Sei sulla pagina 1di 31

 

IDENTIDADE, GÊNERO E CULTURA MATERIAL: 
SENHORAS E CRIADAS NO ESPAÇO DOMÉSTICO — SÃO 
PAULO (1870­1920) 
Simone Andriani dos Santos1
Resumo:  Este  trabalho  propõe  a  análise  das  relações 
entre criadas e patroas, na cidade de São Paulo, entre 
as décadas de 1870 e 1920, a partir das diferenças ét­
nicas,  sociais  e  de  gênero  (re)produzidas  no  espaço 
doméstico.  Utilizando  como  principal  corpo  docu­
mental os  manuais  de  prescrição de conduta (manu­
ais de etiqueta, de economia doméstica, de puericul­
tura e de higiene e saúde), o intuito é compreender a 
formação identitária  a  partir  do  uso  de objetos  e  es­
paços,  entendidos  estes  como indutores  de  compor­
tamentos e hábitos corporais.  
Palavras­Chave:  Cultura  material.  Gênero.  Espaço 
doméstico. Trabalho doméstico. São Paulo. 
 
IDENTITY, GENDER AND MATERIAL CULTURE: LADIES 
AND CREATED IN DOMESTIC SPACE — SAO PAULO 
(1870­1920) 
Abstract: This work is an attempt to analyze the rela­
tions between servants and mistresses, in São Paulo, 
between the 1870’s and 1920’s, from ethnic, social
and  gender  differences  (re)produced  in  the  house­
hold.  Considering  different  kinds  of  manuals  —  eti­
quette,  housekeeping,  childcare  and  hygiene  and 
health — we intend to understand how identities are 
connected  with  the  use  of  objects  and  spaces  in  the 
house.  
Keywords: Material culture.  Gender. Domestic space. 
Housework. São Paulo. 

                                                                    
1
  Historiadora e mestra em História Social pela FFLCH/USP. São Paulo —
SP. Endereço eletrônico: simone.santos@usp.br. 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 59
 

Introdução 
Este  trabalho  se  propõe  analisar  as  relações entre pa­
troas e empregadas domésticas na cidade de São Paulo, en­
tre as décadas 1870 e 19202. O objetivo é entender a constru­
ção  de  suas  identidades  no  espaço  doméstico  a  partir  das 
diferenças étnicas, sociais e de gênero, sob a perspectiva da 
cultura  material3.  Utilizando  como  principal  conjunto  docu­
                                                                    
2
 Este  trabalho  é  síntese  das  principais  ideias  desenvolvidas  na 
dissertação  de  mestrado,  defendida  em  agosto  de  2015,  cujo  título  é: 
Senhoras  e  criadas  no  espaço  doméstico,  São  Paulo  (1875­1928).  A 
pesquisa  foi  realizada  na  FFLCH­USP  (Departamento  de  História 
Social)e financiada pelo CNPq. 
3
  Segundo  Meneses  (1983,  p.  112),  cultura  material  pode  ser  definida 
como”[...]  aquele  segmento  do  meio  físico  que  é  socialmente 
apropriado pelo homem” e apropriação social como “[tudo aquilo que] 
o  homem  intervém,  modela,  dá  forma  a  elementos  do  meio  físico, 
segundo propósitos e normas culturais”. Assim, o conceito pode tanto 
abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas 
animadas e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível 
desse tipo de manipulação ou, ainda, os seus arranjos espaciais. Dessa 
forma,  não  importa  em  qual  contexto  de  uso  (social,  cultural, 
ritualístico ou econômico), não se pode negar a ubiquidade das coisas 
físicas  para  a  humanidade.  A  cultura  material  é  indissociável  e 
constitutiva  da  condição  humana  desde  o  seu  surgimento.  Por  esse 
motivo, a materialidade é uma importante plataforma para estudo das 
transformações  sociais.  Existem  diferentes  vertentes  de  estudos  de 
cultura  material,  porém,  para  este  trabalho,  vale  a  pena  destacar  a 
vertente francesa. Dentre os inúmeros autores, destaca­se Jean­Pierre 
Warnier,  considerado  responsável  por  sintetizar  os  argumentos 
teóricos  e  metodológicos  do  grupo.  Recuperando­se  os  aspectos 
materiais das coisas, o objetivo desses estudiosos é entender a relação 
sujeito­objeto e as ações que se desencadeiam nesse encontro, ou seja, 
a relação imediata entre corpo e os objetos manipuláveis. Não se trata 
apenas  de  observar  o  contato  físico  imediato  do  corpo  com  os 
artefatos,  mas  também  as  articulações  que  se  dão  no  cotidiano  e, 
portanto, menos perceptíveis como, por exemplo, a disposição espacial 
dos  elementos  no  mesmo  ambiente  frequentado  pelo  corpo  (REDE, 
2003, p. 282­283). Partindo das ideias de Marcel Mauss, desenvolvidas 
no artigo “As técnicas do corpo”, Warnier enfatiza que, além dos atores 
humanos,  as  coisas  devem  ser  entendidas  como  capacidade  de 
60 | Gênero, corpo e performance 
 

mental os manuais prescritivos de comportamento4, a inten­
ção é compreender como essas obras, por meio de suas des­
crições  e  orientações,  participaram  do  estabelecimento  de 
dinâmicas  entre  corpos,  objetos  e  espaços  da  habitação,  as 
quais, por sua vez, contribuíram para a conformação das re­
lações entre patroas e empregadas dentro da casa.  
O intervalo entre o final do século XIX e início do século 
XX compreende o período em que a capital paulista aprofun­
dou  as  mudanças  advindas  com  os  novos  hábitos  de  consu­
mo,  intensificados  pela  modernização  da  infraestrutura  e 
diversificação  das  atividades  e  agentes  urbanos.  O  capital 
acumulado  passou  a  ser  investido  não  apenas  na  ampliação 
da  produção  do  café,  mas  na  diversificação  de  atividades 
econômicas  (indústrias,  empresas  de  importação­
exportação,  bancos  etc.)  e  urbanas  correlatas  (linhas  de 
                                                                                                                                 
atuação  social,  pois  permitem  ações  motoras,  que  podem  limitar  ou 
possibilitar comportamentos. Em outras palavras, o universo material é 
parte  constitutiva  da  própria  corporeidade;  os  objetos  são  essenciais 
para  a  existência  humana,  funcionando  como  próteses.  Cada  objeto 
possui  uma  dinâmica  própria  e  essa  dinâmica  pode  ser  incorporada 
como  um  aprendizado  até  se  tornar  automatizado.  Quando  isso 
acontece, a cultura material participa de uma síntese que, longe de ser 
estática,  implica  uma  interação  entre  os  elementos  em  jogo:  corpo, 
objeto  e  espaço.  Ao  internalizar  a  dinâmica  do  universo  físico, 
expande­se  a  capacidade  humana  de  ação  (LE  BRETON,  2007, p.  7­8; 
REDE, 2003; 2012, p. 241; WARNIER, 1999).  
4
  O  objetivo  de  tais  obras  era  divulgar  normas  de  comportamento  em 
sociedade. Os  manuais chegaram ao Brasil  quando o Império passava 
por  transformações  e  o  controle  corporal  foi  a  maneira  encontrada 
para  fixar  marcas  de  distinção  social.  Em  pouco  tempo,  caíram  no 
gosto  do  público,  criando­se  novas  categorias  (ELIAS,  1990;  REVEL, 
2009, p. 169­210; RONCADOR, 2007; SCHWARCZ, 1997, p. 07­39). Para 
a pesquisa de mestrado, foram analisadas 42 obras, escritas em inglês, 
francês  e  português,  agrupadas  em  quatro  categorias:  manuais  de 
etiqueta, manuais de economia  doméstica, manuais  de puericultura e 
manuais  de  higiene  e  saúde.  Além  dos  manuais,  foram  consultadas 
outras  fontes  documentais  (matérias  publicitárias,  textos  de 
memorialistas, relatos de viajantes, periódicos da época, legislações e
dados censitários da cidade de São Paulo (SANTOS, 2015, p. 32­53). 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 61
 

transporte, redes de energia, água, luz e esgoto, habitações 
etc.). 
Os investimentos em infraestrutura e embelezamento 
na cidade foram acompanhados de transformações na antiga 
estrutura familiar e nos padrões de moradias dos segmentos 
sociais  mais  abastados.  Estimulado  por  pressupostos  médi­
cos, o sentimento de privacidade familiar começou a ser con­
cebido quando pais e filhos começaram a valorizar o convívio 
íntimo  e  exclusivo  entre  eles,  abandonando  a  companhia 
contínua de elementos estranhos na casa. A casa deixou gra­
dualmente  de  ser  uma  unidade  de  produção  autônoma  e 
passou  a  estar  profundamente  articulada  à  cidade.  O  que 
antes  era  produzido  na  habitação  podia  ser  adquirido  em 
casas comerciais instaladas na cidade (COSTA, 1989). Soma­
do  a  isso,  a  casa  passou  a  ser uma  importante  forma  de ex­
pressar  a  recente  ascensão  social  dos  novos  representantes 
das  classes  dominantes.  Gradativamente,  as  casas  coloniais 
paulistanas  foram  sofrendo  adaptações  que  as  conduziram 
para  o  que  significou  “morar  à  francesa”.  Surgiram  novos 
tipos de habitação, mas os palacetes, tipo de habitação inspi­
rado  em  modelos  aristocráticos  europeus  do  século  XVIII  e 
altamente especializados, podem ser considerados a melhor 
expressão do  que  se  denominou  como  “casa  moderna”  (LE­
MOS, 1989; CARVALHO, 1996; HOMEM, 1996). Para as famí­
lias  menos  abastadas,  pertencentes  aos  segmentos  médios 
emergentes,  o  novo  modo  de  vida  foi  caracterizado  pela  a­
quisição de bens de consumo. Para essa parcela da socieda­
de, se não era possível comprar uma casa nova e “moderna” 
ou reformar a antiga, a ascensão social poderia ser demons­
trada  por  meio  da  aquisição  de  objetos  para  a  casa,  como 
itens  do  mobiliário  e  peças  de  decoração,  encontrados  em 
lojas  de  departamentos (como  o  Mappin  Stores e  a  Casa  Al­
lemã) ou confeccionados a partir de receitas caseiras divulga­
das  em  revistas  e  manuais  prescritivos  de  comportamento 
(CARVALHO, 2008; 2011).  

62 | Gênero, corpo e performance 
 

A  modernização  da  habitação,  a  intensificação  do  co­


mércio e o aumento da disponibilidade de bens de consumo 
de uso pessoal e para a casa contribuíram para a multiplica­
ção das tarefas domésticas (COWAN, 1983). Além dos cômo­
dos,  portas,  janelas  com  vidros  e  assoalhos  que  precisavam 
ser frequentemente espanados, lavados e encerados, os dife­
rentes  tipos  de  móveis,  armários,  estofados,  tapetes,  corti­
nas,  roupas  de  cama,  toalhas  de  renda,  louças,  quadros,  es­
pelhos,  entre  inúmeros  outros  artefatos  de  decoração 
passaram a exigir um trabalho de limpeza pesado, regular e 
especializado (GRAHAM, 1992, p. 48­49). Se durante grande 
parte  dos  períodos  colonial  e  imperial  o  trabalho  doméstico 
era realizado majoritariamente por escravas, após a abolição 
ele  passou  a  ser  feito  por  donas  de  casa  e,  nas  habitações 
mais abastadas, por mulheres pobres que foram contratadas 
como empregadas domésticas. Com o crescimento da cidade
de São Paulo, uma grande quantidade de trabalhadores (ex­
escravos, imigrantes europeus e seus descentes) migrou para 
a capital em busca de emprego e melhores condições de so­
brevivência. O comércio e a incipiente indústria não absorve­
ram  o  grande  número  de  desempregados.  Às  mulheres  res­
tou a possibilidade de trabalhar em casas de famílias: casadas 
ou  solteiras,  imigrantes  ou  nacionais  (negras  ou  brancas), 
algumas começaram a trabalhar ainda crianças ou adolescen­
tes,  em  casas  de  famílias  abastadas  e  de  médios  recursos, 
como  cozinheiras,  criadas,  lavadeiras,  passadeiras,  arruma­
deiras,  copeiras,  amas­de­leite  e  amas  secas,  pajens  e  aju­
dantes5;  algumas  se  empregavam  sozinhas,  outras  junto  de 
seus filhos ou de toda a família; mas na maioria dos casos, os 

                                                                    
5
  O  serviço  doméstico  empregou  uma  grande  quantidade  de  mulheres 
pobres. Em 1914, estimavam­se cerca de 40 mil trabalhadores no setor 
e  de  10  a  15  mil  substituições  por  ano,  período  em  que  a  população 
paulistana  era  em  torno  de  375  mil  habitantes.  Na  mesma  época,  em 
1906, no Rio de Janeiro, havia 77 mil criadas, o que significava uma taxa 
de 76% das mulheres ativas (GRAHAM, 1992, p. 18­26; MATOS, 1994, 
p. 206; 2002). 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 63
 

trabalhadores  residiam  na  casa  dos  patrões,  em  troca  de 


moradia e alimentação (MATOS, 1994, 2002; PINTO, 1994, p. 
97). 
Tal quadro de transformações se estende até o final da 
década  de  1920.  Por  um  lado,  a  cidade  testemunhou  a  pri­
meira crise de mão­de­obra doméstica6. Ao mesmo tempo, o 
trabalho doméstico passou por um processo de mecanização, 
proporcionado pela instalação progressiva de redes de gás e 
eletricidade  em  residências  paulistanas e  pela  maior  difusão 
de eletrodomésticos. Por outro, o acesso à instrução femini­
na foi ampliado com o aumento do número de escolas. Com 
o avanço da indústria e do desenvolvimento urbano, assistiu­
se  a  uma  maior  presença da  mulher  no  espaço  público  e  no 
mercado  de  trabalho  formal.  Logo,  a  casa  deixou  de  ser  o 
lugar  privilegiado  de  condicionamento  de  padrões  corporais 
associado à vida moderna7.  
Desse modo, esta análise se desenvolveu em torno da 
hipótese  de  que  os  objetos  e  os  espaços  da  habitação  atua­
ram como indutores de comportamentos e hábitos corporais. 
Tal hipótese baseia­se no papel ativo que as práticas domés­
                                                                    
6
 Segundo Gordon e Arthur (1988 apud CARVALHO, 2008, p. 246­248), 
no  contexto  norte  americano  a  primeira  crise  de  mão­de­obra 
doméstica  foi  nos  anos  de  1870.  Já  em  São  Paulo,  embora  alguns 
artigos  de  periódicos,  como  os  da  Revista  Feminina,  publicados  na 
década de 1920, mencionavam a falta de empregadas e incentivavam o 
uso  de  utensílios  e  aparelhos  domésticos  para  facilitar  o  trabalho  da 
dona de casa (Revista Feminina, n. 113, out. 1923, p. 26­27), de acordo 
com Lemos (1976, p. 154) e Matos (1994, p. 203), o fenômeno passa a 
ter algum significado somente a partir de 1930. Pode­se considerar que 
a  forte  campanha  médica,  que  alertava  para  os  perigos  gerados  pela 
presença  de  servidores  domésticos  na  casa  e  que  contribuiu  para 
conduzir  a  mulher  ao  território  da  vida  doméstico,  favoreceu  esse 
processo.  
7
  Após  a  Primeira  Guerra  Mundial,  tanto  na  Europa  quanto  no  Brasil, 
assiste­se a um aumento do número de empregos femininos; entre os 
anos  1920  e  1940,  o  índice  subiu  53%  (CARVALHO,  2008,  p.  23; 
MALUF; MOTT, 1998. v. 3, p. 401­402; nota de rodapé 95). 
64 | Gênero, corpo e performance 
 

ticas  diferenciadas  entre  patroas  e  empregadas  teriam  na 


conformação  de  identidades  igualmente  diferenciadas.  Isto 
quer  dizer  que  tais  diferenças  estariam  baseadas  não  em 
valores  abstratos  ou  valores  exportados  de  conformações 
produzidas  fora  da  convivência,  mas  em  diferenças  que fo­
ram construídas diariamente no uso igualmente diferenciado 
do  espaço  da  casa,  bem  como  de  seus  objetos,  inclusive  do 
corpo. Constatou­se que as relações se davam a partir de um 
jogo  de  práticas  de  aproximações  e  distanciamentos,  indi­
cando que as identidades dessas mulheres se formaram tam­
bém  por  meio  da  mobilização  de  atributos  materiais  que 
agiram de modo semelhante. O esforço social de discrimina­
ção  esteve  justamente  nas  estratégias  de  diferenciar  aquilo 
que  perigosamente  se  mostrava  muito  próximo,  colocando 
em  risco  a  hierarquização  necessária  para  o  exercício  dos 
micropoderes diários.  
 
Limpeza artística e serviço grosseiro: a rotina de trabalhos 
domésticos 
Emquanto a criada fôr preparando o café, a dona de 
casa ou sua filha arrume as chicaras, o assucareiro, a 
cestinha de pão e dê a tudo uma disposição agradavel 
á vista; a familia sentir­se­á mais a gosto em torno de 
uma mesa bem arranjada e os filhos acostumar­se­ão 
á bôa ordem e ao serviço asseiado (CLESER, 1913, 19­
8
20) . 
Emquanto  a  dona  de  casa  fôr  cuidando  da  limpeza 
especial  —  eu  ia  dizer  artistica  —  dos  commodos,  a 
criada  faça  a  limpeza  da  cosinha.  Esfregue  as 
prateleiras,  o  armario  e  a  mesas  com  areia,  sabão  e 
um  pouco  de  potassa,  lave  o  chão,  passe  um  panno 
limpo e  humido sobre os  azulejos  das paredes,  areie 
os metaes do fogão e das torneiras, passe um panno 

                                                                    
8
  Todas  as  citações  foram  transcritas  conforme  a  grafia  dos  textos
originais. 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 65
 

de  lã  embebido  de  oleo  sobre  o  fogão,  torre  o  café, 


etc (CLESER, 1913, p. 90). 
Emquanto a filha da casa fôr fazendo as camas póde 
encarregar  a  criada  do  serviço  mais  grosseiro  (CLE­
SER, 1913, p. 147). 
Os excertos destacados acima foram retirados do ma­
nual de economia doméstica O lar doméstico, de Vera Cleser. 
A obra oferece uma série de conselhos a donas de casa sobre 
como  bem  administrar  seus  lares.  Escritos  por  autores  de 
diferentes esferas profissionais (professores, médicos, higie­
nistas,  literatos;  homens  e  mulheres;  leigos  e  religiosos) 
(MAGALDI, 2007, p. 19), os manuais prescritivos ensinavam o 
que era ser uma pessoa elegante, educada e civilizada, pres­
creviam  ações  em  eventos  sociais  e  festas,  davam  dicas  de 
higiene  (pessoal  e  da  habitação),  ajudavam  a  organizar  a 
rotina  de  trabalhos  domésticos,  forneciam  informações  so­
bre como tratar os empregados e, sobretudo, informavam o 
que era ser uma boa mãe, esposa e administradora da habi­
tação. A propagação de um ideal de família burguesa, orien­
tada para a intimidade do lar, sedimentou a mulher no terri­
tório  doméstico.  Enquanto  atribuía­se  ao  homem  a 
responsabilidade de promover o sustento da família, a espo­
sa deveria administrar a casa, supervisionar os empregados e 
educar  os  filhos.  Ao  se  pensar  os  preceitos  veiculados  por 
meio  dos  manuais  femininos  e  a  forma  como  buscavam 
transmitir  um  ideal  de  comportamento  à  mulher,  pode­se 
dizer que eles contribuíram para a construção de representa­
ções  e  papéis  sociais  destinados  ao  gênero  feminino,  como 
no  seguinte  trecho  da  obra  A  arte  de  viver  em  sociedade,  de 
Maria Amália Vaz de Carvalho (1909, p. 64­65): “Será polida, 
affavel,  carinhosa;  será  vigilante  e  activa;  será  garrida  e  re­
quintada;  fará  do  ménage  uma  arte,  da  vida de  familia  uma 
religião, e do seu lar o mais divino dos sanctuarios”. De acor­
do  com  Teresa  De  Lauretis  (1994),  a  construção  de  gênero 
ocorre por meio de várias tecnologias e discursos com o po­

66 | Gênero, corpo e performance 
 

der de controlar o campo de significado social e, assim, pro­
mover e implantar representações de gênero.  
Nos Estados Unidos, com o fim da Guerra de Secessão 
e a abolição da escravidão, em 1865, o êxodo de trabalhado­
res para a indústria provocou uma carência na oferta de mão­
de­obra disponível para os trabalhos domésticos. O trabalho 
na casa acabou redirecionado exclusivamente para a dona de 
casa.  Para  engajar  a  mulher  de  classe  média,  sem  ou  quase 
sem  empregados,  nos  afazeres  domésticos,  houve  investi­
mentos em embelezamento de utensílios e uma valorização 
das  atividades  da  casa.  A  noção  de  housework,  entendida 
como  trabalho  pesado,  árduo  e  repetitivo,  foi  substituída 
pela  de  home­making,  que  demandava  hábitos  refinados  e 
conhecimento  artístico  (ARNOLD;  BURR,  1985,  p.  155­159; 
BOXSHALL,  1997,  p.  16­33;  CARVALHO,  2008,  p.  247;  GIE­
DION,  1948,  p.  23;  519­527).  Nos  manuais  de  economia  do­
méstica, as atividades para a manutenção da habitação pas­
saram  a  ser  associadas  à  ideia  de  satisfação  pessoal:  cuidar 
da casa, dos filhos, do marido era algo que poderia dar prazer 
à dona­de­casa que assim cumpria o seu papel na sociedade. 
No Brasil, com um mercado favorável para a contrata­
ção de empregados, o fenômeno de estetização dos afazeres 
no  lar  teve  a  função  de  diferenciar  patroas  e  empregadas. 
Como a maioria das famílias podia arcar apenas com os cus­
tos de uma única criada, não raro a dona de casa era obrigada 
a  trabalhar  ao  lado  da  empregada,  supervisionando seu  tra­
balho  ou  até  mesmo  efetuando  algumas  tarefas.  Coabitar  o 
mesmo  espaço  representava  uma  situação  complexa  e,  em 
muitos  casos,  bastante  conflituosa9.  Sendo  alguém  de  fora 
do  núcleo  familiar,  de  um  grupo  social  distinto  e  presente 
constantemente na habitação, a empregada era considerada 
uma potencial ameaça à integridade moral e física da família 
                                                                    
9
  Para  saber  mais  sobre  as  complexas  relações  entre  patrões  e 
empregados nesse contexto, ver: MATOS, 1994, 2002; PINTO, 1994, p. 
97, SANTOS, 2015, p. 56­125; TELLES, 2011. 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 67
 

e,  dessa  forma,  deveria  ser  constantemente  vigiada.  Ade­


mais,  como  se  tratava  de uma  mulher  que  partilhava  com  a 
dona da casa tarefas domésticas, as diferenças entre empre­
gada e patroa precisavam ser constantemente reforçadas. A 
sinalização  do  distanciamento  entre  elas  também  pode  ser 
compreendida a partir da dimensão material.  
Apesar  de  concentrar  suas  preocupações  em  período 
mais recente, o trabalho de Maria Suely Kofes (2001) é espe­
cialmente  importante  para  esta  análise,  pois  nele  a  autora 
procura compreender as relações de identidade entre patro­
as e empregadas domésticas, assim como diferenças e seme­
lhanças  de  papéis  atuais  na  dinâmica  estabelecida  entre  es­
sas  duas  categorias  de  mulher.  A  autora  utilizou  enfoques, 
recursos  e  ferramentas  metodológicas  próprias  da  antropo­
logia para entender como se davam essas relações de gêne­
ro:  foram  observados  os  modos  de  interação,  “os  sujeitos 
aparecem como pessoas concretas dialogando”; e os discur­
sos inferidos a partir de um conjunto de entrevistas com em­
pregadas e donas de casa, incluindo suas histórias de vida. O 
universo doméstico foi o  palco dessas cenas; a condição co­
mum do sexo, como seres do mesmo gênero, supostamente 
as identificaria em uma única categoria “mulher”, mas Kofes 
demonstrou que as diferenças individuais e as desigualdades 
de  estratos  sociais  as  distanciavam.  A  relação  entre  empre­
gadas e patroas foi marcada a partir de limites e práticas ritu­
alizadas, um mecanismo fundamental da construção da iden­
tidade.  Daí  a  necessidade  da  autora  de  compreender  como 
eram  estabelecidas  essas  distinções:  o  uniforme,  o  elevador 
de  serviço,  o  sino  de  chamar  a  empregada  durante  as  refei­
ções, etc. Tratou­se, portanto, de um jogo entre identidade e 
diferença, entre proximidade e distanciamento, o qual exigia 
muitas  vezes  ritualizações  a  fim  de  clarear  as  fronteiras  in­
cessantemente obscurecidas.  
As  questões  observadas  por  Kofes  no  contexto  con­
temporâneo são igualmente estratégicas para os estudos do 
68 | Gênero, corpo e performance 
 

final do século XIX e início do XX. Porém, diferentemente da 
autora, que vê o processo de distanciamento como constru­
ções  ritualísticas,  em  que  as  diferenças  são  estabelecidas 
para  comunicar  categorias  de  mulheres  diferentes,  o  que  se 
pretende aqui é ampliar esta perspectiva, demonstrando que 
as diferenças entre patroas e empregadas não estão apenas 
na dimensão simbólica, mas na construção de corpos e subje­
tividades materialmente distintas. Observou­se que as práti­
cas domésticas diferenciadas, sustentadas por repertórios de 
objetos e condutas motoras10 igualmente diferenciadas, con­
formaram identidades distintas. É assim que, embora a con­
dição  de  seres  do  mesmo  gênero  supostamente  as  identifi­
casse,  as  práticas  individuais  as  distanciavam;  as  dimensões 
materiais atuam de modo indissociável, em um jogo de apro­
ximações  e  distanciamentos,  em  que  se  constrói  concreta­
mente, de fato, as fronteiras entre estes dois tipos de mulhe­
res. 
Desse  modo,  como  é  possível  observar  nos  excertos 
extraídos do manual O lar doméstico: conselhos praticos sobre 
a  boa  direcção  de  uma  casa,  a  diferenciação  entre  patroa  e 
empregada  era  constantemente  reforçada.  Enquanto  o  tra­
balho pesado e desqualificado — o “serviço mais grosseiro” —
deveria ser realizado pela empregada, a patroa se preocupa­
va com a ornamentação — a “limpeza artística” — e o traba­
lho leve. Dessa forma, tendo alguém responsável pela limpe­
                                                                    
10
  Na obra  Construire la culture matérielle, Warnier define como conduta 
motora  ou  síntese  corporal  a  relação  indissociável  entre  o  corpo  e  as 
próteses  materiais  utilizadas  por  ele  para  efetuar  ações  no  meio 
ambiente.  Como  cada  indivíduo  possui  um  repertório  particular  de 
objetos, a incorporação de condutas motoras é singularizada  e estaria 
relacionada à constituição de subjetividades. Desse modo, a formação 
de  identidades  estaria  vinculada  às  diferentes  próteses  que  cada 
indivíduo  acionaria  ao  longo  da  vida.  Assim,  uma  empregada 
doméstica, ao praticar trabalhos de outra natureza que o de sua patroa 
e  utilizar  outros  objetos,  não  se  distinguiria  desta  última  somente  na 
dimensão  simbólica,  mas  elas  seriam  feitas  de  fato  de  “matérias”
diferentes (WARNIER, 1999).  
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 69
 

za  pesada  —  ou  seja,  o  serviço  “sujo”,  desvalorizado,  que 


demandava força física e grande engajamento corporal —, a 
dona  de  casa  podia  se  dedicar  a  sua  “verdadeira”  função na 
sociedade: ser mãe, esposa e dona­de­casa, realizando ativi­
dades como organizar a rotina diária, cuidar da manutenção 
das roupas, criar pequenos trabalhos artísticos para enfeitar o 
lar, elaborar os cardápios saborosos e saudáveis para o mari­
do e se preocupar com a formação de seus filhos. 
Na  obra  São  Paulo  Naquele  Tempo  (1895­1915),  Jorge 
Americano  (2004)  registra  suas  lembranças  de  infância  e 
juventude em pequenas crônicas cujo tema principal é a capi­
tal paulista. Em um dos capítulos, o autor descreve como era 
a  rotina  de  trabalho  na  casa,  demonstrando  que  patroas  e 
empregadas possuíam atividades distintas:  
Outra função da dona de casa era fiscalizar a limpeza 
e arrumação.  
O  chão  era  varrido  pela  manhã.  Quando  as  crianças 
saíam para a escola, era varrido de novo e umidecido 
com pano molhado enrolado em  vassoura, para tirar 
o resto da  poeira.  Desde  a  última  epidemia  de febre 
amarela, a água do pano molhado tornava­se leitosa 
com a mistura de creolina.  
Uma  vez  por  semana,  lavava­se  a  casa  inteira  com 
escova e lixívia.  
Uma  vez  por  semana,  vasculhava­se  o  teto  de 
madeira com vassoura de cabo comprido, entre três e 
quatro  metros  de  altura,  dimensão  que,  somada  à 
estatura da empregada, dava o ‘pé direito’ do quatro
a  cinco  metros  e  meio.  Nas  casas  muito  antigas,  o 
‘vaculho’ tinha cabo de quatro metros e meio, para
alcançar  o  pé  direito  de  seis  metros  (AMERICANO, 
2004, p. 64­65). 
Assim como o autor descreve que os afazeres eram di­
vididos de um uma rotina regular e rígida, os manuais prescri­
tivos  aconselhavam  as  donas  de  casa  a  seguir  um  método. 
Para  a  “bôa  ordem  domestica”,  ou  seja,  a  realização  sem 
70 | Gênero, corpo e performance 
 

atropelos de todas as tarefas a se desempenhar, era necessá­
rio  a  elaboração  de  “um  plano  de  inabalavel  regularidade 
para todo o serviço diario” (CLESER, 1913, p. 13). Enfatizava­
se  a  importância  da  dona  de  casa  ter  “método”,  “ordem”  e 
“regularidade”,  de  organizar  racionalmente  as  atividades  e 
aproveitar  bem  o  tempo  (MALUF;  MOTT,  1998,  p.  406).  No 
capítulo “Falta de tempo”, do Livro das Noivas, Júlia Lopes de 
Almeida contou a suas leitoras o caso de uma moça que, para 
organizar  a  rotina  de  afazeres  na  casa  e,  assim,  ter  tempo 
para  se  dedicar  aos  momentos  de  lazer,  elaborou  tabelas 
descrevendo  as  atividades  da  cozinheira,  do  copeiro  e  da 
criada. Sendo assim, com “um methodo rigoroso”, afirmava a 
autora, as inúmeras atividades sujeitas ao comando da dona 
de  casa  poderiam  ser  feitas  com  tranquilidade  e  exatidão 
(ALMEIDA, 1905, p. 73­77).  
Iniciei  esse  trabalho  [de  limpeza  geral  da  casa] 
methodicamente. Não é necessário pôr em desordem 
a  um  tempo  todos  os  commodos  da  casa.  Basta 
limpar  um  ou  dois  commodos da cada vez. E’ essa a
ocasião de fazer reparos, empapelamentos, retoques, 
pinturas,  caiações,  etc.  Examinam­se  bem  as 
instalações de esgoto, e limpam­se e desinfectam­se 
rigorosamente  todas  as  peças  relacionadas  com  o 
mesmo (LAR e saude da família, 1922, p. 144).  
Assim como no excerto acima do manual O lar e a sau­
de da família, Cleser apontava que o trabalho na casa deveria 
ser feito seguindo um método. Segundo a autora do manual 
O lar doméstico, embora fosse difícil apresentar a suas leito­
ras um plano infalível que pudesse ser adotado em todas as 
casas  —  “pois  elle  depende  das  circumstancias  de  fortuna  e 
numero  de  criados”  —,  ela  indicava  um  exemplo  de  como 
uma  senhora  de  uma  família  de  recursos  modestos  poderia 
organizar  o  “movimento  diario”  de  sua  casa  (CLESER,  1913, 
p. 13). Assim, contando com a participação da dona de casa e 
de suas filhas, o trabalho da empregada começava logo cedo: 
“A criada deve levantar­se no inverno ás 6 horas, no verão ás 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 71
 

5 ½” (CLESER, p. 17­18). As tarefas de limpeza e organização 
dos cômodos da casa, de manutenção e produção de objetos 
(trabalhos  manuais)  e  de  preparo  das  refeições  eram  então 
divididas  sistematicamente  em  horários  pré­estabelecidos  e 
supervisionadas constantemente pela patroa: “Assim como a 
dona de casa determina todo o serviço, deve tambem revis­
tar todos os cantos de sua casa para saber como são cumpri­
das as suas ordens” (CLESER, p. 30). Desse modo, tratava­se 
de  um  mecanismo  orientado  por  rígidas  normas  de  traba­
lho11.  
Como é possível observar no depoimento de D. Risole­
ta12,  uma  das  senhoras  que  teve  suas  memórias  coletadas  e 
analisadas pela autora Ecléa Bosi na obra Memória e Socieda­
de:  Lembranças  de  Velhos,  a  normatização  do  trabalho  do­
méstico tornou a rotina das criadas ainda mais árdua e rigo­
rosa.  Além  do  maior  número  de  atividades  a  serem 
desempenhadas, a empregada era impedida de controlar seu 
próprio ritmo de trabalho. Os afazeres iniciavam­se logo ce­
do, muitas vezes ainda de madrugada, e eram finalizados às 
altas  horas  da noite,  permitindo­lhes  poucas  horas  de  sono; 
mesmo  entremeado  por  pequenas  pausas  para  descanso, 
passava­se o dia trabalhando.  
[...]  eu  levantava  às  quatro  da  manhã,  trabalhava  o 
dia inteirinho [...]. Eu que fazia tudo: fazia pão, lavava 
passava  roupa  às  vezes  a  noite  inteira  [...].  Para 
limpar o assoalho eu espalhava areia na tábuas [sic] e 
esfregava  de  joelhos  com  um  tijolo.  Depois  varria, 
jogava  água  e  puxava  com  um  pano  torcido,  rodo 
                                                                    
11
  Tais  obras  prescritivas  contribuíram  então  para  a  difusão  de  valores 
burgueses  que  sistematizavam  o  trabalho  doméstico;  a  lógica  que 
orientava o trabalho urbano e industrial era introduzida e adaptada ao 
espaço  doméstico  para  garantir  a  prosperidade  familiar  (CARVALHO, 
2008, p. 241­242; SILVA, 2008, p. 144­145). 
12
  D. Risoleta, nascida em 1900, era negra e filha de escravo liberto; aos 
oito  anos  de  idade  foi  colocada  para  trabalhar  como  empregada 
doméstica em troca de alfabetização (BOSI, 2010, p. 363­401). 
72 | Gênero, corpo e performance 
 

nem  existia.  Imagine  como  ficava  o  rim  de  quem 


esfregava  o  tijolo!  (Depoimento  de  D.  Risoleta.  In: 
BOSI, 2010, p. 371­372). 
De  forma  semelhante,  Americano  também  descreve 
como era a rotina de trabalho de uma empregada doméstica. 
Como  é  possível  notar,  as  folgas,  quando  permitidas,  eram 
apenas uma vez por semana e somente após o cumprimento 
de toda a atividade na casa.  
Quem  trabalhava  não  tinha  direito  a  nada  [...]. 
Descanso,  domingo,  só  depois  que  fazia  todo  o 
serviço e deixava a mesa do lanche pronta, era muito 
difícil eles comerem fora. Então saía pra passear, mas 
de  noite  já  estava  lá  porque  segunda  tinha que 
levantar às quatro horas (AMERICANO, 2004, p. 382). 
De manhã (6 horas): fazer o café, ferver o leite, varrer 
o  vestíbulo,  o  escritório,  a  sala  de  jantar.  Espanar 
tudo.  Arranjar  a  mesa  do  café,  servir  e  tirar.  Lavar  a 
louça do café. Arranjar os quartos. Varrer a saleta e a 
copa,  as  escadas  e  o  jardim.  Arranjar  a  mesa  do 
almoço, servir, desmanchar a mesa, almoçar. 
Depois  do  almoço:  varrer  a  sala  de  jantar,  lavar  a 
louça  e  arear  os  talheres,  guardar.  Lavar  o  banheiro, 
passar o pano molhado na copa e no banheiro, varrer 
e arrumar o porão  
SERVIÇO DA SEMANA 
Segunda: Encerar os quartos e escritório dos rapazes. 
Terça: Virar colchões e encerar os quartos.  
Quarta: Vasculhar os tetos e encerar a sala de jantar.  
Quinta:  Bater  todos  os  tapetes  e  encerar  a  sala  de 
visitas. 
Sexta:  Encerar  o  escritório  e  o  vestíbulo  e  lustrar  os 
móveis. 
Sábado: Lavar as vidraças. 
Entremeando nas horas vagas:  
Arrumar  os  armários  de  louça  e  de  roupas,  passar 
sapólio nos metais, pontear meias, lavar os globos da 
luz. 

Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 73
 

Saídas,  um  domingo  sim,  outro  não,  depois  do 


almoço,  voltando  para  servir  o  jantar  (AMERICANO, 
2004, p. 88­89). 
Como  a  organização  do  trabalho  doméstico  era  feita 
pela  dona  de  casa,  a  patroa  teve  seu  papel  elevado  ao  de 
gestora  do  lar;  a  empregada,  sempre  sob  sua  supervisão, 
passou então a ser encarada como mera executora de tarefas 
(SILVA, 2008, p. 145).  
Com relação aos cuidados com a roupa, os manuais e­
videnciavam a importância da dona de casa saber costurar e 
fazer pequenos trabalhos de agulha — tais como a tapeçaria, 
as rendas, o bordado, o tricô, o macramê e o crochê. Mais do 
que  uma  forma  de  dar  vazão  à  criatividade  e  à  imaginação, 
eles podem dia representar, para as famílias de recursos mé­
dios e pobres, um alívio nas contas, no final do mês. Seguin­
do  modelos  divulgados  em  periódicos  femininos  (SOUZA, 
1916,  p.  18),  a  dona  de  casa  poderia  “confeccionar  a  roupa 
necessaria a seu lar” e, assim, dispensar os trabalhos da mo­
dista: “Para modernisar um vestido velho, mas ainda em bom 
estado, para transformar outros em vestidinhos para os filhos 
e para ter todas as peças do vestuario em harmonia com as 
exigencias  da  moda,  é  indispensavel  que  cada  senhora  seja 
sua propria modista” (CLESER, 1913, p. 105). Mas a  costura, 
junto  dos  trabalhos  de  agulha  e  dos  demais  artesanatos  ca­
seiros, não servia apenas para vestir a família e fazer conser­
tos  em  toda  a  roupa  utilizada  no  cotidiano  doméstico  (len­
çóis,  toalhas  e  guardanapos).  Esses  trabalhos  manuais 
poderiam  se  tornar  uma  fonte  de  renda  familiar,  presentes, 
adornos ou objetos de decoração. Por esse motivo, a máqui­
na de costura era considerada a “companheira inseparavel da 
boa  dona  de  casa”  e  a  mulher  casada  que  não  dominava  a 
“arte  de  costurar”,  “digna  de  lastimas”  (LAR  FELIZ,  1916,  p. 
35­36). Cleser enfatizava também a importância da atividade 
para  a  “prosperidade  do  lar  doméstico”  e  aconselhava  as 
mães a ensinarem às suas filhas as técnicas de costura:  
74 | Gênero, corpo e performance 
 

A primeira recomendação que dirigirei a toda mulher, 
seja  qual  fôr  a  sua  fortuna  e  posição  social,  é  a  de 
aprender a cortar e costurar todos os objectos de seu 
uso,  desde  a  roupa  branca  até  os  seus  vestidos  de 
preço. Esta ciência ocupa o primeiro logar entre todos 
os trabalhos de agulha, é a mais indispensável á dona 
de  casa  e  ás  moças  contribue  largamente  para  a 
prosperidade  do  lar  doméstico  (CLESER,  1913,  p. 
104). 
Minhas  senhoras!  exigi  inflexivelmente  que  vossas 
filhas  se  aperfeiçoem  na  costura  á  mão  e  á  machina 
de  roupa  branca,  no  remendar  e  no  serzir.  Estes 
trabalhos  cuidadosamente  executados  honram  mais 
do  que  a  sabia  combinação  de  sedas,  canotilhos, 
froco,  etc.,  cujo  preço  está  muitas  vezes  superior  ás 
nossas circunstâncias (CLESER, 1913, p. 105). 
Enquanto as donas de casa se dedicavam à elaboração 
de trabalhos de agulha, o trabalho de higienização da roupa
—  lavar,  engomar  e  passar  —  ficava  sob  a  responsabilidade 
de  empregadas.  Realizado  no  pátio  dos  cortiços  pelas  lava­
deiras ou no quintal das casas pelas criadas, a rotina de cui­
dados necessários para a “Conservação da roupa branca e do 
vestuário” era bastante árdua, o que demandava a dedicação 
de  muitas  horas.  Nas  casas  sem  água  encanada,  o  trabalho 
começava com a obtenção da água em alguma bica, chafariz 
ou  poço  para  encher  o  tanque.  A  roupa  era  colocada  em 
grandes  tinas  (bacias  de  madeira),  sobre  as  quais  se  derra­
mava  sabão  e  água  fervente.  Dependendo  do  tecido  e  da 
quantidade de sujeira, o processo deveria ser repetido outras 
vezes. Para tirar manchas e clarear a roupa branca, fazia­se a 
barrela ou a lixívia. Depois de esfregadas e batidas nas mãos 
ou em tábuas de madeira próprias para bater, a roupa branca 
era  anilada,  quarada,  enxaguada,  torcida  e  engomada;  já  os 
tecidos coloridos tinham que ser estendidos do avesso e co­
locados para secar na sombra. O linho, o algodão e o morim 
eram  tecidos  muito  utilizados  na  confecção  de  roupas  de 
cama e mesa. Após molhados, o peso e a dificuldade de ma­
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 75
 

nuseio dessas peças eram muito maiores. No final de todo o 
processo, além da roupa limpa e seca, acumulavam­se quei­
maduras  nas  mãos  já  calejadas  e  dores  em  todo  o  corpo 
(MALUF; MOTT, 1998, p. 403­408).  
Para  engomar,  era  necessário  preparar  a  goma,  uma 
mistura feita com água e amido (geralmente polvilho), e de­
pois passar a roupa com o ferro bem quente. Assim como a 
água encanada, a eletricidade ainda não era acessível para a 
maioria das casas. Os ferros de passar elétricos, que aparen­
temente facilitavam o processo de passar roupas, nas primei­
ras décadas do século XX ainda eram muito restritos. A maio­
ria das pessoas utilizava ferros de estufa, a cunha ou a carvão 
(que variavam conforme o tamanho, mas que no Brasil pesa­
vam  entre  três  e  três  quilos  e  meio)  (CARVALHO,  2008,  p. 
269). Como é possível notar nas memórias de D. Risoleta e D. 
Ilma13, o manejo desse tipo de utensílio era bastante árduo e 
demandava  um  conhecimento  que  era  adquirido  somente 
pela experiência. Por exemplo, uma boa engomadeira, além 
de saber controlar a temperatura ideal para cada tipo de te­
cido, tinha que tomar cuidado para não abrir o ferro e derru­
bar o carvão sobre a roupa. Para tornar o trabalho mais rápi­
do  e  eficiente,  evitando  longas  interrupções,  era  preciso 
utilizar mais de um aparelho, que deveriam estar previamen­
te aquecidos. 
Levantava de madrugada, trabalhava o dia inteirinho, 
de noite acendia cinco ferros de carvão para engomar 
a roupa de linho que tinha que passar tudo úmido: eu 
largava um ferro e pegava outro, largava um e pegava 
outro.  Hoje  está  uma  beleza  esse  tergal  que  não 
precisa  nem  passar,  sacode  bem,  dobra  e  guarda.  O 
ferro era pesado, não era ferro de estufa: o linho tinha 

                                                                    
13
  Cuja avó havia sido escrava e trabalhado como lavadeira (Lembranças 
de  D.  Ilma,  Banco  de  memórias  de  famílias  negras,  p.  3  em  MATOS, 
2002, p. 145).  
76 | Gênero, corpo e performance 
 

que  passar  muito  bem,  com  ferro  bem  quente 


(Depoimento de D. Risoleta em BOSI, 2010, p. 371). 
[...] Então a gente ficava a noite todinha engomando 
roupa... fazia também a goma com amido... às vezes 
era cru né, aqueles saiotes que existia naquela época, 
é... bem duro, então a goma era cozida; ...camisa de 
homem, então a gente tinha que ter uma goma mais 
fraca, então era uma, então era crua. E naquela época 
não  tinha  esse  ferro  elétrico,  era  ferro  a  de  [sic] 
carvão.  Então a  gente  limpava  bem  o ferro, punha  o 
carvão  dentro  do  ferro  né,  e  com  brasa  de  carvão  aí 
ele  esquentava  né.  Aí  a  gente  fechava  o  ferro  e 
começava  a  passar  a  roupa...  quando  acabava  o 
carvão  e  já  tinha  que  ir  lá  pôr  carvão  outra  vez.  De 
repente,  às  vezes,  o  ferro  abria.  Tava  engomando 
aquelas  camisas  limpinhas  né,  aí  de  repente  o  ferro 
abria.  Ai!  Voava  carvão  por  cima  das  camisas  suja 
tudo, perdia todo o trabalho (MATOS, 2002, p. 145). 
Observa­se,  desse  modo,  que  os  cuidados  com  a 
roupa  também  eram  utilizados  para  diferenciar 
patroas  e  empregadas domésticas.  Enquanto  a dona 
de  casa  ficava  responsável  pela  costura  e  demais 
trabalhos  de agulha,  a  higienização  das roupas,  uma 
atividade  doméstica  que  demandava  muito  tempo 
para  ser  realizada  e  grande  engajamento  do  corpo, 
era realizada por lavadeiras e criadas.  
Outra  atividade  doméstica  que  também  merece  des­
taque para demonstrar é o trabalho na cozinha. Enquanto a 
dona de casa ficava responsável pela “arte culinária”, ou seja, 
pelo abastecimento da despensa, elaboração dos cardápios e 
ornamentação dos pratos, mesa e ambiente onde eram feitas 
as  refeições  —  “ocupe­se  com  os  numerosos  nadas que  não 
custam  dinheiro,  mas  que  as  criadas  não  sabem  fazer  e  que 
comunicam á mesa familiar esse aspecto poético com que a 
mulher  bem  educada  sabe  idealisar  os arranjos  mais  prosai­
cos da vida domestica” (CLESER, 1913, p. 28) —, as atividades 
diretamente relacionadas ao preparo das refeições ficavam a 
cargo das cozinheiras, em outras palavras, a parte mais árdua 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 77
 

dos trabalhos na cozinha (lavar, descascar, picar, mexer, ba­
ter, amassar, refogar, fritar, cozinhar e assar).  
Embora  a  cozinha  e  o  trabalho  doméstico  estivessem 
passando  por  transformações  com  a  introdução  do  fogão  a 
gás e a instalação de redes de abastecimento de energia nas 
habitações paulistanas (HOMEM, 2003; SILVA, 2008), a mai­
oria  das  casas  ainda  possuía  cozinhas  muito  semelhantes  à 
descrita por John Mawe, no início do século XIX. Instalada no 
lado  externo,  dispersava­se  pelo  quintal.  Ali,  onde  se  dava 
não apenas o preparo dos alimentos, mas o beneficiamento, 
a estocagem e a produção, eram acomodados, em unidades 
isoladas, o fogão a lenha, a despensa, o depósito, o tanque, o 
galinheiro, o pomar, as instalações sanitárias e o alojamento 
dos escravos (e após a abolição, dos criados):  
Para  dar  uma  ideia  da  cozinha,  que  deve  ser  a  parte 
mais  limpa  e  asseada  da  habitação,  o  leitor  pode 
imaginar  um  compartimento  imundo  com  chão 
lamacento, desnivelado, cheio de poças d’|gua, onde
em lugares diversos armam fogões formados por três 
pedras  redondas,  onde  pousam  as  panelas  de  barro, 
em que cozinham a carne; como a madeira verde é o 
principal  combustível,  o  lugar  fica  cheio  de  fumaça, 
que,  por  falta  de  chaminé,  atravessa  as  portas  e  se 
espalha pelos outros compartimentos, deixando tudo 
enegrecido  pela  fuligem.  Lamento  ter  que  afirmar 
que  as  cozinhas  das  pessoas  abastadas  em  nada 
diferem  destas  (MAWE,  1807  apud  LEMOS,  1976,  p. 
204­205). 
O  trabalho  nessa  cozinha  também  não  era  nada  fácil. 
As precárias condições materiais exigiam das cozinheiras um 
trabalho  pesado,  cansativo  e  demorado,  seja  por conta  da 
preparação dos pratos ou da limpeza das panelas engordura­
das ou enegrecidas pela fuligem: “O trabalho na cozinha era 
acalorado, sujo e  cansativo,  mesmo  quando  dentro de  casa. 
Até os pratos mais comuns requeriam preparações laboriosas 
e sanguinolentas” (GRAHAM, 1992, p. 62). Mesmo nas habi­
78 | Gênero, corpo e performance 
 

tações  mais  abastadas,  o  costume  de  criar  nos  quintais  ani­


mais para consumo próprio (porcos, galinhas, patos e perus) 
ainda era mantido. Por exemplo, para o preparo de um fran­
go, primeiro o animal precisava ser examinado, para a identi­
ficação de possíveis doenças, antes de ser abatido: “Com um 
corte pequeno e preciso na veia do pescoço [...], a cozinheira 
o matava e sangrava rapidamente, chamuscava­o, depenava­
o e, então, aprontava­o para cozinhar” (GRAHAM). Depois de 
picado e temperado, finalmente era cozido ou assado. Como 
também  relatou  D.  Risoleta,  antes  da  mecanização  da  cozi­
nha e do surgimento das indústrias alimentícias, “quase tudo 
se  fazia  em  casa”.  As  carnes  eram  cortadas  em  tábuas  de 
madeira  e  trituradas  em  moedores  de  metal;  o  açúcar  mas­
cavo, para ser transformado em branco, precisava ser cozido 
por longas horas em tachos de cobre; o sal era esmigalhado 
com uma garrafa até se tornar refinado; o pão sovado e enro­
lado em lajes de mármore; o milho e o café moídos em pilão 
de  madeira;  o  arroz  escolhido  e  lavado  diversas  vezes;  e  o 
feijão  batido  para  separar  os  grãos  da  vagem  seca.  Como 
poucas casas possuíam despensas ou ganchos, os alimentos 
geralmente eram atacados por formigas, baratas, moscas ou 
ratos  e  acabavam  contaminados  ou  mofados.  As  cozinhas,
que  não  tinham  acesso  à  rede  de  água  e  esgoto,  exigiam  o 
armazenamento  de  água  em  jarros  de  barros  de  diversos 
tamanhos.  Para  a  limpeza  das  panelas,  frigideiras  e  demais 
utensílios  de  ferro,  pedra,  barro  e  cobre,  utilizava­se  sabão 
feito  em  casa,  com  uma  mistura  de  cinzas  e  pau  de  pita,  e 
areava­se com areia, cacos de telha em pó e batatinha (CAR­
VALHO, 2008, p. 251; GRAHAM, 1992, p. 46­48; 62;63; BOSI, 
2010, p. 367­369; MALUF; MOTT, 1998, p. 412­413).  
Mesmo com a modernização da cozinha no final do sé­
culo  XIX  e  a  introdução  do  fogão  a  gás,  o  trabalho  da  cozi­
nheira continuava sendo cansativo e desprestigiado. O novo 
equipamento  contribuiu  para  reforçar  as  diferenças  entre 
patroas e empregadas. Acostumadas a trabalhar em fogões à 
lenha, sentir a temperatura com as mãos, usar a força física 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 79
 

para manusear as chapas de ferro, controlar a fonte de ener­
gia  observando  a  quantidade  de  lenha  etc  (CARVALHO, 
2008,  p.  256­257;  MENESES,  2000;  SILVA,  208,  p.  142­150), 
as cozinheiras tiveram de aprender um novo padrão corporal 
de trabalho, além de inúmeras outras técnicas de limpeza do 
novo  equipamento  e  do  espaço.  Os  manuais  de  economia 
doméstica  contribuíam  indicando  uma  rigorosa  rotina  de 
atividades  onde  estavam  incluídas  lavagens,  polimento,  es­
panação,  desinfecção  e  manutenção  de  utensílios,  equipa­
mentos, assoalhos, azulejos, teto, janelas, portas etc.: “Uma 
vez  por  semana,  em  dia  determinado,  deve  a  criada  areiar 
todos  os  utensilios  da  cozinha,  bem  como  as  prateleiras,  o 
fogão, os ladrilhos e azulejos [...]. As janellas e portas, o tecto 
e  as  paredes,  os  metaes  do  fogão  e  das  torneiras  devem 
sempre  conservar  um  aspecto  irrepreensivelmente  limpo  e 
luzido” (CLESER, 1913, p. 185). Em suma, as mudanças nesse 
espaço  da  casa  acirraram ainda  mais  as  distâncias  entre  pa­
troas e empregadas.  
Os sinais de distinção entre essas mulheres podem ser 
notados também em suas indumentárias de trabalho. Em um 
artigo publicado em 1918, a Revista Feminina apresentava às 
donas  de  casa  vários  modelos  de  aventais  ricamente  orna­
mentados com bordados, rendas, fitas e laços (figura 1). Com 
receio  de  serem  confundidas  com  as  empregadas,  muitas 
senhoras resistiam ao uso da peça. Por isso, o texto do artigo 
deixava claro: “O avental da cozinheira, de panno grosseiro e 
sem  ornatos,  nunca  poderá  confundir­se  com  o  avental  de 
linho enfeitado de entre­meios, bordado de rendas e passado 
de  fitas,  que  serve  mais  de  ornamento  que  de  protecção  a 
uma elegante ‘toilette’ caseira” (Revista Feminina, n. 55, dez. 
1918,  p.  74­75).  Além  de  não  possuir  detalhes,  os aventais  e 
os  uniformes  das  domésticas  eram  geralmente  feitos  com 
tecidos mais resistentes e flexíveis, isso porque, como a roti­
na de trabalho numa casa era dinâmica e árdua, as peças não 
poderiam limitar os movimentos. No Mappin Stores, onde as 

80 | Gênero, corpo e performance 
 

senhoras  encontravam  para  si  peças  importadas  de  seda, 


musselina,  renda,  crepe  e  linho,  para  as  empregadas  eram 
oferecidos  vestidos,  aventais,  toucas,  colarinhos,  entre  ou­
tros artigos feitos de algodão e tecidos mais “duráveis”, o que 
provavelmente  tornava  sua  vestimenta  menos  delicada  e 
menos elegante (figura 2).  
Essa questão também fica aparente em uma das crôni­
cas de Americano e na fala de D. Risoleta. O autor contou o 
caso  de  uma  personagem  de  sua  obra,  possivelmente  sua 
mãe,  que precisou  se  deslocar  até  o  centro  da  cidade  para 
fazer compras. Quando entrou na  Casa Allemã em busca de 
tecidos, o caixeiro da loja começou a mostrar­lhe os produtos 
nacionais; a senhora reclamou dizendo que só lhe serviam as 
fazendas  estrangeiras:  “O  senhor  acha  que  eu  vou  comprar 
fazenda nacional? [...] eu não estou fazendo compras para as 
criadas” (AMERICANO, 2004, p. 77). Já D. Risoleta, em depo­
imento a Bosi, relembrou que havia diferenças entre as rou­
pas simples das empregadas e as “caríssimas” utilizadas pelas 
patroas:  
A  gente  ganhava  uma bagatela  que  não  dava  pra 
nada,  nem  pra  se  vestir.  Tinha  que  comprar  as 
fazendinhas  baratas  da  Pernambucanas  pra  fazer  os 
vestidinhos  e  as  patroas  compravam  as  fazendas 
caríssimas  delas  e  não  davam  nunca  para  a 
empregada  vestir,  pra  ela  não  ficar  chique.  Que 
espírito atrasado que elas tinham! (Depoimento de D. 
Risoleta. In: BOSI, 2010, p. 385). 
A análise da existência de práticas domésticas diferen­
ciadas e das indumentárias de trabalho revela que os repertó­
rios  de  objetos  de  patroas  e  empregadas  domésticas  eram 
distintos. Observando algumas imagens publicitárias de mo­
da do Mappin Stores, nota­se que, enquanto as mulheres que 
apareciam  expondo  modelos  de  vestidos  eram  geralmente 
representadas  com  as  mãos  livres,  apoiadas  na  cintura,  en­
roscadas em colares ou segurando objetos como leques, flo­
res,  espelhos  ou  guarda­chuvas,  as  raras  figuras  de  criadas 
Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 81
 

eram representadas vestindo uniformes, portando utensílios 
de trabalho — panos, vassouras e espanadores —, e em ações 
que  demonstravam  estar  realizando  alguma  atividade  do­
méstica.  

Figura  1—  “Aventaes”.  Revista  Feminina,  n.  55,  dez.  1918,  p.  74­75. 
Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo. 

82 | Gênero, corpo e performance 
 

Figura 2—  “Vista suas criadas com distincção”. O Estado de São Paulo, 
04 mar. 1923, p. 11. Coleção Mappin, Museu Paulista da Universidade 
de São Paulo. 

Em suma, as transformações que ocorreram na habita­
ção paulista entre o final do século XIX e o início do XX con­
tribuíram  para  o  aumento  das  atividades  domésticas.  Com 
uma  grande  disponibilidade  de  mão­de­obra,  mulheres  po­
bres eram empregadas como criadas, lavadeiras, cozinheiras, 

Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 83
 

amas­de­leite, passadeiras etc. Como patroas e empregadas 
trabalhavam  em  parceria,  cuidando  dos  afazeres  da  casa, 
uma divisão social do trabalho passou a ser necessária. Desse 
modo, elas deveriam ter tarefas diferenciadas na casa. Fican­
do o “serviço grosseiro” — ou seja, o trabalho “sujo”, desvalo­
rizado,  que  demandava  força  física  e  grande  engajamento 
corporal  —  sob  responsabilidade  da  criada,  a  dona  de  casa 
poderia se dedicar à “limpeza artística” da habitação — orga­
nização da rotina doméstica, cuidados com as roupas, criação 
de pequenos trabalhos manuais, elaboração dos cardápios e 
preocupação com a educação dos filhos. Sendo assim, muito 
mais do que um processo em que a dimensão material é in­
terpretada como um conjunto de símbolos que representava 
as diferenças sociais dessas mulheres e as tentativas de ma­
nutenção  da  hierarquia  estabelecida  entre  elas  —  tal  qual 
considerou Kofes ao estudar o fenômeno contemporâneo —, 
observa­se que a cultura material fazia parte de fato da cons­
trução  dessas  diferenças.  Desse  modo,  as  práticas  domésti­
cas  diferenciadas,  sustentadas  por  repertórios  de  objetos  e 
condutas  motoras  igualmente  diferenciadas,  conformaram 
identidades distintas para patroas e empregadas domésticas.  
 
Considerações finais 
O objetivo deste trabalho foi analisar as relações entre 
patroas  e  empregadas  domésticas  na  cidade  de  São  Paulo, 
entre no final do século XIX e início do século XX. A intenção 
foi entender a construção da identidade dessas mulheres no 
espaço doméstico a partir das diferenças étnicas, sociais e de 
gênero,  sob  a  perspectiva  da  cultura  material.  A  análise  se 
desenvolveu  em  torno  da  hipótese  de  que  os  objetos  e  os 
espaços  da  habitação  atuaram  como  indutores  de  compor­
tamentos  e  hábitos  corporais.  Como  patroas  e  empregadas 
possuíam  práticas  domésticas  diferenciadas  e,  consequen­
temente, repertórios de objetos e sínteses motoras também 
diferenciados, suas identidades se conformariam igualmente 
84 | Gênero, corpo e performance 
 

distintas.  Observou­se,  então,  um  jogo  de  práticas  de  apro­


ximações e distanciamentos, num esforço social de discrimi­
nação para diferenciar aquilo que poderia colocar em risco as 
hierarquias estabelecidas entre patroas e empregadas.  
 
Referências:  
Periódicos 
Revista Feminina, 1915­1926.  
Manuais femininos 
ALMEIDA, Júlia Lopes de. Livro das Noivas. 2. ed. Rio de Janei­
ro/São Paulo/ Minas: Francisco Alves & Cia., 1905. 
CARVALHO, Maria Amália Vaz de. A arte de viver na sociedade. 4. 
ed. Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira. 4. ed., [S.l.]: 1909.  
CLESER, Vera A. O lar doméstico: conselhos praticos sobre a boa 
direcção de uma casa. Sabará/MG: Unico agente vendedor A. Dilli/ 
São Paulo Typographia de Oscar Monteiro, 1913.  
 [O] LAR e saude da familia: Manual domestico. 5. ed. São Paulo, 
Sociedade Promotora da Saude no Brasil: Estação de São Bernar­
do, [1922]. 
LAR FELIZ: Manual de Economia Domestica, de Jardinagem, de 
Avicultura, etc. para uso das jovens mães e de todos quantos amam 
se lar. São Paulo: Livraria Agricola da “Chacara e Quintaes”, 1916. 
ROQUETTE, José Ignacio. Codigo do bom tom; ou, Regras da civili­
dade e de bem viver no XIX sèculo. Nova edição corrigida e considera­
velmente augmentada. Paris: Aillaud, 1875. 
ROQUETTE, José Ignácio. Codigo do bom tom; ou, Regras da civili­
dade e de bem viver no século XIX. Lilia Moritz Schwarcz (Org.). São 
Paulo: Cia das Letras, 1997.  

Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 85
 

RUDAX, p.; MONTET, Ch. Guide pratique de la mère: les deux 
premières années de l’énfant. Notions élémentaires de
puericulture. Paris: Masson et Cie, 1927.  
SOUZA, Bento Jordão. Manual da dona­de­casa: industria de domi­
cilio, receitas e processos caseiros, arte culinaria, etc. São Paulo: 
Hennies, 1916. 
Bibliografia 
AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895­1915). São 
Paulo: Saraiva, 1957.  
ARNOLD, Erik; BURR, Lesley. Housework and the Appliance of 
Science. In: ARNOLD, Erik et alii. Smothered by Invention: Technol­
ogy in Women’s Live. Londres, Pluto, 1985, p. 145­161. 
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São 
Paulo: Cia das Letras, 2010.  
BOXSHALL, Jan. Good housekeeping: Every Home Should Have 
One. London: Ebury Press Random House, 1997, p. 16­19. 
CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Bem­morar em São Paulo, 
1880­1910: Ramos de Azevedo e os modelos europeus. Anais do 
Museu Paulista, São Paulo, v. 4, p. 165­200, jan./dez. 1996. 
CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: O sistema do­
méstico na perspectiva da cultura material — São Paulo, 1870 — 
1920. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2008.  
CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura material, espaço domésti­
co e musealização. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 27, nº 46: 
p. 443­469, jul.­dez., 2011. 
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. 3ª ed. Rio 
de Janeiro: Graal, 1989. 
COWAN, Ruth Schwartz. The ‘Industrial Revolution’ in the Home.
Household Technology and Social Changes in 20th­century. In: 
Technology and Culture, Chicago, v. 17, n. 1, p. 1­23, 1979. 

86 | Gênero, corpo e performance 
 

COWAN, Ruth Schwartz. More Work for Mother. New York: Basic 
Books, 1983. 
DE LAURETIS, Teresa. “A Tecnologia do Gênero”. In: HOLLANDA, 
Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e Impasses: O Feminismo 
como crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 206­241. 
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 
Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 
GIEDION, Siegfried. Mechanization takes command: a contribution 
to anonymous history. New York: W.W. Norton, 1948. 
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus 
patrões no Rio de Janeiro, 1860­1910. Trad. Viviana Bosi. São Pau­
lo: Cia das Letras, 1992. 
HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano e Outros 
Formas de Morar da Elite Cafeeira (1867­1918). São Paulo: Martins 
Fontes, 1996.  
HOMEM, Maria Cecília Naclério. O princípio da racionalidade e a 
gênese da cozinha moderna. Pós­Revista do Programa de Pós­
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 13, jun. 2003, 
p. 124­154. 
KOFES, Maria Suely. Mulher, Mulheres: identidade, diferença e 
desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. 
São Paulo: Unicamp, 2001. 
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, Rio de Janei­
ro: Vozes, 2007.  
LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc.: um estudo sobre as zonas de 
serviço da Casa Paulista. São Paulo: Perspectiva, 1976. 
LEMOS, Carlos A. C. Alvenaria Burguesa: breve histórico da arquite­
tura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico 
liderado pelo café. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Nobel, 1989. 

Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 87
 

MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Lições de casa: discursos 
pedagógicos destinados à família no Brasil, Belo Horizonte, Argu­
mentvm, 2007. 
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. “Recônditos do Mundo Femi­
nino”. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no 
Brasil. República: da belle époque à Era do Rádio. São Paulo: Com­
panhia das Letras, 1998. v. 3, p. 367­421. 
MATOS, Maria Izilda Santos de. “Porta adentro: Criados de servir 
em São Paulo de 1890 a 1930”. In: BRUSCHINI, Cristina; SORJ, Bila. 
Novos Olhares: Mulheres e Relações de Gênero no Brasil. São Pau­
lo: Marco Zero/Fundação Carlos Chagas, 1994, p. 193 — 212.  
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, Cida­
de e Trabalho. Bauru: Edusc, 2002. 
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A cultura material no estudo das 
sociedades antigas. Revista de História, São Paulo, n.115 (Nova 
Série), jul. — dez. 1983, p. 103­117. 
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “O fogão da Société Anonyme Du 
Gaz: sugestões para uma leitura histórica de imagem publicitária”. 
In: Projeto História, São Paulo, n. 21, p. 105­119, nov. 2000. 
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência: A 
Vida do Trabalhador Pobre na cidade de São Paulo, 1890­1914. São 
Paulo: Edusp, 1994. 
REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente france­
sa. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, vol. 8­9, n. 9, 
p. 281­292, 2003. 
REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro 
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de 
Janeiro: Elsevier, 2012, p. 133­150. 
REVEL, Jacques. “Os usos da civilidade”. In: História da Vida Priva­
da. Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Cia das Letras, 
2009, p. 169­210. 

88 | Gênero, corpo e performance 
 

RONCADOR, Sônia. O demônio familiar: Lavadeiras, amas­de­leite 
e criadas na narrativa de Júlia Lopes de Almeida. In:Luso­Brazilian 
Review, Volume 44, n. 1, 2007, p. 94­119. 
SANTOS, Simone Andriani dos. Senhoras e criadas no espaço do­
méstico, São Paulo (1875­1928). 324f. 2015. Dissertação (Mestrado). 
FFLCH­USP, São Paulo, 2015.  
SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Introdução”. In: ROQUETTE, José Igná­
cio. Codigo do bom tom; ou, Regras da civilidade e de bem viver no 
século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1997, 07­39. 
SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha Modelo: O Impacto do Gás e 
da Eletricidade na Casa Paulistana (1870­1930). São Paulo: Edusp, 
2008. 
TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas em sobrados: Contratos de 
trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. 
2011. 197 f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filo­
sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 
São Paulo, SP, 2011. 
WARNIER, Jean­Pierre. Construire la culture matérielle. L’homme
qui pensait avec ses doigts. Paris: Presses Universitaires de France, 
1999. 
[Recebido: 26 fev. 2016 — Aceito: 15 mar. 2016] 
 

Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 4, n. 2, 2016  | 89

Potrebbero piacerti anche