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PRIMEIRA PARTE

SINGULARIDADE, SELETIVIDADE E REFLEXIVIDADE


DO DESENVOLVIMENTO OCIDENTAL.

CAPÍTULO I

MAX WEBER E A SINGULARIDADE DA CULTURA OCIDENTAL

É certamente incorreto imaginar a importância da esfera religiosa


para Weber enquanto uma inversão da causalidade econômica marxista.
Tal saliência para Weber não é causal, mas sim heurística. Sendo o
fundador da sociologia compreensiva, que procura a interpretação das
ações individuais a partir do sentido dado pelo agente, nada mais natural
que o interesse pela esfera social - onde ele identificou a gênese da
produção do sentido social por excelência durante milênios - tenha tido a
primazia do seu interesse genético e compreensivo.
2

Procurarei fazer uma leitura neo-evolucionista da sociologia


religiosa weberiana de modo a perceber onde Weber localiza a
superioridade evolutiva ocidental nos campos moral e cognitivo. Este
ponto vai ser fundamental para que possamos compreender o que
constitui a modernidade e onde reside sua validade universal. O neo-
evolucionismo weberiano, como veremos, é formal e não material, ou
seja, pretende-se universalidade apenas para as estruturas de
desenvolvimento. Os conteúdos destas podem ser, ao contrário,
particulares. As estruturas de desenvolvimento que nos interessam se
referem tanto às formas de consciência (moral e cognitiva) individuais,
quanto às concepções de mundo societárias.

Temos aqui, portanto, a junção das perspectivas ontogenética


(desenvolvimento individual) e filogenética (desenvolvimento societário
ou da espécie). Esse tipo de leitura pode ficar mais compreensível ao leitor
contemporâneo se nos lembrar-mos das suas afinidades com a psicologia
do desenvolvimento cognitivo de Piaget ou Kohlberg. Assim, a
racionalização interna à esfera religiosa pode ser percebida como uma
forma de resolver o dilema da interação do homem com os meios social e
natural. Esse processo de aprendizado pressupõe um aumento do grau de
consciência e reflexividade acerca da realidade que nos cerca, assim como
do grau de autonomia da consciência moral que nela atua.

Nesse contexto, não pretendo examinar todo o conjunto de


fatores materiais e ideais que tenham desempenhado de alguma forma
um papel relevante nessa transição, concentrando-me na discussão da
especificidade do desenvolvimento religioso ocidental, visto que, segundo
penso, a racionalizaçåo religiosa já propicia elementos suficientes para a
demonstração da especificidade do diagnóstico weberiano do
desenvolvimento ocidental. O pêso particular da variável religiosa nesse
processo - sem que com isso esteja-se pleiteando uma dominância dessa
esfera em relação a outras nesse processo de transição - deve-se ao fato
de que, nas condições da concepção de mundo tradicional onde a "doação
de sentido ao mundo" tem fundamentos fortemente religiosos, uma
3

mudança de consciência seria impensável sem uma contribuição


especificamente religiosa para a mesma.1

O significado da especificidade do desenvolvimento ocidental


como fio condutor de suas análises é enfatizado por Max Weber já na
primeira frase do prefácio ao conjunto de estudos de sociologia religiosa.

No estudo de qualquer problema de história universal,


um filho da moderna civilização européia sempre estará
sujeito à indagaçåo de qual a combinação de fatores a
que se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e
somente na civilização ocidental, haverem aparecido
fenômenos culturais dotados (como pelo menos
queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu
valor e significado.2

Apenas no ocidente temos ciência empírica, música racional,


imprensa, estado e, antes de tudo, a forma econômica do capitalismo. A
atenção de Weber dirigi-se à genealogia desse processo: porque apenas
no ocidente, melhor, porque apenas no ocidente moderno temos a vitória
daquilo que Weber chama "racionalismo da dominação do mundo"?3. Essa
questão confere o impulso para as suas abrangentes investigações
comparativas em sociologia da religião. Weber não pretendeu com esses
estudos, com certeza, desenvolver uma "teoria geral" sobre todas as
grandes civilizações. Os estudos sobre as religiões orientais devem servir
apenas como "contrapartida comparativa" de modo que apenas os
aspectos que estão em contradição com o desenvolvimento ocidental e,

1 1
Schluchter, Wolfgang. Die Entwicklung des Okzidentalen Rationalismus. J.C.B. Mohr,
Tübingen, 1979, pag. 254.

2 2
Weber, Max. 1947, Gesammelte Aufätze zur Religionssoziologie, vol. I, J.C.B. Mohr,
Tübingen, pag.1

3
Op.cit., pag. 534
4

portanto, passíveis de enfatizar sua especificidade, são objeto da atenção


de Weber e limitam, desde o início, o campo de estudo.

Esses estudos, portanto, não pretendem ser análises


completas de culturas, mesmo que breves. Pelo contrário,
eles procuram destacar propositadamente em cada
cultura aqueles aspectos nos quais diferia e difere da
civilização ocidental. Orientam-se, pois, definitivamente
para os problemas que parecem importantes para a
compreensão da cultura ocidental, deste ponto de vista.
Tendo em vista esse objetivo, não parecia possível
qualquer outro procedimento. Mas, para evitar mal-
entendidos, deve-se dar uma ênfase especial à limitação
do citado objetivo.4

Weber preocupou-se, inicialmente, com a influência


diferencial das doutrinas religiosas sobre a conduta prática. Essa direção
da relação causal foi perseguida no seu texto seminal sobre "a ética
protestante e o espírito do capitalismo". Mais tarde, no conjunto de textos
que tratam da ética econômica das grandes religiões mundiais, temos
também a consideração da relação causal contrária. 5 Nesses textos,
temos, por um lado, em contraste com a "ética protestante", os trabalhos
sobre as religiões mundiais orientais, e, numa relação complementar
àquele trabalho pioneiro, o estudo sobre o judaísmo antigo.

Pode-se imaginar as duas direções da relação causal que


estamos tratando, a meu ver, da seguinte forma: por um lado temos os
impulsos psicológicos, religiosamente determinados da conduta de vida
prática, especialmente da conduta econômica, e, por outro lado,
encontramos a relativa autonomia e a positividade específica do nível
econômico. Este último é pré-formado por dados econômico-históricos e
econômico-geograficos que são independentes de qualquer determinação
"interna" da ação econômica e influênciam, por sua vez, o "ethos"
econômico prático. Tendo em vista a dificuldade de determinação de
4
Op.cit., pag.13

5
Op.cit., pag.12
5

todos os fatores políticos, econômicos ou economicamente determinados


que influenciam a ética religiosa decide Weber tomar a estratificação
social1 ou, melhor dizendo, os principais elementos da conduta prática
não religiosamente motivada dos estratos sociais que, na realidade,
influenciaram e portaram as éticas religiosas, como uma espécie de
"representantes" de todas as determinações socio-econômicas da ação
religiosa.

A noção central para a interpretação dessa complexa


multicausalidade é o conceito de "afinidade eletiva" (Wahlverwandschaft).
Esse conceito permite a Weber, em distinção por exemplo em relação a
Marx, tratar das relações de reciprocidade entre as diversas esferas da
sociedade sem reduzir uma enquanto simples funções de outras, assim
como evitar premissas teleológicas e de filosofia da história típicas do
evolucionismo do século XIX. Ao invés de necessidades ou funções refere-
se Weber sempre a "chances" ou "probabilidades". Também em
contraposição ao marxismo ortodoxo não existe nenhum vínculo a priori
entre o mundo material e simbólico, ou seja, entre idéias e interêsses.
Também aqui fala Weber apenas de "chances".

Decisivo, no entanto, para os nossos interesses aqui é a sua


recusa do evolucionismo sociológico clássico ao criticar o normativismo
das etapas sucessivas e evitar qualquer noção de necessidade histórica. A
minha recepção da sociologia das religiões weberiana vai privilegiar,
precisamente, sua antecipação, neste campo, das teorias assim chamadas
"neo-evolucionistas" do século XX. As interpretações evolucionista e neo-
evolucionista da teoria weberiana foi levada a cabo nas últimas três
décadas por Friedrich Tenbruck, Wolfgang Schluchter e Jürgen Habermas,
contribuindo decisivamente para a reposição de Max Weber no centro do
debate sociológico atual, estimulando a releitura e reinterpretação desse
clássico a partir de uma visão de conjunto das suas teses principais.2

1
Op.cit., pag.239

2
A interpretação weberiana de W. Schluchter ocupa uma posição intermediária entre as
interpretações tradicionais de cunho anti-evolucionista, como podemos notar nos
trabalhos de Reinhardt Bendix, Günther Roth ou Johannes Winckelmann, e a
inovadora recepção evolucionista de Max Weber levada a cabo por Friedrich Tenbruck.
Apesar de Schluchter concordar, em princípio, com Tenbruck acerca do conteúdo
6

Segundo a reconstrução da sociologia religiosa weberiana a


partir dos pressupostos neo-evolucionistas de uma lógica do
desenvolvimento 3 pode-se perceber a progressão das concepções do
mundo - e das estruturas de consciência correspondentes - enquanto um
movimento que parte da concepção de mundo mágico-monista, passando
pela teocêntrica-dualista, até a moderna concepção do imanente
dualismo4. Esse processo reproduz a progressão da civilização ocidental
como um movimento que parte do mito passando pela teodicéia até a
antropodicéia. Irei tentar percorrer esse caminho por meio da
racionalização religiosa de modo a explicitar os pressupostos da
especificidade do desenvolvimento ocidental.

Ao falar da gênese das religiões, Weber esclarece que


não pretende tratar da "essência" da religião, senão indagar sobre as
condições e efeitos desse tipo de ação comunitária. De acordo com o seu
enfoque abrangente, o ponto de partida são sempre as vivências e
representações subjetivas dos indivíduos-atores, ou seja, o "sentido" dado
à ação pelos sujeitos Esse "sentido", pelo menos nas primeiras
manifestações da religião e da magia, é dirigido a "este mundo" criado

evolucionista da teoria weberiana, discorda, por outro lado, de três aspectos


essenciais da interpretação desse último autor: 1) inicialmente refuta a opinião de
Tenbruck de que tenhamos em Weber uma teoria da formação e desenvolvimento de
todas as grandes culturas mundiais. Contra esse "programa evolucionista máximo "
defende Schluchter um "programa mínimo" referente unicamente à singularidade do
desenvolvimento ocidental; 2)também rejeita ele o lugar dominante, uma "astúcia"
(List) das idéias em relação aos interesses e ao mundo institucional; 3) finalmente,
refuta ainda Schluchter a sequência necessária de etapas de desenvolvimento, o que
marca sua postura neo-evolucionista. O objetivo de sua interpretação reconstrutiva é
defenido, pelo próprio autor, como uma tentativa de enriquecer o ponto de partida
teórico weberiano a partir do diálogo com correntes teóricas contemporâneas de
modo a enriquecê-lo enquanto alternativa teórica.Ver Schluchter,
Wolfgang.1979,pags. 1 até 14
3
O neo-evolucionismo baseado na lógica de desenvolvimento distingui-se do
evolucionismo tradicional na medida em que diferencia lógica de desenvolvimento e
dinâmica de desenvolvimento, no sentido de evitar-se a idéia de uma sequência
necessária de etapas a partir de um critério hierárquico-normativo em favor de uma
mera retrospecção de processos históricos contingentes. O primeiro distingui-se do
último também por diferenciar as estruturas de desenvolvimento dos seus conteúdos
de modo que apenas as primeiras podem pretender universalidade enquanto os
últimos podem ser particulares.
4
Schluchter, Wolfgang. 1980, Rationalismus der Weltbeherrschung, Frankfurt,
Suhrkamp, pags. 9/40. Ver Ver também Schluchter, Wolfgang. 1979,especialmente
pags.59/103.
7

com a expectativa de que as coisas possam "ir bem e que se viva longos
anos"5.

O elemento religioso ainda se encontra entranhado em


outros aspectos da vida quotidiana, especialmente naqueles de natureza
econômica. Esse é o reino do naturalismo pré-animista, onde coisas e
significados ainda não se separaram e o "sentido do mundo" enquanto
problema ainda não aparece. Apenas a maior ou menor quotidianidade
dos entes é objeto da cognição mágica. O elemento apartado da
familiaridade imediata do cotidiano é o que Weber chamará de
"carisma"6.

O naturalismo pré-animista baseia-se na crença de que as


criaturas determinam e influenciam o "comportamento" das coisas ou
pessoas habitadas pelo carisma. Este é o núcleo da crença nos espíritos,
onde o espírito representa sempre algo indeterminado e material. A etapa
seguinte, do ponto de vista lógico, é a imaginação de uma alma que
propicia a transição do pré-animismo ao animismo em sentido estrito. Na
crença nas almas, que pressupõe a prática dos magos, ocorre uma
separação entre a idéia de entidade sobrenatural e os objetos concretos,
os quais, agora, passam a ser apenas habitados ou possuídos.

O desenvolvimento cognitivo seguinte representa um salto


qualitativo e implica a passagem do naturalismo ao simbolismo. O
simbolismo pressupõe uma crescente abstração dos poderes
sobrenaturais, dispensando, assim, qualquer relação com objetos
concretos. Decisivo para esse movimento em direção à impessoalidade da
representação das forças sobrenaturais é a circunstância de que, "agora
não apenas as coisas e fenômenos que estão aí e acontecem representam
um papel na vida, mas também coisas e fenômenos que significam algo e
porque precisamente significam algo"7.

Como enfatiza Godfrey Lienhardt, o simbolismo propicia ao


sujeito, pela primeira vez, uma forma de controle sobre o objeto da

5
Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, J.C.B. Mohr, Tübinen, 1985:245.
6
Op.cit.,:247.
7
Op.cit., 248.
8

experiência através de um ato de conhecimento, levando a que se supere


a relação naturalista do homem em relação ao seu meio por força da
autonomização do conceito em relação à coisa.

”Um animal ou o homem pré-religioso podem apenas


resistir passivamente à experiência do sofrimento e de
outras limitações impostas pelas suas condições de
existência. O homem religioso, ao contrário, pode,
através de sua capacidade de simbolização, de certa
forma "transcender e dominar" conseguindo, desse
modo, uma liberdade em relação ao seu próprio meio
impossível no passado”8

O aparecimento dos poderes sobrenaturais - almas, deuses e


demônios - na sua relação com os homens possibilita a constituição da
esfera ou do campo de ação religioso. A relação das divindades com os
homens é, nessa fase de desenvolvimento, marcada pela ausência de
distância. Distância esta que, no momento do ritual, desaparece
completamente quando "o qualquer hora" transforma-se no "agora"9. A
ausência de distância indica a existência de uma mera "duplicação" entre
o mundo das coisas e fenômenos e o mundo dos poderes sobrenaturais,
denotando a existência de uma concepção de mundo monista 10

Essa circunstância leva a que a esfera religiosa não possua


ainda nenhuma força propulsora capaz de canalizar a conduta prática para
uma determinada direção. Ainda assim, pode-se falar de uma "ética
mágica" no sentido amplo do termo, como Weber o faz11, na medida em
que, por força da proibição dos tabus, se produz alguma forma de
regulação das condutas. Essa primeira forma de positividade religiosa

8 8
apud Bellah, Robert, Religiöse Evolution, in: Constanz, Seyfarht, Sprondel, Walter, (orgs.) Religion
und Gesellschaftliche Entwicklung, Frankfurt, Suhrkamp, 1973:274.
9
Bellah, 1973:278
10
Schluchter, 1980:15.

11
Weber, 1985:264
9

possui uma eficácia apenas estereotipada, no sentido de que serve, antes


de tudo, à proteção de interesses extra-religiosos, faltando ainda a
referência a um "mundo" especificamente religioso.

Esse estado de coisas é decorrente do fato de o


"desempenho" do simbolismo limitar-se ao mundo do ser, à distinção
entre coisa e conceito, cuja importância já foi enfatizada, e ainda não
abranger a distinção entre ser e dever ser. Esse passo pressupõe,
precisamente, uma concepção de mundo dualista, a qual irá ser produto
das religiões de salvação, e representa, em termos de lógica de
desenvolvimento, um passo evolutivo decisivo em relação a uma
concepção de mundo mágica. Em lugar de uma simples duplicação, temos
aqui uma efetiva dualidade, na medida em que, ao contrário do mundo
mágico, a esfera transcendental, especificamente religiosa, contrapõe-se à
empírica, reivindicando para si uma positividade e eficácia próprias. Mais
ainda, a esfera transcendental passa a ser vista como a "mais importante",
implicando na desvalorização da esfera empírica enquanto reino
passageiro das criaturas. A "verdadeira" realidade passa a ser a do "além"
em oposição à empírica, a qual vale, desde então, como passageira - nas
religiões de salvação orientais - ou como o reino do pecado - nas religiões
de salvação ocidentais.

Na introdução à ética econômica das religiões mundiais


Weber vincula esse processo de ”autonomização” da esfera social
religiosa à transformação peculiar do sentimento impulsionador
fundamental da ação religiosa, o qual passa a ser o sofrimento. No início
do desenvolvimento do campo religioso o sofrimento era valorizado
negativamente, como pode-se observar pelo comportamento das
comunidades arcaicas em festividades, ocasiões em que os doentes e
sofredores, em geral, eram tidos como legitimamente punidos pelos
deuses, sendo, portanto, objetos do ódio e desprezo geral, não sendo
aceitos como participantes nessas ocasiões. A religião servia então aos
desejos dos poderosos e saudáveis de ver legitimada a própria
felicidade12.

12
Weber, 1947:242.
10

O caminho para a mudança radical dessa concepção começa


com a distinção, relativamente tardia, entre a cura de almas, entendida
enquanto culto individual, e o culto coletivo, que cuida apenas dos
interesses mais gerais da comunidade. A cura de almas preocupa-se com a
questão da imputação causal da culpa do sofrimento individual, a qual foi
assumida por dinastias de mistagogos ou profetas de uma divindade. A
partir dessa especialização podem agora os especialistas vincular seus
próprios interesses materiais e ideais aos motivos e necessidades da
plebe.

Um passo seguinte consuma-se com a construção de mitos de


salvação do sofrimento continuado, os quais permitem, pelo menos
tendencialmente, uma interpretação racional do sofrimento. A matéria-
prima original dessas construções são os mitos primitivos da natureza que,
a partir de sagas de heróis ou espíritos intimamente relacionados com
fenômenos naturais, são interpretados como cultos de salvação. De uma
maneira geral, foram formados a partir das esperanças de redenção, uma
"teodicéia do sofrimento", em evidente oposição às teodicéias da
felicidade anteriores, que se baseavam, ainda, em fundamentos rituais e
não éticos. Com o novo sentido do sofrimento, agora enquanto sintoma
de felicidade futura, abrem-se as portas para a conquista do imenso
público de sofredores e oprimidos em geral.

Com a precedência da compreensão da religião enquanto


"teodicéia do sofrimento", inclinam-se os ricos e poderosos a abraçar
outras fontes de legitimação da sua condição como, por exemplo, o
carisma do sangue. Os sofredores, ao contrário, saem em busca da idéia
religiosamente motivada de uma "missão" confiada especialmente a eles13

A teodicéia do sofrimento, enquanto resultado da crescente


racionalização das concepções de mundo religiosas, substitui, como uma
metafísica tendencialmente racional, as concepções de mundo míticas,
abrindo espaço dessa forma, para o desenvolvimento de uma ética em
sentido estrito. O pressuposto dessa passagem é um outro
desenvolvimento cognitivo fundamental - como na transição do

13
Op.cit.,:248.
11

naturalismo ao simbolismo - que permite, agora, a distinção entre as


esferas do ser e do dever ser. Como conseqüência temos uma mudança
radical na relação dos homens consigo mesmos, com os outros e com seu
ambiente. Desse momento em diante, constitui-se um nova esfera moral,
mais ainda, temos o aparecimento da moral enquanto tal, enquanto
esfera autônoma com uma positividade própria, na medida em que suas
finalidades se separam de todas as outras finalidades mundanas.

Com a concepção de mundo dualista, por força da distinção


entre o sagrado dever ser e o profano mundo do ser, constituem-se duas
esferas concorrentes e paralelas, abrindo espaço para uma "rejeição
religiosa do mundo", na medida em que o elemento empírico da realidade
profana passa a ser desvalorizado pelo dever ser sagrado.

Uma primorosa análise das conseqüências e direções das


rejeições religiosas do mundo é levada a cabo por Weber nas
"Considerações Intermediárias à Ética Econômica das Religiões Mundiais".
Todas as religiões de salvação, sejam elas ocidentais ou orientais, têm
como base concepções de mundo dualistas, embora, certamente, com as
conseqüências as mais distintas14. A diversidade dessas conseqüências e
influências sobre a conduta prática proporciona, inclusive, o fio condutor
de toda a sociologia da religião weberiana, assim como explica o peso
heurístico da esfera religiosa para a explicação da especificidade cultural
do ocidente.

A resolução desse dilema é o núcleo do problema a ser


enfrentado por toda teodicéia. Duas soluções extremas para essa questão
se contrapõem aqui: uma solução mundana imanente e uma solução
mundana transcendente. O hinduísmo, para Weber, seria a solução mais
consequente do ponto de vista imanente. O mundo profano é uma mera

14
Dois aspectos parecem-me decisivos na análise das influências diferenciais da ética religiosa sobre a
condução da vida prática. Por um lado, temos um elemento imenente à mensagem religiosa,
nomeadamente, a concepção da divindade. A investigação comparativa descobre um Deus pessoal e
transcendente no ocidente e um Deus imanente no oriente. Esta distinção, entretanto, ganha toda a sua
força apenas vinculada com o conteúdo da promessa religiosa e do caminho da salvação. Por outro lado,
um elemento extra-religioso assume importância central, nomeadamente os portadores sociais da ética
religiosa. Aqui importa saber que interesses ideais e materiais do estrato social em questão determinam a
ética religiosa. Todos esses aspectos se condicionam mutuamente. Importa muito, por exemplo, se o
estrato social portador da promessa e do caminho da salvação religiosa privilegia uma interpretação
intelectual (como no oriente) ou prática (como no ocidente) dos mesmos. (Ver Weber, 1947:536-573).
12

parte do mundo sagrado, o que implica ausência de estímulos ético-


religiosos para modificá-lo. A solução transcendente mais consequente é a
calvinista, como veremos, e a consequência é a interpenetração ética do
mundo em todas as esferas da vida. Uma outra distinção fundamental
para Weber, na determinação das relações entre ética e mundo, é a
oposição entre misticismo e ascetismo.

Os dois caminhos mencionados acima são intra-mundanos.


Mas, enquanto o primeiro é místico, o segundo é ascético. Para este
último é importante a noção de ação, ou seja, uma concepção do fiel
como “instrumento” divino. No primeiro, o aspecto fundamental é a
noção de “estado”, ou seja, a visão do fiel como “vaso” da divindade,
sendo percebido como em alguma forma de “união mística” com este.
Tanto o caminho místico como o ascético admitem também variantes
extra-mundanas. A mística extra-mundana implica “fuga do mundo” como
no caso dos monges budistas. Já a ascese extra-mundana, como no caso
dos monges católicos da idade média, leva a uma radical diferenciação
entre comportamento cotidiano e extra-cotidiano. Ambos os caminhos
extra-mundanos, no entanto, acarretam uma diferenciação extrema entre
os virtuosos religiosos e os leigos, impedindo, portanto, a conformação
ética da ação mundana.

A especificidade do racionalismo ocidental para Weber


resulta da forma peculiar segundo a qual a religiosidade ocidental
soluciona o seu dualismo específico. O dualismo na sua versão ocidental é
potencialmente tensional, ou seja, ao contrário do dualismo oriental a
ênfase é potencialmente mais ética do que ritualística. Nesse sentido,
abre-se a possibilidade de um conflito aberto entre a positividade ético-
religiosa e as demais esferas mundanas. É este o tema de ”Considerações
Intermediárias ao Conjunto de Estudos sobre Sociologia das Religiões”15.

Apesar do calvinismo ter sido o desenvolvimento mais


consequente dessa característica cultural, weber identifica no judaísmo
antigo suas raízes o que explica de resto o interesse especial de Weber no
estudo do Judaísmo. Nele, Weber encontrou o primeiro passo na direção

15
Este texto foi publicado em português com o título ”Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções”
(Weber, Max, Ensaios de Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1979, pags. 371/413.).
13

de uma tensão entre ética religiosa e mundo que abriu caminho para a
conformação ética deste último. Fundamental no caso do judaísmo antigo
é a própria concepção de divindade. Jeová não é um Deus funcional
qualquer, mas o Deus da guerra de uma pequena nação cercada de
inimigos poderosos. A desobediência a Jeová significava consequências
políticas e militares imediatas.

Dois elementos ajudam a explicar sua força enquanto


divindade: a) o caráter ético de sua mensagem através dos mandamentos
que visavam a constituição de uma conduta ética cotidiana; e b) o
contrato (berith) sagrado e coletivo firmado entre Jeová e seu povo
enquanto coletividade, e não enquanto indivíduos isolados, o que
favoreceu enormemente a pressão coletiva para sua obediência. Essas
duas condições combinadas foram decisivas para a vitória sobre os cultos
concorrentes e outras divindades16.

Fundamental para a vitalidade do componente ético implícito


no judaísmo antigo foi, para weber, a atuação da profecia judaica. É que a
constituição de um estamento sacerdotal, que exerciam sua atividade
religiosa em templos, tendiam a propiciar uma ênfase na atividade de
culto, o que era contrário ao ensinamento de Jeová. Apenas o
componente ético da obediência irrestrita aos mandamentos interessava
a este. E era precisamente esse fato que era lembrado com toda a
insistência pelos profetas. A salvação só era possível coletivamente e
através do cumprimento estrito dos mandamentos divinos e não através
de técnicas de salvação e contemplação.

A novidade profética, portanto, não se dirigia ao “conteúdo”


da menagem religiosa, a qual já havia sido sistematizada pelos sacerdotes
levitas no “Tora”. O trabalho dos profetas era dirigido à radicalização do
componente ético e seu efeito no comportamento cotidiano. Weber
refere-se aos profetas éticos do judaísmo antigo como os primeiros
homens que haviam logrado se libertar do ”jardim mágico” onde toda a
religiosidade primitiva se inseria. Havia a tentativa de conformar as

16 16
Weber, Max 1923, Gesammelte Aufätze zur Religionssoziologie, vol. III, J.C.B. Mohr, Tübingen,
pags. 126/149.
14

esferas mundanas segundo os mandamentos da ética religiosa. Ao profeta


Jeremias, por exemplo, não interessava compromissos; as lógicas
mundanas deviam se conformar e subordinar à mensagem religiosa. Para
Weber, boa parte da extraordinária sobrevivência dos judeus como povo-
pária deveu-se à eficácia do seu elemento ético.

O cristianismo primitivo e medieval, herdeiros da tradição


judaica, aprofundaram, por um lado, e inibiram, por outro, algumas
características que iriam ser constitutivas da cultura ocidental moderna. O
cristianismo primitivo contribuiu decisivamente para o universalismo da
mensagem ético-religiosa. Este componente já era elemento central da
noção de amor universal da pregação de Jesus e foi reforçado pela missão
paulínea ao propiciar a constituição de comunidades universais e abertas
evitando o sectarismo judaico. Já o catolicismo medieval contribuiu com o
racionalismo intelectual e jurídico das tradições grega e romana, as quais
foram incorporadas pela Igreja.

O fator inibidor da herança ética no católicismo medieval foi


responsável pela secundarização da tensão entre ética e mundo. É que o
princípio da igualdade dos irmãos de fé foi interpretada como uma
igualdade pré-social, a qual não estava prejudicada por nenhuma forma
de desigualdade concreta. Esse compromisso, ao mesmo tempo, foi o
pressuposto mesmo da força integradora do cristianismo, ao mesmo
tempo tempo em que se abria a possibilidade , pelo menos como idéia
regulativa, para a “idéia” de igualdade concreta. O elemento
tradicionalista do compromisso com os poderes e a lógica das esferas
mundanas, no entanto, impediu uma conformação ética consequente da
vida cotidiana.

Nesse sentido, temos apenas com a revolução protestante


um ponto de inflexão fundamental em direção a uma consequente
interpenetração entre ética e mundo. Apesar do caráter tradicionalista da
pregação luterana, já com Lutero e o luteranismo temos avanços
importantes em relação ao catolicismo. É que Lutero, ao traduzir a bíblia
para o alemão, produziu a junção de duas noçoes bíblicas, a noção de
“trabalho” (Tätigkeit) e de “chamado divino” (Berufung zu Gott), na noção
de “vocação” (Beruf). Esse passo foi decisivo para a transformação de uma
15

noção de ascese extra-mundana, como a católica medieval, em benefício


de uma noção intra-mundana da mesma.

Se o trabalho era sagrado, então o fiel pode agradar a Deus


desempenhando sua atividade cotidiana no mundo. No entanto, a
interpretação luterana do trabalho intramundano era tradicionalista. O
fiel deveria cumprir suas obrigações cotidianas e aceitar em todos os
sentidos a ordem mundana criada por Deus. Nesse sentido, a noção
tradicionalista de vocação significava a aceitação das relações de trabalho
já existentes e o compromisso com as estruturas patrimoniais de poder
então vigentes. Desde então temos, a partir dessa constelação de fatores,
duas características marcantes do “caráter alemão” desde então: o
sentimento de dever e a subserviência em relação à autoridade17. Ao
mesmo tempo, como iremos ver com mais vagar adiante, também essa
concepção propiciou uma interpretação peculiar do “indivíduo” ocidental,
ao enfatizar a “dimensão interna” da personalidade.

Mas não é esse protestantismo tradicionalista que Weber


tem em mente quando ele fala da “revolução protestante”. A versão
luterana do protestantismo é, ainda hoje, dominante na Europa central,
inclusive Alemanha, e na Europa do norte, especialmente os países
escandinavos. A vertente ascética e individualista do protestantismo, para
Weber, teve sua origem especialmente na Inglaterra e nos países baixos,
sendo depois transportado para os Estados Unidos, onde desenvolveram
ao máximo todas as suas potencialidades.

A reinterpretação calvinista da reforma protestante adapta a


noção luterana de vocação no sentido de uma concepção ascética de
ativismo intra-mundano. Aqui o fiel é visto, como no judaísmo antigo,
como “instrumento” divino e não mais como “vaso” da divindade, como
no luteranismo. No protestantismo ascético temos não apenas a clara
noção da primazia da ética sobre o mundo, mas também a mitigação dos
efeitos da dupla moral judaica (uma moral interna para os irmãos de
crença e outra externa para os infiéis). A coerência e a disciplina da
influência do comportamento prático pela mensagem religiosa pode,

17
Ver, sobre esse tema, o capítulo II da segunda parte desse livro.
16

então, ser muito maior. O desafio aqui é o de a ética querer deixar de ser
um ideal eventual e ocasional (que exige dos virtuosos religiosos quase
sempre uma ”fuga do mundo” como na prática monástica cristã medieval)
para tornar-se efetivamente uma lei prática e cotidiana ”dentro do
mundo”.

O que está em jogo em termos de desempenho cultural é


uma primeira experiência histórica de moldar eticamente o mundo e, de
forma conseqüente, transcender o dualismo religioso através da sua
realização prática na sociedade. O dogma mais característico do
calvinismo é a doutrina da predestinação18. Este diz que apenas alguns
homens são eleitos para a vida eterna, sem que se possa ter acesso aos
motivos que levaram Deus a fazer tal escolha. Como Weber enfatiza, essa
doutrina implica uma distinção radical tanto em relação ao catolicismo
quanto ao luteranismo, na medida em que ambos defendem não só uma
outra concepção de divindade, mas, também, um conceito essencialmente
distinto da piedade divina.

A doutrina calvinista da predestinação pressupõe uma


compreensão tal da divindade que, bem no sentido que esta possui no
Velho Testamento, implica um abismo intransponível entre Deus e os
homens, trazendo, como conseqüência, uma extrema intensificação da
experiência humana da solidão. Um outro efeito, talvez o mais
importante, é a eliminação de toda mediação mágica ou sacramental na
relação Deus/homens. Para Weber, esta última circunstância foi
absolutamente decisiva para a superação do ethos católico e, em certa
medida, também do luterano19 no sentido de que a ausência de mediação
determina o fechamento dos espaços de "compromisso". O crente é
deixado a si mesmo e apenas humildade e obediência em relação aos
mandamentos da divindade podem decidir da sua salvação. A totalidade
da condução da vida enquanto unidade é o que conta para que se alcance
a salvação e não a soma de ações isoladas.

O patético isolamento individual cria, no entanto, uma


sensação de insegurança insuportável para as necessidades emocionais do

18
Weber, 1947, 90.
19
Op.cit.,, 94-95.
17

homem comum. Para um virtuoso como Calvino não existia esse


problema, posto que ele estava seguro da própria salvação. Para os seus
seguidores, no entanto, a questão da dúvida da própria eleição ganha um
significado central, propiciando a elaboração da doutrina da ”certeza da
salvação” (Bewärungsgedanke).Esta confere um sentido sagrado ao
trabalho intramundano ao interpretá-lo como meio para o aumento da
glória de Deus na terra, de modo a dar ao crente a segurança de que seu
comportamento é não apenas ”agradável a Deus” (gottgewollt), mas,
acima de tudo, "fruto direto da ação divina” (gottgewirkt), possibilitando a
fruição do bem maior dessa forma de religiosidade, qual seja, a certeza da
salvação20.

A noção de vocação ganha, assim, um novo entendimento, na


medida em que passa a contar como "sinal da salvação", mais ainda, como
sinal da salvação a partir do desempenho diferencial. O objetivo da
salvação e o caminho da salvação passam a exercer uma influência
recíproca de tal modo que uma condução de vida metódica
religiosamente determinada pode aparecer.

Com isso temos não só a superação da concepção


tradicionalista de vocação em Lutero, mas, também, do próprio ethos
tradicionalista enquanto tal. Em lugar de uma percepção da salvação
segundo a acumulação de boas ações isoladas, temos agora a perspectiva
de que a vida tem que ser guiada a partir de um princípio único e superior
a todos os outros: que a vida terrena deve valer apenas como um meio (e
o homem um mero instrumento de Deus) para o aumento da glória divina
na terra. Todos os sentimentos e inclinações naturais devem subordinar-
se a esse princípio, representando o protestantismo ascético, desse modo,
uma gigantesca tentativa de racionalizar toda a condução da vida sob um
único valor.

o ascetismo puritano, como todos os tipos de ascetismo


"racional", tentava a habilitar o homem a afirmar e a fazer
valer os seus "motivos constantes" especialmente aqueles
que foram adquiridos em contraposição aos sentimentos.
Sua finalidade, ao contrário de algumas crenças
populares, era habilitar a vida alerta e inteligente,

20
Weber fala mais precisamente de caminho para a certeza da salvação (Op.cit.,:110).
18

enquanto a tarefa imediata de anulação do gôzo


espontâneo e impulsivo da vida era o meio mais
importante da ascese na ordenação da conduta dos seus
adeptos.21.

Ao contrário da ascese monástica medieval, que significa uma fuga


do mundo, temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda a força
psicológica dos prêmios religiosos para o estímulo do trabalho, segundo
critérios de maior desempenho e eficiência possíveis. O elemento ascético
age como inibidor do gozo dos frutos do trabalho, sendo o desempenho
diferencial compreendido como atributo da graça divina e um fim em si. A
passagem do mundo religiosamente motivado para o mundo secularizado,
no entanto, é um ponto central e controvertido do diagnóstico weberiano da
modernidade.

CULTURA NORMATIVA OU REIFICAÇÃO DO


MUNDO?

A interpretação dominante, ao perceber a influência do capitalismo


não apenas no mundo do trabalho ou na economia em sentido estrito, mas
também em todas as esferas da vida, defende a tese da ”reificação” da vida
em geral como consequência do processo de secularização. Afinal, trata-se
aqui, no sentido forte do termo, de uma "recriação" do mundo na medida
em que uma nova "racionalidade", especificamente ocidental, passa a
permear todas as esferas de atividade humana. Nesse sentido, defende
Schluchter de que o significado cultural da ética protestante para a
modernidade ocidental deve ser considerada antes no favorecimento por
parte desta de um "espírito da reificação" do que de um "espírito do
capitalismo".22
Causas da reificação veria Weber, antes de tudo, na essencial não-
fraternidade do caminho da salvação do protestantismo ascético e na
suspeita de divinização das criaturas contida em toda doação de valor para
relações humanas levando ao que se poderia chamar de "dominação da
impessoalidade". As relações intersubjetivas entre os sujeitos perdem,
21
Op.cit., pag. 117.

22
Schluchter, Wolfgang. 1979, pag.229.
19

crescentemente, a sua característica emocional e, com isto, a própria


peculiaridade das relações entre homens.
qualquer relação puramente emocional - isto é,não motivada racionalmente - baseada
em uma relação pessoal de um homem com outro, facilmente cai, na ética puritana,
assim como em qualquer outra ética ascética, na suspeita de idolatria da carne. Em
adição ao que foi dito, isto é mostrado bastante claramente no caso da amizade pela
seguinte advertência "It is an irrational act and not fit for a rational creature to love any
one further than reason will allow us...It very often taketh up men's minds so as hinder
their love to God" (Baxter: Christian Directory, IV, pag.235). Encontramos repetidas
vezes tais argumentos.23

A reificação e a conseqüente atitude instrumental em relação a sí e


aos outros e à natureza seriam, portanto, resultados do específico caminho
de salvação da ética protestante. A concepção de mundo teocêntrica e
dualista seria desvalorizada pela absolutização do ponto de partida do
racionalismo da dominação do mundo motivado religiosamente, o que
expressa o caráter auto-destrutivo da ética protestante. O mesmo mundo
que foi "encantado" através do simbolismo viria a ser, por força da
necessidade do reconhecimento das leis específicas que o regem,
desencantado. Nesse contexto, seriam possíveis duas atitudes fundamentais
de conformidade com as novas condições da época 24 : os homems
exclusivamente interessados no sucesso seja sob a forma de poder ou
dinheiro; e aqueles que procuram encontrar um equilibrio entre sucesso e
convicção ética. Essa última atitude só é possível para as existências que
buscam definir-se na tensão entre o ser e o dever ser e entre a rejeição do
mundo e o reconhecimento da legalidade própria do mundo desencantado.
As conduções da vida que privilegiam apenas a atitude orientada ao
sucesso seriam precisamente os "últimos homems", no sentido
nietzscheano do têrmo apropriado por Weber, que renunciam a qualquer
fundamentação ética para suas ações 25 , os quais, nas palavras de
Schluchter, promovem uma dominação inconsciente do mundo 26 . Uma
atitude consciente de dominação do mundo exigiria a elaboração reflexiva
da tensão, típica para as formas de consciência peculiares da concepção de
mundo moderna nos termos de um imanente dualismo entre orientação para
23
Weber, Max. 1947 I, pags. 98 e 99.

24
A religião não desaparece simples e automaticamente no desenrrolar desse processo. Ela vive, agora como antes, da
carência e das limitações impostas à capacidade interpretativa humana no seu sentido mais geral, as quais não podem
ser sanadas pela ciência nem por esquemas de interpretação de fundo secular. Entretanto, como conseqüência do
desencantamento do mundo, a religião encontra-se na defensiva, sendo apenas uma alternativa entre outras de
paradigma interpretativo.

25
Weber, Max. 1947 I, pag.204

26
Schluchter, Wolfgang.1980, pag.36.
20

o sucesso e atitude ética, ou seja, uma mistura bem temperada entre sucesso
e moralidade. Trata-se, aqui, da necessidade típica de um antropocêntrismo
dualista, ou seja, que se mantenha a tensão entre ser e dever ser, de
reconhecer o conteúdo ético da problemática do auto-contrôle e da
dominação do mundo e de pautar seu comportamento de acordo com essa
dualidade necessariamente instável.
A partir da destruição da concepção de mundo dualista-teocêntrica
teríamos, como única possibilidade de atitude ética, a condução consciênte
da vida enquanto personalidade a qual pressupõe a necessidade de escolhas
morais e ações meditadas que levam em conta as suas conseqüências na
realidade 27. Desse modo, a antropodicéia no sentido weberiano pressuporia
uma antropologia, a qual, segundo Dieter Henrich, espelha uma doutrina
do homem como ser racional. Racionalidade significa aqui o imperativo de
qualquer existência humana de tornar-se uma personalidade na medida em
que a corrente de decisões últimas que conferem, em última instância, o
sentido da individualidade de uma vida, passa a ser conscientemente
executada e mantida. 28
Os "últimos homems", no sentido da "ética protestante", seriam, ao
contrário, aqueles que renunciam a escolha dos valores que regem a própria
vida, abdicando em suma à autodeterminação, praticando uma crua
acomodação aos estímulos pragmáticos exteriores. 29 A nova concepção
dualista do mundo, típica da modernidade desencantada, renuncia à noção
de um além o que justificaria sua designação de imanente. Para Henrich, o
homem que perde sua ligação orgânica com motivos religiosos só pode
encontrar os seus ideais dentro do "próprio peito"30.A concepção de mundo
moderna continua dualista, na visão de Weber, precisamente pela
permanência do confronto entre um mundo da causalidade natural e um
mundo "postulado" de uma causalidade compensatória de fundo ético. No
entanto, ao contrário do dualismo anterior, religiosamente motivado, temos
agora um dualismo imanente31já que o mundo da realidade ética postulada
é pelo próprio homem desenvolvida acarretando, conseqüentemente, uma
responsabilidade bastante peculiar com respeito à esfera ética.

27 27
Henrich, Dieter. 1950, Die Grundlagen der wissensschaftslehre Max Webers, mimeo,
Heidelberg, 1950. pag. 202.

28
Op.cit., pag.205.

29
Op.cit., pag.200.

30
Op.cit., pag.206.

31
Schluchter, Wolfgang. 1980, pag. 35 e 36.
21

Com a reificação do mundo, como conseqüência do processo de


desencantamento ou "desmagificação" (Entzauberung), teriamos a perda da
capacidade de convencimento das éticas materias de fundo religioso e o
aparecimento das pré-condições indispensáveis para o individualismo ético.
A transição para o individualismo ético fundamenta, inclusive, a forma
peculiar da auto-consciência ocidental e, com isso, o significado específico
do seu desenvolvimento cultural, cujo aparecimento deve-se decisivamente,
entre outros fatores, ao poder reificador da mensagem protestante.

O desempenho civilizatório específico do racionalismo ocidental moderno foi o


desencantamento do mundo. Esse ponto implica na atualização mais conseqüente, até
aqui na História, do conflito valorativo. Uma forma de consciência que, já nos inícios
do racionalismo ocidental, encontrava-se formulado no contexto da concepção de
mundo helênica e que acompanhou o homem de forma latente desde que ele começou a
simbolizar, foi, na constelação do racionalismo ocidental moderno, definitivamente
descoberto e radicalizado...Com isso, o aparecimento e desenvolvimento do
racionalismo ocidental moderno parece representar, para Weber, uma ruptura de
princípio na forma da consciência, ou seja, um desenvolvimento das formas de
consciência, correspondendo por sua vez, ao nível das concepções do mundo, a um
desenvolvimento também dessas últimas. No lugar dos deuses pessoais temos agora os
poderes impessoais.32

Apenas o Ocidente consegue superar os limites de uma


concepção de mundo tradicional e da forma de consciência que lhe
corresponde. A aquisição de uma consciência moral pós-tradicional é o que
está em jogo na passagem da ética da convicção, típica de sociedades
tradicionais legitimadas religiosamente segundo uma moral substantiva,
para a ética da responsabilidade, que pressupõe contexto secularizado e
subjetivação da problemática moral. Esta passagem é ”espontânea” apenas
no ocidente. O seu produto mais acabado é o indivíduo capaz de criticar a
si mesmo e à sociedade onde vive. Esse indivíduo liberto das amarras da
tradição é o alfa e o ômega de tudo que associamos com modernidade
ocidental, como mercado capitalista, democracia, ciência experimental,
filosofia, arte moderna etc.
Contra essa posição dominante defende Richard Münch uma
interpretação alternativa. Münch percebe a relação entre ética e mundo não
como desintegração daquela neste, mas sob a forma de uma
”interpenetração” ética do mundo. A interpenetração significa certamente a
limitação da positividade própria à cada esfera social a partir da influência
ética modificadora. No entanto, também o inverso seria verdadeiro. Ao se
interpenetrar com as esferas práticas, os imperativos éticos tendem a se
32
Schluchter, Wolfgang. 1979, pag. 35.
22

influenciar pelos imperativos dessas mesmas esferas. Isso implica que ética
e mundo se interpenetram reciprocamente.
É que a interpenetração entre ética e mundo não poderia ser vista
como uma subordinação unilateral do mundo à esfera ética. Em sociedades
que apresentavam já graus significativos de diferenciação social, como a
sociedade pré-moderna ocidental, só podemos falar de uma interpenetração
recíproca entre ética e mundo, na medida em que as esferas mundanas
tornam-se éticas e a ética religiosa adquire, por seu turno, ”relevância
prática”. É precisamente essa relevância prática que possibilita e radicaliza
seu efeito intra-mundano.
Para Münch, uma interpretação do processo de secularização como a
que Schluchter, por exemplo, propõe, equivale a secundarizar os elementos
éticos do racionalismo da ”dominação do mundo”. Münch demonstra como
a cidade medieval já havia criado as pré-condições para um processo de
interpenetração recíproca entre ética e mundo. É que a cidade medieval
ocidental era, ao contrário da cidade oriental, uma comunidade de
cidadãos. Esta última, ao contrário, era, antes de tudo, o centro da
dominação patrimonial e apenas secundariamente um centro comercial e
artesanal. Münch releva, portanto, a possibilidade do desenvolvimento de
um universalismo consequente nas esferas econômica, política e cultural a
partir desse fundamento.
Nesse sentido, a cidade medieval vinculava todos os cidadãos às
mesmas normas jurídicas, o que implicava que a ordem senhorial e
patrimonial medieval sofria, nos seus domínios, uma refração importante.
Também na cidade surgiu pela primeira vez o ”Homo Oeconomicus”, com
sua ênfase na continuidade, calculabilidade e segurança nos negócios; o
direito racional como forma de ordenar a vida econômica; uma primeira
forma de autonomia política, conquistada contra a dominação patrimonial;
e, finalmente, a revitalização da vida cultural, na medida em que se retoma
a herança da antiguidade clássica, transfromando-a em estímulo
fundamental para a renascença italiana e o humanismo.
A ênfase de Münch na importância da cidade medieval serve para
demonstrar sua tese da interpenetração recíproca entre ética e mundo. É
que na cidade medieval já existiam pressupostos importantes da cultura
ocidental antes mesmo do protestantismo ascético. A norma da eqüidade,
por exemplo, que implicava universalização e igualdade na esfera
econômica é um pressuposto da própria possibilidade de tornar o tráfico
econômico normatizável segundo regras universalizáveis. Assim, não seria
decisivo apenas a existência de uma ou outra característica, mas a
interpenetração entre várias, como no ocidente a partir da cidade e do
univeraalismo cristão, que seria responsável pela posterior construção de
uma cultura normativa com as características de ativismo, universalismo,
23

racionalismo e individualismo33.
De acordo com essa linha de raciocínio, a doutrina religiosa
protestante ascética, partiria do dado da existência de uma civilização
comercial burguesa direcionando sua doutrina a esse tipo de vida
econômica. Isso não implica que a religião teria sido usada para conferir
substância moral à vida econômica. Esse fato significa apenas que a
mensagem religiosa ascética dirige-se àqueles segmentos citadinos e
burgueses cuja condução de vida estava em conflito secular e constante
com a ética tradicionalista da doutrina católica. Nesse sentido, levar em
conta as necessidades desse estrato, não significa subordinar a mensagem
religiosa às suas necessidades, mas direcionar a doutrina religiosa a esse
tipo de vida econômica. Essa referência da doutrina em relação as
necessidades cotidianas desse estrato explica, precisamente, em que medida
se pode lograr uma ”moralização da economia”, moderando os estímulos à
atividade econômica descontrolada e propiciando, através do controle dos
desejos e paixões, a entronização do princípio da responsabilidade
individual e da conduta racional e metódica.
Esse aspecto é fundamental para a tese da interpenetração recíproca.
É que, nesse novo quadro, o mundo secularizado das gerações seguintes
não seriam apenas regulados pelos estímulos empíricos de mercado
capitalista e Estado racional-burocrático, como na tese da coisificação do
mundo secular. Essas gerações seguintes seriam também influenciadas pela
ética subjacente e já incorporada e materializada por essas instituições
fundamentais. Assim, todo o potencial normatizador da vida contratual
moderna, ancorado no mercado, e o respeito a direitos humanos
generalizáveis, como base do Estado democrático moderno, remetem a
esse contexto moral que é o pressuposto mesmo da existência dessas
esferas.
Uma visão da modernidade secularizada como incapaz de qualquer
consenso ético, descura, na opinião de Münch, nesse particular seguindo os
passos de Talcott Parsons, o fenômeno da ”generalização valorativa” típica
da modernidade. Segundo essa tese, a modernidade secularizada implicaria
a superação do particularismo ético e não da ética enquanto tal. Ao
moderno sistema escolar e universitário caberiam o ancoramento
institucional possibilitador do princípio da generalização normativa e da
autonomia da personalidade. Para Münch, é precisamente a constituição
desse sistema profissional baseado na escola e na universidade que, em
consonância com as necessidades do mercado e do Estado, permitem a
manutenção em escala ampliada da cultura normativa e do valor da auto-
33 33
Münch. Richard, Die Kultur der Moderne, volumes I e II, Frankfurt, Suhrkamp, 1993, volume I,
pags. 96/127.
24

responsabilidade34.
Apesar de Münch conscientemente ir mais adiante, na sua
argumentação em favor da permanência de uma cultura normativa como
pressuposto do mundo moderno secularizado, do que uma interpretação
estrita da sociologia weberiana permitiria, essa discussão é interessante
para nossos propósitos de várias maneiras. Inicialmente, ela nos lembra que
o arcabouço institucional do mundo individualista e burgues moderno, se
por um lado não pressupõe, necessariamente, uma cultura normativa
substantiva, por outro lado ela é enormemente facilitada por ela. Depois ela
permite um ponto de partida interessante para a análise dos diversos casos
empíricos de modernização que efetivamente ocorreram no ocidente. Esse
ponto de partida nos permite, por exemplo, comparar experiências
históricas concretas segundo a forma mais ou menos consequente na qual a
cultura normativa da modernidade logrou se institucionalizar e permear o
pano de fundo valorativo e normativo de cada sociedade singular. Com
relação a esse último ponto, podemos examinar casos concretos
alternativos de desenvolvimento ocidental, como efetivamente faremos na
segunda parte desse livro, nos perguntando acerca da articulação específica
entre cultura normativa e padrões de institucionalização.
Acrediro ser possível demonstrar que o caso brasileiro é uma
variante peculiar dessa lógica de desenvolvimento, e não o ”outro” dela
como defende nossa sociologia da inautenticidade, apesar de apresentar um
alto grau de seletividade comparativa.

34
São precisamente as profissões que demandam maior auto-responsabilidade as que exigem maior
tempo de permanência no complexo escola/universidade.
25

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