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Um breve histórico
Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles
são negros.
Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros
(Henriques, 2001).
Não era possível imaginar as propostas de ação afirmativa num país onde há pouco
tempo se negava os indícios de preconceito étnicos e de discriminação racial. Em
dezenas de anos os movimentos sociais negros lutaram duramente para arrancar
da voz oficial brasileira, a confissão de que esta sociedade é também racista.
Embora o racismo esteja ainda muito vivo na cultura e no tecido social brasileiro, a
voz oficial reagiu há pouco tempo aos clamores dos movimentos negros, como bem
ilustrado pelo texto do “Relatório do Comitê Nacional Para a Reparação da
Participação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o
Racismo, Discriminação racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, realizada em
Durban, África do Sul, de 31 de agosto a 07 de setembro de 2001. Nesse relatório,
no que tange às propostas em benefício da “comunidade” negra: “a adoção de
medidas reparatórias às vítimas do racismo, da discriminação racial e de formas
conexas de intolerância, por meio de políticas públicas específicas para a
superação da desigualdade. Tais medidas reparatórias, fundamentadas nas regras
de discriminação positiva prescritas na Constituição de 1988, deverão contemplar
medidas legislativas e administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos
direitos de igualdade racial previstos na Constituição de 1988, com especial ênfase
nas áreas de educação, trabalho, titulação de terras e estabelecimentos de uma
política agrícola e de desenvolvimento das comunidades remanescentes dos
quilombos”, - adoção de cotas ou outras medidas afirmativas que promovam o
acesso de negros às universidades públicas” (Ministério da Justiça, 2001: 28-30).
O que me espanta muito não é tanto a reação popular, facilmente explicável. O que
me surpreende é que as mesmas reações e os mesmos lugares comuns se
encontram na minha universidade, uma das mais importantes do Hemisfério Sul em
termos de produção de conhecimento científico e da reflexão crítica sobre as
sociedades humanas. Nessa universidade brotou a chamada Escola Sociológica de
São Paulo, da qual participaram eminentes estudiosos como Florestan Fernandes,
Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira, João Batista Borges
Pereira e tantos outros que iniciaram os estudos sobre o negro na ótica das
relações raciais e interétnicas, rompendo com a visão apenas raciologista e
culturalista de Nina Rodrigues e seu discípulo Arthur Ramos, entre outros.
1. Dizem que é impossível implementar cotas para negros no Brasil, porque é difícil
definir quem é negro no país por causa da mestiçagem, tendo como conseqüência
a possibilidade da fraude por parte dos alunos brancos que alegando sua afro-
descencência pelo processo de mestiçagem ocupariam o espaço destinado às
verdadeiras vítimas do racismo. Em primeiro lugar, não acredito que todos os
alunos brancos pobres possam cometer este tipo de fraude para ingressar na
universidade pública, por causa da força do ideal do branqueamento ainda atuando
no imaginário coletivo do brasileiro. Um racista essencialista, psicologicamente
convencido da superioridade de sua “raça” não troca de campo com tanta
facilidade. Muitos não aceitarão a troca, em nome do chamado orgulho da raça.
Conscientes desta dificuldade, alguns recorrem aos falsos princípios de democracia
advogando a introdução de uma flagrante injustiça contra brancos pobres se o
Brasil adotar cotas em favor da maioria de negros pobres. Se for fácil identificar os
alunos brancos pobres, por que o seria tão difícil para os alunos negros pobres?
Em segundo lugar, a identificação é uma simples questão de auto definição,
combinando os critérios de ascendência politicamente assumida com os critérios de
classe social. Isto tem sido o critério ultimamente utilizado até pelos pesquisadores
e técnicos no último recenseamento do IBGE. Ele vale tanto para brancos quanto
para negros e para os chamados amarelos. Não vejo necessidade em recorrer seja
ao exame da árvore genealógica dos auto declarados negros, seja ao exame
científico através do teste de DNA. Se constatar depois de algum tempo e
experiência que a maioria de alunos pobres beneficiados pela política de cotas é
composta de alunos brancos pobres falsificados em negros, será então necessário
reavaliar os critérios até então adotados. De qualquer modo, os recursos investidos
não seriam perdidos, pois teriam sido aproveitados por segmento da população que
também necessita de políticas públicas diferenciadas. Uma definição pelos critérios
científicos dificultaria qualquer proposta de ação afirmativa em benefício de
qualquer segmento, pois muitos que se dizem negros podem ser portadores dos
marcadores genéticos europeus. Também muitos dos que se dizem brancos podem
ser portadores dos marcadores genéticos africanos. O que conta no nosso
cotidiano ou que faz parte de nossas representações coletivas do negro, do branco,
do índio, do amarelo e do mestiço não se coloca no plano do genótipo, mas sim do
fenótipo, num país onde segundo Oracy Nogueira o preconceito é de marca e não
de origem.
2. Outros argumentos contra a política de cota recorrem ao fato do abandono desta
política nos Estados Unidos, por não ter ajudado no recuo da discriminação racial
entre brancos e negros naquele país e por ter sido aproveitado apenas pelos
membros da classe média afro-americana, deixando intocada a pobreza dos
guetos. Ponto de vista rejeitado pelos defensores de cotas nos Estados Unidos,
baseando-se na mobilidade social realizada pelos afro-americanos nos últimos
quarenta anos, mobilidade que não teria sido possível se não fosse implantado a
política das cotas. Os próprios americanos observam que no Estado da Califórnia, o
primeiro a incrementar cotas e o primeiro também a abandoná-las, recuou o
ingresso de alunos afro-americanos nas universidades públicas daquele Estado.
Mas devemos dizer que os afro-americanos têm outras alternativas para ingressar e
permanecer nas universidades que aqui não temos por causa das peculiaridades
do ”nosso” racismo. Eles têm universidades federais de peso criadas para eles, a
Universidade de Howard, por exemplo, e universidades criadas pelas Igrejas
independentes negras para as comunidades afro-americanas, principalmente nos
Estados do Sul considerados como os mais racistas (é o caso da universidade de
Atlanta que foi fundada pelos negros e para os negros). Além disso, a maioria das
universidades públicas americanas até as mais conceituadas como Princeton,
Harvard e Stanford continuam a cultivar as ações afirmativas em termos de metas,
sem recorrer necessariamente às cotas ou estatísticas definidas. Deixar de discutir
cotas em nossas universidades por que não deram certo nos Estados Unidos, como
dizem os argumentos contra, é uma estratégia fácil para manter o status quo. As
cotas se forem aprovadas por alguns Estados como já está acontecendo no Rio de
Janeiro e na Bahia, deveriam, antes de serem aplicadas, passar por uma nova
discussão dentro das peculiaridades do racismo à brasileira, cruzando os critérios
de “raça e de “classe” e respeitando a realidade demográfica de cada Estado da
União. Um censo étnico da população escolarizada de cada Estado é indispensável
para incrementar as políticas públicas no que diz respeito à educação dos
brasileiros, a curto, médio e longo prazo.
3. Por que a cota misteriosamente não é também destinada aos índios e sua
descendência cujos direitos foram igualmente violados durante séculos, além de
serem despojados de seu imenso território, indagam outros argumentos contra a
política de cotas. Os movimentos negros que reivindicam as cotas nunca foram
contra as propostas que beneficiariam as populações indígenas, as mulheres, os
homossexuais, os portadores de necessidades especiais, até as classes sociais
pobres independentemente da pigmentação da pele. Apenas reivindicam um
tratamento diferenciado, tendo em vista que foram e constituem ainda a grande
vítima de uma discriminação específica, racial. Eles têm uma clara consciência da
diluição no social geral e abstrato como propõe o pensamento da esquerda, que até
hoje continua a bater nas teclas de uma questão que segundo eles é simplesmente
social, fechando os olhos a uma cultura racista que abarca indistintamente pobres,
médios e ricos em todas as sociedades racistas.
Finalmente, a questão fundamental que se coloca não é a cota, mas sim o ingresso
e a permanência dos negros nas universidades públicas. A cota é apenas um
instrumento e uma medida emergencial enquanto se busca outros caminhos. Se o
Brasil na sua genialidade racista encontrar alternativas que não passam pelas cotas
para não cometer injustiça contra brancos pobres – o que é crítica sensata – ótimo
Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras
alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão
vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o
próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial,
embora este já esteja desmistificado.
KABENGELE MUNANGA