Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
CURITIBA
2012
ELTON LUIZ CAXAMBÚ
CURITIBA
2012
ELTON LUIZ CAXAMBÚ
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Dr. Marcelo Fraz
PUCPR
_____________________________________
PUCPR
_____________________________________
PUCPR
Agradeço a meu colega Bernardo por ter me aberto os olhos e assim me ajudado a
decidir por analisar a obra Grande Sertão: Veredas, neste trabalho. Agradeço,
também, as minhas colegas Jéssica Camila e Juliana Corrêa, pelas conversas sobre
literatura, que auxiliaram muito na definição dos rumos do trabalho. Agradeço a
meus pais pelo suporte monetário e psicológico durante este árduo, mas prazeroso,
período de estudo. E, agradeço a minha namorada Fernanda, pela paciência e apoio
durante todo o período de minha formação acadêmica.
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................7
2 O HOMEM E SUA OBRA.......................................................................................10
2.1 A OBRA 11
2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO 13
2.3 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS DE GUIMARÃES ROSA
15
2.4 GRANDE SERTÃO: VEREDAS 16
2.4.1 Duas travessias 17
3 AS NARRATIVAS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS........................................20
4 A ANÁLISE DAS HIISTORIETAS DENTRO DA HISTÓRIA.................................25
4.1 ALEIXO 26
4.2 VALTÊI 29
4.3 MARIA MUTEMA 31
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................35
REFERÊNCIAS...........................................................................................................38
7
1 INTRODUÇÃO
narrativa e contribuir para que os leitores de Grande Sertão: Veredas tenham mais
uma fonte de análise para a compreensão dessa incrível “estória”.
Como base teórica para a análise dos contos paralelos, será apresentada
pesquisa sobre teorias a respeito de gêneros narrativos diversos, como contos,
parábolas, apólogos e outros, ou seja, será explorada a arte de contar histórias. E
dentro desse contexto, a arte de tradição popular. E ainda, a recuperação da
tradição oral de contar histórias, pelas obras modernas. Em Grande Sertão: Veredas
o discurso coloquial é evidente, sendo que a linguagem de Riobaldo e a contagem
das historietas remetem à tradição oral, que é uma forte característica cultural da
região sertaneja daquele tempo.
As histórias paralelas encontradas em Grande Sertão se enquadram na
classificação de conto popular. São pequenas narrativas classificadas como histórias
exemplares e que têm sua origem na tradição da narrativa oral de uma região. Em
Grande Sertão: Veredas é a região que corresponde, conforme as veredas pelas
quais Riobaldo andou, ao sul da Bahia, norte de Minas Gerais, e norte e centro-
oeste de Goiás. É o mundo de Riobaldo. Também é parte do mundo do autor
Guimarães Rosa, que nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, e que se refere à
região de nascimento como referência para tudo que escreve. Em entrevista dada a
Günter Lorenz (1995, p. 27-61), Gênova, em 1965, afirmou: “É que eu sou, antes de
mais nada, este ‘homem do sertão’ ”. Rosa trabalhou como médico no interior de
Minas, e conta-se que ele aceitava como pagamento pelas consultas a contagem de
casos. Os clientes lhe contavam histórias curiosas da região em troca de serviços
médicos. Essa foi uma das maneiras de que Rosa se utilizou para construir o seu
vasto acervo de casos, que depois se constituíram como matéria para muitas de
suas obras.
A fonte teórica para este estudo são as obras que dizem respeito à análise do
romance Grande Sertão: Veredas e obras que contemplam a teoria literária. Os
principais aspectos das obras pesquisadas serão: a análise das histórias paralelas
inseridas na história principal; a característica popular dessas histórias; aspectos da
narrativa aplicada na obra e da linguagem particular utilizada por Guimarães Rosa.
10
Projetava na gravatinha
A quinta face das coisas
Inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para forçar
o que não ousamos compreender?
[...]
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.
2.1 A OBRA
Ele estreou em 1936, com um livro de poemas intitulado Magma, o que é uma
curiosidade, pois Rosa é conhecido por seus livros de contos e por um único
romance. Magma lhe rendeu um prêmio no Concurso Literário da Academia
Brasileira de Letras, e recebeu valorosos elogios. Misteriosamente, Rosa nunca
publicou o livro, que seria publicado apenas 60 anos depois, em 1997, muito tempo
após a sua morte.
Na fase inicial de sua ficção, Rosa continuou escrevendo, porém, agora, um
livro de contos. Usando o pseudônimo de Viator, e intitulando seu livro simplesmente
de Contos, Guimarães Rosa concorre a mais um prêmio, o prêmio Humberto de
Campos, da Livraria José Olympio Editora, em 1936. Contudo, Graciliano Ramos,
um dos grandes escritores brasileiros e um dos jurados, vota contra o livro de Rosa,
com a justificativa de ser um livro irregular, com muitos altos e baixos. Em 1945, o
livro Contos é reescrito e reformulado por Rosa, quatro contos são excluídos, os
demais são postos em outra ordem e alguns ganham novos nomes. O título passa a
ser Sagarana e é publicado em 1946, dez anos depois de Contos.
Considerada como a primeira obra desse grande escritor, Sagarana é muito
bem recebida pela crítica e recebe o Prêmio Felipe d’Oliveira. Seu segundo livro é
publicado em 1952, com o título Com o Vaqueiro Mariano. Porém, são publicados
apenas 110 exemplares, sendo posteriormente republicado no livro Estas Estórias.
Rosa, em 1955, anuncia as obras Corpo de Baile e As Veredas Mortas, ambos são
publicados em 1956. São livros densos. Corpo de Baile é composto por 7 novelas,
em 2 volumes, que somam 822 páginas. As Veredas Mortas ganha novo título e
passa a se chamar Grande Sertão: Veredas, com mais de 500 páginas, único
romance de Guimarães Rosa, e tema central deste trabalho. Livros que
definitivamente consagraram o autor como um dos maiores prosadores da literatura
brasileira.
O próximo a ser publicado é Primeiras Estórias, 1962, um livro que reúne 15
contos publicados anteriormente em periódicos e 6 contos inéditos. Em 1967,
Guimarães Rosa publica, ainda em vida, seu último livro de contos, Tutaméia, que
possui o subtítulo de Terceiras Estórias.
Rosa morre em 1967. Nos anos posteriores à sua morte são lançados os
livros Estas Estórias, 1969, e Ave Palavra, 1970. Ambos são reuniões de contos
publicados anteriormente em periódicos. Também é publicado postumamente o livro
13
Magma, aquele livro de poemas que fora engavetado por Guimarães Rosa,
publicado somente em 1997 (COSTA, 2006, p. 10).
No Brasil, a política do café com leite, comandada por São Paulo e Minas,
vigente até 1930, é desmantelada em meio a uma crise internacional que atinge o
comércio do café. Getúlio Vargas assume o poder em 1930 como chefe de um
governo provisório. Em 1937, instala-se a ditadura do Estado Novo, um governo
também autoritário, que dura até 1945, quando Vargas renuncia. Na era Vargas é
iniciada uma política de incentivo à industrialização do país e à entrada de capital
norte-americano em lugar do capital inglês (NICOLA, 1987, p. 221).
Na segunda fase, 1930, os ânimos já estão mais amenos do que os dos
fundadores do modernismo. O rigor formal é revalorizado ao lado das novas formas
estéticas de 1922, e se dá um grande retorno às raízes brasileiras. Todos esses
acontecimentos influenciam a temática dos artistas dessa fase, eles passam a
discutir questões existenciais, em que se dá importância para as relações do eu com
o mundo. A denúncia social se faz presente e existe a busca pelo homem brasileiro.
Essa busca vai resultar em uma literatura em que o regionalismo é marcante, e
explora a relação do homem com sua região e sociedade (NICOLA, 1987, p. 244).
Existe um destaque para os escritores nordestinos, alguns dos principais
representantes são: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e
Jorge Amado (CASTELLO, 1999, p. 269). Eles vivenciaram a passagem de um
Nordeste medieval para uma realidade capitalista e imperialista (NICOLA, 1987, p.
244). Essa característica é importante para o desenvolvimento deste estudo, embora
ele não seja nordestino, pois se reflete na obra de Guimarães Rosa. Em Grande
Sertão: Veredas é notória essa transição do mundo sertanejo arcaico, selvagem,
para o mundo moderno, “civilizado”. Essa travessia ocorre na vida de Riobaldo, que
passa de jagunço selvagem, para fazendeiro bem comportado.
O fim da segunda fase modernista acontece juntamente com o fim da
Segunda Guerra Mundial e começo da Guerra Fria, em 1945. Getúlio Vargas
renuncia, e é o fim da ditadura. Inicia-se a redemocratização brasileira. A literatura
brasileira passa por profundas transformações. As temáticas dos autores da década
de 30 são aprofundadas e a prosa ganha características de uma literatura mais
intimista, introspectiva em que o fator psicológico é fundamental (NICOLA, 1987, p.
268). Nessa terceira fase literária, aproveitam-se as evoluções precedentes e se
valoriza ainda mais a linguagem em questões formais, porém, tanto os padrões
métricos e rítmicos consagrados, como a renovação formal da linguagem são
valorizados. Os temas passam a ser mais intimistas, psicológicos, metafísicos e
15
jesus, arredado do arrocho de autoridade [...] O sertão está em toda parte”. Além
disso, o Sertão é um espaço existencial, representação do mundo onde o sujeito se
constrói em sua travessia individual.
Voltando à história de Riobaldo. Quem foi Riobaldo? Essa é a pergunta que o
próprio Riobaldo tenta responder quando narra sua vida ao doutor viajante. Riobaldo
havia supostamente feito um pacto com o diabo, essa questão, entre outras, fazem
com que ele se questione sobre seus atos e motivos, e ainda sobre o que lhe
acontecerá no futuro. Enquanto conta sua história ele a reescreve e procura
entender o que antes não lhe era possível.
beleza dessa figura impressionante, entra para o mesmo grupo e lá, aos poucos, se
transforma em jagunço e depois em chefe de jagunços.
Reinaldo é Diadorim, personagem pelo qual Riobaldo tem um amor proibido,
e é ele que motiva Riobaldo a continuar no grupo. Riobaldo descobre que Diadorim
é mulher apenas depois que ela é morta, no fim da guerra, no fim da narrativa,
quando ela entra em combate corpo a corpo com Hermógenes, o traidor, aquele que
assassinou Joca Ramiro, antigo chefe dos jagunços e pai de Diadorim. Ela e
Hermógenes morrem durante este último e mais importante combate do romance.
Hermógenes também é parte das motivações que levam Riobaldo a fazer o
pacto com o diabo. Riobaldo quer enfrentar esse homem, o mais perverso e valente
de todos os jagunços. E, como os jagunços acreditavam que Hermógenes havia
feito o pacto, para derrotá-lo seria necessário seguir o mesmo caminho.
Depois da morte de Diadorim, Riobaldo casa-se com Otacilia, filha de
fazendeiro, herda as terras do padrinho Selorico Mendes e deixa de ser chefe de
jagunços, passando a ser também um fazendeiro, que é a sua situação enquanto
está narrando a história.
As transformações na vida de Riobaldo são constantes e acontecem
lentamente. Esse é um dos grandes temas da obra. Existe um trecho da fala de
Riobaldo que exemplifica bem esse processo: “O senhor... Mire veja: o mais
importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam” (Rosa, 2001, p. 39). “Tudo é e não é” (p. 27). Riobaldo vai se
transformando com o passar dos anos, vai amadurecendo e ganhando poder. É o
processo de formação de um homem, que vai se metamorfoseando, sendo que a
questão do bem e do mal está misturada em sua personalidade e em seus atos. Ele
é um homem complexo, bom e mau ao mesmo tempo.
Riobaldo também pode ser visto como o símbolo da transformação do Brasil
arcaico em moderno. A história de Riobaldo revela a situação política instável da
época e a transformação de um Brasil que desejava se tornar moderno e capitalista,
como é a travessia da vida do próprio Riobaldo.
A segunda travessia de Riobaldo é a da linguagem. Desde sua idade mais
tenra até a sua velhice, passa por uma evolução sensível na questão linguística.
Riobaldo amadurece com a sucessão dos episódios de sua vida. E esse
amadurecimento está intimamente associado ao desenvolvimento da linguagem. No
19
início, ele é um jovem que parece ser levado pela força do vento. Depois, vai
aprendendo com a vida, e passa a refletir, tornando-se alguém com um domínio da
linguagem, que o possibilita manipular o mundo à sua volta para conseguir o que
deseja. Ao final, é um homem que ainda está em evolução linguística e reconta sua
história tentando desvendar e nomear tudo que lhe foi importante e que era e ainda
é incompreensível. Entretanto, a experiência do recontar memorialístico do que
viveu mostra-lhe tanto o poder, como os limites da linguagem. Sua travessia no
plano do dizer é desafiadora e incerta. É preciso que ele se recrie pelo processo do
contar, e nem sempre essa recriação lhe traz felicidade.
Outro tema trazido por Riobaldo e que dá força metafísica ao romance são as
reflexões de Riobaldo sobre Deus e diabo. Riobaldo, durante sua narrativa, reconta
sua história com um sentimento claro de perturbação e culpa pelo que fez, e
questiona-se a todo o momento pelos motivos que o levaram àquelas “veredas”, e
tem medo. Apesar de conservar uma mentalidade cheia de crenças religiosas, não é
adepto de nenhuma religião e discorda de muita coisa que ouve em relação às
crenças religiosas.
Para explicar seus pontos de vista ao seu interlocutor, Riobaldo se utiliza de
diversas historietas. São casos que ele conta e que ilustram, simbolizam suas
afirmações e reflexões. São fábulas que ajudam a fortalecer seus argumentos.
Essas fábulas ou casos se assemelham aos casos que a tradição oral produziu.
Possuem a característica de passar valores e ensinamentos, porém à maneira de
João Guimarães Rosa. Em Grande Sertão: Veredas, diversos casos são
apresentados como pequenos contos independentes da história principal. No
capítulo 4 do trabalho serão analisados três desses casos narrados por Riobaldo.
20
(p. 33) e “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (p.
326).
Sendo o objetivo principal do trabalho, analisar o que foi classificado, até
então, de pequenos contos com autonomia formal, parábolas, casos, historietas,
contidos em Grande Sertão: Veredas, faz-se necessário compreender o que são
contos, quais as diferentes formas de expressão desse gênero, e também
compreender o conceito de outros gêneros de narrativas curtas como a fábula, a
parábola, o conto popular, e quais são os critérios que os diferenciam.
As origens do conto são remotas, pois ele advém das tradições de se contar
histórias, ou seja, está na origem da arte literária. Contos podem ser encontrados na
Bíblia, em textos de origem anterior a Jesus Cristo, como os episódios de Salomé,
Rute, Judite. Também existem exemplares escritos no antigo Egito e na Antiguidade
Clássica, como exemplo desta, têm-se trechos da Odisséia, de Ovídio e as fábulas
de Fedro e Esopo, entre outros. Entretando é no Oriente que se podem encontrar os
exemplares mais autênticos: as Mil e uma Noites, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa,
Simbad, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, originários da Pérsia e da Arábia. Do
mesmo modo que a Pachalantra, Jataka, e outros são originários da Índia.
(MOISÉS, 1974, p. 99)
O emprego do vocábulo “conto” nem sempre esteve vinculado ao gênero
literário. Na Idade Média, era usado para se referir à enumeração ou relato de
acontecimentos. Em lugar de conto eram usados os termos “fábula”, “apólogo” ou
simplesmente “exemplo” (MOISÉS, 1974, p. 98). Os conceitos de cada gênero
citado serão apresentados mais adiante.
De acordo com as transformações históricas do conto, no século XVI, a
palavra “conto” designava também as novelas de origem italiana. Porém adquire
sentido específico e o termo é acrescentado ao título de diversas obras da época,
como por exemplo, o título da obra de Noël du Fail, Les baliverneries ou contes
moraux, 1548, e o livro Contes et discours d’Eutrapel, 1586, de Juan de Timoneda. É
a partir do século XIX que o conto passa a ter conceito bem definido e próprio,
distinguindo-se dos demais (MOISÉS, 1974, p. 98).
O conto, de maneira geral, diferencia-se de outros gêneros narrativos, pois
possui um único “alvo”, que é um momento de importância, e em volta do qual os
outros elementos se desenrolam. Diferentemente do romance, personagens, tempo,
espaço e enredo possuem importância secundária ou nenhuma importância, sendo
23
que esses elementos trabalham no conto, para que nele se estabeleça um conflito.
Sendo assim, o conto é mais concentrado e mais curto, por exemplo, do que o
romance (MOISÉS, 1967, p. 98).
Porém, pode-se fazer distinção entre conto e conto popular. O conto é
considerado obra de um único autor, e obra artística, em que se tem o objetivo de
fazer arte (MOISÉS, 1967, p. 33). O conto popular é caracterizado principalmente
por ser um gênero que se desenvolveu na tradição oral dos povos. As histórias são
criadas de maneira coletiva e passadas de geração a geração. Esses “casos”, outro
termo de nominalização do conto popular, têm como elemento, a transmissão de
conhecimentos e concepções éticas, tidos como naturais pelas pessoas da
comunidade. Eles transmitem o que se deveria e o que não se deveria fazer, e
demonstram a diferença entre o bem e o mau. Esses ensinamentos eram
disseminados por meio de exemplos contidos nos casos.
A religião sempre esteve presente nas sociedades humanas e ela não ficaria
de fora. Muitos contos populares possuem conotação religiosa e defendem seus
preceitos. De acordo com Luzia de Maria (1992, p. 12) ”Através do contar se articula
uma fundamentação religiosa, quando os mistérios divinos, transcendentais, os
"feitos dos deuses" se misturam a simples episódios imaginativos”. Dessa forma, por
meio da contagem oral das histórias, esse conteúdo religioso e cultural era
preservado e incrementado pelas futuras gerações.
Os contos populares também podem ser considerados como um veículo em
que se descarrega uma carga imaginativa. É por meio deles que as pessoas podiam
expressar o que pensavam e também expressar e exercitar a imaginação, o que no
dia-a-dia, devido às atividades rotineiras como a obrigação do trabalho e do cuidado
com casa e filhos, isso não era possível. Essa necessidade básica do ser humano,
que é sonhar e também idealizar um mundo melhor, poderia ganhar alento na
criação das histórias.
As fábulas, parábolas e apólogos também possuem raízes na tradição oral,
sendo que os contos populares podem adquirir essas formas. Todos os gêneros
citados possuem uma característica muito importante que os aproxima, eles
transmitem ensinamentos morais. Porém, podem-se fazer distinções entre eles.
A fábula é uma narrativa curta em que, além da moral implícita ou explícita,
geralmente é protagonizada por animais irracionais, entretanto os animais são
dotados de racionalidade, pois personificam ações humanas. O comportamento
24
maioria das historietas paralelas existentes dentro da obra, porém, podem ainda
existir diversas outras.
Esses casos, ou estórias, não estão presentes na obra por acaso, ou seja,
não são acessórios com o objetivo de enfeitar a história. Eles possuem um porquê,
como tudo que Guimarães Rosa escreve em suas obras. O porquê desses casos,
seus significados e os efeitos que causam na história de Riobaldo são os objetivos
principais desta análise. Entretanto, como pode ser observado, existe um grande
número de historietas espalhadas pela obra, e como esse trabalho não comporta o
estudo de todas elas, foram selecionadas apenas três: a história do Aleixo, do
menino Valtêi e o Caso de Maria Mutema.
4.1 ALEIXO
diabo nenhum” (p. 26), e sobre a relação do mundo natural com o sobrenatural, bem
e mal. Existem metáforas que remetem também à natureza humana, como por
exemplo, o da mandioca mansa que se torna brava e vice versa, entre outras
metáforas, envolvendo o mundo animal e vegetal. Essas reflexões de Riobaldo o
levam à uma frase categórica que reflete os paradoxos existentes na obra “Tudo é e
não é” (p. 27).
Essa senteça e mais algumas como, por exemplo: “Quase todo mais grave
criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-
seus-amigos!” (ROSA, 2001, p. 28), que Riobaldo introduz a estória do Aleixo.
Resumindo a estória do Aleixo, pode-se dizer que ele era um homem muito mau e
que espalhava suas maldades pelo lugar. Aleixo era pai de quatro crianças: três
meninos e uma menina. Possuía uma casa e perto dela uma espécie de tanque “um
açudinho” (ROSA, 2001, p. 28) no qual criava traíras, um tipo de peixe. Quando um
velho por lá passou pedindo esmolas, Aleixo o matou, sem nenhum motivo aparente,
“por graça rústica” (p. 28), ou “só pra ver alguém fazer careta” (p. 28). Passado
aproximadamente um ano depois da morte do velho, os filhos do Aleixo adoeceram
seriamente de “Andaço de sarampão” (p. 28). Eles se recuperaram. Porém, os olhos
avermelharam enormemente e todos eles acabaram ficando totalmente cegos.
Aleixo mudou seu comportamento. Passou a viver conforme os desígnios de Deus,
“suando para ser bom e caridoso em todas as horas da noite e do dia” (p. 28). O
próprio Aleixo dizia que era um homem de sorte, pois Deus quis ter pena dele, e
estava mais feliz.
Riobaldo conta o caso e depois passa a refletir sobre ele, e afirma: “eu ouvi, e
me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo
aqueles meninozinhos tinham?!” (ROSA, 2001, p. 28). Riobaldo não aceita o fato de
um castigo de Deus, enviado pelas ações do Aleixo, cair sobre as crianças.
Logo depois Riobaldo apresenta as ideias de Compadre Meu Quelemém
sobre o castigo, e Quelemém reprova Riobaldo, afirmando que em outra vida os
meninos deveriam ter causado malfeitorias. Porém, Riobaldo continua sem aceitar o
fato e supõe que se isso for possível o “inimigo de morte pode vir como filho do
inimigo” (ROSA, 2001, p. 29).
Essa é a frase que introduz o caso do menino Valtêi, que é contado por
Riobaldo logo em seguida e possui uma estreita ligação com o caso do Aleixo.
28
4.2 VALTÊI
A estória de Valtêi (ROSA, 2001, p. 29) e sua família reforça ainda mais as
ideias e pensamentos de Riobaldo. Nesse caso, Riobaldo revela a história do
menino que desde muito pequeno tinha uma personalidade considerada pela família
e pelos moradores da comunidade como uma personalidade dirigida ao mal, pois ele
“mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do
fundo das espécies de sua natureza” (p. 29). Valtêi era menino levado e gostava de
maltratar animais pequenos e também pessoas, como aconteceu de ele cortar a
perna de uma escrava com caco de vidro. Para “educar” o menino, seu pai, Pedro
Pindó, e sua mãe começaram a surrar o menino violentamente e aplicar diversos
castigos, como amarrá-lo nú e com fome, em mês de frio, a uma árvore. As surras e
os castigos passaram a ter hora marcada e começaram a servir de exemplo, pois os
vizinhos eram chamados para assistçi-los. Segundo Riobaldo, os pais de Valtêi
acabaram sentindo prazer em castigar o filho. O menino enfraqueceu, adoeceu
gravemente de tuberculose e estava próximo da morte.
Depois de contar o caso do menino Valtêi, Riobaldo recorre também a
Compadre Meu Quelemém e duvida de sua explicação para o ocorrido, segundo a
qual Valtêi teria sido um homem mau em vida passada. Riobaldo ainda acrescenta
que quando Valtêi estava chorando, sofria igual a um menino bonzinho. E deixa uma
pergunta no ar: “e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que
foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí tod os esbarram” (ROSA, 2001, p.
30).
A estória de Valtêi remete ao mesmo paradoxo de Aleixo. Quem é o mau da
estória, Valtêi ou seus pais? Mais uma vez se vê que o bem pode vestir-se de mau e
o mau pode vestir-se de bem, ou seja, segundo uma frase do próprio Riobaldo:
“Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o
mal, por principiar! Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o
concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”
(ROSA, 2001, p. 32). Riobaldo faz referência aos atos que vestidos com roupa do
30
bem podem causar danos terríveis. Um exemplo seria o ato de Pedro Pindó de
castigar o filho, querendo o bem já estava fazendo o mal.
Esse é mais um aspecto da natureza humana, os homens pensam de
maneiras diferentes e muitas vezes querem impor a sua maneira de pensar e agir às
outras pessoas e assim causam danos. Isso acontce, por exemplo, com os
religiosos que tentam impor a sua “verdade” aos demais, gerando desrespeito e
violência. As discórdias podem ser causadas por esse princípio, como por exemplo,
fazendo uma associação livre, tem-se a guerra de Hitler, a segunda Guerra Mundial.
Hitler pensava de uma maneira, ele possuía uma visão de mundo e a queria impor
ao mundo. Para Hitler, suas atitudes eram as melhores possíveis para se atingir o
objetivo de benefício próprio e de “seu povo”.
Mais uma vez as doutrinas religiosas são questionadas, e Riobaldo tenta
entender o processo, mas continua com dúvidas e não chega a uma definição
perfeita, a não ser de que tudo é e não é. Entretanto, Riobaldo acreditava que as
religiões e as orações faziam bem para a humanidade, segundo ele “todo-o-mundo é
louco” (ROSA, 2001, p. 32), e seria a religião, seja ela católica, protestante, espírita
ou outra qualquer, a cura da loucura.
Pode-se observar o caso de Valtêi como um “veículo” para Riobaldo investigar
o próprio passado de jagunço, quando agiu de modo “mau”, matando, estuprando, e
outros atos considerados no mínimo como inadequados pela sociedade e pelos
dogmas religiosos. Entretanto, Riobaldo apenas executava o que era normal,
comum, para as pessoas da região e da época. Riobaldo não se sentia como um
malfeitor, ele era mais um, fazendo o que tinha de fazer. Desse modo, Riobaldo
revive sua vida por meio da memória e ao mesmo tempo tenta entender o que era e
o que fez, também tentando justificar seus atos e fazer com que a aflição
desapareça. Pois Riobaldo, mesmo dizendo que não sentia culpa ou remorso, uma
grande inquietação sobre seus atos passados é facilmente observável. No seguinte
trecho, Riobaldo menciona: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso
aquietar meu temer de consciência, que sendo bem assistido, terríveis bons-
espíritos me protegem” (ROSA, 2001, p. 31).
31
é que Jõe Bexiguento narra o caso de Maria Mutema a Riobaldo, que depois o narra
ao seu visitante misterioso.
Maria Mutema é mulher comum sertaneja. Certo dia, sem motivo aparente,
mata o marido, depois que este dorme, introduzindo chumbo derretido em seu
ouvido. Depois do acontecido, Maria Mutema age de maneira tradicional. Durante e
depois do velório, veste-se de preto, pouco fala e pouco chora. Entretanto, uma
mudança foi percebida pelo povo da região, pois Maria Mutema passou a frequentar
a igreja, como nunca, e de três em três dias se confessava ao Padre Ponte. As
pessoas percebem que padre Ponte não está de acordo com a confissão de Maria
Mutema, pois ele a aborda com sermões severos e enérgicos. O tempo passa e
Padre Ponte continua sua obrigação de ouvir Maria Mutema, porém cada vez mais
com a aparência física enfraquecida e uma grande tristeza em seu semblante. Padre
Ponte vem a falecer e Maria Mutema deixa de frequentar a igreja. Outros padres
vieram e Maria Mutema jamais retornou à igreja.
Depois de anos, missionários estrangeiros com sermões e fé de muita força e
energia chegam à paróquia e começaram a pregar na igreja. Em véspera de “festa
de comunhão geral e glória santa” (ROSA, 2001, p. 240), Maria Mutema entra na
igreja e, imediatamente, o missionário que estava pregando presentiu a presença
dela. Depois, com muita energia e aparentando um grande ódio, deu ordens para
que a mulher que havia entrado saísse e que ela o fosse esperar no cemitério, onde
dois homens haviam sido enterrados. Maria Mutema chora e em estado de enorme
desespero pede perdão, confessando os crimes que cometera. Confessa que
matara o marido com o chumbo. Em seguida, fala que durante as confissões ao
Padre Ponte, disse a ele, que havia realizado o assassinato por amor ao Padre, o
que o levou à profunda tristeza e à morte.
Ela é presa na “casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de
joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para
cuspir em sua cara e dar bordoada” (ROSA, 2001, p. 242). O povo a perdoou,
davam-lhe palavras de alento e juntos rezavam. Trouxeram a mulher do Padre
Ponte, a Maria do Padre, e seus filhos, para que a perdoassem. O grande sofrer e
arrependimento de Maria Mutema causavam “bem-estar e edificação”, e “diziam que
Maria Mutema estava ficando santa” (p. 243). Essa função de “catarse”, do
sofrimento de um que alivia a dor de todos é algo que lembra uma prática comum na
33
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
radical durante a sua travessia. Nesse grande romance, as fórmulas prontas são
desintegradas e tenta-se narrar a natureza humana, o inenarrável.
Quando Rosa tenta narrar o inenarrável ele se utiliza de uma linguagem
novíssima, em que elementos primitivos e eruditos, bem como estrangeirismos se
fundem a uma boa dose de imaginação criativa do autor. Uma linguagem que, de
certa maneira, reflete essa complexa missão de narrar uma vida. Uma linguagem
fragmentada como a própria história que Riobaldo conta. A história não é linear,
Riobaldo não se prende a continuidades temporais. Ele conta sua história de modo a
expressar o que lhe é importante e também o que lhe incomoda. Ele quer entender o
que foi, o que é, e o que será. E, por meio dessa linguagem tão especial, Riobaldo
vai perseguindo as lembranças e ideias, tentando esclarecer às dúvidas que o
atormentam e, certamente, escondendo do leitor aquilo que lhe convém.
Esse ato de contar lhe traz alívio, e como no conto de Maria Mutema,
Riobaldo procura pela absolvição de seus pecados. Por meio da palavra Riobaldo
reconstrói-se como pessoa, reconstrói o mundo e as pessoas. A palavra passa a ser
a origem, e por meio dela um cosmos é construído. Esse é um poder individual,
porém que se reflete no coletivo. Como exemplo, pode-se perceber como Riobaldo
alterou o mundo à sua volta por meio da palavra ainda quando era um jagunço. Por
meio da palavra, ele se tornou chefe dos jagunços, por meio dela, se manteve vivo,
e por meio dela, conseguiu a “sombra” na velhice, como fazendeiro. Por meio da
palavra é que Riobaldo conta a sua história, ele nomeia e expressa situações e
sensações, que antes não lhe era possível.
Guimarães Rosa recupera a tradição oral de se contar casos. São histórias
que se assemelham àquelas de quando o narrador não estava interessado em
informar. Criava-se uma fábula de maneira coletiva, e esta era passada de geração
a geração. Em seu conteúdo eram encontrados ensinamentos e exemplos, porém o
leitor é que tirava as suas conclusões, a interpretação possuía certa liberdade. O
tempo era mítico, tempo sem data específica, tempo em que o material está unido
ao espiritual.
Guimarães Rosa, por meio do personagem Riobaldo, recupera essa tradição
oral primitiva, porém, também se revela como uma narrativa moderna. O individual é
o ponto de partida da história, pois Riobaldo tenta contar suas impressões. É,
unicamente, por meio da fala de Riobaldo que apreendemos esse mundo de Grande
Sertão: Veredas. As características desse romance são extremamente modernas,
37
REFERÊNCIAS
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
2006.