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A descoberta da inexistência de Sócrates

Rogério de Almeida

Como professor e pesquisador de uma renomada universidade, recebo

muitas correspondências. A grande maioria vem eletronicamente, mas ainda há

envelopes e pacotes que chegam pelos correios, quase sempre livros ou convites

para eventos. No dia 17 de janeiro deste ano de 2017, após retornar de uma

pesquisa internacional de seis meses, fui surpreendido, entre a numerosa papelada

a mim destinada, por um estranho texto guardado num envelope sem remetente. A

carta nele contida também não estava assinada. Não fosse por seu conteúdo

bombástico, capaz de explodir com mais de 2400 anos de fervorosa e sempre

renovada crença, não teria eu perdido o meu sono nem escrito este relato, que é um

pedido de ajuda para que o mistério possa quiçá ser solucionado.

A carta não vinha datada, mas o carimbo dos correios, levemente borrado,

apontava para o dia 13 do 11 (ou do 12) de 2016. Era, portanto, recente. A agência

de origem situava-se em Casa Branca, uma cidade paulista para mim desconhecida.

Como não havia mais indícios que essas poucas páginas digitadas em fonte arial,

tamanho 12, espaçamento duplo e em tudo mais de acordo com as normas da

ABNT, não pude atinar com o possível autor, embora, ao tomar conhecimento do

teor do que estava escrito, tenha compreendido de imediato a precaução pelo

anonimato. Revelar a identidade poderia corresponder ou a uma fama internacional

avassaladoramente invasiva, daquelas experimentadas pelos prêmios Nobel

(acrescido do impacto de ser o primeiro brasileiro a ter tal distinção) ou, o que seria

mais provável, à destruição definitiva e irreversível de uma reputação sabe-se lá a

que custo construída.

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Tentei, com invariáveis fracassos, descobrir alguma pista sobre o autor do

texto. Conversei com colegas do meu departamento (afinal, por que a carta fora

endereçada a mim e não a outro professor ou professora?) e de outros, mas sem

avanços. Tentei também contato com outras faculdades, outras universidades, com

especialistas no tema, mas com a exceção de dois ou três que riram de mim, apesar

de minha discreta abordagem, não obtive nenhuma reação útil aos meus propósitos.

Um de meus amigos próximos, especialista em filosofia antiga, foi quem mais

me ajudou, insistindo para que eu esquecesse essa história, pois os riscos de eu ser

mal interpretado eram enormes. Mesmo a ideia não sendo minha, poderiam atribui-

la a mim, e não é difícil adivinhar, em tempos atuais de condenações imediatas, o

que isso significaria. Mas o texto era meu zahir e, por mais que eu tentasse

esquecê-lo, ele sempre voltava, até mesmo nos meus sonhos (ou pesadelos). Em

um deles, Platão apontava o dedo para mim e gargalhava, dizendo: "Apanhei-te, ó

Demócrito, quero ver rires agora". Ele dizia isso em grego antigo, mas no sonho o

sentido já vinha traduzido. O que não encontrei tradução foi para minha angústia.

Por duas ou três vezes acendi o fósforo e ensaiei queimar aquelas malditas folhas

que haviam me tirado a paz. Por que foram direcionadas a mim? Com qual

propósito? Para que fim? Essas perguntas martelavam-me dia e noite, como se

minha cabeça estivesse na forja de Hefaistos. Foi então que tive a ideia de escrever

esse relato e passar o zahir adiante. Se não logrei êxito questionando diretamente

as pessoas, talvez pudesse pescar alguma pista publicando a carta que recebi. Que

teria eu a perder? Como se trata de um texto anônimo, não estarei comprometendo

a ninguém. Como as palavras não são minhas, também eu estou isento de

responsabilidade, julgamento ou condenação. Que os leitores julguem por si!

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A descoberta da inexistência de Sócrates

Caro professor,

Esta carta certamente causará estranheza e não consigo imaginar que possa

ser diferente, já que se trata de uma das descobertas mais importantes da história

ou de um dos maiores equívocos que jamais cometi em minha vida. Sou incapaz de

decidir e não ouso também confiar em ninguém; já estou velho demais para me

deixar levar por vaidades ou manchar minha história, meu passado e o nome que

carrego e, além do mais, tudo resultou de mero acaso, não tive na questão mérito

maior que este, de ter sido um dado arremessado pela sorte, um cavalo da fortuna a

transportar tão fatídica notícia.

Tudo começou quando minha ex-colega de departamento teve alta do

hospital após algumas semanas jogando xadrez com a morte. Desde que havia se

aposentado, uns pares de anos antes, que não a via, então fui visitá-la, já advertido

de que sua memória havia sido duramente golpeada. Aquela mente inteligente e

astuta, inquieta e afetiva ia pouco a pouco mergulhando nas águas profundas do

esquecimento. Do Lattes ao Letes foi o pensamento que formulei, logo depois de

cumprimentá-la, um tanto atordoados, eu e ela, e por diferentes razões; ela por não

se recordar de mim e eu por me lembrar de tudo o que ela já não podia ser: a

obscenidade dessa discrepância não me saía da cabeça. Ela me tratava com

diferimento, pois sabia que eu a admirava, que lhe tinha afeto, mas apesar do

cálculo de seu comportamento, creio que lhe estava vedado o sentimento

correspondente ao reencontro de um velho amigo, de modo que eu me sentia como

se ela fosse uma escritora numa sessão de autógrafos, esforçando-se para sorrir ao

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desconhecido, no caso eu, que lhe atira à mão um exemplar, ávido pela eterna

lembrança de uma dedicatória.

O constrangimento durou poucos instantes. Como ela precisava ser limpa e

medicada, afastei-me lentamente para sua biblioteca e me perdi nos estreitos

corredores repletos de livros, mais interessado em descobrir em que ordem estavam

organizados do que propriamente em averiguar os títulos. Chega um momento na

vida em que nos satisfazemos com pouco e eu, que nunca fui um leitor voraz, me

comprazia, de tudo que já li e esqueci, com o que ainda recordava. Na parte inferior

de algumas prateleiras havia etiquetas – sociologia, pedagogia, filosofia, religião etc.

–, escritas a mão e coladas esparsamente, de modo que não era simples adivinhar

se os livros da prateleira do lado eram de igual classificação, já que a lógica manda

que descemos inicialmente à prateleira de baixo, como se fossem as bibliotecas

réplicas de livros, cujas páginas são lidas da esquerda para a direita, de cima para

baixo, linha a linha, consoante nosso costume, pois há línguas que se lê de outro

modo, embora, quer numa quer noutra, se busquem sentidos nem sempre certos de

se atinar.

Fui assim lendo sua biblioteca, decodificando as lombadas e tentando decifrar

o texto oculto que os livros formavam, até que me deparei com a etiqueta "outros".

Não pude conter um leve esboço de sorriso, como se já soubesse que, dentro da

enorme, vasta e complexa ordem que rege o universo, a sociedade e inclusive as

bibliotecas, sempre há aqueles que, por não pertencerem a nenhum conjunto e,

portanto, estarem fora de qualquer prateleira, são à revelia ordenados como

"outros", tendo efetivamente em comum, um com o outro, o fato de não pertencerem

a uma ordem preestabelecida. Fui ávido consultar os títulos de tal prateleira e

confirmar minha descrença na ordem cósmica, social e bibliotecária. Enfileiravam-se

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sem nenhum constrangimento um exemplar sobre os arquétipos do tarô, um de

cabala, outro de doces e sobremesas para diabéticos, uns oito ou nove livros de

crônicas e memórias, um exemplar velhinho de programação neurolinguística, este

autografado, outros tantos de autoajuda, mas sem dedicatória, uma apostila

ilustrada de peças e engrenagens mecânicas, um hinário já bem machucado e mais

meia dúzia de obras inclassificáveis ou que assim me pareceram.

Folheando esses objetos familiares, ia me deixando levar pelas estranhas

combinações de palavras escondidas em suas páginas, até que um deles com suas

folhas amarelas e ásperas chamou-me a atenção. Havia uma dedicatória datada de

mais de trinta anos, mas que não correspondia ao autor do livro, Roque Henrique de

Moura Matos, embora o sobrenome fosse o mesmo. O sumário trazia títulos frívolos,

como "Aniversário da Cidade de Tietê", "Um dia inesquecível" ou "Seis garfadas no

prato da filosofia". Virando desinteressadamente as páginas, lia um ou outro

parágrafo do que me pareceu uma coletânea despretensiosa de textos que, na falta

de classificação melhor, chamaríamos de literários. Eram crônicas, talvez breves

ensaios, prosa poética ou poemas em prosa, mas que, independentes do gênero

que lhe impusermos, se apresentavam regularmente curtos, uma ou duas páginas,

com exceção de um, não só mais extenso como também com uma linguagem mais

seca e sóbria, sem os floreios retóricos e coloridos dos demais. O título chamou

minha atenção e animou minha leitura: "A descoberta da inexistência de Sócrates".

Como a minha velha amiga ainda estava confiada aos cuidados medicinais,

sentei-me em uma poltrona e li de um só fôlego o texto, que a princípio me pareceu

um artigo acadêmico, mas poderia ser um conto, talvez na tradição jamais inventada

do realismo fantástico, o fato é que era indiscernível se aquelas páginas tratavam de

uma realidade real ou inventada. Talvez não passasse do esboço de um relatório,

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pois havia no tom da escrita a frieza organizacional de quem presta contas, contudo

não era bem isso, pois havia também uma emoção, ainda que contida, perpassando

cada um dos parágrafos. O que sei é que a leitura me envolveu de maneira

inesperada.

O texto reportava a descoberta de um manuscrito no Mosteiro de

Xenophontos localizado no Monte Athos, na Grécia, que comprovaria a tese de que

Sócrates jamais teria existido. Esse manuscrito de menos de uma página, fragmento

de uma aparente missiva provavelmente de Platão a Xenofonte, estava no final de

um grosso volume de folhas soltas, datadas do medievo tardio, e que apresentavam

sete das onze peças de Aristófanes. Havia uma cópia de sua comédia mais citada,

As nuvens, e na sequência o tal fragmento, que provavelmente fora ali parar por

conta de algum monge descuidado ou mal alfabetizado, que ao reconhecer o nome

de Aristófanes (que de fato é citado na linha 3 do fragmento) o agregara à sua peça.

Tal epístola, de existência até então insuspeita, parecia revelar um pedido de Platão

a Xenofonte, para que inventasse uma espécie de memorabilia de Sócrates, o

personagem inventado por Aristófanes, e que Platão elege como seu mestre, na

transição da cultura oral para a escrita.

Ao longo da tradição consolidaram-se três fontes que supostamente

comprovariam a existência histórica do filósofo Sócrates. A peça As Nuvens, de

Aristófanes; a Apologia de Sócrates, escrita por Xenofonte; e os famosos Diálogos

de Platão. A peça de Aristófanes apresenta um personagem que profere blasfêmias,

engana e ensina a enganar, além de dissertar sobre assuntos variados, desconexos

e impertinentes. Tal Sócrates em nada nos faz lembrar o austero mestre desenhado

por Platão, que buscava incansavelmente a verdade. Nos diálogos platônicos,

Sócrates tece uma sequência de indagações visando extrair de seu interlocutor

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alguma contradição que o faça repensar suas ideias, até chegar numa suposta

verdade universal, parida de sua própria razão. É o conhecido método socrático. Já

Xenofonte, além da Apologia, também faz referência a Sócrates em Memoráveis e

Banquete, apresentando não propriamente um filósofo, mas um amigo honrado,

prudente e perfeito, o mais afortunado dos homens, o mais justo dos mestres.

Teríamos, portanto, não um Sócrates, mas três. O filósofo que aparece nos

textos de Platão é quem valida seus próprios pensamentos, uma vez que Platão põe

na boca do elegido filósofo o que bem quer. Já Xenofonte descreve passagens de

sua vida, como sua condenação e execução emprestando-lhe requintes retóricos

que mais o aproximariam de um personagem fictício do que propriamente de um

homem. Quem, à beira da morte, conseguiria formular um discurso tão elaborado?

Quem diria, com tamanha retórica e na mais absoluta ataraxia as palavras que se

seguem? "Nenhum homem usufruiu de uma vida melhor que a minha. Vivi minha

vida com piedade e justiça, de modo que, tendo por mim próprio grande estima,

sinto que aqueles que convivem comigo me consideram de igual modo. Se minha

idade continuar a se prolongar, virá a velhice e suas tristes consequências. Tenho,

pois, que agradecer ao deus que me facultou morrer não só no momento mais

agradável como também pela morte mais fácil." Por fim, se há pontos de contato

entre o Sócrates de Platão e Xenofonte, ambos com traços superlativos similares

aos dos heróis epopeicos, o Socrátes de Aristófanes é o inverso, um verdadeiro

bufão, avoado, sacana e embusteiro.

Estava eu no meio dessas divagações, quando abriram a porta do quarto da

minha colega, já agora recomposta e aparentemente mais disposta. Dirigi a ela

algum comentário sobre o calor ou outra amenidade qualquer, mas ao me ver com

um livro quis saber sobre o que era. Tomando-o de minhas mãos, logo reconheceu a

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capa e, como se de repente despertasse de um sono de séculos, passou a discorrer

sobre o autor, Roque Henrique de Moura Matos, que fora seu professor de grego, na

distante década de 1950, quando ainda era uma jovenzinha empertigada e

sonhadora. Apesar da pouca idade (estimava não ter chegado aos cinquenta anos),

morreu de um ataque fulminante do coração, pouco tempo depois de uma longa

viagem à Grécia, onde fez pesquisas de doutoramento. Pouco depois de sua morte,

como forma de homenageá-lo, sua filha reunira suas crônicas em um livro, já que

ele, embora escritor dedicado e exímio tradutor, jamais publicara nada. A dedicatória

na folha de rosto era justamente de sua filha.

Perguntei à minha amiga, ainda impressionado pela nitidez repentina de sua

memória, sobre sua impressão do livro. “Não o li inteiro”, ela me disse, “embora

fosse um excelente professor, faltava-lhe imaginação para a escrita. Seus textos são

aborrecidos e confesso que não passei das primeiras páginas”. Sobre “A descoberta

da inexistência de Sócrates”, ela não se lembrava, provavelmente não lera. Eu o

resumi. Ela riu. Até que seu antigo professor não era tão sem imaginação assim.

Aproveitei a fluidez de suas lembranças e tentei extrair dela memórias mais

recentes, mas então ela voltou a ficar confusa, de modo que preferi deixá-la à

vontade para conduzir a conversa. Ela me relatou uma série de episódios de quando

começamos a trabalhar juntos, muitos dos quais havia me esquecido

completamente, ou assim o julgava, mas ela evitava assuntos mais atuais,

principalmente depois de descobrir, não sem certa tristeza, da morte de alguns

amigos queridos, muitos dos quais ela mesma testemunhou a despedida.

Era hora de ir embora, de guardar daquele momento e dela em especial uma

imagem bonita, embora soubesse que, inevitavelmente, tanto a imagem quanto ela

desapareceriam, como lhe desapareciam as lembranças, que a reduziam agora a

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um rugoso corpo sem história. Como recordação daquele nosso encontro, trouxe o

livro comigo, já que em seu julgamento ele havia me interessado. Não era verdade,

mas raramente a verdade anda junto com a amabilidade. Prevaleceu a vontade de

agradar e a agradeci pelo livro, despedindo-me com um abraço.

Essa história não teria maior relevância se dois anos depois, em viagem de

férias à Grécia, não tivesse me deparado com o Monte Athos e recordado, mais do

que da história da inexistência de Sócrates, de minha amiga. Por curiosidade, subi o

Monte e visitei alguns de seus mosteiros, como o de Filoteu, Dioniso (um dos mais

deleitáveis) e São Pantaleão. Ao chegar no mosteiro de Xenophontos, próximo ao

mar, fiquei tocado pela vida silenciosa e altiva de seus 35 anacoretas. Angelopoulos,

o monge que me recebeu, embora inicialmente desconfiado pelo meu interesse nos

manuscritos do monastério, foi muito amável e atencioso, autorizando que eu

passasse algumas horas na biblioteca. Desconfio que o fato de ser brasileiro tenha

ajudado, pois assim como a Grécia ativa, a nós que não somos gregos, nosso

imaginário sobre seus heróis, o contrário também deve ocorrer, gostemos ou não de

carnaval. E se bem aplicada a aritmética, também temos nosso Sócrates. O caso é

que, após alguns minutos de amenas tratativas, estava eu instalado, de luvas e

crachá, na ala dos manuscritos, inspecionando os arquivos de Aristófanes.

Embora eu imaginasse, talvez por força das imagens que O nome da rosa

incute em nós, uma biblioteca na penumbra, com livros poeirentos e escondidos, o

que encontrei foi um ambiente limpo, claro e organizado. O manuscrito que eu

requisitei me foi entregue com cuidado e uma série de recomendações sobre o

modo correto de manuseá-lo. Impaciente para retornar ao sol da Grécia e à

companhia de minha família, a quem prometera não trabalhar durante as férias, fui

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direto às Nuvens, virando as folhas na procura da última, exatamente como narrado

no conto de Roque Henrique de Moura Matos.

Confesso que fui preparado para descobrir que, de fato, aquele conto era uma

invenção sem pé nem cabeça, fruto da imaginação de um pesquisador dedicado,

mas que nunca descobriu nada que merecesse qualquer tipo de atenção. É claro

que também cogitei, em meu íntimo, a possibilidade de que tudo fosse verdade, o

que me alçaria à condição, ainda que indireta, de um dos pesquisadores mais

importantes de todos os tempos, um Champollion pindorâmico. Mas o que se

passou jamais povoou meus devaneios, por mais fantasiosos que pudessem ser. A

surpresa foi tal que não me contive e acabei por causar um alvoroço no silencioso

mosteiro de Xenophontos, de modo que se não fosse a intervenção de

Angelopoulos, é provável que eu terminasse vergonhosamente expulso, para minha

má fama e de todo o povo altissonantemente brasileiro.

Não estava lá a carta de Platão endereçada a Xenofonte, como no conto de

Roque Matos, mas um fragmento solto, impreciso, descontextualizado, que não

provava coisa alguma, mas que também não desfazia por completo a hipótese de

que Sócrates nada mais era que um personagem criado por Platão para validar sua

própria obra, já que a escrita, naquela ocasião, era uma técnica recém-criada e,

como toda nova tecnologia, provocava enorme desconfiança, principalmente numa

tradição oral como era aquela de Homero.

O fragmento que eu encontrei estava numa folha solta, rasgada e carcomida

em suas laterais, a três páginas do fim do calhamaço que reunia a peça de

Aristófanes, o que me levou a deduzir que o restante do texto estava em outras

folhas, talvez também dilaceradas, ou tinham sido roubadas, e me perguntava com

que interesse, ou ainda poderiam jazer em meio a outros alfarrábios, o que me levou

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a causar a referida confusão, uma vez que passei a exigir enfaticamente que me

deixassem manusear as demais pilhas de papéis, não só os de Aristófanes, mas os

de todo aquele setor de prateleiras, o que é expressamente proibido em qualquer

biblioteca de obras raras, como sói suceder em toda parte do mundo e bem o sabe a

comunidade dos bibliófilos, da qual, aliás, nunca fiz parte.

O trecho que encontrei dizia, já traduzido do grego antigo, algo como:

"Recries minha apologia como bem entenderes, mas não te esqueças da injustiça,

pois os que leem se indignam das coisas injustas mais que das que causam terror e

piedade e este meu mestre que me ajudas a criar será de todos os personagens o

mais verdadeiro, pois que ele não será outro que o próprio mestre da verdade". O

termo que aparece no texto para criar é fantasia, que não deve ser confundido com

fantasia, como hoje conhecemos, mas entendido como ficção, que no latim assume

a forma de fingere, o mesmo que fingir, mas também o que é manipulado, tocado

com os dedos. Assim, o autor, supostamente Platão, pede para seu interlocutor

ajudá-lo a inventar, a criar um homem fictício. Seria Sócrates? Quem outro ficou

historicamente conhecido como "mestre da verdade"? O termo grego para verdade é

alhqeia, junção do prefixo de negação a- e letes, o rio do Hades que designa o

esquecimento. Assim, a verdade é o des-velamento, é o que tira o véu do que está

encoberto, isto é, esquecido.

O trecho considerado isoladamente não diz nada, mas quando cotejado com

o conto de Matos (seria de fato um conto?), é impossível não notar a semelhança

das palavras, de modo que o que eu mesmo achei parece se confundir com a

descoberta do falecido professor, que teria transcrito a carta inteira, da qual

encontrei apenas um trecho. Se isso fosse verdade... Mas como comprovar?

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Dado que não me foi permitido vasculhar a biblioteca, por mais que eu

tentasse explicar a Angelopoulos o caráter singular daquela situação, que de resto

só lhe causou riso – e imaginei como meu comportamento estaria enriquecendo

suas impressões do que é ser brasileiro –, resolvi investigar a outra ponta, isto é, o

que teria motivado Roque Henrique de Moura Matos a escrever seu texto.

Mas não consegui nada além de uma rápida conversa com seu neto, que

apesar de diligente – permitiu que eu consultasse os arquivos de seu avô – não só

não tinha muitas lembranças dele como nenhum interesse por filosofia. Nos arquivos

não encontrei nada de interessante. Minha hipótese são duas: ou Roque Matos

encontrou o mesmo que eu e inventou o conto, talvez para suprir a lacuna do que

poderia ser a verdade, ou efetivamente teve acesso a páginas que se perderam.

Meditei longo tempo sobre o assunto. Se fosse um conto, que interesse

poderia ter? Eu mesmo poderia tê-lo escrito. E é provável que o fizesse melhor. Se

fosse a verdade, como prová-la? Por que colocaria em risco minha reputação

tentando defender uma tese que a todos pareceria desvairada?

É por isso que decido escrever esta carta e endereçar-lhe. Vi em seu Lattes

que é jovem, ousado, que não tem medo de se arriscar com publicações polêmicas

nem de orientar teses sobre temas que a Universidade prefere ignorar. Quem sabe

você tenha mais coragem que eu e traga essa história ao palco do mundo. A mim

me basta o silêncio da coxia, agora vazia e em breve escura.

Transcrevo o conto de Roque Henrique de Moura Matos. Pode ser que algo,

alguma pista talvez, tenha me escapado.

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A descoberta da inexistência de Sócrates

A verdade não existe. Um fato só é fato enquanto está acontecendo. Mas o

que sabemos do que acontece enquanto acontece? Lábios se beijam sem que

saibamos como da vontade se passou à ação. É assim que matamos, quando as

mãos atacam a garganta ou empunham a espada. Que saberíamos do fato se o fato

fosse um meteoro que colidisse com a Terra e nos extinguisse no exato momento

em que atinássemos com o fato? O que temos são as interpretações. E as

interpretações, tais como o dinheiro, são mais fortes quando concentradas.

Foi assim que eu, um pesquisador brasileiro, fiz a maior descoberta de todos

os tempos. Uma concentração de interpretações a partir de três ou quatro fatos,

todos eles fictícios, é o suficiente para fabricar uma verdade. A própria ideia de

verdade é uma dessas fabricações. Como o dinheiro.

Se Fernando Pessoa não tivesse morrido antes de publicar as obras de seus

heterônimos, é possível que acreditássemos que Alberto Caiero era uma pessoa de

verdade. Será que não o foi? Eu mesmo ouvi de meu avô que um amigo dele

almoçou com Ricardo Reis, quando esteve exilado no Brasil, antes de retornar em

1935 para Lisboa, onde morreu um ano depois. Se Shakespeare, que muitos dizem

não ter existido, escrevesse não tragédias, mas biografias, quem não acreditaria na

existência histórica de Hamlet ou Macbeth? São personagens muito mais reais que

Dom Sebastião ou Café Filho.

Então eu nunca acreditei em Sócrates nem na tirania da razão que ele

pregava em Atenas. Enquanto eu acreditava que ele de fato tinha existido, nutri

contra ele um profundo e silencioso ódio. Silencioso porque Sócrates foi alçado a

uma espécie de herói da filosofia, uma figura mítica. Seus pés descalços, sua roupa

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suja, seu discurso salvacionista tornou-se o arquétipo do mestre. Como um profeta,

seu palavrório prometia não o céu da religião, mas outra mentira adorada, a verdade

universal. O que é a beleza? O que é a justiça? O que é o amor?

A dialética socrática é, para mim, o maior embuste de todos os tempos. A

ideia de que a verdade pode ser atingida por meio do diálogo é tão absurda quanto

crer nas revelações de Deus. Quer dizer que a diversidade do comportamento

humano poderia ser facilmente controlada com dez regrinhas? Como não roubar

quando se está com fome? Como não cobiçar a mulher do próximo quando o amor

assim o exige? Como não matar diante da fúria insaciável do inimigo? O mundo

segue ignorando esses profetas do ódio, anêmicos, débeis, incapazes de se

contentar com o espetáculo do mundo.

Qualquer um, submetido à dialética de Sócrates, era rebaixado à condição de

idiota. Hípias, por exemplo, o maior entre os sofistas, é defenestrado por Sócrates,

que insiste em saber o que é a beleza, mesmo ouvindo de sua boca numerosos

exemplos de coisas belas. Sócrates não gostava de uma bela mulher ou de uma

bela tragédia. Para ele, só interessava a beleza, algo que ninguém sabe o que é.

Suportei calado o culto a Sócrates ao longo de toda minha vida. Ninguém

pode imaginar como me irritava ouvir "só sei que nada sei" a cada início de ano

letivo, quando algum aluno sabichão procurava pretensamente justificar sua

ignorância com as palavras do embusteiro grego. Isso sem contar que, como

Sócrates nada escreveu, sua voz nos chega através da boca de Platão, um filósofo

tão pretensioso quanto mesquinho, capaz de liderar uma repulsiva campanha contra

Demócrito, de quem queimou todos os pergaminhos que conseguiu recolher.

Mas isso tudo começou a mudar quando descobri o livro La légende

socratique et les sources de Platon, escrito no início do século XX por Eugène

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Dupréel, professor da Universidade de Bruxelas. Ele questiona o modo como a

história elegeu e celebrou Sócrates, Platão e Aristóteles como a santíssima trindade

da filosofia grega antiga, questionando as fontes que chegaram até nós. A apologia

de Sócrates não seria mais do que mera ficção, inventada com propósitos políticos

por Platão, que foi quem mais lucrou com sua condenação. É nesse contexto que

ganha força toda a perseguição contra os sofistas, até hoje os sábios menos

reconhecidos de toda a história do pensamento ocidental.

Imbuído do propósito de recolher alguma prova que contribuísse para

sustentar a tese da inexistência do Sócrates histórico, lancei-me em uma

investigação intermitente, de acordo com minhas posses e no pouco tempo

disponível, visitando alguns mosteiros da Europa, principalmente do Monte Athos,

que reúne um conjunto inestimável de manuscritos. Se eu tivesse o apoio de

agências de fomento, se pudesse contar com uma equipe de pesquisadores, se

houvesse um esforço internacional, é certo que a tarefa, embora grandiosa, pudesse

ser levada a cabo em poucos anos. Mas trabalhando sozinho, as investidas eram

invariavelmente infrutíferas. Até o dia...

Até o dia em que, estando no mosteiro de Xenophontos, deparei-me com uma

coleção de peças de Aristófanes e, logo após As Nuvens, um fragmento manuscrito

do que parecia ser uma carta. A dificuldade de leitura de alguns trechos somada à

complexa tarefa primeiro de compreensão e depois de tradução consumiu-me

alguns dias e muito da paciência dos monges, incomodados com minha presença

diária na biblioteca.

Passei noites sem dormir, verdadeiramente entusiasmado com as primeiras

hipóteses do significado de minha descoberta. Mal podia esperar o dia raiar para

retornar ao trabalho e terminar de copiar, estudar e traduzir o fragmento encontrado.

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Embora não houvesse nenhuma indicação clara de quem havia escrito o texto e

para quem o endereçara, ou qualquer outra marca que permitisse datá-lo, o teor era

muito claro para que pairasse qualquer sombra de dúvida. Era uma missiva de

Platão para seu colega Xenofonte, orientando-o a produzir material escrito sobre

Sócrates, personagem da peça de Aristófanes e que ele utilizaria para a escrita de

sua própria filosofia, a ser expressa por meio de diálogos, cuja expressão retórica

angariaria – era essa sua aposta – maior adesão.

De posse do troféu, não tenho outra coisa a fazer que mostrá-lo ao mundo,

para que a farsa se desfaça e a filosofia possa seguir o caminho do qual jamais

deveria ter se desviado, caminho aberto pelos sofistas e impedido de ser seguido

por Platão. O fragmento que se segue talvez seja o documento mais importante

deste século, senão de todos os tempos, e é por isso, constatada minha frágil

saúde, que me apresso a torná-lo público. Que o mundo das ideias desabe de

nossas cabeças revelando a verdade de tudo que existe!

Fragmento do manuscrito

...vossa contribuição, meu projeto é escrever um opúsculo em forma de

diálogos e pensei em usar um personagem teatral, um tal de Sócrates, ridicularizado

na comédia de Aristófanes, tu te lembras? Pensei em tomá-lo para mim como

exemplo de mestre, revertendo o que lá aparece para condenar a falsa doutrina de

Demócrito. Não tenho, bem o sabes de minhas ambições, compromisso com o riso,

a arte ou mito, mas precipuamente com o mundo das ideias; mister é ensinar a

pensar corretamente a nossa e as vindouras gerações de atenienses entregues à

corrupção e à superstição, para que fundem uma Politeía na qual dos cidadãos

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emane um poder probo, escrupuloso e diáfano, isto é, que se exercite a verdadeira

areté mediada pelo lógos. Que melhor expediente escriturário que a dialética posta

na boca e no coração de um homem justo e, dentre todos, o mais sábio? E se esse

homem nos enlevasse a todos em banquetes da mais sóbria dialógica para

combater a platitude do senso ordinário? E se esse homem tratasse de assuntos

desconformes e da mais egrégia natureza das coisas, em tom de coloquialidade

amena, ainda que expressiva, salutar embora divaricada, enquanto os convivas

saboreassem a suculenta ambrosia, não do Olimpo, mas das ideias? E se assim o

for não terei eu criado o mestre mais verdadeiro e autêntico dentre todos esses

falsos mestres que vivem de circular pelas ruas galardeados pelos nobres a troco de

parvos ensinamentos sobre retórica e as demais artes do bem enganar? Esse meu

Sócrates, tu verás, intrépido amigo, conduzirás diálogos inauditos e persuadirá a

todos sobre o verdadeiro poder da aletheia. É por isso e para isso que necessito de

ti e de teu talento para a gramática designatória deste Sócrates, símil aos homens,

mas só comparável aos deuses. Sei que podes escrever a seu respeito, como se

nosso mestre o fosse, memórias e elogios sem que nunca descubram a razão.

Recries minha apologia, tens aí um modelo, como bem entenderes, mas não te

esqueças da injustiça, pois os que leem se indignam das coisas injustas mais que

das que causam temor e pena e este meu mestre que me ajudas a inventar será de

todos os personagens o mais verdadeiro, pois que ele não será outro que o próprio

mestre da verdade. É assim que, ó estimado amigo, nos preservaremos da

inexorável passagem do tempo, gravados em palavras nas páginas de livros que

tão...

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