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O SÍMBOLO ESVAZIADO: A TEORIA DO ROMANCE


DO JOVEM GYÖRGY LUKÁCS

Arlenice Almeida da Silva1

■ RESUMO: O presente artigo investiga como A teoria do romance (1916) de G.


Lukács, um texto fragmentado e de ocasião, tornou-se um clássico da reflexão so-
bre a modernidade. Para Lukács, o romance é a forma artística que corresponde
à fratura entre o sujeito e o mundo, vivida pelo homem contemporâneo. Utilizan-
do o conceito de “símbolo esvaziado” este texto apreende em que medida o autor
ao rever as classificações anteriores sobre o gênero romance, perpetua a tradição
romântica ou rompe com ela, elaborando conceitos originais para a compreensão
da modernidade na literatura.
■ PALAVRAS-CHAVE: Lukács, romance, modernidade, romantismo, simbolização.

A vida de um homem verdadeiramente exemplar


deve ser integralmente simbólica.
Friedrich Novalis

Por que um texto torna-se clássico? Por que continua sendo lido pelas
gerações seguintes? A perenidade de um ensaio soturno como A teoria do ro-
mance de G. Lukács, publicado pela primeira vez em 1916, e o esquecimento
de suas outras obras mais solares, desconcerta. Melancolia, desintegração,
dissolução, incompatibilidade, abismo entre pensamento e vida, fratura entre
as exigências da inteligência e as da ação: eis os termos utilizados para no-
mear a inexorável modernidade que a forma romance sintetiza.
Qual seria o poder de atração do texto? A contundência de seu conteú-
do ou as imprecisões e arestas formais? Sabemos que ele foi pensado como

1 Arlenice Almeida da Silva é Professora Assistente-Doutora no Departamento de Filosofia da FFC-


Unesp, campus de Marília.

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uma introdução a uma reflexão sobre a obra de Dostoiévski, mas que, na


verdade, foi publicado isolado e antecipadamente, em função da percepção
de que tinha seu autor de que ele repercutia elementos de sua época, pos-
sibilitando tornar-se, assim, uma expressão de “desespero” diante da as-
sombrosa Europa da Primeira Guerra Mundial. Pelas declarações posterio-
res do próprio autor, sabemos, ainda, que o diagnóstico inexorável e radical
anunciava ao mesmo tempo o estado terminal em que a Europa vivia e uma
crise cultural que ultrapassava o momento histórico da Guerra, em direção
a um questionamento mais amplo e, de resto, apocalíptico – “Quem nos sal-
va da civilização ocidental?” perguntava o jovem Lukács.
A interrogação perturbadora prenunciava a tragédia inerente à vitória
da civilização na própria escrita, na forma do ensaio, em uma exposição que
não dissolve as tensões, a confusão dos limites e territórios, muito menos
esconde a angústia do autor diante de sua desesperada busca pelo sentido
em um mundo convencional e opaco. Mesmo que ao final A teoria do ro-
mance desemboque em um pequeno vislumbre de esperança, predomina
uma narrativa que se demora mais na caracterização dos tempos opacos do
que nos harmoniosos, resultando daí uma estrutura teórica de recorte tem-
poral marcada por elipses e imprecisões: não sabemos quando, nem exata-
mente porquê perdemos a harmonia, isto é, a imanência do sentido à vida.
Parece não importar saber em que momento a soleira foi atravessada. Basta
reconhecer, apenas, que não estamos em casa, que nossa condição é a de
desterro e que nos encontramos sem deus, mas ainda sob a sina de uma
“época da perfeita pecaminosidade”.
A ausência de balizas históricas concretas atordoa o leitor e reforça a
dimensão metafísica do texto: de um lado, encontramos um jovem Lukács
idealista, neo-romântico, anticapitalista, que fala em valores, essência,
substância, conceitos universais, e, de outro, paralelamente, um autor que
busca considerar o legado hegeliano, pensar as categorias estéticas em um
plano histórico e não apenas normativo, ao estudar “a dialética histórico-
filosófica das formas de arte”. 2 Talvez, por essa razão A teoria do romance
precise ser inscrita entre a tradição tratadística, que caracterizava a refle-
xão sobre a arte até meados do século XVIII e que, como os antigos, busca-
va pensar o efeito da arte em um determinado público, e a estética dita
romântica centrada na especulação sobre a autonomia da arte e, em parti-

2 O legado hegeliano n´A teoria do romance é um assunto polêmico. Peter Szondi observa que a
antinomia entre sistema e história, presente na obra de Hegel, atua como um tipo de explosivo
que provocará o desmoronamento da estética hegeliana e preparará, sobre suas ruínas, o funda-
mento de uma estética histórica, sem intenção sistemática, no Jovem Lukács e em Walter Benja-
min (Szondi, 1974, p.273).

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cular, na especificidade histórica do gênero romance. As dificuldades do


texto decorrem, em parte, desses afastamentos e aproximações que o texto
estabelece seja com o referencial antigo, seja com o idealismo alemão e,
particularmente, com o que chamamos, grosso modo, de Romantismo. A
intuição desse texto é a de que o debate sobre tais problemas conceituais
lance uma luz sobre o apelo “clássico”, quase um século depois, de A teoria
do romance.
Se começarmos pelo fim, sabemos qual a direção da trajetória posterior
do autor: a de historicizar radicalmente as formas literárias e condenar o ca-
ráter abstrato e idealista dos resultados de A teoria do romance; para tanto
basta ler o contundente prefácio de 1962.3 Trajetória que, se observada com
lentes históricas, revela uma rota de fuga do niilismo e do desencantamento
que A teoria do romance expressava e a literatura moderna de vanguarda,
segundo Lukács, cada vez mais encerrava o leitor. Sua tentativa, a partir
dos anos 1920, era a de ver no romance realista clássico – Scott, Balzac,
Tolstoi, – a herança da capacidade narrativa que, ao configurar as experiên-
cias vividas, teria possibilitado ao gênero épico conferir novamente algum
sentido à vida.
Contudo, para um ensaio que tem como marca de sua fortuna crítica
ter sido lido de forma autônoma, talvez seja ainda mais urgente retardar um
pouco o desfecho da trajetória do autor, para que o texto possa ainda ser
compreendido também retrospectivamente.4 Portando, qual a singularida-
de deste texto de juventude? Qual a distância que o autor estabelece com o
romantismo? Inicialmente, seria interessante perguntar por que Lukács
perpetua e retoma em 1914-15 balizas produzidas pela “Goethezeit”, ou se-
ja, qual a distância que A teoria do romance estabelece com esta tradição?5

3 Sabe-se, por outro lado, que A teoria do romance foi concebida como uma introdução e uma apre-
sentação histórico-filosófica da obra poética de Dostoiévsky que, para M. Löwy, “ultrapassaria o
terreno puramente estético e literário em direção a uma problemática ético-política” (cf. Löwy,
1979, pp.123-9). Sugestão que foi levada a bom termo por Carlos Eduardo Jordão Machado, em As
formas e a vida, ao tomar as “Anotações sobre Dostoiévski” como a “verdade” d´A teoria do ro-
mance. Para ele, “apesar de Lukács colocar-se como tarefa mostrar de que modo o romance se
constitui enquanto forma literária da modernidade par excellence, As Anotações e esboços sobre
Dostoiévski estão em conexão direta com a interpretação das relações contrapostas entre forma e
vida dos ensaios de A Alma e as formas. Estes últimos oferecem uma “metafísica da tragédia” e
as Anotações, uma “metafísica da épica” (Machado, 2004, p.61).
4 Vale destacar e relembrar que Fredric Jameson propôs, com brilho e originalidade, o caminho in-
verso, ou seja, compreender os primeiros trabalhos de Lukács à luz dos últimos (cf. Jameson,
1985, p.129).
5 Rochlitz demonstra que desde 1907, a partir de seu ensaio sobre Novalis, Lukács já procurava re-
alizar uma crítica ao romantismo, mas ainda no plano de uma filosofia da arte. Neste sentido, A
teoria do romance seria uma continuação ampliada deste projeto, agora na direção de uma análi-
se histórico-filosófica (cf. Rochlitz, 1981, p.10).

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A cisão que o ensaio revela não é original, pois já era clássica a contra-
posição entre os antigos e os modernos; entre uma experiência da antigui-
dade vivida e apresentada como uma unidade perfeita e o mundo moderno
vivido como cindido. Ora, tal contraposição já estava presente no primeiro ro-
mantismo em Winckelmann6 e em sua reflexão sobre a arte grega e, em F.
Schlegel, só para mencionarmos dois representantes da mesma tendência. Se
Winckelmann apenas constata a cisão, F. Schlegel, talvez uma das influências
mais decisivas no jovem Lukács, contrapõe em uma filosofia da história a ex-
periência da antiguidade à da época moderna. Enquanto a primeira teria sido
marcada por uma formação natural (naturliche Bildung), dotada de coesão e
unidade, a segunda assinalaria uma formação artificial (kunstliche Bildung),
na qual imperaria a fragmentação, a força do particular e de uma “individua-
lidade original e interessante”, ou seja, positivamente, um espaço no qual se
daria a emancipação do entendimento (cf.Szondi, 1974, p.96).
Em Lukács, a cisão é da mesma raiz, e o problema que é colocado para
a arte é semelhante: consiste em acatar a cisão e encontrar uma expressão
adequada para expressá-la. Mas, aqui, não se trata de tomar como modelo
ou imitar a “perfeição” dos antigos, como em Winckelmann, nem de superar
a fratura, afastando-se da antiguidade e anunciando a dissolução dos gêne-
ros e o surgimento de um gênero único na poesia romântica, como em Sch-
legel, mas de marcar a cisão, afirmar sua presença, ousando, assim, perma-
necer no “meramente existente”; denunciando, enfim, a impossibilidade de
fazer ressurgir a epopéia antiga na moderna civilização. Se não é mais pos-
sível qualquer renovação ou imitação criativa, resta pensar o romance, o
épico moderno, em sua especificidade histórica, penetrando na experiência
conflitante do dilaceramento, suspendendo a reconciliação, suportando a
cisão ao máximo, a ponto de torná-la símbolo da modernidade.
O fim da antiguidade é constatado pela morte da épica antiga, reforça-
do e marcado pela cisão entre a subjetividade e o sentido, que se traduz na
necessidade de uma nova forma, o romance. Trata-se, agora, de marcar
essa distância, essa nova situação transcendental, ou seja, perceber que se
trata da transição de uma transcendência divina para outra secular, chama-
da por Lukács de “demoníaca”, isto é, de entender o romance como “ex-
pressão simbólica” da impossibilidade da harmonia no mundo.
Neste sentido, o conceito que ajuda a pensar essa novidade é o de
símbolo, não por acaso a marca central da estética romântica. Como o jo-

6 Winckelmann teria delineado pela primeira vez o problema ao constatar a diferença entre os an-
tigos e modernos, ao falar que os antigos seriam ‘unidos’ e harmoniosos e sua arte dotada de ‘no-
bre simplicidade e grandeza serena’, e os modernos ‘cindidos’, referindo-se à separação entre
alma e corpo, sujeito e mundo em Geschichte der Kunst des Altertums, publicado em 1764.

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vem Lukács, ao refletir sobre o romance, pensa o problema da significação


em arte?7 Ela é um signo arbitrário que designa por convenção, como nos
antigos e como ainda em Moritz; ou a “unidade de ser e significação”, na
qual o signo artístico é entendido como instante místico, em que se dá
uma experiência simbólica que remete a algo exterior a obra de arte? O
símbolo é pensado, nos termos de Kant, como o que é “próprio à maneira
intuitiva e sensitiva de apreensão das coisas” (Kant, 1993, pp.195-9)? Ou
ainda, como podemos situar A teoria do romance diante do paradoxo pro-
vocativo de Adorno: “a representação ou é realista ou é simbólica” (Ador-
no, 1998, p.240)?
Em primeiro lugar, o centro da cisão é o conceito de totalidade, presen-
te também em boa parte da estética romântica. Mas enquanto, em linhas
gerais, os românticos falavam em totalidade na obra, em “intuição do todo
indistinto” (Novalis,1988, p.131); deslocamento em direção ao indetermina-
do, ao inesgotável, ao futuro, pela e na obra, Lukács fala em totalidade do
ser. Assim, seguindo a tradição metafísica minada pela crise kantiana,
Lukács pensa o ser, sua existência no mundo e, principalmente, como Fi-
chte, sustenta o primado da razão prática. O que lhe permite reconhecer
uma cisão que se dá na relação de representação entre a obra e o mundo, e
não na relação de expressão entre a obra e o artista (cf. Todorov, 1977,
p.186). Tal manobra problemática permite-lhe acatar o rompimento com o
referencial antigo, mas continuar rendendo-lhe homenagens póstumas. A
obra, no caso, a epopéia antiga que continua lhe servindo de modelo com-
parativo, configurava o mundo entendido como totalidade auto-suficiente;
na Grécia o acontecimento era figurado ao adquirir peso e importância para
a comunidade, índice de vinculação de um destino com a totalidade. A for-
ma épica correspondia, assim, a uma estrutura temporal: a epopéia antiga
assinalava uma integração entre o “eu e o mundo, ser e destino, aventura e
perfeição, vida e essência”. O sentido era conhecido, “palpável e abarcável
com a vista” e o espírito apenas acolhia ou identificava tal sentido. De tal
forma que era o princípio da imitação o elemento formal que definia essas
culturas fechadas e homogêneas: “criar”, diz Lukács, significava “apenas
copiar essencialidades visíveis e eternas” (Lukács, 2000, p.29). Não havia
separação entre estética e ética, entre o belo e o útil, nos termos de Lukács,
pois “toda a ação é somente um traje bem-talhado da alma” (idem, p.26).

7 Posteriormente, na produção estética a partir dos anos de 1930, Lukács se tornará um crítico da sim-
bolização, em nome do realismo.O símbolo será visto como um “sucedâneo infeliz para a íntima po-
esia humana, uma tentativa de suprir com meios artificiais a pobreza interior dos homens e dos
acontecimentos”,ou ainda “a ilusão de que as coisas podem ter um significado autônomo”, que é a
seu ver a fonte do simbólico (Lukács, 1960, pp.74-98; também cf. Jameson, 1971, pp.197-9).

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Na modernidade, diferentemente, não é mais possível um acordo perfeito


entre o indivíduo e o mundo, uma vez que o primeiro tornou-se problemático
e o segundo, contingente; “não há mais totalidade espontânea do ser”; ela é
oculta, fugidia. E a forma romance anuncia justamente essa situação de com-
pleto desterro. Contudo, os homens não cessam de almejar a totalidade perdi-
da. Se antes a totalidade era espontânea, imediata, agora ela é artificial, pro-
dutora: ao mesmo tempo desejo, ausência e signo de um desmoronamento.

A arte, a realidade visionária do mundo que nos é adequado, tornou-se assim


independente: ela não é mais uma cópia, pois todos os modelos desapareceram; é
uma totalidade criada, pois a unidade natural das esferas metafísicas foi rompida
para sempre. (Lukács, 2000, p.34)

Ora, se a Grécia é o passado morto, se não é possível nenhuma ressur-


reição do helenismo, se o mundo não é mais homogêneo, se a condição mo-
derna é a da fragmentação, como falar em unidade do ser com o mundo, em
uma transcendência tornada real? Como o romance pode articular uma vida
tornando-a essencial ou estabelecer os liames entre transcendência e ima-
nência, entre ser e mundo? Não seria um procedimento fadado ao fracasso?
A solução encontrada por Lukács é original, pois por meio de um pro-
cedimento que chamaremos de uma simbolização esvaziada, ele dialoga
ainda com o referencial antigo e, ao mesmo tempo, afasta-se das soluções
românticas dadas ao problema da relação entre natureza e história. Ou seja,
para Lukács o romance não é uma apoteose formal, síntese de todos os gê-
neros, como em F. Schlegel, mas ele tem uma especificidade, uma configu-
ração própria na caracterização do tempo que precisa ser desvendada. Os
românticos, como F. Schlegel, caracterizavam o presente como um tempo
intermediário, 8 uma etapa provisória, – “um tempo que não é mais, e que
ainda não é” –, mas que será no futuro um outro, no qual por meio da ampli-
ação que a obra de arte incitaria – a poesia do infinito (Novalis) – a cisão
poderia ser ultrapassada. No famoso fragmento 116, Schlegel afirma:
Somente a poesia [romântica] pode se tornar, como a epopéia, um espelho do
inteiro mundo circundante, um retrato da época. E, contudo pode também, no mais
das vezes, pairar suspensa nas asas da reflexão poética, eqüidistante do que é ex-
posto e daquele que expõe, livre de qualquer interesse real ou ideal, e potenciar con-
tinuamente essa reflexão, multiplicá-la como em uma infinita série de espelhos.
(Schlegel,1994, p.99)

8 Peter Szondi observa que em Schlegel temos um dos “traços essenciais da filosofia moderna da
história: a concepção do tempo como sendo um tempo intermediário, um ‘não mais’ e um ‘ainda
não’, cuja negatividade não adquire sentido a não ser que se advirta que a tese é passado, e que
o pressentimento de uma síntese é utopia” (cf. Szondi, 1974, p.96).

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Para Lukács o tempo presente é constitutivo e não um tempo interme-


diário. Como vimos, A teoria do romance demora-se no presente, naquilo
que é, denunciando a ingenuidade e melancolia dessa subjetividade torna-
da seu próprio objeto, que tem de refletir por não poder agir, dessa “alma
vergada sob os ideais”. Todo o arcabouço argumentativo da obra visa a
acentuar o recorte temporal:
A vida própria da interioridade só é possível e necessária, então, quando a dis-
paridade entre os homens tornou-se um abismo intransponível; quando os deuses se
calam e nem o sacrifício nem o êxtase são capazes de puxar pela língua de seus mis-
térios; quando o mundo das ações desprende-se dos homens e, por essa indepen-
dência, torna-se oco e incapaz de assimilar em si o verdadeiro sentido das ações, in-
capaz de tornar-se um símbolo através delas e dissolvê-las em símbolos; quando a
interioridade e a aventura estão para sempre divorciadas uma da outra. (Lukács,
2000, pp.66-7)

Mesmo não sendo demarcada cronologicamente, a cisão é apresentada


como um resultado histórico: “o romance é a epopéia de uma era para a qual
a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a
qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda
assim tem por intenção a totalidade.” (idem p.55)
Portanto, no romance, a oposição entre realidade e ideal se traduz em
uma tensão entre o desejo e a impossibilidade de realização, expresso no
anseio configurador do indivíduo problemático; “reside no fato de querer
realizar, de algum modo, o âmago de sua interioridade no mundo” (idem,
p.142). O desejo aqui é o de ação, o de realização da liberdade no mundo e
não apenas na obra de arte ou no pensamento. De tal forma que não é mais
possível uma saída plenamente “romântica”, nos termos freudianos, subli-
mada, filiada aos que atribuíam à poesia uma capacidade unificadora e
simbólica de alcançar uma harmonia superior, e, assim, pela obra, tornar-se
ato. Ou seja, para Lukács não é mais tempo da “arte de viver romântica” e
de sua poesia na qual é possível atribuir à cada coisa seu lugar adequado, e
assim, criando pela imaginação – ‘o caminho da interiorização’ – um outro
mundo e “para a poesia, tudo torna-se símbolo” (Lukács, 1974, p.86).
Pois, se de um lado, a aspiração pela forma decorre de um “sofrimento
metafísico do sujeito” (idem, p.37) ou de uma aspiração essencial da alma
(idem, p.88), de outro lado, o discurso sobre a arte está imerso em referen-
ciais externos, atado a um objetivo que lhe é exterior, a existência finita no
mundo. Para Lukács, jovem ou velho, só no mundo a alma pode se realizar.
De tal forma que é no conceito de intenção de totalidade, ou na aspiração
em direção a uma transcendência, que a oposição de Lukács ao movimento
romântico, começa a ganhar contornos mais nítidos. Não se trata mais de
subestimar a potência da subjetividade que, isolada e na relação com a
obra, busca salvar sua alma. Ao contrário, afirmando as aporias de uma saí-

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da transcendental, Lukács insiste em dizer o mundo. Não se trata, ainda, de


valorizar a “bela natureza”, porque o mundo tornou-se opaco, e não é mais
dado de modo claro, direto, imediato, evidente. Ele não pode ser corrigido
em função de um “ideal superior”. Não, o ponto de partida de Lukács é o da
relação cindida entre a interioridade e a exterioridade, isto é, o do desen-
cantamento do mundo; a forma romance assinala o pressuposto de que a ci-
são é concreta e incontornável. Não é possível sonhar novas unidades nem
hipostasiar em existência concreta nossas ilusões: “As fontes cujas águas
dissociaram a antiga unidade estão decerto esgotadas, mas os leitos irre-
mediavelmente secos sulcaram para sempre a face do mundo” (idem, p.35).
Dada a clareza do enunciado, poderíamos localizar aqui a linha de continui-
dade na trajetória de Lukács, em outros termos, uma primeira versão de sua
posterior teoria do realismo.
A harmonia da antiguidade era, para Lukács, a percepção de que a es-
sência estava presente no seio do mundo social, de uma comunidade. De tal
forma que a ação realizava a essência, ou seja, forma e existência se com-
plementavam. A modernidade, ao colocar sob suspeita tal completude, tal
“idade de ouro”, interroga-a como representação utópica: pois na medida
em que forma e mundo são percebidos como separados, é a forma que, ago-
ra, tensionada, opera no campo da simbolização, não mais a ação exemplar.
Ao denunciar essa fratura e a dissonância que a acompanha, o romance
desloca o campo de tensão, passando a operar em um plano simbólico esva-
ziado, mas que continua objetivando a uma totalidade que fará dele “a for-
ma épica necessária de nossos dias”.
Assim, se de um lado a arte é uma esfera entre muitas, ela só se justifi-
ca, alimentando e dando voz ao desejo de pertencimento se incorporar a
fragmentação do mundo, sua insuficiência, e não procurar aniquilar o que
lhe é exterior, nem ignorar o mundo. Nos termos lukácsianos, o romance é a
possibilidade de “aflorar em símbolo do essencial que há para dizer” (idem,
p.90). A forma romance torna-se, então, em função de sua impotência em
relação à ação, um mero vislumbre de sentido, constituindo uma nova for-
ma de simbolização. Agora, o sentido da vida se dá no auto-conhecimento,
na configuração dada no romance que é irremediavelmente biográfico; “o
romance é a forma da virilidade madura” (ibidem), a percepção de que o
sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, o hiato entre
interioridade e aventura, ou seja, “o romance é a forma da aventura do valor
próprio da interioridade” (idem, p.91); docta ignorantia em relação ao senti-
do, isto é, a ironia do escritor, “nesse não-querer-saber e nesse não-poder-
saber” (idem, p.93).
Lukács ao falar em símbolo se insere, desse modo, no debate entre as
doutrinas clássicas e a estética moderna, procurando contornar e não aban-

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donar o princípio da imitação, ou seja, nos termos modernos, o princípio da


representação na definição do romance.
Mas, o que de essencial pode ser dito pela arte na modernidade? Não
seria pouco e redundante a mera afirmação de que não há mais sentido?
Afirmar-se-ia, com isso, a autonomia da obra de arte na forma romance e de
sua superioridade em relação à natureza? Qual é o estatuto da forma? O que
ela configura? Ela continua sendo pensada como instrumento de reconcilia-
ção entre alma e essência?
Aqui, novamente o diálogo com os românticos volta a ser produtivo.
Procurando atribuir ao belo uma existência autônoma e uma dimensão sim-
bólica e, assim, estruturar uma estética romântica, A. W. Schlegel afirmou,
em 1801: “O belo é uma representação simbólica do infinito; pois assim tor-
na-se ao mesmo tempo claro como o infinito pode aparecer no finito” (cf. To-
dorov, 1977, p.235). Goethe, um dos primeiros autores a definir o simbólico
por oposição ao alegórico, afirma que o símbolo é intransitivo e indireto, en-
quanto que a alegoria transitiva e significa diretamente. Símbolo é a repre-
sentação operando no particular para significar o universal. A alegoria seria
o procedimento de procurar o particular a partir do universal. No geral, o
símbolo ganha preferência entre os românticos pela sua característica es-
pontânea, inconsciente, pela capacidade de sintetizar e exprimir o infinito,
isto é, o indizível.
A presença da matriz da doutrina romântica em A teoria do romance é
nítida, mas outros nomes do repertório romântico podem ser mencionados.
E o caso de Friedrich Creuzer e seu Symbolik und Mythologie der alten Vo-
lker, besonders der Griechen, de 1810-1812. A contribuição original de Creu-
zer consistiu em construir um vasto sistema comparativo entre as religiões,
fundamentado na semelhança entre os símbolos religiosos, demonstrando
sua origem comum e oriental (cf. Munch, 1976, pp.130-1). Ao sustentar que
o símbolo é, portanto, uma linguagem de síntese, Creuzer elabora uma sin-
gular articulação da oposição entre símbolo e alegoria.9 Eis seus termos:
A distinção entre as duas formas [símbolo e alegoria] deve ser procurada no ca-
ráter momentâneo, que não existe na alegoria. Uma idéia se abre no símbolo em um
momento, inteiramente, atingindo todas as forças de nossa alma. É como um raio
que, do fundo obscuro do ser e do pensar, incide diretamente em nosso olho, atra-
vessando toda nossa natureza. A alegoria nos conduz a respeitar e seguir o caminho
que toma o pensamento escondido na imagem. Ali [no símbolo] existe uma totalida-
de momentânea; aqui, existe uma progressão em uma série de momentos. Daí por-

9 Todorov acentua que a contribuição original de Creuzer foi a de unir ao par símbolo-alegoria a
categoria do tempo. Symbolik, sua obra principal, é uma ordenação dos símbolos e uma explica-
ção da história primitiva da humanidade, da revelação original ao politeísmo grego. O que será
fundamental para a estética do século XX, particularmente em Walter Benjamin (cf. Todorov,
1977, pp.253-9).

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que a alegoria, mas não o símbolo, compreende em si o mito, cuja essência se expri-
me mais perfeitamente na progressão do poema épico. (Creuzer,1810,70-71)10

Se o que Lukács busca é uma forma de transcendência possibilitada


pela e na significação simbólica, o que predomina em A teoria do romance
na atribuição do significado pelo romance é uma figura híbrida de símbolo:
seja na epopéia antiga, que ao configurar uma totalidade fechada terrena
da transcendência que se tornou manifesta, almeja uma compreensão intui-
tiva, uma relação natural e espontânea, buscando uma fusão entre sujeito e
objeto, um vínculo orgânico do indivíduo com a comunidade, seja no ro-
mance moderno denunciando a ausência deste mesmo vínculo, mas que
ainda almeja a imanência do sentido à vida, o que temos é a traduzibilidade
do particular e universal na representação simbólica. Mas, em outros mo-
mentos, o enquadramento é difícil, pois, mesmo apontando para a atividade
simbólica, a forma romance analisada por Lukács não é breve, clara ou sim-
ples, nem sintética, mas marcada por uma estrutura que incorpora não só a
fratura entre o eu e o mundo, mas especialmente a temporalidade, além de
ser uma forma precária, incompleta, inacabada que se aproximaria, portan-
to, da alegoria, afastando-se do absoluto, do divino e concentrado-se no
sensível, no finito, pelo menos nos termos propostos por Creuzer.
Ora, se a composição do romance é uma “fusão paradoxal de compo-
nentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade constantemente
revogada” (Lukács, 2000,p.85), não estamos diante da mesma noção de sím-
bolo, tal como pensada pelos românticos, mas de um procedimento que re-
faz o conceito pela adição de elementos históricos. Em A alma e as formas,
Lukács já havia assinalado o equívoco da arte romântica de viver: “eles pro-
curaram criar um mundo homogêneo, unitário e orgânico (...) mas perderam
a enorme tensão entre a poesia e a vida, que confere a uma e a outra as for-
ças reais e criadoras dos valores” (Lukács,1974, p. 87).
Essa tensão é o mundo cindido apresentado n´A teoria do romance. 11 O
romance é uma construção “problemática”, emblema de uma modernidade

10 Na Origem do drama barroco alemão, – obra contemporânea de A teoria do romance – Walter Ben-
jamin salienta a importância da categoria do tempo nas reflexões românticas de Creuzer, o que
lhe possibilita pensar a temporalidade ligada à morte e à figura da alegoria como a “facies hippo-
cratica da história como protopaisagem petrificada. A história em tudo o que nela, desde o início,
é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira.” (...) “Nisso consiste
o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do
sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto
maior a sujeição à morte (...). Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita à morte, desde sem-
pre ela foi alegórica” (Benjamin, 1984, p.188).
11 Para Fredric Jameson toda a obra de Lukács e não apenas A teoria do romance defende a seguinte
concepção de símbolo: “a presença do pensamento simbólico ou simbolizante na obra permanece
sempre uma indicação de que o significado imediato dos objetos desapareceu: antes de mais nada,

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que perdeu o sentido da vida, mas que faz dessa ausência o pressuposto de
uma reflexão sobre a temporalidade. Só na experiência da dissolução e da
cisão, o tempo torna-se constitutivo. O romance assimila o tempo real, a du-
ração real, a durée de Bérgson:

somente no romance, diz Lukács, cuja matéria constitui a necessidade da busca e a


incapacidade de encontrar a essência, o tempo está implicado na forma: o tempo é
a resistência da organicidade presa meramente à vida contra o sentido presente, a
vontade de vida em permanecer na própria imanência perfeitamente fechada.
(Lukács. 2000, p.129)

A forma do romance é, pois, desejo, reflexão e busca, mas ao mesmo


tempo, a forma é também coerção, configuração de “experiências tempo-
rais” que “despertam ações e nas ações tem suas origens”. Mas, cindido, o
indivíduo moderno problemático está condenado à errância no mundo, co-
locando em suspeição todos os sentidos e valores da Lebenskunst, de toda
arte de viver. Ao final do percurso possibilitado pelo romance ele reencontra
apenas a si mesmo, sua finitude, suas dúvidas e aspirações. Mas é por essa
razão que o romance é também, positivamente, expressão de uma cultura
aberta, com um círculo maior, pois o “círculo mágico” da antiguidade, nos
termos humboldianos, foi rompido; neste novo círculo, superamos a inge-
nuidade ao descobrir a produtividade do espírito; inventamos a configura-
ção (a criação de formas); “descobrimos em nós a única substância verda-
deira”, mas uma “substancialidade que se dissipa em reflexão” (idem, p.31),
não se converte em ação.
Do romance brota, portanto, uma dissonância. De um lado, ele permite
a constatação da nulidade da ação humana, mas, de outro, há um vislumbre
de positividade, pois, enquanto “canto de consolo”, que propicia “a recor-
dação e a esperança”, é a única configuração que possibilita uma reconci-
liação, problemática é verdade, entre atividade e contemplação, ou seja, en-
tre o indivíduo e o mundo. E nesse aspecto, ele é uma forma possível, mais
do que isso, necessária: é a “situação transcendental da nossa época”.
Na segunda parte do ensaio, Lukács estabelece uma tipologia entre as
formas romanescas, apontando de um lado, na estrutura formal do idealis-
mo abstrato, um estreitamento da alma em relação ao mundo e, de outro, no
romance de desilusão, um estreitamento do mundo em relação à alma. En-
tre a possibilidade de extraviar-se e a adesão incondicional ao mundo, o re-
sultado é um herói que se afirma por meio de uma solidão resignada. É no

11 o processo não viria à tona se os objetos não tivessem já se tornado problemáticos em sua natu-
reza” (Jameson, 1985, p.133).

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romance de formação, síntese entre o idealismo abstrato, e o romance de


desilusão, que a forma adquire sua melhor possibilidade. O romance de for-
mação pode possibilitar aquilo que Lukács chama de “experiência com-
preensiva”, ou “reflexão polêmica”, isto é, “uma experiência que se esforça
por ser justa com ambos os lados e vislumbra, na incapacidade da alma em
atuar sobre o mundo, não só a falta de essência deste, mas também a fra-
queza intrínseca daquela” (idem, p.143). Mas, adverte Lukács, a irrepresen-
tabilidade continua posta, pois não se trata de uma totalidade espontânea
do ser, mas de uma configuração consciente; de uma “vontade de forma-
ção”, expressão ou exemplo de resignação.
Criticando a partir do interior e denunciando os limites do romantismo,
Lukács mostra o perigo de um deslizamento solipsista no romance de for-
mação: “o de uma subjetividade não paradigmática, não convertida em
símbolo, que tem de romper a forma épica”. Ou seja, o perigo do “meramen-
te pessoal, do memorialístico, do caráter fatal, insignificante e mesquinho
do meramente privado.” (idem, p.144)
Por essa razão, a figura de maior destaque, em Lukács é a da ironia, no-
vamente uma figura romântica: o ponto de vista que ao mesmo tempo não
se satisfaz com o mundo, mas dele não se afasta. Ela, a ironia, é o principal
elemento do herói problemático que se manifesta em seu caráter demonía-
co. Ora, num mundo sem Deus, o demoníaco é o seu substituto: a tendência
da alma de separar-se completamente de tudo que não seja a essência; de
persegui-la insistentemente, mesmo que para constatar mais uma vez sua
impossibilidade. É, por essa razão, que na tipologia que faz da forma roma-
nesca, Lukács atribui ao Dom Quixote de Cervantes, a grande realização do
romance na forma do idealismo abstrato, o mérito de ter sido a “primeira
grande batalha da interioridade contra a infâmia prosaica da vida exterior”.
A ironia, como auto-superação da subjetividade que foi aos limites, é a mais
alta liberdade possível num mundo sem Deus” (idem, p.96).
Mas se para Friedrich Schlegel a ironia é o elo que apreende a realidade
como provisória, tornando relativo e suportável o presente cindido em rela-
ção a um futuro unificado na poesia, para Lukács a negatividade da situa-
ção só pode ser ultrapassada pela ação. Lukács que, ao final, vê na obra de
Dostoiévski uma pequena abertura para a saída do abismo e do mundo cin-
dido,12 sabe que “uma totalidade de homens e acontecimentos só é possível

12 Michel Löwy, discordando de Lucien Goldmann, sustenta que A teoria do romance foi uma obra
marcada por uma genial intuição: “A teoria do romance constitui para Lukács o primeiro passo além
da Weltanschauung trágica em direção à dialética histórica. Encontra-se aí a esperança e mesmo o
pressentimento da mudança do mundo, apenas dois anos antes da Revolução Russa. (...) Mas a es-
perança se situa para além do romance e da época que ele exprime, numa nova epopéia da qual a
literatura russa é o primeiro esboço, e no mundo novo que esta anuncia” (Löwy, 1990, p.126).

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sobre o solo da cultura, qualquer que seja a atitude que se adote em relação
a ela” (idem, p.154). Mas a cultura é, ainda, negativamente, o mundo cir-
cundante, “o mundo das convenções”, o mundo estreito e fragmentado,
“um mundo presente por toda a parte em sua opaca multiplicidade”, uma
segunda natureza (idem, pp.62-3). De tal forma que neste quadro histórico
“a mudança nunca poderá ser realizada pela arte: a grande épica é uma for-
ma ligada à empiria do momento histórico” (idem, p.160). Ou seja, ele colo-
ca o problema novamente em termos fichtianos ao sustentar que só na ação
a harmonia poderia ser recuperada e, em termos hegelianos, ao pensar o
tempo como o local da reconciliação dos indivíduos na história.
Para Guy Haarscher, a problemática da forma em A teoria do romance re-
mete ao sistema hegeliano, especificamente, à filosofia do jovem Hegel, para
a qual a essência não é mais apenas o ideal subjetivo, mas é o “espírito que
se manifesta ele mesmo progressivamente na dialética dos fenômenos cultu-
rais e sociais”; a forma que se manifesta por meio das “figuras do tempo”.
Contudo, Guy Haarscher vê nessa totalidade que se aspira, mas que nunca se
encontra, nessa relação à totalidade que confere a cada elemento seu lugar,
mas lhe nega substancialidade, nessa elevação de todo elemento da vida à
sua significação, no procedimento de tornar tudo significativo, isto é, neste
procedimento simbólico, o perigo de que “o universo cultural, a ordem simbó-
lica, não remeta mais a um fundamento exterior, mas ganhe autonomia, inde-
pendência, como um mundo das coisas” (Haarscher, 1974, p.307). Um mundo
não-totalizado, uma lucidez que ilumina apenas a percepção da absoluta obs-
curidade, a ironia do romancista como lucidez máxima.
Ora, a preocupação não parece de todo procedente especialmente se
sabemos dos desdobramentos futuros da obra lukácsiana: a totalidade que
era pensada como numa relação ontológica entre o eu e o mundo, transfor-
ma-se em 1923, a partir de História e consciência de classe, em totalidade
social e histórica.
De tal forma que, se a reflexão que o romance possibilita termina pela
constatação quase perversa da vitória da ironia como forma inevitável da
“profunda desesperança”, estamos, sim, diante de uma perspectiva trágica,
mas jamais niilista, pois o romance não se perdeu em um mundo de sonhos,
ilusões e imaginação, nem sucumbiu à atração da coisa-em-si, da pura ex-
terioridade, ao descrever ingenuamente o mundo empírico; ao contrário,
exacerbou a insuficiência do mundo tornado opaco, denunciando sua ines-
sencialidade, o que está ausente, sua pretensa auto-suficiência, sua “se-
gunda natureza”. O hiato entre sujeito e objeto não é abolido, mas exacer-
bado. É o máximo de lucidez possível, que transforma esse saber precário e
insuficiente num valor moral: em um apelo no horizonte à transformação do
mundo. Uma saída hegeliana com finalidade ética, a do romance pôr a tota-
lidade do mundo e, assim, ser a educação do homem cindido na sociedade

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burguesa. Mas, contra uma visão mítica da reconciliação, a operação des-


mistificadora crítica e negativa de A teoria do romance. A totalidade não se
mostra suscetível de representação, mas ela é horizonte, uma situação limi-
te que permite pensar a modernidade (Jameson, 1992, pp.48-50). Eis sua
significação simbólica. E por que não realista, se entendermos por este ter-
mo o conteúdo de verdade do gênero romance?
O romance é um “ato simbólico” de expressão da cisão. Uma expressão
da insuficiência, de estranhamento, diante da distância entre o eu e o mun-
do, na qual o desejo pode falar, um Eros certamente platônico, é bem verda-
de. Mas é o enunciador de um simbolismo consciente e não mágico. Uma
reflexão imanente, desde que entendamos por ela uma tentativa de recupe-
rar a relação com a experiência vivida, mesmo que negativamente; com o
que caracteriza a essência, o ser desta experiência na história. É o que per-
mite a Adorno ir além e falar em uma “transcendência estética” que reflete
o desencantamento do mundo. Distante de uma épica positiva, fundada na
possibilidade de configurar o real em sua objetividade, Adorno fala em um
épico negativo que denuncia a “mentira da representação”, e da suprema-
cia do sujeito, que reconhece sua impotência e desamparo diante da supre-
macia do mundo das coisas. Em “Posição do narrador no romance contem-
porâneo”, Adorno retoma as sugestões de Lukács sobre Dostoiévski – a
possibilidade de uma épica futura – sugerindo a idéia de que se Dostoiévski
é “avançado”, ou seja, se ele abre uma brecha para o futuro,
se existe psicologia em suas obras, ela é uma psicologia do caráter inteligível, da es-
sência, e não do ser empírico, dos homens que andam por aí. Não é apenas porque
o positivo e o tangível, incluindo a facticidade da interioridade, foram confiscados
pela informação e pela ciência que o romance foi forçado a romper com esses aspec-
tos e a entregar-se à representação da essência e de sua antítese distorcida, mas
também porque, quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfície do proces-
so social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um véu.
(Adorno, 2003, p.57)

Ora, se a distância trágica é o que a forma romance permite ver, e se ela


continua ecoando por meio do ensaio, então o fato de A teoria do romance
tornar-se um clássico é no mínimo preocupante. Pois ou é um indício de que
a cisão da modernidade, o descompasso entre interioridade e mundo, conti-
nua real e insuperável quase um século depois; ou, ao contrário, alerta o leitor
sobre a suspeita de que a cisão foi uma forma histórica de estranhamento
diante do início da modernidade, de tal forma que quando ela ressurge hoje
diante da sociedade burguesa consolidada, torna-se acima de tudo um mito
alimentado pelo “solo da cultura” e, especialmente, pela arte moderna e suas
derivações. Mito que, ao insistir em afirmar a marginalidade e negatividade
da cultura em relação a esta sociedade administrada, continua fazendo desta
distância trágica não uma forma de acesso à realidade do presente visando

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sua possível transformação, mas tão somente um símbolo esvaziado, um eco


do passado que perpetua a adesão ao “meramente existente.”

SILVA, A. A. da. The emptied symbol: young György Lukács's Theory of the Roman-
ce. Trans/Form/Ação, (São Paulo), v.29(1), 2006, p.79-94.

■ ABSTRACT: The present article investigates how G. Lukács’s Theory of the ro-
mance (1916), a fragmented and of occasion text, became a classic of the reflec-
tion on modernity. For Lukács, the novel is the correspondent artistic form to the
fracture between the subject and the world, lived by the contemporary man. Us-
ing the concept of “emptied symbol” this text apprehends how far the author,
when reviewing the previous classifications on the genre of novel, perpetuates
the romantic tradition or breaks it, elaborating original concepts for the under-
standing of modernity in literature.
■ KEYWORDS: Lukács, novel, modernity, romantism, simbolisation.

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Artigo recebido em 08/05; aprovado para publicação em 12/05.

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