 3o, da Lei Federal n° 8.666/1993.Como adverteMarçal Justen Filho, nem mesmo
a natureza do vício de validade tem o condão de excluí-las da invalidação administrativa de
contrato público: "Nem mesmo os argumentos da notoriedade do vício ou da configuração do
fato incontroverso podem ser utilizados para afastar o respeito ao devido processo legal. Ressalte-
se, aliás, que o devido processo legal abrange os diversos aspectos pertinentes à questão. Assim,
cabe facultar ao particular o direito de ser ouvido sobre os efeitos de eventual invalidação. O ato
pode ser absolutamente nulo e até se poderia imaginar que nenhum argumento poderia ser
trazido à baila pelo particular quanto a isso. Mas daí não se infere a ausência de controvérsia
sobre a indenização ou extensão dos efeitos da invalidação" (Comentários..., cit., p. 512).
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 625

contratado já vinculavam a Administração Municipal antes do advento da


Lei Municipal n° 5.872, de 4.7.2008.
Antes do advento da Lei Municipal n° 5.872/2008, a Administração
Municipal tinha o prazo decadencial de cinco anos para invalidá-lo, contado
da data de sua celebração23. Essa regra resultava da aplicação por analogia24do
prazo constante do art. Io do Decreto Federal n° 20.910, de 6.1.193225, e do
art. 21 da Lei Federal n° 4.717, de 24.7.196526. Atualmente, esse preceito se
encontra expresso no art. 54 da Lei Municipal daquele diploma legal, que pos­
sui redação idêntica ao do art. 54 da Lei Federal n° 9.784/1999.
Por conseguinte, há a decadência da invalidação administrativa que a
Administração do Município poderia realizar na situação jurídica em apre­
ço quando houve o decurso do prazo de cinco anos, contado da formaliza­
ção regular do negócio jurídico sob exame.
Malgrado o disposto no art. 168 do Código Civil de 2002, impõe-se a
ponderação que a legislação municipal não usa prazos de estabilização dife­
renciados entre os atos nulos e os atos passíveis de convalidação. Apenas há
distinção relevante quando se trata da contagem do prazo decadencial da in­
validação administrativa de ato nulo que tenha gerado efeito favorável a desti­
natário de má-fé. E essa exceção, mesmo assim, somente passou a compor a
legislação municipal com o art. 54 da Lei Municipal n° 5.872/200827.
Em virtude da presunção de boa-fé dos administrados em geral, caberia
à Administração Municipal comprovar que o referido contrato foi realizado
com o dolo do locador privado em causar eventual ilegalidade (ou dela se
aproveitar) no caso concreto. Mas nem essa hipótese asseguraria ao locatário

23 Nesse sentido, consultar: M ELLO, Celso Antônio Bandeira de, o p . c it., p. 477-478 e 1044-
1045; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura..., c it., p. 145-155; e ZANCANER, Weida, op.
c/f., p. 76-98.
24 Vide art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil.
25 O art. 1o do Decreto Federal n° 20.910/1932 tem a seguinte redação: "Art. 1o As dívidas
passivas da União, dos Estados e dos M u nicípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação
contra a Fazenda federal, estadual ou m unicipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em 5
(cin co ) anos, contados da data do ato ou do fato do qual se originarem" (grifos acrescidos).
26 O art. 21 da Lei Federal n° 4.717/1965 tem a seguinte redação: "Art. 21. A ação prevista nesta
Lei prescreve em 5 (cinco) anos".
27 Sobre a matéria, consultar: FRANÇA, Vladim ir da Rocha. E stru tu ra..., c it., p. 152; e LEITE,
Fábio Barbalho. Rediscutindo a estabilização, pelo decurso temporal, dos atos administrativos
supostamente viciados. Revista de D ireito A dm inistrativo, v. 231, p. 93-115, Rio de janeiro:
Renovar, janeiro-março/2003.
6 2 6 - N o ta s s o b r e a D e c a d ê n c ia d a I n v a l id a ç ã o d e C o n t r a t o .

público o direito de arguir a nulidade desse negócio jurídico em juízo sem


demonstrar a má-fé do locador privado.
E, mesmo se a Administração Municipal tivesse tempestivamente inva­
lidado o contrato de locação que celebrou com o locador privado, este teria o
direito de receber os pagamentos decorrentes do uso do imóvel locado, como
disciplinado no art. 59, parágrafo único, da Lei Federal n° 8.666/1993.
Uma vez que já foi demonstrado que o negócio jurídico sob análise teve
sua validade estabilizada pela decadência do direito da Administração Munici­
pal de invalidá-lo administrativamente, impõe-se a análise da validade dos cré­
ditos que podem ser reivindicados pelo locador privado em virtude desse evento.

4. D is c ip l in a d a p r e s c r iç ã o d a c o b r a n ç a d o s a l u g u é is

INADIMPLIDOS PELO LOCADOR PÚBLICO

A Administração Municipal pode oferecer em juízo o entendimento


que parcela considerável dos créditos reivindicados pelo locador privado teria
sido fulminada pela prescrição, caso o Poder Judiciário reconheça a validade
do negócio jurídico que os gerou.
Segundo o art. 394 e o art. 397, ambos do Código Civil de 2002 (Lei
Federal n° 10.406, de 10.1.2002)28, a Administração Municipal é constituída
de pleno direito em mora quando deixa de pagar os aluguéis no lugar, tempo e
forma estipulados no contrato de locação que firmou com o locador privado.
Nas relações de trato sucessivo, a prescrição do direito do administrado de
pleitear judicialmente os créditos inadimplidos pela Fazenda Pública do Muni­
cípio ocorre no prazo de cinco anos, a ser aplicado nos termos do art. 3o do Decre­
to Federal n° 20.910/193229. Acresça-se que somente à aplicação da prescrição
de fundo de direito em situações como essa quando há a denegação expressa da
pretensão do administrado, de acordo com a Súmula n° 443 do Supremo Tribu­
nal Federal (STF) e a Súmula n° 85 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)30.

28 O art. 955 e o art. 960, ambos do Código Civil de 1916 (Lei Federal n° 3.071, de 1.1.1916)
apresentam redação similar.
29 O art. 3o do Decreto Federal n° 20.910/1932 tem a seguinte redação: "Art. 3o Quando o
pagamento se dividir por dias, meses ou anos a prescrição atingirá progressivamente as presta­
ções, à medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente decreto".
30 A Súmula n° 443 do STF tem a seguinte redação: "A prescrição de prestações anteriores ao
período previsto em lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 2 7

Por conseguinte, o direito do locador privado de propor ação judicial para


obter o pagamento de cada aluguel vencido seria atingido pela prescrição no
prazo de cinco anos, contado do momento em que a Administração Municipal
deixou de pagá-lo no tempo, lugar e forma que foi convencionado.
O locador privado tem a opção de deflagrar processo administrativo para
obter o pagamento das prestações contratuais inadimplidas. Em rigor, há nes­
se caso o emprego de reclamação administrativa, que tem amparo no art. 5°,
XXXIV, a, da Constituição Federal31.
Se não houver resposta expressa a esse pleito, configura-se o silêncio
administrativo da Administração Municipal32. Merece destaque que essa con­
duta constitui uma violação frontal à garantia fundamental do art. 5°, XX-
XIV, a, da Constituição Federal33.
Quando o locador privado protocola o seu pedido administrativo com o esco­
po de obter o pagamento dos aluguéis vencidos e inadimplidos, há a suspensão do
prazo prescricional da ação judicial, nos termos do art. 4o do Decreto Federal n°
20.910/193234. Em conformidade com jurisprudência pacífica do STF35e do

próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta". A Súmula n° 85 do STJ
tem a seguinte redação: "Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública
figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição
atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação",
31 A reclamação administrativa é instrumento mediante o qual o administrado defende direito ou
interesse diante de ato ou fato da Administração, observado o devido processo legal adminis­
trativo. No âmbito do Município, encontra-se disciplinada pelo Decreto Federal n° 20.910/
1932, naquilo que não afrontar a legislação municipal.
32 Como bem leciona Celso Antônio Bandeira de Mello: "Se a Administração não se pronuncia
quando deve fazê-lo, seja porque foi provocada por administrado que postula interesse
próprio, seja porque um órgão tem de pronunciar-se para fins de controle de ato de outro
órgão, está-se perante o silêncio administrativo" (op. c/t., p. 407).
33 Sobre a matéria, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. c/t., p. 409.
34 O art. 4° do Decreto Federal n° 20.910/1932 tem a seguinte redação: "Art. 4o N ão corre a
p rescriçã o durante a demora que, no estudo, no reconhecimento ou no pagamento da divida,
considerada líquida, tiverem as repartições ou funcionários encarregados de estudar e apurá-
la. Parágrafo Único. A su sp en sã o da p re sc riçã o , n este ca so , verificar-se-á p ela entrada do
requerim ento do titular do direito ou do cred or nos livros ou proto co los das repartições públicas,
com designação do dia, m ês e ano" (grifos acrescidos).
35 Como, por exemplo, no seguinte acórdão: "1. PRESCRIÇÃO - SILENCIO DO RÉU DENUNCIAN­
TE - DEFESA DO DENUNCIADO - EFEITOS. A defesa do denunciado aproveita ao denunciante.
Dai a ausência de preclusão pelo fato de o primeiro não haver veiculado, como matéria de
defesa, a prescrição - artigos 74 e 75 do Código de Processo Civil. 2. PRESCRIÇÃO - DIVIDA
DO ESTADO. Não há o curso da prescrição durante a apuração e estudo da dívida, na repartição
competente, provocados via requerimento do credor - artigo 4. do Decreto 20.910, de 6 de
janeiro de 1932. 3. PERDAS E DANOS - ATO DO ESTADO. O Estado e responsável pelas perdas
e danos sofridos pelo particular, em razão do retardamento indevido da satisfação de valores
contratados - artigos 159 e 1.056 do Código C ivil. 4. JUROS DA M ORA - A iliquidez da
6 2 8 - N o tas s o b r e a D e c a d ê n c ia d a I n v a l id a ç ã o d e C o n t r a t o ..

STJ36, a omissão da Administração em oferecer resposta expressa à petição do


administrado impõe o reconhecimento de tal situação jurídica.
Em regra, o prazo prescricional de um ano para o exercício da reclama­
ção administrativa, disposto no art. 6o do Decreto Federal n° 20.910/1932,
pode prejudicar alguma(s) parcela(s) da dívida da Fazenda Pública do Muni­
cípio com o locador privado. Contudo, é perfeitamente possível que a sua
incidência possa ser afastada no caso concreto.
E cediço que, ao lado dos interesses públicos - cuja tutela consta do rol de
suas competências constitucionais - o Município tem interesses secundários
no ordenamento jurídico como qualquer pessoa jurídica37. A sua proteção so­
mente é obrigatória para a Administração Municipal quando ela é instrumen­
tal e coincidente com o interesse primário, ou seja, o próprio interesse público.
Uma vez que o objeto do pedido administrativo sob exame envolve
interesse secundário da Administração Municipal, é perfeitamente pos­

obrigação atrai, como termo inicial da incidência dos juros da mora, a data da citação - artigo
1.536, par. 2 ., do Código C ivil. 5. CO RREÇÃO M ONETÁRIA - Lei 6.899/81 - CLÁUSU LA
CONTRATUAL ANTERIOR - EFEITOS. A existência de ajuste entre as partes, formalizado em data
anterior a edição da Lei n° 6.899/81, dispondo acerca do fator próprio a ser utilizado na correção
dos valores devidos, afasta a incidência da citada lei. 6. HO N ORÁRIO S ADVOCATICIOS -
FIXAÇÃO - FAZENDA PÚBLICA. Na fixação dos honorários advocatícios, observa-se o princípio
segundo o qual a parte compelida a vir a juízo defender direito próprio não deve, caso vencedo­
ra, sofrer diminuição patrimonial. Envolvendo o processo demandas diversas, consideradas as
pessoas acionadas e denunciação a lide, com participação da Fazenda Pública, abre-se campo
propício à fixação dos honorários de forma equânime - par. 4 do artigo 20 do Código de
Processo C ivil. 7. DEN UN CIAÇÃO DA LIDE - RESPONSABILIDADE DO DEN UN CIAD O . E
definida nos moldes do que ajustado ou previsto em lei. A demanda decorrente da denunciação
e limitada, no campo objetivo, pela real responsabilidade do denunciado" (STF, Ação Cível
Originária n° 381 /RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12.6.1991, publicado
no DJ de 9.8.1991). No mesmo sentido, consultar: STF, Recurso Extraordinário n° 113.900/SP,
1a Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 16.8.1988, publicado no DJ de 30.11.1990;
STF, Recurso Extraordinário n° 115.033/MG, julgado em 5.2.1988, publicado no DJ de 11.3.1988.
36 Como, por exemplo, no seguinte acórdão: "ADMINISTRATIVO. PRESCRIÇÃO. DEMORA NA
APRECIAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO. DO PRAZO PRESCRICIONAL.
CLÁU SU LA C O N TRATUAL. SÚM ULAS 5 E 7/STJ. 1. - A simples interpretação de cláusula
contratual e o reexame de provas não enseja recurso especial, por encontrar óbice nos enunciados
das Súmulas 5 e 7/STJ. 2. "Prescreve em cinco anos todo e qualquer direito contra a Fazenda,
contado o prazo da data do ato ou fato que lhe tenha dado origem. - Não corre, porém, a
prescrição enquanto a demora na apreciação de reclamação administrativa se deve à própria
administração." (REsp-13.794, Rel. Ministro Hélio Mosimann, DJ de 31 .8 .9 2.). 3. Recurso
Especial conhecido em parte e, nessa, não provido" (STJ, Recurso Especial n° 988.758/MA, 2a
Turma, Rel. Juiz Federal convocado Carlos Fernando Mathias, julgado em 3.6.2008, publicado
no DJe de 19.8.2008). No mesmo sentido, consultar: STJ, Agravo Regimental no Recurso
Especial n° 1,022.505/PR, 5a Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 16.12.2008, publicado
no DJe de 9.2.2009); e STJ, Agravo Regimental no Agravo n° 1.052.414/SE, 5a Turma, Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 28.8.2008, publicado no DJe de 22.9.2008.
37 Sobre a matéria, consultar: M ELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. c/t., p. 65-69.
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 2 9

sível a ocorrência da renúncia tácita prevista no art. 191 do Código Civil


de 200238.
Afinal, se a Administração Municipal pode empregar a arbitragem para
a resolução de conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis no negócio
jurídico sob apreciação, o que justificaria o afastamento da norma constante
do art. 191 do Código Civil de 2002 no caso concreto39?
Ao concluir a análise desse aspecto, adverte-se que a lição doutrinária de que
o silêncio administrativo tem efeito denegatório quando transcorrido prazo razoável
não é aplicável à situação jurídica sob apreciação. Ela não se justifica na reclamação
administrativa em face do art. 4o do Decreto Federal n° 20.910/1932 e da
interpretação que o STF e o STJ têm legado a esse enunciado normativo.

5. O DIREITO DO LOCADOR PRIVADO À COMPENSAÇÃO DOS


CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS EXECUTADOS PELA FAZENDA PÚBLICA
LOCAL COM OS DÉBITOS CONTRATUAIS DA ADMINISTRAÇÃO
M u n ic ip a l em l o c a ç ã o d e im ó v e l u r b a n o p a r t ic u l a r

A compensação constitui uma modalidade de extinção do crédito tri­


butário, nos termos do art. 156 II, do Código Tributário Nacional (Lei Fede­
ral n° 5.172, de 25.10.1966)40.
Consoante o art. 368 do Código Civil de 2002, se duas pessoas forem,
simultaneamente, credor e devedor uma da outra, as duas obrigações devem
ser extintas na medida em que se compensarem41. Para que a compensação
seja admitida, exige-se que:

38 O art. 161 do Código Civil de 1916 possui redação similar.


39 Vide art. 1o da Lei Federal n° 9.307, de 23.9.1996. Vide art. 23, XV, e art. 23-A, ambos da Lei
Federal n° 8.987, de 13.2.1995. Vide art. 11, III, da Lei Federal n° 11.079, de 30.12.2004.
Sobre a possibilidade do uso da arbitragem pela Administração, consultar: GASPARINI, Diógenes.
Direito administrativo, 14a ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 776-777.
40 Como se sabe, o Código Tributário Nacional foi recepcionado pelo sistema constitucional
vigente como lei complementar que deve ser observada pelo Município, por força do art. 146
da Constituição Federal.
41 Em verdade, o art. 156 do Código Tributário Nacional compreende hipóteses de extinção da
obrigação tributária, constituindo o crédito tributário um elemento de sua estrutura que
compreende o direito subjetivo do fisco. Vide art. 3o do Código Tributário Nacional. Sobre a
matéria, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 20a ed. São Paulo:
Ed. Saraiva, 2009, p. 485-486; e CON RADO , Paulo César. Compensação tributária e processo.
São Paulo: Max Limonad, 2003.
6 3 0 - N o tas s o b r e a D e c a d ê n c ia d a I n v a l id a ç ã o d e C o n t r a t o ..

(i) as obrigações tenham origem em títulos diversos;


(ii) as obrigações sejam homogêneas, líquidas e exigíveis42.
Também é perfeitamente possível que a compensação não resulte na
extinção de ambas as obrigações, mas sim, no término de uma e na redução da
dívida constante da outra.
Além desses requisitos, a compensação de crédito tributário municipal
(ou débito do contribuinte) com débito não tributário da Administração
municipal (ou crédito não tributário do contribuinte) deverá ser autorizada
por lei desse ente federativo para que ela possa ser admitida. É que impõe o
art. 170 do Código Tributário Nacional43.
É lícito ao locador privado ter a pretensão de compensar os créditos tri­
butários lançados e executados pelo fisco local com os débitos da Administra­
ção Municipal gerados pelo inadimplemento contratual desta em negócio
jurídico de locação.
De acordo com o art. 17-A, caput, do Código Tributário Municipal (Lei
Municipal n° 3.882, de 11.12.1989), a Administração Tributária está autoriza­
da a proceder à compensação de créditos tributários vencidos com créditos líqui­
dos e certos do contribuinte contra a Fazenda Pública44. Convém anotar que o
diploma legal citado admite a compensação de “créditos tributários e não tributá­
rios vencidos com outros créditos não compreendidos nos incisos anteriores, ouvi­
das a Controladoria Geral do Município e a Procuradoria Geral do Município de

42 Vide art. 369 do Código Civil de 2002. Sobre a matéria, consultar: COM ES, Orlando. Obriga­
ções, 8a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 156-161; PEREIRA, Caio M ário da Silva.
Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações, 20a ed., atualização de Luiz Roldão
Freitas Comes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2, p. 254-270; LOPES, Miguel Maria de Serpa.
Curso de direito civil: obrigações em geral, 5a ed., atualização de José Serpa Santa Maria, Rio de
Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1989, v. 2, p. 240-256; e TEPED IN O , Gustavo;
BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado con­
forme da Constituição,da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, v. 1, p. 673-687.
43 O art. 170 do Código Tributário Nacional tem a seguinte redação: "Art. 170. A lei pode, nas
condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à
autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líqui­
dos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública. Parágrafo
único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste
artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a
correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da
compensação e a do vencimento".
44 O art. 1 7-A, caput, do Código Tributário M unicipal tem a seguinte redação: "Art. 1 7-A.
Fica a Administração Municipal autorizada a proceder à compensação de créditos tributá­
rios ou não tributários vencidos, com créditos líquidos e certos do sujeito passivo contra
a Fazenda M unicipal".
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 31

Natal”4S. Ainda se observa nesse texto normativo que a competência para deferir
a compensação pertence à Secretaria Municipal de Tributação46.
Para o deferimento do pedido de compensação do locador privado, a
legislação municipal exige apenas:
(i) que o crédito tributário que se deseja compensar esteja vencido; e,
(ii) que o crédito do contribuinte seja líquido e certo.
Não se reconhece à Administração Tributária espaço para o emprego de
critérios de conveniência e oportunidade no julgamento dos pedidos de com­
pensação fundados no art. 17-A do Código Tributário Municipal. Caso seja
demonstrado pelo contribuinte que ele preenche os requisitos legais, a autori­
dade administrativa competente tem o dever jurídico de deferir a compensa­
ção que lhe foi solicitada. Trata-se, sem dúvida, de competência vinculada47.
Por conseguinte, o locador privado tem direito subjetivo à compensação
dos créditos tributários municipais que estão sendo executados com os débi­
tos gerados pelo inadimplemento contratual da Administração Municipal
no caso concreto.
Com amparo nessa premissa, chega-se facilmente à conclusão de que o
locador privado tem plena legitimidade para obter tutela jurisdicional para
a compensação pretendida, sem a necessidade do esgotamento da via ad­
ministrativa, como lhe faculta o art. 5o, XXXV, da Constituição Federal48.

45 Vide art. 17-A, § 1o, IV, do Código Tributário Municipal. Não incide no caso concreto o inciso
II do mesmo dispositivo legal, que se refere ao "crédito licitado", haja vista o negócio jurídico
sob exame ter sido celebrado por meio de dispensa de licitação.
46 Vide art. 17-A, § 6o, do Código Tributário Municipal.
47 Nesse sentido, leciona Misabel Abreu Machado Derzi: "A compensação é sempre autorizada por
lei, inexistindo margem de arbítrio ou discricionariedade à Administração Fazendária. Se conce­
dida em lei genérica, independe de despacho individual autorizativo. Se porém tiver caráter
individual, o despacho concessivo, comprovado o preenchimento das condições e requisitos,
deve aplicar a norma legal, uniforme e isonomicamente. O indeferimento somente se legitima em
ato administrativo fundamentado, nunca em decorrência de arbítrio (querer qualquer não justi­
ficado na lei)" (BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, 11a ed., atualização de Misabel
Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 901). Ao tratarmos da figura do
ato administrativo vinculado, asseveramos em outra oportunidade: "Nos atos vinculados, o
juízo de oportunidade já foi analisado e definido pelo legislador, e, por conseguinte, inexistindo
espaço para uma avaliação subjetiva de conveniência e oportunidade da ação estatal no caso
concreto" (FRANÇA, Vladimir da Rocha. Invalidação judicial da discricionariedade administrativa
no regime jurídico-administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2000, p. 103).
48 Vide Súmula n° 213 do Superior Tribunal de justiça. Sobre a matéria, consultar: CAIS,
C leide Previtalli. Processo tributário, 3a ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996,
p. 57-66.
6 3 2 - N o ta s s o b r e a D e c a d ê n c ia da I n v a l id a ç ã o d e C o n t r a t o .

Numa abordagem apressada, poder-se-ia arguir o art. 170-A do Código


Tributário Nacional49como obstáculo legal à compensação pedida pelo locador
privado. Entretanto, uma leitura atenta desses enunciados normativos leva à
constatação de que eles somente são aplicáveis às compensações de “créditos
tributários vencidos com indébitos tributários, apurados em processo fiscal ad­
ministrativo, do mesmo sujeito passivo”50. Afinal, quer-se aproveitar aluguel
inadimplido, e não tributo, na compensação suplicada pelo administrado.
Feitas essas considerações, convém analisar se o locador privado satisfaz
os requisitos legais para a extinção dos créditos tributários que estão sendo
executados pela Fazenda Pública do Município.
A existência de títulos diversos entre as obrigações que se deseja com­
pensar é nítida e dispensa maiores considerações. Há, de um lado, os atos
administrativos de lançamento tributário dirigidos pela Administração Tri­
butária local ao locador privado51; do outro, o contrato de locação celebrado
entre o locador privado e a Administração Municipal, que tem força de título
executivo extrajudicial por injunção do art. 585, V, do Código de Processo
Civil (Lei Federal n° 5.869, de 11.1.1973).
Também não há dúvida pertinente quanto à homogeneidade das presta­
ções que compõem o objeto das obrigações a serem compensadas, dado o
caráter pecuniário de todas elas.
No que concerne à liquidez e à exigibilidade dos créditos tributários que
se deseja extinguir, não existe igualmente maiores controvérsias. A oposição
da Administração Municipal reside justamente na certeza, exigibilidade e
liquidez dos créditos do locador privado.
Na situação jurídica sob exame, assevere-se que a existência e a exigibili­
dade da dívida da Administração Municipal para com o locador são plena­
mente consolidadas quando:
(i) a Administração Municipal não paga os aluguéis nos moldes con­
vencionados no negócio jurídico celebrado entre as partes em litígio;

49 O art. 170-A.do Código Tributário Nacional tem a seguinte redação: "Art. 170-A. É vedada a
compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo
sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial". A redação do art.
17-A, § 5o, do Código Tributário Municipal é idêntica.
50 Vide art. 165 a 1 69 do Código Tributário N acional. Vide art. 17-A, § 1o, V, do Código
Tributário M unicipal.
51 Vide art. 142, 173 e 174 do Código Tributário Nacional.
V la d im ir d a R o c h a F r a n ç a - 6 3 3

(ii) houve a estabilização da validade do referido contrato em razão


da decadência da invalidação administrativa que seria teorica­
mente cabível; e,
(iii) a ação judicial adequada para a cobrança dos aluguéis inadimpli-
dos não foi atingida pela prescrição.
A liquidez dos débitos da Administração Municipal com o locador privado
está assegurada quando este apresenta o principal e os acessórios de cada aluguel
sonegado na forma da lei, desde sua primeira tentativa de exigi-los administrativa­
mente52. Se a dúvida reside apenas na taxa de juros aplicável para sua correção, não
há como recusar-lhes tal atributo. Ainda mais quando o instrumento contratual
estabelece a aplicação dos índices e parâmetros das cobranças da Fazenda Pública
local ao cálculo dos valores devidos em virtude do inadimplemento contratual.

6 . C o n s id e r a ç õ e s f i n a i s

A Administração do Município de Natal/RN tem o dever de pagar, ao


locador privado, os aluguéis decorrentes da execução regular do contrato de
locação assinado por autoridade competente, malgrado a alegação em juízo de
sua nulidade. Especialmente quando o negócio jurídico teve a sua validade
estabilizada em razão da decadência da invalidação administrativa que seria
teoricamente possível no caso concreto.
Os créditos do locador privado não são atingidos pela prescrição da ação
judicial cabível para receber os créditos gerados pelo inadimplemento contra­
tual quando o prazo em apreço é suspenso na pendência de reclamação admi­
nistrativa ainda não expressamente julgada pela Administração Municipal.
Por fim, registre-se que o locador privado tem o direito à compensação
tributária dos créditos dos aluguéis inadimplidos pela Administração Muni­
cipal com os débitos tributários junto à Fazenda Pública desta e que estão
sendo executadas. Para tanto, basta que haja o atendimento dos requisitos
exigidos pela legislação tributária em vigor.

52 Como leciona Cândido Rangel Dinamarco: "Liquidez é o conhecimento da quantidade de


bens devidos ao credor. Uma obrigação é líquida (a) quando já se encontra perfeitamente
determinada a quantidade dos bens que lhe constituem o objeto ou (a) quando essa quantida­
de é determinável mediante a realização dos meros cálculos aritméticos, sempre sem necessida­
de de buscar elementos ou provas necessários ao conhecimento do quantum" (Instituições de
direito processual civil, 3a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, v. 4, p. 231-232).
Não aplicação da Lei
11.638 ao Regime das
Microempresas -
Desnecessidade de
Auditoria de Balanço ao
Regime do Super Simples

Walter Giuseppe Manzi


Ex-procurador da Fazenda Nacional, Advogado e Professor da
Pós-graduação da UFPE.
W a l t e r G iu seppe M a n z i - 6 3 7

1. In tro d u ç ã o

Em 01 de janeiro de 2008, entrou em vigor a Lei n° 11.638, publicada


em 28 de dezembro do ano anterior, alterando dispositivos da Lei n° 6.404/76,
a chamada Lei das Sociedades Anônimas, e da Lei n° 6.385/76, que disciplina
o Mercado de Valores Mobiliários.
O novo regramento buscou adequar a prática contábil das sociedades
brasileiras às normas internacionais de contabilidade, consubstanciadas no
conhecido IFRS (International Financial Reporting Standards), na esteira do
que já vinha sendo empregado em grande parte dos países de economia sólida
do mundo, a exemplo da União Européia, que as adotou desde 2005. Tudo
isso, ressalta-se, com a clara finalidade de conferir maior transparência às ati­
vidades empresariais, oferecendo maior segurança ao investidor.
Não nos preocuparemos neste trabalho em analisar cada uma dessas mudan­
ças nos conceitos contábeis trazidas pelo novo diploma. O que nos chama atenção
por ora relaciona-se ao outro objeto da lei, descrito em seu artigo 3o, que estende
às sociedades de grande porte algumas disposições relativas à elaboração e divulga­
ção de demonstrações financeiras, mais especificamente a obrigatoriedade de au­
ditoria de balanço por auditores independentes, o que já era exigido às companhias
abertas, por força do art. 177, §2°, da Lei n° 6.404/76, retro mencionada.
Seria essa obrigação imposta também às micro e pequenas empresas, sub­
metidas ao recolhimento unificado dos tributos sob o regime do Super Sim­
ples, disciplinado pela Lei Complementar n° 123, de 2006? É sobre isto que
discorreremos adiante.

2 . Â m b it o d e a p l ic a ç ã o d a L ei n ° 6 . 4 0 4 / 7 6

Inicialmente, cumpre esclarecer que a retro mencionada Lei n° 6.404/76


foi originalmente editada para regular as sociedades por ações, neste conceito
englobadas as sociedades anônimas e as sociedades em comandita por ações.
Posteriormente, por força do Decreto-Lei n° 1.598/77, também as sociedades
limitadas submetidas à apuração do imposto de renda sob a modalidade de
lucro real passaram a se sujeitar à disciplina da Lei n° 6.404/76 no que toca à
forma de apuração do lucro.
Com a edição do Novo Código de Civil de 2002 (Lei n° 10.406/02), na
tentativa de unificar formalmente o Direito Privado, foi incluído um livro
638 - Não a p lic a ç ã o d a Lei 11.638 a o Regime d as M icro em presas

específico tratando do “Direito da Empresa”, que entre outras disposições,


buscou tratar individualmente cada tipo societário, o que poderia levar um
intérprete desavisado a concluir que a mencionada Lei n° 6.404 havia sido
derrogada pelo novo diploma consolidado civil.
Todavia, sendo impossível ao novo Código conseguir regular de forma
especificada todo o espectro civil e empresarial, o que de fato ocorreu foi
apenas uma unificação parcial do regime privado, que continuou convivendo
com diversas leis esparsas, a exemplo da aludida Lei da S/A. Prova disso é o
expresso teor do artigo 1.089 do próprio CC/02, que assim dispõe:
Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-
lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.
A Lei n° 6.404/76, portanto, não só foi recepcionada pela Constituição
Federal de 1988, como conservou sua vigência na regulação das sociedades por
ações e daquelas constituídas sob outro tipo societário, até mesmo como socie­
dade limitada, desde que apure seu IRPJ com base no lucro real do exercício.
Destarte, tratando-se de sociedade ou firma enquadrada em algum des­
ses casos, a Lei n° 6.404/76 é o diploma a ser obedecido, apenas se valendo de
outros instrumentos normativos, como o Código Civil, em caso de lacuna na
legislação especial.
A contrario sensu, constituindo-se na forma de outra espécie societária
diferente da sociedade anônima e não apurando o IRPJ pelo lucro real, é
indubitável que está fora do âmbito de aplicação da Lei n° 6.404, que poderá
contudo ser aplicada subsidiariamente quando omissa for a legislação princi­
pal, seja o Código Civil ou outra norma legal esparsa, desde que logicamente
se apresente compatível com o tipo societário em destaque.
A Lei n° 11.638, entretanto, trouxe uma inovação ao ampliar o âmbito
de aplicação da aludida Lei n° 6.404/76, que passa, a partir de então, a disci­
plinar algumas matérias atinentes às chamadas sociedades de grande porte.
Mas o que se entende por sociedade de grande porte? Seria um novo
tipo societário?
A resposta a esta última pergunta é negativa, visto que o enquadramento
de uma empresa nessa classificação toma por base apenas fatores monetários.
Isto é o que prevê o parágrafo único do aludido artigo 3o, in verbis:
Art. 3o, Parágrafo único. Considera-se de grande porte, para os fins exclu­
sivos desta Lei, a sociedade ou conjunto de sociedades sob controle comum
W a l t e r G iu s e p p e M a n z i - 6 3 9

que tiver, no exercício social anterior, ativo total superior a R$


240.000.000,00 (duzentos e quarenta milhões de reais) ou receita bruta
anual superior a RS 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais).
Dessa feita, independentemente do tipo societário sob o qual esteja cons­
tituída, a sociedade ou conjunto de sociedades que apresente ativo ou receita
bruta superior aos valores descritos no referido tipo legal deverá sujeitar-se a
algumas regras da Lei n° 6.404/76, relacionadas à escrituração, elaboração de
demonstrações financeiras e, especialmente, à obrigatoriedade de auditoria
independente, imposição esta que a Lei n° 11.637 fez questão de ressalvar de
forma expressa como será examinado mais adiante.

3 . E n q u a d ra m e n to c o m o m icroem presa (ME) e empresa


DE PEQUENO PORTE (EPP). O P Ç Ã O PELO REGIME DO
Su p e r Sim ples (LC 1 2 3 / 2 0 0 6 )

Antes de adentramos de fato na análise do objeto principal deste estudo,


que é a análise da obrigatoriedade das micro e pequenas empresas optantes do
Super Simples de realizar auditoria independente de suas demonstrações fi­
nanceiras, mostra-se de fundamental importância esclarecer quais são essas
sociedades ou firmas individuais que se submetem ao regime unificado de
arrecadação dos tributos.
Assim, em primeiro lugar, é pertinente ressaltar que microempresa (ME)
e empresa de pequeno porte (EPP), tal qual as sociedades de grande porte,
não são novos tipos societários como a muitos possa parecer. A necessidade de
enquadramento como M E e EPP, na verdade, refletiu um mandamento cons­
titucional, inserto nos artigos 170, IX, e 179 da Carta Magna, que bus­
cou garantir tratamento jurídico diferenciado a determinadas sociedades e
firmas individuais que, não obstante aufiram menor monta de receitas, são
grandes responsáveis pela estabilidade da economia de qualquer país.
Eis o teor dos mencionados dispositivos constitucionais:
Art. 170. A ordemeconômica, fundada navalorização do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, confor­
me os ditames dajustiça social, observados os seguintes princípios: (...)
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituí­
das sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
640 - N ã o a p lic a ç ã o d a Lei 11.638 a o Regime das M icro em p resas

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispen­


sarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas
em lei, tratamentojurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela sim­
plificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias
e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Como pode se inferir do próprio regramento constitucional, coube ao legis­
lador ordinário definir o que se entende por um e outro conceito, o que se concre­
tizou em 1996, com a edição da Lei n° 9.317, que instituiu o Sistema Integrado
de Pagamento de Impostos e Contribuições no âmbito federal (Simples Federal)
e definiu inicialmente como microempresa aquela pessoa jurídica que auferisse no
ano-calendário receita bruta igual ou inferior a R$ 120.000,00 (cento e vinte mil
reais), e empresa de pequeno porte como sendo aquela que auferisse, no mesmo
período, receita bruta superior a R$120.000,00 (cento e vinte mil reais) e igual ou
inferior a R$720.000,00 (setecentos e vinte mil reais).
Em 11 de dezembro de 1998, foi editada a Lei n° 9.732, majorando o
limite máximo de receita para enquadramento de uma empresa como sendo
de pequeno porte de R$ 720.000,00 (setecentos e vinte mil reais) para R$
1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais).
Posteriormente, por força da Lei n° 11.196/2005, foram alterados os parâ­
metros utilizados para o enquadramento como M E e EPP, no que foi seguido
fielmente pela Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006. O novel
diploma complementar, que instituiu o Super Simples, tratamento jurídico dife­
renciado às M E e EPP previsto pela Carta Magna, adiante analisado, tratou de
dar nova regulação ao tema, definindo-as em seu art. 3o, nos seguintes termos:
Art. 3o Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se
microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária,
a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei n°
10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro
de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, con­
forme o caso, desde que:
I - no caso das microempresas, o empresário, a pessoajurídica, ou a ela
equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou in­
ferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais);
II - no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa
jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita
bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e
W a lt e r Giuseppe M a n z i - 641

igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos


mil reais).
Este é o conceito atualmente vigente de Microempresa e Empresa de
Pequeno Porte. Diante disso, um questionamento é inevitável: auferindo re­
ceita bruta que se enquadre nos parâmetros acima referenciados, estaria aque­
la sociedade ou firma individual automaticamente apta a usufruir dos benefícios
da LC 123/2006 (SUPER SIMPLES)?
A resposta a essa pergunta é Não!
A Lei Complementar 123/06 elencou basicamente duas causas que
impedem a opção pelo Super Simples.
A primeira delas já foi há pouco detalhada, consistente na vinculação à
receita bruta auferida pela pessoa jurídica. Logo, caso não se enquadre dentro
dos parâmetros acima referenciados para enquadramento como microempresa
ou empresa de pequeno porte, impossível será a opção pelo regime diferenciado
instituído por aquela Lei.
A segunda causa de vedação à opção pelo Super Simples, por sua vez,
relaciona-se a caracteres específicos da sociedade, tal qual descritos no art. 4o
da própria LC 123/06.
Entre essas hipóteses, o aludido art. 4o é claro ao vedar a inclusão no
regime do Super Simples de determinadas pessoas jurídicas que, embora se
encaixem na noção legal de M E e EPP, prescindiriam dos benefícios concedi­
dos pela lei, a exemplo das sociedades por ações, previstas em seu inciso X:
§ 4o Não poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado pre­
visto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12
desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica:
(Redação dada pela LC 128/2008)
(...)
X - constituída sob a forma de sociedade por ações
Ora, para se entender essa vedação, faz-se necessário atentar para os mo­
tivos e circunstâncias que justificaram a criação desse regime especial unifica­
do de arrecadação de tributos e contribuições.
Em um primeiro momento, não se pode olvidar que, em complementa-
ção aos artigos 170 e 179, retro transcritos, a Emenda Constitucional n° 42,
de 19 de dezembro de 2003, cuidou de prever mais um instrumento para o
642 - Não a p lic a ç ã o d a L ei 11.638 a o Regime d as M icro em p resas

desenvolvimento da atividade dos micro e pequenos empresários, ao acrescen­


tar uma alínea e o parágrafo único ao artigo 146 do texto constitucional, que
assim dispõem:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes
especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II,
das contribuições previstas no art. 195,1 e §§ 12 e 13, e da contribuição
a que se refere o art. 239.
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, tam­
bém poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e
contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí­
pios, observado que:
I - será opcional para o contribuinte;
II - poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferencia­
das por Estado;
III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da
parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será
imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento;
IV- a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas
pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes.
Assim, com o fito de regulamentar esses novos dispositivos constitucionais,
foi aprovada, em 14 de dezembro de 2006, a Lei Complementar n° 123, que
instituiu o regime unificado de arrecadação de impostos e contribuições conheci­
do por Super Simples, cujo objetivo precípuo não era outro senão diminuir os
custos e a complexidade da atividade empresarial desses menores empresários, sem
se esquecer logicamente do interesse oculto dos Fiscos de garantir a arrecadação.
Como bem deixou assentado o Deputado Luiz Carlos Hauly, em seu
parecer apresentado à Comissão Especial responsável pela apreciação do Pro­
jeto da LC 123 (Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/
355888.pdf>):
“Segundo ajustificativa do Projeto de Lei Complementar n° 123, de2004,
na década de noventa, o número de tais empresas [ME e EPP] chegava,
W a l t e r G iu s e p p e M a n z i - 6 4 3

no Estado de São Paulo, a noventa e setepor cento do total de estabeleci­


mentos empresariais, sendo que, desse montante, oitenta e sete por cento
eram. microempresas.
Após a implantação do Simples, o qualpossibilitou o recolhimento unificado
de diversos tributos e contribuiçõesfederais, vários Estados Federados ado­
taram medidas semelhantes em suas respectivas áreas de competência, as
quais, contudo, faziam uso de normas de enquadramento e alíquotas bas­
tante diferenciadas, dada a autonomiapolítica destes entes.
Nesse sentido, a Emenda Constitucional n° 42, de 2004, veio a atender
um anseio quejá sefazia sentir, qual seja, o de se criar um mecanismo de
recolhimento dos tributos e contribuições devidos em todos os entes dafede­
ração, de modo unificado, com menores custos para as microempresas e
empresas de pequeno porte".
A pessoa jurídica que optar por se inscrever no Simples Nacional, por­
tanto, terá, entre outros benefícios:
a) tributação com alíquotas mais favorecidas e progressivas, de acordo
com a receita bruta auferida;
b) recolhimento unificado e centralizado de impostos e contribuições
federais, com a utilização de um único Darf, no qual estarão incluídos os
impostos estaduais e municipais;
c) cálculo simplificado do valor a ser recolhido, apurado com base na
aplicação de alíquotas unificadas e progressivas, fixadas em lei, incidentes so­
bre uma única base, a receita bruta mensal;
d) possibilidade de adoção de livro caixa no qual serão escrituradas toda
a movimentação financeira e bancária;
e) parcelamento de débitos de forma favorecida;
f) dispensa de algumas obrigações trabalhistas, etc.
Não resta dúvidas, portanto, que a LC 123 desempenhou um papel
fundamental no exercício da atividade empresarial no Brasil, libertando as
M E e EPP que optem pelo regime do Super Simples de maiores entraves na
consolidação de suas demonstrações contábeis e fiscais.
Dito isso, agora sim se pode entender por que as sociedades constituídas
por ações não podem optar por tal regime unificado de arrecadação. Caracte­
rizada por uma complexa sistemática contábil, a natureza das sociedades por
644 - Não a p lic a ç ã o d a L ei 1 1 .638 a o Regime das M icro em p resas

ações simplesmente é incompatível com o espírito do Super Simples, que não


se resume apenas ao recolhimento unificado de tributos.

4 . D a o b rig ato ried ad e de a u d it o r ia independente n o s


BALANÇOS PATRIMONIAIS

Esclarecido o conceito de microempresa e de empresa de pequeno porte


e separados os campos de aplicação da Lei n° 6.404/76 e da Lei Complemen­
tar n° 123, torna-se possível então passarmos ao exame do escopo principal
deste artigo, qual seja, a exigência de auditoria independente nas demonstra­
ções financeiras das M E e EPP.
Antes, cumpre advertir que o objetivo das demonstrações financeiras
não é outro senão demonstrar ao próprio empresário, acionista, cotista, e até
mesmo ao investidor, as informações confiáveis acerca da posição financeira,
do desempenho financeiro e dos fluxos de caixa de uma certa pessoa jurídica.
Ademais, uma das demonstrações financeiras mais importantes é o co­
nhecido balanço patrimonial, que, em suma, é a representação organizada
daquilo que a empresa tem e pode utilizar no exercício de sua atividade, e
daquilo que a empresa deve num determinado momento.
Com base nisso, a Lei n° 6.404/76 impõe às pessoas jurídicas por ela
disciplinadas que:
Art. 176. Ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar, com
base na escrituração mercantil da companhia, as seguintes demonstra­
ções financeiras, que deverão exprimir com clareza a situação do
patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício:
I - balanço patrimonial; (...).
Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros per­
manentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta
Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo ob­
servar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as
mutações patrimoniais segundo o regime de competência.
No mesmo sentido, o Novo Código Civil de 2002 também obriga o
empresário e a sociedade empresária a manter um sistema de escrituração con­
tábil, nos seguintes termos:
W a l t e r G iu sep p e M a n z i - 6 4 5

Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a


seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na
escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a docu­
mentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o
de resultado econômico.
Todavia, o parágrafo 2o do mesmo artigo do diploma consolidado civil
prevê exceção ao disposto no seu caput, justamente em favor das microempre­
sas e empresas de pequeno porte, às quais a lei assegura tratamento favorecido,
diferenciado e simplificado (art. 970, CC), dispensando-as da obrigatorieda­
de de manutenção de uma escrituração contábil-financeira estruturada:
Art. 1.179. (...)
§ 2o E dispensado das exigências deste artigo o pequeno empresário
a que se refere o art. 970.
O art. 970, retro referido, entretanto, não continha definição expressa de
quem poderia ser considerado como “pequeno empresário”, o que poderia
acarretar dúvidas quanto à efetividade do dispositivo.
Com a edição da LC 123/06, entretanto, tal impasse foi solucionado
pela previsão contida no art. 68 do mencionado diploma, que assim estatui:
Art. 68. Considera-se pequeno empresário, para efeito de aplicação
do disposto nos arts. 970 e 1.179 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro
de 2002, o empresário individual caracterizado como microempresa na
forma desta Lei Complementar que aufira receita bruta anual de até
R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais).
Com a inclusão desse dispositivo, portanto, passamos a conviver com
05 (cinco) regimes jurídicos distintos no que concerne à forma de escritura­
ção contábil.
O primeiro regime é aquele aplicável às pessoas jurídicas não enqua­
dradas como microempresa ou empresa de pequeno porte, mas que não se
submetessem aos ditames da Lei n° 6.404/76 (Lei das S/A), tais como as
sociedades limitadas que apuram IRPJ sob a modalidade de lucro presumi­
do. Essas sociedades devem, então, seguir o que dispõe o art. 1.179 do Có­
digo Civil, que as obriga a manter sistema de contabilidade, mecanizado ou
não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência
com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimo­
nial e o de resultado econômico.
6 4 6 - N ã o a p l ic a ç ã o d a L ei 1 1 . 6 3 8 a o R e g im e d a s M ic r o em p r esa s

O segundo regime de escrituração contábil é o que deve ser seguido pelas


sociedades anônimas e demais pessoas jurídicas abarcadas pela Lei n° 6.404/76,
cujo âmbito de abrangência restou esclarecido no item 2, supra. Essas sociedades,
como visto, estão submetidas a regras de escrituração de elevada complexidade,
entre elas a obrigatoriedade de auditoria de balanço por auditores independentes.
O terceiro grupo, por sua vez, compreende aquelas pessoas jurídicas referi­
das no art. 68 da LC 123/06, retro transcrito, ou seja, os empreendedores indi­
viduais com receita bruta acumulada no ano de até R$ 36.000,00 (trinta e seis
mil reais). Para esses, o diploma complementar permite que façam a comprova­
ção da receita bruta mediante apresentação de registro de vendas independente­
mente de documento fiscal de venda ou prestação de serviço, ou escrituração
simplificada das receitas, consoante previsto no § Io de seu art. 26, in verbis:
Art. 26. (...)
§ Io Os empreendedores individuais com receita bruta acumulada no
ano-calendário de até R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais), na forma
estabelecida em ato do Comitê Gestor, farão a comprovação da receita
bruta, mediante apresentação do registro de vendas ou de prestação de
serviços, ficando dispensados da emissão do documento fiscal previsto
no inciso I do caput deste artigo, ressalvadas as hipóteses de emissão
obrigatória previstas pelo referido Comitê.
§ 2o As demais microempresas e as empresas de pequeno porte, além
do disposto nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão, ainda,
manter o livro-caixa em que será escriturada sua movimentação finan­
ceira e bancária.
Por fim, o quarto e o quinto regime jurídicos, na verdade, distinguem-se
por uma simples característica. Todas as sociedades neles abarcadas são en­
quadradas como microempresa ou empresa de pequeno porte e auferem re­
ceita bruta anual superior a R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais). Ademais,
todas estão obrigadas a manter livro-caixa em que será escriturada sua movi­
mentação financeira e bancária, conforme previsto no supra transcrito § 2o do
art. 26. Qual a diferença então?
A distinção entre um e outro grupo de M E e EPP consiste na possibili­
dade de adoção de contabilidade simplificada para fins de registro das opera­
ções realizadas, de acordo com regulamentação editada pelo Comitê Gestor.
Todavia, a quem se faculta tal opção?
W a l t e r G iu sep p e M a n z i - 6 4 7

A resposta a esse questionamento vem consubstanciada no art. 27 da LC


123/06, abaixo transcrito:
Art. 27. As microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo
Simples Nacional poderão, opcionalmente, adotar contabilidade
simplificada para os registros e controles das operações realizadas, con­
forme regulamentação do Comitê Gestor.
O quarto regime jurídico de escrituração abarca, portanto, as M E e EPP
que não se enquadrem na noção de empreendedor individual e que tenham
optado pelo Super Simples, diferenciando-se do último grupo apenas por per­
mitir a adoção de contabilidade simplificada, o que não se faculta àquelas M E
e EPP que não optaram pela adesão ao Super Simples, ou Simples Nacional,
como preferiu chamar o legislador complementar.
Dessa feita, às M E e EPP que se submetem ao regime do Super Simples
não se atribuem maiores dificuldades no procedimento de escrituração de
suas contas, mas tão só a verificação de simples levantamentos contábeis, na
esteira do espírito empreendido pela LC 123.
Ademais, quando analisada a obrigação de realização de auditorias inde­
pendentes nos balanços patrimoniais, a questão fica ainda mais clara.
Essa imposição foi prevista inicialmente pela Lei n° 6.404/76, que no
parágrafo 3o de seu art. 177, com redação nova dada pela Lei n° 11.941/09,
assim determina:
§ 3o As demonstrações financeiras das companhias abertas observa­
rão, ainda, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários
e serão obrigatoriamente submetidas a auditoria por auditores inde­
pendentes nela registrados.
Essa obrigação, contudo, consoante se infere da própria dicção legal, não
se aplica tampouco a todos os tipos societários submetidos à Lei n° 6.404,
mas atinge tão somente as companhias abertas.
O porquê dessa restrição está nas peculiaridades dessa espécie de socie­
dade, que capta recursos no mercado de valores mobiliários, demandando as­
sim um grau elevadíssimo de publicidade e confiabilidade em suas
demonstrações financeiras.
Essa necessidade de transparência e credibilidade, aliás, é a razão pela qual
a Lei n° 11.638/07, em seu artigo 3o, estendeu igual obrigação às sociedades de
grande porte, definidas no item 2 supra. Eis o teor do aludido dispositivo:
6 4 8 - N ã o a p l ic a ç ã o d a L ei 1 1 . 6 3 8 a o R e g im e d a s M ic r o em p r esa s

Art. 3o Aplicam-se às sociedades de grande porte, ainda que não cons­


tituídas sob a forma de sociedades por ações, as disposições da Lei n°
6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de
demonstrações financeiras e a obrigatoriedade de auditoria indepen­
dente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários.

5 . C o n clu sã o

Por todo o exposto, não resta dúvidas de que essa obrigatoriedade de


realização de auditoria nos balanços patrimoniais por auditores independen­
tes não se aplica às microempresas e empresas de pequeno porte.
Mas não é só a ausência de previsão legal que impede essa imposição.
Como se pretendeu deixar demonstrado ao longo desse estudo, tal imposição
se apresenta totalmente incompatível com a realidade em que se encaixam as
M E e EPP, mormente aquelas optantes do Super Simples. Dessa forma, ain­
da que houvesse disposição legal prevendo essa obrigação, seria ela claramente
inconstitucional por minar a eficácia dos artigos 146, “d” e parágrafo único,
170, IX, e 179, todos da Constituição Federal.

R e f e r ê n c ia s B i b l i o g r á f i c a s

SANTOS, Cleônimo dos; BARROS, Sidney Ferro. Manual do super simples, 2a ed. São Paulo:
IOB, 2009.
HAULY, Deputado Luiz Carlos. Parecer ao projeto da LC 123. Disponível em: <http://
www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=355888>. Acesso em: 10 ago. 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
______ . Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
______ . Decreto-Lei n° 1.598, de 26 de dezembro de 1977.
______ . Lei n° 9.317, de 5 de dezembro de 1996.
______ . Lei n° 9.732, de 11 de dezembro de 1998.
______ . Código Civil. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
______ . Lei n° 11.196, de 21 de novembro de 2005.
______ . Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Lei Complemen­
tar n° 123, de 14 de dezembro de 2006.
______ . Lei n° 11.638, de 28 de dezembro de 2007.
______ . Lei n° 11.941, de 27 de maio de 2009.
5) Tributação e Processo
I
I
I
I1
1

1
Constitucionalidade da
Cláusula Geral Antievasão
Atípica - Art. 116,
Parágrafo Único do CTN*

André Gustavo Barros Leite


Graduado pela UFPE; Especialista em Ciências Jurídico-Econômicaspela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Mestrandopela mesma
instituição; Professor da Faculdade Boa Viagem —FBV; Analista
Judiciário da JFPE.

O presente trabalho é parte integrante das reflexões feitas pelo autor em dissertação de mestrado.
I
I
8
I

I1
1
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 5 3

A Lei Complementar n° 101, de 10 de janeiro de 2001, introduziu no


direito positivo brasileiro a denominada cláusula geral antievasão atípica, in­
serida no art. 116, parágrafo único do CTN.
A regra não foi bem recebida pela doutrina nacional que, como será a
seguir observado, reputa-a inconstitucional.
Nesse breve artigo, tentaremos demonstrar argumentos favoráveis à cons­
titucionalidade do novel instituto, sem, contudo, pretender exaurir matéria
por demais controversa.

1 . E v a s ã o f is c a l a t íp ic a

A evasão fiscal atípica ocorre quando há mácula ao sistema jurídico


fiscal, sem que haja afronta direta a dispositivo de lei, como conseqüência
de comportamento em fraude à lei fiscal ou abuso de direito, na modali­
dade abuso de forma jurídica, sem propósito negociai diferente da mera
poupança fiscal1.
Enquanto o ato evasivo consiste no descumprimento de um comando
normativo “explícito”, os atos praticados no planejamento tributário evasivo
atípico não consistem, em si mesmos, uma ilicitude. Ilícitos seriam os resulta­
dos alcançados pelo contribuinte, que praticou atos desprovidos de causa para
obter vantagens fiscais2.
O LordJustice Goff of Chieveley em voto proferido no Caso Ensign Tankers
v. Stokes concluiu acerca da evasão fiscal atípica: “elisão fiscal inaceitável
tipicamente envolve a criação de complexas e artificiais estruturas pelas quais,
como que tocadas por uma varinha de condão, o contribuinte, num passe de
mágica, retira do nada uma dedução por perda, um ganho, uma despesa, ou o
que seja. Caso contrário tais situações jamais existiriam”3. A delimitação da

1 Há ainda quem classifique essas condutas da seguinte forma: elisão/economia de tributos (lícita e
eficaz); evasão tributária (ilícita e sujeita a sanções penais) e elusão tributária (ineficaz e incapaz de
atingir suas finalidades de economia fiscal). ZIMMER, Frederik. "General Report", IFA, Form and
Substance in Tax Law. Haia: Kluwer, 2002. p. 21-67 apud GODOI, Marciano Seabra. Uma proposta
de compreensão e controle dos limites da elisão fiscal no direito brasileiro. In: YAMASHITA,
Douglas (coord.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência. São Paulo: Lex, 2007. p. 241.
2 CÂMARA, Aristóteles de Queiroz. O significado lingüístico da violação indireta à lei: estudo de
semiótica aplicado ao planejamento tributário. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito
do Recife, 2004. p. 104. O autor utiliza a expressão "elusão" para designar a evasão fiscal atípica.
3 A pud MARTINS FILHO, Luiz Dias. Observações sobre norma antielisão no direito comparado
- em especial no Reino Unido. Revista virtual da Advocacia geral da União - A G U . Disponível
654 - CONSTITUCIONAUDADE DA CLÁUSULA GERAL A n TIEVASÃO A t ÍPICA

evasão atípica compreende, no Reino Unido, uma ausência de propósito negociai


e a utilização de formas inusuais que apenas se justificam na medida em que
buscam uma diminuição artificial da carga fiscal.
A atipicidade dessa espécie de evasão difere, portanto, da evasão fiscal
típica uma vez que nessa há afronta direta à regra jurídica, à letra da lei, ao
contrário do que ocorre naquela. A tipicidade da evasão é, em geral, decorrên­
cia de condutas que incorrem em fraude, simulação ou sonegação4.
Os ilícitos atípicos, assim enquadradas as condutas que incorrem em
evasão atípica, amparam-se na lei. Dentro dos operadores modais deônticos de
“permitido”, “proibido” e “obrigatório”, a evasão atípica ocorre quando o negó­
cio é praticado com base no operador permitido. Assim, dentro da autonomia
privada, o sujeito organiza seus negócios com base em lei, sem máculas a re­
gras de conduta permissivas do negócio jurídico.
O dano à Fazenda Pública, nos casos de evasão fiscal atípica, é outra
característica desse tipo de ilícito. O que pretende o contribuinte é, por
meio de uma lei, alcançar uma poupança fiscal em detrimento do Erário,
utilizando regra jurídica que autoriza o negócio. Contudo, o dano causado
pelo negócio e amparado pela regra quando em cotejo com os princípios
jurídicos, só terá legitimidade se amparado em uma excludente de ilicitude.
Se o dano é ilegítimo e não há causa que exclua a ilicitude, o negócio é
igualmente ilegítimo.
Heleno Torres, com amparo no escólio de Atienza e Manero, sintetiza os
pressupostos da ilicitude atípica: a) a existência de uma conduta permitida;
b) a produção de um dano, intencional ou não, decorrente daquela conduta;
c) a reprovação do dano em decorrência dos princípios que regem o sistema;
d) a criação, a partir dessa reprovação e rejeição pelo sistema, de uma nova
regra que limita o alcance da primeira, ao qualificar como proibidos os com­
portamentos que eram antes permitidos5.

em: <http://www.escola.agu.gov.br/revista/Ano_lll_janeiro_2002/05012002LuizDiasM artins


M EDIDASAN TIEVASA04Recife_2.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2009.
4 Essas condutas caracterizam crimes e não serão tratadas neste estudo por impertinência de
conteúdo.
5 TORRES, Heleno. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão
tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 197.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 5 5

2 . I l ic it u d e c o m o c a r a c t e r ís t ic a d a ev a sã o e

su a s exclud eim tes

Tradicionalmente, a doutrina civilista classifica as condutas que incor­


rem em simulação, fraude, abuso de direito e fraude à lei, como sendo ilícitas.
Como o enfoque do nosso estudo tem trabalhado a conduta elisiva como algo
lícito, seria inadequado classificar a conduta do contribuinte que age em frau­
de à lei fiscal ou em flagrante abuso de direito como sendo conduta elisiva,
uma vez que essas atitudes indicam clara desconformidade com o ordena­
mento jurídico6.
Saldanha Sanches7, ao discorrer sobre a elisão, reconduz-nos à ideia
de fraude à lei fiscal. Para o autor, o sujeito que pratica uma conduta em
fraude fiscal incorre em ilícito penal. Já na fraude à lei fiscal, o comporta­
mento do indivíduo, em que pese não afrontar a literalidade da lei, macula
o mens legis. Nesse sentido, a conduta observada pelo contribuinte ganha
contornos de aparente legalidade uma vez que não fere a letra da lei, mas
os fins últimos dessa.
Uma conduta que fere os fins da lei é ilícita, mesmo que tal ilicitude não
se reporte ao texto da lei em si. Na condição de ilícito, os negócios jurídicos
que contrariem a finalidade da lei são classificados como evasivos, por isso a
denominação de evasão fiscal atípica. A letra da lei não impede que determi­
nado negócio seja realizado ou obste seus efeitos, mas o ordenamento jurídico
reprova a conduta do contribuinte e, nesse sentido, o juízo de reprovabilidade
jurídica indicia a ilicitude do negócio.
O substrato jurídico que irá sustentar a legitimidade da desconsideração
do negócio em fraude à lei ou em abuso de direito é, justamente, a ilicitude do
negócio. Pensamos não ser possível a desconsideração por parte da Adminis­
tração Fiscal de negócio jurídico lícito. Caso contrário, a desconsideração dos
negócios jurídicos por parte da Administração Fiscal seria ilegítima.

6 Douglas Yamashita faz a distinção entre a conduta ilícita que contraria as regras e a
ilicitude contrária aos princípios. "Feito isso constatou-se que, hodiernamente, a ilicitude
já não se limita a condutas contrárias a regras, como a simulação ou fraude (ilicitude típica),
mas estende-se a condutas contrárias a princípios (ilicitude atípica)". YAMASHITA, Douglas.
Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso de direito e da fraude à lei. São Paulo:
Lex, 2005, p. 64.
7 SA N CH ES, J. L. Saldanha.Os limites do planeamento fiscal. Coimbra: Coimbra Editora,
2006, p. 21 e ss.
6 5 6 - C o n s t it u c io n a l id a d e d a C l á u s u l a G era l A n tie v a sã o A típ ic a

É importante determinar, no caso concreto, se o planejamento fiscal


implementado pelo contribuinte, mesmo caracterizado por uma patente
inusualidade, é passível de justificar-se por meio de um teste quanto aos
propósitos (purpose test).
A forma jurídica adotada tem de ser justificada por propósitos não fis­
cais, independentemente da estrutura do negócio jurídico ser ou não usual.
Ademais, a inusualidade da forma jurídica não deslegitima o negócio, desde
que subjacente a esse existam propósitos extrafiscais8.
A existência de um propósito extrafiscal tem o condão de descaracterizar
uma conduta evasiva, sendo, portanto, uma excludente de ilicitude. Isso por­
que, a forma de organização dos negócios privados é livre apenas em certa
medida, sendo necessário um propósito, seja pessoal ou empresarial, que jus­
tifique a utilização de determinadas formas.
O negócio implementado com o único fito de economia de tributos não
passa pelo referido teste9, portanto, não possui, a princípio, nenhuma exclu­
dente de ilicitude, sendo considerado um ilícito atípico, um negócio caracte­
rizado por uma evasão fiscal atípica10-11.

8 SANCHES. Os limites..., op. cit., p. 21 e ss. Para Hermes Marcelo Huck: "Repita-se, e mais uma vez,
que o indivíduo tem o direito de organizar seus negócios e pagar o menor imposto possível,
porém essa liberdade deve decorrer de circunstâncias ou eventos ligados à conveniência pessoal,
a interesses de ordem familiar, a questões de natureza econômica ou ligadas ao desenvolvimento
da empresa, ao seu aprimoramento ou incremento de sua eficiência." HUCK, Hermes Marcelo.
Evasão e Elisão - rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 153. Em idêntico sentido GRECO, Marco Aurélio. Planejamento fiscal e interpretação da
Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 131 e ss.
9 O ônus de provar a existência de negócio em fraude à lei, de forma objetiva é da Administração
Pública. Afirma Saldanha Sanches: "Demonstrar que uma certa operação corresponde a uma
gestão anormal da empresa, sujeitar uma operação ao business purpose test, nada mais é do que
a concretização administrativa de um dever de fundamentação..." SANCHES. Os limites..., op.
cit., p. 176.
I0 Para Gustavo Lopes: "A transação geradora do ganho ou vantagem fiscal possui uma motivação
fiscal primária - os Tribunais, e os aplicadores da CGAA (cláusula geral anti abuso) são convidados
a, segundos critérios de apreciação objectivos, verificar a intenção do contribuinte na configuração
da transacção, de modo a comprovar a prevalência da intenção fiscal na estrutura negociai
adoptada. Trata-se, segundo a doutrina dominante, de um 'purpose te s t'..." "Essas simulações que
podem excluir este segundo elemento, podem ser de natureza comercial (sê-lo-ão na maioria das
situações) ou de natureza familiar e até meramente pessoal, conquanto não fiscais." (primeiros
colchetes são nossos). COURINHA, Gustavo Lopes. A cláusula geral anti-abuso no direito tributário:
contributos para a sua compreensão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 70.
II O "purpose test" exclui a ilicitude na medida em que constitui um exercício regular de um
direito. YAMASHITA. Elisão..., op. cit., p. 47. Esse mesmo autor noticia que o julgador adminis­
trativo brasileiro já reconheceu a validade do teste de propósitos no seguinte julgado de n°
101-77.838 proferido em 11/07/1988, cuja origem é do Primeiro Conselho de Contribuintes,
dessa forma ementado: "IRPJ - Elisão fiscal - Se os negócios não são efetuados com o único
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 5 7

Em resumo, pode-se afirmar que diante de uma situação em que os atos


ou negócios jurídicos são notoriamente artificiosos ou impróprios, assim com­
preendidos aqueles que a forma prevaleça sobre o conteúdo e que não tenham
efeitos jurídicos ou econômicos relevantes, ou mesmo realizados por meios
usuais, mas carentes de motivos economicamente válidos distintos de uma
poupança fiscal, a cláusula antievasão atípica deve incidir por tratar-se de ne­
gócios ilícitos12.
Na medida em que o contribuinte comprove que o objetivo não é apenas
uma poupança fiscal e que existem razões econômicas e empresariais válidas
para justificar a forma adotada, exclui-se a ilicitude, sendo, portanto, um ne­
gócio elisivo, lícito e não evasivo atípico.

3. A LIBERDADE CONTRATUAL DO CONTRIBUINTE E A


IMPERATIVIDADE DA NORMA ELIDIDA - ILICITUDE
AXIOLÓGICA-MATERIAL

Não existe no ordenamento jurídico brasileiro um diploma normati­


vo que obrigue o contribuinte a incorrer nos pressupostos da norma inci­
dência tributária. De igual forma, não há previsão que, em incorrendo
nesses pressupostos, seja facultado àquele, de forma artificial, escolher um
negócio jurídico que, sob o manto de aparente legalidade, seja contrário ao
ordenamento jurídico.
A conduta do contribuinte dentro de sua esfera negociai privada é dota­
da de liberdade e goza de proteção nos termos dos arts. 170, III, e 173, caput,
da CF/88. Contudo, o texto constitucional dispõe que a propriedade privada
deve ser utilizada no sentido de um fim social, o que nos obriga a analisar a
conduta do contribuinte sob essa perspectiva social, mormente quando visa
driblar a incidência da norma fiscal mais onerosa ou simplesmente quando
malogra a verdadeira subsunção da norma de incidência.

propósito de escapar aos tributos, mas sim efetuados com objetivos econômicos e empresariais
verdadeiros, embora com recurso a formas jurídicas que proporcionam maior economia de
tributária, há elisão e não evasão".
12 O VIED O , Juan Ignacio Gorospe. S IC 120/2005, de 10 de mayo. Fraude de ley y delito fiscal.
Vulneración de derecho a la legalidad penal y a la tutela Judicial efectiva sin indefensión (arts.
25.1 y 24.1 CE). Disponível em: <http://www.ief.es/Publicaciones/JurisCons/Comentarios/
2005_STC120Gorospe.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2009.
6 5 8 - CONSTITUCIONAUDADE DA CLÁUSULA GERAL A n TIEVASÃO A t ÍPICA

A distinção entre elisão e evasão, seja típica ou atípica, não pode ser
respondida de forma simples, com base apenas no critério cronológico de ocor­
rência ou não do fato gerador como defende Rubens Gomes de Souza13. Tal
entendimento considera apenas a regra da legalidade, se o tributo está previsto
em lei e o contribuinte preencheu seus pressupostos de incidência14.
Data venta, não merece prosperar esse entendimento. Acaso a conduta
do contribuinte caracterize simulação, fraude comum, abuso de direito ou
fraude à lei fiscal, não pode ser classificada como elisiva porquanto qualquer
conduta que percorra um dos quatro caminhos citados é claramente ilícita15.
Imaginemos que uma empresa resolva fornecer imóveis para moradia de
empregados mediante cobrança de aluguel em valores ínfimos, ao passo que
os salários são pagos em valor inferior ao mínimo legal. É fato que tal conduta
é possível, porém, a priori, não possui nenhum propósito negociai ou pessoal
que justifique a medida. Nesse caso, embora o ordenamento jurídico não vede
esse comportamento, fica claro que a empresa, ao cobrar aluguéis em preço
ínfimo, quis exonerar-se dos tributos que incidem sobre a folha de salários
dos empregados, razão pela qual a autoridade administrativa pode desconsi­
derar o negócio jurídico e tributar como se houvesse pagamento de salários
com base no preço dos aluguéis praticados no mercado. A conduta do sujeito
passivo é anterior ao surgimento do fato gerador (pagamento de salários), mas
deve ser considerada ilícita, por ausência de fundamento negociai ou pessoal
que a justifique.
Nesse sentido, em um dos raros pronunciamentos judiciais sobre a cláu­
sula geral antievasão no Brasil, o Tribunal Regional Federal da I a Região -

13 "O único critério seguro (para distinguir a fraude da elisão) é verificar se os atos praticados pelo
contribuinte para evitar, retardar ou reduzir o pagamento de um tributo foram praticados antes
ou depois da ocorrência do respectivo fato gerador: na primeira hipótese, trata-se de elisão; na
segunda trata-se de fraude fiscal." CO ÊLH O , Sacha Calmon Navarro. Teoria da evasão e da
elisão em matéria tributária. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (org.). Planejamento fiscak teoria e
prática. São Paulo: Dialética, 1998, p. 174.
14 Sobre o tema, Ricardo Lobo Torres afirma que se tornou indefensável a posição no sentido de
que a elisão, praticada com base na interpretação dos conceitos do direito privado e sem
simulação, é sempre lícita. Essa doutrina tornou-se dominante no Brasil nas últimas décadas,
apoiadas em argumentos como a legalidade absoluta, do primado do direito civil sobre o
tributário, da separação entre economia e direito e da superioridade da legislação diante da
jurisprudência. TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tribu­
tário. 3a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 145-146.
15 Como a simulação e a fraude já foram consagradas pela doutrina como condutas evasivas, não
daremos maior relevo a essas duas figuras jurídicas. Por outro lado, o maior relevo será
emprestado à fraude à lei fiscal e ao abuso de direito.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 5 9

TRF1 se posicionou de forma contrariamente à organização dos negócios


privados praticados pelo contribuinte por entender que feriram, no caso, o
ordenamento jurídico, sem que esses negócios tenham afrontado diretamente
dispositivo expresso de lei. Cabe a transcrição de parte do julgado por enten-
dê-lo esclarecedor:
Sutilmente, o sujeito se desonera da obrigação tributária de maneira tão
persuasiva que ele consegue se livrar de tributo devido. Essa atitude
confronta plenamente com a boa-fé e com os bons costumes. É conduta
ilegal e absolutamente repudiada pelo sistemajurídico.
Embora esses institutos sejam distintos (evasão e elisão), há de se res­
salvar que, em algumas circunstâncias, procedimentos tipicamente líci­
tos —com características de elisão - acabam por consolidar a sórdida
intenção ilícita inerente à evasão.
Não chega a haver simulação, mas a atuação do contribuinte é maculada
pelas grandes vantagens econômicas logradas em detrimento do fisco,
proporcionando o enriquecimento injustificado do agente, o que é ve­
dado pelo ordenamento jurídico.
Mesmo sem esboçar atos de ilegalidade, a conduta por ele adotada
resulta em situação injurídica, abusiva e contrária a princípios basilares
da Constituição Federal, configurando verdadeira fraude à legislação
tributária e se constituindo em afronta ao objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil de garantir o desenvolvimento nacional
(art. 3o, II, da Constituição Federal).
Diante desse quadro, deve o Poder Público buscar meios de coibir essa
prática lesiva ao erário e frontalmente contra o interesse coletivo, con­
forme lhe autoriza a Constituição Federal, que atribui ao Estado o
papel de agente regulador da atividade econômica (art. 174).
Com a edição da Lei Complementar 104, que introduziu o parágrafo
único ao art. 116 do Código Tributário Nacional, tornou-se mais evi­
dente ainda o dever do Estado de adotar postura incisiva no combate à
fuga do dever de pagar tributo.
Esta é a sua disciplina:
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos
ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocor­
rência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos
6 6 0 - C o n s t it u c io n a l id a d e d a C l á u s u l a G era l A n t ie v a s ã o A típ ic a

constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a


serem estabelecidos em lei ordinária.
Como se vê, ainda que o ato ou negócio jurídico se revista de licitude, se
praticado com a finalidade de ocultar a ocorrência do fato gerador do
tributo ou a natureza dos elementos que constituem a obrigação tribu­
tária, poderá ser desconsiderado pela autoridade administrativa e, as­
sim, determinada a incidência do tributo.16
Outrossim, quando há conduta em fraude à lei ou abuso de direito dis-
simulatório (analisados adiante), o fato gerador do tributo efetivamente ocor­
reu, o que não ocorreu foi a devida qualificação do fato jurídico e subsunção
adequada desse à norma aplicável.
Ainda que não vedada pelo ordenamento jurídico, determinadas con­
dutas podem ser consideradas ilícitas, nos casos em que não existem propó­
sitos negociais ou pessoais, ou caso haja má-fé do contribuinte ou fira os
bons costumes. A simples ausência de simulação e a prática de negócio jurí­

16 "Com as devidas ponderações sobre evasão e elisão fiscal, resta-nos analisar a situação
jurídica que originou as autuações fiscais impugnadas nos autos. Consoante observo dos
relatórios fiscais de fls. 36 e 58 e da decisão adm inistrativa de fls. 86/87, foi apurado
débito suplementar da contribuição social no período de junho de 1990 a julho de 1991,
levantado em razão da verificação, pelo órgão fiscal, da existência de salário-utilidade
fornecido na forma de habitação ao empregado pela empresa, cujos valores não constituíram
a base de cá lcu lo do tributo recolhido pela pessoa ju ríd ic a . Visando desconstituir o
débito, a Cooperativa alegou que os imóveis foram fornecidos em contrato de locação,
mediante cobrança de aluguéis, o que descaracteriza a natureza de salário-utilidade. Sem
razão a Cooperativa. Os documentos juntados aos autos informam que os valores que a
empregadora cobrava dos empregados como aluguel eram ínfimos, equivalentes a cerca de
0,34% a 3,89% do salário-mínimo vigente à época (fl. 87). Esse fato não foi negado, em
momento algum, pela recorrente. Ao contrário, limitou-se a defender a plena liberdade das
partes acertarem o preço do aluguel, cuja estipulação entre as partes é livre (item 16, fl.
145), situação que confirma a pequena expressão dos valores pagos como aluguel por seus
empregados. É certo que a lei civil confere às partes o direito de disporem de seus bens da
forma que bem lhe aprouver. Entretanto, sabe-se que a iniciativa privada sempre atua
visando à obtenção de lucro. Assim , se a empresa concede favores com repercussão
fin an ce ira, m ensalm ente, a seus empregados, os valores por eles representados são
considerados pela legislação trabalhista como parcela salarial (art. 458 da CLTJ.No caso,
a atuação da recorrente na área im obiliária - a qual não se encontra inserida em seus
estatutos sociais, como se vê dos arts. 15 e 16 (fl. 98) - com obtenção de prejuízo - visto
que os valores cobrados pelos aluguéis eram irrisórios - não encontra qualquer razão lícita
dentro da lógica do sistema jurídico." A única justificativa para essa atitude adotada pela
empresa é afastar a cobrança da contribuição social sobre a parcela salarial paga pelo
fornecimento de m oradia. Portanto, os contratos de aluguel que a recorrente alega ter
firmado com seus empregados são apenas sim ulados, a fim de fugir do pagamento de
tributo, uma vez que a empregadora está, de fato, realizando pagamento de salário. Tem-
se caracterizada, portanto, a evasão fiscal. BRASIL. Tribunal Regional Federal. 1a Região.
AC n° 1 9 9 7 .0 1 .0 0 .0 6 1 057-6/M G, Relator convocado Mark Yshida Brandão, D iário da
Justiça, Brasília, 10 nov. 2006.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 661

dico antes da ocorrência do fato gerador não induzem a licitude da atuação


do contribuinte17.
O negócio jurídico deve ser analisado em sua totalidade, pouco importa
a ausência de vedação expressa no ordenamento jurídico. A tributação incide
sobre o negócio jurídico, sobre o “é” econômico, independentemente da con­
figuração ou forma jurídica visada pelo contribuinte18.

17 Marco Aurélio Greco traz comentários interessantes sobre o debate acerca de elisão tribu­
tária. Dividiu o debate em três fases. Fases que têm subjacentes uma divergência quanto à
concepção do relacionamento entre cidadão e Estado: "Nessa primeira fase, estruturou-se
o debate sobre a elisão tributária, e sobre planejamento quase como envolvendo uma
cláusula pétrea. Então, discutir sobre legalidade tributária, tipicidade tributária, virou um
dogma para o tributarista, mas que tinha todo sentido num Estado censitário . Onde
desembocou essa primeira fase? Desembocou no desenho da elisão, como a liberdade de
o contribuinte organizar seu patrimônio, organizar os seus negócios, da forma que bem lhe
aprouvesse, desde que fosse antes do fato gerador, mediante atos lícitos e sem simulação.
Muito bem, essa é a primeira fase". (...) "A segunda fase do debate sobre a elisão começa
com a seguinte pergunta: A sim ulação é um defeito do ato juríd ico . É um defeito que
atinge a vontade da parte. E um víc io da vontade. E aí a pergunta é a seguinte: Se a
simulação contamina o exercício da liberdade pelo contribuinte, por que só ela e por que
não também as outras patologias do negócio jurídico? A segunda fase que eu diria ser a
fase em que estamos mergulhados hoje, afirma que o contribuinte tem liberdade para
organizar os seus negócios, mas tem liberdade, desde que, antes do fato gerador, mediante
atos lícitos, sem simulação e sem outras patologias do negócio jurídico. E aí vem o debate:
Quais são as outras patologias do negócio jurídico que são vedadas ou que geram o efeito
de o negócio realizado pelo contribuinte não produzir efeitos perante o Fisco? A í abre-se
um grande debate sobre três patologias: o abuso de direito, a fraude à lei em matéria
tributária, a fraude civil - fraude civil, não fraude penal - e o abuso de formas em Direito
Tributário. A doutrina, nesse momento, está dividida. Há manifestações doutrinárias muito
respeitáveis, por exemplo, do Professor Alberto Xavier, que afirma, categoricamente, que a
fraude à lei e o abuso de direito são figuras que não se aplicam ao Direito Tributário
brasileiro. Eu diria: é típica afirmação de quem está raciocinando na primeira fase, naquela
fase em que o valor liberdade e o valor propriedade estão no mesmo patamar constitucio­
nal e que, portanto, qualquer atitude ou qualquer previsão legal ou qualquer ato de
autoridade administrativa que venha a arranhar o patrimônio individual supõe uma previ­
são absolutamente expressa, cerrada, e assim por diante". (...) "Então, se a primeira é a fase
do "pode tudo", salvo a simulação, a segunda é a fase das patologias do negócio jurídico.
Mas qual é a terceira fase, para a qual temos de estar preparados? É a fase onde o grande
debate não vai ser mais a licitude, não vão ser as patologias - porque tudo isso tem que ser
obedecido, óbvio - mas depois que tiver sido feita toda a triagem do que o contribuinte
fez, vai-se discutir a existência, ainda, de limites à liberdade do contribuinte. Vale dizer:
ainda que o contribuinte aja licitamente antes do fato gerador, sem simulação, sem abuso,
sem fraude, sem abuso de direito, ainda assim, ele não vai ter uma liberdade absoluta,
porque aí vamos ter que debater qual é a eficácia do princípio da capacidade contributiva
versus o princípio da liberdade individual. Ou seja, onde será preciso fazer uma pondera­
ção entre dois valores constitucionais, um valor nitidamente protetivo do indivíduo que é
o valor liberdade individual, valor propriedade, e outro que é um valor eminentemente
social, que é o valor da capacidade contributiva, que é a feição da isonomia em matéria
tributária e que corresponde, em última análise, ao princípio da solidariedade social".
G R ECO , Marco Aurélio. Desconsiderações de atos ou negócios elisivos. Revista de Estudos
Tributários, Porto Alegre, n° 29, p. 137, jan./fev. 2003.
18 Nesse sentido vide: TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito Tributário (Steuerrecht). Tradução do
volume I da 18a ed. por Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008, p. 329.
6 6 2 - CONSTITUCIONALIDADE DA C lÁUSUIt K G eRAL ANTIEVASÃO A t ÍPICA

O exemplo do TRF1 faz eco à tese defendida. O negócio jurídico só é


lícito quando observado em sua totalidade. Se, observado globalmente, existir
uma contrariedade não só à boa-fé e aos bons costumes como aos princípios
constitucionais da capacidade contributiva ou da isonomia fiscal, o negócio
constitui uma evasão fiscal atípica, devendo a autoridade fiscal desconsiderar
os efeitos fiscais pretendidos pelo contribuinte e utilizar a cláusula geral an­
tievasão para requalificar o “é” econômico.
Isso porque a forma jurídica para prática negociai eleita pelo contribuin­
te é livre, contudo não vincula a Administração Fiscal quando se reveste de
natureza artificiosa e o nomen iuris conferido ao negócio jurídico destoa da
relação jurídica que desse decorre.
A forma atribuída ao ato ou negócio jurídico é, de fato, relevante, desde
que não seja simulada, não macule a boa-fé e os bons costumes, tenha o negó­
cio ou ato finalidade diferente da poupança fiscal, nem tampouco tenha in­
corrido em fraude à lei ou abuso de direito19-20-21.
O contribuinte que, sob o aparente manto da legalidade, elege um con­
junto de atos que conduzem a um negócio jurídico cuja principal finalidade
é a redução da carga fiscal e o faz com uso de instrumentos negociais inusuais,
inadequados para os fins que almeja, contudo obtém resultados econômicos
equivalentes, age de forma fraudulenta, não quanto aos aspectos lógico-for-
mais do ordenamento, mas quanto aos aspectos axiológico-materiais22.
Esse comportamento pretensamente elisivo, não referendado, tampouco
induzido pelo legislador é que deve ser rechaçado pelo ordenamento jurídico.
A legislação de incidência fiscal, devidamente afastada por meio de compor­
tamento evasivo atípico, deve deixar assente o intuito de tributar determinada
riqueza que denote capacidade contributiva23.

19 Sobre a qualificação dos contratos vide SANCHES, J. L. Saldanha. O regime fiscal dos centros
comerciais. Fisco, n° 34, p. 8, set. 1991.
20 Sobre o tema, leia TIPKE apud TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do
direito tributário. 3a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 148.
21 Em sentido contrário à nomenclatura de fraude à lei fiscal vide a opinião de QUERALT, Juan Martin
et. ai. Curso de Derecho Financiem y Tributário. 17a ed. Madrid: Tecnos, 2006, p. 105-106.
22 Fiara Saldanha Sanches: "A intenção axiológico-normativa que pode considerar-se relevante no
domínio tributários vai conduzir a uma não aceitação, para feitos fiscais, de negócios jurídicos
realizados com o fim único ou principal de redução da carga tributária. Essa valoração específica do
negócio jurídico, que só pode ser considerada dentro da irredutível individualidade de cada caso,
constitui um permanente desafio para o aplicador da lei". SANCHES. Os limites..., op. cit., p. 99.
23 Idem, p. 180-181.
A ndré G u stav o B a r r o s Leite - 6 6 3

Os aspectos econômicos da incidência possuem amparo nos princípios


da capacidade contributiva e igualdade material. Logo, não podem ser afasta­
dos por mero engenho jurídico do contribuinte. Se assim for possível, ferido
está um dos pilares do direito fiscal que é a justa distribuição dos encargos
fiscais, bem como estaria retirada a força normativa desses princípios24.
Acaso o planejamento fiscal calcado à luz da letra da lei pudesse tornear
princípios informadores do próprio sistema fiscal, colapsado estaria esse. Nesses
casos, o contribuinte reduziria seu dever fundamental de pagar tributos25 com
arrimo na lacuna legal criada, em regra, pelo próprio contribuinte, sem, contu­
do, observar que a lei é apenas um dos vetores do planejamento, sendo de impe­
riosa observação as orientações dispostas nos princípios constitucionais.
Essa situação levaria à ruína do sistema fiscal. Como os princípios da
capacidade contributiva e igualdade material possuem imperatividade axioló-
gica não podem ser “ladeados” ou “evitados” por meio de artifícios jurídicos.
A evasão atípica ocorre, por certo, na lacuna da lei e o sistema jurídico é
lacunoso por excelência26. Necessário perquirir qual a natureza da lacuna, se
foi intencional, deixando o legislador uma zona de não tributação clara, ou se
a lacuna existe, mas o intuito de tributar réstou por evidente.

4 . D e l im it a ç ã o q u a n t o à a p l ic a ç ã o d a c l á u s u l a g e r a l
a n t ie v a s ã o a t íp ic a

As normas antievasão atípica sugiram a partir dos anos 90, com as mais
diversas designações. Há uma característica comum a essas cláusulas que é
possibilitar à autoridade administrativa impor aos negócios privados a real
tributação, segundo a natureza jurídica do negócio realizado, sem considera­
ções quanto à forma adotada pelo contribuinte, tendo como mais relevante

24 SANCHES. Os limites..., op. cit, p. 106.


25 Sobre o dever fundamental de pagar tributos, asseverou Klaus Tipke: "O dever de pagar
impostos é um dever fundamental. O imposto não é meramente um sacrifício, mas, sim, uma
contribuição necessária para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse do proveito­
so convívio de todos os cidadãos. O Direito Tributário de um Estado de Direito não é um
direito técnico de conteúdo qualquer, mas ramo jurídico orientado por valores. O Direito
Tributário afeta não só a relação cidadão-Estado, mas também a relação dos cidadãos uns com
os outros". TIPKE, Klaus; YAM ASHITA, Douglas, justiça fiscal e princípio da capacidade
contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15.
26 TIPKE apud TORRES. Normas de interpretação..., op. cit., p. 147.
6 6 4 - CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA G e RAL ANTIEVASÃO A t ÍPICA

para fins de tributação o conteúdo e a existência de um propósito negociai


diferentes da mera redução de tributos.
Em resumo, pode-se afirmar que a proibição de abuso de forma jurídica
foi adotada na Alemanha (art. 42 AO 77); a vedação de fraude à lei, na Espa­
nha (art. 24 da Lei Geral Tributária, alterado em 1995); a desconsideração da
personalidade jurídica, na Argentina (art. 2o da Lei 11.683, alterado em 1998);
a prevalência do propósito mercantil, nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá
e Suécia; normas antielusivas, na Itália; norma antiabuso, em Portugal (art.
38, n° 2, da Lei Geral Tributária, de 1999); proibição de dissimulação das
somas sujeitas ao imposto, na França (Code Général des Impôts)21.
Cláusulas setoriais antievasão atípica já eram utilizadas no Brasil, no que
toca ao imposto sobre os rendimentos (art. 51 da Lei n° 7.450/85 e art. 3o, § 4o,
da Lei n° 7.713/88) e o princípio arrris length (Lei 9.430/96).
A cláusula geral antievasão atípica como já pontuado, apenas foi intro­
duzida pela LC n° 104/01. A ausência de uma regulamentação fez surgir
imensos questionamentos sobre seu conteúdo e objeto de aplicação. Seria caso
de aplicação a atos e negócios simulados, uma vez que a expressão utilizada na
lei é “dissimular”? Ou o objetivo do legislador foi impedir a realização de
negócios em fraude à lei ou abuso de forma jurídica?
4 .1 . S im u la ç ã o e d iss im u la ç ã o

A simulação é uma divergência intencional entre a vontade real e vonta­


de declarada, por meio de um acordo ou pacto simulatório, com o intuito ou
propósito de enganar ou prejudicar terceiros. Em matéria fiscal, de regra, o
Estado é o terceiro prejudicado.
A simulação pode ser absoluta ou relativa. Na simulação absoluta, o ne­
gócio externado pelas partes visa encobrir algo que não existe, enquanto na
simulação relativa o negócio real existe (dissimulado) e está encoberto por
outro negócio, o simulado. Na dissimulação há um negócio jurídico simulado,
que é aquele que cria a aparência, e tem-se um negócio jurídico dissimulado,
que é aquele ocultado por essa aparência.

27 TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo
e Econômico - REDAE, Salvador, n° 4, nov./dez., 200S e jan. 2006. Disponível em: <http://
w w w . d irei tod oestad o.com /revista/R ED A E-4-N O V E M B R O -2 0 0 5 -R IC A R D O % 2 0 L O B O
%20TORRES.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007.
A ndré G u stav o B a r r o s L e it e - 665

A simulação ocorre na esfera dos fatos. Não se dissimula a subsunção


de um fato à norma jurídica, mas a real existência desse próprio fato. Por­
tanto, no âmbito civilista, o que se está a dissimular é o fato, não a subsun­
ção desse à norma.
De forma exemplificativa, Moreira Alves conceitua e distingue simulação
e dissimulação. Na simulação absoluta cria-se apenas uma aparência que não se
destina a ocultar o negócio que realmente se deseja. É o caso, por exemplo, de,
ocorrendo uma revolução, e havendo perspectiva de confisco dos bens dos an-
tirrevolucionários, um deles celebra, simuladamente - simulação absoluta -,
contrato de compra e venda com um amigo que não corre o risco por ser parti­
dário da revolução, tornando-se este aparentemente proprietário da coisa, e não
ocorrendo, portanto, o risco de tê-la confiscada. Criou-se a aparência sem que se
oculte por baixo dela um negócio jurídico que é realmente desejado.
Na simulação relativa, não. Nela tem-se um negócio jurídico simulado,
que é aquele que cria a aparência, e tem-se um negócio jurídico dissimulado,
que é aquele ocultado por essa aparência. Aqui, portanto, se tem um negócio
jurídico que aparenta ser aquilo que não é, que é o negócio jurídico simulado,
e o negócio jurídico dissimulado, que é aquele oculto pelo negócio jurídico
simulado e que é o negócio realmente desejado. Isso ocorre, por exemplo,
quando o marido, não podendo fazer doação à sua concubina, simula compra
e venda, pois não recebe o preço, para que essa compra e venda, na realidade,
oculte uma doação28. A simulação seria o “fantasma”, enquanto a dissimula­
ção ou simulação relativa a “máscara”.
4.1.1. O CO N TEÚ D O DA DISSIMULAÇÃO D O PARÁGRAFO Ú N ICO D O
ART. 116 D O CTN
Fixadas essas premissas, importa destacar se a cláusula geral antievasão
atípica aplica-se aos casos em que há simulação tal qual preconiza a doutrina
civilista ou se estamos diante de uma modalidade especial de simulação.
Dispõe o parágrafo único do art. 116 do CTN que a autoridade admi­
nistrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a

28 ALVES, José Carlos Moreira. Figuras correlatas: abuso de forma, abuso de direito, dolo, negó­
cios jurídicos simulados, fraude à lei, negócio indireto e dissimulação. In: SEMINÁRIO INTER­
N ACIO N A L SO BRE ELISÃO FISCAL, 6 a 8 ago. 2001. Brasília. Anais. Brasília, Escola de
Administração Fazendária - Esaf, 2001. p. 64.
666 - C o n s t it u c io n a lid a d e d a C l á u s u l a G e r a l A n t ie v a s ã o ATfpicA

finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza


dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
A dissimulação prevista nessa cláusula geral antievasiva atípica parece-nos
não possuir o mesmo conteúdo do previsto pela doutrina civilista. Como visto,
a dissimulação na esfera civil ocorre quando o negócio jurídico simulado enco­
bre o negócio que se dissimilou, sendo esse último o negócio verdadeiro.
Para Marciano Seabra de Godoi, quando o contribuinte, com o intuito
de fugir à configuração do fato gerador para chegar aos mesmos resultados
econômicos com uma menor pressão fiscal, se utiliza de atos ou negócios jurí­
dicos de forma artificiosa, distorcida e em clara contradição jurídica com o
espírito da lei que os configura, então teremos um comportamento de “dissi­
mular” a ocorrência do fato gerador e os atos e negócios serão os disfarces que
caberá desconsiderar, para efeitos de aplicação da norma tributária e indepen­
dentemente dos efeitos privados criados pelos atos ou negócios29.
Na evasão atípica, o negócio jurídico é sempre verdadeiro. Não há uma
contradição entre a vontade real a declarada pelo contribuinte. Nesses casos, a
aplicação da cláusula antievasão atípica não se funda nessa contradição de
vontades que caracteriza a dissimulação. O que fundamenta a desconsidera­
ção dos efeitos fiscais do negócio jurídico é a contrariedade do negócio quanto
aos princípios que otimizam as normas de natureza fiscal, como, por exemplo,
o princípio da igualdade ou a ocultação da real capacidade contributiva do
contribuinte. O fingimento não é quanto à veracidade dos fatos, mas quanto
à subsunção desses à norma de incidência.
Em outros termos, pode-se afirmar que se dissimula a qualificação jurí­
dica desses fatos, o que, em última análise, impede que se subsumam à norma
de incidência fiscal. A norma de antievasão atípica deve ser aplicada nesses
casos para garantir uma qualificação fiscal que condiga com a materialidade
dos fatos, impedindo que o negócio caísse numa zona de “lacuna jurídica
forçada” pelo contribuinte. Visto dessa forma, não se pode afirmar que a tri­
butação ocorre por analogia, pois o vácuo legislativo não é autêntico, mas sim,
forçado pelo contribuinte em contrariedade à mens legis.

29 G O D Ó I, Marciano Seabra de. A figura da fraude à lei tributária prevista no parágrafo único
do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo,
n° 68, 2001. p. 112.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 6 7

O seguinte exemplo do caso Grendene ilustra bem o que afirmamos30.


A Grendene constituiu oito sociedades, no mesmo dia, de uma só vez, pelas
mesmas pessoas físicas, todas sócias da Grendene, com o objetivo de explorar
comercialmente, no atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufa­
turados em plástico, no mercado interno e no internacional.
Essas sociedades, em decorrência de suas características e pequeno por­
te, estavam enquadradas no regime tributário de apuração de resultados com
base no lucro presumido (regime fiscal mais favorável à empresa cujo en­
quadramento depende, sem prejuízo de outros requisitos, do faturamento,
logo, empresas de grande faturamento não podem recolher seus tributos por
esse método).
O Tribunal Federal de Recursos - TFR desconsiderou o fracionamento
das empresas e tributou como se de apenas uma empresa tratasse. Como se
percebe, não houve atos simulados uma vez que as empresas existiam verda­
deiramente e o negócio foi de fato quisto. O problema é que a tributação com
base no lucro presumido se destina a uma categoria de empresas e não a em­
presas do porte da Grendene.
O negócio, observado de forma isolada, é legal, mas, sob o prisma global,
contraria princípios constitucionais porque a Grendene possui uma capacida­
de contributiva maior que aquela a que o fracionamento lhe sujeitava. O com­
portamento da Grendene fere, como evidente, o princípio da igualdade fiscal
material, uma vez que o tratamento que era conferido a empresas do porte da
citada era diferente daquele a que ela pretendia receber.
Houve, como nos parece, um abuso de direito dissimulatório, na moda­
lidade abuso de forma. Não se pode afirmar tratar de simulação porquanto os
requisitos dessa reclamam a descoincidência entre a vontade real e a declarada,
além do conluio simulatório e o intuito de enganar terceiros31. A vontade das
partes foi, de fato, criar as oito empresas, mas com a finalidade de fugir da

30 BRASIL. Tribunal Federal de Recursos. AC n° 115.478/RS, Relator Ministro Américo Luz.


Revista do Tribunal Federal de Recursos, Brasília, n° 146, p. 217, 1987: "Legitimidade da
atuação do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos". Decisão administrativa: "IRPJ.
TRAN SFERÊN CIA DE RECEITAS. EVASÃO FISCAL. Há evasão ilegal de tributos quando se
criam oito sociedades de uma só vez, com os mesmos sócios que, sob a aparência de servirem
à revenda dos produtos da recorrente, tem, na realidade, o objetivo admitido de evadir tributo,
ao abrigo de tributação mitigada (lucro presumido)." (Ac. 103-07.260)
31 ANDRADE, Manuel. Teoria geral da relação jurídica. 4a ed. Coimbra: Almedina, 1974. v. II, p. 169.
668 - CONSTITUCIONALIDADE DA C lÁ U SU lA G eRAL ANTIEVASÃO A t ÍPICA

tributação com base no lucro real a que estariam adstritas em razão da soma
do faturamento das oito sociedades. Um claro abuso do direito subjetivo de
criar novas empresas.
Acaso existisse apenas o dispositivo da simulação previsto no art. 149,
VII do CTN, não haveria substrato legal nas normas fiscais para a desconsti-
tuição dos efeitos fiscais do negócio jurídico citado. Todavia, independente­
mente de previsão legal expressa, remanesceria a possibilidade de fundamentar
a desconsideração dos efeitos fiscais do negócio jurídico com base nos princí­
pios constitucionais da capacidade contributiva ou justiça fiscal material.
Esse tipo de dissimulação realizado pela Grendene é diferente da simu­
lação clássica, estudada pela teoria geral do direito. H á uma dissimulação,
contudo, os negócios jurídicos, tanto o simulado como o dissimulado, pratica­
dos pela Grendene são lícitos quanto às regras.

5 . O OBJETO DA DESCONSIDERAÇÃO DOS EFEITOS FISCAIS!


DISSIMULAÇÃO NÃO SIMULADA OU DISSIMULAÇÃO
NA SUBSUNÇÃO

O que visa o parágrafo único do art. 116 do CTN não é desconsiderar os


efeitos fiscais dos negócios dissimulados comuns (considerando o conceito de
dissimulação no direito civil), porque na evasão atípica esses negócios jurídi­
cos são reais, verdadeiros.
A cláusula geral antievasiva atípica do Brasil trabalha com outra pers­
pectiva do instituto da dissimulação, uma dissimulação “especial” ou mais
“sofisticada”, porque se trata de um negócio verdadeiro que dissimula outro
negócio verdadeiro. Porém, se o negócio aparente for realizado em fraude à lei
ou abuso de forma jurídica teremos uma dissimulação em fraude à lei ou um
abuso dissimulatório de forma jurídica32.
O enfoque no novo instituto é combater o negócio jurídico dissimulató­
rio em fraude à lei ou em abuso de direito dissimulatório. Esses negócios, de
per si, não perfazem o conceito clássico de dissimulação, uma vez que não
existe divergência entre a vontade real e a declarada. Contudo, a dissimulação

32 YAMASHITA, Douglas. Limites à economia de tributos: da teoria legal à prática jurisprudencial.


In :_______ (coord.). Planejamento tributário à luz da jurisprudência. São Paulo: Lex, 2007. p. 75.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 6 9

em fraude à lei, por exemplo, ocorre quando um negócio real, quisto e verda­
deiro é colocado para encobrir outro negócio real, quisto e verdadeiro. A con­
seqüência dessa engenhosidade jurídica é a dissimulação da subsunção do fato
à norma, por meio de uma qualificação jurídica inadequada.
Dentro do raciocínio silogístico, a norma jurídica de incidência, en­
quanto realidade abstrata e geral, consiste na premissa maior. Por outro
lado, a premissa menor consiste na ocorrência em concreto da previsão
abstrata da premissa maior, sendo a conclusão o resultado da inferência
entre elas.
A realidade hipoteticamente descrita na norma de incidência e a sua
efetiva concretização no plano dos fatos são realidades distintas. Na evasão
fiscal atípica, afinal de contas, ocorre um abuso ou fraude na subsunção do
fato à norma tributária33.
A compreensão do entendimento exposto resta ainda mais clara quan­
do traçado um paralelo com outro ordenamento jurídico. Ricardo Lobo
Torres afirma que o Código Tributário Nacional Alemão estabeleceu, no
art. 41, uma regra de simulação e no art. 42 uma regra antielisiva. A doutri­
na majoritariamente tem estabelecido a distinção em que a regra do art. 41,
que é de simulação, é uma regra que cuida do fingimento do fato. O fato, o
ato ou o negócio jurídicos realizados são fingidos, são simulados e dessa
simulação tiram-se outras conseqüências. Já o art. 42 não cuida do fingi­
mento no fato, no ato ou no negócio jurídico, mas o fingimento na norma,
na interpretação, na subsunção.
Quando o contribuinte pratica um ato existente no mundo jurídico, ele
vai indicar como fundamento uma norma que não é a norma que verdadeira­
mente se aplicava àquele fato, um problema de qualificação jurídica e conse­
qüente subsunção incorreta.
Portanto, há um fingimento, na norma, enquanto na simulação em seu
sentido consagrado, há um fingimento no fato34.

33 TORRES, Ricardo Lobo. Normas Gerais Antielisivas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE
ELISÃO FISCAL, 6 a 8 ago. 2001. Brasília. Anais. Brasília, Escola de Administração Fazendária
- Esaf, 2001. p. 398.
34 i Para Ricardo Lobo Torres, o abuso na subsunção é da norma ao fato; e não o contrário.
TORRES, Ricardo Lobo. Experiência da Alemanha. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE
ELISÃO FISCAL, 6 a 8 ago. 2001. Brasília. Anais. Brasília, Escola de Administração Fazendária
- Esaf, 2001. p. 188.
6 7 0 - C o n s t it u c iò n a l id a d e d a C l á u s u l a G era l A n t ie v a s ã o A t íp ic a

Como todos os fatos nessa modalidade de dissimulação são verdadeiros,


não há discordância entre a vontade real e a declarada, o que não implica
afirmar inexistir uma modalidade de dissimulação. Nesse caso, a dissimulação
é da norma de incidência que, só foi possível ser aplicada em concreto, porque
o contribuinte realizou negócio em fraude à lei, abuso de forma jurídica ou
sem nenhum propósito negociai que o justificasse.

6 . A SEGURANÇA JURÍDICA E A CERTEZA LEGAL NA APLICAÇÃO


DA CLÁUSULA GERAL ANTEVISÃO ATÍPICA

Alberto Xavier35avança argumentos contrários ao parágrafo único do art.


116 do CTN. Para o autor, se interpretada como norma “antielisiva”, a nova
regra seria inconstitucional, pois conflitaria com os princípios da legalidade
estrita e da tipicidade fechada, afrontaria a proibição de analogia estabelecida
no art. 108, § I o do CTN e recorreria às teorias da fraude à lei e do abuso do
direito, inaplicáveis no direito tributário. Para o autor, a “inovação” é uma
repetição da regra existente no art. 149, II do CTN, pois essa prevê a simula­
ção, hipótese que abrange o conceito de dissimulação36.
Em síntese, para Alberto Xavier, ou a cláusula geral antievasão atípica é
inconstitucional ou se trata de “vinho novo em garrafa velha”.
Bem pesados esses argumentos, não se pode defender a inconstituciona­
lidade ou a inutilidade de uma norma apenas com base na literalidade do
texto. Referimo-nos ao conteúdo da palavra “dissimular”. Acreditamos existir
diferença entre a dissimulação do direito civil e do direito fiscal, conforme
tentaremos demonstrar em tópico específico.
O parágrafo único do art. 116 do CTN não deve ser interpretado da
mesma forma que se interpreta o art. 149, inciso VII do CTN, como se
fossem idênticos os conteúdos. Seria admitir uma criação de regra inócua, a
par de existir outra com mesmo conteúdo. É necessário buscar outra aplica­

35 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética,
2001, p. 19, 98, 102 e 138.
36 Há quem afirme que a norma fere a tripartição dos Poderes, uma vez que delegaria ao Executivo
o poder de legislar, matéria inerente ao Legislativo. MARTINS, Ives Gandra da Silva; MARONE,
José Ruben. Elisão e evasão de tributos. In: YAM ASHITA, Douglas (coord.). Planejamento
tributário à luz da jurisprudência. São Paulo: Lex, 2007. p. 155.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eit e - 6 71

ção para o dispositivo inovador, que torna importante interpretá-lo além de


sua literalidade37.
Igualmente, pensamos ser difícil defender a existência de uma tipicida­
de fechada na norma de incidência fiscal. O conceito de tipicidade nos induz
a uma abertura do sistema jurídico, e não o contrário. O tipo fiscal se comu­
nica com os princípios constitucionais e deve ser aplicado em consonância
com esses princípios, conforme já exposto.
Ao defender-se a tipicidade fechada da norma fiscal, põe-se à margem
da constitucionalidade qualquer instrumento de combate à evasão fiscal atí­
pica. Logo, nem uma emenda à Constituição, tampouco uma mudança na
lei, resultariam úteis ao combate dessas práticas evasivas, porém camufladas
de legalidade38.
A experiência de outros países de tradição democrática, como Portugal,
Espanha, EUA, Canadá, Alemanha, demonstra que a introdução de cláusula
geral antievasiva atípica com o propósito de combate ao artificialismo de de­
terminados negócios se fez sem a necessidade de ruptura constitucional.
Mais importante que a alteração da Constituição ou a outorga de uma
nova Carta Política é a forma como se compreende essa Constituição. Como
a tradição do Brasil é ter uma Constituição que delimite toda a atividade
legiferante, que se detenha a minúcias que são inerentes à própria lei fiscal
como, por exemplo, definir a materialidade do tributo, os intérpretes espe­
ram que a Constituição preveja essa forma mais “aberta” de se interpretar os
dispositivos fiscais.
Contudo, pensamos desnecessária tal mudança. Suficiente é erigir prin­
cípios constitucionais como o da igualdade material na distribuição dos en­
cargos fiscais à condição de aplicabilidade. Não se pode interpretar a lei fiscal
apenas com arrimo da legalidade ou numa pretensa tipicidade fechada, como

37 Para Bobbio, o positivismo jurídico constitui um limite intransponível à atividade interpretativa:


a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias, pode ser extratextual; mas
nunca será antitextual, isto é, nunca se colocará contra a vontade que o legislador expressou
na lei. BO BBIO , Norberto. O positivismo juríd ico: lições de filosofia do direito. Compilação
de Nello Morra. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo:
fcone, 1995. p. 214.
38 G O D Ó I, Marciano Seabra. Uma proposta de compreensão e controle dos limites da elisão
fiscal no direito brasileiro. In: YAMASHITA, Douglas (coord.). Planejamento tributário à luz da
jurisprudência. São Paulo: Lex, 2007. p. 243.
6 7 2 - CONSTITUCIONALIDADE DA ClÂUSULA GERAL ANTIEVASÃO ATÍPICA

se fora únicos vetores interpretativos e relegar à aplicabilidade nula os outros


princípios informadores da Constituição.
Quanto à impossibilidade de aplicação da fraude à lei ao direito fiscal não
podemos nos alinhar a Alberto Xavier, uma vez que a lei tributária, antes de
ocorrido o fato gerador do tributo, é imperativa no sentido axiológico-material,
na medida em que deixa claro que o tributo deva incidir dadas determinadas
circunstâncias; deve-se avançar dessa posição formal-positivista a uma posição
material-axiológica. Em tópico seguinte, fundamentaremos com mais detalhes
nossa posição.
Quanto ao instituto da analogia39, é de se destacar que o dispositivo em
debate não versa sobre essa possibilidade. Ainda que versasse sobre tributação
por analogia, é importante afirmar que não há vedação constitucional expressa
sobre a matéria40. O que existe é uma construção doutrinária que afirma haver
uma tipicidade fechada em matéria fiscal e como tal, qualquer tributação não
prevista seria uma tributação analógica, o que macularia a tipicidade fechada.

39 Não compete nesse breve estudo discorrer sobre o instituto da analogia. Contudo, não podemos
nos furtar de afirmar que a analogia não possui função criadora de tributos, mas apenas declaratória.
Em razão da impossibilidade de descrição de todos os fatos passíveis de incidência fiscal,
compete ao aplicador do direito lançar mão dessa ferramenta interpretativa para aclarar aquilo
que não afirmou expressamente o legislador, mas assim o quis fazer. A analogia é essencial num
Estado Social de Direito porquanto possibilita uma justiça fiscal, e não uma mera isonomia
formal frente à lei. Sobre o assunto, vide a obra de XAVIER, Cecília. A proibição da aplicação
analógica da lei fiscal no âmbito do estado social de direito. Coimbra: Almedina, 2006. Sobre o
assunto, importante trazer as lições de Klaus Tlpke que, nos idos de 1982, afirmou que a analogia
não só não contraria o princípio da reserva de lei como é conforme o mesmo, ao dar cumprimen­
to a vontade do legislador deficientemente expressada, o que acarreta uma maior efetividade na
observância do princípio da igualdade. TIPKE, Klaus. Limites de Ia integración en el Derecho
Tributário. Revista Espanola de Derecho Financiero, La Rioja, n° 34, p. 181-184, 1982. Quanto
à proibição da analogia no direito fiscal da Espanha afirmou Gloria Alarcon Garcia que: "Apesar
de considerar válidos los argumentos expuestos, en cuanto fundamentos dei principio dei
prohibición de Ia analogia en nuestro ordenamiento tributário, creemos importante destacar que
hasta que el legislador no atribuya el nacimiento de una obligación tributaria similar a todos los
hechos economicamente idênticos o un tratamiento igualmente beneficioso para los sujetos en
idênticas, o semejantes, situaciones econômicas, no se podrá hablar de Ia vigência de Ia justicia
tributaria en el ordenamiento jurídico". GARCIA, Gloria Alarcón. Sistema fiscal y princípios
tributários. In: D ÉG AN O , Isidoro Martin; G ARC IA, Gerardo Menéndez; G ARCIA, Antonio
Vaquera (coord.). Estúdios de Derecho Financiero y Tributário en Homenaje al Profesor Calvo
Ortega. [S.I.]: Lex Nova, 2005, v. I, p. 66-67.
40 Casalta Nabais defende a não rejeição total da analogia em matéria fiscal e contrapõe argumen­
tos à tese defendida por Alberto Xavier que milita em favor da preeminência da segurança
jurídica em detrimento de outros princípios aplicados ao direito fiscal. Disserta Casalta Nabais
que: "Nada em nossa Constituição nos leva a supor que se tenha optado pela preeminência da
segurança jurídica nos termos descritos. (...) somos de opinião que a solução equilibrada entre
os valores da legalidade e da igualdade fiscais (que é, como quem diz, entre a segurança e a
justiça fiscais) no domínio da aplicação analógica das normas jurídico-fiscais de tributação
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 7 3

Os que defendem a inconstitucionalidade do parágrafo único do art.


116 do CTN invocam como principal argumento a afronta ao princípio da
segurança jurídica e a regra da legalidade tributária41.
A regra da legalidade e o princípio da segurança jurídica não são soberanos
frente aos demais princípios da Carta Magna brasileira. Não existe hierarquia
entre os princípios. Numa colisão entre eles devemos sopesá-los e aplicar aquele
que melhor se ajusta ao caso, sem que isso importe anular o outro princípio.
Não há uma preponderância da legalidade e do princípio da segurança
jurídica de forma apriorística. O valor consagrado pela segurança jurídica pre­
fere a outros princípios quando ponderados em concreto, sem relação de pre­
cedência a prioriA2. Quando há uma colisão de princípios, ensina Alexy, a
solução consiste em que, levando em consideração as circunstâncias do caso,
estabelece-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada43.
A aplicação de tal ou qual princípio apenas pode ser determinada à luz
do caso concreto. Alterada as circunstâncias fáticas, a relação de precedência
pode ser aplicada de forma inversa. Portanto, não se justifica uma relação de
precedência apriori do princípio da segurança jurídica em detrimento da igual­
dade fiscal material.
Outrossim, a cláusula antievasão atípica reprime o abuso das possibilida­
des de configuração jurídica e a fraude à lei, o que não implica afirmar a
inexistência de norma fiscal de incidência que tribute o ato ou negócio jurídi­
co inquinados por esses vícios.

passa pela sua não-rejeição total". CASALTA, José Nabais. O dever fundamental de pagar
impostos. Almedina: Coimbra, 1998. (Coleção Teses), p. 392-393.
41 M ACHADO, Hugo de Brito. A norma anti-elisão e o princípio da legalidade: análise crítica do
parágrafo único do art. 116 do CTN . In: RO CHA, Valdir de O liveira (coord.). Planejamento
tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 103 e ss.; MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Norma antielisão é incompatível com sistema constitucional brasileiro. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira, (coord.). Planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São
Paulo: Dialética, 2001. p. 117 e ss.
42 Para compatibilizar segurança jurídica com justiça fiscal, Nuno Sá Gomes propõe a seguinte
saída: ao interpretar a norma fiscal deve-se preferir ao princípio da segurança jurídica, mesmo
nos casos de evasão fiscal atípica. Já para garantir a justiça fiscal deve ser feita uma reforma na
lei. GOMES, Nuno Sá. O princípio da segurança jurídica na criação e aplicação do tributo.
Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, jul./set., p. 177-178, 1993. Discordamos do autor porque, na
prática, não houve qualquer ponderação na aplicação da norma fiscal frente ao caso concreto.
O que afirma o autor é uma total precedência do princípio, da segurança jurídica em desfavor
da justiça fiscal material. Esperar que o legislador altere a lei é, simplesmente, ignorar a
aplicação de uma justiça fiscal ao caso concreto.
43 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993. p. 92.
674 - C o n s titu c io n a lid a d e d a C lá u s u la G e r a l A n tie v a s ã o A típ ica

A autoridade administrativa, com arrimo na cláusula antievasão atípica,


desconsidera tão somente o negócio jurídico simulado44e tributa aquele que
se dissimulou, segundo a capacidade econômica exteriorizada. Não há tribu­
tação por analogia uma vez que o negócio jurídico dissimulado possui previ­
são expressa de tributação. Afastada a simulação em fraude à lei ou abuso de
forma jurídica, remanesce o negócio jurídico que se dissimulou, ou seja, aque­
le que exterioriza a real capacidade contributiva do contribuinte, sendo esse
passível de tributação conforme previsão da norma da incidência.
E necessário, portanto, que haja uma dissimulação: ou abusiva de direi­
to, na modalidade abuso de formas jurídicas ou em fraude à lei. A dissimula­
ção prevista na cláusula antievasão atípica, diferente do conceito utilizado no
art. 149, II do CTN de origem civilística, não contém um descompasso entre
a vontade real e a declarada. A dissimulação com abuso de forma jurídica ou
fraude à lei é caracterizada por existir uma coincidência entre a vontade real e
a declarada. O emprego do vocábulo “dissimular” do art. 116 do CTN é no
sentido encobrir a real natureza do negócio jurídico, a natureza econômica.

7 . V a lo ra çã o c r ít ic a - a c o n s t it u c io n a l id a d e da

c l á u s u l a g e r a l a n t ie v a s ã o a t íp ic a

7 .1 . C lá u s u la antievasão atíp ica ea v e d a ç ã o à a n a lo g ia


A analogia no direito fiscal tem uso restrito, limitando-se, à luz do dis­
posto no art. 108 do CTN e art. 11, n° 4 da LGT à colmatação de lacunas,
sendo sua função, de regra, integrativa, sem com isso inovar na incidência
fiscal. Logo, a analogia não pode ser empregada de forma a criar incidência de
tributo sem a devida correspondência da norma de incidência, sem correspon­
dente em lei.
O principal argumento suscitado para rechaçar o emprego da analogia
no direito tributário é que a utilização fere de morte a segurança jurídica e,
por conseqüência, a reserva material e formal de lei, na medida em que colo­
caria o contribuinte ao arbítrio da Administração que, por meio de processo

44 Seria uma espécie de simulação "branda", "leve", uma vez que os negócios jurídicos simula­
dos e dissimulados, em si, são verdadeiros, mas no conjunto atuam em fraude à lei ou abuso
de direito.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 7 5

analógico, poderia sujeitá-lo à incidência fiscal sem que haja subsunção de sua
conduta à previsão da norma exacional45.
A vexata quaestio é saber se a subsunção do fato imponível à norma de
incidência prescinde de raciocínio analógico? E se esse raciocínio fere a regra
da legalidade?
Maria Fernanda Palma, quanto à legalidade e analogia em matéria penal,
desenvolve embasado raciocínio para mitigar a proibição da analogia. Histori­
camente, a legalidade foi instituída para vedar decisões arbitrárias e garantir
segurança. Contudo, o processo de aplicação da lei não pode operar-se de
forma sempre subsuntiva, uma vez que entre a previsão legal e os fatos não
poderá haver mais do que uma semelhança ou analogia.
Deve, portanto, o aplicador da lei, por meio de um raciocínio analógico,
demonstrar uma similitude entre o caso da lei e o real e arremata:
Aquilo que, na verdade, se passa não é a “automatização” do acto
(subsunção), mas a vinculação do acto de aplicação da pena e uma
demonstração ou justificação (argumentativa) de que a lei “quereria”
aplicar-se ao caso concreto.
A proibição da analogia, corolário lógico do princípio da legalidade, deve,
assim, ser compreendida num sentido mais profundo do que a proibi­
ção da utilização de raciocínios analógicos contra reo na operação de
decidir. Deve ser entendida como a proibição de que se faça uma “assi­
milação” do caso concreto pelo da lei, sem que determinados argumen­
tos sejam possíveis.46
A exigência de lei para instituir tanto o tributo quanto a conduta cri­
minosa não implica ausência de um raciocínio analógico. Ao se interpretar a
lei, chega-se à conclusão se o fato gerador do tributo ou o tipo penal ocorre­
ram ou não, conclusão que se chega sem prescindir, necessariamente, de
raciocínio analógico.

45 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário, 3a ed. Porto Alegre: Lejus, 1998. p.
134. "....quando se trata de lei tributária criadora de tributo, é indispensável que preexista regra
jurídica outorgando, expressamente, ao juiz (ou à autoridade incumbida do lançamento), o
poder de "aplicar" (criar), por analogia, a regra jurídica tributária criadora do tributo. (...) A sua
referida ineficácia decorre da existência de outra regra jurídica (portanto, justamente em virtude
do indicado cânone hermenêutico), esta de natureza constitucional (existente em todas as
modernas Constituições), que proíbe a cobrança de tributo sem prévia lei que o estabeleça".
46 PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal: parte geral. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculda­
de de Direito de Lisboa, 1994, p. 52.
6 7 6 - C o n s t it u c io n a l id a d e d a C lA u s u l a G era l A n tie v a sã o A típ ic a

Não se pode descurar do fato de que entre o acontecimento concreto e


a incidência legal há um raciocínio de proximidade e distanciamento, na
busca de semelhanças e coincidências entre o estatuído na lei e o concretiza­
do faticamente.
Esse raciocínio é essencialmente analógico, nem por isso deve ser afasta­
do quando o intérprete busca descobrir se determinado fato é ou não passível
de subsumir-se à hipótese legal de incidência.
Ao desconsiderar os efeitos fiscais dos atos e negócios privados, o aplica-
dor da lei tributária o faz tendo em mira critérios que aproximam o negócio
privado da lei de incidência.
7.2. A INDETERMINAB1LIDADE DOS CONCEITOS E A CERTEZA DAS REGRAS
Para que haja incidência tributária é necessária a previsão em lei dos
critérios básicos que compõem o mínimo legal. Contudo, mesmo esses crité­
rios quando definidos em lei, são passíveis de terem conteúdo ambíguo, o que
pode ensejar dúvidas quanto ao alcance da norma fiscal.
É possível que os critérios mínimos de incidência fiscal possuam inde-
terminações que comprometam a certeza do quantum debeatur?
A maioria da doutrina rechaça essa possibilidade, pois em tal contexto
de indeterminação restaria ferida de morte a regra da legalidade que possui
amparo constitucional47. Ao apreciar a indeterminabilidade conceituai no di­
reito penal, asseverou Sebastian Soler que a maior violação da legalidade con­
siste em estabelecer delitos não definidos como tipos de ação ou traçados de
forma aberta, contendo apenas remissões vagas, amplas, exemplificativas ou
equívocas que possibilitem enquadrar qualquer ação no texto da lei48.
São duas situações distintas tratadas por Soler. Uma quanto à indetermi­
nação dos fatos em si considerados. Não pode ser a regra tão ampla que o
intérprete fique livre para escolher se o fato se reconduz ou não ao estatuído
na norma. Essa situação de incerteza afigura-se inconstitucional. Soler aten­
tou apenas quanto a esse ponto.

47 Nesse sentido leciona Diogo Leite Campos apud SANCHES, J. L. Saldanha. A segurança
jurídica no Estado social de direito. Conceitos indeterminados, analogia e retroactividade no
direito tributário. Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, out./dez., 1984, p. 297.
48 SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino. Atualizada por Cuillermo J. Fierro. Buenos Aires:
Tipográfica Editora Argentina - TEA, 1992. v. 1, p. 140.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 7 7

Quanto à determinabilidade da norma de incidência, é necessário que


essa seja clara o suficiente para que possa incidir. Há um hiato entre ser deter-
minável a regra de incidência e possuir termos unívocos. Exigir que a lingua­
gem contida na norma de incidência seja unívoca é impedir que haja tributação.
Saldanha Sanches asseverou que:
o princípio da determinabilidade tem no seu núcleo essencial na reserva
da competência da lei para selecção dos factos da vida social que devem
ser objectos de tributação, na manutenção do dicíum do legislador ordiná­
rio quanto à determinação dos factos tributáveis. Não impede que este se
sirva de uma formulação suficientemente ampla para abranger factos da
mesma natureza e igualmente indiciadores da capacidade tributária, ain­
da que com características que entre os diferenciem.49
E o caso do imposto brasileiro sobre os rendimentos de pessoa física
cuja incidência alcança qualquer aquisição da disponibilidade econômica
ou jurídica: 1) de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho
ou da combinação de ambos; ou 2) de proventos de qualquer natureza,
assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no item
anterior50-51. O critério material é demasiado amplo e indeterminado sem
que com isso haja qualquer declaração de sua inconstitucionalidade por parte
dos tribunais brasileiros52.
Nesse caso, verifica-se que a determinabilidade quanto à incidência do
imposto sobre os rendimentos interliga-se à determinabilidade das próprias
regras de incidência, e não quanto ao conteúdo semântico das mesmas. Esse é
o segundo aspecto da determinabilidade e não fora observado por Soler.

49 SANCHES, A segurança jurídica no Estado social de direito. Ciência..., op. cit., p. 299.
50 Art. 43, incisos I e li do CTN (norma geral em matéria tributária).
51 Nesse sentido, vide a Lei n° 7.713, de 22 de dezembro de 1988 e alterações posteriores que
trata dos pormenores da incidência do imposto sobre os rendimentos de pessoa física. Dá
leitura dos dispositivos, infere-se o quão indeterminados são seus conceitos. Afiguraria mais
eficaz se tal lei dispusesse que qualquer ganho de capital decorrente ou não do trabalho fosse
tributado. Os casos omissos seriam, portanto, integrados por raciocínio analógico que, na
prática, afastaria a incidência do imposto sobre os rendimentos daquelas somas em pecúnia
estranhas ao critério material.
52 Acerca do imposto sobre os rendimentose o princípio da capacidade contributiva, Sérgio
Vasques entende ser "necessário que o rendimento tributável seja definido de forma tão ampla
quanto possível, para que nele se compreenda todo o fluxo de riqueza percebido pelo
contribuinte que seja útil ao pagamento do imposto". VASQ U ES, Sérgio. Capacidade
contributiva, rendimento e patrimônio. Revista Fórum de Direito Tributário - RFDT, Belo Hori­
zonte, a. 2, n° 11, p. 23-61, set./out. 2004, p. 30.
6 7 8 - CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA GERAL ANTIEVASÃO A t ÍPICA

O princípio da determinabilidade associa-se à regra da legalidade e, no


direito fiscal, impõe que norma de incidência preencha os requisitos conside­
rados indispensáveis ao nascimento da obrigação tributária. Assim, restam
respeitadas essas normas se a lei introduzir os critérios material, temporal,
espacial, subjetivo e quantitativo, de forma que o contribuinte tenha o míni­
mo de ciência quanto à sujeição fiscal que lhe seja imposta.
Contudo, o conteúdo dos critérios utilizados pela lei de incidência é
reconduzido ao contexto em que foram produzidos. Assim, não é possível
pormenorizar, descer a minúcias, no que toca ao conteúdo dos critérios por­
que foram criados à luz de um contexto vigente quando de sua edição. Ou-
trossim, foram previstos para situações dentro de um contexto de normalidade
ou usualidade.
Pontua Perelman que uma lei - constituição ou lei ordinária - nunca
estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever. Obra
do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos aconte­
cimentos, à força maior, à necessidade e conclui:
Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações
que não pôde levar em consideração e nas quais, tornando-se
inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastan­
do-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais
necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível
dos acontecimentos (...).53
Eqüivale afirmar que as regras de incidência devem ser conhecidas, cla­
ras, contudo, a inevitável indeterminabilidade semântica ínsita à linguagem
não importa em incompatibilidade com a legalidade tributária. Se a exata
compreensão do conteúdo da lei depende do contexto em que deva ser anali­
sada, não se pode exigir que ela preveja todas as situações e contextos possíveis
no momento de sua aplicação. Nesses casos, a determinabilidade levada ao
extremo fossilizaria a lei, impedindo que os operadores do direito pudessem
aplicá-la em situações que se distanciem do contexto antevisto.
É irrazoável um grau de determinismo que defina com pormenores a
aplicação da lei e exato conteúdo dos institutos, ainda que aplicação se ope­

53 PERELMAN, ChaTm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 106.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 7 9

re no mesmo contexto histórico em que fora criada. Os institutos, em si


considerados, possuem margem de indeterminação derivada da ambigüida­
de da linguagem.
A interpretação do direito fiscal não se resume ao aspecto literal. Vários
outros métodos como o histórico, sistemático e o teleológico conduzem o intér­
prete a uma solução razoável no caso concreto, permitindo que o conteúdo do
preceito legal seja descortinado no contexto das evidências postas. Assim, essas
técnicas de interpretação que, em última análise, servem para impor à lei o grau
de determinação minimamente seguro, não podem ser desprezadas.
O mesmo se diga quanto à utilização do raciocínio por analogia, por
meio do qual se consegue discernir, no conteúdo do que se entende por “ren­
da”, novas diferenças e semelhanças e aplicá-las em concreto, o que não seria
possível essa evolução caso o grau de determinação da lei fosse muito alto54.
Ademais, o raciocínio analógico tem por fim colmatar, inclusive, essa
indeterminabilidade semântica, haja vista que o que pode ou não ser reconhe­
cido como rendimentos, a despeito da imprecisão da rega de incidência, deve
ser observado por critérios de semelhanças e diferenças55. Por exemplo, a in­
denização por dano moral não se caracteriza como um aumento patrimonial,
portanto, não se sujeita a incidência de imposto sobre os rendimentos56.
Essa conclusão é decorrente, em sua essência, de um raciocínio analógico
que, ao comparar semelhanças e diferenças entra a incidência de imposto de
renda de pessoa física sobre o aumento patrimonial e a não incidência desse
imposto em parcela paga a título de indenização por dano moral57. Nesse

54 "Não creio que se deva identificar a lógica com a lógica formal, pois isto leva impreterivelmente
a tentativas de reduzir os raciocínios habituais dos juristas, tais como os raciocínios a pari, a
contrario ou a fortiori, a estruturas formais, ao passo que se trata de algo inteiramente diverso.
Para E. H. Lévi, "o raciocínio jurídico tem uma lógica específica. Sua estrutura se adapta a dar
um sentido à ambigüidade e a constantemente verificar se a sociedade chegou a discernir
novas diferenças ou similitudes". Trata-se essencialmente de argumentações pelo exemplo e
por analogia." PERELMAN. Lógica jurídica..., op. cit., p. 06.
55 Por uma interpretação literal da norma de incidência vide: MARTÍNEZ, Soares. Direito Fiscal.
10a ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 145.
56 Nesse sentido, o STJ pacificou recentemente seu entendimento quanto a não incidência de
imposto de renda sobre parcelas indenizatórias de dano moral por meio do julgamento do Resp
n° 963387/RS, Relator Ministro Herman Benjamin, Diário da justiça, Brasília, 05 mar. 2009.
57 Em matéria penal, Maria Fernanda Palma afirma: "Já quando se tratar de averiguar o que pode
ser visto como violência, grave ameaça ou colocação da vítima na impossibilidade de resistir
é imprescindível a utilização de raciocínios analógicos. A própria natureza dos conceitos, algo
indeterminados, o exige. Saber, por exemplo, se a ameaça é ou não grave implica que o caso
concreto seja equiparado a outros em que a gravidade da ameaça é indiscutível". O direito
6 8 0 - CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA G eRAL ANTIEVASÃO A t ÍPICA

último caso, o STJ reconheceu que não há aumento de capital, portanto não
deve incidir imposto sobre os rendimentos. Essa posição do STJ não decorre
de previsão em lei e assemelha-se a uma isenção do imposto, sendo embasada
em raciocínio analógico.
7 .3 . A REGRA DA LEGALIDADE COMO COMPONENTE DO PRINCÍPIO
DA SEGURANÇA JURÍDICA

O disciplinamento do ato ou negócio jurídico com base na lei não induz,


necessariamente, a licitude de ambos. O juízo de licitude do ato ou negócio
jurídico depende de um cotejo com o direito e não com a lei. A previsão, em
lei, para que o sujeito passivo exerça determinada conduta, é o primeiro passo
para a legitimidade do negócio jurídico privado, mas não se esgota na lei.
Enquanto princípio jurídico, a segurança jurídica não possui apenas a lei
como meio de concretização. Os princípios jurídicos se concretizam por di­
versos meios e trazem consigo uma carga valorativa que conduz o legislador e
o aplicador do direito a buscar os valores que foram definidos pelo legislador.
Se determinada norma fiscal de incidência dispõe que se deva tributar
um fato jurídico segundo sua natureza, não põe ao talante do sujeito passivo
alterá-la. Se o imposto sobre os rendimentos deve incidir conforme a capaci­
dade contributiva do sujeito passivo, estamos diante de um dado a ser aferido
em concreto, conforme sua substância.
O sujeito passivo, ao tentar alterar a substância ou a natureza econômica
do fato a ser tributado, coloca os demais sujeitos em situação de fragilidade ou
anti-isonômica. O tributo recai sobre todos que se encontrem na mesma
situação e não apenas sobre os “tontos”.
Causa espécie invocar que fere a segurança jurídica quando a Fazenda
Pública desconsidera os efeitos fiscais pretendidos pelo contribuinte em ne­
gócios que são, apenas, formalmente lícitos. Nesse sentido, o contribuinte não
pode alegar que a atitude da Fazenda Pública fere a segurança jurídica, pois
não estão seguros os que ferem o ordenamento jurídico, nem causa inseguran­
ça jurídica restabelecer o conteúdo material dos negócios, ou seja, a natureza

penal também lança mão do raciocínio analógico e tal condição não fere a legalidade porque
saber concretizar um conceito indeterminado é possível por instrumentos de comparação e
outros em que a incidência da lei se verificou. PALMA. op. cit., p. 53.
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 8 1

econômica desses. Não se pode invocar em defesa própria um princípio que


fora descumprido anteriormente.
Ademais, há de se flexibilizar o argumento que a lei fiscal deve exaurir as
possibilidades de incidência, sustentado por positivistas-formalistas do direi­
to fiscal. Como se fosse possível a lei dispor de forma hermeticamente fechada
sobre todas as possíveis situações de incidência da norma fiscal.
Nesse contexto, Ricardo Lobo Torres entende ser ingênua a crença na
possibilidade de permanente fechamento dos conceitos tributários, como se
nesse ramo do direito houvesse a perfeita adequação entre pensamento e lin­
guagem e se tornasse viável a plenitude semântica dos conceitos. “O direito
tributário, como os outros ramos do direito, opera também por conceitos in­
determinados, que deverão ser preenchidos pela interpretação complementar
da Administração, pela contra-analogia nos casos de abuso do direito e pela
argumentação jurídica democraticamente desenvolvida”58.
Sendo assim, a liberdade contratual do contribuinte deve ser encarada
com moderação, pois a despeito dessa, outros princípios existem e a conduta
do sujeito passivo deve respeitá-los em igual medida. Não há princípios abso­
lutos, razão pela qual a luta contra atividades formalmente lícitas, caracteriza-
doras de fraude à lei fiscal ou com abuso das possibilidades de configuração
jurídica deve ter espaço frente à segurança jurídica.
O princípio da igualdade material norteia toda a tributação, sendo impe­
rioso que os iguais sejam tributados igualmente e os desiguais sejam tributados
na medida de suas desigualdades. Diogo Leite Campos assevera que o princípio
da justiça material é base para a tributação, sendo os princípios da generalidade,
da igualdade e da capacidade contributiva vias para ele ser atingido59.
Quem se desiguala dos demais apenas formalmente fere o princípio da
igualdade da tributação, não sendo possível se socorrer em argumentos for­
mais. A desigualdade formal realizada pelo contribuinte em desrespeito à
igualdade da tributação justifica a cláusula antievasão atípica que tem por
fim último reorganizar o que a lei havia já havia organizado, mas que o
contribuinte insiste em “bagunçar”.

58 TO RRES, Ricardo Lobo. Legalidade Tributária e riscos sociais. Revista Dialética de Direito
Tributário. São Paulo, n° 59, p. 95-112, 2000.
59 CAMPOS, Diogo Leite de; CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito Tributário. 2a ed.
Coimbra: Almedina, 2000. p. 124.
6 8 2 - C o n s t it u c io n a l id a d e d a C lA u s u l a G eral A n tiev a sã o A t íp ic a

A segurança jurídica deve sempre harmonizar-se com os demais princí­


pios jurídicos, não podendo ser emprestada à defesa de negócios em desarmo­
nia com outros princípios igualmente consagrados pelo ordenamento jurídico.
Nesse contexto, a cláusula geral antievasão atípica não pode ser inconstitucio­
nal por ferir a segurança quando, em verdade, tem como razão de existir “asse­
gurar” a submissão de todos ao comando legal, não apenas “os tontos”.
Para João Nuno Calvão, a cláusula geral antiabuso não afeta o sagrado
valor da segurança jurídica, antes se justificando no âmbito de harmonização
com outros princípios essenciais do ordenamento jurídico-fiscal. Rejeita, ain­
da, a ideia de inconstitucionalidade do art. 38, n° 2 da Lei Geral Tributária
portuguesa por eventual violação do princípio da liberdade contratual. Essa é
uma das bases do nosso sistema jurídico e do funcionamento das sociedades
hodiernas, mas não ignoramos a existência de limites a este princípio. Arre­
mata ao afirmar que “as lacunas resultam da impossibilidade de a lei prever
toda a realidade pelo que instrumentos como a cláusula geral permitem dotar
a Administração da flexibilidade necessária para evitar iniquidades decorren­
tes de uma legalidade estrita”60.

8. C o n clu sõ es

Em que pese a novidade enquanto regra escrita, a cláusula geral antieva­


são atípica é a redução à lei expressa daquilo que já existe enquanto categoria
teórica. Se o fim colimado pelo novel instituto é combater negócios em fraude
à lei ou abuso de forma jurídica não se pode olvidar que esses são categorias
teóricas, referentes às qualidades que cercam os fatos, atos e condutas. Se hou­
ve fraude à lei ou abuso de forma jurídica é porque os fatos não se conforma­
ram à previsão da lei, em razão de “excesso” na qualificação. Não se pode
afirmar que a limitação desse excesso fere a regra da legalidade porque se está
transitando na esfera dos fatos e não da lei.
O ato ou negócio jurídico em fraude à lei ou abuso de forma jurídica
conduz a uma atipicidade fiscal inexistente. Isso porque são realizados por

60 SILVA, João Nuno Calvão da. Elisão fiscal e cláusula geral anti-abuso. Revista da Ordem dos
A d vo g a d o s, Lisboa, v. 66, p. 791-832, set. 2 0 0 6 . "Em suma, pronunciam o-nos pela
constitucionalidade e conveniência da cláusula anti-elisão, porquanto serve o princípio da
igualdade e o interesse geral, pois, com a actual redacção do art. 38°, n° 2, da Lei Geral
Tributária, são acauteladas as exigências essências da certeza e segurança jurídicas."
A n d r é G u s t a v o B a r r o s L eite - 6 8 3

meio de uma qualificação (forma) não condizente com o substrato econômico


a ela subjacente. A conclusão dessa qualificação defeituosa é uma aplicação da
lei igualmente inadequada. Nesse sentido, a atividade da Administração é
requalificar o fato segundo sua natureza, ainda que para isso se utilize de uma
redução teleológica ou contra-analogia.
O raciocínio contra-analógico ou a redução teleológica não alteram as
previsões de incidência da lei fiscal, não criam direito novo ou hipóteses de
incidência dantes não prevista, mas requalificam os fatos de forma a enqua-
drá-los na lei segundo a natureza desses. Não se pode alargar o que a lei dispõe
para fins de tributação, mas se pode qualificar o fato conforme sua natureza.
A interpretação dos fatos é realizada pelo seu verdadeiro conteúdo, e não pelo
aspecto meramente formal. Assim, considerando o sistema normativo brasi­
leiro e à luz do direito comparado, entendemos constitucional o parágrafo
único do art. 116, do CTN.
A Coisa Julgada no
Processo Civil Brasileiro -
Dos Conflitos Individuais
às Lides Coletivas

Andreo Aleksandro Nobre Marques


Juiz de Direito em Natal/RN. Especialista em Direito ProcessualPenal e
Processual Civilpela Universidade Potiguar- UNP Mestre em Direito
Constitucionalpela Universidade Federal do Rio Grande do Norte —UFRN.
Doutorando em CiênciasJurídico-Políticaspela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa/Portugal. ProfessorAssistente de Direito Penal da UFRN.
i
I
A n d reo A leksan d ro N o bre M a rq u es - 6 8 7

1 . C o n c e it o

O conceito de coisa julgada já foi e continua sendo objeto de interminá­


veis discussões.
Ademais, em tempos de coletivização dos conflitos, tornou-se necessária
a criação de novas regras que melhor amparassem o julgamento proferido em
causas que versam sobre interesses transindividuais1.
De todo modo, e acompanhando a evolução histórica, a apresentação do
tema deve ter por ponto de partida a coisa julgada referente aos conflitos
individuais, como originariamente foi pensada, para só então depois arrematar
com o tratamento das nuances da matéria nas lides coletivas, tal qual a disci­
plina adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Ao longo do tempo, muitas teorias foram criadas no afã de explicar a
natureza da coisa julgada2, reinando até hoje o dissenso3.
No que tange ao século passado, não se pode deixar de resgatar as formu­
lações sobre a coisa julgada propostas por Giuseppe Chiovenda e por seu
discípulo Enrico Tullio Liebman, haja vista que as ideias de ambos gozam de
forte prestígio perante a doutrina processual civil brasileira.
Para Chiovenda, a partir das lições herdadas dos romanos, depois que o
órgão jurisdicional prolata sentença que reconhece ou denega o bem da vida
deduzido em juízo pelo autor, afirmando a vontade da lei no caso concreto, o
referido bem da vida transforma-se em coisa julgada, não sendo mais suscetí­

1 Como observado por Sérgio Gilberto Porto, o tratamento da coisa julgada pelo Código de
Processo Civil não é adequado às lides coletivas, já que teve em vista somente conflitos de
interesses entre indivíduos. (Comentários ao código de processo civil: do processo de conheci­
mento, arts. 444 a 495. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 141).
2 Cf. para uma revista das muitas teorias acerca do fundamento jurídico da coisa julgada,
PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao código de processo civil, v. 6, p. 150-152; SANTOS,
Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, p. 45-52.
3 Parece haver um certo consenso no que seja o fundamento de natureza política do instituto,
de ordem inteiramente prática, qual seja o de imprimir certeza ao direito e garantir o gozo dos
interesses reconhecidos judicialmente, o que se obtém com a vedação, a partir de determinado
momento, da possibilidade de os interessados voltarem a debater sobre aquilo que tiver sido
objeto de decisão judicial. Cf. nesse sentido, SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de
direito processual civil. 19a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3, p. 45. Apesar disso, há os que
defendem que esse é o verdadeiro fundamento de natureza jurídica da coisa julgada, dentre os
quais é de ser citado Pontes de Miranda, para quem o que justifica a coisa julgada é a
"necessidade de segurança extrínseca", acrescendo que "A perfeição, oriunda da obtenção
possível (crescente) da segurança intrínseca ou justiça de direito material, é fim, e não elemento
de definição." (Comentários ao código de processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997, v. 5, p. 117).
6 8 8 - A C o is a J u l g a d a n o P r o c e s s o C iv il B r a s ile ir o

vel de contestação pelas partes, o que decorre de razões inteiramente práticas,


isto é, da necessidade social de garantir o gozo dos bens4.
Reconhece Chiovenda na sentença não apenas um ato de inteligência, mas
também um ato de vontade do Estado. Porém, esclarece que o que se visa com
a coisa julgada não é a afirmação da verdade dos fatos, mas a afirmação da
vontade da lei no caso concreto, de maneira que as teorias que justificavam a
coisa julgada como uma “presunção de verdade”, ou uma “verdade formal”, ou
ainda uma “ficção de verdade”, apenas apresentavam seu fundamento político5.
Eis então o fundamento jurídico da coisa julgada: a afirmação da vontade
concreta da lei, que torna incontestável o reconhecimento ou a denegação do bem
da vida pretendido pelo autor, o que faz com que a autoridade da coisa julgada
somente se estenda à declaração que garanta a alguém o gozo de um bem da vida,
mas não aos raciocínios que foram desenvolvidos pelo juiz como pressupostos
necessários à empreitada de dizer a vontade da lei no caso concreto.
Tendo diferenciado a coisa julgada (substancial) da coisa julgada em
sentido formal, Chiovenda identificou esta com a preclusão de todas as ques­
tões que poderiam ser levantadas em relação à vontade da lei no caso concre­
to, inclusive no que diz respeito às impugnações que poderiam ser opostas à
sentença que julga a controvérsia existente entre as partes. Logo, entende a
coisa julgada em sentido formal como pressuposto da coisa julgada substan­
cial, sustentando Chiovenda6ainda que:
A coisa julgada é a eficácia própria da sentença que acolhe ou rejeita a
demanda, e consiste em que, pela suprema exigência da ordem e da seguran­
ça da vida social, a situação das partes fixada pelojuiz com respeito ao bem
davida (res), que foi objeto de contestação, não mais sepode, daí por diante,
contestar; o autor que venceu não pode mais ver-se perturbado no gozo
daquele bem; o autor que perdeu não lhe pode mais reclamar, ulteriormen-
te, o gozo. A eficácia ou a autoridade da coisajulgada é,portanto, por defini­
ção, destinada a agir nofuturo, com relação aosfuturos processos [SIC],

4 "A res iudicata outra coisa não é para os romanos do que a res in iudicium deducta depois que
foi iudicata." (Instituições de direito processual civil. 2a ed. Campinas: Bookseller, 2000, v. 1,
p. 446-447).
5 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2a ed. Campinas: Bookseller,
2000, v. 1, p. 449.
6 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2a ed. Campinas: Bookseller,
2000, v, 1, p. 452.
A n d reo A leksa n d ro N o b r e M a rq u es - 6 8 9

Apesar de enxergar, como seu mestre, na coisa julgada uma função de


cunho eminentemente prático7, destinada a imprimir certeza àquilo que foi
declarado como solução do caso concreto, já que obstada a rediscussão da
causa a partir de determinado momento, Liebman não aceitou ser a coisa
julgada efeito da sentença.
Identificando coisa julgada formal e material com imutabilidade, um
dos aspectos voltado para o interior do processo, determinando o fim do pro­
cedimento, e o outro para o exterior do processo, tornando definitiva a eficácia
da sentença, procurou, então, distinguir os efeitos da sentença, que surgem
desde sua publicação, apesar de poderem ser suspensos, da autoridade da coisa
julgada, entendendo esta como a qualidade que se agregaria à sentença e aos
seus efeitos, tornando-os imutáveis e indiscutíveis, a partir do momento em
que a sentença se torna irrecorrível.
Sustenta Liebman8que:
Quando, pelo decurso dos termos ou pelo esgotamento das impugnações
a sentença passa em julgado, a sentença adquire uma nova qualidade:
torna-se imutável e incontestável, e seus efeitos se consolidam e não
podem mais ser removidos (salvo em conseqüência da possibilidade
restrita das impugnações extraordinárias); por conseguinte, a norma
que estabelece a imutabilidade (art. 324 cód. proc. civ.) «não cria uma
eficácia que antes não existia, mas lhe confere apenas um valor particu­
lar» que antes não possuía, isto é, justamente a imutabilidade tanto do
ato enquanto tal, quanto de seus efeitos.
Quase todos os processualistas pátrios perfilharam a tese de Liebman
acerca da coisa julgada9, mas há também os que discordam da formulação do

7 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1984, v.
2, p. 421.
8 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1984, v.
2, p. 396: "Quando, per decorso di termini o per esaurimento delle impugnazioni Ia sentenza
passa in giudicato, Ia sentenza acquista una nuova qualità: diventa immutabile e incontestabile,
i suoi effetti si consolidano e non possano piú essere rimossi (se non in conseguenza delia
ristretta possibilita delle impugnazioni straordinarie); cosicchè Ia norma che dispone l'immutabilità
(art. 324 cod. proc. civ.) «non crea un'efficacia che prima non c'era, ma le conferisce soltanto
un particolare valore» Che prima non possedeva, cioè appunto 1'imutabilità sia dell'atto in
quanto tale, sia dei suoi effetti." (Tradução livre).
9 Cf. a título exemplificativo, MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2a ed.
Campinas: Millennium, 2001, v. 3, p. 324; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito
processual civil. 19a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3, p. 52; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 3, p. 304.
6 9 0 - A C o is a J u l g a d a n o P r o c e s s o C iv il B r a s ile ir o

autor peninsular10, não faltando, ainda, aqueles que, apenas parcialmente, se­
guem sua teoria11.

2 . C o i s a j u l g a d a c o m o u m d o s e f e it o s d a s e n t e n ç a

Buscando conceituar a coisa julgada, o art. 467, do Código de Pro­


cesso Civil, dispôs que: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia,
que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário.”
Por conseguinte, não se sabe se por lapso involuntário12, consta da pró­
pria codificação processual, apesar de toda a influência exercida por Liebman,
tanto que foi incorporada ao dispositivo legal a ideia de imutabilidade, o con­
ceito de coisa julgada material como eficácia e não como qualidade dos efeitos
da sentença.
No entanto, isso não é suficiente para resolver o problema da natureza da
coisa julgada, tendo em vista inclusive a recomendação sempre lembrada de
que o legislador deve evitar as conceituações13, cuja tarefa deveria ser reservada
aos juristas. É preciso, pois, apresentar razões jurídicas plausíveis, dignas de
demonstrar o acerto da adoção de uma ou de outra teoria.

10 Cf. dentre outros, MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 444
a 475. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 108-109; ASSIS, Araken de. Eficácia da
coisa julgada inconstitucional. In: NASCIM ENTO, Carlos Valder do (coord.). Coisa julgada
inconstitucional. 4 a ed. Rio de Janeiro: Am érica Jurídica, 2003, p. 206-208; LIMA, Paulo
Roberto de O liveira. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997, p. 22-24.
11 Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5a ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, v. 1, p. 486; BARBOSA M OREIRA, José Carlos. Ainda e
sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, n° 416, p. 139, 1970; PORTO, Sérgio Gilberto.
Comentários ao código de processo civil: do processo de conhecimento, arts. 444 a 495, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 152 e 171-175.
12 Lembra Barbosa Moreira que o autor do anteprojeto do Código de Processo Civil, o então Ministro
da Justiça Alfredo Buzaid, foi um dos principais discípulos de Liebman no Brasil, recordando ainda
que, após a promulgação do código, Buzaid teve a oportunidade de afirmar que o conceito de
coisa julgada ali expressado estava em sintonia com a lição do processualista italiano, certamente
provocado pelo fato de o art. 467, por ter utilizado a expressão 'eficácia' e não 'qualidade', dar
margem a dúvidas. (La definizione di cosa giudicata sostanziale nel códice di procedura civile
brasiliano. Revista de Processo, ano 29, n° 117, p. 46, set./out. 2004). Cf. ainda, no Capítulo III,
da Exposição de Motivos do Código de Processo Civil assinada por Buzaid, o item 10.
13 Como ressalta Barbosa Moreira, ao analisar a fórmula do art. 467, Código de Processo Civil,
seria melhor que o legislador de 1973 não tivesse se esquecido da vetusta advertência derivada
do brocardo latino omnis definititio in iure civile periculosa est. (La definizione di cosa giudicata
sostanziale nel códice di procedura civile brasiliano. Revista de Processo, ano 29, n° 117, p.
42, set./out. 2004).
A n d reo A leksan d ro N o b r e M arq u es - 691

Com a lucidez que lhe era peculiar, Pontes de Miranda14enumerou di­


versas eficácias provenientes da sentençais, frisando a distinção entre a força
de coisa julgada e os outros efeitos relacionados aos possíveis tipos de ação e,
por conseqüência, dos possíveis provimentos jurisdicionais - ações e sentenças
declaratórias, condenatórias, constitutivas, mandamentais e executivas.
Sustentou o referido autor que é ao elemento declarativo, encontrado em
toda sentença, que se conecta a coisa julgada material16, e que, nos demais
tipos de sentença, que não a meramente declaratória, são produzidos outros
efeitos que correspondem aos elementos condenatório, constitutivo, manda-
mental e executivo, conforme o tipo de ação que houver sido ajuizada. Mas,
logo adiante adverte que nem sempre é relevante o elemento declarativo, o
que explica o fato de haver sentenças sem efeito de coisa julgada17.
Após enaltecer o fato de Liebman ter demonstrado que força declarativa
e força de coisa julgada material não se identificam, Pontes de Miranda18
desfechou dura crítica ao processualista italiano, que teria se excedido ao ofe­
recer distinção teórica entre eficácia e coisa julgada material.
Ora, dessas lições é possível concluir que, se não há coisa julgada material
sem o ato jurídico-processual denominado sentença, não há como negar que a

14 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil', arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 96-97.
15 Anotou Pontes de Miranda: "A eficácia da sentença concerne: a) ao processo, que ainda
continua, após ela, pois as próprias intimações e os recursos são processos; b) à demanda, que
se ultima com ela, ou com a sentença que a reformar; c) à relação jurídica ou inexistência da
relação jurídica, ou aos fatos, que ela examinou, por terem sido objeto do pleito; d) ao
conteúdo da sentença como prestação estatal (declaração, constituição, condenação, manda­
mento, execução); e) a efeitos anexos ou a efeitos reflexos da decisão; f) à sentença mesma
como ato jurídico; g) à sentença mesma como simples fato." (Comentários ao código de
processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 96).
16 Comungamos com tal entendimento, ao qual, de certa forma, não diverge substancialmente
Ovídio Baptista, pelo menos nos resultados práticos, apesar de este considerar a coisa julgada
material como uma qualidade que se agrega apenas ao efeito declaratório da sentença, confor­
me se depreende da seguinte passagem: "Pelas considerações precedentes, cremos que se pode
concluir, com LIEBMAN, que a coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade que se ajunta
não, como ele afirma, ao conteúdo e a todos os efeitos da sentença, tornando-a imutável, e sim
apenas ao efeito declaratório, tornando-o indiscutível (que é o meio de a declaração tornar-se
imutável!) nos futuros julgamentos." (Curso de processo civil. 5a ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, v. 1, p. 496). Realmente, o processualista gaúcho entende que as eficácias da
sentença (declaratória, condenatória, constitutiva, mandamental e executiva) fazem parte do
conteúdo da sentença e que é justamente isso que permite distinguir uma sentença de outra.
(Op. cit., p. 490-492).
17 M IRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 98.
18 Idem, p. 100-101.
692 - A C o is a J u lg a d a n o P ro c e s s o C i v i l B ra s ile ir o

coisa julgada material seja efeito da sentença19. Porém, é de ser destacado que
a produção desse particular efeito é diferido no tempo20. Somente com o
trânsito em julgado da sentença, isto é, conforme dispõe nosso ordenamento
jurídico, apenas quando o ato jurisdicional propriamente dito não é mais sus­
cetível de impugnação —recurso ordinário ou extraordinário —é que se torna
indiscutível para as partes a declaração da vontade da lei no caso concreto, o
que não impede que efeitos outros da sentença possam ser produzidos desde
sua publicação, de acordo com a vontade legal.
É com base nesses argumentos que se opta por um conceito de coisa julga­
da material que toma por base as lições hauridas essencialmente de Chiovenda,
considerando-se a coisa julgada material o efeito da sentença não mais impug-
nável (passada em julgado) que torna a afirmação da vontade da lei, no caso
concreto, indiscutível, vinculando as partes e obstando que os órgãos jurisdicio-
nais, em processos futuros versando sobre o mesmo bem da vida, voltem a se
pronunciar sobre aquilo que já foi decidido definitivamente.
Prefere-se conceituar a coisa julgada como a indiscutibilidade do provi­
mento jurisdicional, ao invés de, conforme Liebman, como a imutabilidade do
conteúdo e dos efeitos da sentença21, uma vez que, tratando-se de direitos dis­
poníveis22, apesar de não poderem as partes, após o trânsito em julgado, reabri­

19 Nessa mesma ordem de ideias, esclarece Paulo Roberto de Oliveira Lima: "Se a coisa julgada é
decorrência mesma da sentença, tanto que sem a segunda não se há falar na primeira, seja ela (a
coisa julgada) algo de substantivo ou mera qualidade do comando emergente da decisão, é fora
de questão tratar-se de efeito da sentença. A expressão 'efeito' tem conteúdo próprio no jargão
jurídico e filosófico, denotando a conseqüência e guardando íntima relação de contrariedade
com a expressão 'causa'. Neste sentido, a coisa julgada é efeito que tem por causa a sentença."
(Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 22-23).
20 E mister lembrar que, conforme desenvolvido no quarto capítulo,, a eficácia jurídica nada mais é
que a aptidão para a produção de efeitos jurídicos, como decorrência da existência do fato
jurídico. Assim, surgindo o fato jurídico (plano da existência), o que se dá com a incidência da
regra jurídica, estará apto à constituição de direitos ou deveres ou mesmo à negação de direitos
ou deveres, isto é, à produção de efeitos ou conseqüências jurídicas. Diz-se estará apto, porque,
de acordo com a vontade legal, tais efeitos poderão surgir imediatamente após o surgimento do
fato jurídico ou apenas em um momento posterior. O testamento é um bom exemplo de ato
jurídico que, apesar de existente e, portanto, apto a produzir efeitos jurídicos, não os produz de
imediato, mas apenas em um momento posterior, o que se dá com a morte do testador. Isso por
óbvio não desnatura a natureza de efeito jurídico dos direitos previstos no testamento, apenas
porque não se produziram no tempo em que o ato passou a existir no mundo jurídico.
21 Nesse ponto divergiu Barbosa Moreira de Liebman, ao esclarecer, apesar de entender a coisa
julgada como uma qualidade e não como um efeito, que os efeitos da sentença não são
imutáveis, mas apenas o conteúdo da sentença. (Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos
Tribunais, ano 59, n° 416, p. 15, jun. 1970).
22 Essa arguta observação é feita por Sérgio Gilberto Porto, como pode ser percebida da seguinte
passagem: "Efetivamente, a crítica imposta por BARBOSA M OREIRA a LIEBMAN deixou de
A n d reo A leksa n d ro N o b r e M a r q u es - 6 9 3

rem a discussão, podem livremente alterar os efeitos da decisão23, sem contar


que o vencedor pode abrir mão da situação jurídica que lhe foi reconhecida.

3 . C o i s a j u l g a d a f o r m a l e c o i s a j u l g a d a m a t e r ia l

Para que se possa chegar a bom termo no conceituar e diferençar a coisa


julgada dita formal da material é indispensável revisar alguns institutos relacio­
nados à atividade jurisdicional do Estado.
Isso porque um dos traços que distingue a função jurisdicional das demais
funções estatais24é a aptidão que alguns provimentos jurisdicionais gozam de
tornar o objeto da decisão indiscutível, o que não se observa nos atos
administrativos e legislativos, como decorrência do art. 5o, inc. XXXV, da
Constituição da República: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito”.
Já se disse que, no nosso sistema jurídico, de matriz romano-germânica,
o direito, obra do intelecto humano, surge, principalmente, através da ativida­
de legislativa do Estado, como fruto da vontade geral, expressada pelos man­
datários do poder, ocasião em que são reduzidas a escrito as regras jurídicas
que deverão modelar a vida social.
São as regras jurídicas que concedem às pessoas a titularidade sobre de­
terminados interesses, ao mesmo tempo em que criam a expectativa de que as
demais pessoas respeitarão espontaneamente os direitos que foram conferidos
a outrem.
A relação de direito material é então o laço ou vínculo que liga um indi­
víduo a outro e que faz que alguém ou um número indeterminado de pessoas
deva, mesmo não havendo um vínculo pessoal, respeitar o interesse que a lei
resolveu conferir em favor de determinada pessoa.

considerar ao menos um aspecto de relevo, ou seja: a natureza do direito posto em causa.


Realmente, caso o ilustre jurista brasileiro ponderasse sobre isso, talvez não afirmasse de
maneira tão absoluta que os efeitos são modificáveis, eis que, em certas situações, eles serão
imutáveis, circunstância que provoca - no mínimo em parte - um esvaziamento da crítica. A
hipótese se dá quando posto em causa direito indisponível às partes." (Comentários ao código
de processo civil: do processo de conhecimento, arts. 444 a 495. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, v. 6, p. 173).
23 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, v. 1, p. 495.
24 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5a ed. São
Raulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 1, p. 483.
6 9 4 - A C o is a J u l g a d a n o P r o c e s s o C iv il B r a s ile ir o

No entanto, muitas vezes, aqueles que, pela vontade da lei, se encon­


tram juridicamente obrigados a respeitar a esfera de interesse alheio, não o
fazem espontaneamente.
Por outro lado, o Estado, além de estabelecer que a produção do direito
passou a ser sua atribuição, também proibiu que os particulares exercitassem
diretamente aquilo que entendessem como de direito, monopolizando a ju­
risdição, isto é, a atividade de dizer o direito.
Isso fez com que o Estado concedesse aos interessados a denominada
tutela jurídica, entendida esta como o direito que a pessoa terá de provocar o
Estado para que, em face do monopólio da jurisdição, aponte, diante de uma
controvérsia concreta, quem o direito alegado favorece.
Quando se mostra necessário a um interessado provocar a atividade ju­
risdicional, tal provocação faz surgir um novo tipo de relação jurídica. Como
se sabe, essa nova relação, a relação de direito processual, distingue-se da rela­
ção de direito material, pois esta é a própria controvérsia jurídica decorrente
da vida em sociedade que, por não ter sido resolvida espontaneamente pelos
interessados, fez necessária a intervenção do Estado-juiz para sua resolução.
Em resumo, havendo provocação da jurisdição, a relação de direito material é
o cerne da discussão25, o objeto do julgamento, estando contida na relação de
direito processual26.
Disso conclui-se que o objeto do processo ou da relação processual é a
prestação jurisdicional, é a declaração da vontade da lei no caso concreto sub­
metido à apreciação do órgão jurisdicional, enquanto que o objeto da relação
material é a pretensão (de direito material) que o autor quer ver resguardada e
que teve que submeter ao crivo do Judiciário.
Parece oportuno, nesse momento, trazer à baila os conceitos de norma
primária e secundária, já que servem ao entendimento daquilo que se chama
direito subjetivo. Assim, é preciso compreender que toda norma apresenta
uma composição dúplice. Em um nível primário, estabelece que da incidência
da norma sobre um suporte fático deverão ser produzidos determinados efei­
tos jurídicos, esperando que haja por parte dos sujeitos passivos da norma o

25 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 206.
26 ALVIM, Arruda. M anual d e direito p ro cessu a l civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000. vol. 1, p. 509.
A n d reo A leksa n d ro N o b r e M a rq u es - 6 9 5

cumprimento voluntário do seu comando. Secundariamente, estatui em favor


do titular dos direitos que foram reconhecidos pela norma primária a preten­
são de provocar o Estado para que este, em substituição à atividade dos inte­
ressados, obrigue o sujeito passivo a satisfazer o comando legal, já que não o
fez voluntariamente27.
Logo, percebe-se que a relação de direito processual deriva da norma
secundária, da pretensão de obter a tutela jurídica. Não há como se confundir
a pretensão à tutela jurídica, cujo sujeito passivo é o Estado, em decorrência
de este ter estabelecido o monopólio da jurisdição, com o direito subjetivo,
com a pretensão e com a ação que pertencem ao direito substantivo28.
A pretensão de direito material nada mais é do que a disposição de
satisfazer um interesse próprio em detrimento de um interesse alheio. An­
tes de o Estado monopolizar a jurisdição, o titular de uma pretensão se
voltava diretamente contra aquele que oferecia resistência, a fim de satisfa­
zer sua pretensão. Essa atividade exercida diretamente pelo titular da pre­
tensão nada mais é do que a ação de direito material, que é distinta da ação
de direito processual (ato de provocar o Estado para que resolva o litígio,
decorrente da pretensão à tutela jurídica), e que hodiernamente, salvo rarís-
simas exceções, deve ser promovida por meio do processo, contra aquele que
se opõe à pretensão de direito material.
É sobre a ação de direito material, isto é, sobre a lide ou controvérsia,
tradicionalmente conceituada como o conflito de interesses qualificado pela
pretensão resistida, limitada a lide, é verdade, apenas ao que do conflito
originário foi trazido à apreciação judicial e que permaneceu controvertido
pela oposição expressa do réu, que o órgão jurisdicional declarará a vontade
da lei, cumprindo sua obrigação de prestar tutela jurídica, com vistas à paci­
ficação social.

27 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 188-189. Cf. no mesmo sentido, CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário:
fundamentos jurídicos da incidência. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 34-35.
28 Nesse sentido, aduz Pontes de Miranda: "Direito subjetivo, pretensão e ação pertencem ao
direito material; não se confundem com a pretensão à tutela jurídica. Não há ação do direito
judicial material; porque a pretensão à tutela jurídica é que, exercendo-se, introduz no plano
processual a alegação do direito subjetivo, da pretensão e da ação (res in iudicium deducta). O
ato de pedir é exercício daquela pretensão, não dessa pretensão (de direito material) dirigida
contra o réu, nem da ação: a ação é uma das alegações da res in iudicium deducta." (Tratado de
direito privado. Campinas: Bookseller, 2000. v. 1, p. 61).
6 9 6 - A C o is a J u l g a d a n o P r o c e s s o C iv il B r a s ileir o

O exercício da jurisdição é derivado, pois, do fortalecimento do Estado


que, ao considerar criminoso o ato do particular de fazer valer sua pretensão
de direito material, obrigou-se a, em substituição aos interessados, resolver as
controvérsias, objetivando conseguir a pacificação social. Daí porque se con­
ceitua a jurisdição como a função através da qual o Estado se substitui, impe­
rativamente, com seu atuar, ao agir dos interessados, para solucionar as disputas
surgidas no meio social e que não foram resolvidas diretamente pelos interes­
sados, aplicando a vontade da lei no caso concreto, com vista à pacificação
social, com justiça.
O instrumento utilizado pelo Estado, para conhecimento amplo do con­
flito que terá que dirimir é o processo, onde são remontados os fatos impres­
cindíveis à resolução da contenda.
Mas o Estado também se preocupa com a justiça e a legalidade das deci­
sões. Logo, a fim de diminuir a possibilidade de equívocos a que o órgão
jurisdicional, dada a falibilidade humana, está suscetível de incidir, o Estado
institui a possibilidade de a causa ser reexaminada, via de regra, por um órgão
hierarquicamente superior, normalmente composto por magistrados mais ex­
perientes, atendendo ao mesmo tempo um reclamo natural do homem, de
não se conformar com um único julgamento.
Ocorre que essa pacificação social seria inalcançável se, a todo tempo, as
partes pudessem voltar a veicular demanda que contivesse as mesmas caracte­
rísticas da que tivesse sido anteriormente julgada, pois não haveria nem certe­
za jurídica nem segurança jurídica.
Chega um tempo, então, que a decisão judicial não é mais impugná-
vel, quando o processo chega ao fim, ocorrendo o fenômeno da coisa jul­
gada formal, também denominada de preclusão máxima, quer porque a
parte que tinha interesse na reforma da «decisão não recorreu, deixando
esvair in albis o prazo para a interposição do recurso cabível (preclusão
temporal), quer porque praticou ato incompatível com a vontade de re­
correr ou renunciou ao próprio direito de recorrer (preclusão lógica), quer
ainda porque fez uso do último recurso possível à modificação do julgado
(preclusão consumativa)29.

29 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições d e direito processu a l civil. São Paulo: Malheiros,
2001, v. 3, 297-298.
A n d reo A leksa n d r o N o b r e M a r q u es - 6 9 7

Todas as sentenças não mais impugnáveis fazem coisa julgada formal, o


que confere às partes a certeza de que, pelo menos naquela relação processual
que se encerrou, não será mais possível reabrir qualquer discussão, nem se
realizar nenhum outro julgamento. Daí porque se diz que a coisa julgada
formal confere uma estabilidade relativa30às partes, já que nem todas as sen­
tenças transitadas em julgado impedem a instauração de relações processuais
futuras, onde a causa pode vir a ser novamente debatida e decidida.
Para Pontes de Miranda31, a coisa julgada formal é aquilo que denomi­
nou de ‘vera sententiá, quando a sentença verdadeiramente é, ou seja, existe
juridicamente, já que, antes de passar em julgado, a sentença é mera possibi­
lidade de sentença.
Por sua vez, a coisa julgada material, de natureza essencialmente prática
e política, consiste justamente na estabilidade permanente, na eficácia que
veda uma nova discussão acerca da declaração da vontade da lei no caso con­
creto, com vistas a imprimir certeza sobre a titularidade dos bens e interesses
e ao mesmo tempo garantir, assegurar o gozo dos direitos que tenham sido
reconhecidos pela ordem estatal.
É por isso que a coisa julgada material somente constitui efeito das sen­
tenças que decidem ou resolvem o mérito da causa, eliminando o litígio que
foi trazido à apreciação judicial. Ora, se o fim último da jurisdição é a pacifi­
cação social, considerando também ser vedado o exercício arbitrário das pró­
prias razões, somente a sentença que declarar a vontade da lei sobre a relação
de direito material controvertida, eliminando a incerteza jurídica, poderá pro­
porcionar a paz social.
Essa ideia é confirmada pelo art. 468, do Código de Processo Civil, que
estatui o seguinte: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem
força de lei nos limites da lide e das questões decididas”.
Por conseqüência, todos os demais pronunciamentos judiciais, quer se­
jam classificados como sentenças, quer como decisões, mesmo que não mais
impugnáveis, por não apreciarem o mérito da controvérsia, não fazem coisa
julgada material.

30 SILVA, O vídio A. Baptista. C u rso de p ro c e sso civ il: processo de conhecimento. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, v. 1, p. 484.
31 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 109.
698 - A C o is a Ju lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

Logicamente, então, a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada


formal. Primeiro, a sentença passa em julgado formalmente, quando não é
mais suscetível de recurso ordinário ou extraordinário. Depois, como efeito da
sentença passada em julgado, que resolveu o mérito da demanda, a declaração
da vontade da lei no caso concreto torna-se indiscutível.

4 . L im it e s s u b j e t iv o s d a c o i s a j u l g a d a

Quem pode sofrer os efeitos da coisa julgada? A resposta a tal questiona­


mento às vezes não é tão simples como pode parecer, pois tudo vai depender
do direito positivo de cada país. Assim, em ordenamentos como o brasileiro se
diz que a eficácia da coisa julgada, em regra, apenas alcança as partes32que
litigaram no processo, não podendo atingir terceiros, enquanto que em ou­
tros, como o alemão e o austríaco, construíram-se regras que permitem que
terceiros sejam atingidos pelos efeitos da coisa julgada33.
Realmente, dispõe o art. 472, I a parte, do Código de Processo Civil: “A
sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando
nem prejudicando terceiros (...)”.
Então porque se discute acerca dos limites subjetivos da coisa julgada
em ordenamentos jurídicos como o brasileiro? Será que isso não passa apenas
de um problema processual aparente?
Na verdade, existem algumas situações em que a lei autoriza a extensão
da coisa julgada material a outras pessoas. Isso acontece naturalmente, por
exemplo, em relação ao sucessor da parte e ao substituído processualmente, já
que o direito destes nada mais é do que, como sustenta Ovídio Baptista, “(...)
um simples prolongamento do direito controvertido na causa”34.
No mais, é possível que a sentença transitada em julgado espraie seus
efeitos de tal forma que outras pessoas que não tiveram a oportunidade de

32 Como esclarece Cândido Rangel Dinamarco, parte é aquele que esteve integrado à relação
jurídica processual, restando englobados não só o autor e o réu, mas também os litisconsortes,
ativos ou passivos, aquele que houver feito intervenção litisco n so rcial vo luntária, o
litisdenunciado, o opoente, o nomeado à autoria e o chamado à autoria. (Instituições de direito
processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 3, p. 317).
33 DINAM ARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros,
2001, v. 3, p. 323.
34 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, v. 1, p. 506.
A n d reo A ie k s a n d r o N o bre M arq u es - 699

apresentar suas razões em juízo sofram sua influência. Nessa situação, todavia,
não é que terceiras pessoas sejam atingidas pela eficácia da coisa julgada, o que
é vedado pelo art. 472, do Código de Processo Civil, mas sim que sejam
alcançadas pelos efeitos da sentença, enquanto ato jurídico.
Seguindo essa senda, elucida Ovídio Baptista35:
O que alcança os terceiros não é a coisa julgada, mas a sentença, en­
quanto produtora de efeitos declaratórios, constitutivos - especialmen­
te constitutivos, quase sempre confundidos com produção de coisa
julgada contra terceiros, como eficácia erga omnes —condenatórios,
mandamentais ou executivos.
Na grande maioria dos casos, uma sentença transitada em julgado em
nada afeta as relações jurídicas de outras pessoas, isso porque, normalmente, o
bem da vida é disputado entre as pessoas que se afirmam titulares do mesmo.
Isso não quer dizer que as pessoas possam desconsiderar a sentença proferida
inter alios, pois, como ato do Estado, possui carga imperativa a que todos
devem observância36.
Exemplificando, se uma sentença definiu que A e não B é proprietário
de dado imóvel, querendo C adquiri-lo deverá procurar A, e não B, para
travar contrato de compra e venda37, o que demonstra que a aptidão da coisa
julgada de “fazer lei entre as partes” repercute de alguma forma na vida das
outras pessoas, apenas nunca devendo interferir na disciplina da relação jurí­
dica da titularidade de quem não foi demandado em juízo.

35 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, v. 1, p. 509.
36 Nas palavras de Chiovenda: "Mas, como todo ato jurídico relativamente às partes entre as
quais intervém, a sentença existe e vale com respeito a todos; assim como o contrato entre A
e 8 vale com respeito a todos, como contrato entre A e B, assim também a sentença entre /\ e
B vale com relação a todos, enquanto é sentença entre A e B." (Instituições de direito processual
civil. 2a ed. Campinas: Bookseller, 2000, v. 1, p. 499). Cf. no mesmo sentido, MARQUES, José
Frederico. Manual de direito processual civil. 2a ed. Campinas: Millennium, 2001, v. 3, p. 335.
37 Esse e outros exemplos são trazidos por Liebman, que reforça o valor da sentença como ato
jurídico ao dizer que: "Para estes terceiros, ou melhor para a maior parte deles, aquela sentença
não tem nenhum significado particular, se não aquele de um acontecimento que outras
pessoas participaram e que, como declaração da autoridade judiciária no exercício do poder
jurisdicional, segue respeitada e considerada por aquilo que é e por aquilo que vale precisa­
mente no que respeita a outras pessoas." (Manuale di diritto processuale civile. 4a ed. Milano:
Giuffrè, 1984, v. 2, p. 414): "Per questi terzi, o meglio per la piu gran parte di loro, quella
sentenza non ha alcun particolare significato, se non quello di un evento intervenuto tra altri e
che, como pronuncia dell'autorità giudiziaria nelPesercizio dei potere giurisdizionale, va rispettata
e considerata per quello che è per quello che vale appunto riguardo ad altri." (Tradução livre).
700 - A C o is a J u lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

Em outras vezes, algumas pessoas, apesar de não serem diretamente atin­


gidos pela eficácia da sentença, ao menos juridicamente falando, podem sofrer
prejuízo de fato. O exemplo muito citado na doutrina é o do credor que pode
sofrer prejuízo com o julgamento desfavorável de uma causa por seu devedor,
que possa levar este à insolvência. Logicamente que o credor será afetado pela
coisa julgada, já que não encontrará patrimônio do devedor para satisfazer seu
crédito, mas nada poderá fazer contra a decisão transitada em julgado, já que
não é titular de nenhuma relação jurídica que tenha sido decidido sem a sua
presença. Até aqui esses terceiros podem ser denominados de terceiros juridi­
camente indiferentes.
Contudo, há ainda os terceiros que são atingidos diretamente pelos efei­
tos que dimanam das sentenças como reflexos sobre suas relações jurídicas.
Isso ocorre quando a decisão de uma relação jurídica que envolve um terceiro
é decidida incidentalmente numa demanda, dada a sua conexidade com a
relação jurídica material controvertida38. Tais terceiros são denominados de
terceiros juridicamente interessados.
Costuma-se ilustrar essa hipótese com o caso do sublocatário que, sem
ter integrado a lide entre o locador e o locatório, vencida pelo locador, se
sujeita às eficácias da sentença que decreta o despejo (normalmente as eficácias
constitutiva negativa e executiva), que se refletem sobre a relação jurídica do
sublocador, justamente porque a relação de que é titular, de sublocação, é
conexa ou dependente da relação jurídica de locação.
Foi a teorização de Liebman que permitiu enxergar que a sentença pode
produzir efeitos independentemente de já ter havido a passagem em julgado,
o que ajudou a compreender que uma coisa é sofrer a eficácia da coisa julgada
substancial, o que, salvo exceções legais, se restringe às partes, e outra coisa é
ser atingido pelos efeitos naturais do ato jurisdicional, o que ocorre com os
denominados terceiros juridicamente interessados39. Segundo o processua-

38 Cf. nesse sentido, SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil, v. 1, p. 506; PORTO,
Sérgio Gilberto. Comentários ao código de processo civil: do processo de conhecimento, arts.
444 a 495. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 214.
39 Liebman utiliza a denominação 'terceiros mediatamente interessados' e os distingue ainda dos
terceiros que se afirmam titulares do bem da vida que foi litigado entre as partes no processo
e foi objeto de decisão. (Manuale di diritto processuale civile. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1984, v.
2, p. 417-418). A diferença entre as duas situações é que a relação jurídica que o terceiro
entende ser titular não é apenas conexa, dependente ou prejudicial àquela que foi disputada
pelas partes e decidida pelo juízo, mas sim se trata da própria relação jurídica material objeto
A n d reo A leksa n d r o N obre M a rq u es - 701

lista italiano, “A eficácia reflexa não é um efeito diverso ou distinto daquele


produzido entre as partes, mas apenas a sua repercussão sobre terceiro em
conseqüência da relação existente entre as duas relações jurídicas”40.
Pecou Liebman apenas em não tratar a própria coisa julgada material
como um dos efeitos da sentença, distintos das demais eficácias que o referido
ato pode ostentar.
Em relação a essa espécie de terceiros titulares de relações jurídicas
conexas ao objeto do julgamento que sofrem efetivamente um prejuízo ju­
rídico41, caso não sejam intimados ou não compareçam espontaneamente à
causa, a fim de atuarem como assistentes simples, nos termos do art. 50, do
Código de Processo Civil, os efeitos da sentença poderão deixar de incidir
em suas esferas de interesses, mediante a ação de embargos de terceiros ou
mesmo de ação rescisória.
Repita-se, então, que tal espécie de terceiro não se sujeita à eficácia da coisa
julgada42, que somente pode operar, em regra, em relação às partes. Poderá sim
receber o denominado efeito de intervenção, previsto no art. 55, do Código de
Processo Civil, caso haja eficazmente43atuado como assistente simples, quando
então terá que se sujeitar aos efeitos produzidos pela sentença que tenha decidi­
do relação jurídica conexa àquela de que o terceiro seja titular.

do julgamento, autônoma, portanto. Obviamente que, como terceiros, apesar de sofrerem as


eficácias naturais da sentença, não podem sofrer os efeitos da coisa julgada material. Ora, se os
terceiros que são titulares de relações meramente conexas não podem sofrer os efeitos da coisa
julgada, que diria se o terceiro que se afirma titular da relação jurídica, decidida na causa sem
a sua presença, pudesse sofrer tais efeitos.
40 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di dirítto processuale civile. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1984, v.
2, p. 415: "L'efficacia riflessa non è un efetto diverso o distinto da quello prodotto tra le parti, ma
soltanto la sua ripercussione sul terzo in conseguenza delia relazione esistente tra i due rapporti
giuridici." (Tradução livre).
41 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2“ ed. Campinas: Bookseller,
2000, v. 1, p. 500,
42 Nesse sentido, José Frederico Marques aduz o seguinte: "Eficaz que seja em relação a terceiros,
a decisão passada em julgado não os beneficia nem os prejudica com efeitos imutáveis (art.
472), visto que o terceiro pode impugnar o julgamento coberto pela res iudicata, desde que
tenha, para isso, legítimo interesse." (Manual de direito processual civil. 2a ed. Campinas:
Millennium, 2001, v. 3, p. 336).
43 É preciso que o assistente tenha efetivamente podido valer suas razões em juízo, influenciando
o órgão jurisdicional, isto é, que a assistência tenha sido eficaz, no sentido de que o assistente
tenha ingressado na causa a tempo de produzir provas, ou que não tenha sido impedido de
produzir provas pela atitude do assistido, ou ainda, que não tenha deixado de produzir
alegações ou provas que não eram de seu conhecimento e que o assistido, por dolo ou culpa,
não tenha se valido. Do contrário, não poderá sofrer o denominado efeito de intervenção,
estando liberado para apresentar oposição à sentença que haja lhe prejudicado.
702 - A C o is a Ju lg a d a no P ro cesso C i v il B r a s il e ir o

Voltando a falar nas figuras do sucessor e, do substituído processualmen­


te, fácil é verificar porque devem se sujeitar à eficácia da coisa julgada.
No que diz respeito aos sucessores e aos substituídos processualmente,
na verdade a lei entende que a parte que litigou representou diretamente tais
terceiros, de modo que não há nenhum óbice para que sofram os efeitos da
coisa julgada material.
Ademais, o sucessor, quer a título universal, quer a título singular, recebe
o bem da vida com suas virtudes e seus defeitos, passando a ocupar o lugar
daquele a quem sucedeu.
Quem sucede alguém em uma relação jurídica ocupa o lugar do cedente
para todos os efeitos. Se alguém adquire, por exemplo, um bem de outro, o
adquire com todos os seus frutos, mas também com todos os seus vícios. As­
sim ocorre quer na sucessão a título singular, quer na sucessão a título univer­
sal, com a única diferença que nesta última o sucessor somente pode ser obrigado
até o limite das forças da herança.
Como afirma Pontes de Miranda44:
A sucessão pelo terceiro, por exemplo, estabelece o contacto pessoal e a
coisa julgada atinge o terceiro sucessor, quer a título universal, quer
singular, e. g., pela aquisição do direito exercitado ou da coisa litigiosa.
Equipara-se ao sucessor o adquirente da posse mediata.
Por sua vez, a figura da substituição processual tem lugar quando alguém,
por meio de autorização legal, vai a juízo para, em nome próprio, defender
interesse alheio, tal como ocorre com o Ministério Público em relação ao inca­
paz, na ação de investigação de paternidade, daí porque também é denominada
de legitimação extraordinária. Estando devidamente representado em juízo pela
pessoa a quem a lei conferiu legitimidade, e sendo o interesse em jogo da titula­
ridade do substituído, deve este sofrer os efeitos da sentença que decidir a causa.
Obviamente que nessas duas hipóteses é razoável que o terceiro seja al­
cançado pela eficácia da coisa julgada já que, ao tempo da demanda, houve
quem pudesse contraditar os interesses do oponente e também participar do
convencimento do órgão jurisdicional45.

44 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 123.
45 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros,
2001, v. 3, p. 321-322.
A n d reo A leksa n d ro N o br e M a r q u es - 7 0 3

Resta discutir a regra prevista na segunda parte, do art. 472, do Código


de Processo Civil, do seguinte teor: “(•••) Nas causas relativas ao estado de
pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário,
todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.”
Tal regra apresenta-se em manifesta contradição com a primeira parte do
referido artigo, que estatui que a sentença só faz coisa julgada entre as partes,
não podendo beneficiar nem prejudicar terceiros. Na verdade, no momento em
que se diz que havendo citação de todos os interessados a sentença produzirá
coisa julgada, não estamos mais diante propriamente de terceiros, mas sim de
partes, já que o litisconsorte citado assume a posição de parte no processo.
A sentença, enquanto ato jurídico que decida sobre relação jurídica que
envolva o estado das pessoas, produz eficácia constitutiva em relação a todos, o
que não se confunde com a eficácia de coisa julgada material. É dizer, a coisa
julgada material, mesmo nas ações de estado, ao contrário do que possa pare­
cer, também não tem eficácia erga omnes, alcançando apenas as partes que
estiveram contrapostas no processo.

5 . L im it e s o b j e t iv o s d a c o i s a j u l g a d a

Qual(is) parte(s) da sentença recebe(m) a nota da indiscutibilidade


com a passagem em julgado, ou seja, faz(em) coisa julgada material? À elu­
cidação dessa resposta é que se dedica a discussão sobre os limites objetivos
da coisa julgada.
Como se sabe, a sentença é composta de relatório, motivação e dispositi­
vo (art. 458, Código de Processo Civil). No entanto, nos ordenamentos de
raiz romano-germânica praticamente se aceita com unanimidade que apenas
o dispositivo da sentença é que, usando a linguagem utilizada pelo art. 468,
do Código de Processo Civil, faz lei entre as partes, ficando os demais seg­
mentos da sentença excluídos desse efeito, inclusive, e o que é mais significa­
tivo, todos os raciocínios desenvolvidos pelo juiz como antecedentes lógicos à
decisão da causa, por mais importantes que possam ser e por mais imbricados
que possam estar à decisão mesma, acrescendo-se aqui, por fazerem parte da
motivação, os fatos que foram tidos por verdadeiros e que, por isso, podem ser
desconsiderados em outro processo.
Já foi visto que a sentença propriamente dita é o ato do Estado que
entrega a prestação jurisdicional, resolvendo o conflito de interesses através da
704 - A C o is a J u lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

declaração da vontade concreta da lei. É o Estado cumprindo o dever a que se


obrigou, para o qual deve ser necessariamente provocado, ficando dessa forma
jungido à iniciativa das partes, isto é, à ação e ao pedido veiculado por quem
procurou a jurisdição46.
Alguém vem a juízo pleiteando determinado bem da vida em face de
outrem, que por sua vez, ao ser chamado a responder sobre o pleito, torna
controvertida a titularidade sobre o bem da vida. O juiz deve decidir acerca
deste bem da vida e nada mais que não tenha sido objeto de provocação pelo
interessado. Sobre este bem da vida, cuja titularidade é reconhecida ou negada
a quem provocou a atividade jurisdicional, é que a decisão passada em julgado
se tornará indiscutível.
Observa-se, então, porque a coisa julgada incide apenas sobre o dispositi­
vo, que é normalmente o locus em que a causa é decidida, em que se afirma ou se
nega ao autor o bem da vida pretendido, enfim, em que se decide a lide47.
Vê-se assim que para afirmar o que se tornou indiscutível com o julga­
mento, descobrindo os limites objetivos da coisa julgada, é necessário analisar
os elementos objetivos que individualizam a lide, isto é, identificar o pedido e
a causa de pedir48.
Por conseguinte, é de ser destacado que, apesar de os motivos não fazerem
coisa julgada material, muitas vezes é preciso recorrer aos motivos para esclarecer
o dispositivo da sentença e assim descobrir o âmbito da coisa julgada49.

46 Nesse sentido, dispõe o art. 128, Código de Processo Civil: "O juiz decidirá a lide nos limites
em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito
a lei exige a iniciativa da parte."
47 Segundo o art. 468, Código de Processo Civil: "A sentença, que julgar total ou parcialmente a
lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas." Tal regra é complementada
pela prevista no art. 474, do Código de Processo Civil, do seguinte teor: "Passada em julgado a
sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte
poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido." A lei presume, então, havendo
omissão da parte acerca de alegações e defesas não manifestadas oportunamente, o julgamento
de tais questões, impedindo a reabertura da causa, a fim de evitar que os litígios se eternizem, o
que se denomina na doutrina brasileira de eficácia preclusiva geral da coisa julgada, apesar de
haver quem fale também em "coisa julgada implícita" ou "julgamento implícito", e que não se
confunde com os limites objetivos da coisa julgada. Cf. nesse sentido, SILVA, Ovídio Baptista da.
Curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 1, p. 517.
48 MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2a ed. Campinas: Millennium,
2001, v. 3, p. 331.
49 Cf. a esse respeito, dentre outros: LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. 4a
ed. Milano: Giuffrè, 1984, v. 2, p. 428-429; MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de
processo civil: arts. 444 a 475. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5, p. 118; SANTOS,
Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 19a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3,
A n d reo A leksan d ro N o bre M a rq u es - 7 0 5

Noutro pórtico, desde que a parte requeira que o órgão jurisdicional


decida sobre uma questão que se constitua em antecedente lógico de outra50,
isto é, que se trata de uma questão prejudicial que se quis também ver resol­
vida, estar-se-á diante de outra lide cuja resolução também estará apta a fazer
coisa julgada material.
A lei processual brasileira segue essas coordenadas, tanto que no art. 469,
do Código de Processo Civil, esclarece que:
Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para
determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade
dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a aprecia­
ção da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
Essa regra é complementada pela prevista no art. 470, do Código de
Processo Civil, que dispõe acerca da ação declaratória incidental: “Faz, toda­
via, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts.
5o e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto
necessário para o julgamento da lide.”
Frise-se, ainda, que, independentemente do local da sentença em que se
encontre a decisão, se na motivação ou na conclusão, a disposição estará apta a
fazer coisa julgada material.

6. C o is a ju lg a d a nas a ç õ es q u e versam so bre

in t e r e s s e s m e t a in d iv id u a is

Tudo o que foi acima dito sobre os limites subjetivos da coisa julgada se
aplica às sentenças de mérito que resolvem conflitos de interesses individuais.
Outras regras precisavam ser e foram criadas para adaptar o instituto da coisa
julgada às denominadas demandas coletivas, a fim de proporcionar que ter­
ceiros pudessem ser atingidos pela eficácia da coisa julgada, ampliando então
seus limites subjetivos51.

p. 64; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso d e p ro c e sso civ il. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, v. 1, p. 509.
50 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de p rocesso civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v.
1, p. 514.
51 Co m o sustenta Sérgio Gilberto Porto: "Co m o se vê, procurou o legislador amoldar o instituto
da coisa julgada à nova realidade que se lhe apresentava. E a fórmula encontrada foi a de
vincular a extensão do instituto da coisa julgada à natureza do direito debatido na causa. Com
706 - A C o is a J u lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

Espelhando-se na doutrina, a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990,


que versa sobre a proteção do consumidor, buscou conceituar as espécies de
interesses coletivos existentes, chegando a uma classificação tripartite: interes­
ses ou direitos difusos; interesses ou direitos coletivos; e interesses ou direitos
individuais homogêneos.
A bem da verdade, com a característica de verdadeiros interesses coleti­
vos pode ser arrolada apenas as categorias dos interesses difusos e dos interes­
ses coletivos stricto sensu.
Tais interesses, denominados transindividuais, têm em comum o fato
de pertencerem a uma massa de indivíduos em seu conjunto e não
individualmente, daí porque indivisíveis. Seriam direitos que pertenceriam,
simultaneamente, a todos e a cada um, o que faz com que se distingam dos
interesses individuais homogêneos, que são interesses que pertencem a cada
indivíduo enquanto tal, ou seja, interesses perfeitamente divisíveis, que podem
ser individualizados, mas que para uma melhor proteção, quando decorrentes
de uma origem comum, permitiu a lei que fossem tratados em certo sentido
como interesses coletivos.
Os traços que distinguem os interesses difusos dos interesses coletivos
stricto sensu são os seguintes: enquanto que em relação aos interesses difusos os
titulares são indeterminados e estão ligados por circunstâncias de fato, em se
tratando de interesses coletivos stricto sensu, seus titulares são grupo, categoria
ou classe de pessoas determinadas, que se encontram unidas entre si ou com a
parte adversa por um vínculo de natureza jurídica.
Exemplificando: quando ocorre um dano ambiental, tal qual a poluição
de um rio, não é possível identificar todas as pessoas que estão tendo sua esfera
jurídica lesada, já que o interesse em jogo pertence a toda uma coletividade,
uma gama indefinida de pessoas cujo único vínculo deriva da circunstância de
fato da poluição.
Outro exemplo que pode ser citado diz respeito a um problema atual
decorrente do Estatuto do Idoso (Art. 40, da Lei 10.741/2003), que confe­
riu aos idosos com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários mínimos, nos

isso, admitiu claramente que não há mais, sob os aspectos dos limites subjetivos, uma única
concepção do instituto da coisa julgada, mas tantas quantas reclamar a natureza do direito."
(Com entários ao cód ig o de p rocesso civ il : do processo de conhecimento, arts. 444 a 495. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 168).
A n d reo A leksa n d ro N o br e M a r q u es - 7 0 7

veículos de transporte interestadual de passageiro, o direito a 2 (dois) lugares


gratuitos por veículo ou o desconto de 50% (cinqüenta por cento), no míni­
mo, no valor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitasS2.
De fato, não é possível identificar em nosso país todas as pessoas que
estão na situação de idade e renda estabelecida no referido dispositivo (liga­
das, portanto, por circunstâncias de fato), existindo um conjunto indetermi­
nado de pessoas que são ao mesmo tempo titulares do interesse de ser
transportado de um Estado a outro, gratuitamente ou com um desconto de
pelo menos metade do valor da passagem.
Como modalidade de interesse distinto, interesse coletivo stricto sensu,
continuando com um exemplo atual, pode ser citado o dos magistrados brasi­
leiros em questionar se o Departamento de Polícia Federal pode exigir com­
provação de capacidade técnica para manuseio de arma de fogo à obtenção de
registro e/ou renovação simplificada do registro de armas de fogo, e se assim
não estaria o Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/2003), lei ordinária,
impondo requisitos em contrariedade à lei de status superior, mais precisa­
mente, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n° 35/
79)53. Perceba-se aqui que o interesse pertence a um grupo de pessoas, e não
a toda a coletividade, e que é possível a identificação dessas pessoas, além de
estarem ligadas, no caso, entre si, por uma relação jurídica base, qual seja, a
investidura, de acordo com as normas constitucionais atinentes à espécie, em
cargo do Poder Judiciário.
Por outro lado, tendo um determinado fabricante de automóveis exposto à
venda e vendido veículos com um determinado defeito de fabricação, todas as
pessoas que tiverem comprado os veículos defeituosos serão titulares de interes­
ses perfeitamente divisíveis. No entanto, como os interesses dessas pessoas de­
correm de uma origem comum, qual seja a fabricação defeituosa por uma
montadora de um determinado componente dos veículos vendidos, a fim de

52 O Ministro Gilmar Mendes (em substituição à presidência do Supremo Tribunal Federal), no SS-
3052, deferiu liminar, em janeiro de 2007, suspendendo execução de medida liminar conce­
dida em mandado de segurança, a fim de que os idosos possam gozar do referido benefício
legal enquanto não é julgada a ação principal. (Disponível em: http://www.stf.gov.br/impren-
sa/pdf/ss3052.pdf. Acesso em: 29 mar. 2007).
53 Recentemente, o Supremo Tribunal Federal apreciou liminar sobre a matéria na Ação Originária
1429, Rel. Ministra Ellen Gracie. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/
u ltim as/ler.a sp ?C O D IG O = 2 20 087 & tip = U N & p aram = ind eferida% 20 lim in ar% 20 em %
20ação%20originária>. Acesso em: 29 mar. 2007.
708 - A C o is a J u lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

facilitar uma melhor proteção desses direitos, permitiu a lei que a defesa fosse
feita coletivamente, identificando tais direitos como individuais homogêneos.
Perceba-se o que dispõe o art. 81, da Lei 8.078/90:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas
poderá ser exercida emjuízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titu­
lares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos
os decorrentes de origem comum.
Para esses novos direitos, que foram reconhecidos no mundo ocidental
apenas no século passado, cujos titulares correspondem a um montante mais ou
menos indeterminado de pessoas, logicamente que o instituto da coisa julgada,
no que diz respeito aos seus limites subjetivos, não poderia permanecer com
características idênticas ao das demandas que versam sobre conflitos individuais,
sob pena de a tutela coletiva não ter nenhuma utilidade prática54.
Isso torna possível inclusive uma conclusão bastante significativa de que
não é o direito posto em causa que tem que se adaptar ao instituto da coisa
julgada, tal como este foi pensado tradicionalmente, mas é a coisa julgada,
como meio garantidor da certeza e segurança jurídicas, que deve se amoldar ao
direito debatido.
É nessa linha de raciocínio que Sérgio Gilberto Portoss defende o se­
guinte ponto de vista:

54 Seguindo essa senda, aduz Rodolfo de Camargo Mancuso que "(...) a finalidade última de
todo processo coletivo reside na eficácia social do julgado, visto tratar-se de instrumento
voltado a dirimir conflito de interesses metaindividuais." (Ação civil pública: em defesa do
meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 10a ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 305).
55 PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao código de processo civil: do processo de conheci­
mento, arts. 444 a 495. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 170.
A n d reo A leksa n d r o N obre M a rq u es - 709

Contudo, qualquer que seja a solução a adotar, resulta claro que, no


tocante ao instituto da coisajulgada, máxime em seus limites subjetivos,
teremos tantas projeções quantas forem as naturezas diversas do direi­
to posta à apreciação. Realmente, em qualquer hipótese, resulta pre­
sente a vinculação da coisa julgada à natureza dos direitos postos em
causa, consoante anteriormente exposto. Daí ser de todo inegável que -
hoje - não mais se resume a autoridade da coisajulgada na construção
ortodoxa de que apenas as partes estão sujeitas a esta, mas, sim, isto
somente se pode definir a partir da identificação do direito posto em
juízo à análise, quer exista solução legislativa, quer inexista.
Parece, contudo, que se pode ir ainda mais além e pensar em alterações
no tratamento da coisa julgada, com base na natureza da lide submetida a
julgamento, não apenas no que diz respeito aos seus limites subjetivos, mas
também para autorizar legalmente a cassação dos efeitos da sentença transita­
da em julgado em determinadas situações, ou, quiçá, a própria revisão do
comando da sentença.
É o que sustenta Paulo Roberto de Oliveira Lima, prestando valioso
aporte para o avanço na disciplina da coisa julgada, para quem não deve existir
apenas uma coisa julgada, mas várias coisas julgadas, cada qual com regras
próprias, segundo a natureza da lide, ou caso assim se queira, de acordo com
os princípios que regem cada ramo do Direito, considerando, especialmente,
se estão ou não em jogo direitos indisponíveis56.
Pela sua importância, tal debate será retomado mais adiante, cabendo
agora, para não fugir do tema que vem sendo desenvolvido, descrever, em
linhas gerais, como o nosso ordenamento jurídico regulamentou a coisa julga­
da nas demandas de massa.
Assim, de acordo com o art. 103, caput &incisos, da Lei 8.078/9057, se a
lide versar sobre interesses individuais homogêneos, e apenas na hipótese de
procedência da demanda, a coisa julgada surtirá sua eficácia erga omnes\ se a
lide debater interesse coletivo stricto sensu, desde que a demanda não tenha

56 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Raulo: Revista dos
Tribunais, 1997. p. 151-155.
57 Não se descure que, de acordo com o art. 21, da Lei 7.347/85, aplicam-se, no que for
cabível, os dispositivos acerca da defesa do consumidor em juízo, inclusive, portanto, as
regras sobre a coisa julgada, à ação civil pública que verse sobre direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais.
7 1 0 - A C o is a J u l g a d a n o P r o c e s s o C iv il B r a s ile ir o

sido julgada improcedente por insuficiência de provas, a coisa julgada terá


eficácia ultra partes-, por fim, se a lide discutir interesse difuso, desde que,
igualmente, não tenha sido julgada improcedente por insuficiência de provas,
a coisa julgada projetará seus efeitos erga omnes'*.
Perceba-se também que a Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, que
disciplina a ação civil pública para a responsabilização por danos materiais e
morais causados aos diversos interesses difusos ou coletivos, dentre os quais
ao meio ambiente e ao consumidor, mais precisamente em seu art. 16, com
a redação dada pela Lei 9.494/97, estabelece que a sentença fará coisa jul­
gada erga omnes, salvo se o pedido for julgado improcedente por insuficiên­
cia de provas.
Utilizou-se o legislador pátrio, então, em contraposição à disciplina refe­
rente às lides individuais, no que se refere às causas que versarem sobre inte­
resses difusos e coletivos stricto sensu, da técnica da coisa julgada secundum.
eventum litis, é dizer, condicionou o alcance da coisa julgada ou à procedência
da demanda, ou, em caso de improcedência, desde que não tenha sido por
insuficiência de provas, enquanto que, no caso de estarem em disputa ação
coletiva acerca de interesses individuais homogêneos, valeu-se da técnica do
transporte in utilibus do julgado coletivo para as demandas individuais59.
Nunca é demais lembrar que a técnica da coisa julgada secundum eventum
litis ingressara em nosso sistema positivo a partir do disposto no artigo 18 da Lei
4.717, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular, cuja redação muito
pouco difere daquela utilizada no art. 16, da Lei 7.357/85.
Com isso, se é certo que se coloca a parte demandada em uma posição
desvantajosa, ao possibilitar que tenha de se defender de várias ações, desde
que as anteriores tenham todas sido julgadas improcedentes por insuficiência

58 Cf. PORTO, Sérgio Gilberto. Com entários ao código de p rocesso civil : do processo de conhe­
cimento, arts. 444 a 495. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6, p. 171.
59 Nessa última hipótese, não se trata de eficácia derivada da coisa julgada produzida na ação
coletiva, como quer fazer crer a redação dada pelo § 3°, do art. 103, Lei 8.078/90, mas apenas
da utilização dos fundamentos fáticos e jurídicos da decisão prolatada em demanda coletiva
em posterior ação versando sobre interesse individual. A técnica do transporte in utilibus já era
conhecida em nosso ordenamento jurídico antes da edição do Código de Defesa do Consu­
midor, mais precisamente no caso de sentença penal condenatória. Assim, com base no art. 63,
do Código de Processo Penal, transitada em julgado a sentença penal condenatória, pode a
vítima, seu representante legal ou herdeiros promover diretamente a execução, sem necessitar
mais comprovar a existência do fato ou a culpa do acusado, já configurada com a condenação
penal, bastando buscar definir a extensão dos danos a fim de possibilitar sua liquidação.
A n d reo A leksa n d r o N o bre M a rq u es - 711

de provas, por outro lado impede que eventual conluio entre um dos legiti­
mados a propor a ação com a parte adversa, no sentido de produzir deficien­
temente as provas das alegações no processo60, possa prejudicar um grande
número de pessoas que sequer puderam defender seus interesses em juízo.
Adequada, então, a opção do legislador, já que as vantagens, sem dúvida,
superam as desvantagens.
Nota-se, portanto, que, nas demandas coletivas, em determinadas situações,
a coisa julgada atinge não só as partes do processo, mas também terceiros,
revolucionando a disciplina dos limites subjetivos da coisa julgada em
comparação com a concepção tradicional, ainda aplicável às demandas que
versam sobre interesses individuais heterogêneos. Isso foi possível a partir do
momento em que se criou para a tutela coletiva o conceito de ‘representação
adequada’, superando a exigência, própria das lides individuais, da presença,
em regra, no processo do titular do interesse em disputa, já que apenas ao
titular do interesse era conferida a legitimidade ad causam, uma das condições
necessárias a permitir o exame do mérito pelo órgão judicial.
Assim, deve ser abominada e repelida toda e qualquer alteração legislati­
va que restrinja o alcance da coisa julgada advinda de sentença prolatada em
ação coletiva61, uma vez que tal limitação desconsidera o fato de que os inte­
resses em jogo pertencem a um número mais ou menos indeterminado de
pessoas, isto é, que a relação jurídica em debate une uma gama indeterminada
de pessoas, de modo que qualquer limitação à eficácia erga omnes da coisa

60 M ANCUSO, Rodolfo de Camargo. A ção civ il pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio
cultural e dos consumidores. 10a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 292.
61 A mais significativa alteração buscando mitigar o alcance da coisa julgada nas ações coletivas
foi, sem dúvida, a do art. 16, da Lei 7.347/85, encetada por meio de edição de medida
provisória que veio posteriormente a ser convertida na Lei 9.494/97. Segundo o mencionado
dispositivo, "a sentença civil fará coisa julgada erga o m n es, nos limites da competência
territorial do órgão prolator." Como se vê, o legislador misturou institutos diversos, já que
não se confundem competência e coisa julgada, é dizer, uma vez transitada em julgado uma
decisão prolatada por órgão jurisdicional previsto na Magna Carta, os efeitos da sentença e
da coisa julgada surtem em todo o território nacional, independentemente dos limites
territoriais da competência do órgão judicante que proferiu a decisão. A competência é
instituto que resolve apenas qual dos órgãos ju risd icio n a is deve conhecer e decidir
determinado litígio. Uma vez decidido o litígio, não cabendo mais recurso, passa a coisa
julgada a produzir seus efeitos, desconhecendo, para tal, fronteiras internas, já que a
jurisdição é una. Assim é em relação às lides individuais, não havendo porque ser diferente
justamente em relação às lides coletivas, onde os interessados podem estar (e normalmente
estão!) distribuídos por mais de um território, tendo o conflito repercussão muitas vezes não
apenas local, mas regional e quiçá nacional.
712 - A C o is a J u lg a d a no P ro cesso C iv il B r a s il e ir o

julgada faz com que perca a ação coletiva toda sua utilidade social, além do
que possibilita a convivência de decisões contraditórias62.

7 . À GUISA DE CONCLUSÃO

Do que foi desenvolvido neste escrito, infere-se que:


1) quando o processo chega ao fim e a decisão judicial não é mais im-
pugnável, ocorre o fenômeno da coisa julgada formal, também denominada
de preclusão máxima;
2) todas as sentenças não mais impugnáveis fazem coisa julgada formal,
o que confere às partes a certeza de que, pelo menos na relação processual que
se encerrou, não será mais possível reabrir qualquer discussão, nem se realizar
nenhum outro julgamento;
3) a coisa julgada material é o efeito da sentença não mais impugnável
que toma a afirmação da vontade da lei no caso concreto indiscutível, vincu­
lando as partes e obstando que os órgãos jurisdicionais, em processos futuros
versando sobre o mesmo bem da vida, voltem a se pronunciar sobre aquilo que
já foi decidido definitivamente;
4) a coisa julgada material somente constitui efeito das sentenças que
decidem ou resolvem o mérito da causa, eliminando o litígio que foi trazido à
apreciação judicial, sendo que a coisa julgada material pressupõe a coisa julga­
da formal;
5) em regra, a eficácia da coisa julgada somente alcança as partes que
litigaram no processo, não podendo atingir terceiros, o que não impede que a
sentença transitada em julgado espraie seus efeitos de tal forma que outras
pessoas que não tiveram a oportunidade de apresentar suas razões em juízo
sofram sua influência;
6) o tratamento da coisa julgada na tutela coletiva, no que diz respeito
aos limites subjetivos, mostra que não é o direito posto em causa que tem que
se adaptar ao instituto da coisa julgada, tal como este foi pensado tradicional­
mente, mas é a coisa julgada, como meio garantidor da certeza e segurança
jurídicas, que deve se amoldar ao direito debatido;

62 M ANCUSO, Rodolfo de Camargo. A çã o civil pública', em defesa do meio ambiente, do patrimônio


cultural e dos consumidores. 10a ed. São Raulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 310.
A n d reo A leksa n d r o N o bre M a rq u es - 713

7) nas demandas coletivas, em determinadas situações, a coisa julgada


atinge não só as partes do processo, mas também terceiros, superando a exi­
gência, própria das lides individuais, da presença, em regra, no processo, do
titular do interesse em disputa.

B ib l io g r a f ia

ALVIM, Arruda. Manual de direitoprocessual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. vol. 1.
ASSIS, Araken. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do
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LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di dirittoprocessuale civile. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1984. v. 2.
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MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, ano 59,
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D o c u m en to s L e g a is C o n su lta d o s

PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao código de processo civil', do processo de conhecimento,


arts. 444 a 495. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 6.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 19a ed. São Paulo:
Saraiva, 2000. v. 3.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5a ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. v. 1.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4a ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000.
Mandado de Segurança e
Direito Tributário

Edilson Pereira Nobre Júnior


Desembargador Federal do TRF da 5aRegião. Mestre e Doutor em Direito
Públicopela Faculdade de Direito do Recife —UFPE. Professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E d il s o n P e r e ir a N o b r e J ú n i o r - 717

I. C o n tr o le d o po d er d e t r ib u t a ç ã o

Sempre constituiu ponto de tensão, no particular das relações entre o


Estado e o cidadão, o inerente ao controle do poder político. E mais: aspecto
dotado de elevada sensibilidade nesse âmbito diz respeito à cobrança de tri­
butos. A Magna Carta de 1215 representou formidável exemplo disso.
Mas não foi só. As grandes transformações provocadas pelos movimen­
tos revolucionários do século XVIII tiveram como base a preocupação com
a imposição desmedida e não razoável de gravames no campo tributário e à
livre iniciativa.
Tal singularidade foi essencial para a instituição da república e da fede­
ração como resultado da independência das treze colônias norte-americanas.
Prova disso é que, dentro do conjunto que se convencionou denominar
de leis intoleráveis (Intolerable Acts), duas delas constituíram odiosa manifes­
tação do poder tributário da metrópole sobre as colônias, quais sejam o Stamp
Act e os Townshend Acts, principalmente sob o argumento de que, se tais me­
didas eram aprovadas diretamente pelo Parlamento de Westminster, era ne­
cessária a representação dos colonos neste, o que não sucedia.
Do mesmo modo, o aniquilamento do regime feudal pela Revolução
Francesa gravitou em torno de injustiças provocadas pela política fiscal.
Além das iniquidades decorrentes do arcabouço normativo feudal, o
campesino francês - noticia George Rudé1- suportava ainda uma carga pesada
de impostos, dentre os quais: a) o dízimo para a Igreja; b) o taille (imposto
direto sobre o ingresso na terra e sobre esta), vingtième (um imposto do vigésimo
sobre o ingresso na terra), capitation (imposto per capita sobre o ingresso na
terra) e a gabelle (imposto sobre o sal) em favor do Estado; c) o benefício em
favor do senhor da propriedade, fosse leigo ou eclesiástico, cuja satisfação envolvia
uma série de obrigações, serviços e pagamentos, que iam desde a corvée (trabalho
forçado nos caminhos), os cens (renda feudal em dinheiro), o champart (renda
em produtos) e os lods et ventes (imposto incidente sobre a transmissão da
propriedade não plena); sem contar os pagamentos pelos usos de moinhos,
lagares e fornos de pão do senhor.

1 La R evo lu ción Francesa. Buenos Aires: Ediciones B. Argentina, 2004, p. 19-20. Tradução de
Aníbal Leal.
718 - M andado de S egu ran ça e D i r e it o T r ib u t á r io

A história pátria registra ora à época colonial, ou nos idos do Império e,


igualmente, nos alvores do regime republicano2, manifestações de rebeldia
provocadas pelo exercício sem peias da competência tributária.
Recentemente, por força da paulatina convicção tendente à afirmação do
Estado de Direito, o mecanismo de insurgência contra o abuso de poder fiscal
se transmudou das manifestações de rebeldia para o Poder Judiciário.
A expansão da fiscalização de constitucionalidade foi decisiva para tan­
to. Com a licença dos positivistas ferrenhos, no âmbito tributário, para que se
possa falar em Direito, não basta que exista norma elaborada pelo legislador.
Tanto é assim que, com inegável propriedade, Klaus Tipke acentua que:
“La moral tributaria consiste en que o legislador actúe dei modo que exigen
los princípios de Justicia aplicables por razón de la matéria”3.
Daí se percebe que o legislador, ao traçar o conteúdo das leis tributárias,
não possui poderes ilimitados, antes devendo se conformar com os demais
princípios que regem o sistema jurídico.
Em complemento, a tarefa de evitar que a atividade tributária abandone a
observância de tais princípios constitui responsabilidade inarredável dos juizes,
sejam os da jurisdição especializada, sejam os titulares da competência para a
fiscalização abstrata da constitucionalidade.
Volvendo-se ao nosso país, constata-se que, com a evolução constitucio­
nal, cada vez mais se tornaram assíduos os litígios decorrentes da inconformi­
dade do cidadão com a atuação fiscal, alcançando papel singular a contestação
da aplicação das leis tributárias sob o prisma de sua incompatibilidade com o

2 A Minas Gerais, por concentrar, no final do século XVII, e no século XVIII, a maior parte da
riqueza brasileira, em razão da atividade mineradora, coube importante papel na história com
a Guerra dos Emboabas, a Revolta de Filipe dos Santos e a Inconfidência Mineira. Embora sem
maior destaque, o Nordeste teve seu papel com a insurgência contra o "imposto do chão" no
movimento conhecido como a Revolta do Quebra-Quilos, nos anos de 1874 e 1875. Por sua
vez, relata Euclides da Cunha que uma das causas da aversão de Antônio Conselheiro pela
República consistiu no fato de, com o reconhecimento da autonomia dos municípios, as
câmaras das localidades da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que faziam as vezes
da imprensa, avisos para a cobrança de impostos. Eis, com narrativa candente, a reação: "Ao
surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e
planeou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar
de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o 'auto
de fé', que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra
as leis" (Os sertões. São Paulo: Ediouro, 2003, p. 237).
3 M oral tributaria dei Estado y de los contribuyentes. Tradução, apresentação e notas a cargo de
Pedro M. Herrera Molina. Madri: Marcial Pons, 2002, p. 98.
E d il s o n P e r e ir a N o bre Jú n io r - 7 19

texto sobranceiro. Tal fenômeno se aguçou no final da vigência da Constitui­


ção pretérita, ganhando prosseguimento com a atual4.
Abstraídos os processos objetivos de fiscalização da constitucionalidade,
uma das mais importantes garantias do cidadão frente à atuação do Estado
constitui, sem sombra de dúvida, o mandado de segurança, que de criação
benfazeja do constituinte de 1934 se mantém no art. 5o, LXIX e LXX, da
Lei Fundamental de 1988.
Interessante se afigura o estudo do emprego do mandado de segurança
na defesa de direitos na esfera tributária, em face das peculiaridades que esta
ostenta nos planos substancial e procedimental.
Isso sem contar a atualidade que desperta a abordagem diante do quarto
regramento legal da referida garantia, o qual adveio com a promulgação da
recente Lei 12.016, de 07-08-2009.
Passo ao desenvolvimento do tema, salientando que, em face das limita­
ções inerentes a um capítulo de livro, concentrar-se-á nas peculiaridades que
a impetração do mandado de segurança enseja no campo da insurgência con­
tra atos da Administração Tributária.
A exposição, em vez de fixar-se na análise dum aspecto específico, su­
cumbiu à ambição de examinar uma multiplicidade de pontos e suas contro­
vérsias, a tornar dispensável um tópico enunciador de conclusões.

II. O CABIMENTO DO WRIT

O primeiro aspecto a ser enfocado é o de que o mandado de segurança


somente poderá ser ativado para a defesa de direito líquido e certo5.

4 No citado período, destacam-se, dentre outros, a pretensão de inconstitucionalidade do


Fundo Nacional de Telecomunicações - FNT, do empréstimo compulsório sobre aquisição de
veículos e combustíveis, instituído pelo Decreto-lei 2.288/86, da cobrança do extinto Finsocial
no mesmo exercício no qual instituído, e da elevação de sua alíquota, a majoração do PIS por
meio dos Decretos-leis 2.445/88 e 2.449/88, da contribuição sobre a folha de salários,
incidente sobre a remuneração de autônomos, administradores e avulsos, da contribuição
social sobre o lucro líquido.
5 Por ocasião da vigência da Constituição de 1937, cujo texto se omitiu de reportar-se ao
mandado de segurança, o art. 320, IV, do Código de Processo Civil de 1939, propendeu por
afastar a garantia das lides tributárias, prescrevendo: "Art. 320. Não se dará mandado de
segurança, quando se tratar: (...) IV - de impostos, taxas, salvo se a lei, para assegurar a
cobrança, estabelecer providências restritivas da atividade profissional do contribuinte".
7 2 0 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir eit o T r ib u t á r io

A definição do binômio qualificador do direito subjetivo tutelável, na


atualidade, não enseja mais controvérsia. Durante a vigência da Constituição
de 1934, cujo art. 113, n° 33, aludia à defesa de direito, certo e incontestável,
a jurisprudência se inclinou pelo ponto de vista de que tais qualificativos
deveriam se reportar à demonstração evidente da matéria fática. Melhor ex­
plicando: dever-se-ia tratar de direito cujos fatos que o ensejam se apresentem
demonstrados mediante prova pré-constituída.
Caso exista controvérsia quanto à demonstração dos fatos narrados, a
tornar necessária dilação probatória, não se mostraria admissível a impetração
de mandado de segurança6.
O leading case, que recaiu no voto do Min. Costa Manso no MS 333,
de 09-12-367, mantém-se inalterado, conforme se pode observar da Súmu­
la 625 - STF8.
O importante é que se afirme que, demonstrados os fatos, eventual polê­
mica acerca da interpretação das normas e institutos jurídicos não desnatura a
liquidez e certeza do direito submetido ao pálio protetor do Judiciário.
Se assim fosse, restaria esvaziado o mandado de segurança, pois é da
sabença geral que a interpretação jurídica é controvertida por natureza.
Por outro lado, restam excluídos do mandado de segurança outros
direitos demonstráveis de plano cuja proteção se materializa por meio da
impetração de writs constitucionais específicos. Assim é o caso do direito à
liberdade de locomoção, cuja violação ou ameaça de ofensa é repelida
mediante o habeas corpus.
Noutro ponto - e com mais correlação com o âmbito tributário - está o
direito à informação, bem assim de retificação, que também é tutelado pelo
habeas data.
E com frequência que os contribuintes, para o exercício de suas ativida­
des, necessitam obter certidões negativas ou positivas com efeitos de negativa,

6 Interessante ver o deliberado pela 2a Turma do Superior Tribunal de Justiça no Agravo Regimental
no RESP 253.634 - SP (v.u., rel. Min. Franciulli Netto, DJU de 19-03-2001), ao se entender que
a demonstração segundo a qual a merluza é pescada ou não nas águas territoriais brasileiras,
indispensável no caso concreto para o gozo de isenção de ICMS, foi considerada como matéria
dependente de dilação probatória, a inviabilizar a concessão de mandado de segurança.
7 Resgate histórico consta de Carlos Mário da Silva Velloso (Conceito de direito líquido e certo.
In: Curso de mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 75-76).
8 O excerto sumular tem a redação seguinte: "Controvérsia sobre matéria de direito não impede
concessão de mandado de segurança".
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 2 1

ou ainda obter o acesso a processos administrativos que, nas dependências da


Administração Tributária, existam a seu respeito.
Tais pretensões devem ser perseguidas, via de regra, por meio do mandado
de segurança e não do habeas data. Este constitui instrumento adequado apenas
para a obtenção, bem assim a retificação, de informações inerentes à esfera privada
ou reservada do cidadão. Protege-se o direito à informação quando associado à
defesa do direito à intimidade. Assim a doutrina é esclarecedora9.
Interessante também o deliberado pela 2a Turma do Tribunal Regional
Federal da I a Região na AC 92.01.23879 —7 —M T10. Trata-se de pleito
destinado à obtenção de cópias de processo administrativo cujo objeto era o
deslinde de pleito de diferenças de correção monetária a que teriam direito os
impetrantes, o qual se encontrava em poder da Procuradoria do Instituto
Nacional do Seguro Social no Estado de Mato Grosso. Compreendeu-se que
se cuidava de informação relacionada com a atuação administrativa do ente
público, relacionada aos seus servidores, evidenciando-se a impropriedade do
habeas data.
Além do direito líquido e certo, o mandado de segurança constitui re­
médio jurídico voltado à impugnação de ato de autoridade. Este, por sua vez,
caracteriza-se mediante a atuação de quem, nos termos do sistema jurídico,
está habilitado a representar o aparato estatal. No entanto, não é qualquer
atuar em nome do Estado. Indispensável que se trate ainda de postura de
conteúdo decisório. A Lei 9.784/99, a qual disciplina o procedimento admi­
nistrativo no âmbito da Administração Federal Direta e Indireta, eliminou
quaisquer dúvidas a respeito, conceituando autoridade no §2°, III, do seu art.

9 A esse respeito, incisivo se mostra José Afonso da Silva: "O habeas data é, portanto, um
remédio constitucional, com natureza de ação judicial civil, que tem por objeto proteger a
esfera íntima dos indivíduos contra: a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados
por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; b) introdução nesses registros de dados sensíveis
(assim chamados os de origem racial, opinião política, filosófica ou religiosa, filiação
partidária e sindical, orientação sexual, etc.); c) conservação de dados falsos ou com fins
diversos dos autorizados em lei" (Mandado de injunção e habeas data. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1988, p. 58).
10 Eis a ementa do julgado: "C O N S T IT U C IO N A L. PRO CESSU A L C IV IL . 'H ABEAS DATA'.
F IN A L ID A D E . IN A D E Q U A Ç Ã O D O 'N O M E N JU R IS ' D A A Ç Ã O . I - O rem édio
constitucional do 'habeas data' tem por fim assegurar o conhecim ento de informações
pessoais do interessado junto a entidades governamentais ou de caráter público (art. 5o,
LX X II, a da C F/88), não alcan çan d o pretensões que tenham por escopo a atuação
administrativa no serviço público. II - Inadmissibilidade de o ju iz prestar a tutela jurisdicional
como se a parte se tivesse valido da ação própria na espécie" (v.u., rel. Juiz Jirair Aram
Meguerian, DJU - II de 03-02-97, p. 4.066).
7 2 2 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir eit o T r ib u t á r io

Io: “Para os fins desta Lei, consideram-se: (...) III - autoridade - o servidor
ou agente público dotado de poder de decisão”.
O próprio conceito de ato administrativo - que tem aqui importância,
pois a exigência de tributo se opera mediante atividade administrativa vincu­
lada - envolve colorido decisório, conforme assente no estrangeiro.
O art. 120 do Código de Procedimento Administrativo de Portugal,
promulgado pelo Decreto-lei 442, de 15 de novembro de 1991, enuncia:
“Para os efeitos da presente lei, consideram-se actos administrativos as deci­
sões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público
visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
Comentando o preceito, Diogo Freitas do Amaral11mostra que a pre­
tensão legislativa foi mais longe, recortando entre a massa dos atos da Admi­
nistração uma categoria nova, denominada decisão, a implicar que nem todos
os atos jurídicos perpetrados no exercício da função administrativa, dentro de
uma situação individual e concreta, são atos administrativos, somente estando
compreendidos nestes aqueles que correspondem a um conceito estrito de
decisão, por expressarem uma estatuição, determinação ou prescrição.
Desafiam o ajuizamento de mandado de segurança não somente o lança­
mento, mas outras decisões da Administração Tributária, como a negativa de
uma isenção ou outro direito subjetivo do contribuinte. São impugnáveis tanto
os atos administrativos primários de lançamento quanto os atos secundários,
decorrentes de procedimento de impugnação dos primeiros.
Ato de controle de legalidade do lançamento - e que, portanto, implica
decisão -, o ato de inscrição na dívida ativa também enseja a impetração de
mandado de segurança.
Porventura consistindo o primeiro escrito sobre o exame do mandado
de segurança como instrumento de controle judicial da tributação, Sílvia La
Porta de Castro12esgrime o ponto de vista, no sentido de que, na relação

11 Curso de direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. Livro II, p 221.
12 O mandado de segurança como defesa do contribuinte contra exigência de crédito tributário.
Revista de Direito Tributário, Revista dos Tribunais, ano II, n° 4, p. 118,120-122, abril/junho de
1978. Dentre a vastidão da pesquisa encetada pela autora, consta menção ao decido pelo
Supremo Tribunal Federal no RE 71.319 - MC (1a Turma, v.u., rel. Min. Amaral Santos, Audiência
de Publicação de 20-10-71), em cuja ementa se acha consignado: "A dívida fiscal só se torna
exigível depois de inscrita e não da notificação para o pagamento, nascendo da inscrição o
direito de insurgir-se o contribuinte contra ela, por via de mandado de segurança". Rechaçando
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 2 3

jurídico-tributária, a coação somente surge quando da inscrição do crédito


fiscal na dívida ativa, a qual se configura como o ato impulsionador do
processo de execução fiscal. Neste momento, por surgir ato com carga de
eficácia máxima, é que daria ensejo ao surgimento de interesse para a impe­
tração do writ.
Fora dessa hipótese - afirma a autora - somente caberia se cogitar do
ajuizamento de mandado em caráter preventivo, mas desde que esteja consti­
tuído o crédito tributário pela ultimação do lançamento.
Com o devido respeito, desde que, nos contornos do procedimento ad­
ministrativo tributário, sejam proferidos atos que repercutam na esfera jurídi­
ca do contribuinte, limitando direitos, é cabível o mandado de segurança e a
impetração não é de caráter preventivo.
Antes da inscrição, mesmo que ainda exista a coação estatal direta, pro­
piciada pela executoriedade, já se manifesta perceptível a atuação estatal cons­
trangendo direitos do contribuinte por intermédio de meios coativos indiretos13.
Por exemplo, havendo o lançamento, inclusive mediante notificação não
impugnada, não poderá o contribuinte obter certidão negativa, ou firmar con­
trato administrativo, nem obter benefícios fiscais ou creditícios, caso se trate de
contribuição para a seguridade social (art. 195, §3°, CF). Não preencherá as
condições inerentes à regularidade fiscal para fins de habilitação em licitação e
não poderá receber valores que lhe são devidos pelos órgãos públicos, caso não
esteja em dia com o pagamento de contribuições para a seguridade social.
A jurisprudência mais recente vislumbra que a relação jurídico-tributá-
ria, para manifestar os seus efeitos, serve-se de procedimento cujas fases po­
dem acarretar efeitos lesivos para o contribuinte, ensejando cada qual a
oportunidade de acorrer-se à impetração de mandado de segurança, corres­

recurso da fazenda estadual, na parte na qual sustenta a existência de decadência do direito à


impetração, o Pretório Excelso, sem maior aprofundamento por parte do relator, manteve o
acórdão impugnado com o argumento de que a dívida fiscal somente poderia ser considerada
exigível ao depois de inscrita, instante no qual nasceria o direito do contribuinte de insurgência
mediante o ajuizamento do mandado de segurança.
13 Tratando dos atributos inerentes ao ato administrativo, Celso Antônio Bandeira de M ello
(Curso de direito administrativo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, p. 370-371) distingue entre
executoriedade e exigibilidade. Ambas traduzem a possibilidade da Administração de exigir
do administrado obrigações que impôs. A diferença reside na circunstância de que, na
executoriedade, a Administração pode exercitar contra o administrado a possibilidade de
coação material, enquanto que, na exigibilidade, dispõe apenas de meios coativos indiretos
para forçar aquele a atender ao comando imperativo.
7 2 4 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

pondendo a cada um deles um termo inicial distinto para a fluência do prazo


de caducidade. Assim foi a deliberação proferida no RESP 76.330 - ES14.
Contudo, uma observação se faz importante: impetrado mandado de
segurança contra o lançamento realizado mediante auto de infração, ou contra
a decisão que julgou impugnação ou recurso administrativo, não se poderá, na
insurgência quanto à inscrição na dívida ativa, novamente arguir matéria que
anteriormente restou decidida.
Ponto a considerar diz com o art. 5o, I, da Lei 12.016/2009, o qual
afasta a possibilidade de impetração do mandado de segurança quando se
tratar do combate a ato administrativo que comporte a interposição de recur­
so administrativo, independentemente de caução15.
A mensagem legislativa, a exemplo do que constava da Lei 1.533/51
(art. 5o, I), pretende dizer que o mandado de segurança, remédio judicial de
pronta reação, somente poderá ser ajuizado diante de decisão administrativa
cujos efeitos estão dotados de exequibilidade e, portanto, são suscetíveis de
lesar direitos subjetivos.
Se há interposição de recurso administrativo, ao qual é conferida eficácia
suspensiva da decisão impugnável, não haveria motivo para o ingresso em juízo.
Faltaria, assim, interesse de agir.
Na impugnação dos atos da Administração Tributária há peculiarida­
de específica. O art. 38, caput, da Lei 6.880/80, estatui que a discussão
judicial da dívida ativa somente poderá ocorrer durante a execução, na for­
ma que prevê, ressalvadas as hipóteses de mandado de segurança, ação de
repetição de indébito, ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta
precedida do depósito corrigido e integral do débito. No parágrafo único do
referido artigo, tem-se a previsão no sentido de que a propositura, por parte
do contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder
de recorrer na esfera administrativa e, caso interposto recurso, ter-se-á a
desistência deste.

14 STJ, 1a T., v.u., rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU de 14-10-96.
15 Desnecessária referência a recurso administrativo cuja interposição independe de caução
diante do recente entendimento do Pretório Excelso (Pleno, RE 389.383, v.u., rel. Min. Marco
Aurélio, DJU de 29-06-2007; Pleno, Agravo Regimental no Al 398.933, v.u., rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJU de 29-06-2007), no sentido de que a garantia de instância, na esfera adminis­
trativa, afigura-se inconstitucional.
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 2 5

Daí se percebe que o art. 5o, I, da Lei 12.016/2009, não possui incidên­
cia no direito tributário, em face do parágrafo único do art. 38 da Lei 6.880/
80 constituir lei especial, prevendo solução diversa. Assim, na hipótese de
impetração do mandado de segurança contra ato da Administração Tributá­
ria, haverá a renúncia do direito de recorrer ou a desistência do recurso admi­
nistrativo que tiver sido interposto.
Esse posicionamento é defendido por Alberto Xavier16, para quem a
inexistência de efeito suspensivo do recurso administrativo é pressuposto da
impetração do mandado de segurança, não se aplicando quando o objeto do
procedimento administrativo seja ato omissivo, porque os efeitos porventura
danosos da omissão são produzidos imediatamente e não são suscetíveis de
suspensão pela interposição recursal.
Não se pode esquecer que um dos aspectos sensíveis em torno da matéria
sob abordagem é o da impetração preventiva.
A Lei 12.019/2009, secundando opção da legislação anterior, deixa cla­
ro, no seu art. I o, caput, que o mandado de segurança não se presta apenas
para restaurar a violação de direito líquido e certo, mas também para conjurar
que aquela venha a ocorrer, o que resulta expresso da locução “ou houver justo
receio de sofrê-la”17.
Dificuldade que, com assiduidade, é apontada nesse particular é a que
resulta da inadmissibilidade de utilização de mandado de segurança para im­
pugnar lei em tese, conforme a Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal.
O objetivo da orientação jurisprudencial é o de evitar que o mandado de
segurança seja empregado para a declaração de inconstitucionalidade em for­
ma abstrata. Não impede que o contribuinte, visando escapar às garras do
legislador tributário, por meio da ação mandamental, postule conjurar as de­
cisões administrativas que se lancem à execução dos comandos legais que são
reputados ilegítimos.

16 Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 243-
244. Hugo de Brito Machado (Mandado de segurança em matéria tributária. 2‘ ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995, p. 57) ratifica o entendimento, salientando que, no campo
tributário, há lei específica, de modo a ser possível a impetração de mandado de segurança
mesmo quando interposto recurso administrativo com eficácia suspensiva. O ingresso em juízo
implica a desistência do recurso.
17 A referência ao justo receio de sofrer violação a direito líquido e certo já constava do art. 1o,
caput, da recém ab-rogada Lei 1.533/51. Por seu turno, a Constituição vigente, ao se ocupar
da consagração do direito à tutela judicial efetiva (art. 5°, XXXV), alude à ameaça a direito.
726 - M an d ad o de S egu ran ça e D i r e it o T r ib u t á r io

É preciso, segundo a própria dicção legal, que haja ameaça concreta de


que o contribuinte venha a ser atingido por ato da Administração Tributária
em detrimento de seu patrimônio e que aquele considere antijurídico.
Penso que será necessária não só a existência de norma legal, cuja aplica­
ção seja obrigatória pelo titular da função administrativa. Faz-se necessário
que o impetrante demonstre que se encontra situado no âmbito de incidência
da norma tributária. Melhor explicando: afigura-se indispensável que aquele
demonstre se encontrar dentre o conjunto dos sujeitos passivos da regra tribu­
tária indigitada de inconstitucional.
Discorrendo sobre o assunto, Hugo de Brito Machado18acentua que o
justo receio a que se refere o legislador está presente na circunstância de que,
em sendo a cobrança de tributo atividade administrativa vinculada, a autori­
dade coatora não possui qualquer liberdade para decidir se procede ou não à
aplicação da lei tributária, a qual não poderá declarar inconstitucional.
O entendimento ganha robustez quando se percebe que, recentemente,
o art. 26 - A do Decreto 70.235/72, com a redação ofertada pela Lei 11.941/
2009, veda que os Conselhos de Contribuintes venham afastar a incidência,
em virtude de inconstitucionalidade, de tratado, acordo internacional, lei ou
ato normativo, salvo se já declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal por decisão plenária definitiva19.

18 Mandado de segurança em matéria tributária. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.
271. Eis as palavras do autor: "Em matéria tributária merece o mandado de segurança preventivo
especial atenção, pois a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob
pena de responsabilidade funcional. Isto significa dizer que, tendo conhecimento da ocorrência
de um fato tributável, a autoridade administrativa não pode deixar de fazer o lançamento
correspondente. Assim, editada uma lei criando ou aumentando tributo, desde que ocorrida a
situação de fato sobre a qual incide, gerando a possibilidade de sua cobrança, desde logo a
autoridade está obrigada a exigir o tributo, e a impor penalidades aos inadimplentes. Em tais
condições, é viável a impetração de mandado de segurança preventivo. Não terá o contribuinte
de esperar que se concretize tal cobrança. Nem é necessária a ocorrência de ameaça dessa
cobrança. O justo receito, a ensejar a impetração, decorre do dever legal da autoridade adminis­
trativa de lançar o tributo, impor as penalidades e de fazer a cobrança respectiva. A autoridade
administrativa não pode deixar de aplicar a lei tributária, ainda que a considere inconstitucional.
E não é razoável presumir-se que vai descumprir o seu dever (op. c/t, p. 271). Anteriormente esse
pensamento constou de artigo (Mandado de segurança - impetração preventiva em matéria
tributária. Revista de Processo, Revista dos Tribunais, ano 19, n° 75, p. 59-62, jul./set. 1994).
19 De salientar que, ao rejeitar pleito de extinção, por falta de interesse, da ADI 221- 0 - DF (STF,
Pleno, v.u., DJU 22-10-93), formulado pelo Procurador-Geral da República, o voto do relator,
Min. Moreira Alves, assentou, à guisa de obiter dictum, que o controle de constitucionalidade de
lei ou ato normativo é da exclusiva competência do Judiciário, admitindo, quando muito, que
o Legislativo e o Executivo apenas determinem que seus órgãos subordinados deixem de aplicar
administrativamente leis e atos administrativos que reputem inconstitucionais, sem desconsiderar
E d il s o n P e r e ir a N obre J ú n io r - 7 2 7

Mesmo assim, insisto que a verificação do justo receio não dispensa a


demonstração de que o impetrante, achando-se, em tese, abrangido pela pro­
víncia de incidência da norma tributária acoimada de inconstitucional, esteja,
assim, sujeito aos reflexos derivados de sua execução.
A jurisprudência vem se inclinando pela possibilidade de ajuizamento
de mandado de segurança preventivo em matéria tributária, desde que venha
a lume norma legal que agrave os critérios de incidência do tributo, tendo em
vista não haver como se afastar a presunção de que os agentes da Administra­
ção Tributária irão executá-la, não havendo que se cogitar de impetração con­
tra lei em tese.
Assim foi o entendimento que pode ser apontado como uniformizador,
proferido nos Embargos de Divergência no REsp 18.432 - PE20.
A despeito disso, não se olvide advertência lançada por Francisco
Cavalcanti21que, mesmo reconhecendo a plausibilidade da tese, recomenda
aplicação com cautelas, a fim de evitar possível transformação dos juizes e
tribunais ordinários em órgãos responsáveis pelo controle abstrato da lei e de
regulamentos, ao invés da atuação incidental na solução dos casos concretos.
É de destacar-se ainda, no plano da impetração preventiva, a possibilida­
de desta voltar-se contra resposta formulada pela Administração Tributária.
A resposta à consulta, em face de seu caráter vinculativo, faz antever ao contri­
buinte, que se encontre a vivenciar a situação concreta a que aquela se refere,
qual o comportamento que será adotado pelos agentes administrativos, cor-
porificando, assim, o receio fundado de lesão a direito líquido e certo. Assim
vem se posicionando o Superior Tribunal de Justiça22.

que, ao depois da ampliação da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade,


com a prom ulgação da C o n stitu ição vigente, esta ressalva venha sendo posta sob
questionam ento.
20 Eis a ementa do aresto: "PROCESSUAL - M AN DADO DE SEGURAN ÇA PREVENTIVO - LEI
TR IB U TÁ R IA - EXECU ÇÃO IMEDIATA - AM EAÇA EFETIVA. - Editada uma lei, mudando
critérios de incidência tributária, é de se presumir que os agentes fiscais irão executá-la. Em
tal hipótese, cabe Mandado de Segurança preventivo contra o agente fiscal - tanto mais,
quando este manifesta, nas informações, o propósito de efetuar o lançamento e a cobrança
malsinados" (1a Seção, v.u., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU de 04-03-96). O
mesmo ponto de vista prosseguiu no RESP 90.966 - BA (1a Turma, v.u., rel. Min. Milton Luiz
Pereira, DJU de 23-04-97).
21 O novo regime jurídico do mandado de segurança. São Paulo: MP Editora, 2009, p. 52.
22 2a Turma, REsp 786.473 - M G, v.u., rel. Min. Castro Meira, DJU de 31-10-2006; 1a Turma,
REsp 670.601 - PR, v.u., rel. Teori Albino Zavascki, DJU de 19-06-2008.
728 - M an dado de S eguran ça e D ir e it o T r ib u t á r io

III. L e g it im a ç ã o passiva e c o m p e t ê n c ia . O papel d o

M in is t é r io P ú b l ic o

A parte passiva do mandado de segurança é a pessoa jurídica de direito


público interessada, à qual incumbe suportar as conseqüências de ordem pa­
trimonial provocadas pelo ato coator. Prova disso é que a coisa julgada vincu­
lará a pessoa jurídica.
Encontra-se aquela, até a prestação de informações, presentada pela au­
toridade coatora, a quem compete defender o ato combatido. A legitimidade
para interposição de recursos é da pessoa jurídica de direito público.
Diversamente de relevantes opiniões doutrinárias de relevo, a autoridade
coatora não constitui órgão público23, mas sim pessoa física que, na qualidade
de agente público, possui poder de decisão sobre a matéria, podendo, por isso,
defender a postura impugnada.
O que singulariza a condição de autoridade coatora é justamente a titu­
laridade de competência decisória sobre o assunto, não devendo ser confundi­
da com o executor da decisão administrativa.
Demais do art. I o, §2°, III, da Lei 9.784/99, tal assertiva decorre do
conteúdo do §3° do art. 6o da Lei 12.016/2009, ao dispor: “Considera-se
autoridade coatora aquela que tenha praticado o ato impugnado ou da qual
emane a ordem para a sua prática”.
Isso não quer dizer que, afora a notificação do coator, a pessoa jurídica de
direito público reste inteiramente estranha à relação processual. A Lei 12.016/
2009, no seu art. 7o, II, prevê que, ao despachar a petição inicial, o juiz orde­
nará seja cientificado o órgão de representação judicial daquela, enviando-lhe
a sua cópia, bem assim dos documentos que a acompanham, para que, que­
rendo, possa ingressar no feito.
O objetivo da previsão legal, na visão de Francisco Cavalcanti24, destina-
se a dar conhecimento da demanda à representação judicial da pessoa jurídica

23 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança no direito tributário. 1a ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998, p. 68.
24 Diz o autor: "Em que consiste tal chamamento? Essa é uma indagação relevante. Difícil aceitar-
se a tese do litisconsórcio, pois a autoridade coatora já defende basicamente direito do ente
público ou a ele equiparado. Ter-se-á, com a aceitação dessa tese, a da dupla defesa. Geraria
contra o ente público alguma presunção quanto aos fatos, se silenciasse, deixando escoar in
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 2 9

para, caso haja o acolhimento do pedido, inclusive liminarmente, tomar as


providências cabíveis.
Com efeito, o art. 15 da Lei 12.016/2009, traz a possibilidade da pessoa
administrativa interessada postular a suspensão da execução da decisão limi­
nar ou dos efeitos da sentença, sem prejuízo do direito de interpor recursos.
Situação que, diante da complexidade da organização administrativa
brasileira, vem despertando interesse, consiste quanto à possibilidade de su­
primento da indicação errônea da autoridade coatora. Tal ocorre quando a
impetração se dirigir contra autoridade que não proferiu a decisão impugna­
da, mas que, em ostentando superioridade hierárquica, defendeu, nas infor­
mações, a legalidade daquele em sede de mérito25.
Outro aspecto é o inerente à delegação de competência, atualmente dis­
ciplinada pelo art. 14 da Lei 9.784/99, para a qual o impetrado, inelutavel-
mente, será a autoridade beneficiária da delegação. E a solução alvitrada pela
Súmula 510 - STF26.
A indicação, no caso concreto, da autoridade coatora tem valor funda­
mental na definição da competência para processar e julgar o writ.
Dois são os critérios principiais. O primeiro deles decorre da previsão
constitucional, quanto a determinadas autoridades, de competência originária
dos tribunais. São as situações dos arts. 101, I, d, 105, I, b, e 108, I, c, da
Constituição Federal. Esta, igualmente, ao conferir às constituições estaduais
competência para dispor sobre as atribuições dos tribunais de justiça, alvitrou
a possibilidade de instituição de competências originárias em mandado de
segurança, as quais podem ter reflexo nos liames tributários27.

albis o prazo de dez dias? Não se está a falar em confissão de direito, mas se reconhecendo que
haverá sempre um quadro fático sobre o qual o impetrante construirá suas alegações jurídicas.
A notificação da pessoa jurídica, no nosso entender, não tem esse papel, mas, tão somente, de
dar ciência àquele que, na hipótese de acolhimento da pretensão, sofrerá os seus efeitos, da
existência do processo para que possa tomar as medidas que julgar cabíveis" (O novo regime
jurídico do mandado de segurança. São Paulo: MP Editora, 2009, p. 131).
25 STJ, 3a Seção, MS 12.068 - DF, v.u., rel. Min. Og Fernandes, DJe de 22-10-2009; STJ, 1a Turma,
RMS 29.490 - RJ, v.u., rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 19-08-2009. Neste julgado, o
entendimento é perceptível à luz de interpretação a contrario sensu.
26 Eis a redação da súmula: "Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência
delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial". A orientação foi
reafirmada recentemente no julgamento do MS 10.884 - DF (STJ, 3a Seção, v.u., rel. Min.
Haroldo Rodrigues (Convocado), DJe de 01-10-2009).
27 É o caso da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, cujo art. 71, I, alínea e, estabelece
a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar mandado de segurança impetrado
7 3 0 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

Hipótese de competência originária no âmbito federal recai no Superior


Tribunal de Justiça, quando a impetração for dirigida contra decisão do M i­
nistro da Fazenda nos termos do art. 26, II, do Decreto 70.235/72.
Abstraídas as situações de competência originária, o art. 109, VIII, da
Lei Maior, afirma competir à Justiça Federal processar e julgar mandado de
segurança contra ato de autoridade federal.
O conceito de autoridade federal é fornecido pelo art. 2o da Lei 12.016/
2009 que, repetindo o disposto na legislação anterior (art. 2o, Lei 1.533/51),
dispõe que assim será considerada quando as conseqüências patrimoniais do
correspondente ato houverem de ser suportadas pela União ou por entidade
por esta controlada.
Complementando o critério de competência de justiça, segue-se que,
no plano territorial, o mandado de segurança é de ser apreciado pelo juiz
que, materialmente, for competente no foro da localidade da autoridade
coatora. No âmbito dos Estados, tal se define pelas respectivas leis de orga­
nização judiciária.
Trata-se de competência absoluta.
Para essa singularidade é de se atentar para os mandados de segurança a
serem impetrados contra as decisões das Delegacias da Receita Federal de
Julgamento e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, as quais, res­
pectivamente, resolvam impugnações ou recursos. Isto porque, em algumas
vezes, tais órgãos não estão localizados no domicílio do contribuinte. O Con­
selho Administrativo de Recursos Fiscais, por ser integrante da estrutura do
Ministério da Fazenda, tem as suas decisões suscetíveis de impugnação man-
damental perante a Seção Judiciária do Distrito Federal.
No âmbito da Justiça dos Estados, a competência guiar-se-á de acordo
com a vara de fazenda pública que, nos termos da lei de organização judiciá­
ria, tenha, no plano territorial, jurisdição perante a sede funcional da autori­
dade coatora.
Secundando o disposto no art. 10 da Lei 1.533/51, a Lei 12.016/
2009, no seu art. 12, voltou a prever a intervenção obrigatória do Ministério

contra ato de secretário de estado. Daí que eventual impetração de mandado de segurança
com vistas a atacar ato perpetrado pelo Secretário de Tributação constitui hipótese de compe­
tência originária do Tribunal de Justiça potiguar.
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n i o r - 7 3 1

Público. Todavia, restou alterado o prazo destinado a tanto, duplicando-o


para 10 dias.
Mantendo também previsão constante do art. 2o da Lei 4.348/64, o
art. 8o da Lei 12.016/2009 atribuiu ao Ministério Público o apanágio para
requerer a perempção ou caducidade da medida liminar quando, após a sua
concessão, o impetrante criar obstáculo ao normal andamento do processo
ou deixar de promover, por mais de três dias úteis, os atos e as diligências
que lhe cumprirem.
Inovando, o art. 15 da Lei 12.016/2009 preencheu lacuna constante da
Lei 4.348/64, atribuindo ao Ministério Público, em concorrência com a pes­
soa jurídica de direito público interessada, a legitimidade para postular a sus­
pensão da execução de medida liminar ou da sentença, com o propósito de
evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Questão que, na atualidade, vem propiciando a experiência forense, resi­
de na praxe adotada pelo órgão ministerial, no sentido de não se pronunciar
sobre o mérito da grande maioria dos mandados de segurança à consideração
da ausência de interesse público primário.
Concordamos com a opinião de Francisco Cavalcanti28, para quem só o
fato do mandado de segurança se dirigir contra ato de autoridade pública,
ilegal ou tisnado de abuso de poder, já seria, isoladamente, suficiente para
justificar a intervenção do Ministério Público.
Ademais, consoante o autor, em havendo o legislador deliberado pela
necessidade de intervenção, não caberia ao Ministério Público abrir mão des­
se poder-dever. Se o entendimento vier a prevalecer é o mesmo que ensejar
oportunidade para que haja abdicação de intervir quanto às desapropriações
por interesse social para fins de reforma agrária (art. 18, §2°, da Lei Comple­
mentar 76/93) e às ações de usucapião (art. 944, CPC).
Rematando, afirma que valoração da espécie não se mostra admissível no
mandado de segurança, pois o legislador traçou presunção absoluta acerca da
existência do interesse público.
Situação que, a nosso sentir, torna relevante a intervenção do Ministério
Público nos mandados de segurança tributários é aquela na qual é invocada
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

28 O novo regime jurídico do mandado de segurança. São Paulo: MP Editora, 2009, p. 133-134.
7 3 2 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

Os juízos de constitucionalidade, muito freqüentes na seara da tributa­


ção, pela transcendência dos efeitos dos correspondentes julgamentos, respal­
dam a necessidade de manifestação ministerial.
Ao instante da vigência da Lei 1.533/51, o Superior Tribunal de Justiça,
embora tenha sustentado não bastar seja realizada a intimação do Parquet,
compreendendo indispensável o efetivo pronunciamento, considera como
efetiva manifestação a que, ao examinar a questão de fundo, infere, pela
substância desta, ser desnecessária a intervenção do órgão, não havendo que
se cogitar de invalidade29.
Provavelmente esse continue a ser o entendimento adotado, com a
observação de que o parágrafo único do art. 12 da Lei 12.016/2009 pres­
creve que, com ou sem parecer, os autos devem ser conclusos ao juiz, o qual
deverá sentenciar em trinta dias, o que fundamenta a possibilidade de re­
quisição dos autos caso o prazo para fins de manifestação ministerial seja
excedido injustificadamente.

IV. M ed id a lim in a r e sen t en ç a

Cuidando-se de mecanismo judicial de pronta resposta, o que é típico


dos chamados writs constitucionais, a Lei 12.016/2009 manteve a possibili­
dade de deferimento de medida liminar, a qual poderá consistir, conforme a
situação vivenciada nos autos, em provimento acautelatório ou de antecipação
dos efeitos da tutela jurisdicional postulada.
O art. 7°, III, da Lei 12.016/2009, enuncia os requisitos necessários
para a concessão da medida. O primeiro deles está no fundamento relevante,
indispensável para forjar no magistrado, ao primeiro súbito de olhos, a convic­
ção de que se encontra desfeita a presunção de legitimidade do ato adminis­
trativo impugnado.
Tratando-se de decisão monocrática, aliada à circunstância de que, na
província tributária, é comum a discussão acerca da inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo, faz com que sejam redobradas as cautelas na aceitação
sumária da relevância do fundamento.

29 1a Turma, RESP 541.199 - M G, v.u., DJU de 28-06-2004.


E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n i o r - 7 3 3

Constitui critério informador da interpretação constitucional, emanado


da experiência norte-americana, o inerente à presunção de constitucionalida­
de das leis. Sendo assim, o reconhecimento de inconstitucionalidade, por sua
importância, demanda a existência de incompatibilidade vertical evidente. A
exigência da reserva de plenário no âmbito dos tribunais, hoje robustecida
pela Súmula Vinculante 10, é uma prova disso.
O outro dos critérios é o perigo na demora, verificável a partir da consta­
tação de que do ato atacado possa resultar a ineficácia da medida, caso, ao
final, favorável advenha o desate definitivo do pedido.
O deferimento da medida não configura competência entregue à discri­
ção do juiz. É da conjunção de ambos os requisitos que surge o direito subje­
tivo à concessão da medida, o que mostra o seu caráter vinculado. Trata-se de
ponto de vista que, na doutrina, é sufragado pela grande maioria dos autores.
A parte final do art. 7o, III, da Lei 12.016/2009, inova, permitindo ao
juiz exigir caução, fiança, ou depósito, com o objetivo de assegurar eventual
ressarcimento à pessoa jurídica.
A regra não é de incidir na relação jurídico-tributária, em face do art.
151 do Código Tributário Nacional, em cujos incisos II e IV estão previstos,
cada qual com força autônoma para acarretar a suspensão da exigibilidade do
crédito tributário, o depósito e a medida liminar em mandado de segurança.
A lei especial, de natureza complementar, disciplinando os efeitos da liminar
em mandado de segurança diante da suspensão do crédito tributário, afasta a
lei geral que disciplina a garantia constitucional.
Aspectos que despertam interesse condizem a algumas restrições que são
apostas à medida liminar. A primeira delas é a de que o art. 151, IV, do
Código Tributário Nacional, ao prescrever que a liminar é hábil para suspen­
der a exigibilidade do crédito tributário, não faz com que se afaste da Admi­
nistração Tributária o direito de efetuar o lançamento.
Cuidado a ser observado pelo juiz é o de, ao conceder a liminar, não
paralisar a atividade administrativa de lançamento. Dos termos com os quais
se acha redigido o art. 63, caput, da Lei 9.430/96, com o texto proporcionado
pela Medida Provisória 2.158 - 35/2001, é permitido rematar que se acha
fora da competência inscrita no art. 153, IV, do Código Tributário Nacional,
obstar a atividade de lançamento. Caso assim atue, a decisão judicial se expõe
à censura por maltrato ao referido dispositivo legal.
7 3 4 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir eit o T r ib u t á r io

Tanto é assim que, deferida a medida somente para fins de suspensão da


exigibilidade, como dispõe o art. 153, IV, do Código Tributário Nacional, a
inércia da Administração Tributária em efetuar o lançamento mediante noti­
ficação do contribuinte ou lavratura do auto de infração poderá configurar a
caducidade do correspondente direito.
Outro ponto diz com a possível aplicabilidade da orientação da Súmula
405 do Pretório Excelso, ao proclamar: “Denegado o mandado de segurança
pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a
liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”.
E de indagar-se: nas situações nas quais a liminar vier a perder sua eficá­
cia, em virtude da denegação superveniente da segurança, arcará o contribuin­
te com o pagamento de juros e multa de mora?
Para Hugo de Brito Machado há de se fazer uma distinção30. Os juros,
apesar de denominados legislativamente como moratórios, possuem natureza
de remuneração do capital. Sendo assim, serão devidos juntamente com a
correção monetária, a qual não constitui qualquer acréscimo. Diferentemente,
ocorre com a multa dita de mora. Esta, na sua essência, possui o colorido de
sanção e, portanto, a sua aplicabilidade depende de outros pressupostos.
O entendimento é seguido por Eduardo Arruda Alvim31. Este, ao depois
de assentar o perfil remuneratório dos juros de mora, sustenta, quanto à multa,
o seguinte: a) configurando sanção por inadimplemento, não se afigura
admissível que o contribuinte que acorre ao Judiciário, deduzindo pretensão
no mínimo aparentemente plausível, seja qualificado como inadimplente; b)
apenar-se aquele que, de início, é favorecido com provisão liminar, a qual vem
a tornar-se ineficaz com a denegação da pretensão quando do julgamento de
mérito, é o mesmo que, indiretamente, quebrantar o direito à tutela judicial
efetiva, consagrado no art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, pois, se este
impede que uma lei venha a empecer o acesso ao Judiciário, com maior razão
não poderá ser interpretada de forma a favorecer a punição do contribuinte
que optou por ingressar em juízo; c) o art. 138 do Código Tributário Nacional
exclui a responsabilidade do contribuinte em caso de denúncia espontânea,

30 Mandado de segurança em matéria tributária. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995,
p. 163-164.
31 Mandado de segurança no direito tributário. 1a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998,
p. 221-224.
E d ils o n P e re ira N o b re J ú n io r - 735

situação à qual se equipara o contribuinte que impetra mandado de segurança


impugnando ato da Administração Tributária.
Já Alberto Xavier32ensina que as medidas cautelares, incluídas as limi­
nares em mandado de segurança, quando não ratificadas pela sentença de
mérito, não têm sua eficácia destruída retroativamente, mas apenas são atingi­
das por uma ineficácia por caducidade.
Vários são os argumentos invocados. O primeiro deles parte da conside­
ração de que a medida liminar configura um ato judicial válido e eficaz, pro­
dutor de efeitos legítimos, ao invés de ato originalmente ilegal. Por isso, o
princípio da tutela da confiança, gerada em favor daqueles que acreditaram na
atuação estatal, faz com que se respeite a eficácia dos atos válidos, mesmo que
seus conaturais efeitos sejam provisórios33.
Ao depois, aponta que se tem procedido, por puros motivos de inércia, a
uma interpretação literal da Súmula 405 - STF, o que se mostra equivocado
por duas razões, consistentes nas seguintes circunstâncias: a) de que aquela
tenha sido editada antes do Código Tributário Nacional, o qual atribuiu à
liminar em mandado de segurança o dom de suspender a exigibilidade do
crédito tributário, bem como antes do Código de Processo Civil, ao pacificar
o entendimento de que os motivos e questões prejudiciais não integram a
coisa julgada; b) de que nos precedentes que a originaram não se encontrar
sob discussão a suspensão da exigência de crédito tributário, tendo a orienta­
ção jurisprudência! o alcance de recusar a concessão de efeito suspensivo ao
recurso interposto contra a sentença denegatória.
A jurisprudência tem se manifestado pela possibilidade da cobrança tanto
dos juros de mora e da multa moratória quando, posteriormente, medida li­
minar em mandado de segurança vier a ser cassada em face da denegação do
pedido por decisão de mérito.

32 Princípios do processo administrativo e judicia l tributário. 1a ed. Rio de Janeiro: Forense,


2005, p. 348-351.
33 Eis as palavras do autor: "O princípio da proteção da confiança - a Vertrauenschutz de que fala
a doutrina alemã - corolário do princípio da segurança jurídica, que é alicerce do Estado de
Direito, exige que se respeite a eficácia de atos válidos, à sombra dos quais se geram expecta­
tivas e se estabilizam relações jurídicas. A destruição retroativa de efeitos, se pode operar em
relação a atos ilegais - e mesmo assim sempre com a ressalva dos direitos adquiridos, constitu­
cionalmente protegidos - jamais pode operar em relação a atos de direito público, especial­
mente atos judiciais a que a lei tributária atribuiu validade e eficácia originária. Seria, por isso,
inconstitucional lei que determinasse a retroação dos efeitos da sentença de mérito ao ponto
de destruir a eficácia de atos judiciais válidos pendente lite" (op. cit., p. 348).
7 3 6 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

Essa foi a situação vivenciada no RESP 1.011.609 - M G34, no qual se


asseverou que, em princípio, em sendo a medida liminar emitida com base em
um juízo provisório, suscetível de modificação a qualquer tempo, o beneficiário
daquela fica sujeito à sua cassação, devendo, por isto, arcar com os efeitos decor­
rentes do atraso ocasionado pelo deferimento da provisão judicial.
No entanto, restou esclarecido que não se estava a desconhecer e desres­
peitar o disposto no §2° do art. 63 da Lei 9.430/96, cujo teor afasta a inci­
dência, em casos tais, da multa de mora. Apenas se rejeitou a aplicação do
referido preceito legal diante da incidência de regra específica para o caso
concreto, qual seja o art. 46, III, da Medida Provisória 2.037 - 22/2000,
reeditada na forma da EC 32/2001, a qual, no que concerne à extinta (e não
muito saudosa) CPMF, previa, explicitamente, a cobrança de juros e multa de
mora em ocorrendo extinção dos efeitos de liminar ou antecipação de tutela.
No meu sentir, a cessação dos efeitos de liminar em mandado de segu­
rança somente poderá permitir a cobrança dos juros de mora, por sua natu­
reza remuneratória do capital, do qual a fazenda pública foi privada com a
medida judicial.
Já a multa moratória, por seu lídimo cunho de sanção por inadimple-
mento, não poderá ser exigida, ainda que haja previsão legal nesse sentido.
A despeito de sua natureza precária, a liminar, na qualidade de ato ema­
nado do Poder Judiciário, enseja ao contribuinte a confiança bastante na legi­
timidade de sua pretensão, de modo a violar a boa-fé previsão legal que assim
vier a dispor. O princípio da moralidade (art. 37, caput, CF), através do qual a
boa-fé costuma se manifestar nas relações entre Estado e cidadão, exige a
tutela da confiança legítima destes nos comportamentos estatais, de maneira a
não permitir que venha a sofrer punições por assim atuar.
Isso já é o bastante, muito embora não se possa desconhecer a razoabili-
dade do entendimento de que previsão legal nesse sentido contribui para afastar
do cidadão o direito fundamental de acesso ao Judiciário para evitar lesão ou
ameaça a direito.
Desperta atenção, por sua pertinência aos casos concretos que envolvam
a cobrança de impostos aduaneiros, vedação consignada no §2° do art. 7o da

34 STJ, 1a Turma, v.u., rel. Min. Luiz Fux, DJ de 06-08-2009.


E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n i o r - 7 3 7

Lei 12.016/2009, ao dizer que não será deferida liminar para a entrega de
mercadorias e bens provenientes do exterior.
A proibição legal não pode ser aplicada dissociada de sua evolução legis­
lativa. Não se está aqui proibindo que, em controvérsias envolvendo o paga­
mento de tributos pelo ingresso de mercadorias no território nacional, venha o
contribuinte, ao compreender indevida a exação tributária, obter liminar, com
a determinação de serem liberados os bens que importou.
Suponha-se que pessoa física, a qual não seja contribuinte do ICMS,
por não ser comerciante ou industrial, tenha retidas as mercadorias que im­
portou, ao argumento da exigibilidade de dito imposto. Não poderá, de forma
alguma, ser contemplada com liminar em mandado de segurança, desde que a
sua situação fática de não-contribuinte possa ser demonstrada mediante pro­
va pré-constituída? Penso que a negativa se impõe.
É que o dispositivo legal em comento nada mais fez senão repetir o que
constou do art. I o da Lei 2.770/5635. Assim, não há motivo para que não
subsista interpretação já manifestada pela doutrina36e pela jurisprudência37,
com o fim de entender que o embaraço legal - que deve ser compreendido de
forma restritiva, na sua condição de lei excepcional - somente possui incidên­
cia quando se cuidar de importação irregular capaz de evidenciar contrabando
ou descaminho.
Dois pontos merecem ainda breve referência e que se relacionam à eficá­
cia das decisões de mérito concessivas de mandado de segurança envolvendo o
afastamento de exigências pecuniárias da Administração Tributária.
O primeiro deles diz respeito a situações em que, negada a medida
liminar, ou a segurança por ocasião da sentença de mérito, venha a súplica a
ser deferida mediante decisão posterior tornada irrecorrível. Imagine-se que,
diante da negativa do pedido de tutela de urgência, bem como de Improce­
dência do pleito por força de decisão monocrática, tenha o contribuinte,
para evitar os indesejáveis efeitos da mora, realizado o pagamento da exação

35 Conferir a redação da mencionada regra legal: "art. 1o Nas ações e procedimentos judiciais de
qualquer natureza, que visem obter a liberação de mercadorias, bens ou coisas de qualquer
espécie procedentes do estrangeiro, não se concederá, em caso algum, medida preventiva ou
liminar que, direta ou indiretamente importe na entrega da mercadoria, bem ou coisa".
36 ' MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado
de injunção e “hábeas-data". 12a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 51.
37 TRF - 5a Região, 3a Turma, v.u., rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, DJU - II de 24-03-2005, p. 273.
7 3 8 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

que impugna. Impõe-se novo ingresso em juízo para que haja a restituição
do que foi, indevidamente, quitado? Absolutamente. Embora possa haver
forte estorvo teórico nesse sentido, sou de que tal entender se mostra, no
particular da experiência prática, despropositado e absurdo.
Seria a hipótese de se ofertar interpretação extensiva ao §4° do art. 14 da
Lei 12.016/2009 que, secundando o disposto no art. Io, caput, e §3°, da Lei
5.021/65, assegura o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias as­
segurados em sentença concessiva de mandado de segurança em favor de ser­
vidor público com relação às prestações que se venceram a partir da impetração.
Em tais situações há decisão final declarando a ilegitimidade da exigência
tributária, a qual deve operar não somente para frente. O rito de cobrança a ser
observado é o previsto para a execução contra a fazenda pública. Exigir-se nova
ação para o reconhecimento do direito à restituição das parcelas quitadas ao
depois da impetração constitui apego imoderado ao formalismo em detrimento
da eficácia das decisões judiciais e da necessidade do Judiciário em reparar a
lesão a direito subjetivo quando tal restar verificado.
Já chegou o instante do jurista brasileiro perceber um pouco da influên­
cia das lições que constituíram o grande legado dos romanos, o qual não deve
ser estudado apenas para o regozijo de formulações meramente teóricas, ou
para exposição vazia de pujança intelectual. Superior em progresso e desen­
volvimento dentre os povos da antiguidade, a ordem jurídica romana foi for­
mulada - e não poderia ser diferente - para, antes de tudo, servir como
instrumento hábil a resolver os problemas que surgiam no meio social38.
De invocar o exemplo retratado na AC 359.071 - PE. Servidores públi­
cos da Administração Federal Direta impetraram mandado de segurança, com
o escopo de afastar a incidência da majoração da alíquota da contribuição
previdenciária imposta pela M P 560/94, tendo sido negado o pleito de limi­
nar e denegada a segurança pela sentença. Acórdão da 2a Turma do Tribunal
Regional Federal da 5a Região, provendo apelação dos impetrantes, concedeu
o pedido, considerando indevido o aumento da exação em causa.

38 Max Kaser (Direito privado romano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 17 e 19)
enuncia que uma das causas da grandeza do direito privado romano foi a visão aberta dos seus
jurisconsultos às realidades da vida, formulando uma ciência jurídica serviente às necessida­
des práticas.
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 3 9

Transitado em julgado o acórdão, foi promovida a execução das parcelas


descontadas acima do montante reconhecidamente como devido, no período
compreendido entre a impetração e a vigência da norma legal cuja execução
foi impugnada, tendo a União Federal oposto embargo sob alegação da ine­
xistência de título executivo, pois o aresto se limitou a fazer menção ao provi­
mento do apelo, sem determinar, às explícitas, a devolução das importâncias
cobradas no curso do trâmite processual. O juiz sentenciante acolheu o pedi­
do, extinguindo a execução. A 2a Turma do Tribunal Regional Federal da 5a
Região, mais uma vez, proveu recurso interposto pelos servidores, manifestan­
do-se pela aplicação, na espécie, da previsão constante do art. Io, caput, e §3°,
da Lei 5.021/66, pena de se comprometer a eficácia que deve ser conatural à
prestação jurisdicional39.
A segunda observação se mostra pertinente aos efeitos da coisa julgada
nas relações jurídico-tributárias de caráter continuativo. Muitos tributos, tais
como o ICMS e o IPI, projetam sua eficácia continuadamente no tempo, por
meio da sucessão de fatos geradores, os quais são tributados com base em
determinado cenário legislativo.
Enquanto perdurar o panorama normativo cuja aplicabilidade buscou
afastar o impetrante, beneficiário da coisa julgada, permanecem os efeitos da
coisa julgada. Estes somente cessam quando da alteração das normas jurídicas
correspondentes, com o advento de novo tratamento tributário ao assunto.
Não vislumbro como se possa alegar, com o propósito de esvaziar os efei­
tos de sentença passada em julgado, favorável ao contribuinte, em casos de
relações continuativas, os ditames da Súmula 239 - STF, a saber: “Decisão
que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não
faz coisa julgada em relação aos posteriores”.

39 Conferir o contido na ementa do mencionado aresto: "APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGU­


RANÇA. CO N TRIBUIÇÕ ES PREVIDENCIÁRIAS. RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS DESCONTA­
DAS A PARTIR DA IM PETRAÇÃO. PO SSIBILIDADE. PRO VIM ENTO. I - Havendo acórdão
proferido pela 2a Turma desta Corte, ao prover apelação, considerado ilegal a majoração da
alíquota da contribuição previdenciária do servidor público federal (de 6% para 12%) promo­
vida pela MP 560/94, segue-se a possibilidade de restituição, na forma do art. 1o, caput e §3°,
da Lei 5.021/66, das parcelas descontadas indevidamente a contar da impetração, mesmo que
não explicitamente mencionado tal efeito no aresto. Solução contrária propende à total
ineficácia da decisão que, para o caso dos autos, reputou ilegítimo o questionado aumento da
exação aqui discutida. II - Apelo provido. Improcedência do pedido constante dos embargos"
(v.u., rel. Juiz Edilson Nobre (Convocado), DJe de 05-10-2009).
7 4 0 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

Algumas cautelas merecem ser consideradas para que se possa, com se­
gurança, determinar qual o sentido da orientação jurisprudência! acima. Ini­
cialmente, não há que se perder de vista que, aprovada em 13-12-63, teve
como leading case o decidido nos Embargos no Agravo de Petição 11.22740e
é neste que é possível encontrar-se o sentido da súmula, a partir do exame de
sua ratio decidendi.
Uma surpresa emergente está na circunstância de que o caso concreto
não se referia a mandado de segurança, mas tal não tem maior importância
porque uma das discussões decisivas se centrava no descortino dos efeitos tem­
porais da coisa julgada na província tributária.
O litígio decorreu do fato de o contribuinte ter apresentado defesa em
executivo fiscal, ajuizado para a cobrança de imposto sobre a renda relativo ao
exercício de 1936, incidente sobre juros de apólices emitidas anteriormente à Lei
de 31 de dezembro de 1925. O cerne da insurgência foi o de que noutro executivo
fiscal, promovido para o mesmo fim, mas relacionado ao ano de 1934, o
contribuinte se saiu vitorioso com a tese da não tributação dos juros das mencionadas
apólices e, portanto, haveria coisa julgada, a obstar a renovação do litígio.
Acolhida a defesa pela sentença, a turma, por maioria, negou provimento
ao recurso de ofício e ao agravo, ensejando a interposição de embargos, nos
quais o Procurador-Geral da República renovou o argumento tendente ao
não reconhecimento da coisa julgada.
Em primoroso voto condutor, o Min. Castro Nunes se lançou ao estabe­
lecimento de divisor de águas. Louvado em considerações tendentes a reco­
nhecer identidade substancial, para fins de tratamento jurisdicional, entre a
relação contribuinte e a Administração e aquela estabelecida com os servido­
res públicos, bem assim sobre o instituto do lançamento e sua impugnação,
com realce aos sistemas jurídicos francês e italiano de contencioso administra­
tivo, acentuou que se o julgado versar sobre a invalidação dum determinado
lançamento, envolvendo questões de fato, variáveis de caso para caso, a senten­
ça não poderá ser válida para os exercícios seguintes.
Outra deverá ser a solução quando a resistência do contribuinte envolver
matéria de direito, como na hipótese de se contestar o critério que tenha a
Administração Tributária adotado por restar contrário ao sistema jurídico.

40 Pleno, mv, rel. Castro Nunes, DJU de 10-02-45, p. 816.


E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 4 1

Entendendo, no caso dos autos, que o contribuinte, uma vez tendo sido
cobrado pelo pagamento de imposto de renda sobre juros de apólices da dívida
pública, já obtivera o reconhecimento de que tais rendimentos não poderiam
ser tidos como tributáveis, forçoso era o reconhecimento da prevalência, também
para exercício financeiro diverso, da res judicata, sobressaindo-se voto
majoritário pela rejeição dos embargos41.
Noutro passo, não é possível olvidar que o debate, do qual resultou a
orientação cristalizada pela Súmula 239 - STF, teve seu lastro no princípio
da anualidade tributária, conforme se pode conferir da argumentação tecida
pelo Procurador-Geral da República, à época exercendo também a chefia da
representação judicial da União.
Referido princípio vinculava a competência de tributar ao assentar que
as leis instituidoras de impostos, mesmo vigentes, somente poderiam justifi­
car a exigibilidade das respectivas prestações caso a lei orçamentária anual
viesse a autorizar a sua cobrança para o correspondente exercício financeiro42.

41 Do longo pronunciamento do Min. Castro Nunes, entendo por bem destacar o trecho a seguir:
"O que é possível dizer, sem sair, aliás, dos princípios que governam a coisa julgada, é que esta
se terá de limitar aos têrmos da controvérsia. Se o objeto da questão é um dado lançamento que
se houve por nulo em certo exercício, claro que a renovação do lançamento no exercício
seguinte não estará obstada pelo julgado. E a lição dos expositores acima citados. Do mesmo
modo, para exemplificar com outra hipótese que não precludirá nova controvérsia: a prescrição
do imposto referente a um dado exercício, que estará prescrito, e assim terá sido julgado, sem
que, todavia, a administração fiscal fique impedida de lançar o mesmo contribuinte, em períodos
subseqüentes, que não estarão prescritos nem terão sido objeto do litígio anterior. Mas, se os
tribunais estatuíram sobre o impôsto em si mesmo, se o declararam indevido, se isentaram o
contribuinte por interpretação da lei, ou de cláusula contratual, se houveram o tributo por
ilegítimo, porque não assente em lei a sua criação ou por inconstitucional a lei que o criou em
qualquer dêsses casos o pronunciamento judicial poderá ser rescindido pelo meio próprio, mas
enquanto subsistir será um obstáculo à cobrança, que, admitida sob a razão especiona de que
a soma exigida é diversa, importaria práticamente em suprimir a garantia jurisdicional do contri­
buinte que teria tido, ganhando à demanda a que o arrastara o Fisco, uma verdadeira vitória de
Pirro. Ora, no caso dos autos, o mesmo contribuinte novamente lançado para pagar impôsto de
renda sôbre juros de apólices já obtivera o reconhecimento judicial do seu direito de não pagar
o impôsto sôbre tal renda. Não importa que haja julgados posteriores em outras espécies
sufragando entendimento diverso, aliás com o meu voto. Nem impressiona o argumento de que,
o caso julgado fere a regra da igualdade tributária, por isso que, em qualquer matéria, essa
desigualdade de tratamento fiscal ou não, é uma conseqüência necessária da intervenção do
Judiciário, que só age por provocação da parte e não decide senão em espécie".
42 Segundo Aliomar Baleeiro (Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6a ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1985, p. 09-10), o princípio da anualidade foi instituído, às explícitas, pelo art. 171
da Constituição de 1824, permanecendo como de aceitação implícita a partir da Constituição
de 1891, somente retornando ao texto constitucional com o § 34 do art. 141 da Constituição
de 1946, ao proclamar: "Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabe­
leça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalva­
do, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra". Foi abolido com a EC
01/69 ao moldar o texto do art. 153, §29, da Constituição pretérita. Do autor se colhe a
7 4 2 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir eit o T r ib u t á r io

A ausência de tal princípio da Lei Básica atual acarreta, por conseqüência,


venha a ser afastada a aplicação da Súmula 239 - STF em sua literalidade.
Em conclusão, o que interessa saber, para a delimitação temporal das
sentenças favoráveis aos contribuintes, proferidas ou não em mandado de se­
gurança, são os termos do pedido e da respectiva fundamentação jurídica.
Postulado o afastamento da execução de determinada exigência tributária,
por compreendê-la o contribuinte como incompatível com o sistema jurídico
(questionamento de direito), a eficácia da sentença que acolher o pleito se
estenderá no tempo enquanto permanecer o cenário legislativo impugnado.
Para tal entendimento se faz irrelevante tratar-se de tributo direto ou
indireto. O precedente que ensejou a edição da súmula em comento foi o
imposto sobre a renda, tributo direto.

V . M a n d a d o de se g u ra n ça e com pensação

A compensação, seja nas relações jurídicas em geral (arts. 368 a 374,


Código Civil), seja no âmbito tributário, constitui causa de extinção de dívi­
das (art. 156, II, CTN). O art. 170, caput, do Código Tributário Nacional,
permite ao legislador conferir poder à autoridade administrativa para com­
pensar créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincen-
dos, do sujeito passivo com a fazenda pública.
O art. 66 da Lei 8.383/91 passou a facultar que o contribuinte efetue,
para o recolhimento de seus débitos no período subsequente, a compensação
de tributos, contribuições federais, ou receitas patrimoniais, desde que da
mesma espécie.
Considerando as resistências opostas pela Administração Tributária, mais
precisamente a Secretaria da Receita Federal e o Instituto Nacional do Seguro
Social, os contribuintes se viram forçados a ingressar em juízo para que fosse

observação seguinte: "O princípio da anualidade, expresso na C.F. de 1946, restitui ao


Congresso a velha arma da representação parlamentar na batalha de séculos idos contra a
desenvoltura dos monarcas absolutos: as leis de impostos continuam válidas e em vigor, mas
só se aplicam e só vinculam a competência dos funcionários do fisco, para criação dos atos
administrativos do lançamento ou das arrecadações, se o orçamento mencionar a autorização
naquele exercício. Esta costuma ser dada por um dispositivo da lei orçamentária que faz
remissão a todas as leis tributárias arroladas em quadro anexo - o chamado ementário da
legislação da receita" (op. cit., p. 12-13).
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 4 3

permitido realizar as compensações pretendidas, não obstante tal consistisse


direito subjetivo outorgado mediante lei.
No particular do ajuizamento do mandado de segurança, a jurisprudên­
cia se mostrou favorável, havendo o Superior Tribunal de Justiça editado a
Súmula 213, enunciando: “O mandado de segurança constitui ação adequada
para a declaração do direito à compensação tributária”.
ImpÕe-se uma observação inicial. A orientação sumular não autoriza
que, por meio do mandado de segurança, seja exarada a declaração de que a
dívida do contribuinte foi extinta até determinado montante.
A sentença, apenas e tão só, tem o préstimo de declarar que, no caso
concreto, trata-se de créditos a serem compensados, bem como os critérios
que deverão nortear a compensação. A edição da súmula decorreu da circuns­
tância de que atos administrativos normativos, expedidos pela Secretaria da
Receita Federal e pelo INSS, inviabilizavam compensações legítimas.
Em nenhum instante, restou facultado que, em mandado de segurança,
fosse declarado extinto o crédito tributário, porque tal providência requer
exame de fatos, os quais estão relacionados à existência dos pagamentos inde­
vidos e de seus correspondentes montantes, a exigir dilação probatória.
Assim, as decisões concessivas devem ressalvar a competência da Admi­
nistração Tributária para efetuar a conferência, na situação concreta, dos cré­
ditos do contribuinte.
Não olvidar que entendimento em sentido contrário acarretaria enorme
prejuízo à defesa do ente público, o qual, no procedimento do mandado de
segurança, não usufrui de prazo dilatado para a formulação de resposta, a qual
se materializa com a prestação de informações pela autoridade impetrada no
prazo de 10 dias.
Portanto, é de recomendar-se, para a precisa percepção do alcance da
Súmula 213 - STJ, a leitura do precedente representativo dos Embargos de
Divergência no REsp 78.301 - BA43.

43 1a Seção, mv, rel. Min. Ari Pargendler, DJU de 28-04-97. Esclarecedora a leitura da ementa:
"TR IBU TÁ R IO . COM PEN SAÇÃO. TR IBU TO S LAN ÇADO S POR H O M O LO G A Ç Ã O . AÇÃO
JUD ICIAL. Nos tributos sujeitos ao regime do lançamento por homologação (CTN, art. 150),
a compensação constitui um incidente desse procedimento, no qual o sujeito passivo da
obrigação tributária, ao invés de antecipar o pagamento, registra na escrita fiscal o crédito
oponível à Fazenda, que tem cinco anos, contados do fato gerador, para a respectiva
7 4 4 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

Considerando-se que a compensação se preordena ao desaparecimento


do crédito da fazenda pública, nota-se a total inadequação da determinação
daquela por decisão liminar, cautelar ou antecipatória. O caráter provisório
desta não se presta a deferir utilidade de contornos definitivos.
Nesse diapasão, editou o Superior Tribunal de Justiça a Súmula 212,
enunciando: “A compensação de créditos tributários não pode ser deferida em
ação cautelar ou por medida liminar ou antecipatória”.
Anteriormente, a vedação já tinha sido alvo de atenção legislativa, con­
forme se pode ver do §5° do art. I o da Lei 8.437/92, com a redação da
Medida Provisória 2.180 - 35/2001. O §2° do art. 7o da Lei 12.016/2009,
especificadamente quanto ao mandado de segurança, renovou a proibição.
Ainda no trato do tema, não posso deixar de observar a compensação
disciplinada pelo art. 74 da Lei 9.430/96, o qual se reporta à possibilidade do
contribuinte, que apurar valor de tributo ou contribuição administrado pela
Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou ressarcimento, com­
pensá-lo com débitos relacionados a quaisquer tributos ou contribuições ar­
recadados por aquele órgão.
Peculiaridade emerge diante da nova redação ofertada pela Lei 10.637/
2002 ao §2° do art. 74 da Lei 9.430/96, a qual, a meu sentir, produziu modi­
ficação quanto à regência do direito à modalidade específica de compensação.
Ao contrário do texto anterior, que condicionava a compensação à auto­
rização da Secretaria da Receita Federal, cujo suprimento poderia advir de
ordem judicial, caso houvesse negativa ilegal, atualmente a mencionada com­
pensação depende de ato exclusivo do contribuinte, o qual deverá entregar a
competente declaração à Administração Tributária, cujo teor consignará as
informações relativas aos créditos utilizados e aos respectivos débitos com­
pensados. Assim o disposto no §1° do art. 74 da Lei 9.430/96.
A só declaração perante a Secretaria da Receita Federal extinguirá o cré­
dito tributário sob condição resolutiva de sua não homologação, no prazo de
cinco anos, desde o seu protocolo, conforme dispõem os §§ 2o e 4o do art. 74
da Lei 9.430/96.

homologação (CTN , art. 150, §4°); esse procedimento tem natureza administrativa, mas o
ju iz pode, independentemente do tipo da ação, declarar que o crédito é compensável,
decidindo desde logo os critérios da compensação (v.g., data do início da correção monetá­
ria). Embargos de divergência acolhidos".
E d ils o n P e re ira N o b re J ú n io r - 745

Tratando-se referida compensação de ato próprio do contribuinte, afigu-


ra-se a impossibilidade jurídica para que o Judiciário o autorize a praticá-lo.
Muito menos que determine que a Administração o faça, quando esta não mais
possui competência para realizá-lo.
O que, quando muito, poder-se-á postular do Judiciário, tendo em vista
a negativa da Administração Tributária em aceitar determinado pleito de com­
pensação (v.g., quando o contribuinte apresente como crédito valor de tribu­
to que repute inconstitucional, mas que tal não seja o entendimento da
Administração Tributária, ou haja divergência quanto aos critérios de atuali­
zação dos créditos), é determinação, inclusive em sede de tutela de urgência,
para que aquela reste proibida de negar sua homologação pelo motivo indica­
do, mas não édito que determine à Secretaria da Receita Federal autorizar a
compensação, haja vista esta não mais possuir competência para fazê-lo.
Tais observações quanto ao art. 74 da Lei 9.430/96, válidas para as de­
mandas em geral, possuem aplicabilidade ao mandado de segurança.

VI. A IMPETRAÇÃO COLETIVA

Na atualidade, a impetração de mandado de segurança não se restringe à


tutela de direitos individuais, havendo a Constituição de 1988 introduzido,
nestas plagas, a figura da impetração coletiva (art. 5o, LXX, alíneas a e b). Da
província desta não escapam as questões tributárias.
Por força da previsão do parágrafo único da Lei 12.019/2009, o mandado
de segurança coletivo somente se destinaria à proteção de direitos coletivos em
sentido estrito e individuais homogêneos - disposição que, diante das necessi­
dades fáticas, amolda-se perfeitamente às relações jurídico-tributárias -, muito
embora a doutrina contenha manifestação no sentido de que a enumeração
legal não é taxativa, prestando-se a garantia ao amparo de direitos difusos44.
A sua propositura, quando a cargo de entidade de classe, independe da
autorização dos respectivos associados. Da mesma forma, é plenamente possí­
vel que a impetração vise a proteger direito de fração da categoria. Por exem-

44 Nesse sentido, a opinião de Francisco Cavalcanti (O novo regime jurídico do mandado de


segurança. São Paulo: MP Editora, 2009, p. 157). Antes da Lei 12.016/2009, assim já pensava
Marcelo Navarro Ribeiro Dantas (Mandado de segurança coletivo - legitimação ativa. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 104).
7 4 6 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir e it o T r ib u t á r io

pio, a associação comercial de uma determinada área territorial pode lançar


mão do mandado de segurança para proteger direito dos seus associados re­
vendedores de veículos automotores, com vistas a afastar, quanto a estes, de­
terminada sistemática de recolhimento de ICMS. Não há necessidade de que
a utilidade vindicada se refira a todos os seus integrantes. São as mensagens
que advêm das Súmulas 629 e 630 do Pretório Excelso4S.
No que concerne à coisa julgada, a Lei 12.016/2009, no seu art. 22,
caput, foi explícita em limitá-la unicamente aos membros do grupo ou cate­
goria substituídos pelo impetrante. Esclarece o §1° do referido dispositivo
que a impetração coletiva não representa litispendência para as ações indivi­
duais. No entanto, a sentença proferida na demanda coletiva somente benefi­
ciará o litigante individual caso desista da ação que ajuizou no prazo de trinta
dias, contados da ciência comprovada da impetração coletiva. Não havendo tal
cientificação, não há como se negar o direito à fruição da coisa julgada coleti­
va, ainda que sucumbente o contribuinte na ação individual.
Quanto à medida liminar, o §2° do art. 22 da Lei 12.016/2009 estatui,
repetindo o disposto no art. 2o da Lei 8.437/92, a necessidade de prévia oitiva
da representação judicial da pessoa jurídica de direito público, no prazo de 72
horas. Nada impede, porém, que, em situações de extremada urgência possa ser
superada referida formalidade. O caso concreto ditará a solução a ser seguida.
Alfim, um lamento. A Lei 12.016/2009, no seu art. 21, caput, ao tratar
da impetração coletiva por meio de partido político, restringiu-a à defesa dos
interesses legítimos relativos a seus filiados ou à finalidade partidária, o que
penso não acertado e que não se conforma com a amplitude com a qual deve
ser encarada a legitimidade para o ajuizamento das ações coletivas.
No campo tributário, a intervenção legislativa parece render vassala-
gem ao deliberado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE
196.184 - AM 46, ao reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Amazonas

45 Súmula 629: "A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor
dos associados independe da autorização destes". Súmula 630: "A entidade de classe tem
legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse
apenas a uma parte da respectiva categoria".
46 A deliberação se encontra assim ementada: "CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MAN­
D AD O DE SEG U R A N Ç A C O LETIV O . LEG ITIM ID A D E ATIVA A D CAUSAM DE PARTIDO
PO LÍTICO . IM PUGNAÇÃO DE EXIGÊNCIA TRIBUTÁRIA. IPTU. 1. Uma exigência tributária
configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo ser impugnada por eles
próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE n° 213.631, rel. Min. limar Galvão,
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n i o r - 7 4 7

que concedera mandado de segurança, impetrado pelo Partido Socialista


Brasileiro contra majoração do IPTU, decorrente do Decreto 975/91, cuja
edição coube ao Prefeito de Manaus. O provimento do recurso se lastreara
na ilegitimidade do impetrante.
Em trabalho específico47, defendi a possibilidade de que a impetração
coletiva, quando formulada por agremiação partidária, pudesse se prestar à
defesa de direitos difusos, coletivos em sentido estrito, individuais homogê­
neos, sem que, quanto a estes últimos, devam os seus titulares serem ou não
seus filiados.
Para assim assentar, louvei-me em argumentos de três ordens, a saber: a)
a necessidade de legar-se às normas constitucionais que definam direitos e
garantias fundamentais uma maior efetividade; b) a visualização, através de
interpretação sistêmica, de que o remédio jurídico em comento se insere como
peça fundamental de modelo de democracia participativa inaugurado pela
Constituição de 1988; c) o moderno semblante das agremiações partidárias,
segundo o qual lhes cabe, juntamente com o Estado, a direção da sociedade, a
refletir-se aqui com o art. 17 da Lei Fundamental, ao conferir a missão de
defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana48.

DJ 07/04/2000. 2. O partido político não está, pois, autorizado a valer-se do mandado de


segurança coletivo para, substituindo todos os cidadãos na defesa de interesses individuais,
impugnar majoração de tributo. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido" (Pleno, mv,
rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 18-02-2005).
47 Mandado de segurança coletivo e sua impetração por partido político. Revista Mexicana de
D erecho Constitucional. Cuestiones constitucionales, Instituto de Investigaciones Jurídicas.
Universidad Nacional Autônoma de México - UNAM, n° 16, enero-junio, p. 281-320, 2007.
48 No particular da crítica ao deliberado no RE 196.184 - AM, transcrevo o que acentuei por
ocasião do escrito referido: "Com o propósito de encerrar nossa apreciação do RE 196.184 - AM,
oportuno reavivar que a legitimação partidária para o mandado de segurança coletivo tem como
anelo primacial controlar a observância, pela Administração Pública, da ordem jurídica objetiva,
a qual se encontra ferida com a exigência de tributo em flagrante desrespeito às garantias
constitucionais inscritas em favor do contribuinte. A utilização do mandamus também se legiti­
maria caso o intérprete do art. 5o, LXX, a, da Lei Básica, partisse do pressuposto de que o combate
à injustiça tributária é capaz de configurar um direito difuso à cidadania e que o remédio jurídico
em comento se sobressai como veículo de participação popular na função administrativa,
preocupação, como já assentado, a que não se manteve alheio o Constituinte de 1988. Para
chegar-se a esse remate, de rememorar-se haver a questão tributária sido a causa das insurgências
do cidadão contra o arbítrio estatal, bastando que, sem recuar demasiado no tempo, avivar-se a
motivação das Revoluções Americana e Francesa. Tenho, portanto, que o combate à injustiça
fiscal tanto concerne à missão de uma agremiação partidária, na sua indeclinável missão de
resguardo dos direitos fundamentais frente aos excessos do poder político, quanto de um
sindicato que congregue empresas de determinado seguimento econômico atingido pela exação
supostamente ilegítima. Como atrás visto, o único requisito reclamado pela ordem constitucio­
nal foi o do impetrante possuir representação no Congresso Nacional. Some-se a tudo o que foi
7 4 8 - M a n d a d o d e S e g u r a n ç a e D ir eit o T r ib u t á r io

V ILA CADUCIDADE DO DIREITO À IMPETRAÇÃO

Superada a impugnação acerca de sua constitucionalidade49, a Lei


12.016/2009, secundando a disciplina constante da Lei 1.533/51, tornou
a dispor, no seu art. 23, que o direito ao ajuizamento do mandado de segu­
rança será extinto passados 120 dias, contados da ciência, pelo interessado,
do ato impugnado.
A necessidade de conhecim ento do ato a ser impugnado pelo
contribuinte ganhou reforço com o princípio da publicidade, consagrado
no art. 37 da Lei Maior, o qual não pode ser compreendido em sua acepção
genérica, mas sim específica50.
Sendo o ato da Administração Tributária capaz para produzir obriga­
ções em detrimento do contribuinte, a publicidade não se faz cumprida com
a divulgação daquele perante o órgão incumbido das publicações oficiais. Ao
contrário, faz-se indispensável a cientificação direta do contribuinte. Deste
momento é que se inicia a fluência do prazo de caducidade. Não é operante a
publicação do ato supostamente lesivo de direitos no diário oficial.
Interposto recurso administrativo, será a decisão deste que ensejará a
impetração da segurança, de modo que somente com a intimação da decisão
que resolver aquele é que terá curso o prazo decadencial.
Em havendo pedido de reconsideração, é de preponderar o critério mol­
dado pela Súmula 430 —STF, não havendo que se cogitar da interrupção do
prazo de decadência.

exposto a imensa utilidade que decorreria do melhor tratamento do instituto, com a diminui­
ção do número de demandas que entravam o bom andamento do Judiciário.Por essas razões,
critica-se o excesso de timidez - decerto preconceituosa - dos pretórios com o ajuizamento de
mandados de segurança coletivos pelos partidos políticos, de sorte a contribuir em detrimento
da criatividade judicial, a qual, como assinalou Jean Cruet, constituiu a nota mais significativa
do pretor romano." (op. cit., p. 311-312)
49 O tema restou pacificado com a edição da Súmula 632 - STF, assim redigida: "É constitucional
lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de mandado de segurança",
50 Precedendo a Lei 9.784/99, a qual aludiu à necessidade de publicação específica no seu art. 26,
essa distinção foi enfocada por Carmen Lúcia Antunes Rocha (Princípios constitucionais da
Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 248-249) a pretexto de comentar o
princípio da publicidade consagrado no art. 37, caput, da Lei Fundamental. Pela publicidade
genérica a Administração se dirige à coletividade indistintamente, enquanto que a específica é
voltada ao cidadão que possui interesse na prática de determinado ato da Administração, o qual
é suscetível de interferir na sua esfera de direitos. Por isto, reclama-se que o conhecimento da
decisão administrativa se opere, por via de regra, de forma individualizada. Nesse conjunto estão
inseridas as decisões que decorrem do liame entre Administração Tributária e contribuinte.
E d il s o n P e r eir a N o b r e J ú n io r - 7 4 9

Dirigida a impetração contra omissão da autoridade administrativa em


decidir, não há que se cogitar da fluência do prazo extintivo. E a regra geral
sobre o assunto.
No entanto, cada vez mais vem despertando a atenção do legislador o
combate das omissões injustificadas do administrador, as quais, a exemplo dos
atos comissivos, afiguram-se suscetíveis de lesar direitos do administrado.
Uma das medidas adotadas legislativamente é a da previsão do dever de
decidir, fixando-se prazo para tanto. Assim laborou a Lei 9.784/99 (art. 49).
No campo dos liames tributários, tal se vem mostrando assíduo, tanto que o
art. 24 da Lei 11.4576/2007, a qual instituiu a Secretaria da Receita Federal
do Brasil, tornou obrigatória a edição de decisão administrativa no prazo má­
ximo de 360 dias, a contar do protocolo das respectivas petições, defesas ou
recursos administrativos do contribuinte.
Desse modo, em se tratando de procedimento em curso perante a Admi­
nistração Tributária Federal, transcorrido o prazo acima, opera a negativa do
direito, o que é suficiente para acarretar a fluência do prazo de decadência
para a impetração de mandado de segurança visando impugnar o comporta­
mento omissivo.
No que concerne aos demais entes políticos, importante verificar a legis­
lação específica, a fim de constatar a existência ou não de prazo para a emissão
de decisão pela respectiva Administração Tributária. Caso tal previsão não
conste da legislação tributária, mas sim da correspondente lei de procedimen­
to administrativo, esta deverá ser observada.
O que interessa saber é se existe espaço temporal vinculando a tomada
de decisão pela Administração Pública. Existindo este, não mais prevalece a
regra segundo a qual não há que se cogitar de caducidade para a impetração
de mandado de segurança contra omissão administrativa. O termo inicial do
prazo decadencial passa a coincidir com o primeiro dia após a verificação da
mora da Administração Pública.
Sucedendo impetração preventiva, não há que se falar em ato coator, o
qual inexiste. Há apenas receio fundado de que aquele será produzido. Por
isto, não flui prazo de decadência.
Por sua vez, ocupando-se a situação fática de relação jurídica continuati-
va, como ocorre com frequência nos casos da impugnação relativa ao ICMS,
750 - M a n d a d o de S e g u ra n ç a e D ire ito T r ib u t á r io

IPI, ou contribuições previdenciárias, afasta-se a verificação da decadência


diante da renovação do comportamento da Administração Tributária51.
Releva notar ainda que a caducidade, por decorrer do não exercício do
direito à impetração no prazo legalmente assinado, é conjurada com o só in­
gresso em juízo, independente de despacho do pedido ou da notificação do
impetrado. Não se lhe são aplicáveis as causas impeditivas, suspensivas e inter-
ruptivas, relativas à prescrição, salvo o impedimento a que se refere o art. 198,
I, do Código Civil.
Diversamente do que ocorre com a decadência em geral, cuja sentença
que a reconhecer resolve o mérito (art. 269, IV, CPC), impedindo novo in­
gresso em juízo por parte do interessado, a legislação do mandado de seguran­
ça possui disciplina específica. Em complemento, o art. 19 da Lei 12.016/
2009 é claro em afirmar que se houver denegação do pedido, sem que haja
decisão sobre o mérito, não há impedimento para que o interessado posterior­
mente ingresse com ação própria. Essa sistemática antes já se encontrava con­
sagrada pelos arts. 15 e 16 da Lei 1.533/51.

R e f e r ê n c ia s

ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança no direito tributário. Ia ed. São Paulo: Revista
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BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6a ed. Rio de Janeiro:
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CASTRO, Sílvia La Porta de. O mandado de segurança como defesa do contribuinte contra
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tária. Revista de Processo. Revista dos Tribunais, a. 19, n° 75, p. 59-62, julho/setembro de 1994.

51 Nesse sentido, conferir a Segunda Turma Suplementar do Tribunal Regional Federal da 1a


Região no AMS 19980100070453 (v.u., rel. Juíza Vera C arla Nelson de O live ira Cruz
(Convocada), DJU - If de 01-10-2001, p. 238).
E d ils o n P e re ira N o b re J ú n io r - 751

MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 2a ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de
injunção e “hábeas-data”. 12a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14a ed. São Paulo: M a­
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XAVIER, Alberto. Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro:
Forense, 2005.
Medida Liminar em
Matéria Tributária e
Exigência de Garantia

Hugo de Brito Machado Segundo


Mestre e Doutor em Direito
Professor dapós-graduação em Processo Tributário da Universidade de Fortaleza
Professor de Direito Tributário da Faculdade Christus
Membro do IC ET - Instituto Cearense de Estudos Tributários. Advogado.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 5 5

1. In tro d u çã o

Nesta data em que se comemoram os 70 anos do Prof. Hugo de Brito


Machado, e se organiza este volume em sua homenagem, pareceu-me pertinen­
te, dele participando, escrever sobre a medida liminar em mandado de seguran­
ça, os requisitos necessários à sua concessão e a eventual exigência de garantia ou
contracautela por parte do juiz, como condição para o seu deferimento.
A escolha do assunto se deve, basicamente, ao fato de haver sido com o
homenageado que aprendi, quando ainda nem se tratava do assunto sob essa
ótica entre a maior parte dos processualistas, que o direito a uma tutela de
urgência decorre —desde que presentes os requisitos - do próprio direito a
uma tutela jurisdicional, pelo que restringir o primeiro implica malferimento
ao próprio art. 5o, XXXV, da CF/88. “De que adianta uma sentença muito
bem fundamentada, escrita em linguagem erudita” - dizia ele, com ênfase -
“se o direito, que nela se reconhece, já pereceu? Para a parte emoldurá-la e
colocá-la na parede da sala? Negar a liminar, em casos tais, é negar o próprio
direito à jurisdição, que tem amparo constitucional!”
Passados alguns anos, essa preocupação com a adequada ponderação dos
princípios constitucionais pode hoje ser percebida no exame de quase todas as
questões jurídicas, por diversos doutrinadores dos mais variados ramos do
Direito. Quando se faz ciência, é preciso ousar. Ousar com responsabilidade, é
certo, mas ainda assim ousar. Do contrário, caso o estudioso se limite a apenas
repetir o que já se diz, não há evolução. O homenageado, nesse caso, pode, sem
dúvida, ser chamado de cientista do Direito.
E, como dito, é por conta dessa preocupação com os princípios constitu­
cionais, que aprendi com ele, que retorno ao tema das liminares, neste peque­
no texto em torno do art. 7o da nova lei do mandado de segurança.
Como se sabe, depois de quase sessenta anos de vigência da Lei 1.533/
51, diploma que, juntamente com outras disposições legais esparsas, discipli­
nava a figura do mandado de segurança, editou-se a Lei 12.016/2009, que
modifica em alguns pontos tais disposições e as consolida (sobretudo em face
da farta jurisprudência que sobre elas se produziu) em texto único.
Essa nova lei, porque cuida de remédio constitucional essencial à prote­
ção do cidadão em face dos atos do Poder Público (e, por conseguinte, ao
próprio Estado de Direito), deveria ter sido ampla e previamente discutida
7 5 6 - M e d id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

com a sociedade, o que não ocorreu. A pretexto de estar apenas consolidando


a legislação e a jurisprudência já existentes, diversas disposições criticáveis -
não raro oriundas de um período de exceção - foram mantidas1. As que foram
alteradas, por seu turno2, o foram no mais das vezes para amesquinhar o al­
cance do instituto, e não para prestigiá-lo3.
De tais disposições, colhemos para exame mais detido, neste texto, o art.
7o, III, da Lei 12.016/2009, que, ao tratar da possibilidade de concessão de
medida liminar pelo juiz, estabelece:
Art. 7o O juiz ordenará, ao despachar a petição inicial:
(...)
III - que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver
fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia
da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do
impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o
ressarcimento à pessoa jurídica.
Em um primeiro e rápido exame, a literalidade do artigo parece sugerir
que a exigência de garantia é uma faculdade do juiz, a ser exercida livremente:
ainda que presentes os requisitos necessários ao deferimento de uma liminar, o
juiz sempre poderia, a seu talante, condicioná-la ao oferecimento de garantia
por parte do impetrante. O propósito deste trabalho é o de demonstrar o equívoco
dessa primeira impressão. O dispositivo, em verdade, deve ser examinado à luz
dos fundamentos constitucionais subjacentes à concessão de uma tutela de ur­
gência, os quais indicam que a exigência de garantia é eventual e, mais impor­
tante, dependente da presença de requisitos específicos a serem objetivamente
verificados pelo juiz. É o que se pretende demonstrar a seguir.

1 É o caso, por exemplo, da figura da suspensão de segurança e de liminar, criada pela Lei 4.348/
64, hipertrofiada pela medida provisória 2.180/2001 e integralmente mantida na nova lei.
2 Há exceções, é certo, como é o caso do art. 26 da Lei T2.016/2009, que procura resolver o
lastimável problema do descumprimento das ordens judiciais proferidas em sede de mandado
de segurança.
3 São exemplos a proibição de que sejam concedidas liminares sem a ouvida da parte contrária
nos mandados de segurança coletivos (art. 22, § 2o, da Lei 12.016/2009), e a "explicitação" de
que não cabe a condenação em honorários de sucumbência (art. 25). Quanto aos honorários,
não deixa de ser paradoxal a situação: a jurisprudência entendeu não ser cabível a condena­
ção em honorários pura e simplesmente em virtude de alegada "omissão" do legislador, que
não teria tratado do assunto na Lei 1.533/51. Agora, ao legislar em torno do assunto e
consolidar a sua disciplina em texto único, o legislador resolve suprir a omissão para, fundado
na jurisprudência (que se fundou na sua anterior omissão!), explicitar que realmente não são
devidos honorários.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 5 7

2 . O PROCESSO E O TEMPO

É sabido que o tempo é um dos principais aspectos a serem considerados


por quem estuda e normatiza o processo, e por quem o conduz ou dele participa.
Como o próprio nome está a dizer (processo), trata-se de uma série encadeada
de atos, e não de um ato isolado. Na linha do tempo, a menção à palavra “processo”
(em oposição à palavra “ato”), sugere um traço, ou uma seqüência de pontos, e
não um ponto isolado. Daí a observação de James Marins, apoiado nas lições de
Adolfo Gelsi Bidart, de que “o tempo é axiomaticamente insuprimível da noção
de processo”4.
O problema está na duração do processo, que deve ser abreviada em aten­
ção a certos princípios constitucionais, mas não pode sê-lo demasiadamente, sob
pena de sacrifício indevido a outros princípios igualmente importantes. Daí por
que o art. 5o, LXXV1II, da CF/88 agora explícita - e somente explícita! - ser
assegurado a todos a duração razoável do processo (EC 45/2004).
Duração razoável, no caso, é aquela que não é desnecessariamente longa,
mas também não é indevidamente curta. Trata-se da duração adequada, ne­
cessária e proporcional em sentido estrito para que se preste a jurisdição soli­
citada. Nas palavras de James Marins,
[o] tempo razoável parao processo, concebido como amálgama de garan­
tias, não é necessariamente o tempo mais curto, mas justamente o mais
adequado para que cumpra suas funções. Acelerar o processo pode, em
algumas hipóteses, retirar a razoabilidade de sua duração. Processo ‘ins­
tantâneo’ ou quase instantâneo’ não é razoável e representa, inclusive,
contradictio in terminis, ou seja, a própria noção de processo implica trans­
curso de certo tempo, lapso razoável para que possa ser solucionado.s
Há, de um lado, princípios que exigem a atribuição de celeridade ao pro­
cesso. Para ser útil e efetivo, o resultado do processo há de ser pronto. Entretan­
to, há princípios cujo respeito exige o tempo, como acontece com o devido
processo legal, a ampla defesa e o contraditório e o duplo grau de jurisdição.
Pode-se simplificar essa ideia com o recurso às figuras opostas, de invo­
cação comum na linguagem coloquial, da rapidez e da perfeição. Uma decisão
judicial deve ser proferida com a maior rapidez possível. Mas, por outro lado,

4 MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, p. 63.
5 Idem, ibidem.
758 - M ed id a Lim in ar em M a té r ia T r ib u t á r ia e Exig ên cia de G a r a n t ia

deve ser, também tanto quanto possível, acertada, correta, no sentido de que
deve corresponder àquilo que a ordem jurídica determina seja decidido em
relação aos fatos que efetivamente ocorreram. A rapidez põe em risco a perfei­
ção, e vice-versa, sendo necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre
ambas. Esse ponto de equilíbrio, que pode ser diferente em situações também
distintas, será encontrado com o recurso ao princípio - ou ao postulado, aqui
não discutiremos isso6- da proporcionalidade.
Não se trata de algo peculiar ao processo, aliás. O mesmo ocorre em qual­
quer outro caso de tensão entre princípios, assim entendidas as disposições que
determinam a promoção de certos valores, ou de determinadas situações ideais,
sem indicar os meios que para tanto poderão ser utilizados7. Basta que se to­
mem, por exemplo, as determinações constitucionais de proteção à livre inicia­
tiva, ao pleno emprego, ao consumidor e ao meio ambiente, todas previstas como
princípios da ordem econômica pelo art. 170 da CF/88. Qualquer dessas deter­
minações, levada às suas últimas conseqüências (ou, por outras palavras, concre­
tizada a qualquer custo), implicará a aniquilação das demais.
Nem mesmo se trata de algo peculiar ao direito. Toda decisão racional é
pautada por objetivos, metas ou valores, que têm seu peso medido em cada
caso8. Imagine-se, por exemplo, uma pessoa que, nas festas de fim de ano, esta­
belece para o ano seguinte as seguintes metas pessoais: (i) entrar em forma; (ii)
estudar mais; (iii) dar mais atenção à família. São metas que, maximizadas de
forma absoluta, podem levar à supressão das demais. Se, no ano seguinte, o
sujeito passa todos os dias na academia, pela manhã, à tarde e à noite, e nas horas

6 Rara essa discussão, confira-se: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 41 a 43. E ainda: MACHADO SECUN DO , Hugo de Brito; MACHADO, Raquel
Cavalcanti Ramos. O razoável e o proporcional em matéria tributária. In: ROCHA, Valdir de
Oliveira. Grandes Questões Atuais do Direito Tributário v. 8. São Raulo: Dialética, 2004, p. 174.
7 Afinal, princípios são mandamentos de otimização, ou, na visão de Humberto Ávila, "são
normas im ediatam ente fin a lística s, prim ariam ente prospectivas e com pretensão de
complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da
correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida
como necessária à sua promoção" (ÁVILÂ, Humberto. Teoria dos princípios. 4a ed. São Raulo:
Malheiros, 2004, p. 70). Não há como conformar princípios que apontam para direções diversas
senão através da ponderação.
8 A rigor, proporcionalidade, ponderação, fórmula do peso, são apenas tentativas de teorizar a
racionalidade que orienta inconscientemente as escolhas humanas, a cada passo. Basta ver a
"ponderação" que um médico faz antes de receitar um remédio, sopesando se com ele se
alcançará a cura (adequação), se não há outro mais barato, ou com menos contraindicações
(necessidade), e se os efeitos colaterais, se inevitáveis, não são piores que a própria doença
(proporcionalidade em sentido estrito). É algo tão lógico que eles, os médicos, devem ficar
impressionados que tanto se teorize a respeito nos cursos - logo onde! - de Direito.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 5 9

vagas corre no parque ou se exercita em casa em uma bicicleta ergométrica


adquirida para esse fim, certamente entrará em forma. Mas não estudará e nem
ficará com a família. Caso passe todos os dias estudando de forma quase ininter­
rupta (com pausas rápidas só para alguns lanchinhos), otimizará a meta de estu­
dar, mas não ficará com a família e muito menos entrará em forma. Caso,
finalmente, passe todos os dias com os filhos, indo a todas as festinhas de cole-
guinhas da escola, colocando-os para dormir, levando-os à escola, acompanhan­
do a mulher em suas atividades etc., ficará ao máximo com a família, mas não
estudará e nem entrará em forma. É preciso encontrar um equilíbrio, que per­
mita a realização proporcional das três metas.
Parece evidente, ainda usando o exemplo das metas de fim de ano, que só
à luz de cada caso o sujeito poderá escolher qual dessas metas circunstancial­
mente prevalecerá sobre as outras. Em um dia em que seus filhos estejam no
colégio e sua mulher viajando, e que uma forte gripe o esteja impedindo de
fazer exercícios, estudar bastante será a melhor coisa a fazer, e em nada prejudi­
cará as outras metas que, de resto, não poderiam mesmo ser atendidas naquelas
condições. Em outra situação, em que o sujeito já tenha passado o dia inteiro
estudando, e à noite seja o aniversário de um de seus filhos, parece que compa­
recer e participar ativamente na festa será a melhor decisão a tomar. Para não
alongar os exemplos, em cada situação concreta o “peso” a ser dado a cada uma
das metas pode mudar, mudando, por conseguinte, a conduta cabível para a sua
conciliação proporcional.
O mesmo se dá com o processo, e com o tempo. Ouvir diversas vezes um
grande número de pessoas, dando-lhes amplas oportunidades de se manifes­
tar, de juntar documentos e de refutar as alegações umas das outras, para só
depois tomar qualquer decisão, certamente é caminho indicado para proferir
decisão perfeita, assim entendida aquela que corretamente aplica o direito
vigente e pertinente ao caso. Mas isso poderá tomar a decisão, embora perfei­
ta, muitíssimo demorada. Por outro lado, ouvir apenas uma das partes e já
decidir definitivamente o caso em poucas horas será indicado para que as
manifestações judiciais sejam rápidas, mas incrementará sensivelmente a pro­
babilidade de serem equivocadas. Será à luz de cada caso que, em face das
circunstâncias, será possível determinar a maior adequação, e a necessidade, de
se proferir decisão célere, ou de se dar prioridade à sua maior perfeição.
Imagine-se, por exemplo, que em determinado caso o juiz não precisa
ouvir o réu para saber que o autor não tem razão. Mesmo presumindo verda­
7 6 0 - M e d id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

deiras as afirmações de fato contidas na inicial, e aceitando como válidas as


normas aplicáveis, ao autor não assiste o direito reclamado. O maior tempo
necessário para a contestação e a eventual produção de provas será, em tal caso,
inteiramente desnecessário. Daí a autorização, constante do art. 285-A do
CPC, para que o juiz, em casos assim, profira desde logo a sentença, cabendo
ao réu participar da relação processual apenas diante de eventual apelação,
com o oferecimento de contrarrazões. Diversamente, diante de petição inicial
que narra intricada questão de fato, que diz respeito a situação que afeta
interesse de várias pessoas, por mais que se pretenda célere o desate da questão
não é possível ao juiz deslindá-la sem dar aos envolvidos a oportunidade de
manifestação e, se for o caso, de ver produzidas as provas necessárias ao escla­
recimento dos fatos. Nesse caso, o pronto julgamento do feito até poderia ser
adequado e necessário à realização do princípio da celeridade, mas implicaria
desproporcional malferimento ao princípio que garante às partes o devido
processo legal, com todos os desdobramentos dele decorrentes. Exatamente o
inverso do que ocorre no exemplo do art. 285-A do CPC.
A maior parte dessas situações são já imaginadas pelo legislador, que
faz a ponderação dos princípios envolvidos e edita regras que determinam a
conduta considerada adequada, necessária e proporcional em sentido estri­
to. É o caso do já citado art. 285-A do CPC, por exemplo. Aliás, pratica­
mente toda a legislação infraconstitucional é fruto de ponderação legislativa
a respeito dos princípios pertinentes, que são conciliados e concretizados
através de regras legais. Caso essa ponderação seja considerada desacertada
(por prestigiar de forma desproporcional um dos princípios em detrimento
de outro), poderá ser sujeita a controle de constitucionalidade, como ocorre
com qualquer lei.
Pois bem. A previsão legal de “tutelas de urgência” (v.g., liminar em
mandado de segurança, antecipação de tutela etc.) e os “requisitos legais”
exigidos para a sua concessão, nesse contexto, nada mais são do que um
modelo ou esquema, construído pelo legislador infraconstitucional, desti­
nado a orientar o intérprete/aplicador a fazer essa ponderação em cada caso,
concedendo ou denegando a medida pleiteada conforme as circunstâncias.
É do que cuida o item seguinte.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 6 1

3 . T u t e l a d e u r g ê n c ia , p r o p o r c io n a l id a d e e
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Como apontam os constitucionalistas, possível conflito entre normas


com estrutura de princípio deve ser resolvido com recurso ao critério da
proporcionalidade. Como os princípios são normas que apontam fins, valo­
res, objetivos, metas, ou um estado ideal de coisas a ser buscado, sua concre­
tização se dá através de condutas-meio. A relação entre meios e fins, no caso,
é controlada pelo critério da proporcionalidade, que permite não apenas
verificar se o meio utilizado realmente conduz ao fim perseguido, como
especialmente se não dá demasiado prestígio ao fim visado, com prejuízos
exagerados a outros princípios envolvidos.
Ao se verificar a proporcionalidade de um meio para atingir determina­
do fim, verifica-se, primeiro, a sua adequação, assim entendida a aptidão para,
de fato, conduzir à finalidade anunciada. Em seguida, examina-se a sua ne­
cessidade, vale dizer, a inexistência de outros meios, também aptos, porém
menos gravosos a outros princípios envolvidos no problema. E, finalmente, a
sua proporcionalidade em sentido estrito, que é o momento em que verdadei­
ramente se dá a ponderação: faz-se uma verificação se as vantagens trazidas
pelo meio escolhido (o incremento por ele propiciado ao princípio que lhe dá
suporte) superam as desvantagens dele decorrentes (assim entendido o sacrifí­
cio aos demais princípios pertinentes à questão). Nesse último exame, em
suma, deve-se dar prioridade àquele princípio que, prevalecendo, cause menos
estragos ao (s) que lhe é (são) antagônico (s).
No caso de uma tutela de urgência (v.g., de uma liminar em mandado
de segurança, ou de um provimento de antecipação dos efeitos da tutela),
tem-se um autêntico meio destinado à realização dos princípios relativos à
efetividade e à celeridade da prestação jurisdicional. Nessa condição, os “re­
quisitos” legais para a sua concessão, bem examinados, não passam de uma
fórmula legislativa para a aferição da proporcionalidade do uso de tal meio,
que eventualmente pode levar à relativização do princípio do devido processo
legal, da ampla defesa e do contraditório e de todos aqueles que impõem uma
ampla e demorada cognição antes da prolação de qualquer decisão que afete a
situação jurídica das partes.
Em suma, a correlação entre os requisitos exigidos para a concessão de
uma tutela de urgência são os mesmos exigidos para aferir a sua validade como
7 6 2 - M e d id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

meio para a realização do fim que é a efetividade da tutela jurisdicional em


questão. Assim:
Requisitos para a concessão Divisões do princípio da
da tutela de urgência proporcionalidade
Fumaça do bom direito Adequação
Perigo da demora Necessidade
Exame da possível
Proporcionalidade em sentido estrito
irreversibilidade da medida

Caso o juiz, em um exame inicial, se convença de que a sentença reco­


nhecerá ao autor o direito pleiteado, certamente conceder medida que anteci­
pa os seus efeitos, no todo ou em parte, ou preserva uma situação preexistente
e que seria confirmada ou mantida por ela, é meio adequado para torná-la
efetiva. Exemplificando, se a sentença anulará o lançamento de um tributo, é
meio adequado para torná-la efetiva a concessão de uma tutela de urgência
que suspenda provisoriamente a sua exigibilidade. A fumaça do bom direito,
portanto, confunde-se com o sub-princípio da adequação, primeira divisão
do princípio ou postulado da proporcionalidade.
Constatando a presença do “perigo da demora”9, o juiz se convence de
que a medida, além de adequada à efetivação da futura sentença (que será,
provavelmente, favorável a quem requer a tutela de urgência), é ainda neces­
sária, pois inexiste outro meio de dar à sentença essa efetividade. Denegada da
medida, o direito perseguido fenecerá, no todo ou em parte, e a sentença não
será capaz de repará-lo, toinando-se inútil10.

9 A legislação relativa às tutelas de urgência não utiliza tais expressões. No caso do mandado de
segurança, por exemplo, se diz "fundamento relevante" e risco de "ineficácia da medida, caso
seja finalmente deferida". Tais expressões, contudo, são apenas outra maneira de designar o
que comumente se rotula de fumaça do bom direito e de perigo da demora. Confira-se, a
propósito: M ACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 8a ed. São
Paulo: Dialética, 2009, p. 136.
10 Não será realizado, nesse caso, o princfpio da "máxima coincidência possível", decorrente da
garantia de acesso à jurisdição (CF/88, art. 5o, XXXV), segundo o qual o resultado obtido por
quem pleiteia a proteção jurisdicional e a obtém deve ser o mais próximo possível daquele que
seria alcançado se a parte adversa houvesse cumprido sua obrigação espontaneamente. Isso
porque, como ensina Marcelo Lima Guerra, "... a exigência de prestação efetiva de tutela
jurisdicional impõe-se como um corolário da própria idéia de Estado de Direito, mais especi­
ficamente, como uma conseqüência direta daqueles seus princípios fundamentais consisten­
tes no monopólio da jurisdição (proibição de autotutela) e a correspondente garantia de ampla
proteção jurisdicional de qualquer lesão ou ameaça a direito (o que significa, de outro ângulo,
uma proibição de denegação da tutela jurisdicional)". GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre
o Processo Cautelar. São Paulo: Malheiros, p. 11.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 6 3

Finalmente, o juiz deve verificar se a medida, além de adequada e neces­


sária, possui (ou não) o risco de, uma vez concedida, tornar-se irreversível.
Caso esse risco não esteja presente, a concessão da medida é definitivamente
proporcional: não concedê-la levaria ao fenecimento do direito de quem a
requer, e, por conseguinte, dos princípios da efetividade e da utilidade da
prestação jurisdicional, a troco de um inócuo maior prestígio dado ao princí­
pio da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Aliás, essa
ausência de irreversibilidade faz com que a concessão da medida cause dimi­
nuição de pequena monta nos princípios do contraditório, da ampla defesa e
do devido processo legal, pois a manifestação dos interessados e uma mais
ampla cognição poderá ser efetuada depois, levando, se for o caso, à revogação
da medida e à reversão da situação por ela criada. Por outras palavras, a ausên­
cia da irreversibilidade faz com que a concessão da medida traga maiores be­
nefícios do que malefícios, precisamente o inverso do que seria verificado na
hipótese de sua denegação.
Em havendo o risco de irreversibilidade, o juiz é forçado a realizar uma
ponderação dos princípios envolvidos, a fim de decidir qual grupo de princí­
pios (por outras palavras, qual dos “pratos da balança”) há de prevalecer, se o
que recomenda a celeridade, ou o que recomenda uma mais ampla (e demora­
da) cognição. Nesse caso, o grau de irreversibilidade presente, de ambos os
lados (o perigo da demora e o perigo da demora inverso), em sendo diferente
para autor e réu, pode contribuir para uma decisão em favor de um e de outro.
Além disso, a irreversibilidade da decisão, caso presente tanto na hipótese de
concessão como de denegação da medida, faz com que o fiel da balança passe
a ser a fumaça do bom direito e, ao cabo, a própria importância do direito
reclamado. No dizer de Hugo de Brito Machado, “o juiz avaliará a importân­
cia do direito para o impetrante, e do dano que a liminar poderá causar à
entidade a que se liga a autoridade impetrada, ou a terceiros, e decidirá tendo
em vista o mal menor”11. O direito material, em tais situações, influencia na
ponderação a ser feita das normas processuais: criar situação irreversível em
relação à vida do autor, por exemplo, pode ser mais grave do que criar situação
irreversível em detrimento do patrimônio do réu12.

11 M ACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 8a ed. São Paulo:
Dialética, 2009, p. 146.
12 Foi o que se decidiu, por exemplo, no STJ, no REsp n° 97.912-RS, Rel. Ministro Garcia Vieira,
j em 27.11.97, DJU de 09.03.98, p. 14.
7 6 4 - M e d id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

Será em tais situações limite, com a finalidade de minimizar os efeitos de


possível irreversibilidade (propiciando assim mais adequada conciliação dos
princípios envolvidos), que o magistrado poderá, se pertinente13, como condi­
ção para o deferimento de uma tutela de urgência, exigir da parte o ofereci­
mento de alguma forma de garantia ou contracautela.

4 . L im i n a r e m m a n d a d o d e s e g u r a n ç a e a e x i g ê n c i a
d e g a r a n t ia

O que se disse no item anterior a respeito das tutelas de urgência em


geral é perfeitamente aplicável à liminar em mandado de segurança em
particular. Em princípio, em atenção ao devido processo legal, à ampla defesa
e sobretudo ao contraditório, o juiz somente poderia deferir pedido formulado
pelo impetrante depois de aos envolvidos, e ao Ministério Público, ter sido
dada a oportunidade de manifestação. Mas isso, em certos casos, poderia
conduzir à inutilidade do próprio mandado de segurança, sendo certo que o
contraditório poderia ser exercido sem maiores prejuízos em momento posterior.
Em situações assim, presentes a fumaça do bom direito, o perigo da demora, e
ausente o risco de irreversibilidade (ou o chamado “perigo da demora inverso”),
a concessão da medida liminar é uma imposição da proporcional conciliação
dos princípios constitucionais pertinentes.
Presente o risco de irreversibilidade, o juiz realizará uma ponderação a fim
de verificar qual dos riscos (o de dano ao direito do autor ou o de irreversibilida­
de da medida) é maior, e qual dos direitos envolvidos será menos grave sacrificar.
Nesse exame, a fumaça do bom direito e a natureza do que é pleiteado e defen­
dido por cada uma das partes serão elementos decisivos. É nesse caso, em situa­
ções assim, que o juiz pode, para afastar o risco da irreversibilidade, exigir o
oferecimento de garantia.
Imagine-se, por exemplo, que uma empresa sediada no exterior envia ao
Brasil um empregado com o encargo de adquirir diversas toneladas de lagosta
in natura. As lagostas são adquiridas, acondicionadas e preparadas para a re-

13 Pode ocorrer de a exigência de contracautela ser factualmente inviável, ou implicar, na prática,


o mesmo que o indeferimento da medida (veja-se, a respeito, o que se explica no item seguinte
deste texto). Em tais situações, o juiz não deverá exigir a garantia, mas avaliar a necessidade de
deferir ou indeferir a medida tendo em vista o mal menor.
H u g o de B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 765

messa para o exterior, quando surge divergência ligada a algum tributo inci­
dente nessa operação, havendo a apreensão da mercadoria, que é perecível.
Nesse caso, impetrado mandado de segurança destinado a que se determine a
liberação da mercadoria para exportação, o juiz, mesmo diante da presença da
fumaça do bom direito, vê-se diante do risco da irreversibilidade qualquer
que seja a decisão tomada: caso determine a liberação das lagostas e sua expor­
tação sem o pagamento do tributo, a Fazenda, caso ao final seja vitoriosa na
demanda, não terá a menor condição de receber a quantia correspondente, eis
que o impetrante sequer tem estabelecimento no país, e o seu funcionário
encarregado das aquisições deixará o país juntamente com as mercadorias. Por
outro lado, caso denegue a liminar, os prejuízos pela demora em dispor da
mercadoria ou mesmo em razão de seu perecimento não serão reparados pela
sentença que eventualmente conceder a segurança, no futuro, que restará in­
teiramente inútil. Diante de fumaça do bom direito eloqüente, o juiz pode
deferir a medida independentemente de garantia. Caso, contudo, esse fumus
não seja assim tão claro, o juiz poderá, para conceder a medida, exigir do
impetrante alguma forma de garantia ou contracautela, destinada a assegurar
à Fazenda Pública que, caso a medida seja revogada ou reformada, ou caso a
segurança venha a ser denegada, a situação de fato poderá ser revertida. E isso,
aliás, o que sugere a literalidade da parte final do art. 7o, III, da Lei 12.016/
2009, ao se reportar à exigência da garantia como forma de “assegurar o ressar­
cimento à pessoa jurídica”.
Mas é preciso que se observe: em tais casos, a segurança destina-se a con­
ceder ao impetrante mais do que a mera extinção de um crédito tributário, e a
liminar, por conseguinte, presta-se para providências mais amplas que a mera
suspensão de sua exigibilidade14. Por isso, em tais casos, para prevenir o risco da
irreversibilidade, uma contracautela pode ser exigida, não esvaziando, só pelo
fato de ser prestada, a finalidade ou a utilidade da liminar, que ainda pode (aliás,
deve, se presentes os demais requisitos) ser deferida. No caso de writ destinado
à mera extinção de determinado lançamento, com a liminar objetivando apenas
a suspensão de sua exigibilidade, há componente adicional, que merece trata­
mento apartado.

14 Como registra Hugo de Brito Machado, a exigência de garantia torna-se pertinente, em matéria
tributária, quando a liminar "tem outros objetivos" distintos da mera suspensão da exigibilidade.
M ACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 8a ed. São Paulo:
Dialética, 2009, p. 147
7 6 6 - M ed id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

5 . L im in a r d e s t in a d a à s u s p e n s ã o d a e x i g i b i l i d a d e e a
EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO

Especificamente no que diz respeito às liminares destinadas a suspender


a exigibilidade do crédito tributário, é relevante lembrar que o depósito é
causa que, de forma autônoma e independente, alcança esse mesmo efeito.
Consta do art. 151 do CTN:
“Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
(•••)
II - o depósito do seu montante integral;
(...)

IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança.


V - a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras
espécies de ação judicial; (Incluídopela LCP104, de 10.1.2001)
(.••)”

Desse modo, considerando-se que o depósito, sozinho, é causa de sus­


pensão da exigibilidade do crédito tributário, não há sentido em exigi-lo como
condição para o deferimento de medida liminar com o mesmo fim15. Nesse
sentido, aliás, orienta-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - MANDADO DE SE­
GURANÇA - CONCESSÃO DE LIMINAR CONDICIONA­
DA A DEPÓSITO PARA FINS DE SUSPENSÃO DA
EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO.
1. Existentes os pressupostos para concessão de liminar em mandado
de segurança, deve a mesma ser concedida para fins de suspensão da
exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, IV do CTN,

15 Em alguns casos, é certo, o depósito pode ser útil, não para "viabilizar" o deferimento da
liminar, mas como alternativa à sua não concessão, em casos bastante peculiares. Diante da
(indevida compreensão de alguns juizes a respeito da) proibição legal de que sejam concedi­
das liminares determinando a realização de compensação tributária, por exemplo, o impetrante
pode efetuar o depósito, em juízo, das quantias que deixa de recolher em virtude da compen­
sação. Nessa hipótese, obterá a suspensão da exigibilidade do crédito tributário independen­
temente da liminar e, caso obtenha êxito ao final da ação, poderá levantar as quantias já
depositadas. A vantagem, no caso, é a de não ter de aguardar o trânsito em julgado para
proceder às compensações.
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 6 7

independentemente de depósito no montante integral. Precedentes


desta Corte.
2. Recurso especial provido.16
PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL.
ARTIGO 105, INCISO III, ALÍNEAS “A” E “C”, DA CONSTI­
TUIÇÃO DA REPÚBLICA. LIMINAR CONCEDIDA. INAU­
DITA ALTERA PARTE. ART. 151, V, DO CTN. IUS
SUPERVENIENS. INEXIGIBILIDADE DO DEPÓSITO INTE­
GRAL DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO ACERCA DA INCLUSÃO DE
CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS NO VALOR INTE­
GRAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL SUPERADA.
No caso excepcional dos autos, mostra-se cabível o deferimento da
liminar pelo magistrado, sem a audiência das partes, porquanto
“justifica-se a concessão de medida liminar ‘inaudita altera parte’,
ainda quando ausente a possibilidade de o promovido frustrar a sua
eficácia, desde que a demora de sua concessão possa importar em
prejuízo, mesmo que parcial, para o promovente” (ROMS 335/CE,
Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, RSTJ 47/517). A Lei Complementar
n° 104, de 10 de janeiro de 2001, ao alterar o inciso V do artigo 151
do Código Tributário Nacional, passou a indicar como causa de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário a concessão de
medida liminar em outras espécies de ação judicial, afastando a tese
restritiva, segundo a qual somente a medida liminar em mandado
de segurança produziria tal efeito. Incidência do ius superveniens à
espécie. A teor do disposto no artigo 151, incisos VI e V, do Código
Tributário Nacional, independentemente do depósito do crédito
tributário, é cabível a concessão da liminar, se presentes os seus
pressupostos, com a conseqüente suspensão da exigibilidade do
crédito tributário. Precedentes. Ausência de prequestionamento da
questão de que o depósito do montante integral do crédito tributário,
ao qual alude o inciso II do artigo 151 do Código Tributário Nacional,
deve compreender juros e correção monetária. Divergência
jurisprudencial superada. Recurso especial não conhecido.17

16 STJ, 2a T, REsp 222.838/SP, Rel, Min. Eliana Calmon, D/ de 18/02/2002, p. 289.


17 STJ, 2a T, REsp 153.633/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, D j de 01/07/2002, p. 272.
7 6 8 - M e d id a L im in a r em M a t é r ia T r ib u t á r ia e E x ig ê n c ia d e G a r a n t ia

Em verdade, vale repetir, se a parte efetua o depósito, a liminar (caso


destinada apenas a que se determine a suspensão da exigibilidade do crédito
tributário e o fornecimento das certidões daí decorrentes) é desnecessária,
pois a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, e todas as suas conse­
qüências, são obtidas com o próprio depósito. O que deve fazer o juiz é exa­
minar se estão presentes os requisitos legais, a fim de deferir, ou indeferir, o
pedido liminar. Caso indefira a liminar, em decisão devidamente fundamen­
tada, será uma escolha da parte tentar obter a reforma dessa decisão em segun­
da instância, em sede de agravo de instrumento, ou efetuar o depósito da
quantia controvertida. Não pode a falta do depósito, evidentemente, servir de
“fundamento” para o indeferimento da liminar.

6 . C o n clu sõ es

Diante do que foi explicado ao longo deste texto, pode-se concluir, em


síntese, o seguinte:
a) a concessão de uma tutela de urgência, gênero do qual a medida limi­
nar em mandado de segurança é espécie, é meio destinado a realizar os princí­
pios da efetividade e da celeridade da prestação jurisdicional;
b) os requisitos legais exigidos para a concessão da medida, bem exami­
nados, não passam dos sub-princípios da adequação (fumaça do bom direito),
da necessidade (perigo da demora) e da proporcionalidade em sentido estrito
(análise do risco de irreversibilidade), divisões do princípio ou postulado da
proporcionalidade, utilizado na conciliação ou na resolução de conflitos entre
normas com estrutura de princípios;
c) presente a fumaça do bom direito e o perigo da demora, e ausente o
risco de irreversibilidade, a concessão de uma tutela de urgência é imposição
da proporcional conciliação dos princípios constitucionais envolvidos. Não
pode ser denegada pelo juiz, e nem condicionada ao oferecimento de garantia
de qualquer natureza;
d) caso haja risco de irreversibilidade, o juiz deverá considerar o grau de
risco na hipótese de concessão e de denegação da medida, a fumaça do bom
direito e a natureza do direito material envolvidos. À luz desses elementos,
poderá decidir pela concessão ou pela denegação da liminar, sendo possível,
em tais casos, exigir a contracautela (depósito, fiança, caução etc.) como forma
de neutralizar o risco de irreversibilidade e conceder a liminar pleiteada;
H u g o d e B r it o M a c h a d o S e g u n d o - 7 6 9

e) Especificamente no que diz respeito às liminares destinadas a suspen­


der a exigibilidade do crédito tributário, é relevante lembrar que o depósito é
causa que, de forma autônoma e independente, alcança esse mesmo efeito.
Desse modo, efetuado o depósito, a liminar se torna irrelevante e desnecessá­
ria, pelo que a condicionar ao depósito é o mesmo que a indeferir.
Proteção de Direitos
Fundamentais e o
Paradoxo da
Contracautelaridade no
Mandado de Segurança

James Marins
Professor Titular de Direito Tributário e Processual Tributário nos cursos de
Mestrado e Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental da PUC-PR.
Doutor em Direito do Estado pela PUC-SP e Pós-Doutorpela Universidade
de Barcelona (Espanha). Presidente do Instituto Brasileiro de Procedimento e
Processo Tributário e advogado em Curitiba, Paraná.
J a m es M a r in s - 7 7 3

1 . I n t r o d u ç ã o h is t ó r ic a : a s l im it a ç õ e s a o m a n d a d o d e
SEGURANÇA GERMINAM NOS TEMPOS DE TOTALITARISMO

As conquistas históricas constitucionalizadas não comportam retrocesso,


sob pena de desestabilização dos pilares fundamentais das democracias cons­
titucionais. O writ of mandamus, no puro formato constitucional com que foi
inserido na Constituição Federal de 1988, não pode ser objeto de turbação
infraconstitucional - ou mesmo hermenêutica - que pretenda estreitar seu
alcance como garantia das garantias, escudo jurídico em face do arbítrio, que
amiúde adere aos que ocasionalmente exercem o poder. De fato, conforme
leciona Hugo de Brito Machado, “as restrições ao cabimento do mandado de
segurança em geral resultam de visão autoritária do Estado”1.
O mandado de segurança é justamente o remédio contra o uso autoritá­
rio do Estado. Não pode a lei ordinária, nem mesmo o intérprete, produzir o
estreitamento que sequer à emenda constitucional seria lícito. Na autorizada
doutrina de Eduardo Arruda Alvim, o writ está intimamente ligado à ideia de
Estado de Direito, constitui-se em garantia fundamental e é “insusceptível de
ser acutilado até mesmo por emenda constitucional”2. Logo, nenhuma tarefa,
legislativa ou pretoriana, está mais exposta a erros que a disciplina de garantia
individual que assume a forma de ação, ação-garantia em sua integridade ge­
nética, medularmente constitucional. Com assento nessa premissa, a Lei
12.016/2009, que revogou a Lei 1.531/1951, não pode ser lida com a tole­
rância do casuísmo, interpretada com os olhos apressados das soluções práti­
cas, aplicada com a leviandade das razões políticas ou econômicas escravizadas
pelo instantâneo histórico.
O árduo processo para a conquista dessa garantia, no tempo, evidencia
sua relevância. O Brasil, em seu complexo contexto histórico, marcado pela
opressão imperialista, pelo totalitarismo de fardas e pelo aparelhamento do
Estado por oligarquias políticas carentes de legitimidade, deve estar atento
para todas as manifestações que induzam à hipertrofia do poder estatal sobre
o indivíduo, ainda que incidentais, sobretudo quando se apresentam sob o
disfarce da legalidade.

1 M ACHADO, Hugo de Brito. Mandado de Segurança em Matéria Tributária. 8a ed. São Paulo:
Dialética, 2009, p. 13 e 14.
2 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de Segurança no Direito Tributário. São Paulo: RT, 1997,
7 7 4 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e ...

O percurso político e intelectual para a construção do mandado de segu­


rança é, de fato, eloqüente. A começar pelo Brasil-colônia. Enquanto vigentes
as regras do Reino Lusitano a que estávamos submetidos, sequer se podia cogi­
tar de resistência plenamente assegurada às ilegalidades cometidas em nome do
Império, que reunia todas as funções do Estado através do monarca. Note-se
que sequer para o habeas corpus havia previsão na Constituição Política do Im­
pério de 1824, e tal diploma foi tratado como “dádiva graciosa do Imperador”,
recebendo o instituto referido tratamento meramente infraconstitucional3-4.
A edificação da “teoria brasileira do habeas corpus”, de grande expressão
teórica enquanto berço da resistência do indivíduo diante do poder, operou

3 O Barão Homem de Melo (Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo) - em texto publicado
em 1863 e que estabeleceu polêmica com José de Alencar - relata com paixão os difíceis e
pouco lembrados momentos passados pela Constituinte de 1823, a primeira do Brasil, dissol­
vida pelo poder do Império. Lembra o Barão as palavras de Martim Francisco na sessão de 12
de novembro de 1823, quando a Constituinte viu-se acossada pelos oficiais da guarnição da
Corte: "Na longa noite de agonia, em sessão permanente no paço da Assembléia, haviam se
confessado para comparecerem perante Deus; e diante da força bruta, que invadiu o santuário
das leis, diziam friamente: 'O nosso lugar é este. Se S.M. quer alguma coisa de nós, mande aqui
e a Assembléia deliberará', lembrando também a frase de Montezuma, na mesma sessão da
Constituinte: 'Se morrermos, acabamos desempenhando nossos deveres'." Nas palavras de
Homem de M elo: "O Decreto de dissolução de 12 de novembro (de 1823) declarou que a
Assembléia Constituinte perjurara ao solene juramento, que prestara à Nação, de defender a
integridade do Império, sua independência, e a dinastia de Bragança; (...) Dissolvida embora
a Constituinte, o triunfo da idéia constitucional estava obtido. O impulso dado à causa dos
princípios da liberdade estava consumado. As idéias proclamadas pelo órgão da Nação
levavam em seu seio o segredo de seu triunfo. Já não era dado deter o seu curso. Desde que
foram levadas à face do País, ficaram vencedoras. Dessa glória não pode a história deserdar a
Constituinte. No decreto de dissolução o Imperador prometera aos brasileiros um projeto de
constituição duplicadamente mais liberal do que o da extinta Assembléia, que aliás se pintou
como um clube composto de homens dominados pelo furor revolucionário. Tomou-se por
base o projeto de constituição da Constituinte; e calando-se cautelosamente esta circunstân­
cia, apresentou-se a nova constituição, como uma dádiva graciosa do Imperador e dos conse­
lheiros de Estado que a assinaram. O povo brasileiro era incapaz de firmar por si a sua
liberdade. Só por esmola podia gozar desse benefício, como o escravo liberto por uma carta de
alforria. (...) Nesta grande crise do nosso passado, há para o historiador um desenlace consolador.
A força não venceu o direito. Consumada a violência contra os mártires da Pátria, o triunfo
ficou à causa da liberdade constitucional. (...) O ato violento da dissolução da Constituinte foi
um gravíssimo erro político, filho da mais imprudente precipitação, que repercutiu dolorosa­
mente em todo o seu reinado. As prisões e o degredo, as devassas, a comoção da Bahia, o
sangue derramado em Pernambuco e no Ceará em 1824, a consternação geral que assaltou a
Nação em presença da ditadura imperial podiam ter sido poupados à nossa história." (A
Constituinte de 1823. As Constituições no Brasil - a Constituição de 1824. Brasília: PRND/
Fundação Projeto Rondon/Minter, 1986, p. 7 e ss).
4 Francisco de Assis Alves bem ressalta este aspecto da Carta de 1824: "Bem verdade que ás
apregoadas técnicas jurídicas, apropriadas para a proteção dos direitos individuais foram
olvidadas pela Carta Imperial, posto que, especificamente não as incluiu no rol das garantias
desses direitos. Ficou apenas com os enunciados, conforme se vê de seu prenotado artigo 179,
sem identificar, por exemplo, o habeas corpus como medida dessa índole, tão difundida na
época do aparecimento da Carta de 1824." (Constituições do Brasil. Brasília: PRND/Instituto
dos Advogados de São Paulo, 1985, p. 13).
James M a rin s - 775

como gênese de qualquer estudo sobre o mandado de segurança como garantia


individual5. No entanto, frustrada a “teoria brasileira”, com a reforma
constitucional de 1926, tornou-se premente a necessidade de previsão expressa
de garantia imediata e eficaz contra os abusos do Poder Público. Com
propriedade, José da Silva Pacheco, ensina que com o escopo de obter a submissão
dos atos administrativos aos tribunais, “a ação sumária especial da Lei n° 221, de
1894, foi a primeira tentativa republicana, que se mostrou deficiente pela
incompreensão dos juizes, inércia dos interessados e imperfeição do sistema”6.
Tarefa obviamente impensável com a Revolução de 1930, pois o Decreto n°
18.398, de 11 de novembro de 1930, tornava insusceptíveis de apreciação os
atos do Governo Provisório. Contudo, graças à significativa ajuda do movimento
“Constitucionalista”, de 9 de julho de 1932, que culminou com o advento da
Constituição de 1934, acolhe-se o Projeto João Mangabeira para o mandado de
segurança, cuja denominação foi possivelmente adotada por influência das
Ordenações Filipinas (1936), que permitia ao particular solicitar ao juiz segurança
quando sofresse ameaça (privada) a si ou à posse exercida sobre seus bens7.
Mas - como é de se esperar - as restrições ao mandado de segurança
nascem e frutificam nos ambientes totalitários. O golpe de Estado de 1937
(Estado Novo), influenciado pela expansão do fascismo internacional, ge­
rou a Carta Constitucional de 1937 (Constituição dos Estados Unidos do

5 O habeas corpus como garantia constitucional somente foi recebido pela Constituição de 24
de fevereiro de 1891, a Republicana (Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil). Paulo Bonavides ressalta a vocação liberal desta Constituição: "A Constituição da
República de 1891, funda com sua Declaração de Direitos, o nosso verdadeiro Estado Liberal
sem a contradição entre a doutrina e os fatos (característica imperial)." Em seu art. 72, § 22, que
teve seu projeto baseado nas constituições norte-americana, argentina e suíça, recebendo
retoques de Ruy Barbosa, foi que surgiu o mandado de segurança no Brasil. Entre nós, a
chamada "teoria brasileira do habeas corpus" ante a inexistência de previsão para o mandado
se segurança no texto constitucional de 1891, esforçou-se por alargar o contexto do habeas
corpus (em construção de diversos juristas, destacando-se inclusive a atuação de Ruy Barbosa,
recepcionada em julgados do Supremo Tribunal Federal para um plano extrapenal, incluindo
a concessão da ordem para a coibição de abusos de natureza civil ou administrativa, teoria esta
que com a reforma constitucional de 1926 foi afastada pelo novo texto do art. 72, § 22, da
Constituição que limitava expressamente o habeas corpus a constrições da liberdade de
locomoção do cidadão. Dizia a Constituição de 1891, art. 72, § 22: "Dar-se-á o habeas corpus
sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação,
por ilegalidade ou abuso de poder." (cf. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro.
4a ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 471 e ss.).
6 PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações Constitucionais Típicas.
São Paulo: RT, 1991, p. 96. No mesmo sentido consulte-se CAVALCAN TI, Themístocles
Brandão. Do Mandado de Segurança. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1966, p. 27.
7 Mais amplamente sobre esse processo histórico consulte-se MARINS, James. Direito Processual
Tributário Brasileiro. 4a ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 471 e ss.).
7 7 6 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

Brasil). Naquela triste ocasião: “as liberdades de imprensa e de opinião fo­


ram amordaçadas e também dissolvidos os partidos políticos. (...) De um
modo geral toda a legislação do Estado novo se orientou contra as liberdades
públicas; a ditadura brasileira perseguiu e puniu as grandes figuras do pen­
samento brasileiro”8.
Suprimiu-se a dignidade constitucional do mandado de segurança que,
todavia, restou vigente e eficaz, pois ainda regulado pela legislação ordinária
não revogada (Lei n° 191/36), tendo, contudo, sofrido restrições, vedado
que foi o seu uso contra atos do Presidente da República, Ministros de
Estado, Governadores e Interventores (Decreto-lei n° 6, de 16 de novem­
bro de 1937).
Convém lembrar que em 1939 surgem novas limitações, agora de na­
tureza tributária, à impetração, no bojo do próprio Código de Processo Ci­
vil, conforme a lição de Celso Agrícola Barbi: “O Código de Processo Civil
de 1939 manteve os princípios então vigorantes e restringiu mais seu campo
de ação, ao impedir o uso quando se tratasse de impostos e taxas, salvo
quando a lei estabelecesse providências restritivas da atividade profissional
do contribuinte para assegurar a cobrança”9.
Sublinhe-se: esta invasão do CPC no campo do writ of mandamus so­
mente foi possível durante o período em que esta ação foi privada, pelo
totalitarismo, de sua dignidade constitucional, já que se passou quase uma
década até que o mandado de segurança recuperasse seu assento no texto
maior, agora com a Constituição de 1946 (art. 141, § 24), e sob o influxo
dos ventos democráticos.
A redação do dispositivo foi a seguinte: “Para proteger direito líquido e
certo, não amparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança
seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”. A
Lei 1.533/1951, revogada apenas recentemente pela Lei 12.016/2009, eli­
minou, a bem da plena cidadania, as inadmissíveis restrições em razão da
pessoa ao uso da segurança (“seja qual for a autoridade responsável”).

8 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 64 e 65.
Consulte-se, mais amplamente, acerca das características desta Constituição, PORTO, Walter
Costa. A Constituição de 1937. Constituições do Brasil. Brasília: Instituto Tancredo Neves -
Fundação Friedrich Naumann, 1987, p. 53 e ss.
9 BARBI, Celso Agrícola. Do Mandado de Segurança. Belo Horizonte, 1960, p. 36 e 37.
J am es M a r in s - 7 7 7

Foi também, a Lei 1533/1951 que revogou expressamente as limitações


contidas nas normas do Código de Processo Civil pertinentes ao mandado de
segurança, inclusive aquelas de caráter tributário.
Já nesse momento intelectual, a disciplina do mandado de segurança
apontava para a vocação desta ação constitucional como instrumento de proteção
do direito in naturam, uma vez que não mais se exigia “direito certo e
incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional
ou ilegal” (1937), mas a fórmula mais aceita e menos restritiva de “direito
líquido e certo”, que impunha, como acertadamente dissertou Alfredo Buzaid,
o resguardo da ameaça ou violação de direito com execução imediata e específica
do julgado11.
Este texto teve sua letra praticamente mantida com a Constituição Federal
de 1967 (Constituição da República Federativa do Brasil), denominada de
“Constituição-Instrumento” por Afonso Arinos, oriunda da Revolução de 31
de março de 1964, acrescentado apenas o adjetivo “individual” à formulação de
1946, ficando protegido então o “direito individual líquido e certo”. Esta reda­
ção foi novamente modificada com o retorno à Constituição da redação de 1946
(suprimindo-se a palavra “individual”), através da Emenda Constitucional n° 1,
de 17 de outubro de 1969, comumente conhecida como Constituição de 1969
que incorporou o AI5, amoldando definitivamente o corpo da Constituição aos
ilegítimos interesses vigorantes, do poder absoluto, cerceadores das liberdades
públicas, tornando imunes à apreciação judicial todos os atos cometidos em
nome da revolução. Após a Constituição de 1967, e logo após, da Emenda
Constitucional n° 1 de 1969, e durante a repugnante égide da força, o Ato
Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, retira da apreciação judicial
todos os atos praticados sob seu império, em manifesta encarnação do absolutis-
mo12. Quase vinte anos se passaram até que fosse promulgada a Constituição de

10 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de Segurança no Direito Tributário. São Paulo: RT, 1997,
p. 89 e ss.
11 BU Z A ID , Alfredo. Mandado de Segurança. Revista de Direito Administrativo, p. 26, apud
ROCHA, José de Moura. Mandado de Segurança - a Defesa dos Direitos individuais. Rio de
Janeiro: Aide, 1982, p. 69 e 70.
12 A feição histórica brasileira do mandado de segurança, em verdade, seguiu os passos de tendência
universal à proteção das liberdades individuais através de instrumentos jurídicos (eminentemente
processuais) idôneos para torná-las efetivas. A Inglaterra aparece indiscutivelmente como precursora
da proteção às garantias individuais através dos diversos writs, especialmente os de mandamus,
certiorari e injunction, incluindo-se entre eles o habeas corpus. Estes instrumentos foram
7 7 8 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

1988, que carregava em seu ventre, o embrião da esperada redemocratização.


Nessa Constituição - mantida até hoje em sua espinha dorsal apesar das 62
(sessenta e duas) Emendas Constitucionais que sofreu até o momento - o man­
dado de segurança figura no rol das garantias individuais do art. 5o, ao lado de
garantias fundamentais como igualdade, liberdade, propriedade e legalidade,
vocacionado para operar como garantia das garantias.
Sempre foi (e continua sendo), portanto, o mandado de segurança ins­
trumento a serviço da liberdade dos cidadãos no gozo de seus direitos subje­
tivos, somente agrilhoado pela legislação nos dramáticos momentos de exceção
patrocinados pelo autoritarismo. Sua incondicional aplicação sempre repre­
sentou, inequivocamente, pedra fundamental das garantias individuais, ou,
como dizia Ruy Barbosa, “escudo” a protegê-las. A tônica constante do man­
dado de segurança está na incondicionalidade e imediatidade de sua aplica­
ção, tendo, sempre, todas as restrições que se lhe impuseram os regimes, sido
apontadas como insanavelmente inconstitucionais pelos juristas. De fato, as
arduamente defendidas características da incondicionalidade e imediatidade
da proteção, sempre estiveram presentes nos textos constitucionais de outrora
assim como no texto da vigente Constituição Federal de 1988.
Em verdade, pode-se afirmar, em testemunho da vocação de instrumen­
to de proteção do Estado de Direito - ínsita ao instituto do mandado de
segurança —, que quanto menor o número de empecilhos legislativos à impe­
tração deste writ, certamente maior é o grau de reverência do Parlamento
brasileiro ao princípio da supremacia da Constituição (primado do Direito), o

posteriormente desenvolvidos nos Estados Unidos, não raro recebendo, todavia, forma diversa
de tratamento. Roland Pennok sintetiza a função dos wríts da seguinte forma: "In addition to
the ordinary civil action or criminal prosecution, and more effective as against modem forms o f
administration, are severaI so called 'extraordinary writs'. These are used when the ordinary rules
o f private and criminal law are inadequate." Com o mesmo prestígio histórico dos writs do
Direito anglo-saxão assume grande importância o "juicio de amparo" do Direito mexicano,
que tem seu primeiro registro com a expressão atual na Constituição M exicana de 1857,
mantendo-se praticamente com os mesmos termos na Constituição Mexicana de 1917. Dispõe
da seguinte forma sobre o "juicio de amparo" a Constituição Mexicana de 1917, art. 103: "Los
Tribunales de la Federación resolverán toda controvérsia que se suscite: I - Por leyes o actos de
la autoridad que viole Ias garantias individuales. II - Por leyes o actos de la autoridad federal que
vulnerem o restrinjan la soberania dos Estados. III - Por leyes o actos de Ias autoridades de éstos
que invadan la esfera de autoridad federal." Na Espanha, sua primeira Constituição Republica­
na (1931), em seu art. 105, previa que a lei organizaria tribunais de urgência para tornar efetivo
o direito de amparo das garantias individuais. Na Áustria, já há mais de setenta anos, a
Constituição de 1920 previa recurso contra decisões administrativas para a proteção a direitos
constitucionalmente violados, (cf. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 4a
ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 471 e ss.)
J a m es M a r in s - 7 7 9

que implica verdadeiro aprimoramento das instituições democráticas do País.


Hodiernamente, esta proteção imediata que se confere através do mandado de
segurança individual, para a ameaça ou a lesão a direito líquido e certo dos
cidadãos pelo Poder Público, recebe sensível ampliação de modo a possibilitar
a proteção em massa a estas violações através do novo instituto do mandado de
segurança coletivo (art. 5o, inc. LXX da Constituição Federal de 1988, final­
mente disciplinado pelos arts. 21 e 22 da Lei 12.016/2009)13.

2. A Lei 12.016/2009 e a o m a n d a d o de s e g u r a n ç a
COMO GARANTIA DAS GARANTIAS, ESPECIALMENTE
AS FUNDAMENTAIS

É preciso, por isso mesmo, contrastar a Lei 12.016/2009 com a constru­


ção doutrinária promotora do mandado de segurança como garantia constitu­
cional. Segundo Nelson Nery Junior: “A questão que se coloca a esta altura é
relativa ao poder regulamentar do legislador ordinário infraconstitucional. Será
que a lei ordinária teria legitimidade para restringir garantia instituída pela
Constituição Federal, exigindo requisitos que a Carta Política não exigiu para
o exercitamento da garantia e/ou direito? Parece-nos que não”14. Do mesmo
modo, Sérgio Ferraz, em sua primorosa monografia sobre o assunto, estabele­
ce as premissas de sua investigação científica, ou, como prefere, seu pressupos­
to filosófico-jurídico: “... o mandado de segurança é, em si, uma das garantias
constitucionais fundamentais, como tal expressamente instituído e arrolado
no basilar art. 5o da nossa Carta Política - o artigo que funda o estatuto básico
dos direitos individuais, coletivos e difusos. Esse berço de nascimento de pronto

13 Tendo em vista a classificação das normas constitucionais que adotamos podemos enquadrar
a norma relativa ao mandado de segurança (art. 5o, LXIX) como sendo de eficácia abèoluta
plena, por quatro razões: i) a norma veicula uma garantia individual, o que a torna insuscetível
de alteração, quer por via de emenda ou reforma constitucional; ii) não contém em sua
substância elemento de "vaguedad" (conceitos éticos ou terminologia imprecisa ou equívoca)
que pudesse exigir norma infraconstitucional integrativa; iii) não remete expressamente sua
regulamentação à lei ordinária ou complementar; iv) tem aplicabilidade imediata não só
porque se trata de cláusula pétrea mas também por força do § 1o do art. 5o da Constituição
Federal de 1988. Desta classificação resultam conseqüências jurídicas da mais alta relevância,
pois estreita os limites impostos à legislação infraconstitucional no trato do mandado de
segurança, (cf. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 4a ed. São Paulo: Dialética,
2005, p. 471 e ss.)
14 NERY JU N IO R, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT,
7 8 0 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

contamina o mandado de segurança com a marca indelével, que há de nortear


seu estudioso, intérprete, usuário ou aplicador: partejado que foi como ins­
trumento das liberdades fundamentais, inserido que está dentre as garantias-
-mestras, o mandado de segurança há de ser sempre liberalmente encarado e
compreendido. (...) Firma-se aqui, portanto, desde já o princípio fundamen­
tal a nortear este ensaio, o princípio de espeque constitucional: como, a um só
tempo, remédio processual e garantia constitucional, o mandado de seguran­
ça, em seu cabimento e amplitude, há de ser admitido de forma amplíssima,
tendo-se por ilegítimo tudo que amesquinhe tal parâmetro”ls.
Não há espaço para dúvida. A estatura constitucional do mandado de
segurança, enquanto ação e garantia individual e coletiva, projeta-o dupla­
mente como instrumento e garantia em si mesmo. É ferramenta assecuratória
porque se presta —em inumeráveis situações —para proteger o indivíduo ou a
coletividade de violação ou potencial violação de direitos fundamentais elen-
cados constitucionalmente (como a própria garantia à legalidade), e também é
garantia fundamental, per se, na exata medida em que seu manejo pelos tute­
lados não pode ser reduzido, impedido ou turbado nem mesmo pela própria
lei. Configura-se, sem redundância, como garantia das garantias. E garantia
instrumental das garantias formais ou materiais e o direito processual passa a
ser constantemente chamado a oferecer tutela efetiva aos direitos fundamen­
tais16, inclusive aqueles relativos ao exercício da atividade econômica, sobretu­
do no campo tributário, onde a presença onipotente do Estado na vida do
cidadão é campo propício para o florescimento e a multiplicação do arbítrio.
Seu campo de aplicação é amplíssimo, sobretudo na seara econômica que
afeta direitos fundamentais. Processos históricos, políticos e econômicos, de­
terminam a intensidade da presença do Estado na vida dos particulares. A
medida da intervenção estatal na vida, na propriedade e na liberdade dos
cidadãos é assunto de enraizamento constitucional e a multiplicidade de li­
mitações possíveis ao modo de exercício das atividades econômicas implica
freqüentes choques entre a administração pública e os atores privados.
Limitações, regulações e proibições legais ou administrativas ao exercício
da atividade econômica constituem rico terreno para a eclosão do arbítrio e

15 FERRAZ, Sérgio. M an dado de Segurança. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 16.


16 BUEN O , Cássio Scarpinella. /4 N ova Lei d o M a n d a d o de Seg u ra n ça . São Paulo: Saraiva,
2009, p. 6.
J a m es M a r in s - 7 8 1

dos conflitos, e, logo, reclamam instrumentos adequados para operar como


paliçada protetiva aos excessos do poder estatal. Nesse sentido, a atividade
econômica está particularmente exposta ao campo tributário. Os fenômenos
da fiscalidade e da extrafiscalidade interferem diretamente nas decisões de
caráter econômico e, quanto maior o tamanho do Estado Fiscal, maior será a
oportunidade para que viceje o arbítrio tributário.
Por isso o mandado de segurança é considerado como a ação tributária
por excelência. Seu manejo pelo particular permite o controle preventivo tan­
to de atos legais - gerais e abstratos - que contenham potencialidade danosa,
como o controle corretivo, repressivo, a atos da administração concreta e indi­
vidualmente ofensivos à esfera jurídica do contribuinte, cidadão ou sua socie­
dade empresária.
A importância dessa ação constitucional na condição de instrumento
para que se preste efetiva tutela jurisdicional do contribuinte é inegável, so­
bretudo diante da constatação da vulnerabilidade do contribuinte diante da
Fazenda Pública. De fato, nos últimos 20 anos, as relações tributárias no
Brasil sofreram significativas alterações de cunho econômico e jurídico. A
carga tributária nacional incidente sobre o PIB elevou-se de 24% para cerca
de 37%, período em que os mecanismos arrecadatórios ganharam grande “for­
ça exatorial bruta”, sobretudo a partir da utilização de sistemas novos de fisca­
lização e cobrança, como o cruzamento de informações financeiras, as
declarações digitais, a escrituração digital, a nota fiscal eletrônica. No âmbito
do processo, incisivas transformações nascem com a adoção generalizada do
“paradigma da celeridade”, equivocadamente amparado no princípio da dura­
ção razoável do processo. Diante desse quadro, em nosso mais recente traba­
lho, denominado Defesa e Vulnerabilidade do Contribuinte11’, demonstramos
que a noção corrente de debilidade da Fazenda Pública no processo se cons­
titui em falso axioma e articulamos os diversos elementos que evidenciam a
vulnerabilidade do contribuinte nos campos material (vulnerabilidade políti-
co-legislativa e econômica), formal (vulnerabilidade cognoscitiva e tecnológi­
ca) e processual (vulnerabilidade administrativa e jurisdicional).
Lamentavelmente, as insistentes distorções promovidas no Direito Tribu­
tário, predominantemente assimilado como tutor da arrecadação, impulsionam

MARINS, James. Defesa e Vulnerabilidade do Contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, 223 p.
7 8 2 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e ..

sua conversão em mero Direito Arrecadatório e logo suas premissas não com­
provadas —sobretudo os axiomas da supremacia do interesse público sobre o
particular e da debilidade da Fazenda Pública - passaram a presidir a criação e
a aplicação das normas tributárias que passaram a ser tributário-arrecadatórias.
O que caracteriza o Direito Arrecadatório é a prioridade legal e interpretativa
atribuída à sua eficácia exatorial bruta, em contraste com sua incapacidade de
servir ao cidadão (o que torna ainda mais importante que os instrumentos de
garantia jurisdicional, sobretudo os constitucionais, como o mandado de segu­
rança, não sofram estreitamento legal ou hermenêutico).

3 . A FACULDADE DA CONTRACAUTELARIDADE E O
" r ess a r c im en t o " pr ev isto s NO ART. 7 , INC. III,
SEGUNDA PARTE DA LEI N° 1 2 . 0 1 6 / 2 0 0 9

Como visto no escorço acima, a configuração histórica e a raiz constitucional


do mandado de segurança, desde os esforços da teoria brasileira do habeas corpus,
com a Constituição Republicana de 24 de fevereiro de 1891, impõe ao legislador,
ao intérprete e ao aplicador que elimine os empecilhos que estorvem a plenitude
de eficácia do remédio constitucional. A imposição de depósito ou caução, óbices
materiais antepostos à eficácia da medida liminar requerida pelo contribuinte,
revela-se incompatível com a magnitude do writ. Qualquer regime de
contracautelaridade é estranho ao writ constitucional. Aliás, historicamente, do
exame legal, constitucional e infraconstitucional, resulta como evidência a
completa inexistência de previsão normativa para a exigência do depósito judicial
como condicionante da eficácia de medida liminar concedida em mandado de
segurança, percurso somente rompido com a questionável previsão agora incluída
no art. 7, inc. III, segunda parte da Lei n° 12.016/2009: “(...) sendo facultado
[ao juiz] exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de
assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica”.
Qual o significado dessa “faculdade” de contracautelaridade atribuída pela
lei ao magistrado no mandado de segurança? Sob nosso ponto de vista, esta
espécie de “autorização legal” para que o magistrado imponha a contracautela
necessita ser examinada em seu contexto histórico com o objetivo de extrair sua
significação possível.
As discussões sobre o condicionamento da liminar em mandado de segu­
rança a depósito floresceram no início dos anos 1990, por força da freqüente
J a m es M a r in s - 7 8 3

utilização pelos entes tributantes de normas conflitantes com a Constituição


Federal de 1988, gerando expressiva quantidade de seguranças impetradas em
matéria tributária. Diante da incerteza interpretativa gerada pelo novo quadro
constitucional, muitos magistrados passaram a adotar a prática de exigir depósi­
to para atribuir efeito suspensivo à liminar no mandado de segurança. O depó­
sito, sem dúvida, é direito do contribuinte, mas não obrigação quando presentes
os pressupostos da impetração e da concessão da medida liminar que suspende
a exigibilidade do tributo nos termos do art. 151 do CTN.
A origem desta exigência nos parece ter se alojado sobretudo na indevida
aplicação subsidiária dos arts. 799 e seguintes do Código de Processo Civil à
disciplina do mandado de segurança. É de se destacar o preciso entendimento
de Rubens Approbato Machado: “Já foi dito, por diversas vezes, que o manda­
do de segurança é, inquestionavelmente, uma ação, mas que tem seu nascedouro
na Constituição Federal, encartada no Capítulo dos Direitos e Garantias Indi­
viduais. É através dessa garantia constitucional, que se assegura o cumprimento
dos direitos fundamentais. Por tais razões não pode ela ter âmbito ou interpre­
tação restritos. Fundado nessas premissas, se presentes estiverem o fumus boni
iuris e o periculum in mora, a liminar deve, necessariamente, ser concedida, sob
pena de tornar ineficaz a medida quando de sua concessão definitiva. Desse
modo, não pode o juiz restringir o direito à liminar, quando presentes todos os
pressupostos, condicionando sua concessão à caução. É absolutamente injurídi-
ca a aplicação analógica dos arts. 799, 804 e 805 do Código de Processo Civil,
aplicáveis às medidas cautelares, ao processo do mandado de segurança - disci­
plina cautelar que inspirou equivocadamente o contido no art. 7o da Lei 12.016/
2009. A caução nas medidas cautelares justifica-se para o ressarcimento integral
dos danos que o requerido possa vir a sofrer. No caso do mandado de segurança,
o que está em discussão é a violação, pela autoridade pública, de direito líquido
e certo do indivíduo. Se este direito estiver embasado em fatos incontestáveis e
transparentes, e se o perigo da demora for manifesto, a liminar será concedida
para resguardar esse direito viòlado, independente de caução, já que não há o
que se falar em ‘ressarcimento de danos’ à autoridade pública de cujo ato se
origina a postulação da garantia constitucional”18.

18 M AC H AD O , Rubens Approbato. P ro cesso Tributário - A d m inistrativo e Ju d icia l. C urso de


D ireito Tributário (obra coletiva), vol. 2, Beiém: Cejup, 1993, p. 410.
7 8 4 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m e n t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

Correta a doutrina de Rubens Approbato Machado: não há que se falar


em contracautela para “ressarcimento de danos” à autoridade coatora ou mes­
mo ao seu órgão de pertenecimento, ou mesmo, na dicção legal atual, não há
como exigir contracautela para possível “ressarcimento à pessoa jurídica” (Lei
12.016/2009, art. 7o, inc. III) na exata medida em que esta exigência mate­
rial possa representar obstáculo, desestímulo, ou penalidade ao impetrante
pelo manejo do remédio constitucional. Não se trata de mera pessoa jurídica,
como se de relações privadas se tratasse - mas pessoa jurídica que alberga
“autoridade” capaz de agir ilegalmente ou com abuso de poder. Não se cuida
aqui da mera disciplina de relações jurídicas econômicas que se traduzem em
cifras; trata-se da disciplina de proteção constitucional do indivíduo em face
do Estado, que não pode ser livremente empecida por exigências pecuniárias
ou assemelhadas.
O “ressarcimento à pessoa jurídica” poderá decorrer do princípio da res­
ponsabilidade, por ação própria, desde que não decorra do mero exercício
regular do direito de ação, e somente se comprovado o dolo, a culpa ou a má-
fé do impetrante. Fora dessas hipóteses inexiste qualquer direito a “ressarci­
mento” como decorrência da concessão da liminar. Em matéria tributária,
sobretudo, uma vez presentes os pressupostos autorizadores da liminar de
suspensão da exigibilidade do tributo, a contracautelaridade operaria como
autêntico solve et repete, princípio vulgarizado na era medieval mas contempo-
raneamente inaceitável.
Ora, se não é possível, como evidenciamos ao longo desse ensaio, sequer à
lei “angustiar” a expressão constitucional da garantia, menos possível ainda
será ao magistrado fazê-lo mediante mera “faculdade”. Nem, tampouco, é
possível assemelhar a autoridade ou agente coator à simples “representante de
pessoa jurídica”.
Presentes os pressupostos legais da primeira parte do inc. III do art. 7o
da Lei 12.016/2009, isto é, havendo fundamento relevante e risco de ineficá­
cia, é imperiosa a concessão da liminar sem qualquer condicionamento à con­
tracautela, sob pena de inconstitucionalidade in concreto da decisão por aplicar
norma jurídica incompatível com a garantia do writ of mandamus.
Isso porque, a contracautelaridade não é da natureza do writ. Ainda que se
queira atribuir conteúdo cautelar à liminar em mandado de segurança, como
propugnam alguns autores, daí a dizê-lo “ação cautelar” e portanto sujeito às
J a m es M arin s - 7 8 5

peculiaridades do Código de Processo Civil para esta ação, vai uma distância
verdadeiramente abissal - e a Lei 12.016/2009 não pode ser interpretada no
sentido do aproveitamento instrumental do mandado de segurança para fins
cautelares - o que é salutar. Ofende o regime constitucional facultar contracau-
telaridade em sede de ação constitucional quando presentes os pressupostos
para a impetração e para a medida liminar (que no mandado de segurança é
claramente antecipatória), sobretudo quando estiverem em jogo direitos funda­
mentais, inclusive aqueles de natureza econômica, como ocorre amiúde em matéria
fiscal. Tenha-se em conta que mesmo que se afirme ter a liminar em mandado
de segurança natureza cautelar, não se pode afirmar que mandado de segurança
é uma espécie do gênero “ação cautelar” e portanto estaria sujeito ao regime
jurídico da contracautela nos moldes previstos no art. 804, segunda parte, do
CPC, equivocadamente emulado pela Lei 12.016/2009. Isto porque o manda­
do de segurança é - insista-se —uma ação constitucional típica, qualidade que
não pode ser atribuída à ação cautelar. A natureza cautelar da liminar no man­
dado de segurança é meramente semântica, não técnica.
Ao se impor - comofa z o art. 7o, inc. III, segunda parte, da Lei 12.016/
2009 - condição material (depósito, caução, fiança bancária etc.) para a con­
cessão da medida liminar pleiteada, inova-se ilegitimamente a própria Consti­
tuição e enfraquece-se o Estado de Direito. José da Silva Pacheco, em sua
irrepreensível obra sobre as ações constitucionais típicas, após aprofundado
estudo, destaca habilmente todas as conseqüências que advém do fato de o
mandado de segurança ser uma ação constitucional de garantia ao indivíduo,
adotando explícita posição sobre a questão de que aqui se trata: “Tem inteira
razão o Ministro Carlos Velloso quando não concorda com a praxe, que vem
sendo instaurada, de se exigir depósito ou caução para conceder-se medida
liminar em mandado de segurança, uma vez que ocorrendo os pressupostos
objetivos da medida liminar, deve o juiz concedê-la, não podendo desfigurar
ou desvirtuar a ação constitucional de mandado de segurança, com exigência
descabida de depósito, não previsto em lei”19.
A questão - extemporaneamente reaberta pela nova Lei do Mandado de
Segurança - foi debatida há décadas, tendo prevalecido a inteireza constitucio­

19 PACHECO, José da Silva. O M andado d e Segurança e Outras A ç õ e s Constitucionais Típicas.


São Paulo: RT, 1991, p. 222.
7 8 6 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

nal da garantia das garantias. Aliás, proveitoso debate, inteiramente aplicável ao


presente momento, vislumbrou na contracautela um inconsistente bis in idem.
Américo Lacombe destacou a contradição existente entre o procedimento usual
de imposição do depósito, e a dicção do art. 151, IV do Código Tributário
Nacional: “Se o depósito integral já suspende a exigibilidade do crédito, o crédi­
to já não é mais exigido desde o momento em que se tenha o depósito, e se a
medida liminar também suspende essa exigibilidade, não tem o menor cabi­
mento o condicionamento que fazem alguns juizes, de depósito para garantia
da liminar. Ou a liminar é dada sem a menor garantia, porque o juiz está con­
vencido de que ocorrem os pressupostos necessários para dar a liminar, quais
sejam, ofumus boni iuris e opericulum in mora, ou então simplesmente não dá”20.
De fato, o Código Tributário Nacional prevê expressamente em seu
art. 151 (com a redação da Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de
2001) seis formas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário: I -
moratória; II - depósito do seu montante integral; III - os recursos admi­
nistrativos; IV —a concessão de medida liminar em mandado de segurança;
V - a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espé­
cies de ação judicial; e VI - o parcelamento.
Como se observa, tanto o depósito do tributo devido como a liminar em
mandado de segurança são, individualmente, causas de suspensão de exigibilidade
do tributo. À toda evidência, se o contribuinte deposita o quantum debeatur, não
mais precisa da concessão de liminar, pois a exigibilidade do crédito tributário
estará obrigatoriamente suspensa. Caso se leve este raciocínio às suas conseqüências
extremas, condicionar-se a liminar a prévio depósito, seria como condicionar-se
a liminar à comprovação de que o im petrante protocolou correta e
tempestivamente, recurso administrativo com efeito suspensivo. Üma hipótese
exclui necessariamente a outra. Ora, quem ingressou junto à repartição
administrativa com recurso dotado de efeito suspensivo não precisa da liminar
em mandado de segurança, pois seu débito já está com a exigibilidade suspensa
(art. 151, III, do CTN). Assim também, quem deposita o montante integral de
seu débito não mais precisa da liminar em mandado de segurança, pois já tem a
suspensão de exigibilidade como implicação de lei (art. 151, II, do CTN).

20 LACOMBE, Américo. Mandado de Segurança e Ações Cautelares. Revista de D ireito Tributário


46/133. No mesmo sentido e citando Américo Lacombe, veja-se CAMPOS, Dejalma de. D ireito
P rocessual Tributário. São Paulo: Atlas, 1993, p. 113.
J a m es M ar in s - 7 8 7

Em realidade, condicionar-se a depósito o exercício da garantia consti­


tucional é quase como simplesmente reeditar-se veladamente, agora não mais
pela Administração, mas pelo Poder Judiciário, a regra solve et repete, que não
vem sendo acolhida por nossos tribunais, inadmitida que tem sido a exigência
de pagamento prévio de tributo ilegal e inconstitucional, para, ao depois, plei­
tear-se a restituição do pagamento indevido. A esse respeito, é de ser ressalta­
do o incisivo dizer de Ruy Barbosa Nogueira, in verbis: “(...) Como o CTN
proíbe o medieval sistema do solve et repete (art. 151, III), ele determina a
suspensão da exigibilidade para possibilitar a revisão ou a continuação da dis­
cussão do lançamento”21.
A seu tempo, este entendimento referente à incondicionalidade da limi­
nar em mandado de segurança foi exarado claramente pelos Ministros Eduar­
do Ribeiro, Carlos Mário Velloso e Antônio Pádua Ribeiro, em julgamento
de mandado segurança no extinto Tribunal Federal de Recursos22. Veja-se

21 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário, 9a ed. São fóulo: Saraiva, 1989, p. 342
(grifou-se). No sentido de que se condicionar a concessão de liminar em mandado de seguran­
ça significa retorno à regra do solve et repete, veja-se FIGUEIREDO, Lucia do Valle. O Devido
Processo Legal. Revista de Direito Tributário, 58/112.
22 "Voto - O Sr. Min. Eduardo Ribeiro: (...) No mérito, entendo deva ser deferida a segurança. Já
se reconheceu que concorrem os requisitos que devem conduzir à concessão da liminar. Se
assim é, constitui direito da parte o gozo dessa proteção. Não há motivo para que se imponha
a contracautela. Esta se me afigura possa ser determinada quando a liminar não fosse, em
verdade, uma imposição das circunstâncias. E, em lugar de simplesmente indeferi-la, é conce­
dida mas com a garantia. Se a parte, porém, faz jus à liminar, não há razão para impor-lhe o
depósito. (...) Voto - O Exmo. Sr. M in. Carlos M. Velloso (relator): (...) Sr. Presidente, o
mandado de segurança é requerido contra a decisão que concedeu a medida liminar condicio­
nada ao depósito do quantum objeto da causa. Todos sabemos, a Lei 1.533/51, art. 7o, II,
estabelece os pressupostos da medida liminar. Ocorrentes tais pressupostos, que se orientam
no rumo do fumus boni juris e do pericuium in mora, surge para a parte o direito subjetivo à
liminar. (...) De modo que, Sr. Presidente, não concordo com essa exigência que, além de
ilegal, é, também, inconstitucional. Inconstitucional, porque representa estorvo ao ajuizamento
da garantia constitucional do mandado de segurança. Amanhã, se alguém não tiver dinheiro
para depositar, não terá medida liminar. Vale dizer, a garantia constitucional do mandado de
segurança não será utilizada, porque deverá pagar para discutir. O indivíduo ficará, assim,
impedido de pedir a prestação jurisdicional através do writ o f mandamus." Esta decisão,
proferida por unanimidade de votos, deu-se no MS n° 119.422/SP, tendo votado com o relator
os Ministros Miguel Ferrante, Pedro Acioli Américo Luz, Antônio de Pádua Ribeiro, Geraldo
Sobral, Eduardo Ribeiro, limar Galvão e Hugo Machado. O lapidar acórdão em cujo corpo
encontram-se os votos acima mencionados, teve a seguinte ementa oficial, in verbis: "Manda­
do de Segurança - Ato Judicial - Cabimento - Decisão que defere Liminar Condicionada a
Depósito do Tributo Impugnado na Ação de Segurança: Decisão de que não cabe Recurso -
Cabimento do Mandado de Segurança para impugná-la. Lei 1.533/51, art. 5o, II. Medida
liminar. Pressupostos. Direito subjetivo. Lei 1.533/51, art. 7o, II. I. No processo do mandado
de segurança só é cabível agravo de instrumento da decisão que não recebe o recurso de
apelação; II. A decisão que defere liminar condicionada a depósito do tributo discutido na
ação de segurança pode ser impugnada através de mandado de segurança, por isso que
daquela decisão não cabe recurso. Lei 1.533/51, art. 5o, II; III. Ilegitimidade da exigência do
7 8 8 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

que no Tribunal Regional Federal da Ia Região, produziu-se rica jurispru­


dência a abonar este entendimento acerca da incondicionalidade da liminar
em mandado de segurança, conforme se observa de trecho do voto do emi­
nente Juiz Eustáquio Silveira: “Já está pacificado, nesta Egrégia 2a Seção, o
entendimento de que, em mandado de segurança, não é lícito ao julgador
condicionar a concessão da liminar ao depósito do valor discutido”23. Em voto
proferido no Mandado de Segurança n° 51.286 (Reg. n° 91.03.33333-7),
do Tribunal Regional Federal da 3a Região, a ilustre Magistrada, Dra. Lúcia
Figueiredo (que infelizmente não mais está entre nós), relacionou diversas
ementas a demonstrar o abono jurisprudencial de diversos tribunais (inclusive
do Superior Tribunal de Justiça)24, à incondicionalidade da liminar no man­
dado de segurança.

depósito do quantum do tributo impugnado na ação de segurança, desde que ocorrentes os


pressupostos da liminar. E que, ocorrentes ditos pressupostos, surge para o impetrante o direito
subjetivo à liminar. Lei 1.533/51, art. 7o, II; IV. Mandado de segurança conhecido e deferido.
MS 119.422/SP - 2a Seção - j. 7.6.88 - Rel. Min. Carlos Mário Velloso" (Cf. Revista d e D ireito
Tributário 47/259-267, que publicou a íntegra do acórdão com os comentários de Geraldo
Ataliba, aplaudindo o d ecisu m ).
23 TR F da 1a Região, MS n° 92.01.1 7450-0/M G, v.u., j. em 20 .1 0 .1 9 9 2 , D ]U 0 7 .1 2.19 92.
Também o mesmo Tribunal Regional Federal da 1a Região, por sua 2a Seção, prolatou julga­
mento por unanimidade de votos, que teve como relator o ilustre Juiz Leite Soares, com a
seguinte ementa: "Tributário - Mandado de Segurança - Liminar - Concessão Condicionada
ao Depósito do Valor em Discussão. Ilegalidade. 1. O art. 151, do CTN assegura a suspensão
da exigibilidade de crédito fiscal em face de depósito integral do montante em discussão ou
pela concessão lim inar em mandado de segurança, mostrando-se descabida a exigência
acautelatória, como condição de deferimento desta medida. 2. Mandado de segurança conce­
dido." (TRF da 1a Região, MS n° 92.01.12909-2/MG, v.u., j. em 25.08.1992, D JU 03.09.1992)
24 São as seguintes as ementas do Superior Tribunal de Justiça: "Processo Civil - Mandado de
Segurança - Concessão de Liminar Condicionada a Depósito do Valor do Tributo Questiona­
do. A decisão que defere liminar condicionada a depósito do tributo discutido na ação de
segurança pode ser impugnada através de Mandado de Segurança, por isso que dela não cabe
recurso. De outro lado, verificando-se os pressupostos previstos no art. 7o inciso II, da Lei
1.533/51, a concessão da liminar é obrigatória, e não pode depender de qualquer condição.
Recurso provido." (ROMS n° 273/SP, 1o Turma, v.u., Rel. Ministro Armando Rolemberg, RSTJ
15/175, DJ 05.11.1990, p. 12.416); "Processo Civil - Mandado de Segurança - Concessão de
Medida Liminar Condicionada a Prestação de Garantia. É cabível mandado de segurança
contra ato judicial que nega medida liminar em outra segurança. Por ser garantia especial, a
caução só se justifica em circunstâncias especialíssimas. De outra parte, verificando-se os
pressupostos contidos no art. 7°, inciso II, da Lei de regência, a concessão da liminar é
imperativa, independente de qualquer condição. Recurso provido." (ROMS n° 340/SP, 1a
Turma, por maioria, Rel. Ministro José de Jesus, STJ, j. em 22.04.1992, D J 03.061991, p.
7.475, RSTJ 26/204); "Processual Civil - Mandado de Segurança - Liminar - Exigência de
Caução - Lei n° 1.533, art, 7o, II. Verificados os pressupostos inscritos no art. 7o da Lei n°
1.533/51 impõe-se ao Juiz conceder a liminar. Não é lícito - salvo em casos expressamente
previstos em lei - subordinar a eficácia da medida liminar em mandado de segurança, à
prestação de caução." (ROMS n° 561/90/SP, 1a Turma, v.u., Rel. Ministro Gomes de Barros, STJ,
julgado em 27.05.1992, D J 29 .06,1992, p. 10.261); "Recurso Ordinário em Mandado de
Segurança. Liminar. Exigência de Depósito como Condicionante de Eficácia da Medida.
James M a rin s - 789

Anna Maria Pimentel, igualmente com a autoridade de renomada ma­


gistrada, também expressa seu entendimento neste preciso caminho: “Não
admito que havendo previsão legal dispondo sobre o depósito e havendo outra
previsão dispondo sobre a concessão de liminar em mandado de segurança e
essa concessão de liminar em mandado de segurança está estreitada com a
previsão de como esta liminar deve ser concedida, eu hoje inadmito que sepossa
exigir depósito ou cauçãopara se conceder liminar em mandado de segurança. Final­
mente, em relação à caução não há previsão, ela sequer é causa de suspensão do
crédito tributário”25.
Lucia Figueiredo fechou esta questão lembrando-nos que: "... a linha
vetora da interpretação há de ser sempre no sentido que o mandado de segu­
rança é proteção constitucional e, de conseguinte, só pode encontrar peias e
amarras no próprio texto constitucional”26.

4. A FALSA "CONSOLIDAÇÃO JURISPRUDENCIAL" SOBRE A


CONTRACAUTELARIDADE QUE SUPORTA A EXPOSIÇÃO DE
m o t iv o s da A d v o c a c ia G era l da U n iã o e d o

M in is t é r io da Ju s t iç a

Teria havido retrocesso jurisprudencial? Estaria “consolidada” a juris­


prudência que recebe acriticamente a contracautelaridade no writ? Felizmen­
te não. Ao contrário do que quiseram fazer crer os autores da Lei 12.016/
2009 em sua exposição de motivos27, o dispositivo que prevê a contracautela,

Ilegalidade. Precedentes. 1. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança contra v. Acórdão


segundo o qual não se reveste de teratológica ou ilegal a decisão que deferir liminar em ação
mandamental condicionada a depósito do valor do tributo discutido. 2. Presentes os pressu­
postos legais para a concessão da liminar, a mesma deve ser concedida in continenti, não
devendo ser condicionada a depósito por parte do impetrante. 3. O mandamus não pode estar
sujeito a qualquer exigência de prévio pagamento. Precedentes da Corte Superior. 4. Recurso
provido." (Acórdão unânime da 1a Turma do Superior Tribunal de Justiça, Recurso Ordinário
em MS n° 12.454/SP, Rel. Ministro José Delgado, j. em 15.08.2002, D jU 1 30.09.2002, p.
157. Revista Dialética de Direito Tributário, 87/232).
25 PIMENTEL, Anna Maria. Concessão de Liminar - Depósito ou Caução (conferência proferida
em curso promovido pelo Idepe e pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região entre os dias 25
e 28 de novembro de 1991. Revista de Direito Tributário 58/101 - grifamos).
26 FIGUEIREDO, Lucia Valle. A Liminar no Mandado de Segurança. Revista de Direito Público 74/230.
27 Conforme a exposição de motivos E.M .I. n5 00006 - AGUIM J de 16 de abril de 2001,
subscrita pelo então Advogado Geral da União Gilmar Ferreira Mendes e pelo Ministro de
Estado da Justiça José Gregori: "Em princípio, foram mantidas a redação e a sistemática das
regras vigentes, a fim de evitar divergências de interpretação em matérias sobre as quais a
jurisprudência já se consolidou."
7 9 0 - P r o t e ç ã o d e D ireito s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

não está ajustado com a jurisprudência. Pela incondicionalidade da liminar na


ação mandamental encontram-se recentes acórdãos, inclusive do TRF da 3a
Região (o maior Tribunal Federal do País), que expressam que “o mandado de
segurança é ação de índole constitucional que tem por fim a proteção do
direito líquido e certo do impetrante, apresentando caráter de incondicionali­
dade” de modo que “presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, deve o
juiz conceder a liminar, independentemente de caução”28. Assim também o
STJ apresenta sólida corrente jurisprudencial assentada na inteligência de que
uma vez “presentes os pressupostos legais para a concessão da liminar, a mes­
ma deve ser concedida in continenti, não devendo ser condicionada a depósito
por parte do impetrante” pois “o mandamus não pode estar sujeito a qualquer
exigência de prévio pagamento”29.
Como destaque desta lúcida corrente que prestigia a integridade constitu­
cional do mandado de segurança, merece ser transcrita a seguinte ementa, da
lavra da Min. Eliana Calmon: “PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO -
MANDADO DE SEGURANÇA - CONCESSÃO DE LIMINAR CON­
DICIONADA A DEPÓSITO PARA FINS DE SUSPENSÃO DA EXI­
GIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. 1. Existentes os pressupostos
para concessão de liminar em mandado de segurança, deve a mesma ser conce­
dida para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos
do art. 151, IV do CTN, independentemente de depósito no montante inte­
gral. Precedentes desta Corte. 2. Recurso especial provido”30. Esta ementa está
alinhada com múltiplos precedentes do STJ que, durante mais de três lustros,
proscreveram a condicionalidade da liminar em mandado de segurança31.

28 Al 200103000329073, JUIZA CECÍLIA MARCONDES, TRF3 - TERCEIRA TURM A, 18/08/2004,


29 RMS 12.454/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELG AD O , PRIMEIRA TURM A, julgado em 15/08/2002,
DJ 30/09/2002 p. 157.
30 REsp 222.838/SP, Rel. Ministra ELIANA CALM O N , SEGUN DA TU RM A, julgado em 13/11/
2001, DJ 18/02/2002 p. 289.
31 CONSTITUCIO N AL. M AN DADO DE SEGURANÇA. M EDIDA LIMINAR. M AN DADO DE SE­
GURAN ÇA PRESSUPÕE DIREITO LIQ U ID O , CERTO E INDISCUTÍVEL, AFLORAN DO A PRI­
MEIRA VISTA. SE O DIREITO SE APRESENTA DESSA FORMA, DEVE O JUIZ, SE PLEITEADA,
CONCEDER A CAUTELAR SEM CONTRACAUTELA, PORQUE AO FINAL, EM TESE, A SEGU­
RANÇA DEVERA SER CO N C ED ID A. A EXIGENCIA DE CO N TRACAU TELA EM M AN DADO
DE SEGURANÇA PARA CONCESSÃO DE LIMINAR NÃO SE AJUSTA A INDOLE DESSA AÇÃO
DE NATUREZA CO N STITUCIO N AL. RECURSO PRO VIDO POR MAIORIA.(RMS.324/SP, Rel.
Ministro AN TÔ N IO DE PÁDUA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro JOSE DE JESUS FILHO,
SEG U N D A TU RM A , julgado em 18/08/1993, DJ 22/11/1993 p. 24922); M AN D AD O DE
SEGURAN ÇA - EXIGENCIA DE C O N TRACAU TELA CO M O C O N D IÇ ÃO DA EFICACIA DE
J am es M a r in s - 7 9 1

Por fim, outra importante vertente de raciocínio refere-se ao princípio


da igualdade. Estabelecer obstáculo material ao exercício de um remédio cons­
titucional, além de passar ao largo do princípio da isonomia, atenta direta­
mente contra o princípio do acesso à justiça e da universalidade da jurisdição.
O tópico - isonomia—tampouco é novo. Geraldo Ataliba levantou a questão
do princípio da isonomia no tema dos depósitos judiciais: “A Professora Anna
Maria Pimentel, cuidando das liminares, demonstrou que obter liminar é um
direito público subjetivo da pessoa que se encontre nas condições constitucional­
mente previstas e legalmente qualificadas. Acrescento o seguinte comentário:
exigir depósito quando o depósito é uma faculdade da parte, exclusivamente de
interesse da parte, do impetrante, daquele que pede a cautelar, viola, entre ou­

LIM INAR - LEI N° 1.533/51 (ART. 7, II). 1. PRESENTES OS REQUISITOS NECESSÁRIOS A


LIMINAR (ART. 7, II, LEI N° 1.533/51) DE REGRA, OS SEUS EFEITOS IMEDIATOS E IMPERATI­
VOS NÃO PODEM SER OBSTADOS PELA CONTRACAUTELA, EXIGIDA COM O CON DIÇÃO
PARA GARANTIA DE INDOLE CO N STITUCIO N AL. 2. MULTIPLICIDADE DE PRECEDENTES.
3. RECURSOS IMPROVIDOS. (REsp 48.499/SP, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEI­
RA TURM A, julgado em 09/08/1995, DJ 11/09/1995 p. 28794); C O N STITUCIO N AL. MAN­
D AD O DE SEG U RAN ÇA. M ED ID A LIM INAR. M AN D AD O DE SEG U RAN Ç A PRESSUPÕE
DIREITO LIQ UIDO , CERTO E INDISCUTÍVEL, AFLORANDO A PRIMEIRA VISTA. SE O DIREI­
TO SE APRESENTA DESSA FORMA, DEVE O JUIZ, SE PLEITEADA, CONCEDER A CAUTELAR
SEM C O N TR A C A U TE LA , PO R Q U E A O FIN A L, EM TESE, A SEG U R A N Ç A DEVERA SER
C O N CED ID A.A EXIGENCIA DE CONTRACAUTELA EM M ANDADO DE SEGURANÇA PARA
CONCESSÃO DE LIMINAR NÃO SE AJUSTA A INDOLE DESSA AÇÃO DE NATUREZA CONS­
TITU C IO N A L. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (RMS 7.055/ES, Rel. Ministro JOSE DE
JESUS FILHO, PRIMEIRA TURM A, julgado em 17/06/1997, DJ 13/10/1997 p. 51520); MAN­
DAD O DE SEGURAN ÇA. CONCESSÃO DE LIMINAR. SUBO RDINAÇÃO DA EFICACIA DA
M EDIDA A PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO . INADM ISSIBILIDADE. M AIO RIA. VO TO VEN CID O .
DESDE Q UE SATISFEITOS OS PRESSUPOSTOS ESSENCIAIS E UMA VEZ CON CEDIDA, POR
ISSO, A LIM IN AR, NÃO E LIC ITO SU BO R D IN A R A EFICACIA D A M ED ID A A O UTRAS
C O N D IÇ Õ ES. (REsp 79.197/CE, Rel. Ministro AN TÔ N IO DE PÁDUA RIBEIRO, SEGUN DA
TURM A, julgado em 02/10/1997, DJ 03/11/1997 p. 56271); PROCESSUAL CIVIL - MANDA­
DO DE SEGURANÇA - LIMINAR CO N CED IDA - PRESSUPOSTOS PRESENTES - C O N DICIO ­
NAMENTO - PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - PRECEDENTES - TRIBUNAL
RECORRIDO - "ERROR IN PROCEDENDO" - JULGAM ENTO "EXTRA PETITA". 1. E DEFESO
A O TR IB U N A L RECO RRIDO PROFERIR DECISÃO FO RA D O PEDIDO FO RM U LA D O NA
INICIAL DO "MANDAMUS". 2. RECONHECIDOS OS PRESSUPOSTOS DO ART. 7, II DA LEI
N° 1.533/51, AFIGURA-SE PROCEDIMENTO INCOMPATÍVEL COM O PROPRIO INSTITUTO
DO M ANDADO DE SEGURANÇA, A VIN CULAÇÃO DA LIMINAR CO N CED ID A A PRESTA­
ÇÃO DE CON TRACAUTELA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. 3. RECURSO ORDINÁRIO
C O N H ECID O E PRO VIDO PARA CON CEDER A SEGURAN ÇA NOS TERMOS DO PEDIDO.
D ECISÃ O UN AN IM E. (RMS 8.652/SP, Rel. Ministro D EM Ó C RITO REIN ALD O , PRIMEIRA
TU RM A, julgado em 01/12/1997, DJ 16/02/1998 p. 28); EM BARGOS DE D IV ERG ÊN CIA .
MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SATISFAÇÃO DOS REQUISITOS LEGAIS EXIGIDOS.
CONCESSÃO, INDEPENDENTE DE CON DIÇÕ ES. VO TO S VENCIDOS. Satisfeitos os pressu­
postos essenciais, pela presença dos requisitos exigidos, a liminar é de ser, normalmente,
concedida, independente de condições ou novas exigências. Não conhecimento dos embar­
gos. (EREsp 90.225/DF, Rel. MIN. HELIO MOSIMANN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/11/
1998, DJ 14/12/1998 p. 86).
7 9 2 - P r o t e ç ã o d e D ir eit o s F u n d a m en t a is e o P a r a d o x o d a C o n t r a c a u t e l a r id a d e .

tros princípios constitucionais graves o princípio da igualdade, porque só as


empresas ou pessoas muito abonadas é que podem tranquilamente fazer depó­
sitos ou oferecer fiança bancária, e quem sendopobre ou estando em dificuldades não
pode oferecer o depósito, não terá direito a ver aproteção constitucional estendida ao seu
direito. Bastaria, a meu ver, esta consideração para evidenciar o despropósito do
condicionamento da concessão liminar a um depósito”32. Há que se reconhecer
que a natureza econômica do argumento é forte.
Sob esse prisma, o “princípio do acesso à justiça” deve ser vislumbra­
do não apenas como uma meta ideal e inalcançável de modelo de prestação
da tutela jurisdicional. É imperativo que se busque a “efetividade” do di­
reito subjetivo do cidadão através de instrumentos processuais, especial­
mente aqueles de estatura constitucional como o mandado de segurança,
sobretudo porque será precisamente por intermédio do processo que as
aspirações resistidas do cidadão, protegidas pela ordem jurídica, alcança­
rão o seu destinatário. Conforme ensina Arruda Alvim, em termos proces­
suais, a palavra “efetividade” alcança uma conotação principalmente
sociológica e não meramente jurídico-formal, mas no sentido de que: “o
que conta, em última análise, não é tanto a existência de uma normativi-
dade completa e lógica, em que todos os direitos são protegidos pela letra
da lei e pelo sistema, mas, tão somente aparentemente funcional, pois na
verdade, normatividade jurídica, ainda que exaustiva, não é suficiente para
satisfazer às aspirações sociais dos segmentos numericamente predomi­
nantes e desprotegidos da sociedade”33. O que a lei não pode proibir —
concessão de liminar em matéria tributária - não pode ser logrado por
forma oblíqua, com a trivialização da imposição de óbices materiais para o
exercício de direitos fundamentais.

32 ATALIBA, Geraldo. Concessão de Liminar - Depósito (conferência proferida em curso promovi­


do pelo Idepe e pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região entre os dias 25 e 28 de novembro
de 1991. Revista de Direito Tributário 58/118 - grifamos).
33 ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual Civil, vol. 1. São Paulo: RT, 1990, p. 33.
J am es M a r in s - 7 9 3

5 . C o n c lu sã o : o Estad o - q u a n d o dem ocrático -


DEVE ACAUTELAR O CIDADÃO E NÃO SER
CONTRACAUTELADO PELO INDIVÍDUO SOB PENA DE
INTOLERÁVEL RETROCESSO ÀS PRÁTICAS TOTALITÁRIAS DO
" E stad o N o v o " e do C ó d ig o d e 1 9 3 9

Diante da variedade argumentativa - histórica, constitucional, doutriná­


ria, jurisprudencial - o esforço hermenêutico não pode se furtar à seguinte ques­
tão: como pode o legislador ou o juiz, em ação que é a um só tempo, remédio
processual e garantia constitucional de direitos fundamentais, estabelecer con­
tracautela econômica? Não pode, na exata medida em que o estreitamento da
ação constitucional representa, por insidiosa forma oblíqua, estreitamento de
garantia fundamental e a supressão - pela imposição paradoxal de obstáculo
econômico - da proteção do direito in natura via writ of mandamus.
O óbice material à concessão da medida liminar, no bojo de mandado de
segurança, se constitui em desalentador mecanismo de redução da efetividade
sociológica do instrumento constitucional; negação velada do Direito, inver­
são teleológica e paradigmática da ordem constitucional, na qual o Estado -
quando democrático - deve acautelar o cidadão e não ser contracautelado pelo
indivíduo. No terreno do writ constitucional, a autoridade ou o agente coator
não podem invocar “direito subjetivo” à contracautela - o rol do art. 5o, da
CF/1988, não foi intangivelmente insculpido, como favor para o Estado, mas
como amparo ao indivíduo. Se assim não for, estaremos admitindo intolerável
retrocesso, volta ao passado, à “Carta” de 1937, ao Código de Processo Civil de
1939, quando os tristes artífices do fascismo, no “Estado Novo”, introduzi­
ram a proibição de concessão de medidas liminares em matéria tributária.
j

I
!

i
Amplo Controle da
Legalidade na Inscrição
da Dívida Ativa

Marciane Zaro Dias Martins


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará
Procuradora da Fazenda Nacional
M a r c ia n e Z a r o D ias M a r t in s - 7 9 7

1. I n t r o d u ç ã o
Inúmeros são os processos administrativos fiscais enviados para inscrição
em Dívida Ativa com vícios que podem e devem ser examinados, reconheci­
dos e anulados pela autoridade que autoriza a inscrição, conforme preceitua o
art. 2o, § 3o da Lei n° 6.830/80, que diz se constituir a inscrição de ato de
controle administrativo de legalidade.
A questão está em saber quais os limites deste controle administrativo da
legalidade a serem observados pela autoridade responsável pela inscrição. É
possível o exame pela autoridade responsável pela inscrição do lançamento
efetivado pela autoridade lançadora?
A inscrição é o ato culminante na constituição da dívida ativa. É feita em
registro próprio, isto é, em assentamento existente exclusivamente para esse
fim. Daí o porquê de Luciano Benévolo de Andrade ter estabelecido, como
pressupostos da inscrição, os seguintes requisitos: “a) tratar-se de crédito da
Fazenda Pública ou pessoa a ela equiparada; b) não ter sido pago,
espontaneamente, no vencimento; c) haver sido objeto de exame, pelo órgão
competente, quanto à legitimidade da obrigação”1.
O crédito recebido pelo órgão responsável pela inscrição deve,
necessariamente, ser de titularidade do ente ao qual está subordinado, assim,
por exemplo, a Procuradoria da Fazenda Nacional não poderá inscrever em
dívida ativa da União créditos de titularidade das autarquias a ela vinculadas,
que têm personalidade jurídica própria, ou créditos de Estado-membro. O
crédito enviado para inscrição deve, também, ser exigível, ou seja, que tenham
sido esgotados todos os prazos de pagamento.
O Procurador, no âmbito federal, ou a autoridade designada pela lei
estadual nos Estados-membros e lei municipal nos Municípios, antes de
autorizar o ato de inscrição, deverá examinar o processo administrativo rece­
bido, para verificação da regularidade formal e material do processo, impe­
dindo que inscrição indevida seja realizada. Trata-se de um controle
administrativo perpetrado pela Administração, como forma de autocontro­
le de seus atos.

1 ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição. In: Revista de direito tributário, n° 57.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 130.
7 9 8 - A m p l o C o n t r o l e d a L e g a l id a d e n a I n s c r iç ã o d a D ív id a A tiv a

Para que o débito seja inscrito em dívida ativa, deverá, necessariamente,


se submeter a um controle prévio realizado pela autoridade responsável pela
inscrição. Assim, pretendemos no presente trabalho discutir os limites em
que este controle pode ser exercido pelo órgão responsável pela inscrição, já
que este débito chega para inscrição após um processo administrativo onde
pode ter havido contraditório e julgamento administrativo.

2 . C o n t r o l e a d m in is t r a t iv o

Um dos princípios basilares que devem ser observados na atividade ad­


ministrativa do Poder Público é o princípio da legalidade. Toda atividade
administrativa está limitada pela Lei. O administrador público somente po­
derá agir quando permitido e nos limites estabelecidos pela ordem jurídica.
Assim, por ser a Administração Pública falível é necessário que haja um
controle para que os desígnios da Lei sejam observados. Este controle tem
dupla finalidade: atende aos interesses do cidadão como garantia deste, e atende
aos interesses do próprio Estado na medida em que garante o cumprimento
de suas finalidades e respeito às normas que o regulam.
Segundo o conceito de Hely Lopes Meirelles2, “controle é a faculdade
de vigilância, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade da
administração exerce sobre a conduta funcional de outro”, visando manter as
próprias atividades dentro da lei.
Assim, dependendo do prisma pelo qual se examine, o controle da legali­
dade exercido pela Procuradoria, quando da inscrição do débito em dívida ativa,
poderá ser visto como controle prévio ou controle conseqüente (ou corretivo).
Será controleprévio, se olharmos pelo prisma do ato de inscrição como necessário
para a elaboração do título executivo e ajuizamento da execução fiscal, posto
que eventual nulidade poderá ser sanada previamente. Será subsequente ou
corretivo, se visto este controle como último exame feito pela administração
quanto à constituição do crédito, antes da inscrição do débito em dívida ativa.
A própria lei que instituiu o controle prévio anterior à inscrição o classi­
ficou como controle de legalidade, com a função de verificação de conforma­

2 M EIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25a ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 610-615.
M a r c ia n e Z a r o D ias M a r t in s - 7 9 9

ção dos atos praticados anteriormente com as normas legais vigentes. O con­
trole da legalidade pode ser exercido pela própria administração, pelo legisla­
tivo e pelo judiciário.
O controle administrativo deriva do dever-poder de autocontrole3 que a
Administração tem sobre seus próprios atos e agentes.
A finalidade principal do controle administrativo, segundo Goodnow, é
obter a harmonia e uniformidade da ação administrativa, a eficácia nos serviços
administrativos e a retidão e competência dos funcionários administrativos4.
O controle administrativo, segundo Seabra Fagundes, “é um autocon­
trole dentro da Administração Pública. Tem por objetivo corrigir os defeitos
de funcionamento interno do organismo administrativo, aperfeiçoando-o no
interesse geral, e ensejar reparação a direitos ou interesses individuais, que
possam ter sido denegados ou preteridos em conseqüência de erro ou omissão
na aplicação da lei”5. Sem dúvida que o controle prévio de legalidade a ser
exercido pelo Procurador, antes da autorização para a inscrição de débito em
dívida ativa, se enquadra no conceito estabelecido por Seabra Fagundes para
controle administrativo.
2 .1 . C o n tro le como proteção ao cidadão

O controle da legalidade prévio à inscrição, além de autocontrole admi­


nistrativo, também se constitui em mais um instrumento de garantia da Cons­
tituição, uma salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão anterior ao
processo de execução forçada, pois o exercício de verificação do cumprimento
dos requisitos legais necessários demonstrará que o título que ampara a exe­
cução está em conformidade com a lei.
Ultrapassado todo o processo administrativo de lançamento e contraditório
administrativo, não sendo pago o crédito dele decorrente, não será efetuada a
inscrição e cobrança de forma açodada, pois a execução forçada deste débito

3 Autotutela, autotutela vinculada e autocontrole. M ACH AD O SE C U N D O , Hugo de Brito.


Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 24. (Nota de rodapé 12).
4 GO ODNOW , Frank J. Les principes du droit administratif des États Unis. Edição Giard et Brière.
Apud FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 2a ed.
Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1950, p. 124.
5 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 2a ed. Rio de
Janeiro: José Konfino Editor, 1950, p. 124.
8 0 0 - A m p l o C o n t r o l e d a L e g a l id a d e n a I n s c r iç ã o d a D ív id a A tiv a

somente se dará após cumpridos requisitos legais preestabelecidos, um deles


de controle prévio da legalidade, anterior ao ato de inscrição, em que se fará
um exame do cumprimento da lei nos atos realizados.
Significa dizer que o controle da legalidade se constitui em mais uma
garantia dentre os direitos fundamentais dos contribuintes, pois se reveste em
um filtro de legalidade, cuja insuficiência determina a não inscrição e, conse­
quentemente, a impossibilidade de execução forçada.
A concepção de que o controle da legalidade se constituiria em uma
garantia a mais para o devedor, que terá sua relação jurídica obrigacional exa­
minada por autoridade devidamente qualificada, foi a justificativa do Depu­
tado Adroaldo Campos ao apresentar a Emenda n° 06 ao projeto de lei que
resultou na Lei 6.830/80, assim disposta:
Justifica-se o acréscimo da oração que se constitui no ato de controle admi­
nistrativo da legalidade, como instrumento de defesa não só do crédito da
Fazenda Pública, como, primacialmente, de defesa do próprio devedor,
vez que o patrimônio executável pressupõe o resguardo constitucional do
direito à propriedade, tomada esta, na acepção consagrada na doutrina e
najurisprudência, como direito econômico, isto é, patrimonial, direito fun­
damental de não ser alguém despojado do seu patrimônio.6
A inscrição de débito em Dívida Ativa deve sempre ocorrer sob o crivo
deste controle prévio, uma vez que há determinação legal expressa exigindo-o.
Antes do ato de inscrição a autoridade competente deve examinar o processo,
de forma que o contribuinte não corra riscos de sofrer inscrição e execução
forçada de qualquer débito erroneamente enviado para cobrança executiva.
2.2. A u to co n tro le adm inistrativo no ato de inscrição
Segundo Rômulo Maya, “o controle da legalidade do crédito público é o
procedimento administrativo pelo qual a autoridade competente examina o
processo relativo ao crédito da Fazenda Pública, e depois de verificar a inexis­
tência de falhas ou irregularidades que possam invalidar a execução judicial,
manda proceder à inscrição no registro próprio”7.

6 Apud ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição, in: Revista de direito tributário, n°
57. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 132.
7 MAYA, Rômulo. Dívida ativa tributária. In: Revista de direito tributário, n° 41. São fóulo: Revista
dos Tribunais, jul./set. 1987, p. 133.
M a r c ia n e Z a r o D ia s M a r t in s - 8 0 1

A norma legal determina que a inscrição se constitui em ato de controle


administrativo de legalidade8. Tal controle deverá ser exercido por autoridade
designada, no caso da União, pela Procuradoria da Fazenda Nacional e nos
Estados e Municípios, geralmente, por Procuradorias estaduais e municipais.
O controle dos créditos públicos é exercido por duas autoridades dis­
tintas: (i) a autoridade que fiscaliza e lança tributos, ou responsável pelo
acompanhamento do cumprimento da lei e contratos (nos créditos não
tributários), que controla os créditos desde seu nascedouro até esgotado o
prazo para pagamento na esfera administrativa; e (ii) a autoridade que ins­
creve o débito em dívida ativa, elabora o título executivo, dá início e acom­
panha o processo executivo fiscal.
Entre as duas autoridades envolvidas na cobrança do crédito tributário e
não tributário não há vínculo de subordinação. Por isto não podemos falar em
controle hierárquico, exercido por órgão superior sobre atividades de órgãos
inferiores. Os dois órgãos envolvidos estão em igualdade de posição dentro da
estrutura do mesmo Ministério (ou Secretaria) da Fazenda, já que ambas são
hierarquicamente subordinadas ao Ministro (ou Secretário) da Fazenda. Apesar
de não ser controle hierárquico, se trata de controle interno, já que realizado
dentro da Administração e por órgão a ela vinculado.
Luciano Benévolo Andrade9caracteriza o controle exercido quando da
inscrição do débito em dívida ativa como controle para-hierárquico, esclare­
cendo que “o controle para-hierárquico funda-se na necessidade de submeter
determinadas atividades administrativas a um controle mais tecnicamente efe­
tivo” e o suporte desta autoridade dimana da objetividade da lei.
O controle administrativo da legalidade da dívida ativa da Fazenda Pú­
blica, para Bernardo Ribeiro de Moraes, tem dupla finalidade: a) de um lado,
evitar a propositura, pela Fazenda Pública, de ações de execução que possam
ser infirmadas na justiça; b) de outro, protege os direitos individuais contra
cobranças indevidas10.
O controle da legalidade exercido pelo Procurador, quando da inscrição
de débitos em dívida ativa, é mais um dos freios da Administração em contro­

8 Art. 2o, § 3o, da Lei n° 6.830/80.


9 ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição. In: Revista de direito tributário, n° 57.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 134-135.
10 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Dívida ativa. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 68.
8 0 2 - A m p lo C o n t r o l e d a L e g a l id a d e n a I n s c r iç ã o d a D ív id a A t iv a

lar seus próprios atos, e segurança de que os atos administrativos podem ser
revistos e anulados pela própria Administração. Sendo um profissional do
direito que examina o processo administrativo recebido para inscrição, profis­
sional com conhecimento jurídico acostumado com as lides jurídicas e com­
preensão das normas legais, o controle da legalidade será mais apurado e efetivo.
A eficácia da Administração e o exercício do poder de tributar e coagir (apli­
cação de sanção pelo descumprimento de conduta), deve ser exercido sempre
visando afastar exigências descabidas e ilegais. A concepção deste controle da
legalidade, efetivado por um profissional de direito, incute segurança e garan­
tia ao cumprimento do princípio da legalidade.
A autorização para a inscrição de débito em dívida ativa deve ser atri­
buída a pessoa que tenha condições de representar o Estado, na atividade de
atestar a certeza de sua dívida, da qual depende a inscrição. Somente pessoa
com conhecimento jurídico é que pode ter as atribuições de certificar a
liquidez e certeza de sua dívida, porquanto forma o título executivo. Como
diz Bernardo Ribeiro de Moraes, “apurar a liquidez e certeza da dívida ati­
va, examinando prazos legais, verificando a correta aplicação da lei, para
poder ordenar a inscrição respectiva, não é tarefa simples e nem sem relevân­
cia jurídica alguma”11.
Pelo contrário, como diz Luiz Rafael Mayer, “na atividade certificativa
com relação à dívida ativa se acha um dos desempenhos mais característicos da
atuação especificamente administrativa a ser exercida privativamente do Pro­
curador da Fazenda Nacional, como detentor de parcela do poder do Estado
e, pois, formador do título executivo”12.
Percebemos que a norma legal, ao estabelecer verificação posterior à cons­
tituição da dívida e prévia à execução forçada e imputar esta verificação a um
profissional especializado nas lides do direito, pretendeu reprimir a execução
forçada de créditos inexistentes ou eivados de nulidades. Este controle não é
criação dos tempos modernos, mas vem de longa data13, em que cabia ao

11 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Dívida ativa. São Pauio: Quartier Latin, 2004, p. 64.
12 MAYER, Luiz Rafael, Parecer L-090. Consultoria Geral da União. Brasília. 1977, p. 231, Apud
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Dívida ativa. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 65.
13 Dizia o Art. 3o das Instruções Gerais do Contencioso, de 1851: "Os procuradores, logo que
recebam as contas-correntes e as certidões dos devedores da Fazenda Nacional cuidadosamente
examinarão se as contas e certidões estarão passadas com todas as formalidades legais para
poderem ser ajuizadas apresentando ao Tesouro as dúvidas que lhe oferecem". Apud LOUREIRO,
M a r c ía n e Z a r o D ias M a r t in s - 8 0 3

procurador examinar os débitos que lhe eram encaminhados para, somente


após este exame, proceder a inscrição em dívida ativa, extraindo o título exe­
cutivo e propondo execução fiscal.
O controle da legalidade é um filtro que a Administração criou para não
ingressar com execuções fiscais indevidas; resta saber quais os limites desta
atuação e quais as formas para correção de eventuais erros.

3 . E f e it o s d o c o n t r o l e d a l e g a l id a d e

O controle da legalidade pode ter dois efeitos mutuamente excludentes. O


primeiro será quando o órgão responsável, no exame do processo, verificar sua
correção e autorizar a inscrição do débito em dívida ativa. O segundo, ao contrá­
rio, quando o exame demonstrar irregularidades, nulidades, insuficiências no
respeito à legalidade, não autorizar a inscrição do débito, restituindo o processo
ao órgão lançador para correções ou, não sendo possível esta, que a autoridade
lançadora tome providências para apuração de eventuais responsabilidades.
Ultrapassado o exame da legalidade sem que seja encontrado qualquer
vício a inquinar de nulidade a inscrição e, posteriormente, a execução fiscal, o
Procurador autorizará a inscrição do débito em dívida ativa. Entretanto, a
verificação de nulidades, no curso do processo administrativo, determinará
que o Procurador não autorize a inscrição e restitua o processo administrativo
ao órgão de origem para que este, sempre que possível e havendo prazo para
tanto, possa corrigir as falhas apontadas por despacho fundamentado.
A atividade do Procurador não é apenas de poder, mas, sim, de dever-poder.
Sempre que for identificado vício no processo, não poderá o Procurador determi­
nar que se proceda à inscrição do débito. Trata-se de atividade vinculada, posto
que ao Procurador não compete decidir discricionariamente se inscreve ou não,
constatada a irregularidade. Verificando a ocorrência de nulidade, não poderá au­
torizar a inscrição.
Como diz Hely Lopes Meirelles14, “os poderes e deveres do administra­
dor público são expressos em lei, os impostos pela moral administrativa e os

Raul R. O processo executivo fiscal: no direito constituído e constituendo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1961, p. 404.
14 M EIRELLES, Hely Lopes. D ireito administrativo brasileiro. 25a ed. São Paulo: M alheiros,
2000, p. 96-98.
8 0 4 - A m p l o C o n t r o l e d a L e g a l id a d e n a I n s c r iç ã o d a D ív id a A tiv a

exigidos pelo interesse da coletividade”. Assim, “o poder tem para o agente


público o significado de dever para com a comunidade e para com os indiví­
duos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-
lo”. Desta forma, “pouca ou nenhuma liberdade sobra ao administrador público
para deixar de praticar atos de sua competência legal. A omissão da autorida­
de ou o silêncio da Administração, quando deva agir ou manifestar-se, gera
responsabilidade para o agente omisso”.
Assim, o Procurador, verificando a ausência de notificação do contribuinte
da lavratura do auto de infração, erro de conversão de moeda, erro na identifica­
ção do contribuinte e outros vícios que veremos no item 4, deverá negar autori­
zação para inscrição do débito em dívida ativa.
O fundamento, tanto para a autorização, quanto para o impedimento do
ato de inscrição, está nos princípios da legalidade, da eficiência, da moralida­
de, da verdade material e economia processual.
3 . 1 . Princípios inform adores da atividade de co n tro le

Estabelecemos cinco princípios informadores da atividade de controle exer­


cida pelo órgão responsável pela inscrição: três estão expressos na Constituição
Federal de 1988 —a legalidade, a eficiência e a moralidade; o quarto é princípio de
processo civil. A economia processual é perfeitamente aplicável ao caso e evita a
prática de atos eivados de vícios. O quinto é princípio informador do processo
administrativo tributário, quando a autoridade lançadora busca a verdade real
no lançamento, aplicável também nesta fase pré-executiva do crédito.
O primeiro é o princípio da legalidade, constitucionalmente previsto. É
um dos sustentáculos fundamentais do Estado de Direito e é aplicado inte­
gralmente à Administração, que somente pode agir na forma autorizada pela
lei, já que esta é criada pela Constituição e pelas normas legais deve pautar
suas ações. A lei é instrumento de atuação e aplicação do ordenamento jurídi­
co. À Administração Pública somente é permitido fazer o que a lei autoriza e,
como diz Alexandre de Moraes, “a função administrativa, de executor do di­
reito, atua sem finalidade própria, mas sim em respeito à finalidade imposta
pela lei, e com a necessidade de preservar-se a ordem jurídica”15. Assim, a

15 MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 311.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 805

relação jurídico-tributária é sempre conseqüência da vontade da lei, estando


totalmente submetida a ela.
A atividade de controle, como diz Mary Elbe Gomes Queiroz Maia,
“tem como objetivo a análise da legalidade do ato administrativo. A verdadei­
ra finalidade a que se destina o controle é a restauração da ordem jurídica
violada, e não apenas a salvaguarda do direito subjetivo”16.
A finalidade do princípio da legalidade é preservar a aplicação do sistema
jurídico tributário; por isto, a lei estabelece como a Administração deve proce­
der para apuração e cobrança do crédito público. Como diz James Marins, “a
legalidade objetiva é corolário do princípio da autotutela-vinculada da adminis­
tração tributária, o que significa dizer que embora o Estado tenha a prerrogativa
de promover todas as providências necessárias para a formalização de sua relação
de crédito, em face do contribuinte, somente pode fazê-lo com adstrição à nor­
ma jurídica que disciplina e instrumentaliza sua atuação”17.
Sendo o princípio da legalidade basilar do Estado de Direito, não pode o
Procurador, verificando a inconsistência do débito a ser inscrito em dívida
ativa, furtar-se a tomar providências no sentido de impedir o prosseguimento
de atos de cobrança que culminarão em ajuizamento de execução forçada
contra cidadão que merece e exige respeito e legalidade, como direito funda­
mental a ser observado pelo fisco.
O princípio da eficiência, incluído na Constituição pela Emenda Consti­
tucional n° 19, de 1998, determina que o administrador público seja eficiente,
isto é, que atenda ao fim desejado, produzindo resultados no cumprimento de
suas atribuições. Como diz Alexandre de Moraes:
...oprincípio da eficiência é aquele que impõe à Administração Pública
direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio
do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transpa­
rente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da quali­
dade, primado da adoção dos critérios legais e morais necessários para a
melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evita­
rem-se desperdícios e garantir-lhe uma maior rentabilidade social.18

16 MAIA, Mary Elbe Gomes Queiroz. Do lançamento tributário: execução e controle. São Paulo:
Dialética, 1999, p. 107.
17 MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. São Paulo: Dialética, 2001, p. 173.
18 MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 317.
8 0 6 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Alexandre de Moraes apresenta oito características do princípio da eficiência,


das quais nos interessa, para o presente estudo, apenas característica da eficácia,
que pode ser material ou formal. “A eficácia material da administração se traduz
no adimplemento de suas competências ordinárias e na execução e cumprimento
dos entes administrativos dos objetivos que lhe são próprios, enquanto a eficácia
formal da administração é a que se verifica no curso de um procedimento
administrativo, ante a obrigatoriedade do impulso ou resposta do ente
administrativo a uma petição formulada por um dos administrados”19.
O princípio da eficiência, para Hely Lopes Meirelles, “exige que a ativida­
de administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional.
É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta
em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para
o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e
de seus membros”20.
O princípio da eficiência, visto pela ótica do contribuinte, exige que o
Procurador, no exercício do controle da legalidade previsto na norma legal
como pressuposto ao ato de inscrição, como dever-poder, impeça a inscrição
de débito, ou de processo, eivado de nulidade. Não se trata de discricionarie­
dade do Procurador, mas, sim, de dever funcional. Não é possível que sejam
encaminhadas ao Poder Judiciário demandas inúteis e de resultado duvidoso
quando a própria Administração verifique equívocos, erros, irregularidades.
Visto pela ótica da Administração, o princípio da eficiência impedirá
que o Poder Judiciário seja abarrotado por execuções infundadas, propiciando
o prosseguimento eficiente e eficaz de demandas realmente devidas com con­
seqüente recuperação do crédito público existente. Da mesma forma, a nega­
tiva de inscrição e retorno do processo à autoridade lançadora economizará
tempo e dispêndio dos recursos humanos do órgão de inscrição, que poderá
desenvolver esforços para recuperação dos créditos efetivamente devidos, aper­
feiçoando suas atividades administrativas para que sejam velozes e eficazes.
O princípio da moralidade é bem explicado por Hely Lopes Meirelles,
que traz os ensinamentos de Maurice Hauriou, sistematizado do conceito de
moral jurídica, entendida pelo doutrinador francês como “o conjunto de re­

19 MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 320.
20 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 90.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 807

gras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração”. Prossegue


Hely Lopes Meirelles, afirmando que o doutrinador francês, ao desenvolver
sua doutrina, explica que:
... o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de
atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do
desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua
conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o
justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inopor­
tuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de
Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente
à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem
tudo que é legal é honesto.21
O princípio da moralidade é inserido no momento do controle da lega­
lidade prévio à inscrição, porque o Procurador não poderá agir de forma omis­
sa, admitindo a inscrição de débito que se verifica inconsistente. Atenta à
moral o prosseguimento de atos que resultarão no constrangimento do con­
tribuinte e de seu patrimônio, prorrogando um processo eivado de vício, como
também atenta à moral jurídica o desrespeito às suas normas que estabelecem
a regra de dar a cada um o que é seu, nem mais, nem menos. O ordenamento
jurídico e o contribuinte devem ser respeitados.
O princípio da verdade material decorre diretamente do princípio da
legalidade e é princípio de observância obrigatória pela Administração tribu­
tária. Isto porque somente pode ocorrer a tributação sobre fatos previstos na
norma e que efetivamente ocorreram. Como diz James Marins, “a exigência
da verdade material corresponde à busca pela aproximação entre a realidade
factual e sua representação formal; aproximação entre os eventos ocorridos na
dinâmica econômica e o registro formal de sua existência; entre a materialida­
de do evento econômico (fato imponível) e sua formalização através do lança­
mento tributário”22.
O princípio da legalidade determina que o contribuinte deve pagar so­
mente aquilo que a lei determinar e o fisco só pode receber aquela parcela
assim determinada pela lei, sempre presente o princípio da verdade material.

21 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 83.
22 MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. São Paulo: Dialética, 2001, p. 176-176.
808 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Portanto, para verificar a real obrigação tributária, dever-se-ão buscar todos os


elementos comprobatórios da ocorrência da obrigação tributária e seu alcance
monetário, seja a favor ou contra o fisco, seja a favor ou contra o contribuinte,
porque a relação tributária deve sempre obedecer à vontade da lei.
Se o contribuinte só deve pagar o que a norma efetivamente lhe impute
e se a administração só pode cobrar o que lhe é devido, a busca da verdade
material será exercida em qualquer fase do processo de cobrança, seja na fase
administrativa, seja na fase pré-executiva, seja na fase judicial executiva. En­
tão, não pode o Procurador furtar-se ao exame de documentos eventualmente
apresentados pelo contribuinte em momento anterior à inscrição.
A Administração não pode escusar-se de agir, seja por medo de acusa­
ções levianas de corrupção, seja por acusações administrativas disciplinares, de
omissão pura e simples. O medo e a insegurança não se coadunam com a
atividade do Procurador.
Não é à toa que Paulo de Barros erigiu o controle da legalidade do ato de
apuração e inscrição do débito em Dívida Ativa como o mais importante ato de
controle sobre a formalização do crédito, porque se submete à apreciação crítica
de profissionais habilitados em Direito23. O controle da legalidade exercido
pelos Procuradores, antes do ato de inscrição de débitos em dívida ativa, deve
conduzir a certeza de que estes profissionais, tendo a consciência da gravidade
dos atos posteriores à inscrição: ajuizamento da execução e constrição do patri­
mônio do cidadão/contribuinte, terá os “necessários escrúpulos”, buscando sem­
pre evitar nulidades e, em conseqüência, a “vulneração do direito positivo”.
A dupla função do Procurador, de autoridade administrativa vinculada à
lei e de representante processual em processos onde defenderá a Fazenda Pú­
blica, não pode ser confundida. Ao proceder ao controle da legalidade, o Pro­
curador não pode e não deve antecipar o seu papel de advogado nos processos
de execução fiscal, deixando de agir com imparcialidade.
O Procurador não estará agindo como parte interessada na arrecadação
de tributos, mas como controlador imparcial da legalidade, como fiscal da lei,
sempre em respeito à ordem jurídica, aos princípios constitucionais e aos di­
reitos do cidadão.

23 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 367.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 809

4. N u l id a d e dos A tos A d m in is t r a t iv o s - V íc io s

Os atos administrativos podem ser revogados ou anulados. Os atos são


revogados quando, por conveniência e oportunidade, a Administração entende
não ser mais do seu interesse sua manutenção; e anulados quando são pratica­
dos em desconformidade com as exigências que a lei declara como essenciais.
Bem resume Souto Maior Borges: “revogação consiste na eliminação to­
tal (ab-rogação) ou parcial (derrogação) do ato administrativo, por motivo de
conveniência e oportunidade, diversamente da anulação onde o ato adminis­
trativo responde a considerações relacionadas com a ilegalidade. A revogação
do ato administrativo somente pode ser procedida pela própria administra­
ção; já a anulação pode ser decretada não só pela própria administração, mas
também pelo Poder Judiciário”24.
Os atos administrativos emanados na apuração, controle e execução do
crédito fiscal, porque atos vinculados que são, não têm em seu bojo margem
para revogação, já que não se pode falar em conveniência e oportunidade da
administração em sua constituição e cobrança. O exercício da atividade de
lançamento é obrigatório, decorre da vontade da lei e não da administração.
Assim, quando falamos em lançamento, crédito tributário, execução fis­
cal, estamos falando em ato administrativo vinculado, passível de anulação em
caso de vício.
Mais uma vez, nos socorremos de Seabra Fagundes, sobre o controle dos
atos administrativos. O doutrinador estabeleceu três grupos de categorias de
atos viciosos, assim divididos:
I) Atos absolutamente inválidos, ou atos nulos, que são aqueles que
violam regras fundamentais atinentes à manifestação da vontade, ao
motivo, ao objeto, à finalidade ou à forma, havidas como de obediência
indispensável pela sua natureza, pelo interesse público que as inspira
ou por menção expressa da lei.
II) Atos relativamente inválidos ou anuláveis, que, como os anteriores,
infringem regras atinentes aos cinco elementos do ato administrativo,
mas, em face de razões concretamente consideradas, se tem como me­

24 BORGES, José Souto Maior. Tratado de direito tributário brasileiro-, lançamento tributário. Rio de
Janeiro: Forense, 1981. Vol. 4, p. 281.
8 1 0 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na l n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

lhor atendido o interesse público pela sua parcial validez. Tratando-se


de ato relativamente inválido, se estabelece uma hierarquia entre dois
interesses públicos: o abstratamente considerado, em virtude do qual
certas normas devem ser obedecidas, e o ocorrente na espécie, que se
apresenta, eventualmente, por motivos de ordem prática, de justiça e de
equidade em condições de superar aquele.
III) Atos irregulares, que, apresentando defeitos irrelevantes (quase
sempre de forma), não afetam ponderavelmente o interesse público,
dada a natureza leve da infringência das normas legais.25
Walter Barbosa Corrêa26traz uma distinção importante e didática dos
vícios que atingem o ato administrativo, em especial aqueles que interessam
ao Direito Tributário, quais sejam: a) vícios de competência; b) vícios de pro­
cedimentos; c) vícios de forma; d) vícios materiais.
Vícios de competência distinguem-se em: violação de competência
territorial e de competência objetiva. O primeiro, quando uma autoridade
intervém no âmbito territorial de outra de mesma classe, e o segundo diz
respeito à competência da autoridade para prática do ato: autoridade que
não esteja no exercício regular de suas funções. A incapacidade da autori­
dade para firmar o ato infringe uma das condições essenciais da validade
dos atos administrativos.
Vícios de procedimento dizem respeito ao movimento e direção que a
série de atos preparatórios, destinados a constituir o lançamento, deve se­
guir. Pode o sujeito passivo pleitear a anulação do lançamento sempre que
não for respeitada a ordem procedimental, quer em razão da inversão da
seqüência procedimental, quer pela omissão de quaisquer dos atos prepara­
tórios. Na verificação da exatidão do procedimento, há de se considerar que
o ato, para ser considerado totalmente regular, deve sempre ter a participa­
ção dos interessados previstos na lei.
Vícios de forma dizem respeito às formalidades de que se deve re­
vestir o ato. O Direito Tributário estabelece preceitos formais a serem

25 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, 2a ed. Rio de
Janeiro: José Konfino Editor, 1950, p. 69-70 e 74.
26 CO RRÊA, Walter Barbosa. Lançamento tributário e ato administrativo nulo. In: Revista de
direito tributário, n° 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 1977, p. 37-38 e 40.
M a r c ia n e Z a r o D ia s M a r t i n s - 811

obedecidos na elaboração do lançamento, os quais devem ser respeitados,


sob pena de nulidade.
Vícios materiais constituem os defeitos que atingem o lançamento em
sua própria essência, em virtude de defeitos na manifestação da vontade do
agente do ato, permitindo, assim, que também surja no mundo jurídico ato
nulo. O vício material resulta, fundamentalmente, de defeito na manifestação
da vontade em razão de erro, dolo, coação.

5 . A m p l it u d e do C o n tr o le da L e g a l id a d e

O controle da legalidade, prévio ao ato de inscrição de débito em dívida


ativa, efetuado por autoridade distinta daquela que apurou o crédito pelo
lançamento, é objeto de controvérsia quanto aos seus limites.
Luciano Benévolo Andrade traz controvérsia existente sobre os limites
do ato de controle da legalidade prévio ao ato de inscrição, apresentando os
argumentos que amparam as duas correntes existentes. A primeira, defenden­
do a possibilidade de controle pleno da legalidade, ou seja, sobre o cumpri­
mento dos requisitos extrínsecos e intrínsecos da constituição do crédito. A
segunda, de exame apenas dos requisitos extrínsecos ou aspectos formais.
Explica o doutrinador que o fundamento daqueles que admitem um
exame pleno da legalidade é que, sendo o lançamento um ato administrativo
vinculado, não pode conter nenhum vício, apresentando, desta forma, alguns
defeitos capazes de macular o lançamento:
a) quanto à competência, autoridade com ou sem investidura regular
para proceder ao ato; b) quanto à forma, inobservância dos procedi­
mentos regulamentares, ex. notificação; c) quanto ao objeto, falta de
previsão legal, aplicação indevida de norma, decadência, erro na deter­
minação do montante; d) quanto aos motivos, inocorrência do fato gera­
dor, falseamento das circunstâncias ou elementos constituintes; e) quanto
à finalidade, fiscalização procedida com intuitos persecutórios.”27
Continua Luciano Benévolo Andrade explicando que, para aqueles que
admitem apenas um exame parcial da legalidade, permitir mais do que o

27 ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição. In: Revista de direito tributário, n° 57.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 139.
812 - A m p lo C o n t r o l e d a L e g a lid a d e n a I n s c r iç ã o d a D ív id a A t i v a

exame dos aspectos formais “seria erigir o órgão da inscrição num super-po-
der, ou, que o Código Tributário a tanto se opõe”28.
A alegada oposição do Código Tributário a um exame mais aprofun­
dado do lançamento, nessa fase prévia de inscrição, não tem qualquer fun­
damento, porque há previsão expressa, nesse diploma legal, prevendo alteração
do lançamento mediante revisão de ofício pela autoridade, nos casos previs­
tos no art. 149, não havendo qualquer limitação temporal; inclusive poden­
do ser efetuada mesmo na existência de ação judicial do crédito a ser revisto.
Examinaremos, a seguir, as duas correntes sobre os limites do controle da
legalidade exercido pelo órgão responsável pela inscrição, para, após, apresen­
tarmos nosso entendimento.
5 .1 . D efen so res d o exam e d o s r e q u is it o s fo r m a is ( e x t r ín s ec o s )

Entre os que defendem a tese de que o controle da legalidade, prévio ao


ato de inscrição, é limitado apenas aos aspectos formais ou requisitos extrínsecos,
encontramos: Leon Frejda Szklarowsky, Cid Heráclito de Queiroz, Natércia
Sampaio Siqueira, Aldemário Araújo Castro e Alberto Xavier.
Para Leon Frejda Szklarowsky29, o exercício do controle da legalidade
está adstrito ao exame da parte formal, ou seja, verificação se está conforme os
requisitos legais. Para o estudioso, ao advogado não compete substituir o Juiz,
não pode cuidar do mérito ou da essência do ato, como também não compete
ao Procurador rever ou anular o lançamento ou o crédito fazendário, “sob
pena de estar vestindo a roupagem do Poder Judiciário ou do Julgador Admi­
nistrativo”, criando um superpoder não concebido nem desejado pelo legisla­
dor. Pode, e deve, apenas aconselhar.
Para Cid Heráclito de Queiroz, o controle da legalidade se restringe ao
aspecto formal do processo, dando lugar ao seu eventual retorno à repartição
de origem, para sanar as irregularidades de natureza extrínseca, porquanto, do
contrário, estaria o legislador criando instância intermediária para reexame
das próprias questões discutidas no processo30.

28 ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição. In: Revista de direito tributário, n° 57.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 139.
29 SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Inscrição da dívida ativa fazendária pública. In: Revista de direito
tributário, n° 11-12. São Paulo; Revista dos Tribunais, jan./jun. 1980, p. 319-320.
30 Q UEIRO Z, Cid Heráclito. Parecer publicado no DO U de 25.05.1981, Seção I, p. 9.526/35,
retificado no DO U de 27.05.1981, p. 9.718/9. Apud SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Inscrição
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 813

No mesmo sentido, Natércia Sampaio Siqueira, para quem:


...fixado o entendimento de que a ultima decisão, tocante à norma indi­
vidual e concreta impositiva de tributo, deve ser proferida por órgão
composto e desvinculado da estrutura hierárquica administrativa, em
ambiente onde vigore a ampla-defesa e o contraditório. Portanto, o con­
trole exercido pela Administração, ao inscrever o crédito em dívida ati­
va, não pode se imiscuir no mérito, restringindo-se aos requisitos for­
mais, mais especificamente à certeza e liquidez.31
Aldemário Araújo Castro32entende que o Decreto-lei n° 147, de 1967,
supera qualquer divergência existente quanto à possibilidade de exame de mé­
rito da constituição do crédito, que seria a revisão da aplicação da legislação
tributária definidora do crédito a ser inscrito, já que este diploma legal é expres­
so ao se reportar ao exame da parte formal pelo Procurador, conforme estabele­
cido no art. 22, § I o33. Prossegue o autor afirmando que a autoridade responsável
pela inscrição não pode substituir a autoridade lançadora, e corrigir o erro por
ato seu, também óbice estabelecido no mesmo diploma legal, art. 22, § 3o34.
Também Alberto Xavier admite que o controle da legalidade deve cingir-se
apenas ao exame dos requisitos formais, como vemos pela transcrição abaixo:
...o controle da legalidade do lançamento, efetuado pelo ato de inscrição da
dívida, não tem a natureza de uma revisão de lançamento, por iniciativa
da autoridade administrativa, ainda que por órgão distinto do competen­
te para o lançamento, não representando, pois o reexercício do poder de
lançar. A lei procede a uma distinção nítida entre o ‘órgão de lançamento’
e orgão de controle’, pelo que este último não aplica alei tributária mate­

da dívida ativa fazendária pública. In: Revista de direito tributário, n° 11-12. São Paulo: Revista
dos Tribunais, jan./jun. 1980, p. 314-321.
31 SIQUEIRA, Natércia Sampaio. Crédito tributário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 283.
32 CASTRO, Aldemário Araújo. Comentários aos art. 201 a 204. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães;
LACOM BE, Rodrigo Santos Masset (coord.). Comentários ao código tributário nacional. São
Paulo: MP, 2005, p. 1.423-1.424.
33 Decreto-lei n° 147/67. Art. 22, § 1o. "Recebendo o processo, por distribuição, o Procurador da
Fazenda Nacional examinará detidamente a parte formal e, verificada a inexistência de falhas
ou irregularidades que possam infirmar o executivo fiscal, mandará proceder à inscrição da
dívida ativa nos registros próprios, observadas as normas regimentais e as instruções que
venham a ser expedidas pelo Procurador-Geral, extraindo-se, ato contínuo, a certidão que, por
ele subscrita, (...)".
34 Decreto-lei n° 147/67. Art. 22, § 3o. "Se no exame do processo for verificada a existência de
falha ou irregularidade a sanar, o Procurador da Fazenda Nacional solicitará, dentro do mesmo
prazo e sob a mesma pena, a repartição competente as providências cabíveis, (...)".
8 1 4 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

rial no caso concreto, nem sequer para efeitos de revisão da sua validade,
com o fim de promover eventualmente sua anulação,3S
O doutrinador, ao afastar o exame de mérito do controle da legalidade
praticado quando da inscrição do débito em dívida ativa, admite que este
controle seja dos “requisitos de liquidez e certeza do crédito, necessários para
a formação do título executivo que pressupõem que o crédito exeqüendo
seja qualitativa e quantitativamente determinado”36. Os requisitos formais a
que faz alusão Alberto Xavier são os estabelecidos no art. I o, § 5o da Lei n°
6.830, de 1980, que estabelece os requisitos que deverão estar contidos no
termo de inscrição, como o nome do devedor, valor originário da dívida e
forma de calcular, origem, natureza e fundamento legal da dívida, indicação,
se for o caso, de atualização monetária. A certeza e liquidez “pressupõe a
rigorosa identificação dos sujeitos, do valor, da causa e do processo em que
se originou”37.
Alberto Xavier distingue o que sejam requisitos extrínsecos (formais) e
intrínsecos (materiais ou de mérito), afirmando: “o controle da inscrição da
dívida ativa restringe-se, porém, aos requisitos formais de certeza e liquidez
da dívida ou ‘requisitos extrínsecos’, não podendo incidir sobre o conteúdo ou
mérito do lançamento, ou seja, sobre a correta aplicação da lei tributária ma­
terial no caso concreto. O órgão de controle é, por conseguinte, titular de
poderes de cognição limitados”38.
5 .2 . D e fen s o r es d o ex a m e d o s r e q u is it o s m a ter ia is
( in t r ín s e c o s ) e fo r m a is ( e x t r ín s e c o s )

Entre os que defendem a tese de que o controle da legalidade prévio ao


ato de inscrição não tem limitação, abrangendo os requisitos formais
(extrínsecos) e materiais (intrínsecos), encontramos Luciano Benévolo Andrade,
Mary Elbe Gomes Queiroz Maia, Hugo de Brito Machado Segundo, Geraldo
Ataliba, Cleber Giardino e Antonio Nicácio.

35 XAVIER, Alberto. Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro:


Forense, 2005, p. 262.
36 XAVIER, Alberto. Do lançamento no direitotributário brasileiro. 3a ed. Riode Janeiro: Forense,
2005, p. 397.
37 Idem, p. 398.
38 Idem, ibidem.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 815

Interessante a posição de Luciano Benévolo Andrade39, para quem “a


inscrição examina se a constituição do crédito da Fazenda Pública satisfaz a
todos os pressupostos legais, se atende a todos os requisitos intrínsecos e ex­
trínsecos para a sua validade e eficácia”. Esclarece o autor que a inscrição é um
ato de inteligência, e continua dizendo que “frustrados estariam esses objeti­
vos de controle e ineptos eles seriam, se a inscrição se circunscrevesse às super­
ficialidades, deixada a correção de ato administrativo, criador do crédito, a
cargo exclusivo do Judiciário, com evidentes prejuízos patrimoniais tanto para
o particular como para a própria administração”.
Para Mary Elbe Gomes Queiroz Maia40, o exercício de controle da lega­
lidade tem amplo alcance, porque, na hipótese de existência de ato de lança­
mento eivado de nulidade, deve a Procuradoria, como órgão integrante da
Administração que é, exercer atividade de controle de forma a impedir a execu­
ção judicial de ato nulo. Para a doutrinadora, a Procuradoria deve “zelar e con­
trolar a perfectibilidade dos atos passíveis de execução judicial, não podendo
prevalecer para ele a preclusão interna ou oposta à ‘coisa julgada’ administrati­
va”, sendo ainda passível de controle. Significa dizer que a chamada preclusão
interna ou coisa julgada administrativa apenas encerra o contraditório adminis­
trativo, não impedindo que a Administração, no controle de seus próprios atos,
não possa anular atos viciados, que trariam graves prejuízos para a ordem jurídi­
ca. Se a inscrição é ato administrativo vinculado à lei, somente pode ser executa­
do débito efetivamente devido e na medida determinada pela lei.
Entretanto, a doutrinadora aponta que o controle a ser exercido pela
Procuradoria, dos créditos enviados para inscrição, não poderá ser exercido
direta e imediatamente, devendo providenciar a restituição do processo ao
órgão lançador para revisão de ofício ou interpor recurso hierárquico, por des­
pacho justificado e fundamentado, com vistas à anulação de ato eventualmen­
te ilegal.
Para Hugo de Brito Machado Segundo41, “naturalmente o procurador
responsável pela inscrição não poderá fazer um ‘julgamento’ de todo o mérito

39 ANDRADE, Luciano Benévolo. Dívida ativa: inscrição. In: Revista de direito tributário, n° 57.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 136-137.
40 MAIA, Mary Elbe Gomes Queiroz. Do lançamento tributário: execução e controle. São Paulo:
Dialética, 1999, p. 72.
41 M ACHADO SEGUN DO , Hugo de Brito. Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 207.
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da exigência, pois não é instância julgadora, mas poderá corrigir erros relacio­
nados ao ato de inscrição”. O doutrinador traz alguns exemplos de erros ma­
teriais, que o Procurador poderá examinar no processo administrativo: “(a) o
julgador administrativo acolhe defesa do contribuinte, extinguindo o crédito
tributário, mas por erro o valor correspondente é encaminhado para inscrição
em dívida ativa; (b) o crédito a ser inscrito é considerado inconstitucional pelo
STF, no âmbito de controle concentrado de constitucionalidade42; (c) o valor
a ser inscrito corresponde a crédito tributário que já foi pago, parcelado, com­
pensado com créditos do sujeito passivo etc.”.
Geraldo Ataliba e Cleber Giardino também advogam a tese de que o
controle da legalidade deve ser exercido de forma ampla pela Procuradoria, di­
zendo que “parece evidente que o órgão responsável por esse controle não pode
pronunciar-se sobre esses caracteres, sem examinar - quanto à forma e substân­
cia —as causas e origens da dívida, bem como a observância das formalidades
procedimentais obrigatoriamente observáveis quando de sua formalização”43.
Para Antonio Nicácio, se a inscrição se constitui ato de controle da legalidade,
o órgão responsável deve verificar a legalidade do crédito em todos os seus aspectos,
tanto formais, como substanciais. “Não é, destarte, a inscrição mera formalidade.
Ao inscrever a dívida, o órgão competente dá seu aval à legalidade do crédito e
para isso necessário se faz que verifique a regularidade formal do procedimento
de sua constatação ou criação, como ainda os aspectos substanciais de sua própria
existência e sua adequação ao direito aplicável”44.
5 .3 . P o n t o s em c o m u m entre as d uas correntes
Das posições acima, podemos ver que a questão não se limita ao exame
de aspectos extrínsecos (formais) e intrínsecos (materiais), mas também à ati­

42 Importante registrarmos que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em ações
diretas de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, têm eficácia
contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração
Pública federal, estadual e municipal, conforme art. 28, parágrafo único da Lei n° 9.868, de 10
de novembro de 1999, bem como as decisões também do Supremo Tribunal Federal em
arguições de descumprimento de preceito fundamental, conforme art. 10, § 3o, da Lei n° 9.882,
de 3 de dezembro de 1999.
43 ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cleber. Inscrição de dívida ativa: função privativa dos advoga­
dos públicos. In: Revista de direito administrativo, n° 149. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, jul./dez. 1982, p. 332-333.
44 NICÁCIO, Antônio. Primórdios do direito tributário brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 117-118.
M a r c ia n e Z a r o D ia s M a r t i n s - 817

tude a ser tomada pelo Procurador quando, no controle da legalidade, encon­


trar irregularidades.
Existe consenso doutrinário no sentido de que a autoridade responsável
pela inscrição não pode substituir a autoridade lançadora ou a autoridade
julgadora, no âmbito do processo administrativo fiscal, e, por ato seu, corrigir
falhas ou irregularidades identificadas na apuração e constituição do crédito a
ser exigido do contribuinte. Neste caso, deverá ser remetido o processo admi­
nistrativo à repartição competente para o lançamento com o objetivo de pro­
piciar que esta tome medidas para corrigir as nulidades.
A atividade administrativa de controle, precedente à inscrição do débito
em dívida ativa, segundo Maria Helena Rau de Souza, “não configura contro­
le hierárquico ou julgamento do lançamento, não se admitindo que o órgão
inscritor anule o ato constitutivo do crédito, se porventura detectar vício de
ilegalidade. Tal medida caberá à autoridade lançadora”45. Não se trata de ins­
tância intermediária, nem de autoridade com superpoderes sobre os demais.
O controle da legalidade, exercido pelo Procurador, resultará na autori­
zação para que seja procedida à inscrição do débito em dívida ativa, ou sua
recusa. Se não for constatada qualquer irregularidade, o débito é inscrito;
constatadas irregularidades, o débito não é inscrito e o processo restituído
para a autoridade lançadora proceder a correções, sempre que possível.
Resta estabelecer a distinção entre requisitos extrínsecos ou formais e
requisitos intrínsecos ou materiais, para podermos apresentar nossa posição.
5 .4 . D is t in ç ã o en t r e r e q u is it o s fo r m a is ( e x t r ín s e c o s ) e
MATERIAIS (INTRÍNSECOS)

Para fazermos a qualificação dos requisitos formais (extrínsecos) e dos


materiais (intrínsecos) a serem examinados no controle da legalidade efetuado
antes do ato de inscrição, utilizaremos a distinção de vícios que podem atingir
os atos administrativos tributários, apresentada por Walter Barbosa Corrêa, e
Luciano Benévolo de Andrade, que, por meio de um raciocínio inverso, nos
permite identificar os requisitos formais e materiais que devem ser observados
no curso regular de constituição do crédito público.

45 SO U ZA , Maria Helena Rau. Dívida ativa. In: FREITAS, Vladim ir Passos de (org.). Código
tributário nacional comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 774.
8 1 8 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

5 .4 .1 . R equisitos form ais o u extrínsecos


Como requisitos formais ou extrínsecos, teremos: (i) os relativos à com­
petência territorial e objetiva da autoridade, que se refere à investidura regular
para prática de ato; (ii) o respeito ao procedimento, observância dos proce­
dimentos regulares; (iii) o cumprimento de formalidade da qual deve se re­
vestir o ato. Para Luciano Benévolo de Andrade, o respeito ao procedimento e
os atos com formalidade da qual deve se revestir estão inseridos num único
requisito: o vício quanto à forma, que nada mais é do que as formalidades
estabelecidas pela norma para apuração, constituição e cobrança do crédito.
A competência objetiva diz respeito à outorga legal para a prática do
ato. Como exemplo de competência objetiva, temos auto de infração que
deve ser lavrado por Auditor Fiscal, já que a lei confere a esta autoridade
competência para firmar tal ato, não podendo ser delegado a qualquer outro
servidor público.
O respeito ao procedimento é entendido como o cumprimento das
normas determinantes da forma como deve ser apurado o crédito, a seqüência
de atos que a lei estabelece que devam ser praticados. Podemos apresentar
como exemplos: a notificação do contribuinte, dando-lhe ciência do lança­
mento, para que este possa exercer o contraditório e ampla defesa; recebimen­
to de impugnação ao auto de infração ou recurso administrativo tempestivo;
ciência das decisões proferidas no curso do processo, oportunizando defesa.
Os aspectos formais dizem respeito ao cumprimento de formalidades
que devem revestir o ato. Por exemplo, o lançamento deve ser escrito, conten­
do todos os elementos necessários à identificação do devedor, do fato gerador,
do valor devido, da data de vencimento, do fundamento legal etc. Se a forma
exigida é escrita, não poderá haver lançamento oral; de igual forma a notifica­
ção, que deverá ser pessoal, pelo correio com aviso de recebimento ou por
edital, jamais poderá ser oral; os atos administrativos devem ser documenta­
dos e assinados.
5 .4 .2 . R equisitos materiais o u intrínsecos
Novamente utilizamos os vícios materiais indicados por Walter Barbosa
Corrêa, e os vícios indicados por Luciano Benévolo de Andrade; quanto ao
objeto, aos motivos e à finalidade, podemos identificar, como requisitos ma­
teriais ou intrínsecos, os que atingem o lançamento em sua própria essência,
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 819

ou como diz Alberto Xavier, o aspecto material diz respeito ao “conteúdo ou


mérito do lançamento, ou seja, sobre a correta aplicação da lei tributária ma­
terial no caso concreto”46.
Assim, podemos afirmar que o mérito do lançamento ou a correta apli­
cação da lei material no caso concreto diz respeito ao exame dos aspectos do
fato imponível47, terminologia utilizada por Geraldo Ataliba, para quem o
nascimento da obrigação tributária se dá pelo “vínculo obrigacional que cor­
responde ao conceito de tributo que nasce, por força de lei, da ocorrência do
fato imponível”. Para Geraldo Ataliba, “a configuração do fato (aspecto mate­
rial), sua conexão com alguém (aspecto pessoal), sua localização (aspecto espa­
cial) e sua consumação num momento fático determinado (aspecto temporal),
reunidos unitariamente determinam, inexoravelmente, o efeito jurídico dese­
jado pela lei: criação de uma obrigação jurídica concreta, a cargo de pessoa
determinada, num momento preciso”48.
Para José Eduardo Soares de Melo, “o fato gerador da obrigação tribu­
tária só ocorrerá quando os seus indispensáveis pressupostos, previstos em
lei, tenham se verificado de modo real e concreto, pelo denominado fenô­
meno da subsunção”49, mencionando, o doutrinador, cinco aspectos do fato
gerador: material (elemento objetivo - situação descrita), pessoal (sujeitos
ativo e passivo), quantitativo (base de cálculo e alíquota), temporal (mo­
mento) e espacial (lugar).
Hugo de Brito Machado afirma que “o acontecimento do denominado
fato gerador do tributo faz nascer a relação jurídica tributária, vinculando o
sujeito passivo ao sujeito ativo”50, e o fato gerador pode ser visto sob vários
ângulos: aspecto material ou nuclear, subdivido em identidade e dimensão
do tributo (base de cálculo e alíquota); aspecto subjetivo ou pessoal e aspec­
to temporal.

46 XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. 3a ed. Rio de janeiro: Forense,
2005, p. 398.
47 Fato imponível também pode ser identificado como suporte fático, situação-base de fato,
fato tributável.
48 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 3a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1984, p. 65-66.
49 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. São Paulo: Dialética, 1997, p, 157-158.
50 M AC H AD O , Hugo de Brito. Comentários ao código tributário nacional. São Paulo: Atlas,
2004. Vol. 2, p. 319.
8 2 0 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D I v id a A t iv a

Passaremos ao exame de cada um dos aspectos do fato gerador.


a) O aspecto material ou nuclear, segundo José Eduardo Soares de Melo,
“consiste em determinados negócios jurídicos, estados, situações, serviços e
obras públicas, dispostos na Constituição, que representem fenômeno revela­
dor de riqueza (aspecto econômico)”51. Podem ser: impostos, taxas, contribui­
ções de melhoria e contribuições sociais genéricas, interventivas e de interesse
de categorias profissionais ou econômicas.
Para Luciano Amaro, “o fato gerador sói ser definido pela referência a
uma ação ou situação (como a aquisição de renda, a importação de mercadoria,
o fato de ser proprietário etc.), que se identifica como núcleo ou materialida­
de do fato gerador”52. Trata-se da situação material descrita pelo legislador
como necessária e suficiente para a ocorrência do fato gerador.
b) O aspecto pessoal (sujeitos ativo e passivo), segundo José Eduardo
Soares de Melo, “compreende as pessoas envolvidas na relação jurídica patrimonial,
e que se vinculam à obrigação tributária, isto é: a) o titular da competência, deno­
minado sujeito ativo do tributo; b) contribuintes e responsáveis (pessoas privadas
que mantêm relação com a materialidade), denominados sujeitos passivos”53.
c) O aspecto quantitativo (base de cálculo e alíquota), segundo José
Eduardo Soares de Melo, “constitui a dimensão da obrigação pecuniária, po­
sitivando o quantum devido pelo contribuinte/responsável, ou seja, o efetivo
valor a ser recolhido aos cofres públicos”54.
Segundo Ruy Barbosa Nogueira, o aspecto quantitativo é “a situação des­
crita na lei como fato gerador que ocorrendo, tem de ser medida ou avaliada
de acordo com uma base também previamente estabelecida em lei e que se
denomina base de cálculo. A base de cálculo do tributo representa legalmente
o valor, grandeza ou expressão numérica da situação ou essência do fato gera­
dor e sobre a qual se há de aplicar a alíquota; é, por assim dizer, um dos lados
ou modo de ser do fato gerador”55.
d) O aspecto temporal (momento), segundo José Eduardo Soares de
Melo, “consiste na fixação de um determinado momento em que se deve

51 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. São Paulo: Dialética, 1997, p. 158.
52 AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 245.
53 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. São Paulo: Dialética, 1997, p. 158.
54 Idem, p. 159.
55 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 15a ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 148.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 821

reputar acontecida a materialidade do tributo, tendo em vista que a norma


deve conter a circunstância de tempo, certo e determinado”56. É da maior
importância porque, determinando o momento em que nasce a obrigação
tributária, fixa a legislação aplicável para aquele fato imponível.
e) O aspecto espacial (lugar), segundo Soares de Melo, “significa que,
por uma situação natural, os fatos tributários ocorrem em um determinado
lugar, cumprindo ao legislador estabelecer o local em que, uma vez acontecida
a materialidade tributária, se repute devida a obrigação”57.
Concluímos, assim, que os aspectos formais ou extrínsecos são as forma­
lidades estabelecidas pela norma para apuração, constituição e cobrança do
crédito. Já os aspectos materiais ou intrínsecos, que dizem respeito ao “con­
teúdo ou mérito do lançamento, ou seja, sobre a correta aplicação da lei tribu­
tária material no caso concreto”, mencionado por Alberto Xavier, é a verificação,
in concreto, da própria ocorrência do fato gerador e de seus aspectos materiais,
pessoais, quantitativo, temporal e espacial, do fato gerador.
Identificados os requisitos formais ou extrínsecos e requisitos materiais
ou intrínsecos, resta examinarmos se há limitação para o controle da legalida­
de a ser exercido pelo Procurador, quando do ato de inscrição de débito em
dívida ativa, expondo a posição defendida neste trabalho.
5 . 5 . P o s s ib il id a d e d e a m p l o c o n t r o l e d a l e g a l id a d e

pelo P rocurador

Podemos dizer que o crédito fiscal percorre três etapas distintas: (i) a de
constituição do crédito, ou administrativa; (ii) a preparatória do título execu­
tivo, ou pré-executiva58; e (iii) a execução fiscal, ou judicial. Assim, o ato de
controle da legalidade, efetuado pela Procuradoria, também ocorre na via ad­
ministrativa, porque realizado por órgão da Administração, ainda que distin­
to do responsável pela constituição do crédito, mas preparatório do processo
judicial de cobrança.

56 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. São Paulo: Dialética, 1997, p. 160.
57 Idem, p. 161.
58 O do procedimento preparatório de inscrição e extração do título executivo foi examinado na
dissertação de mestrado intitulada "Procedimento Pré-Executivo Fiscal da Fazenda Pública"
apresentada em 2005 pela autora do presente trabalho na Faculdade de Direito da Universida­
de Federal do Ceará.
8 2 2 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Na via administrativa de constituição do crédito fiscal, pode ocorrer o


contencioso administrativo59. O contribuinte poderá exercer todos os meios
de defesa visando ao reconhecimento, pela própria Administração, da impro-
cedência do lançamento que lhe é imputado. Entretanto, o contencioso pode
não acontecer nos seguintes casos: por desinteresse do contribuinte, intem-
pestividade de defesa, nos lançamentos por homologação dos quais resulta a
inscrição sumária. Podemos inferir, portanto, que nem todos os processos ad­
ministrativos fiscais são submetidos ao contraditório. Daí por que a impor­
tância do ato de controle da legalidade a ser executado por profissional
habilitado nas lides do Direito.
Na via pré-executiva, onde se dá o procedimento preparatório para a
execução fiscal, já que é por meio dele que se extrai o título executivo, o
crédito definitivamente constituído somente será integrado em registro pró­
prio, por meio do ato de inscrição do débito em dívida ativa, se ultrapassado
o controle prévio de legalidade estabelecido no § 3o, do art. I o, da Lei n°
6.830, de 1980. Trata-se de formalidade legal, que deve ser obedecida pelo
Procurador, sob pena de viciar o ato de inscrição e, em conseqüência, o título
a ser cobrado judicialmente.
A Lei n° 6.830, de 1980, ao determinar o controle administrativo da
legalidade, não estabeleceu limites para esse controle, e nem poderia, posto
que a Lei não pode admitir que inscrições indevidas sejam efetuadas, pois
estar-se-ia ferindo, dentre outros, o princípio constitucional da legalidade que
deve pautar a atividade tributária.
Não temos a menor dúvida de que o controle da legalidade a ser exercido
por Procurador deve ser amplo, pois reduzir o controle a mero exame dos
aspectos formais seria o mesmo que negar eficácia a este mecanismo de defesa
da legalidade administrativa.
O Procurador, ao exercer, de maneira ampla, o controle da legalidade está
elevado à condição de um verdadeiro “ministério público fiscal” com função
precípua de fiscalizar a atividade de apuração e constituição do crédito tribu­
tário e não tributário, e defender a legalidade e moralidade administrativa.
Não há divergência entre os doutrinadores quanto à possibilidade de contro­
le da legalidade no exame dos aspectos formais ou requisitos extrínsecos. Pode­

59 Decreto n° 70.235, de 6 de março de 1972, que regula o Processo Administrativo Fiscal.


M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 823

mos apresentar, como exemplos de vícios formais que impedem a inscrição do


débito em dívida ativa: (i) vícios quanto à competência objetiva, lançamento subs­
crito por autoridade incompetente; (ii) respeito ao procedimento, inobservância
dos procedimentos regulares, como: ausência de notificação ou notificação irregu­
lar do contribuinte do lançamento efetuado, impedindo o direito constitucional
de contraditório e ampla defesa; não recebimento de impugnação ao auto de in­
fração e de recurso administrativo interposto pelo contribuinte sob alegação errô­
nea de intempestividade60; ausência de ciência das decisões, impedindo o exercício
da ampla defesa mediante apresentação de recursos; e (iii) descumprimento de
formalidade da qual deve revestir-se o ato, como, por exemplo, lançamento escrito.
Contudo, os argumentos daqueles que admitem apenas o exame dos
aspectos formais ou extrínsecos podem ser facilmente refutados.
Não procede a limitação apresentada por Aldemário Araújo Castro, de
que o Decreto-lei n° 147, de 1967, supera qualquer divergência existente,
estabelecendo, expressamente, que o exame pelo Procurador será apenas da
parte formal, já que com o advento da Lei n° 6.830, de 1980, o controle da
legalidade a ser exercido pelo Procurador não teve seu alcance restringido.
Estamos diante de um conflito de normas, também chamado antinomia, ou
seja, normas incompatíveis entre si, solucionáveis pelo critério cronológico,
que nada mais é do que a aplicação do princípio de que lei posterior revoga a
anterior61. Assim, o art. 22, § I o, do Decreto-lei n° 147, de 1967, está revoga­
do pela vontade da lei posteriormente editada, que é o disposto no § 3o, do
art. I o, da Lei n° 6.830, 1980.

60 Como exemplo de contagem de prazo errôneo para que se considere intempestiva a impugnação,
ao auto de infração do contribuinte, podemos citar o caso do art. 23, inciso II, do Decreto n°
70.235, de 1972, que regula o Processo Administrativo Fiscal. O art. 23 estabelece a forma de
contagem dos prazos, e em seu parágrafo a forma como se considera efetuada a intimação via
postal, que transcrevemos: Art. 23. "Far-se-á a intimação: (...) II - por via postal, telegráfica ou
por qualquer outro meio ou via, com prova de recebimento no domicílio tributário eleito pelo
sujeito passivo; (Redação dada pela Lei n° 9.532, de 1997) (...) § 2° Considera-se feita a
intimação: (...) II - no caso do inciso II do caput deste artigo, na data do recebimento ou, se
omitida, quinze dias após a data da expedição da intimação; (Redação dada pela Lei n° 9.532,
de 1997)". Se efetuada a intimação por via postal, com Aviso de Recebimento - AR, o
contribuinte ao assinar o AR poderá indicar, ou não, a data em que o recebeu. Indicando a
data, considerar-se-á efetuada a intimação na data indicada, entretanto, casa não haja esta
indicação, considerar-se-á efetivada a intimação 15 dias após a data que o Correio indicar
como de devolução do Aviso de Recebimento, como indicado na parte final do inciso II, do
§ 2o, do art. 23, retro.
61 O direito não tolera antinomias, por isto há critérios para solução de conflito de normas,
questão bem examinada na obra de BO BBIO , Norberto. Teoria do ordenamento juríd ico .
Brasília: Polis, 1989, p. 81-82 e 91-93.
8 2 4 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Afastamos a argumentação de Leon Frejda Szklarowsky e de Cid Heráclito


de Queiroz, pois o controle exercido pelo Procurador, que determinará a inscrição
ou não do débito em dívida ativa, não substituirá a autoridade lançadora, nem
haverá criação de um poder intermediário.
Não é aceitável a afirmação de Natércia Sampaio Siqueira e Alberto Xavier
de que aspectos formais se reduzem à apuração de certeza e liquidez. Alberto
Xavier qualifica como “requisitos de liquidez e certeza do crédito, os necessários
para a formação do título executivo que pressupõem que o crédito exeqüendo
seja qualitativa e quantitativamente determinado (....) A certeza e liquidez pres­
supõe a rigorosa identificação dos sujeitos, do valor, da causa e do processo em
que se originou”62.
Alberto Xavier é expresso ao afirmar que os requisitos formais são os
estabelecidos no art. I o, § 5o da Lei n° 6.830, de 1980, que estabelece os
elementos que deverão constar no termo de inscrição como: nome do devedor,
valor originário da dívida e forma de calcular juros e encargos, origem, nature­
za e fundamento legal da dívida, e indicação, se for o caso, de atualização
monetária. Complementa o autor afirmando que o controle da legalidade não
pode incidir sobre o conteúdo ou mérito do lançamento, ou seja, sobre a cor­
reta aplicação da lei tributária material no caso concreto.
Discordamos do doutrinador, pois a certeza e liquidez só podem existir
se o débito apurado realmente existir e tiver sido “acertado” de forma correta e
regular. Os elementos que devem constar no termo de inscrição não se referem
apenas a elementos formais; são, sim, elementos materiais do fato gerador que
foram identificados e que constarão no ato de inscrição. O devedor nada mais
é do que o sujeito passivo da relação tributária, que compõe uma das faces do
aspecto pessoal do fato imponível (inciso I, no art. I o, § 5o); o valor originário
da dívida compõe seu aspecto quantitativo (inciso II, no art. I o, § 5o); a
origem e natureza da dívida compõem o aspecto material (inciso III, no art.
I o, § 5o); e o termo inicial da dívida compõe o aspecto temporal (inciso II, no
art. Io, § 5o - todos da Lei n° 6.830, de 1980).
A regularidade dos elementos acima somente pode ser verificada se o
controle da legalidade efetivamente incidir sobre a correta aplicação da lei

62 XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 397-398.
M a r c ía n e Z aro D ia s M a r t in s - 825

tributária material no caso concreto. Não se trata de exame de aspectos for­


mais apenas, mas, sim, de efetivo exame dos aspectos materiais do fato impo­
nível ou fato gerador concretizado.
A certeza de que o controle da legalidade deve atingir também os requi­
sitos materiais ou intrínsecos é extraída dos exemplos abaixo, que demons­
tram, de forma clara, não só a possibilidade desse exame amplo, mas, também,
de sua necessidade, impedindo, assim, inscrições absolutamente nulas, indevi­
das e esdrúxulas. Apresentamos oito hipóteses em que o controle da legalida­
de incide sobre os aspectos do fato imponível, e que reforçam nossa posição de
que o controle deve ser amplo, sob pena de propiciar inscrições errôneas.
1) O envio de débitos relativos a multas criminais aplicadas pela Justiça
Estadual, para que a Procuradoria da Fazenda Nacional as inscreva em dívida
ativa, comporta tanto vício material quanto formal. O vício material está na
errônea identificação do sujeito ativo da relação obrigacional63(aspecto pessoal),
que resulta na incompetência objetiva para a Procuradoria da Fazenda Nacional
proceder ao ato de inscrição. Se não fosse possível o exame do aspecto material,
a Fazenda Nacional estaria inscrevendo débito que não é de sua competência, e,
sim, da Procuradoria estadual, já que crédito de titularidade do Estado-membro.
2) É enviado para inscrição débito relativo ao Imposto Predial e Territorial
Urbano - IPTU, relativo ao ano calendário 2000. No exame da legalidade, o
Procurador observa que no processo existem documentos demonstrando que a
propriedade do imóvel sobre o qual incidiu o tributo foi transferida no ano de
1999, entretanto, o devedor que consta no processo é o antigo proprietário. No
processo, está identificado corretamente um devedor, mas este não é efetiva­
mente o responsável pelo inadimplemento da obrigação; o requisito formal “nome
do devedor” estaria cumprido, mas de forma errônea. Assim, se não admitísse­
mos o exame de requisito intrínseco (aspecto pessoal do fato imponível) quanto
ao sujeito passivo da relação tributária, necessariamente teríamos a inscrição em
dívida ativa de contribuinte não devedor.
3) O Município A teve parte de seu território desmembrado com a criação
do Município B, em dezembro de 2000. No ano de 2001, a Procuradoria do

63 As multas criminais aplicadas pela Justiça Federal são enviadas para cobrança pela Procurado­
ria da Fazenda Nacional, já que a Justiça Federal é órgão da União. As multas aplicadas pela
Justiça Estadual deverão ser enviadas para as Procuradorias dos Estados ou Distrito Federal, já
que é órgão integrante dos Estados-membros.
8 2 6 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Município A recebeu para inscrição vários débitos relativos a imóveis que com­
punham a base territorial do Município B, criado no ano anterior, relativos à
obrigação tributária do ano-base 2001. Todos os elementos do termo de inscri­
ção estavam corretamente identificados. O Procurador, ao receber o processo,
constata que o sujeito ativo da relação obrigacional tributária era o Município B
e recusa a inscrição. Trata-se, aqui, de exame de requisito intrínseco ou de as­
pecto espacial e pessoal do fato imponível.
4) É enviado para inscrição um débito no valor de R$ 10.000.000,00
(dez milhões de reais). Examinando o processo, o Procurador verifica que o
devedor é uma pessoa física ou uma microempresa e que se trata de processo
originado de lançamento por homologação, ou seja, por declaração do contri­
buinte. Casos desta natureza trazem em seu bojo fortes indícios de erro no
preenchimento da declaração pelo contribuinte. O Procurador, examinando
que o valor devido é incompatível com o sujeito passivo identificado (rendi­
mentos ou atividade econômica), pode recusar a inscrição e remeter o processo
para diligência no sentido de apurar a veracidade da informação prestada.
Trata-se de exame de requisito intrínseco (aspecto quantitativo) do fato im­
ponível e aplicação do princípio de eficiência.
5) Ê recebido processo para inscrição, resultado de fiscalização da Recei­
ta Federal em determinada pessoa física. Na apuração do valor devido, o Au­
ditor somou os rendimentos tributáveis com rendimentos isentos, elevando a
base de cálculo sobre a qual foi apurado o tributo. O Procurador, examinando
tal fato, recusa a inscrição e restitui o processo ao órgão lançador para correção
do valor devido. Trata-se de exame de requisito intrínseco (aspecto quantita­
tivo) do fato imponível.
6) A Procuradoria recebe processo para inscrição de débito cuja origem
foi importação de livros, que gozam de imunidade tributária estabelecida pelo
art. 150, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal de 1988. A recusa de
inscrição deste débito resulta do exame de requisito intrínseco (aspecto mate­
rial) do fato imponível.
7) Os exemplos apresentados por Hugo Machado Segundo se referem a
requisitos intrínsecos em seu aspecto material, já que a cobrança de crédito
extinto e de crédito considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Fe­
deral, em controle concentrado de constitucionalidade, implica não haver in­
cidência tributária, ou esta foi afastada pelo Supremo.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 827

8) Por fim, há um caso expresso na Lei n° 9.784, de 29 de janeiro de


1999, art. 65, que prevê o reexame de matéria já julgada, especificamente
quanto à aplicação de sanção, como vemos pela transcrição do artigo art. 65
que dispõe: “Os processos administrativos de que resultem sanções poderão
ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos
novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da
sanção aplicada”. Assim, neste caso, o Procurador, verificando a existência de
fatos novos ou circunstâncias relevantes, poderá enviar o processo para que
seja, novamente, analisado pela autoridade lançadora, no tocante à aplicação
de penalidade pecuniária.
Não seria possível, diante dos exemplos acima, que o Procurador ficasse
impedido de negar autorização para inscrição desses débitos, pois estaria efe­
tuando controle da legalidade de requisitos materiais. O controle estabelecido
pela norma legal é amplo e irrestrito.
A resistência daqueles que somente admitem o controle da legalidade dos
aspectos formais ou extrínsecos está no receio de que o Procurador, autoridade
solitária, em interpretação divergente, afaste decisão elaborada pela autoridade
julgadora, seja de primeiro grau ou de órgão colegiado administrativo.
Aplicáveis, aqui, os ensinamentos de Hans Kelsen sobre a interpretação
das normas:
...quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este precisa fixar o
sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A
interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o pro­
cesso de aplicação do Direito (...) o ato jurídico em que o Direito é
aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja ato de pura
execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte,
indeterminado. A indeterminação pode dizer respeito tanto ao fato
(pressuposto) condicionante como à conseqüência condicionada.64
A indeterminação tem, em primeira linha, “a pluralidade de significa­
ções de uma palavra ou de uma seqüência de palavras em que a norma se
exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar
a norma encontra-se perante várias significações possíveis”65.

64 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 363-364.
8 2 8 - A m plo C o n tr o le da L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

Merece especial destaque a afirmação de Hans Kelsen de que:


A interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma
única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a
aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito
positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, espe­
cialmente. Dizer que uma sentençajudicial é fundada na lei, não signi­
fica, na verdade, senão que ela está contida na moldura ou quadro que
a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas
que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro
da moldura da norma geral.66
Dentro da moldura da norma impositiva, teremos a apuração do crédito
tributário, que poderá dar-se mediante uma sucessão de atos, como: (i) lança­
mento; (ii) exercício do direito do contraditório e ampla defesa administrativa
pelo contribuinte; (iii) julgamento em duas instâncias; (iv) trânsito em julga­
do ou preclusão administrativa; restando, portanto, pouca margem para erros
nesse processo. Assim, “na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a inter­
pretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito
a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do
Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela
mesma interpretação cognoscitiva. (....) A produção do ato jurídico dentro da
moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre
apreciação do órgão chamado a produzir o ato”67, e o ato de constituição do
crédito tributário é de competência privativa da autoridade lançadora, e não
do Procurador que examina o controle da legalidade.
O controle da legalidade não pode ser confundido com a imposição de
interpretação jurídica pelo Procurador, pois aí sim, o Procurador estaria subs­
tituindo a autoridade lançadora ou o julgador administrativo, imiscuindo-se
na análise do mérito da autuação de forma indevida, subvertendo a ordem
jurídica existente para constituição do crédito tributário.
Na hipótese de interpretação divergente do Procurador da decisão pro­
ferida pela autoridade lançadora - seja colegiada, seja individual -, estando
esta dentro da moldura da norma, a legalidade estaria na decisão da autorida­

66 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 366.
67 Idem, p. 369.
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 829

de lançadora e o Procurador estaria extrapolando sua competência, caso ne­


gasse prosseguimento ao ato de inscrição.
A negativa em autorizar a inscrição por mera interpretação divergente
não é exercício do controle da legalidade, mas, sim, excesso de poder.
Por fim, não podemos deixar de lembrar que há casos em que o contra­
ditório não se instala. Nestes casos, com mais razão, deve-se acolher o controle
amplo da legalidade, posto que o Procurador poderá impedir que inscrições
infundadas venham a ser efetivadas. O Procurador exercerá o controle da le­
galidade como efetivo fiscal da lei, defendendo a ordem jurídica, a legalidade
administrativa e os direitos do contribuinte.
A competência do Procurador é, verificando as irregularidades do processo
administrativo ou incompatibilidade deste com os ditames legais, não inscrever
tal débito em dívida ativa da Fazenda Pública. Se, no exercício do controle da
legalidade, o procurador verificar irregularidades, deverá restituir o processo ao
órgão de origem para sanar as nulidades existentes, com posterior devolução
para inscrição, se possível.
Não se trata de ato discricionário do Procurador: encontrando irregula­
ridades, seja em seus aspectos formais (intrínsecos) ou materiais (extrínsecos),
deverá negar autorização para a inscrição. Trata-se de poder-dever no exato
sentido dado por Hely Lopes Meirelles: “o poder tem para o agente público o
significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no
sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo”68.

6. C o n clu sã o

Para que o débito seja inscrito em dívida ativa, deverá, necessariamente,


se submeter a um controle prévio realizado pela autoridade responsável pela
inscrição, já que toda atividade administrativa está limitada pela Lei. O admi­
nistrador público somente poderá agir quando permitido e nos limites esta­
belecidos pela ordem jurídica; para tanto, é necessário que haja um controle
de que as determinações legais foram observadas.
O controle de legalidade prévio à inscrição, além de autocontrole admi­
nistrativo, também se constitui em mais um instrumento de garantia da Cons­

68 M EIRELLES, Hely Lopes. D ireito administrativo brasileiro. 25a ed. São Paulo: Malheiros,
20 00 , p. 96-98.
8 3 0 - A m plo C o n tr o le d a L e g a l id a d e na I n s c r iç ã o da D ív id a A t iv a

tituição, uma salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão, anterior ao


processo de execução forçada, pois o exercício de verificação do cumprimento
dos requisitos legais necessários à confecção da inscrição demonstrará que o
título executivo, que ampara a execução, está em conformidade com a lei.
O controle administrativo da legalidade da dívida ativa da Fazenda Pú­
blica tem dupla finalidade: a) de um lado, evitar a propositura, pela Fazenda
Publica, de ações de execução que possam ser invalidadas pelo Poder Judiciá­
rio; b) de outro, protege os direitos individuais contra cobranças indevidas. É
um controle que a administração criou para não ingressar com execuções fis­
cais indevidas.
O controle da legalidade pode ter dois efeitos: (i) quando o órgão res­
ponsável, no exame do processo, verificar sua correção e autorizar a inscrição
do débito em dívida ativa; (ii) quando o exame demonstrar a existência de
irregularidades, nulidades, insuficiência no respeito à legalidade, e o órgão
responsável não autorizar a inscrição do débito, restituindo o processo ao ór­
gão lançador para correções.
A atividade do Procurador não é apenas de poder, mas, sim, de dever-poder.
Sempre que for identificado vício no processo, não poderá o Procurador determi­
nar que se proceda à inscrição de débito. Trata-se de atividade vinculada, posto
que ao Procurador, que deve fazer o controle, não compete decidir discricionaria-
mente se inscreve ou não, em caso de existência de irregularidade. Verificando a
ocorrência desta, não deverá autorizar a inscrição.
O fundamento, tanto para a permissão quanto para o impedimento do
ato de inscrição está nos princípios (administrativos e/ou constitucionais) da
legalidade, da eficiência, da moralidade e da verdade material.
Apresentamos os limites do controle da legalidade a ser exercido pelo
Procurador, mostrando distinção entre requisitos formais (extrínsecos) e ma­
teriais (intrínsecos). Como requisitos formais ou extrínsecos, teremos: (i)
os relativos à competência objetiva da autoridade, que se refere à investidura
regular para prática de ato; (ii) o respeito ao procedimento, inobservância
dos procedimentos regulares; (iii) o cumprimento de formalidade da qual
deve se revestir o ato. Como requisitos materiais ou intrínsecos, entende­
mos serem os que atingem o lançamento em sua própria essência, ou seja, a
correta aplicação da lei tributária material no caso concreto. Os requisitos
materiais nada mais são do que a correta identificação dos aspectos do fato
M a r c ia n e Z aro D ia s M a r t in s - 831

gerador, que pode ser visto sob os ângulos: material ou nuclear, subdivido
em identidade e dimensão do tributo (base de cálculo e alíquota), subjetivo
ou pessoal, temporal e espacial.
O Procurador, ao exercer, de maneira ampla, o controle da legalidade esta­
ria elevado à condição de um verdadeiro “ministério público fiscal” com função
precípua de fiscalizar a atividade de apuração e constituição do crédito tributá­
rio e não tributário e defender a legalidade e moralidade administrativa.
A certeza e liquidez só podem existir se o débito apurado realmente
existir e tiver sido “acertado” de forma correta e regular. Os elementos que
devem constar no termo de inscrição não se referem apenas a elementos for­
mais, mas também elementos materiais do fato gerador.
O controle da legalidade não pode ser confundido com a imposição de
interpretação jurídica pelo Procurador, pois, aí sim, o Procurador estaria subs­
tituindo a autoridade lançadora ou o julgador administrativo, imiscuindo-se
na análise do mérito da autuação de forma indevida, subvertendo a ordem
jurídica existente para constituição do crédito tributário. Na hipótese de in­
terpretações divergentes do Procurador e da decisão proferida pela autoridade
lançadora - seja colegiada, seja individual -, estando esta dentro da moldura
da norma, a legalidade estaria na decisão da autoridade lançadora e o Procura­
dor estaria extrapolando sua competência, caso negasse prosseguimento ao ato
de inscrição. A negativa em autorizar a inscrição por mera interpretação diver­
gente não é exercício do controle da legalidade, mas, sim, excesso de poder.
A dupla função do Procurador, de autoridade administrativa vinculada à
lei e de representante processual em processos onde defenderá a Fazenda Pú­
blica, não pode ser confundida. Ao proceder ao controle da legalidade, o Pro­
curador não pode e não deve antecipar o seu papel de advogado nos processos
de execução fiscal, deixando de agir com imparcialidade. O Procurador não
estará agindo como parte interessada na arrecadação de tributos, mas como
controlador imparcial da legalidade, como fiscal da lei, sempre em respeito à
ordem jurídica, aos princípios constitucionais e aos direitos do cidadão.

B ib l io g r a f ia

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______ . Princípios do processo administrativo ejudicial tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
A Prescrição Intercorrente
no Processo
Administrativo Fiscal

Paulo Roberto Lyrio Pimenta


O Autor é Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e Mestre em Direito
pela Universidade Federal da Bahia, onde leciona, como Professor Adjunto
IV, nos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado. Juiz
Federal na Bahia.
P a u lo R o b e rto L y r io P im en ta - 835

1 . D e l im it a ç ã o d o t e m a

O presente estudo versa sobre a admissibilidade da prescrição intercor-


rente no âmbito do processo administrativo fiscal.
Buscar-se-á efetuar uma análise das principais correntes doutrinárias sobre a
matéria, analisando-se os respectivos fundamentos jurídicos, numa tentativa de
dar uma contribuição para o exame de um tema importante para os operadores do
direito tributário, no momento em que se avizinha a possibilidade de modifica­
ções legislativas acerca do procedimento administrativo tributário.

2. A PRESCRIÇÃO COMO EXTINÇÃO DA PRETENSÃO

A análise do tema deve partir da fixação de algumas premissas teóricas


fundamentais, relativas à prescrição.
Pontes de Miranda, maior dos nossos juristas, conceitua a prescrição como
“a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo,
que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”1.
Assim sendo, a prescrição não atinge, via de regra, somente o direito de
ação, mas também a pretensão, de direito material, que é a “posição subjetiva
de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa”2. A pretensão
integra o direito subjetivo, sendo, pois, a possibilidade de exigência da prestação.
O atual Código Civil seguiu essa Unha de posicionamento, prescrevendo
no art. 189 que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se
extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
A prescrição, em outros termos, atinge o poder jurídico, e, por conse­
guinte, o direito de ação.
Se a prescrição alcança a ação, ela só pode vir a se configurar desde que
exista uma ação exercitável, em virtude da não satisfação de uma pretensão,
vale dizer, em face da existência do inadimplemento no cumprimento de de­
terminada prestação positiva ou negativa. Como afirmava Câmara Leal, autor
do melhor estudo sobre a matéria no direito brasileiro, “não basta, porém que
o direito tenha existência atual e possa ser exercido por seu titular, é necessá­

1 Tratado de Direito Privado, t. 6. Campinas: Bookseller, 2000, p. 135.


2 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. 5. Campinas: Bookseller, 2000, p. 503.
8 3 6 - A P r e s c r iç ã o I n t e r c o r r e n t e n o P r o c e s s o A d m in is t r a t iv o F iscal

rio, para admissibilidade da ação, que esse direito sofra alguma violação que
deva ser por ela removida. É da violação, portanto, que nasce a ação. E a pres­
crição começa a correr desde que a ação teve nascimento, isto é, desde a data
em que a violação se verificou”3.
Presente esse requisito (existência de uma ação, de uma pretensão exer-
citável), que a doutrina qualifica como actio nata, é indispensável, também, a
inércia do titular da pretensão, isto é, a sua passividade em face da violação por
este sofrida (inadimplemento).
Convém observar que a inércia do titular não pode ser eventual, episódi­
ca, devendo, ao contrário, se prolongar no tempo. Exige-se, como defendia
Câmara Leal, a “inércia continuada”4.
Por se tratar de uma categoria do direito positivo5, é o ordenamento
jurídico que estabelece os prazos prescricionais, levando em consideração o
conteúdo da pretensão alcançada pela prescrição.
Em qualquer caso, o critério para o início da contagem do prazo é o
mesmo: a violação do direito, que tem como conteúdo uma pretensão.

3 . A PRESCRIÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

No direito tributário, a prescrição alcança situações jurídicas diversas. Pode


atingir o direito subjetivo do Fisco, que o Código Tributário Nacional qualifica
como “crédito tributário”6, cujo conteúdo é a pretensão de exigir o pagamento
do tributo. De outro lado, pode atingir a pretensão do contribuinte à restituição
do tributo indevido. Por esse motivo, é possível falar em prescrição da pretensão
do Fisco e na prescrição da pretensão do contribuinte7.

3 Da Prescrição e da Decadência. São Paulo: Saraiva, 1939, p. 33.


4 O autor explica o significado desse requisito da prescrição: "inércia e tempo são elementos que se
conjugam, para associados, determinarem a prescrição. A inércia é a sua causa eficiente e o tempo
o fator operante. Se, antes de consumado o tempo, a inércia cessa e o titular se torna ativo, a
prescrição se interrompe. Logo, é a inércia continuada, ou continuidade da inércia, que constitue
elemento da prescrição, que, para consumar-se, requer que essa continuidade se prolongue, sem
interrupção, durante todo o tempo determinado pela lei para o exercício da ação". Op. cit, p. 38.
5 Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, t. VI, p. 135.
6 Tanto a obrigação tributária quanto o crédito tributário são categorias de direito positivo,
como defende Souto Maior Borges (Obrigação Tributária, 2aed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.
38), posição à qual aderimos.
7 Eurico Marcos Dinis de Santi separa as duas modalidades de prescrição em "prescrição do direito
do Fisco" e "prescrição do direito do contribuinte" (Decadência e Prescrição no Direito Tributário,
3a ed. São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 163 e 253). Para nós, a prescrição atinge a pretensão
e não o direito material, razão pela qual preferimos falar em "prescrição da pretensão".
P a u l o R o b e r t o L y r io P im e n t a - 8 3 7

Por se tratar de categoria do direito positivo, vale reafirmar, a lei tributá­


ria estabeleceu prazos diferenciados para a prescrição do crédito tributário
(CTN, art. 174) e da pretensão à restituição (CTN, art. 168).
Quando se utiliza a expressão “prescrição intercorrente”, no âmbito do
processo administrativo fiscal8, discute-se a possibilidade de extinção da pre­
tensão, e, por conseguinte, do direito de ação do Fisco à exigência do crédito
tributário. Sendo assim, faz-se mister tecer algumas considerações acerca des­
sa modalidade de procedimento.

4 . O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL: PREMISSAS


NECESSÁRIAS À COMPREENSÃO DO TEMA

O exame da questão central do presente estudo deve ser realizado com


base em duas premissas acerca do processo administrativo tributário.
A primeira diz respeito à impugnação ao lançamento. Uma vez realizado o
lançamento, abre-se a possibilidade de revisão dos atos administrativos pela própria
Administração. Assim sendo, poderá o contribuinte insurgir-se contra o ato
administrativo de constituição do crédito tributário, impugnando-o. Se for ven­
cido na decisão de primeira instância administrativa, poderá apresentar recurso
ao órgão colegial superior. Tais atos do contribuinte importam na suspensão da
exigibilidade do crédito tributário (CTN, art. 151, III). Logo, a apresentação
desses meios de defesa pelo contribuinte impede o Fisco de ajuizar o processo
de execução fiscal. Nessa situação, portanto, existirá um obstáculo intransponí­
vel à deflagração do procedimento de exigência do crédito.
É importante observar, também, que os órgãos administrativos com com­
petência decisória exercem função administrativa, e não jurisdicional. Embo­
ra ainda exista uma polêmica na doutrina acerca da nota característica da
função jurisdicional, o critério mais acertado para a resolução do problema é
aquele sugerido há bastante tempo por Giuseppe Chiovenda, segundo o qual
a jurisdição é uma atividade “substitutiva”, isto é, por meio dela o Estado se
substitui as partes, realizando uma atividade que elas poderiam ter cumprido,
mas não o fizeram, em virtude do inadimplemento de uma delas (jurisdição
contenciosa) ou da existência de um obstáculo imposto pela lei (jurisdição

8 A prescrição intercorrente pode, também, se configurar no âmbito do processo judiciai de


execução fiscal.
8 3 8 - A P r e s c r iç ã o In t e r c o r r e n t e n o P r o c e s s o A d m in is t r a t iv o F isc a l

voluntária). No processo administrativo, o órgão julgador não se substitui às


partes. Em verdade, ele age como parte do processo, regulando uma relação
jurídica da qual participa.
Destarte, o processo administrativo fiscal representa modalidade de
processo de controle da legalidade dos atos administrativos pela própria
Administração.
Estabelecidas essas premissas, passemos à análise da possibilidade ou não
de ocorrência da prescrição intercorrente no âmbito do processo em epígrafe.

5 . A PRESCRIÇÃO in t e r c o r r e n t e n o p r o c e s s o
a d m in is t r a t iv o f is c a l

5 .1 . C o r r e n t e s fa v o r á v eis à a d m is s ã o da
p r e s c r iç ã o in t e r c o r r e n t e

Respeitável setor da doutrina advoga a tese da existência de prescrição


intercorrente no processo administrativo tributário, na situação em que en­
tre o ato de lançamento e a decisão final administrativa transcorrer prazo
superior a cinco anos. Defende-se, então, que seria possível falar na existên­
cia do aludido fenômeno diante da não conclusão definitiva do processo
administrativo fiscal.
Vários argumentos são defendidos para sustentar essa tese. Uma primei­
ra corrente defende, por exemplo, a aplicação analógica do art. 202, § único
do Código Civil, que dispõe o seguinte: “A prescrição interrompida recomeça
a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para
a interromper”9. Desse modo, dever-se-ia aplicar ao prazo para a conclusão do
processo administrativo fiscal o mesmo prazo previsto para o ajuizamento da
ação de execução fiscal (CTN, art. 174), em face da inércia do sujeito ativo
em impulsionar o processo administrativo fiscal.
Outro não é o posicionamento de Djalma Bittar: “Portanto, se nos afi­
gura sem qualquer receio de atentar contra a metodologia científica que deve
orientar a tese ora defendida, que o art. 173 do Código Civil serve de substra­
to para que o enunciado prescritivo relativo à prescrição intercorrente no pro­

9 Dispositivo de idêntico teor era veiculado pelo art. 173 do Código Civil de 1916.
P a u l o R o b e r t o L y r io P im e n t a - 8 3 9

cesso administrativo possa ser readmitido sem maiores ressalvas”10. E arremata


afirmando que se a Administração demonstra desinteresse no encerramento
do processo administrativo fiscal, “possibilitará ao Julgador a declaração da
prescrição intercorrente com supedâneo nos arts. 179 e, especialmente, no art.
173 do Código Civil, que disciplina fato jurídico de direito material, con­
substanciado no direito subjetivo de exigir do sujeito passivo o corresponden­
te dever jurídico”11.
Ao nosso sentir, a regra do art. 202 do atual Código Civil, outrora veicu­
lada pelo art. 173 do Código de 1916, não autoriza essa conclusão. Em verda­
de, o dispositivo versa sobre interrupção de prescrição, e não sobre a existência
de prazo em processo administrativo, muito menos em processo administrati­
vo fiscal. Reconhecer que o efeito interruptivo sobre a prescrição determina a
sua recontagem não significa, em hipótese alguma, admitir a existência de
prescrição intercorrente em procedimento de natureza administrativa. Vale
dizer, a situação regulada pela lei civil não guarda identidade com a situação
existente no processo administrativo fiscal.
Outra corrente doutrinária defende que a inércia da Administração em
impulsionar o processo administrativo, solucionando a resistência do contri­
buinte, prejudicaria o sujeito passivo da obrigação tributária, posto que ele
sofreria um ônus financeiro, decorrente da incidência de juros e correção mo­
netária sobre o valor da dívida. Em verdade, o fundamento da tese é um argu­
mento de natureza econômica, e não jurídica. Ademais, o inadimplemento da
obrigação tributária pelo contribuinte também gera um ônus financeiro para
o Fisco, sujeitando-o ao pagamento de correção monetária sobre as obrigações
das quais é devedor. Por tais motivos, pensamos que essa argumentação não é
suficiente para a defesa da existência de prescrição intercorrente no processo
administrativo fiscal.
Uma terceira linha de posicionamento admite a aplicação analógica da
prescrição intercorrente, prevista para o processo de execução fiscal (Lei 11.051/
04). Esse texto normativo acrescentou um parágrafo ao art. 40 da Lei de
Execução Fiscal, estabelecendo o seguinte: “Se da decisão que ordenar o ar­
quivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a

I0 Prescrição Intercorrente em Processo Administrativo de Consolidação do Crédito Tributário.


Revista Dialética de Direito Tributário, n° 72, p. 22.
II Op. cit., p. 22.
8 4 0 - A P r e s c r iç ã o I n t e r c o r r e n t e n o P r o c e s s o A d m in is t r a t iv o F iscal

Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e


decretá-la de imediato”.
Com o devido respeito da corrente que defende esse posicionamento,
ousamos dela divergir, por vários motivos. Em primeiro lugar, na execução
fiscal a parte autora é o Fisco, e não o contribuinte. Em segundo, a resistência
ao lançamento, por meio da impugnação, não configura exercício do direito
de ação. Em terceiro lugar, o direito de ação, por força do disposto no art. 174
do CTN, só aparece com a constituição definitiva do crédito tributário. Fi­
nalmente, não se pode admitir a interpretação e aplicação analógica de regras
sobre a prescrição.
Já a quarta corrente doutrinária postula a aplicação do art. 173, par. úni­
co, do CTN. Sustenta que, se o prazo previsto nesse dispositivo começa a
correr com o início da constituição do crédito, pela notificação de qualquer
medida preparatória, então esse enunciado prescritivo não se refere a um pra­
zo para iniciar o procedimento, pois o seu termo inicial já representa o ato que
inicia o procedimento. Em verdade, tal regra estabeleceria um prazo direcio­
nado para o período posterior ao início do procedimento pela notificação do
sujeito passivo.
De outro lado, o caput do art. 173 conteria um prazo para iniciar o
procedimento, enquanto o parágrafo único estabeleceria um prazo para concluir
a constituição definitiva, vale dizer, um prazo para a Administração atuar, sob
pena de extinção do direito de constituir o crédito tributário, por perempção.
Sistematizando, para essa corrente, uma vez iniciado o procedimento ad­
ministrativo tributário pela notificação de qualquer medida preparatória indis­
pensável à verificação do fato gerador, identificação do sujeito passivo, etc.; teria
início um prazo peremptório de cinco anos para que se constituísse definitiva­
mente o crédito tributário, sob pena de extinção do direito de constituição.
Logo, haveria no CTN três prazos: a) um prazo de decadência, até a lavra-
tura do auto de infração (lançamento); b) um prazo de perempção, desde o
início do procedimento até a sua conclusão; c) um prazo de prescrição, depois
de concluído o procedimento administrativo. A doutrina utiliza a expressão
“perempção”, e não prescrição, pois seriam distintos os direitos de lançar (sujeito
à decadência) e o de constituir o crédito tributário (sujeito à perempção).
Apesar de ser defendida por doutrinadores da mais alta qualidade, ousa­
mos modestamente divergir desse posicionamento. Há que se observar, inicial­
mente, que a regra do parágrafo único do CTN atua para antecipar o início da
P a u l o R o b e r t o L y r io P im e n t a - 8 4 1

contagem do prazo de decadência12. Trata-se, portanto, de regra autônoma.


Examinando o assunto, conclui Hugo de Brito Machado: “a) o prazo de deca­
dência se inicia no primeiro dia útil do exercício financeiro seguinte àquele em
que o tributo poderia ter sido lançado; b) se antes disto o sujeito passivo é
notificado de alguma medida preparatória indispensável ao lançamento, o início
do prazo decadencial é antecipado para a data dessa notificação”13.
Outrossim, o ordenamento não admite a distinção entre direito de lan­
çar e direito de constituir o crédito tributário. O lançamento é o ato de cons­
tituição do crédito tributário, razão pela qual direito de lançar é expressão
equivalente a direito de constituir o crédito.
Acresça-se, ainda, que a regra do parágrafo único do art. 173 do CTN refe­
re-se à decadência do direito do Fisco em constituir o crédito, e não à prescrição.
Finalmente, “perempção” é termo técnico-jurídico aplicável ao processo
jurisdicional (CPC, art. 267, V). Não atinge o direito material nem alcança a
pretensão, como ocorre com a prescrição.
Por tais motivos, parece-nos que o entendimento esposado pela mencionada
corrente, embora embasado em argumentos razoáveis, não merece ser acolhido.
Uma quinta corrente sustenta, também, que o Fisco tem o dever de
oficialidade. Se não cumpre esse dever, deverá ser penalizado com o reconhe­
cimento da prescrição intercorrente.
Com efeito, porém, de fato existe tal dever para o Fisco, todavia, o seu
inadimplemento deve ser solucionado com a responsabilidade funcional do
servidor que tiver dado causa à paralisação injustificada do processo, e não
com a admissão da prescrição.
Há quem defenda, ainda, a tese da prescrição intercorrente com base no
princípio da segurança jurídica, que veda que as situações se prostraiam no
tempo, permanecendo em estado de indeterminação eterna. Ao nosso sentir,
entretanto, o princípio mencionado tem a ver com as ideias de previsibilidade
e de calculabilidade, e não com a prescrição intercorrente. Em outras palavras,
a segurança jurídica não tem relação com o problema em análise14.

12 Nesse sentido: Luciano Amaro (Direito Tributário Brasileiro, 10a ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
396) e Regina Helena Costa (Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 269-270).
13 Curso de Direito Tributário, 11a ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 144.
14 Sobre a segurança jurídica no direito tributário, conferir, por todos, César Garcia Novoa (El
Principio de Seguridad Jurídica em Matéria Tributária. Madrid: Marcial Pons, 2000).
8 4 2 - A P r e s c r iç ã o In t e r c o r r e n t e n o P r o c e s s o A d m in is t r a t iv o F iscal

Finalmente, com a promulgação da Emenda Constitucional n° 45/2004,


que inseriu o inciso LXXVIII no art. 5o da Constituição Federal, apareceu
nova linha de posicionamento, admitindo a possibilidade de configuração da
prescrição intercorrente em face da demora na conclusão do procedimento
administrativo fiscal, que violaria o direito à duração razoável do processo.
Entretanto, essa garantia constitucional não implica em estabelecimento de
uma sanção para o atraso no desfecho do procedimento administrativo fiscal,
mormente porque esta pode decorrer de motivos que, muitas vezes, não são
imputados à Administração.
5 .2 . N o ssa p o s iç ã o

O direito de defesa do contribuinte, no âmbito administrativo federal,


pode ser exercido por meio da impugnação, recurso voluntário e recurso espe­
cial (Decreto 70.235/72). Logo, como tais remédios jurídicos representam
exercício de direito de defesa pelo contribuinte, contra ele é que poderia cor­
rer o prazo de prescrição, pois é ele quem tem a pretensão.
A prescrição é a perda do direito de ação pela retirada da eficácia da
pretensão de direito material, reafirme-se. A defesa do contribuinte, no âmbi­
to administrativo, não configura exercício do direito de ação, o qual se aloja no
plano processual.
Só quem tem pretensão, ou seja, a faculdade de exigir o cumprimento de
uma prestação positiva ou negativa, pode permanecer inerte no exercício desse
poder jurídico, sofrendo, por isso, as conseqüências da sua inércia.
Não se pode penalizar com o instituto da prescrição quem estava impe­
dido de cobrar, isto é, impedido de atuar, pois a impugnação e os recursos
administrativos suspendem a exigibilidade do crédito tributário (CTN, art.
151, III).
Sendo assim, a prescrição intercorrente, como instituto que penaliza quem
tem o direito de ação, não pode ser aplicada ao Fisco, no processo administra­
tivo fiscal, quando instaurada a resistência do contribuinte, pois em tal situa­
ção a Administração não dispõe de pretensão material, eis que impedida de
atuar, por obstáculo expressamente previsto no ordenamento.
Por tais fundamentos, pensamos não ser admissível no processo adminis­
trativo fiscal a prescrição intercorrente.
P a u l o R o b e r t o L y r io P im e n t a - 8 4 3

Outro não é, a propósito, o entendimento majoritário da jurisprudên­


cia do Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do Recurso Especial n°
784.353, a I a Turma estabeleceu que “enquanto há pendência de recurso
administrativo, não correm os prazos prescricional e decadencial. Somente a
partir da data em que o contribuinte é notificado do resultado do recurso é
que tem início a contagem do prazo de prescrição previsto no art. 174 do
CTN. Destarte, não há falar em prescrição intercorrente em sede de proces­
so administrativo fiscal”is. Noutro julgado esse entendimento foi mais uma
vez defendido: “a exegese do STJ quanto ao artigo 174, caput, do Código
Tributário Nacional, é no sentido de que, enquanto há pendência de recur­
so administrativo, não se admite aduzir suspensão da exigibilidade do cré­
dito tributário, mas, sim, um hiato que vai do início do lançamento, quando
desaparece o prazo decadencial, até o julgamento do recurso administrativo
ou a revisão ex officio. Consequentemente, somente a partir da data em que
o contribuinte é notificado do resultado do recurso ou da sua revisão, tem
início a contagem do prazo prescricional, razão pela qual não há que se
cogitar de prescrição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal
(RESP 485738/RO, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 13.09.2004,
e RESP 239106, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 24.04.2000)”16.
A posição da 2a Turma do Tribunal também recusa a admissibilidade da
prescrição intercorrente na situação em exame17.
Prevalece, pois, em sede jurisprudencial, a posição defendida no pre­
sente estudo.

6. C o n clu sõ es

i) A prescrição atinge a pretensão material, e, por conseguinte, o direito


de ação. No direito tributário, alcança situações jurídicas diversas;
ii) Respeitável setor da doutrina defende, com base em vários argumen­
tos, a existência de prescrição intercorrente no processo administrativo tribu­
tário, na situação em que entre o ato de lançamento e a decisão final
administrativa transcorre prazo superior a cinco anos;

15 STJ, RESP 784.353, 1a Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 24/04/2008. No mesmo sentido:
STJ, REPS 200701160836, 1a Turma, Rel. Min. Teoria Albino Zawascki, DJ 04/02/2009.
16 STJ, RESP 734.680, 1a Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 01/08/2006.
17 STJ, RESP 200400811937, 2a Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 30/09/2008.
8 4 4 - A P r e s c r iç ã o I n t e r c o r r e n t e n o P r o c e s s o A d m in is t r a t iv o F iscal

iii) Quem tem pretensão pode permanecer inerte no exercício desse po­
der jurídico, sendo alcançado pela prescrição;
iv) A prescrição intercorrente, como instituto que penaliza quem tem o
direito de ação, não pode ser aplicada ao Fisco, no processo administrativo
tributário, quando instaurada a resistência do contribuinte, pois nessa situa­
ção a Administração não dispõe de pretensão material, eis que impedida de
atuar, por obstáculo expressamente previsto no ordenamento.

Salvador, novembro de 2009.


Sucumbência do Vencedor
na Execução Fiscal

Schubert de Farias Machado


Advogado em Fortaleza
Diretor do Instituto Cearense de Estudos Tributários
Professor de Direito Tributário da Faculdade Farias Brito
S c h u b e r t DE F a r ia s M a c h a d o - 8 4 7

1. In tro d u çã o

Uma interessante questão, relativa ao ônus com o pagamento dos hono­


rários de advogado na execução fiscal, foi deslindada pelo Superior Tribunal
de Justiça. Aplicando o regime dos recursos repetitivos, o STJ pacificou o seu
entendimento no sentido de que a Fazenda Pública deve ser condenada a
pagar honorários de advogado nas execuções fiscais extintas depois que se
constata a inexistência do crédito tributário respectivo, nos casos em que o
contribuinte, antes da propositura da ação executiva, tiver tomado a iniciativa
de corrigir o erro contido nas informações que antes prestara ao fisco e foram
assim utilizadas para constituir o título executivo - CDA1.
Há, contudo, uma parte do julgado que ainda merece atenção e cuidado
na sua interpretação. Aplicando o princípio da causalidade, o STJ considerou
que não havendo aquela retificação —mesmo diante de cobrança de tributo
indevido —o ônus com o pagamento dos honorários deve ser atribuído ao
contribuinte, pois o contribuinte que erra no preenchimento da Declaração
de Débitos e Créditos de Tributos Federais - D C TF deve ser responsabi­
lizado pelo pagamento dos honorários advocatícios.
O Direito não pode ser visto apenas de forma pontual. Ao examinar a
árvore não podemos esquecer a floresta. Aproximar e distanciar de uma nor­
ma específica, buscando os detalhes do caso sem perder a noção de todo o
ordenamento, é movimento indispensável para o jurista.
Nessa perspectiva, convidamos o leitor a examinar essa decisão do Supe­
rior Tribunal de Justiça, levando em conta, sobretudo, a natureza da obrigação
tributária e a formação do título executivo fiscal.
1. O RESP 969.358-SP
Partiremos da ementa da decisão em foco, que traz um resumo dos seus
fundamentos:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESEN­
TATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. EXE­
CUÇÃO FISCAL. EXTINÇÃO. CANCELAMENTO DO DÉ­
BITO PELA EXEQÜENTE. ERRO DO CONTRIBUINTE NO
PREENCHIMENTO DA DECLARAÇÃO DE DÉBITOS E

1 Ag. Rg. no RESP n° 969.358-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julg. em 23.09.2009.
8 4 8 - S u c u m b ê n c ia d o V e n c e d o r h a E x e c u ç ã o F isc a l

CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS FEDERAIS - DCTF. HONORÁ­


RIOS ADVOCATÍCIOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
CAUSALIDADE. IMPRESCINDIBILIDADE DA VERIFICA­
ÇÃO DA DATA DE APRESENTAÇÃO DA DECLARAÇÃO
RETIFICADORA, SE HOUVER, EM COTEJO COM A DATA
DO AJUIZAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL.
1. Não viola o art. 535, do CPC, o acórdão que vem dotado de funda­
mentação suficiente para sustentar o decidido.
2. Em sede de execução fiscal é impertinente a invocação do art. 1°-D,
da Lei n° 9.494/97, tendo em vista que o Plenário do STF, em sessão
de 29.09.2004, julgando o RE 420.816/PR (DJ 06.10.2004) declarou
incidentemente a constitucionalidade da MP n° 2180-35, de
24.08.2001 restringindo-lhe, porém, a aplicação à hipótese de execu­
ção, por quantia certa, contra a Fazenda Pública (CPC, art. 730).
3. E jurisprudência pacífica no STJ aquela que, em casos de extinção de
execução fiscal em virtude de cancelamento de débito pela exeqüente,
define a necessidade de se perquirir quem deu causa à demanda a fim
de imputar-lhe o ônus pelo pagamento dos honorários advocatícios.
Precedentes: AgRg no REsp. N° 969.358 - SP, Segunda Turma, Rel.
Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 6.11.2008; EDclno AgRg
no AG N° 1.112.581 —SP, SegundaTurma, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, julgado em 23.7.2009; REsp N° 991.458 - SP, Segunda
Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 2.4.2009;
REsp. N° 626.084 - SC, Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda,
julgado em 7.8.2007; AgRg no REsp 818.522/MG, Ia Turma, Rel.
Min. José Delgado, DJ de 21.8.2006; AgRg no REsp 635.971/RS, Ia
Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 16.11.2004.
4. Tendo havido erro do contribuinte no preenchimento da Declaração
de Débitos e Créditos Tributários Federais - DCTF, é imprescindível
verificar a data da apresentação do documento retificador, se houver, em
cotejo com a data do ajuizamento da execução fiscal a fim de, em razão
do princípio da causalidade, se houver citação, condenar a parte culpa­
da ao pagamento dos honorários advocatícios.
5. O contribuinte que erra no preenchimento da Declaração de Débitos
e Créditos Tributários Federais - DCTF deve ser responsabilizado pelo
pagamento dos honorários advocatícios, por outro lado, o contribuinte
que a tempo de evitar a execução fiscal protocola documento retificador
SCHUBERT DE FARIAS M ACHADO - 8 4 9

não pode ser penalizado com o pagamento de honorários em execução


fiscal pela demora da administração em analisar seu pedido.
6. Hipótese em que o contribuinte protocolou documento retificador antes
do ajuizamento da execução fiscal e foi citado para resposta com a conse­
qüente subsistência da condenação da Fazenda Nacional em honorários.
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução
STJ 08/2008.”
(REsp 1111002/SP, Rel. MinistroMAURO CAMPBELL MARQUES,
PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 01/10/2009).
Fica muito claro que o STJ atribuiu grande importância ao fato de o
contribuinte ter cometido erro ao preencher a DCTF, ao ponto de conside­
rar tal erro como fator determinante para a sua condenação a pagar os hono­
rários advocatícios na execução fiscal, mesmo cancelada por inexistência do
crédito tributário.
Com o devido respeito por esse posicionamento do Superior Tribunal de
Justiça, entendemos que vale refletir sobre tal condenação fundada unica­
mente no princípio da causalidade, sobretudo diante da natureza jurídica do
lançamento tributário.

2. OS FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE PELOS


ENCARGOS DO PROCESSO

O Código de Processo Civil trata da responsabilidade pelas despesas do


processo no seu artigo 202. Essa norma é clara no sentido de atribuir a respon­

2 "Art. 20 - A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os


honorários advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advoga­
do funcionar em causa própria. § 1o O juiz, ao decidir qualquer incidente ou recurso, condenará
nas despesas o vencido. § 2o As despesas abrangem não só as custas dos atos do processo, como
também a indenização de viagem, diária de testemunha e remuneração do assistente técnico. §
3o Os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% (dez por cento) e o máximo de 20% (vinte
por cento) sobre o vaior da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional; b) o lugar
de prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo
advogado e o tempo exigido para o seu serviço. § 4o Nas causas de pequeno valor, nas de valor
inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas
execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do
juiz, atendidas as normas das alíneas "a", "b" e "c" do parágrafo anterior. § 5o Nas ações de
indenização por ato ilícito contra pessoa, o valor da condenação será a soma das prestações
vencidas com o capital necessário a produzir a renda correspondente às prestações vincendas
850 - S u c u m b ê n c ia d o V en c ed o r n a E x e c u ç ã o F is c a l

sabilidade ao vencido, inclusive quando for a Fazenda Pública, sem perquiri-


ção acerca das relações extraprocessuais que deram origem à demanda. Con­
siste no chamado princípio da sucumbência. Comentando o referido
dispositivo da lei processual, Pontes de Miranda ensina que a sanção imposta
pelo Código não se limita às ações do ato ilícito. O pressuposto para o ônus da
sucumbência é um só: “ter havido perda da causa, pelo autor, ou pelo réu, ou
quem quer que seja perdente”3.
A decisão que ora examinamos, contudo, aplicou o princípio da causali­
dade como único orientador para a atribuição da responsabilidade pelo paga­
mento das despesas processuais, ou seja, aquele que der causa à demanda deve
ressarcir as despesas que a outra parte foi levada a suportar, mesmo que esta
eventualmente reste vencida.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que mesmo a Fazenda pedin­
do a extinção da execução fiscal, por reconhecer inexistir débito, estaria o
contribuinte sujeito ao pagamento dos honorários de advogado, pois o proces­
so judicial de cobrança teria se originado de erro seu.
E importante explicitar que nessa decisão o STJ atribuiu a responsabili­
dade ao vencedor pelos encargos processuais decorrentes da sucumbência. O
fato de o contribuinte ter apresentado D CTF com informações inexatas teria
causado o lançamento de tributo indevido e a sua posterior cobrança, através
do executivo fiscal. Isso não só afastaria a condenação da Fazenda a pagar os
honorários, como transferiria este ônus ao contribuinte, mesmo extinta a exe­
cução fiscal a pedido da Fazenda. Institui a sucumbência do vencedor.
Ainda preferimos, não obstante o respeito pela orientação do STJ, a técni­
ca da sucumbência objetivamente posta no artigo 20 do CPC, que deve orien­
tar, por princípio, a atribuição da responsabilidade pelos encargos do processo
ao vencido. De fato, o ordenamento deve assegurar ao vencedor o direito por
inteiro, inclusive com a restituição das despesas processuais que foi obrigado a
suportar, como muito bem destaca Chiovenda “por ser do interêsse do Estado
que o emprêgo do processo não se resolva em prejuízo de quem tem razão, e por
ser, de outro turno, interesse do comércio jurídico que os direitos tenham um

(art. 602), podendo estas ser pagas, também mensalmente, na forma do § 2o do referido art.
602, inclusive em consignação na folha de pagamentos do devedor."
3 PONTES MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo I. São Paulo: Forense,
1974, p. 416.
SCHUBERT DE FARIAS M ACHADO - 8 5 1

valor tanto quanto possível nítido e constante”4. No mesmo sentido é a lição de


Carnelutti ao afirmar que “se o dano causado pelo processo àquela parte que
tem razão não fosse ressarcido pela parte que não tem razão, a lide não ficaria
justamente composta”5. As exceções enumeradas pelo Código ao princípio esta­
belecido no seu artigo 20, ao contrário de diminuí-lo, o fortalecem, na medida
em que devem ser interpretadas restritivamente e não anulando a norma geral.
Por fim, as inúmeras indagações que naturalmente surgem sempre que se parte
para o exame da origem das coisas, nos bastam para afastar de vez a aplicação do
princípio da causalidade como regra geral para a responsabilização pelas despe­
sas do processo. Essa questão é analisada com propriedade por Hugo de Brito
Machado Segundo6. Destacamos que o Supremo Tribunal Federal já decidiu
que não é possível a “condenação nos ônus da sucumbência de quem saiu ven­
cedor na demanda, embora concordando em receber menos do que pediu”7.
O próprio Superior Tribunal de Justiça tem recente decisão conciliando
o princípio da sucumbência com o da causalidade, na qual esclarece que quem
dá causa ao processo é aquele que restar derrotado. Vale aqui a referência a
trecho do voto que orienta o acórdão, segundo o qual:
“a regra encartada no artigo 20, do CPC, fundada no princípio da
sucumbência, tem natureza meramente ressarcitória, cujo influxo advém do
axioma latino victus victori expensas condemnatur, prevendo a condenação
do vencido nas despesasjudiciais e nos honorários de advogado. Deveras, a
imposição dos ônusprocessuais, no Direito Brasileiro, pauta-sepeloprincipio
da sucumbência, norteadopeloprincípio da causalidade, segundo o qualaque­
le que deu causa à instauração doprocesso deve arcar com as despesas decor­
rentes. E que a atuação da lei não deve representar uma diminuição
patrimonialpara aparte a cujofavor se efetiva;por interesse do Estado que
o emprego doprocesso não se resolva emprejuízo de quem tem razão.”*
Além disso, a profunda diferenciação que há entre a relação de direito
privado e a relação jurídica tributária, interfere diretamente na atribuição da
responsabilidade processual. Dar causa ao processo significa opor resistência

4 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, vol. III. 2a ed. Tradução de J.
Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 207.
5 CARN ELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Tradução de Adrián Sotero de Witt
Batista. São Paulo: Classicbook, 2000, v.1, p. 411.
6 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. 3a ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 295.
7 STF - 1a Turma, RE 108.569-RJ, julg. em 02 .0 4.19 86, Rel. Min. Carlos Madeira,DJU de
06.06.1986 íntegra do acórdão disponível em: <www.stf.gov.br>.
8 Ag.Rg. no RESP 1.104.279-RS, Rel. Min. Luiz Fuz, julg. em 13.10.2009.
852 - S u c u m b ê n c ia d o V en c ed o r n a E x e c u ç ã o F is c a l

injustificada à pretensão de alguém, que, por isso, se vê obrigado a realizar seu


direito através da tutela do Poder Judiciário. Isso não ocorre no lançamento
tributário. Ao contrário, o fisco tem o dever de lançar e controlar a legalidade
do lançamento. A vontade do contribuinte é o que menos importa. Adiante
analisaremos essa questão.

3 . L a n ç a m e n t o t r ib u t á r io e e x e c u ç ã o f is c a l

O Código Tributário Nacional prevê três modalidades de lançamento,


que se distinguem pela medida da participação do sujeito passivo. O lança­
mento de ofício, no qual toda a atividade é desenvolvida pela autoridade
fiscal. O lançamento por declaração, no qual o sujeito passivo apresenta
uma declaração contendo as informações sobre a matéria de fato, indispen­
sáveis à sua efetivação, que fica a cargo da autoridade fiscal, que deve notifi­
car o sujeito passivo para efetuar o pagamento. E, por fim, o lançamento
por homologação, no qual o contribuinte desenvolve toda a atividade apu-
ratória do valor do tributo devido e deve antecipar seu pagamento, ficando a
cargo da autoridade fiscal a posterior verificação dessa atividade e, se for o
caso, sua respectiva homologação.
O lançamento tributário, em qualquer de suas modalidades, é sempre
ato privativo da autoridade administrativa9. Tem a Fazenda o direito potes-
tativo de lançar o tributo, uma vez que não depende, necessariamente, da
colaboração do contribuinte e pode fazê-lo até mesmo contra a vontade deste.
As informações prestadas pelo contribuinte através das D TCF’s consistem
em mero ato de cooperação com as autoridades fiscais10, com natureza de

9 C TN . Art. 142 - Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito


tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verifi­
car a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável,
calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a
aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena
de responsabilidade funcional.
10 P.R. Tavares Paes anota que: "O Relatório da Comissão Especial, nomeada pelo Ministro da
Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional, ao mencionar o autolançamento,
logo após a justificação do item 101 (lançamento), explica por que acolheu a expressão
"lançamento por homologação" assim: "Visou-se com isso acentuar o que decorria com menor
clareza, da sistemática do Anteprojeto, a saber, que todos os tributos dependem de lançamen­
to. É o que resulta da circunstância do lançamento ser atividade privativa da autoridade fiscal
(art. 105): nessas condições, segundo conclui a doutrina, o chamado autolançamento nada
mais é que uma obrigação acessória" (Tesoro, il cosidetto auto-accertamento. Rivista Italiana di
S c h u b e r t DE F a r ia s M achado - 853

obrigação acessória11. Por isso, essa atividade desenvolvida pelo sujeito passivo,
inclusive quando antecipa o pagamento do tributo, não vincula o fisco, que
não é obrigado a aceitar seu resultado e deve fazer o lançamento conforme a
sua interpretação do direito.
Quando o fisco decide proceder ao lançamento com base apenas nas
informações prestadas pelo contribuinte acolhe como sua a apuração res­
pectiva12. Dessa forma, o eventual erro do sujeito passivo ao prestar suas
informações, por si só, não pode justificar o lançamento de tributo indevido.
Ao contrário, tem o fisco o dever de identificar se tal erro foi cometido pelo
sujeito passivo e cobrar a diferença do tributo eventualmente declarado e
pago a menor, ou devolver de ofício o tributo que por acaso tenha sido
pago de forma indevida.
Realmente, quando o contribuinte apura e declara que deve à Fazenda
determinado valor de IRPJ, por exemplo, isto, por si só, não torna o imposto
devido. É indispensável a anterior ocorrência do respectivo fato gerador. A
natureza ex lege da obrigação tributária implica a desconsideração da vonta­
de das partes (sujeito ativo e sujeito passivo), que não interfere no seu nas­
cimento e conformação. Por isso, a declaração prestada pelo sujeito passivo,
no exercício da atividade prevista no art. 150 do CTN, nunca terá os efeitos
próprios da confissão13.
Portanto, se o contribuinte apresenta ao fisco a apuração de tributo devi­
do, mas não efetua o respectivo pagamento, cabe ao fisco notificá-lo para que
pague ou apresente defesa. Isso para que se materialize a homologação previs­
ta no art. 150 do CTN e, ao mesmo tempo, se dê oportunidade para o sujeito

D iritto Finanziario, 1:12, 1938)." (PAES, P.R. Tavares. Comentários ao Código Tributário nacio­
nal. 4a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 243)
11 DERZI, Misabel Abreu Machado - nas notas de atualização do Direito Tributário Brasileiro de
Aliomar Baleeiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 834.
12 CASSONE, Vittorio. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Lançamento Tributário e D ecadên­
cia. São Paulo: Dialética; Fortaleza-Ce: Instituto Cearense de Estudos Tributários, 2002, p. 454.
13 "Processual civil e tributário. Execução fiscal. Embargos do devedor. Cerceamento de defesa. I
- Se o embargante requer, fundamentadamente, a requisição do procedimento administrativo-
fiscal e a perícia contábil, em seus livros e documentos, não deve o juiz indeferir tais provas,
pelo só fato de que houve declaração espontânea da divida. A atividade administrativa de
constituição do credito tributário e vinculada (CTN, art. 142, parágrafo único), levando-se em
conta que a obrigação tributaria e "ex lege" (CTN, art. 114) tão somente, "in casu", ocorreu o
alegado cerceamento de defesa. II - apelação provida, para anular a sentença monocratica,
devendo outra ser proferida, apos a produção das provas requeridas." (TFR, 5a T., AC 90.013-
SP, julg. em 13-08-1984,ver www.stj.gov.br jurisprudência do TRF)
8 5 4 - S u c u m b ê n c ia do V en c ed o r na E x e c u ç ã o F is c a l

passivo corrigir ocasional erro na sua declaração. Até porque o lançamento


somente se completa com a abertura da sua fase contenciosa14.
Depois de lançado o tributo, cabe à Fazenda proceder à inscrição do
crédito na dívida ativa e extrair a respectiva certidão, que deve instruir a ação
de execução fiscal. Somente depois deste momento pode surgir a resistência
do sujeito passivo à pretensão do fisco, dando ensejo à propositura da ação
executiva. Como facilmente se percebe, não é o sujeito passivo que dá causa à
cobrança de um crédito tributário indevido. Ao contrário, a falta de paga­
mento indica que opôs resistência a essa ilegal cobrança.
Não podemos esquecer que o direito é um sistema e assim deve ser consi­
derado. A solução apresentada para determinado caso deve se encartar harmoni-
camente no ordenamento, sob pena de causar um desequilíbrio cujos reflexos
não demoram a surgir. A questão examinada neste breve estudo mostra isto
muito bem. De fato, o Superior Tribunal de Justiça cedeu ao apelo fazendário e
decidiu que a Fazenda Pública pode inscrever na sua dívida ativa os valores
apurados pelo sujeito passivo no exercício da atividade prevista no art. 150 do
CTN, e em seguida propor a respectiva ação de execução fiscal, sem prévia
notificação para que pague ou apresente defesa. Com isso, provocou um dese­
quilíbrio no ordenamento, cujo reflexo tem se mostrado perverso. O sujeito
passivo teve subtraído o seu direito à oportunidade de abertura da fase conten­
ciosa do lançamento tributário. Isto implica na possibilidade de vir a sofrer
todos os constrangimentos provocados por uma ação de execução fiscal baseada
em crédito apurado com erro no preenchimento de DCTF.
A complexidade cada vez maior da legislação tributária leva o contribuin­
te, na sua atividade de colaborar com a realização do lançamento, a cometer
equívocos. Isso é natural. É humano. Quando o fisco opta por atribuir ao con­
tribuinte a obrigação de apurar o valor dos tributos, assume a posição mais
cômoda e junto com ela o risco de eventuais imprecisões.
De fato, a atividade apuratória do valor do tributo não é própria do
sujeito passivo e, por isto mesmo, não pode ser a ele atribuída a responsabi­
lidade por eventual erro que leve o fisco a cobrar tributo indevido. Se o
fisco, por mera comodidade, se vale unicamente da apuração procedida pelo

14 M ACHADO, Schubert de Farias. In: M ACHAD O, Hugo de Brito (coord.). Lançamento Tribu­
tário e Decadência. São Paulo: Dialética; Fortaleza-Ce: Instituto Cearense de Estudos Tribu­
tários, 2002, p. 431.
S c h u ber t de F a r ia s M achado - 855

sujeito passivo para fazer o lançamento, assume toda a responsabilidade pro­


cessual pela propositura da respectiva ação de cobrança. Ressalte-se que,
agindo desta forma, o fisco descumpre o seu dever de exercer o prévio con­
trole da legalidade do lançamento. É o fisco, portanto, quem dá causa a uma
execução fiscal indevida.
Aqui não cogitamos da hipótese de o contribuinte, propositadamente,
apresentar informações por ele sabidamente falsas, contando com a cobran­
ça do tributo indevido, apenas para obter a condenação do fisco nos ônus da
sucumbência. Realmente, a possibilidade que tal situação venha a ocorrer é
extremamente remota, até porque aquele que assim agisse estaria correndo o
risco de ser obrigado a pagar o valor do tributo declarado. Além disso, mes­
mo que viesse a ocorrer, é da maior evidência que assim fazendo o sujeito
passivo estaria cometendo um crime, que não só excluiria a responsabilidade
da Fazenda pelos ônus processuais na ação de embargos à execução, como
também certamente implicaria a propositura da respectiva ação penal con­
tra o agente delituoso.
Merece destaque, ainda, a Súmula n° 153 do STJ, que tem o seguinte
teor: “A desistência da execução fiscal, após o oferecimento dos embargos, não
exime o exeqüente dos encargos da sucumbência.” Esta súmula levou a Fazenda
Nacional a proferir parecer, aprovado pelo seu Procurador Geral, “que conclui
pela dispensa de interposição de recursos e pela desistência dos já interpostos
nas ações judiciais que versem exclusivamente a respeito da condenação da
União em honorários advocatícios, pela desistência de Execução Fiscal após o
oferecimento de Embargos pelo contribuinte, desde que inexista qualquer
outro fundamento relevante.” Neste mesmo parecer foi adotado como
fundamento o acórdão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça,
da lavra do Ministro Pádua Ribeiro, proferido no Resp 19.085-SP, do qual
destacamos a seguinte passagem: “(...) nem colhe a favor da exeqüente o fato
de o débito ter sido declarado pelo próprio contribuinte, uma vez que,
consoante bem argumentado pela embargante e frisado pelo douto voto vencido,
seu erro não tem o efeito de gerar para a Fazenda Estadual um direito que
esta não tem, no caso concreto, de situação em era notória a posição fazendária
exigindo tributo a que não tinha direito”15.

15 RD D T 81, p. 153.
8 5 6 - S u c u m b ê n c ia do V en c ed o r n a E x e c u ç ã o F is c a l

4 . C o n clu sõ es

(a) No direito positivo brasileiro a responsabilidade pelo pagamento das


despesas do processo judicial, em princípio, se funda na técnica da sucum­
bência do vencido, que deve ressarcir as despesas que a parte vencedora foi
levada a suportar;
(b) O princípio da causalidade há de ser visto apenas como norteador do
princípio da sucumbência, pois quem dá causa ao processo é aquele que resta
vencido. É interesse do Estado que o emprego do processo não se resolva em
prejuízo de quem tem razão;
(c) O lançamento tributário é ato privativo da autoridade administrativa;
(d) As informações prestadas pelo contribuinte consistem em mero ato de
cooperação com as autoridades fiscais, com natureza de obrigação acessória;
(e) A atividade desenvolvida pelo sujeito passivo, inclusive quando anteci­
pa o pagamento do tributo, não vincula o fisco, que não é obrigado a aceitar seu
resultado e deve fazer o lançamento conforme a sua interpretação do direito;
(f) Assim, sempre que o sujeito passivo demonstrar ser indevido o tribu­
to cobrado, tem o direito de obter a condenação da fazenda no pagamento de
honorários de advogado, mesmo que o lançamento inválido tenha se origina­
do das informações prestadas pelo próprio sujeito passivo.
Transação, Soluções
Alternativas de
Controvérsias,
Racionalidade Conjuntural e
Legitimação pelo Consenso.
Novos paradigmas da relação
entre direito tributário e
economia?

Sérgio Papini de Mendonça Uchôa Filho


Mestrando em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito do
Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em
Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Membro associado da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET) e do
IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário). Advogado e consultor de
empresas em São Paulo, Recife e Maceió.
S é r g io P a p in í de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 5 9

In tro d u çã o

O presente artigo pretende abordar a utilização da transação, bem


como dos demais meios de composição, como formas de resolução de dis­
putas administrativas e judiciais entre o Fisco e contribuintes, conside­
rando a celeridade e a eficiência que tais meios podem proporcionar à
arrecadação fiscal.
Tema de indubitável atualidade, sobretudo com o advento do anteproje­
to de lei de autoria da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - PGFN e da
Advocacia Geral da União - AGU sobre transação e conciliação em conflitos
tributários, a utilização de meios alternativos de prevenção e terminação de
litígios já difundidos em alguns países desenvolvidos passou a integrar, mais
recentemente, a realidade do processo tributário brasileiro.
Diante da necessidade de célere efetivação da pretensão jurisdicional e
considerando a exorbitante carga tributária brasileira, há grande dificuldade
das empresas de se adaptarem à vasta e complexa legislação fiscal diariamente
editada. Ao se examinar o sistema tributário brasileiro, verifica-se que a trans­
ferência de atividades liquidatárias para os contribuintes, assim como a pre­
sença cada vez mais constante de conceitos indeterminados nas leis fiscais,
deram impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a
solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes.
Diante desse fato, a transação, a conciliação, a mediação e a arbitragem
aparecem como alternativas importantes na área fiscal.
A consolidação desses institutos está diretamente vinculada à ideia de
que o direito há de se relacionar com a economia, partindo-se da premissa de
que no momento em que a ciência econômica busca encontrar soluções para a
carência de recursos, a jurídica serve de instrumento de harmonização das
relações sociais, limitando as liberdades e tutelando os direitos e garantias
individuais e os interesses coletivos.
Em outras palavras, as ciências jurídica e econômica devem se auxiliar
mutuamente na busca de soluções para os problemas enfrentados pela
sociedade1. Concorda-se, pois, com a ponderação de Wolfang Schõn, para

1 Cf. COO TER, Robert; ULLEN, Thomas. Law and Economics. 4. ed. The Addison-Wesley series
in economics, 2004, p. 2-4.
860 - T ran sação , S o lu çõ es A l t e r n a t iv a s d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n ju n t u r a l .

quem a interação entre juristas e economistas pode constituir um largo


avanço científico2.

1 . D ir e it o e E c o n o m ia : u m a a b o r d a g e m e v o l u c io n is t a
À LUZ DA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DO DIREITO

O direito sempre teve dois interlocutores privilegiados: a política e a


economia3, E bem verdade que se caminha para uma relação tridimensional,
em que outros importantes fatores da vida social passam a ser considerados:
direito e educação, direito e tecnologia, entre outros. É a ideia de direito
policontextual; isto é, há uma relação cada vez mais complexa entre o direi­
to e o ambiente que o cerca.
Ocorre que, dentro desse contexto, limitaremos nossa análise no presen­
te artigo à relação entre direito e economia.
Há algumas tendências de análise dessa relação: i) Análise econômica do
direito (diferentes correntes)4; ii) Neo-institucionalismo: prevê a relação en­

2 Cf. SCHÔN, Wolfang. Tax and Corporate Covernance: A Legal Approach. In: Tax and Corporate
C overnance. Berlin: Springer, 2008, p. 61. No original, referindo-se o autor a essa interação e
citando recente trabalho de Gentry - The Future o f Tax Research: A M o stly Econom ic Perspective,
29 Journal of the American Taxation Association 95 (2007): "This w ill b e the goal o f m ore
interdisciplinary w ork o f econom ists and iaw yers."
3 fàra Kelsen, esse diálogo aparece, mas apenas para evidenciar o contraste entre os sistemas. Cf.
KELSEN, Hans. Teoria Pura d o Direito, 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. A jurisprudência
dos interesses o fez para aproximar o direito dos interesses econômicos. Weber também
enfrentou a relação entre direito e economia. Cf. W EBER, M. (1964). Econom ia Y Socieda d. 2a
ed. México: Fondo de Cultura Econômica (1 edição em alemão, 1922). Para Teubner, por sua
vez, haveria uma relação bidimensional do direito (política e economia). Cf. TEU BN ER,
Gunther. O direito com o sistem a autopoiético. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1993.
4 "A maior parte dos juristas e economistas, ao utilizar a expressão Análise Econôm ica do Direito,
se refere, comumente, à aplicação de métodos econômicos - da microeconomia em especial -
a questões legais. Nesse sentido, tendo em vista que o Direito é, de uma perspectiva objetiva,
a "arte de regular o comportamento humano" e que a Economia é a ciência que estuda a
tomada de decisões em um mundo de recursos escassos e suas conseqüências, a Análise
Econômica do Direito seria o emprego dos instrumentais teóricos e empíricos econômicos e
ciências afins para expandir a compreensão e o alcance do direito, aperfeiçoando o desenvol­
vimento, a aplicação e a avaliação de normas jurídicas, principalmente com relação às suas
conseqüências". Trecho disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Análise_econôm ica_
do_direito>. Acesso em 1 7 de dezembro de 2009. É possível fixar o começo da escola
moderna de Análise Econômica do Direito no ano de 1961, com a publicação dos artigos
"The Problem o f Social C o st" e "Som e thoughts on Risk Distribution and the Law o f Torts" de
Ronald Coase e Guido Calabresi, respectivamente. Todavia, o nome em inglês do movimento,
"Law and Economics' somente foi dado por Henry Manne (estudante de Coase) na década de
70, quando tomou a iniciativa de construir um "Center for Law and Economics" em "Rochester",
que atualmente se encontra na "George Mason Law School". A maior parte dos trabalhos
acadêmicos sobre AED se insere na tradição econômica neoclássica, eis que outras abordagens
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chô a F il h o - 8 6 1

tre marco regulatório, direito, instituições e desenvolvimento econômicos; iii)


Law & Development. aproxima direito e economia e possuiu discurso impor­
tante nas décadas de 60 e 706; e iv) teoria dos sistemas de Luhman/Teubner7:
na nossa visão, trata-se de contribuição original para se interpretar a relação
entre Direito e Economia à luz das sociedades cada vez mais complexas.
Some-se a essas possibilidades de abordagem da questão a sociologia
econômica do direito8. A sociologia econômica é um ramo da sociologia que

econômicas do Direito, como as abordagens marxistas e das teorias críticas da Escola de


Frankfurt, não costumam se intitular dessa maneira. Existe, todavia, uma abordagem não-
neoclássica da Análise Econômica do Direito chamada de Continental que identifica o nasci­
mento do conceito com a Staatswissenschaften e com a Escola Histórica alemã de Economia.
Para as origens históricas da AED, vide PARISI, Francesco e ROWLEY, Charles K. The Origins o f
Law a n d E co n o m ic s - Essays b y the Fo u n d in g Fathers. Mass.: The Locke Institute, 2005,
M ERCURO, Nicholas e MEDEMA, Steven G. Econom ics and the Law - From Posner to Post-
M odernism and Beyon d. Princeton University Press, 2006. Sobre o tema, remetemos o leitor às
seguintes obras: CALIENDO, Paulo. D ireito Tributário e A nálise Econôm ica d o D ireito. Uma
visão Crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. SALAMA, Bruno Meyerhof. O que é pesquisa em
Direito e Economia? Cadernos D ireito C V , v. 5, n° 2, março de 2008. ZYLBERSZTAJN, Decio e
SZTAJN, Rachel (org.). D ireito & Econom ia. Análise Econôm ica do D ireito e das O rganizações.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
5 O neoinstitucionalismo contempla fatores de grande importância analítica, e de grande poder
explicativo, para o entendimento de processos de tomada de decisões públicas. Aspectos
como o papel das ideias e a mudança das instituições, por exemplo, contribuem de maneira
significativa para o desenvolvimento dos estudos sobre direito e economia.
6 Law & D eve lo p m en t é um estudo interdisciplinar de direito, economia e desenvolvimento
social. O estudo analisa a relação entre direito e desenvolvimento, bem como a maneira pela
qual a lei deve ser utilizada como um instrumento de promoção do desenvolvimento econô­
mico, democracia e direitos humanos.
7 Para Luhmann, pode-se reconhecer um sistema diferenciado de seu ambiente. Alega que a
comunicação é o traço característico da sociedade. A sociedade é um sistema de comunicação
e demarca seu limite com base nele próprio, ou seja, pela comunicação. Opera com algo que
é seu e por isso é um sistema fechado. Encontra no seu interior tudo o que precisa (estruturas/
elementos) para sua reprodução ou para a reprodução de sua operação. Trata-se, curiosamente,
de um fechamento de sistema (fechamento operacional) que é condição de sua abertura de
relacionamento com o ambiente (abertura cognitiva). Nas condições da sociedade moderna
esse sistema de comunicação foi estabilizando formas de comunicações especializadas no
desempenho de funções. Ou seja, na sociedade há outras formas de comunicação dentro do
sistema (direito/política/educação/saúde/religião), cada qual com diferenciações funcionais.
Ou seja, o que não se rege pelo sistema jurídico se rege por outro subsistema. O subsistema
jurídico é um sistema especializado de comunicação, na função de garantia de direitos. O
subsistema econômico também é um sistema de comunicação especializado com a função,
diversa do Direito, de oferecer tratamento para o problema da escassez de recursos. Cf.
LUHM ANN, Niklas. El D erech o de la Socieda d. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:
Universidad IberoAmericana, 2002. (Colección Teoria Social).
8 Apesar de a sociologia e a economia terem ignorado uma à outra por décadas, desenvolvimen­
tos nas duas disciplinas durante os últimos 30 anos sugerem que aproximações estão come­
çando a se consolidar. Desde a década de 70, começando da crítica às restritivas assertivas da
teoria geral do equilíbrio e desenvolvimentos na teoria dos jogos, a economia se abriu para
problemas e sujeitos que tinham previamente sido preocupação da sociologia. Isso inclui
desenvolvimentos na economia da informação, na teoria dos custos de transação, da nova
economia histórica e da incorporação da racionalidade limitada na teoria dos jogos.
8 6 2 - T ran sação , S o lu çõ es A l t e r n a t iv a s d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n ju n t u r a l.

busca os elementos socializadores da economia e do mercado. Surgiu em res­


posta às teorias da economia clássica e neoclássica sobre o Homo economicus e a
teoria da escolha racional ao negar que as relações sociais inseridas no mercado
visassem somente a satisfação racional e utilitária de interesses individuais9.
Ocorre que o direito e a economia surgiram como um campo distinto de
investigação, muitos anos antes de a sociologia econômica tornar-se vigorosa,
tendo de início atraído pouca atenção entre os sociólogos econômicos. Contu­
do, pouco a pouco se foi reforçando a ideia de que o direito constitui uma
parte central da economia moderna, dando origem à formulação recente de
um amplo programa de análise sobre seu papel de uma perspectiva sociológi­
ca. Tal abordagem delineia a tarefa que interessa ao que Swedberg denomina
“sociologia econômica do direito”. É justamente com base na sociologia eco­
nômica do direito que buscaremos demonstrar a evolução da relação entre
direito e economia10.
Selznick e Nonet11afirmam que o direito moderno (últimos 500 anos)
passa por três fases: a) identificado com o Estado Absolutista; b) identifi­
cado com o Estado Liberal e c) identificado com o Estado do bem-estar
social. E com base nas instituições políticas atrela-se a elas três formas de
direito: a) direito repressivo; b) direito preventivo e c) direito responsivo,
isto é, que procura expandir sua capacidade de oferecer respostas aos pro­
blemas sociais.
Na primeira fase (direito no Estado absolutista), a política identifica-se
com o direito: “a vontade do Rei é a vontade da lei”. Há um impacto na
própria atividade econômica. Nesse cenário, por exemplo, é possível que um
contrato não seja respeitado por vontade do rei numa situação de conflito
entre um nobre e um plebeu.
Num segundo momento (direito no Estado Liberal), instituições políti­
cas e jurídicas dão um passo adiante em seu intento de expandir legitimidade.

9 Vários são os sociólogos e antropólogos que discutem as relações sociais no interior da


economia. Uma das críticas centrais à visão da economia clássica é a de que esta teria tomado
como modelo de ação aquela objetivada no interior da economia de mercado moderna (i.e.
capitalista) e postulado a partir daí que esta seria a base de toda ação humana.
10 Cf. SW EDBERG, Richard (ed.) (2003a). The case for an econom ic so ciology o f law . Theory and
Society, 32(1): 1-3. Cf. SW EDBERG, Richard. Sociologia econôm ica: hoje e amanhã. Tradução
de Sergio Miceli p. 7-34.
11 Cf. NONET, P. e SELZNICK.P. Law an d so cie ty in transition: towards responsive law. New York:
Harper Row, 1978.
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 6 3

Há clara separação entre política e direito. A ordem jurídica também se im­


põe ao rei e o burguês, então, a respeita. Evolui-se do status ao contrato.
Da separação entre direito e política tem-se o modelo jurídico liberal.
Aqui é possível enquadrar dois grandes pensadores jurídicos desse modelo:
Kelsen12e Weber. Há uma corrente de autores que considera a economia um
fenômeno que se organiza de modo natural e espontâneo (autorregulação),
em relação ao qual o direito não poderia ter influência13. Para outros, dentre
os quais nos incluímos, não haveria limites impostos pela natureza do sistema
econômico à capacidade de regulação do Direito.
Distinguir direito e política é apenas o ponto de partida para outras
características do modelo liberal. Nessa fase, podemos observar uma crescente
despersonalização do direito (todos são iguais) e do Estado (rei x governo).
Ademais, a racionalidade jurídica é orientada por princípios de outra ordem
(autonomia privada, liberdade de contratar, de iniciativa, entre outros),
predominando o individualismo. Isso porque, no Estado Liberal, a política
desempenha funções mínimas, ao contrário da economia, que teve seu papel
ampliado. Essa é ideia básica do laissez-faire. Lá, havia duas grandes categorias
jurídicas: 2)jus imperium ou lei (poder exercido sobre as pessoas) e b)jus dominium
ou contrato (poder exercido sobre as coisas). Havia uma associação do poder de
império com o espaço coletivo, aquilo que era de interesse geral. Via-se no poder
político ou imperium o espaço público e o próprio Direito Público. De outro
lado, o poder sobre as coisas seria exercido da perspectiva individual e econômica.
Destarte, havia também as atividades privadas e o Direito Privado. Nesse
contexto, o espaço público era reduzido e o privado maximizado.
Uma das principais características do direito no Estado liberal é o enfoque
centrado na norma jurídica. Há, desse modo, uma separação entre racionalidade
jurídica e a racionalidade econômica; ou seja, retira-se da análise do direito tudo
o que não é jurídico. No entanto, não devemos falar em racionalidade material,
mas em racionalidade formal ou legalismo formal14, vinculados à ideia de que o

12 Hayek não concorda. Em sua obra com parte dedicada a Kelsen, considera-o representante não
do modelo liberal, mas de um modelo autoritário. Realmente, não comungamos da opinião do
autor. Cf. HAYEK, F. A. Law, Legislation a n d Liberty (volume 1, Rules a n d O rd er). Chicago
University Press, 1973.
13 Hayek é um dos defensores desse pensamento. Esse tipo de construção impõe uma grande
limitação na análise da relação entre direito e economia. Cf. HAYEK, F. A. Law, Legislation and
Liberty (volume 1, Rules a n d O rder). Chicago University Press, 1973.
14 Observe-se que esse modelo liberal trabalha com a concepção de legitimidade que se identi­
fica/reduz ao conceito de legalidade.
864 - T ran sação , S o lu çõ es A l t e r n a t iv a s d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n j u n t u r a l ..

direito liberal tem nos procedimentoso seu núcleo. Em outras palavras, a


regularidade do procedimento passa a ser o critério determinador da legitimidade
e as pessoas respeitam o procedimento ainda que o resultado seja desconhecido
ou incerto. Enfim, as pessoas emprestam o consenso mesmo com a insegurança
do resultado15-16.
Por sua vez, o Judiciário desempenhou importante papel na manutenção
da ordem característica do Estado liberal, já que predominava a função re­
pressiva do direito. Estava também preocupado com a contenção da ação do
Estado. Contudo, tinha sua atuação restringida a declarar o previsto na lei.
Havia, portanto, predominância da linguagem sintática e o fato típico e fe­
chado era resultado direto e exclusivo da tipificação.
Por fim, no Estado liberal, o direito, por ser um sistema fechado opera­
cionalmente e cognitivamente, funciona como sistema com pretensão de esta­
bilidade e certeza. O sistema jurídico é tido como perfeito e acabado. Sua
função era garantir previsibilidade para os agentes econômicos. No século XIX,
podíamos traduzir a assertiva da seguinte forma: “há estabilidade interna ao
sistema jurídico e uma realidade circundante instável”. Portanto, o direito era
visto como remédio ou controle para as instabilidades externas, isto é, como
restaurador da ordem.
Todas essas dicotomias entre direito e economia aqui expostas, ao longo
do século XX, passaram a ser relativizadas17.
No séc. XX (direito no Estado do bem-estar social), o sistema jurídico,
por meio da proliferação normativa, amplia-se de tal maneira que se revela
um sistema jurídico instável, com lacunas e contradições. Foi a partir daí
que se cogitou se essa turbulência interna poderia ser minimizada pela eco­
nomia ou política, na medida em que elas fossem tidas como norte, através
de metas como o welfare state e de constituições valorativas. Tal contexto

15 Essa racionalidade formal é próxima à legitimação pelo procedimento de Luhmann. Cf.


LUHM ANN, Niklas. Legitim ação p e lo Procedim ento. Tradução de Maria da conceição Corte-
Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. (Coleção Pensamento Político).
16 Kelsen é o teórico do modelo liberal pois trata das 4 características acima apontadas ou seja:
a) Direito * política (o ju iz não está preocupado com as conseqüências do julgamento e o
sistema jurídico o autoriza a "não dar pelota" para o que pensa o rei); b) enfoque na norma; c)
procedimentos produzem consenso e d) legitimidade = legalidade. Cf. KELSEN, Hans. Teoria
Pura do Direito, 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
17 Sobre a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, vide BO BBIO , Norberto. Dalla
Struttura alia funzione. Milano: Edizioni di Comunità, 1977.
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 6 5

econômico de intervenção econômica ganhou força com a exigência do pró­


prio capital de superar desequilíbrios (entre pessoas, setores e países) gera­
dos pelo próprio capitalismo.
Nesse passo, houve uma reaproximação do direito com a política e com a
economia. Isso porque o enfoque não era apenas nas normas, tendo em vista
que as especificidades do direito foram abdicadas. Comprovação desse fenô­
meno pode se dar na expansão de construções como “direito e economia” ou
“direito e política”.
No Estado do bem-estar social, a racionalidade formal e a legitimação
pelo procedimento dão lugar à racionalidade material, preocupada em real­
mente dar respostas e não apenas garantir meios. Aqui, o que importa é a
consecução do resultado. Dito de outro modo, a legitimação se dá pelo re­
sultado e não pelo procedimento. Por isso, a legitimidade para o direito
responsivo é muito mais ampla que a legalidade. Preferimos chamá-la de
racionalidade teleológica.
Consolida-se ainda a ideia de sistema aberto, adotando-se conceitos ju­
rídicos indeterminados. Valoriza-se também a racionalidade econômica por
trás do fato jurídico.
No que toca ao Judiciário do Estado social, os mecanismos de interven­
ção fornecem-lhe um poder de transformar a sociedade e não apenas declarar
o direito. Propiciou-se o desenvolvimento do ativismo judiciário e a lingua­
gem passa a ser predominantemente semântica.
Do ponto de vista político, o Estado do bem-estar social é regulador,
pós-moderno ou mesmo neo-liberal18. Ao longo do séc. XX, sobretudo após
1930, o que se percebe é uma reorganização dos “pesos” indicados no quadro.
No Welfare State, o jus imperium tem um papel maximizador, considerando a
crescente intervenção no domínio econômico19. Ou seja, a separação política/

18 O direito do séc. XX seria autônomo, segundo Nonet, cf. NONET, P. e SELZNICK.P. Law and
so cie ty in transition: tow ards responsive law . New York: Harper Row, 197; reflexivo, segundo
Teubner, cf. TEUBNER, Cunther. O direito com o sistema autopoiético. Lisboa: Fund. Calouste
Gulbenkian, 1993; e autopoiético, segundo Luhman. Cf. LUHM ANN, Niklas. El D erech o de
Ia Socieda d. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad IberoAmericana, 2002.
(Colección Teoria Social). O que importa é que todas essas construções estão preocupadas em
demonstrar a relação entre Direito e Economia
19 O poder da lei sobre o contrato é mais intenso. O Código Civil Brasileiro de 2002 é exemplo
desse fenômeno. Basta observar que contratos de emprego e locação passam a ser quase que
completamente determinados pela lei.
866 - T r a n s a ç ã o , S o lu ç õ e s A lt e r n a t iv a s de C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a lid a d e C o n j u n t u r a l .

direito/economia passa a perder sentido. Além disso, ao invés de se valorizar o


meio de tutela individual (ex: limitações ao poder de tributar), enfatiza-se a
tutela coletiva (ex: o que pode ser feito com o poder de tributar em prol da
coletividade). Há ainda a publicização do Direito Privado, na medida em que
o Direito Público ganha tanta importância que há uma espécie de “adminis-
trativização” do Direito.
Por fim, podemos acrescentar uma quarta fase às outras três identifica­
das por Selznick. Trata-se do direito na passagem do séc. XX para o XXI.
No séc. XXI (direito contemporâneo), percebe-se que a estabilidade do
sistema jurídico é uma falsa premissa e que o direito não possui muitas ferra­
mentas para remediar a instabilidade externa. A conclusão é de que a incerteza
prevalece em todos os sistemas. Para alguns, isso se traduz na sociedade do risco.
Isso não significa que o direito não é importante para a economia e
vice-versa. O que ocorre é que o direito impacta o fato econômico com base
em uma racionalidade jurídica não tradicional. Evolui-se de um direito fa-
cilitador da ação social para um direito bloqueador de uma ação que poten­
cialmente coloca a sociedade em risco.
No direito contemporâneo, há um sistema operacionalmente fechado,
pois se processa de uma forma específica, mas cognitivamente aberto20. A
ideia de completude é construída a cada operação no sistema jurídico.
O peso da balança volta a se alterar: privatizações, PPPs, reprivatização
do direito público, privatização de cadeias. É nesse contexto que podemos
inserir a discussão sobre transação e soluções alternativas de conflitos em ma­
téria tributária. Vejamos.
Uma das principais transformações identificadas para essa quarta fase do
direito moderno é a percepção de que o direito do século XXI é promovido
por uma legitimação consensual e por uma racionalidade conjuntural. A lei
delegou a formas de pactuação a eficácia do próprio direito. Exemplos desse
fato podem ser comprovados pelos seguintes institutos: patteggiamento,
leniência, compromisso de cessação, transação e arbitragem. São formas de
contratação que estão diretamente relacionadas à eficácia da legislação. Na

20 Aqui nos valemos das lições de Luhmann. Essa perspectiva Luhmanniana é muito útil para se
interpretar a relação entre Direito e Economia no contexto contemporâneo.
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 6 7

classificação proposta por Hart21, acrescentaríamos as normas terciárias (normas


de pactuação) às normas primárias (que regulam condutas) e secundárias (que
atribuem poder).
No que toca ao Judiciário, ao lado das funções declaratória e criativa,
justamente por notar que não consegue bem desempenhá-las, muitas ve­
zes adota a postura de administrador de conflitos, negócios e políticas
públicas. Desenvolve-se uma linguagem pragmática e uma hermenêutica
reflexiva, que procura retratar as especificidades do caso concreto e refletir
sobre elas. Efeito típico é a ponderação dos efeitos da sentença. Aqui o
tipo é negado porque não pode ser aplicado para uma generalidade de
casos. Constroem-se tipos ad hoc, examinando-se a conjuntura, que são
moldados para uma situação específica.
Com a hermenêutica reflexiva e a racionalidade conjuntural, os critérios
de coerência são aqueles orientados por princípios. O valor que norteia o or­
denamento é a adequação. Passa-se a trabalhar com critérios de compatibili-
zação de princípios (Alexy/Dworkin)22. Um princípio não exclui outro, mas
colidem e precisam conviver. Trata-se de uma maneira de escapar do tecnicis­
mo formal do Estado liberal e de se mitigar a amplitude de interpretação dos
valores/princípios do Estado do bem-estar social.
Diante desse cenário de um direito bloqueador dos riscos sociais, racio­
nalidade conjuntural, legitimidade consensual, tipos ad hoc, linguagem prag­
mática, completude do caso concreto e ponderação de princípios, o sistema
tributário ainda pode/deve ser lido apenas à luz da tipicidade cerrada e do
legalismo autista23?

21 Cf. HART, H, L. A. The c o n c e p t o f Law. New York: Oxford University Press, 1997. (trad.: O
con ceito de Direito, São Paulo: Martins Fontes).
22 Sobre o tema, vide DW ORKIN, Ronald. A m atter o f principie. Massachussets: Harvard University
Press, 1987 (trad. Um a qu estão de P rin cíp io , São Paulo: Martins Fontes). D W O R KIN , R.
Levando o s D ireito s a Sério . Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ALEXY, Robert. Sistema ju ríd ico , prin cípios y razón practica. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel
de Cervantes, 2001.
23 Grosso modo, trata-se do direito construído apenas com base nas imposições legais, sem olhos
para a realidade exterior. Cf. NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Legalismo e Impunidade: Intole­
rância e Permissividade Jurídicas na América Latina - Notas para Discussão no Ano Mundial
da Tolerância. In: R evista d o C o n selh o E sta du al d e D efesa do s D ireito s d o H o m em e d o
Cidadão, ano II, n° 02, março, 1995, p. 08.
868 - T r a n s a ç ã o , S o lu ç õ e s A lt e r n a t iv a s de C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a lid a d e C o n j u n t u r a l .

2 . D ir e it o T r ib u t á r io e E c o n o m ia

Hoje em dia, verifica-se uma migração da tributação com maior partici­


pação do Estado, que anteriormente apurava e lançava a maior parte dos tri­
butos, para uma tributação de massa, em que o contribuinte é obrigado a
colaborar com o Estado, apurando e recolhendo tributos para futura análise,
sob pena de pesadas multas e até sanções criminais.
Nesse universo de números e divergências crescentes, mormente numa
democracia, torna-se inevitável a formação de controvérsias tributárias. Aque­
les envolvidos na práxis tributária logo percebem que, cada vez mais, forma-se
campo de exasperadas e inexauríveis disputas entre o Estado e o cidadão,
tecnicamente designados por“fisco” e “contribuintes”.
O tempo médio estimado para a satisfação do crédito tributário pelo
Fisco é de 16 anos24. Ademais, há relatos e estudos afirmando que cerca de
apenas 10% de suas autuações são revertidas em receitas públicas, com recu­
peração anual estimada em menos que 1%, exatamente em função da intensa
disputa em que são envolvidas2S. Enfim, não é preciso despender grandes
esforços para perceber que há um sistema litigioso de cobrança de tributos do
início ao fim, arrastando-se a discussão proporcionalmente ao grau de contro­
vérsia do crédito tributário. O desfecho fatal é relatado pelas próprias autori­
dades fiscais, ao anunciarem que apenas um décimo dos lançamentos se converte
em receitas públicas.
Ademais, despendem-se esforços inúteis, há desperdício de atuação da
máquina; enfim há toda uma estrutura investida em processos que não é apro­
veitada. Em outras palavras, esforços e investimentos sem qualquer retorno. Esse
panorama concorre para um abominável aproveitamento econômico, pelo Es­
tado, do trabalho fiscal.
Por outro lado, incentiva-se a litigiosidade entre o Estado e cidadão. São
correntes as reclamações de abusos do poder de fiscalização, assim como as
denúncias de operações ilícitas pelos contribuintes, tais como simulações ou
planejamentos elisivos. A imposição de numerosos deveres formais, a deter­
minação de rendas abstratas baseadas em regulamentos, a elevada pressão tri­

24 Dados constantes da Justificativa aos Projetos de Lei encaminhada pelo PGFN ao Ministro
Guido Mantega em 15.3.2007.
25 Jornal Valor Econômico, de 11/9/07.
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 6 9

butária provocada pelas exigências arrecadatórias, a ineficácia da Administra­


ção Financeira em relação à devolução de ingressos e seu autoritarismo em
ocasião de comprovações originam intolerância crescente nos contribuintes.
Enfim, fisco e contribuintes se posicionam como inimigos em guerra.
Portanto, há a necessidade de se restaurar a paz. Juntamente com outros
aspectos, também correlacionados, como os reflexos da elevada tributação26e a
falta de segurança jurídica, pode-se explicar o crescente interesse da comuni­
dade jurídica pelos meios consensuais de solução de controvérsias tributárias.'
De fato, nada mais apropriado a um momento de crise que buscar melho­
res soluções que as proporcionadas por modelos defasados. Ora, fazemos refe­
rência à ultrapassada ideia de que a vontade do contribuinte deve ser
desconsiderada, em absoluto, no campo fiscal. Talvez fosse um pensamento ade­
quado em tempos em que o lançamento fiscal era examinado à luz de uma
legislação relativamente simples e de fatos de mais fácil apuração. Algo nada
semelhante ao direito tributário do século XXI, em que a própria exigência
tributária é, em muitos dos casos, realizada pelo contribuinte, e em que o ema­
ranhado legislativo e a complexidade crescente dos fatos da sociedade infor­
matizada mudaram completamente a realidade da tributação.

3. T ran sa çã o

A transação no Direito Tributário tem raízes no Direito Privado, onde a


transação é instituto antigo, de ampla utilização. Na esfera privada, a transação
é instituto jurídico universal, presente nos ordenamentos jurídicos em geral27.

26 A elevada carga tributária em comparação a outros países com economias similares agregada ao
pequeno retorno propiciado em questões fundamentais como saúde, educação, infraestrutura
saneamento e a complexidade das atuais regras responsáveis pela sensação generalizada de
insegurança aos investimentos no país gera conseqüências negativas tanto para os contribuin­
tes quanto para o Fisco. Em relação aos primeiros, a) cria-se um sistema ineficiente, onde se
onera a produção e não se distribui renda; b) há dificuldade de cumprir as regras (custos
desnecessários); e c) estimula-se a burocracia (corrupção). Para o Fisco, as conseqüências são
as seguintes: a) estimula-se a sonegação fiscal; b) perpetua-se o aumento do passivo tributário
federal, hoje estimado em 500 bilhões de reais; e c) proliferam-se as execuções fiscais em
curso, hoje calculadas em mais de 2,5 milhões (aproximadamente 37% de todas as demandas).
27 Conforme salienta Hugo de Brito Machado, o vocábulo "transação" é geralmente utilizado para
designar um negócio jurídico ou acordo de vantagens a respeito de relações jurídicas as mais
diversas. É bastante freqüente a sua utilização no meio empresarial para indicar compra-e-venda,
permuta, desconto bancário ou mútuo mercantil. Em sentido mais restrito, transação é a conven­
ção em que mediante concessões recíprocas, duas ou mais pessoas ajustam certas cláusulas e
condições. É neste sentido que a palavra é utilizada em nosso código civil. Cf. M ACHADO,
870 - T ran sação , S o lu çõ es A l t e r n a t iv a s d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n j u n t u r a l ..

Já no direito tributário, a transação está prevista no artigo 171 do Códi­


go Tributário Nacional28, in verbis:
“Artigo 171: A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos
sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que,
mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e con­
seqüente extinção de crédito tributário.”
No campo fiscal, para haver transação, é necessário que se tenha consti­
tuído um conflito a ser dirimido pelo órgão julgador administrativo, nos ter­
mos do procedimento próprio. Ou, ainda, que haja uma pretensão não satisfeita,
como, por exemplo, um crédito tributário vencido e não pago, que daria lugar
à propositura de execução fiscal. Impõe-se, pelo menos, que se tenha formada
querela ou pendência, sucumbindo na instauração de procedimento adminis­
trativo a ser julgado pelo órgão administrativo competente. De fato, é pressu­
posto lógico da transação a existência de litígio, pois, sem choque de pretensões
(contrárias), é logicamente impossível falar de concessões mútuas.
No que tange ao conteúdo da transação, há quem defenda que ela deve
se restringir a aspectos fáticos. Realmente, o direito, no sentido objetivo, é
único, ou seja, para um determinado país, há apenas um ordenamento jurídi­
co, uma única Constituição. E inadmissível que um contribuinte transacione
com o fisco estabelecendo, apenas para ele, qual o sentido de uma lei, ou da
Constituição. Nesse contexto, a transação não pode recair sobre o conteúdo
do Direito, que apenas a lei pode moldar, mas apenas sobre as obrigações
concretas das partes. A nosso ver, a transação, mais precisamente, pode apenas
e tão somente ter a dúvida sobre o Direito ou sobre as obrigações concretas das
partes como fatores desencadeadores do dissenso. Em suma, o objetivo da

Hugo de Brito. A transação no direito tributário. In: Revista Dialética de D ireito Tributário, n° 75,
dez. 2001, p. 60. Nesse contexto, o artigo 840 do Código Civil de 2002 prescreve que: "É
lícito, aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas". Cf.
BRASIL, Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código C ivil. D iário O ficia l da
U nião, Brasília, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/2002/L10406.htm>. Da leitura do referido artigo, claramente se percebe que no direito
civil a transação pode ser tanto preventiva, ou seja, antes de instaurado o litígio, como
terminativa, visando à extinção de um conflito já existente. Isto é, na transação civil, cada parte
abre mão de parcela de seus direitos para impedir ou por fim a uma demanda.
28 Cf. BRASIL, Lei n° 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional
e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário
O ficial da União, Brasília, 27 de outubro de 1966- Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 10.dez.2009.
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o -871

transação é a eliminação de uma incerteza. Dito isso, relembre-se que essa


incerteza deve ser fundada em termos objetivos.
Em virtude da luta de alguns setores da sociedade contra a legalização da
autorização geral para a realização de transações tributárias no Brasil, a prática
toma seu próprio caminho, mostrando figuras jurídicas que, se bem se reves­
tem de uma aparência não negociai, em realidade ocultam a celebração de tais
acordos. É o caso das típicas negociações nas Procuradorias, quando se transa­
cionam os encargos da dívida tributária e os honorários advocatícios mesmo
sem a existência de lei autorizadora.
Ora, em algumas situações é mais conveniente para o interesse público
transigir e extinguir o litígio do que levar este até a última instância, com a
possibilidade de restar a Fazenda Pública ao final vencida, especialmente nos
casos em que a Administração realiza a prática da ilegalidade e da “inconsti­
tucionalidade consciente”, isto é, cobra o tributo mesmo sabendo que ele não
é juridicamente devido. Ademais, gastos de energia, de papel, de tinta e des­
perdício de tempo são economizados.
Conforme veremos, a exigência de lei específica para a realização da tran­
sação só engessa o sistema. Esperar que o legislativo crie leis específicas auto­
rizando a transação para cada tipo de situação é inviável. Daí a existência
crescente de transações, mesmo sem a existência de lei específica autorizadora.
Enfim, a norma tributária que exige lei autorizadora específica para a realiza­
ção de transação é ineficaz e, mais do que tudo, ineficiente. É fundamental a
aprovação de uma lei geral e de mecanismos de controle.

4 . M e d id a s a l t e r n a t iv a s d e r e s o l u ç ã o d e c o n t r o v é r s ia s

Há vários métodos extrajudiciais de solução de controvérsias29. No Bra­


sil, as principais formas de solução extrajudicial de controvérsias são: a nego­
ciação, a mediação, a conciliação e a arbitragem. A semelhança entre tais
institutos é evitar disputas judiciais e buscar soluções amigáveis. A diferença

29 Nos Estados Unidos, por exemplo, várias técnicas se desenvolveram, aumentando as chances
de se resolver os conflitos antes de se recorrer ao Judiciário. São as denominadas ADRs
(Alternative D ispute Resoíutions), como a facilitação, a avaliação neutra, o fact-finding (inves­
tigação de fatos), o mini-trial e a p e e r review (avaliação de questões trabalhistas por grupos de
empregados e patrões). Cf. SLATE II, W illiam K. International arbitration in the U nited States. São
Paulo: LTr, 1998, p. 27-29.
872 - T ran sação , S o lu çõ es A l t e r n a t iv a s d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n j u n t u r a l ..

fundamental está no grau de intervenção de uma terceira parte, imparcial, na


busca da solução. O uso de uma ou de outra técnica dependerá do tipo e dos
motivos da controvérsia. Em regra, a intervenção é inexistente na negociação,
é moderada na mediação e na conciliação, e alta na arbitragem. Na conciliação
e na mediação, o mediador ou conciliador não toma decisões, mas apenas
auxiliam as partes a chegarem a um acordo30. Os árbitros, por outro lado, têm
de tomar decisões31. Vale salientar que só há regulamentação no direito brasi­
leiro da arbitragem, na lei 9307/9632.
Na Espanha, a mediação é optativa e gratuita, a pedido do contribuinte
a um escritório especial da Fazenda Espanhola, antes da etapa judicial. Esse
escritório conta com os mediadores. Igualmente, o contribuinte pode solicitar
um mediador privado, proposto por ele mesmo e, em caso de não se chegar a
um acordo, os gastos do mediador privado ficam a cargo do contribuinte.
Aliás, esse procedimento aplicado na Espanha tem proporcionado resultados
muito positivos, diminuindo o nível de litigiosidade e aumentando a arreca­
dação, que é o objeto do organismo fiscal33. De forma semelhante, aplica-se
esse procedimento na Bélgica, Itália e Estados Unidos34.
Na França, a experiência mediadora se aplica com êxito há varias anos. No
direito francês, a regra é mediar-se apenas as questões de fato. A fim de proceder
à mediação, contribuinte e organismo arrecadador assinam um contrato que se
comprometem a cumprir3S. No direito francês, a mediação se aplica tanto aos

30 Ao ser o mediador um terceiro neutro que facilita o diálogo entre o Fisco - disposto a cobrar
o que entende como o máximo que a lei permite - e o contribuinte - com pretensão de reduzir
a extensão do fato imponível dentro dos limites mínimos que o imposto exige seu papel se
limita a aproximar as partes a um acordo satisfatório no marco estrito da norma aplicável, sem
impor soluções à maneira de um árbitro, mas ajudando a coadunar posições no litígio. Dito de
outro modo, são as partes, e não o mediador, que chegam ao acordo, que uma vez instrumentado
obriga para esse caso concreto, sem que possa pretender-se, de modo algum, sua interpretação
extensiva a outros fatos.
31 A arbitragem é um meio jurídico de solução de controvérsias fora do Poder Judiciário. Só pode
ser usada por acordo espontâneo das partes envolvidas no conflito. As partes elegem árbitros
para serem os juizes da controvérsia. Tais árbitros têm o dever de decidir de forma obrigatória
o litígio através da prolação de um laudo arbitrai.
32 Cf. COELHO , Inocêncio Mártires. Arbitragem, mediação e negociação: a constitucionalidade
da lei da arbitragem. Notícia d o D ireito Brasileiro, N° 7. Faculdade de Direito da Universidade
de Brasília, 2000.
33 Ibidem .
34 Cf. LEONETT1, Juan Eduardo. Procedim ientos tributários consensuados. M ediacion Fiscal. N uevo
paradigm a?, VII Jornadas Nacionales de Mediación en homenaje al Dr. Carlos Alberti. 18 y 19
de agosto de 2005. Colégio publico de abogados de Ia capital federal. Coordinadora Dra
Maria Carolina Obarrio.
35 Ibidem .
S é r g io P a p in i de M en d o n ça U chôa F il h o - 8 7 3

impostos diretos (rendas e IVA), quanto aos indiretos. Na primeira hipótese, há


uma Comissão para mediar integrada por um juiz administrativo (o mediador)
e as partes. O organismo arrecadador e o contribuinte podem também recorrer
à mediação em conselhos profissionais ou colégios profissionais. Em relação aos
impostos indiretos, realiza-se a mediação com o mediador (juiz contencioso),
um notário (para realizar as inscrições correspondentes), as partes administradoras
e os contribuintes36.
Primeiramente, no Brasil, a utilização da arbitragem foi restrita por dois
motivos: desprestígio à cláusula arbitrai, pois se exigia a presença do compro­
misso arbitrai para que fosse afastada a solução judicial do conflito e exigência
legal de que o laudo arbitrai fosse homologado judicialmente para que pro­
duzisse os mesmos efeitos da sentença judicial37. Com o advento da Lei 9.307/
96, o quadro foi sendo revertido.
No campo tributário, a arbitragem terá sentido naqueles casos em que a
Administração está em uma situação de paridade ou igualdade com o admi­
nistrado ao concluir o procedimento originário. Deve ser voluntária, posto
que se se impusesse com caráter forçoso, privar-se-ia o administrado da possi­
bilidade de recorrer à via judicial, violando seu direito à tutela efetiva.
A arbitragem poderia ser solicitada pelas partes quando existisse a neces­
sidade de uma análise técnica sobre um determinado aspecto técnico ou fático
da autuação tributária. Nestas situações, o contribuinte escolheria um árbitro
e a Fazenda outro. Já o Ministério Público ou outro órgão de controle poderia
indicar um terceiro árbitro para presidir a câmara.
Seguindo as lições de José J. Ferreiro Lapatza38, poderia haver casos em
que o contribuinte tivesse direito a uma solução arbitrai vinculante, por exemplo:
a) no caso de uma presunção, como modo de reduzir o peso da prova; b)
quando se utilizasse um conceito jurídico indeterminado, tal como o valor de
mercado; e c) nas questões de estimação indireta.
Dito isto, seria optativo para o contribuinte submeter seu caso à arbitra­
gem e só se tornaria obrigatório para o Fisco se aquele lhe solicitou e cumpriu
com todos os requisitos dispostos. Os árbitros, por si próprios ou como inte­

36 Ibidem.
37 Cf. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 23.
38 Ibidem.
8 7 4 - T r a n s a ç ã o , S o l u ç õ e s A ltern ativas d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n ju n t u r a l ..

grantes de órgãos colegiados, deveriam ser profissionais independentes, inscri­


tos e aceitos pelo órgão fiscal.
Apenas como sugestão legislativa, poder-se-ia limitar, em normativa ge­
ral, o alcance dos temas e montes em discussão que possam ser submetidos a
esse tipo de acordo, assim como os contribuintes que poderiam solicitá-lo.
Feitas essas ponderações, analisaremos o conceito de interesse público, o prin­
cípio da indisponibilidade do interesse público, a importância do princípio da
eficiência na realização do interesse público e, posteriormente, relacionaremos ambos
os princípios com a plausibilidade da transação geral em matéria tributária e com
os demais meios alternativos de solução de controvérsias tributárias. Encontrar, em
cada caso concreto, a equação perfeita envolvendo o interesse público e a eficiência
da atuação da máquina pública não é tarefa de fácil solução.
É impossível a aplicação isolada de um só princípio, pois todos têm di­
mensões próprias de peso e importância e, ao mesmo tempo, há inter-relação
entre eles. Costuma-se dizer que os princípios são tudo. Não seriamos nós
quem contestaria esta verdade sensatamente entendida. Mas o primeiro de
todos os princípios é o da relatividade prática na aplicação deles à variabilida­
de infinita das circunstâncias dominantes. Além disso, para interpretar e apli­
car com maior efetividade os princípios, deve-se analisar cada um deles de
acordo com sua função. Compreender é separar. Depois de analisá-los sepa­
radamente, cada princípio deve ser interpretado em sua relação com os de­
mais. Compreender é relacionar.

5 . R e g r a g e r a l d e t r a n s a ç ã o , s o l u ç õ e s a l t e r n a t iv a s
d e c o n t r o v é r s i a s , in t e r e s s e p ú b l i c o e

EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA

Conforme já salientado ao longo do presente artigo, a solução consensual


tributária tem sido adotada na legislação comparada e tem sido praticada -
até mesmo em casos em que não há lei autorizadora - no dia a dia brasileiro.
Sabe-se que no direito privado prevalece a autonomia da vontade das
partes, de tal sorte que elas podem livremente dispor de seus direitos. Ocorre
que, no caso das transações tributárias, o credor é o poder público.
A primeira reação é de se negar a possibilidade da Administração Fiscal
participar de métodos alternativos de solução de controvérsias, sob as alega­
S é r g io P a p in i d e M e n d o n ç a U c h ô a F il h o - 8 7 5

çÕes de que é dotada de soberania e de que trata de interesse público indispo­


nível, portanto somente poderia sujeitar-se aos próprios tribunais. O caráter
público de suas atividades imporia sempre a solução jurídica para as disputas
em que venha a ser parte.
Contudo, não devemos partir da premissa de que é impossível por parte
do poder público realizar qualquer concessão em questões tributárias. A pre­
missa é bastante diversa: ao interesse público —que não pode ser entendido
como o “cofre público” - está atrelado o princípio da eficiência da administra­
ção. O verdadeiro interesse público é que o Estado respeite, sobretudo, a Cons­
tituição da República, pois é nela que estão inclusos os direitos individuais de
todos os cidadãos, assim como a legítima vontade da coletividade.
Segundo J.J. Zornoza Pérez39, embora exista certo preconceito dogmáti­
co sobre os riscos que a admissão de transações ou soluções alternativas de
resolução de conflitos nesta matéria possa causar à legalidade tributária40, o
certo é que a submissão da Administração à lei, quando sua vontade se mani­
festa através de um ato imposto unilateralmente pelos órgãos competentes,
não se garante melhor que quando se empregam técnicas convencionais que
permitam um diálogo sobre fatos com relevância tributária e suas qualifica­
ções, a fim de resolver as incertezas e inseguranças surgidas.
Quando a Administração Fiscal manifesta seu desejo de forma acordada,
ela não está ignorando a autoridade que lhe foi outorgada para a proteção do
interesse público. Ao contrário, considera que, a fim de satisfazer esse interes­
se, torna-se mais conveniente ter em conta a vontade do contribuinte na for­
mação e extinção da obrigação tributária.
Desse modo, tudo indica que no momento em que o fisco se abrisse ao
diálogo com o contribuinte, considerando suas razões, e chegando a soluções
de consenso, arrecadaria mais, gastando menos, ou seja, seria mais eficiente.
Recorrendo a uma metáfora, o diálogo entre o Fisco e o contribuinte deixaria
“o gosto do tributo menos amargo”.

39 Cf. PEREZ, J.J Zornoza. jQué podemos aprender de Ias experiencias comparadas? Admisibilidadde
los convênios, acuerdos y otras técnicas transaccionales en el Derecho Tributário espanol. In:
Arbitraje y Convención en el Derecho Tributário. Madrid: Ed. Marcial Pons, 1996, p. 31.
40 Ora, como advertira John Locke, "as novas opiniões se vêm com desconfiança e usualmente
encontram oposição, sem outra razão além do fato de não serem comuns". Cf. LOCKE, John.
Ensaio sobre o entendimento humano, 5a ed. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
8 7 6 - T r a n s a ç ã o , S o l u ç õ e s A ltern ativ as d e C o n t r o v é r s ia s , R a c io n a l id a d e C o n ju n t u r a l ...

Com efeito, o importante é que seja realizado o interesse público. O


conceito de interesse público é elástico e de difícil precisão. Aliás, muitos
afirmam que essa tarefa não é da doutrina. O interesse público não está ex­
pressamente vislumbrado em nenhuma disposição da nossa Constituição da
República. A situação, porém, não impede que nós o contextualizemos.
Numa perspectiva jusfilosófica, ensina José Eduardo Faria41que o inte­
resse público é um princípio cuja finalidade é dar ao Direito um acabamento
lógico e de despertar na sociedade a certeza de que os valores por ela reclama­
dos acabam, de alguma maneira, sendo consagrados pelo Direito. Enfim, o
interesse público emana justamente do ordenamento constitucional vigente,
porquanto todas as decisões do administrador público devem ter como norte
as aspirações da coletividade.
Nesse passo, surge a indagação quanto à (in) disponibilidade do interes­
se público. Com base nas lições de Maria Sylvia di Pietro42, o princípio da
indisponibilidade do interesse público deriva do chamado princípio da su­
premacia do interesse público ou da finalidade pública que inspira o legisla­
dor e guia a Administração.
Digno de nota é que se modificou a forma de analisar os princípios, prin­
cipalmente, na relação com os administrados. O princípio da supremacia do
interesse público não é disposto de cima para baixo, mas em mão inversa e
objetiva proteger os interesses dos administrados, segundo estabelecem os novos
paradigmas do Direito Administrativo Contemporâneo. Observem-se as pala­
vras do mestre Caio Tácito43: “(...) Tende-se ao abandono da vertente autoritá­
ria para valorizar a participação dos destinatários finais quanto à formação da
conduta administrativa”. Nessa mesma linha, esclarece Marçal Justen Filho44:
“O Estado não existe contra o particular, mas para o particular”.
Este enfoque que privilegia o interesse dos administrados está previsto
no art. I o, da Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito
da Administração Pública Federal, determinando que a Administração, na

41 Cf. FARIA, José Eduardo. A definição do interesse público. In: SALLES, Carlos Alberto de (org.).
Processo civil e interesse público. São Paulo: RT, 2003, p. 79.
42 Cf. Dl PIETRO, Maria Sylvia Z. Direito Administrativo. 15a ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 68.
43 Cf. TACITO, Caio. Temas de direito p úblico - estudos e pareceres, 3a ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 19.
44 Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética,
2003, p. 61.
S é r g io P a p in i d e M e n d o n ç a U c h ô a F il h o - 8 7 7

realização de suas atribuições, deve atentar para a proteção dos interesses dos
administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. Dito de
outro modo, o interesse público é atingido quando se consideram também os
interesses dos particulares45.
Nesse contexto, é entendimento comum dè alguns, no mundo jurídico,
que o interesse público seria, a priori, absolutamente indisponível. Não obs­
tante, tal afirmação não é inflexível nem absoluta, sendo possível a sua relati-
vização. Nenhuma ideia ou conceito está imune aos efeitos da evolução ou
revolução, mormente no âmbito das ciências humanas. Em outras palavras, o
interesse público não se reveste de invólucro inviolável. Vejamos.
A proteção do interesse público não impede que a Administração possa
gerir a res publica de acordo com a melhor noção de eficiência e presteza, nos
limites permitidos pelo ordenamento jurídico. Ora, o princípio em voga quer
apenas evitar que o patrimônio público seja conduzido de forma irresponsável
e que haja a sua dilapidação.
Desse modo, não há que se falar em indisponibilidade absoluta, mas
relativa, pois é indubitável que, para atingir os fins desejados pelo interesse
público, a Administração contém certa parcela de liberdade para agir e dis­
por; tudo para atingir o mister de concretizar suas atribuições focadas no
interesse geral.
Por outro lado, há que se distinguir os atos de império dos atos de gestão,
em que se encontra ampla margem para a utilização de acordos na Administra­
ção Fiscal. A arrecadação tributária, por exemplo, é atividade-meio (secundária)
do Estado e deve ser considerada ato de gestão. A disponibilidade de direitos
patrimoniais não se confunde com a indisponibilidade de interesse público.
Não é outro o entendimento que vem se sedimentando no Superior Tri­
bunal de Justiça - STJ. Trata-se da jurisprudência referente ao conceito de
“interesse público” e a necessidade de intervenção do Ministério Público como
custos legis nas causas da Fazenda que versem sobre questões patrimoniais, a
teor do previsto no art. 82, III, do Código Processual Civil - CPC, que deter­
mina competir ao Ministério Público intervir em todas as causas em que há
“interesse público”, corroborado pela natureza ou pela qualidade da parte. A

45 A doutrina portuguesa denomina esse princípio de "princípio de prossecução do interesse


público".
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Jurisprudência do STJ é na linha de que o interesse público que exige a par­


ticipação do Parquet, na qualidade de fiscal da lei, é aquele originário ou pri­
mário e, no mais das vezes em que se discutem questões patrimoniais, tais
como as tributárias, “não há o interesse público indisponível, mas apenas o da
administração —interesse público secundário - de minimizar os prejuízos
sofridos pela administração pública”46.
Enfim, conclui-se que a arrecadação tributária é atividade-meio (caráter
instrumental) do Estado, interesse público secundário e ato de gestão, com
nítido escopo patrimonial, com fim de operacionalizar os interesses públicos
originários, sendo, portanto, relativamente disponível, mormente, quando con­
siderados os princípios da eficiência, da economicidade, da boa administração,
da proporcionalidade e da razoabilidade.
No que tange à eficiência47, Dennis James Galligan48salienta que o tema
não é novo no Direito anglo-saxão, onde são diferenciadas duas exigências: o
dever de atingir o máximo do fim com o mínimo de recursos (efficiency); o
dever de, com um meio, atingir o fim ao máximo (ejfectiveness).
O enfoque do presente artigo é analisar a eficiência vinculada à Admi­
nistração Pública, que, como explica Alexandre de Moraes, “compõe-se, por­
tanto, das seguintes características básicas: direcionamento da atividade e dos

46 Cf. REsp n° 303.80 6 - R O , Relator M inistro Luiz Fux, julgado em 2 2 .0 3 .2 0 0 5 . Nessa


mesma linha, em outro precedente do STJ, esclarece-se que o "interesse patrimonial" da
Fazenda, por si só, não se identifica com o "interesse público" para os fins do art. 82, III,
do CPC , e que, no caso, o interesse se situava no âmbito ordinário da Adm inistração
Pública (ação anulatória de débito fiscal). Cf. REsp n° 490.726 - SC, I Turma, Ministro
Relator Teori A lb in o Z avascki, julgado em 2 1 .0 3 .2 0 0 5 . A inda assim , em julgam ento
realizad o em 1992, o STJ elucidou que determ inada Prefeitura M unicipal confundiu
"interesse da Fazenda Pública" com "interesse público" para os fins de intervenção do MP
e que esta não era obrigatória. CF. REsp n° 28110 - MS, I Turma, Ministro Relator Garcia
Veira, votação unânime.
47 O signo eficiência pode ser utilizado em diferentes aspectos. Ao consultarmos o dicionário de
língua portuguesa Aurélio Buarque de Holanda, verificamos que eficiência é "a capacidade de
produzir qualquer efeito". Imaginemos que se pense em perfurar um poço de petróleo. Para
tanto, começa-se a cavar o buraco com pás. Seguindo a interpretação literal, o resultado será
eficiente se o fim - perfurar o poço de petróleo - for alcançado, independente do meio
escolhido. Pela sua utilidade, em termos econômicos, o conceito de eficiência passou a ser
utilizado por outras ciências, inclusive pelo direito, já que muitas das questões conflituosas da
sociedade requerem uma solução adequada a partir da comparação dos benefícios e dos
prejuízos. Ocorre que, depois de consolidado como princípio jurídico a ser observado pela
Administração, o tema "eficiência" assumiu novas nuances.
48 Cf. G ALLIGAN, Dennis James. Discretionary powers. A legal study o f Officíal Discretion. Oxford:
Clarendon Press, 1986. p. 129 e ss.
S é r g io P a p in i d e M e n d o n ç a U c h ô a F il h o - 8 7 9

serviços públicos à efetividade do bem comum, imparcialidade, neutralidade,


transparência, participação e aproximação dos serviços públicos da população,
eficácia, desburocratização e busca de qualidade”49.
Independentemente da eficiência ser considerada um princípio autôno­
mo e de ter ou não que analisar os meios50, deve ser entendida de modo a que
os fins sejam atingidos considerando-se a relação custo-benefício dos meios e
respeitando-se, evidentemente, os direitos e garantias individuais do cidadão.
Dito isso, em nossa visão, há duas alternativas plausíveis: i) a eficiência admi­
nistrativa só é realizada se os meios são levados em consideração, tese da qual
somos partidários; ou ii) ainda que se defenda a eficiência como realização
satisfatória dos fins independentemente dos meios, ela deve ser interpretada
concomitantemente aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, eco-
nomicidade e boa administração, que funcionariam como balizadores da rela­
ção custo-benefício do ato administrativo.
Portanto, de forma direta ou indireta - reflexa, por meio dos princípios
da razoabilidade e proporcionalidade -, em caso de inobservância dos meios,
a Administração violaria o princípio da eficiência em caso de desprezo na
análise dos meios.
Nesse passo, a eficiência é concretização eficaz de fins predeterminados,
traduzindo-se na relação de otimicidade entre meios e fins e na exigência de
celeridade. Em outras palavras, a eficiência administrativa é alcançada pela
melhor utilização dos recursos e meios humanos, materiais e institucionais,
com o intuito de atender às necessidades coletivas num regime de igualdade
dos usuários.
Como se pode observar, não se trata de abertura de qualquer margem
de discricionariedade para escolha de qualquer meio. As considerações da
Administração Pública no processo decisório podem e devem contemplar
os interesses da coletividade envolvidos. O ato discricionário somente será
legítimo se praticado para atendimento de uma finalidade jurídica. Para
não deixar dúvidas, o princípio da eficiência determina que os atos da admi­

49 Cf. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São
Paulo: Atlas, 2002, p. 790.
50 Há uma corrente de autores que vê na eficiência apenas a obrigação de se alcançar fins sem a
necessidade de análise dos meios. Não estamos de acordo.
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nistração pública sejam desempenhados de forma a atender ao interesse


público na melhor relação custo-benefício possível para a sociedade, sem se
distanciar dos objetivos da Administração Pública, concretizando os impe­
rativos coletivos.
Ora, a finalidade da solução consensual é tornar factível a arrecadação,
evitando o desperdício de esforços administrativos, em situações de incertezas,
além de aproximar fisco e contribuintes, diminuindo a litigiosidade e a inse­
gurança na tributação.
Portanto, pode-se concluir que, diante das limitações apresentadas pelo
sistema puramente litigioso e da certeza da arrecadação conferida pelo con­
senso, a introdução da regra geral de transação tributária e de soluções consen­
suais de controvérsias, por atender ao princípio da eficiência, além de promover
a paz fiscal, põe-se em linha com o interesse público.

6. Da c o m p a t ib il iz a ç ã o d a s s o l u ç õ e s c o n s e n s u a is c o m

OS DEMAIS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS: A


QUESTÃO DO CONTROLE

Numa “sociedade de risco”, onde predominam instabilidade do sistema


jurídico e dos demais sistemas, tal qual o econômico, e na qual há completude
do caso concreto, racionalidade conjuntural e legitimação pelo consenso, é
imprescindível a criação de mecanismos de controle ou accountability, sob
pena de se abrir as portas à corrupção e de transformar o tributo em instru­
mento de favorecimento político.
Não temos espaço suficiente para investigar os aspectos que poderiam
lançar alguma luz sobre essa questão no nosso sistema tributário. Na nossa
visão, esse é um dos grandes desafios do direito tributário brasileiro. Entre­
tanto, para não nos omitirmos, sugeriremos algumas condutas.
Além do mais, para que a utilização das soluções consensuais esteja em
consonância com os ditames do art. 37 da CFS1, alguns princípios devem ser
respeitados. Vejamos.

51 "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do D istrito Federal e dos M unicíp ios obedecerá aos p rincíp io s de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...) "
S é r g io P a p in i d e M e n d o n ç a U c h ô a F il h o - 8 8 1

Para atender ao princípio da publicidade e da transparência, todo acordo


deveria ser publicado no Diário Oficial - assim como são os atos processuais -
por meio de portaria ou qualquer outro instrumento infralegal52.
Desse modo, além de se preservar a publicidade, prestigia-se a
impessoalidade, a moralidade administrativa e a isonomia. Isso porque qualquer
contribuinte teria acesso ao teor do acordo, podendo, se for o caso, dirigir-se à
Procuradoria para acordar em termos semelhantes ao consenso precedente. Isso,
logicamente, se as hipóteses do caso concreto forem equivalentes ou análogas:
situação econômica do contribuinte, existência ou não de bens, boa ordem ou
não dos livros, métodos de escrituração, grau de solvabilidade e capacidade de
oferecer garantias.
Se assim não fosse, a pessoalidade estaria claramente endereçada aos gran­
des agentes econômicos, que teriam preferência na longa fila das soluções con­
sensuais. Apenas plena publicidade e transparência podem minimizar desvios
do interesse público. Sem transparência, não há controle do interesse público.
Nessa linha, os termos do acordo deverão ser motivados com expressa
referência à obrigação tributária correspondente e aos princípios que o orien­
ta. Assim sendo, a solução consensual deve ser norteada pela razoabilidade,
proporcionalidade, boa-fé, colaboração, eficiência e interesse público. Além
disso, a lide deve ser discriminada, contendo seus elementos, fundamentos
jurídicos e condições econômicas assumidas.
Por fim, com base na moralidade administrativa e na boa administra­
ção, os acordos devem ser fiscalizados por fortes mecanismos de controle a
fim de que não sejam utilizados com desvio de sua finalidade, evitando-se
favorecimentos e perseguições53. Interessante, neste sentido, a contribui­

52 Nessa mesma linha aqui defendida, observem-se a redação dos artigos 5 ° e 6o da Lei Comple­
mentar 105, do Estado de Pernambuco, de 21.12.07:
"Art. 5o Nas transações judiciais que implicarem obrigação pecuniária para as pessoas jurídicas
referidas no artigo 3o, o pagamento somente será efetuado após a homologação judicial do
termo de transação e a publicação de extrato dos termos do acordo, no Diário O ficial,
observando-se, ainda, o disposto no art. 100 da Constituição da República."
"Art. 6. Nas transações extrajudiciais que implicarem obrigação pecuniária para as pessoas
jurídicas referidas no artigo 3 o, o pagamento somente será efetuado após a publicação de extrato
dos termos do acordo, no Diário Oficial".
53 Não é outra a inteligência do legislador pernambucano na redação do art. 3o da Lei Comple­
mentar Estadual n°. 105:
Art. 3o As transações judiciais e extrajudiciais em que seja parte ou interessado o Estado de
Pernambuco, suas autarquias e fundações públicas, serão firmadas pelo Procurador Geral do
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ção de Élcio Reis54, para quem é fundamental o parecer prévio da Procu-


radoria-Geral a que se submete a atividade de cobrança do tributo, para
que seja autorizada a transação.
Outrossim, é digna de nota a contribuição de Heleno Taveira Torres55,
para quem a solução consensual deve se dar no curso do processo administra­
tivo, devendo ser cabível recurso oficial da decisão, além do direito de fiscali­
zação do Ministério Público e da Procuradoria da Fazenda56.
Sugestão interessante seria estabelecer níveis de controle, cada vez mais
complexos, conforme o valor do crédito. Dessa forma, alguns créditos, de menor
valor, poderiam até mesmo ser negociados utilizando sistemas eletrônicos;
outros, por sua vez, já requereriam a análise de um auditor fiscal, ou do dele­
gado competente. Já a partir de certo nível, poderia ser necessária a submissão
de um pedido a um órgão colegiado, sob a fiscalização do Tribunal de Contas
da União (TCU).

C o n s i d e r a ç õ e s f in a is

No séc. XXI (direito contemporâneo), percebe-se que a estabilidade do


sistema jurídico é uma falsa premissa e que o direito não possui muitas ferra­
mentas para remediar a instabilidade externa. A conclusão é de que a incerteza
prevalece em todos os sistemas. Para alguns, isso se traduz na sociedade do risco.
Isso não significa que o direito não é importante para a economia e
vice-versa. O que ocorre é que o direito impacta o fato econômico com base
em uma racionalidade jurídica não tradicional. Evolui-se de um direito fa-

Estado, fundamentado em parecer, após ouvido o dirigente do órgão ou entidade estadual


relacionado com a demanda, observados o interesse público e a conveniência administrativa,
na forma estabelecida em Decreto.
§ 1o O Procurador Geral do Estado somente celebrará as transações a que se refere o caput, após
ouvido o Conselho de Programação Financeira.
54 REIS, Élcio. Transação do crédito tributário e a Procuradoria Geral. In: Revista Jurídica da
Procuradoria Geral da Fazenda Estadual, n° 31, p. 9-29, jul./set. 1998.
55 TORRES, Heleno Taveira. Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alterna­
tivas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribuintes. Simplificação e Eficiên­
cia Administrativa. In: Revista de Direito Tributário n° 86, 2003. p. 40-64.
56 No anteprojeto da lei geral de transação, há disposição análoga. Transações com valores
inferiores a R$ 10.000.000,00 e superiores àqueles fixados como mínimo para execução serão
realizadas pelas CCFN - Câmaras de Conciliação da Fazenda Nacional (unidades regionais).
As transações com valores superiores a R$ 10.000.000,00 dependerão de autorização expressa
do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, com anuência do Ministro de Estado da Fazenda.
S é r g io P a p in i d e M e n d o n ç a U c h ô a F il h o - 8 8 3

cilitador da ação social para um direito bloqueador de uma ação que poten­
cialmente coloca a sociedade em risco.
Uma das principais transformações identificadas para essa quarta fase do
direito moderno é a percepção de que o direito do século XXI é promovido
por uma racionalidade conjuntural e por uma legitimidade consensual. A lei
delegou a formas de pactuação a eficácia do próprio direito. Exemplos desse
fenômeno são a consolidação da transação, da mediação e da arbitragem.
Ademais, desenvolve-se uma linguagem pragmática e uma hermenêuti­
ca reflexiva, que procura retratar as especificidades do caso concreto e refletir
sobre elas. Constroem-se tipos ad hoc, examinando-se a conjuntura, que são
moldados para uma situação específica.
Com a hermenêutica reflexiva e a racionalidade conjuntural, os critérios
de coerência são aqueles orientados por princípios. O valor que norteia o or­
denamento é a adequação. Passa-se a trabalhar com critérios de compatibili-
zação de princípios.
Diante desse cenário de um direito bloqueador dos riscos sociais, raciona­
lidade conjuntural, legitimidade consensual, tipos ad hoc, linguagem pragmáti­
ca, completude do caso concreto e ponderação de princípios, o sistema tributário
não pode/deve ser lido apenas à luz da tipicidade cerrada e do legalismo autista.
O sistema tributário deve ser lido como o resultado de trocas entre os subsiste-
mas da sociedade (político, econômico e jurídico) e dessa forma terá o sentido
dinâmico de resposta à complexidade do sistema social e ao risco. Nesse mesmo
sentido, explica Marcelo Neves57, ao tratar do que denomina racionalidade trans­
versal entre sistemas, que “se observarmos o regime fiscal, por exemplo, podere­
mos verificar que, nele, há um entrelaçamento trilateral entre política, economia
e direito. O tributo é um fato econômico, jurídico e político, assim como o
orçamento é um instituto envolvido diretamente na economia, no direito e na
política. A racionalidade transversal importa, então, um grau de aprendizado e
intercâmbio construtivo entre esses sistemas”.
Ao se examinar o sistema tributário brasileiro, verifica-se que a transfe­
rência de atividades liquidatárias para os contribuintes, assim como a presença
cada vez mais constante de conceitos indeterminados nas leis fiscais, deram

57 Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009,
p. 50.
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impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução


de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes.
A evolução do nosso sistema tributário, que demanda com cada vez mais
intensidade a participação do contribuinte, com o intuito de se atingir o inte­
resse público, permite-nos afirmar que, em linha de princípio, existe espaço
dentro do âmbito tributário para a participação do contribuinte no processo
administrativo tributário. Equilíbrio dirigido, precisamente, a lograr uma maior
aproximação entre direito e realidade.
Ora, para diminuir as incertezas na aplicação da norma jurídica, na for­
mação de obrigações tributárias e de direitos dos contribuintes, administrador
e administrados podem desenhar “acordos de confiança” que sejam transpa­
rentes e representem ganhos mútuos.
Nesse contexto, a ideia da regra geral de transação e a utilização de técnicas
transacionais nos procedimentos tributários podem justificar-se por questões
pragmáticas relacionadas com a eficiência e com a diminuição da litigiosidade.
A regra geral de transação e a adoção da arbitragem e da mediação, sem a
necessidade de lei específica autorizadora, rompem o ciclo de positivação do
Direito e se autoimpõem como forma definitiva de cobrança do crédito tribu­
tário, distorcendo o art. 3o do CTNSS.
Ocorre que, com o intuito de afastar o formalismo jurídico exacerbado e
na tentativa de analisar o mundo de forma mais realista e pragmática pela
ciência, percebe-se que, para uma compreensão plena do fenômeno jurídico e
para que seus supostos critérios de justiça sejam operacionalizáveis, são neces­
sárias não apenas justificativas teóricas, mas teorias superiores à mera intuição
que auxiliem em juízos de diagnóstico e prognose, permitindo, em algum
grau, a avaliação mais acurada das conseqüências prováveis de uma política
pública dentro do contexto legal, político, social, econômico e institucional
em que será implementada. Isso porque o direito não existe sem a realidade.
Sem que se compreenda o contexto em que está inserido, não se consegue
entender o direito. E mais do que isso: não se consegue fazer com que o
Direito funcione.

58 "Art. 3° Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa
exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada".
S é rg io Papini de M e n d o n ç a U c h ô a F ilh o - 885

Com efeito, a distância entre direito e realidade que o conteúdo de deter­


minadas normas pode provocar no âmbito tributário poderia ser causa de certo
“desequilíbrio constitucional”, no sentido de produzir uma afronta à justiça
tributária. Em outras palavras, a interpretação unilateral por parte da Adminis­
tração Tributária de determinados “casos difíceis” contidos nas normas pode
conduzir a um isolamento do direito e, em conseqüência, da realidade concreta
que se pretende regular. Situação que exige a análise de ditos fatos à luz de uma
nova interpretação do texto constitucional. Ora, a evolução constante do nosso
sistema jurídico torna necessário entendimento dos princípios constitucionais
em harmonia e coerência com as necessidades sociais.
A rejeição de soluções consensuais só engessa o sistema fiscal. Nesse con­
texto, a proteção do interesse público não impede que a Administração possa
gerir a res publica de acordo com a melhor noção de eficiência e presteza. A
solução eficiente é aquela que mais estritamente guarda correspondência com o
interesse público. A eficiência administrativa só é realizada se os meios são leva­
dos em consideração. Ora, o princípio da eficiência, atrelado ao da boa adminis­
tração, da proporcionalidade, da razoabilidade e da economicidade, quer apenas
assegurar que o patrimônio público seja conduzido da melhor forma possível.
Autores se insurgem quanto à discricionariedade da Administração nas
soluções consensuais. Como se pode observar, não se trata de abertura de qual­
quer margem de discricionariedade para escolha de qualquer meio. O ato dis­
cricionário somente será legítimo se praticado para atendimento de uma finalidade
jurídica. Isto é, o princípio da eficiência determina que os atos da administração
pública sejam desempenhados de forma a atender ao interesse público na me­
lhor relação custo-benefício possível para a sociedade, sem se distanciar dos
objetivos da Administração Pública, concretizando os imperativos coletivos.
E nem se diga que o crédito tributário é absolutamente indisponível. A
arrecadação tributária é atividade-meio (caráter instrumental) do Estado, in­
teresse público secundário e ato de gestão, com nítido escopo patrimonial,
com fim de operacionalizar os interesses públicos originários, sendo, portanto,
relativamente disponível, mormente, quando considerado o princípio da efi­
ciência administrativa.
Sendo assim, nem sempre a cobrança do crédito tributário, na sua forma
integral e original, poderá ser considerada propriamente como sinônimo de
interesse público. O legislador infraconstitucional, portanto, está obrigado a
886 - Tra n s a ç ã o , S o lu ç õ e s A lte rn a tiv a s de C o n t ro v é rs ia s , R ac io n a lid a d e C o n ju n t u r a l.

construir procedimentos que tutelem de forma efetiva, adequada e tempesti­


va a arrecadação fiscal.
E a finalidade da solução consensual é justamente tornar factível a arre­
cadação, evitando o desperdício de esforços administrativos em situações de
incertezas, além de aproximar fisco e contribuintes, diminuindo a litigiosida-
de e a insegurança na tributação.
Consideramos, portanto, que seria aconselhável incorporar ao sistema
tributário nacional, o acordo transacional como modalidade geral de “extin­
ção” do crédito tributário, assim como a conciliação, a mediação e arbitragem
como alternativas válidas para a solução de conflitos tributários entre Fisco e
contribuintes, com a previsão dos procedimentos e dos requisitos aplicáveis59.
O grande desafio será o desenvolvimento de mecanismos de controle.
Não se trata de criar uma alternativa ao procedimento atual, mas de
completá-lo e, sobretudo, de incorporar atuações que, na realidade, estão se
produzindo à margem de todo o controle normativo. Tal mudança de postu­
ra, aliada à criação de mecanismos de controle efetivos, adaptaria as soluções
consensuais aos ditames do art. 37 da CF, evitaria a corrupção, garantiria a
segurança jurídica na atuação da Administração Pública e, ao mesmo tempo,
permitiria uma maior eficiência na arrecadação fiscal.

59 Não é nosso objetivo discorrer aqui sobre o instrumento legal adequado de implantação
dessas alterações, se lei ordinária ou complementar.
6) Direito Penal Tributário
Do Crime de Excesso
de Exação

Octavio Campos Fischer


Mestre e Doutor em Direito Tributário pela UFPR
Professor de Direito Tributário da Unibrasil (Graduação,
Especialização e Mestrado)
Advogado e Parecerista em Curitiba/PR
O c t a v io C a m p o s F is c h e r - 8 9 1

A ) C o n s i d e r a ç õ e s I n ic ia is

Em homenagem ao ilustre, conhecido e reconhecido jurista Hugo de


Brito Machado, resolvemos discorrer sobre o chamado “crime de excesso de
exação” capitulado no §1° do art. 316 do Código Penal (especificamente, na
sua primeira parte).
Tal dispositivo, com a alteração promovida pela Lei n° 8.137/90, passou
a tipificar o referido crime da seguinte forma:
“§ Io- Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou
deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio
vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa”.
Trata-se de assunto pouco analisado pela doutrina e pela jurisprudência,
mas que não pode ser deixado de lado pela sua importância no contexto das
relações entre Fisco e contribuinte.
O homenageado, porém, é um dos poucos que soube, como poucos, ana­
lisar o assunto em tela. Ainda que, por motivos alheios aos nossos desejos, não
conseguimos oportunidade de desenvolver um contato mais próximo com o
Prof. Hugo de Brito Machado, sempre acompanhamos atentamente a sua
imensa e profunda produção intelectual, seja por meio de seus estudos, seja
por meio de suas palestras. Foi assim que nos deparamos com um dos melho­
res trabalhos sobre o crime de excesso de exação, por ele desenvolvido1.
À guisa de introdução, cumpre esclarecer que nosso objeto de análise é
um tipo penal, cujo sujeito ativo é o funcionário público que deve realizar a
cobrança do tributo, mas que o faz de forma indevida, seja porque cobra
tributo2(que sabe ou deveria saber) indevido ou que, quando devido, “empre­
ga na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza”.

1 M ACHADO, Hugo de Brito. Excesso de exação. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n° 39.
São Paulo: Dialética, p. 49-63, 1998.
2 Para os tributaristas, a expressão "tributo ou contribuição" é equivocada, pois contribuição
é tributo. Bastava, portanto, falar apenas em "tributo". À época, porém, em que a Lei nG
8.137/90 foi elaborada (pouco mais de dois anos após a Constituição de 1988), não se
sabia, ao certo, que rumo iria tomar a jurisprudência do STF acerca da natureza jurídica das
contribuições especiais. Afinal, sob o pálio da Constituição de 1967, com a EC 01/69, o e.
Supremo Tribunal Federal desenvolveu orientação de que contribuição não era tributo (ver,
por exemplo, o julgamento da Contribuição ao PIS em razão dos Decretos-Leis n° 2.445/88
892 - Do C rim e de E xce sso de E x a ç ã o

Antes do advento da Lei n° 8.137/90, a tipificação legal tinha outra


redação:
“§1° Se o funcionário exige imposto, taxa ou emolumento que sabe
indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou
gravoso, que a lei não autoriza:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, de um conto a dez
contos de réis”.
A respeito desta antiga redação, note-se que a conduta do funcionário
público somente seria considerada ilícita se fossem exigidas indevidamente
(ou, mesmo que devidas, cobradas de forma vexatória/gravosa) algumas e não
todas as espécies de tributo; a saber, imposto e taxa (emolumento é uma espé­
cie de taxa)3. Em relação à primeira parte, exigia-se, ainda, o conhecimento do
sujeito ativo de que o tributo era indevido. A pena, por sua vez, era mais
branda: detenção de seis meses a dois anos ou multa.

B ) D is t o r ç ã o n a P e n a - B a se

Interessante observar que a pena atual, que é de reclusão de três a oito


anos mais multa, provoca uma distorção no sistema. Isto porque a forma qua­
lificada deste crime, prevista no §2° do mesmo art. 316, tem uma pena base
menor (dois anos):
“§ 2o- Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que
recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos: Pena - reclu­
são, de dois a doze anos, e multa”.
Daí a crítica procedente de Júlio Fabbrini Mirabete:
“Há, porém, um gritante equívoco na legislação, provocado pelo art. 20,
da Lei n° 8.137, de 27-12-90, pois, ao autor do crime previsto no art.

e n° 2.449/88). Daí, talvez, o motivo da legislação ter deixado claro que o tipo penal em
questão, também, deve abranger as contribuições. Hoje, porém, tal referência, como dissemos,
é desnecessária, já que doutrina e jurisprudência, em sua maioria esmagadora e corretamente,
entendem que contribuição é uma espécie de tributo. Esclareça-se, ainda, que, também, no
tipo legal em questão incluem-se os empréstimos compulsórios, porque são tributos (ver nosso
Contribuição ao PIS. São Paulo: Dialética, 1999).
3 Interessante orientação surgiu no julgamento, pelo e. STF, do RHC 81747 (Relator Min.
Maurício Corrêa, 2a Turma, DJU I de 29 .08.2003, p. 38, Data do Julgamento: 16.04.02),
quando se afirmou que "Ausência das elementares subjetiva, consistente no ato comissivo de
exigir-se tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, e objetiva, por não
se enquadrar a taxa de iluminação pública na categoria de imposto. Atipicidãde da conduta".
O c t a v io C a m p o s F is c h e r - 8 9 3

316, §1°, com a nova redação, comina-seumapenade3 (três) a 8 (oito)


anos de reclusão, além da multa (na lei anterior a pena era de seis meses
a dois anos de reclusão, além da multa), superior em seu limite mínimo
à forma qualificada. Por coerência e lógica o julgador, quando se tratar
de da forma qualificada, não poderá impor pena inferior a 3 (três) anos
de reclusão, mínimo fixado para o crime simples.”4
Para alguns, tal sistemática impõe orientação no sentido de que a forma
qualificada não poderia ter a sua pena base fixada, no caso concreto, aquém de
3 (três) anos. Em nosso entender, porém, a interpretação deve ser justamente
a inversa. Afinal, se majorada a forma qualificada da pena, estar-se-á ofenden­
do o princípio da legalidade criminal. A lei estipulou pena mínima de 2 anos,
e se julgada inconstitucional ou afastada, por algum motivo, não pode resultar
na aplicação judicial de uma pena mínima de 3 anos. Por outro lado, entende­
mos que é justamente no caso da tipificação do §1° do art. 316 que se pode
sustentar a obrigatoriedade de estipulação judicial de uma pena mínima de 2
anos, ao invés de 3 anos. Ora, se a pena mínima da forma qualificada é menor,
pelo princípio da razoabilidade, a tipificação ordinária deve ter sua pena mí­
nima reduzida judicialmente. Suprema incoerência seria admitir que quem
praticou o crime na forma qualificada possa ter uma pena-base menor do que
quem realizou a conduta tipificada pelo §1° supra.

C ) T ip o O b je t iv o : A Importância d o C o n c e it o de T r ib u t o

O §1° do art. 316 do CP prevê duas condutas criminosas: (a) exigir


tributo que sabe ou deveria saber indevido; e (b) empregar na cobrança do
tributo devido meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza5.
No primeiro tipo, tem-se o problema de compreender o que significa
“exigir tributo que sabe ou deveria saber indevido”.
Aqui, é importante registrar que a configuração dessa figura penal de­
pende de uma adequada e criteriosa análise do conceito de tributo.
Como dissemos acima, antes do advento da Lei n° 8.137/90, o tipo
objetivo abrangia apenas algumas figuras tributárias: imposto, taxa ou emo­

4 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 20a ed. São Fàulo: Atlas, 2005, p. 326.
5 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. V. 4, 21a ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 247.
894 - Do C rim e de E xce sso de E x a ç ã o

lumento. Este, porém, não deixa de ser uma espécie de taxa6. Portanto, até
1990, não configurava crime de excesso de exação a cobrança indevida de
contribuição de melhoria, de contribuições especiais e de empréstimo com­
pulsório. A não ser que se adotasse a teoria bipartida ou a teoria triparti-
da na classificação dos tributos. Naquela, defendida por Alfredo Augusto
Becker, somente existiriam dois tributos autônomos (os impostos e as ta­
xas), sendo que os demais teriam a natureza jurídica de um ou de outro
destes tributos a depender de sua base de cálculo. Já na teoria tripartida,
o tipo objetivo, também, poderia ser ampliado - ainda que de forma mais
restrita do que na teoria bipartida - pois, para alguns de seus defensores,
as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios seriam ou im­
posto ou taxa, a depender da sua hipótese de incidência. Nesta teoria,
portanto, somente a exigência de contribuição de melhoria indevida não
configuraria o crime de excesso de exação7.
Note-se, então, que a configuração do tipo objetivo, apesar de inserida
em dispositivo legal, estava a gerar um pouco de insegurança em função das
possíveis interpretações advindas da Teoria da Tributação.
O mesmo se passa atualmente, ainda que de outra maneira. Na redação
hoje em vigor, a legislação fez referência não a algumas espécies de tributos,
mas ao próprio gênero tributo. Portanto, tudo que se encaixar no conceito
deste poderá gerar a incidência do tipo penal em tela.
O problema, porém, está em determinar a real extensão do conceito de
tributo. Esta é uma questão pouco discutida pelos estudiosos do direito pe­
nal, que apenas fazem brevíssimas incursões pelo tema.
Para Luiz Régis Prado, a partir do art. 145 da CF/88, “tributo constitui o
gênero do qual os impostos, taxas e contribuições de melhoria são as espécies”.
Mesmo assim, o autor, amparando-se na lição de Hugo de Brito Machado,
sustenta que as demais contribuições, também, são tributos8.

6 Ver, por todos, o julgamento pelo STF da ADIN n° 2653/MT, Relator Min. Carlos Velloso, DJU
I de 31.10.2003, p. 14.
7 Para uma completa e profunda análise, sob a ótica tradicional, das teorias classificatórias
dos tributos, ver o nosso: FISCHER, O ctavio Campos. A Contribuição ao PIS. São Paulo:
D ialética, 1999.
8 Curso de direito penal brasileiro, v. 4: parte especial, arts. 289 a 359-H. São Paulo: RT,
2001, p. 402.
O c t a v io C a m p o s F is c h e r - 8 9 5

Rui Stoco refere-se apenas ao ato de exigir “imposto, taxa ou emolumen­


to (tributos e custas) indevido”9.
Guilherme de Souza Nucci entende que, por tributo, temos os impos­
tos, as taxas, a contribuição de melhoria e as contribuições sociais, rol este que
não poderia ser ampliado em função do princípio constitucional da reserva
legal. O autor parece acatar jurisprudência do STJ, no sentido de que não se
incluem no conceito de tributo as custas e emolumentos10.
Damásio de Jesus, por sua vez, entende que “Uma das condutas típicas
alternativas consiste em o funcionário público exigir tributos, i. e., impostos,
taxas e emolumentos”. “O tipo pode também ser concretizado mediante a
exigência de contribuições sociais (PIS, PASEP, contribuição social dos em­
pregadores, incidentes sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro, con­
tribuição social dos trabalhadores etc.)”11.
Todavia, para os tributaristas, a questão é bem mais tormentosa.
Normalmente, a doutrina procura trabalhar a ideia de tributo a partir do
art. 3o do CTN, como se ele fosse satisfatório:
“Art. 3oTributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plena­
mente vinculada”.
Ocorre que o tributo é um conceito fundamental para o direito tributá­
rio. Não só porque se ele não existisse não se teria um tal ramo jurídico, mas,
especialmente, porque definir o tributo significa definir até onde são aplicá­
veis as normas de direito tributário. Agora, se considerarmos que as normas
fundamentais da tributação brasileira se encontram na Carta Magna de 1988
—como, de fato, se encontram —então definir o tributo significa definir até
onde se aplicam as normas constitucionais tributárias. Mais precisamente,
significa definir o alcance das atribuições e das limitações ao poder de tribu­
tar. Este o motivo pelo qual asseveramos que existe um conceito constitucio­
nal de tributo. Trata-se de um conceito implícito e que, como lecionava

9 FRANCO, Alberto Silva & STOCO, Rui (coord.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial,
v. 2: parte especial, 7a ed. São Paulo: RT, p. 3861.
I0 Código Penal comentado. 4 a ed. São Paulo: RT, 2003, p. 865.
II Direito penal: parte especial, v. 4, 6a ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 130.
8 9 6 - D o C rime de E xcesso de E xa ç ã o

brilhantemente Geraldo Ataliba, deve ser obtido por um raciocínio de exclu­


são12. Tributo será o que não for multa, indenização por dano e contrato
estabelecido com a Administração Pública.
M uitos autores ainda não aceitam a existência de um conceito
constitucional de tributo. Mas, em nosso entender, por força do modo como
a matéria tributária foi regulamentada pela Carta Magna, trata-se de uma
questão lógica. Do contrário, não faria sentido a Constituição estabelecer regras
tão rígidas e minuciosas a respeito da competência tributária e dos direitos e
garantias do contribuinte que funcionam como limites ao exercício daquela.
Ora, repetimos, o conceito de tributo é um conceito nuclear para o direito
tributário, porque saber o que é o tributo é saber até onde se aplicam todas as
normas constitucionais tributárias. Isto é, saber se tributo é “a+b+c” ou se é
“a+b+c+d+e” é definir o campo de atuação daquelas.
Bem por isto não se pode deixar nas mãos do legislador infraconstitucional
liberdade para conceituar o tributo, sob pena de deixar nas suas mãos a defini­
ção do âmbito de aplicação das normas constitucionais tributárias e que, justa­
mente a ele, são dirigidas. Ou seja, dar condições ao legislador infraconstitucional
de conceituar o tributo é o mesmo que lhe conferir poderes sobre até onde
devem ser aplicadas as normas constitucionais tributárias. E conferir a um po­
der constituído um poder para limitar a obra do poder constituinte.
Neste sentido, vemos a prescrição do art. 146, III, “a” da CF/88, mais
como uma determinação para o legislador infraconstitucional esclarecer, tor­
nar explícito o que se encontra nas entrelinhas da Constituição do que como
um comando para estabelecer como quiser o conceito de tributo.
Felizmente, o art. 3o do CTN, apesar dos excessos de linguagem, não se
pôs em conflito com a Carta Magna. Ao contrário, parece ter deixado claro
que o conceito de tributo, implicitamente adotado por essa, é de uma presta­
ção pecuniária compulsória que não seja sanção por ato ilícito.
Portanto, se determinada figura, independente do nome, estipular uma
prestação pecuniária compulsória e que não tenha a natureza de uma sanção
por um ato ilícito, tributo será.
A partir desta configuração do conceito constitucional de tributo, con-
clui-se, de forma simples mas importantíssima, que tudo que nele se encai­

12 Hipótese de incidência tributária. 6a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 36.


O c t a v io C a m p o s F is c h e r - 8 9 7

xar será tributo. Portanto, para além dos impostos, taxas e contribuição de
melhoria, também os empréstimos compulsórios13e as contribuições espe­
ciais têm natureza tributária. Afinal, estas duas espécies, igualmente, são
compulsórias e não são sanções por atos ilícitos. Não se alegue o contrário
com fundamento na ideia de que o montante arrecadado em tais situações,
algumas vezes, sequer passa ou se mantém como receita nos cofres públicos.
Ora, tal raciocínio não encontra respaldo constitucional, na medida em que
nossa Carta Magna não impõe como requisito para a caracterização do tri­
buto que ele seja uma receita (ingresso definitivo) para os cofres públicos. O
que se exige é a utilização do montante cobrado para a realização de fins e
interesses públicos.
A partir desta perspectiva, já se pode concluir que a adoção legislativa da
expressão “tributo ou contribuição social” mostrou-se equivocada. Ora, basta­
va falar em “tributo”.
A única justificativa para o legislador ter deixado claro que o tipo pe­
nal em questão deve abranger as contribuições deve-se ao fato de que, à
época em que a Lei n° 8.137/90 foi elaborada (pouco mais de dois anos
após a Constituição de 1988), não se sabia, ao certo, que rumo iria tomar a
jurisprudência do STF acerca da natureza jurídica das contribuições espe­
ciais. Afinal, sob o pálio da Constituição de 1967, com a EC 01/69, o e.
Supremo Tribunal Federal desenvolveu orientação de que contribuição não
era tributo (lembre-se, por exemplo, o julgamento da Contribuição ao PIS
em razão dos Decretos-Lei n° 2.445/88 e n° 2.449/88).
Hoje, como se pode verificar, o STF tem decidido, reiteradamente, que
as contribuições têm natureza tributária. A própria doutrina, em sua maioria
esmagadora, entende que contribuição é uma espécie de tributo14.
Aqui, mais um esclarecimento se faz necessário. Quando se fala em con­
tribuição, para explicar o tipo penal, não se pode restringi-la a apenas uma de
suas espécies, que seria a contribuição social. O descuido com a terminologia,
neste ponto, pode provocar distorções no sistema.
Ao lado da contribuição de melhoria (art. 145, III da CF/88), o sistema
constitucional prevê um outro modelo de contribuições, com matriz no art.

13 A Súmula 418 do STF está em desuso.


14 São pouquíssimas as vozes divergentes desta orientação. Sobre o assunto, ver, também, o
nosso: FISCHER, Octavio Campos. A Contribuição ao PIS. São Paulo: Dialética, 1999.
898 - Do C rim e de E xce sso de E x a ç ã o

149. Neste, temos, para além das contribuições sociais, as contribuições de


intervenção no domínio econômico, as contribuições de interesse de categorias
profissionais e as contribuições para o custeio de iluminação pública (absurda
sucessora da taxa de iluminação pública).
Em razão disto, a doutrina prefere chamar a figura contribuição (art.
149) de contribuição especial (em contraposição à tradicional contribuição
de melhoria), que seria composta por algumas subespécies tributárias: a con­
tribuição de iluminação pública, as contribuições de intervenção no domínio
econômico, as contribuições de interesse de categorias profissionais e as con­
tribuições sociais (estas últimas, ainda, subdivididas em contribuições sociais
gerais [v.g., salário-educação, FGTS etc.] e contribuições sociais para a se­
guridade social [art. 195 e par. Io do art. 149]).
Por outro lado, o conceito de tributo oferece uma zona ainda nebulosa,
que tanto doutrina quanto jurisprudência não conseguiram superar. Trata-se
da clássica distinção entre taxa e tarifa.
Esta distinção enfrentou, recentemente, dois momentos de forte teoriza-
ção e debate. Em um primeiro, procurava-se sustentar ao máximo a natureza
tributária - e, portanto, de taxa - das remunerações pagas pelas prestações de
serviços públicos (específicos e divisíveis), justamente porque era uma prática
corriqueira do poder público denominar tudo de tarifa com o fim de fugir do
sistema tributário. Imaginava o Fisco - como ainda hoje imagina - que a sim­
ples mudança de nome poderia alterar a natureza jurídica de um instituto.
Assim, a doutrina procurava sustentar, em contrapartida, que, apesar do nome,
se o instituto encaixasse no conceito de tributo, teria a natureza deste.
Atualmente, porém, já não se tem mais a preocupação de defender a natu­
reza tributária de toda e qualquer remuneração por um serviço público especí­
fico e divisível. O início da era das privatizações e concessões fez mostrar a
uma parcela dos contribuintes —os que passaram a prestar serviços públicos em
regime de concessão e afins —que é complexa e desagradável a necessidade de
obediência ao regime tributário. Bem por isto, para uma parcela bastante signi­
ficativa da doutrina, o critério de distinção mais acatado no momento diz com
o regime de prestação do serviço público: se prestado diretamente pelo Poder
Público, poderá ser taxa, se, porém, prestado pelo particular, será tarifa.
E verdade que tal orientação não deixa de ter forte razão. Não porque a
alteração do posto de quem presta o serviço público possa, pura e simplesmente,
provocar a transmudação da natureza jurídica de um instituto, mas porque tal
O c t a v io C a m p o s F is c h e r - 8 9 9

alteração implica uma profunda conseqüência sistêmica. É que o novo regime


de prestação de serviços públicos gera a incidência de um outro feixe de normas,
que, se não for considerado, impossibilita, mesmo a sua realização.
Sobre o assunto, concordamos, então, com a profunda lição de Marçal
Justen Filho, para quem:
“Esse regime jurídico específico pressupõe mutabilidade a qualquer
tempo. Como o particular não é dotado de estruturas e garantias ine­
rentes ao Estado, há risco de insolvência. A contrapartida de assumir o
serviço por contra e risco próprios é a garantia de alteração da tarifa a
qualquer tempo. Quando se reconhece o direito à manutenção da equa­
ção econômico-financeira e o cabimento de sua recomposição, constrói-
se um regime jurídico distinto do tributário.
(...)

Portanto, o regime tributário é incompatível com o regime jurídico de


remuneração do concessionário (permissionário). Quando o Estado
outorga concessão, não se altera o regime jurídico da prestação do servi­
ço público, mas se modifica o regime jurídico da sua remuneração.”15
Claro que não se pode deixar de alertar que, por esta linha de orientação,
a taxa se põe como um tributo rumo à sua extinção. Afinal, entre prestar o
serviço, submetendo-se às normas tributárias e conceder o serviço a um parti­
cular, fazendo com que a remuneração deixe de ter natureza tributária, parece
pouco crível que o Poder Público escolherá, espontaneamente, a primeira op­
ção. Assim, as taxas tendem a ser utilizadas somente quando não for admissí­
vel a realização de uma concessão de serviço público ou similar. Este parece ser
o seu futuro bem próximo.
Merece registrar, enfim, que a distinção entre taxa e tarifa ainda não se
encontra muito clara na jurisprudência, o que pode dificultar a aplicação do
tipo penal.

D ) D o T r ib u t o I n d e v id o

Dúvidas podem surgir, também, no que se refere à caracterização do


que seja tributo indevido. Trata-se de uma expressão aberta, porquanto não

15 Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 346 e 347.
900 - Do C rim e de E xce sso de E x a ç ã o

temos como imaginar, a priori, todas as situações em que um tributo é con­


siderado indevido.
Na teoria do direito penal, também não encontramos maiores discussões
neste tópico.
Fala-se, normalmente, em tributo (i) que não foi instituído por lei, (ii)
que já foi pago ou (iii) que é devido em quantia inferior ao exigido.
Todavia, podemos traçar um rol de situações um pouco mais amplo, ainda
que jamais exaustivo: (a) tributo cobrado de quem não praticou o fato jurídico
tributário (previsto na hipótese de incidência tributária e, normalmente, conhe­
cido por fato gerador); (b) tributo cobrado sem que tal fato tenha ocorrido
(exceto nas famosas e esdrúxulas situações de antecipação e substituição tribu­
tária em que a legislação estipula cobrança de tributo sem a realização do fato
gerador); (c) tributo cobrado sem respaldo legal (exemplo radical: ser exigido
de alguém o Imposto sobre Grandes Fortunas sem que o mesmo tivesse sido
instituído); (d) tributo já pago; (e) tributo cobrado a maior do que o devido; (f)
tributo declarado inconstitucional em controle concentrado de constitucionali-
dade; (g) tributo declarado definitivamente inconstitucional pelo e. STF em
controle difuso, desde que se tenha Resolução do Senado16ou Súmula17; (h)

16 Aqui, é importante esclarecer que a função da Resolução do Senado Federal, prevista no art. 52
da CF/88, é apenas de conferir eficácia erga omnes para a r. decisão do e. Supremo Tribunal
Federal em sede de controle difuso. Portanto, o que se tem é que a Resolução não é admissível
no controle concentrado. Ademais, a Resolução, apenas, funciona como um instrumento que
amplia a decisão do STF, de forma que, também, não cabe cogitar de efeitos temporais diversos.
Alguns autores sustentam que ela sempre teria efeito ex nunc. Todavia, entendemos que ela tem
o mesmo efeito temporal da decisão do STF. Se esta é ex tunc, aquela assim será. Se é ex nunc,
assim, também, será (sobre o assunto, ver nosso: FISCHER, Octavio Campos. Os efeitos da
declaração de inconstitucionalidade no direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004).
J7 O problema que se põe aqui é de saber se o tributo já pode ser considerado indevido, de forma
geral, antes da emissão da Resolução do Senado. Dito de outra forma, é saber se o Poder
Público pode ou não continuar cobrando um tributo antes daquela. Em nosso entender, a
princípio, não será ilícita uma tal cobrança, justamente porque os efeitos da decisão no
controle concreto são apenas inter partes, quando não intra processual. Mas, dissemos a
princípio, porquanto é do conhecimento de todos que o Senado Federal não tem um prazo e
muito menos está obrigado a emitir a referida Resolução, o que significa que a eficácia erga
omnes pode não ser alcançada por esta via. Todavia, isto não implica em dizer que reiteradas
manifestações do e. Supremo Tribunal Federal, ao longo de determinado período, não levem
à formação de uma consciência coletiva jurídica de que a norma tributária é inconstitucional.
Pode-se falar aqui, por exemplo, naqueles casos em que se tem uma Súmula do e. STF. A
Emenda Constitucional n° 45/04 inovou o ordenamento no que se refere a tal instituto.
Passou-se a prever, no art. 103-A da CF/88, a Súmula Vinculante, que será aprovada pelo
Supremo Tribunal Federal, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas
decisões sobre matéria constitucional, e "que, a partir de sua publicação na imprensa oficial,
terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
O c t a v io C a m p o s F isc h er - 9 0 1

tributo em que se verifique algumas das causas de extinção ou de exclusão do


“crédito tributário”18.
Por outro lado, a expressão tributo indevido pode gerar uma discussão
que, em nosso entender, não tem muito sentido, mas que deriva de um posi­
cionamento doutrinário muito seguido. É que alguns tributaristas de peso
sustentam que o tributo indevido (por exemplo, tributo inconstitucional)
não seria tributo. Daí que tal expressão seria logicamente contraditória, já que
somente seria tributo o tributo devido, o tributo corretamente instituído e
corretamente cobrado. No entanto, mesmo que se aceite esta orientação (e
apenas para fins de argumentação), não teria ela o condão de inviabilizar a
incidência do tipo penal do par. Io do art. 316 do CP, que visa punir a co­
brança (indevida) de valores (indevidos) a título de tributo.

E) T ipo S u b j e t iv o

O tipo subjetivo, também, é bastante delicado, porquanto o legislador não


feliz ao prescrever que se tem a conduta criminosa quando o funcionário públi­
co exigir tributo ou contribuição social que “sabe ou deveria saber indevido”.
Há respeitados autores que consideram existir aí a previsão da modalida­
de dolosa como a culposa. Dolosa, quando o funcionário sabe que é indevido
o tributo; culposa, quando deveria saber que se trata de prestação indevida19.
Para outros, seria o caso de dolo direto e de dolo eventual. E a orientação
de Damásio de Jesus20e de Delmanto21.

pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal", sendo que, no art. 8° da
referida EC, tem-se que "As atuais súmulas do Supremo Tribunal Federal somente produzirão
efeito vinculante após sua confirmação por dois terços de seus integrantes e publicação na
imprensa oficial". Então, pode-se dizer que se houver Súmula Vinculante a Administração
Pública não poderá mais cobrar determinado tributo ou interpretar a legislação tributária de
forma diversa da que foi consolidada. Mas isto não se descarta a possibilidade de configuração
do crime antes da existência de Súmula Vinculante. Será o caso de um interpretação flagrante­
mente indevida da legislação.
18 Bem a rigor, como ensina Paulo de Barros Carvalho, não poderia o Código Tributário Nacional
distinguir os institutos da extinção e da exclusão do crédito tributário. Ademais, as situações
de exclusão, previstas no art. 175 do CTN (isenção e anistia), não atingem o crédito, seja
porque, no primeiro caso, não há que se falar em crédito tributário, seja porque, no segundo,
o que se exclui é a sanção (Curso de direito tributário. 17a ed. São Paulo: Saraiva, 2005).
19 M ACHADO, Hugo de Brito. Excesso de exação. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n° 39.
São Paulo: Dialética, p. 56-7, 1998.
20 Direito penal: parte especial. 4° v., 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 159.
21 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto & DELMANTO, Fábio
Machado de Almeida. Código Penal comentado, 6a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 630.
902 - Do C r im e d e Excesso de Exação

O problema está em que, como leciona Cezar Roberto Bitencourt, o


tipo não permite a modalidade culposa22. Afinal, Condorcet Rezente bem
explica que a expressão “deveria saber” pode “suscitar alguma dúvida, tendo
em vista a técnica legislativa adotada na Parte Especial do Código Penal, onde
os crimes passíveis de serem cometidos por culpa têm essa circunstância sem­
pre expressa no texto. Essa necessidade de disposição expressa para que a
modalidade culposa seja punida decorre do que estabelece o art. 18, §único
do CP in verbis: ‘Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido
por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente’”23.
Luiz Régis Prado aborda profundamente o problema:
“Quanto à segunda expressão, que deveria saber, costuma-se afirmar
que, no caso, o agente age com culpa e equivoca-se na cobrança por
imprudência, negligência ou imperícia, faltando com o dever de cuidado
objetivo exigível devido. Contudo, não é esse o melhor entendimento,
visto que, no caso, estar-se-ia nivelando a magnitude do injusto diante
de condutas dolosas e culposas. Na realidade, embora o legislador não
tenha sido feliz na redação empregada na norma em epígrafe, (...), veri­
fica-se que a mens legis objetiva também alcançar a conduta em que o
agente age com dolo eventual. O deveria saber, como outras expressões
presentes no Código, entre elas o devendo saber (art. 174) ou o deva
saber (art. 245), denota a admissibilidade de dolo eventual. Assim, a
expressão empregada pelo texto normativo não revela a plena certeza
sobre a realidade e, sim, um juízo de dúvida sobre a ilicitude da exigên­
cia ou do meio empregado para a cobrança. Contudo, o agente, mesmo
diante de tal circunstância, prefere continuar tendente à produção do
resultado e ‘entre renunciar à conduta e o risco de com ela concretizar o
tipo, prefere esta atitude em detrimento daquela. Isso quer dizer que o
agente opera com dolo eventual.’”24
Claro que se pode dizer que a ideia de dolo eventual mostra-se mais
adequada aos crimes de resultado, o que não se dá com o excesso de exação,
que é um crime de conduta. Todavia, a caracterização do dolo eventual ocorre
não só quando o agente assume o risco do resultado, mas, também, quando

22 Código Penal comentado. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1096.


23 Considerações sobre o crime de excesso de exação. In: SCHOUERI, Luís Eduardo [coord.]. Direito
tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. V. II, São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 1017.
24 Curso de direito penal brasileiro, v. 4. São Paulo: RT, 2001, p. 403-404.
O c t a v ío C am po s F is c h e r - 9 0 3

assume o risco de realizar o tipo. É o que leciona Juarez Tavares: “(...) o agente
deve ter refletido e estar consciente acerca da possibilidade da realização do tipo
e, segundo o seu plano para o fato, se tenha colocado de acordo com o fato de
que, com sua ação, produzirá uma lesão do bem jurídico”25. É, também, o
pensamento de Mirabete: “Age também com dolo eventual o agente que, na
dúvida a respeito de um ou mais elementos do tipo, se arrisca em concretizá-
lo. Quem age na dúvida assume o risco da prática da conduta típica”26.
Nesta esteira, apesar da infeliz redação do tipo penal em questão, não se
pode admitir, aqui, a modalidade culposa. Ora, como dito acima, o Código
Penal, no parágrafo único do art. 18, deixa claro que “A punição por dolo é a
regra, enquanto que a sanção por culpa é excepcional”, somente devendo ser
aceita “quando a lei textualmente a prevê”27. Assim, se o §1° do art. 316 do
Código Penal, em momento algum, menciona expressamente a modalidade
culposa, é porque esta não pode ser considerada.
Um exemplo pode ajudar a compreender. Se há um cálculo errado no
Lançamento de Ofício do tributo e denota-se que este cálculo não foi inten­
cionalmente elaborado para cobrar mais do contribuinte, não se pode falar em
crime de excesso de exação.
Todavia, em outra situação, se ocorreu a decadência tributária e, mes­
mo assim, o funcionário efetua o Lançamento de Ofício do tributo, não
pode ele alegar que não teve a intenção de cobrar indevidamente (sem cul­
pa), pois, no caso, ele devia saber que se tratava de excesso de exação. O
funcionário, aqui, assumiu o risco (dolo eventual) ou mesmo agiu com a
intenção (dolo direto) de realizar o tipo: cobrar o tributo indevido. Mas,
deve-se frisar que a caracterização do dolo eventual é extraída não “da mente
do autor, mas, isto sim, das circunstâncias”28.
Questão delicada que se discute diz com a configuração do crime de
excesso de exação em razão da emissão de um ato normativo da Administra­
ção Pública flagrantemente inconstitucional ou ilegal.

25 Teoria do injusto penal. 2a ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 346-347.
26 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código penaI interpretado. 5a ed. (atualizada por Renato N. Fabbrini).
São Paulo: Atlas, 2005, p. 195.
27 DELM ANTO, Celso; DELM AN TO , Roberto; DELM ANTO JÚ N IO R, Roberto & DELM ANTO,
Fábio Machado de Almeida. Código Penal comentado, p. 34.
28 Superior Tribunal de Justiça, 5a Turma, Resp 242263-M G, Rel. Min. Felix Fischer, DJU I de
20 .0 8.20 01, p. 515.
904 - Do C r im e d e Excesso de Exa ç ã o

Portanto, não se está questionando, diretamente, a licitude do ato de


cobrança (Lançamento ou Notificação, por exemplo), mas do ato normativo
da Administração Pública em que o mesmo se fundamenta.
Como se sabe, os atos administrativos, quanto ao conteúdo, podem ser
normativos ou executivos. “As características da generalidade e da abstração é
que distinguem os atos administrativos executivos dos atos administrativos
normativos; pois estes últimos são gerais e abstratos, enquanto os primeiros
podem ser gerais e concretos, individuais e abstratos ou individuais e concre­
tos, como esclarece Clèmerson Merlin Clève, esforçado em Jorge Manuel
Coutinho de Abreu”29.
A princípio, portanto, não se poderia falar em crime de excesso de exa­
ção, já que o tipo penal destaca a conduta de “exigir”, o que não se dá com um
ato administrativo normativo. Este apenas regulamenta a lei e não atua em
um caso concreto, exigindo um tributo de alguém. No máximo, poderíamos
cogitar de excesso de exação nos tributos com lançamento por homologação,
onde o art. 150, do CTN, estipula que o cidadão deve realizar o pagamento
do tributo antecipando-se ao atuar do Estado. A bem dizer, não temos aí
Lançamento. Justamente por isto, poderíamos sustentar que a exigência inde­
vida do tributo residiria no ato normativo da Administração Pública conside­
rado flagrantemente inconstitucional ou ilegal. Entretanto, se assim fosse, em
última instância, também, poderiam ser considerados como agentes do crime
o Presidente da República, quando edita Medida Provisória ou os Parlamen­
tares, quando aprovam uma lei regulando de forma indevida a exigência de
um tributo com lançamento por homologação! Então, também sob tal pris­
ma, não nos parece possível falar em crime de excesso de exação. Até porque a
figura típica dirige-se ao funcionário que realiza a cobrança do tributo30. É o
que bem assevera Júlio Fabbrini Mirabete: “somente o funcionário encarrega­
do da arrecadação poderá praticar o ilícito em estudo”31.

29 VIEIRA, José Roberto; LESNAU, Fábio Alessandra Fressato; OLIVEIRA, Clèverton Bueno de;
CAVALI, Marcelo Costenaro; ISFER, Renata Beckert e BARRETO, Rita Carolina. Perfil constitu­
cional do regulamento e alguns reflexos tributários. In: Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional, v. 4, Curitiba: ABDCO N ST, p. 184, 2003.
30 A princípio, porque pode ocorrer a situação de um Chefe de determinada repartição do Fisco
impor uma ordem concreta ao agente fiscal para arrecadar um tributo indevidamente. Neste
caso, o tipo penal poderá, também, ser aplicável ao superior. Assim é o que leciona Flugo de
Brito Machado: "Se a ordem superior é manifestamente ilegal, o autor da ordem e o funcionário
que a cumpre, ambos cometem o crime. Este será o autor material, e aquele o intelectual, ou
partícipe" (Op. c/t, p. 58).
31 Manual de direito penal, op. cit., p. 324. Ver, também: BITENCOURT, Cezar Roberto. Código
Penal comentado. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 1084.
O c t a v io C am po s F is c h e r - 9 0 5

Uma outra questão que pode ser discutida diz com a exigência indevi­
da de tributo realizada por ato administrativo executivo de funcionário que
se baseia em ato administrativo normativo flagrantemente inconstitucional
ou ilegal.
Aqui, sim, nosso entendimento é diverso.
E importante registrar que, do ponto de vista constitucional, a licitude
da conduta do agente fiscal está subordinada a atos normativos primários e
não aos secundários (infralegais). Aliás, a Lei n° 8.112/90, em seu art. 116,
XII, estipula como um dos deveres do servidor público “representar contra
ilegalidade”. Portanto, diante de um ato administrativo normativo ilegal, o
servidor público tem o dever de oferecer representação.
Pode-se dizer, no entanto, que o mesmo art. 116, no seu inc. IV, obriga
o servidor a cumprir ordens superiores, exceto quando manifestamente ile­
gais, de forma que somente nestas situações é que se pode exigir do funcioná­
rio o descumprimento de um ato administrativo normativo. De fato.
Ocorre que a obediência hierárquica se põe, normalmente, quando é
proferida uma ordem concreta por um agente/servidor que se encontra em
um “plano superior de relação hierárquica pública”32. Todavia, também, pode
ser que a ordem advenha de um ato administrativo normativo. No direito
tributário, temos, comumente, que o agente fiscal não precisa de uma “ordem
concreta” para cobrar o tributo. Basta a verificação do fato gerador ou da
irregularidade por parte do contribuinte para que o funcionário aplique os
atos normativos. É claro que podem existir situações em que o chefe da repar­
tição ordene a um subordinado seu que realize uma indevida cobrança de
determinado tributo, ainda que toda a legislação (inclusive a infralegal) esti­
pule o tributo de forma válida.
Aí, como já mencionamos acima, a imputação poderá recair tanto sobre
o agente fiscal quanto sobre o seu subordinado, a depender da situação con­
creta, em face das variáveis normativas do Código Penal. Assim, se a ordem for
manifestamente ilegal e o funcionário cumpri-la, sua conduta será punível
criminalmente, junto com a de seu superior.
Neste sentido, aponta o art. 22 do Código Penal Brasileiro:

32 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANCELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 2a
ed. São Paulo: RT, 1999, p. 657.
906 - Do C r im e d e E xcesso de Exação

“Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita


obediência a ordem , não manifestamente ilegal de superior hierárquico, só
é punível o autor da coação ou da ordem”.
O mesmo raciocínio deve ser empregado quando estamos a tratar de
cobrança de tributo com fulcro em ato administrativo normativo que impo-
nha uma regulação manifestamente inconstitucional ou ilegal de cobrança
de tributo. E dizer, se o funcionário age (ato executivo - Lançamento) de
acordo com ato administrativo (normativo), mas em desacordo com a lei,
poderá ele ser punido se a ordem contida naquele for manifestamente ile­
gal ou, com muito maior razão, manifestamente inconstitucional (afinal,
a Constituição é a “Lei das Leis”)33.
O problema estará em saber o que se quer dizer com isto, isto é, com
ordem manifestamente ilegal. Luis Alberto Warat ensina que há certas pa­
lavras que possuem anemia semântica:
“Las palabras con anemia semântica tienen em la definición persuasiva
um enorme valor. Elias carecen de contenido descriptivo y pueden ser
facilmente completadas porfiangibles contenidos axiológicos. (...) Mujer
honesta, por ejemplo, es um término que, al margen de um acto de valor,
carece por completo de extensión clara. Sólo mediante la intervención
de un sujeto que explicite qué rasgos constituyen para él la honestidad,
podrá armarse su denotación.”34
Isto é, estamos diante de uma expressão cuja compreensão não se dá a
priori, mas à luz da situação concreta, do seu contexto e dos valores subja­
centes, inclusive e especialmente do operador jurídico que a emprega e de
seus interlocutpres.

33 Mesmo raciocínio se aplica se o ato administrativo normativo fundar-se em uma lei manifesta­
mente inconstitucional. Também, aqui, o funcionário responsável pela cobrança do tributo
pode ser punido se aplicar tais normativas. Todavia, não se está, aqui, a tratar do problema do
controle de constitucionalidade em nível administrativo. Sobre o assunto, em nossa tese de
doutorado, já tivemos a oportunidade de defender o entendimento de que isto é possível em
sede de processo administrativo, em face dos princípios da ampla defesa e do devido processo
legal (Efeitos da declaração de inconstitucionalidade no direito tributário. Rio de janeiro: Reno­
var, 2004). No presente caso, tem-se que o funcionário não poderá cobrar tributo manifesta­
mente inconstitucional. É o caso de cobrança de ISS sobre venda de imóvel entre particulares,
com base em lei de determinado Município. Tal exigência seria tão manifestamente inválida
que a sua observância por um funcionário público seria inescusável. Portanto, não será
sempre, mas somente nestes casos teratológicos, que se poderá exigir do funcionário que se
abstenha de cumprir uma lei. No mais, a Administração Pública somente poderá exercer um
juízo de constitucionalidade se existente um devido processo legal.
34 El derecho y su lenguaje, op. cit., p. 105-106.
O c t a v io C am po s F is c h e r - 9 0 7

Portanto, superada a questão de saber o que é uma ordem manifestamen-


ilegal/inconstitucional, podemos concluir nosso estudo da seguinte forma:
(a) A emissão do ato normativo, em si, não configura crime de ex­
cesso de exação, porque o tipo legal fala em “exigir tributo inde­
vido”, que se refere ao ato administrativo executivo (de cobrança
do tributo); mas,
(b) Pode restar configurado o crime de excesso de exação se o fun­
cionário realizar Lançamento ou qualquer ato para exigir tri­
buto com base em ato administrativo normativo manifestamente
inconstitucional ou ilegal e, assim, que consagre interpretação
da legislação desconsiderando ou reduzindo, de forma mani­
festa, direitos constitucionais do contribuinte.
7) Direito Comparado
II Federalismo Fiscale
in Italia
II Progetto e le Prospettive

Cláudio Sacchetto
Ordinário di Diritto Tributário
Universita di Torino
C l á u d io Sa c c h e t t o - 913

1. PREMESSA INTRODUTT1VA

In data 5 maggio 2009, è entrata in vigore in Italia la legge n° 42,


"Delega al Governo in matéria di federalismo fiscale, in attuazione delVarticolo
119 delia Costituzione.”
La legge n° 42 da finalmente awio alia attuazione di una riforma
istituzionale in senso federale dopo otto anni dalla riforma delia stessa
Costituzione che ne costituisce il fondamento legale costituzionale. Trattandosi
di una legge delega essa pone solo dei principi cui si dovrà attenere il legislatore
delegato per la sua ejfettiva attuazione e per la quale avrà tempo sino al 2016.
La legge 42 costituisce un punto di arrivo e nello stesso tempo un punto di
partenza di un lungo dibattito che da una decennio ha visto dialetticamente
contrapposte le forze politiche volte ad modificare 1’assetto istituzionale dello
Stato Italiano in senso piú decentralizzato.
Un punto di arrivo che trova il suo momento di inizio nelTart. 5 delia
Carta Costituzionale italiana dei 1948 ove nei Principi Fondamentali di
statuisce che: “La Repubblica una e indivisibile, riconosce epromuove le autonomie
locali; attua nei servizi che dipendono dallo Stato il piú ampio decentramento
amministrativo; adegua i principi ed i metodi delia sua legislazione alie esigenze
delia autonomia e dei decentramento".
Con questo articolo 1’Italia, appena uscita dalla esperienza dei fascismo e
dalla seconda guerra mondiale, assume nel proprio progetto costituzionale di
essere una Repubblica una e indivisibile ma con forti connotazioni di
decentramento ed autonomia, anche se, a differenza di altri ordinamenti, non
assunse il termine di Stato federale nella própria costituzione. Ciò porta subito
a precisare che 1’uso, anche in questo contributo, dei termine “federalismofiscale
“ha un valore solo referenziale e non técnico quanto meno nella accezione in
cui lo ha sempre inteso la piú autorevole dottrina di diritto pubblico e come
apparirà piü chiaro piú avanti.
Piú significativamente, con il citato art. 5 delia Carta Costituzionale si è
dato riconoscim ento giuridico e rango costituzionale ad un valore
metagiuridico: che gli interessi delle comunità non statuali sono valoriper se stessi.
Per la prima volta in altri termini, in Italia lo Stato non concede i diritti
né si limita a garantirli ma li riconosce, a sottolineare che i diritti fondamentali
precedono i governi e le Carte e davanti ad essi gli uni e le altre "si inchinano”.
9 1 4 - I I F e d er a lis m o F iso kle in It a lia

L’art. 5 Cost. è rimasto per circa 60 solo un punto di riferimento


ideologico e si è concretizzato in alcune parziali riforme come 1’attuazione
delTordinamento regionale e nella concessione di deleghe di funzioni agli
enti locali nonché di una potestà regolamentare ai Comuni per alcuni tributi.
Questa stasi si spiega in ragione di concause di diversa natura ma
prevalentemente di natura politica interna sia di carattere internazionale (la
c. d. guerra fredda) sia interne (il forte divario socio economico tra Nord e sud
Italia) ma anche di natura técnica.
Nella matéria tributaria si è sempre assunta, in modo piü evidente che in
altri settori, 1’impostazione accentrata e statalista, accentuata con la riforma
tributaria dei 1971 che ridusse fortemente 1’autonomia tributaria degli enti
locali, sul fondamento di natura ideologica che portava a vedere nelle leggi
tributarie statali uniformi, sia quelle sostanziali che quelle procedimentali,
una garanzia di omogeneità e di eguale trattamento e applicazione su tutto il
territorio delle Stato. Sotto ilprofilo finanziario unaltraidea di fondo è sempre
stata che una amministrazione efficiente dovesse essere sottratta ai clientelismi
locali e quindi governata dal centro attraverso quella che si definisce come
una finanza di risorse derivata. Per contro una vistosa eccezione è stata la
previsione delle Regioni c. d. a statuto speciale che in base alia Costituzione
ed ai rispettivi statuti, godono di una maggiore autonomia e possono ad esempio
istituire tributi e trattenere quanto prodotto e incassato nel proprio territorio
con i tributi statali {c. d. principio di territorialità fiscale).
Per piü di mezzo secolo si è quindi sottovalutato un altro valore
metagiuridico che oggi si è prepotentem ente affermato: quello delia
sussidiarietà incoraggiato da un lato dalla forte richiesta e volontà di far
emergere una maggior connessione nelle classi politiche locali, tra autonomia
e responsabilità di chi amministra e quindi in ultima analisi un maggior
controllo democrático e anche perché 1’Unione europea spinge con decisione
e da tempo verso il riconoscimento di forti autonomie territoriali come afferma
l’art. 2 delTrattato sulTUnione europea che riconosce l’articolazione territoriale
interna dello stato.
II controllo delia economia globalizzata richiede inoltre oggi maggiori
coordinamenti a livello internazionale ma anche organismi interfaccia sul
territorio dove le decisioni devono avere effetto che non sono piü solamente
gli Stati storici nazionali.
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 1 5

Sin dalla entrata in vigore delia Costituzione quindi il fmanziamento


degli enti locali ai vari livelli si è attuato con il metodo dei trasferimenti di
risorse dali’alto owero da parte dello Stato. La traduzione normativa delia
indicazione costituzionale in termini di autonomia nel senso etimologico dei
termine di potere di darsi leggi da se e di poterle applicare da sé è rimasta
lettera vuota. L’idea di fondo infatti che sta dietro l’idea di federalismo è che
ciascun livello territoriale minore possa decidere autonomamente (l’etimo greco
autos nomos si traduce facilmente) 1’indirizzo politico delTente territoriale
relativamente alie competenze ed ai servizi ad esso attribuiti.
Lesperienza delia fmanza centralizzata si è dimostrata fallimentare. Al
vertice per un uso politico delle risorse. Alia base con una completa
deresponsabilizzazione degli enti locali. Da qui la spinta politica a tentare la
via dei federalismo. La prima svolta si registra nel 1992 con l’istituzione di un
tributo locale sugli immobili e a seguire altri tributi connessi con la gestione
dei territorio prevalentemente di natura commutativa, tasse, tariffe o contributi,
a fronte di servizi specifici come i servizi ecologici. Nel 1997 viene istituita
sempre dallo Stato l’IRAP (imposta regionale sulle attività produttive) sorta
per fare fronte alie sempre piú crescenti spese connesse ai servizi obbligatori
locali (tipicamente la sanità regionale).
Tuttavia ci sono voluti oltre 50 anni per arrivare alia vera rivoluzione
fiscale in matéria di fmanza locale e di riforma dello struttura dello Stato tout
court, con la legge 18 ottobre 2001 n° 3 che ha riformato il Titolo V delia
Carta costituzionale dei 1948. Una riforma voluta da tutte le forse politiche
anche se con gradazioni diverse.
Alia base delia Riforma sta l’art. 114 che ora recita “La Repubblica è
costituita dai Comuni, dalle provinde, dalle Città metropolitane, dalle Regioni e
dallo Stato.” Ove non può passare sotto attenzione 1’ordine sequenziale degli
enti costitutivi delle Repubblica che vede lo Stato alTultimo posto.
I tratti caratterizzanti di tale riforma sono il riparto delia potestà legislativa
da un lato prevedendo materie di esclusiva competenza statale es. politica
estera difesa e per quanto ci riguarda. Sul Sistema Tributário generale e contabile
dello Stato e per le materie non esclusive una posizione equiparata tra Stato e
Regioni nei rispettivi ambitiades. “In matéria di coordinamento delia fmanza
pubblica e dei sistema tributário”, sia pure nei limiti dei “principi fondamentali”
stabiliti con legge dello Stato.
9 1 6 - I l F e d er a lis m o F iscale in Ita lia

Le regioni sono competenti in via residuale delia potestà legislativa in


ogni matéria non espressamente riservata alio stato.
Ai sensi delTart. 119 le regioni hanno autonomia fmanziaria di entrata e
di spesa. I Comuni, le Province, le città metropolitane (una nuova figura
istituzionale sulla linea di quanto già attuato in altri Stati) hanno risorse
autonome. Stabiliscono e applicano tributi propri ed entrate proprie in armonia
con la Costituzione e secondo i principi di coordinamento delia finanza
pubblica e dei sistema tributário.
Si tratta di un quadro di ampia apertura per le istanze locali ma proprio
su queste norme è iniziata anche 1’interpretazione “sottrattiva" giacché secondo
1’interpretazione corrente 1’inciso 11Stabiliscono e applicano" tributi propri. ha
portata diversa per le regioni e per i comuni nel senso che questi ultimi possono
solo disciplinare con regolamento tributi già istituiti da regioni e Stato e non
direttamente.
In sintesi si ricava che 1’enfasi dei modello italiano di “federalismofiscale'
poggia sulle Regioni e non su altri enti territoriali in primis i Comuni.
Le regioni hanno potestà legislativa in matéria tributaria ma non
totalm ente libera in quanto può esercitarsi solo entro i principi dei
coordinamento statale.
Essenziale alia nozione di federalismo è invece una effettiva indipendenza
fmanziaria.
Tuttavia anche il coordinamento è un elemento costitutivo indispensabile
delia nozione di federalismo tanto quanto quello di indipendenza degli enti
al punto che si è autorevolmente osservato. Se gli enti locali fossero
indipendenti in assoluto tale nozione verrebbe meno.
Queste limitazioni appaiono peraltro ragionevoli se si considera da un
lato che anche le regioni ed in genere ogni tipo di ente locale, devono coordinarsi
con la politica economica generale dello Stato e in parte nelTambito di questa
con quella europea e sua volta che le regioni devono coordinare il loro sistema
rispetto agli enti locali, territorialmente competenti.
II coordinamento riguarda due oggetti distinti: la finanza ed i tributi.
Nel sistema italiano il coordinamento awiene inoltre a due livelli: lo Stato ha
il compito di fissare i principi dei coordinamento dei sistema tributário con i
sistemi tributari degli enti sub-centrali (art. 119, comma 2). La regione, a sua
volta, coordina il sistema tributário regionale e locale, nelPambito dei
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 1 7

coordinamento fissato dallo Stato (art. 117, comma 3). Non vi è ancora moita
chiarezza su questo punto dei coordinamento che a nostro awiso si annuncia
cruciale giacché è solo su tale equilibrio di ruoli e funzioni che si potrà stabilire
cosa rimanga alia fine delia autonomia tributaria delle Regioni e dei Comuni.
Ogni ordinamento è libero di “dosare" le due componenti indipendenza
ed autonomia secondo valutazioni di natura politica ma è facile intendere che
un coordinamento troppo “astringente” va a detrimento delia indipendenza e
può diventare un modo non trasparente per mantenere il centralismo statale.
E su questo punto non resta che attendere i decreti delegati.
Vi è inoltre un coordinamento nazionale, affidato alio Stato (art. 119,
comma 2); e quello regionale, disposto con legislazione regionale concorrente,
soggetta ai “principi fondamentali” fissati dallo Stato (art. 117, comma 3).
II coordinamento deliafmanzapubblica significa in particolare che lo stato
fissa i tipi di tributi che possono essere tributi propri delle regioni o degli enti
sub regionali. Di piú, indicando i tipi delimita anche i presupposti sui quali
possono essere istituiti dai vari enti i tributi propri. In definitiva con la riforma
dei Titolo V lo Stato cede parte delia própria potestà tributaria ma si direbbe
con grande prudenza e soprattutto opera una ristrutturazione finanziaria tra
i vari enti snellendola. Si tratta di un punto cruciale e fondamentale dei
progetto federale italiano e in generale di ogni modello federale.
II quadro generale dei federalismofiscale”cosi sinteticamente delineato è
entrato a far parte dei corpo normativo costituzionale nel 2001 ma si è trattato
solo di un progetto oprogramma quanto dire che le norme costituzionali citate
non hanno immediata operatività e neppure abrogano le norme vigenti coerenti
con la precedenti normativa costituzionale. In quanto programmatiche le norme
dei Titolo V si rivolgono al legislatore ordinário per la sua implementazione.
L’economia di spazio di questo contributo non permette di descrivere la
serie di interventi e proposte che dal 2001 si sono susseguiti da parte delle
varie forze politiche (tutte peraltro convergenti sulTobiettivo) per arrivare ad
una legislazione di attuazione dei dettato costituzionale in particolare alTart.
119 Cost.
In questo fase storica non va comunque sottaciuto che nel quadro politico
socio economico italiano caratterizzato da una spaccatura tra Nord e Sud,
esiste una componente politica che richiede una forte domanda di autonomia
dei Nord.
9 1 8 - I l F e d er a lis m o F iscale in It a lia

In questo contesto arriva nel maggio 2009, come sopra detto, la L. n° 42


di “Attuazione dei federalismo fiscale”.

2 . O b ie ttiv i e ca ra tte ri d e lla le g g e N° 4 2 IN MATÉRIA Dl


FEDERALISMO FISCALE

Come afferma l’Art. 1 della legge n° 42 1’ ambito di intervento di


attuazione deli’ art. 119 costituzione, è quello “..di assicurare una V autonomia
di entrata e di spesa di comuni, province, città metropolitane e regioni e tutto cio
garantendo i principi di solidarietà e di coesione sociale, in maniera da sostituire
gradualmente, per tutti i livelli di governo, il critério della spesa storica e dagarantire
la loro massima responsabilizzazione e Veffettività e la trasparenza dei controllo
democrático nei confronti degli eletti\.
In astratto un efficiente sistema di federalismo fiscale richiede che ciascun
livello di governo e ciascun governo, centrale, regionale o locale, finanzi le
proprie spese con il gettito prodotto da proprie entrate tributarie: “expenses of
local benefit ought to be defrayed by local revenuê'' affermo Adam Smith. La
corrispondenza tra decisioni di spesa e di fmanziamento è elemento costitutivo
delTefficienza allocativa. I governi che decidono le spese devono anche decidere
i mezzi di fmanziamento. Seguendo questi assiomi, si può dedurre come tra
i principi fondamentali dei federalismo fiscale vi sia il coordinamento dei
centri di spesa con i centri di prelievo, che comporterà automaticamente
maggiore responsabilità da parte degli enti nel gestire le risorse e la sostituzione
dei cosidetti costi storici, basata sulla continuità dei livelli di spesa raggiunti
l’anno precedente, con la spesa standard.
Con la legge n° 42 il vero e fondamentale obiettivo perseguito è a ben
vedere una ristrutturazione della macchina amministrativa volta alia
semplificazione attraverso il decentramento e la determinazione di procedure
finanziarie che siano volte alia efficienza ed abolizione degli sprechi dando
ragione a chi sostiene che il decentramento territoriale e fiscale dello Stato
può essere favorito da ragioni di efficienza economica ma vorremmo sottolineare
noi solo favorito.
Fatta questa premessa I criteri direttivi e gli obiettivi dei disegno di
legge ricavabili dai 29 articoli in cui è composta la legge 42, possono essere
cosi sintetizzati:
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 1 9

autonomia e responsabilizzazione fmanziaria di ogni livello di


governo;
attribuzione di risorse autonome, in relazione alie rispettive
competenze e secondo il principio di territorialità;
8 superamento delia spesa storica, a favore dei fabbisogno standard,
per il fmanziamento dei livelli essenziali e delle funzioni
fondamentali, di cui ali’art. 117, c. secondo, lett. m) e lett. p) delia
Costituzione, ed a favore delia perequazione delia capacita fiscale
per le altre funzioni;
• principio di necessaria correlazione nel senso delia riferibilità dei
tributi ai servizi erogati dai singoli enti territoriali;
8 esdusione di ogni doppia imposizione sul medesimo presupposto,
salvo le addizionali previste dalla legge statale;
• premialità dei comportamenti virtuosi ed efficienti;
• previsione di unadeguata flessibilità fiscale, articolata su piú
tributi, con una base imponibile stabile e distribuita in modo
tendenzialmente uniforme sul territorio nazionale;
semplificazione dei sistema tributário, riduzione degli adempimenti
a carico dei contribuenti, efíicienza neEamministrazione dei tributi,
coinvolgimento dei vari livelli nel contrasto alTevasione fiscale;
• riduzione dell’imposizione fiscale statale, in misura adeguata
alia piú ampia autonomia di entrata degli enti sub centrali, e
riduzione delle risorse statali umane e strumentali;
tendenziale corrispondenza tra autonomia impositiva e autonomia
di gestione da parte dei settore pubblico.
Com e si può dedurre 1’obiettivo è di porre rim edio ad una
amministrazione locale che nei vari livelli di governo si è gestita e si gestisce
attualmente, secondo valutazioni e risultati molto differenziati, senza una
spiegazione giustificabile se non nella cattiva amministrazione, sia a
costringere le Regioni soprattutto dei Sud a trovare in sé le forze per uno
sviluppo non assistenzialista.
Come? Attribuendo determinate funzioni dal centro alia periferia,
dotando gli enti locali responsabili dei servizi di risorse adeguate (c.d principio
delia adeguatezza) ma anche responsabilizzando gli amministrati sia politici
9 2 0 - I l F ed er a lis m o F isc a le in It a lia

che amministrativi nel senso che non solo dovranno ottemperare agli standard
di quantità e qualità di servizi attribuiti ma che per la loro erogazione dovranno
osservare determinati parametri di spesa e in caso di trasgressione saranno
destituiti. Lo strumento che si pone come perno dellobiettivo della efficienza
della spesa pubblica, è 1’adozione dei metodo di calcolo dei c.d costi standard
vale a dire vale a dire secondo la definizione che ne da lo stesso progetto di
legge (art.2 c.2 lett. f)) “ftndicatore rispetto al quale comparare valutare Vazione
pubblica“ individuando i costi delle prestazioni pubbliche sulla base delle
migliori performance. Chiude il sistema dei finanziamenti il fondo delle risorse
aggiuntive, una categoria di entrate derivanti da finanziamenti speciali da
parte dello Stato e della Unione europea, per specifiche finalità generali es. lo
sviluppo economico, la coesione e la solidarietà sociale per rimuovere gli squilibri
economici e sociali, per favorire l’effettivo esercizio della persona ex art. 119
Cost. c. 5. Qui si ha una conferma dei modello solidaristico di federalismo.
Questo è un argomento molto delicato perché tocca un nervo scoperto dei
sistema economico e sociale italiano vale a dire le relazioni tra Nord e Sud.
Cosa finanziano gli enti locali? La Costituzione prima e la legge 42
distingue due livelli di funzioni a carico degli enti locali: i servizi essenziali e
quelli non essenziali. Le spese riguardanti i livelli essenziali delle prestazioni
di servizi ritenuti fondamentali e tali definiti dallo Stato, vale a dire sanità,
istruzione ed assistenza, trasporti, saranno finanziate ai costi standard, “associati
ai livelli essenziali delle prestazioni fissati dalla legge statale, da erogarsi in
condizioni di efficienza e di appropriatezza su tutto il territorio nazionale” ai
sensi delTart. 6, c.l, lett. b). Le aliquote dei tributi e delle compartecipazioni
destinate a finanziare tali spese devono assicurare il raggiungimento dei livello
minimo sufficiente per almeno una Regione, e nelle altre, dove il gettito
tributário risulta insufficiente, concorreranno le quote dei fondo perequativo
(comma 1, lett. g) nazionale e regionale.
Nei limiti previsti dalla legge, gli enti locali potranno ricorrere anche alio
strumento fiscale per fornire servizi aggiuntivi per le funzioni fondamentali
per favorire determinate attività o situazioni di bisogno ma allora vi dovranno
prowedere con un correlativo aumento dei tributi locali o con la fiscalità di
vantaggio vale a dire con esenzioni che si traducono in minori entrate. Queste
misure di fiscalità hanno il vantaggio che terranno conto delle situazioni locali
ma saranno anche misure trasparenti decise dai governi locali e quindi soggette
al controllo politico dei cittadini destinatari.
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 2 1

Infine 1’attuazione di questa riforma dovrà awenire a “costo zero”o meglio


a pressione fiscale attuale invariata come massimo, tenuto conto che uno degli
obiettivi delia riforma è proprio quello che, attraverso una razionalizzazione
delia spesa pubblica, si possa ridurre la pressione fiscale complessiva nazionale.
Concorre in questa direzione anche la previsione, che costituisce anche uno
dei punti fortemente innovativi delia legge n° 42, che prevede il coinvolgimento
degli enti locali nella lotta alTevasione dei tributi erariali con la collaborazione
alTaccertamento dei comuni e con la previsione di meccanismi premiali sugli
incassi effettivi realizzati (art. 26 1.42).

3 . I n p a r t ic o l a r e : l' a u t o n o m ia t r ib u t a r ia d e g l i e n ti l o c a l i

II sistema di fmanza derivata inteso come trasferimenti di risorse dallo


Stato agli enti locali sino ad ora prevalente, è destinato ad essere sostituito da un
sistema tributário locale anche se non totalmente. La legge n° 42 prevede, infatti,
tributi locali di cui le amministrazioni regionali e locali potranno determinare
autonomamente i contenuti, sia pure nella cornice e nei limiti fissati dalle leggi.
I tributi ipotizzati dovranno garantire flessibilità, manovrabilità e territorialità
in modo che le amministrazioni piü efficienti, che sapranno contenere i costi a
parità di servizi, potranno ridurre i propri tributi.
Le Regioni disporranno, come detto, per il finanziamento delle spese
connesse ai livelli essenziali
a) di tributi regionali sulla base di un critério di tipo commutativo
vale a dire in base al principio di correlazione tra il tipo di tributo
ed il servizio erogato di unaliquota o addizionale IRPEF; non è
ancora chiaro quali siano tali tributi ma 1’opinione prevalente è
quella di tributi legati al territorio di giurisdizione che tassino
gli immobili e i trasporti pubblici;
b) delia compartecipazione regionale alTIVA; vale a dire dei gettito
Iva riscosso per transazioni aw enuto nel territorio di
competenza,una quota rimane alTente stesso (c. d. principio di
territorialità)',
c) di quote specifiche dei fondo perequativo nazionale qualora l’ente
locale non sia in grado in base ai parametri delia sua capacità
fiscale, di assicurare i servizi fondamentali.
9 2 2 - I l F e d er a lis m o F iscale in Ita lia

Per le altre spese vale a dire per i servizi non fondamentali o per quote
aggiuntive di servizi essenziali (regioni che desiderano avere ad esempio servizi
sanitari o istruzione, o trasporti piú elevati) le Regioni possono decidere
autonomamente ma dovranno farsi carico dei costi sempre in via autonoma
ricorrendo ad altri tributi propri o innalzando quelli esistenti.
Va precisato che il termine tributi propri non va inteso nel senso, come
dovrebbe essere, di tributi istituiti con delibera autonoma, a livello delTente
secondo una própria valutazione politica e sociale, ma solo che si tratta di
tributi istituiti dallo Stato che ne individua il presupposto e la base imponibile,
ma il cui gettito è destinato agli enti locali ove si configura tale presupposto
secondo il citato principio di territorialità. Esso agisce nei seguenti termini:
dei luogo di consumo, per i tributi aventi come presupposto i consumi, delia
localizzazione dei cespiti, per quelli basati sul patrimonio, dei luogo di
prestazione dei lavoro, per i tributi basati sulla produzione, delia residenza
dei percettore, per quelli basati ai redditi delle persone fisiche, ed infine al
coinvolgimento dei diversi livelli istituzionali nelTattività di lotta alTevasione
e alTelusione fiscale. II gettito di questi tributi per contro sarà senza vincolo
di destinazione. Si potrebbe dire che luogo dei presupposto è il luogo dei
pagamento alTente competente territorialmente. In teoria si ha coincidenza
tra servizio - costo - pagamento.
In conclusione per tributi propri delle Regioni, ai sensi delTart. 5, si in-
tendono:
• 1 .1 tributi propri derivati. istituiti e regolati da leggi statali, (e questo
termine equivoco ma si giustifica come applicazione dei principio dei
coordinamento) il cui gettito è attribuito alie Regioni. Le regioni, con própria
legge, possono modificare le aliquote e disporre esenzioni, detrazioni e
deduzioni nei limiti e secondo criteri fissati dalla legislazione statale e nel
rispetto delia normativa comunitaria europea;
8 2. Le aliquote riservate alie Regioni a valere sulle basi imponibili dei
tributi erariali c. d. addizionali', le regioni, con própria legge, possono introdurre
variazioni percentuali delle aliquote delle addizionali e possono disporre
detrazioni entro i limiti fissati dalla legislazione statale;
• 3. I tributi propri istituiti dalle Regioni con proprie leggz “in relazione
aipresupposti non già assoggettati a imposizione erariale. ”!
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 2 3

4 . L' AUTONOMIA TRIBUTARIA DEGLI ENTI LOCALI CoM U N I,


P r o v in c e , C i t t a M e t r o p o lit a n e

I Comuni in Italia (meno le Provincie) sono una realtà storica economica


e sociale rilevante. Attualmente sono piú di 9.000. Anche essi per norma
costituzionale e legge n° 42, dovranno disporre di tributi propri. In particolare,
per le funzioni fondamentali disporranno delia compartecipazione e
delTaddizionale aUTRPEF ma va specificato subito che gli enti locali non
avendo potestà legislativa, devono operare nel rispetto delia “riserva di legge”
qui nel senso che non possono istituire tributi per definizione ma possono
intervenire in via secondaria, con norme attuative o integrative delle norme
primarie, contenute in leggi statali o regionali ma solo con regolamenti.
Sempre sulla base di leggi regionali potranno attivare tributi di scopo legati
ad esempio ai flussi turistici o alia mobilita urbana o per finanziari specifici
progetti comuni ad es. un ponte Le Province che sono un circoscrizione territoriale
di piü comuni e di cui si è a lungo discusso delia loro utilità dei loro
mantenimento, disporranno di tributi propri e di tributi di scopo; in particolare,
le funzioni fondamentali saranno fmanziate da una compartecipazione alTIRPEF.
Gli Enti Locali avranno la facoltà di variare le aliquote dei tributi loro attribuiti
ed introdurre agevolazioni. II Capo IV prevede specifiche disposizioni per le
istituende aree metropolitane, la cui autonomia di entrata e di spesa dovrà essere
commisurata alia complessità delle piü ampie funzioni. Infine il disegno di
legge prevede forme premiali per favorire unioni e fusioni tra Comuni, anche
attraverso fincremento delTautonomia impositiva.

5 . I FONDI PEREQUATIVI

a) II fondo perequativo nazionale


II modello di federalismo fiscale prefigurato dalla legge n° 42 è defmito
di tipo cooperativo o solidaristico. Ecco perché l’art. 7 istituisce un fondo
perequativo, a favore delle Regioni, che sarà alimentato, per fmanziare i livelli
essenziali delle prestazioni, con 1’obiettivo di ridurre le differenze interregionali
di gettito per abitante. Inoltre, la ripartizione terrà conto anche, per le Regioni
con una popolazione sotto a una soglia, che sarà individuata tramite decreti
legislativi, delia dimensione demografica, in relazione inversa alia dimensione
stessa. Per queste ultime, la lett. f) stabilisce che le Regioni con maggiore
9 2 4 - I l F e d er a lis m o F isc a le in It a lia

capacita fiscale, ossia quelle nelle quali il gettito per abitante delTaddizionale
IRPEF supera il gettito medio nazionale, non partecipano alia ripartizione
dei fondo, mentre le altre partecipano al fondo, alimentato da una quota dei
gettito prodotto nelle altre Regioni.
b) I fondi perequativi regionali
Ogni Regione istituirà infine nel proprio bilancio due fondi, uno a favore
dei Comuni, l’altro delle Province, come indicato dal!’art. 11. Tali fondi saranno
alimentati da un fondo perequativo dello Stato, con 1’indicazione separata
degli stanziamenti per le diverse tipologie di enti a titolo di concorso per il
fmanziamento delle funzioni da loro svolte. La misura dei fondo sarà
determinata in base alia differenza fra i trasferimenti statali soppressi e le
nuove entrate istituite.
Questo per grandi linee il disegno prefigurato di federalismo fiscale a
livello di legge delegata che, come detto sopra, aspetta ora di trovare piü specifica
e implementazione con i decreti delegati. E qui si giocherà la vera battaglia
perché nei decreti da emanare con legge ordinaria si offrono spazi discrezionali
e di opzioni che possono variare 1’effettiva portata dei disegno costituzionale.
Piü di tutto sarà compito dei politici far capire ai cittadini che decentramento
e federalismo sono sinonimi di diversità. Non è pensabile un federalismo senza
autonomia e quindi senza una regolazione di interessi che non sia espressione
di una valutazione diversa in quanto diversi il giudizio di chi decide. Questo
è una osservazione “rivoluzionaria” perché obbliga a ripensare il principio
costituzionale di solidarietà politica economica e sociale ex art. 2 Cost. su cui
si fonda il principio fondamentale della nostra costituzione di solidarietà e di
eguaglianza art. 3 anche per 1’aspetto fiscale.

6 . Luci ED OMBRE DEL PROGETTO Dl FEDERALISMO


FISCALE ITALIANO

Qualunque sia 1’entità delle modifiche che in concreto sortiranno dalla


legge n° 42, il processo di decentramento in atto si può defmire veramente
rivoluzionario o almeno si spera che lo sia anche se non mancano le critiche sia
per quello che si sarebbero dovuto e potuto fare in piü, sia per alcuni rilievi di
natura técnica.
Certamente positivo è il giudizio riguardo al versante della autonomia
della spesa degli enti locali con il passaggio dal critério della spesa storica
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 2 5

attualmente adottato a quello dei costi standard vale a dire ad un metodo


omogeneo che deve essere osservato da tutti gli enti locali. Si tratta di un
passo avanti soprattutto per quanto riguarda il controllo delia spesa pubblica
e delia responsabilizzazione delia classe politica ed amministrativa. Rimane
aperto tuttavia il problema di ordine político. I costi per i servizi fondamentali
o essenziali saranno eguali in tutta Italia ma quale sarà il livello di tali servizi
da erogare? Ad es. quale deve essere rammontare e la qualità dei servizi per la
sanità, la scuola ecc.? Questione che può essere risolta solo in sede politica.
Ulteriore problema riguarda la técnica per determinare i costi standard. Chi li
decide e come?
Per i servizi non essenziali che sono nella libera determinazione degli
enti locali il loro costo sarà sopportato con il critério delia capacita fiscale per
abitante. Quanto dire che ogni ente deciderà se e quanto erogare un servizio,
se avrà le risorse nel suo ambito di competenza territoriale.
Se uno degli obiettivi delia legge delega sul federalismo fiscale era la
semplificazione degli strumenti tributari e la maggior trasparenza, vi è da
dubitare che il risultato sia raggiunto poiché gli adempimenti per i
contribuenti saranno non solo diversi da regione a regione ma anche
complessivamente maggiori.
Tra le critiche un rilievo fondato riguarda anche il metodo di lavoro
seguito. La logica avrebbe voluto che prima si procedesse alia definizione
delle funzioni delle regioni e degli enti locali e poi alie relative fonti di
finanziamento. Invece a parte una generica individuazione di alcune funzioni
pubbliche, nulla si dice su quelle degli enti locali. Le critiche maggiori sono
sul versante delle entrate o meglio sul grado di autonomia impositiva riconosciuti
agli enti locali. Nella definizione di federalismo fiscali sono ricompresi sia il
modello competitivo sia quello cooperativo o solidaristico. In teoria con la
Riforma costituzionale dei Titolo V delia Costituzione entrambi i modelli
potevano trovare attuazione perché il dettato costituzionale si è limitato a
prevedere che il finanziamento degli enti territoriali sia effettuato attraverso
tributi propri o compartecipazioni ai tributi statali o al fondo perequativo. In
fatto il legislatore delia legge n° 42 a quale modello ha dato preferenza? Va
distinta la situazione delle Regioni da quella dei Comuni e Province. Come si
è sopra visto i c.d. tributi propri delle regioni art. 7 c.l sono tributi derivati
che sono disciplinati da legge dello stato, da addizionali a tributi erariali, e da
tributi effettivamente propri ma che non siano su -presuffosti già assoggettati a
9 2 6 - I l F e d er a lis m o F iscale in It a l ia

imposizione erariale. Quindi per i tributi di cui ai nn. 1 e 2 le regioni possono


solo modificare le aliquote e agire sulle agevolazioni ma anche qui nei limiti
previsti dalla legge statale ex art. 7 c. 1 lett.c). Per i tributi propri in senso stretto
vale il vincolo della non doppia imposizione. Quale margine di autonomia
tributaria in senso proprio rimane e quali spazi di matéria imponibile per i
tributi propri? Solo per i c.d. tributi commutativi o se si preferisce le tasse a
fronte di servizi specifici riguardanti il beneficiato. Uunica apertura è la
possibilità di istituire tributi di scopi.
In conclusione si può dire, e tutti i commentatori indipendenti sono
concordi, che la legge delega ha significativamente ristretto la potestà
tributaria delle regioni e degli enti locali in particolare ad onta dei maggior
margine concesso dal sistema costituzionale. Un progetto quindi prudente
o assolutamente minimale dei dettato costituzionale. Ciò significa per chi
ritiene che la autonomia finanziaria sul lato della entrata sia carattere
imprescindibile dei federalismo che sia improprio parlare di federalismo al
massimo di decentramento.
Questo è stato possibile perché la C arta Costituzionale parla
genericamente di autonomia tributaria e finanziaria degli enti locali ma non
ne definisce, come fa la Costituzione tedesca, e quella nordamericana, i
contenuti sostanziali dando cosi alia potestà tributaria degli enti locali una
garanzia costituzionale. La legge statale di coordinamento che poi in fatto
determinerà lo spazio di libertà tributaria degli enti locali, sarà una legge
ordinaria e una qualunque maggioranza parlamentare potrà cambiare tale
autonomia a piacere nel tempo. Nei paesi appena citati tale garanzia è invece
rinforzata sia da una Camera a base regionale Bundesrat o come in Usa dalla
Camera dei rappresentanti, sia da un organo giurisdizionale supremo di
controllo, o detto in altri termini, occorre che la Carta costituzionale stessa
ponga la garanzia esplicita della autonomia sotto la tutela esplicita di un organo
costituzionale coma ad es. la Corte costituzionale.
In positivo invece, anche per il significato di una riforma vuole qualificarsi
come federalista, è 1’adozione della fonte di finanziam ento della
compartecipazione ai tributi erariali (in particolare l’IVA) e piü significativo
ancora che tale compartecipazione awenga sul gettito dei tributo in relazione
al singolo territorio.
Pur dopo la riforma dei 2001, il nostro resta quindi un ordinamento
sostanzialmente unitário. Si spera che diventi un ordinamento piü efficiente
C l á u d io S a c c h e t t o - 9 2 7

o piü ottimisticamente meno inefficiente. II vero test sarà dato dalla predis-
posizione di un credibile sistema di controlli e dei processi di monitoraggio e
soprattutto da un sistema capace di rendere effettivi le sanzioni e le misure
premianti per chi rispetterà le regole delia buona amministrazione. Un test
che come è facile capire è meno un problema técnico e piü di volontà politica.
O Princípio da
Proporcionalidade e as
Normas Antielisivas no
Código Tributário da
Alemanha

Ricardo Lobo Torres


Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ
R ic a r d o L o b o T o r r es - 9 3 1

1. In tro du ção

A construção alemã das normas antielisivas é extremamente importante,


em vista da duração, das vicissitudes e da eficácia que exibiram.
O direito germânico utilizou sempre a figura da proibição de “abuso de
forma jurídica” (Missbrauch von Formen und Gestaltungsmõglichkeiten), con­
substanciada na vedação de “elisão” (Steuerumgehung). As diferenças de reda­
ção tiveram por objetivo dar maior clareza à garantia e a incorporar os avanços
conceptuais e jurisprudenciais.
Surgida em 1919, com o Código Tributário do Reich, ulteriormente
modificado, foi reformulada pelo Código de 1977 (Abgabenordnung 77) e
pela alteração de 20/12/2007, com eficácia a partir de Io de janeiro de 20081.

2 . O C ó d i g o de 19 19
O Código Tributário de 1919 (Reichsabgabenordung-RAO), elaborado
por Enno Becker sob a influência das ideias desenvolvidas pela jurisprudência
dos interesses, foi reformado em 1931 e sofreu profunda alteração pela Lei de
Adaptação Tributária (Steueranpassungsgesetz - StAnpG), de 1934, que assim
proibiu o abuso da forma jurídica (Rechtsmissbrauch) no art. 6o:
“1: Através do abuso de forma ou da aparência do direito civil não pode
a obrigação tributária ser contornada ou diminuída.2
2. Havendo abuso de forma, o imposto será exigido como se tivessem
sido adotados os processos econômicos, os fatos geradores e as relações
adequadas à forma jurídica”.
A interpretação da norma geral antielisiva transcrita sempre se fez à luz
dos arts. 4o e 5o da RAO, que cuidavam da consideração econômica do fato
gerador. Tais regras receberam nova redação pela RAO de 1931. Com a Lei de
Adaptação Tributária (Steueranpassungsgesetz), de 16.10.34, foram introduzi­
das novas alterações: o art. Io, item II mandou observar na interpretação “a

1 JStG 2008, v. 20.12.2007; BGBI, I 2007, 3150.


2 1. "Durch Missbrauch von Formen und Gestaltungsmõglichkeiten des bürgerlichen Rechts kann
die Steuerpflicht nicht umgangen oder gemindertwerden.
2. Liegt ein Missbrauch vor so sind die Steuern so zu erheben, wie sie bei einer den wirtschaftlichen
Vorgãgen, Tatsachen und Verhãltnissen angemessenen rechtlichen Gestaltung zu erheben wãren".
932 - O P rin c ípio da P r o p o r c io n a lid a d e e as N o r m a s A ntielisivas n o C ó d ic o T rib u tá r io d a A lem a n h a

concepção popular, a finalidade e o significado econômico da lei tributária e o


desenvolvimento das circunstâncias”3; e o art. Io, item II determinou prevalecer
a mesma coisa para “a apreciação dos fatos geradores”4. Esses dois dispositivos
foram ulteriormente revogados pelo Código Tributário de 1977 (AO 77).
Havia outra regra na Lei de Adaptação Tributária - art. I o, I - que
estabelecia: “as leis fiscais devem ser interpretadas de acordo com a visão do
mundo nacional-socialista”5. Foi revogado com a redemocratização da Ale­
manha em 1945. Mas conduziu à desinterpretação da regra antielisiva do art.
6o da RAO, inclusive no Brasil6.
O grande intérprete da norma antielisiva ao tempo da Constituição de
Weimar foi Albert Hensel, que escreveu artigo até hoje indispensável para a
compreensão do fenômeno7.

3. O C ó d ig o de 1 9 7 7 ( A O 7 7 )

O Código Tributário (Abgaenordnung) de 1977 revogou os dispositivos re­


ferentes à consideração econômica e deu nova redação à norma geral antielisiva:
“Art. 42 - A lei tributária não pode ser contornada através do abuso de
formas jurídicas. Sempre que ocorrer abuso, a pretensão do imposto
surgirá, como se para os fenômenos econômicos tivesse sido adotada a
forma jurídica adequada.”8
No direito alemão a elisão se chama “Steuerumgehung, que literalmente
significa contornar, ladear, circular, envolver ou dar a volta em torno da lei do
imposto. Tipke9explica que para se caracterizar a elisão: “Uma lei tributária

3 "Dabei sind die Volksanschauung, der Zw eck u rd die wirtschaftliche Bedeutung der Steuergesetze
und die Entwicldung der Vertáltnisse zu berücksichtigen".
4 " Entsprechendes gilt für die Beurteilung von Tatbestãnden".
5 "Die Steuergesetze sind national-soziaiistischer Weitanschauung auszuiegen".
6 ALBERTO XAVIER (Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Fàulo: Dialética,
2001, p. 108) para defender a inconstitucionalidade da norma antielisiva introduzida pela LC
104/01, no art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, lançou o argumento ad
terrorem de que as regras de combate à elisão abusiva têm coloração nazista, pois o abuso de
formas foi "concebido por ideólogo nacional-socialista como instrumento de cerceamento da
liberdade individual".
7 Zur Dogmatik des Begriffs Steuerumgehung. Festgabe für E. Zitelmanns, 1923, p. 217-288.
8 A redação original é a seguinte: "Durch Missbrauch von Cestaltungsmõglichkeitendes Rechts kann
das Steuergesetz nicht umgangen werden. Liegt ein Missbrauch vor, so entsteht der Steueranspruch
so, wie er bei einer den wirtschaftlichen Vorgángen angemessenen rechtlichen Gestaltung entsteht".
9 Die Steuerrechtsordnung. Kõln: Otto Schmidt, 1993, v. 3, p. 1342: "Es muss ein Steuergesetz
umgangen werden. § 42 A O spricht von Umgehung "des Steuergesetzes".
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 9 3 3

deve ser contornada. O art. 42 do Código Tributário fala do contorno da lei


tributária”. Observa ainda o jurista germânico que “a elisão tributária pressu­
põe um abuso da possibilidade formal do direito, que se apega não à finalida­
de, mas à letra da lei”10.
Na elisão, afinal de contas, ocorre um abuso na subsunção do fato à
' norma tributária. Como lembra Paul Kirchhof, a elisão é sempre uma sub­
sunção malograda (ein fehlgeschlagener Subsuntionsversucht)n.
A interpretação do art. 42 da A 077 se fez de forma diferente da que
antes prevalecera, em razão do desaparecimento de regras explícitas sobre a
consideração econômica e do aprofundamento da metodologia da ciência do
direito, esta última sobretudo pela enorme influência exercida pela obra de
Larenz, a partir de meados da década de 60, e pelo novo enfoque da questão
dos princípios jurídicos.
A doutrina alemã se dividiu quanto à natureza do art. 42 da A077.
Alguns autores defendiam a natureza constitutiva da regra, que quebrava a
proibição de analogia prevalecente no direito tributário12. Outros juristas, que
aceitavam a possibilidade de analogia no direito tributário, manifestaram-se
no sentido da natureza declaratória da norma antielisiva13.
Mas a doutrina, majoritariamente, entendeu como constitucional a regra
do art. 42 da A 07714.
Já se pacificou no direito alemão a tese de que o direito civil e o tributá­
rio possuem idêntica estatura. Reconheceu o Tribunal Constitucional da Ale­
manha, em 27.12.91, a precedência, mas não o primado do direito privado15.

10 ld ., ib id ., p. 1324: "D/e U m gehung des Steu erg esetzes se tz t einen M issb ra u ch von
Gestaltungsmõglichkeiten des Rechts voraus, der zwar nicht am Gesetzeszweck, wohl aber am
Gesetzeswortlaut vorbeizielt".
11 Steuerumgehung und Auslegungsmethoden. StuW 60: 181, 1983.
12 Cf. LEHNER, Moris. Nationalberichterstatter (Relatório Nacional da Alemanha). Cahiers de
Droit Fiscal Internacional 37: 196, 1983 classifica o art. 42 da A 0 7 7 como autêntica exceção,
embora limitada, da proibição de analogia; KLEIN, Martin. Die nicht angemessene rechtliche
Gestaltung in Steuerumgehungstatbestand des § 42 AO . Kõln: Otto Schmidt, 1994, p. 10.
13 Cf. TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Kõln: Otto Schmidt, 1993, v. 3, p. 1326.
14 Cf., por todos, TIPKE, ibid., p. 1332: "O § 42 AO é constitucional (ist verfassungsmâssig). A
Constituição não cuida apenas do Estado de Direito formal, ela quer também realizar o Estado
de Direito material ou o Estado de Justiça (den materialen Rechtsstaat oder Gerechtigkeitsstaat).
15 StuW 1992, p. 186: "Direito Tributário e Direito Civil são ramos jurídicos da mesma estatura,
regrados um ao lado do outro, que à mesma situação de fato se aplicam sob uma outra
perspectiva e sob outros pontos de vista valorativos (Wertungsgesichtspunkten)".
9 3 4 - O P rin cípio d a P r o p o r c io n a lid a d e e as N o r m a s A ntielisivas n o C ó d ic o T rib u tá r io d a A lem an h a

O Tribunal Financeiro Federal (Bundesfinanzhof) aplicou a norma an­


tielisiva a número crescente de casos. Segundo estatística divulgada16, a média
de acórdãos por ano foi a seguinte: no período de 1919 a 1944 - 0,6; de
1950 a 1978 - 1,9; de 1979 a 1982 - 4,75; de 1983 a 1986 - 11; de 1987
a 1990 - 18; de 1991 a 1994 - 19; de 1995 a 1998 - 12. Tipke atribuiu o
fenômeno ao incremento da atividade de planejamento fiscal e à melhor fun­
damentação teórica do Tribunal para enfrentar o problema, observando, ain­
da, que o art. 42 “é um dos dispositivos do Código Tributário mais aplicados”17.

4 . A A lter a ç ã o d e 2 0 0 8

4 .1 . G e n e r a l id a d e s

4 .1.1 . O TEOR DA NOVA NORMA

O art. 42 do Código Tributário Alemão sofreu profunda modificação a


partir de 2008.
E o seguinte o teor da nova regra, em tradução livre:
“1. (1) A lei tributária não pode ser contornada através do abuso da
forma jurídica. (2). Se o fato gerador de uma regra de uma lei tributária
específica servir para evitar a elisão, então deverá determinar as
conseqüências jurídicas daquela prescrição. (3) Se não, surgirá a pre­
tensão tributária pelo abuso no sentido do parágrafo 2o, como se para os
fenômenos econômicos tivesse sido adotada a formajurídica adequada.
2.(1) Há abuso quando for escolhida uma formajurídica inadequada que
resulte, para o contribuinte ou um terceiro, numa vantagem não prevista em
lei, em comparação com a forma adequada. (2) Isto não se aplica se o
contribuinte comprovar o fundamento não tributário da escolha de forma,
significativo de acordo com o quadro geral das circunstâncias.”18

16 Cf. LEE, Dong-Sik. Methoden zur Verhinderung der Steuerumgehung und ihr Verhãknis zueinander.
Herdecke: GCA Verlag, 2000, p. 1.
17 TIPKE, Die Steuerrechtsordnung, cit., p. 1325.
18 É o seguinte o texto em alemão:
"§ 42 Missbrauch von rechtiichen Gestaltungsmõglichkeiten
( ! ) I. Durch Missbrauch von Gestaltungsmõglichkeiten des Rechts kann das Steuergesetz nicht
umgangen werden. 2. Ist der Tatbestand einer Regelung in einem Einzelsteuergesetz erfüllt, die der
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 935

4.1 .2 . C o n teú d o

Observação inicial importante é a de que o art. 42 cuida das normas


gerais antielisivas e também das especiais; destas últimas no § I o, alínea 2.
Faremos a análise separada das regras gerais e especiais nos itens 4.2. e 4.3.
4.1 .3 . A MOTIVAÇÃO DA NOVA REGRA

A alteração do art. 42 do Código Tributário Alemão justificou-se em


virtude de alguns novos fatos surgidos nas últimas décadas, principalmente a
partir dos anos 80.
A globalização influenciou as modificações, por ter trazido novo relacio­
namento entre as forças de capital e do trabalho e por haver determinado a
alteração no relacionamento tributário entre os países, fortalecendo o poder das
empresas multinacionais frente aos fiscos nacionais e aumentando o risco fiscal.
A emergência do direito cosmopolita19, com o novo papel da União Européia,
com a atuação do Tribunal de Justiça Europeu e com o surgimento de organis­
mos não estatais que passaram a defender os princípios da concorrência, trans­
parência fiscal e simplificação tributária (OCDE, FMI, OM C, etc.), tudo
conduziu ao incremento do combate à elisão abusiva.
Também teve papel importante o desenvolvimento da tecnologia, máxi-
me da informática, com o crescimento da tributação dos intangíveis e o apare­
cimento de novas formas de imposição fiscal, todas suscetíveis de resvalar para
a elisão abusiva20.
Do ponto de vista teórico, o fato notável foi a eclosão dos direitos huma­
nos, com o aprofundamento da teoria dos direitos fundamentais. Passou-se

Verhinderung von Steuerumgehungen dient, so bestimmen sich die Rechtsfolgen nach jener
Vorschrift. 3. Anderenfalls entsteht der Steueranspruch beim Vorliegen eines Missbrauchs im
Sinne des Absatzes 2 so, wie er bei einer den wirtschaftlichen Vorgángen angemessenen
rechtlichen Gestaltung entsteht.
(2) 1. Ein Missbrauch iiegt vor, wenn eine unangemessene rechtiiche Gestaltung gewáhlt wird,
die beim Steuerpflichtigen oder einem Dritten im Vergleich zu einer angemessenen Gestaltung
zu einem gesetzlich n icht vorgesehenen Steuervorteil führt. 2. Dies gilt nicht, wenn der
Steuerpflichtige für die gewãhlte Gestaltung auliersteuerliche Gründe nachweist, die nach
dem Gesamtbild der Verhãltnisse beachtlich sind".
19 Cf. TO RRES, Ricardo Lobo. A Afirmação do Direito Cosmopolita. In: MENEZES DIREITO,
Carlos Alberto; CAN ÇADO TRIN DADE, Antonio Augusto e ALVES PEREIRA, Antônio Celso.
Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao
Professor Celso D. de Albuquerque M ello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 919-940.
20 Cf. BOUVIER, Michel. La Question de l'lmpôt Ideal. Archives de Philosophie du Droit 46: 15-
24, 2002.
9 3 6 - O P r in cípio da P ro p o r c io n a lid a d e e as N o r m a s A ntielisivas n o C ó d ic o T rib u tá r io d a A lem a n h a

da metodologia da interpretação jurídica de Larenz e Tipke, que influenciara


a redação originária do art. 42 da AO 77, para a teoria da proporcionalidade
de Alexy e do Tribunal Constitucional Federal, entre outros.
4 .1.4. A m b iv a l ê n c ia d o t r ib u t o

Com o advento do Estado Fiscal de Direito, que centraliza a fiscalidade,


tornam-se, e até hoje se mantêm, absolutamente essenciais as relações entre
liberdade e tributo: o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da
liberdade e constitui o preço da liberdade, mas por ela se limita e pode
chegar a oprimi-la, se o não contiver a legalidade.
De feito, o tributo nasce da autolimitação da liberdade: reserva-se pelo
contrato social um mínimo de liberdade intocável pelo imposto, garantido
através dos mecanismos das imunidades e dos privilégios, que se transferem
do clero e da nobreza para o cidadão; mas se permite que o Estado exerça o
poder tributário sobre a parcela não excluída pelo pacto constitucional21, donde
se conclui que a própria liberdade institui o tributo22. O espaço assim aberto
ao tributo é o da publicidade, isto é, o das relações sociais que se desenvolvem
entre o espaço privado do cidadão (família) e o espaço público dos órgãos
governamentais23; o imposto adquire a dimensão de coisa pública24e nele o
Estado passa a encontrar a sua fonte de financiamento, permitindo que os
agentes econômicos ampliem a riqueza suscetível de tributação25.
O tributo surge no espaço aberto pelas liberdades fundamentais, o que
significa que é totalmente limitado por essas liberdades. O aspecto principal

21 BUCHANAN, James M. The Limits o f Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1975,
p. 112 fala em liberty tax, para significar que o tributo implica sempre perda de uma parcela de
liberdade (one degree o f freedom is lost).
22 Cf. LAN C, Joachim. Reform der Unternehmensbesteuerung auf dem Weg zum europâischen
Binnenmarkt und zur deutschen Einheit. StuW 67 (2): 111, 1990: "A tributação é, segundo a
compreensão econômica e jurídica, uma instituição da liberdade" (...eine Institution der Freiheit).
23 Cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984, p. 313: "Na referida discussão entre colônias e metrópole, de que resultou a primeira
formulação dos direitos humanos, a liberdade de religião não desempenha o papel decisivo,
mas sim a questão da co-gestação política das pessoas privadas reunidas num público sobre
aquelas leis que atingiam a sua esfera privada: no taxation without representation".
24 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. A Ideia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio
de Janeiro: Renovar, 1991, p. 121.
25 Cf. VO G EL, Klaus. Der Finanz und Steuerstaat. in: ISENSEE, Josef & KIRCHHOF, Paul (ed.).
Handbuch des Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C. F. Müller, 1987, v.
1, p. 1.174: "A estatal idade fiscal significa separação entre Estado e economia" (Steuerstaatlichkeit
bedeutet Trennung von Staat und Wirtschaft).
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 9 3 7

da liberdade - o de ser negativa ou de erigir o status negativus —é que marca


verdadeiramente o tributo; a expansão do conceito de liberdade, para abran­
ger a liberdade “para” ou positiva, ou para transformá-la em dever, elimina o
próprio conceito de tributo. Conclui-se, daí, que perde a natureza de tributo
o que se não limita pela liberdade, como sejam as prestações contratuais e as
contribuições parafiscais e extrafiscais26.
O relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar
sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo
tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la27; a liberdade se autoli-
mita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legali­
dade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo28. Quem não percebe a bipolaridade
da liberdade acaba por recusar legitimidade ao próprio tributo29.
4 .1 .5 . D ireitos fundamentais, tributação e proporcionalidade
Os direitos fundamentais, que se expressam por princípios, vinculam-se
à máxima da proporcionalidade. Há uma relação íntima e necessária entre
direitos fundamentais e proporcionalidade. Alexy já observou:
“a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e
essa implica aquele. Afirmar que a natureza dos princípios implica a
máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade... decorre
logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade
é deduzível dessa natureza. O Tribunal Constitucional Federal afirmou,
em formulação um pouco obscura, que a máxima da proporcionalidade
decorre, “no fundo, já da própria essência dos direitos fundamentais”
(BVerfGE 19,342 (348-349); 65,1(44)).”30

26 Cf. SPANNER, Hans. Über Finanzreform und Bundesstaat. Festgabe für Theodor Maunz, 1971,
p. 388.
27 Para o debate, no direito americano, sobre o poder de tributar como poder de destruir, vide p.
29 e seguintes.
28 Cf. SAIN Z DE BUJAN D A, Fernando. Hacienda y D erecho. M adrid: Instituto de Estúdios
Politicos, 1975, v. 1, p. 194: "ia más enérgica resistencia al poder de los déspotas ha provenido,
por lo general, de los contribuyentes".
29 É o caso de Engels: "Ora a propriedade privada é sagrada e então não há nenhuma propriedade
pública e o Estado não tem o direito de cobrar imposto; ou o Estado tem esse direito e então
a propriedade não é sagrada, pois a propriedade pública se coloca acima da privada e o Estado
é o verdadeiro proprietário". (Denn entweder ist das Privateigenthum heilig, so gibt es kein
Nationaleigenthum, und der Staat hat nicht das Rechl; Steuern zu erheben; oder der Staat hat
dies Recht, dann steht das Nationaleigenthum über den Privateigenthume, und der Staat ist der
wahre Eigenthümer") - Apud J. LANG, Reform der Unternehmensbesteuerung..., cit., p. 111.
30 Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 116.
9 3 8 - 0 P rin c íp io d a P r o p o r c io n a lid a d e e a s N o r m a s A n tie lis iv a s n o C ó d ig o T r ib u t á r io d a A le m a n h a

Por outro lado, como vimos, o tributo é o preço da liberdade e, por conse­
guinte, constitui restrição aos direitos fundamentais, designadamente à proprie­
dade privada e aos frutos do trabalho. Sendo restrição aos direitos da liberdade o
tributo fica sujeito à reserva da Constituição e da lei formal, que constituem os
limites do poder de tributar. Tais limites, por seu turno, exibem também os seus
limites, que os alemães chamam de “limites dos limites” (Schranken-Schrankerif1.
Entre os limites dos limites aparece a proporcionalidade (Verhãltnismãssigkeit)
com todos os seus desdobramentos: princípios da determinação do fato gerador
(llitbestandbestimmtheitsgundsatzf2da igualdade33, da proteção dos direitos de
terceiros34e da tipicidade, com redução teleológica e analogia35.
Da ambivalência do conceito de tributo surgem as colisões entre os di­
reitos fundamentais do cidadão e o poder de tributar do Estado. Observa
Alexy que “a constelação mais simples é caracterizada pela presença de apenas
dois princípios e dois sujeitos de direito (Estado/cidadão)”.
A nova regra de combate ao abuso da forma jurídica se estrutura sob a
inspiração do princípio da proporcionalidade, como passamos a examinar.
4 .2 . A NORMA GERAL ANTIELISIVA

4 .2 .1 . O ABUSO DA FORMA JURÍDICA

O abuso da forma jurídica se aproxima do abuso do direito36e tem inú­


meras configurações.

31 D iz Alexy que os "direitos fundamentais são restrições a sua restrição e restringibilidade"


(Beschrãnkungen ihrer Einschránkung und Einschrankbarkeit), eis que "não apenas estão
restringidos e são restringíveis, mas também a sua restrição e restringibilidade são restringidas"
('Theorie der Grundrechte. Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 267).
32 DRÜEN, Klaus-Dieter. Untemehmerfreiheit und Steuerumgehung. Steuer und Wirtschaft 2008
(2) 158: "O limite dos limites mais geral e significativo praticamente é para o legislador a reserva
da lei proporcional" (D/e allgemeine und zugleich praktisch bedeutsamste Schranken-Schranke
für den Gesetzgeber ist der Vorbehalt des verhãltnismássigen Gesetzes".
33 DRÜEN, op. cit., p. 159.
34 HENSEL, op. cit., p. 217 se referia à "igualdade entre vizinhos" (Nachbachgleichheit), que
deve ser preservada pela tributação; HEY, Johanna, Spezialgestgliche Missbrauchgesetzgebung
aus steuersystematischer, Verfassungs - und europarechtlicher Sicht, Steuer und Wirtschaft
2008 (2): 174 diz que as normas antielisivas preservam a igualdade diante da carga tributária
(L e iste n g le ic h h e it) e servem para co arctar o "efeito da tribu tação sobre os bobos"
(Dummensteuerefekt), que a tanto eqüivaleria a incidência mais áspera para alguns menos
espertos, que não abusariam da forma jurídica.
35 Cf. J. HEY, op. c/t., p. 175.
36 Cf. M ALHERBE, Jacques. O Abuso de Direito. Uma Análise no Direito Comparado. Direito
Tributário A tual 22: 30, 2008; TO R RES, Ricardo Lobo. O Abuso do Direito no Código
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 9 3 9

No plano do direito tributário o abuso de forma pode ser institucional,


quando praticado pelo próprio Estado, como ocorre no uso exagerado da re­
dução teleológica, ou individual, quando praticado pelo contribuinte37. Inte­
ressa-nos, aqui, o abuso da forma jurídica praticado pelo contribuinte e
combatido pelo art. 42 da AO77.
4.2.2. O ABUSO DA FORMA JURÍDICA E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A estrutura normativa do art. 42 do Abgabenordnung se organizou de
acordo com os subprincípios ou máximas parciais da proporcionalidade. Alexy
chama a proporcionalidade de “máxima” (Grundsatz der Verhãltnissmâssigkeii),
que se subdivide em “três máximas parciais” (drei Teilgrundsãtzen), a saber:
adequação (Geeignetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade
em sentido estrito (Verhãltnismãssigkeit im engeren Sinne) ou exigência de
ponderação {Abwãgungsgebo/)38.
O art. 42 da AO cuida da adequação (Angemessenheit) no § I o, item 3 e
no § 2o, item 1; da necessidade no § 2o, item 2, I a parte; e da ponderação no
§ 2o, item 2, parte final.
a) Adequação
O subprincípio ou máxima parcial da adequação aparece:
a) no § Io, item 3, que prevê o surgimento da pretensão se houver abuso
de forma jurídica, “como se para os fenômenos econômicos tivesse sido adota­
da a forma jurídica adequada” (wie er bei einer den wirtschaftlichen Vorgãngen
angemessenen rechtlichen Gestaltung entstehi)',
b) no § 2o, item 1, que defme: “há abuso quando for escolhida uma
forma jurídica inadequada que resulte, para o contribuinte ou um terceiro,
numa vantagem não prevista em lei, em comparação com a forma adequada.
A adequação nos termos do art. 42 significa coincidência entre forma e con­
teúdo ou ajustamento entre os conceitos e institutos de direito civil e a finalidade

Tributário Nacional e no Novo Código Civil. In: GRUPPENMACHER, Betina Treiger (coord.).
Direito Tributário e o Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 45.
37 Cf. ENGLISCH, Joachim. Verbot des Rechtsmissbrauchs-ein allgemeiner Rechtsgrundsatz des
Gemeinschaftsrechts. Steuer und Wirtschaft 2009 (1): 22.
38 Theorie der Crundrechte, cit., p. 100. Virgílio Afonso da Silva, na sua tradução (Teoria dos
Direitos Fundamentais, cit,, p. 116), opta por máxima e máximas parciais e traduz Geeignetheit
por adequação, terminologia que vamos seguindo.
9 4 0 - O P rin c íp io d a P r o p o r c io n a lid a d e e a s N o r m a s A n tie lis iv a s n o C ó d ig o T r ib u t á r io d a A le m a n h a

econômica dos negócios desenvolvidos pelo contribuinte. As relações entre o direi­


to civil e o direito tributário não implicam superioridade (Vonang), mas mera pre­
cedência do direito civil, como já disse o Tribunal Constitucional da Alemanha39.
O contribuinte tem plena liberdade para conduzir os seus negócios do modo
que lhe aprouver. O combate à elisão não pode significar restrições ao planeja­
mento tributário. O campo da liberdade de iniciativa é ponto de partida para a
vida econômica e não pode sofrer interferências por parte do Estado40. O contri­
buinte é livre para optar pela estruturação dos seus negócios e pela formatação da
sua empresa da forma que lhe permita a economia do imposto. Como diz J. Hey,
“não há nenhum dever patriótico que leve alguém a pagar o imposto mais alto”41.
O equilíbrio entre forma jurídica e conteúdo econômico, assunto dos
mais difíceis da dogmática tributária, deve ser procurado através da metodo­
logia da interpretação e da teoria dos princípios42.
b) Necessidade
A máxima parcial da necessidade, que compõe a proporcionalidade, apre­
senta características específicas no tema do abuso da forma jurídica.
No direito tributário em geral o Estado não pode estabelecer normas
jurídicas fundadas na necessidade, pois a regra de incidência dos impostos não
é finalística, como a dos incentivos43.
Já no que concerne à temática da elisão a prova pelo contribuinte da neces­
sidade negociai ou econômica na estruturação da atividade empresarial se torna
indispensável, para que se possa coarctar a suspeita de abuso de forma, pois o
Fisco tem apenas o poder de verificação (Verifikationverwaltung)M, ao contrário
do contribuinte, que conduz o procedimento abusivo e elisivo45. O art. 42, § 2o,
estampa dois comandos para caracterizar o Missbrauch. a) proíbe que o contri­
buinte ou terceiro obtenha com a forma inadequada uma vantagem tributária
não prevista em lei comparada com a escolha da forma adequada (item 1); b)

39 Vide nota 15.


40 Cf. DRÜEN, op. cit., p. 154.
41 Op. cit., p. 169.
42 Cf. Á V ILA , Humberto. Distinção entrePrincípio e Regras e a Redefinição do Dever de
Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo 215: 176, 1999.
43 CF. DRÜEN, op. cit., p. 154.
44 id. ibid., p. 154.
45 Observa H. H EY que as normas antielisivas sãoexpressões da consideração econômica
(wirtschaftiiche Betrachtungsweise) e, portanto, da capacidade contributiva e da finalidade
fiscal (fískahw ecknorm en).
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 9 4 1

excepciona o caso em que o contribuinte comprove que a escolha encontrou


fundamentos não tributários (aussersteuerliche Gründe). (item 2).
A definição da adequação, portando, exige a prova da necessidade nego­
ciai ou econômica, como sempre prevaleceu no direito alemão e também no
americano (business purpose test)46.
c) Proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação
Novidade trazida pelo art. 42, § 2o, item 2 foi a exigência de ponderação -
que é a terceira máxima parcial da proporcionalidade - entre a necessidade
negociai ou não tributária e o quadro geral das circunstâncias ou das relações
(Gesamtbild der Verhàltnissè). O interesse negociai deve ser sopesado com os ou­
tros interesses da empresa, a ver se realmente prepondera o fundamento econô­
mico47. Diz Lang que o plano global (Gesamtplan) compreende o conjunto dos
negócios e das atividades do obrigado (Gesamtheit der Geschãfte undHandlung),
que leve à sua formatação material (sachlichen Gestaltungszusammenhang)Ai.
4.3. ÂS NORMAS ESPECIAIS ANTIELISIVAS
4.3.1 . Conceito
As normas especiais antielisivas vêm crescendo extraordinariamente nas
últimas décadas, principalmente no direito internacional tributário. O seu objetivo
é o de fechar ou dar consistência às normas gerais antielisivas, que são ambíguas e
analógicas. Fechar o ordenamento jurídico através de Spezialklauseln, porém, observa
Tipke49, é um ideal inalcançável. O emprego das presunções e das ficções seria
outro meio para o fechamento das cláusulas antielisivas, mas acabam por contrastar
com os ideais de justiça fiscal, máxime com o princípio da capacidade contributiva.
O direito internacional tributário é o ramo que mais se aproximou do fecha­
mento dos conceitos através de cláusulas especiais. Na temática do treaty shopping,
por exemplo, o requisito adicional do beneficiário começa a ser desenhado50. As

46 Cf. C O O PER, Craeme S. Conflicts, Challenges and Choices - The Rule of Law and Anti-
avoidance Rules. In: ________. (ed.). 7ãx Avoidance and the Rule o f Law. Amsterdam: IBFD,
1997, p. 13-50.
47 Cf. J. ENGLISCH, op. cit., p. 9.
48 In: TIPKE/LANG. Steuerrecht. Kõln: O . Schmidt,2008, p. 164.
49 Die Steuerrechtsordnung, cit., p. 1332.
50 Cf. SCHO UERI, Luis Eduardo. Planejamento Fiscalatravés de Acordo de Bitributação Treaty
Shopping. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 179.
9 4 2 - O P rin c íp io d a P r o p o r c io n a lid a d e e a s N o r m a s A n tie lis iv a s n o C ó d ig o T r ib u t á r io d a A le m a n h a

cláusulas específicas no campo dos preços de transferência se corporificam nos


métodos e nas presunções adotadas pela Lei 9.430/96, que são normas de concre­
tização do princípio arrris lenght. As regras de CFC (controlledforeign Corporation)
se espalharam por toda parte, chegando inclusive ao Brasil pela Lei Complemen­
tar 104/2001, que introduziu a cláusula específica no art. 43, § 2o, do CTN para
alcançar os lucros das controladas no estrangeiro51.
4.3.2. A NOVA REGRA DO C Ó D IG O T R IB U T Á R IO DA ALEM AN HA (ART.
42, § 1o, ITEM 2)
A modificação introduzida em 2008 no art. 42, § I o, item 2 tem o
seguinte teor: “Se o fato gerador de uma regra de uma lei tributária específica
servir para evitar a elisão, então deverá determinar as conseqüências jurídicas
daquela prescrição”.
De observar que a novidade legislativa não trouxe uma regra específica anti-
elisiva, senão que estampou uma regra geral sobre as regras específicas antielisi-
vas. E uma sobrenorma com relação às normas de fechamento dos conceitosjurídicos.
Parte substancial da doutrina alemã entende que tal regra é confusa e des­
necessária52. A jurista Johama Hey, em artigo concentrado no exame das normas
específicas antielisivas, diz que a pluralidade de tais regras acaba por engordar a
lei e aumentar a complexidade do direito tributário53, afrontando contraditoria-
mente a segurança jurídica e o Estado de Direito, que lhes cabia preservar54.
O sentido do art. 42, § Io, item 2 é o de exigir que as normas especiais
antielisivas contenham o Tatbestand (o preceito ou a hipótese de incidência) e
também a Rechtsfolge (a conseqüência jurídica). Não podem utilizar, ao con­
trário do que acontece com as normas gerais antielisivas, a analogia e a redução
teleológica55. Se a norma tributária específica não fixar a conseqüência jurídi­
ca (Rechtsfolge), então se caracterizará a falta de adequação prevista no art. 42,
§ 2o, item 1, por aplicação do princípio da proporcionalidade (Verhãltnismãs-
sigkeitsprinzip) e da tipicidade (Typisierung)56.

51 Cf. MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007.
52 LANG (In: TIPKE/LANG, op. cit., p. 162) afirma que "a relação da norma geral com a cláusula
especial não é clara".
53 Op.cit., p. 168.
54 ld., ibid., p. 1 77.
55 ld., ibid., p. 175.
56 ld., ibid., p. 176.
R ic a r d o L o b o T o r r e s - 9 4 3

5. C o n c lu s ã o

Conclui-se, pois, que a modificação do art. 42 do Código Tributário da


Alemanha trouxe notável progresso para a temática das normas antielisivas. O
seu grande mérito foi aproximar o combate à elisão abusiva da teoria dos
direitos fundamentais, pela extraordinária relevância que atribuiu ao princí­
pio da proporcionalidade.
É bem verdade que o novo texto despertou dúvidas na sua interpretação
e apresenta lacunas, o que exigirá, no futuro, a interferência da jurisdição
constitucional e do Tribunal Europeu.
Resta iniciar no Brasil a discussão sobre o texto germânico, a ver até que
ponto pode ele fornecer subsídios para a interpretação das normas antielisivas
trazidas pela Lei Complementar n° 104/2001, que até hoje aguardam a in­
terpretação do Supremo Tribunal Federal e a atenção da doutrina.

6. B ib l io g r a f ia

ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt: Suhrkamp, 1986.


______ . Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
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9 4 4 - O P r in c íp io da P r o p o r c io n a l id a d e e as N orm as A n t ielis iv a s n o C ó d ig o T r ib u t á r io d a A lem a n h a

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8) Responsabilidade
Tributária
í
Algumas Considerações
Jurídicas sobre a
Responsabilidade
Solidária Tributária
e os "Grupos
Econômicos"

Fernando Rebelo Andrade


Especialista em Direito Tributáriopelo
IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.
Advogado.

Terence Trennepohl
Pós-Doutor pela Universidade de Harvard
Doutor e Mestre em Direito (UFPE)
Professor de Direito Ambiental em cursos de Pós-Graduação
Advogado de Dewey & LeBoeufLLP, em Nova York.
I
F e r n a n d o R e b e l o A n d r a d e & T e r en c e T r e n n e p o h l - 9 4 9

I. I n t r o d u ç ã o
Atualmente, tema que vem provocando inúmeras controvérsias, no âmbito
do Poder Judiciário, é a “responsabilidade tributária por transferência”, vale dizer,
aquela em que, após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, o dever
de recolher o tributo, originalmente devido pelo contribuinte, é transferido para
um terceiro, como, por exemplo, os sócios-gerentes de uma pessoa jurídica.
Geralmente, as lides têm origem em alguns dispositivos da legislação
ordinária que, quando interpretados e aplicados isoladamente pelas autorida­
des fiscais e até pelo Poder Judiciário, contrariam as normas gerais sobre res­
ponsabilidade tributária veiculadas pelo Código Tributário Nacional.
Era o caso, por exemplo, do atualmente revogado art. 13 da Lei n° 8.620/
93, que prescrevia a responsabilidade tributária dos sócios-gerentes, por débi­
tos da pessoa jurídica da qual eram integrantes, sem, no entanto, condicionar
a atribuição de tal responsabilidade à presença de quaisquer dos requisitos
prescritos pelo art. 135 do CTN.
E é o caso, também, do art. 30, IX, da Lei n° 8.212/91, que, sem obser­
var a disciplina do Código Tributário Nacional sobre o assunto, simplesmente
atribui responsabilidade tributária solidária entre “as empresas que integram
grupo econômico de qualquer natureza”.
Neste artigo, pretende-se propor uma interpretação do dispositivo men­
cionado que, a despeito de eventualmente cogitar sua constitucionalidade, com­
patibilize-o com as normas gerais sobre responsabilidade tributária vertidas pelo
Código Tributário Nacional, especialmente com a veiculada pelo seu art. 128.
II. A DISCIPLINA DA RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NO
C ó d ig o T r ib u t á r io N a c io n a l e n a l e g is l a ç ã o
o r d in á r ia : n e c e s s id a d e d e s u a in t e r p r e t a ç ã o e
APLICAÇÃO CONJUNTA E HARMÔNICA, EM OBEDIÊNCIA AO
a r t . 1 4 6 , I I I , " b " , d a C o n s t i t u iç ã o F e d e r a l de 1998
Em seu art. 146, a Constituição Federal reservou à lei complementar
três papéis, ou funções, a saber:
(i) dispor sobre conflitos de competência tributária entre as enti­
dades tributantes, estabelecendo mecanismos para preveni-los
ou eliminá-los;
(ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; e
(iii) estabelecer normas gerais em matéria tributária, sendo que algu­
mas dessas matérias são expressamente referidas pelas alíneas “a",
“b”, V e V ’.
9 5 0 - A l g u m a s C o n s id e r a ç õ es J u r íd ic a s s o b r e a R e sp o n s a b ilid a d e S o l id á r ia .

Pois bem.
Neste artigo é relevante a alínea “b” do art. 146 da Carta Política, haja
vista que, como ensina Hamilton Dias de Souza, é a norma veiculada por esse
dispositivo que “outorga competência à lei complementar para \estabelecer normas
gerais em matéria tributária’, compreendendo especialmente os elementos informa­
dores da obrigação tributária, entre os quais o sujeito passivo”1.
Após salientar que os temas “Sujeito Passivo” e “Responsabilidade tributá­
ria” encontram-se disciplinados pelo Código Tributário Nacional - recepciona­
do pela Constituição Federal de 1988 com o status de lei complementar - em
seu Livro II, intitulado “Normas Gerais de Direito Tributário”, o aludido autor
é categórico ao concluir que:
“Portanto, todo o regramento atinente aos contribuintes e responsáveis
tributários encontra-se no Código Tributário Nacional, devendo ser
observado pelo legislador ordinário no exercício da competência tribu­
tária, sob pena de violação à reserva de lei complementar.”2
Nesse mesmo sentido são as lições de Hugo de Brito Machado:
“A responsabilidade tributária não é matéria de livre criação e alteração
pelo legislador infraconstitucional. A Constituição Federal de 1988 es­
tabelece, implícita ou explicitamente, limitações as quais a produção
normativa inferior relativa ao tema está adstrita. Vejamos.
No que diz respeito ao aspecto formal, o texto constitucional é expresso
em atribuir à lei complementar o trato da matéria.”3
Com efeito, em atendimento ao disposto no art. art. 146, “b”, da Cons­
tituição de 1998, o Código Tributário Nacional, em seu art. 121, conceituou
“Sujeito passivo” da relação tributária como sendo “a pessoa obrigada ao paga­
mento de tributo ou penalidade pecuniária”. O parágrafo único do dispositi­
vo esclarece que o “Sujeito passivo” será denominado de “contribuinte” quando
tiver relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato
gerador; ou de “responsável”, quando, sem revestir a condição de contribuinte,
sua obrigação decorra de disposição expressa em lei.
Já a “Responsabilidade Tributária” foi disciplinada pelo Código Tribu­
tário Nacional nos arts. 124 e 128 a 137, que prescrevem as hipóteses e os

1 DIAS DE SOUZA, Hamilton. A desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade


tributária dos sócios e administradores. Revista Dialética de Direito Tributário n° 137, p. 48.
2 Op. cit,. p. 48.
3 M AC H AD O , Hugo de Brito. Execução Fiscal e Responsabilidade de Sócios e Diretores de
Pessoas jurídicas. Rev. de Estudos Tributários, Síntese, V. 83, p. 124.
F e r n a n d o R eb e l o A n d r a d e & T er en c e T r e n n e p o h l - 9 5 1

requisitos necessários à imputação do dever de recolher o tributo a um tercei­


ro, enquadrado no conceito jurídico de responsável tributário, acima exposto.
Em linhas gerais, o Código Tributário Nacional classifica e reúne as es­
pécies de responsabilidade tributária em três grupos intitulados “Responsabi­
lidade dos sucessores”, disciplinada pelos arts. 129 a 133; “Responsabilidade
de terceiros”, regrada pelos arts. 134 e 135; e “Responsabilidade por infra­
ções”, tutelada pelos arts. 136 e 147. O art. 124 do Código, por sua vez,
disciplina a responsabilidade tributária solidária.
Além das normas gerais disciplinadoras de situações específicas acima
referidas, o Código Tributário Nacional prescreve, em seu art. 128, uma “Dis­
posição Geral” sobre “Responsabilidade Tributária”, que estabelece os requisi­
tos necessários à atribuição de toda e qualquer espécie de responsabilidade, os
quais, repita-se, necessariamente deverão ser observados pelo legislador ordi­
nário, em obediência ao art. 146, III, “b”, da Constituição vigente.
Todavia, não obstante a regra de competência veiculada pelo aludido disposi­
tivo constitucional ser absolutamente clara ao fixar os limites para os entes políticos
legislarem sobre “Responsabilidade Tributária” e “Sujeito Passivo”, o legislador or­
dinário tem editado leis que, muitas vezes, disciplinam a matéria de forma diversa
e incompatível com as normas gerais veiculadas pelo Código Tributário Nacional.
Como dito anteriormente, o atualmente revogado art. 13 da Lei n° 8.620/
93 é um exemplo típico de dispositivo da legislação ordinária cuja aplicação e
interpretação isolada, divorciada da norma geral trazida pelo art. 135 do Código
Tributário Nacional, implica afronta ao art. 146, III, “b”, da Carta Magna.
De fato, o caput do referido dispositivo atribuía aos sócios de sociedades
limitadas a responsabilidade solidária pelos débitos das pessoas jurídicas da
qual fazem parte, sem, no entanto, condicionar a atribuição de tal responsabi­
lidade à materialização de quaisquer das hipóteses tipificadas nos incisos I a
III do art. 135 do Código Tributário Nacional.
Acontece, porém, que o art. 135 do Código Tributário Nacional só per­
mite a atribuição de responsabilidade tributária a sócios de pessoas jurídicas
que sejam também seus “diretores, gerentes ou representantes” e, ainda assim,
somente nos casos de “atos praticados com excesso de poderes ou infração de
lei, contrato social ou estatutos”.
Embora essa aparente antinomia entre os dois dispositivos mencionados
pudesse ser resolvida mediante a sua interpretação sistêmica e harmônica, à
luz das normas gerais estabelecidas pelo legislador complementar, a grande
maioria das autoridades fazendárias passou a atribuir responsabilidade tribu­
tária solidária aos sócios de sociedades limitadas apenas com fundamento no
952 - A l g u m a s C o n s id e r a ç õ es J u r íd ic a s so b r e a R e s p o n s a b ilid a d e S o l id á r ia .

art. 13 da Lei n° 8.620/93, independentemente de estarem presentes os re­


quisitos prescritos pelo art. 135 do Código Tributário Nacional.
Instado a dar a última palavra a respeito do tema, o Superior Tribunal de
Justiça consolidou o entendimento de que o art. 13 da Lei n° 8.620/93 deve
ser interpretado e aplicado conjunta e harmonicamente com o art. 135, III,
do Código Tributário Nacional, que, em observância ao art. 146, III, “b”, da
Constituição Federal de 1998, veicula a norma geral estabelecendo os requi­
sitos necessários à configuração da responsabilidade tributária de sócios-ge-
rentes de pessoas jurídicas. Assim foram algumas recentes decisões:
“I - O artigo 13 da Lei n° 8.620/93, que impõe ao sócio a solidariedadepelas
dívidas da empresajunto à Seguridade Social, não deve ser aplicado isolada­
mente, nem mesmo com a simples conjugação ao artigo 124, II, do CTN.
II - Para a aplicação do referido dispositivo é indispensável que estejam
presentes as situações previstas no artigo 135 do CTN, ou seja, que o
sócio responsabilizado tenha praticado atos com excesso de poderes;
com infração à lei ou ao contrato social. Precedentes: AgRg no REsp n°
990.615/BA, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ de 23.04.2008,
AgRg no Ag n° 921.362/BA, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ de
31.03.2008 e REsp n° 698.960/RS, Rel. Min. TEORI ALBINO
ZAVASCKI, DJ de 18.05.2006.”4
“1. A Primeira Seção, nojulgamento do REsp 717.717/SP, de relatoria do
Min. José Delgado, assentou que o art. 13 da Lei n. 8.620/93 não pode ser
interpretado sem o comando principiológico esculpido no art. 135, III do
CTN. Este tem forçadelei complementaroriundo do art. 146, IH, ‘b’,da CF,
portanto, comcaráterhierárquicosuperior,peloque anormainfraconstitucional
não pode descaracterizar o preceito maior naquele contido.
2. Não houve reconhecimento de inconstitucionalidade, sendo desne­
cessário invocar-se a violação do art. 97 da CF. Ademais, no que diz
respeito à controvérsia acerca da cláusula de reserva de plenário, assen­
tou-se que escapa do âmbito de apreciação do recurso especial; por­
quanto, análise essa da alçada do STF, em sede de recurso extraordiná­
rio, a teor do art. 102 da Carta Magna.”5
Portanto, com fundamento nas considerações acima é que se firmam as
duas premissas básicas norteadoras deste artigo:

4 STJ, AgRg no REsp 1052246/SP, Rel. Ministro FRAN CISCO FALCÃO, PRIM EIRA TU RM A,
julgado em 05/08/2008, DJe 27/08/2008.
5 STJ, AgRg no REsp 1039289/BA, Rel. Ministro HUM BERTO MARTINS, SECU N D A TURM A,
julgado em 27/05/2008, DJe 05/06/2008.
F e r n a n d o R eb e l o A n d r a d e & T e r en c e T r e n n e p o h l - 9 5 3

(i) a disciplina do tema “Responsabilidade Tributária” é constitucio­


nalmente reservada à lei complementar;
(ii) consequentemente, os dispositivos da legislação ordinária relativos à
matéria devem, necessariamente, ser interpretados e aplicados har-
monicamente com as normas gerais veiculadas pelo CTN, sob pena
de violação ao art. 146, III, “b”, da Constituição Federal de 1988.
III. A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS EMPRESAS
INTEGRANTES DE GRUPO ECONÔMICO E A CORRETA
INTERPRETAÇÃO DO ART. 3 0 , IX , DA LEI N° 8 .212/91
EM
HARMONIA COM A "DlSPOSIÇÃO GERAL" VEICULADA PELO
a r t . 1 2 8 d o C ó d ig o T r ib u t á r io N a c io n a l
Como fora visto, há, no Código Tributário Nacional, dispositivo que,
veiculando uma “Disposição Geral” sobre “Responsabilidade Tributária”, es­
tabelece os contornos e os requisitos necessários à atribuição de toda e qual­
quer espécie de responsabilidade a terceiros indiretamente vinculados ao fato
gerador da obrigação tributária.
Trata-se, com efeito, do art. 128 do Código Tributário Nacional, segundo o
qual, “Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a
responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada aofato gerador da
respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a
este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação".
Examinando com atenção o dispositivo é possível identificar com clareza
os dois requisitos essenciais à imputação de qualquer espécie de responsabili­
dade tributária: (i) que tal responsabilização seja prescrita por meio de lei —
requisito, na verdade, derivado do princípio constitucional da legalidade em
matéria tributária; (ii) e essa lei só pode responsabilizar pessoa, física ou jurí­
dica, que tenha relação, mesmo indireta, com os fatos geradores dos débitos
tributários cujo pagamento lhe é imputado.
Ao comentar o âmbito de incidência da norma geral veiculada pelo refe­
rido dispositivo, Ives Gandra da Silva Martins deixa claro que o legislador
ordinário está obrigado a observar essa e as demais normas gerais sobre “Res­
ponsabilidade Tributária” vertidas pelo Código Tributário Nacional:
“O artigo começa com a expressão ‘sem prejuízo do disposto nesse Capítu­
lo’, que deve ser entendida como exdusão dapossibilidade de alei determi­
nar alguma forma de responsabilidade conflitante com a determinada no
Código. Isso vale dizer que a responsabilidade não prevista pelo capítulo
954 - A lg u m a s C o n s id e r a ç õ es J u r íd ic a s so b r e a R e s p o n s a b ilid a d e S o l id á r ia .

pode ser objeto de lei, não podendo, entretanto, alei determinar nenhuma
responsabilidade que entre em choque com os arts. 128 a 138.”6
Todavia, em mais um típico exemplo de aparente antinomia entre a le­
gislação ordinária e norma geral veiculada pelo art. 128 do Código Tributário
Nacional, o art. 30, IX, da Lei n° 8.212/91 simplesmente atribui responsabi­
lidade tributária solidária às “empresas que integram grupo econômico de qualquer
natureza”, independentemente de terem, ou não, qualquer relação, mesmo
indireta, com o fato gerador do débito objeto da responsabilização.
Diga-se de passagem que não há na legislação tributária um conceito
jurídico específico do termo “grupo econômico”.
A Lei das Sociedades por Ações - Lei n° 6.404/76 - disciplina o deno­
minado “grupo de sociedades” em seus arts. 265 e 266.
O primeiro dispositivo permite que a sociedade controladora e suas contro­
ladas constituam, mediante convenção, “grupo de sociedades”, objetivando a com­
binação de recursos ou esforços destinados ao alcance dos seus objetivos sociais,
bem como a participação em atividades e empreendimentos de interesse comum.
Já o segundo dispositivo, além de exigir que a convenção discipline as
relações, jurídicas, econômicas e negociais, entre as sociedades integrantes do
grupo, prescreve expressamente que elas conservarão personalidade jurídica e
patrimônio próprios e distintos.
A Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, em seu art. 2o, § 2o, estabelece
responsabilidade solidária, para efeitos trabalhistas, entre grupos industriais, co­
merciais ou de qualquer outra atividade, assim entendidos como duas ou mais
empresas que estejam sob direção, controle ou administração umas das outras.
As autoridades fiscais, por sua vez, adotando conceito semelhante ao da
CLT, têm atribuído responsabilidade solidária às empresas integrantes do
vulgarmente denominado “grupo econômico de fato”.
Na prática, sobretudo em execuções fiscais, observa-se que inúmeras
autoridades fiscais têm adotado esse dispositivo da legislação ordinária para
requerer em juízo o reconhecimento da responsabilidade solidária entre duas
ou mais pessoas jurídicas que, em seu entendimento, integram um grupo
econômico de qualquer natureza.
Nesse contexto, o presente artigo busca demonstrar que a mera existên­
cia de um grupo econômico, mesmo quando inequivocamente provada pelo
Fisco, não é por si só suficiente para deflagrar a responsabilidade solidária
entre as sociedades integrantes desse grupo.

6 M ARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. 2. Ed.
Saraiva, 1998, p. 215.
F e r n a n d o R e b e l o A n d r a d e & T er en c e T r e n n e p o h l - 9 5 5

Fundamentalmente porque, interpretando-se o art. art. 30, IX, da Lei


n° 8.212/91 conjunta e harmonicamente com o art. 128 do Código Tributá­
rio Nacional, conclui-se que, além da comprovada existência de um grupo
econômico, a responsabilidade tributária solidária prevista na lei ordinária só
pode ser atribuída à pessoa jurídica integrante do grupo de sociedades que
tenha efetiva relação, mesmo indireta, com o fato gerador da obrigação tribu­
tária, realizado pelo contribuinte.
Assim, por exemplo, uma sociedade “A” não pode ser responsabilizada solida­
riamente pelo pagamento de débitos cujos fatos geradores foram realizados única e
exclusivamente por uma sociedade “B” no ano de 2004, apenas porque, no ano de
2008, essas duas pessoas jurídicas constituíram, formal ou informalmente, um
grupo econômico. E que, nessa hipótese, não haveria relação, mesmo indireta, entre
a sociedade “A’ e o débito objeto da responsabilização, gerado exclusivamente pela
sociedade “B”, sem qualquer participação ou interferência daquela pessoa jurídica.
Contrariamente, haveria responsabilidade entre as duas pessoas jurídi­
cas, caso a constituição do grupo econômico entre elas tivesse ocorrido no
mesmo ano de ocorrência dos débitos objeto da responsabilização, ou seja, ano
de 2004, e, ainda assim, se a sociedade “A” estivesse, por qualquer forma, mes­
mo indireta, relacionada com o fato gerador realizado pela sociedade “B”.
Nessa hipótese, frise-se, é necessário que as autoridades fiscais demonstrem,
por meio de provas inequívocas, não apenas a existência do grupo econômico, mas
também a relação, mesmo indireta, entre a sociedade responsável tributária por
solidariedade e o fato gerador realizado pela sociedade contribuinte. Essa demons­
tração, por sua vez, variará conforme o grupo econômico seja de direito ou de fato.
Em se tratando de grupo econômico de direito, denominado pela Lei das
Sociedades Anônimas de “Grupo de Sociedades”, a demonstração da sua exis­
tência, bem como da vinculação da sociedade responsável com o fato gerador,
não comporta maiores dificuldades, podendo ser realizada mediante a apresen­
tação da convenção por meio da qual a constituição do grupo foi formalizada.
É que, por força do art. 266 da Lei n° 6.404/76, a convenção constitutiva do
“grupo de sociedades” deverá detalhar as relações existentes entre as empresas inte­
grantes do grupo econômico, inclusive as atividades e empreendimentos a serem
realizados em parceria, mediante a conjugação de esforços e recursos comuns. Daí
porque, na maioria dos casos, a convenção é instrumento hábil a demonstrar a
vinculação do responsável ao fato gerador realizado pela sociedade contribuinte.
Já no caso de grupo econômico de fato, não há um elemento de prova
específico apto à demonstração da sua existência, bem como da vinculação do
responsável ao fato gerador, que variará conforme as particularidades de cada
caso, e do tributo envolvido. No entanto, entendemos que pelo menos as se­
guintes circunstâncias deverão ser demonstradas, todas, pela autoridade fazen-
9 5 6 - A l g u m a s C o n s id e r a ç õ es J u r íd ic a s s o b r e a R e s p o n s a b ilid a d e S o l id á r ia .,

dária: (i) a existência de duas ou mais sociedades que mantenham relação na


qual uma sociedade exerça sobre as demais poder de controle, mediante a de­
tenção de ações ou quotas que lhe assegure a maioria de votos nas deliberações
sociais, e na eleição dos administradores das controladas; (ii) a realização de
atividades econômicas em regime de parceria, mediante a conjugação de esfor­
ços e recursos financeiros; e (iii) confusão, ou promiscuidade patrimonial.
Hugo de Brito Machado é claro ao afirmar que a responsabilidade soli­
dária, prevista no art. 124, do Código Tributário Nacional, não pode ser atri­
buída a quem não tenha relação com o fato gerador da obrigação tributária:
“Nos comentários ao art. 124, dissemos que não nos parece sejapermitido ao
legislador atribuirresponsabilidade tributária a quem não esteja, ainda que
indiretamente, relacionado ao fato gerador daobrigação respectiva. Mesmo
que essa atribuição sejafundada no não-cumprimento de deverjurídico por
aquele a quem é feita. Realmente, a atribuição de responsabilidade, vale
dizer, acolocação em estado de sujeição ao cumprimento do dever tributário,
sob pena de sanção, só pode ser atribuída aquem de algummodo, ainda que
indiretamente, estejaligado ao fato gerador da respectiva obrigação.”7
Esse mesmo entendimento é compartilhado por Hamilton Dias de Sou­
za, que ressalta que as normas gerais sobre “Responsabilidade Tributária” vei­
culadas pelo Código Tributário condicionam o legislador ordinário, inclusive,
na atribuição da solidariedade ex lege prevista pelo art. 124, II, do Código:
“Com efeito, asolidariedadelegal há de observaros parâmetros definidos no
Código Tributário Nacional, sob pena de configurar-se ‘delegação em bran­
co’de matériareservada àlei complementar paraalei ordinária, emviolação
ao art. 146, IH, da Constituição Federal. Realmente, se o legislador ordinário
pudesse atribuir responsabilidade solidária a pessoas diversas daquelas que
podem ser consideradas responsáveis nos termos do Código Tributário
Nacional, restariam inócuas e sem sentido as normas gerais que cuidam
exaustivamente do tema. Assim, o inciso II do art. 124 deve serinterpretado
de forma sistemática e teleológica, no sentido de que alei pode prever casos
de solidariedade quando se alguma das hipóteses de responsabilidade pre­
vistas no CódigoTributárioNacionai, de modo que permaneçamais de uma
pessoa no pólo passivo da obrigação tributária, independentemente da co­
munhão de interesses prevista no inciso I do art. 124. Seria o caso, por
exemplo, do adquirente de imóvel responsabilizado solidariamente pelo
imposto de transmissão pelovendedor eleito como contribuinte”8

7 M ACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional, voi. II, São Paulo:
Atlas, 2004, p. 511.
8 Op. cit., p. 50/51.
F e r n a n d o R e b e l o A n d r a d e & T er en c e T r e n n e p o h l - 9 5 7

Por sua vez, o posicionamento ora defendido já foi adotado pela Ia Seção
do Superior Tribunal de Justiça, que acolheu voto do Min. Luiz Fux dando a
seguinte interpretação ao art. 124, II, do CTN:
“Quanto ao inciso II do art. 124, a disposição que prescreve a solidariedade
das ‘pessoas expressamente designadas por lei’pressupõe que a lei poderá
determinar a existência de solidariedade entre pessoas que possam não
ter interesse comum na situação que constitua o fato gerador, pois é
incabível previsão legal no sentido de estipular em qual ou quais situações
há o interesse comum. Não há que se admitir que, na criação de um
tributo, através da competência conferida pela Constituição Federal, seja
estabelecida como devedor solidário pessoa que não tenha participado
ou concorrido para a realização do fatojurídico tributário, uma vez que o
legislador ordinário, por força do texto constitucional, não poderá fazer
incidir a carga tributária sobre pessoa estranha ao fato previsto na norma
como gerador da obrigação. O comando desse dispositivo deve apontar
para obrigação de caráter sancionatório, advinda do descumprimento de
deveres, permitindo-se a identificação de devedor solidário tão-somente
para esse fim, visto que nessa situação não participa da realização do fato
gerador. (Luiz Antônio Caldeira, p. 212, “Comentários ao Código
Tributário Nacional”, Saraiva, ob. Coletiva, 2002)
(...)

A solidariedade prevista nesse preceito é denominada de direito. Ela só


tem validade e eficácia quando a lei que a estabelece for interpretada
de acordo com os propósitos da Constituição Federal e do próprio Có­
digo Tributário Nacional.”9
De fato, a jurisprudência unânime do STJ consolidou entendimento no sen­
tido de que a mera existência de “grupo econômico” não é fato por si só suficiente
para deflagrar responsabilidade tributária solidária. Nesse sentido, destacam-se os
seguintes precedentes do STJ e do Tribunal Regional Federal da 4a Região:
“TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - EMPRESAS DO
MESMO GRUPO ECONÔMICO - SOLIDARIEDADE PAS­
SIVA - INEXISTÊNCIA - PRECEDENTES.
1. E tranqüilo nesta Corte o entendimento segundo o qual não caracte­
riza a solidariedade passiva em execução fiscal o simples fato de duas
empresas pertencerem ao mesmo grupo econômico.”10

9 STJ, PRIMEIRA TURM A, AGRG NO RESP 1055800/CE, Rel. Min. Luiz Fux, Dj. 02/12/2008.
10 STJ, SEGUN DA TURM A, RESP 1079203/SC, Rel. Min. Eliana Calmon, Dj. 03/03/2009.
9 5 8 - A l g u m a s C o n s id e r a ç õ e s J u r íd ic a s so b r e a R e s p o n s a b ilid a d e S o l id á r ia ..

TROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS.


EXECUÇÃO FISCAL. LEGITIMIDADE PASSIVA. EMPRESAS
PERTENCENTES AO MESMO CONGLOMERADO FINAN­
CEIRO. SOLIDARIEDADE. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DO
ART. 124,1, DO CTN. NÃO-OCORRÊNCIA. DESPROVIMENTO.
1. “Na responsabilidade solidária de que cuida o art. 124,1, do CTN,
não basta o fato de as empresas pertencerem ao mesmo grupo econô­
mico, o que por si só, não tem o condão de provocar a solidariedade no
pagamento de tributo devido por uma das empresas” (HARADA,
Kiyoshi. “Responsabilidade tributária solidária por interesse comum na
situação que constitua o fato gerador”).
2. Para se caracterizar responsabilidade solidária em matéria tribu­
tária entre duas empresas pertencentes ao mesmo conglomerado
financeiro, é imprescindível que ambas realizem conjuntamente a
situação configuradora do fato gerador, sendo irrelevante a mera
participação no resultado dos eventuais lucros auferidos pela outra
empresa coligada ou do mesmo grupo econômico.”11
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EMPRESA DE MES­
MO GRUPO ECONÔMICO. SOLIDARIEDADE PASSIVA.
1. Inexiste solidariedade passiva em execução fiscal apenas por per­
tencerem as empresas ao mesmo grupo econômico, já que tal fato,
por si só, não justifica a presença do “interesse comum” previsto no
artigo 124 do Código Tributário Nacional. Precedente da Primeira
Turma (REsp 859.616/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJU de 15.10.07).”12
“São solidariamente obrigadas pelo crédito tributário as pessoas que te­
nham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obriga­
ção principal, segundo prevê o art. 124,1, do CTN. O interesse comum das
pessoas não é revelado pelo interesse econômico no resultado ou no provei­
to da situação que constitui o fato gerador da obrigação principal, mas pelo
interesse jurídico, que diz respeito a realização comum ou conjunta da
situação que constitui o fato gerador. E solidária a pessoa que realiza con­
juntamente com outra, ou outras pessoas, esteja em relação com o ato, fato
ou negócio dá origem à tributação; por outras palavras, (...) pessoa que tira
uma vantagem econômica do ato, fato ou negócio tributado (Rubens Go­
mes de Souza, Compêndio de LegislaçãoTributária, 3. ed., Rio deJaneiro.
Edições Financeiras, 1964, p. 37). A sociedade que participa de outra,
ainda que de forma relevante, não é solidariamente obrigada pela dívida

11 STJ, PRIMEIRA TURM A, RESP 834044/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Dj. 11/11/2008.
12 STJ, SEGUNDA TURM A, RESP 1001450/RS, Rel. Min, Castro Meira, Dj. 11/03/2008.
F e r n a n d o R e b e l o A n d r a d e & T er en c e T r e n n e p o h l - 9 5 9

tributária, referente ao imposto de renda dessa última pois, embora tenha


interesse econômico no lucro, não tem o necessário interesse comum, na
acepção que lhe dá o art. 124 do CTN, que pressupõe a participação
comum na realização do lucro. Na configuração da solidariedade é relevan­
te que hajaparticipação comum na realização do lucro, e não a meraparti­
cipação nos resultados representados pelo lucro.”13
Por outro lado, analisando a questão sobre a ótica do instituto da perso­
nalidade jurídica, percebe-se que o entendimento do STJ no sentido de que a
simples existência de grupo econômico não é fundamento suficiente para a
imputação de responsabilidade solidária também encontra fundamento jurí­
dico no do art. 127,1, do Código Tributário Nacional.
Isso porque a norma jurídica veiculada pelo aludido dispositivo, partin­
do da premissa de que estabelecimentos integrantes de uma mesma pessoa
jurídica ou de grupo econômico têm personalidade jurídica distinta, prescreve
a autonomia de cada unidade empresarial com relação aos tributos cujos fatos
geradores ocorram de forma individualizada em cada estabelecimento.
E é justamente por força dessa autonomia que o STJ não admite seja
negada certidão de regularidade fiscal a uma pessoa jurídica integrante de
grupo empresarial em virtude de outra pessoa jurídica desse mesmo grupo ter
pendências tributárias. É o que se infere do precedente abaixo:
“1.0 artigo 127,1, do Código Tributário Nacional consagra o princípio da
autonomia de cada estabelecimento da empresa que tenha o respectivo
CNPJ, o quejustifica o direito a certidão positiva com efeito de negativa
em nome de filial de grupo econômico, ainda que restem pendências
tributárias da matriz ou de outras filiais. Precedente da Primeira Turma
(REsp 938.547/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, DJU de 02.08.07).”14
Ora, admitir que uma pessoa jurídica seja responsabilizada solidaria­
mente por débitos cujos fatos geradores foram realizados exclusivamente por
outra pessoa jurídica, apenas porque ambas integram um grupo econômico,
significa, em verdade, desconsiderar a personalidade jurídica dessas socieda­
des, instituto consagrado pelo nosso direito positivo, e essencial à sustentação
da livre iniciativa e à propulsão da atividade econômica.
Sob o enfoque prático, significa dizer que o art. 30, IX, da Lei n° 8.212/
91, ao prever responsabilidade solidária fundada apenas na mera existência de

13 TRF 4a REGIÃO , AMS 940455046-9, Rel. Des. Zuudi Sakakihara, DJ. 27/10/1999.
14 STJ, REsp 1003052/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/03/
2008, DJe 02/04/2008.
9 6 0 - A l g u m a s C o n s id e r a ç õ es J u r íd ic a s s o b r e a R e sp o n s a b ilid a d e S o l id á r ia .

grupo econômico, termina por criar hipótese de desconsideração da persona­


lidade jurídica incompatível com o art. 50 do Código Civil, que condiciona
tal desconsideração à demonstração de abuso de personalidade, manifestada
pela existência de confusão patrimonial ou desvio de finalidade.
E, a prevalecer tal entendimento, permitir-se-ia a atribuição de respon­
sabilidade solidária a duas ou mais sociedades pelo simples fato de manterem
entre si relação jurídica de controle e coligação, o que, na prática, inviabilizaria
o crescimento econômico impulsionado por tais espécies de relação societária,
prejudicando a livre iniciativa constitucionalmente assegurada.
Enfim, pelas razões acima expostas, sobretudo em face da necessidade de
o art. 30, IX, da Lei n° 8.212/91 ser interpretado harmonicamente com o art.
128 do Código Tributário Nacional, é de se concluir que a responsabilidade
solidária prevista na lei ordinária só pode ser atribuída à pessoa jurídica, inte­
grante de “grupo econômico”, que tenha relação, mesmo indireta, com o fato
gerador da obrigação tributária, realizado pela sociedade contribuinte.

IV . C o n clu sõ es

Em face dessas breves considerações expostas, é de se concluir que:


(i) Por força do disposto no art. 146, III, “b”, da Constituição Fede­
ral de 1988, a disciplina do tema “Responsabilidade Tributária”
é reservada exclusivamente à lei complementar;
(ii) Em face da reserva constitucional acima referida, os dispositi­
vos da legislação ordinária relativos à “Responsabilidade tribu­
tária” devem, necessariamente, ser interpretados e aplicados
harmonicamente com as normas gerais veiculadas pelo CTN,
sob pena de inconstitucionalidade;
(ii) Especificamente com relação ao art. 30, IX, da Lei n° 8.212/91,
os operadores do direito devem aplicá-lo e interpretá-lo em har­
monia com o art. 128 do Código Tributário Nacional, de modo
que a responsabilidade solidária prevista pelo legislador ordiná­
rio só pode ser atribuída à sociedade integrante de grupo econô­
mico que tenha relação, mesmo indireta, com o fato gerador da
obrigação tributária, realizado pela sociedade contribuinte.

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