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Literatura negra ou literatura afro-brasileira?

Uma reflexão sobre a poesia de


autoria negra

Canto dos Palmares

Eu canto Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

SOLANO TRINDADE

Como ponto de partida, o excerto de “Canto dos Palmares” (1961) traz a voz
daquele que melhor produziu a poesia negra das Américas: Solano Trindade. No
entanto, como qualquer outro escritor negro brasileiro, o poeta não teve o
reconhecimento da crítica literária, tampouco seu nome reverenciado nos livros
didáticos de literatura brasileira. A riqueza poética de Trindade ficou especialmente
registrada em “Canto dos Palmares”. Nessa obra, além de evocar o orgulho de suas
raízes africanas e exaltar a luta do povo negro pela liberdade, o poeta buscou
“desconstruir” o esquema da epopeia tradicional. Isso quer dizer que, entre outras
especificidades, Solano transformou os quilombolas – conhecidos como “vencidos e
humilhados” (BERND, 2011) – em heróis da sua narrativa épica. Mas quem foi
Solano Trindade? Qual a sua contribuição para a poesia negra brasileira? Quais
elementos caracterizam sua produção literária? Quais poetas mais se destacaram
nessas últimas décadas?

Antes de adentrar essas questões, é preciso registrar a polêmica que envolve


a “denominação” e/ou “adjetivação” proposta pela crítica para dar conta desse
gênero literário brasileiro. Atualmente, grande parte dos intelectuais e críticos
literários defende o uso da expressão “literatura afro-brasileira”. O principal
argumento desses estudiosos é que o termo “negro/negra” poderia levar à
identificação da produção literária com a cor da pele do autor. Embora tomem as
expressões “afro-brasileira” e “negra” como sinônimos, eles acreditam que a
denominação “literatura afro-brasileira” seria mais adequada, pois remeteria à
origem étnica dos escritores e à comunhão de valores associados à cultura africana,
“deixando de significar/remeter à existência de uma essência negra” (BERND, 2011,
p. 20).

Entre esses críticos, a pesquisadora Zilá Bernd (2011) acredita que o conceito
de “literatura afro-brasileira” associa-se a uma articulação entre textos dada por um
modo negro de ser e sentir o mundo, transmitido por um discurso caraterizado por
determinados elementos, como, por exemplo, a escolha lexical, os símbolos
utilizados, a construção do imaginário e o desejo de resgatar uma memória negra.
Ainda segundo a pesquisadora, a importância do uso da expressão “literatura afro-
brasileira” está no fato de permitir nomear uma arte literária que carrega uma
condição específica e diferenciada no âmbito da literatura nacional.

Por outro lado, uma parte da crítica e a maioria dos escritores negros
defendem o uso da expressão “literatura negra”. Entre eles, ressalto a escritora
Miriam Alves. Conforme esclarece a autora, a expressão “literatura negra” surgiu
num momento sociopolítico de posicionamento e autoafirmação dos valores do povo
negro em âmbito nacional e mundial. Tal movimento, segundo Alves (2002), estava
conectado a um contexto de “grito” contra o racismo. No Brasil, as denúncias e os
protestos organizados por militantes negros ganharam força. Nesse período, final da
década de 70, em que emergia o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial, o termo “literatura negra” teve seu uso defendido pela primeira
edição da coletânea Cadernos Negros:

[...] Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente, é a


diáspora negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as
cicatrizes que assolaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o
livro (ALVES, 2002, p. 223).
Foi desse modo que, conforme a autora, os escritores “encontraram na poesia
um meio de expressão negra” (ALVES, 2002, p. 222). Nessa perspectiva, segundo
Alves (2002), Cadernos Negros não acabava apenas por estabelecer a
denominação “literatura negra”, mas também trazia à tona toda uma ebulição de
textos, atos e atitudes literárias no universo da escrita poética negra brasileira.
Quanto às principais características desse tipo de produção, Alves (2002) comenta
particularmente duas: uma delas corresponde à atitude de organizar a fala através
do coletivo; e a outra refere-se à “desconstrução” da tradição literária.

Sobre a primeira, a pesquisadora explica que os autores “denominados


escritores negros de literatura negra” (p. 224) buscaram promover mudanças
culturais no país. Diante disso, além de consagrarem o termo, pleitearam uma ação
unificada contra a dita democracia racial “que não oportunizava a existência da
singularidade e da pluralidade do cidadão negro” (p. 225). Por essa razão, os
poemas publicados na primeira edição dos Cadernos Negros imprimiam a
necessidade de uma conscientização do povo negro, isto é, de assumir sua
“negrura” e (re)descobrir-se e/ou (re)criar-se.

Vale lembrar que a produção literária brasileira, do período em questão (e


ainda hoje), tendo como modelo estético o branco, negava uma subjetividade negra,
transformando o sujeito negro em mero personagem secundário ou espectador de
ações alheias. A ideia, então, era a de resistir a essa negação e opor-se aos
enquadramentos estéticos que seguiam padrões exclusivamente eurocêntricos,
delineados na história da escravidão. Tais atitudes contribuíram para a chamada
“desconstrução” da tradição literária – compreendida como “masculina, burguesa e
cristã” – , a segunda característica comentada pela autora. Nesse compromisso,
renascia uma nova ideia de liberdade.

Considerando toda uma produção literária que vem, ao longo das últimas
décadas, dando visibilidade à vivencia do negro brasileiro, Alves (2002) argumenta
que a crítica, ao renomear o já autodenominado, “destoa do processo de
singularização porque, ao fazê-lo, está, na verdade, identificando todo o processo a
uma subjetividade dominante” (p. 232-233). Para a escritora, a existência de uma
literatura especifica, neste caso, a “literatura negra”, se dá através de um conjunto
de significados, intenções, símbolos, padrões estéticos, visões de mundo etc. Logo,
o termo “negro”, aqui, não designa a cor epidérmica de alguém. Trata-se, de acordo
com Alves (2002), de um termo tido como pejorativo num contexto cultural para
diminuir e inferiorizar. Portanto, a “literatura negra”, diante desse contexto, tem a
intenção de ressignificá-lo. Deve ser enfatizado que a autora não se refere apenas à
“inversão” do sentido negativo do termo, mas ao modo de olhar o brasileiro negro e,
ainda, à necessidade de arrancar a “máscara da invisibilidade”.

Solano Trindade e Cuti: a literatura de resistência

Considerando que a produção literária negra não pode ser pensada sem o
respaldo da experiência histórica do negro, Maria Nazareth Soares Fonseca (2006)
afirma que os escritores afrodescendentes, por motivações próprias, têm se
empenhado em reconstituir narrativas (ou produções poéticas) sem apagar as
tradições herdadas dos seus antepassados. Para a autora, tal empenho justifica-se
pela intenção de não apenas denunciar a violência e a exclusão sofridas no
passado, mas de também exaltar a profusão de vozes silenciadas e as expressões
culturais do povo negro. Assim, utilizando o espaço da literatura, suas vozes podem
assumir diferentes tons, ritmos, sonoridades, entre outras especificidades advindas
especialmente da predominância oral africana.

O escritor pernambucano Solano Trindade (1908-1974), um dos poetas


selecionados para este estudo, foi um dos pioneiros da chamada “negritude
popular”, cujas ações se manifestaram no Brasil através da imprensa, do teatro e da
poesia. No campo literário, Solano produziu um tipo de matéria poética que Bernd
(2011) classifica como “literatura de resistência” (BERND, 2011, p. 60). De acordo
com a pesquisadora, essa vertente da poesia negra visa construir uma base à qual
possa se ancorar o sentimento de identidade de um grupo que se singulariza em
relação a outro. As mensagens são basicamente dirigidas aos “membros da
comunidade”, isto é, aos leitores negros/negras. Segundo Bernd (2011), a
consciência identitária é, na maioria das vezes, construída mediante um conjunto de
repertórios associados à história do negro no Novo Mundo, mitos fundadores, lendas
e outras ações heroicas.

Para a autora, da conjugação dessas particularidades e “sua transformação


em matéria poética, origina-se o caráter de resistência da poesia negra brasileira”
(p.6). Eis um exemplo no poema a seguir:

Sou negro

Sou negro
Meus avós foram queimados
pelo sol da África
minha alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós


vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou como um danado


nas terras de Zumbi
Era valente como que
Na capoeira e na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso

Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malés
ela se destacou

Na minha alma ficou


o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...

(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 74).
Em “Sou Negro” (1961), a “consciência resistente” constitui-se através de três
principais elementos: o resgate da memória ancestral, as contradições históricas
(aquelas pelas quais o discurso hegemônico exclui a experiência negra) e a
exaltação dos seus heróis. Sobre a primeira, é possível perceber que o “eu
enunciador que se quer negro”1 (BERND, 1988) manifesta um sentimento de
nostalgia em relação ao solo africano e aos caminhos percorridos pelos seus
antepassados (representados na figura dos avós). Ao registrar que sua alma
recebeu o batismo dos tambores2, também revela que carrega consigo a força e a
coragem daqueles que enfrentaram um longo processo de escravização e que, no
entanto, não deixaram de lutar pela liberdade e pela preservação de suas raízes e
tradições.

Quanto à segunda, o eu lírico, apesar de reconhecer as desigualdades e o


sofrimento do negro tratado como “mercadoria de baixo preço”, em nenhum
momento expressa lamento ou dor. Ao contrário, o “ser negro” de Solano é aquele
que, embora tenha enfrentado inúmeras adversidades, plantou, colheu e construiu a
sua própria história. A exemplo disso, cita a fundação do Maracatu, a Guerra dos
Malês3, a capoeira e o samba (símbolos da luta e da resistência cultural negra). Na
contramão dos discursos hegemônicos, ainda há uma evidente recusa em aceitar a
figura humilde, pacífica e submissa do “Pai João”. Esse personagem foi delineado,
especialmente no campo literário, como o escravo bom e manso, ou seja, aquele
que aceitou pacificamente a condição de escravo. O poema de Solano representa o
negro como o oposto do Pai João, através da figura do Zumbi dos Palmares, o
guerreiro negro que lutou incessantemente pela liberdade do seu povo.

1 De acordo com Zilá Bernd (1988), o que define a poesia negra não é o fato de o autor/enunciador
ser negro, mas o fato de situar-se como negro para que a poesia possa exprimir uma fala própria,
com uma intenção negra.
2 Dentro do universo africano, o tambor – assim como atabaques, gonguês e agogôs – , é um

instrumento que atua como símbolo da liberdade.


3 A Guerra dos Malês foi uma das inúmeras rebeliões promovidas por negros escravizados durante o

período Regencial. O levante reuniu cerca de 600 negros, sendo que alguns já desempenhavam
atividades livres (como alfaiates, carpinteiros e artesãos). O mote da revolta era a libertação dos
escravos de origem muçulmana, já que esses dispunhavam de relativa autonomia por dominar a
leitura e a escrita em árabe (Fonte: www.palmares.gov.br).
Dessa forma, a referência a Zumbi, mais do que uma exaltação ao
emblemático herói negro (terceiro elemento comentado), propõe um questionamento
acerca dos discursos históricos oficiais. Nessa direção, Zubaran e Vargas (2016),
num estudo sobre a Imprensa negra, explicam que, durante muito tempo, no Brasil,
as memórias e as histórias dos afro-brasileiros limitaram-se à reiteração do estigma
da escravidão, isto é, o negro foi representado predominantemente como vítima
submissa dos castigos e dos infortúnios sofridos pela sociedade escravista. Assim,
de acordo com as autoras, suas lutas, conquistas e, sobretudo, sua história, foram
sendo negligenciadas e esquecidas pela narrativa “oficial”.

Ao reivindicar suas histórias e os seus heróis, contudo, “as memórias negras,


paulatinamente, deixam de ser subterrâneas e se tornam memórias emergentes,
passando a ocupar um lugar de destaque”. (ZUBARAN; VARGAS, 2016, p. 3). Como
esclarecem as autoras, foram os novos movimentos sociais e suas políticas de
identidade que, durante o processo de redemocratização da sociedade brasileira
(décadas de 80 e 90), possibilitaram que diferentes grupos sociais, étnicos e
culturais reivindicassem o direito a suas memórias e buscassem institucionalizá-las
nos espaços públicos. Portanto, o teatro, a literatura e a poesia negra são exemplos
de “memórias negras” que ressurgem contra a alienação cultural. Nesse sentido,
as memórias negras “não apenas asseguram uma continuidade entre o passado e o
presente dos afro-brasileiros, mas também dão sentido às suas lutas pelo direito à
sua cultura e à sua história” (ZUBARAN, 2016, p. 235).

Outro escritor selecionado para este estudo, Luiz Silva (Cuti), nascido em São
Paulo, no ano de 1951, vem produzindo um tipo de poesia classificada por Bernd
(2011) como “a consciência trágica”. Os escritores engajados nesse tipo de
produção, conforme a autora, tendem, por um lado, a atrair a “piedade” ou a
“simpatia” do leitor; por outro, provocam a “angústia” e o “terror”, despertando “uma
repulsão em face à injustiça da discriminação e do preconceito de que os poetas (e
toda a comunidade negra) ainda são vítimas, mesmo após mais de 100 anos de
abolição” (BERND, 2011, p. 110). A consciência trágica também surge relacionada a
uma tomada de consciência que procura transformar o estigma da escravidão em
resistência:
Sou negro

Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
- Negro e pronto! -
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
E não me prego em ser preto
Negro pronto
Contra tudo o que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo – sangue sem regra feita
Grito – negro – força
Contra grades contra forcas
Negro pronto
Negro e pronto.

(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 145).

Publicada em 1978, em Poemas de carapinha, a presente poesia de Cuti


busca, de forma contestatória, romper com “os contratos de fala e escrita ditados
pelo mundo branco” (BERND, 1988, p. 22) a fim de atuar na (re)construção
identitária e cultural do sujeito negro. Empenhado em conscientizar o leitor negro-
personagem principal e destinatário do discurso – o eu enunciador utiliza como
principal estratégia um modo de “sentir-se ou “assumir-se negro”, a partir de
variadas implicações que dividem-se em dois campos: eu/nós (negro) e do ele/eles
(branco). Assim, o eu/nós aparece associado à luta (contra o preconceito branco), à
coragem (de enfrentar “o velho imposto”), à autoafirmação (utilizando o corpo como
arena e/ou território de luta), entre outras singularidades. Em contrapartida, o
ele/eles une-se às formas sutis de discriminação (“o relacionamento manco”), à
ideologia do branqueamento (“que tenta me pintar de branco”) e ao estigma da
escravidão (“contra grades contra forcas”).

Dentro do repertório negro, considerando os apontamentos de Stuart Hall


(2003), o corpo, em oposição aos discursos que foram construídos num dado
contexto histórico e a outras narrativas hegemônicas que o codificam, vem sendo
utilizado, muitas vezes, como se fosse “o único capital cultural” (p. 342). Nilma Lino
Gomes (2003) afirma que, em contextos racializados, o corpo negro, além de se
tornar um emblema étnico, atua como suporte de construção da identidade negra.
No poema, o corpo negro aparece “dilacerado”, formado por “beiço”, cabelo “pixaim”
e nariz de “abas largas”. Entretanto, tal estratégia de “recodificação” (HALL, 2003)
não é construída apenas para descrever esse corpo em sua exclusão, “mas para
fazer dele emblema de tomada de consciência que transforma o estigma em lugar
de gestação da resistência (FONSECA, 2002, p. 201).

Num estudo sobre O corpo colonial e as políticas e poéticas da diáspora,


Laura Cecília López (2015) aponta que é “a incorporação da história que dá
densidade às demandas por justiça social” (p. 316). Isso quer dizer que, conforme a
autora, as mobilizações negras contemporâneas ao darem visibilidade ao corpo
colonial, ao mesmo tempo, provocam um deslocamento nas representações desse
corpo, “produzindo um espaço para pensar as resistências desses sujeitos” (LÓPEZ,
2015, p. 307). Nessa direção, Hall (2003) afirma que é somente através do modo
como o negro é representado e imaginado em situações históricas que os seus
significados “flutuantes” podem ser examinados:

no momento em que o significante “negro” é arrancado de seu encaixe


histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial
biologicamente construída, valorizamos, pela inversão, a própria base do
racismo que estamos tentando desconstruir (HALL, 2003, p. 345).
Enfim, considerando que grande parte dos escritores engajados no
Movimento negro (com um perfil predominantemente masculino de liderança) vem
propondo, na sua base, um questionamento às posições desiguais entre negros e
brancos na sociedade brasileira, qual seria o tipo de crítica que tem sido proposta
pelo movimento das mulheres negras? Com enfoque principal nas narrativas que
foram construídas historicamente sobre o corpo da mulher negra, o feminismo negro
vai justamente utilizar a própria escrita como ferramenta de luta contra a violência
simbólica e a opressão de raça e de gênero.

O corpo-mulher-negra em vivência: a poesia de Conceição Evaristo e Miriam


Alves

Ainda com menos visibilidade, a escrita de cunho feminino negro, que


também surgiu no final da década de 70, na coletânea Cadernos Negros, reúne as
memórias, as angústias, os dramas e as estratégias de resistência utilizadas pelas
mulheres negras contra as marcas de racialização e sexualização que foram
construídas para o corpo feminino ao longo da história do Brasil. Cabe lembrar que
desde a formação da literatura brasileira, os textos literários produzidos por autores
brancos criaram algumas identificações para classificar o corpo feminino negro. Com
base em categorias fenotípicas e num conjunto de valores depreciativos, as
mulheres negras tiveram suas aparências, gestos e condutas representadas em
inúmeros poemas, contos e romances de autores brasileiros.

De modo geral, aparecendo nessas produções como “um corpo à


disposição”4, possuidor de uma sexualidade voraz e pervertida, as personagens
negras tiveram suas imagens ancoradas num passado escravista, em que eram
consideradas apenas como um “corpo-produto” e um “corpo-objeto”. Conforme
Sales (2012), essas representações do corpo feminino negro, construídas em
diferentes contextos e momentos históricos, foram inscritas nas relações de gênero

4 Reporto-me ao texto “Pensamentos da mulher negra na diáspora: escrita do corpo, poesia e


história”, de Cristian Souza de Sales (2012). Universidade do Estado da Bahia - UNEB.
estabelecidas pela dominação masculina branca. Nesse processo, a malícia, a
imoralidade e a permissividade eram apresentadas como características inerentes
ao comportamento moral da mulher negra.

A escritora e professora mineira Conceição Evaristo, no seu artigo intitulado


Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (2009), também analisa e
comenta algumas representações do corpo feminino negro construídas em obras
clássicas da literatura nacional. Para a autora, no interior do discurso literário
brasileiro, a imagem da “mulher-mãe” – um perfil que tantas vezes foi desenhado
para as mulheres brancas em geral – , foi negada à personagem feminina negra.
Sendo essa “considerada só um corpo que cumpria as funções de força de trabalho,
de um corpo-procriação de novos corpos para serem escravizados e/ou de um
corpo-objeto de prazer do macho senhor” (EVARISTO, 2009, p. 23).

Particularmente sobre o corpo-objeto, Evaristo (2009) afirma que, nos


momentos fundadores da literatura nacional, foi Gregório de Matos que começou a
esboçar, na sua matéria poética, o paradigma de sensualidade e sexualidade,
atribuído às mulheres negras. Em Julu, vós sois Rainha das mulatas, por exemplo, o
poeta revela o olhar depreciativo que era lançado sobre a mulher africana
escravizada e suas descendentes, em especial a “mulata”. Considerada uma figura
muito recorrente na literatura brasileira, o fascínio que ela exercia sobre os homens
brancos estaria relacionado ao fato de, por um lado, “guardar características
brancas”; e, por outro, trazer no seu íntimo, “o fogo do sangue negro”. Assim, por
estar “no caminho cromático entre brancas e negras, a mulata concentraria o
exotismo das negras sem sofrer as desvantagens estéticas atribuídas às brancas”
(HANCIAU, 2002, p. 3).

Com o intuito de questionar essas representações que (ainda) permeiam o


universo ficcional e o imaginário brasileiro, grande parte das escritoras negras
contemporâneas vêm construindo outras imagens para o corpo feminino negro. Para
isso, utilizam a “autorrepresentação” como uma estratégia para produzir novos
sentidos e significados para as mulheres afrodescendentes (SALES, 2012, p. 95). A
partir desse exercício de pensar as suas próprias vivências, as autoras utilizam o
corpo negro como um “arquivo de repertórios culturais próprios” (HALL, 2003) para
(re)escrever outras experiências, narrativas, posições sociais etc. Considerando as
reflexões de Hall (2003), “é somente pelo modo no qual representamos e
imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem
somos” (p. 346).

No poema “Vozes-mulheres”, por exemplo, Conceição Evaristo (2008)


relembra os dramas sofridos pelas mulheres negras desde as gerações que vieram
da África na condição de escravas até os dias atuais:

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó escoou


criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 158.

Analisando os versos de Evaristo (2008), é possível observar que as vozes da


bisavó, da avó, da mãe e da filha revelam mais do que experiências históricas
vivenciadas pelas mulheres negras ao longo do tempo, elas projetam a imagem de
um corpo feminino negro que resistiu (e ainda resiste) à opressão, ao
silenciamento e à submissão. Nesse diálogo entre “o ontem”, “o hoje” e “o agora”, a
voz da mulher negra contemporânea, que ecoa em cada linha poética, reivindica,
sobretudo, os lugares “definidos” e as representações sociais que foram construídas
para as mulheres afrodescendentes. Ao recusar essas “amarras”, o eu lírico afirma,
através do seu “discurso literário sobre si” (SALES, 2011), que as mulheres negras
não se identificam com essas representações do passado.

Compartilhando o pensamento de outras escritoras da sua geração, Evaristo


(2008) também deixa registrada a mensagem de que há tempo de substituir “antigos
pesadelos” por “novos sonhos” (SALES, 2011). Tais sentimentos ficam claramente
expressos em “Vozes-mulheres”, um canto que não apenas denuncia a invisibilidade
e a discriminação, mas que também traz uma proposta de renovação para as
mulheres negras. Essa proposta de renovação aparece, especialmente, vinculada à
posição da mulher negra como sujeito de sua fala. Nesse deslocamento do discurso
poético tradicional, a mulher negra deixa de ser o objeto (aquele de quem se fala) e
assume “as rédeas da enunciação”. Mais do que isso, “é quando se coloca como
porta-voz da comunidade à qual pertence” (BERND, 2011, p. 22). Nessa medida, o
ponto de vista torna-se o aspecto preponderante na escrita negra ou afro-brasileira:

Quando escrevo, quando invento, quando crio minha ficção, não me


desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência”, e que por esse ser “o
meu corpo, e não outro”, vivi e vivo experiências que um corpo não negro,
não mulher, jamais experimenta (EVARISTO, 2009, p. 18).
Nessa perspectiva, a vertente feminina negra vem se constituindo, ainda
que de forma gradativa, em um forte âmbito da literatura afro-brasileira ou negra. As
escritoras afrodescendentes, a partir do seu “lugar étnico-cultural” (SALES, 2011),
têm produzido um discurso que carrega “um rosto, um corpo negro e um sentir
feminino com características próprias” (ALVES, 2010, p. 67). É nessa direção que a
escritora Miriam Alves busca conciliar duas dimensões de sua identidade: a
identidade negra e a identidade feminina. Professora e militante ativa, a paulistana
Miriam Alves é considerada, segundo Bernd (2011), uma das principais autoras da
atualidade, sendo a primeira a introduzir questões de gênero na poesia negra. No
seu poema “Compor, decompor, recompor” (1998), publicado nos Cadernos Negros,
por exemplo, é possível observar como a voz poética “recolhe” os pedaços de um
corpo vitimizado e o recompõe:

Compor, decompor, recompor

Olho-me
espelhos
Imagens
que não me contêm.
Decomponho-me
apalpo-me
Perdem-se
as palavras.
Volatilizo-me.
Transpasso os armários
soltando sons abertos
na boca
fechada.
A emoção dos tempos
não registro
no
meu ouvir
desmancho-me nos espaços.
Decomponho-me.
Recomponho-me
sentada
na
sala
de espera
falando com
meus
fantasmas.

(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 168).

Num jogo de palavras que misturam sentimentos como dor, revolta e


esperança, o eu enunciador vai desvencilhando o corpo feminino negro da memória
silenciada e compondo outros modos de existir para este corpo. Nesse processo de
composição, decomposição e recomposição, o corpo feminino negro surge, então,
como um “território reconquistado” (SALES, 2011, p. 11). Cabe lembrar que o corpo
feminino negro, ao longo da história brasileira, foi utilizado como um território para
prática de violência física e simbólica. Em outras palavras, um corpo que foi “tocado,
modelado, modificado, violentado e agredido” (GOMES, 2006, p. 261-261).

A escrita literária de Miriam Alves, exemplificada nesse poema, procura


“desmanchar” essas marcas que foram impostas historicamente. Seguindo a
perspectiva de Evaristo (2008), a autora mostra que a personagem feminina negra
do passado – construída pelo registro masculino branco – não coincide com a
mulher negra do presente, ela não é sua “réplica fiel” (SALES, 2011, p. 48). Desse
modo, os rostos e os corpos femininos negros, redesenhados na escrita de Alves
(1998), ambicionam outras formas de visibilidade e de existência. Ao serem
recompostos, eles ganham sentidos próprios, performances e autoafirmação.

Considerações finais

As análises e as discussões propostas neste estudo mostraram que estamos


diante de um tema polêmico. A própria denominação utilizada para dar conta esse
gênero literário (afro-brasileira ou negra?) vem sendo discutida entre críticos
literários e escritores. No entanto, há um consenso entre os autores: a emergência
de uma literatura que dê voz aos escritores negros e negras que compõem a
sociedade brasileira. E, a partir disso, a possibilidade de (re)compor memórias
negras através do discurso poético, como, também, problematizar formas de
exclusão que se desdobram sob a máscara de preconceitos e intolerâncias raciais.
Os poemas de Solano Trindade e Luiz Silva (Cuti), que coincidentemente
trazem o mesmo título “Sou negro”, revelaram visões de mundo, histórias e outras
narrativas que, por muito tempo, foram apagadas não apenas do contexto literário
brasileiro, mas também dos discursos “oficiais” que circulam nos espaços públicos.
Atualmente, as políticas afirmativas e o Movimento Negro estão empenhados em
“reavivar” as narrativas “esquecidas” e, especialmente por meio da literatura, fazer
emergir as memórias subterrâneas que dão sentido à história e às lutas dos
negros/afrodescendentes na contemporaneidade. Essa é a chamada literatura de
resistência (BERND, 2011), na qual são utilizadas estratégias de inversão e/ou
(re)construção de novos sentidos ao significante “negro”.

Já a vertente feminina negra, representada aqui nas vozes de Conceição


Evaristo e Miriam Alves, mostrou o quanto as autoras negras estão empenhadas na
luta contra um tipo de discriminação que se apresenta em duas faces: a racial e a de
gênero. Num movimento entre passado e presente, suas escritas revelaram que
esse passado opressor – no qual a mulher negra era só um corpo – , não as
imobiliza, ao contrário: permite romper com o silêncio e questionar os lugares
“definidos” para as mulheres afrodescendentes na sociedade brasileira. Dessa
forma, as autoras negras vêm desvencilhando esse corpo das imagens
depreciativas e recompondo outras representações.

Por fim, este estudo procurou mostrar que a voz e a escrita daqueles que, por
muito tempo, ocuparam o lugar da subalternidade e foram (ou ainda são) excluídos
da formação histórica e cultural brasileira vêm se projetando, gradativamente, no
cenário literário nacional. Seus discursos, dentro de uma vertente poética, revelaram
que eles não trazem apenas um desejo de problematizar o passado, mas de permitir
que seja construído um novo modo de olhar para os sujeitos negros. Diante disso, a
poesia negra se faz presente como um modo de questionar os discursos
hegemônicos e, acima de tudo, de ascender as memórias negras contra o racismo
que estrutura a sociedade brasileira.

Referências
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