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conheça também a coleção primeiros passos

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Saiba do que estão falando


ÚLTIMOS LANçAME:-.rrns )s caipiras
O Oi.e é:

68.
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ROCK - Paulo Chacon


f,ISão Paulo
aylo:6 Rodrigues Brandõ»
ô9. PASTORAL - João Batista Lib11r;;ol i L---.- ..'
70. C{~NT,A.BIUDADE '-. ..Roque; Jacil"'Tho . /., .~
71. Cf.,PITAL !NTERNAC!ONAL - Rabah Benakouche.
72. PO\SIT!\/iSMO -- João Ribero Jr.
73. LO'~CURA _. João /\. Fravze-Pera'ra
74. LÊI URA - Maria h.'i·,:;na,Martins
75. QU ;STÃO PALESTINA -, Helena S2iem .
76. PU~\IK - Antonio Bivar I

77. PROPAG,ó,NDA IDEOl.ÓGICA -- Nélson Jél:,( Garcia


78. MAblA .. João Ribeiro ,;r.
79. EDI~CAÇÃ;) FíSIC·\ -- Vitor r'J1arinhode Oliveira
80. MLJSICA -- .I.. Jot>, r : I\,~'braes
81. HOI\10SSEXUM.lur,,:"E .- Peter F-y e Edward MéJcRae
, '82. FonbGRAFIA - Cláudio Araújo KUDfUS!Y
Q3. ;,JüLí"t'CÁ NUCLEAR - Ricardo Arnt
':~. MEDpNA ALTE~NATIVA -- .r., . helio Serrano
at>. VIOL'fN<::IA .: ::10 ??ália ('_~'~_-
86. i'SIC/<l.NALISr..:· r<Jb)~. Herrrnann <
87. Pt\R L'AM ENljl ,. \ :i::; r.l;:) -- Rub~:I'Cesar Keirfert
88. AMOil - Bettv Milan
89. PES~'.oAS DEFiCIf:NTES '- João B. Cintra .flibas
90. DESC:l~EÓIÊNCI,u.. NIL .- Eval;U-Vieira--A . -- - t
~1 UNIVt:,~}IDADE -- Luíz E. W. . anderley
~~2.QUEST l\i.}"DA MORADIA - Lu" C. Q. Ribeifo~
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93. JAll Roborto Mugr·t:)ti
94. B1BLJO-;'ECA _. Luiz !\';:ianesi
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c 95. r.~RTIC·,''AÇÃO ....- JL:31! E. D. B
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Carlos Rodrigues ~andão

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DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI
OS caipiras de sao paulo.

\ \11\\1 \\11\ \\1\1 \\1\\ 11\\\ 11\\\ \\\\\ \\\\\ \\\\\ \\\\\ \\1\\ \\\\ \\\\
• A Ouestão Agrária no Brasil - Gaio Prado Jr. 21200041245
• Arqueologia da Violência - jnsaios de Antropologia Política -
Pierre Glastres
• Caminhos Cruzados - Linguagem, Antropologia e Ciências
Naturais - Diversos Autores
• Cidade e Campo no Brasil - Manoel G. Andrade
.os CAIPIRAS
• Diário de Campo - A Antropologia como Alegoria - Gados R. DE SÃO PAULO
Brandão
• História da Agricultura Brasileira - Francisco Gados T. Silva e
Maria Yedda Unhares
• O Massacre dos Posseiros - Ricardo Kotscho
• Pesquisa Participante - Garlos R. Brandão (orq.)

Coleção Primeiros Passos


• O que é Capitalismo - Afrânio Mendes Gatani
• O que é Cultura Popular - Antonio Augusto Arantes
• O que é Questão Agrária - José Graziano da Silva
.0 que é Reforma Agrária - José Eli Veiga
• O que é Subdesenvolvimento - Horacio González TOMEO:119601
Coleção Tudo é História
• O Imigrante e a Pequena Propriedade - M. Thereza S. Petrone
• Reforma Agrária no Brasil Colônia - Leopoldo Jobim

Coleção Primeiros Vôos


• Questão Agrária e Ecologia - Francisco Graziano Neto
••
SBD-FFLCH-USP

10083
40 anos de bons livros

/
Copyright e Carlos Rodrigues Brandão
Capa e ilustrações:
123 (antigo 27)
Artistas Gráficos

Revisão:
José W. S. Moraes

• I
~ INDICE
1/ . .J.

o camponês caipira 7
O trabalho da terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
s Og· ~ (b-O
Indicações para leitura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

S Q 6" 1.( 3 lIO-,,)

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editora brasiliense s.a.
01223 - r. general jardim, 160
são paulo - brasil , jtt I

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"Como a terra é aqui abundante e toca a h


todos, esses homens, a quem se chama no o CAMPoNSs CAIPIRA
lugar caipiras cultivam a ferro e fogo o tor-
rão que possuem e plantam milho, feijão e
arroz. Colhido o seu produto levam-no ao
mercado onde o vendem para comprar a rou- Caapora, Caipora, Caipira
pa que lhes é necessária" .
"Camponês", "caboclo", "caipira", "roceiro",
Augusto Emílio Zaluar, Peregrinação pela "sertanejo", "capiau" ... com que nomes e símbolos
Província de São Paulo reais ou ilusórios essa. gente rural dos sertões de
f. ontem e de agora habita o seu imaginário e o meu,
leitor? Que homem caipira real existiu e existe ainda
hoje em São Paulo e-que personagem dele há dentro
de cada um de nós? O lavrador rústico cuja lavoura
substituiu a dos índios? O Jeca Tatu? O povoador de
sucessivas áreas de fronteira? Os tipos engraçados de
Mazzaropi e Alvarenga-e-Ranchinho?
Ora, de alguns anos para cá o rádio e o disco, o
cinema e a televisão multiplicam tipos sertanejos que
às vezes quase tornam modernos e acostumados com
a cidade os lavradores caipiras do passado. Entre
Sérgio Reis, Milionário e José Rico eos velhos vio-
para Maria Isaura Pereira de Queiroz leiros de "moda" e "cururu" há uma distância muito
e José de Souza Martins.
8 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 9

grande. Assim como a que, às avessas, existe entre o se sempre conhecemos aos pedaços e através do que
relato apressado que viajantes e cronistas escreveram há nela de pitoresco apareça através de como ela
a respeito dos habitantes rurais da Província de São realmente é feita. Através do trabalho com a terra e
Paulo e os estudos recentes que com menos pressa e de como ele e sua condição criam e recriam modos
.preconceitos procuram agora compreender não só os próprios, familiares e comunitários de ser, viver,
trabalhadores caipiras, como também outros tipos de pensar, crer e conviver.
sujeitos subalternos de. enxada e arado que primeiro Já que mais do que tudo o nome é a janela da
os acompanharam e, depois, começaram a substituí- identidade, comecemos por ele. Às vezes num dicio-
los: o sitiante, o camarada, o colono, o bóia-fria. nário poucas palavras chegam para definir o caipira:
Na primeira parte desta pequena viagem à pes-
soa e ao mundo do lavrador caipira de São Paulo, "Roceiro, matuto, acanhado, sem trato na cidade".
quero aos poucos recuperar a imagem que escritos do (Bueno)
passado fizeram dele, ao transportá-lo de uma figura
de sombra à beira do caminho entre índios e senhores No mesmo dicionário, "camponês" é "aquele
à posição de ator subalterno de sua própria história. que habita ou trabalha no campo; próprio do campo;
Na verdade, das primeiras leituras pouca coisa sobra rústico". (idem) Quando o dicionário é mais cui-
que recomende o nosso caipira. Saltando do verbete dadoso na escolha dos nomes do caipira, em nada
de alguns dicionários às impressões de viagem de isso melhora a adjetivação de sua identidade. Assim,
Saint-Hilaire, sugiro que uma trajetória de desven- no "Aurélio", ele aparece da seguinte maneira:
damento da condição, da identidade e do modo de
<
vida do caipira seja feita com leituras que vão de "Habitante do campo ou da roça, particularmente os
Monteiro Lobato a Cornélio Pires. A Maria Isaura de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e
Pereira de Queiroz, José de Souza Martins e Maria canhestros (sin.) sendo alguns regionais: araruama,
Sylvia de Carvalho, por exemplo. Trata-se primeiro babaquara, babeco, baiano, baiquara, beira-corgo,
de corrigir uma imagem e, depois, de explicar que beiradeiro, biriba ou biriva, botocudo; bruaqueiro,
caapora, caboclo, caburé, cafumango, caiçara, cam-
condições geraram uma gente assim.
bembe, camisão, canguai, canguçu, capa-bode, ca-
Quando este primeiro caminho estiver percor-
piau, capicongo, capuava, capurreiro, casaca, casa-
rido, podemos voltar aos mesmos lugares de sertão e cudo, casca-grossa, catatuá, catimbó, catrumano,
rever o caipira com os nossos próprios olhos. Obser- chapadeiro, curau, curumba, groteiro, guasca, jeca,
vá-lo através de sua vida, no lugar onde ela existe no mambira, mandi ou mandim, mandioqueiro, mano-
cotidiano. Que, então, uma cultura caipira que qua- juca, maratimba, mateiro, matuto, mixanga, mi-
10 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 11

xuango ou muxuango, mocorongo, moqueta, mu- andar é pesado, e tem o ar simplório e acanhado.
cujo, pé-duro, pé-no-chão, pioca, piraguara, pira- Pelos mesmos têm os habitantes da cidade pouquis-
quara, queijeiro, restingueiro, roceiro, saquarema, sima consideração, designando-os pela alcunha inju-
sertanejo, sitiano, tabaréu, tapiocano, urumbeba ou riosa de caipiras, palavra derivada possivelmente do
urumbeva ... ". tFerreira, Aurélio Buarque de Hol- termo curupira, pelo .qual os antigos habitantes do
landa, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Por- país designavam demônios malfazejos existentes nas
tuguesa) florestas ... " (Saint-Hilaire, Augusto de, Viagem à
Dos dicionários gerais para os especializados a Província de São Paulo)
mudança é pequena. Assim, Luís da Câmara Cas-
cudo sugere que além de tímido e despreparado, o Entre todos os esforços vocabulares que encon-
caipira pode ser um sujeito pouco confiável. trei para afinal dizer quem é o caipira, apenas em
outros dois pesquisadores do assunto que também
"Homem ou mulher que não mora em povoação, que nos esperam adiante há um esforço notável para
não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir- explicar a idéia de "caipira", seja ainda através da
se ou apresentar-se em público (... ) Habitante do análise do nome, seja pela indicação de caracterís-
interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas son- ticas próprias, ligadas à localização, ao modo de vida
so ... " (Cascudo, Luís da Câmara, Dicionário do Fol- e ao exercício do trabalho agrícola. Um deles é Cor-
clore Brasileiro) nélio Pires e o outro, Antônio Cândido.
Saint-Hilaire, cuja viagem entre caipíras pau-
"Por mais que rebusque o 'étimo' de 'caipira', nada
listas nos espera um pouco adiante, ao descrevê-Ias
tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão;
na cidade de São Paulo não consegue deles um re- neste caso encontramos o tupi-guarani 'capiãbiguã-
trato melhor. O próprio nome que lhes dão os ho- ra ', Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o
mens da cidade - caipiras - seria "injurioso" e rosto: neste caso temos a raiz 'caí' que quer dizer:
possivelmente derivado de um nome semelhante, II 'gesto de macaco ocultando o rosto ', 'Capipiara', que
~q\
usado para chamar tipos de "demônios malfazejos", quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do
"mato: faz lembrar o 'capiau' mineiro. 'Caapi' - tra-
"Estes últimos, quando percorrem a cidade, usam balhar na terra, lavrar a terra - 'caapiára', lavrador.
calças de tecido de algodão e um grande chapéu E o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último
cinzento, sempre envolvidos no indispensável poncho, caso o mais aceitável, pois 'caipira' quer dizer 'ro-
por mais forte que seja o calor. Denotam os seus ceiro', isto é, lavrador ... "(Pires, Cornélio, Conver-
traços alguns dos caracteres da raça americana; seu sas ao'Pé do Fogo)

l
Os Caipiras de São Paulo 13
12 Carlos Rodrigues Brandão

A explicação de Cornélio Pires é importante por- Em um estudo sobre o dialeto caipira, Ada Na-
que faz a fronteira onde a palavra e a pessoa existem tal Rodrigues traz o depoimento de Antônio Cân-
definidos por sinais de menos e o lugar onde outras
razões, como a do próprio trabalho de que provêm,
dido. Ele é o "vivente de um território indefinido"
com formas próprias de fala e visão de mundo. (Ro-
drigues, Ada Natal, O Dialeto Caipira) O seu mundo
"'
-'
traçam o nome e a identidade. De uma primeira
safra de nomes a respeito de quem é, o caipira sai cobre "um lençol de cultura caipira, com variações
como o viu e pensou uma gente letrada e urbana. Por locais, que abrangia partes das capitanias de Minas,
isso, comparado com ó cidadão, o citadino livre do Goiás e mesmo Mato Grosso". (Cândido, Antônio,
trabalho com a terra, o caipira sai dito pelo que não é Os Parceiros do Rio Bonito)
e adjetivado pelo que não tem. Ele é ponto por ponto Uma verdadeira "civilização caipira" cobriu no
a face negada do homem burguês e se define pelas passado áreas extensas, segundo Pascuale Petrone.
caricaturas que de longe a cidade faz dele, para Mais do que sujeitos e famílias indigentes, dispersos
estabelecer, através da própria diferença entre um pelas beiras de estrada onde os viajantes os viam,
caipiras lavradores de frentes pioneiras de ocupação
tipo de pessoa e a outra, a sua grandeza. Separado \
do trabalho e de uma cultura derivada de um tipo de do território paulista esparramaram bairros rurais e
trabalho, o caipira paulista define-se primeiro por povoados maiores por
ser naturalmente do lugar onde vive: o campo, a "todo o litoral paulista (onde o caiçara é sempre um
roça, Q sertão, a mata, o lugar oposto à cidade. É caipira); o Vale doParaíba, as serras da Mantiqueira,
quem "não mora em povoação" e, portanto, aquele de 'Quebra Cangalha, do Mar, de Paranapiacaba: o
que não possui o preparo e as qualidades do homem planalto paulista; a zona bragantina; a 'depressão
da cidade, o civilizador, de quem a seu modo o periférica paulista', isto é, a zona de transição entre
caipira escapa, tanto quanto o índio, e mais do que o os solos arqueanos e os solos paleoz6icos, principal-
negro. Se o seu lugar de vida é o contrário do da mente ao longo do Rio Tietê (englobando a zona de
Piracicaba, dos Campos Gerais ete.), a zona do an-
cidade e o seu trabalho é invisível, por ser o oposto ao
tigo 'Caminho do Mato', que levava ao Sul do país e
"da cidade", o. seu modo de ser e a cultura são o por onde vinham as tropas de muares para serem
oposto do que a cidade considera "civilização", "ci- vendidas na feira de Sorocaba; o planalto de Franca,
vilizado". Por isso; a meio caminho entre o bugre e o caminho para as minas de Goiás e Mato Grosso ",
branco, o "caipira", "caboclo" é ignorante, "sem (Queiroz, Bairros Rurais Paulistas) !I
trato", ou seJ~;".sem aquilo que, ao ver do tempo,
apenas a distâneia do cativeiro da terra pode atribuir Pois foi vindo de Minas e passando por Farinha
ao homem "de trato", o senhor e seus emissários. Podre (Uberaba) que, ao entrar na Província de São
14 Os Caipiras de São Paulo 15
Carlos Rodrigues Brandão

1I r
Paulo pelos lados de Franca, Augusto de Saint-Hi- Assim, o cronista transita entre senhores e"emis-
laire começou a ver caipiras pela estrada ea escrever sários, e tanto viaja à cultura do índio quanto ao
sobre eles anotações de passagem. trabalho do negro. Mas entre lavradores caipiras ele
passa. E como na passagem não encontra entre eles
nem o trabalho nem a cultura, ele os vê como "uma
0 homem que os outros viram
0

gente", possivelmente a pior dos caminhos por onde


viaja.
o primeiro capítúlo de Viagem à Província de
São Paulo contém uma descrição geral da região e a "Enquanto descrevia e examinava as plantas, apro-
narrativa da história da província. Ali o viajante ximou-se um homem do rancho, permanecendo vá-
rias horas a olhar-me, sem proferir qualquer palavra.
o
francês convoca os mesmos sujeitos que todos os Desde Vila Boa até Rio das Pedras, tinha eu quiçá
!I ") outros cronistas de fora e da casa costumavam pôr cem exemplos dessa estúpida indolência. Esses ho-
'"')

I) ~
o

I
em cena: conquistadores, religiosos e burocratas da mens, embrutecidos pela ignorância, pela preguiça,
II }i~'
Id
Coroa; senhores de sesmarias e minas de ouro; ban-
) deirantes paulistas a respeito de quem Saint-Hilaire
pela falta de convivência com seus semelhantes e,
talvez, por excessos venéreos primários, não pensam:
testemunha com assombro a bravura e a violência; vegetam como árvores, como as ervas do campo.
nações de indígenas desaparecidos, aldeados ou ain- Obrigado pela ventania a deixar o rancho, fui pro-
da livres; negros escravos ou forros. curar abrigo numa das cabanas principais, mas ad-
Mas os "homens livres" e pobres do trabalho mirei-me da desordem e da imundície reinantes na
agrícola nunca aparecem em Saint-Hilaire - e rara- mesma. Grande número de homens, mulheres e
crianças desde logo rodeou-me. Os primeiros só ves-
mente aparecem em outros viajantes - seja como
tiam uma camisa e uma calça de tecido de algodão
sujeitos da história, tal como governantes, senhores
grosseiro; as mulheres, uma camisa e "uma saia sim-
sesmeiros, missionários e bandeirantes, seja como ples. Os goianos e mesmo os mineiros de classe infe-
sujeitos de uma cultura, como índios e negros. Ex- rior vestem-se com muito pouco apuro, mas pelo
pulsos de uma coisa e da outra, não são parte reco- menos, são limpos; a indumentâria dos pobres habi-
nhecida da nação dos senhores e não são, como
outros sujeitos dominados da província - índios e "
negros - nações de povos dali ou de fora, sujeitos de
j tantes de Rio das Pedras era tão imunda quanto suas
cabanas. A primeira vista, a maioria deles parecia ser
constituída por gente branca; mas, a largura de suas
1

mundos agora subalternos, mas donos de vidas e faces e a proeminência dos ossos das mesmas traía,
símbolos coletivos que atraem com respeito o olhar para logo, o sangue indígena que lhes corre nas veias,
do viajante. mesclado com o da raça caucásica... Pode-se acres-

~I'
16 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 17

centar, ao demais, que à indolência juntam eles, ge- Eis O caipira que os primeiros cientistas descre-
ralmente, a idiotice e a impolidez ... " (Viagem à Pro- vem. Em outros viajantes a visão não é diferente. Na
víncia de São Paulo) verdade, alguns deles sequer falam sobre o lavrador
livre e pobre; uma população biologicamente degene-
Mais adiante outros lavradores caipiras encon- rada, seja pela descendência de maus cruzamentos
trados na viagem a caminho da cidade de São Paulo raciais, seja pela associação da fome crônica com as
acrescentam à descrição de idiotice e grosseria um doenças do sertão. Uma gente em quem a ausência ~
outro traço que, aos-olhos do homem da cidade, foi do trabalho produtivo não organiza a vida coletiva. ,
durante muito tempo o principal atributo do caipira: No entanto, ~são ruins em quase tudo, pelo menos
a indolência. Este é o nome que traduz a inatividade parecem humildes e mansos, sujeitos desprovidos da
do trabalhador livre e pobre dos sertões, que vive do "maldade'~Q!léSaint-llilaire atribuí. a c~n.!.Qºneses
que caça e coleta e mistura com o pouco que planta de algumas regiõçs~_Fran~a. O que falta a uma
para viver. identidade completamente depreciada - a violência
- vai surgir e sobrar em outras páginas do livro.
"Os moradores das mesmas, provavelmente oriundos
Vindo de Minas Gerais, onde encontrou lavradores
das raças africana, americana e caucásica misturadas pobres cujas virtudes de inteligência, asseio e tra-
entre si, eram de feio aspecto e excessivamente imun- balho reconheceu - lavradores à margem da his-
dos; pela lividez da pele e pela extrema magreza tória, mas participantes de uma "civilização" civili-
demonstravam servir-se de alimentação pouco subs- zadora, inexistente em São Paulo de então -, o
tancial ou insuficiente; muitos dentre eles eram desfi- yiajante compara o caipira de São Paulo e o mineirO"
gurados por enorme papo. As mulheres tinham os
cabelos desgrenhados e o rosto e o peito cobertos de
em
'"
São Paulç, atribuindo a .este aquilo que fãíta
~ - -
aquele.
sujeira; as crianças pareciam enfermas e eram tristes
e apáticas; os homens eram abobados e estúpidos. "É já sabido que, desde além da cidade de Santa
Parece que esses infelizes tinham muita preguiça para Cruz, emigrados de Minas Gerais vieram se estabe-
o trabalho, s6 cultivando o estritamente necessário à lecer nos campos vizinhos da Estrada de Goiás a São
satisfação das prôprias necessidades, e a seca do ano Paulo, e que ali fundaram as aldeias de Farinha
anterior levou ao cúmulo a sua miséria. Quase por, Podre e de Franca. Entre esta última e a cidade de
toda a parte me pediam esmola; desde que me encon- Mogi Mirim, a população, muito escassa, apresenta
trava no Brasil, não presenciara em parte alguma igualmente uma mistura de antigos habitantes com
tamanha pobreza ..• (Viagem à Província de São Pau- outros mais recentemente ali chegados. Os primeiros, .
lo) todos peulistas e, provavelmente, mestiços de indl-
18 Carlos Rodrigues Brandão
Os Caipiras de São Paulo 19

genas com brancos em diferentes graus, são, como os


agricultores de Rio das Pedras, das vizinhanças de radas como nãa....existentes ". (Viagem à Província de
Pouso Alto etc., homens grosseiros, apáticos e sem São Paulo)
lJ.g11lzum.asseio. Os segundos, nascidos em geral na
comarca de São João d'EI Rei, sem possuírem as A "apatia" que, em geral, não se sente à von-
qualidades que distinguem (1816-1822)ºs mineiros tade entre repentes de bravura e violência, convive
dascomarcas de Ouro Preto, de Sabará e de Vila do com ambas entre caipiras de São Paulo. À margem
Príncipe, diferem, entretanto, muito e muito dos seus do processo civilizatório de que os senhores de Roma
vizinhos. Há limpezá em suas residências e eles são e Lisboa são vistos como condutores, depravado bio-
mais ativos, muito mais inteligentes, ~enos grossei- logicamente por combinações ruins de raças e san-
ros e mais hospitaleiros ~ os v~dadeiros pau- gues, exposto às más influências dos fugitivos da lei
listas instalados na região; entre eles são, em suma, nas "Gerais", os surtos cotidianos que mesclam, na
e"';,côntrados todos os usos e costumes de seu torrão
família e na vizinhança, a violência com outras estra-
natal - Minas Gerais. Ao passo que em Minas, ao
tégias do sobreviver são, aos olhos do viajante, um
menos nas regiões mais civilizadas da província, os
homens, mesmo os das mais baixas classes sociais, modo degenerado de lidar com a vida e com o outro.
mantêm entre si relações de certa cordialidade, eu Q oposto.do.caipira são _QS senhores (te terras _e,_mais.A-1-
ouvia, desde que atravessei a fronteira de São Paulo, ainda, o bandeirante, em quem a violência arbitrária
falar-se, comumente, em matar, como em qualquer sobre o índio, o escravo e o pobre justifica-se, no fim
outra parte se falaria em dar bengala das. Çhumbo na das contas, pela nobreza do estilo com que é exercida
cabeça, faca no coração, eram as doces p~lavraS que, e a intenção legítima da conquista. Assim, quando os
é.{J'!sta-ntemente, feriam meus ouvidos. Os~ntigos próprios bandeirantes e donos de lavras do fim dos
paulistas faziam tão pouco caso da prôpria. vida, co- tempos do ouro voltam a ser senhores de terras,
rim da de seus semelhantes; é possível, porém, que na conservam a nobreza da origem, ainda que percam
região que se estende do Rio Grande a Mogi, os
traços e atos guerreiros que foram neles a glória e,
descendentes desses aventureiros audaciosos tenham
nos caipiras, a vergonha. Saint-Hilaire fala sobre o
um pouco mais de resguardo pela prôpria vida do que
os seus antepassados, sem, entretanto, muito respei-
acontecido.
tar a do pr6ximo. Como, de resto, poderiam perder a
rudeza hereditária? Não recebem nenhum ensina- "Os terrenos auriferos tendo sido repartidos e a caça
mento religioso, os mausexemplosaos malfeitores, aos indígenas estando severamente proibida, foram
foragidos de Minas e entre eles abrigados, mais os eles obrigados a renunciar aos seus hábitos de mais de
excitam à prática do mal e, ademais, em regiões tão dois séculos. A agricultura foi o seu recurso: instala-
afastadas, !!s leis3:e.J!IllIe~são podem serconside- ram numerosos engenhos de açúcar, e onde a natu-
reza lhes oferecia pastagens, passaram a criar gado

.•..
20 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 21

cavalar e vacum. As ocupações sedentárias, às quais


foram constrangidos a entregar-se, habituaram-nos à
vida de família. Suas antigas lides se extinguiram e,
I
,1
pouco a pouco, seus costumes tornaram-se mais bran- .I
dos. Sempre ufanos da glória de seus antepassados,
não mais pensaram, entretanto, em imitâ-los. De-
viam perder, necessariamente, os defeitos dos antigos
corredores de desértos; nada os impediu, porém, de
conservar as brilhantes qualidades que distinguem ~
esses homens extraordinários. Tiveram coragem sem
crueldade, firmeza sem rudeza, franqueza sem inso-
lência. "(Viagem à Província de São Paulo)

r Quando na Província praticamente todos "vi-


vem da terra", tê-Ia e trabalhar nela divide os ho-
'
II
mens d~ São Paulo em s~nhoreÂ. la,YJ-ªdor_e_s livres, I
pequenos donos ou ãgregados- de
- fazendas
--- e escravos.
Os IavradoresI'sem terra" ou, por pouco tempo,
encostados em alguma terra de posse provisória são
"I'
I

os mestiços, que é quase todo cativo-livre da terra, ~


que Saint-Hilaire, senhores, missionários e outros
viajantes viram. Fácil compreender por que eram
percebidos como uma gente dispersa, 'indig~nte, in-
d~!.e e !g!!~rant~. Porque, ademais de pobres e ex-
propriados, como iremos ver mais adiante, eram, sim,
bolicamente, mais do que o índio e o negro escravo, o..
oposto do senhor de terras. Os caipiras, mesmo nã
sendo nunca percebidõS-;través do seu trabalho com
a terra, -são trabalhãdores da terra e, portanto;-ho-
---- -- --~
mens a quem não sobram nem o tempo nem condi- "Não cantam e não riem e mantêm-se tão tristes depois
ções para se Cürtívãfem a si -próprios. Cativos da de ter bebido cachaça, como estavam antes da ingestão
- .J
terra, sem serem escravos dos sennores de terra, dessa bebida alcoólica. "
22 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São. Paulo. 23

estão, por isso mesmo, mais afastados de sua cultura piras, social, cultural e biologicamente uma "gente"
civilizadora do que os próprios índios "catequiza- entre o índio e o branco, estariam envolvidos absolu-
dos", ou do que os próprios escravos "civilizados". {? tamente - mas não organizadamente, como os ín-
Eis um dos únicos momentos em que um viajante vê dios, nem civilizadamente, como o bandeirante T
o caipira paulista através do trabalho: como um cam- em uma natureza ainda em muito pouco conquista tia
ponês. e que, ao mesmo tempo, os alimentava, vestia e
"Esses mestiços, -relativamente à inteligência, estão.
abrigava ao nível da indigência, quando, em contra-
muito. abaixo. dos mulatos, e diferem inteiramente dos .,.~ partida, os exilava do trabalho que o escravo do
fazendeiros brancos da parte mais civilizada da Pro- tempo era visto exercendo, e o senhor, determi-
víncia de Minas Gerais. Estes são. homens mais o.u nando.
menos abonados, que possuem escravos e não. culti- Na verdade, este "último dos homens" da pro-
vam a terra com as próprias mãos; nos colonos bran- víncia corresponde, na escrita do cientista, ao tipo de
~~nso.s_br:anco.s, da parteaãPro.vmcia de sujeito social que os olhos do senhor quiseram ver,
São. Paulo. de que me vo.u ocupando, não. se podem ver ,pafã-foUb.ar-liemculpa:--
senão. verdadeiros camponeses: não. Po.ssuem escravos Desta curva do caminho em diante, leitor, po-f ~
e são. eles prôprios que plantam e colhem, vivendo,
geralmente, em grande penúria. Têm toda aJ.impli-
demos começar a rever, ainda com os olhos dos ou-
tros, o camponês caipira. Tomando como exemplos o
jaZ'}
-- .
cidade e os modos grosseiros dos (!Q§so.scamponeses,
testemunho de Oliveira Vianna e Cornélio Pires, pro- 'ir,::;;~
mas não.possuem, seja sua alegriar-sej(ZsugJlt;,v..idade,.
Se quinze camponeses de França se reúnem num do- l~
'.
curemos compreender como pessoas menos apres- f"
mingo, cantam, riem, discutem, os de que trato. ape- sadas na viagem entre uma cidade e outra, e menos o
nas falam, não. cantam e não. riem e mantêm-se tão. eco do olhar dos senhores, souberam el'miç-ª:r a con-
tristes depois de ter bebido. cachaça, como estavam dição e a identidade da pessoa e da cultura do tra-
antes da ingestão dessa bebida alcoôlíca. r r (Viagem à balhador rural de quem falamos aqui.
. Província de São Paulo) ~: Há um momento em que os índios - "os bu-
gres", no dizer do caipira - estão mortos ou empur-
Eis uma síntese da identidade que não só Saint- rados para longe, para outras províncias de uma
Hilaire, mas outros emissários letrados do país ou de república nascente. Há um momento em que os es-
fora criaram para o caipira dos sertões de São Paulo. cravos estão mortos ou livres e passam de negros,
Eis um mundo ao mesmo tempo privado de produção segundo suas nações de origem, a pretos com quem
de cultura sobre a natureza (a agricultura) e de cria- outros pobres e subalternos dividem o cotidiano. En-
ção de uma cultura na sociedade. Camponeses cai- tre colonos europeus do café e senhores empobre-
24 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 25

cidos do cafezal, é preciso buscar um tipo_d.e_~l!te verdade que, ao distribuir estas e outras virtudes
propria.siue, mesmo sem haver sido até então habi- entre pessoas rurais de uma classe e outra, ele afir-
tante reconhecida da história de São Paulo, seja pelo \tr'
ma que, existindo "difusas por toda a massa da
menos uma das bases da identidade da cultura a - \ população", principalmente as duas primeiras são
~. t.::o:..:ra=--=o:,.-::~a~n=e=lr,:,a=n=te
com cujos nomes é útil uma característica da "nobreza fazendeira". A vio-
batizar as estradas e de cujas façanhas é necessário lência desbragada que assustou Saint-Hilaire torna-se
povoar os livros de escola, São Paula.não produziu, o ato de força a que obriga a honra.
como outros estados, tipos-ritos de sujeitos locais,
Q.9brese "típicos". Personagens sem' nome, õra he- "Há entretanto, certos sentimentos e certos precon-
róicos, ora pitorescos: baianas, seringueiros, gaú- ceitos - índices infalíveis de nobreza moral - que
têm para esses desdenhados matutos uma signifi-
chos, jangadeiros. Entre os anos do fim do século
~sado_ e, sobretudõ, os do começo deste, alguns _ » «ação~dievalm!~!!:. cavalheiresca. O respeitõpeJa
mulher, pela sua honra, pelo seu pudor, pela sua
estudiosos da cultura paulista descobriram que o dJiií[dade, pelo seu bom nome, por exemplo. Ou o
estado tinha como tipos o "caipira" e o "calçara", sentimento de pundonor pessoal e da coragem física
que é um caipira do litoral. Foi então que ele dei- que faz com que o matuto, ferido na sua honra,
xou de ser "uma gente" miserável de cultura invi- desdenhe como indigno de um homem o desagravo
sí~el e se tornou o agente da cultura popular dQ dos tribunais e.apele, de preferência, como nos tem-
estado. Visível, ele emergiu a objeto de estudo. pos da cavalaria, para o desforço das armas." (Popu-
inha virtudes, falava, usava um dialeto que era, laçõesMeridionaisdo Brasil)
na verdade, o porão da fala de todos. De índios
-, e jesuítas teria aprendido cantos e danças. Criou Durante muitos anos, mesmo na aurora da de-
as suas. Era enfim uma cultura a que alguns pesqui- cadência do café, a "nobreza rural" é estável em suas
sadores deram o nome de "cultura caipira". propriedades e, como outros tipos étnicos e de traba-
Pelos deuses, como é que os viajantes de ou- lhadores da terra, o caipira é quem migra de uma
trora não viram nele nenhuma das quatro qualida- fazenda para -a outra, ou de um lugar onde viveu e
des fundamentais que Oliveira Viánna encontrou trabalhou por algum tempo para um sertão mais
n~inal-caipira: ~ fideliêlâde à pã~ dada, ..! adiante. Explicando ainda o "baixo povo rural" atra-
p}Qhidade.,-A_respeitabilidadee a independência mo- vés dos olhos da "nobreza rural", Oliveira Vianna
rJ!l'l Traços dê caráter coletiVo "cuja inflüêllciãeii1 não escapa de identificar traços opostos de iden-
nossa história política é imensa". (Oliveira Vian- 1 tidade entre sujeitos de um lado e do outro, que não
na, F. I., Populações Meridionais do Brasil) É bem' apenas servem para estabelecer a base das diferenças
26 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 27

pessoais e coletivas, como servem para explicar por o caipira das primeiras páginas de Conversas ao
que servos e senhores da terra ocupam ali posições Pé do Fogo é a família de lavradores cujo trabalho
sociais e políticos diferentes. Um exemplo. povoou recantos do sertão ao lado das estradas por
onde o bandeirante passou e, assim, é o verdadeiro
"Esse sentimento de decoro pessoal i-I1J:!:#.lia..r Aalta colonizador das franjas pioneiras de conquista do V
classe agricola. O baixo povo rural não.Q possui. Ao estado. É o oposto do homem que Saint-Hilaire viu
contrário do que acontece com os camponeses penin- primeiro e M~ato, depois. Para este último,
sulares, pode-se dizer, de um modo geral, que não a, o cainira p~lUlista tipj,Ço é um sujeito ainda mais
há, entre n6s, nos. campos, nas camadas inferiores, d~açad~~dQ_qJJjULde -Sãint",Rilaire. -Ele cõêxiste
homens graves: o elemento mestiço que prepondera com o atraso, de quem não é vítima, mas produtor,
na plebe rural não prima de modo algum pela respei-
com a coivara, a doença e a absoluta ignorância.
tabilidade. Q. til!.P_de"":''!.Zokque' é.12er[eitamf!.1J..tfL.r:a-
Coexiste com o rancho de sapé aos pedaços e com a
racteristico, 'procedimento de moleque', 'modo de
moleque', 'ar de moleque', são expressões pejorati- reprodução da miséria. É um destruidor da natureza e
vas, lançadas contra as pessoas de posição que não se este parece a Monteiro Lobato ser o único trabalho
dão ao respeito. " (Populações Meridionais do Brasil) que ele realiza com proveito e eficácia. (Lobato, Mon-
teiro, Urupês)
Nos primeiros anos do século ninguém terá estu-
"O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cin-
dado o caipira de São Paulo como CQLvi.lio Pir.c;:s,
coenta alqueires de terra para extrair deles o com que
que entre contos e resumos de costumes dedicou a
passar fome e frio durante o ano. Calcula as semen-
eles uma notável coleção de escritos. Ali, Qela pri- teiras pelo máximo de sua resistência às privações,
meira vez o_trabaL~aQºr caipira aparece avaliªdo ..pio nem mais nem menos. 'Dando pra passar fome " sem
â~mo um tiQó de gente E.aulista!.-mas descrito virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro -
--
também como uma categoria de homem do trabalho.
..~.-'- - ,-------...--...
~-.•..~
Cheio de um confessado amor pelo homem pobre dos
está tudo bem; assim fez o pai, o avô, assim fará a
prole empanzinada que naquele momento brinca nua
sertões, ele inverte a crítica e agora a· dirige aos no terreiro. "(Urupês)
preconceituosos cronistas anteriores, "homens sem
conhecimento direto do assunto", que "dão corpo ao Um longo trecho de Cornélio Pires deve ser trans-
seu, pessimismo, julgando o todo pela parte podre, crito aqui. Não será difícil perceber como ponto por
apresentando-nos o camponês brasileiro coberto de ponto ele reescreve o modo de vida e a identidade do
ridículo, inútil, vadio, ladrão, bêbado, idiota e caipira. Pela primeira vez a condição de expropriação
'nhampam' ." (Conversas ao Pé do Fogo) do trabalho sob o cativeiro da terra é apresentada
28 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 29

como um explicador, alheio ao poder do caipira, de quando trabalha em suas próprias terras. As suas
sua condição de vida. algibeiras e o seu crédito nas lojas o confirmam ...
Dócil e amoroso é todo o camponês; sincero e afetivo
é o caipira.
"Nascidos fora das cidades, criados em plena natu
Não cuido aqui do .gzipira dª-.âd!líl.e. Esse s~ ler,
reza, infelizmente tolhidos pelo analfabetismo, agem
é bom, é fino e só lhe falta o traquejo das viag~ns~
mais pelo coração do que2.elfl cabeçt!. TímidoS- e
õ desenleio e o desembaraço adquiridos no contínuo
desconfiados ao entrar em contacto com os habitantes
contacto com as populações dos grandes centros. Esse
da cidade, no seu miio são expansivos e alegres, fol-
é 1J:!eno.§~desSQ!lfjado que o do sítig" mas revela grande
gazões e francos; mais francos e folgazões que nós
timidez num meio grande e estranho, imaginando
o~tros, os da-cidade. De rara inteligência - não vai
que" todo o mundo o observa chasqueando-o, tro-
nisso um exagero - são incontestavelmente mais ar-
çando-lhe o andar e ojeito ...
gutos, mais finos que os camponeses estra~gêiroi.
A música e o canto roceiro são tristes, chorados em
Compreendem e aprendem com a maior facilidade;
fE.lsete; são um cãúJeamento de tristeza -do afiíCãno
fato aliás observado por estrangeiros que com eles
escravizado num martírio continuo, do português exi-
têm tido ocasião de privar. É fato: o caipira puxador
lado e sentimental, do bugre perseguido e cativo. O
de enxada, com a maior facilidade se transforma em
canto caipira comove, despertando impressões de
carpinteiro, ferreiro, adomador, tecedor de taquaras
senzalas e taperas. Em compensação, as danças são
e guembê, ou construtor de pontes ... Os caipiras ~o
alegres e os versos quase sempre jocosos. "(Conversas
são vadios: ótimos trabalhadores, têm crises de desã-
ão Pé do Fogo) -
;;imo quando não trabalham em suas ferras e são
Jorçados atrabalhar como camaradas, a jornal. Nesse Ei-lo reescrito, o caipira paulista. No entanto,
caso o caipira é, quase sempre, uma vítima. . como lidar com a diferença que no interior existe?
O trabalhador estrangeiro tem suas cadernetas, seus Alguns são proprietários de terra e, estáveis, vivem
contratos de trabalho, a defesa do 'Patronato Agrí-
uma vida de trabalho e cultura em bairros rurais;
cola' e seus cõnsules.., Trabalha e recebe dinheiro.
Ao nacional, com raras exceções o patrão paga mal e
outros "vivem do trabalho em terra alheia", ora como
em vales com valor em determinadas casas, onde os lavradores parceiros, ora como agregados, "cama-
reços são absurdos e os pesos arrobalhados; nesse radas". Alguns parecem ser mais produtivos do que
caso, o caipira não tem direito a reclamações nem outros. Todos "roceiros", alguns são mais "civili-
pechinchices, está comprando fiado ... com o seu di- zados", mais "limpos" e mais sensíveis ao pro-
nheiro, o fruto do. seu suor transformado em pedaço gresso que aos poucos, pelas beiras, ameaça invadir
de caderneta velha rabiscado a lápis. E querem que o os bolsões sertanejos de São Paulo. Após reescrever
brasileiro tenha mais ânimo! / Ânimo não lhe falta, o camponês caipira, Cornêlio Pires desdobra-o em
Os Caipiras de São Paulo 31
30 Car/os Rodrigues Brandão

prega as suas virtudes naturais - a inteligência viva,


tipos étnicos e, assim, sobre uma mesma catego-
a coragem, a saúde física inigualável, a agilidade -
ria de sujeito de trabalho e cultura camponesa,
para produzir maus frutos sociais. Para viver mais do
constitui desiguais segundo a raça ou a mistura delas:
prazer da pesca eda caça do que do trabalho com a
õ' branco, o negro, o caboclo e o mulato. Feitas terra. Para ser velhaco e...b-ªIganhador "como os ci-
as contas, os tipos "puros" (branco e negro) são ganos", ~do às mulheres., a brigas....e_desordensque o
mais coletivamente virtuosos do que os tipos mes-
gosto pela cachaça aumenta. Assim, a descrição an-
tiços (mulato e caboclo). Assim, ao branco ele re-
terior de miséria e abandono que se fez sobre o caipira
serva um modo de ser muito sefficlIí~mte a03ue
deve ser atribuída "a essa gente imunda.e.desleixada"
pouco depois Oliveira Vianna irá atribuir à "nopreza
no corpo, na casa e na roçã. -Esses caboclos caipiras
rural" paulista. Depois constitui dois tipos interme-
que "não são proprietários e vivem do que é dos
diários de identidade e, finalmente, a!ribui ao caiQira
outros" .
caboclo traços próximos aos que Sª,i!lt:Hilaire e Mon-
A meio caminho entre o branco e o caboclo
tt:iro Lobato, entre tantos outros, descreverãffi no
existem o negro e o mulato. O ~ipira negro pode ser
caipira em geral. Vejamos como.
ainda dividido em 99is tiItQ~de sujeitos:os "12retQS
O caipira branco descende da "melhor estirPe"
velhos" e os "n~g!os jovens"; os primeiros, doentes,
dos põVõãdoresportug~~ de migrantes de outros
escassos e decadentes, após haverem sido, quando
cantõs da Europa. É "gentil e bem educado", preo-
escravos, "o melhor braço de nossa lavoura". Pró-
cupa-se com a educação dos filhos, mesmo quando os
ximos dos brancos, os.~negrº-sjov~ns': são trabalha-
pais são analfabetos. É, entre todos, o mais inteligente
dores e progressistas, limpos, educados, alegres e
- quase um sábio rústico - e o mais honrado. Fiel,
dados ao canto e à dança, de que alguns são artistas
hospitaleiro, bondoso, paciente, solidário entre iguais
invejáveis. Sem ser tão honesto e trabalhador quanto
e "bom amigo" quando eventualmente é patrão de
brancos e negros jovens, muito melhor do que o cai-
outros camponeses caipiras. Com o mesmo cuidado e
pira caboclo, QJllulato "é Q.l!!~isvigoroso, .~..l-0
o mesmo empenho no trabalho cuida da casa -
mais indelWldt:hk~.Q.!Eais patriota dos brasileiros".
limpas "da cozinha ao quintal" - e das terras de
MêUíõrdo que os "pretoSVêflios", "Qrõcura elevar-se
lavoura.
elo ~-
trabalho" e, quando emprégado, é altivo e fiêÍ,
O S.$!!L oposto é o caipira cab_oclQdJ-m ..t!po pró- .
prestando-se "a todo tipo de trabalho". (Conversas ao
I ximo ao índio, cujo sangue bugre lhe corre nas veias, Pé do Fogo)
meio coletor da mata, meio mau lavrador, já não mais
um índio e ainda longe do civilizado. Uma gente arre-
----. ------ r--
\ dia tanto ao trabalho qlliillt.<L.Leducação, que em-
32 Carlos Rodrigues Brandão . Os Caipiras de São Paulo

o sertão revisitado século e que veio a ser um dos componentes básicos


do extensionismo rural no Brasil ... No entanto, esse
estereôtipo do caipira tem proc~ mais rem-Õtfl..!..
Aos poucos e desde o lugar social e simbólico de
onde fala, a escrita que vê o caipira paulista faz suces-
sivas-correções, O que de longe - da beira da estrada
~f Ele s,0meça a surgir na documentação histérica, no
que respeita à capitania de São. Paulo, quando-ª
política mercantilista de intensificação das exporta-
e do interesse do domínio - parece ser uma vida aos
farrapos, incapaz de ser livre por não poder ser civi-
lizada, de perto aparece como uma vida não "à mar-
,I Ções de produtos tropicais de qualquer natureza ..!!!J,~_.
çontra seus pri!1lejros obstáculos nSLhlliXJLp.C.QJ1-fl.l+âo
do excedente comercia/izável em relação ao montante
da demanda pela metrópole. A economia colonial é o
gem", mas marginalizada sob o poder de mecãnismos
fundo de contraste sobre o qual o capitalismo depen-
que ãolôngo do tempo apenas fazem variar processos dente esboça os contornos do caipira, estabelecendo
de expropriação da terra de trabalho e de.controle do osfundamentos modernos de sua estigmação. "(Mar-
trabalho na terra, Uma vida coletiva pobre e, no en- tins, José de Souza, Capitalismo e Tradicionalismo)
tãnto, ainda em equilíbrio com a natureza, mesmo
quando no limiar de "mínimos vitais", no interior de Como as condições de trabalho que sucessivas
frações externamente instáveis e internamente resis- gerações de caipiras atravessaram em São Paulo ex-
tentes de uma ordem social e simbólica cuja expressão plicam um modo de vida que estivemos desfiando até
na "cofllunidade", no "bairro", no "sítio" surpreen- aqui em diferentes momentos de avaliação? Vamos
deu vários estudiosos dos seus sistemas de trabalho, inverter a direção do olhar e deixar que a descrição dãS
de trocas vicinais, de criação artística e atividade r~lações ge poder e trabalho entre ã pozmcamercan~
ritual. tilista dos senhQIes_de_terra e o tradicionalismo agrá-
"O caipira preguiçoso estereotipado no 'Jeca Tatu' de riõ das popul~ões c-ª.ipiras explique as razões do Sff e
AfsmJgiroLobato contrasta radicalmente com a pro- da vi&l do camponês. subãfterno de São Paulo. Por-
funda valorização do trabalho entre populações cai- que, ali onde viajantes e cronistas encontraram o iso-
piras do Alto Paraiba, nas vizinhanças da mesma lamento das influências da civilização senhorial, os '
região montanhosa em que Lobato trabalhou como efeitos maléficos do cruzamento entre "raças" ou,
promotor público efixou as impressões que definiram
ainda, uma espécie de estupidez natural em certos
esse personagem ... As observações desse autor estão
diretamente fundadas na válorização do modo de vida tipos de homens, pesquisadores do mundo rural brasi-
urbanõ co;;tra ;tradicionalis;;;;; agrário-:;; qu;-;;;;;';- leiro preferiram ver causas econômicas e políticas
titui um dos núcleos da ideologia -da modernização, que, com variações não muito grandes ao longo da
que se estrutura no país ao menos desde o início do história, geraram e reproduziram situações de expro-
Car/os Rodrigues Brandão 35
34 Os Caipiras de São Paulo

priação e dependência que fizeram do lavrador cam- "Por uns cinco ou seis anos repetia-se a queimada
ponês do estado o seu camponês caipira. antes da plantação, até que o lugar era abandonado e
Ao narrar o povoamento de Rio Claro, Warren o mato tornava a crescer. Esse tipo de lavrador tinha
Dean faz aqui e ali referências aos primeiros lavra- J poucos investimentos a perder: um casebre cons-
truído precariamente de taipa, coberto de folhas de
dores pobres da região nos tempos do amanhecer das
palmeira, de chão batido, mais uma tulha de milho e
grandes lavouras paulistas de mercado: cana, algodão
um monjolo, "tDean, Warren, Rio Claro)
e café. O que inicialmente caracteriza o lavraaõ'i1
caipira é ele ser produtor errante. Na verdade, ele é Esta, sim, é uma diferença fundamental. Cai-
um lavrador obrigado a ser errante, porque vive de ser píras que os outros viram beirando a miséria ~;,
empurrado de um sertão que conquistou a um outro sujeitos sem a posse legal da terra, moradores "de
que vai conquistar, até ser outra vez expulso. Se um~ favor" em alguma fazenda cujapropriedade por certo
parte de sua vida nômade deriva de como ele se expulsara outros caipiras de suas terras, ou então
relaciona com a natureza, a outra - possivelmente a ocupantes posseiros de uma franja de sertão "sem
mais importante - deriva de como ele se relaciona dono", de onde seriam um dia expulsos também.
com os senhores rurais através do trabalho e de tratos Diferente é o sitiante que. mesmo pobre, habita a sua
sobre questões de posse e uso da terra. ferra e nela trabalha, produzindo com o labor da
Para estabelecer o lugar do seu cultivo de man- família, ao longo de anos em um mesmo lugar, o
dioca, milho, feijão, abóbora e batata-doce, às vezes alimento caseiro e o excedente, cuja venda, inclusive,
algum algodão, fumo e inhame, o lavrador pobre supriu as grandes fazendas de trabalho escravo no
invadia matas que desbravava a poder de fogo. No fim passado. Ao lavrador nômade não compensava ocu-
do período do inverno o caipira costumava cortar das par a terrãCõm mais bens do que os guepuôesse levar.
matas as lianas e os cipós, que eram postos a secar. IÍas:c.õs.ta.sou no lombo de dois animais de carga. Não
Mais perto do "tempo das águas" ele ateava fogo a compensava ocupá-Ia com o trabalho g,ue, ademaTsda
uma parte preparada da mata, limpava de alguns roça e go [ancho, acrescentasse benfeitorias que se-
tocos o terreno "limpo" e plantava ali sementes ou riam perdidas pouco adiante.
tubérculos. Depois de alguns anos abandonava terras -c Ape-nas nas regiões onde interessou ao fazendeiro
--

pouco férteis para a lavoura. Em outros casos, devido a proximidade de sítios de produção de alimentos, ou
a tratos com o "dono", após três ou mais anos de nas áreas do estado cujas terras, antes ou depois da
"lavoura", saía das terras, deixando um "pasto for-: Invasão do café, não interessaram mais a senhores de
mado" para o gado da fazenda. sesmarias ou donos de fazendas, foi facultado ao
camponês pobre ser proprietário legal e preservar,
36 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 37

entre gerações, terras de cultivo, a sua terra de tra-


balho. Onde quer que o jogo e os valores do mercado
agrícola gerassem negócios com a terra ou terras de
negócio, o lavrador "dono", "posseiro" ou "agre-
gado" era expulso, empurrado em direção a um "oes-
te" que durante muito tempo existiu dentro das fron-
teiras de São Paulo e pareceu interminável. Isto quan-
do, perdida a prõpriedade, a posse ou o direito de
plantar, o lavrador não era reduzido à condição de
agricultor parceiro, agregado ou outra qualquer cate-
goria de trabalhador submetido a um "patrão" .
O processo de expropriação nem sempre chegava
aos olhos da justiça, de resto, sempre mais inclinada
ao senhor do que ao servo. Acontecimento corriqueiro
e que envolvia em pouco tempo toda uma região
anteriormente "aposseada" pelo caipira, era mais
fácil resolvê-lo através da violência que, mesmo quan-
do armada, reclamava ser legítima. Warren Dean
narra o que ocorreu em Rio Claro.

"Apesar de que os ocupantes originais tivessem con-


seguido um certo direito às terras que cultivavam, a
maioria foi sumariamente expulsa pelos donatários.
Deixá-los permanecer, mesmo que o novo dono não
tivesse a intenção de utilizar a terra imediatamente,
teria colocado em questão o seu próprio direito, além
de oferecer mau exemplo para os rendeiros que ele
pudesse ter instalado na propriedade. Os ricos em
geral não recorriam aos tribunais para resolver essas
questões, o que dava trabalho e trazia implícita uma
desagradável igualdade de direitos. Era mais fácil
"O bandeirante desbrava, o caipira ocupa, o senhor civi-
armar um capataz e alguns rendeiros ~ mandá-los
liza."
38 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 39

atrás do morador, que depois era designado como "A Camara Municipal da Villa da... em Sessão de
'intruso ', Ameaças de danos às plantações em geral hoje resolvêo que se attestasse o o Suplicante João
precediam uma violência maior, de maneira que a Baptista de Araújo Cintra seguinte - que em mil oito
expulsão quase sempre se processava sem derrama- centos e quarenta mudou-se para o Destricto desta t
mento de sangue. "(Rio Claro) Vi/la que então hera Curato tendo meia dúzia de
casas insignificantes, e construidas de madeiras e,
Um pouco mais em direção a Minas, em Itapira, sem alinhamento, tendo elle já fortuna começou a
onde estive pesquisando, as relações não foram dife- influir o povo que applicava-se na criação de porcos,
assim como para edificarem casas na povoação, dan-
rentes. Ali também, como passo a passo por toda a
do elle exemplo em construir casas de taipas, e de
Província de São Paulo, o caipira sucedia o bandei- bom gosto de modo que o augmento da povoação foi
rante e precedia o senhor de terras. A chegada de um rápido e por isso foi logo elevada a Freguesia e mais
senhor de escravos a uma região de bairros de "si- depois em mil oito centos e cincoenta e oito à Vil/a".
tuantes" caipiras, até hoje se guarda na memória das
cidades paulistas como o momento do seu verdadeiro Muitos anos depois, em 1977, um colunista de
início. Q_haI1deirante, desbrava, o caipiraocupa, o jornal da cidade relembra o comendador Cintra " ...
.§.enhouiviliza. Por isso, parece tão legítimo ao senhor aparecendo mais tarde na tímida· história caipira,
expulsar das terras o lavrador pobre e ocupar o seu mostrando aos basbaques penhenses como é que se
trabalho, quanto pareceu legítimo ao bandeirante plantava café, como é que se criava porcos, como é
"limpar" do caminho os índios e os aprisionar .. ) que se construía casas de taipa, como é que se enri-
Quando chega ao bairro dos Macucos - depois quecia". O fato é que poucos anos depois de chegar de
vila do Rio do Peixe e, finalmente, Itapira - o pri- Atibaia a Itapira, o comendador-fazendeiro constrói
meiro fazendeiro-comendador dono de escravos e la- com o trabalho dos seus escravos uma igreja, uma
vouras de café, ele encontra lavradores caipiras crian- cadeia e uma casa de cidade. Ele manda demolir a
do porcos, cultivando lavouras de milho e mandioca e capela dos povoadores caipiras, transfere para a igreja
vivendo em torno a uma capela de Nossa Senhora da dos fazendeiros a imagem de Nossa Senhora da Penha
Penha, que fizeram edificar. Em 1864, por iniciativa e reclama a elevação de Penha do Rio do Peixe à
do próprio comendador João Baptista de Araújo Cin- condição de vila. Lavradores caipiras perdem suas
tra, a câmara municipal da "vila" de então emite um terras, mas nem todos. Alguns, os mais "prósperos",
estranho atestado que traça a diferença entre os po- mantêm posses e sítios e produzem agora também
voadores pioneiros e o grande fazendeiro. Em lingua- para a subsistência das fazendas de trabalho escravo e
gem do tempo o documento ficou assim: para a da cidade, que cresce com '0 café e a estrada de
40 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 41

.. 1
ferro. Muitos são forçados a vender as suas posses, A. pequena história de trocas e conflitos entre
quando não as tiverem antes usurpadas por grandes tnQra.dor.eLpioneiros e2.~nhores tardi()!. n~ antIga
proprietários que chegavam à região com títulos de Penha do Rio do Peixe pode ser multiplicada pelo
terras nas mãos. Dentre os caipiras sem terras do número de quase todos os municípios de São Paulo,
bairro dos Macucos, alguns migram para um outro ãiguns antes, muitos depois. Pois em sucessivos -m.»-
oeste. Outros são absorvidos pelas fazendas, como mentos da ocupação dos sertões de São Paulo, dona-
moradores, agregados, trabalhadores diretos ou par- tários de sesmarias, bandeirantes e seus descenden-
ceiros, a quem foi permitida ainda, durante alguns tes, revertidos à condição de agricultores, senhores de
anos mais, a posse precária de porções pequenas de grandes posses, ocuparam pela força, ou com a força
terra para o plantio das "roças de comida". Quando a de direitos senhoriais sempre negados aos lavradores
memória do trabalho agrário lembra hoje que as pioneiros, as extensões maiores das melhores terras
gIandes~fa~ndas_do_passado foram, como 9S bairros da província, desde onde empurravam famílias e le-
rurais, unidades quase autônomas de produção e vas de lavradores caipiras sertões adentro.
beneficiamento dos seus bens de alimentaçãõ, vestuá- Eis o que foram, anos a fio, os camponeses da '
riõ- e moradia, em boa parte é sobre o trabalho coti- rovíncia: uma fronteira móvel de ocupação de terri-
d~!!9 de famílias de camponeses expropriados que se tório ~9.~ntecedia uma segunda fronteira, mais
está falando. lenta, maispoderosa, de senhores e escravos. Uma
-=--~Quando depois de 1888 os escravos saíram em
'I
franja de fazendas que os seguia;eiPulsava e ocu-
massa das fazendas, os moradores caipiras traba- ! pava territórios conquistados pelo caipira através de
lharam lado a lado com colonos italianos. que haviam um duplo serviço não-reconhecido ao senhor de terra
chegado à região de Itapira antes mesmo da Abolição.
'I e gente. Como os sertões à frente estavam quase
í Nos anos sucessivos a 1880, quando pouco a pouco o sempre ocupados por índios, parte das tarefas do
\ valor do café e, logo depois, o da cana, tornou vanta- lavrador livre era lutar contra eles T uma luta menos
\ joso o uso exclusivo de toda a terra para plantios de heróica, mãs maiS eficiente que a do bandeirante -
! I
mercado, esses caipiras livres, depois revestidos como e limpar de 'jm.gre~{' regiões de futura lavoura. Por
\ agregados, colonos, camaradas, começaram a ser outro lado, derrubando matasJ,brindo picadas e es-

I
expulsos das fazendas de café que anos antes expul- tradas (os tropeiros de São Paulo têm aí uma impor-
saram os seus pais e avós de suas próprias terras. tância muito grande) e preparando com a "r..Q.ç..a-de
I Voltariam a elas, após a decadência do café, primeiro toco'" o "limp'o" d.Jt lavoura dafãZenda, o caipira
I
como camaradas e, bem mais tarde, como os traba- '~pronta ra ela ár~as imens e.ocupação
lhadores volantes de hoje. p!ra º~é, a cana e o algodão, mais tarde para o

\
~
42 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 43

gado. ticamente aos grandes proprietários. No limite fa-


Quero voltar a depoimentos de Warren Dean. ziam parte da reserva armada de fazendeiros a quem
se aliavam, não raro por laços de amizade depen-
"Os donatários das sesmarias, portanto, tomaram dente e compadrio. Caipiras, quando "gente da fa-
conta dos melhores solos em Rio Claro sem necessi- zenda", agregados ou serviçais, passavam a viver "de
dade de recorrer a muita violência. Mesmo quando se favor" nas terras de um "patrão" e, em troca, viviam
retiravam, os caboclos prestavam um serviço ao re-
a seu serviço:..',
gime das grandes lavouras. Ao se deixarem empurrar
Fora casos de provisória exceção, famílias e co-
sempre mais no sentido das terras virgens que fica-
vam entre os aborígenes e as fazendas, os caboclos munidades de caipiras existiram política, econômica
desempenhavam a função de inestimável valor _ e culturalmente como uma fração constitutiva de um
ainda que não reconhecida - de manter os índios à sistema social agrário mais amplo. Um sistema que
distância. As lavouras de Rio Claro não eram ataca- teve em uma de suas pontas a cabana queimada do
das por eles. ainda que a isto estivessem expostas, se indígena morto e, na outra, a mansão colonial da
não fossem protegidas pela milícia. Somente os ca- fazenda de café. Que determinava no seu interior a .
boclos sofriam represálias pela tomada das terras dos . posição inevitavelmente marginal do mundo de vida
i~dígenas. Além disso, o~grandes proprietários fica- e trabalho do caipira. Esta marginalidade imposta
vam a salvo da hostilidade dos caboclos,......fJoisestes não é um acidente à margem da própria vida caipira.
descarregavam suas...f~ções em cima do mais
Ao contrário, é o que a constitui.
acessível de seus inimigos, e desprezqyam os índios
Subalterno a todas as dimensões de sua organi-
tanto quanto os fazendeiros os desprezavam." (Rio
Claro) zação, o lavrador caipira não existiu fora da eco-
r-
nomia agrária colonial e, depois, capitalista. Empur-
Durante boa parte da colonização dos oestes rado, cercado ou posto à margem, ele é um dos
paulistas, os caipiras que não migravam em família produtores essenciais da riqueza da província e, de:
para um sertão mais à frente ficavam entre cercos de pois, do estado. Não pensa só o sertão e nem habita o
fazendas. Aparentemente livres e até autônomos em passado. Pensa a cidade, o mercado para onde leva o
sua pobreza, na
verdactea~oa, a família e a que colhe da "roça de toco" e do quintal e de onde
cçmunidada c;ipira mantinham laços estreitos de traz os produtos e as idéias que o artesanato e o
trocas de serviços com sitiantes em -melhores condi- imaginário caipira não conseguem produzir. A partir
ções econômicas c e com-_ fazendeiros. Sitiantes pro- de quando existe cercado, o lavrador caipira produz,
prietários e, não raro, alfabefi.ZadOs abasteciam ci- vive e pensa em função deste cerco, porque, traba-
dades e fazendas, votavam e, portanto, serviam poli- lhando no interior dos seus espaços aparentemente
44 Carfos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 45

mais "à margem", ele existe integrado na ordem que acontece, pesava sobre o lado mais fraco, ou seja,
o cerco gera e impõe. José de Souza Martins sintetiza sobre' eles. Períooos dê conquista do território pau-
admiravelmente esta idéia. lista foram sangrentos. Depois de lutarem por muitos
anos contra os índios, senhores da província lutaram
"A vida material, social e cultural do caipira parece, com as suas milícias entre si e lutaram contra lavra-
por isso, organizar-se e desenrolar-se como se esti- dores posseiros, pela posse das melhores terras. A
vesse cumprindo u~ ciclo natural, à margem do aparente calma que hoje reina entre as fronteiras
'mundo' de abstrações construído pela atividade hu- agrárias do estado quer a custo esquecer que cada
mana acumulada ou como se frutificasse de uma palmo de terra foi muitas vezes passado de mão em
relação homem-natureza não mediada pelos resul- mão através das armas.
tados acumulados da atividade 'fora' da economia do
excedente. Ao contrário, porém, o excedente procede "O sistema social das grandes fazendas era de ex-
a uma exclusão integrativa do caipira na sociedade trema violência. A expulsão dos posseiros, a defesa
capitalista: justamente porque não é produzido como dos limites imprecisos das propriedades, a supervisão
uma mercadoria, não implica necessariamente a in- da força de trabalho escravizada, o controle social dos
terdependência e as relações implícitas na divisão que não tinham terras, tudo exigia o emprego da
social do trabalho, mas porque é demandado como força. Agregados eram recrutados como capangas,
mercadoria necessária, sob essa forma de produção uma polícia particular que guardava as divisas e exe-
'sem custos' (especialmente monetários). cutava qualquer ato violento que o fazendeiro lhes
O excedente é uma forma de mercadoria que se dife- ordenasse, inclusive assassinatos. "(Rio Claro)
rencia das outras na medida em que a sua comer-
cialização, isto é, a sua efetiva realização como mer- Todos os elementosjntegraclor_eÂ_d.9 sist~--ª--so-
cadoria, depende das condições do mercado e não da ,( cial da conquista e consolidação de fronteiras, agrá-
organização e da atividade deliberada do produto. rias são de algum modo itravessadospela violência.
O excedente, aliás, não caracteriza apenas o mundo As relações com ã nature~a~ entre parentes, vizinhos,
caipira, mas também a categoria mais geral que o
11 companheiros de trabalho, empregados e patrões,
engloba, bem como a outros 'mundos' com algumas
singularidades culturais, que é o mundo rústico." senhores e escravos, oscilam entre estratégias de
I' (Capitalismo e Tradicionalismo) poder e violência e estruturas, às vezes muito frágeis,
de controle social da violência. Assim, ao estudar a
A extrema violência gratuita que Saint-Hilaire vida social do homem livre da ordem escravocrata em
viu entre os caipirasda província, l!ª- verdadu}Cjstia São Paulo, Maria Sylvia de Carvalho Franco revela
institucionalmente por toda parte e, como sempre modos diferenciados de um exercício rotineiro da
•... . -~ -~---'
}
~
46 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 47

violência, cuja principal característica é ocultar, sob licamente: a bravura, o desafio permanente, a honra
a aparência da gratuidade, o seu papel de reguladora macha que "se lava com sangue", o aparente "pouco
e controladora das relações de trocas sociais e simbó- valor" à sua vida e à dos outros. Este é o caminho
licas de todas as categorias de pessoas da região, pelo qual, no que faz, fala e canta, a gente caipira de
logo, de todo o seu sistema de organização da vida e São Paulo misturou a coragem pessoal à mansidão,
do trabalho. de tal sorte que Q9 miolo da imagem que a cultura
caipira faz de si própria, a sua -pessoa oscllaSem
"Essa violência atravessa toda a organização social, ciisfoentre uma hospitãlidade humilde, de portas
surgindo nos setores menos regulamentados da vida, abertas, e repentes de bravura e _atos de violência.
como as relações lúdicas, e projetando-se até a codi- - Assim, o conflito por aparente "pouca coisa",
ficação dos valores fundamentais da cultura. "(Fran-
o desafio presente nas sombras da fala e do gesto, a
co, Maria Sylvia de Carvalho, Homens Livres na
Ordem Escravocrata) resposta explosiva ao que ataca a vida ou ameaça a
honra são os atos próprios que costuram os valores
No interior da fração de classe de que é parte e do código social da moralidade caipira. Um código
dentro do espaço social e geográfico de que o rancho, de regras e princípios de conduta entre iguais onde
a roça e o bairro são o lugar da vida e os seus todas as leis vindas "de fora" falharam, a não ser
símbolos mais amados, os caipiras dos sertões de São quando definiram a legitimidade do poder e da vio-
Paulo souberam desenvolver um modo de vida regido lência do senhor sobre o pobre.
por códigos estreitos de trocas entre eles e com os
outros. Códigos extremamente criativos de relações "Em um mundo vazio de coisas e falto de regula-
baseadas no trabalho, no "respeito mútuo, nos valores mentação, a capacidade de preservar a própria pessoa
contra qualquer violação aparece como a única ma-
da fé religiosa do catolicismo camponês, na honra e
neira de ser: conservar intocada a independência e ter
na solidariedade. A violência e o controle social da
a coragem necessária para defendê-Ia são condições
violência não destroem os valores de honra e solida- de que o caipira não pode abrir mão, sob pena" de
riedade que são a condição da identidade e da exis- perder-se. A valentia constitui-se, pois, como o valor
tência do camponês. Acabam sendo parte da vida e, maior de suas vidas." (Homens Livres na Ordem
por isso invadem o cotidiano de trabalho, os dias de Escravocrata)
festa, as modas de viola, os rituais devotos dos mun-
dos do sertão. Atravessam os domínios da vida de De vidas que adiante, leitor, veremos entretidas
uma gente que afinal precisou aprender lições de com o trabalho, no domínio da família e em mutirões
ataque e defesa para sobreviver física, social e simbo- solidários.
I , lt I

\l
Os Caipiras de São Paulo
\ ~-r
Não há por que falar dos sujeitos e do trabalho roti-
neiro da lavoura, feito em família, às vezes em equi-
pes ampliadas de vários trabalhadores. ~~antos,_vi-
ventes sub ou supra naturais, bichos do pasto ou da
mata, tipos humanos de id'entidade aventureira,
I"
casais de enamorados sãoosagentes dos assuntos dos,
versos das músicas e das falas costumeiras.
, r Justamente a face negada do la~rador caipira é a
do trabalho agrícola que, a cada ano, rege a sua vida
d~de_çjçlQ-; intermináveis d_eplantar" tratar .•SQ-
o TRABALHO DA TERRA lher, comer. Ciclos que criam o ritmo que move todas
as outras faces reais ou imaginadas do seu mundo.
A. rotina do trabalho recorta as outras da vida pes-
sQill.,familiar ou comunitária e_domina '1, arranjo: 15
Os tempos e os dias: ciclo do trabalho das situações de t{ocas entre_Q.sail?.Írae a natureza -
agrícola com a qual ele sempre se vê através da mediação do
trabalho de coleta - na caça e na pesca, na "cata"
de mel, de frutas e raízes, de ervas medicinais, de
Quando é difícil compreender quem é o caipira, madeira; 2) das' situações e estruturas __d~ r~t~çpes
ajuda ouvi-lo falar de si mesmo. Ajuda, põr exemplo, ~ntr.0amiliar.es, ,p,ar~nies•._YiÚnhQS,,-cmnp,anheiros
escutar velhas modas de viola, ouvir a letra das "vol- de trabalho, outras categorias de iguais pobres do
tas" da Função de São Gonçalo, das "carreiras do lugar ou 'de fora (colonos, tropeiros, mascates, ofi-
cururu". No entanto, talvez por se ver simbolica- ciais e artesãos dos ofícios de criação e construção
mente no espelho com que o homem da cidade reflete
a sua pessoa, a sua cultura, o lavrador caipira nega ----""~~-----
roceira); 3) das ,situações e estruturas com o mundo
dos "outros" (fazendeiros e outros senhores, - --
homens
na fala e nega na música que canta a sua prÓpri~ da cidade, "autoridades"); 4) dos .arranjos do calen-
.condição. Desde o passado até hoje, Si música cai- dário e das formas de trocas.símhóíícas com o sa-
-.- r-
pira, depois "música sertaneja", Ç.YÍtªlalardõ· co1i- ~, nas 'crenças e cultos pessoais, familiares e
ªiano de trp.b~lho campo~s. Os e,.ersonagens que o comunitários.
lavrador canta são quase sempre não-lavradores. São O trabalho com a terra não é como o que se faz
outros homens do campo, mais errantes, mais aven- na cidade, na fábrica, por exemplo, ou na oficina.
tureiros: vjl.9utjr9s,_peôes_d.eJ?uiadeit:os.,Ji.omador.es.
50 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 51

Ele não obedece apenas ao voleio da vontade dos em formas diversas de alimentos (descascar, pilar,
homens, ou aos jogos das relações de mercado de "bater", moer, torrar e muitas outras operações);
bens e do trabalho. O labor da lavoura lida direta- comercializar o excedente colhido ou transformado
mente com os mistérios da vida que reproduz. Não )
no quintal da casa.
depende, portanto, apenas das leis naturais do ciclo Durante quase.aseuciclo de vida1-afamília faz e
vital de cada tipo de planta com que lida, mas da refaz todas ou quase Jodas. estas tarefas agrícolas,
dança anual do tempo e dos seus efeitos sobre todos artesanaisemercantis. A elas se-somam muitasõü-
os seres vegetais e animais com que o lavrador lida. tras, de tal modo que, parecendo existir fora do
Durante o ano, depende da v~riação regida pelos trabalho durante a "vacante", a família_caiph:ã:..r.e.a-
periodos opostos de tempos de "seca" e ''daSáguas'' liz~ pequenos trabalhos o tempo todo. No passado,
(que alguns chamam "inverno") e que determina a ã caça, a pesca e a coleta nos campos e matas. Hoje,
alternância de momentos de "trabalho" e de "vacân- quando essas rotinas primitivas diminuem, elas con-
cia". Entre eles, o lavrador caipira realiza um tra- correm com as atividades de artesanato rústico da
balho cíclico, descontínuo. Principalmente no pas- casa e do quintal. Muito embora também muitas
sado, em tempos de conquista do território, todos os delas tenham perdido o seu tempo ou a sua impor-
anos a família caipira enfrentava as mesmas tarefas tância, é com elas que a mulher, o marido e os filhos
do lavrar e, de tempos em tempos, quando viajava ocupam o tempo que sobra, seja da "labuta da roça",
para outras terras, acrescentava novas e mais árduas seja dos cuidados da cozinha. O trato das "criações":
tarefas: invadir franjas de mata e transformá-Ias em aves, porcos, o pouco gado que algumas famílias pos-
áreas de lavoura; preparar o solo conquistado para o suem. Os cuidados da horta, algumas vezes, do po-
plantio; plantar a semente, a rama ou o tubérculo mar. Os reparos dos objetos de montaria ou de tra-
sob a terra preparada; "zelar" do que foi plantado balho com a terra. A criação do artesanato costu-
"carpindo" o terreno semeado entre as "ruas" dos meiro: roupas de algodão, óleo de mamona, esteiras
vegetais já crescidos; realizar a colheita, de uma só de palha, pequenos objetos de couro ou de barro.
vez, como no caso do feijão ou do algodão, várias Na lavoura, a cada momento do ano a família
vezes, como no caso do milho (colhido em parte pode estar realizando um ou mais tipos diferentes de
"verde" e em parte "seco") ou da mandioca; tratar "serviço" junto a qualquer uma das "qualidades" de
do que colheu, cuidando da armazenagem do que vai plantas com que trabalha. A colheita de uma "roça"
ser consumido ao longo do ano ou vendido no mer- pode coincidir com a "limpa" de uma outra, ou
cado, transformando os produtos que, como o milho mesmo com o início do preparo do "terreno" para
e a mandioca, podem ser beneficiados e convertidos uma terceira. Todo o conjunto de atividades roceiras
II
\l
52 Carfos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 53

divide-se em formas também muito diversas de apli- "capoeirinha fina". Depois de seca a ramagem "ro-
cação de tecnologias rústicas. Ao contrário do que çada", em poucos minutos ela se queima, mas a
imaginam os olhos da cidade, o saber 40 trabãIho~ do mesma porção de terra requer até cinco dias para ser
c-ãipira é extremamente complexo e diferenciado, e o arada por um homem e uma junta de bois.
que-pode parecer um trabalho fácil e ffiõnótono de
um mesmo curvar-se sobre o solo com a enxada "O trabalho da terra começa com o seu preparo para
envolve um sem-número de pequenos arranjos e se- receber semente, variando conforme o relevo e a vege-
gredos de conhecimento coletivo onde a eficácia do tação. Na zona em apreço não há mais o problema de
uso rústico consagra a norma do fazer do camponês queimar a mata virgem; planta-se em terra de ca-
caipira. poeira ou de capinzeiro duro. No primeiro caso, deve-
Caminhemos, leitor, durante algum tempo, com se distinguir o capoeirão e a capoeirinha fina, o pri-
dois paulistas que souberam estudar a fundo a rotina meiro requerendo machado e deixando tocos que im-
pedem a aração, devendo a terra ser revolvida a en-
dà vida do Caipira de São Paulo: Alceu Maynard
xada. A segunda, mais freqüente na zona, requer
Araújo
______ e Antônio
r- -~~.- - Cândido.
foice, como as terras de capinzeiro, "( Os Parceiros do
O preparo da terra para a lavoura, que no pas- Rio Bonito)
sado obrigava a queimada do "mato" ou do "capoei-
rão", hoje em dia cada vez mais dispensa essa "coi- Isto acontece na maior parte das terras onde
vara". Expulsos da mata, tanto quanto da terra; os trabalham hoje em São Paulo os herdeiros dos cam-
camponeses caipiras que plantam ainda estão livres t poneses tradicionais. O tempo dedicado ao plantio
do exercício pesado de preparar a "mataria" para o varia muito. Um lavrador caipira trabalhando sozi-
fogo, de queimá-Ia, de lidar com as sobras do fogo e nho pode levar seis dias para plantar milho "no
destocar porções da terra "limpa". No entanto, fora risco", no quadrado de um alqueire de chão; dois
iI
terras lavradas já há algum tempo e onde o problema dias para riscar e um para semear. O mesmo la-
passa a ser a redução da fertilidade; fora áreas cada vrador solitário gastará até vinte dias para semear
I1
vez menores reservadas ao "poisio" - o descanso um al que ire de feijão "no risco", ou dezesseis dias
periódico da terra cultivada - os lugares de campo para plantar o mesmo feijão "na cavadeira". Mais
ou de capoeira fina exigem um tempo longo de pre- difícil, "uma quarta de arroz" (a quarta parte de um
paro entre a "roçada" e a "aração". alqueire) consumirá em média dezessete dias de tra-
Tanto quanto a "bateção" de pasto, um al- balho "no risco" e dez "na cavadeira". (Os Parceiros
queire de lavoura exige uma semana de trabalho de do Rio Bonito)
um homem, ou pelo menos seis dias de "roçada" da Saída ao sol, a planta exige cuidados contínuos.

,li.

\,.,
I,
54 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 55

o caipira realiza na roça o trabalho de "carpir", de cional são O Sol e a Lua) e distante do calendário civil
livrar os pés de "cultura" da proximidade das ervas que a cidade reinventa a cada ano, o "ano" do cai-
daninhas. Faz o trabalho de "fofar" a terra ao redor pira é regido pelo entrecruzamento das seqüências <Í9
de cada pé ou de cada touceira de planta semeada. trãOalho com....2~tempos ~fã~ligíao:- ,-
Até perto do tempo da colheita, o milho e o feijão
exigem uma "limpa" a cada vinte e dois dias. Menos, "Em ~o faz-se a queimada da.mato. após o pre-
quando a terra, já mais cansada, dá até menos paro do 'aceiro '. Este consiste de um trecho limpo a
"praga". Este é também o espaço para a "carpição" enxada em torno da roçada para que o fogo não salte
da batatinha, enquanto o arroz vai precisar de três no mato, feito no período da 'vagante ', Espera-se
ou quatro "limpas", uma a cada vinte dias, até ser uma chuva para semear o milho. Tanto fãz plantar
colhido, dependendo do tipo de solo onde foi se- ;,,; agosto, setembro.' outubro ou novembro, que
meado. sempre se colherá na mesma época, porque até fim de
junho forçosamente estará seco. Quanto mais tarde
O tempo dedicado à colheita e o tipo de trato
for plantado, mais depressa florescerá e secará. As
posterior dado aos grãos ou tubérculos colhidos va-
vezes chegam a atrasar tanto que o plantam em de-
riam muito. Mas a regra é que o trabalho da safra zembro, quando é arriscado perder tudo. fJantq:ye
seja feito em ritmo muito mais veloz do que todas as do quarto crescente em dimJ1e, para nascer na min-
operações de trabalho agrícola anteriores. guante, para evitar a broca. Bicha e cai a cana do
Cada tipo de planta que habita o mundo do cai- milho, qúando dá broca. 'O milho é colocado numa
pira tem o seu ciclo de vida. Algumas são quase casca de tatu e vai-se tirando dali os grãos para a
·1
permanentes, como o café e a maioria das grandes semeadura. !!tata-se o tatu e colocam-se então as
fruteiras. Outras são temporárias, permanecendo sementes na sua casca, para que os outros tatus não
vivas de menos um pouco de um ano a um pouco comam milho ', Mistura-se milho com querosene para
mais, como a cana e a mandioca. Outras são franca- protege-lo contra o tatu. Outros fazem o milho ficar
de molho na água, para, quando plantado, nascer
mente sazonais, como o algodão, o milho, o arroz e o
mais depressa e evitar que o tatu coma. " (Araújo,
feijão. Em regime de policultura rústica, cada' uma
Alceu Maynard de, "Ciclo Agrícola, Calendário Reli-
delas obriga a família caipira a executar, em mo- gioso e Magias Ligadas à Plantação ", Revista do Ar-
mentos cruzados ou seqüentes, as mesmas tarefas de quivo Municipal, n.o CLIX)
cada rotina completa, desde o preparo do solo à co-
lheita e beneficiamento. Desde tempos antigos lavradores caipiras lidam
Esquecido de horóscopos (os únicos "astros" com dois tipos de feijão: o "das águas" que se planta
importantes na vida de trabalho do camponês tradi- entre setembro e' novembro e pode ser colhido três
56 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 57

meses depois, e o "da seca" que se planta entre feve- cultivava - e não cultiva ainda, quando pode -
reiro e a primeira semana de março e é colhido entre menos do que três ou quatro das "culturas" enun-
abril e maio. A mandioca, que completa a trilogia da ciadas aqui, fora as outras que, em pequenas roças
"comida" essencial do caipira, pode ser plantada em ou em cantos do quintal são também "roças" comuns
qualquer época do ano. Quando isto acontece du- em seu mundo, é difícil acreditar na possibilidade de
rante os meses "das águas" a rama logo brota. que a família caipira possa passar a maior parte dos
Quando plantada "na seca", espera pelas primeiras meses do ano desocupada do trabalho. No entanto,
chuvas para brotar. Ém geral é colhida entre um ano como entre os tipos de lavouras mais usuais há
e meio e dois anos após o plantio. algumas correspondências ao longo do ano, a rotina
40 trabalho camponês tradicional oscila entre perí()-
"Dizem outros: 'em outubro não presta plantá-Ia por- dos de maisemenos afizídade.agríçola. Sabemos que
que a terra está muito encharcada d'água'. Ela pre- õTãvrador tr~lha mais intensamente durante os
fere sempre terra seca e também tempo seco. O dia de dias de preparo do terreno: deplãiiHo e ae collieitlC
picar rama de mandioca para plantar precisa estar Trabalha menos quaridü a planta, plantada, exige
bonito, com bastante sol para secar o leite da rama,
apenas a "limpa", o exercício roceiro de "carpir" o
porque senão não dá raiz. Planta-se na lua nova."
( "Ciclo Agrícola ... ")
solo com a enxada. Trabalha menos ainda durante
tempos de "vagante", entre a colheita da última
A cana-de-açúcar leva em média de um a um "roça" e o começo de um novo ciclo de plantio, com
ano e nieiopa~"a 7'madurar". Ê costume plantá-Ia um novopreparo do terreno, da derrubada e queima
entre novembro e dezembro. Ela também pode ser do mato (onde isto ainda é feito) à aração.
plantada em outros períodos do ano, mas o que vai "O trabalho e a 'vaga' ou vacância se alternam. A
de fins de junho a começos de setembro é evitado por grande 'vagante' vem depois da colheita. Custa cho-
causa da seca. ver, pouco se ajusta camarada em julho ou agosto.
Faz-se 'aceiro' em setembro. Queima-se campo em
"Quem tem lavoura de cana não descansa como os outubro ou novembro. Roça·se para plantar em agos-
outros nos meses de maio a junho, pois é nessa época to e queima-se em setembro. Após a queimada es-
que se fica ocupado nos engenhos; em maio começa a pera-se uma chuva para molhar a terra. Então lança-
colheita. "( "Ciclo Agrícola ... ") se a semente. É o plantio que sempre deve começar
em setembro, mas quando as chuvas tardam, será em
Ora, leitor, se pudermos imaginar que uma fa- outubro. Em fins. de dezembro, começo de janeiro, há
mília de camponeses tradicionais de São Paulo não uma pequena 'vaga '. "( "Ciclo Agrícola ... ')
S8 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo S9

GRÁFICOl Antônio Cândido resumiu o ciclo agrícola em


Anoagrlcola
- uma região caipira de São Paulo conforme apresen-
3

, ( tado na Tabela 1.
'\ (
.~ ( - TABELA 1
i I

\ f
O

i 1\ I
I/
\ Plantio./ I. PLANTIO
eeolheita Grande

..
~
.-"e
Z
\ G,andc
plantio \ lJ T T Mês Planta Atividades

li \l Y \.1/1 \J o
Fins de setembro aI?
novembro
de FeijAo das águas Preparo, semeadura.
limpa 22 dias após
uma

o N D F M A M A I? de outubro a IS de Arroz Preparo, semeadura, 3 a 4

(Ara6jo, 1958.44)
dezembro limpas, cada 20 ou 30
dias
Idem Algodão Preparo, semeadura,
4 limpas
I? de outubro a 31 de Milho Preparo, semeadura,
dezembro (por vezes até I limpa
IS de janeiro)
Alceu Maynard Araújo desenhou o ritmo de I? de fevereiro a 15 de abril FeijAo da seca Preparo, semeadura,

trabalho do lavrador dos sertões ao longo do ciclo I limpa

anual do trabalho caipira, apresentado-no Gráfico 1.


11. COLHEITA
Dentro de um "calendário agrícola" que começa
em setembro e termina em outubro do outro ano, Mês Planta Atividades
atividades de trabalho na roça alternama-se com pe-
dezembro a janeiro Feijão das águas Arranca-se, amontoa-se,
ríodos de menor ocupação com a lavoura. Entre se- malha-se após 2 dias de
tembro e novembro ocorre o tempo de plantio mais sol. colhe- se e deixa-se
secar em lugar seco.
intenso de feijão e milho, assim como de outras março a maio Arroz Corta-se, amontoa-se ao
lado do malhador,
"roças" menos comuns. Entre fevereiro e março são malha-se e deixa-se secar

feitas as colheitas do "grande plantio". Mas entre no terreiro.


Idem Algodão Colhe-se,
fins de abril e começo de agosto (mais raro) acontece março a junho Milho Colhe-se e amontoa-se na
roça, levando-se em
o grande período de colheitas que antecede o tempo seguida para o paiol.

da "vagante" maior, que ocupa os meses de agosto, maio a julho Feijão da seca O mesmo que o das águas.

parte de setembro e uma fração de outubro, na de- -


pendência de quando começam as chuvas. (Cândido. 1971. 125)
60 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 61

Em regiões tradicionais do estado, onde uma


agricultura caipira decadente divide terras e o tempo
dos homens com a pecuária leiteira, o ciclo agrícola
sofre algumas modificações, de modo que, como
disse um lavrador de Catuçaba, em São Luís do
Paraitinga, "querendo, o homem do campo tem tra-
balho o ano todo".
Para que o ciclo do trabalho do lavrador de
Catuçaba se aproxime daquele a que estamos acostu-
mados - o do calendário civil - sigo a ordem na-
tural dos meses e observo o depoimento de dois lavra-
dores da região. Em janeiro se começa a colher o
"feijão das águas" e o milho verde, com que se fazem
pamonhas, curaus e outros derivados. Em fevereiro
alguns começam a plantar o "feijão da seca". Em
março planta-se ainda o feijão, fazem-se os canteiros
de cebola e se começa o plantio do alho, que deve
estar concluído até a Semana Santa. Terminadas as
atividades mais intensas de plantio, vários lavradores
são recrutados para a "bateção de pasto". Esta ativi-
dade de limpeza dos morros, onde pasta o gado lei-
teiro dos donos de fazendas ou de outros "terrenos",
pode ser efetuada durante todo o ano. Mas ela é
intensa apenas nos meses entre abril e julho, quando
as chuvas diminuem, .os pastos começam a querer
secar e o trabalho com o plantio e o preparo da terra
é menor. Este é também o tempo dos mutirões de
"bateção" em toda a região. Em maio se colhe o
milho seco e se começa a colheita do "feijão da seca" .
Em junho e julho ainda se colhe o "feijão da seca" O trabalho agrícola rege a sua vida dentro de ciclos inter·
com menor intensidade. Alguns lavradores preparam mináveis de plantar, tratar, colher, comer.
62 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 63

GRÁFICO 2
os seus terrenos de propriedade ou "arrendo" para os
plantios dos meses seguintes. Quando as chuvas che- .g g
gam cedo, já em agosto se planta o "feijão das ,1
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águas", o milho, a mandioca e a cana para o gado.
Setembro e outubro são meses de plantio e, quando ,,
as chuvas atrasam um pouco, ele se realiza intensa-
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mente em outubro, podendo invadir novembro e até o11\ I 11:\ 11 \ 4\ \
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dezembro. Mas a regra é que estes dois últimos me-
ses do ano sejam já de "limpas" dos terrenos plan-
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O calendário dos ciclos agrícolas entremeia ou- , /


"
tros: o das festas religiosas do campesinato e de sua -- ---
---
Anoagricol.
Ano religioso

vida social dentro e fora do âmbito de uma comuni- -._._. _.- Queda de atividade social

(Araújo,I957,47)
dade, de um bairro rural, por exemplo. Não apenas
"se relaciona com eles, de tal sorte que as grande) São Luís do Paraitinga passaram por várias opera-
festas, romarias e visitas entre parentes ocorrem com ções sábias que a tradição consagrou. Como o tra-
mais freqüência nos períodos de "vagantes", mas, de balho familiar que mói a cana e faz a garapa e dela
certo modo, determina a variação dos ciclos da vida faz o melado, a rapadura, o açúcar e a "pinga", e
social. que de tudo faz ainda o "óleo de cana", que é remé-
Há muitos anos o mesmo Alceu Maynard Araújo dio. Coisas com que o trabalho caipira lida e depois
relacionou em gráfico as alternâncias dos ciclos da usa para comer e beber, para curar, para vender,
vida caipira (ver Gráfico 2). para o prazer.
Este é o momento de retomarmos alguns passos O que fica da ,mat@Ça de um "capado" exige
já andados, para lembrar que toda esta atividade de preceitos artesanais diferentes conforme se lide com
roça e pasto é entremeada com serviços-lamiliares o couro, com a carne, com a banha, com o toicinho
.que vão da cozinha ao comércio e atravessam proces- ou com os miúdos. A pequena oficina familiar se
'50S de beneficiamento, circUlação e venda de produ- apossa da leitoa morta e em poucas horas a trans-
tos rústicos de comer, usar e comercializar. Produtos forma na "banda de carne" que leva como "prenda
trazidos da mata, dos campos, da "lavoura grossa" de leilão", enfeitada na "festa da padroeira", trans-
ou da "lavoura fina" dos cantos do quintal. Produtos forma-a na banha, na lingüiça e em outros subpro-
que, algumas vezes, quando chegam ao mercado de dutos do sangue, da carne e da gordura.

,'-
64 CarIos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 65

Uma outra situação familiar de trabalho artesa- que, entre' cerimônias familiares ou "do bairro",
nal do camponês caipira é a da feitura e conservação fazem a festa dos intervalos da vida de trabalho. Fora
de objetos de uso duradouro e pessoal, como a.wna, __ alguns instrumentos musicais comprados "no mer-
Q"'U de instrumentos de-trabalhona'C'ãSã,-;;- quintal e
cado" - mais raros no passado, mais comuns hoje
na lavoura. Coisas que vão desde um simples cabo de em dia - todos os recursos costumeiros do acompa-
enxada ou de "penado" - que não se faz de qual- nhamento das cerimônias e festas do caipira eram de
quer madeira, nem de qualquer maneira - até os fabrico local ou regional. Assim, uma pequena "festa
apetrechos de secagem do feijão ("andaime"), de fa- de padroeira" feita todos os anos em cada bairro
brico de farinhas de milho ou de mandioca, de trans- rural reúne nos mais tradicionais um número muito
formação da cana e de outras colheitas. Que vão grande de objetos de arte criados "na roça", ou
também à criação da arte caipira: objetos e instru- adaptados lá. ~
mentos de tecelagem da palha e do algodão; objetos Um bom exemplo poderia ser o dos festejos "dei
de madeira e couro, alguns para o uso pessoal, outros Divino Espírito Santo" nas regiões tradicionais do
para o trabalho doméstico, quase sempre tão úteis Vale do Paraíba, entre Cunha e São Luís do Parai-
quanto belos, como o pilão e o monjolo. tinga, mas a mesma coisa acontece também em uma
Assim, a família caipira, que durante muitos pequena "festa de santo" de fundo de quintal, como
anos participa do abastecimento de bens às cidades, numa "Folga de São Gonçalo", nos bolsões caipiras
trouxe muito pouca coisa dela, sobretudo no pas- da região de Atibaia. O adufe, a angóia, o bastão de
sado. Um dos pequenos orgulhos de todo velho cai- moçambique, a buzina, as matracas, a caixa (tambor
pira "situante" (dono de um "terreno", um sítio) rústico), o paiá, o cavaquinho, as violas sertanejas (e
é enumerar o rol de produtos coletados, colhidos e seus incontáveis modos de as afinar), o reco-reco,
transformados em casa ou na comunidade, ao lado os diferentes e misteriosos tambores do jongo, as
das poucas coisas compradas "na rua": o sal, o que- bandeiras "de Reis" ou "do Divino", os estandartes
rosene, alguns tecidos, algum remédio. de congos e moçambiques, as imagens de santos, as
Uma terceira situação de trabalho criativo quase capelinhas rústicas, os mastros de festa, as máscaras
se confunde com a segunda. Mas enquanto lá a de folias e cavalhadas, os rojões (foguetes roceiros),
família faz as ferramentas, os instrumentos e os obje- as comidas de festa, as vestimentas e fantasias dos
tos de uso cotidiano da pessoa ou da família, às vezes grupos rituais.
da própria comunidade, como no caso de uma ponte, A não ser em tempos ou em situações de extre-
aqui ela cria os inúmeros objetos de arte de uso em ma penúria - nem sempre raros - a família caipira
". ---
rituais. Instrumentos de. música, dança e devoção
I

1;\\
trabalha "de sol a sol" durante muitos dias no ano.

I":
66 Carlos Rodrigues Brandão 67
Os Caipiras de São Paulo

Como iremos ver a seguir, todas as pessoas do grupo A casa, o quintal, a roça e a mata:
doméstico trabalham "no serviço" de algum fazer
durante quase toda a vida. Dificilmente o trabalho lugares de trabalho
começa tão cedo e termina tão tarde, entre meninos e Cedo na vida crianças camponesas iniciam, com
velhos, como entre as famílias do campesinato tradi- os pais e os irmãos mais velhoS,O aprendizado dos
cional de São Paulo. Dois depoimentos. ofícios caipiras do rancho, do terreiro.' da roça e da
mata. Por volta dos cfiícÕ·oü seis ãrícisüma menmà
"No período de vaoãncia não quer dizer que o lavra- cõmeça a ajudar a mãe nas rotinas da casa. Um
dor fique'de papó para o ar'. Seus dias de folga são, pouco mais tarde ela lava a roupa, cuida das "cria-
alguns, preenchidos com o conserto de cercas, _lim- ções" e ajuda a mãe nas alquimias diárias da cozi-
peza de C6mgós:p;quenos--;;~iços-caseiros. Ê tam-
nha. Com menos de dez anos mistura a escola -
bém na vacância que saem- pari! as romarias, que as
festas têm ocasião e se intensificam as visitas. " ("Ci-
quando vai à escola - com os cuidados da casa,
do Agrícola, Calendário Religios;; e Magias Ligadas sempre que a mãe e as irmãs mais velhas vão para a
à Plantação' ') roça nos tempos de trabalho mais intenso na lavoura.
Cedo também o menino cuida com o pai de assuntos
"Ê hábito geral em Laranjeiras dedicar um dia de do quintal e leva "pros homens" a comida diária,
serviço inteiro a uma única tarefa, algumas vezes sem quando a roça é longe do rancho. Um pouco mais
subdivisão da manhã ou da tarde. Há o dia de tra- tarde meninos aprendem, no ofício do trabalho, os
balho na roça, o dia de preparar a festa, o dia de fazer I segredos do lavrar e trabalham com os pais, tios,
farinha, o dia de ir à venda para as compras, etc. Não ií\ padrinhos e outros "mais velhos" nos diferentes "ser-
há horário de trabalho; o dia é mais longo ou mais viços" do lavrador. Na idade em que algumas meni-
curto segundo a tarefa a desempenhar. Fazer farinha,
nas da cidade começam a largar de lado as bonecas,
por exemplo, exige que a família se levante por volta
de três horas da madrugada e inicie imediatamente o
algumas moças da roça podem estar começando a
trabalho, Este é feito ininterruptamente até às dezes-
sete, dezoito horas, e às vezes se prolonga pela noite
,; carregar o primeiro filho. Ao longo da puberdade a
família e a comunidade da vizinhança esperam que
adentro. Faz-se assim, num dia, a provisão para ela conheça boa parte do que uma mulher caipira
duas, três semanas, até mais. " (Fukui, Lia Freitas precisa saber para casar. Para "tocar" por conta
Garcia, Sertão e Bairro Rural) própria.um rancho e uma família. Jovem ainda um
-.--_.
lavrador caipira é um
~.-.... -~-_.-.--
homem
-..----.....preparãd~'p~ra~
....•....
sua roça" e responder J>SlasJtaJa.IJulia..
, _..::.--- ':tQc~r
,

-- - Quando, -álguns passos atrás, leitor, eu fazia


j
68 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 69

com Antônio Cândido, com alguns lavradores de de trabalho, sob a autoridade de um membro, que é o
Catuçaba e com Alceu Maynard Araújo, a medida pai de família. Comunidade autárquica, a família
dos dias e dos espaços de trabalho do caipira, tomava camponesa é também em geral autoritária. Por outro
como indicador dos tempos gastos em cada operação lado, o grupo econômico autônomo constituído pela
agrária os serviços roceiros de um só lavrador "no família camponesa tem tendência a uma forte centra-
eito". Na prática cotidiana isto nem sempre é real. lização, procurando se perpetuar por meio de uma
ligação vigorosa com seus meios de subsistência (isto
Lavradores tradicionais não são obrigados a traba-
é, com o patrimônio a ser transmitido aos descen-
lhar em equipes, como os lavradores volantes, os dentes), e para tanto negando aos seus membros o
"bóias-frias". Mas nem sempre os homens traba- direito de dela se apartar para criar situações sôcio-
lham sozinhos. Na verdade, uma das características econômicas distintas." (Queiroz, O Campesinato
principais do trabalho camponês tradicional é que a Brasileiro)
unioade doméstica - o grupo de familiares - é tam-
bém uma unidade de produção. Isto significa que o As palavras de Maria Isaura Pereira de Queiroz,
trabalho camponês é essencialmente um trabalho em adequadas ao campesinato proprietário - o "si-
família. Sob a direção de um pai-e-marido os fami- tuante", sitiante em São Paulo - servem, com algu-
liares ora trabalham reunidos, como nos dias apres- mas variações, para caracterizar também a família
sados do plantio, ou nos dias ainda mais apressados caipira do passado, desprovida de terras de proprie-
de uma colheita, ora se dividem, entre o rancho e a dade. Hoje, tanto no caso do campesinato tradicional
roça, em diferentes tipos de serviços. proprietário de terras quanto no dos últimos lavra-
J.
dores tradicionais de trabalho familiar sobre terras
"Os caracteres do campesinato continuam os mes- de arrendo, algumas modificações muito significa-
mos, conforme mostram diversos autores. A fámília tivas estão acontecendo. É difícil a preservação da
constitui sempre a unidade social do trabalho e de unidade familiar em tempos de aguda expropriação
exploração da propriedade, sendo que os produtos, da propriedade fundiária em muitas regiões do es-
via de regra, satisfazem às necessidades essenciais da
vida; as tarefas do trabalho se dividem entre todos os
fado.
membros do grupo doméstico, em função das facul-. Mesmo que isto não ocorresse, ~ sucessivas re:
dades de cada um, formando assim uma equipe de ,partições de propriedades originais por direito de he-
trabalho. A família assegura a subsistência de todos rança tornam inviável o tr~6alho ~omum 4e vários
os membros; a combinação família-empresa agrícola filhos-herdeiros por muito tempo. Esta é apenas uma
faz com que se estabeleça uma comunidade de posse e das razões pelas quais o destino de filhos de antigos
uma comunidade de consumo, além da comunidade c~ipiras tende a ser, cada vez mais, a escola. mais do
70 Carlos. Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 71

que o trabalho. Bairros rurais de várias regiões de


São Paulo são lugares de velhos e crianças. Adultos
pes de trabalho se completam com a rama feminina
da casa apenas nos momentos mais difíceis. Final-
1
e, mais ainda, jovens migram para regiões de traba- mente, um homem que saberá "fazer sua comida"
lho agrário assalariado, ou para a cidade e o trabalho durante uma jornada de pesca com companheiros

I
urbano. dificilmente lidará com assuntos de cozinha em casa.
Mas voltemos ainda ao mundo do lugar de vida Por outro lado, é exceção a mulher lidar seja com o
e trabalho do camponês tradicional. Se é verdade que gado, seja com as atividades "brutas" do trabalho da
o pai caipira é o "patrão" dos familiares e o "dono" roça. Mulheres ajudam no plantio, na "limpa" e na
das poucas posses familiares, é também verdade que colheita. Nã,o participam das atividades de derru-
o seu poder de mando é proporcional ao investimento bada de mato, de queima e, principalmente, de co-
de seu próprio trabalho. Na lavoura, é dele que a mercialização dos produtos da lavoura. '
família espera mais trabalho e, não raro, um lavra- ~O "comércio" ("a rua", a cidade, os lugares
dor caipira diz que ele trabalha e os familiares ape-
nas ajudam. Muitas outras, atividades são, vimos,
desigualmente distribuídas, de tal sorte que ne-
longe do rancho ou do bairro rural), a mata e a
lavoura são os espaços sociais do homem. logo, o do-
mínio do marido. Ê raro que uma mulher caipira, vá
r
nhuma área necessária de serviços deixe de ser co- ~ um destes lugares sozinha e por conta .própria. Ali,
berta por alguém da família. em geral, a esposa acompanha o mando e apenas '
~rid-º,_esposa, filhos ~mais velhos" e.filhos complementa, com a sua presença e o seu trabalho,
"crianças" repartem entre si o trabalho.cotidiano.de mundos e atividades considerados como de homens:
aCõrdo-êo-m preceitos consagrados. Isto faz com que, o marido, os filhos mais velhos que com ele traba-
sendo quase todos os membros da família capazes de lham, os filhos menores que levam comida do rancho
executar quase todas as operações, algumas delas à roça, as equipes masculinas de trabalho ampliado,
sejam comuns e possam ser indiferentemente execu- as grandes e festivas equipes dos mutirões caipiras.
tadas por qualquer um; outras sejam preferencial- Assim, mais do que em outro qualquer lugar onde o
mente atribuídas de acordo com o sexo, a idade e a camponês vive o cotidiano, as "quartas" ou os al-
posição da pessoa na constelação familiar; e outras, queires de roça são locais de iniciativa e trabalho
finalmente, sejam atribuições exclusivas desta ou da- masculino. Ele determina sempre o que vai ser plan-
quela categoria de membro do grupo doméstico. tado, quando e como. Ele convoca - como ordem,
Homens e mulheres, adultos, jovens e até meninos mais do que como pedido - outros familiares,
podem cuidar "das criações" de quintal. O trabalho quando precisa de força suplementar de "serviços", e
<ta lavoura é, preferencialmente masculino ê as equi- distribui o trabalho de cada um. Mulheres e filhas
72 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 73

mais velhas abandonam a lavoura assim que podem ~e autonomia é a conquista do direito de um filho
ser dispensadas, ao contrário de filhos mais velhos 'J'tocar a sua rocinha" por conta própria, mesmo
que podem compor com o pai uma pequena equipe quando, por dever de obrigação e por necessidade,
familiar estável de trabalho caipira. ~jude o trabalho do pai sempre que chamado.

I I
~difereIlç-ª!i de aplicação da força de trabalho
estabelecem o solo das desigualdades familiares. "As mulheres e os homens participam da faina, ha-
Mesmo quando uma mulher é umã exímia lavradora vendo, porém, certa divisão sexual do trabalho. As-
- o que não é nada- raro - ela nunca é pessoa sim é que elas manejam todos os instrumentos, mas
"de lavoura", mas "de casa". Por outro lado, en- I não o arado, privativo dos homens. A limpa do milho
quanto o menino aprende desde cedo com o pai para é feita por homens e mulheres, a colheita apenas por
eles. No feijão uns e outros plantam, limpam e co-
ser não só um seu companheiro eficiente de equipe
lhem; mas a malhação é feita por eles. Uns e outros
mas um futuro profissional do ramo, as meninas
plantam, limpam e cortam o arroz; ainda aqui, po-
aprendem assuntos do lavrar "pro gasto", assim rém, a malhação é tarefa masculina. No algodão, no
como aprendem profissionalmente os assuntos "de café, na horta, no tratamento da criação, as tarefas
mulher", distribuídos entre a casa e o terreiro. Do são comuns. Nas roçadas, geralmente as mulheres só
mesmo modo como acontece com o menino na roça, trabalham nas glebas fáceis. " (Os Parceiros do Rio
à medida que cresce a menina divide mais e mais Bonito)
com a mãe os cuidados de seus domínios.
Entrando cedo "no batente", o menino cedo No extremo oposto, a casa é o espaço mais inte-
aprende com os mais velhos os segredos múltiplos dos rior do mundo do caipira. Todos habitam o rancho e
trabalhos caipiras. Aprende a transitar de um tipo de também ali há trabalho para todos. Mas ele é um
fazer a outro trabalhando ao lado do pai e sob a sua domínio da mulher. Ainda que submissa por direito
supervisão. Não é raro que um filho adolescente ou costumeiro às ordens do marido, a mulher de certo
jovem passe de um lavrador familiar-empregado do modo domina o cotidiano, porque é o seu trabalho
pai a um trabalhador associado. Aos poucos os filhos doméstico que, na prática, dirige as atividades de
são convocados para resolver com o pai as questões pr-odução da comida, do vestuário, do cuidado dos
relativas aos homens da casa. Depois, se for uma filhos. O próprio trabalho que o marido realiza no
família "situante", o pai deixará que os filhos re- rancho serve aos interesses da esposa: fazer o rancho
servem porções de terra para plantar as suas próprias e consertar o que precisa reparos nele, construir o
roças. Quando a família vive "em terra alheia" e fogão de lenha e o forno rústico no quintal, inventar
"planta na meia ou no arrendo", um primeiro sinal pequenas prateleiras e outros móveis, montar os ins-
74 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 75

trumentos e engenhocas do artesanato caipira.


Enquanto a esposa e as filhas trabalham plena-
mente na casa, depois de pronta ela é, para o marido
e os filhos homens, o lugar do descanso do trabalho
na roça, ou o lugar dos "servicinhos", Enquanto ele é
o espaço onde as mulheres "cansam o corpo", para
os homens é o lugar de cuidar dele: comendo, la-
vando e repousando. Na' porta do rancho - e esta é
uma imagem mil vezes lembrada em modas e toadas
de viola - os homens "cismam" na boca da noite,
entre a música, alguns goles de pinga e um cigarro de
palha.
A meio caminho entre o "terreno da roça" e o
domínio do rancho, o quintal - o "terreiro" -
reúne homens e mulheres em atividades cotidianas
comuns ou, outra vez, separadas. Entre um lugar e
outro, aquele é o espaço onde ainda se planta e já se
cozinha. Por isso, é um lugar de vida e trabalho
repartidos entre todos da família e sem um domínio
profissional marcado de um dos sexos. No terreiro
homens e mulheres racham a lenha catada no mato
ou nos campos, as mulheres assam bolos no forno
caipira, lavam e estendem a roupa - ou vão à beira
dos riachos, quando não há água perto. Uns e outros,
às vezes a família inteira, num intenso dia de pe-
queno mutirão doméstico, convivem com os inúme-
ros serviços de transformação do que veio do mato,
do campo ou da roça: secar, torrar e moer o café,
fazer da mandioca e do milho a farinha, transformar
a cana em açúcar, pilar no monjolo ou no pilão o "Uma cultura caipira que vai da mesa ao mito - o ·que
milho e o arroz, "bater o feijão", consertar instru- se come e o que se conta enquanto come. "
Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 77

mentos de montaria, de tração animal ou de trabalho Assim, a casa rústica, o quintal e a periferia
com a terra, criar objetos de artesania rústica com próxima - o bairro, a vizinhança - acabam não
barro, madeira ou palha. sendo apenas os lugares do trabalho familiar, mas
Também no terreiro a mulher planta as "mis- igualmente os espaços de quase toda a vida social e
turas" da comida e, mais raro, uma horta. Ali é o simbólica do caipira paulista. Ali as pessoas convi-
lugar do pomar caseiro e da criação dos "bichos da vem entre parentes, "cumpadres" e vizinhos. Ali
casa". As sobras da comida das pessoas servem para "festam" nos batizados, casamentos e mutirões. AH:
alimentar cães, gatos, áves e porcos. Assim, se nos praticam em família ou "no bairro" quase toda a
espaços de natureza conquistada que vão da mata à vida religiosa: a pequena reza de terço que reúne à
roça o caipira realiza o seu trabalho essencial e obtém volta de um oratório caseiro as pessoas da família,
o sustento e a mercadoria de que a família vive e se os parentes e vizinhos de residência próxima; as fes-
reproduz, nos domínios próximos, entre a casa e o tas familiares de devoção coletiva, que obrigam à
quintal, a família, para ser consumidora, é antes ar- reunião de grupos maiores para a "devoção" ou o
tista e artesã. Tudo que se "panha", mata, cria e ."cumprimento de um voto válido", com comida,
colhe é preparado para ser comido, vestido, usado ou reza, canto e dança, de que os festejos roceiros dos
vendido nos lugares de trabalho do rancho e do ter- santos juninos ou de São Gonçalo são bons exemplos.
reiro. São lugares, portanto, de notáveis pequenas Nestes pequenos ~llaç.º~Lde vida-as pessoas en-
oficinas de invenção caseira cotidiana e de preser- tram nela, são socializadas - mesmo quando no
vação de uma cultura caipira que vai da mesa ao bairro já há ~-, passam por rituais que lhes
mito - o que se come e o que se conta enquanto se tornam legítima a chegada ao mundo social dos
come - e da roupa ao rito - o que se veste e o que se vivos, que lhes atestam mudanças pessoais e sociais
faz com a roupa vestida. importantes, como no casamento, ou que os ajudam
Entre a casa e o quintal, pessoas da cultura a sair, com música e sem susto, do meio dos vivos,
camponesa tradicional vivem quase toda a sua vida como num velório ou em uma "encomenda de al-
pública. Não eram raras as famílias de caipiras cujas mas".
mulheres e filhos menores viajavam do sítio ou do Por isso, ao lavrador tradicional sem terras.pró-

*
bairro - na verdade não mais do que um lugar de
casas rústicas próximas, às vezes com alguma cape-
linha e uma "venda", mas com uma intensa vida
social - a um povoado \ou a uma cidade uma só vez
ao ano, por ocasião da festa da padroeira.
prias, a progressiva perda dos direitos de usar em seu
proveito porções de "roça" de uma fazenda pareceu
o começo do "fim do mundo". Por isso, na cabeça de
- vefhoSCãmponeses tradíciõiiãis migrados do "sertão"·
para "a rua" e obrigados ao trabalho urbano ou ao
78 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 79

trabalho volante, viver em uma casa de. periferia trabalho, de festas familiares ou de festejos "do'
onde até mesmo o quintal mal comporta a roupa que bairro". Vivem nos seus bairros, mas, por distantes
a mulher lava nas segundas-feiras, a idéia de que "o que sejam, estão sempre em movimento. Vão perio-
fim do mundo não anda longe" é viva e real. dicamente a locais de comércio, vão a outros bairros,
novamente por questões de trabalho, de visita ou de
rituais. Uma, duas vezes por ano, reúnem grandes
o mutirão: trabalho solidârio grupos e partem em romaria a algum centro paulista
de peregrinação. Trabalham em suas terras, em ter-
A não ser em casos de exceção, quando o caipira renos arrendados ou como empregados de "donos"
é plenamente sertanejo e vive em um "sertão" isolado e, quanto mais "sem terra", tanto mais são uma
de outros mundos, as famílias vivem em comunidade gente "sem pouso".
e vivem dela. Sabemos, leitor, que a própria idéia de Os momentos mais intensos nos serviços da la-
uma sociedade e uma cultura caipira isoladas é falsa, voura exigem por vezes um acréscimo suplementar
tanto quanto a idéia de que a economia caipira sem- de força de trabalho. Alguns parentes e vizinhos
pre foi "de subsistência" e existiu à margem de eco- podem ser chamados a um "adjutório". Quando há
nomias agrícolas escravocratas e, depois, capita- condições, um camarada pode ser "ajustado" para
listas. Voltemos a uma expressão fértil de José de alguns dias de "serviço". Em alguns casos, dois si-
Souza Martins: tanto economicamente quanto social tiantes vizinhos podem estabelecer entre eles uma
e culturalmente, o caipira existiu em uma situação de "troca de dia". Trabalha um na terra do outro e,
exclusão integrativa. Posto à margem como um exce- depois, o outro na terra do um e, assim, se pagam
dente indispensável e, portanto, integrado, o caipira com igual trabalho o acréscimo provisório de traba-
viveu e trabalhou no interior de mundos sociais mais lho necessário.
amplos que sucessivamente dominaram as condições '~ ajuda mútua funciona entre os habitantes do bair-
de reprodução de sua vida de trabalhador livre. ro do Taquari principalmente por ocasião das co-
Sabemos também que no interior de seu mundo lheitas, quando todo mundo se queixa da escassez da
mais imediato, entre eles e com os sujeitos interme- mão-de-obra, apesar de recorrerem aos 'volantes' da
diários de suas trocas econômicas, os camponeses cidade. A ajuda mútua se exprime em 'troca de dias
tradicionais vivem uma vida coletiva intensa. Cada de serviço ': o proprietário que necessita de mão-de-
I.,
grupo doméstico mora em seu rancho, mas, entre obra pede auxílio dos vizinhos, mas fica tacitamente
parentes e amigos, estão sempre passando e pou- comprometido a ajudá-tos quando solicitado; com-
( sando uns nos ranchos dos outros, para momentos de promisso de honra este, e mesmo que o lavrador es-

l ./
80 Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo

teja ocupado com sua própria colheita, abandona-a de parentes e vizinhos realiza-se nas terras ou na
quando convocado, a fim de retribuir os dias que
recebeu. "(Queiroz, Bairros'Rurais Paulistas)
! "roça" de alguém para as quais é pouco suficiente o
trabalho da família. Mas não é raro que um sitiante
escolha a alternativa de um "rnutirão da companhei-
Quando o trabalho é muito e o momento per- J \ rada" mesmo quando ele pode pagar, por menor
mite;um camponêS"cÜmprecisão" pode combinar preço do que o que terá com os gastos de comida e
c~nles e vizinhos, às vezes até coma ..migos_de festa, alguns camaradas para que façam ali o seu
l~: de outros bairro~, um ,!"utirão, iunmuchirão, serviço "por dia". Os convidados ao mutirão sentem-
Estee o momento em que a lida da lavoura passa de se obrigados a ele. Não ir implica, em algum mo-
familiar a ~omunitárk e o puro trabalho camponês mento, apresentar os motivos. Todos vão para traba-
torna-se um ritual de troca e solidariedade através do lhar, embora durante o mutirão o trabalho seja tam-
trabalho. bém uma festa e termine como um festejo. É, por-
tanto, uma forma voluntária de trabalho entre iguais
"O muchirão não é propriamente um socorro, um"ato entre si obrigados por princípios do direito costu-
de salvação ou um movimento piedoso; é antes um meiro do campesinato tradicional.
gesto de amizade, um motivo para a folgança, uma
forma sedutora de cooperação para executar rapida- "O mutirão difere fundamentalmente da cooperação
mente um trabalho agrícola. " (Ayrosa, Pllnio, Mu- que aparece nas formas modernas de organização do
chirão) trabalho, as quais trazem implícitos o controle e a
\ disciplina. Em sua forma pura, o mutirão é baseado
o mutirão é uma "troca de dias" muito am-
I!
',I
na prestação voluntária e gratuita de serviços, entre
pliada. Tradicionalmente ele é realizado em duas si- pares. Seus membros reúnem-se de modo espontâneo
tuações; quando as pessoas descobrem que só com a e independente de uma estrutura formal. De acordo
soma de muitos braços será possível realizar um "ser- com as interpretações correntes, a fluidez das rela-
viço" urgente e necessário. A primeira é quando o ções estritamente pessoais em que se baseia o traba-
trabalho coletivo aplica-se sobre a construção ou o lho de mão comum, e a ampla esfera de arbítrio que
reparo de algum bem de uso comunitário, como um permitem, estaria corrigida por normas assentadai
I
caminho vicinal, uma ponte ou uma capela de bairro. na tradição, que garantiriam a regularidade de sua
Após uma enchente no povoado de Catuçaba, pre- I ocorrência, suaobrigatoriedade e seu carácter resti-
tutivo. " (Homens Livres na Ordem Escravocrata)
senciei dois momentos de pequeno mutirão para a I
reconstrução de duas pontes levadas pelas águas do
Descrevo nas linhas seguintes um mutirão de
ribeirão do Chapéu. A segunda é quando o trabalho
82 Carlos Rodrigues Brandão I 83
Os Caipiras de São Paulo
I
que participei no sítio de Zé Leite, no bairro de Santa Ir \ garam as equipes de Lagoinha, Cunha e Catuçaba.
Cruz do Rio Abaixo, município de São Luís do Parai- Entre os trabalhadores destas últimas levas havia
tinga. Em alguns momentos recorro a observações de notáveis cantadores de brão.
um rnutirão de que Antônio Cândido participou mui- \ \
O brão é um canfo sem instrumentos que se
tos anos antes de mim e com muito mais sabedoria. I, \\ entoa' durantêü trabalho do mutirão. S,empre can-
Dias antes do sábado marcado para a mão co- ~do em dupla, exige que seus artistas trabalhem
mum de "bateção de pasto", Zé Leite mandou avisos juntos para que, a todo momento, se reúnam e,
a parentes e vizinhos, assim como a moradores ami- descansando do trabalho com a enxada, realizem um
gos de outros bairros de São Luís do Paraitinga, trabalho com a voz. Duplas diferentes espalham-se
Lagoinha e Cunha. Dois dias antes já as mulheres da p-elo lugar da "batecão' e entre si cantam, saudãrídõ-
~.. • .__ •••• __ o _, .- .••• -~~ --,

casa - sorte dele ter esposa disposta e cinco filhas se e se jogando linhas. A linha contém um enigma.
moças - preparavam a comida do dia do mutirão: Algo que se supõe os õ'litro's can"tadõreS;-cOmãigúma
almoço e janta. Dentro da casa, na cozinlia, e no dificuldade, poderão decifrar cantando também.
terreiro ao lado, fogões, fornos e fogueiras prepa- Jogar a linha é propor cantando uma primeira qua-
ravam de véspera as comidas mais difíceis: carne de dra com o enigma e seguir, depois, cantando outras,
porco e os apetrechos do "afogado". No sábado de onde os seus termos são reapresentados, sobretudo
manhã os moradores de perto chegaram cedo. Eles quando a linha é difícil, para ajudar aos que a têm
eram recebidos alegremente por Zé Leite. Levados à que desmanchar. Desmanchar a linha significa des-
cozinha da casa eram servidos de café preto em ca- cobrir o seu enigma e cantar a sua re~Q9sta,. '
necas de lata. Alguns dissolviam nele farinha de Á' ., Antes de subirmos ao pasto, Zé Leite uniu-se a
milho ou um biscoito duro, próprio para a mistura. outro cantador e, na porta do sítio, recebeu os "com-
Depois de comer subiam em equipe morro e pasto panheiros" cantando:
acima (todos os pastos da região são em morros)
com os seus "empenados" na mão e a pedra de afiá-
los no bolso de trás da calça. Iam para o trabalho,
mas em festa. Mexiam uns com os outros. No pasto
, "Recebo meus companheiros
Com alegria, com amor,
Vocêsàqui na minha casa
dividiam-se em pequenas equipes, em linhas de "ba- Trouxe/luz. e resplendor"
teção". Não havia chefias do trabalho e mesmo Zé
Leite, que a cavalo e sem trabalhar distribuía pinga e Quadra que completaram, assim que Zé Leite
café aos lavradores, mais brincava com uns e outros criou uma seguinte e, baixinho, a segredou ao com-
do que lhes dava ordens. Um pouco mais tarde che- panheiro.
1"1
Carlos Rodrigues Brandão
Os Caipiras de São Paulo 85

"Se amanhã alguém perguntar


Quem foi que cantou aqui, . Subimos o pasto do morro entre 20 e 30 homens
Que diga que(fo~l:ioisamigos armados de "penados". Sobre dois de longe, que não
Que cantou pra divertir" .. trouxeram os seus instrumentos de trabalho e a
quem, na falta de empenados, Zé Leite entregou
Surpreendidos com o cantorio de boas-vindas, enxadões, ferramenta inadequada para a "bateção",
Pavão, um dos de Catuçaba, e seu companheiro can- . recaem as atenções de outros dois cantadores. Sabe-
taram em resposta, anunciando a chegada e falando remos adiante por quê.
de alegrias: Na chegada do morro onde cerca de 30 lavra-
dores já trabalhavam, Zé Leite saltou do cavalo e
"O patrão cantou primeiro cantou com um outro companheiro, "gente da casa":
Satisfez o meu coração "Quero ver a voz de todos
ai oi, ai ai, E do Alcides Marciano
Satisfez o meu coração Quero ver a voz do Gusto (Augusto)
ai.
E do Alcides Marciano. "
Vou fazer minha chegada
Com licença do patrão "O Alcides e o Agenor
ai oi, ai ai, E o Pavão aqui chegou,
Com licença do patrão Ai, essa turma de amigos
ai.
/~) De tão longe aqui chegou."
"Patrão" é como Zé Leite será chamado du- Pavão e seu companheiro, recém-chegados, en-
rante todo o dia, muito embora não mantenha vín- toam outra moda de brão antes de começarem a
culos de serviços com ninguém e, no fim do dia, não foiçar:
pague a nenhum pelo "serviço" feito. Os outros se "Vou fazer minha chegada,
tratam por "amigo", "companheiro". As falas do ,ti Nessa hora abençoada,
brão são inicialmente de chegada, de saudação ao Ai oi, ai ai,
patrão e a todos, de lembranças de saudade e da Ai nessa hora abençoada,
alegria de se estar ali, no trabalho. Formadas as ai,
linhas do brão, enquanto "batem o pasto" as duplas O patrão na minha frente
cantam por todo o dia, durante o almoço e através da É a nossa autoridade
noite. ai oi, ai ai,
Ai, ele é a nossa autoridade."
Carlos Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 87

Outras duplas cantam saudando, algumas che- roçadores I/, III e IV, enquadrados pelos outros, se
gantes se anunciam, "fazem a chegada". As equipes denomina 'encontro do meio '. Cada roçador deve
se distribuem e em linha atacam o mato do pasto. conservar-se a uma distância mais ou menos de 5,50
Não encontrei em Rio Abaixo uma ordem formal de m, ou 2 1/2 braças do outro, no caso imaginado; daí
trabalho. Começando de baixo para cima os lavra- a largura de cada parcela a desbastar (eito) depender
dores estendiam linhas do "eito" e subiam juntos do número de trabalhadores. Durante o trabalho le-
limpando o pasto. Em alguns momentos distribuíam- vam-se em conta os de menor capacidade, devendo o
cortador moderar o ritmo a fim de não forçá-Ias. Se
se em pequenos grupos, deixando sempre juntas as
o eito é muito estreito, há outras distribuições de tra-
duplas "do brão" que se alternavam no cantorio. II balho, vindo, por exemplo, um foiceiro da outra ex-
Antônio Cândido registrou formas mais ordenadas tremidade encontrar o cortador no meio da tarefa. "
de trabalho. (Os Parceiros do Rio Bonito)
"Imaginemos, para exemplo, uma quadra de chão Logo depois do cantorio de Zé Leite e da che-
não muito grande: menos de 1/2 alqueire, ou seja,
gada de Pavão, uma dupla de lavradores do bairro da
60 X 40 braças (132 X 88 mt onde trabalham seis
roçadores - I, I/, III, IV, Ve VI). A primeira provi- Santa Rita, em Lagoinha, cantou saudando o "pa-
dência é dividir (virtualmente) a quadra em três par-
trão":
tes (eitos) de 20 braças (44 m) cada uma, que devem
"Ai nosso patrão viemos
ser atacadas sucessivamente.
Alinham-se os foiceiros, devendo as extremidades ser
De Santa Rita viemos aqui,
Viemos aqui, ai, ai.
ocupadas por dois bem habilitados - um do lado de
fora (1), outro do lado de dentro (VI), Ijp1Jando com o
Viemos matar uma saudade
Ai, ai, ai, ai
próximo eito a limpar (sujo). VI é cortador, ou mes-
Ai que nós temos de ti,
tre; I é beiradeiro. Perto daquele fica o contracorte,
Temos de ti, ai, ai."
ou contramestre (V).
A tarefa do cortador é a mais árdua, pois deve alinhar
pelo sujo, permanecendo na reta e orientando o rumo Duplas de brão interrompem a todo momento o
I dos demais, enquanto o beiradeiro guia pelo lado do começo do trabalho no pasto e cantam saudações.
limpo, que serve como ponto de referência do ali- Gente de bairros diferentes, perguntam uns pelos
'11
nhamento. outros pelo nome. Falam da saudade que a distância
I
Corta-se da esquerda para a direita e o cortado r, provocou e da alegria que o encontro no trabalho
ajudado pelo contracorte, mantém o progresso da comum proporciona. Mas depois que os trabalha-
marcha em linha reta. A parte em que trabalham os dores que cantam se anunciaram e saudaram, algu-
88 Carios Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 89

I mas duplas firmam o seu ponto. Cantam quadras Costumes que aos poucos se perdem entre lavra-
que são em parte o seu enigma e, em parte, um can- dores tradicionais. Por exemplo, aquele que termina
torio sempre repetido com palavras iguais. De todas em primeiro lugar a sua parte de trabalho recebe o
as linhas propostas uma delas se impõe. Eis os seus nome de "salmora" ou "salmoeiro". É dele a honra

li ,I
primeiros versos, cantados pelos dois lavradores ve-
lhos do bairro de Santa Rita:

.
,
"Eu vi esses dois boizinhos
No meio de uma novilhada

No sertão adonde eu moro


Estd a parte do eni~a, ser' sempre modi-
fieada para mtroduZU' novos dados que aJu-
demàdecilraçlo.

Esta h parte que ser' sempre "'POlida.


I
~
de entoar primeiro o canto do brão. Terminada a sua
tarefa, o "salmora" pode dedicar-se a ajudar o "cal-
deirão", o mais lento de todos, a concluir sua parte
do serviço. Se, acaso, um ou dois grupos de lavra-
dores concluem a sua parte antes do grupo de que,
porventura, o "patrão" faz parte, eles podem ir em
seu auxílio. A isto se dá o nome de "vivôrio" .
Onde os passarinhos cria
Ai morena, "No vivório todos cantam as suas linhas de brão.
Não tenho mais alegria." Ficam no eito, cantando em dueto e trabalhando. É
uma extensa linha de trabalhadores... Cantam seus
Ao que uma outra dupla irá completar, can- brão em forma de demanda ou de perguntas. Cos-
tando: tumam chamar fazer linha quando estão fazendo per-
guntas. Geralmente cantam na mesma toada, isto é,
"Se o senhor compra essa juntinha música, desde o primeiro verso do brão até o último. "
Minha roça aumenta mais. (Caldeira, Clóvis, Mutirão, citando texto de Alceu
Ai adeus morena, ai ai, Maynard Araújo)
Adeus que eu já vou embora."
Houve um momento, pouco antes do almoço,
E uma terceira completa: que se repetiu pouco antes da "janta". Várias turmas
de trabalhadores voluntários terminaram uma parte
"Pois senhor Mario Evaristo Parte móvel que, como ou-
ou todo o seu trabalho. Muitas pessoas sentaram em
o ••

Essa junta foi cnada na terra minha,


• tras, a dupla canta comen·
tando o enigma ou pergun-
um mesmo recanto do morro do pasto e durante bas-
tando a seu respeito. tante tempo os cantores de brão cantavam entre si os
A terra onde eu nasci Parte fixa que a dupla can- seus versos, propondo quadras ou procurando deci-
tad muitas vezes ao longodo
Foi bem no meio do estado dia. frar as de outras duplas. O "patrão" insistia em que
A visita dos amigos todos descessem para a casa. Descemos juntos e pelo

l
Foi pra matar minha saudade." caminho, com os "penados" às costas, duplas de
"90 Car/os Rodrigues Brandão Os Caipiras de São Paulo 9i

cantadores seguiam o brão, que não se interrompeu alegrias. Quando conversei.com, ele s.pbre os gastos
nein mesmo quando chegaram ao lugar da casa onde da festa do trabalho.concordou.comigo em q!!~ sairia
todos almoçaram e, mais tarde, comeram a janta. ganhando se o trabalho- fosse.l'Iora de festa" e pago a
Até a noite ninguém havia decifrado a "linha" "camaradas". Mas ele quis o ".mutirão" pra gue
dos dois lavradores de Santa Rita. Eles propuseram tudo
.-- fosse "em nome de festa, da alegria".
um enigma que o tempo todo falava de "dois bois",
"dois boizinhos", "urna junta de bois". Dois bois
"do patrão", que ele não vendia por preço algum e Na carreira do divino
que "no meio da novilha da eram os dois apareado
(aparelhados)". Durante todo o dia outras duplas, Faz alguns anos uma equipe de teatro da UNI-
cantando de entremeio ao trabalho, fizeram pergun- CAMP, "O Pessoal do Vítor", encenou umusa
tas sobre os "dois boizinhos". Terminado o trabalho sobre a vida e a cultura do caipira de São Paulo, Na
__ .0__ '-"";4 __ ,---

veio a resposta, mais na conversa entre todos do que ~ CJ!:.r:!~jrJl do Divino. Tornando por mote a toada tra-
no cantorio. Os "dois bois" eram os dois compa- dicional, os nomes e os temas do cururu paulista,
nheiros de trabalho. Trabalhavam juntos, eram este Q!tis~imo momento em que a cultura urbé!na do
"apareado" e diferentes de todos, sendo, corno todos, estado produziu cole'tIvãffiente um. do~entº-s~ohre
"do patrão", porque eram também homens de seu o camponês antigo da.região desfia na "estória" de
serviço. Diferentes porque entre todos eram os únicos uma família errante e o destino de uma gente. A
que trabalhavam com enxadões e não com empe- "Toada do Paiolão" é o tema da primeira parte. A
nados. família de caipiras canta e dança, come e festa.
Depois do almoço voltamos ao trabalho, que Os frutos do trabalho foram abundantes e não há por
somente se interrompeu quando a noite começava a que não serem felizes. Pobres, não são os miseráveis
cair sobre o pasto agora totalmente "batido". Termi- de beira de estrada que alguns viram. Dominados,
nada a janta as duplas do brão cantaram ainda muito podem se sentir livres. A "Toada do Anticristo" é o
tempo no quintal e, depois, dentro de casa, em lou- terna da segunda parte da peça. O velho pai lavrador
vor das mulheres. Os jovens, alheios ao trabalho e canta as coisas que hão de vir.
aos cantos caipiras, esperavam o forró que começaria
pouco depois. Mais tarde, aos poucos as turmas de •.... essenossotempobão
lavradores foram indo embora, as mais de perto a pé, Nuncamaisvai ser visto
outras a cavalo, as de mais longe em carros e cami- Pois tudo vai transmudar...
nhonetes. Zé Leite a todos saudava com gratidões e Ai, quando o dia chegar
92 Carlos Rodrigues Brandão

o que vai se ver é isto: I[~~:ç;<


", r',
ss.: J., . H",,~.
'--"-"'=';.;:"1
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Mantimento vai faltar


E na terra vai ser visto 'Q, 'D ,< ) I
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~
'Tudo vai mudar de lugar ... " '~"'-<..~~ i <)tOO
j,

No final da peça, expulsos por artimanhas de OAT~OI('J.d~b·~~ TàM~O,~,ª~~~~~~


"negócios" com a terra' que sequer compreendem,
fogem em direção a uma outra terra que não sabem INDICAÇÕES PARA LEITURA ·
se ainda existe. Fogem perguntando "até onde", "até
quando".
Hoje em dia não há no Estado de São Paulo Em seu livro O Folclore em Questão, FlorestanFernandes escre-
veu um artigo que talvez seja o melhor indicador das leituras sobre o
mais do que alguns bolsões de vida e de cultura de caipira de Silo Paulo: Os Estudos Folclôricos em São Paulo. ~ verdade
caipiras. Trabalhadores de enxada dos sertões de São que a maior parte dos autores e estudos que ele relaciona cuidadosa-
Paulo, poderiam ter sido sucedidos por outros sujei- mente existem em velhos livros, quase todos não reeditados, ou em
artigos espalhados principalmente em duas coleções de revistas: Revista
tos da "roça", agora verdadeiramente livres. Sitian- do Arquivo Municipal e Revista do Museu Paulista. Pelo menos um dos
tes donos familiares ou coletivos de suas terras de autores citados tem obras republicadas e de acesso fâcil: Amadeu
trabalho. Donos também de seu próprio destino, Amaral.
Não são muitos os estudos mais recentes a respeito do camponês
assistidos pela lei e pelos "recursos" que aprenderam tradicional de Silo Paulo. O Centro de Estudos Rurais e Urbanos
através do tempo a imaginar como coisas criadas e (CERU) possui uma boa biblioteca sobre o assunto, e duas de suas
desejadas um dia por um Deus para todos, mas pesquisadoras escreveram livros que devem ser consultados. Maria Isau-
ra Pereira de Queiroz, Campesinato Brasileiro e Bairros Rurais Paulis-;
depois tornados direitos e propriedades dos homens tas; Lia Fukui, Sertão e Bairro Rural. Um livro muito importante foi
ricos do campo e da cidade. escrito por Antônio Cândido: Os Parceiros do Rio Bonito.
Há vários estudos de comunidade que descrevem a vida e'os costu-
mes de trabalhadores rurais de São Paulo: de Oracy Nogueira, Família e
Comunidade; de Donald Pierson, Cruz das Almas; de Emilio Willens,
Uma Vila Brasileira - Tradição e Transição; de Robert Sherley, O Fim
de Uma Tradição.
Sobre as condições do passado e as condições atuais da vida e da
reprodução da vida do camponês tradicional, há dois livros fundamen-
tais. Um escrito por José de Souza Martins, Capitalismo e Tradiciona-
lismo. Outro, por Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na
Ordem Escravocrata,

l lt •
...•..
Que pode haver de maior ou menor que um toque?
W. Whitmasi

VOCÊ CONHECE O PRIMEIRO TOQUE?


Sobre o Autor

Rã vinte anos comecei a pesquisar assuntos ligados ao folclore:


trabalhtlva no Movimento de Educação de Base, documentando e reco-
lhendo 'manifestações de culturâ popular' que pudessem ser devolvidas
ao povo em programas radiofônicos. Mais tarde, em Goiâs, desenvolvi
pesquisas mais sistemáticas, ligadas à universidade, e de então para
agora, preocupei-me sobretudo com os rituais religiosos do catolicismo
popular praticado no interior por camponeses e negros. De formação
antropológica, procuro sempre reunir a pesquisa tradicional do folclore
aos modos de abordagem da Antropologia Social. Atualmente trabalho
no Departamento de Ciências Sociais da UNICAMP.
Desenvolvi alguns ensaios que, publicados posteriormente, mere-
ceram alguns prêmios de concursos vários. Entre estes trabalhos, cito as PRIMEIRO TOQUE é uma publicação com crônicas,
Cavalhadas de Piren6polis; A Dança dos Congos da Cidade de Goiás; resenhas, comentários, charges, dicas,
O Divino, o Santo e a Senhora; A Folia dos Reis de Mossãmedes e mil atrações sobre as coleções de bolso da Editora
a Festa do Santo de Preto (este último ainda no prelo).
Pela Editora Vozes, publiquei, em 1981, Sacerdotes de Viola; Brasiliense. Sai de três em três meses.
pela Graal, Plantar, Colher, Comer - um estudo sobre o campesinato Por que não recebê-Io em casa? Além do mais,
goiano, A Brasiliense, além de livros sobre questões de educação e edu- não custa nada. Só o trabaJho
cação popular, editou um longo ensaio sobre religião popular: Os Deuses de preencher os dados aí de baixo,
do Povo. E ainda participei, com o artigo "Parentes e Parceiros", do livro
Colcha de Retalhos. E ainda pela Brasiliense publiquei: O que é Método recortar, selar e pôr no correio.
Paulo Freire, O que é Folclore e O que é Educação.
NOME: .
END.: .
BAIRRO: FONE: _ .
Caro leitor: CEP: CIDADE: EST.: .
Se você tiver alguma sugestão de novos títulos para
as nossas coleções, por favor nos envie. Novas idéias, PROFISSÃO: '.' IDADE: .
novos títulos ou mesmo uma "segunda visão" de um
editora brasiliense s.a.
já publicado serão sempre bem recebidos.
01223 - r. general jardim, 160 - são paulo

I Jtr ' T-75


COLEÇÃO TUDO É HISTÓRIA
1 • A. Independincl.. na ArM' Minas Geral. Laura Vergualro Linhares 54· A autogestio
rlCl latina Lecn Pomar Z • A 29 - A burguesia brasileira Jacob lugoslava BerUno Nobrega de
crise do .Ieravl.mo e a grande • Gorender 30 • O governo JAnlo Quelroz 55 - O golpe de 1954:
Imlgraçio P. Belguelman 3 . A Quadros M. Victória Mesquita a burguesia contra o popullsmo
luhl contra a metrópole (As'a e Benevides 3t • Revoluçio e Armando Bolto Jr. 56 • Eleições e
Áfrlul M. Yedda Unhares 4 • O guerra civil espanhola Angela M. fraudea eleitorais na República
popullamo na Am'rlca latina M. Almeida 32 - A legislação tra· Velha Rodolpho Telarolli 51 - Os
ligia Prado 5 • A ,oyoluçio chl- balhista no Brasil Kazumi Muna· jesulta. José Carlos Sebe 58 • A
naU O. Aerão Reis Filho 6 • O kete 33 - Os crimes da pahdio república de Welmar e a alCen·
eangaço Carlos A. DÓris 7 - Mer- Mariza Corrêa 34 . As cruzadas slo do nazismo Angela M. AI·
eantmamo O tranalçAo Francisco Hilário Franco Jr. 35 • Formação melda 59 - A reforma agrArla' na
Falcon 8 • As '8voluç6e. burguo- do 3: mundo ladlslau Dowbor Nicarágua Cláudio T. Bornstein
n. M. Florenzano 9 . Parol, 1968: 36 • O Egito anllgo Ciro F. Car- 60 - Teatro Oficina Fernando Pel-
as barricadas do deseJo Olgárla doso 37 • Revolução cubana Abe- xoto 61 • Rússla· (1911·1921)
C. F. Matos 10 . Nordeste mlur· lardo Blanco/Oarlcs A. Dórla 38 • ence vermelhos Danlel A. R. FI-
gente (18$Q.189O) Hamilton M. O imigrante e a pequena pro- lho 62 • Revoluç.io mexicana
Montelro 11 • A revoluçio Indu•• priedade M. Thereza Schcrer Pe· (19t0-1917) Anns M. M. Ccrrêa
1(111 Francisco 1916810812 • O- trone 39 • O mundo antigo: eco- 63 - América central Héctor Pé-
qulJombol e a rebelião negra nomia e s0.sledade M. Beatrlz B. rez Brlgnoll 64 - A guerra fria
Clóvis Moura t3 • O coronellsmo Florenzano 40 • Guerrá civil ame- Oéa Fenelon 65 _ O feudalismo
M. de Lourdea Janottl 14 - O ricana Peter L. Elsenberg 4t - Hilárlo Franco Jr. 66 • URSS: o
governo J. Kubltscheck Rlcardo Cultura e partlclpaçio nos anos socialismo real (1921-1964) Da-
Maranhio 15 • O movimento d. 60 Heloisa B. de Hollanda 42 - niel A. R. Filho 67 • Os llbera's e
1932 Maria H. Capolato 16 • A Revolução de 1930: a domlnaçlo a crise da República Velha Paulo
AmérIca pré-colomblana C. Fia- oculta ltalc Tronca 43 • Contra a G. F. VlzenUnl 68 • A redemeere-
marlon Cardoso 17 . A abollçio chibata: marinheiros brasileiros tlzaçio espanhola Reglnaldo C.
d. eseravldio Suely R. R. de em 1910 M. A. Silva 44 • Afro- Moraes 69 • A etiqueta no antigo
Quelroz 18 . A proclamaçlo da América: a escravidão do novo regime Renato Janlne Ribeiro
república J. Enio Casalecchl 19 • mundo Ciro F. Cardoso 45 - A 70 • Contestado: a guerra' do
A revolta de Prlnee •• Inês C. Igreja no Brasll·Colõnia Eduardo novo mWtdo Antonio P. Tota
Rodrlgues 20 - História polftlca Hoornaert 46 • Militarismo na 71 - A familia brasileira Eni de
do futebol brasileiro J. Ruflno América latina Clóvis Aossi 47 • Mesquita Samara 72 - A econo-
dos Santos 21 _ A Nlcar6gua san- BandelranUsmo: verso e reverso mia cafeelra José Roberto do
dlnlata Marisa Marega 22 • O 11u- Carlos Henrique Oavidoff 48 . Amaral Lapa 73 • Arg"la: a
mlnllmo e os reli filósofos L. R. O governo Goulart e o golpe guerra e a Independência Musta-
Salinas Fortes 23 • Movimento de 64 Calo N. de Toledo 49 • A fá Vazbek 74 • Reforma agrária
estudantil no Brasil Antonio Men- Inqulslção Anlta Novlnsky SO • A no Brasll·Colônla Leopoldo Jo-
des Jr. 24 • A comuna de Paris poesia árabe moderna e o. Brasil blm 15 • O. caipiras de Sio
H. Gonzâlez 25· A rebeUlo SlImanl Zeghldour 51 • O nasci- Paulo Carlos R. 8randAo 76 • A
praieira Izabel Marson 26 • A prl· mento das 'Abrlcas Edgar S. de chanchada no cinema brasileiro
mavera de Praga 50nla Goldfeder Oecca 52 • Londres e Paris no AfrAnio M. Catanl/José Ináclo
27 • A construçio do socialismo s'culo XIX Maria Stella Martlns M. Sousa.
na China O. Aerâo Reis Filho Brescjanl 53 • Oriente MUla e o
21 • Opulancla e miséria nu mundo doa Irabel Maria Vedda

ASAIR
A balaJada M. de Lourdes Janottl çambicana Danlel A. Reis Filho ne O fascismo Arnaido Contier
A cri •• de' 1929 Adalberto Mar- Arte a poder no Brasil Imperial O macarthlsmo Wladlr Oupont O
son A colonlzaçlo nas amérlcas
Fernando Novaes A clvillzaçio
do açúcar Vera Ferlinl A crise do
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Tufano As Internacionais opert- \. do peronlsmo José L. 8. Beired/
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Paulo P. Castro A guerra dos ponês .no nordeste Aspásla Oe- Oliveira O. movimentos de cul-
farrapos Antonio Mendes Jr. A margo Capital Monopollsta no tura popular no Brasil C. R. "
história do Carlbe Ellzabeth Aze· Brasil Maria de lourdes Manzlnl BrandAo Padre Clcero, o mila./
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Herbold A história do espe- dade colonial Maria O. Lette golpe ou revolução? Adrlana Am·
hiculo e encenaçlo Fernando Guerra do Vletnã Paulo Che- back/Angela M. da Costa/Caro-
Peixoto A história do p.c.a. SII· con Hlst6rla contemporinea Ib6- line Hararl Poder e televisãÓ
via Magnani' A independência rica Francisco Falcon História da Antonio Alves Cury Prevldêncla >"
dos EUA Suzan Anne Semler A eduçaçio brasileira Mlrian Jorge ~oclal no Brasil Amélla Cohn
industrialização brasileira Fran- Warde História da escola Eliana Revofuçio científica José Aluy-
cisco Igléslas Amerlcan way of Marta S. T. topes História de slo Reis de Andrade Revolução
IIfe chega ao Brasil Gerson Meu- hollywood Sheila Mezan Madeira dos cravos Mauro de Mello Leo-
ra A redemocratlzação brasileira: Mamoré - A ferrovia fantasma nel Jr. Salazar e o estado novo
1942-1948 Carlos Henrlque Davl- Prancleco Foot Hardman O este- • português Maria Lu/za Paschkes.
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Sergio Pinheiro A revolução mo- O Estado Novo Maria S. Brescta-
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