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IDENTIDADE, GÊNERO E CULTURA MATERIAL:
SENHORAS E CRIADAS NO ESPAÇO DOMÉSTICO — SÃO
PAULO (18701920)
Simone Andriani dos Santos1
Resumo: Este trabalho propõe a análise das relações
entre criadas e patroas, na cidade de São Paulo, entre
as décadas de 1870 e 1920, a partir das diferenças ét
nicas, sociais e de gênero (re)produzidas no espaço
doméstico. Utilizando como principal corpo docu
mental os manuais de prescrição de conduta (manu
ais de etiqueta, de economia doméstica, de puericul
tura e de higiene e saúde), o intuito é compreender a
formação identitária a partir do uso de objetos e es
paços, entendidos estes como indutores de compor
tamentos e hábitos corporais.
PalavrasChave: Cultura material. Gênero. Espaço
doméstico. Trabalho doméstico. São Paulo.
IDENTITY, GENDER AND MATERIAL CULTURE: LADIES
AND CREATED IN DOMESTIC SPACE — SAO PAULO
(18701920)
Abstract: This work is an attempt to analyze the rela
tions between servants and mistresses, in São Paulo,
between the 1870’s and 1920’s, from ethnic, social
and gender differences (re)produced in the house
hold. Considering different kinds of manuals — eti
quette, housekeeping, childcare and hygiene and
health — we intend to understand how identities are
connected with the use of objects and spaces in the
house.
Keywords: Material culture. Gender. Domestic space.
Housework. São Paulo.
1
Historiadora e mestra em História Social pela FFLCH/USP. São Paulo —
SP. Endereço eletrônico: simone.santos@usp.br.
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Introdução
Este trabalho se propõe analisar as relações entre pa
troas e empregadas domésticas na cidade de São Paulo, en
tre as décadas 1870 e 19202. O objetivo é entender a constru
ção de suas identidades no espaço doméstico a partir das
diferenças étnicas, sociais e de gênero, sob a perspectiva da
cultura material3. Utilizando como principal conjunto docu
2
Este trabalho é síntese das principais ideias desenvolvidas na
dissertação de mestrado, defendida em agosto de 2015, cujo título é:
Senhoras e criadas no espaço doméstico, São Paulo (18751928). A
pesquisa foi realizada na FFLCHUSP (Departamento de História
Social)e financiada pelo CNPq.
3
Segundo Meneses (1983, p. 112), cultura material pode ser definida
como”[...] aquele segmento do meio físico que é socialmente
apropriado pelo homem” e apropriação social como “[tudo aquilo que]
o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico,
segundo propósitos e normas culturais”. Assim, o conceito pode tanto
abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas
animadas e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível
desse tipo de manipulação ou, ainda, os seus arranjos espaciais. Dessa
forma, não importa em qual contexto de uso (social, cultural,
ritualístico ou econômico), não se pode negar a ubiquidade das coisas
físicas para a humanidade. A cultura material é indissociável e
constitutiva da condição humana desde o seu surgimento. Por esse
motivo, a materialidade é uma importante plataforma para estudo das
transformações sociais. Existem diferentes vertentes de estudos de
cultura material, porém, para este trabalho, vale a pena destacar a
vertente francesa. Dentre os inúmeros autores, destacase JeanPierre
Warnier, considerado responsável por sintetizar os argumentos
teóricos e metodológicos do grupo. Recuperandose os aspectos
materiais das coisas, o objetivo desses estudiosos é entender a relação
sujeitoobjeto e as ações que se desencadeiam nesse encontro, ou seja,
a relação imediata entre corpo e os objetos manipuláveis. Não se trata
apenas de observar o contato físico imediato do corpo com os
artefatos, mas também as articulações que se dão no cotidiano e,
portanto, menos perceptíveis como, por exemplo, a disposição espacial
dos elementos no mesmo ambiente frequentado pelo corpo (REDE,
2003, p. 282283). Partindo das ideias de Marcel Mauss, desenvolvidas
no artigo “As técnicas do corpo”, Warnier enfatiza que, além dos atores
humanos, as coisas devem ser entendidas como capacidade de
60 | Gênero, corpo e performance
mental os manuais prescritivos de comportamento4, a inten
ção é compreender como essas obras, por meio de suas des
crições e orientações, participaram do estabelecimento de
dinâmicas entre corpos, objetos e espaços da habitação, as
quais, por sua vez, contribuíram para a conformação das re
lações entre patroas e empregadas dentro da casa.
O intervalo entre o final do século XIX e início do século
XX compreende o período em que a capital paulista aprofun
dou as mudanças advindas com os novos hábitos de consu
mo, intensificados pela modernização da infraestrutura e
diversificação das atividades e agentes urbanos. O capital
acumulado passou a ser investido não apenas na ampliação
da produção do café, mas na diversificação de atividades
econômicas (indústrias, empresas de importação
exportação, bancos etc.) e urbanas correlatas (linhas de
atuação social, pois permitem ações motoras, que podem limitar ou
possibilitar comportamentos. Em outras palavras, o universo material é
parte constitutiva da própria corporeidade; os objetos são essenciais
para a existência humana, funcionando como próteses. Cada objeto
possui uma dinâmica própria e essa dinâmica pode ser incorporada
como um aprendizado até se tornar automatizado. Quando isso
acontece, a cultura material participa de uma síntese que, longe de ser
estática, implica uma interação entre os elementos em jogo: corpo,
objeto e espaço. Ao internalizar a dinâmica do universo físico,
expandese a capacidade humana de ação (LE BRETON, 2007, p. 78;
REDE, 2003; 2012, p. 241; WARNIER, 1999).
4
O objetivo de tais obras era divulgar normas de comportamento em
sociedade. Os manuais chegaram ao Brasil quando o Império passava
por transformações e o controle corporal foi a maneira encontrada
para fixar marcas de distinção social. Em pouco tempo, caíram no
gosto do público, criandose novas categorias (ELIAS, 1990; REVEL,
2009, p. 169210; RONCADOR, 2007; SCHWARCZ, 1997, p. 0739). Para
a pesquisa de mestrado, foram analisadas 42 obras, escritas em inglês,
francês e português, agrupadas em quatro categorias: manuais de
etiqueta, manuais de economia doméstica, manuais de puericultura e
manuais de higiene e saúde. Além dos manuais, foram consultadas
outras fontes documentais (matérias publicitárias, textos de
memorialistas, relatos de viajantes, periódicos da época, legislações e
dados censitários da cidade de São Paulo (SANTOS, 2015, p. 3253).
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transporte, redes de energia, água, luz e esgoto, habitações
etc.).
Os investimentos em infraestrutura e embelezamento
na cidade foram acompanhados de transformações na antiga
estrutura familiar e nos padrões de moradias dos segmentos
sociais mais abastados. Estimulado por pressupostos médi
cos, o sentimento de privacidade familiar começou a ser con
cebido quando pais e filhos começaram a valorizar o convívio
íntimo e exclusivo entre eles, abandonando a companhia
contínua de elementos estranhos na casa. A casa deixou gra
dualmente de ser uma unidade de produção autônoma e
passou a estar profundamente articulada à cidade. O que
antes era produzido na habitação podia ser adquirido em
casas comerciais instaladas na cidade (COSTA, 1989). Soma
do a isso, a casa passou a ser uma importante forma de ex
pressar a recente ascensão social dos novos representantes
das classes dominantes. Gradativamente, as casas coloniais
paulistanas foram sofrendo adaptações que as conduziram
para o que significou “morar à francesa”. Surgiram novos
tipos de habitação, mas os palacetes, tipo de habitação inspi
rado em modelos aristocráticos europeus do século XVIII e
altamente especializados, podem ser considerados a melhor
expressão do que se denominou como “casa moderna” (LE
MOS, 1989; CARVALHO, 1996; HOMEM, 1996). Para as famí
lias menos abastadas, pertencentes aos segmentos médios
emergentes, o novo modo de vida foi caracterizado pela a
quisição de bens de consumo. Para essa parcela da socieda
de, se não era possível comprar uma casa nova e “moderna”
ou reformar a antiga, a ascensão social poderia ser demons
trada por meio da aquisição de objetos para a casa, como
itens do mobiliário e peças de decoração, encontrados em
lojas de departamentos (como o Mappin Stores e a Casa Al
lemã) ou confeccionados a partir de receitas caseiras divulga
das em revistas e manuais prescritivos de comportamento
(CARVALHO, 2008; 2011).
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5
O serviço doméstico empregou uma grande quantidade de mulheres
pobres. Em 1914, estimavamse cerca de 40 mil trabalhadores no setor
e de 10 a 15 mil substituições por ano, período em que a população
paulistana era em torno de 375 mil habitantes. Na mesma época, em
1906, no Rio de Janeiro, havia 77 mil criadas, o que significava uma taxa
de 76% das mulheres ativas (GRAHAM, 1992, p. 1826; MATOS, 1994,
p. 206; 2002).
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8
Todas as citações foram transcritas conforme a grafia dos textos
originais.
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der de controlar o campo de significado social e, assim, pro
mover e implantar representações de gênero.
Nos Estados Unidos, com o fim da Guerra de Secessão
e a abolição da escravidão, em 1865, o êxodo de trabalhado
res para a indústria provocou uma carência na oferta de mão
deobra disponível para os trabalhos domésticos. O trabalho
na casa acabou redirecionado exclusivamente para a dona de
casa. Para engajar a mulher de classe média, sem ou quase
sem empregados, nos afazeres domésticos, houve investi
mentos em embelezamento de utensílios e uma valorização
das atividades da casa. A noção de housework, entendida
como trabalho pesado, árduo e repetitivo, foi substituída
pela de homemaking, que demandava hábitos refinados e
conhecimento artístico (ARNOLD; BURR, 1985, p. 155159;
BOXSHALL, 1997, p. 1633; CARVALHO, 2008, p. 247; GIE
DION, 1948, p. 23; 519527). Nos manuais de economia do
méstica, as atividades para a manutenção da habitação pas
saram a ser associadas à ideia de satisfação pessoal: cuidar
da casa, dos filhos, do marido era algo que poderia dar prazer
à donadecasa que assim cumpria o seu papel na sociedade.
No Brasil, com um mercado favorável para a contrata
ção de empregados, o fenômeno de estetização dos afazeres
no lar teve a função de diferenciar patroas e empregadas.
Como a maioria das famílias podia arcar apenas com os cus
tos de uma única criada, não raro a dona de casa era obrigada
a trabalhar ao lado da empregada, supervisionando seu tra
balho ou até mesmo efetuando algumas tarefas. Coabitar o
mesmo espaço representava uma situação complexa e, em
muitos casos, bastante conflituosa9. Sendo alguém de fora
do núcleo familiar, de um grupo social distinto e presente
constantemente na habitação, a empregada era considerada
uma potencial ameaça à integridade moral e física da família
9
Para saber mais sobre as complexas relações entre patrões e
empregados nesse contexto, ver: MATOS, 1994, 2002; PINTO, 1994, p.
97, SANTOS, 2015, p. 56125; TELLES, 2011.
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final do século XIX e início do XX. Porém, diferentemente da
autora, que vê o processo de distanciamento como constru
ções ritualísticas, em que as diferenças são estabelecidas
para comunicar categorias de mulheres diferentes, o que se
pretende aqui é ampliar esta perspectiva, demonstrando que
as diferenças entre patroas e empregadas não estão apenas
na dimensão simbólica, mas na construção de corpos e subje
tividades materialmente distintas. Observouse que as práti
cas domésticas diferenciadas, sustentadas por repertórios de
objetos e condutas motoras10 igualmente diferenciadas, con
formaram identidades distintas. É assim que, embora a con
dição de seres do mesmo gênero supostamente as identifi
casse, as práticas individuais as distanciavam; as dimensões
materiais atuam de modo indissociável, em um jogo de apro
ximações e distanciamentos, em que se constrói concreta
mente, de fato, as fronteiras entre estes dois tipos de mulhe
res.
Desse modo, como é possível observar nos excertos
extraídos do manual O lar doméstico: conselhos praticos sobre
a boa direcção de uma casa, a diferenciação entre patroa e
empregada era constantemente reforçada. Enquanto o tra
balho pesado e desqualificado — o “serviço mais grosseiro” —
deveria ser realizado pela empregada, a patroa se preocupa
va com a ornamentação — a “limpeza artística” — e o traba
lho leve. Dessa forma, tendo alguém responsável pela limpe
10
Na obra Construire la culture matérielle, Warnier define como conduta
motora ou síntese corporal a relação indissociável entre o corpo e as
próteses materiais utilizadas por ele para efetuar ações no meio
ambiente. Como cada indivíduo possui um repertório particular de
objetos, a incorporação de condutas motoras é singularizada e estaria
relacionada à constituição de subjetividades. Desse modo, a formação
de identidades estaria vinculada às diferentes próteses que cada
indivíduo acionaria ao longo da vida. Assim, uma empregada
doméstica, ao praticar trabalhos de outra natureza que o de sua patroa
e utilizar outros objetos, não se distinguiria desta última somente na
dimensão simbólica, mas elas seriam feitas de fato de “matérias”
diferentes (WARNIER, 1999).
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atropelos de todas as tarefas a se desempenhar, era necessá
rio a elaboração de “um plano de inabalavel regularidade
para todo o serviço diario” (CLESER, 1913, p. 13). Enfatizava
se a importância da dona de casa ter “método”, “ordem” e
“regularidade”, de organizar racionalmente as atividades e
aproveitar bem o tempo (MALUF; MOTT, 1998, p. 406). No
capítulo “Falta de tempo”, do Livro das Noivas, Júlia Lopes de
Almeida contou a suas leitoras o caso de uma moça que, para
organizar a rotina de afazeres na casa e, assim, ter tempo
para se dedicar aos momentos de lazer, elaborou tabelas
descrevendo as atividades da cozinheira, do copeiro e da
criada. Sendo assim, com “um methodo rigoroso”, afirmava a
autora, as inúmeras atividades sujeitas ao comando da dona
de casa poderiam ser feitas com tranquilidade e exatidão
(ALMEIDA, 1905, p. 7377).
Iniciei esse trabalho [de limpeza geral da casa]
methodicamente. Não é necessário pôr em desordem
a um tempo todos os commodos da casa. Basta
limpar um ou dois commodos da cada vez. E’ essa a
ocasião de fazer reparos, empapelamentos, retoques,
pinturas, caiações, etc. Examinamse bem as
instalações de esgoto, e limpamse e desinfectamse
rigorosamente todas as peças relacionadas com o
mesmo (LAR e saude da família, 1922, p. 144).
Assim como no excerto acima do manual O lar e a sau
de da família, Cleser apontava que o trabalho na casa deveria
ser feito seguindo um método. Segundo a autora do manual
O lar doméstico, embora fosse difícil apresentar a suas leito
ras um plano infalível que pudesse ser adotado em todas as
casas — “pois elle depende das circumstancias de fortuna e
numero de criados” —, ela indicava um exemplo de como
uma senhora de uma família de recursos modestos poderia
organizar o “movimento diario” de sua casa (CLESER, 1913,
p. 13). Assim, contando com a participação da dona de casa e
de suas filhas, o trabalho da empregada começava logo cedo:
“A criada deve levantarse no inverno ás 6 horas, no verão ás
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5 ½” (CLESER, p. 1718). As tarefas de limpeza e organização
dos cômodos da casa, de manutenção e produção de objetos
(trabalhos manuais) e de preparo das refeições eram então
divididas sistematicamente em horários préestabelecidos e
supervisionadas constantemente pela patroa: “Assim como a
dona de casa determina todo o serviço, deve tambem revis
tar todos os cantos de sua casa para saber como são cumpri
das as suas ordens” (CLESER, p. 30). Desse modo, tratavase
de um mecanismo orientado por rígidas normas de traba
lho11.
Como é possível observar no depoimento de D. Risole
ta12, uma das senhoras que teve suas memórias coletadas e
analisadas pela autora Ecléa Bosi na obra Memória e Socieda
de: Lembranças de Velhos, a normatização do trabalho do
méstico tornou a rotina das criadas ainda mais árdua e rigo
rosa. Além do maior número de atividades a serem
desempenhadas, a empregada era impedida de controlar seu
próprio ritmo de trabalho. Os afazeres iniciavamse logo ce
do, muitas vezes ainda de madrugada, e eram finalizados às
altas horas da noite, permitindolhes poucas horas de sono;
mesmo entremeado por pequenas pausas para descanso,
passavase o dia trabalhando.
[...] eu levantava às quatro da manhã, trabalhava o
dia inteirinho [...]. Eu que fazia tudo: fazia pão, lavava
passava roupa às vezes a noite inteira [...]. Para
limpar o assoalho eu espalhava areia na tábuas [sic] e
esfregava de joelhos com um tijolo. Depois varria,
jogava água e puxava com um pano torcido, rodo
11
Tais obras prescritivas contribuíram então para a difusão de valores
burgueses que sistematizavam o trabalho doméstico; a lógica que
orientava o trabalho urbano e industrial era introduzida e adaptada ao
espaço doméstico para garantir a prosperidade familiar (CARVALHO,
2008, p. 241242; SILVA, 2008, p. 144145).
12
D. Risoleta, nascida em 1900, era negra e filha de escravo liberto; aos
oito anos de idade foi colocada para trabalhar como empregada
doméstica em troca de alfabetização (BOSI, 2010, p. 363401).
72 | Gênero, corpo e performance
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A primeira recomendação que dirigirei a toda mulher,
seja qual fôr a sua fortuna e posição social, é a de
aprender a cortar e costurar todos os objectos de seu
uso, desde a roupa branca até os seus vestidos de
preço. Esta ciência ocupa o primeiro logar entre todos
os trabalhos de agulha, é a mais indispensável á dona
de casa e ás moças contribue largamente para a
prosperidade do lar doméstico (CLESER, 1913, p.
104).
Minhas senhoras! exigi inflexivelmente que vossas
filhas se aperfeiçoem na costura á mão e á machina
de roupa branca, no remendar e no serzir. Estes
trabalhos cuidadosamente executados honram mais
do que a sabia combinação de sedas, canotilhos,
froco, etc., cujo preço está muitas vezes superior ás
nossas circunstâncias (CLESER, 1913, p. 105).
Enquanto as donas de casa se dedicavam à elaboração
de trabalhos de agulha, o trabalho de higienização da roupa
— lavar, engomar e passar — ficava sob a responsabilidade
de empregadas. Realizado no pátio dos cortiços pelas lava
deiras ou no quintal das casas pelas criadas, a rotina de cui
dados necessários para a “Conservação da roupa branca e do
vestuário” era bastante árdua, o que demandava a dedicação
de muitas horas. Nas casas sem água encanada, o trabalho
começava com a obtenção da água em alguma bica, chafariz
ou poço para encher o tanque. A roupa era colocada em
grandes tinas (bacias de madeira), sobre as quais se derra
mava sabão e água fervente. Dependendo do tecido e da
quantidade de sujeira, o processo deveria ser repetido outras
vezes. Para tirar manchas e clarear a roupa branca, faziase a
barrela ou a lixívia. Depois de esfregadas e batidas nas mãos
ou em tábuas de madeira próprias para bater, a roupa branca
era anilada, quarada, enxaguada, torcida e engomada; já os
tecidos coloridos tinham que ser estendidos do avesso e co
locados para secar na sombra. O linho, o algodão e o morim
eram tecidos muito utilizados na confecção de roupas de
cama e mesa. Após molhados, o peso e a dificuldade de ma
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nuseio dessas peças eram muito maiores. No final de todo o
processo, além da roupa limpa e seca, acumulavamse quei
maduras nas mãos já calejadas e dores em todo o corpo
(MALUF; MOTT, 1998, p. 403408).
Para engomar, era necessário preparar a goma, uma
mistura feita com água e amido (geralmente polvilho), e de
pois passar a roupa com o ferro bem quente. Assim como a
água encanada, a eletricidade ainda não era acessível para a
maioria das casas. Os ferros de passar elétricos, que aparen
temente facilitavam o processo de passar roupas, nas primei
ras décadas do século XX ainda eram muito restritos. A maio
ria das pessoas utilizava ferros de estufa, a cunha ou a carvão
(que variavam conforme o tamanho, mas que no Brasil pesa
vam entre três e três quilos e meio) (CARVALHO, 2008, p.
269). Como é possível notar nas memórias de D. Risoleta e D.
Ilma13, o manejo desse tipo de utensílio era bastante árduo e
demandava um conhecimento que era adquirido somente
pela experiência. Por exemplo, uma boa engomadeira, além
de saber controlar a temperatura ideal para cada tipo de te
cido, tinha que tomar cuidado para não abrir o ferro e derru
bar o carvão sobre a roupa. Para tornar o trabalho mais rápi
do e eficiente, evitando longas interrupções, era preciso
utilizar mais de um aparelho, que deveriam estar previamen
te aquecidos.
Levantava de madrugada, trabalhava o dia inteirinho,
de noite acendia cinco ferros de carvão para engomar
a roupa de linho que tinha que passar tudo úmido: eu
largava um ferro e pegava outro, largava um e pegava
outro. Hoje está uma beleza esse tergal que não
precisa nem passar, sacode bem, dobra e guarda. O
ferro era pesado, não era ferro de estufa: o linho tinha
13
Cuja avó havia sido escrava e trabalhado como lavadeira (Lembranças
de D. Ilma, Banco de memórias de famílias negras, p. 3 em MATOS,
2002, p. 145).
76 | Gênero, corpo e performance
dos trabalhos na cozinha (lavar, descascar, picar, mexer, ba
ter, amassar, refogar, fritar, cozinhar e assar).
Embora a cozinha e o trabalho doméstico estivessem
passando por transformações com a introdução do fogão a
gás e a instalação de redes de abastecimento de energia nas
habitações paulistanas (HOMEM, 2003; SILVA, 2008), a mai
oria das casas ainda possuía cozinhas muito semelhantes à
descrita por John Mawe, no início do século XIX. Instalada no
lado externo, dispersavase pelo quintal. Ali, onde se dava
não apenas o preparo dos alimentos, mas o beneficiamento,
a estocagem e a produção, eram acomodados, em unidades
isoladas, o fogão a lenha, a despensa, o depósito, o tanque, o
galinheiro, o pomar, as instalações sanitárias e o alojamento
dos escravos (e após a abolição, dos criados):
Para dar uma ideia da cozinha, que deve ser a parte
mais limpa e asseada da habitação, o leitor pode
imaginar um compartimento imundo com chão
lamacento, desnivelado, cheio de poças d’|gua, onde
em lugares diversos armam fogões formados por três
pedras redondas, onde pousam as panelas de barro,
em que cozinham a carne; como a madeira verde é o
principal combustível, o lugar fica cheio de fumaça,
que, por falta de chaminé, atravessa as portas e se
espalha pelos outros compartimentos, deixando tudo
enegrecido pela fuligem. Lamento ter que afirmar
que as cozinhas das pessoas abastadas em nada
diferem destas (MAWE, 1807 apud LEMOS, 1976, p.
204205).
O trabalho nessa cozinha também não era nada fácil.
As precárias condições materiais exigiam das cozinheiras um
trabalho pesado, cansativo e demorado, seja por conta da
preparação dos pratos ou da limpeza das panelas engordura
das ou enegrecidas pela fuligem: “O trabalho na cozinha era
acalorado, sujo e cansativo, mesmo quando dentro de casa.
Até os pratos mais comuns requeriam preparações laboriosas
e sanguinolentas” (GRAHAM, 1992, p. 62). Mesmo nas habi
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para manusear as chapas de ferro, controlar a fonte de ener
gia observando a quantidade de lenha etc (CARVALHO,
2008, p. 256257; MENESES, 2000; SILVA, 208, p. 142150),
as cozinheiras tiveram de aprender um novo padrão corporal
de trabalho, além de inúmeras outras técnicas de limpeza do
novo equipamento e do espaço. Os manuais de economia
doméstica contribuíam indicando uma rigorosa rotina de
atividades onde estavam incluídas lavagens, polimento, es
panação, desinfecção e manutenção de utensílios, equipa
mentos, assoalhos, azulejos, teto, janelas, portas etc.: “Uma
vez por semana, em dia determinado, deve a criada areiar
todos os utensilios da cozinha, bem como as prateleiras, o
fogão, os ladrilhos e azulejos [...]. As janellas e portas, o tecto
e as paredes, os metaes do fogão e das torneiras devem
sempre conservar um aspecto irrepreensivelmente limpo e
luzido” (CLESER, 1913, p. 185). Em suma, as mudanças nesse
espaço da casa acirraram ainda mais as distâncias entre pa
troas e empregadas.
Os sinais de distinção entre essas mulheres podem ser
notados também em suas indumentárias de trabalho. Em um
artigo publicado em 1918, a Revista Feminina apresentava às
donas de casa vários modelos de aventais ricamente orna
mentados com bordados, rendas, fitas e laços (figura 1). Com
receio de serem confundidas com as empregadas, muitas
senhoras resistiam ao uso da peça. Por isso, o texto do artigo
deixava claro: “O avental da cozinheira, de panno grosseiro e
sem ornatos, nunca poderá confundirse com o avental de
linho enfeitado de entremeios, bordado de rendas e passado
de fitas, que serve mais de ornamento que de protecção a
uma elegante ‘toilette’ caseira” (Revista Feminina, n. 55, dez.
1918, p. 7475). Além de não possuir detalhes, os aventais e
os uniformes das domésticas eram geralmente feitos com
tecidos mais resistentes e flexíveis, isso porque, como a roti
na de trabalho numa casa era dinâmica e árdua, as peças não
poderiam limitar os movimentos. No Mappin Stores, onde as
80 | Gênero, corpo e performance
eram representadas vestindo uniformes, portando utensílios
de trabalho — panos, vassouras e espanadores —, e em ações
que demonstravam estar realizando alguma atividade do
méstica.
Figura 1— “Aventaes”. Revista Feminina, n. 55, dez. 1918, p. 7475.
Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo.
82 | Gênero, corpo e performance
Figura 2— “Vista suas criadas com distincção”. O Estado de São Paulo,
04 mar. 1923, p. 11. Coleção Mappin, Museu Paulista da Universidade
de São Paulo.
Em suma, as transformações que ocorreram na habita
ção paulista entre o final do século XIX e o início do XX con
tribuíram para o aumento das atividades domésticas. Com
uma grande disponibilidade de mãodeobra, mulheres po
bres eram empregadas como criadas, lavadeiras, cozinheiras,
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amasdeleite, passadeiras etc. Como patroas e empregadas
trabalhavam em parceria, cuidando dos afazeres da casa,
uma divisão social do trabalho passou a ser necessária. Desse
modo, elas deveriam ter tarefas diferenciadas na casa. Fican
do o “serviço grosseiro” — ou seja, o trabalho “sujo”, desvalo
rizado, que demandava força física e grande engajamento
corporal — sob responsabilidade da criada, a dona de casa
poderia se dedicar à “limpeza artística” da habitação — orga
nização da rotina doméstica, cuidados com as roupas, criação
de pequenos trabalhos manuais, elaboração dos cardápios e
preocupação com a educação dos filhos. Sendo assim, muito
mais do que um processo em que a dimensão material é in
terpretada como um conjunto de símbolos que representava
as diferenças sociais dessas mulheres e as tentativas de ma
nutenção da hierarquia estabelecida entre elas — tal qual
considerou Kofes ao estudar o fenômeno contemporâneo —,
observase que a cultura material fazia parte de fato da cons
trução dessas diferenças. Desse modo, as práticas domésti
cas diferenciadas, sustentadas por repertórios de objetos e
condutas motoras igualmente diferenciadas, conformaram
identidades distintas para patroas e empregadas domésticas.
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi analisar as relações entre
patroas e empregadas domésticas na cidade de São Paulo,
entre no final do século XIX e início do século XX. A intenção
foi entender a construção da identidade dessas mulheres no
espaço doméstico a partir das diferenças étnicas, sociais e de
gênero, sob a perspectiva da cultura material. A análise se
desenvolveu em torno da hipótese de que os objetos e os
espaços da habitação atuaram como indutores de compor
tamentos e hábitos corporais. Como patroas e empregadas
possuíam práticas domésticas diferenciadas e, consequen
temente, repertórios de objetos e sínteses motoras também
diferenciados, suas identidades se conformariam igualmente
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[Recebido: 26 fev. 2016 — Aceito: 15 mar. 2016]
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