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Eu sou Nildes Alencar Lima. Quero dizer que para mim é um prazer imenso contribuir com
seu trabalho para a universidade. Eu nasci em 1934, num período histórico interessante,
porque iniciava-se o Estado Novo de Getúlio Vargas, em Lavras da Mangabeira, cidade sul
do Estado. Pelo lado materno Alencar, Teixeira, Serra também, tem assim uma mistura. No
interior há muitos cruzamentos nas famílias, casam muitos parentes, filhos. E pelo lado
paterno Rodrigues Lima. Minha mãe Laura Alencar Lima, meu pai Idelfonso Rodrigues
Lima. Sou considerada da última geração da família. A gente sempre identifica três
gerações. Os mais velhos, os irmãos intermediários e a minha geração que éramos cinco
irmãos os mais novos que éramos tidos com muito carinho pelos pais, pelas minhas irmãs
mais velhas. Tive um certo privilégio na minha formação e no meu crescimento porque
fiquei caçula por alguns anos. Todo ano era filho, filho, filho. Mas um morreu antes de
mim, morreu um depois de mim e eu fiquei caçula, né? Depois vem outra irmã, aparece
mais um irmão, vem abortos até vir o Tito que foi o último, Frei Tito de Alencar Lima. E de
Lavras eu tenho uma lembrança muito forte, que meu pai teve que sair, primeiro ele veio
pra Fortaleza porque o sonho dele era educar os filhos. Foi um moço rico, mas a riqueza
dele foi toda por água abaixo. Os pais foram ricos e ele foi um rapaz que viveu
endinheirado. Esteve no Amazonas quase 20 anos, voltou, encontrou minha mãe, casou,
mas encheu a casa de muitos filhos num período de seca, seca, seca. Então foi-se embora
todo recurso que ele tinha. Ele chegou à conclusão de que dinheiro não era herança para
deixar para filho, não era terras, nem dinheiro, mas educação. E veio pra Fortaleza com
uma das minhas irmãs mais velhas e daqui eles se empregaram e mandaram buscar a
família. Então, a minha história mesmo, bem forte, inicia-se numa viagem de trem, toda a
família, as minhas irmãs, viajamos, passamos a passagem do ano de 1940 para 1941 na
cidade de Senador Pompeu. Pernoitava-se lá. Cheguei em Fortaleza, tinha seis anos.
Estudei, naquela época não era tão difícil escola pública, mas também tinha que chegar
cedo para pegar vaga. E a minha mãe me matriculou numa escola pública, mas não era
totalmente mantida pelo Estado. Tinha professores do Estado, mas era dirigida pelas freiras
do colégio Imaculada Conceição. O Colégio Imaculada Conceição era o colégio das
meninas ricas e a Instituição mantinha o Externato São Vicente de Paula, que ainda hoje
existe na rua 25 de março. E eu fui educada nessa escola, pobre, meninas pobres, como eu
também pobres. Tinha outras em situação mais pobre, mais carentes que eram filhas de
pescadores, de lavadeiras. Você sabe como é escola pública. E naqueles anos, 1941, a
escola pública mantinha classe média. Naquela época não se chamava classe média. E tinha
os pobres paupérrimos e tinha os ricos. Classe média, pouco se falava nisso. A minha
educação, me considero assim muito privilegiada, por todos os aspectos, afetivos,
intelectuais. Meu pai gostava muito de ler, a minha mãe também. Embora eles só tivessem
as primeiras séries primárias, eles tinham um certo interesse por livros. Eu nasci, abri meus
olhos quando comecei a ler, já vendo livros em casa. Meus irmãos mais velhos também
todos tinham muito gosto pela leitura. Era uma família que tinha muito interesse por livros,
por leitura. A minha mãe muito religiosa, muito bíblica e também de muita religiosidade. O
meu pai mais só de missa aos domingos para encontrar os amigos, mas ele tinha aquela
postura que ele dizia que a questão da fé era muito ligada à questão atitudes de vida. Era
assim a religião dele. Ele cria em Deus, mas não tinha aquela religiosidade que a minha
mãe tinha. Mas ao mesmo tempo, nos educava nesses princípios humanistas e a minha mãe
nos princípios católicos, católica firme, ligada mesma a toda a instituição de Igreja. E nesse
ambiente eu fui descobrindo um mundo de verdade, de justiça. Aos 10 anos, nove para dez
anos, eu fiz a minha primeira comunhão, e naquela época eu sofri muita influência da
formação religiosa dessa escola e muita influência religiosa da minha mãe que, já naquela
época, a Bíblia não era um livro popular. Era proibido ler a Bíblia sem que fosse com uma
orientação da Igreja. Mas a minha mãe já tinha essa visão bíblica e passava a história
bíblica toda pra gente, com todo aquele conteúdo de lutas do povo, da formação do povo de
Deus. Ela pegou muito essa parte histórica da Bíblia e isso ela ligava à parte mística, dos
sacramentos, daquilo que firmava a fé dos católicos, acreditar nos sacramentos. Tudo isso
alimentou muito nossa fé. Quando fiz a minha primeira comunhão aos 10 anos eu me
considerava uma criança muito profunda. Porque eu tinha um tanto quanto de silencio
dentro de mim, eu era uma criança assim que era líder, brincava nas calçadas, tinha muitos
amigos, tinha liderança, mas ao mesmo tempo eu era criança que observava muito o
contexto familiar, dificuldades financeiras, as lutas de meu pai para sobreviver com aquela
família tão numerosa, aquela disponibilidade das minhas irmãs e do meu irmão mais velho.
Eu observava muito aquilo e refletia. Interessante, a gente fazia muita reflexão no interior.
Talvez também tanto pela formação, as freiras ajudavam muito a refletir dentro da escola,
foi uma educação muito aprimorada a minha e como também pelo que eu escutava, as
conversas de minha mãe e de meu pai. Era uma família que dialogava muito. E discutia
muito as questões políticas da sociedade. A minha mãe era uma getulista, ela amava
profundamente Getúlio. Eu acho que era quase toda a geração daquela época tinha um
encantamento, um endeusamento por Getúlio Vargas porque foi um homem que instituiu
no Brasil carteira do Ministério do Trabalho, as leis trabalhistas, essa coisa toda. No
momento em que eu fui crescendo e vendo todo aquele contexto familiar eu ouvia muito a
minha mãe ter vontade de ter uma filha freira ou um filho padre. E talvez, ela nunca dizia
mas eu fixava muito na minha pessoa aquele sonho dela de ter aquela filha que fosse
dedicada a história da família. Eu também fui uma criança muito obediente. Ao mesmo
tempo em que eu era danada, eu fazia muita danação na calçada, tinha muito a minha vida,
não era uma dualidade, mas eram vivencias da própria criança que eu era. Eu entendia
aquilo como uma coisa saudável na minha vida. Brinquei muito. E nasce o meu último
irmão que é o Frei Tito e as minhas irmãs eram muito bonitas. Falava-se que eu tinha uma
certa graça de criança porque era lourinha, tinha os olhos azuis, mas era diferente das outras
que tinham os olhos castanhos. Eu cresci muito vendo aquele ambiente familiar. Minhas
irmãs muito bonitas, lindas e aquilo encanta muito as crianças. Eu era encantada com a
beleza das minhas irmãs, com os namoros que elas tinham, eram muitas serenatas. Os
rapazes, elas tinham muitos apaixonados. E eu cheguei à minha adolescência e não tive
nada disso, né? (risos). Estranhei muito porque eu pensava que eu ia ter aquela aceitação e
não tive. Foi uma adolescência que eu iniciei a minha adolescência com uma crise muito
forte de uma tuberculose que a minha mãe teve. Naquela época uma tuberculose era uma
coisa horrível, era quase como AIDS hoje, as pessoas se afastavam da família com medo,
mas já os médicos entendiam que era um tratamento que podia ser feito em casa, não levou
para isolamento. E aquilo me marcou muito também, eu fui muito marcada pela doença da
minha mãe. Nessa época o Tito era pequenininho, ele só tinha dois anos, eu fui pra casa da
minha irmã com ele, passei um período, depois ela ficou boa. A minha irmã teve a primeira
filha e eu tive que ajudar porque a minha mãe. Era costume das filhas ajudar as irmãs que
tinham nenê. A gente ia pra lá. E aí eu me separei do Tito, passei quase um ano separada
dele. Esse foi um dos grandes rompimentos que eu iniciei assim. Eu chorava muito, eu
sentia demais a falta dele porque eu fui muito apegada a ele, eu cuidei dos primeiros
cueirinhos, quem fazia leitinho, mingau. A minha mãe confiou, embora eu só tivesse 12
anos, mas eu tinha muito amadurecimento. Mas quando ele estava com dois e eu já tinha
14, eu iniciei a minha adolescência assim, passando esses conflitozinhos. Mas foi uma
adolescência muito rica. Nesse tempo nem se falava que era adolescente ou se era
aborrecente. Ninguém sabia nem que estava saindo da infância pra entrar na adolescência.
E como nós éramos muito pobres, não podíamos pagar escola para estudar em colégio
particular. E ter acesso à escola pública no ginásio era uma coisa muito difícil como passar
na Medicina na Universidade Federal. Era uma concorrência imensa e eu sabendo que as
minhas irmãs trabalhando, as outras casaram, eu sabia que elas não podiam pagar escola
particular pra mim. Fui ao exame de admissão, não passei, foi um trauma muito grande, fui
uma segunda vez, não passei, fui a terceira vez e o meu sonho foi realizado. Meu sonho era
ser aluna da Escola Normal, subir aquela escadaria, com aquela farda vermelha. Ih, eu
passava ali e achava a coisa mais linda. E realizei esse meu sonho. Eu comecei a sentir que
eu ia me realizando de uma outra forma, que não era uma questão amorosa, nos namoros. E
eu fui vendo assim que haveria uma forma de eu canalisar esse meu espírito amoroso, essa
minha vontade de me dar, essa dedicação. Haveria uma forma e essa forma eu encontrei
realmente na religião.Entao eu entrei na Ação Católica. A Ação Católica era um movimento
moderno já na Igreja, foi instituído pelo Pio XI, mas já com Pio XII que era o papa, ele se
firmou muito pela Europa e chegou aqui ao Brasil. Era um movimento assim de religião de
se viver o evangelho engajado ao social. Passei a ter uma visão, a ter a minha
espiritualidade como engajamento social. Mas era o meio estudantil e a família. Ainda não
havia assim uma abertura, uma visão para o social, a sociedade, as diferenças sociais. Mas à
medida que eu fui desenvolvendo na Ação Católica, ano a ano, eu, muito responsável e
amante do Evangelho, aí vem toda aquela minha formação, a influencia da minha mãe, meu
curso primário, eu vivi intensamente. Nós éramos chamadas de militantes, as militantes da
Ação Católica. E as militantes de Ação Católica tinham de ter uma vivencia concreta, firme
as 24 horas do dia. Não tinha um momento em que você deixasse de ser crista e aquilo a
gente vivia com muita seriedade. Grande parte da juventude brasileira passou pela
experiência da Ação Católica. Todas as pessoas que viveram os movimentos de Ação
católica, elas têm as mesmas características. É muito interessante. Você identifica logo uma
pessoa que foi de Ação Católica, hoje, em qualquer lugar que você andar. E daí eu fui
assumindo determinadas posições no movimento, fui dirigente, depois fui presidente na
escola. E ali a gente era responsável por toda a comunidade estudantil. Ali a gente fez
movimentos para resgatar a imagem da aluna normalista, já um trabalho de desgaste.
Quem estudava na escola era Espera Nenê porque era Escola Normal. Porque eram meninas
pobres, as ricas já estavam começando a ir para as escolas particulares. Havia deboche. Veja
que o desgaste da escola pública a meu ver tem raízes também na desvalorização.Porque
era escola pobre e as ricas não iam mais pra lá, estavam indo pra outras escolas então
passavam a jogar determinadas estigmas. E Espera Nenê, que é Escola Normal, que era a
sigla que a gente trazia no peito, o nome da escola. E nós começamos a fazer um trabalho
de valorização da Escola Normal . Nessa época só havia a Juventude Estudantil Católica
Feminina. Ainda não havia a JEC (Juventude Estudantil Católica) masculina. Nesses
movimentos de Ação Católica eu passei a presidenciar, depois eu terminei o meu normal.
Para ir a essas reuniões não era fácil. Meu pai era um homem muito democrata, mas ao
mesmo tempo ele sustentava muito as filhas mulheres, a questão da moral, o medo de
acontecer alguma coisa e tudo. E ele temia porque eu comecei, diferente das outras, a
ganhar uma certa libertação, ter uma certa liberdade de sair de ir a reuniões, de passar um
dia fora que as outras não tiveram. Passei a liderar em casa também, ter essa liberdade que
elas não tiveram. Então, elas já casadas e uma ainda solteira, elas recriminavam muito
porque papai não tinha dado a elas essa liberdade, nem acreditou nelas como acreditava na
minha pessoa. E também isso foi fruto delas serem muito namoradeiras e meu pai dava
muito em cima e prendia, não deixava irem a festas. E eu tinha um certo temor ao meu pai,
ele era um homem maravilhoso, mas eu temia, tinha medo do carão dele. Eu não queria,
também era orgulhosa, coisas que se passam no interior de cada um. Eu tinha aquela
firmeza, eu não admitia nunca que meu pai me passasse um carão. Pra eu não levar carão
do meu pai, eu era estudiosa, eu correspondia com responsabilidade aquilo que dava
satisfação a ele e que conduzia a minha independência numa certa confiança. Eu fui me
construindo dessa forma. Depois a gente vai fazer uma reflexão, uma analise disso tudo.
Naturalmente não foi uma coisa consciente, eu ia fazendo essas conquistas
inconscientemente. Era um certo jogo que eu fazia para construir a minha liberdade. E eu
sempre tive muita vontade de ser independente. Por outro lado, como eu estava com 18, 19
anos, 20 anos quando eu cheguei ao normal. Eu terminei com 21 anos. Retardou muito
devido as minhas reprovações no exame de admissão. Eu sempre dizia assim: já que eu não
me realizava em termos amorosos, não tinha essas conquistas como as minhas irmãs tinham
e tiveram e casaram...Eu ia pras festas e os rapazes não me tiravam pra dançar, eu ia para
um local e não era notada, não chamava a atenção, magrinha, pouquinha, então não tinha
nada que atraísse. Tinha então que me construir a mim própria. Fui tomando consciência e
li muitos romances, a literatura me influenciou muito. Naquela época eu sonhava em ser
uma mulher intelectual, independente. Não pensava nem em profissionalização, ganhar
dinheiro.
Em 1955?
Não foi mais, não lembro bem, porque ele foi fazer primeiro ginásio, segundo ginásio, era o
ginasial. Eu sei que quando eu ainda conselheira de JEC feminina e ele já participando das
reuniões de JEC masculina aquilo pra mim foi muito gratificante. Primeiro ele foi
congregado mariano que a minha mãe engajou. Mas os congregados marianos é uma
religiosidade, uma devoção a Nossa Senhora. Eles tinham um trabalho social, mas não era
como a Ação Católica porque ela estava com uma abertura para o social, ela estava
integrada ao meio estudantil, de resgatar o meio estudantil. Ninguém chamava resgatar, a
gente chamava salvar o meio estudantil. E começaram as aberturas da Ação Católica para o
social dentro da realidade da sociedade como um todo. A questão da pobreza, a questão das
diferenças sociais, das injustiças, isso começou a tomar uma forma de conscientização
através dos congressos que tinha, os encontros nacionais, os encontros regionais. E tudo
aquilo era discutido. Era uma semana de estudos sobre a realidade brasileira e também foi
exatamente a época da efervescência, das descobertas das questões sociais que estavam
sendo iniciadas pela renovação da Igreja com o papa João XXIII que foi um grande avanço
na história da Igreja Católica. E eu vendo Tito participar disso me deu uma satisfação
imensa porque eu achava que não valia a gente ser só católico. Era preciso a gente ser
cristão e ser cristão no sentido mesmo de seguir as pegadas de Cristo. E seguir as pegadas
de Cristo é fazer opção pela pobreza. Não significa largar o outro, mas fazer a opção porque
o pobre é que está marginalizado, tem essa questão toda. O Tito entrou direto e, por outro
lado, na minha casa eu convivi nesse período de Ação Católica, enquanto eu estava na
vivencia da JEC foi revelado para a família que meu irmão mais velho era comunista. Pra
mim, eu vivia rezando em função da salvação do meu irmão que era comunista, porque ser
comunista era uma monstruosidade, um crime, era uma aberração pra Igreja. Eram os
condenados. E o meu irmão era comunista mesmo. Ele foi aluno, quase toda a turma de
alunos de História do professor Américo Barreira, do Colégio São João, não só a turma
dele, mas toda turma que passava pelo professor Américo Barreira saía vacinado, história
logo. E ele um homem preparado, muito preparado e comunista. Conquistou aquela
juventude toda daquelas gerações todas. E foi uma época de abertura, de efervescência
muito grande para o comunismo. E eu apavorada a rezar em casa para meu irmãos se
converter. Ele era congregado mariano, meu irmão mais velho, e eu tinha um medo horrível
que o Tito fosse ser comunista e o outro meu irmão também, os outros dois que eram
intermediários, mais novos que eu. Eu vivia em função disso também, rezando para que o
meu irmão não se tornasse comunista. Embora todas as idéias que meu irmão conversava e
discutia em casa, todas as idéias eu via que não havia diferença do que a gente discutia e
via no Evangelho. Só que ele ele ia pelo lado, o evangelho dele era o Marx e o Lênin. E o
nosso evangelho era a Bíblia mesmo, era o Novo Testamento, a gente pegava mais o Novo
Testamento, na verdade. Ficou não era um confronto, mas quando ele fazia as colocações,
as analises da situação da sociedade, eu vinha com as minhas análises cristãs. Só que eu não
tinha fundamentação teórica como ele teve pela história, eu não tive essa cultura histórica.
Pelo contrário, eu tinha horror à história porque a gente aprendia história decorando, eram
tantos pontos, eram 20 pontos de história que a gente tinha que decorar, me lembro tanto.
Um deles caía para dissertação, a gente escrevia sobre um daqueles assuntos e depois tinha
as perguntas e respostas e depois a gente fazia uma prova oral de perguntas e respostas. Não
havia uma discussão de porque os fatos foram assim ou não foram e o fato é que a gente
tinha que decorar mesmo. E eu não era de boa memória então eu tinha horror à história. Eu
não suportava a história por isso. Primeiro porque eu não entendia, sabia assim dos fatos,
mas não guardava datas, perguntavam muitas datas e eu nunca fui de guardar datas, nem
muitos nomes. Eu guardava assim os fatos. Então não me fundamentei teoriacamente para
isso.Mas vivíamos confrontando as idéias marxistas e eu as idéias cristas. Quando o Tito
entra já vem com toda uma conotação e o outro meu irmão, católico, meu irmão
intermediário sem ser esse comunista, eles vêm com fundamentação teórica, eles começam,
trazem muita leitura, muita informação, a gente começa a ler o Monier e eu começo a fazer
uma leitura, de uma visão da sociedade. Lembro de um livro que estava muito em moda era
Os santos vão para o inferno. Esse livro me marcou muito porque era sobre os operários na
França. A lutas daqueles operários, as greves que eles faziam. Eles iam pras minas, daí o
título Os santos vão para o inferno. Aquilo ali me deu uma visão que a gente não podia
viver o cristianismo só daquela religiosidade, dizendo coisas bonitas, tinha que haver a
alguma coisa, mas eu não ia muito mais além que isso. Fui me construindo dessa forma. Ao
me profissionalizar eu comecei também a mudar, a acrescentar à minha literatura para as
questões pedagógicas. Os meninos tinham dificuldade de ler, eu era muito jeitosa para
ensinar as crianças, aquelas que não aprendiam não se sabia porque e eu ficava ali teimando
com a possibilidade delas aprenderem, aí naquela época se dizia, essa criança não tem
juízo, ela é anormal, e eu comecei a fazer um trabalho com elas lá. Comecei a ter uma
dedicação especial por estas crianças e com isto as professoras, que a gente fazia a relação
dos alunos pra cada uma, elas diziam:bota essa pra Nildes que ela tem jeito, bota essa pra
Nildes que ela tem jeito. Quando eu ia pegar a minha turma era mais de alunos especiais
que não eram chamados especiais. Eram alunos retardados, davam esse nome bem popular
mesmo. E eu ficava com essas crianças e daí eu comecei a me interessar em estudar alguma
coisa para saber como ensiná-los, como fazer com que eles aprendessem a ler mesmo, eram
crianças que tinham dificuldade pra ler, já estavam com nove anos e não conseguiam leitura
e eu ficava ali batendo até que arrancava a possibilidade, eles conseguiam, eles
conquistavam, eles tinham o prazer de chegar a situação de leitura. E eu então acrescentei
uma literatura pedagógica. Comecei a me interessar por questões de escolaridade, as
questões das crianças com dificuldade. Outra coisa que me deu muita força, na minha
profissão, no ponto de vista de fundamentação era que no colégio que eu comecei a ensinar
que era o Colégio Christus tínhamos uma reunião semanal. Nessa reunião estudava-se as
dificuldades pedagógicas das crianças, o que fazer, como tratar, como trabalhar. Isso me
abria muito os horizontes. E estudava-se muito a Bíblia. Novamente na profissão eu entro
na história bíblica. E as pessoas que coordenavam a reunião eram muito preparadas para
isso, eram pessoas de Ação católica. E era o Roberto Carvalho Rocha. Eu acho que em
termos de cultura aqui em Fortaleza, é porque a gente não conhece mais as pessoas, mas ele
é um dos homens mais cultos que eu no meu conhecimento eu tive. Aquilo ali foi um
enriquecimento imenso pra mim, aquele espaço educacional. Cresci muito ali dentro.
Juntaram-se as experiências pedagógicas, as experiências familiares, as experiências
estudantis. E agora ia começar um mundo novo na experiência profissional. Eu entro na JIC
que é a Juventude Independente Católica, saio da JEC e fico na JIC. Nesse período o Tito
esta saindo daqui do Liceu, na JEC também, e vai transferido para o Recife, vai pra
regional, será um dos representantes regionais da Ação Católica no Nordeste. Eu nunca fui
para assumir um cargo desse tipo porque eu não tive condição de sair, por conta das
minhas possibilidades financeiras. Como ele era caçula e a gente já tinha superado aquela
grande crise econômica. Todas as minhas irmãs fizeram concurso, todas trabalhando, todas
já ganhando relativamente bem, eu também já ganhando. Então a família dividia muito os
seus salários. Ele foi um dos privilegiados e os outros menores, como eu fui também. Eu só
trabalhei depois que me diplomei. As outras duas irmãs não, entraram na força de trabalho
com 14 anos, até com 13 anos. O Tito vai pra Regional em recife e eu aqui tive a
expectativa de, devido às leituras que eu fazia aquela vontade de fazer uma escola diferente.
Eu cresci profissionalmente e naquela escola que eu estava convivendo eu só podia fazer
aquilo que fosse dentro das condições da escola. Havia uma hierarquia lá dentro e então eu
não podia fazer algo diferente de lá. Achei que fundando uma escola pequena, uma coisa só
pra fazer essas experiências, pra ver se dava certo esse tipo de escola de libertação para o
aluno, que a criança fosse livre. Isso em 1963. Quando foi em 1964 eu consolidei essa
minha vontade porque meu cunhado tinha um terreno, ele ofereceu, tinha recursos. Ele
entrou com a parte financeira, construiu por etapas o prédio da escola e eu entrei com a
parte pedagógica, a experiência. Foi uma experiência muito bonita na minha vida, muito
rica porque foi exatamente em 1964 que iniciamos, Instituto Educacional João XXIII,
começamos em fevereiro de 1964. Em março, abril deu-se o Golpe Militar. Aquelas minhas
idéias de construir uma escola dentro de uma visão de liberdade, mas liberdade bem
orientada, muito influenciada pelo que o Saint Merril. A escola que ele tinha na Inglaterra
era liberdade sem medo. Saia-se da escola novíssima e entrava-se na escola mais do que
nova, a parte psicológica. Via-se a pedagogia dentro de uma visão de liberdade assumida
pelas crianças porque era assim que ele tinha a experiência da escola lá. Então eu queria
fazer uma experiência desse tipo: educação consciente, livre. Fui muito influenciada por
Sant Merril e pela catequese para as crianças (pela Lubien ????) e pela Montesoli. A Lubien
????, uma catequista, ela muito influenciada pela experiência de Maria Montesoli, fez a
experiência na catequese. Era uma experiência belíssima de fundamentação para a
formação consciente da criança que estava no processo de educação. Aquilo ali foi assim
pra mim uma descoberta. Depois da Ação Católica foi uma coisa assim que surgiu na minha
vida como o novo mesmo, um sonho que eu queria realizar. Formei uma equipe de
professoras. Eu digo formei porque elas vinham bem novinhas, só tinham feito o curso
Normal e ali eu fui com elas no debate, na orientação, no estudo, a gente foi construindo a
escola. Com este sonho todo que veio o Golpe Militar, nós adotávamos nessa escola o livro
da professora que era também a primeira experiência na historia da educação no Ceará que
tinha um programa para o curso primário. Não existia programa, não existia uma
orientação, cada escola tinha a sua vida própria. Mas não tinha uma filosofia definida. O
livro da professora foi assim uma revolução na historia da educação do Ceará. Esse livro foi
elaborado por um grupo de educadores coordenado pela Antonieta Calls que ela diretora do
Departamento da Secretaria de Educação, Luiza de Teodoro, Isolda Bezerra de Menezes,
Diatahy, Letícia Parente, professora Dalva Estela, Maria Helena Acioli. Era um grupo de
educadores que elaboraram este livro. Foi rejeitado pelos professores do estado por conta
de não ter havido assim uma compreensão da grandeza daquele trabalho. Era todo já
baseado no método de Paulo Freire. Paulo Freire já estava mesmo na onda de descoberta,
ele foi de Ação Católica. Foi aquele livro que nós começamos a organizar a nossa
programação no colégio. E os livros que também tinham sido elaborados, livros básicos,
textos, primeiro livro, segundo e terceiro livros. Era Paulo, Daniel e Clarice, Beatriz, Davi e
Lia, mas com o Golpe Militar esses livros foram proibidos de chegar às escolas. Não houve
mais entrega deles e ficaram pilhas e mais pilhas nas salas da Secretaria de Educação, foi
um prejuízo enorme, não eram pra chegar porque aqueles livros eram considerados
subversivos. O que eu fiz? Na minha ingenuidade, veja como politicamente eu não tinha
tanta visão da gravidade das coisas, em 1964, na ditadura. Eu achei por bem que a escola
era livre, era particular e adotei os livros mesmo e apliquei. Não houve batida lá, o Tito
ainda não tinha sido preso, já estava no convento dos dominicanos, tinha iniciado o
noviciado dele. Pegamos esse livro, fizemos o Instituto Educacional João XXIII que foi o
suporte de sustentação para não se perder aquele trabalho que aquele grupo de educadores
tinha feito, pra dar continuidade a linha de conscientização política, da formação da criança
e uma visão política mesmo. Sustentei isso aí, 1964 até 1968. Quando chegou 1968 eu
comecei a me desentender com o meu sócio, eu só tinha entrado com o trabalho, o potencial
humano que era a equipe de professores, a experiência, não tinha financeiramente nada, o
prédio era dele, o terreno era dele, os móveis eram dele. Eu comecei a me desentender
porque na verdade, na verdade a gente tinha aquela visão para fundar a escola e ele tinha
outra visão, na verdade ele era um capitalista. Ele queria ver aquilo revertido em lucros. Ele
estava certo na visão dele. Só que não dava certo eu com a minha visão e ele com a dele.
Começamos a nos desentender e teve uma crise muito forte. Foi horrível porque ele era
meu cunhado, era um dos cunhados muito queridos pelo meu pai e pela minha mãe. A
minha irmã era uma das filhas queridas do meu pai. Aí onde eu esqueci de falar lá no início
da minha infância. Eu fazia muita coisa para agradar ao meu pai pra ocupar o lugar que era
este da minha irmã. Eu tinha o meu lugar, meu pai me via, me queria bem, mas eu queria
era o lugar da minha irmã, não queria o meu só não. Eu queria o meu e o dela. E nesse
rompimento, foi um rompimento muito forte porque rompeu mesmo com a questão familiar
que era uma coisa que desde o inicio foi uma coisa construída. E eu admirava essa família
assim e fui exatamente eu a pessoa que foi instrumento de rompimento da família. Isso pra
mim foi uma terrível experiência porque eu não podia me sacrificar naquela situação para
não criar problemas familiares. Criei coragem e rompi e dessa experiência, minha mãe teve
uma crise de asma muito forte que eu tenho quase que absoluta certeza que ela teve como
conseqüência. Ela morreu em 1968. Eu me senti assim muito culpada, muito responsável
por causa disso. Fiquei muito marcada. E saí na estaca zero, com 34 anos de idade, sem
emprego, sem dinheiro, sem nada, sem coisa nenhuma. Ficou todo mundo lá e eu saí. É
quando eu volto para o Roberto Carvalho Rocha. Ele me acolhe novamente no Colégio e eu
vou pra lá não como professora, porque não tinha vaga, mas como secretaria, eu recebia
caderneta dos professores. Mas eu queria continuar aquela semente que eu tinha plantado.
Iniciei outra escola. Instituto Educacional de Alencar. Eu fiz uma homenagem à minha mãe.
O outro era João XXIII por causa da renovação da Igreja e tal. Comecei o Instituto
Educacional de Alencar. A casa a minha irmã ia alugar a uma amiga, ela me cedeu, eu
fiquei com os alunos que entraram, comecei com 45 alunos, muitos sentados no chão, os
pais me acompanharam. Porque o João XXIII ficou com 500 alunos. E eu iniciei. A gente
não quis que fechasse o trabalho da escola, foi uma coisa muito bonita que foi feita lá. As
professoras ficaram lá, só que depois elas vieram a medida que a escola foi se firmando elas
vieram uma por uma, até que ficou a equipe quase toda comigo novamente.Quase toda não,
toda. Começamos essa escolinha que se aperfeiçoou mais porque ali eu já estava muito
sofrida e já tinha passado por um processo cultural, intelectual mais avançado porque fiz
outras leituras, fiz alguns cursos e aquilo me valeu muito em termos de aprofundamento
não ainda universitário, mas professora normalista. Antes da minha mãe morrer, as minhas
amiga da JIC me influenciaram porque a universidade abriu vaga à noite: você vai fazer,
você vai fazer. Não tinha condições psicológicas. Foi exatamente em dezembro de 1967 e o
vestibular foi em janeiro de 1968. Eu não tinha condições psicológicas de fazer vestibular.
Fazia nove anos que eu tinha me diplomado, que eu não estudava mais. Eu não era uma
dessas grandes alunas, não fui aluna brilhante na escola, eu era estudiosa, gostava de ler, eu
estudava pra aprender, eu tinha vontade de ser intelectual. Essa vontade eu sempre tive e
como eu tive uma boa base primária e o meu trabalho na escola com os alunos, você sabe
que uma professora ela se renova muito, ela reaprende e a gente aprende muito: gramática,
leitura mesmo e história. Fui começando a entender a historia, mas aquela história bem rasa
para alunos de primeira, segunda série. O que é que eu fiz? Elas me estimularam, me
estimularam e eu fui e eu sempre digo que aquele vestibular foi feito pra mim. Tudo que
saia lá eram coisas que eu tinha trabalhado com os alunos na escola. Parecia uma coisa feita
como tem que ser pra gente. Passei no vestibular para pedagogia, porque meu sonho era
fazer na Pedagogia, porque a coisa das Letras era a questão da intelectualidade, mas agora
eu já estava definida mesmo de que eu deveria trabalhar, deveria me firmar na Pedagogia. E
fiz e passei e iniciei o meu trabalho na Faculdade. A Faculdade pra mim foi uma outra
experiência de vida. Eu tenho muitos momentos fortes na minha vida, porque a Faculdade
era como se fosse uma adolescente chegando na universidade. Porque a minha vida foi toda
em função dessas questões de família, de escola, chego na universidade com aquela
abertura, aquele tipo de relacionamento, aquele mundo novo e grande, imenso, universitário
mesmo pela forma mesmo de convivência. Amizade, sempre fui muito boa de amizade.
Mas ali a amizade aberta com os rapazes, com a turma, era tudo profissional porque já era à
noite. Foi assim a maior riqueza que eu tive na minha vida depois de Ação Católica. E ali
comecei então a Sociologia, ter uma visão da sociedade. E uma coisa que me marcou
profundamente e me resgatou para a questão da história foi as aulas de Cultura Brasileira
que entra um pouco de antropologia, nas raízes do Brasil e lendo a bibliografia dada pelo
professor este homem foi assim uma coisa extraordinária pra nós, embora na ditadura, era
1968, mas a gente estudando aqueles livros que eram permitidos para a universidade. Mas
mesmo assim,... era Cultura Brasileira, o Florestan Fernandes, a gente começou, comecei a
me abrir muito para a visão de Brasil e ter um resgate para a história do Brasil. Então era
por isso que eu não aprendia história. Fui tomar consciência de que eu não gostava de
historia porque a historia não veio da forma correta pra mim.Quando estou em pleno
desabrochar dessa universidade a minha mãe morre, o Tito vem pra o enterro dela e eu
estando de luto ainda dela ele vai preso, mas uma prisão daqueles estudantes que fizeram
aquele congresso de Ibiúna. Ele foi uma das pessoas que conseguiu o terreno para o
Congresso, o sítio aliás. Então eles foram todos presos juntos, mas foram soltos logo.
Fiquei apreensiva, mas ali me resguardando. Antes dele ir pra lá, mesmo na resistência
democrática que os estudantes se reuniam e ele chegava em casa: “eu vou soltar um
molotov na televisão”, revoltado com as notícias que a televisão dava, notícias falsas,
tendenciosas. E eu tinha um medo horrível e eu em cima dele, você acabe com isso, você
acabe com isso. Porque os meus irmãos comunistas, comunistas mesmo, se resguardaram
todos porque eles sabiam com quem eles estavam lidando, eles já tinham vivido a
experiência de uma ditadura e sabiam como era e eles estudantes jovens, universitários, não
tinham esse temor. Iam mesmo pra rua, pra fazer as passeatas e tudo. E aí eu corria atrás.
No dia em que eles foram presos na Faculdade de Odontologia que era vizinho ao Theatro
José de Alencar a gente estava em reunião e disseram corre que teu irmão foi preso. Preso
assim, estavam todos dentro da universidade sem poder sair. Eu corri, mas a sorte foi que
eles pularam no muro da vizinha, a mulher botou uma escada e eles escaparam por lá.
Chegaram em casa e foi um carão daqueles pois eu me sentia muito a mãe dele, até porque
a minha mãe tinha morrido. Você não brinque com isso, você acabe com essa historia, eu
estava muito no pé dele. Mas a minha mãe morre, ele vai para o convento. Aliás, quando
ele entrou para o convento a minha mãe ainda era viva. Ele veio pra missa da minha mãe e
tudo em 1968. Em 1969 ele foi preso mesmo com os dominicanos. Fomos visitá-lo, foi
muito bom.
Era nacional, mas cada núcleo fazia o seu estatuto, né. Fizemos o nosso estatuto estadual,
houve eleição e por unanimidade as meninas acharam que eu era que devia porque na
verdade, na verdade, todas elas tinham implicação com o movimento estudantil. Eu não
tinha nada. Eu era uma pessoa leiga. Ara, o mais interessante de tudo é que quando
marcavam as reuniões, dizia assim: fazer uma reunião, um lançamento de livro na Praça do
Ferreira: “Ce tá louca, vocês são loucas, não vou, não vou”. Eu dei trabalho às meninas,
você está percebendo, porque eu era bem despolitizada. E elas eram politizadas. E elas é
que estavam corretas, eu não, achando que tinham que abrir espaço. Se a gente fosse fazer
só onde era permitido, ninguém ia abrir espaço, não avançava. Uma nota no jornal, os
estudantes tinham sido presos, ninguém sabia. Tínhamos que dar uma nota sobre estudantes
que tinham sido presos, ninguém podia dizer nada, nada, nada. Mas como o Movimento já
era uma instituição, nós fizemos uma notinha bem pequenininha paga. Ato de repúdio pela
prisão dos estudantes, tal e tal e tal. Movimento Feminino pela Anistia. Nildes Alencar
Lima. Aí, eu tive que assinar. Eu disse: “Pronto, pro resto da vida acabou-se. Agora eu não
saio mais dessa”. Olha, o que teve de ligação de pessoas. “ Não é possível que a gente não
tenha uma coisa pra denunciar”. Porque não existia. Então o Movimento feminino pela
Anistia fazia a primeira denúncia desse tipo num jornal, matéria paga, como convite de
missa. Nem dinheiro a gente tinha pra pagar, nos cotizamos. Começamos a abrir a
esperança nas pessoas, recebemos ligações: “graças a Deus alguma coisa está
acontecendo”. Aí o Movimento começou a criar corpo, a criar força. E a gente a fazer esse
trabalho, caminhando nele, com medo. E eu não percebia, que naquelas reuniões que nós
fazíamos, havia vários grupos políticos. Era Ação Libertadora Nacional, era grupo de não
sei que, era PC do B. Tudo ali e eu não sabia de nada. Não havia necessidade de dizer a que
grupo pertencia. A necessidade era lutar pela anistia. E eu pura, religiosa, totalmente pura.
E elas achavam ótimas porque quando tinham aqueles grupos mais arrojados queriam ir pra
um canto, eu dizia: “não, faço nada, não vou de jeito nenhum”. Olha o meu despreparo, às
vezes eu tenho vergonha: “eu emprstei o meu nome à anistia”. Olha como era que eu
falava. “Eu emprestei o meu nome e não vão jogar com meu nome, fazer como fizeram
com meu irmão não”. Era assim que eu dizia: “não faço”. Aí, um outro grupo que sabia que
elas estavam querendo uma coisa fora... Dentro do contexto que a gente vivia, elas
arrancavam demais, queriam ir longe demais. E eu puxava porque tinha medo. E o outro
grupo que era mais moderado dava graças a Deus eu tomar aquela posição, porque aí vinha
debate, debate, aí chegava à conclusão de uma atividade intermediária. E assim, a gente ia
avançando. E eu não sabia de nada, nada. Eu não conhecia esses grupos. Aí eu perguntava:
“Meu Desus, o que foi que meu irmão descobriu na Bíblia, no Evangelho que eu não
descobri, para ter um compromisso com a sociedade, para eu não ter esse medo que ele não
teve. Eu tinha inveja, eu pensava: “essas meninas são muito corajosas”. Porque que eu não
tenho esse pensamento. Então uma pessoa que me compreendia, que compreendia a minha
verdade e via aquela vontade também que eu tinha de ajudar porque eu fui me empolgando,
eu fui me envolvendo. Porque eu dizia, eu não tinha irmão, mas haviam outras pessoas. Se
meu irmão fosse vivo ele gostaria que eu trabalhasse por ele. Mas tudo em função do meu
irmão, você está entendendo. A ligação era em relação a ele. Aí começamos a fazer visitas
aos presos políticos. Tinha um que vivia isolado porque diziam que ele foi delator, então
passei a visitá-lo. Já que não tem quem vá visitar aquele, eu vou visitar esse outro, até que
um deles se suicidou. O Hélio, esse rapaz sofreu tanto, tanto, tanto. As seqüelas de tortura e
de tudo quanto e ainda mais ele considerado delator, ele suicidou-se o rapaz, aqui em
Fortaleza. Eu fui visitar esse rapaz que estava se embriagando sozinho na penitenciária, ali
no Corpo de Bombeiros, dar assitencia. Fui aprendendo a história da ditadura militar e
tendo essa rejeição não só por medo ou horror à ditadura, mas por uma visão política nova,
uma maneira nova de ver as coisas. E uma pessoa que me ajudou muito foi a Rosa da
Fonseca. A gente andava muito, ia lá pros bairros, ia não sei pra onde. Ela era incansável. E
outra coisa: eu não dormia. Era onze horas da noite, não sei quem tinha sido preso lá não
sei por onde, lá chegavam onze e meia, meia-noite lá em casa. Foi um negócio assim de
muita abnegação e quando eu fui no Congresso da Anistia eu fui falar com a dona
Terezinha Zerbini que eu não estava entendendo as confusões que haviam toda vez que a
gente estava fazendo uma discussão de uam ação, de uma forma de trabalhar. E ela foi e me
explicou: minha filha, ali tem vários grupos. Há o grupo do PC do B, há o grupo comunista,
há o grupo de não sei que. Você não tem nenhum grupo, por isso que eu pensei de ser você
a pessoa pra ficar na presidência. Porque eu seria assim um ponto neutralizador das
questões. E nós fomos trabalhando e eu fui aprendendo, tendo uma visão nova. E pra mim,
hoje eu digo, foi uma das melhores experiências que eu tive na minha vida foi ter
participado desse Movimento. Politicamente eu cresci, aprendi história, resgatei a história
na minha vida e entendi toda a luta do pessoal, foi rasgar assim toda a verdade histórica
daquele período. Porque eu só vivia em função do meu irmão, então eu tive outra visão. E a
gente desenvolveu mesmo um movimento, depois ele abriu-se, veio o Comitê Brasileiro
pela Anistia, aí entrou todo mundo, eram os sindicatos, eram os jornalistas, era tudo, né. Aí
foi uma coisa belíssima. Eu digo que do período da ditadura militar foram dois
movimentos belíssimos e importantes: o movimento da anistia e as diretas já. E estamos
comemorando os 25 anos e eu considero que a gente não pode deixar de comemorar não
por uma questão poética, romântica, saudosista. Não, mas porque na história a anistia
significa mesmo uma retomada de direitos, de justiça, de retomada de direito às coisas. Em
qualquer circunstância, em qualquer país que tome do povo a sua oportunidade de decidir,
de se definir e que isso seja tomado, a gente tem que lutar por isso mesmo, porque o povo
mesmo não tem vez. Toda vez que o povo chega ao poder, que consegue chegar, as forças
dominantes são muito fortes, criam muitos mecanismos de destruição, de desgaste. A
história do nosso país é muito marcada, quando a república quer se estruturar, formar-se e
ter a sua força, a sua autonomia e a democracia ir se firmando a gente sabe que sempre vem
um movimento de direita, de extrema direita e põe abaixo. E principalmente no mundo
agora que nós temos, os meios de comunicação, como tínhamos, mas agora eles são muito
mais fortes. A formação desse Conselho para a questão da imprensa por trás disso existe o
poder, porque são poucos os que mandam nos meios de comunicação do país, são poucos
os que detem esse poder. Essa lei vai barrar o poder deles. Não é por acaso que eles estão
defendendo. São questões desse tipo que a gente tem que fazer a memória da anistia. Agora,
ela teria não só que ser de eventos, mas teria que sistematicamente, pelo menos nas escolas
sistematizando seminários nesse período em todas as escolas, a semana da anista, debates,
discussões, um filme desse como a Olga, vale a pena ser passado para os jovens.É muito
mais divulgado pela televisão pela questão dos artistas. Nós de nossa parte é que devemos
fazer a divulgação política nas escolas, com os educadores. Lutar para que existam livros
oficiais que contem essa parte da nossa história, essa fase de 1964, não como uma colcha de
retalhos: anistia, diretas já, mas a história dentro de um contexto, o porque da ditadura, as
razoes, qual era o processo democrático que vinha acontecendo e que foi impedido. A
história mesmo com todos os seus detalhes, nas universidades que formam os historiadores.
Nesse sentido a pesquisa é fundamental porque ela vai buscar a história. Tem os jornais,
mas essa história tem que se construir todinha, tem que juntar esses pedaços e formar um
livro oficial. (...)