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Neste ano de 1998 completaram-se 110 anos desde que a escravidão foi abolida
no Brasil. A escravidão em nosso país, uma forma de exploração e controle social dos
negros oriundos do tráfico africano e, por último, inter-provincial que, como acentua
ALENCASTRO (1997), foi tipicamente uma instituição moderna, reconstruída pelo Império
no contexto do país independente que passamos a ser.
Mais de um século depois, percebemos – mas desconhecemos, apesar das
estatísticas – qual é o peso que homens e mulheres de cor negra têm na estrutura social,
com sua hierarquia de renda e escolaridade, e as implicações sobre o complexo problema
dos obstáculos à cidadania em nosso país. Percebemos, ainda hoje, que negros e brancos
estão, majoritariamente, nas posições assimétricas dessa estrutura hierárquica. O
abandono do critério de classificação, nos censos demográficos, da cor das pessoas,
impede que consigamos conhecer a dimensão quantitativa da persistente subalternidade
dos negros.
A ideologia da tolerância racial faz parte desse processo de obscurecimento da
condição de subalternidade em que foi mantida a população negra ao longo de nossa
história republicana. Um dos mais importantes mecanismos de produção das imagens
relativas a esse processo encontra-se no Museu Imperial, em Petrópolis.
Um museu é sempre, na variável organização de seus objetos simbólicos um
espaço no qual o passado é representado quer dizer, reconstituído com vistas à
comemoração dos eventos associados aqueles objetos. No caso do Museu Imperial de
Petrópolis, a representação museográfica toma como referência o modo privado como as
pessoas públicas que habitaram aquela residência viveram em seus momentos de lazer,
compondo cenários em salas reservadas.
Trata-se, como é sabido, da residência de verão na qual o Imperador permanecia
em estadas que se prolongavam por quase seis meses e de onde, inclusive, tomou
conhecimento da proclamação da República e partiu para o exílio (MUSEU IMPERIAL,
1991). Foi também uma cidade construída para expressar a utopia de país quase
europeu (MAUAD, 1997), uma utopia que manifestava o desejo da elite imperial de
isolar-se não apenas da convivência com a escravidão na vida privada e pública, como
também do flagelo das doenças transmissíveis que se tornaram endêmicas na cidade do
Rio de Janeiro desde a metade do século passado.
A representação museográfica certamente não corresponde à realidade efetiva
dos hábitos, usos e modos de viver do Imperador e de sua família. Uma leitura de livro
sobre a história do município é bastante esclarecedora a esse respeito:
Proposto pelo prefeito Alcindo Sodré e inaugurado por Getúlio Vargas por decreto
em 16 de março de 1943, quando Petrópolis comemorava o centenário da sua fundação,
o Museu teve seu acervo constituído em parte pela transferência daquele integrante do
Museu Histórico que funcionava no Palácio de Cristal, em parte por “doações de móveis,
tapetes e louças pertencentes aos nobres da época do Imperador.” (CARVALHO, 1991:
53-4)
Em outras palavras: o circuito museográfico, tal como o vêem os visitantes nos
dias de hoje, é o resultado do trabalho de técnicos, da orientação dos descendentes da
família real e de seu círculo de influência. Nesse sentido, tudo, desde a seleção até a
disposição dos objetos, passando pela ambientação musical, é intencional. Aliás, ouvir
música barroca ao longo do percurso de sentido tão obrigatório quanto o uso, pelos
visitantes, de chinelas flaneladas para deslizar sobre um piso de tábuas enceradas,
convida a uma atitude diante dos símbolos do Império, quer dizer, ao silêncio e à
reverência.
O que ressalta é o fausto, quer dizer, o poder e glória materializados nos objetos,
no mobiliário, nos espelhos, nas imensas pinturas emolduradas, nas jóias da Coroa e na
arquitetura monumental da residência. Retratos de viscondes, barões, reis, príncipes,
princesas, imperadores e imperatrizes, personagens que “fizeram a história”, aqui e fora
do Brasil, espalham-se pelas paredes das diferentes salas.
Mas para um visitante mais atento, chama atenção a grande quantidade de
pinturas de paisagens. A maior parte consiste em paisagens do Rio de Janeiro, município
neutro e sede do Império – visto do mar, das montanhas, das zonas centrais da cidade.
Os seres humanos que nelas figuram aparecem minúsculos: uma natureza exuberante
mas poderosa, os confronta e submete. A contemplação permite verificar, contudo,
nalgumas telas, narrativas de uma época social.
Vale destacar, no corredor entre a sala de jantar e as salas de música, três telas
interessantes.
A primeira intitula-se Cascata Grande da Tijuca e foi pintada em 1884 por
Augusto Rodrigues Duarte (1844-88). No canto esquerdo inferior, a cascata domina a
visão do espectador e lá um homem negro abraça as pernas de outro, branco. O
movimento esboçado por este sugere que, após transpor as águas que descem da
cascata, vai pousar o seu senhor no chão. O homem branco mira o observador do quadro
e percebemos nitidamente os traços de seu rosto. Não é o que acontece com a figura do
carregador negro. No centro da tela, num plano mais afastado, outra figura de negro
repousa sobre uma pedra. Também seus traços são indistintos.
Mais adiante, no mesmo corredor, encontra-se a tela, sem data, Vista do Largo
do Machado, de João Batista Molinelli. Vê-se o lugar a partir de uma perspectiva que
também minimiza as pessoas. Aqui é a cidade que se ergue grandiosa sobre os
indivíduos. Ao longe, o Corcovado, num céu de dia aparentemente ameno. Quase na
esquina da rua que acaba no Largo, uma jovem senhora portando uma sombrinha (uma
“iá-iá”), está prestes a cruzar com uma mulher negra que carrega na cabeça um
tabuleiro ou cesto. Haveria na pintura desse encontro casual o interesse em apresentar
um comentário sobre as diferentes condições sociais da mulher na Corte? E, quem sabe,
“falar” do trabalho (e do não trabalho)?
Outra tela nos mostra uma vista ampla da praia de Santa Luzia, dominada pelo
outeiro da Glória e com o ponto de fuga na entrada da Baía, situa a vida intensa dos
habitantes da cidade. Na área delimitada entre o mar, à esquerda, e o casario até as
alturas do outeiro, à direita, pelo largo e ruas circulam homens e mulheres, livres e
escravos. Esta é a visão apresentada na Entrada no Rio de Janeiro, de Pedro
Godofredo Bertichen, datada de 1864. É plausível supor que se trata de uma vista a
partir do Morro do Castelo, arrasado no começo do século XX.
A tela tem "mais pensamento" do que se pode supor nesse tradicional motivo da
pintura. Isto por que Bertichen pintou em primeiro plano uma "cena" bastante sugestiva:
negros descalços transportam os poucos pertences (mobília, candelabro) de um jovem
branco que, ao passar por outros personagens (um casal e um oficial, encostados na
amurada sobre o mar), descobre-se para cumprimentá-los, cartola na mão.
O detalhe significativo está na pobreza dos pertences que talvez o jovem pudesse
ele mesmo carregar, se isto não fosse interditado pelos valores sociais como demérito e
humilhação. Na sociedade escravocrata o trabalho manual era um desvalor, posto ser
uma atividade confinada aos escravos e aos homens livres pobres. Para retratar a
pobreza de um homem livre, bastava dizer não dispor de ninguém para buscar um balde
de água ou um feixe de lenha.1 A possibilidade de elevar-se acima desse nível evidencia-
se na cena em que o jovem, ao ser surpreendido pelo olhar de cidadãos de respeito,
pode descobrir-se - pois está com as mãos livres - para cumprimentá-las.
Esta cena multiplica-se, por assim dizer, na tela, em segundo plano. Vemos, ao
centro, homens livres pobres, trabalhadores brancos, na faina de tanger os bois de um
carro repleto de lenha. Também aqui se trata de um "detalhe" relevante: o trabalho de
tanger bois remete ao trato com o gado, uma atividade era exclusivamente reservada,
desde os tempos coloniais, aos homens pobres livres. Essa "sobrevivência" do passado
nos aponta para a força da escravidão como instituição social e mental, na qual nada há
de "estranho". Nossos olhos percebem: o pároco caminha próximo a duas negras
(possivelmente escravas-de-ganho) que carregam tabuleiros na cabeça; na linha do
casario, outro padre conversa com duas freiras, enquanto um negro trabalha sobre
andaime, em obra de construção e ...
O que vemos, portanto, são personagens de um dia qualquer no centro da cidade
do Rio de Janeiro, tal como nos transmitiu o pintor interessado em retratar, na azáfama
da multidão e na cotidianidade da sociedade escravocrata, as diferenciações sociais entre
homens e mulheres livres e escravos.
Aqui e ali, nas pinturas, portanto, os marcantes traços da escravidão.
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ALENCASTRO, L. F. de, 1997. Vida privada e ordem privada no Império. In: J.F. de
Alencastro (org.), História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das
Letras.
CARVALHO, A M de F, 1991. O município de Petrópolis. Rio de Janeiro: Ao Livro
Técnico.
DAMAZIO, S. F., 1996. Retrato social do Rio de Janeiro na virada do século.Rio de
Janeiro: EdUERJ.
MAUAD, A M., 1997. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: J. F. de
Alencastro (org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das
Letras.
MUSEU IMPERIAL, 1991. Catálogo. 2ª edição revista. Petrópolis: Museu Imperial.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira. Negro na rua: a nova face da escravidão, São
Paulo: Hucitec, 1988.