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tecnologia do preconceito
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Lei de Execução Penal.
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me fechado para semi-aberto), concessão de livramento condicional,
bem como a chamada "classificação" do condenado, através da qual
se buscaria adequar o tratamento penitenciário às características e
necessidades de cada preso, todas elas estariam relacionadas a exa-
mes, pareceres ou laudos formulados por "equipes interdisciplinares".
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jo seu destino. Não se pergunta o Judiciário sobre as razões que justi-
I ficam tão elevado prestígio: a engrenagem da repressão utiliza as téc-
I nicas psicológicas como uma peça a mais em sua maquinaria.
Aqui, convém recordarmos que a função primordial do Judiciá-
rio é a de assegurar o domínio e a exploração de uma classe sobre a
outra. Mas, para que esse estado de coisas se perpetue, não se vale a
engrenagem estatal somente de seus meios claramente repressivos e
violentos, mas também de procedimentos técnicos aparentemente mais
humanos e modernos, que constituem apenas estratégias diversas de
dominação.
Se, de um lado, os instrumentos técnicos a que nos referimos
podem ser denunciados por sua "fraqueza" teórica, de outro sobres-
sai seu elevado grau de utilidade. O sistema repressivo pode, assim,
travestir-se de uma roupagem científica, disfarçando até certo ponto
seu papel político-ideológico e modernizando seus métodos.
Tomamos com ponto de partida de nossa reflexão 120 laudos do
E VCP (Exame para Verificação de Cessação de Periculosidade) realizados
no Instituto de Classificação Nelson Hungria no período de 1968 a 1972.
Os EVCP faziam parte dos dispositivos legais do Código Penal
de 1940. Eram realizados ao final dos prazos estabelecidos para as
medidas de segurança impostas aos semi-imputáveis ou aos condena-
dos julgados especialmente perigosos. As referidas medidas de segu-
rança, impostas em combinação com as penas, deveriam ser cumpri-
das em estabelecimentos especiais, onde se processaria o tratamento
por elas pretendido. Como estes estabelecimentos não chegaram de
fato a existir, na maioria dos casos, pena e medida de segurança eram
na prática a mesma coisa.
Os EVCP, que deveriam significar uma espécie de avaliação dos
efeitos do tratamento penal, na prática reduziam-se a uma tentativa de
prever a capacidade de reinserção social do preso, admitindo-se desde
já, pelas condições do sistema penitenciário, que nenhum tratamento
tivesse sido levado a efeito.
Um laudo desfavorável do EVCP significava, na maioria dos ca-
sos, um prolongamento do tempo de reclusão do condenado, a pre-
texto de um tratamento sabidamente inexistente.
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... Com a entrada em vigor do Novo Código Penal e da Nova Lei de
Execução Penal, em janeiro de 1985, não há mais medida de seguran-
ça para os condenados imputáveis. Deixam também de existir os EVCP,
mas, a nosso ver, permanece muito do espírito que os criou. Continua
o Judiciário a nutrir a expectativa de que um parecer técnico possa
prever comportamentos, servindo de base para a execução penal. É de
se observar que a ênfase no diagnóstico do criminoso não pressupõe a
existência real de tratamento ou de modificações nas instituições carcerárias.
No campo penal, o diagnóstico cumpre antes de tudo uma função de
estigmatização e instrumentalização de procedimentos carcerários.
2
Lei de Execução Penal, Título II, Capítulo I, Art. 6o.
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Também nos idos da década de 30 saudou-se o código anterior
como grande inovação e os hoje tão criticados EVCP como grande
avanço científico. Na prática, no entanto, eles se converteram numa
verdadeira fonte de arbitrariedades, concorrendo em última análise para
o encarceramento prolongado ou até perpétuo de muitos prisioneiros
cuja periculosidade jamais foi dada como "cessada" 3 .
3
Cristina Rauter. Criminologia e Poder Político no Brasil. Rio de Janeiro,
Departamento de Filosofia da PUC, Tese de mestrado, mimeo, 1982.
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• _ í
O saber técnico, tão característico do capitalismo moderno, pe-
netra cada vez mais no campo das inter-relações humanas, instru-
mentando novas técnicas de controle sobre a população. No campo
penal e penitenciário, a adoção deste instrumental tem correspondido
a mudanças nos métodos de repressão, que não podem mais aparecer
como violentos à primeira vista, mas dotados de um cunho científico
e de métodos de atuação sobre a subjetividade do encarcerado.
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da doença, seus fatores desencadeantes, seus antecedentes, historiados
pelo médico numa ordem cronológica.
Nos procedimentos judiciais e policiais, busca-se também re-
constituir a história do réu ou do suspeito. Um objetivo claro deve ser
alcançado e é ele que norteia os interrogatórios, os inquéritos, a fala
das testemunhas: a reconstituição do passado "tal como ele ocorreu".
A partir de fatos concretos "vistos" por alguém, a partir da fala do
acusado, fonte de erros e falseamentos e que deve ser deles depurada,
buscar-se-ia chegar à "verdade". Nesta perspectiva, que chamaremos
de jurídico-policial, os "antecedentes" ou a "história pregressa" são
utilizados para condenar ou inocentar, para fornecer elementos para o
julgamento, para incriminar.
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da teoria e da técnica psicanalítica. Embora ao psicanalista não esteja
vedado fazer perguntas, a reconstituição da história individual não é feita
através de respostas dadas a um interrogatório, mas a partir da associa-
ção livre. As distorções ou omissões são parte do material colhido, sendo
determinadas por desejos e motivações inconscientes; ao invés de se-
rem vistas como obstáculos, elas são um material valioso para se
atingir uma compreensão do psiquismo do sujeito.
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isolados acontecidos na vida de alguém, não podemos tirar conclu-
í sões seguras sobre seus efeitos sobre a personalidade. Tomemos, por
exemplo, um fato geralmente aceito como traumático: a morte da mãe
de uma criança na primeira infância. Como um dado isolado, nem
mesmo este exemplo extremo nos autoriza a fazer previsões sobre o
futuro psicológico do indivíduo que tivesse sofrido esta perda. Há
crianças que encontram um substituto satisfatório e, embora viven-
ciando grande perda afetiva, esta não deixa marcas duradouras em
sua personalidade. Há certamente aqueles casos em que a vivência
provavelmente contribui para a eclosão de uma psicose ou neurose
grave. Por outro lado, há também psicóticos graves em cuja história
clínica não se encontram acontecimentos familiares deste tipo.
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pequenos furtos? egresso da Funabem?), passando pela vida no cár-
cere (cometeu muitas infrações disciplinares? tentou fugir?) e assim
por diante, atentando-se para uma trilha de oposições, de pequenos
atos de indisciplina.
Na verdade, a história pregressa é uma montagem, cuja finalida-
de é confirmar no indivíduo o rótulo de criminoso.
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• Famílias onde a mãe bebe, está presa, é prostituta, etc.
Podem ser encontradas nos EVCP interpretações como "ausên-
cia da figura do pai" gerando conflitos de personalidade variados; ca-
rências afetivas gerando mecanismos de compensação que podem in-
duzir, por exemplo, à prática do roubo; identificações anômalas com
figuras parentais "não recomendáveis": bêbados, prostitutas, etc., etc.
Mas o principal eixo interpretativo é aquele que reconhece no preso as
chamadas "carências infantis", confundindo num só bloco carências
afetivas e carências materiais. Um sem-número de situações são apon-
tadas como geradoras deste tipo de carências e, quando tentamos
listá-las, concluímos que qualquer acontecimento familiar pode ser
tomado como causa: morte de genitores, separações, brigas de mari-
do e mulher, traições, vícios e até mudanças freqüente de domicílio. O
fato de a mãe ter que trabalhar fora e deixar o filho sob os cuidados de
outrem, o fato de o pai ter que se ausentar do lar por longos períodos
devido ao trabalho, todos estes incidentes podem ser daninhos à per-
sonalidade da criança, segundo nossos peritos.
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sultado mesmo das condições a que são submetidos imensos setores
da população brasileira.
Nunca se pensa, por outro lado, que estas mesmas condições pos-
sam gerar fenômenos positivos, ou seja, formas diversas de organização
familiar, valores diversos dos das classes dominantes, colocando-os em
questão. Nenhuma palavra, é claro, sobre a luta de classes. Todas as
atenções estão voltadas para detectar carências; fenômenos de falta e
deterioração e nunca de contradição e diversidade.
4
Anuário Estatístico do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de
Janeiro, 1984.
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2. Presença de valores morais e formas de organização familiar
' diversos daqueles das classes dominantes.
Estes dois enfoques não são excludentes, mas complementares.
De fato, numa casa onde dormem no mesmo cômodo pai, mãe, filhos,
como é freqüente nas classes populares, pratica-se por certo outras
maneiras de se relacionar com o corpo. Quantas situações e proble-
mas levantados pela psicanálise teriam que ser repensados neste con-
texto: a nudez dos pais e a tão falada "cena primária", a informação
sexual das crianças, etc.
Esta é por certo uma questão complexa. Por um lado, é verdade
que a dominação cultural exercida pelas elites generaliza ou busca ge-
neralizar por toda a sociedade determinados padrões de moralidade e
de comportamento sexual. Porém, é verdade também que há outras
formas de comportamento sexual, de relacionamento familiar, pratica-
das na sociedade, ensejando idéias e preceitos morais diversos daque-
les difundidos pelas classes dominantes, através de seus dispositivos
de controle social. Desse modo, podemos imaginar um sem-número
de situações que apontariam para a existência de uma moral diversa
daquela das classes dominantes, que, no entanto, será sistematica-
mente reprimida por esta, no sentido de manter sua hegemonia cultu-
ral, também neste campo, o da moral sexual 5 .
5
Jos van Ussel. Repressão sexual. Rio de Janeiro, Campus, 1990, p. 57.
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Assim, aparecem concepções de deterioração cultural, desvirtuamen-
to ou até mesmo de estados de "incultura" que levariam à produção do
fenômeno crime. Se o detento é um favelado, se provém do meio
rural, se foi criado numa instituição para menores infratores, todos
estes antecedentes podem levar a este tipo de interpretação.
Em alguns casos, as concepções mostram-se de tal forma auto-
ritárias e eugênicas que dispensariam uma crítica mais profunda. Evi-
dentemente, a caracterização de determinada manifestação cultural como
"subcultura" visa claramente a enaltecer e confirmar a cultura e os
valores das elites dominantes. Tal como o colonizador inglês, que olhava
as "curiosas" manifestações culturais de seus súditos africanos e hindus
com altiva superioridade, assim se comportam nossos peritos ao con-
siderarem como "subcultura" o morro carioca ou o interior do Brasil.
Além disso, toda cultura é suficiente para formação de um indivíduo,
não importando quão bizarra ela pareça ao observador. A estranheza
experimentada por quem observa decorre do choque entre a sua pró-
pria cultura e aquela que tem diante de si.
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Cabe aqui uma reflexão sobre a questão política que permeia a
questão cultural 6 . É certo que existem diferenças culturais entre os
vários segmentos na sociedade, entretanto a idéia de diferença deve
ser acoplada à idéia de contradição. É verdade também que "as idéias
dominantes de uma época são as idéias da classe dominante" 7 , assim
a cultura da classe dominante é efetivamente hegemônica em relação
às demais classes. Por outro lado, os segmentos "dominados" da so-
ciedade não sofrem apenas passivamente a dominação. Da mesma
forma, sua produção cultural entra em contradição com as formas
culturais das elites, havendo áreas ou segmentos onde esta dominação
não consegue se efetivar. Ora, o discurso que permeia os laudos exa-
minados localiza acertadamente a existência de diferenças culturais,
mas entende-as como desvio relativamente a um padrão básico, que é
a cultura das elites. Não há enfrentamentos, não há luta, não se vê
qualquer caráter positivo na diferença cultural. A violência entre as
classes, inequivocamente expressa em muitos crimes, é escamoteada
ou aparece desqualificada como produto patológico, negativo.
Mas, vejamos que soluções são apontadas nos laudos para esta
diversificação cultural, tão nefasta, por ser a geradora de criminalidade.
Trata-se de um processo que poderíamos chamar de exercício de
dominação cultural "à força". Encarcere-se este desaculturado!... A
prisão seria uma espécie de nivelador cultural compulsório, atuando
através da disciplina, do trabalho, do aprendizado da obediência à lei,
etc. Nestes locais de subcultura (o morro, as favelas, o sertão), impe-
rariam outras leis ou nenhuma lei: far-se-ia necessário que o crimino-
so aprendesse as "nossas leis", por bem ou por mal.
6
Marilena Chaui. "Cultura do povo e autoritarismo das elites", in Cultura
e democracia. São Paulo, Moderna, 1981.
7
Karl Marx e Frederico Engels. La ideologia alemana. Buenos Aires,
Pueblos Unidos, 1973, p.50.
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concepção, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, anal-
fabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmente 8 .
O que os laudos fazem é reproduzir o estigma do criminoso,
detectando carências familiares, subculturas, descontroles afetivos,
todos eles localizados nos segmentos mais pobres da população.
4. Funcionários do cárcere
Uma instituição não é algo abstrato que paira acima das cabeças
daqueles que nela trabalham. Ela se reproduz cotidianamente nas dife-
rentes tarefas que a constituem. É assim que, cada qual a seu modo,
do guarda ao diretor do presídio, do psicólogo ao psiquiatra ou assis-
tente social, todos se encontram envolvidos na tarefa última e mais
importante que é a colocação em marcha da engrenagem carcerária.
E assim que muitas afirmações contidas nos laudos examinados só
ganharão sentido se as compreendermos enquanto evidência desta
condição primordial do técnico, que, antes de estar compromissado
com possíveis ideais de sua profissão ou quaisquer outros, é um fun-
cionário do cárcere. Tomemos inicialmente a própria situação de exa-
me que se estabelece entre um técnico e um preso. Se se tratasse de
um outro contexto, o de um consultório, clínica psicológica ou psi-
quiátrica, o técnico teria como requisito básico de sua tarefa de exa-
minador a criação de uma atmosfera de confiança e amistosidade,
sem a qual os resultados poderiam até ser prejudicados. Vejamos o
que dizem a esse respeito os manuais de testes psicológicos, usados
com freqüência neste campo:
8
Augusto Thompson. Quem são os criminosos? Rio, Achiamé, 1983, p. 63.
9
Ewald Bohn. Manual dei psicocliagnóstico de Rorschach. Madri, Morata,
1971, p. 26.
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. "relação de confiança". As relações estabelecidas numa instituição to-
tal entre aqueles que estão a ela submetidos e as diversas categorias
funcionais que compõem a instituição estão marcadas, de imediato,
por um desequilíbrio de poder, por uma situação de controle e opres-
são exercida pelo funcionário (técnico ou guarda) sobre o preso, que
se estabelece até mesmo independente de sua vontade. Esta situação,
que poderia ser simplificadamente descrita como uma condição fun-
damental entre os que "têm a chave" da cadeia e os que não a têm,
está presente na situação de exame.
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Art. 24 - Somente o examinando e a critério do psicólogo pode-
rá ser informado dos resultados dos exames.
Art. 25 - Se o atendimento for realizado a pedido de outrem, só
poderão ser dadas as informações a quem o solicitou dentro
dos limites do estritamente necessário e com a anuência do exa-
minando.
§ Io - É vedado ao psicólogo remeter informações confiden-
ciais a pessoas ou entidades que não estejam obrigadas a sigilo
por código de ética ou que, por qualquer forma, permitam a
estranhos o acesso às informações.
§ 2° - Nos casos de laudo pericial, o psicólogo deverá tomar
todas as precauções a fim de que, servindo à autoridade que o
designou, não venha a expor indevida e desnecessariamente seu
examinando.
Numa situação de exame estabelecida no interior de uma institui-
ção carcerária, sabidamente os resultados dos mesmos, alguns deles
supostamente reveladores "dos mais íntimos recônditos da persona-
lidade", não serão matéria privativa do técnico e de seu examinando. Ao
contrário, poderão ser veiculados no interior de equipes interdisciplinares,
das quais participam inclusive elementos da segurança do estabelecimen-
to. Serão remetidos ao juiz solicitante ou a outras autoridades judiciárias.
Freqüentemente o examinado será o último a saber (ou não saberá) dos
resultados do processo a que se submeteu. Quanto a consultá-lo sobre
que informações deseja ver transmitidas, nem pensar...
100
Ora, nesta relação surgirá um fenômeno interessante, referido
nos laudos. O da dúvida sempre cruel com que se debatem os técni-
cos: estará o preso dizendo a verdade? estarei diante de uma farsa ou
simulação? Por isso os laudos irão conferir significativo valor à atitu-
de do entrevistado: se colaborou, se não colaborou, se exibiu atitude
subserviente ou se, pelo contrário, procurava desafiar a autoridade do
examinador; se procurava impressionar de modo forçado, se dava
mostras de convicção, etc.
101
Mais espantosa se torna a idéia de se tomar o conteúdo dos autos
como expressão da verdade, quanto pensamos sobre as condições em
que muitas vezes terão sido julgados estes condenados: provas duvidosas
ou falsas obtidas até mediante tortura, ausência de defensor, etc. Segun-
do Augusto Thompson, "a grande maioria dos pobres é julgada sem defe-
sa, ou, o que dá no mesmo, com um simulacro de defesa" 10 .
Mais realistas do que o rei, nossos peritos se conduzem como se
de fato a justiça fosse "cega" e descompromissada. Evidencia-se, pela
leitura dos laudos de exame, a crença numa Justiça imparcial, acima
das classes, uma espécie de regulador apolítico da ordem social. Tal
crença equivale também a uma despolitização do próprio papel do téc-
nico, que dessa maneira atua em continuidade com o Judiciário, exer-
cendo dominação e controle sobre as populações pobres.
5. O tratamento penitenciário
Os antigos EVCP propunham-se teoricamente a avaliar os efeitos
do que se convencionou chamar "tratamento penitenciário". E neste
ponto também o conteúdo dos laudos que examinamos evidenciou o
grau de compromisso dos técnicos com a instituição carcerária. Aparece,
curiosamente, uma visão segundo a qual se crê na eficácia da prisão, nos
resultados positivos que ela pode proporcionar ao indivíduo.
A prisão é freqüentemente descrita como o lugar onde vai se operar
uma transformação na personalidade do preso. Assim, ela teria como
virtude possibilitar a reflexão, a introspecção, o arrependimento. Pela dis-
ciplina ela possibilitaria a internalização da lei, a aquisição de valores mo-
rais, substituindo um estado de incultura ou uma subcultura por uma
cultura caracterizada pelo respeito à lei e à ordem. A pena-prisão, segun-
do opiniões expressas nos laudos, é, enfim, regeneradora.
10
Augusto Thompson, op. cit., p. 96.
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prisões. O trabalho prisional atende, além disso, a muitos interesses para
além da "recuperação" do preso. No cárcere tudo se converte em um
bem negociável e isto também ocorre com as oportunidades de trabalho.
Muitas vezes uma ocupação é o prêmio por uma cagüetagem, a oportuni-
dade de estar mais próximo da administração e com isso obter certas
vantagens, como o acesso mais fácil ao mundo lá fora, uma classificação
melhor de comportamento, proteção contra os inimigos na cadeia, ali-
mentação melhor, etc.
103
; . , : I
zando um ideal antigo do capitalismo: o trabalhador barato, servil, que
deseja apenas trabalhar, exigindo muito pouco.
Assim, o fato de um preso trabalhar no cárcere diz pouco sobre
suas possibilidades de reinserção social e muito sobre sua situação no
j o g o de poder institucional. Não trabalhar pode significar, por outro
lado, apenas não ter tido acesso a este privilégio. Novamente neste
ponto manifesta-se o compromisso dos técnicos do "sistema" com a
criação de uma imagem "de fachada" da prisão, quando consideram
que quem trabalha está dando mostras de recuperação, por exemplo.
A crença na eficácia do chamado tratamento penitenciário é algo
que dificilmente poderá ser compartilhado por teóricos ou mesmo
autoridades na área. Tem sido exaustivamente demonstrado que a pri-
são, ao contrário de qualquer efeito recuperador sobre o delinqüente,
parece ter sempre como subproduto indesejável a reincidência e a
preparação para uma carreira de criminoso crônico da qual é quase
impossível escapar.
Isolado de seus laços familiares, ao indivíduo preso só resta es-
tabelecer novos laços com possíveis futuros cúmplices. Estigmatiza-
do como ex-presidiário, freqüentemente retorna ao mundo extra-mu-
ros sem esclarecimentos ou orientação sobre os documentos de que
necessita, ou sobre como conseguir emprego. É presa fácil da polícia
num país de desempregados, onde estar sem trabalho era considerado
até há pouco tempo como crime ("vadiagem") e onde ter estado no
cárcere significa ter uma ficha "suja".
Tudo se passa como se a prisão produzisse exatamente o con-
trário daquilo que seria sua missão primordial, como se ao invés de
curar o criminoso ela agravasse o seu mal. Este fracasso da prisão
tem sido exaustivamente admitido até mesmo por autoridades do sis-
tema penitenciário, policiais, autoridades judiciárias. As críticas e ten-
tativas reformadoras são tão antigas quanto a própria prisão. E, no
entanto, sua realidade quase imutável tem desafiado todas elas como
se delas zombasse.
E se, aceitando a proposta de Foucault 1 2 , invertêssemos a or-
12
Michel Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977, p. 243-7.
104
dem lógica de nossa análise e ao invés de fracasso (um fenômeno
negativo) enxergássemos um fenômeno positivo, ou seja, entendêsse-
mos que o fracasso da prisão tem uma utilidade? Pois ele se liga a uma
de suas funções políticas, que é a "produção da delinqüência".
Não que haja um interesse direto, personificado num governo ou
autoridade determinada na produção de um fenômeno que, em última
análise, seria contra seus próprios interesses. O que a prisão tem como
função reproduzir, enquanto sistema, são estigmas sociais que permi-
tem confundir crime e pobreza, colocando sob suspeição e vigilância
permanente parcelas despossuídas da população.
Através da produção destes estigmas, o crime pode aparecer
como produto de uma individualidade especial, selvagem, animal, ca-
rente afetiva e materialmente, sem cultura, etc. O criminoso seria um
anormal, quase sempre doente. Seu mal seria, no entanto, incurável,
já que retorna repetidas vezes à prisão. Despolitiza-se deste modo a
questão do crime, pois em última análise o que se quer apagar são os
parentescos do mesmo com as revoltas populares, com as outras
formas de ilegalidade que configuram oposição ao Estado burguês e
suas instituições. São os parentescos do criminoso "comum" com o
chamado criminoso "político", ou, o que seria mais terrível, com o
homem comum, que, embora vivendo as mesmas condições de ex-
ploração, talvez não tenha tido coragem ou força para se revoltar.
105
mente, sempre fracassamos e acabamos encarcerando simplesmente.
Mas fazemos o possível...
Tal necessidade de mascarar a violência exercida pelo Judiciário,
pelo Estado em última análise, articula-se com uma estratégia política
mais ampla: nas sociedades capitalistas modernas os mecanismos re-
pressivos são mais e mais substituídos por mecanismos de controle
internalizados pelos indivíduos. Os controles institucionais podem ser
menos violentos e mais sutis, pois agem sobre o indivíduo previamen-
te disciplinarizado, desde a família, a escola, etc.
Que dizer sobre os efeitos da experiência carcerária sobre o indi-
víduo que a sofre? Sabemos que uma vida exemplar no cárcere pode
apenas significar adequação às normas disciplinares, nada tendo a ver
com a saúde psíquica que certamente seria necessária para que um
indivíduo pudesse, à saída da prisão, reorganizar sua vida, vencer o
estigma do criminoso e do ex-presidiário, arrumar um emprego, "re-
generar-se" enfim.
G o f f m a n 1 3 denomina "mortificação do eu" a conseqüência
psicológica da permanência em instituições totais, aquelas instituições
onde estão presentes as formas mais acabadas de controle sobre os
indivíduos. Nestas instituições a intimidade, a privacidade são siste-
maticamente violadas em razão dos objetivos institucionais, através,
por exemplo, da censura da correspondência, da impossibilidade de o
indivíduo ter padrões pessoais de conduta (os horários e locais de
refeições, de dormir, acordar, por exemplo, são coletivos). Restam ao
indivíduo poucas possibilidades para manifestação do seu eu (que é
algo não uniformizável), o que não se dá sem uma conseqüência so-
bre a personalidade, a "mortificação do eu".
13
Erving Goffman. Manicômio, prisões e conventos. São Paulo, Perspec-
tiva, 1974.
106
Felizmente, nem todos os indivíduos se submetem à disciplina
carcerária, tornando-se mortos-vivos, autômatos que apenas cum-
prem ordens.
6. Conclusão
107
"A personalidade rude do interno atribuímos ao ambiente agrí-
cola em que se criou, local onde desde cedo as crianças habituam-se
ao trabalho, não sobrando tempo para folguedos. Não teve tempo
para uma vida afetiva pois ainda menor conheceu as celas do presídio
policial" (EVCP 24-1968).
108
"O periciado teve uma infância muito atribulada, precisando cons-
tantemente mudar de cidade... é comum sofrer a criança com as mi-
grações de sua família: a mudança de ambiente, os gastos econômi-
cos produzem períodos de desadaptação na família... É evidente o
ambiente de insegurança em que formou sua personalidade, sendo
fácil presa da contravenção e do crime" (EVCP 52-1969).
4. Funcionários do cárcere
109
respostas, quando inquirido sobre sentimentos espirituais superiores..."
(EVCP 254-1972).
5. O tratamento penitenciário
110
"Há quase oito anos e meio no cárcere, permanece como ele-
mento trabalhador... acha-se totalmente adaptado à penitenciária,
onde trabalha como cozinheiro... o tempo é suficiente para uma nova
colocação e adequação da agressividade, reflexão. Está pronto. Ces-
sada a periculosidade" (EVCP 255-1972).
"Aprendeu que existe uma justiça que deve ser respeitada, à qual
podemos recorrer toda vez que nos sentimos ofendidos em nossos
direitos" (EVCP 28-1968).
Bibliografia
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