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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS INGLÊS

ELTON LUIZ CAXAMBÚ

AS HISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

CURITIBA
2012
ELTON LUIZ CAXAMBÚ

AS HISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Letras Português Inglês da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como
requisito parcial para conclusão da
graduação.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Franz

CURITIBA
2012
ELTON LUIZ CAXAMBÚ

AS HISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Letras Português Inglês da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do título de
Licenciado em Português Inglês.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________
Prof. Dr. Marcelo Fraz
PUCPR

_____________________________________
PUCPR

_____________________________________
PUCPR

Cidade, ____ de ________ de 2011.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a meu colega Bernardo por ter me aberto os olhos e assim me ajudado a
decidir por analisar a obra Grande Sertão: Veredas, neste trabalho. Agradeço,
também, as minhas colegas Jéssica Camila e Juliana Corrêa, pelas conversas sobre
literatura, que auxiliaram muito na definição dos rumos do trabalho. Agradeço a
meus pais pelo suporte monetário e psicológico durante este árduo, mas prazeroso,
período de estudo. E, agradeço a minha namorada Fernanda, pela paciência e apoio
durante todo o período de minha formação acadêmica.

Meu agradecimento especial ao professor orientador do trabalho, professor Dr.


Marcelo Franz, sempre tranquilo, positivo e disponível para esclarecer minhas
dúvidas e a fazer críticas construtivas.
“Existe é homem humano. Travessia”
João Guimarães Rosa, 2001
RESUMO

O estudo desenvolvido nestas páginas tem o objetivo de fornecer análise literária do


magnífico e paradoxal romance Grande Sertão: Veredas, escrito por João
Guimarães Rosa, e editado em 1956. A análise é focalizada em alguns contos
existentes dentro da história principal de Riobaldo, que é o personagem principal e
quem conta toda a história. Os contos são historietas que possuem individualidade
formal dentro da obra. Procura-se investigar a que gênero literário pertencem essas
historietas. Se são contos, podem ser classificados como contos populares, eruditos,
casos, parábolas? São analisados os efeitos de significado que essas historietas
possuem por si só, como forma individual de narrativa, e quais os efeitos de
significado delas em relação à história principal. Para se chegar aos resultados das
análises foram realizados estudos sobre a vida, obra e contexto histórico das obras
do autor, estudos sobre Grande Sertão: Veredas como um todo, incluindo temas e
linguagem, e estudos sobre as características das formas narrativas existentes na
obra. Ainda, em relação à Grande Sertão: Veredas realizou-se estudo sobre as
travessias de Riobaldo: a travessia que diz respeito à passagem da vida e às
transformações do homem Riobaldo, e a travessia da linguagem de Riobaldo, um
homem em constante transformação.

Palavras-chave: Narrativa. Linguagem. Paradoxo. Travessia.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................7
2 O HOMEM E SUA OBRA.......................................................................................10
2.1 A OBRA 11
2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO 13
2.3 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS DE GUIMARÃES ROSA
15
2.4 GRANDE SERTÃO: VEREDAS 16
2.4.1 Duas travessias 17
3 AS NARRATIVAS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS........................................20
4 A ANÁLISE DAS HIISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA.................................25
4.1 ALEIXO 26
4.2 VALTÊI 29
4.3 MARIA MUTEMA 31
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................35
REFERÊNCIAS...........................................................................................................38
7

1 INTRODUÇÃO

Grande Sertão: Veredas é um romance situado no que se pode chamar de


terceira geração modernista (COUTINHO, 2004, p. 170), período que teria se
iniciado em 1945. Poderia ser chamado também de período pós-modernista
(NICOLA, 1987, p. 267), ou ainda contemporâneo, da literatura brasileira, que,
segundo Bosi, teria começado depois de 1930. Porém, como ele mesmo diz “o
termo contemporâneo é, por natureza, elástico” (BOSI, 1982, p. 431). O contexto
histórico será aprofundado no capítulo 2.
Grande Sertão foi publicado por João Guimarães Rosa, em 1956. A obra
possui características da prosa regionalista por retratar a região e o homem do
sertão brasileiro. Porém, é essencialmente uma obra universalista devido aos temas
que dizem respeito à natureza humana. Temas independentes de qualquer tempo e
região.
A narrativa é realizada em primeira pessoa, sendo Riobaldo, o narrador e
personagem principal. Riobaldo conta toda a história em três dias a outro
personagem, cuja identidade não é revelada, apenas se sabe, por meio da fala do
próprio Riobaldo, que ele é um viajante, de passagem pela região do sertão mineiro,
com diploma de doutor. Trata-se de um extenso monólogo em que Riobaldo conta a
“travessia” da sua vida.
A obra que será analisada é fonte de muitos livros e estudos acadêmicos,
haja vista sua importância para a literatura brasileira, e por que não, mundial. Os
temas apresentados em Grande Sertão: Veredas tratam da existência humana, da
relação entre bem e mau, Deus e o diabo, amores proibidos, jogos de poder, entre
outros. Os temas estão inseridos no romance de maneira a se criar um mundo de
incertezas, em que nada é definitivo, “Tudo é e não é” (ROSA, 2001, p. 27). Na
narrativa existem mais perguntas do que respostas, como é na própria vida. Em
realidade é a história de uma vida, a de Riobaldo, o menino sertanejo mineiro que se
tornou jagunço. A história de uma vida contada pelo vivente, que é revivida e
recriada, durante o contar. Riobaldo conta os episódios de sua vida, ao mesmo
tempo em que espera encontrar respostas para suas questões mais profundas.
Revivendo o passado, Riobaldo narra sua história de maneira não linear. Suas
inquietações são contadas em forma de um mosaico, no qual ele tenta narrar a
“matéria vertente”, e essa, como é matéria viva, não apresenta formas padronizadas
8

ou previstas, é um mistério que o leitor tem de desvendar, relacionando as partes


que formam o todo da história.
O processo narrativo de Riobaldo pode ser classificado como Monólogo
Interior, que é um aprofundamento em relação aos processos mentais. Mas,
também, como Fluxo de Consciência, em que existe um fluxo contínuo de
pensamentos expressados em uma linguagem fragmentada e frágil em néxos
lógicos, típico da narrativa do século XX, época em que se situa Rosa e Clarice
Lispector (LEITE, 1985, p. 68).
O tempo no romance de Guimarães Rosa pode ser chamado, segundo
Moisés (1967, p.184), como “o tempo metafísico ou mítico [...] tempo coletivo,
trasindividual, tempo da Humanidade quando era um só corpo fundido às coisas do
Mundo, tempo reversível em circularidade perene”. É um tempo que não é o tempo
histórico, pois ele não diz respeito a uma época específica. Quando Riobaldo diz que
o sertão é igual ao mundo, ele diz que os homens são semelhantes, possuem
sentimentos e inquietações de mesma natureza. É o tempo em que o mito é criado.
Durante a revelação de sua história, Riobaldo narra algumas histórias
paralelas, que possuem autonomia formal e caráter popular (DURÃES, 1999, p. 11).
Elas funcionam, de algum modo, para sustentar ou apoiar a história principal da
obra. As historietas poderiam ser pequenos contos separados de Grande Sertão:
Veredas, também chamados de casos ou estórias, por Riobaldo. Entretanto, estão
incrustadas na narrativa maior, e se apresentam em diferentes posições dentro da
obra. Uma boa parte dos pequenos contos se apresenta no começo da obra, como a
história de Aleixo (ROSA, 2001, p. 28) e do menino Valtêi (ROSA, 2001, p. 29). Já a
história de Maria Mutema, a mais extensa, apresenta-se próxima ao meio do livro
(ROSA, 2001, p. 238). Outras se encontram espalhadas em todo o texto.
Este estudo vai focar as três historietas citadas: Aleixo, Valtêi e Maria
Mutema. São histórias que podem parecer desconectadas do todo, para leitores
desatentos, entretanto, por meio de uma leitura analítica, fazem todo o sentido
dentro da obra. Elas não estão lá por acaso e, como tudo que Rosa escreve tem o
seu porquê, elas também possuem sua função. A proposta deste trabalho é a
análise dessas três histórias, procurando revelar qual é o efeito que elas causam na
história principal de Grande Sertão: Veredas. Dentro do trabalho de análise também
serão realizados estudos quanto à construção formal e o caráter popular dos contos.
O estudo possui o objetivo de ajudar a desvendar os mistérios que envolvem a
9

narrativa e contribuir para que os leitores de Grande Sertão: Veredas tenham mais
uma fonte de análise para a compreensão dessa incrível “estória”.
Como base teórica para a análise dos contos paralelos, será apresentada
pesquisa sobre teorias a respeito de gêneros narrativos diversos, como contos,
parábolas, apólogos e outros, ou seja, será explorada a arte de contar histórias. E
dentro desse contexto, a arte de tradição popular. E ainda, a recuperação da
tradição oral de contar histórias, pelas obras modernas. Em Grande Sertão: Veredas
o discurso coloquial é evidente, sendo que a linguagem de Riobaldo e a contagem
das historietas remetem à tradição oral, que é uma forte característica cultural da
região sertaneja daquele tempo.
As histórias paralelas encontradas em Grande Sertão se enquadram na
classificação de conto popular. São pequenas narrativas classificadas como histórias
exemplares e que têm sua origem na tradição da narrativa oral de uma região. Em
Grande Sertão: Veredas é a região que corresponde, conforme as veredas pelas
quais Riobaldo andou, ao sul da Bahia, norte de Minas Gerais, e norte e centro-
oeste de Goiás. É o mundo de Riobaldo. Também é parte do mundo do autor
Guimarães Rosa, que nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, e que se refere à
região de nascimento como referência para tudo que escreve. Em entrevista dada a
Günter Lorenz (1995, p. 27-61), Gênova, em 1965, afirmou: “É que eu sou, antes de
mais nada, este ‘homem do sertão’ ”. Rosa trabalhou como médico no interior de
Minas, e conta-se que ele aceitava como pagamento pelas consultas a contagem de
casos. Os clientes lhe contavam histórias curiosas da região em troca de serviços
médicos. Essa foi uma das maneiras de que Rosa se utilizou para construir o seu
vasto acervo de casos, que depois se constituíram como matéria para muitas de
suas obras.
A fonte teórica para este estudo são as obras que dizem respeito à análise do
romance Grande Sertão: Veredas e obras que contemplam a teoria literária. Os
principais aspectos das obras pesquisadas serão: a análise das histórias paralelas
inseridas na história principal; a característica popular dessas histórias; aspectos da
narrativa aplicada na obra e da linguagem particular utilizada por Guimarães Rosa.
10

2 O HOMEM E SUA OBRA

Depois de ler e estudar Guimarães Rosa, uma pergunta que provavelmente


vem à mente do leitor é sobre como ele chegou a esse nível artístico. Afinal, quem é
esse homem? Essas perguntas são feitas no poema de Carlos Drummond de
Andrade (2001, p. 11) dedicado a Rosa, depois da morte deste:

João era fabulista?


fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
A quinta face das coisas
Inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para forçar
o que não ousamos compreender?
[...]
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.

A vida de Rosa é muito interessante e fornece muitas pistas para se entender


melhor suas obras. Muitos personagens, acontecimentos e regiões representados
em suas obras podem ser identificados como parte da vida real do escritor, ou
podem ser observadas ligações entre o real e o ficcional. Porém, este trabalho não
visa detalhar a biografia do autor. Sendo assim, será relatada apenas uma pequena
parte das características desse cidadão do mundo. Sugerimos uma leitura profunda
da biografia de Rosa para se conhecer mais a fundo o homem e sua obra.
Rosa nasceu em Condisburgo, uma pequena cidade do interior de Minas
Gerais, cercada por montanhas, fazendas de gado, no vale do Rio das Velhas, em
1908. Seu pai tinha uma venda e o pequeno João cresceu ouvindo histórias
contadas pelos frequentadores: mascates, garimpeiros, fazendeiros, caçadores. Ele
foi uma criança diferente. Muito jovem ainda mostra interesse e facilidade em
aprender línguas. Começa estudando francês, holandês e, logo depois, alemão. É
um menino estudioso, apaixonado por geografia e história natural. Foi criado dentro
de um ambiente muito religioso e chegou a ser coroinha. Joãzito, como era chamado
quando criança, era visto como um menino de incrível memória e alguém que estava
sempre lendo. Morou em Belo Horizonte com o avô, onde concluiu o ginásio.
Continuou se aperfeiçoando, estudando línguas e lendo muito.
11

Ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (1925-


1930). Em 1928, o jornal Minas Gerais publica sua tradução do alemão do artigo A
organização científica em Minas Gerais, do professor O. Quelle, da Universidade de
Bonn, Alemanha. Em 1929, é nomeado para um cargo público na Secretaria de
Agricultura de Minas Gerais. Nesse mesmo ano, envia alguns contos para participar
de um concurso da revista O Cruzeiro, quando é selecionado o conto “O mistério de
Highmore Hall”, e publicado na mesma revista. Depois de formado em medicina,
Rosa passa a trabalhar como médico em um povoado, no município de Itaúna, em
Minas, e ouve muitos casos das pessoas da região. Casa-se com Lygia Cabral em
1930. Ingressa na Força Pública de Minas como oficial-médico em um manicômio,
em 1932, quando se muda para Barbacena (MG), onde permanece até 1934.
Rosa abandona a medicina porque se sente frustrado por perceber que era
incapaz de acabar com o sofrimento e males humanos, e presta o concurso do
Itamaraty para trabalhar como diplomata. Em 1934, é aprovado no concurso e
nomeado cônsul de terceira classe. Ele vai continuar na carreira diplomática durante
toda a vida, e passa longos anos em diversos países. De 1938 a 1942, Guimarães
Rosa é cônsul-adjunto em Hamburgo, época da eclosão da Segunda Guerra
Mundial. É um período difícil, Guimarães Rosa presencia a guerra de perto e,
juntamente com sua futura esposa Aracy, presta ajuda aos judeus perseguidos, o
que lhes rende uma homenagem de Israel.
Em 1952, Guimarães Rosa faz uma viagem pelo sertão de Minas, recolhendo
informações da região e do homem da região, ouvindo muitas histórias e anotando
tudo em seus cadernos. Essa viagem é uma das fontes das histórias que seriam
publicadas alguns anos depois em Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, ambos
de 1956.
É eleito em 1963 para ocupar a cadeira n. 2, na Academia Brasileira de
Letras, porém apenas toma posse 4 anos depois, em 1967. Guimarães Rosa morre
3 dias depois da sua posse na academia, vítima de enfarte, com 59 anos de idade
(COSTA, 2006, p. 10).

2.1 A OBRA

A história da carreira de João Guimarães Rosa como escritor é muito rica e


apresenta alguns mistérios, característica que também é comum em suas histórias.
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Ele estreou em 1936, com um livro de poemas intitulado Magma, o que é uma
curiosidade, pois Rosa é conhecido por seus livros de contos e por um único
romance. Magma lhe rendeu um prêmio no Concurso Literário da Academia
Brasileira de Letras, e recebeu valorosos elogios. Misteriosamente, Rosa nunca
publicou o livro, que seria publicado apenas 60 anos depois, em 1997, muito tempo
após a sua morte.
Na fase inicial de sua ficção, Rosa continuou escrevendo, porém, agora, um
livro de contos. Usando o pseudônimo de Viator, e intitulando seu livro simplesmente
de Contos, Guimarães Rosa concorre a mais um prêmio, o prêmio Humberto de
Campos, da Livraria José Olympio Editora, em 1936. Contudo, Graciliano Ramos,
um dos grandes escritores brasileiros e um dos jurados, vota contra o livro de Rosa,
com a justificativa de ser um livro irregular, com muitos altos e baixos. Em 1945, o
livro Contos é reescrito e reformulado por Rosa, quatro contos são excluídos, os
demais são postos em outra ordem e alguns ganham novos nomes. O título passa a
ser Sagarana e é publicado em 1946, dez anos depois de Contos.
Considerada como a primeira obra desse grande escritor, Sagarana é muito
bem recebida pela crítica e recebe o Prêmio Felipe d’Oliveira. Seu segundo livro é
publicado em 1952, com o título Com o Vaqueiro Mariano. Porém, são publicados
apenas 110 exemplares, sendo posteriormente republicado no livro Estas Estórias.
Rosa, em 1955, anuncia as obras Corpo de Baile e As Veredas Mortas, ambos são
publicados em 1956. São livros densos. Corpo de Baile é composto por 7 novelas,
em 2 volumes, que somam 822 páginas. As Veredas Mortas ganha novo título e
passa a se chamar Grande Sertão: Veredas, com mais de 500 páginas, único
romance de Guimarães Rosa, e tema central deste trabalho. Livros que
definitivamente consagraram o autor como um dos maiores prosadores da literatura
brasileira.
O próximo a ser publicado é Primeiras Estórias, 1962, um livro que reúne 15
contos publicados anteriormente em periódicos e 6 contos inéditos. Em 1967,
Guimarães Rosa publica, ainda em vida, seu último livro de contos, Tutaméia, que
possui o subtítulo de Terceiras Estórias.
Rosa morre em 1967. Nos anos posteriores à sua morte são lançados os
livros Estas Estórias, 1969, e Ave Palavra, 1970. Ambos são reuniões de contos
publicados anteriormente em periódicos. Também é publicado postumamente o livro
13

Magma, aquele livro de poemas que fora engavetado por Guimarães Rosa,
publicado somente em 1997 (COSTA, 2006, p. 10).

2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO

As obras de Guimarães Rosa podem ser situadas no período histórico literário


brasileiro classificado como moderno ou modernismo, que teve como marca de seu
início a Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922, em São Paulo. Dentro da
classificação de moderno, Rosa faria parte da terceira geração medernista, que se
iniciaria em 1945. Desse modo, a segunda fase se inicia em 1930. Entretanto,
alguns teóricos dividem os períodos de maneira diferente, considerando depois de
30 como pós-modernismo (COUTINHO, 2004, p 170). E depois de 45, como
neomodernismo (COUTINHO, 2004, p 197). Rosa pode ser classificado, também,
como autor contemporâneo (BOSI, 1982, p. 434). É da mesma época de prosadores
como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Clarice Lispector, e de poetas como
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
Guimarães Rosa produziu uma literatura considerada como mito-poética, na
qual existe uma reinvenção da linguagem e, por meio desta, uma reinvenção da
realidade. A obra de Rosa envolve temas universais e existenciais. Além disso,
existe a exploração da pré-consciência do ser humano (BOSI, 1982, p. 488). Essas
são algumas das características que classificam Guimarães Rosa como
neomoderno, pois renova as tendências modernas, elevando a narrativa romanesca
a outro nível.
Para se contextualizar a obra de Guimarães Rosa é necessário que se
entenda como eram o mundo e o Brasil daquela época, e quais os principais
acontecimentos.
Na década de 30, houve uma crise econômica mundial iniciada pela quebra
da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Isso causou sérios problemas nas relações
comerciais internacionais, a fome e a miséria se tornaram muito presentes. No
mesmo período, houve a expansão do comunismo e o crescimento do nazi-
fascismo, este último defendendo um estado autoritário e militarizado. É o que
acontece na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco e em
Portugal de Salazar. Esse quadro de instabilidade leva à Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), que desencadeia a destruição atômica de Hiroxima e Nagasaki.
14

No Brasil, a política do café com leite, comandada por São Paulo e Minas,
vigente até 1930, é desmantelada em meio a uma crise internacional que atinge o
comércio do café. Getúlio Vargas assume o poder em 1930 como chefe de um
governo provisório. Em 1937, instala-se a ditadura do Estado Novo, um governo
também autoritário, que dura até 1945, quando Vargas renuncia. Na era Vargas é
iniciada uma política de incentivo à industrialização do país e à entrada de capital
norte-americano em lugar do capital inglês (NICOLA, 1987, p. 221).
Na segunda fase, 1930, os ânimos já estão mais amenos do que os dos
fundadores do modernismo. O rigor formal é revalorizado ao lado das novas formas
estéticas de 1922, e se dá um grande retorno às raízes brasileiras. Todos esses
acontecimentos influenciam a temática dos artistas dessa fase, eles passam a
discutir questões existenciais, em que se dá importância para as relações do eu com
o mundo. A denúncia social se faz presente e existe a busca pelo homem brasileiro.
Essa busca vai resultar em uma literatura em que o regionalismo é marcante, e
explora a relação do homem com sua região e sociedade (NICOLA, 1987, p. 244).
Existe um destaque para os escritores nordestinos, alguns dos principais
representantes são: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e
Jorge Amado (CASTELLO, 1999, p. 269). Eles vivenciaram a passagem de um
Nordeste medieval para uma realidade capitalista e imperialista (NICOLA, 1987, p.
244). Essa característica é importante para o desenvolvimento deste estudo, embora
ele não seja nordestino, pois se reflete na obra de Guimarães Rosa. Em Grande
Sertão: Veredas é notória essa transição do mundo sertanejo arcaico, selvagem,
para o mundo moderno, “civilizado”. Essa travessia ocorre na vida de Riobaldo, que
passa de jagunço selvagem, para fazendeiro bem comportado.
O fim da segunda fase modernista acontece juntamente com o fim da
Segunda Guerra Mundial e começo da Guerra Fria, em 1945. Getúlio Vargas
renuncia, e é o fim da ditadura. Inicia-se a redemocratização brasileira. A literatura
brasileira passa por profundas transformações. As temáticas dos autores da década
de 30 são aprofundadas e a prosa ganha características de uma literatura mais
intimista, introspectiva em que o fator psicológico é fundamental (NICOLA, 1987, p.
268). Nessa terceira fase literária, aproveitam-se as evoluções precedentes e se
valoriza ainda mais a linguagem em questões formais, porém, tanto os padrões
métricos e rítmicos consagrados, como a renovação formal da linguagem são
valorizados. Os temas passam a ser mais intimistas, psicológicos, metafísicos e
15

também místicos. Com Guimarães Rosa o regionalismo volta a ser destaque na


literatura brasileira e ganha características universalistas. O brasileiro e o Brasil são
revelados não mais como seres isolados, mas plenos de significados universais.

2.3 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS DE GUIMARÃES ROSA

Desde Sagarana, o primeiro livro publicado, Guimarães Rosa quebra os


padrões da prosa literária brasileira. As obras são identificadas como regionais, por
tratarem de temas ligados ao homem do sertão. No entanto, extrapolam o
regionalismo que era produzido até então. “Sua obra contém o local e o universal, o
arcaico e o mítico, o documental e o metafísico” (FRANCESCHI, 2006, p. 5).
A linguagem literária de Rosa parte da variante regional e popular do homem
do sertão, com sua cadência e particularidades. É a língua que se fala no dia-a-dia
nas conversas mais informais, e durante as contagens de histórias, uma tradição
daquela região. Rosa então funde essa rica fala, com a erudita, a arcaica, a poética,
a estrangeira, e ainda cria novos modos de se dizer, fundindo palavras, criando
novos significados. Utiliza palavras em contextos nunca utilizados antes. Insere
palavras e expressões de outras línguas e também as funde com palavras do
português. São recursos de linguagem como: células rítmicas, aliterações,
onomatopeias, rimas internas, manipulação mórfica, elipses, cortes e alterações de
sintaxe, neologismos, vocabulário arcaico, metáforas, anáforas, motonímias, fusão
de estilos (BOSI, 1982, p. 486).
Rosa renova e reinventa a língua, causando o despertar do leitor para as
palavras e o significado que delas emana. O texto é narrativo e lírico, ao mesmo
tempo, não se separando a poesia da prosa. A abordagem que se dava para a
análise de romances até então teve de ser revista, pois as fronteiras foram
apagadas. E, por meio dessa linguagem tão nova e rica, revela o homem brasileiro,
com seus pensamentos, tradições e cultura, mas também faz pensar no homem
humano universal com sentimentos e modos de ver e agir no mundo.
Sagarana é o início. Entretanto a complexidade da criação literária de João
Guimarães Rosa será reconhecida definitivamente por meio dos livros publicados
em 1956, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Essas densas obras elevam
definitivamente o autor à categoria de universal. Elas abordam temas que tratam de
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questões voltadas para a existência humana, em que o contraditório é uma de suas


principais marcas.

2.4 GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Único romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas se encontra


entre os grandes romances da literatura mundial. É a história de Riobaldo. Sua
narrativa é inteiramente em primeira pessoa, com o foco narrativo unicamente na
visão de Riobaldo, sendo ele narrador e personagem principal. Riobaldo conta a
história da sua vida, a travessia que realizou durante sua vida no sertão. Seu ouvinte
é um homem não nomeado, um viajante de passagem, e que tinha diploma de
doutor. Isso é tudo o que se sabe do interlocutor. É por meio da fala de Riobaldo que
todos os personagens e toda a história ganham voz, tratando-se assim de um
extenso monólogo. Riobaldo é um fazendeiro, bem instalado, casado, com a vida
ganha, que aproveita a presença do forasteiro para contar a “matéria vertente”. “E
estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria
vertente” (Rosa, 2001, p. 116).
Grande Sertão é uma obra imensa, não só pela quantidade de páginas, mas
também pelos temas que aborda e a maneira como os aborda. É uma história em
que enredo e personagens podem ser caracterizados, em muitos momentos, como
míticos, pois a narrativa pode ser associada às novelas de cavalaria, como Rei Artur
e a Demanda do Santo Graal. Os bandos de jagunços em suas andanças e batalhas
conferem um tom épico ao romance (GALVÃO, 2006, p. 144).
A perspectiva metafísica do romance é muito forte, assim como o tema da luta
do bem contra o mau, Deus e o diabo. O simbólico, as lendas supersticiosas e a
mágica das histórias da tradição oral são recriados e metamorfoseados na
linguagem de Rosa.
O sertão é uma região real, apresentada de modo documental dentro da obra.
Existe no livro uma bela descrição das paisagens, árvores, flores, pássaros, rios,
veredas (riachos), cerrados, chapadas, tabuleiros, áreas desérticas. Mas também é
um símbolo que reflete o interior do ser humano, como pode ser analisado no
seguinte trecho estraído de Grande Sertão: Veredas, Rosa (2001, p. 24): “Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez,
quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-
17

jesus, arredado do arrocho de autoridade [...] O sertão está em toda parte”. Além
disso, o Sertão é um espaço existencial, representação do mundo onde o sujeito se
constrói em sua travessia individual.
Voltando à história de Riobaldo. Quem foi Riobaldo? Essa é a pergunta que o
próprio Riobaldo tenta responder quando narra sua vida ao doutor viajante. Riobaldo
havia supostamente feito um pacto com o diabo, essa questão, entre outras, fazem
com que ele se questione sobre seus atos e motivos, e ainda sobre o que lhe
acontecerá no futuro. Enquanto conta sua história ele a reescreve e procura
entender o que antes não lhe era possível.

2.4.1 Duas travessias

Na última página desse imenso romance, Riobaldo expressa a frase: “Existe é


homem humano. Travessia” (Rosa, 2001, p. 624). Utilizando a palavra travessia para
representar transformação, podem-se conceber duas travessias na vida de
Riobaldo. A primeira diz respeito ao rumo que sua vida toma, o processo de
transformação do homem Riobaldo. E a segunda é uma travessia da linguagem,
uma transformação na capacidade de recriar o mundo por meio da linguagem e
recriar a história de sua vida.
A primeira travessia é o enredo da história da vida de Riobaldo, um típico
sertanejo. Conforme palavras de Bigri, mãe de Riobaldo, para ser alguma coisa
naquela terra só sendo jagunço ou padre. Porém, Riobaldo perde sua mãe ainda
criança e vai morar com o padrinho, seu Selorico Mendes, que na realidade é seu
pai verdadeiro. Esse padrinho era fazendeiro, um homem de boa situação financeira,
possibilitando que Riobaldo estudasse e aprendesse a ler e a escrever, uma
exceção naquela região. Esse é um dos elementos que conferem a Riobaldo
diferença em relação aos outros sertanejos.
Quando Riobaldo descobre que o padrinho é seu pai, fica perturbado e foge.
Pede emprego para seu antigo professor, que o envia imediatamente para dar aulas
a um chefe jagunço, Zé Bebelo. É dessa maneira que Riobaldo entra na
jagunçagem. Entretanto, durante a maior parte de sua vida de jagunço não se sentia
como um. Riobaldo não gosta do que presencia estando no grupo de Zé Bebelo, e o
abandona. É então que reencontra o menino que conhecera muito tempo atrás,
Reinaldo, também um jagunço, lutando por Joca Ramiro. Riobaldo, fascinado pela
18

beleza dessa figura impressionante, entra para o mesmo grupo e lá, aos poucos, se
transforma em jagunço e depois em chefe de jagunços.
Reinaldo é Diadorim, personagem pelo qual Riobaldo tem um amor proibido,
e é ele que motiva Riobaldo a continuar no grupo. Riobaldo descobre que Diadorim
é mulher apenas depois que ela é morta, no fim da guerra, no fim da narrativa,
quando ela entra em combate corpo a corpo com Hermógenes, o traidor, aquele que
assassinou Joca Ramiro, antigo chefe dos jagunços e pai de Diadorim. Ela e
Hermógenes morrem durante este último e mais importante combate do romance.
Hermógenes também é parte das motivações que levam Riobaldo a fazer o
pacto com o diabo. Riobaldo quer enfrentar esse homem, o mais perverso e valente
de todos os jagunços. E, como os jagunços acreditavam que Hermógenes havia
feito o pacto, para derrotá-lo seria necessário seguir o mesmo caminho.
Depois da morte de Diadorim, Riobaldo casa-se com Otacilia, filha de
fazendeiro, herda as terras do padrinho Selorico Mendes e deixa de ser chefe de
jagunços, passando a ser também um fazendeiro, que é a sua situação enquanto
está narrando a história.
As transformações na vida de Riobaldo são constantes e acontecem
lentamente. Esse é um dos grandes temas da obra. Existe um trecho da fala de
Riobaldo que exemplifica bem esse processo: “O senhor... Mire veja: o mais
importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam” (Rosa, 2001, p. 39). “Tudo é e não é” (p. 27). Riobaldo vai se
transformando com o passar dos anos, vai amadurecendo e ganhando poder. É o
processo de formação de um homem, que vai se metamorfoseando, sendo que a
questão do bem e do mal está misturada em sua personalidade e em seus atos. Ele
é um homem complexo, bom e mau ao mesmo tempo.
Riobaldo também pode ser visto como o símbolo da transformação do Brasil
arcaico em moderno. A história de Riobaldo revela a situação política instável da
época e a transformação de um Brasil que desejava se tornar moderno e capitalista,
como é a travessia da vida do próprio Riobaldo.
A segunda travessia de Riobaldo é a da linguagem. Desde sua idade mais
tenra até a sua velhice, passa por uma evolução sensível na questão linguística.
Riobaldo amadurece com a sucessão dos episódios de sua vida. E esse
amadurecimento está intimamente associado ao desenvolvimento da linguagem. No
19

início, ele é um jovem que parece ser levado pela força do vento. Depois, vai
aprendendo com a vida, e passa a refletir, tornando-se alguém com um domínio da
linguagem, que o possibilita manipular o mundo à sua volta para conseguir o que
deseja. Ao final, é um homem que ainda está em evolução linguística e reconta sua
história tentando desvendar e nomear tudo que lhe foi importante e que era e ainda
é incompreensível. Entretanto, a experiência do recontar memorialístico do que
viveu mostra-lhe tanto o poder, como os limites da linguagem. Sua travessia no
plano do dizer é desafiadora e incerta. É preciso que ele se recrie pelo processo do
contar, e nem sempre essa recriação lhe traz felicidade.
Outro tema trazido por Riobaldo e que dá força metafísica ao romance são as
reflexões de Riobaldo sobre Deus e diabo. Riobaldo, durante sua narrativa, reconta
sua história com um sentimento claro de perturbação e culpa pelo que fez, e
questiona-se a todo o momento pelos motivos que o levaram àquelas “veredas”, e
tem medo. Apesar de conservar uma mentalidade cheia de crenças religiosas, não é
adepto de nenhuma religião e discorda de muita coisa que ouve em relação às
crenças religiosas.
Para explicar seus pontos de vista ao seu interlocutor, Riobaldo se utiliza de
diversas historietas. São casos que ele conta e que ilustram, simbolizam suas
afirmações e reflexões. São fábulas que ajudam a fortalecer seus argumentos.
Essas fábulas ou casos se assemelham aos casos que a tradição oral produziu.
Possuem a característica de passar valores e ensinamentos, porém à maneira de
João Guimarães Rosa. Em Grande Sertão: Veredas, diversos casos são
apresentados como pequenos contos independentes da história principal. No
capítulo 4 do trabalho serão analisados três desses casos narrados por Riobaldo.
20

3 AS NARRATIVAS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Riobaldo é o narrador das diversas formas narrativas encontradas em Grande


Sertão: Veredas, romance, conto, fábula, etc. O narrador Riobaldo é um homem que
usa, em sua fala, o vernáculo regional característico da região sertaneja. Porém, é
uma linguagem com elementos estrangeiros, arcaismos, e outros, introduzidos na
linguagem pelo poder inventivo de Guimarães Rosa.
Riobaldo é o narrador por excelência, é aquele cuja narrativa está repleta de
sabedoria. É o tipo de contador de histórias anterior ao narrador do romance. É o
homem que dá conselhos. Ele conta histórias da maneira dos contadores de
histórias do tempo em que o tempo não era importante. Pode-se classificar esse
tempo mítico, já em que não existe precisão de datas (BENJAMIN, 1994, p. 197-
221). Guimarães Rosa cria um sertão mítico, um espaço, palco, de dramas
existenciais humanos. “’Dizer’ um mito é proclamar o que ocorreu ab origine”
(MOISÉS, 1974 p.342). Para o mito o material e o espiritual não se separam, existe
um profundo vínculo entre biológico e religioso. O sertão é um cosmos.
Entretanto, o mito primitivo se perde quando existe o desenvolvimento da
linguagem. Dessa maneira existe uma separação entre o sagrado e o profano, é
quando o verbo é colocado na origem do cosmos e ganha poder supremo. E,
segundo Moisés (1974, p. 345) é quando há:

o surgimento da Arte, por meio da qual se desencadeia a liberação de uma


energia ‘demoníaca’ [...] o mito se insinua no plano da Literatura: deixa de
ser o nome de um modo primitivo de conceber o Universo, e ainda
persistente em determinados agrupamentos humanos atuais (os
aborígenes), para se converter no designativo de um substituto “demoníaco”
do mito original

A palavra passa a ser instrumento da arte, em que o individual se destaca.


Riobaldo de certa maneira pode representar o mito primitivo, na figura de um
indivíduo com crenças e atos que são realizados de maneira natural, não reflexiva,
coletiva, e com base em padrões religiosos e culturais. Também os jagunços, os
catrumanos, sem estudo, podem representar o mito primitivo. Entretanto, Riobaldo
também representa o mito na qualidade de homem individual, profano, com
linguagem desenvolvida e, por meio da linguagem, reconstrói suas memórias, se
reconstrói como pessoa e reconstrói o mundo. Outros personagens dentro da obra
também possuem essas características, como Zé Bebelo, Joca Ramiro. São
21

personagens extremamente racionais, que usam a linguagem como material de


construção de um mundo que os beneficia.
O conto ou caso é forma narrativa da conversa descompromissada em que os
assuntos vão sendo narrados e a matéria vertente, ou seja, a vida, é vertida de
maneira, muitas vezes, caótica, seguindo as intenções e emoções do narrador. É a
forma mais comum de se contar histórias da região de nascimento de Rosa. Ele se
aproveita dessa tradição e a enriquece de maneira a criar uma linguagem e um
mundo novo ao mesmo tempo em que antigo.
Como é caractetística de um narrador autêntico “o contexto psicológico da
ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser”,
conforme Benjamim (1994, p. 197-221). Não existe a explicação ou a imposição ao
leitor das nuances psicológicas dos personagens. Mesmo tendo uma carga enorme
de reflexões, Riobaldo sempre deixa um enigma no ar. O leitor é quem deve tentar
decifrar esses enigmas. Sendo que muitos deles são sobre a questão existencial do
ser humano, muitas vezes ele tenta narrar o inenarrável.
Nessa obra do século XX, Guimarães Rosa recupera o narrar, épico,
exemplar, coletivo, existêncial, metafísico, fabuloso, parabólico dos antigos
narradores. Entretanto, Guimarães Rosa se utiliza dessa forma de narrar não para
ensinamentos de padrões de comportamentos fossilizados, muito pelo contrário, os
personagens de Rosa são complexos. Riobaldo, por meio dos seus relatos e
reflexões ensina o contraditório, dilacera todos os padrões de comportamento e
maneiras de ver e pensar o mundo. Por trás dos exemplos emerge um mundo novo,
que não segue doutrinas.
O texto de Rosa vai ao encontro da teoria de Benjamim (1994, p 197-221),
para a qual “‘O sentido da vida’ é o centro em torno do qual se movimenta o
romance”. Ou seja, o ponto central da história de Riobaldo é o sentido de sua vida e
não a moral da história, ponto central dos textos da tradição oral. Sendo assim,
Grande Sertão, continua a ser um paradoxo também nas questões formais do texto.
É romance, é conto popular e é erudito.
Os personagens de Rosa criam novos padrões de pensamento, porém,
revelados na forma narrativa da tradição oral possuem uma linguagem quase
proverbial, como por exemplo, os trechos extraídos da fala de Riobaldo: “Eu quase
que nada sei. Mas desconfio de muita coisa (ROSA, 2001 p. 31)”, “Cada um só vê e
entende as coisas dum seu modo” (p. 33), “Deus é paciência. O contrário, é o diabo”
22

(p. 33) e “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (p.
326).
Sendo o objetivo principal do trabalho, analisar o que foi classificado, até
então, de pequenos contos com autonomia formal, parábolas, casos, historietas,
contidos em Grande Sertão: Veredas, faz-se necessário compreender o que são
contos, quais as diferentes formas de expressão desse gênero, e também
compreender o conceito de outros gêneros de narrativas curtas como a fábula, a
parábola, o conto popular, e quais são os critérios que os diferenciam.
As origens do conto são remotas, pois ele advém das tradições de se contar
histórias, ou seja, está na origem da arte literária. Contos podem ser encontrados na
Bíblia, em textos de origem anterior a Jesus Cristo, como os episódios de Salomé,
Rute, Judite. Também existem exemplares escritos no antigo Egito e na Antiguidade
Clássica, como exemplo desta, têm-se trechos da Odisséia, de Ovídio e as fábulas
de Fedro e Esopo, entre outros. Entretando é no Oriente que se podem encontrar os
exemplares mais autênticos: as Mil e uma Noites, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa,
Simbad, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, originários da Pérsia e da Arábia. Do
mesmo modo que a Pachalantra, Jataka, e outros são originários da Índia.
(MOISÉS, 1974, p. 99)
O emprego do vocábulo “conto” nem sempre esteve vinculado ao gênero
literário. Na Idade Média, era usado para se referir à enumeração ou relato de
acontecimentos. Em lugar de conto eram usados os termos “fábula”, “apólogo” ou
simplesmente “exemplo” (MOISÉS, 1974, p. 98). Os conceitos de cada gênero
citado serão apresentados mais adiante.
De acordo com as transformações históricas do conto, no século XVI, a
palavra “conto” designava também as novelas de origem italiana. Porém adquire
sentido específico e o termo é acrescentado ao título de diversas obras da época,
como por exemplo, o título da obra de Noël du Fail, Les baliverneries ou contes
moraux, 1548, e o livro Contes et discours d’Eutrapel, 1586, de Juan de Timoneda. É
a partir do século XIX que o conto passa a ter conceito bem definido e próprio,
distinguindo-se dos demais (MOISÉS, 1974, p. 98).
O conto, de maneira geral, diferencia-se de outros gêneros narrativos, pois
possui um único “alvo”, que é um momento de importância, e em volta do qual os
outros elementos se desenrolam. Diferentemente do romance, personagens, tempo,
espaço e enredo possuem importância secundária ou nenhuma importância, sendo
23

que esses elementos trabalham no conto, para que nele se estabeleça um conflito.
Sendo assim, o conto é mais concentrado e mais curto, por exemplo, do que o
romance (MOISÉS, 1967, p. 98).
Porém, pode-se fazer distinção entre conto e conto popular. O conto é
considerado obra de um único autor, e obra artística, em que se tem o objetivo de
fazer arte (MOISÉS, 1967, p. 33). O conto popular é caracterizado principalmente
por ser um gênero que se desenvolveu na tradição oral dos povos. As histórias são
criadas de maneira coletiva e passadas de geração a geração. Esses “casos”, outro
termo de nominalização do conto popular, têm como elemento, a transmissão de
conhecimentos e concepções éticas, tidos como naturais pelas pessoas da
comunidade. Eles transmitem o que se deveria e o que não se deveria fazer, e
demonstram a diferença entre o bem e o mau. Esses ensinamentos eram
disseminados por meio de exemplos contidos nos casos.
A religião sempre esteve presente nas sociedades humanas e ela não ficaria
de fora. Muitos contos populares possuem conotação religiosa e defendem seus
preceitos. De acordo com Luzia de Maria (1992, p. 12) ”Através do contar se articula
uma fundamentação religiosa, quando os mistérios divinos, transcendentais, os
"feitos dos deuses" se misturam a simples episódios imaginativos”. Dessa forma, por
meio da contagem oral das histórias, esse conteúdo religioso e cultural era
preservado e incrementado pelas futuras gerações.
Os contos populares também podem ser considerados como um veículo em
que se descarrega uma carga imaginativa. É por meio deles que as pessoas podiam
expressar o que pensavam e também expressar e exercitar a imaginação, o que no
dia-a-dia, devido às atividades rotineiras como a obrigação do trabalho e do cuidado
com casa e filhos, isso não era possível. Essa necessidade básica do ser humano,
que é sonhar e também idealizar um mundo melhor, poderia ganhar alento na
criação das histórias.
As fábulas, parábolas e apólogos também possuem raízes na tradição oral,
sendo que os contos populares podem adquirir essas formas. Todos os gêneros
citados possuem uma característica muito importante que os aproxima, eles
transmitem ensinamentos morais. Porém, podem-se fazer distinções entre eles.
A fábula é uma narrativa curta em que, além da moral implícita ou explícita,
geralmente é protagonizada por animais irracionais, entretanto os animais são
dotados de racionalidade, pois personificam ações humanas. O comportamento
24

desses personagens, mantendo as características próprias, faz uma alusão satírica


ou pedagógica aos seres humanos. As fábulas foram escritas em verso até o século
XVIII, e em seguida em prosa. Elas foram bastante produzidas na Antiguidade
clássica por Esopo e por Fedro. Na era moderna La Fonteine é o mais importante
dos fabulistas. (MOISÉS, 1974, p. 226).
A fábula também já foi definida como mimese, imitação de ações, e enredo.
Como pode ser observado no trecho destacado de A Poética de Aristóteles (2007, p.
36): “A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos
atos”. E para Todorov (2006, p. 85): “a fábula seria o gênero do imperativo, na
medida em que ela nos descreve um exemplo a seguir”.
Na parábola, por sua vez, os protagonistas são humanos e a linguagem é
predominantemente metafórica. Na Bíblia existe um grande número de parábolas,
como por exemplo, o Filho Pródigo (MOISÉS, 1974, p. 385).
Já o apólogo se distingue por ser protagonizado por seres inanimados, com
características humanas. Um exemplo é Um Apólogo de Machado de Assis, em que
linha e agulha travam uma discussão para decidir quem é mais importante.
(MOISÉS, 1974, p. 34).
Depois das definições que foram feitas em relação às diversas formas que o
conto e o conto popular podem assumir, chega o momento de analisar os pequenos
contos com autonomia formal de Grande Sertão: Veredas. Eles serão analisados no
capítulo seguinte.
25

4 A ANÁLISE DAS HIISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA

As historietas, ou seja, os pequenos contos com autonomia formal estão


presentes em toda a história de Grande Sertão: Veredas. Algumas são curtíssimas,
possuindo menos de uma página, ou apenas algumas linhas. Outras são longas
contendo diversas páginas.
Riobaldo chama essas historietas de duas maneiras diferentes: casos e
estórias. O termo estória era usado por Guimarães Rosa para diferenciar a
historiografia da ficção, e caso é o termo popular para a narração das historietas.
Entretanto, a maior parte delas não é nominada como caso ou estória, Riobaldo
simplesmente as conta enquanto conta a sua própria história de vida, sem uma
separação clara. Desse modo, as historietas são tratadas como acontecimentos
reais, o que dá mais força de persuasão.
As historietas começam a ser narradas por Riobaldo logo no início da obra, e
nas primeiras páginas existe a maior concentração delas. É costume da região, onde
se passa a trama de Grande Sertão: Veredas, a contação de casos durante as
conversas mais corriqueiras. Sendo assim, Riobando narra sua história de vida ao
doutor viajante anônimo e vai narrando também os casos que ouviu, ou casos que
presenciou, ou Riobaldo os conta como se os tivesse presenciado.
Entre os casos presentes na obra, pode-se citar o do “bezerro branco” (Rosa,
2001, p. 23), os de “Aristides”, “José Simplício” e do “Moço, no Andrequicé” (p. 24).
Logo na sequência, podem-se observar diversas metáforas, ou alegorias em que
fenômenos naturais e características de plantas e animais são descritas para se
referir à existência do diabo (p. 25). Em seguida, a estória do “Aleixo” (p. 28), do
“menino Valtêi” (p. 29), “Jazevadão” (p. 34), “José Cazuzo” (p. 35), “Firmiano” (p. 37).
O caso da “faquinha” (p. 39), da “moça do Brarreiro-Novo” (p. 75). A estória do
“marimbu, brejo matador” (p. 90), da família do “Rudugério de Freitas” (p. 91), do
“jagunço Davião” (p. 100), dos “serranos da éras de 96” (p. 182), do “tigre que
arruinou a perna do Sizino Ló” (p. 233), o “Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte”
(p. 238). O “caso terrível de Dutra Cunha” (p. 368), a estória contada por “Um José
Misuso a um Etelvininho sobre a arte de um inimigo ter de errar o tiro que é
destinado na gente” (p. 449), o caso contado por “Seo Ornelas” (p. 475) e “dum
fazendeiro, o mais maldoso” (p. 618). Esse levantamento tem o intuito de apontar a
26

maioria das historietas paralelas existentes dentro da obra, porém, podem ainda
existir diversas outras.
Esses casos, ou estórias, não estão presentes na obra por acaso, ou seja,
não são acessórios com o objetivo de enfeitar a história. Eles possuem um porquê,
como tudo que Guimarães Rosa escreve em suas obras. O porquê desses casos,
seus significados e os efeitos que causam na história de Riobaldo são os objetivos
principais desta análise. Entretanto, como pode ser observado, existe um grande
número de historietas espalhadas pela obra, e como esse trabalho não comporta o
estudo de todas elas, foram selecionadas apenas três: a história do Aleixo, do
menino Valtêi e o Caso de Maria Mutema.

4.1 ALEIXO

O caso do Aleixo e do menino Valtêi encontram-se logo nas primeiras páginas


(ROSA, 2001, p. 28). Riobaldo inicia a conversa com o doutor viajante, falando sobre
as pessoas da região, seus costumes, suas crendices e sobre o “sertão”. E desde o
início já conta uma história que pode ser classificada como um caso. É sobre um
animal, um bezerro branco, que teria nascido com “cara de gente, cara de cão” (p.
23), e que as pessoas do lugar “determinaram – era o demo” (p. 23). Desse modo,
Riobaldo passa a fazer conjecturas em relação à existência do diabo e de como as
pessoas da região se referiam e agiam em relação ao diabo e crenças religiosas.
Logo depois, narra os casos de Aristides, José Simplício e do moço no Andréquiçé,
todos eles tematizando as crendices populares e a existência do diabo.
Depois disso, Riobaldo passa a falar sobre a maneira de ele mesmo tratar a
questão da existência do diabo: “Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a
crença, mercês a Deus” (ROSA, 2001, p. 25), quando Compadre meu Quelemém
aparece pela primeira vez na obra. Um espírita que dá conselhos a Riobaldo, e a
quem Riobaldo estima muito: “Quelemém descreve que o que revela efeito são os
baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas [...] Quelemém
é quem muito me consola” (p. 25). Riobaldo continua a fazer reflexões e faz várias
afirmações sobre o que acredita ser o diabo, que são muito importantes, pois essas
reflexões têm ligação com o que Riobaldo pensa em relação à natureza humana:
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o
homem aurruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão é que não tem
27

diabo nenhum” (p. 26), e sobre a relação do mundo natural com o sobrenatural, bem
e mal. Existem metáforas que remetem também à natureza humana, como por
exemplo, o da mandioca mansa que se torna brava e vice versa, entre outras
metáforas, envolvendo o mundo animal e vegetal. Essas reflexões de Riobaldo o
levam à uma frase categórica que reflete os paradoxos existentes na obra “Tudo é e
não é” (p. 27).
Essa senteça e mais algumas como, por exemplo: “Quase todo mais grave
criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-
seus-amigos!” (ROSA, 2001, p. 28), que Riobaldo introduz a estória do Aleixo.
Resumindo a estória do Aleixo, pode-se dizer que ele era um homem muito mau e
que espalhava suas maldades pelo lugar. Aleixo era pai de quatro crianças: três
meninos e uma menina. Possuía uma casa e perto dela uma espécie de tanque “um
açudinho” (ROSA, 2001, p. 28) no qual criava traíras, um tipo de peixe. Quando um
velho por lá passou pedindo esmolas, Aleixo o matou, sem nenhum motivo aparente,
“por graça rústica” (p. 28), ou “só pra ver alguém fazer careta” (p. 28). Passado
aproximadamente um ano depois da morte do velho, os filhos do Aleixo adoeceram
seriamente de “Andaço de sarampão” (p. 28). Eles se recuperaram. Porém, os olhos
avermelharam enormemente e todos eles acabaram ficando totalmente cegos.
Aleixo mudou seu comportamento. Passou a viver conforme os desígnios de Deus,
“suando para ser bom e caridoso em todas as horas da noite e do dia” (p. 28). O
próprio Aleixo dizia que era um homem de sorte, pois Deus quis ter pena dele, e
estava mais feliz.
Riobaldo conta o caso e depois passa a refletir sobre ele, e afirma: “eu ouvi, e
me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo
aqueles meninozinhos tinham?!” (ROSA, 2001, p. 28). Riobaldo não aceita o fato de
um castigo de Deus, enviado pelas ações do Aleixo, cair sobre as crianças.
Logo depois Riobaldo apresenta as ideias de Compadre Meu Quelemém
sobre o castigo, e Quelemém reprova Riobaldo, afirmando que em outra vida os
meninos deveriam ter causado malfeitorias. Porém, Riobaldo continua sem aceitar o
fato e supõe que se isso for possível o “inimigo de morte pode vir como filho do
inimigo” (ROSA, 2001, p. 29).
Essa é a frase que introduz o caso do menino Valtêi, que é contado por
Riobaldo logo em seguida e possui uma estreita ligação com o caso do Aleixo.
28

Analisando as circunstâncias em que o caso do Aleixo é contado, observa-se


que ele é um apoio para a sustentação dos pensamentos de Riobaldo em relação à
existência do diabo e sobre a natureza humana. O caso funciona como uma
ilustração pela qual as ideias de Riobaldo são provadas. Aleixo é um homem
complexo, um homem extremamente mau que se torna um homem extremamente
bom. Isso ocorre, segundo as crenças religiosas, por um castigo de Deus, porém
Riobaldo não aceita e procura explicações em outras religiões como a espírita de
Compadre Meu Quelemém, explicação que ele também não aceita. Riobaldo
percebe a complexidade da natureza humana e a demonstra, exemplifica, por meio
do caso do Aleixo. O ser humano é representado como um ser de natureza instável
e complexa em que existe o mau e o bem convivendo juntos e, dependendo de
diversos fatores, eles podem tender para a bondade ou para a maldade. É a
tradição dos contos populares sendo usada como exemplificação de algo que não
tem explicação, que não possui lógica ou padrão. Concluí que o diabo existe e não
existe.
Dessa maneira, Riobaldo também leva à reflexão sobre os dogmas religiosos
e se pergunta pelos motivos dos ditos castigos de Deus. Por qual motivo as crianças
seriam castigadas pelos atos do pai? Quando isso começou? Riobaldo não chega a
nenhuma conclusão definitiva, ou melhor, decide que tudo é e não é.
Podem-se observar diferenças entre Grande Sertão e a concepção das obras
classificadas como realistas e naturalistas, que se afirmam a partir do fim do século
XIX, em que, por meio do desenvolvimento das teorias filosóficas e científicas da
época, percebe-se que o homem é fruto do meio em que vive, como por exemplo, na
obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. No caso apresentado por Riobaldo, Aleixo
não é simplesmente um produto do meio. Ele é influenciado pelas circunstâncias
que o cercam, porém existem fatores não compreendidos e talvez não observáveis
que causam mudanças profundas em seu caráter, e isso poderá ser percebido
durante toda a obra, sendo o próprio Riobaldo o melhor exemplo desse “homem-
travessia”, que vai se construindo com o passar do tempo. Riobaldo de certa
maneira se deixa levar pelo meio, entretanto, também possui vontade própria e,
também “outras forças” o levam a seguir caminhos não previsíveis.
Riobaldo é um homem com um passado “terrível” para os padrões religiosos
e morais. Porém, no momento em que conta a história é um homem pacato, dono de
fazendas, casado, pacífico, que não deseja fazer ou receber o mau. Por meio do
29

caso do Aleixo Riobaldo pode estar contando um pouco da própria história, e


tentando entendê-la e justificá-la.

4.2 VALTÊI

A estória de Valtêi (ROSA, 2001, p. 29) e sua família reforça ainda mais as
ideias e pensamentos de Riobaldo. Nesse caso, Riobaldo revela a história do
menino que desde muito pequeno tinha uma personalidade considerada pela família
e pelos moradores da comunidade como uma personalidade dirigida ao mal, pois ele
“mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do
fundo das espécies de sua natureza” (p. 29). Valtêi era menino levado e gostava de
maltratar animais pequenos e também pessoas, como aconteceu de ele cortar a
perna de uma escrava com caco de vidro. Para “educar” o menino, seu pai, Pedro
Pindó, e sua mãe começaram a surrar o menino violentamente e aplicar diversos
castigos, como amarrá-lo nú e com fome, em mês de frio, a uma árvore. As surras e
os castigos passaram a ter hora marcada e começaram a servir de exemplo, pois os
vizinhos eram chamados para assistçi-los. Segundo Riobaldo, os pais de Valtêi
acabaram sentindo prazer em castigar o filho. O menino enfraqueceu, adoeceu
gravemente de tuberculose e estava próximo da morte.
Depois de contar o caso do menino Valtêi, Riobaldo recorre também a
Compadre Meu Quelemém e duvida de sua explicação para o ocorrido, segundo a
qual Valtêi teria sido um homem mau em vida passada. Riobaldo ainda acrescenta
que quando Valtêi estava chorando, sofria igual a um menino bonzinho. E deixa uma
pergunta no ar: “e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que
foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí tod os esbarram” (ROSA, 2001, p.
30).
A estória de Valtêi remete ao mesmo paradoxo de Aleixo. Quem é o mau da
estória, Valtêi ou seus pais? Mais uma vez se vê que o bem pode vestir-se de mau e
o mau pode vestir-se de bem, ou seja, segundo uma frase do próprio Riobaldo:
“Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o
mal, por principiar! Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o
concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”
(ROSA, 2001, p. 32). Riobaldo faz referência aos atos que vestidos com roupa do
30

bem podem causar danos terríveis. Um exemplo seria o ato de Pedro Pindó de
castigar o filho, querendo o bem já estava fazendo o mal.
Esse é mais um aspecto da natureza humana, os homens pensam de
maneiras diferentes e muitas vezes querem impor a sua maneira de pensar e agir às
outras pessoas e assim causam danos. Isso acontce, por exemplo, com os
religiosos que tentam impor a sua “verdade” aos demais, gerando desrespeito e
violência. As discórdias podem ser causadas por esse princípio, como por exemplo,
fazendo uma associação livre, tem-se a guerra de Hitler, a segunda Guerra Mundial.
Hitler pensava de uma maneira, ele possuía uma visão de mundo e a queria impor
ao mundo. Para Hitler, suas atitudes eram as melhores possíveis para se atingir o
objetivo de benefício próprio e de “seu povo”.
Mais uma vez as doutrinas religiosas são questionadas, e Riobaldo tenta
entender o processo, mas continua com dúvidas e não chega a uma definição
perfeita, a não ser de que tudo é e não é. Entretanto, Riobaldo acreditava que as
religiões e as orações faziam bem para a humanidade, segundo ele “todo-o-mundo é
louco” (ROSA, 2001, p. 32), e seria a religião, seja ela católica, protestante, espírita
ou outra qualquer, a cura da loucura.
Pode-se observar o caso de Valtêi como um “veículo” para Riobaldo investigar
o próprio passado de jagunço, quando agiu de modo “mau”, matando, estuprando, e
outros atos considerados no mínimo como inadequados pela sociedade e pelos
dogmas religiosos. Entretanto, Riobaldo apenas executava o que era normal,
comum, para as pessoas da região e da época. Riobaldo não se sentia como um
malfeitor, ele era mais um, fazendo o que tinha de fazer. Desse modo, Riobaldo
revive sua vida por meio da memória e ao mesmo tempo tenta entender o que era e
o que fez, também tentando justificar seus atos e fazer com que a aflição
desapareça. Pois Riobaldo, mesmo dizendo que não sentia culpa ou remorso, uma
grande inquietação sobre seus atos passados é facilmente observável. No seguinte
trecho, Riobaldo menciona: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso
aquietar meu temer de consciência, que sendo bem assistido, terríveis bons-
espíritos me protegem” (ROSA, 2001, p. 31).
31

4.3 MARIA MUTEMA

O “Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte” (ROSA, 2001, p. 238) não é um


caso vivenciado por Riobaldo, ele foi contado para Riobaldo em circunstâncias muito
específicas, pelo jagunço Jõe Bexiguento.
Houve uma batalha entre os Joca Ramiros e os Zé Bebelos. Quem estava na
liderança dos Joca Ramiros era Hermógenes, de quem Riobaldo tinha muito ódio.
Hermógenes recrutou Riobaldo para estar junto dele, na linha de frente, por ser o
melhor atirador. Riobaldo ainda teve que escolher, por ordens de Hermógenes, mais
dois jagunços para acompanhá-los, o Garanço e o Montesclarense. Essa foi a
primeira batalha em que Riobaldo agiu plenamente como um jagunço. Riobaldo
mata pela primeira vez, mata muitos homens, presencia a morte de homens do
bando contrário e do seu também. Entre estes, morre Garanço. Riobaldo fica
chocado, pois foi ele quem o escalou. Além disso, Riobaldo também viu a sua
própria morte de perto. Outras preocupações também assaltavam Riobaldo, como o
desaparecimento de Diadorim, que havia sido ferido em batalha, e também o fato de
ter entrado em batalha contra Zé Bebelo, a quem Riobaldo idolatrava e estimava
muito.
Depois que a batalha teve seu fim, os jagunços voltaram ao acampamento
para se alimentar, descançar e dormir. Riobaldo, sempre muito tenso, dormiu pouco
e acordou de sobressalto no meio da madrugada, várias vezes. Todos estavam
dormindo com excessão apenas de Riobaldo e o Jõe Bexiguento. Este percebe a
inquietação de Riobaldo e se aproxima para travar uma conversa e dar algum alento
a ele, pois Jõe era jagunço experiente e também não dormia em noite pós-batalha.
Riobaldo conta as suas inquietações a Jõe e trava uma luta interior em que tenta
entender o que fez, porque fez, qual o resultado de suas atitudes e, principalmente,
se pergunta no que se tornou, se seria de Deus ou do demo. Riobaldo pergunta a
Jõe (ROSA, 2001, p. 237): “A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão
de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente”.
Jõe Bexiguento é um homem simples, “a idéia dele era curta, não variava [...]
no sentir da natureza dele não reinava mistura nenhuma neste mundo – as coisas
eram bem divididas, separadas [...] Deus a gente respeita, do demônio esconjura e
aparta” (ROSA, 2001, p. 237). Riobaldo queria pensar como Jõe, queria se livrar das
dúvidas e das contradições que lhe invadiam a consciência. Durante essa conversa
32

é que Jõe Bexiguento narra o caso de Maria Mutema a Riobaldo, que depois o narra
ao seu visitante misterioso.
Maria Mutema é mulher comum sertaneja. Certo dia, sem motivo aparente,
mata o marido, depois que este dorme, introduzindo chumbo derretido em seu
ouvido. Depois do acontecido, Maria Mutema age de maneira tradicional. Durante e
depois do velório, veste-se de preto, pouco fala e pouco chora. Entretanto, uma
mudança foi percebida pelo povo da região, pois Maria Mutema passou a frequentar
a igreja, como nunca, e de três em três dias se confessava ao Padre Ponte. As
pessoas percebem que padre Ponte não está de acordo com a confissão de Maria
Mutema, pois ele a aborda com sermões severos e enérgicos. O tempo passa e
Padre Ponte continua sua obrigação de ouvir Maria Mutema, porém cada vez mais
com a aparência física enfraquecida e uma grande tristeza em seu semblante. Padre
Ponte vem a falecer e Maria Mutema deixa de frequentar a igreja. Outros padres
vieram e Maria Mutema jamais retornou à igreja.
Depois de anos, missionários estrangeiros com sermões e fé de muita força e
energia chegam à paróquia e começaram a pregar na igreja. Em véspera de “festa
de comunhão geral e glória santa” (ROSA, 2001, p. 240), Maria Mutema entra na
igreja e, imediatamente, o missionário que estava pregando presentiu a presença
dela. Depois, com muita energia e aparentando um grande ódio, deu ordens para
que a mulher que havia entrado saísse e que ela o fosse esperar no cemitério, onde
dois homens haviam sido enterrados. Maria Mutema chora e em estado de enorme
desespero pede perdão, confessando os crimes que cometera. Confessa que
matara o marido com o chumbo. Em seguida, fala que durante as confissões ao
Padre Ponte, disse a ele, que havia realizado o assassinato por amor ao Padre, o
que o levou à profunda tristeza e à morte.
Ela é presa na “casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de
joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para
cuspir em sua cara e dar bordoada” (ROSA, 2001, p. 242). O povo a perdoou,
davam-lhe palavras de alento e juntos rezavam. Trouxeram a mulher do Padre
Ponte, a Maria do Padre, e seus filhos, para que a perdoassem. O grande sofrer e
arrependimento de Maria Mutema causavam “bem-estar e edificação”, e “diziam que
Maria Mutema estava ficando santa” (p. 243). Essa função de “catarse”, do
sofrimento de um que alivia a dor de todos é algo que lembra uma prática comum na
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tragédia grega. Maria Mutema é levada pelas autoridades e, desse modo, a


historieta acaba, não mencionando o que teria ocorrido depois.
O caso por si só é de difícil análise, pois não se tem informação quanto às
motivações de Maria Mutema para a prática dos assassinatos. Ele pode ser um
exemplo, um conto popular, em que uma pessoa alcança o perdão dos seus atos por
meio do arrependimento e do sofrimento. Porém, com vários aspectos que o tornam
bastante complexo. Algumas perguntas ficam sem resposta. A primeira é a mais
óbvia e é sobre os motivos dos assassinatos. Outra é em relação aos nomes, Maria
Mutema e Maria do Padre. Aparentemente é muita coincidência os nomes serem
iguais. Uma hipótese é a associação entre Maria Mutema e Maria Madalena. Esta
última teria também pecado e sido absolvida e, talvez, o padre possa representar
Jesus.
Outro aspecto que se destaca é o fato de o Padre Ponte ser casado e ter
filhos. Esse fato é considerado como normal para as pessoas da época, segundo
Riobaldo: “com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o
mundo achava trivial” (ROSA, 2001, p. 239). Esse fato pode levantar questões,
como a contradição dentro das doutrinas religiosas. Além disso, existem estudos que
levam a crer que Maria Madalena teria sido mulher de Jesus Cristo e gerado filhos
deste. Essa afirmação poderia ir ao encontro da hipótese de Maria do Padre
representar Maria Madalena e o Padre Ponte, Jesus.
O Padre Ponte era considerado como pessoa admirável, entretanto, “só por
verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma
mulher” (ROSA, 2001, p. 238). O termo “pecha” significa vício, defeito. Desse modo,
existe um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que as pessoas consideravam
normal o Padre ter mulher e filhos, também se diz que o padre possuía um defeito
“ele relaxava”. Logo depois dessa expressão vem a informação de que ele possuía
mulher e filhos. Pode-se aferir que gerar filhos era um defeito, um desvio de caráter
de Padre Ponte.
Outra pergunta vem à tona. Por que o Padre Ponte teria se torturado tanto
com as afirmações de Maria Mutema quanto à relação que ela supostamente teria
com ele? Isso leva à desconfiança que algo muito grave perturbava o padre. Podeira
ele realmente ter se envolvido com Maria Mutema? Então, não seria apenas uma
mentira de Maria Mutema? O Padre teria “relaxado” novamente? São perguntas que
sempre serão deixadas para reflexão.
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Analisando as circunstâncias em que o caso foi narrado por Jõe Bexiguento e


as confrontado com o caso de Maria Mutema, pode-se inferir que ele serve, de
algum modo, como alento para as inquietações de Riobaldo. Apesar dos
assassinatos que cometeu, Maria Mutema é perdoada e considerada quase como
uma santa, mediante o arrependimento. De alguma forma esse caso vem como
resposta de Jõe Bexiguento em relação às duras e ásperas perguntas que Riobaldo
lhe faz. Se Maria Mutema continua de certa maneira do lado de Deus, os jagunços
também possuem essa oportunidade.
Além disso, fica clara a ilogicidade dos processos religiosos em que se
perdoa ou condena alguém. Dependendo do ponto de vista que se toma em relação
aos acontecimentos, pode-se considerar uma crítica à cultura religiosa, em que,
segundo a visão apresentada no caso, pode-se cometer qualquer crime e, depois do
arrependimento, ganhar o perdão, tornando-se até um santo ou uma santa.
Entretanto, tomando-se um ponto de vista menos crítico, o caso pode reforçar as
crenças religiosas, pois ela se arrependeu, aparentemente, de modo verdadeiro e
assim ganhou o perdão. Em todo o caso, é a opinião popular que define o veredito,
em nenhum momento se menciona o nome de Deus como o juiz dos atos de Maria
Mutema.
Desse modo, Guimarães Rosa apresenta a força da palavra como
transformadora do mundo, e clarifica como se dão as relações entre o
transcendental e o humano, sendo o humano fator preponderante das decisões.
Maria Mutema é perdoada segundo a opinião popular. Pode-se analisar o ato de
contar de Riobaldo também como maneira de absolvição dos atos praticados.
Riobaldo procura entender o que se passou em sua vida, mas também procura se
livrar dos fantasmas que o perturbam. Além disso, ele parece temer o seu futuro,
talvez o temor do destino depois da morte, sendo assim a absolvição seria
importante para ele.
Porém, existem situações mágicas e enigmáticas, como por exemplo, o
pressentimento, a clarividência do missionário em relação aos atos criminosos de
Maria Mutema. Sendo assim, não se trata de um caso em que o racional impera, o
caso mantém características místicas que podem ser creditadas à tradição oral.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contista por excelência, Guimarães Rosa não deixa os contos de lado


quando escreve seu único romance: Grande Sertão: Veredas. O romance é
permeado por contos, e eles enriquecem a obra com seus efeitos de significado.
Esses contos, que também podem ser chamados de contos populares, casos,
estórias ou parábolas, surgem já em grande número, quando Riobaldo começa a
contar sua história ao doutor viajante. Por meio deles, Riobaldo expressa suas
ideias, opiniões, reflexões e inquietações sobre o mundo e sobre as pessoas. Os
casos são ilustrações de seu pensamento, exemplos que esboçam suas ideias, e
são apresentados muitas vezes como episódios presenciados por Riobaldo, desse
modo são contados como fatos e não como ficção. Sendo fato, as argumentações
de Riobaldo ganham status de verdade.
Podem ser classificados como contos, pois se observou que possuem
autonomia formal e caracteríscas próprias do conto. Eles poderiam ser retirados do
romance e, mesmo assim, continuariam sendo contos com significados, ou seja,
eles possuem independência.
Entretanto, eles ganham outros significados quando analisados em relação ao
todo da obra. Relacionando-os à história de vida de Riobaldo, percebe-se a forte
ligação que possuem com o contexto da obra. Isso pode ser observado em todos os
casos encontrados em Grande Sertão Veredas. Desse modo, pode-se concluir a
dupla condição dessas estórias, ou seja, condição de estória autônoma e estória
condicionada ao todo da obra.
Os três casos analisados, Aleixo, Valtêi e Maria Mutema puderam demonstrar
bem como os casos, de modo geral, estão ligados às conjecturas de Riobaldo em
relação às questões metafísicas e aos temas ligados a Deus e ao diabo, bem e mau.
Nos três casos citados, Riobaldo investiga, provoca e “cavoca” o solo em que
questões existenciais, religiosas e culturais estão bem compactadas. Riobaldo faz a
descompactação, revolvendo esse solo, misturando tudo, resultando em
complexidade e paradoxo, em que tudo é e não é, Deus e diabo podem ser
considerados faces da mesma moeda.
O ser humano é apresentado como ser complexo, em que hora é influenciado
pelo meio, hora toma suas próprias decisões, hora mágicos acontecimentos o
assaltam, e assim a sua vida e seu comportamento podem se alterar de modo
36

radical durante a sua travessia. Nesse grande romance, as fórmulas prontas são
desintegradas e tenta-se narrar a natureza humana, o inenarrável.
Quando Rosa tenta narrar o inenarrável ele se utiliza de uma linguagem
novíssima, em que elementos primitivos e eruditos, bem como estrangeirismos se
fundem a uma boa dose de imaginação criativa do autor. Uma linguagem que, de
certa maneira, reflete essa complexa missão de narrar uma vida. Uma linguagem
fragmentada como a própria história que Riobaldo conta. A história não é linear,
Riobaldo não se prende a continuidades temporais. Ele conta sua história de modo a
expressar o que lhe é importante e também o que lhe incomoda. Ele quer entender o
que foi, o que é, e o que será. E, por meio dessa linguagem tão especial, Riobaldo
vai perseguindo as lembranças e ideias, tentando esclarecer às dúvidas que o
atormentam e, certamente, escondendo do leitor aquilo que lhe convém.
Esse ato de contar lhe traz alívio, e como no conto de Maria Mutema,
Riobaldo procura pela absolvição de seus pecados. Por meio da palavra Riobaldo
reconstrói-se como pessoa, reconstrói o mundo e as pessoas. A palavra passa a ser
a origem, e por meio dela um cosmos é construído. Esse é um poder individual,
porém que se reflete no coletivo. Como exemplo, pode-se perceber como Riobaldo
alterou o mundo à sua volta por meio da palavra ainda quando era um jagunço. Por
meio da palavra, ele se tornou chefe dos jagunços, por meio dela, se manteve vivo,
e por meio dela, conseguiu a “sombra” na velhice, como fazendeiro. Por meio da
palavra é que Riobaldo conta a sua história, ele nomeia e expressa situações e
sensações, que antes não lhe era possível.
Guimarães Rosa recupera a tradição oral de se contar casos. São histórias
que se assemelham àquelas de quando o narrador não estava interessado em
informar. Criava-se uma fábula de maneira coletiva, e esta era passada de geração
a geração. Em seu conteúdo eram encontrados ensinamentos e exemplos, porém o
leitor é que tirava as suas conclusões, a interpretação possuía certa liberdade. O
tempo era mítico, tempo sem data específica, tempo em que o material está unido
ao espiritual.
Guimarães Rosa, por meio do personagem Riobaldo, recupera essa tradição
oral primitiva, porém, também se revela como uma narrativa moderna. O individual é
o ponto de partida da história, pois Riobaldo tenta contar suas impressões. É,
unicamente, por meio da fala de Riobaldo que apreendemos esse mundo de Grande
Sertão: Veredas. As características desse romance são extremamente modernas,
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pois possui linguagem livre de padrões pré-estabelecidos, e os temas semânticos


ganham a complexidade e a intimidade psicológica que os modernos da geração de
Guimarães Rosa, como por exemplo, a escritora Clarice Lispector, soube aproveitar.
A narrativa de Riobaldo ensina, como na tradição oral, porém, ensina o contraditório,
ensina a dúvida.
Grande Sertão Veredas é uma obra regional e universal. Guimarães Rosa se
aproveita dessa riquíssima fonte regional da literatura brasileira e a leva ao nível de
universal. O sertão é a região brasileira de Minas e Bahia, mas também é qualquer
região. Os dramas humanos narrados lá podem ser dramas humanos vivenciados
em qualquer região do globo, de qualquer tempo.
Grande Sertão: Veredas é conto, caso, estória, parábola, romance, é regional
e universal, primitivo e contemporâneo, místico e racional, coletivo e individual,
humano e transcendental, é infinito.
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REFERÊNCIAS

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Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
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Cadernos de Literatura Brasileira: João Guimarães Rosa, n. 20-21. Rio de
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LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo: ou a polêmica em torno da ilusão.
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