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SÃO PAULO
2009
UNESP, UNICAMP E PUC-SP (“SAN TIAGO DANTAS”)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM PAZ, DEFESA E SEGURANÇA INTERNACIONAL
SÃO PAULO
2009
Banca Examinadora:
________________________________________________
Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser
________________________________________________
Prof. Dr. Oliveiros S. Ferreira
________________________________________________
Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Reginaldo Mattar Nasser (PUC-SP), meu orientador, com quem aprendi
diversos novos assuntos sobre segurança internacional e alguém que me ensinou também
bastante acerca de metodologia da pesquisa científica.
Particularmente aos Professores Héctor Luis Saint-Pierre, Suzeley Kalil Mathias, Luiz
Fernando Ayerbe, Oliveiros da Silva Ferreira e Shiguenoli Miyamoto.
Aos colegas e amigos que fiz no mestrado, particularmente à Thalia Lacerda de Azevedo e
David Magalhães.
À minha família, principalmente minha mãe, Maria do Carmo Wahl, e meu avô, Domingos
Conrado Wahl, que me apoiaram moral e financeiramente durante o período em que cursei o
mestrado acadêmico; Ronaldo Bassitt Giovannetti e Ivan Whately, pela leitura dos originais e
comentários que me levaram à novas reflexões.
Aos Professores Doutores Eugênio Diniz e Domício Proença Júnior, pelas sugestões de
literatura sobre o tema que pesquisei.
ABSTRACT: The initial reaction of the George W. Bush administration to the violent acts of
september 11, 2001 was to attack the Taliban government in Afghanistan, aiming to bring
down the Mullah Omar regime and to set up bases that would serve to the hunting of al-
Qaida, organization which had that country as its sanctuary to plan its actions. The capital
Cabul, as well as another regions in the countryside, were quickly conquered, theoretically
because the american military plan, based on Special Operations Forces, air power and in the
use of a local allie: the Northern Alliance. The supposed success of the United States would
be the result, according to the official speech, of the “military transformation” that was being
encouraged by the Defense secretary Donald Rumsfeld. The afghan model was considered a
“new” american way of war and the Special Operations Forces, inside the context of “global
war on terror”, went on to the center of the american strategic conception. However, after
seven years of the invasion, the afghan situation is not good, so it is possible to question the
validity and the apparent inovation of that american military actions.
KEYWORDS: Special Operations Forces; American Way of War; Afghan Model; Military
Transformation; George W. Bush; Donald Rumsfeld; United States of America.
LISTA DE SIGLAS
Por outro lado, Anthony King aponta que, ao longo dos anos 1990, as Forças de
Operações Especiais atrairam muito a atenção do público e, particularmente nos Estados
Unidos, uma literatura acadêmica significativa sobre as Forças de Operações Especiais foi
desenvolvida. Em artigo no qual analisa as atividades táticas e a organização institucional do
Serviço Aéreo Especial – Special Air Service (SAS) britânico, King nota que um dos
desenvolvimentos mais notáveis nas Forças Armadas britânicas da atualidade é a emergência
do SAS – a maior e mais conhecida unidade de Forças de Operações Especiais britânica –
como um elemento central na defesa nacional inglesa (KING, 2008: 1).
INTRODUÇÃO GERAL
De acordo com King, desde o fim da Guerra Fria a maior ameaça de defesa terrestre
não são mais as divisões armadas do Pacto de Varsóvia, mas sim grupos de insurgentes e
terroristas que se mobilizam em uma base global em torno de novas identidades religiosas e
étnicas. Com a ascensão dessas novas ameaças assimétricas, tropas qualificadas e com
mobilidade – como as Forças de Operações Especiais – tornaram-se cada vez mais relevantes.
Simultaneamente, os orçamentos de defesa declinaram de forma significativa na década de
1990, de modo que os governos tinham de buscar maior eficiência de suas tropas. Ao mesmo
tempo em que os orçamentos diminuem e as ameaças militares se globalizam, as Forças de
Operações Especiais oferecem uma solução a custos acessíveis aos desafios estratégicos
(KING, 2008: 4).
2
INTRODUÇÃO GERAL
Eles pediram botas, munição… e alimento para cavalos. (…) Do momento em que
pousaram no Afeganistão, eles começaram a se adaptar às circunstâncias no solo. Eles
usavam barba e as vestimentas tradicionais. Eles montavam em cavalos… (…) No dia
agendado, uma de suas equipes penetrou e se escondeu atrás das linhas inimigas,
prontos para chamarem pelos ataques aéreos… Bombas precisas foram disparadas
contra posições do Talebã e da al-Qaeda. Muitos afegãos [a parte aliada aos EUA] se
aproximaram do inimigo… Foi o primeiro ataque de cavalaria do século XXI… O que
venceu a batalha de Mazar e fez o Talebã cair do poder foi uma combinação da
habilidade das Forças Especiais, as mais avançadas armas do arsenal dos Estados
Unidos, lançadas pela Marinha, Força Aérea e Marines e a coragem dos lutadores
afegãos, alguns com apenas uma perna. Naquele dia, nas terras do Afeganistão, o
século XIX se encontrou com o século XXI…1
Assim, esta dissertação está dividida em três capítulos, antecedidos desta introdução e
seguidos das considerações finais, da bibliografia, de um glossário, de um apêndice e de
1
A tradução e a adaptação são do autor desta dissertação. Para evitar notas de rodapé que não sejam essenciais,
já fica avisado aqui que as próximas citações seguirão o mesmo modelo.
2
O termo insurgência será colocado entre aspas ao longo desta dissertação quando o mesmo for usado por
determinados atores e autores para se referirem aos fenômenos no Afeganistão após a invasão norte-americana.
Assim como “guerra global ao terror” (“guerra ao terror” ou “guerra longa”) e, em alguns casos, “terrorismo” e
“terroristas”, fazem parte de um discurso proferido pela administração de George W. Bush, chamar os
acontecimentos entre os afegãos de “insurgência” também não deixa de ser um rótulo colocado por uma visão
ocidental. A palavra resistência, por exemplo, no contexto de uma invasão estrangeira, não deixa de ter a sua
validade também. Ademais, da mesma forma serão usadas aspas quando a expressão “transformação militar” se
referir à política de Rumsfeld. Como modo de guerra americano e modelo afegão têm um uso mais amplo, não
apenas se referindo a uma política pública, com eles não serão usadas aspas. Já com o “novo” modo de guerra
americano serão usadas as aspas, as quais não serão utilizadas apenas no título da dissertação e do capítulo dois.
3
INTRODUÇÃO GERAL
A Equipe 555 foi escolhida para ser a primeira entre as equipes A [A Teams, unidades
básicas de organização dos Boinas-Verdes] a ser infiltrada no Afeganistão ao longo da
guerra, a vanguarda de uma presença terrestre americana pequena e quase invisível
que ajudou a derrubar o Talebã com uma impressionante velocidade e testou um novo
modelo de guerra… As Forças Especiais desempenharam o papel central no conflito
[pela primeira vez]. E elas o fizeram com cerca de 300 soldados.
3
No primeiro anexo há duas fotos de soldados das Forças Especais dos EUA montados em cavalos nas
montanhas afegãs. Já o segundo anexo é um mapa do Afeganistão e, o terceiro, um mapa do Paquistão. No
quarto anexo, há referências adicionais de bibliografia.
4
INTRODUÇÃO GERAL
O Talebã nunca será derrotado… Uma vitória militar sobre o Talebã não é possível…
O que nós precisamos são tropas o suficiente para conter a insurgência em um nível
no qual não seja uma ameaça estratégica ao governo eleito.
O marco final da análise será o fim do ano de 2008, isto é, quando termina a gestão de
George W. Bush. Assim, é inevitável que também se adentre no período pós-Rumsfeld, isto é,
quando Robert Gates assume como secretário de Defesa dos EUA. Este último capítulo terá
como base artigos científicos e notícias publicadas em jornais.
5
INTRODUÇÃO GERAL
6
CAPÍTULO I
TRANSFORMAÇÃO MILITAR
SUMÁRIO: Resumo; 1. Introdução; 1.1 Contextualização; 1.2 Os Anos 1980; 1.2.1 Mudanças no pós-
Vietnã; 1.2.1.1 Força de Voluntários; 1.2.1.2 Tecnologia Militar; 1.2.1.3 Treinamento; 1.2.1.4
Doutrina; 1.2.2 Criação da Força Delta; 1.2.3 Doutrina Weinberger; 1.2.4 Lei Goldwater-Nichols;
1.2.5 Teorias do Poder Aéreo; 1.3 A Década de 1990; 1.3.1 Fim da Guerra Fria; 1.3.2 Força Base;
1.3.3 Guerra do Golfo; 1.3.4 Doutrina Powell; 1.3.5 Les Aspin e a Revisão de Baixo para Cima; 1.3.6
Duas Guerras Principais Simultâneas; 1.3.7 Revolução nos Assuntos Militares; 1.3.8 Guerra Centrada
em Rede; 1.3.9 Conflitos de Baixa-Intensidade; 1.3.10 Operações Outras Que a Guerra; 1.4 Ano 2000
em Diante; 1.4.1 Rumsfeld e a Transformação na Administração George W. Bush; 1.4.2 Onze de
Setembro de 2001; 1.4.3 O Assalto no Afeganistão; 1.4.4 Novo Modo de Guerra Americano; 1.4.5 A
Proeminência das Forças de Operações Especiais; 1.5 Conclusão.
RESUMO: O principal objetivo de Donald Rumsfeld quando assumiu o posto de secretário de Defesa
na administração de George W. Bush era implementar a sua visão de “transformação militar”, baseada
em alta tecnologia e números reduzidos de tropas. Para Rumsfeld, a Guerra no Afeganistão, mais
especificamente os soldados das Forças Especiais “montados em cavalos”, foram um exemplo da
“transformação militar” que o secretário estava tentando implementar, sendo que aquilo, conforme a
percepção da administração em questão, “mudaria a face da batalha”. Porém, não se trata de uma idéia
inteiramente nova, nem nos EUA, nem no restante do mundo. No caso específico dos Estados Unidos
da América, que são o enfoque deste trabalho, a transformação remete ao período subseqüente à
Guerra no Vietnã, quando Washington começou a implantar mudanças em suas Forças Armadas.
Deste momento até o assalto realizado no Afeganistão em 2001, diversos conceitos e eventos dão
corpo a uma transformação militar nos Estados Unidos. Assim, este capítulo inicial visa à resgatar e
estruturar tais acontecimentos de modo que se tenha subsídios para melhor compreender o que se
passa no governo de George W. Bush após, e até mesmo antes, os atentados de onze de setembro.
1. INTRODUÇÃO
Parece que, para algumas das visões nos EUA, qualquer mudança nas Forças Armadas
de pronto já caracteriza uma transformação. De repente, pode-se inferir ser provável que os
norte-americanos tentem dissuadir os adversários já com os próprios conceitos relacionados à
guerra. Para melhor compreender o que a percepção americana entende por transformação
militar, assim, dividir-se-á este capítulo em três partes, além desta introdução, de uma
contextualização e da conclusão. Tais seções serão categorizadas por décadas, isto é, os anos
1980, a década de 1990 e, finalmente, após o ano 2000. Em cada uma delas vai-se elencar e
tratar de conceitos e eventos que caracterizam e dão base à chamada transformação militar.
Nos anos 1980, o enfoque será no contexto do pós-guerra do Vietnã, quando os EUA,
seguindo a derrota no sudeste asiático, visaram à reformar seus serviços armados. Os
crescentes atentados terroristas nos anos 1970 (como nas Olimpíadas de Munique) levaram à
criação da unidade de elite anti-terrorista Força Delta. Ademais, no governo Reagan, houve a
elaboração da Doutrina Weinberger, além da uma ampla reforma no Departamento de Defesa
conhecida como Lei Goldwater-Nichols (que enfatiza as operações conjuntas e levou à
criação do Comando de Operações Especiais) e a formulação de teorias do poder aéreo, as
quais terão um grande impacto na Guerra do Golfo e nos anos 1990 como um todo. Chegou-
se a afirmar que o poder aéreo sozinho poderia ganhar uma guerra. Todavia, não foi o que se
verificou posteriormente.
8
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
A partir do ano 2000, o enfoque será no governo de George W. Bush (filho), mais
especificamente no papel do secretário de Defesa Donald Rumsfeld. Este assumiu seu termo
no Departamento de Defesa tendo como objetivo principal implementar a sua visão de
“transformação militar”. Rumsfeld, ademais, teve um expressivo número de conflitos com os
militares, especialmente com o então chefe do Estado-Maior do Exército, Eric Shinseki. Com
o onze de setembro de 2001 e a posterior intervenção no Afeganistão, o secretário Rumsfeld
afirmou que a guerra no Afeganistão, mais especificamente o uso das Forças Especiais
montadas em cavalos, era um exemplo da “transformação militar” que ele estava conduzindo.
Falou-se até em um “novo” modo de guerra americano – e, a partir de então, as Forças de
Operações Especiais norte-americanas ganharam uma proeminência nunca antes vista na
história militar estadunidense.
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Para os soviéticos, naquela época, a revolução militar de verdade não viera das
bombas atômicas, mas sim do casamento de ogivas termonucleares com mísseis balísticos
intercontinentais. Dessa forma, o conhecido balanço clausewitziano entre ataque e defesa
diminuiria-se e o tempo da guerra seria dramaticamente reduzido (embora tais premissas não
tenham sido testadas). É importante destacar, ademais, que revoluções nos assuntos militares
não ocorrem como resultados das ações de um único Estado-nação, mas como resultado das
interações entre múltiplos Estados (KAGAN, 2006: XI-XVIII).
dão agora às Forças Armadas dos EUA sua vantagem na “guerra da informação” (KAGAN,
2006: 210-211).
10
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
No início dos anos 1980, havia 16 divisões do Exército na ativa. Este aumentou suas
forças de combate em alguns anos em mais de 20% sem adicionar nenhum soldado extra,
apenas realocando pessoal da logística. Trata-se do programa de “Força Total”, que visava a
maximizar a força de combate imediata em um momento de apertos fiscais. Embora poucos
tenham percebido naquela época, o advento da força de voluntários criou uma oportunidade
para os militares dos EUA aumentarem sua efetividade de combate (KAGAN, 2006: 21-24).
Todavia, nos anos 1980, John Boyd criou o conceito de “Maneabilidade de Energia”
(Energy Maneuverability). A combinação do baixo desempenho dos caças norte-americanos
no Vietnã e o conceito em questão levaram um grupo chamado “Máfia dos Caças” (Fighter
Mafia) a desenvolver um avião para substituir o F-111 (bombardeiro/caça tático de múltiplo
uso desenvolvido nos anos 1960): o F-15 Eagle, o primeiro avião da Força Aérea dos EUA
em muitos anos designado primariamente para ganhar a superioridade aérea. Foi o primeiro
avião em muito tempo que não havia sido designado para carregar armas nucleares. Porém, o
F-15 ainda era um tipo muito grande, e a “Máfia dos Caças” continuou no desenvolvimento
de um avião mais leve, que seria o caça “perfeito”. O resultado foi o F-16 Falcon.
1.2.1.3 Treinamento
Os anos 1970 e 1980 também viram uma revolução fundamental na maneira como as
Forças Armadas estadunidenses treinavam para a guerra (KAGAN, 2006: 43). É possível
destacar dois treinamentos: o do poder aéreo e o do Exército. No primeiro, que envolve a
Marinha e a Força Aérea, aquela desenvolveu a “Estação Aéreo-Naval Miramar” (Naval Air
4
O primeiro avião capaz de fugir dos radares foi o F-117 Night Hawk. Sua missão era voar em áreas bastante
defendidas, para eliminar instalações de radares e baterias de mísseis anti-aéreos, limpando o terreno para outros
caças e bombardeiros. Também era usado para destruir centros militares de comunicação e controle. Foram
construidos cerca de 59 aviões, cada um custando aproximadamente US$ 45 milhões. O F-117 foi usado pela
primeira vez em combate durante a invasão norte-americana no Panamá, em 1989. Em 2006, com a introdução
do F-22, o Pentágono decidiu aposentar o Night Hawk, de maneira tão secreta como foi o nascimento do avião.
Para mais detalhes, ver, por exemplo, Peter PAE. F-117 leaving the way it arrived – stealthily. Los Angeles
Times, April 22, 2008. Disponível em: <http://articles.latimes.com/2008/apr/22/business/fi-stealth22>. Acesso
26 jan. 2009.
12
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
1.2.1.4 Doutrina
Por outro lado, há também a chamada Batalha Aérea-Terrestre, proposta por Don
Starry. O foco dela era operacional, não tático (como a Defesa Ativa). O nível operacional
está entre a tática e a estratégia. O nível tático se preocupa com as batalhas, já o operacional
com a ligação das batalhas em uma ou mais campanhas em um teatro. A transição do foco
tático da Defesa Ativa para o operacional da Batalha Aérea-Terrestre possibilitou novas
maneiras de se pensar sobre a guerra (KAGAN, 2006: 60).
13
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Batalha Aérea-Terrestre era que ela não era específica para o teatro europeu (KAGAN, 2006:
61), continente que poderia sofrer uma invasão terrestre soviética e que, portanto, era o foco
dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
6
Sugerida em 1983, a iniciativa usaria sistemas baseados no solo e no espaço para proteger os Estados Unidos
de ataques de mísseis balísticos nucleares. A iniciativa em questão enfocava uma defesa estratégica em vez da
política anterior de ataque estratégico oriunda da “destruição mútua assegurada” (MAD, na sigla em inglês).
Antes do onze de setembro de 2001, a política de defesa dos EUA sob George W. Bush estava centrada em um
escudo anti-mísseis cuja origem está na “guerra nas estrelas” de Ronald Reagan. Todavia, o ataque aos Estados
Unidos não veio de um míssel externo, mas sim de um interno. No caso, um avião comercial.
15
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Além disso, o secretário em questão também formulou uma doutrina sobre o uso do poder
militar, a qual viria a influenciar as futuras gerações nos Estados Unidos.
16
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Os anos 1980 também são conhecidos por uma revolução no poder aéreo norte-
americano. John Boyd, o arquiteto dos “super caças”, delineou o Discurso sobre Vencer e
Perder. Neste, o autor propõe o conceito de “Laço OODA” (a sigla, em inglês, significa
observação, orientação, decisão e ação). Conforme John Boyd, organizações complexas como
os exércitos podem ter múltiplos “Laços OODA” operando simultaneamente. Boyd acreditava
ser essencial manter altos níveis de flexibilidade e de iniciativa para fazer as ações
imprevisíveis e rápidas. Organizações complexas como exércitos e Estados só poderiam
funcionar se suas partes trabalhassem harmonicamente. Boyd se utiliza do conceito de “centro
de gravidade”. Todavia, não tem o mesmo significado do schwerpunkt de Clausewitz (sobre o
“centro de gravidade” clausewitziano, ver apêndice desta dissertação). John Boyd defendia a
destruição das conexões entre os centros de gravidade, os quais, assim, tornar-se-iam “não
cooperativos” e limitariam as ações do inimigo. Jomini8 argumentara que um Exército poderia
ser derrotado através de ataques em suas comunicações. Dessa forma, o conceito de Boyd usa
7
Em 1946, o Pentágono começou a elaborar o que depois ficaria conhecido como Plano de Comando Unificado
(Unified Command Plan – UCP), que dividia o mundo em comandos militares combatentes para lutarem um
conflito global no caso da Guerra Fria vir a se tornar “quente”. Tratam-se de seis os comandos geográficos, cada
um com a sua área de responsabilidade: o Comando Norte, responsável pela América do Norte, o Comando Sul,
responsável pela América Latina, parte do Oceano Atlântico sul e parte do Pacífico sul, o Comando Africano,
responsável pela África, o Comando Central, responsável pelo Oriente Médio, o Comando Europeu, responsável
pela Europa e Rússia e o Comando do Pacífico. Ver <http://www.defenselink.mil/specials/unifiedcommand/>.
Acesso 26 jan. 2009.
8
O Barão Antoine-Henri Jomini nasceu na Suiça em 1779 e morreu em 1869. Foi general na França e, depois, na
Rússia. Trata-se de um dos grandes intérpretes da arte da guerra napoleônica. Para Jomini, a conduta da guerra é
governada por um pequeno número de princípios fixos; entre eles, o mais importante é que um dos atores do
conflito deve buscar uma linha de operações capaz de ameaçar as comunicações do inimigo enquanto as suas
mantenham-se seguras. Em segundo lugar, a chave da vitória residiria na concentração das forças no chamado
“ponto decisivo”. Este seria menos as ações do inimigo e mais a configuração do terreno e a distribuição de rios
e estradas. Aliás, podem ser áreas fracas ou mal defendidas nas linhas inimigas. Seu livro A Arte da Guerra está
disponível online em inglês no portal do Projeto Gutenberg. Confira <http://www.gutenberg.org/etext/13549>.
Acesso 26 jan. 2009.
17
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
uma idéia e argumentação clausewitzianos para apoiar uma visão de guerra jominiana
(KAGAN, 2006: 104-111).
O piloto de caça John Warden também desenvolveu a sua teoria aérea. No livro A
Campanha Aérea (The Air Campaign), de 1988, desenvolveu a tese de que a superioridade
aérea é fundamental para a vitória na guerra moderna. Seu argumento é baseado na revisão da
história militar recente. O autor reconhece, todavia, que o poder aéreo tem um papel limitado
em contra-insurgência. Para Warden, o “centro de gravidade” é onde o inimigo é mais
vulnerável (assim, uma outra interpretação diferente do conceito de Clausewitz, para o qual o
“centro de gravidade” é onde o inimigo é mais forte). Warden sugere a idéia de “assalto ao
centro de gravidade aéreo” (Assauting the Air Center of Gravity). O ataque ao centro de
gravidade – uma vulnerabilidade crítica, conforme Warden – quebraria o sistema inimigo sem
ter que enfrentá-lo diretamente. Isto é o oposto de Carl Clausewitz, que sugere atacar e
destruir a força inimiga. Warden identifica “cinco anéis” estratégicos do inimigo: a liderança,
a produção industrial, a infra-estrutura, a população e as próprias forças inimigas. Também
propõe a idéia de “guerra paralela” e sugere o uso do poder aéreo sozinho para alcançar
diretamente os objetivos políticos da guerra. Porém, o conceito de guerra aérea de Warden era
apenas parte de uma longa tradição da teoria do poder aéreo (KAGAN, 2006: 112-125).
Todos nos Estados Unidos concordavam acerca de uma premissa básica: quaisquer
que fossem os requerimentos de uma estratégia de segurança nacional no pós-Guerra Fria, a
nação poderia desfrutar de um “dividendo da paz” significativo sob a forma de um orçamento
de defesa reduzido e Forças Armadas menores (KAGAN, 2006: 144). Desta forma, nos anos
que se seguiram à queda do império soviético, os governos de George H. W. Bush (pai) e
William Clinton buscaram delinear a nova estratégia dos EUA.
18
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
dos argumentos que viriam a emergir na administração de Bill Clinton (1993-2001) era da
necessidade de uma definição completamente nova de segurança nacional, onde a ligação
tradicional entre os militares e a inteligência seria complementada, ou substituida, por
considerações pouco tradicionais: dos direitos humanos ao comércio. Os tipos de ameaças
militares nas quais os Estados Unidos se focariam eram os “Estados párias”, sendo que os
militares e a inteligência deveriam mudar seus focos para acomodar tal nova realidade. A
Agência Central de Inteligência (CIA), inclusive, foi pressionada para cortar sua espionagem
político-militar e se focar na inteligência econômica. Os militares americanos deveriam mudar
seu foco dos conflitos de “alta-intensidade” e da “guerra estratégica” para os conflitos de
“baixa-intensidade” e as “operações outras que não a guerra” (FRIEDMAN, 2004: 81).
Em julho de 1990, um jogo de guerra dos EUA mostrou que a Arábia Saudita poderia
ser defendida de um ataque iraquiano, mas a um custo alto. Em dois de agosto do mesmo ano,
o Iraque invadiu o Kuwait. Sob a influência da guerra contra o Irã, Saddam Hussein acusava o
Kuwait de roubar petróleo iraquiano. Em cinco de agosto, o presidente George H. W. Bush
19
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
afirmou que a invasão não continuaria. Em seguida, o rei saudita Fahd se encontrou com
Richard Cheney, então secretário de Defesa, solicitando apoio militar dos Estados Unidos.
Imediatamente aviões norte-americanos começaram a se deslocar para a Arábia Saudita (a
instalação militar estadunidense naquele país não agradaria Osama bin Laden). No dia 17 de
janeiro de 1991, após aprovação no Congresso dos Estados Unidos e nas Nações Unidas,
começou o ataque aliado de 34 nações, através do uso de helicópteros Apache. Aviões
invisíveis F-117 foram usados para atacar instalações de radares iraquianos. A Força Delta foi
enviada para buscar mísseis Scud, que estavam sendo lançados contra posições em Israel.
Mísseis norte-americanos Tomahawk foram lançados contra alvos no Iraque. Depois de uma
ampla mobilização das forças convencionais, como os Marines e o Exército, bem como a
Marinha e a Guarda Costeira, em 28 de fevereiro de 1991 deu-se o cessar-fogo. A campanha
militar foi considerada um sucesso, embora Saddam Hussein não tenha sido retirado do poder.
O bom funcionamento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, antes “travado” por
disputas da Guerra Fria, levou a um pensamento sobre um novo paradigma de segurança
coletiva. Os Estados Unidos da América emergiram do episódio como a única “superpotência
global” remanescente, a qual lideraria o mundo em uma “nova ordem mundial”, caracterizada
pelo globalização da democracia liberal.
20
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Essencialmente, a doutrina Powell defende que a ação militar só deve ser usada como
último recurso e apenas se houver um risco claro à segurança nacional dos EUA. A força,
quando utilizada, deve ser esmagadora e desproporcional à inimiga. Deve haver um amplo
apoio por parte da opinião pública e uma estratégia de saída bem definida para o conflito no
qual os militares se engajarão. Washington deveria ganhar e ganhar decisivamente. Powell
teve como parte da base de sua doutrina de guerra as visões do antigo secretário de Defesa
dos Estados Unidos Caspar Weinberger (1981-1987), além da própria experiência pela qual
passou Powell enquanto major do Exército norte-americano na Guerra do Vietnã (1959-
1975). Conforme Charles Krauthammer, a Doutrina Powell encontrou sua expressão máxima
na Guerra do Golfo (1990-1991). A idéia não era competir com o poder iraquiano, mas
esmagá-lo completamente com aviões, tanques, tecnologia, poder humano e vontade. Isto
faria a guerra curta e a vitória certa. Atualmente a doutrina Powell parece óbvia, mas não era
naquele tempo. Durante anos, os Estados Unidos seguiram uma política de proporcionalidade:
restrita em razão do medo da escalada na guerra. Era sob esta teoria que o major Colin Powell
viu seus homens sangrarem e morrerem no Vietnã (KRAUTHAMMER, 2001).
Quando o presidente William (Bill) Clinton (1993-2001) nomeou Leslie (Les) Aspin
seu secretário de Defesa em 1993, ao novo secretário foi dada a missão de definir a estratégia
militar norte-americana para o contexto do pós-Guerra Fria. Aspin iniciou um processo
chamado “Revisão de Baixo para Cima” – Bottoms-Up Review (ou BUR) – cuja missão era
repensar cada aspecto da política militar americana. Aspin chegou a basicamente quatro
conclusões (FRIEDMAN, 2004: 83-84):
1. O interesse principal dos Estados Unidos era a manutenção da estabilidade mundial como
base para a expansão global da prosperidade econômica. Dessa forma, a missão dos militares
norte-americanos era manter a estabilidade planetária através de intervenções contra potências
menores dentro de um contexto de coalizões. Os Estados Unidos não teriam que lidar com um
rival à altura, como foi a URSS.
2. Os EUA, portanto, teriam que continuar projetando força por todo o mundo afora, inclusive
em lugares inesperados e em momentos não antecipados (as Forças Armadas deveriam ser
capazes de fazer isso).
3. Porém, o maior problema, evidenciado na Operação Tempestade no Deserto (Iraque, 1991)
era que as Forças Armadas dos Estados Unidos eram muito pesadas. Levaria-se cerca de seis
meses para se montar uma força capaz de lançar um ataque substantivo, ou seja, algo muito
demorado.
21
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
4. Dessa forma, os EUA precisavam construir uma força mais leve e mais rápida, com grande
ênfase em tecnologia e que fosse capaz de lidar com uma inúmera variedade de inimigos que
eventualmente entrariam em confronto naquele novo contexto.
22
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
9
Para um relato mais detalhado sobre a origem das Forças Especiais, ver Col. Aaron BANK. From OSS to
Green Berets. New York: Pocket Books, 1986.
23
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Exército finalizaria o trabalho e ocuparia o país eventual. Na nova visão de Aspin, o papel de
combate do Exército começaria no fim do auge da guerra. O Exército conduziria as batalhas
finais, com poucas baixas assim, e se estabeleceria no território ocupado. Enquanto isso, as
Operações Especiais se ocupariam das “glórias” maiores. Naturalmente, os comandantes de
tanques não gostaram desta nova visão. Era, porém, o tipo de guerra usado na Operação
Tempestade no Deserto e no Afeganistão (FRIEDMAN, 2004: 86).
A estrutura da “Força Base” delineada pelo general Colin Powell foi designada para
lidar com dois conflitos de larga-escala (Major Regional Conflicts, ou MRCs) ao mesmo
tempo (por exemplo, o Iraque e a Coréia do Norte ou, atualmente, o Afeganistão e o Iraque).
Todavia, a administração de Bush (pai) não especificou quais seriam os dois conflitos.
Embora tal modelo tenha alguma sustentação histórica (os EUA sempre defenderam múltiplos
interesses simultaneamente), recebeu muitas críticas. Les Aspin, com o Bottoms-Up Review,
quis mudar este conceito. Entretanto, após tais revisões, o que emergiu foram Forças Armadas
fundamentalmente iguais às da época soviética, só que em tamanho menor (KAGAN, 2006:
156).
Não há exemplo na história das chamadas “revoluções nos assuntos militares” de uma
revolução que tenha sido conduzida com sucesso em um “vácuo estratégico” (no caso, os
anos 1990). Na época, muitos falavam que o mundo estava indo de uma “era industrial” para
uma “era da informação”. Embora os esforços de transformação nos anos 1990 tenham
produzido alguns avanços em campos específicos, trata-se de um caminho errado na história
do desenvolvimento militar norte-americano, que preparou o terreno para os problemas com
os quais os EUA teriam de lidar no mundo do onze de setembro (KAGAN, 2006: 200-201).
Alvin Toffler, no livro A Terceira Onda (1980), afirmou que o mundo estava se
movendo de uma “era industrial” para uma “era da informação”. Essa idéia capturou o
Exército dos EUA nos anos 1990. O “Projeto Força XXI”, de 1994, visava à inteira
digitalização do Exército, para melhor entendimento do “espaço de batalha” (e não mais
campo de batalha). Só que o conceito de digitalização não foi colocado nos contextos da
estratégia e da grande estratégia dos Estados Unidos, nem mesmo no da guerra conjunta
(KAGAN, 2006: 202-210).
24
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
25
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Desde a sua origem nos anos 1997 e 1998, a “guerra centrada em rede” (network-
centric warfare – NCW) tinha vantagens significativas sobre as teorias com as quais
concorria. Dado que ela era baseada em teorias e práticas dos negócios, tinha uma base
teórica mais sofisticada do que suas competidoras. A NCW foi apresentada como uma nova
capacidade e um novo conjunto de necessidades – quando, na verdade, era uma progressão
lógica limitada dos esforços já em andamento nos anos 1990. A guerra centrada em rede foi
descrita em detalhes pela primeira vez em 1998 por David S. Alberts, John J. Garstka e
Frederick P. Stein. Todos eles estavam envolvidos em diversos programas de digitalização e
transformação no Pentágono. Desde o início, o conceito teve o apoio entusiasmado do
almirante aposentado Arthur K. Cebrowski, o qual co-escreveu um artigo com Garstka em
1998. O modelo da NCW foi baseado em corporações que, nos anos 1990, usaram métodos
organizacionais e técnicas inovadoras combinadas com tecnologias da informação para
alcançar vantagens sobre seus concorrentes.
reorientação das bases dentro dos próprios EUA, mas isto seria inviável politicamente. O mais
importante do QDR de 2001 foi a criação do Escritório de Transformação da Força (Office of
Force Transformation), que se reportava diretamente tanto ao secretário quanto ao sub-
secretário de Defesa. Todavia, o documentou emergiu em um momento no qual o movimento
de “guerra da informação” tinha a convicção de que a guerra se tratava sobre a destruição da
habilidade do inimigo em lutar, tanto por meio de atrito preciso ou atingindo centros de
gravidade. Não considerou as conseqüências da política de troca de regimes que aceitou como
uma possível missão militar. Isto teria implicações na Guerra do Afeganistão, que estava para
começar.
Embora os Estados Unidos nunca tenham dado muita importância aos conflitos de
baixa-intensidade (low-intensity conflicts, em inglês), estes entraram na agenda norte-
americana com mais ênfase a partir dos anos 1980. Trata-se de um tipo de conflito também
conhecido como “pequena guerra” (small war) e é conduzido entre uma Força Armada
regular e grupos irregulares. Não é por se chamar pequena guerra que o conflito de baixa-
intensidade seja menor. Pode ser até mais violento, aliás, do que uma guerra convencional.
Pequenas guerras é um termo que foi cunhado por Charles E. Callwell no livro Small Wars: A
Tactical Textbook for Imperial Soldiers, de 1906, e significa “todas campanhas que não sejam
aquelas onde os dois lados opostos consistem-se de tropas regulares”. Uma pequena guerra,
definida dessa forma, não precisa ser necessariamente uma guerra conduzida em pequena
escala (GRAY, 1999: 273).
No final de dezembro do ano 2000, George W. Bush anunciou que selecionara Donald
Rumsfeld para ser seu secretário de Defesa. No anúncio, Bush repetiu as principais idéias de
seu futuro secretário, especialmente aquela referente à “transformação militar”. Assumindo
seu segundo termo na condição de secretário de Defesa, Rumsfeld acreditava que o controle
civil sobre os militares havia erodido durante os anos Clinton. Para Rumsfeld, os serviços
armados ainda estavam lutando a Guerra Fria. Eram menores do que aqueles que haviam
combatido na Guerra do Golfo, mas ainda não tinham mudado sua estrutura de forma
substancial. Rumsfeld sentia-se bem em advogar o uso do poder militar, especialmente o
poder aéreo. Rumsfeld se opunha à utilizaçào de tropas terrestres como mantenedoras da paz,
assim como era um entusiasta da inteligência, armas especiais e mísseis (HERSPRING, 2008:
6-7).
28
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
de qualquer outro país se tornar uma ameaça significativa (tratava-se de um período de “pausa
estratégica”). Donald Rumsfeld criaria uma nova arquitetura para a defesa dos EUA e de seus
aliados. Em terra, as forças pesadas seriam mais leves. Estas seriam mais letais. Todas se
desdobrariam e se sustentariam mais facilmente. No ar, os Estados Unidos estariam aptos a
atacar todo o mundo com precisão, usando tanto sistemas tripulados quanto não tripulados
(HERSPRING, 2008: 22-23).
O general Eric Ken Shinseki, então chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA
(1999-2003), militar que já vinha trabalhando, antes mesmo de Donald Rumsfeld assumir, por
um tipo de transformação militar (a qual Rumsfeld não aceitaria: queria impor seu próprio
modelo, o que levaria a certas tensões internas no Pentágono), defendia o uso de plataformas
menos pesadas, isto é, brigadas e divisões mais leves e móveis. O Exército estadunidense
tinha que ser mais leve e móvel para responder ao crescente número de operações de paz,
assim como pequenas insurgências com as quais teria de lidar. Estava ficando claro para
Shinseki que os campos de batalha do futuro seriam celulares, não lineares. Em vez das linhas
de frente que marcaram a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a Guerra da Coréia (1950-
1953), por exemplo, os inimigos estariam misturados com as forças dos Estados Unidos. Eles
poderiam estar na frente ou atrás dos soldados norte-americanos e seriam um novo tipo de
inimigo (HERSPRING, 2008: 30-31).
Eric Shinseki acreditava que o guerreiro estadunidense seria a chave. Todavia, para
Rumsfeld, o futuro pertencia às armas espaciais e no maior uso do poder aéreo. O Exército
não ocupava um lugar de destaque nos planos de Rumsfeld. Este, aliás, queria economizar
recursos cortando programas do Exército, de forma que pudesse alocar mais dividendos para
29
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Sob a nova estratégia de Donald Rumsfeld (um documento que o secretário fornecera
aos planejadores do Pentágono que desenvolviam a Revisão Quedrienal de Defesa de 2001),
aos militares caberiam basicamente quatro tarefas (HERSPRING, 2008: 37):
30
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Além disso, Rumsfeld também queria que os serviços armados desenvolvessem novas
capacidades no espaço, na inteligência e na guerra de informação, além de experimentarem
novas tecnologias. Ademais, os militares deveriam criar forças-tarefa para responderem a
crises ao redor do mundo, rápida e decisivamente.
A primeira reação de George W. Bush foi ordenar que Colin Powell e o Departamento
de Estado lançassem um ultimato ao Talebã, mandando que entregassem Osama bin Laden;
do contrário, os EUA atacariam o país. Enquanto o Afeganistão se tornaria uma atração
menor do que o Iraque, foi o foco principal da administração Bush nos meses finais de 2001.
O presidente Bush queria uma resposta imediata das Forças Armadas dos Estados Unidos –
uma resposta que faria os “terroristas” pagarem um preço muito alto por aquilo que haviam
feito contra os EUA. Rumsfeld e seus colegas assumiram que Saddam Hussein estava por trás
do onze de setembro. O sub-secretário de Defesa para Política, Douglas Feith, dizia que a
campanha deveria ser imediatamente conduzida a Bagdá. Já Rumsfeld sugeriu que os Estados
Unidos deveriam atacar tanto o Iraque quanto a al-Qaeda no Afeganistão. Powell discordou,
dizendo que havia apoio público para atacar a organização de bin Laden, mas não para uma
invasão no Iraque. Por incrível que pareça, o vice-presidente Dick Cheney concordava com
Powell. Bush também deixou claro que não achava o momento adequado para resolver a
questão do Iraque. O presidente havia falado com Richard Alan Clarke, então conselheiro de
contra-terrorismo no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, que lhe garantira que o onze
de setembro for a obra da al-Qaeda (HERSPRING, 2008: 77). Clarke era conhecido como o
“czar” do contra-terrorismo nas administrações de Clinton e Bush (filho).
31
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
dos EUA com relação ao Iraque era moralmente chocante. Depois da Guerra do Golfo, ao
longo dos anos 1990, a política dos EUA visava a conter Saddam Hussein. Zonas de exclusão
aérea foram criadas no sul e no norte do respectivo país, de modo que os aviões iraquianos
não poderiam entrar em tais áreas. Em 1995 o Conselho de Segurança das Nações Unidas
criou o programa Petróleo por Comida. Assim, diversos formuladores de políticas públicas
acreditavam que Saddam estava contido. Seu Exército estava enfraquecido após a Guerra do
Golfo e, mesmo que Saddam permanecesse sendo um déspota, havia pouco que podia fazer
para ameaçar os EUA. Entretanto, Paul Wolfowitz, Douglas Feith e outros falcões achavam
que ele era uma ameaça para a região e para Israel. Livrando-se de Saddam, os falcões
estavam convencidos de que iniciariam um novo capítulo no Oriente Médio. A democracia no
Iraque, em tese, teria um efeito dominó. Em janeiro de 1998, Richard Perle, presidente do
Comitê Consultivo da Junta de Política de Defesa (órgão ligado ao Pentágono) nos primeiros
anos da administração de George W. Bush, e Paul Wolfowitz fizeram uso do think-tank neo-
conservador Projeto para um Novo Século Americano para enviar uma carta aberta ao
presidente Clinton pedindo uma campanha terrestre para retirar Saddam Hussein do poder.
Sob pressão dos falcões iraquianos, no outono de 1998 o Congresso dos EUA aprovou a Lei
de Libertação do Iraque (Iraq Liberation Act), que declarava que deveria ser a política dos
Estados Unidos procurar remover o regime de Hussein e substitui-lo por uma democracia.
Enquanto a administração de George W. Bush tinha outros problemas para lidar, como a
China e o escudo anti-mísseis, os falcões iraquianos continuaram na ativa. Eles consideravam
o general Colin Powell, que se tornaria secretário de Estado, uma anomalia na nova
administração, porque ele não acreditava na “necessidade absoluta” de mudança de regime no
Iraque. Os falcões também se ressentiam de Powell por outro motivo. Ele havia escrito a
Doutrina Powell, que assumia que, antes dos EUA irem à guerra, um número de ações
preliminares deveria ser tomado. Os Estados Unidos e os seus parceiros deveriam usar uma
força esmagadora contra o seu inimigo. Isso minimizaria as perdas norte-americanas, forçaria
o outro lado a capitular rapidamente e permitiria às forças estadunidenses pacificar o país
após terminado o combate. Entretanto, para Donald Rumsfeld, o Iraque representava uma
oportunidade para ele provar sua teoria de “transformação militar” por meio do uso do menor
número possível de tropas. O general Shinseki, por outro lado, estava mais preocupado com
um conflito em potencial no mar Cáspio do que no Iraque. O general Marine Tony Zinni,
chefe do Comando Central dos EUA, era o mestre em jogos de guerra envolvendo o Iraque.
Ele julgava serem necessários cerca de 400.000 soldados para tomar e ocupar o Iraque
(HERSPRING, 2008: 68-73).
32
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
No dia dez de janeiro de 2001, Bush foi falar com o Estado-Maior Conjunto. O Iraque
era o primeiro tópico da lista de assuntos, porque seria a área de maior risco com a qual teria
de lidar. Quando o Conselho de Segurança Nacional se reuniu em cinco de fevereiro do
mesmo ano, revelou-se que a Casa Branca já havia decidido dar recursos a grupos iraquianos
no exílio e apoiar grupos anti-regime dentro do Iraque. Cerca de uma semana depois,
enquanto Bush visitava o México, aviões norte-americanos e britânicos, que voavam nas
zonas de exclusão aérea no Iraque, acertaram vinte alvos militares de comunicação, incluindo
alguns próximos à Bagdá. Estava claro que o Iraque era uma das principais preocupações da
administração, ao contrário do terrorismo. Richard Clarke chamava a atenção para a luta
contra a al-Qaeda e o Talebã. Paul Wolfowitz, porém, diminuiu qualquer ameaça oriunda da
al-Qaeda e continuava a argumentar que o Iraque era o perigo principal. A CIA estava
preocupada com a al-Qaeda pelo fato desta ter algo em mente. Em 30 de maio de 2001,
George Tenet, então diretor da CIA, e alguns de seus assistentes avisaram a então conselheira
de Segurança Nacional Condoleezza Rice. Em dez de julho, Tenet recebeu um relatório do
chefe da unidade de contra-terrorismo da CIA, Cofer Black, que afirmava que a al-Qaeda logo
atacaria os EUA. Rumsfeld não levou os avisos a sério e quis se focar em planos de guerra
contra o Iraque e a Coréia do Norte (HERSPRING, 2008: 73-75).
Em função do Pentágono não ter um plano viável para mover tropas de solo para o
Afeganistão, a Agência Central de Inteligência assumiu o papel de liderança na configuração
de um plano de guerra no encontro de doze de setembro de 2001 – no que George Tenet
chamou de o “Gabinete de Guerra” (HERSPRING, 2008: 78). O plano de ação da CIA
apontava para o uso de uma equipe paramilitar da própria agência e aviões não-tripulados
Predador dentro do Afeganistão, para trabalhar com as forças de oposição ao Talebã,
especialmente a Aliança do Norte, e preparar o terreno para a inserção das Forças Especiais
do Exército norte-americano. A CIA vinha operando no Afeganistão há um bom tempo – ao
menos desde que os soviéticos estiveram lá nos anos 1980. A CIA conhecia as tribos, os
grupos étnicos, os líderes, a cultura e, em algum nível, os idiomas, e também quem iria e
quem não iria cooperar com os EUA.
Como Tommy Franks apontou, o CENTCOM não tinha desenvolvido um plano para
operações convencionais de solo no Afeganistão. Também não tinha as costuras diplomáticas
para a instalação de bases, vôos e acessos necessários aos vizinhos do Afeganistão. Assim, o
33
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
A ação militar começou no dia sete de outubro de 2001. No final de setembro, equipes
encobertas da CIA haviam sido inseridas no Afeganistão. Essas equipes da inteligência, com
as Forças Especiais e aliados locais juntariam suas forças para derrotar o Talebã. As equipes
norte-americanas se juntaram à Aliança do Norte em 20 de outubro e mais ou menos em cinco
de novembro eles estavam atacando Mazar-e-Sharif, a cidade mais importante do norte
afegão. Todavia, ninguém tinha decidido que tipo de governo seria colocado depois da derrota
do Talebã. Segundo o jornalista Bob Woodward, Bush era contra o uso dos militares
estadunidenses para missões de construção de nações. Uma vez que o trabalho estivesse
realizado, as forças dos Estados Unidos não seriam mantenedoras da paz. Ao contrário, seria a
CIA e as suas malas de dinheiro que organizariam o país novamente (WOODWARD apud
HERSPRING, 2008: 85).
Um dos aspectos mais confusos da guerra era saber quem estava no comando. Em um
encontro com o presidente Bush e o general Franks em 15 de setembro de 2001, Rumsfeld
trouxe esta questão. Ele sugeriu que o comando operacional da CIA fosse dado ao Pentágono.
Em 19 de outubro de 2001, cinco semanas após os eventos de onze de setembro, as Forças
34
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Especiais chegaram ao solo afegão. Agora, em vez de apenas bombardear o regime Talebã, o
Departamento de Defesa poderia fazer uma contribuição importante no solo. A CIA estaria
sob as ordens do CENTCOM. Porém, as equipes da agência de inteligência sabiam muito
mais sobre as particularidades do Afeganistão do que os militares. George Tenet recebeu um
relatório de Rumsfeld em 25 de outubro de 2001; escrito pela Agência de Inteligência de
Defesa (Defense Intelligence Agency – DIA, a agência de inteligência militar do Pentágono),
mostrava como o Departamento de Defesa estava mal informado sobre o Afeganistão.
Tommy Franks decidiu então enviar unidades das Forças Especiais que levavam
equipamento especial de comunicação que permitia que chamassem o poder aéreo quando
necessário. Eram apoiados por milícias tribais afegãs. Alguns analistas acreditam que, se
Washington tivesse enviado um número maior de tropas, Osama bin Laden e seus seguidores
poderiam ter sido capturados ou mortos. A decisão parece ter sido de Franks. O plano era
forçar a al-Qaeda e o Talebã do alto das montanhas para dentro das cavernas e, então,
bombardeá-las. As Forças Especiais e seus aliados chegaram ao alto das montanhas e
forçaram a al-Qaeda para dentro das cavernas, que foram bombardeadas com bombas
poderosas de penetração. Todavia, aparentemente Osama bin Laden fugiu para o Paquistão.
para atacá-los e derrotá-los. Essa revolução nas nossas Forças Armadas está apenas
começando e promete mudar a face da batalha” (BUSH apud HERSPRING, 2008: 86).
36
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
(1) Logo depois do onze de setembro, o governo George W. Bush lançou a Operação
Liberdade Duradoura, a qual, entre seus objetivos, visava a retirar o regime Talebã do poder
no Afeganistão, bem como instalar bases avançadas que serviriam de ponta de lança para a
caçada a membros da al-Qaeda. A ação militar no Afeganistão tinha por base o poder aéreo e
as Forças de Operações Especiais. Estas, além de localizarem alvos para os bombardeiros,
também se juntaram à Aliança do Norte para, juntas, derrubarem o Talebã. Tal operação foi
aprentemente um sucesso e logo já se falava em uma mudança do modo de guerra americano
(KOZARYN, 2001), o qual, a partir de então, teria as Forças de Operações Especiais como
seu elemento central.
37
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Armadas dos Estados Unidos, de modo que ficassem menores, mais leves e mais ágeis
(KAPLAN, 2003).
(4) A edição de 2004 do Plano de Comando Unificado, arranjo americano que divide o
mundo em comandos militares combatentes, implementou o que pode ser interpretado como
uma ampla mudança no “centro de gravidade militar”: definiu o Comando de Operações
Especiais dos Estados Unidos da América como o responsável pela condução, planejamento,
sincronização e execução das operações globais contra as redes “terroristas”. Se antes estava
na condição de “apoiador” dos demais comandos combatentes regionais dos EUA, a partir de
então o Comando de Operações Especiais passou a ser “apoiado” pelos demais (SHANKER;
SHANE, 2006). O plano em questão é classificado, de forma que a informação aqui elencada
foi coletada a partir de relato publicado na imprensa.
(7) Em abril de 2006, o governo dos Estados Unidos lançou o que se pode chamar de
“planos operacionais” para colocar em prática algo mais amplo, o Plano Estratégico Militar
para a Guerra ao Terror. Tais planos operacionais são documentos classificados, mas as
38
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
(8) Já sob a administração do sucessor de Donald Rumsfeld, Robert Gates (que tomou
posse no Pentágono no final de 2006), o general David Petraeus, especialista em contra-
insurgência e comandante da 101a. Divisão Aerotransportada na invasão americana do Iraque,
assumiu, em fevereiro de 2007, o comando da Força Multi-Nacional no Iraque e, depois, a
chefia do Comando Central (que comanda tanto a guerra no Afeganistão quanto a no Iraque).
Alguns analistas (TYSON, 2008) entenderam a promoção como indicação do modo como
viriam a ser conduzidas as batalhas dos EUA, isto é, a partir de uma percepção pouco comum
no Departamento de Defesa: a da contra-insurgência.
(9) Um conselho liderado por Petraeus selecionou coronéis para indicá-los à promoção
ao posto de general-de-brigada. Entre os selecionados, está o coronel Ken Tovo, membro das
Forças Especiais e veterano da Guerra no Iraque. Já entre os membros do conselho, estava o
tenente-general Stanley A. McChrystal, que chefiou o Comando Conjunto de Operações
Especiais. É possível que esta mudança institucional revele algum tipo de percepção sobre os
conflitos que os Estados Unidos lutam ou terão de lutar (TYSON, 2008).
(10) De acordo com Max Boot, a indicação do general Norton A. Schwartz para a
chefia do Estado-Maior da Força Aérea dos Estados Unidos em junho de 2008 foi uma
mudança histórica. O posto geralmente foi ocupado por pilotos de bombardeiros e, depois, por
pilotos de caça. Schwartz é um piloto de aviões cargueiros. Além de comandante do Comando
de Transportes do Pentágono, Schwartz foi sub-comandante do Comando de Operações
Especiais. Com esta experiência, uma mudança cultural poderia estar a caminho na Força
Aérea dos EUA (BOOT, 2008).
39
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
(11) O secretário de Defesa Robert Gates afirmou que “o envolvimento das forças
convencionais dos Estados Unidos em conflitos será em menor escala, já que as Forças de
Operações Especiais serão o componente principal” (BARNES, 2008). Sob Robert Gates, o
Pentágono lançou, em meados de 2008, a nova Estratégia de Defesa Nacional dos Estados
Unidos, cujo enfoque é mais em guerra irregular contra grupos como a al-Qaeda do que em
guerra convencional contra Estados-nação (WHITE, 2008: A01). Como as Forças de
Operações Especiais são consideradas os “irregulares dentro dos regulares” (ver apêndice
desta dissertação) é possível que venham a se destacar ainda mais a partir da estratégia em
questão. Gates defendeu a sua visão de conflitos não-convencionais da atualidade e do futuro
em artigo que escreveu para o periódico Foreign Affairs (GATES, 2009).
(12) Em suma, não deixa de ser algo notável o aumento no orçamento do Comando de
Operações Especiais dos EUA: de US$ 2,3 bilhões em 2001, foi ampliado para cerca de US$
7,3 bilhões em 2007 (KOEHL, 2008).
1.5 CONCLUSÃO
Para Robert D. Kaplan, a essência da chamada “transformação militar” não seriam
novas táticas ou novos sistemas de armas, mas sim reorganização burocrática. De fato, tal
reorganização teria sido alcançada nas semanas seguintes ao onze de setembro pelo 5o. Grupo
das Forças Especiais, cujas equipes A, auxiliadas pela CIA e pela Força Aérea, conquistaram
o Afeganistão sozinhas. A relação entre o 5o. Grupo e os altos escalões do Pentágono, em tais
semanas de 2001, evidenciou a burocracia hierárquica plana que caracterizava a al-Qaeda e as
mais inovativas corporações globais. Era um arranjo com o qual as melhores escolas de
negócios ficariam impressionadas. Os capitães e sargentos das equipes A do 5o. Grupo não se
comunicavam com os altos escalões através de uma cadeia de comando vertical. Eles até não
chegaram a receber instruções específicas. A eles foi falado apenas que se juntassem à
Aliança do Norte e auxiliassem a derrotar o Talebã. O resultado foi o fortalecimento dos
primeiros sargentos para chamarem por ataques de bombardeiros B-52. O 5o. Grupo das
Forças Especiais não era mais uma pequena parte de uma burocracia de defesa massiva.
Tornou-se um interessante spin-off10, comissionado para fazer um trabalho específico de seu
próprio jeito (KAPLAN, 2006: 225-226).
10
Trata-se de um termo da língua inglesa utilizado para a referência a uma empresa que se originou a partir de
algum centro de pesquisa. O objetivo de tal novo empreendimento é explorar alguma nova tecnologia.
40
CAP. I – TRANSFORMAÇÃO MILITAR
Logo que o 5o. Grupo ajudou a Aliança do Norte a tomar Cabul, a ocupação
americana do Afeganistão foi consolidada pela 10a. Divisão de Montanha e por outros braços
convencionais das Forças Armadas. Em 2002, uma Força Tarefa Conjunta Combinada (CJTF-
180) foi estabelecida, com uma Força Tarefa de Operações Especiais Conjuntas (C-JSOTF)
dentro dela. O aeroporto de Bagram11, localizado a sudeste de Charikar, capital da província
de Parwan, no norte do Afeganistão, tornou-se a base de milhares de tropas. Os dias da
inovativa hierarquia plana estavam encerrados. Voltava-se à uma hierarquia “dinossáurica”,
vertical, de uma época industrial, o maior impedimento para os Estados Unidos conduzirem
uma contra-insurgência global bem-sucedida. Com toda sua tecnologia e boa-vontade para
enviar seus soldados pelo mundo afora, o império estadunidense se mostrava incompetente
com idiomas, especialmente em situações e lugares onde isso contava mais. Tratava-se de
uma outra dimensão que fora negligenciada pela “transformação militar” de Rumsfeld, algo
que não tinha nada a ver com os mais avançados sistemas de armas. As forças americanas no
Afeganistão não precisavam de aviões caça F-22, mas sim de mais aviões de ataque ao solo
A-10 e aviões de apoio aéreo AC-130 (KAPLAN, 2006: 227, 235, 243).
11
A Base Aérea de Bagram teve um papel chave na invasão soviética do Afeganistão em 1979, servindo de base
de operações para tropas e suprimentos. O documentário Um Taxi para a Escuridão (Taxi to the Dark Side,
EUA, 2007, direção de Alex Gibney), além de falar das práticas de interrogarório adotadas pela CIA no governo
Bush (filho) em Guantánamo (Cuba) e em Abu Ghraib (Iraque), também revela um pouco do que se passava no
interior de Bagram.
41
CAPÍTULO II
SUMÁRIO: 2. Introdução; 2.1 O Modo de Guerra Americano Tradicional; 2.2 O Novo Modo de Guerra
Americano; 2.3 Primeira Guerra de Comandos e o Soldado Perfeito; 2.4 Desconstruindo o Sucesso
Afegão; 2.4.1 Nada de Muito Novo no Front; 2.4.2 Quando os Objetivos Não Coincidem; 2.5
Respostas à Desconstrução; 2.6 O Legado de Donald Rumsfeld; 2.7 Conclusão.
RESUMO: Este capítulo versará sobre o que foi chamado de o “novo” modo de guerra americano, isto
é, o estilo de guerra que foi utilizado pelos EUA em seu ataque ao Afeganistão logo após os atentados
de onze de setembro de 2001. Tal “novo” modo de guerra também é chamado de modelo afegão.
Segundo a administração de George W. Bush, tratava-se de um resultado da “transformação militar”
que o governo vinha promovendo. O “novo” modo de guerra americano, ou modelo afegão,
caracteriza-se basicamente pelo uso de Forças de Operações Especiais, pelo poder aéreo e pelos
aliados locais (a Aliança do Norte). Todavia, um “novo” modo de guerra pressupõe a existência de um
modo de guerra anterior. Desta forma, este capítulo dois começará tratando do tradicional modo de
guerra americano. Em seguida, concentrar-se-á no “novo” modo de guerra americano, também
chamado por James Dunnigan de “primeira guerra de comandos”. Posteriormente, será a vez de se
desconstruir o suposto “novo” modo de guerra. Seria algo verdadeiramente novo? Para Stephen
Biddle, não necessariamente. Depois, será apontada uma resposta à tal crítica, isto é, um reforço à
argumentação de que realmente se tratou de um “novo” modo de guerra americano. Após isto, tratar-
se-á brevemente do legado do então secretário de Defesa Donald Rumsfeld para, enfim, ser delineada
a conclusão deste capítulo.
2. INTRODUÇÃO
12
É famosa pela prática de Buzkashi, um esporte local da região, no qual os jogadores cavalgam enquanto
tentam pegar a carcaça de um animal no chão.
CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
do Afeganistão. A capital Cabul caiu sem nenhuma luta em treze de novembro de 2001
(BIDDLE, 2002: 10). Com a queda de Cabul e Kunduz, as atenções se voltaram à bem
defendida Kandahar, no sul. Na noite de seis de dezembro, o Mulá Mohammed Omar e a
liderança do Talebã escaparam da cidade e se esconderam, terminando, assim, o governo
Talebã no Afeganistão. Em seguida, as forças aliadas seguiram um grupo de sobreviventes da
al-Qaeda, entre os quais poderia estar Osama bin Laden, em uma série de redutos nas
Montanhas Brancas perto de Tora Bora, um complexo de cavernas situado na província de
Nangarhar, no leste do Afeganistão. Os redutos foram tomados em uma batalha de 16 dias
que terminou em 17 de dezembro, embora parte da defesa da al-Qaeda tenha escapado através
da fronteira com o Paquistão. Em março de 2002, uma segunda concentração da al-Qaeda foi
identificada no vale Shah-i-kot, localizado na província de Paktia, e nas montanhas à leste de
Gardez, capital da província de Paktia. Na chamada Operação Anaconda, uma ofensiva
combinada de dois batalhões da infantaria regular dos EUA, mais especificamente da 101a.
Divisão Aerotransportada e da 10a. Divisão de Montanha, apoiadas por aliados afegãos,
tropas ocidentais e Forças de Operações Especiais de diversas nações, chegou de surpresa na
al-Qaeda, matando muitos, dispersando o restante e trazendo para mais perto, para combate
próximo, as operações principais de luta naquele país. A supostamente rápida derrota do
Talebã pelos EUA seria resultado de um “novo” modo de guerra americano, decorrente da
“transformação militar” que estava sendo promovida pelo governo de George W. Bush.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
e direto de força pela nação em tempos de guerra na busca de vitórias militares. O único tipo
de estratégia norte-americana empregando as Forças Armadas tendeu a ser o tipo mais direto
de estratégia militar, aplicada na guerra. Os EUA não estavam suficiente ou consistentemente
envolvidos na política internacional para permitir o desenvolvimento de uma estratégia
nacional coerente para a busca consistente de objetivos políticos pela atividade diplomática
em combinação com as Forças Armadas (WEIGLEY, 1973: XIX).
Mais antigamente, quando a estratégia nos EUA significava principalmente o uso dos
combates para alcançar os objetos da guerra, o principal objetivo visado era apenas a vitória
militar. Na leitura de Russell Weigley, Carl von Clausewitz apontou que as guerras são de
dois tipos: aquelas que visam a derrotar o inimigo (desarmá-lo completamente) e aquelas
guerras que visam a apenas alcançar algumas conquistas nas fronteiras do país inimigo (não
necessariamente desarmando-o completamente). Nas primeiras guerras dos Estados Unidos, a
nação ainda era muito fraca para buscar mais do que o segundo tipo, isto é, uma vitória
limitada (WEIGLEY, 1973: XX).
Baseando-se em parte na distinção feita por Clausewitz entre dois tipos de guerra, o
historiador militar alemão Hans Delbrück (1848-1929) sugeriu a existência de dois tipos de
estratégia militar: a estratégia da aniquilação, que busca a derrota completa do poder militar
inimigo, e a estratégia do atrito (exaustão ou erosão), que geralmente é empregada por um
estrategista cujos meios não são grandes o suficiente para permitir a busca da destruição direta
do inimigo e que, portanto, busca uma aproximação indireta. Na história da estratégia norte-
americana, a direção tomada pela concepção estadunidense de guerra fez da maioria dos
estrategistas norte-americanos estrategistas da aniquilação. No começo, quando os recursos
militares americanos eram escassos, os Estados Unidos tinham estrategistas de atrito (George
Washington, por exemplo, como será visto logo abaixo). Mas o crescimento do país e a sua
adoção de objetivos ilimitados na guerra levou a estratégia da aniquilação a se tornar a
característica básica do modo de guerra norte-americano (WEIGLEY, 1973: XXII).
Embora a estratégia de George Washington tenha sido a do atrito, ela revelou algumas
características que depois seriam apontadas por Colin S. Gray como definidoras do modo de
guerra americano. O modo de guerra de George Washington se caracterizou pela estratégia de
atrito, isto é, a erosão da força inimiga através de ataques rápidos (hit-and-run, em inglês) nos
postos avançados do inimigo. A estratégia dos exércitos americanos na Guerra Revolucionária
(1775-1783) tinha que ser uma estratégia baseada na fraqueza, já que o inimigo britânico era
muito mais forte. George Washington tinha que acreditar não em uma vitória militar, mas na
possibilidade da oposição na Inglaterra forçar o Ministério inglês a abandonar o conflito.
Entretanto, isto dependeria de uma guerra prolongada, com riscos à causa revolucionária
americana. George Washington acreditava que tinha que correr tais riscos, já que os recursos
norte-americanos não permitiriam outra maneira. Porém, Washington começou adotando uma
estratégia de defesa. Todavia, esta não funcionou. O programa de Washington tinha que ser
menos ambicioso, mas de certa forma positivo. A estratégia se tornou ofensiva: George
Washington e os americanos eram muito impacientes – o que, de acordo com Colin Gray,
como se verá à frente, viria a ser uma das características do modo de guerra americano: a
impaciência. Seria até exagero denominar de estratégia de atrito: é possível que a expressão
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
estratégia de erosão seja mais precisa. Enfraquecer a determinação dos inimigos britânicos
por meio de ações graduais e persistentes contra a periferia de seus exércitos era um objetivo
ofensivo. Para agir desta maneira, seriam necessários um ótimo sistema de inteligência e uma
movimentação rápida. De modo a atingir os destacamentos e não a força principal do inimigo,
George Washington precisaria se utilizar do elemento surpresa. Para se proteger da surpresa
alheia e surpreender o inimigo, movimentações suaves, assim como boa inteligência, eram
necessários. George Washington freqüentemente iniciava cedo a marcha de seu Exército,
enquanto o inimigo ainda dormia. Mais tarde na guerra Washington desenvolveu um interesse
especial na criação de formações de infantaria leve, especialmente designadas para marchar e
atacar rapidamente, encorajando os comandantes de seu batalhão para chamarem os soldados
mais aptos e alertas para as companhias de infantaria leve e juntando estas em um comando
de elite separado (WEIGLEY, 1973: 3-16). De certa forma, tais forças mais leves podem
lembrar a recente “transformação militar” dos Estados Unidos, que objetiva justamente forças
menos pesadas.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
1. Apolítica 8. De Larga-Escala
2. Aestratégica 9. Agressiva, ofensiva
3. Ahistórica 10. Profundamente regular
4. Otimista, solucionadora de problemas 11. Impaciente
5. Culturalmente duvidosa 12. Excelente em termos de logística
6. Tecnologicamente dependente 13. Muito sensível à perdas
7. Focada em poder de fogo CARACTERÍSTICAS DO MODO DE GUERRA AMERICANO
2. AESTRATÉGICA: A estratégia é, ou deveria ser, a ponte que liga o poder militar à política.
Quando os americanos conduzem a guerra como uma atividade amplamente autônoma,
deixando as preocupações sobre a paz e a sua política para depois, a ponte da estratégia é
quebrada. A excelência na estratégia não tem sido uma força americana, ao menos desde
que George Washington derrotou os britânicos estrategicamente. As duas maiores causas
deste problema são, essencialmente, uma longa tradição de superioridade material, a qual
oferece poucos incentivos para os cálculos estratégicos, e a tradicional teoria americana
das relações civis-militares, que não encoraja o diálogo e os questionamentos entre o
formulador de políticas e o soldado.
3. AHISTÓRICA: Os Estados Unidos têm uma rica história e experiência com inimigos
irregulares. Além disso, esta experiência não foi em seu todo negativa. O problema foi, e
até recentemente era, que tal experiência com a guerra irregular nunca foi abraçada e
adotada pelo Exército como base para o desenvolvimento de uma doutrina para uma
competência central. O Exército norte-americano improvisou e conduziu guerra irregular,
algumas vezes apenas guerra regular contra irregulares. Mas esta tarefa sempre foi vista
oficialmemente como uma diversão enquanto se preparavam para a guerra “real”. A
grande atração da comunidade de defesa dos Estados Unidos é com a tecnologia, e não
com a história. São praticamente “antihistóricos”.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Dessa forma, não é um problema que o Exército americano possa resolver tática ou
operacionalmente. Em vez disso, seguindo a doutrina clássica da contra-insurgência, lida-
se melhor com o problema do insurgente o considerando como uma condição que tem que
ser tratada indiretamente, por meio do fornecimento de segurança à população. É um
processo lento e gradual.
7. FOCADA EM PODER DE FOGO: Uma devoção ao poder de fogo não pode encorajar as Forças
Armadas norte-americanas a usar outras soluções, mesmo quando estas são mais
adequadas. Em vez de ser considerado em seu contexto cultural, o inimigo é reduzido à
condição desumanizada de um objeto do poder de fogo norte-americano.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
10. PROFUNDAMENTE REGULAR: Poucos exércitos no mundo têm sido igualmente competentes
em conduzir guerra regular e irregular. O Exército norte-americano não é excessão. Tanto
o Exército quanto os Fuzileiros Navais foram algumas vezes bem-sucedidos em guerra
irregular, enquanto alguns indivíduos estadunidenses se mostraram capazes na condução
de guerra de guerrilha. Como instituições, entretanto, as Forças Armadas americanas não
foram amigáveis tanto à guerra irregular quanto aos que esta combatem. As Forças de
Operações Especiais norte-americanas prosperaram episodicamente com apoio político
civil (Kennedy e Rumsfeld, por exemplo), mas não até recentemente elas foram tratadas
como um elemento importante nas equipes de armas combinadas.
11. IMPACIENTE: Os EUA vêem a guerra como um mal ocasional que tem que ser resolvido
tão decisiva e rapidamente quanto possível. As mentes dos militares regulares norte-
americanos, assim como as mentes do público doméstico, foram ensinados a esperar que a
ação militar produza resultados conclusivos.
13. MUITO SENSÍVEL À PERDAS: Os EUA esperam baixas perdas pois esta foi sua experiência
recente. Tal expectativa foi alimentada pelos eventos, pela evolução de um modo de
guerra baseado em alta tecnologia que expõe poucos soldados americanos à perigos
mortais e pela baixa qualidade dos inimigos recentes. O enfoque é em máquinas, a
exploração do computador em particular. Em geral, tal transformação deve fortalecer a
habilidade americana de conduzir seu modo de guerra tradicional.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Quatro dias antes do discurso em Citadel, Bush juntara-se aos homens e mulheres do
USS Enterprise para simbolizar o 60o. aniversário de Pearl Harbor. O sete de dezembro de
1941, segundo Bush, foi um dia decisivo que mudou os EUA para sempre. Em um momento
único, o “esplêndido isolamento” da América fora encerrado. Os quatro anos que se seguiram,
conforme Bush, transformaram o modo de guerra americano: a idade dos navios de batalha
deu vez à capacidade ofensiva dos porta-aviões. O tanque, geralmente usado para proteger a
infantaria, passou a servir para atravessar as linhas inimigas. Em Guadalcanal, na Normandia
e em Iwo Jima, a guerra anfíbia mostrou o seu valor. E, no fim daquela guerra, ninguém mais
duvidaria do valor do poder aéreo estratégico.
Para ganhar a “guerra ao terror”, apontou Bush, deveria-se pensar diferente. O inimigo
que apareceu no onze de setembro busca evitar a força dos EUA e constantemente procura as
fraquezas do país em questão. Desta forma, a América seria necessária mais uma vez, do
mesmo modo como foi na 2a. GM, para mudar a maneira como os militares norte-americanos
pensam e lutam. E começando no dia sete de outubro de 2001, o inimigo no Afeganistão teve
os primeiros sinais de um novo serviço militar estadunidense – o qual não poderia, e não
seria, evitado.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
para vencer as guerras, mas principalmente para policiar e pacificar, para controlar multidões
e conter conflitos étnicos. Para Bush, tais previsões estavam erradas (BUSH, 2001):
Enquanto as ameaças à América mudaram, a necessidade por vitória não. Nós estamos
lutando contra inimigos nas sombras e fanáticos – inimigos usando as ferramentas do
terror e da guerra de guerrilha – ainda que estejamos encontrando novas táticas e
novas armas para atacá-los e derrotá-los. Esta revolução em nossos serviços militares
está apenas começando, e ela promete mudar a face da batalha [destacado pelo autor
desta dissertação].
Ainda segundo George W. Bush, o Afeganistão teria sido o lugar de provação deste
“novo” modelo. Os dois meses que se passaram, de sete de outubro à dezembro de 2001,
mostraram que uma doutrina inovadora e armas de alta tecnologia poderiam definir e, em
seguida, dominar um conflito não-convencional. Os “bravos” homens e mulheres dos serviços
militares americanos estariam “reescrevendo” as regras da guerra com novas tecnologias e
antigos valores, como coragem e honra (BUSH, 2001):
Nossos comandantes têm uma imagem em tempo real de todo o campo de batalha, e
são capazes de ligar as informações dos alvos oriundas dos sensores aos tiros quase
que instantaneamente. Nossos profissionais de inteligência e das forças especiais
cooperaram com lutadores afegãos aliados que conheciam o terreno, o Talebã e a
cultura local. E nossas forças especiais têm a tecnologia para chamar por ataques
aéreos de precisão – junto com a flexibilidade de orientar tais ataques montados à
cavalos, na primeira marcha de cavalaria do século XXI [destacado pelo autor desta
dissertação].
Tal combinação – inteligência em tempo real, forças locais aliadas, Forças Especiais e
poder aéreo preciso –, conforme George W. Bush, nunca fora usada anteriormente. O conflito
no Afeganistão teria ensinado mais sobre o futuro dos serviços armados dos EUA do que uma
década de simpósios em think-tanks. O Predador seria um bom exemplo. O veículo aéreo
não-tripulado pode voar sobre as forças inimigas, coletar inteligência, transmiti-la aos
comandantes e atacar alvos com extrema precisão. Antes do Afeganistão, segundo Bush, o
Predador tinha céticos, porque ele não se encaixava nas chamadas “velhas maneiras”. Após o
Afeganistão, estaria claro que os militares não detinham veículos aéreos não-tripulados o
suficiente. As bombas de precisão também teriam se destacado. Na Guerra do Golfo,
consoante Bush, tais armas foram a exceção – enquanto que, no Afeganistão, foram a maioria
do arsenal que os Estados Unidos usaram. Washington estaria acertando os alvos com mais
efetividade, de uma distância maior, com menos perdas de civis. Mais e mais, as armas dos
EUA poderiam atingir alvos em movimento (BUSH, 2001):
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Este novo modo de guerra americano, segundo Boot, estaria se delineando há muito
tempo. Suas raízes estariam nas reformas de defesa dos anos 1980. Nos anos mais recentes o
seu grande apoiador foi o secretário Donald Rumsfeld. Para Boot, a “transformação militar”
norte-americana foi demonstrada no Afeganistão em 2001. Em vez de se mover em um
terreno que expeliu exércitos invasores no passado, os EUA escolheram lutar com Forças de
Operações Especiais e bombas do tipo cirúrgico. Esta aplicação habilidosa do poder norte-
americano teria permitido que a Aliança do Norte derrubasse o Talebã em apenas dois meses.
Boot reconhece que, embora bem-sucedida de um ponto de vista mais geral, a Guerra no
Afeganistão também mostrou as limitações de não se usar tropas de solo o bastante. Osama
bin Laden e outros “terroristas” fugiram durante a batalha de Tora Bora e, mesmo depois de
estabelecido um novo governo em Cabul, senhores da guerra ainda estavam no controle em
muitos lugares no interior do Afeganistão (BOOT, 2003).
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
2. COMANDOS BEM TREINADOS: as Forças Especiais estavam em uma fase ruím após a
Guerra do Vietnã porque diversos generais de alta patente não gostavam da idéia de
Comandos. Todavia, alguns gostavam, e a idéia pegou em muitos líderes eleitos – como
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
4. BOMBAS INTELIGENTES: as bombas inteligentes foram criadas, e usadas pelas primeira vez,
na Segunda Guerra Mundial. Elas eram boas o suficiente para afundar navios e derrubar
pontes, mas não para fornecer o tipo de apoio próximo como aquele dado à Aliança do
Norte no Afeganistão. Em 2001, as bombas inteligentes se tornaram precisas e confiáveis
o suficiente para assustar o Talebã. É a norma para uma nova arma revolucionária levar
meio século para se tornar realmente efetiva;
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Estados Unidos. Isto faz com que o Talebã pense ser imune a um ataque dos EUA. Mas os
diplomatas norte-americanos fizeram acordos para o uso do espaço aéreo e de bases no
Paquistão e em outros países ao norte do Afeganistão. A CIA também esteve na área,
fazendo contatos silenciosamente e vendo quem era quem. Isto se mostrou crucial quando
foi necessário negociar com as tribos de pashtuns no sul afegão;
8. ASSUNTOS CIVIS E AS OPERAÇÕES PSICOLÓGICAS: estas duas funções operaram por muito
tempo atrás das cortinas, mas os Estados Unidos são uma das poucas nações que mantêm
um número substancial de unidades para este tipo de trabalho. Foram cruciais na Guerra
do Afeganistão;
9. A “COR ROXA”: a rivalidade entre os serviços armados dos EUA foi atenuada. “Pensar
roxo” significa deixar de lado as rivalidades e trabalhar pelo bem comum. Combinando-se
as cores dos uniformes dos diversos serviços armados se obtém a cor roxa. No
Afeganistão, a Força Aérea compartilhou seus tanques aéreos com a Marinha e esta
forneceu um porta-helicópteros para as Forças Especiais. O Exército integrou os
controladores da Força Aérea e os Seals às operações de solo. Com toda esta cooperação,
a vitória não poderia ter sido tão suave ou decisiva.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
norte-americano não era algo novo. As Forças Especiais fazem isto desde o Vietnã. O que fez
esta tática trabalhar tão bem são fatores que provavelmente não estarão presentes em outras
situções (Dunnigan está na corrente das “idiossincracias locais”, conforme divisão de Stephen
Biddle, a qual será vista mais à fundo na próxima seção): 1) O Afeganistão é uma cultura
guerreira; 2) O Talebã não tinha muito apoio entre a população. 3) Embora seja uma cultura
guerreira, não são fanáticos quando lutam (há muita deserção). Retomando, em treze de
setembro de 2001 diversas pequenas equipes de reconhecimento das Forças Especiais e da
Força Delta chegaram ao Paquistão e atravessaram a fronteira até o Afeganistão. Sua missão
era coletar informação sobre a situação política e militar dentro do país. O SAS britânico pode
ter entrado no Afeganistão antes dos operadores norte-americanos, mas pouco se fala sobre
isto. É importante destacar que as Forças Especiais geralmente operam perto dos teatros de
operações que estão em andamento e também em áreas nas quais as Forças Armadas possam
vir a atuar. Isso dá às Forças Especiais um conhecimento das situações que ninguém mais nas
Forças Armadas dos EUA tem (DUNNIGAN, 2004: 212-213).
A Guerra no Afeganistão teve outras duas armas que foram bastante responsáveis pela
“vitória” sobre o Talebã. A arma mais visível foi a bomba inteligente, geralmente de uma
tonelada, guiada por GPS e lançada pelo avião bombardeiro B-52. A outra arma foi o
dinheiro. Quando os agentes da CIA foram para o Afeganistão eles sabiam que, assim como
os britânicos notaram um século antes, os afegãos não podem ser comprados, mas podem ser
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
alugados. Trata-se de um antigo costume afegão: um senhor da guerra se torna um líder dos
homens que lutam tendo os recursos para sustentá-los. A distribuição do dinheiro foi feita
pelos batalhões de Assuntos Civis do Exército americano (DUNNIGAN, 2004: 223-224).
O veículo aéreo não-tripulado foi uma ferramenta bastante útil para as Forças de
Operações Especiais no Afeganistão. Trata-se de um exemplo de como fazer os “soldados
perfeitos” um pouco mais “perfeitos” (DUNNIGAN, 2004: 230). Tais pequenos aviões – o
Predador entrou em serviço em 1995 – dão às Forças de Operações Especiais sua própria
força aérea particular. Como a velocidade é fundamental em uma ação de Comandos, estes
não têm que necessariamente esperar pela Força Aérea regular.
Atenção Talebã! Vocês estão condenados. Vocês sabiam disto? No instante em que os
terroristas que vocês apoiam tomaram os nossos aviões, vocês se sentenciaram à
morte… Nossos helicópteros farão chover a morte em seus campos antes que sejam
detectados pelo radar. Nossas bombas são tão precisas que elas podem ser lançadas
em suas janelas…
E por que a Guerra no Afeganistão teve que ser uma guerra de comandos? Os generais
não têm certeza sobre o envio de tropas para campos de batalha distantes. E as razões não são
políticas, mas sim logísticas. Após o onze de setembro, o transporte se tornou a questão
central nos planejamentos. O Afeganistão não tem costa marítima e está distante de bases
aéreas de países amigos. Os EUA só poderiam, inicialmente, deslocar pequenos números de
tropas para a área. No período de cerca de um ano, uma força de solo maior poderia ser
deslocada para a região. Mas uma resposta rápida era necessária. No fim de setembro, muitos
sabiam que teria de ser uma guerra de comandos. Se durante a Guerra Fria os EUA detinham
uma rede de bases aéreas próximas a possíveis campos de batalha, a situação no início da
“guerra ao terror” era diferente (DUNNIGAN, 2004: 238-240).
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
dois pontos de vista críticos. Na próxima seção, apontar-se-á as críticas de Stephen Biddle e
de Michael O’Hanlon ao modelo afegão.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
blindados do Talebã, os quais paralisaram a Aliança do Norte nos seis anos anteriores de
guerra civil, possibilitando que um aliado pouco sofisticado e com baixos números
conquistasse todo um país em apenas algumas semanas. Muitos acreditam que tal modelo
afegão poderia ser usado em qualquer lugar com efeitos similares. Todavia, há discordâncias.
Muitos argumentam que o sucesso do modelo afegão em 2001-2002 foi “idiossincrático”, isto
é, um produto de circunstâncias locais únicas que provavelmente não irão se repetir em
conflitos futuros (BIDDLE, 2002: 1-4).
Para Biddle, nenhuma das duas visões apontadas acima é inteiramente satisfatória.
Uma avaliação mais razoável seria ver a campanha não como decorrência das particularidades
locais ou como uma revolução militar, mas sim como um exemplo ortodoxo de um teatro de
guerra moderna conjunta. Enquanto a campanha no Afeganistão foi única em algumas coisas
e nova em outras, é fácil exagerar que seja distinta. A campanha se centrou em uma luta entre
dois exércitos grandes. Embora a atenção pública tendeu a se focar no papel do poder aéreo e
das Forças de Operações Especiais que o guiaram, o objetivo do papel desempenhado pelo
ocidente foi desequilibrar as escalas de uma guerra terrestre já existente (BIDDLE, 2002: 43).
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
No todo, para O’Hanlon, a Operação Liberdade Duradoura foi muito bem designada e
executada. O uso de equipes da CIA e das Forças de Operações Especiais conjuntamente com
o poder aéreo de precisão permitiu um bombardeamento preciso e efetivo das posições do
Talebã e da al-Qaeda. O pessoal dos EUA também contribuiu bastante com ajuda tática e
logística à Aliança do Norte. Porém, houve erros. Um deles foi levar prisioneiros do Talebã e
da al-Qaeda para Guantánamo13. A resistência inicial da administração de George W. Bush
em garantir as proteções básicas das Convenções de Genebra14 aos soldados do Talebã e a
negação constante de aplicá-las também à al-Qaeda foi algo pouco inteligente. O grande
13
A baía de Guantánamo está localizada no sudeste de Cuba. Os Estados Unidos assumiram o controle territorial
do lugar com base no Tratado Cubano-Americano, de 1903, que garantiu a Washington a posse perpétua daquela
localidade, embora o governo cubano, após a Revolução de 1959, tenha considerado a presença estadunidense
por lá ilegal. Em 1898 foi estabelecida a Base Naval da Baía de Guantánamo, para a qual, a partir de 2002, foram
levados prisioneiros da “guerra ao terror”.
14
Tais convenções, constituidas a partir de quatro tratados, estabelecem os padrões do direito internacional para
questões humanitárias, principalmente o tratamento de não-combatentes e prisioneiros de guerra.
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
problema dos Estados Unidos, entretanto, envolveu a busca pelos líderes da al-Qaeda. Se
Osama bin Laden, Ayman al-Zawahiri, Abu Zubaydah e outros estiverem vivos, a guerra
falhou em alcançar um objetivo principal. Em vez de se basear em forças afegãs e
paquistanesas para fazerem o trabalho em Tora Bora no mês de dezembro, Donald Rumsfeld
e o general Tommy Franks (chefe do Comando Central) deveriam ter impedido a fuga dos
combatentes da al-Qaeda para o Paquistão através do envio de forças norte-americanas para a
fronteira. As forças dos EUA também deveriam ter sido usadas na busca de Mulá Omar e dos
remanescentes do Talebã, mesmo que a missão fosse menos importante do que aquela contra
a al-Qaeda. Os aliados locais dos Estados Unidos não eram aptos para o trabalho em Tora
Bora. Do que, então, os EUA precisariam para cumprirem a missão? Para fechar as cerca de
100 a 150 rotas de fuga na fronteira afegã-paquistanesa perto de Tora Bora seriam necessários
cerca de 1.000 a 3.000 soldados norte-americanos. E faz alguma diferença Osama bin Laden e
os seus seguidores estarem livres? Mesmo com os seus líderes vivos, a al-Qaeda está mais
fraca sem o seu santuário no Afeganistão. Perdeu as suas bases de treinamento, locais de
encontro seguros, produção de armas, instalações de suprimentos e a proteção do governo
local. Mas, como o especialista em terrorismo Paul Pillar tem apontado, a história das
organizações violentas com líderes carismáticos, como o Sendero Luminoso no Peru e o
Partido do Trabalhadores do Curdistão na Turquia, sugere que elas são mais fortes com os
seus líderes do que sem eles15. A prisão de Abimael de Guzmán em 1992 e de Abdullah
Ocalan em 1999 feriu tais organizações, assim como o assassinato, em 1995, de Fathi Shikaki
(da Jihad Islâmica Palestina) enfraqueceu significamente o seu grupo. Alguns grupos podem
sobreviver à perda de líderes importantes ou, como resultado, tornarem-se mais violentos –
como o Hamas após a morte de Yahya Ayyash em 1996. Mas, mesmo assim, eles terão
momentos difíceis até desenvolverem novas táticas e conceitos operacionais após a perda
(O’HANLON, 2002: 55-58).
dos mísseis ar-terra Hellfire. E O’Hanlon se questiona: quais as lições mais amplas que
emergem deste conflito? Em primeiro lugar, o progresso militar não depende sempre de caros
programas de armas. Segundo, as habilidades humanas continuam importantes na guerra,
como demonstrado pelas Forças de Operações Especiais e pela CIA. Em terceiro lugar,
O’Hanlon acha que a mobilidade e o deslocamento militares precisam continuar a ser
melhorados. Além disso, apenas uma pequena fração das Forças Armadas precisa ser
equipada com as armas mais sofisticadas e caras. Todavia, caso os “terroristas” permaneçam
no Afeganistão e este entre em guerra civil, a vitória não será completa. A administração de
George W. Bush precisaria repensar sua política de manutenção da paz. A resistência em
contribuir com uma força de estabilização para o Afeganistão foi um erro razoável que os
aliados dos EUA talvez não possam resolver por contra própria (O’HANLON, 2002: 59-63).
Conforme Andres (et. all), a operação militar que os Estados Unidos conduziram para
derrotar o regime Talebã no Afeganistão em 2001 representa algo novo na guerra. Nunca
antes o poder aéreo e as Forças de Operações Especiais tiveram o papel principal em uma
guerra. Embora a noção das Forças de Operações Especiais orientando o poder aéreo em
apoio aos aliados nativos seja um fato histórico aceito, poucos, mesmo entre as Forças
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CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Especiais, poderiam imaginar um momento em que isto constituiria o esforço central em uma
campanha sustentada. Apesar da opinião militar comum sobre a utilidade de uma campanha
centrada em Forças de Operações Especiais, o presidente George W. Bush escolheu o plano
sugerido pela CIA em vez daquele oferecido pelo Estado-Maior Conjunto. Osama bin Laden
argumentara que o envio de tropas para o Afeganistão faria o Talebã usar as mesmas táticas
que derrotaram a União Soviética. O saudita via o plano norte-americano de inserir tropas no
Afeganistão como algo que levaria à vitória não apenas de seus seguidores no país, mas
também em todo o mundo muçulmano. Aparentemente o Exército via a campanha como um
meio de preparar o terreno para tropas norte-americanas mais pesadas. Os ataques aéreos em
Mazar-e-Sharif, conduzidos pelas Forças de Operações Especiais em apoio à Aliança do
Norte, sinalizaram o fim da relação tradicional entre as Forças de Operações Especiais e o
poder aéreo, e a emergência do modelo afegão. O poder de fogo de precisão orientado pelas
Forças de Operações Especiais transformou radicalmente a campanha estadunidense,
aumentando a capacidade do poder aéreo em destruir as forças terrestres do Talebã
(ANDRES; WILLS; GRIFFITH JR., 2005/06: 129-134).
64
CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
Para Andres (et. all), no Afeganistão e no Iraque o novo modelo ajudou os Estados
Unidos a superarem obstáculos políticos e geográficos para produzirem vitória em situações
nas quais a aplicação dos modelos de força mais desejados não era possível. Em retrospecto,
argumentos que diziam que o modelo afegão não era replicável estavam errados. O novo
modelo se tornou rapidamente uma ferramenta importante no arsenal militar dos EUA e tem
ramificações importantes para os conflitos futuros. Entretanto, assim como qualquer doutrina
de guerra, não é aplicável universalmente, assim como também tem as suas limitações. Em
uma visão semelhante à de Biddle, O’Hanlon argumenta que o modelo afegão tem seus erros
porque as tropas aliadas nem sempre estarão motivadas a conduzir missões de acordo com os
planos de campanha norte-americanos. Os interesses dos EUA e de seus aliados nem sempre
serão os mesmos, com resultados negativos no campo de batalha. Tanto Stephen Biddle
quanto Michael O’Hanlon usam as batalhas de Tora Bora e Anaconda como estudos de caso
para demonstrar estes problemas (ANDRES; WILLS; GRIFFITH JR., 2005/06: 144-145).
das forças locais. Como Andres (et. all) demonstrará, os objetivos designados aos afegãos
pelos planejadores dos EUA eram tão difíceis que mesmo um Exército moderno bem
treinado, equipado e motivado teria problemas em alcançá-los. O plano militar estadunidense
tinha dois elementos básicos: primeiro, o poder aéreo iria castigar os complexos de cavernas
de modo a desalojar o inimigo. Segundo, milhares de afegãos iriam explorar os resultados dos
bombardeios lutando de caverna em caverna e fornecendo um apoio para evitar que o inimigo
fugisse para o Paquistão. Depois de destruir o inimigo, a parte mais importante da missão era
capturar os membros da al-Qaeda. O porquê dos planejadores terem pensado que isto seria
possível, dado o histórico dos membros da al-Qaeda de lutarem até a morte, continua algo
pouco esclarecido. O Talebã e a al-Qaeda fortificaram posições de defesa já favoráveis e
estocaram suprimentos e munições. Depois da falha em Tora Bora, a maior parte da crítica se
focou na falta de habilidade dos aliados locais. Provavelmente mais importante do que as
habilidades, entretanto, era a moral afegã. O entendimento da motivação do aliado local é
uma consideração crítica na “guerra por procuração” (proxy war). Os aliados afegãos tinham
poucos desentendimentos com a al-Qaeda: o inimigo deles era o Talebã. Uma vez que o
Talebã caiu, o sentido da guerra, para os aliados dos EUA, mudou. Os afegãos não tinham
muito entusiasmo em lutar contra a al-Qaeda na era pós-Talebã. Em Tora Bora, a moral afegã
foi construida a partir da diplomacia e do dinheiro norte-americanos, não pela motivação
interna. Apesar disto, os afegãos lutaram. Em Tora Bora, altitudes extremas e terreno muito
difícil levaram a condições que favoreceram totalmente o inimigo. Como a batalha de
Anaconda demonstrou depois, dadas as condições no Afeganistão, a captura de líderes
inimigos seria muito difícil mesmo para tropas muito bem treinadas. Aliás, existem poucos
exemplos de líderes inimigos sendo capturados durante uma guerra (ANDRES; WILLS;
GRIFFITH JR., 2005/06: 145-149).
A Operação Anaconda envolveu uma das mais longas trocas de tiros que os soldados
dos EUA tiveram desde o Vietnã. Assim como em Tora Bora, o terreno favoreceu o inimigo.
A Operação Anaconda revelou uma série de fraquezas no modelo afegão; porém, mais do que
qualquer outra coisa, demonstrou a eficácia relativa das táticas empregadas ao longo do
período inicial da campanha. A habilidade dos aliados é relevante, mas é a habilidade relativa
ao plano o que conta mais. As circunstâncias necessárias para o sucesso de novo modelo vão
variar dependendo de uma série de fatores. Esperar que uma força não treinada será bem-
sucedida usando a doutrina e os planos de batalha tradicionais dos EUA é um erro. Os líderes
66
CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
precisam planejar soluções adequadas para problemas únicos (ANDRES; WILLS; GRIFFITH
JR., 2005/06: 150-153).
Segunda Andres (et. all) o modelo afegão se mostrou capaz de derrotar tanto forças
convencionais quanto a guerrilha. Quando as limitações das forças aliadas locais são
conhecidas e consideradas no planejamento de operações, o modelo é replicável em diversos
tipos de condições e mostrou que funciona mesmo quando aliados locais são menos
habilidosos do que seus inimigos ou quando as forças amigas locais têm pouca ou nenhuma
motivação política para lutar por objetivos que são dos Estados Unidos. O exame das questões
táticas apenas obscurece o verdadeiro valor do modelo afegão. A importância do novo modelo
vem de seu valor estratégico (ANDRES; WILLS; GRIFFITH JR., 2005/06: 153).
Para os Estados Unidos, consoante Andres (et. all), o modelo afegão reduz de forma
significativa os custos associados à guerra. Tanto no Afeganistão quanto no Iraque, pequenas
equipes das Forças Especiais conduziram missões que os planejadores militares acreditavam
que envolveriam divisões mais pesadas das tropas norte-americanas, muitos bilhões de
dólares e perdas de soldados significativas aos EUA. Embora as missões não tenham tido
custo zero ou nenhuma morte, o suposto sucesso veio por um preço relativamente baixo se
comparado com o uso das forças e táticas convencionais. É razoavelmente possível que uma
campanha de Forças de Operações Especiais em 1998 (ano dos ataques às embaixadas norte-
americanas no Quênia e na Tanzânia) poderia ter prevenido os ataques de onze de setembro
de 2001. Assim, enquanto fazer da guerra algo tão barato tem a possibilidade de levar os
Estados Unidos a guerras que em outras situações evitaria, prevenir a guerra por causa de
preocupação com perdas não é sempre a melhor escolha. O uso de forças de solo nativas, com
Forças Especiais e poder aéreo oferece aos EUA uma oportunidade para usar o poder militar,
aumentando a utilidade estratégica da força armada (ANDRES; WILLS; GRIFFITH JR.,
2005/06: 154-155).
autocráticos, a República Islâmica do Irã tem grupos dissidentes armados (curdos, baluches e
várias organizações persas pró-democráticas). Apoiados pelas Forças de Operações Especiais
e pelo poder aéreo, estes grupos dariam vantagens em uma guerra, assim como uma forma de
evitar a ocupação. Dinâmicas similares poderiam ser aplicadas na Síria, Sudão e em outros
países com regimes hostis aos EUA. Pelo fato dos líderes saberem que este tipo de operação é
barata aos EUA, ameaças baseadas no modelo afegão terão certamente mais credibilidade
(ANDRES; WILLS; GRIFFITH JR., 2005/06: 155-158).
Os críticos do modelo Afegão se focam nas limitações táticas do mesmo. Andres (et.
all) argumentou que os benefícios estratégicos da luta por procuração compensam os custos
criados pelas limitações táticas dos procuradores. O novo modelo tem ramificações
importantes para a política externa dos Estados Unidos. O modelo representa uma ferramenta
importante, até revolucionária, no arsenal de política externa dos EUA. O modelo permitiu a
Washington substituir toneladas de tropas pelo poder aéreo, Forças de Operações Especiais e
aliados locais nas duas últimas guerras (Afeganistão e Iraque). Isto é economia de força em
sua forma mais pura. A aplicação inovadora deste sistema nas duas últimas campanhas
permitiu à administração de George W. Bush a oportunidade de remover dois regimes
autoritários em menos de dois anos, e mandar um sinal poderoso à possíveis adversários. E
isto não requer que os EUA ocupem o território que conquistam, de modo que há menos
chances de uma guerra de guerrilha. Na diplomacia coercitiva e na guerra, o modelo Afegão
deverá ter um lugar de prestígio no arsenal de política externa dos Estados Unidos (ANDRES;
WILLS; GRIFFITH JR., 2005/06: 159-160).
17
Confira a expressão de opinião de 2007 do Comando de Operações Especiais dos EUA. Disponível em:
<http://www.fas.org/irp/agency/dod/socom/posture2007.pdf>. Acesso em 25 nov. 2008.
68
CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
papel que foi designado para elas18. Dessa forma, pergunta-se: as Forças de Operações
Especiais norte-americanas vão predominar no futuro? Isto é, as Forças Armadas dos Estados
Unidos, com base no suposto sucesso do modelo afegão, serão centradas em Forças de
Operações Especiais? O fato de poucas unidades de Forças de Operações Especiais serem
boas não significa que mais Forças de Operações Especiais serão muito melhores. Como
cidadãos de um país grande e rico, os estadunidenses podem ter dificuldade em apreciar o
mérito da idéia de que o pequeno é bonito e mais efetivo para as Forças de Operações
Especiais. É importante enfatizar que quando se expande as Forças de Operações Especiais
além de um punhado de heróis para o nível de brigadas ou mais, estas forças certamente
drenarão pessoal de alta qualidade das forças regulares. As Forças de Operações Especiais,
por definição, são pequenas em escala e são dedicadas à execução de tarefas especiais de alto-
risco e alto-desenlace com o mínimo compromisso quantitativo de recursos humanos e
materiais. Se tais forças são ampliadas em razão da perspectiva de que se um punhado de
Forças de Operações Especiais são boas, uma quantidade maior deve ser bem melhor, então
às tais forças expandidas serão dadas missões que cabem bem a batalhões e a brigadas
convencionais. Pode haver a necessidade de tropas de choque de elite em números maiores,
mas tais tropas não são Forças de Operações Especiais (GRAY, 1998: 182-183).
2.7 CONCLUSÃO
Neste segundo capítulo desta dissertação viu-se o que é o chamado modo de guerra
americano. Russell F. Weigley aponta que o crescimento dos Estados Unidos e a sua adoção
de objetivos ilimitados na guerra levou a estratégia da aniquilação a se tornar a característica
básica do modo de guerra americano. Em seguida, Colin Gray apontou as características que
definem tal modo de guerra. Considerando a “transformação militar” que George W. Bush
estava implementando em sua administração, a intervenção no Afeganistão foi chamada de
um “novo” modo de guerra americano, teoricamente resultado das mudanças que o governo
em questão estava implementando. Também definida como modelo afegão ou como “primeira
guerra de Comandos”, a estratégia se baseou em Forças de Operações Especiais, poder aéreo
e aliados locais (Aliança do Norte). Se, para alguns, foi algo “revolucionário”, para outros foi
apenas uma continuidade no modo de se fazer a guerra. Embora os entusiastas argumentem
tão bem quanto os críticos, a evolução de guerra no Afeganistão deixa algumas dúvidas
18
Ver Escritório de Prestação de Contas do Governo dos Estados Unidos (GAO). Forças de Operações Especiais:
Diversos Desafios de Capital Humano Devem Ser Resolvidos Para Alcançar o Papel Expandido. Julho de 2006.
Disponível em: <http://www.gao.gov/new.items/d06812.pdf>. Acesso 25 nov. 2008.
69
CAP. II – O NOVO MODO DE GUERRA AMERICANO
quanto à efetividade do modelo afegão. Se foi tão bem-sucedido, como explicar os inúmeros
retrocessos que se pôde observar nos últimos anos? Não dá para saber se é o momento certo
de se chamar tal estratégia de “novo” modo de guerra americano. Talvez seja muito cedo
ainda. Mais adequado seria considerar o modelo afegão como mais uma possibilidade no
vasto leque de instrumentos da política externa norte-americana. Visando à ampliar a
problematização que em parte foi desenvolvida neste segundo capítulo, com Biddle e
O’Hanlon, no próximo (terceiro e último) capítulo tratar-se-á dos desdobramentos do conflito
no Afeganistão.
70
CAPÍTULO III
RESUMO: Este terceiro e último capítulo desta dissertação tratará dos desdobramentos da Guerra no
Afeganistão. Após a introdução, será feita uma contextualização histórica geral do Afeganistão,
seguida de uma seção exclusiva que visa à tentar definir o conflito em questão, no qual guerra clássica,
resistência por meio de táticas guerrilheiras, insurgência e reconstrução de nação se misturam. Depois,
será feita uma análise mais profunda do Talebã enquanto organização, grupo de muçulmanos sunitas
da etnia pashtun que foi criação do governo paquistanês como resposta à anarquia afegã após a
retirada das tropas soviéticas em 1989. Na quarta seção, tratar-se-á da ascensão da “insurgência” no
Afeganistão. Depois, vai-se aprofundar na região de fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, algo
fundamental para entender o conflito na região. Enfim, na penúltima seção, ver-se-á que o ocidente
mudou seu grande jogo naquele local para uma grande barganha. A opção de negociar com o Talebã já
está na mesa. A última seção e conclusão recebe um título bastante adequado – Afeganistão: O
Cemitério dos Impérios. Parece ser este o destino de quem se arrisca a mexer com um povo que,
quando não provocado, constitui-se de pastores pacíficos e fazendeiros de subsistência.
3. INTRODUÇÃO
em culturas locais, muitos dos soldados enviados ao teatro de operações em questão ainda
recebem pouco treinamento em idiomas e cultura local. Como será apontado na quinta seção
deste capítulo (Entendendo a Fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão), segundo Johnson e
Mason os desafios para os interesses de segurança dos Estados Unidos no sul da Ásia não são
um problema militar, social, religioso ou tribal, mas sim cultural, algo problemático para um
país cujas crenças e paradigma de política externa são a sublimação nacional da cultura em
favor da assimilação através da democracia. Na conclusão do primeiro capítulo desta
dissertação, lembrou-se de Robert D. Kaplan e uma dimensão que o autor aponta como sendo
esquecida na “transformação militar” dos EUA: a lingüística. Dessa forma, a primeira seção
deste terceiro capítulo começará retomando Kaplan.
Não importando o que digam os mapas, Robert Kaplan aprendeu a ver o Afeganistão e
o Paquistão como uma unidade política singular. Isto não é apenas o resultado do intenso
envolvimento paquistanês na guerra mujahideen contra a ocupação soviética nos anos 1980 e
na ascensão do Talebã na década seguinte, mas uma questão de geografia e de história
colonial britânica. Em função da transição gradual das terras baixas do sub-continente indiano
para as terras áridas da Ásia Central, a fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão nunca pôde
ser precisa. Os pashtuns tribais, que controlam a zona de fronteira no leste e sul afegãos,
nunca aceitaram a fronteira arbitrária entre o Afeganistão e a Índia colonial (da qual o
Paquistão emergiu mais tarde): uma fronteira desenhada em 1893 pelo enviado britânico Sir
Mortimer Durand. Além disto, o Paquistão herdou dos britânicos o cinturão de territórios
anárquicos que eles chamavam de “agências tribais”, os quais ficam a leste da linha de
Durand. Isto teve o efeito de confundir a fronteira de uma terra mais calma no Paquistão e o
“caos” do Afeganistão. Em decorrência disto, os governos paquistaneses freqüentemente se
sentiram cercados – não apenas pela Índia à leste, mas também pelos homens tribais afegãos à
oeste. Para lutar com a Índia, na visão paquistanesa, era necessário dominar o Afeganistão
(KAPLAN, 2006: 192-193).
O Afeganistão não existiu realmente até meados do século XVIII. Em 1747, Ahmad
Khan, líder do contingente de Nadir Shah, o Grande – rei persa e conquistador da Índia
Moghul – escapou da Pérsia com quatro mil homens montados em cavalos, após o assassinato
de Nadir Shah e o colapso de seu regime. Ahmad Khan e suas tropas escaparam da Pérsia
pelo sudeste, a caminho de Kandahar. Esta cidade era provavelmente o único nome grego de
72
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Embora os Estados Unidos vissem o Talebã como um grupo islâmico radical, estes
também eram pashtuns étnicos com grande respeito à hereditariedade tribal. O Talebã vivia
sob o credo tribal de Pashtunwali – “o modo dos pashtuns” – um código mais severo do que a
lei do Alcorão. Foi juntar o Pashtunwali com a lei corânica que resultou, segundo Kaplan, em
um produto final tão “selvagem”. A morte de cerca de 1,3 milhão de afegãos pelos soviéticos
nos anos 1980 despedaçou esta já frágil rede étnica. O resultado foi a anarquia. Esta
19
As campanhas do rei da Macedônia foram retratadas no filme Alexandre (Alexander, EUA, 2004, dir. Oliver
Stone).
73
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
continuou após a saída das tropas soviéticas, controlada pelo ideologicamente severo, mas
institucionalmente fraco, governo do Talebã, de certa forma desmantelado pelos Estados
Unidos após o onze de setembro de 2001, de modo a negar à al-Qaeda sua principal base de
operações (KAPLAN, 2006: 194-195).
A situação é dificultada pelo fato de que havia, e ainda há, duas coalizões militares
internacionais principais operando no Afeganistão. Ao mesmo tempo as duas trabalham com
as forças de segurança afegãs e agem contra as forças “insurgentes”. A primeira, a Operação
Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom – OEF) é liderada pelos Estados Unidos
e faz parte de um esforço regional maior (que inclui também as Filipinas), enquanto a Força
Internacional de Assistência de Segurança (International Security Assistant Force – ISAF)
começou como uma organização européia a partir de um mandato das Nações Unidas, mas
mudou para uma missão conduzida pela OTAN, focando-se apenas no Afeganistão. A
existência de duas forças viola o princípio básico da unidade de comando. Alguns analistas se
referiram à ISAF como uma missão de manutenção da paz, o que implica na OEF ser uma
organização para travar a guerra. A realidade da situação, todavia, é que ambas as
organizações conduzem funções de estabilização, contra-insurgência e contra-terrorismo, em
muitos casos trabalhando juntas. A “insurgência” no Afeganistão se adapta ano após ano e
isto leva a mudanças por parte da coalizão internacional e de seus parceiros no governo
afegão (MALONEY, 2007: 27-28).
74
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
A situação no Afeganistão antes da intervenção em 2001 era de uma guerra civil entre
várias combinações de grupos afegãos étnicos, religiosos e tribais combinados com apoio
externo significativo às diferentes facções. O movimento Talebã, criado e apoiado pelo
Paquistão, controlava a maior parte do país. Dominado pela etnia pashtun, o Talebã tinha
apoio da inteligência e dos militares paquistaneses, de uma ampla variedade de “jihadistas” e
de mercenários do ex-bloco soviético. Quando a al-Qaeda foi expulsa do Sudão em 1996, ela
se realocou no Afeganistão e desenvolveu uma rede de sofisticados campos de treinamento
em guerrilha e terrorismo, laboratórios tanto de armas químicas quanto de biológicas20 e
locais para doutrinação ideológico-religiosa. A al-Qaeda também tinha suas unidades
militares convencionais, suas companhias de engenharia e as suas próprias organizações não-
governamentais de auxílio e ajuda, as quais se somavam à infra-estrutura de apoio e ao
treinamento (MALONEY, 2007: 28-29).
20
Todavia, um estudo acadêmico concluiu que o interesse da al-Qaeda em usar armas não-convencionais para
atingir seus objetivos é menor do que o freqüentemente antecipado. Ver Anne STENERSEN. Al-Qaida's Quest
for Weapons of Mass Destruction: The History Behind the Hype. VDM Verlag Dr. Müller, 2008.
21
Para mais detalhes, confira Gary BERNTSEN; Ralph PEZZULLO. Jawbreaker: The Attack on Bin Laden and
Al-Qaeda, A Personal Account by the CIA’s Key Field Commander. New York: Three Rivers Press, 2006.
75
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Osama bin Laden, mas tais planos foram substituidos por um plano que usava o Predador
para orientar mísseis de cruzeiro lançados a partir de submarinos. Uma variedade de outras
operações encobertas objetivando caçar e matar Osama bin Laden foram conduzidas sem
sucesso usando a Aliança do Norte como força de procuração ou como cobertura para as
atividades encobertas estadunidenses (MALONEY, 2007: 29).
O problema sobre o que fazer com o Afeganistão uma vez que o regime do Talebã
fosse removido foi algo que preocupou os planejadores muito tempo antes do colapso, mas
não havia respostas fáceis. Aparentemente havia duas escolas de pensamento sobrepujantes
nos círculos norte-americanos. A primeira sugeria fazer uma aproximação que não envolvesse
participação, na qual procuradores pró-americanos dominariam o Afeganistão e garantiriam
que a al-Qaeda não voltasse. Neste esquema, o Afeganistão seria deixado às suas próprias
contas com apoio limitado norte-americano, uma vez que a Casa Branca tinha dúvidas em
assumir um papel de construção de nação. A outra escola de pensamento imaginava que os
EUA passariam a responsabilidade às Nações Unidas, as quais conduziriam a reconstrução e o
desenvolvimento político com a OEF atuando como um escudo. Este plano, todavia, era
bastante vago. A ONU, ademais, recusou o envolvimento com tal exercício, ao menos se
houvesse uma força de segurança que não fosse liderada pelos Estados Unidos para protegê-
la. Ao mesmo tempo, os procuradores afegãos vitoriosos tinham dúvidas quanto à ONU, a
organização que os abandonara no começo dos anos 1990. Porém, chegou-se a um acordo em
novembro de 2001. O acordo de Bonn permitiu uma força, que não era da ONU nem dos
EUA, a qual seria usada para estabilizar Cabul. Inicialmente liderada pela Grã-Bretanha, a
ISAF começou a ser enviada na primavera de 2002. O objetivo da mesma era simbólico e ela
agiu como uma ferramenta para permitir a reconstrução do país pela ONU e por ONGs
(MALONEY, 2007: 31).
76
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Havia um crescente desconforto nos círculos europeus sobre a liderança da ISAF após
os ataques descritos logo acima e foi difícil conseguir uma nação européia para aceitar a
liderança da força. Por uma variedade de interesses nacionais, o Canadá aceitou o comando,
mas apenas se a ISAF fosse transformada em uma força da OTAN. No meio de 2003, a ISAF
foi “otanizada” e o Canadá assumiu o comando em 2004. A combinação da eleição no
Afeganistão e a concepção dos comandantes representou uma vitória principal para a
estabilização do país e uma significativa derrota para o Talebã e seus apoiadores, que nem
mesmo tentaram participar das eleições de uma maneira não violenta. O principal problema
de segurança, porém, permaneceu: o Exército Nacional Afegão estava demorando para ser
construido, e a profissionalização e a expansão da polícia estava em um estado pior ainda, o
que ditou a contínua presença da OEF e da ISAF. Outra desvantagem era a hesitância dos
países da OTAN em aceitarem a responsabilidade para a expansão futura das Equipes de
Reconstrução Provincial, que deveriam ter sido a base para a construção da polícia e do
judiciário (MALONEY, 2007: 33, 35).
77
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
A resistência local estava usando o Paquistão como base para logística, dinheiro,
armas, recrutamento e treinamento. As forças paquistanesas cooperaram esporadicamente
com a OEF em 2001-2002 e novamente em 2004, mas essencialmente o esforço paquistanês
estava focado no Waziristão (pertencente à FATA, trata-se de região montanhosa no noroeste
do Paquistão), da onde se imaginava que as forças da al-Qaeda e da HIG operavam. O
Bolochistão, uma província no sudoeste do Paquistão, é problemático para o governo
paquistanês. A organizão Talebã está baseada em Quetta (distrito no noroeste do Balochistão)
e tem conselheiros da al-Qaeda e da HIG ligados a ela. Ao longo de 2005, ademais,
indivíduos e pequenos grupos se infiltraram no Afeganistão através de rotas de comércio
remotas para criarem células de facilitação (MALONEY, 2007: 38).
22
Tendo “classe mundial” como sinônimo, trata-se de um termo usado tanto formal quanto informalmente para
definir as capacidades das Forças de Operações Especiais.
78
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
79
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
O Talebã de hoje foi delineado por uma série de influências e de eventos, entre os
quais pode-se destacar a antiga cultura guerreira do Afeganistão, a invasão soviética de 1979
e a resistência mujahideen, a guerra civil e o senhorio das guerras que se seguiram à retirada
das tropas soviéticas em 1989, a ideologia religiosa das Madrassas, a aceitação inicial do
Talebã como a esperança pela paz por um povo cansado da guerra, a queda do movimento em
2002 e a posterior “insurgência” (AFSAR; SAMPLES; WOOD, 2008: 58-59).
3.3.1 HISTÓRIA
O Talebã é composto em sua maioria por muçulmanos sunitas da etnia pashtun. Como
se costuma dizer: “Um pashtun nunca está em paz, exceto quando está em guerra”. É
importante lembrar que houve três guerras anglo-afegãs: em 1839, em 1878 e em 1919. Mais
recentemente, o Partido Democrático Comunista Popular do Afeganistão derrotou o governo
em 1978. Os elementos religiosos conservadores do país, liderados pelos mujahideens,
resistiram ao pacote de reforma radical do novo regime. A União Soviética enviou tropas ao
Afeganistão em dezembro de 1979 para ajudar seu aliado comunista contra as milícias
islâmicas e para conter a ameaça dos islâmicos radicais que ganhavam poder nas repúblicas
da Ásia Central próximas à URSS. Isto estimulou a resistência mujahideen e acabou por
convocar uma guerra santa. Em resposta, os militares soviéticos conduziram uma brutal
campanha de contra-insurgência. Em cerca de dez anos de ocupação, as forças soviéticas e os
seus aliados afegãos comunistas mataram cerca de 1,3 milhão de afegãos, destruiram a infra-
estrutura em áreas urbanas e rurais do país e provocaram uma onda de aproximadamente 5,5
milhões de refugiados, que foram para o Irã e para o Paquistão (a maioria para o cinturão
tribal do Paquistão). Em fevereiro de 1989, os soviéticos se retiraram do Afeganistão e uma
guerra civil se seguiu, resultando na queda do governo de orientação comunista em abril de
1992. Desentendimentos entre os senhores da guerra e uma população cansada dos conflitos
criaram um ambiente no qual as idéias radicais do Talebã ganharam espaço. O núcleo do
Talebã cresceu nos campos de refugiados pashtuns, a maioria no Paquistão, aonde uma
interpretação modificada e seletiva do islã wahabista influenciou alguns estudantes (talibs)
das Madrassas a adotarem uma percepção bastante conservadora de questões sociais e
políticas. Em novembro de 1994, o Talebã ganhou o controle de Kandahar, no sul do
Afeganistão. O grupo ganhou legitimidade religiosa entre os pashtuns rurais quando o líder do
Talebã, Mulá Mohammed Omar, vestiu a roupa sagrada do Profeta Maomé em frente do
80
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
público e se declarou o “Líder da Fé”. Este evento, que é considerado o mais importante na
história do Talebã, permitiu a Omar afirmar seu direito a “conduzir não apenas os afegãos,
mas todos os muçulmanos”. Ele deu ao movimento um líder carismático capaz de explorar o
misticismo inerente à cultura pashtun. O Talebã fez uma rápido progresso militar e em 1997
controlava cerca de 95% do país. Apesar da euforia inicial, o grupo aos poucos foi perdendo o
apoio da comunidade internacional e da população do Afeganistão, por causa da sua visão
extrema da lei islâmica. Recentemente, os simpatizantes do Talebã no Paquistão juntaram
suas forças para formarem uma organização chamada Tehrik-i-Taliban Pakistan (Movimento
Talebã do Paquistão). Eles escolheram Baitullah Mehsud para ser o líder do grupo (AFSAR;
SAMPLES; WOOD, 2008: 59-61).
3.3.2 CULTURA
3.3.3 RELIGIÃO
O Talebã se apoia essencialmente na religião para persuadir o povo afegão, 99% dos
quais são muçulmanos (80% sunitas e 19% xiitas). Na tradição islâmica do Afeganistão, o
núcleo da religião é combinado com crenças pré-islâmicas e com os costumes tribais do
Pashtunwali. O Talebã depois mudou a tradição com uma interpretação ultra-conservadora do
islã. A diferença de sua ideologia religiosa é oriunda das Madrassas criadas durante a guerra
contra os soviéticos. Com apoio da Arábia Saudita, muitas escolas mudaram para uma leitura
ortodoxa do islã, que segue um modelo salafista igualitário (deobandismo). Nas palavras de
Ahmed Rashid, o Talebã não representa ninguém além deles mesmos, e eles não reconhecem
nenhuma leitura do islã além da deles. A maioria dos afegãos não quer seguir esta nova
versão do islã, mas a violência do Talebã não dá muita possibilidade de escolha (AFSAR;
SAMPLES; WOOD, 2008: 61).
81
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
3.3.4 ETNICIDADE
3.3.5 RECURSOS
O Talebã tem acesso a inúmeros recursos. Tratando-se dos aliados religiosos, entre
uma miríade de grupos transcontinentais, a al-Qaeda em particular dá ao Talebã uma causa
religiosa e alguma legitimidade, auxilia o Talebã em sua guerra de informações e dá dinheiro
ao movimento, assim como recursos humanos (lutadores estrangeiros), tecnologia
(dispositivos explosivos improvisados avançados e comunicações) e apoio de treinamento
tático. O Tehreek-i-Nifaz-i-shariat-i-Muhammadi, um grupo das regiões fronteiriças com o
Paquistão, é outro simpatizante do Talebã. Também dando apoio ou coordenados com o
Talebã estão o Movimento Islâmico da Ásia Central do Usbequistão, o Hizb-i-Islami
Gulbuddin (HIG), o Movimento Islâmico do Turcomenistão do Leste e outros pequenos
grupos militantes. Algumas das Madrassas no cinturão pashtun ensinam uma versão violenta
da ideologia islâmica que mistura sentimentos étnicos e religiosos. Tais escolas são bons
locais de recrutamento para o Talebã. Mohammed Ali Siddiqi, um especialista em Madrassas,
explica o fenômeno como um “acidente da história”: a liderança do movimento islâmico caiu
nas mãos dos pashtuns porque eles foram bem-sucedidos na resistência à invasão soviética. Aí
82
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
3.3.6 ESTRATÉGIA
Conforme Thomas H. Johnson, o que o Talebã quer é voltar ao seu status pré-onze de
setembro de 2001. O movimento Talebã é motivado por dois interesses: o desejo de
reconquistar o Afeganistão e o desejo de reestabelecer um califado. O primeiro é de interesse
pashtun, enquanto o segundo é mais inspirado na al-Qaeda. A estratégia de “insurgência” do
Talebã é a da paciência. Seu plano tem quatro fases (AFSAR; SAMPLES; WOOD, 2008: 64):
83
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
3.3.7 ESTRUTURA
84
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
85
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Muito da população local afegã estava motivada a apoiar o Talebã, ou com medo de se
opor ao grupo, em função da falha de governança. Embora a população afegã não fosse
necessariamente motivada pela ideologia, os líderes “insurgentes” eram. O grupo Talebã é
motivado por uma leitura radical do islamismo sunita derivada do deobandismo. A filosofia
deobandi foi fundada em 1867 na Madrassa Dar ul-Ulum (A Casa do Aprendizado Islâmico)
em Deoband, na Índia. As Madrassas Deobandi cresceram através do sul da Ásia, e elas foram
oficialmente apoiadas no Paquistão quando o presidente Mohammed Zia-ul-Haq assumiu o
controle do governo paquistanês em 1977. O deobandismo passou a ser bastante praticado no
Paquistão, e, em menor grau, no Afeganistão, aonde o principal proponente político era a
organização Jamiat-ul-Ulama-i-Islam. Sustenta que a obrigação fundamental e a lealdade
principal de um muçulmano são com a sua religião. Os Deobandis acreditam que eles têm um
direito sagrado e a obrigação de conduzir a guerra santa para proteger os muçulmanos de
qualquer país (JONES, 2008: 26-27).
ideológico sobre a questão da unificação. Ademais, dos anos 1980 ao início de 1990, o grupo
Hizb-i-Islami recebeu mais recursos da inteligência paquistanesa do que qualquer outra
facção mujahideen. Juntos, os líderes de tais grupos queriam derrubar o governo de Hamid
Karzai e substitui-lo por um regime que adotaria uma visão extremista do islamismo sunita
(JONES, 2008: 28-29).
89
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
90
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
ghalji), as tribos sardani ou do leste, as tribos ghurghusht e as tribos karlanri (ou karlani),
também conhecidas como tribos da montanha. Os especialistas sugerem que há cerca de 350
tribos principais nestes cinco grupos gerais. As relações entre eles existem há centenas de
anos e são complexas e complicadas por feudos, disputas, alianças antigas e casamentos
políticos. Há um conflito de 300 anos entre as tribos durrani e ghilzai no Afeganistão, um
conflito que forma uma das razões fundamentais da luta entre o Talebã e o governo de Hamid
Karzai. Os pashtuns são talvez o grupo étnico mais segmentado do mundo. Cada uma das
aproximadamente 350 tribos têm um grande número de clãs, ou khels, chegando a haver sub-
khels. Os khels são divididos em grupos familiares chamados kahols. Dependendo do
tamanho, núcleos das famílias, ou koranays, constituem os kahols. Os pashtuns se identificam
em termos de seus laços familiares e lealdades. O afegão é cercado por círculos concêntricos
da família, família extendida, clã, tribo, confederação e grupo cultural-lingüístico. Os
pashtuns se engajam em atividades sociais, políticas e econômicas dentro destes círculos
concêntricos. Este engajamento evita que instituições governamentais ganhem posições nas
áreas tribais. Esta segmentação é uma das razões do porquê, historicamente, nenhuma
entidade estrangeira – como Alexandre, o Grande, os britânicos, os soviéticos, os afegãos, o
Paquistão e, quem sabe, os Estados Unidos – foram capazes de fazer os pashtuns a aceitarem
leis externas (JOHNSON; MASON, 2008: 50-52).
O Talebã não é algo único nem um fenômeno novo na área de fronteira pashtun.
Historicamente, muitos grupos “jihadistas” e líderes religiosos carismáticos similares ao
Talebã emergiram da área em intervalos de gerações para desafiar governos dos dois lados da
fronteira. A atual manifestação deste fenômeno, todavia, não emergiu de maneira espontânea,
mas foi deliberadamente encorajada pelo governo paquistanês. Uma das observações
freqüentes dos analistas da inteligência ocidental é apontar que as áreas da região são
“desgovernadas”. De fato, esta observação auxiliou a criar o pilar central da atuação
internacional no Afeganistão desde 2001, isto é, extender o governo central a tais áreas. Tal
prescrição, entretanto, é a resposta errada para se aplicar em uma cultura muito desenvolvida
na qual o governo central não é aprovado e a reação a ele é a insurgência: o fato desta ter
crescido gradualmente em intensidade, letalidade e quantidade de território sob o controle do
Talebã desde que tal política é aplicada não é coincidência. Quando não são molestados pela
pressão externa, a maioria dos pashtuns são pastores e fazendeiros de subsistência pacíficos
em uma economia feudal (JOHNSON; MASON, 2008: 53-55).
91
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Os membros do Talebã e da al-Qaeda estão usando as terras dos pashtuns como base
de lançamento de ataques para desestabilizar tanto o Afeganistão quanto o Paquistão, assim
como estão utilizando o local como um campo de treinamento “terrorista” para ataques pelo
mundo afora. A área de fronteira se mostrou fundamental para o Talebã afegão, o qual forma
a massa da “insurgência” afegã e opera a partir de bases dentro do Paquistão. Estas forças
“insurgentes” representam uma ameaça existencial ao regime de Hamid Karzai, uma ameaça
crescente ao governo paquistanês e um enorme desafio à estabilidade regional. No final de
2004, a “talebanização” do norte do Paquistão começou a assumir aspectos de caráter mais
global. Táticas usadas por “insurgentes” iraquianos e lutadores da al-Qaeda no Iraque
começaram a aparecer na fronteira do Afeganistão com o Paquistão e, desde então,
proliferaram-se significativamente. Mais impressionante do que a novidade de algumas destas
tecnologias e táticas é o fato de que estas são estrangeiras aos costumes tradicionais afegãos e,
assim, acabam por contradizer os valores tribais e religiosos dos pashtuns. Tal evolução
sugere uma ligação crescente entre elementos da jihad global e a emergência de uma cultura
92
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
jihadista transnacional. A migração de termos arábicos como “intifada” (revolta das pedras) e
“fedayeen” (grupo de voluntários militantes), há muito associados com o conflito entre
Palestinos e Israelenses, ao teatro afegão é outra indicação da junção do Talebã com
elementos radicais transnacionais. O ideólogo responsável por introduzir estes conceitos à
liderança do Talebã é Ayman al-Zawahiri, o número dois da al-Qaeda (JOHNSON; MASON,
2008: 64-67). Outro ponto interessante é que o Talebã começou a usar equipamento de visão
noturna, o que tiraria a vantagem dos Estados Unidos em suas missões de risco realizadas à
noite (EISLER, 2008). Além disso, apesar de usar mensageiros humanos (como medida de
segurança para evitar contra-medidas eletrônicas), o Talebã também passou a utilizar o
programa de computador Skype como ferramenta de comunicação online. Habilitando a opção
de mensagens criptografadas, tal grupo afegão acabou evadindo a inteligência britânica
(OWEN, 2008).
Para entender como o Talebã e seus grupos associados conseguiram alcançar esta
posição poderosa atual é necessário examinar as políticas de fronteira que deram ascensão a
tais grupos, começando com a criação da própria linha divisória. A linha Durand dividiu a
nação pashtun ao meio. A maioria das tribos e clãs pashtuns que controlam as zonas de
fronteira no leste e no sul do Afeganistão ao longo da linha Durand nunca aceitaram a
legitimidade do que eles acreditam ser uma fronteira arbitrária e caprichosa. Em 1949 uma
jirga afegã declarou a linha Durand inválida. Dos anos 1950 a 1970, nos governos afegãos o
ministro Mohammed Daoud (depois presidente Daoud, após seu golpe que mandou o rei
Zahir Shah para o exílio em 1972) teve um papel destacado na idéia de um Estado pashtun
independente, que seria chamado de “Pashtunistão”, como resposta aos sucessivos governos
paquistaneses. Estes queriam trazer o Afeganistão à sua esfera de influência, para aumentar a
“profundidade estratégica” do Paquistão. Fechado por terra, sem acesso ao mar, bastante
dependente de Islamabad para importações e acesso ao mar, desbalanceado econômica e
militarmente, o Afeganistão tem poucas opções para jogar. Assim, continua a usar a carta do
Pashtunistão, ameaçando o frágil Estado paquistanês – o qual, em 1971, perdeu parte de seu
território oriental com a independência de Bangladesh. O Afeganistão tenta aumentar a
pressão sobre o Paquistão criando “Madrassas pashtunistanas” nas áreas de fronteira. A idéia
de Pashtunistão, aliás, continua forte no partido político pashtun secular do Paquistão, o
Partido Nacional Awami. Muitos paquistaneses acreditam que tal partido é financiado pelo
governo da Índia, como uma contra-medida ao apoio paquistanês a grupos insurgentes na
93
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
região da Caxemira. Em suma, a linha Durand não é aceita por quase ninguém na região. A
noção de Pashtunistão para os pashtuns (que constituem o maior grupo étnico do mundo sem
um Estado-nação) nunca chegou a ter algum apoio internacional. Para conter a crescente
ameaça do nacionalismo pashtun e a potencial secessão do Pashtunistão seguindo a de
Bangladesh, sucessivos governos do Paquistão, com a formalização feita pelo presidente
general Muhammad Zia-ul-Haq em 1977, lançaram uma força social diferente como um
contrapeso político: o islã conservador. Assim nasceu um experimento em engenharia social
no norte do Paquistão (JOHNSON; MASON, 2008: 67-69).
23
Fato retratado no cinema pelo filme Jogos do Poder. O título original é Charlie Wilson’s War (EUA, 2007),
com direção de Mike Nichols. A película é baseada em livro homônimo, escrito por George Crile.
94
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Os desafios para os interesses de segurança dos EUA no sul da Ásia, segundo Johnson
e Mason, não são um problema social, religioso ou tribal, mas sim cultural, algo problemático
para um país cujas crenças e paradigma de política externa são a sublimação nacional da
cultura em favor da assimilação através da democracia. As táticas militares, como as
operações (intrusivas) de comandos em áreas tribais24, a ênfase nas missões de captura e
assassinato e o uso indiscriminado do poder aéreo em áreas habitadas prejudicaram a contra-
insurgência. As táticas militares dos Estados Unidos e da OTAN devem reconhecer as
realidades culturais dos pashtuns. A maioria dos soldados norte-americanos enviados ao
Afeganistão ainda recebe pouco treinamento em cultura local e idiomas.
O termo “Grande Jogo” foi usado pelos imperialistas britânicos do século XIX para
descrever o embate entre a Grã-Bretanha e a Rússia por posições no tabuleiro de xadrez que
envolvia o Afeganistão e a Ásia Central – uma competição com poucos jogadores, em sua
maioria limitada a atividades de inteligência e pequenas guerras conduzidas por soldados com
rifles e montados em cavalos, e com aqueles vivendo na área do tabuleiro de xadrez na
condição de espectadores ou vítimas. Mais de um século depois, o jogo continua. Todavia,
agora, o número de jogadores aumentou, aqueles vivendo na região do xadrez se envolveram
na disputa e a intensidade da violência e das ameaças acabam por afetar todo o globo
(RUBIN; RASHID, 2008).
24
Ver, por exemplo, Yochi J. DREAZEN; Siobhan GORMAN. U.S. Hits al Qaeda in Pakistan. The Wall Street
Journal, September 12, 2008. Disponível em: <http://online.wsj.com/article/SB122113508844723217.html>.
Acesso 15 dez. 2008. Posteriormente, o governo de George W. Bush parou com tal política. Confira Sean D.
NAYLOR. Spec ops raids into Pakistan halted. Army Times, Sep. 29, 2008. Disponível em: <http://www.army
times.com/news/2008/09/Army_border_ops_092608w/>. Acesso 17 dez. 2008.
25
Em palestra na Academia de Ciências Militares, o general russo Nikolai Makarov afirmou que os EUA estão
planejando bases no Casaquistão e no Usbequistão. Atualmente, a única base militar norte-americana fixa na
Ásia Central é a base Manas, da Força Aérea, localizada no Quirguistão. Para mais detalhes, cf. Russian general
says US plans bases in Central Asia. Space War, Dec. 16, 2008. Disponível em: <http://www.spacewar.com/
reports/Russian_general_says_US_plans_bases_in_Central_Asia_report_999.html>. Acesso 17 dez. 2008.
95
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Talebã contra aquelas colocadas por Washington e pela Organização do Tratado do Atlântico
Norte (RUBIN; RASHID, 2008).
Muitos afegãos acreditam que os Estados Unidos apoiam secretamente o Talebã como
uma forma de manter a guerra no Afeganistão viva e, assim, justificar uma presença de tropas
que, na verdade, visaria a garantir a segurança dos recursos de energia na Ásia Central e à
contenção da China (KAPLAN, 2008: A26). Muitos no Paquistão acreditam que os Estados
Unidos persuadiram Islamabad para articular com Washington a própria destruição
paquistanesa: a Índia e o Afeganistão formarão uma pinça em torno do Paquistão para
desmembrar a única potência nuclear muçulmana. E alguns iranianos especulam que, na
preparação para a vinda do Mahdi (grosso modo, a redenção do islã), Deus cegou o “Grande
Satã” (os EUA) de seus próprios interesses, já que Washington eliminou os dois rivais sunitas
do xiita Irã: o Iraque e o Afeganistão, abrindo o caminho, dessa forma, para a bastante
aguardada restauração xiita. O establishment de segurança do Paquistão acredita que está
diante tanto de uma aliança EUA-Índia-Afeganistão quanto de uma russa-iraniana, cada uma
minando a influência paquistanesa no Afeganistão e, até mesmo, desmembrando o Estado
paquistanês. Islamabad acredita que a Aliança do Norte está trabalhando com a Índia a partir
de dentro dos serviços de segurança afegãos. Ao mesmo tempo, a Índia reestabeleceu seus
consulados em cidades afegãs, incluindo algumas próximas da fronteira com o Paquistão. A
Índia não deixa de ter seus interesses consulares legítimos no Afeganistão: por exemplo, as
populações hindu e sikh, viagens comerciais e programas de ajuda, mas pode estar usando
seus consulados contra o Paquistão, como aponta Islamabad. Nova Délhi, ademais, em
cooperação com Teerã, construiu uma rodovia conectando o anel viário afegão (que liga as
cidades principais afegãs) a portos iranianos no Golfo Pérsico, potencialmente eliminando a
dependência do Afeganistão em relação ao Paquistão para acesso ao mar e marginalizando o
novo porto paquistanês no Mar Arábico: Gwadar, o qual foi construido com apoio chinês. E o
recente acordo nuclear entre os EUA e a Índia reconheceu a legitimidade de Nova Délhi como
uma potência nuclear (fora do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, aliás) enquanto
Washington continua a tratar o Paquistão como um pária (RUBIN; RASHID, 2008).
96
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
dez e feriu cerca de 21 soldados de uma unidade militar de elite francesa, em uma das maiores
operações do Talebã desde a invasão norte-americana em 2001 (MCGREGOR, 2008).
Tratavam-se, entre outros, de soldados pára-quedistas da Legião Estrangeira francesa. Foi a
maior perda militar da França desde que, em 1983, no Líbano, um homem bomba matou cerca
de 58 soldados. Foi também o combate mais letal desde a Guerra da Argélia, encerrada em
1962. Em seguida foram publicadas fotos de um membro do Talebã vestindo o uniforme do
Exército francês, o que causou indignação na França (NETTO, 2008: A16), mas não deixou
de ser uma operação psicológica bastante interessante.
26
Disponível em <http://www.csis.org/media/csis/pubs/080917_afghanthreat.pdf>. Acesso 16 dez. 2008.
27
Ver também Pamela CONSTABLE. A Modernized Taliban Thrives in Afghanistan. The Washington Post,
September 20, 2008. Disponível em: <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2008/09/19/AR
2008091903980_pf.html>. Acesso 17 dez. 2008.
97
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Após o onze de setembro de 2001, todos os grupos islâmicos do sul da Ásia tiveram
problemas, pois Washington estava aumentando a pressão nos governos da região. Os
militantes começaram a concentrar seus esforços em lutar contra a ocupação ocidental no
Afeganistão. Muitos anos foram necessários para esta situação se desenvolver, mas os
militantes começaram a falar sobre uma “Batalha do Fim do Tempo”, uma alusão a um hadith
(corpo de leis, lendas e histórias) do Profeta anunciando uma guerra no Khorasan (área
coberta pelo Afeganistão, as áreas tribais do Paquistão e porções do Irã). Como parte desta
visão, voluntários se moveriam através do Oriente Médio para apoiar o esforço do Mahdi, o
Messias, na Palestina. Estes voluntários de todo o mundo muçulmano, particularmente da
Turquia e da Ásia Central, que se juntaram nas áreas tribais do Paquistão para participarem da
luta no Afeganistão, vêem esta como um prelúdio para a libertação da Palestina – o triunfo do
islã e da justiça na Terra (SHAHZAD, 2008).
Desde 2001, alguns eventos no sul da Ásia contribuiram para preparar o terreno para a
ofensiva do Talebã na primavera de 2008. A estratégia transformou uma insurgência de baixa
intensidade em uma guerra sem precedentes. O movimento dos campos na Caxemira para o
Waziristão se fortaleceu em 2005. Os novos campos de treinamento receberam rapidamente
apoio de militantes externos (particularmente chechenos, usbeques e turcomenos) e também
de senhores da guerra locais. Em menos de dois anos uma forte ramificação da franchise
paquistanesa da al-Qaeda nasceu, revolucionando a estratégia da resistência afegã conduzida
pelo Talebã. A partir de 2007, o teatro de guerra afegão era controlado pelo neo-Talebã, que
98
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
foi mal avaliado pelos comandantes da OTAN. O Talebã começou a receber um novo
treinamento em guerrilha urbana, graças aos professores oriundos da Caxemira e antigos
membros do Exército paquistanês (SHAHZAD, 2008).
99
CAP. III – A EVOLUÇÃO DA GUERRA NO AFEGANISTÃO
Milton Bearden serviu como chefe do serviço da CIA no Paquistão de 1986 a 1989,
aonde era o responsável pelo programa de ação encoberta da agência em apoio à resistência
afegã contra o governo apoiado pelos soviéticos. Segundo Louis Dupree, um eminente
historiador do Afeganistão lembrado por Bearden, quatro fatores contribuiram para o desastre
inglês naquele país durante a primeira guerra afegã (1839-1842): a ocupação do território
afegão por tropas estrangeiras, a ascensão de um emir28 impopular ao trono (a URSS começou
desta maneira no final dos anos 1970, e talvez Washington tenha feito o mesmo com Hamid
Karzai), as ações cruéis dos ingleses, como apoiar alguns afegãos contra seus inimigos locais
(os EUA podem ter seguido o mesmo caminho com os interrogatórios na base de Bagram) e a
redução dos subsídios pagos aos chefes tribais pelos agentes políticos britânicos (BEARDEN,
2001). Os britânicos repetiriam tais erros na segunda guerra afegã (1878-1881), assim como
os soviéticos um século depois; os Estados Unidos teriam sido mais inteligentes se tivessem
considerado a História quando invadiram o Afeganistão, mas parece que não o fizeram (como
apontado por Gray, citado no segundo capítulo desta dissertação, o modo de guerra americano
é praticamente “anti-histórico”). Todos os impérios tiveram problemas quando encontraram
as tribos afegãs pela frente. Se qualquer um vai substituir um emir no Afeganistão, terá de ser
o próprio povo afegão. Qualquer coisa, basta perguntar aos ingleses, russos e, agora também,
aos americanos.
28
Significando comandante, a palavra se refere a um título de nobreza historicamente usado nas nações islâmicas
do Oriente Médio e do Norte da África.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todavia, ainda existem mais dois objetivos, conforme apontado na introdução geral à
esta dissertação: agregar algo à literatura das Forças de Operações Especiais e apontar
tendências futuras acerca das forças armadas estadunidenses. Sobre a literatura, pretende-se
CONSIDERAÇÕES FINAIS
alcançar o objetivo com o texto que dá forma ao apêndice desta dissertação, aonde se falará
da evolução das tentativas de definição conceitual das Operações Especiais e das Forças de
Operações Especiais. Já quanto às possibilidades futuras, serão desenvolvidas aqui, nas
considerações finais, com base em três pontos: o debate sobre o tamanho das forças armadas
norte-americanas, a permanência de um enfoque quase que obsessivo dos estadunidenses em
relação à tecnologia (mesmo passados sete anos de “guerra global ao terror” – na qual o
elemento fundamental é a compreensão cultural) e as chamadas missões de estabilização
como talvez sendo o verdadeiro novo modo de guerra americano.
29
Disponível em: <http://downloads.army.mil/fm3-0/FM3-0.pdf>. Acesso 08 jan. 2009. Em outubro de 2008 foi
publicado um manual específico sobre as operações de estabilização, o FM 3-07 Stability Operations. Este pode
ser encontrado em <http://usacac.army.mil/CAC2/Repository/FM307/FM3-07.pdf>. Acesso 08 jan. 2009.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Agora, finalmente, será exposto o terceiro tópico sobre as possibilidades futuras das
Forças Armadas estadunidenses, o qual envolve a discussão sobre o tamanho adequado do
estamento militar norte-americano e tem a ver com as missões de estabilização citadas dois
parágrafos acima. O debate em questão se divide basicamente em duas visões distintas: a dos
“conservadores”, aonde se encontra o coronel Gian P. Gentile, para quem o trabalho dos
militares é lutar as guerras convencionais (GENTILE, 2008), e a dos “cruzadores”, aonde está
30
Ver <http://www.spacewar.com/reports/Pentagon_explores_submersible_aircraft_for_commando_operations
_999.html>. Acesso 09 jan. 2009.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
o tenente-coronel aposentado John Nagl31, os quais vêem os militares como uma ferramenta
adaptativa para aplicação da realpolitk estadunidense. Gentile desconfia da maior importância
que vem sendo dada às missões de estabilização e acha que o resultado será o atrofiamento
das habilidades clássicas dos militares. Já Nagl acredita que o papel dos militares americanos
em guerra irregular não pode ser descartado, e o Exército tem a responsabilidade de se
preparar para isto da maneira mais efetiva possível. Seria irresponsável achar que as ameaças
atuais e futuras desafiariam os Estados Unidos convencionalmente, quando podem se utilizar
de estratégias assimétricas. Nagl defende o aumento no número de efetivos do Exército e dos
Fuzileiros Navais, assim como faz Frederick Kagan32 (citado no primeiro capítulo desta
dissertação), defendendo forças armadas ricas em pessoal, não necessariamente em aparatos
tecnológicos. Gentile e Nagl representam uma fissura emergente entre os militares e na
comunidade de segurança nacional norte-americana como um todo. De um lado há aqueles
que acreditam na “guerra longa” (o outro nome da “guerra ao terror”), os quais acham que é
obrigação dos Estados Unidos conduzir uma luta prolongada nos solos do “extremismo”, e
adaptar os militares para fazerem isto. Do outro lado há os chamados “conservadores”, que
afirmam que o fracasso de Washington no Iraque ensinou uma lição importante sobre tentar
“limpar” o mundo. Para os “conservadores”, os militares já estão por demais adaptados à
contra-insurgência e devem voltar a fazer aquilo que desempenham bem: defender os EUA e
lutar quando necessário33.
31
É co-autor, junto do general David Petraeus, do novo manual de contra-insurgência dos Estados Unidos. Ver
também John NAGL. Learning to Eat Soup with a Knife: Counterinsurgency Lessons from Malaya and Vietnam.
Chicago: University of Chicago Press, 2005.
32
Procurar por Thomas DONNELLY; Frederick KAGAN. Ground Truth: The Future of U.S. Land Power.
Washington, D.C.: AEI Press, 2008.
33
O debate pode ser acompanhado, entre outros lugares, no Small Wars Journal: <http://smallwarsjournal.com/
mag/>. Acesso 09 jan. 2009.
104
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110
GLOSSÁRIO34
34
Trabalhar com definições é uma tarefa complexa. Dessa forma, o objetivo deste glossário é apenas dar uma
idéia geral dos termos que abrange.
APÊNDICE
SUMÁRIO: 1.1 Considerações Iniciais; 1.2 Definindo as Operações Especiais; 1.2.1 Carl von
Clausewitz; 1.2.2 Guerrilha; 1.2.3 Terrorismo; 1.2.4 Contexto de Guerra Convencional de Alta-
Intensidade: Os Comandos; 1.2.5 Uma Definição mais Ampla das Operações Especiais; 1.3 Teoria das
Operações Especiais; 1.4 As Forças de Operações Especiais; 1.4.1 Pequenas Guerras.
RESUMO: Neste apêndice será feita uma reconstrução histórica sobre as tentativas realizadas para se
definir as Operações Especiais e as Forças de Operações Especiais. Estas são chamadas de “irregulares
dentro dos regulares”. Dessa forma, antes de defini-las propriamente, é importante entender o que são
os irregulares. Para tanto, serão estudados a guerrilha e o terrorismo. E, para se entender o que são os
irregulares, é necessário saber sobre os regulares. Assim, passar-se-á também, em primeiro lugar, por
Carl von Clausewitz.
A definição apontada acima apresenta outros termos que são próximos às Forças de
Operações Especiais e que, portanto, também precisam ser entendidos mais razoavelmente. A
referência é, mais especificamente, às seguintes palavras e expressões: “negados”, “força
convencional”, “encobertas” e “clandestinas”. Em conformidade com o Dicionário de Termos
Militares do Pentágono, uma “área negada” é uma “área sob controle inimigo ou não-
amigável, na qual forças amigas não podem esperar operar com sucesso dentro dos
constrangimentos operacionais e das capacidades de força existentes”. Segundo o mesmo
dicionário, “forças convencionais” são “forças capazes de conduzir operações usando armas
que não as nucleares” ou “forças outras que não as forças de operações especiais”. Para
“clandestinas” e “encobertas”, usar-se-á definição sucinta de Kevin O’Brien, para o qual
(O’BRIEN apud BRAILEY, 2005: 06):
35
Enquanto que o termo “clandestino” se refere à situação de secreta da própria operação, a palavra “encoberto”
(também definida como “atividade especial”) diz respeito à qualidade de secreto do patrocinador da operação.
113
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Além disso, Colin Gray também sugere que as Forças de Operações Especiais agem
como “guerrilhas com uniformes” – pelo fato de que elas devem confundir o inimigo superior
em massa e em poder de fogo militar, os guerreiros das Forças de Operações Especiais devem
36
Ver, por exemplo, James A. BARRY. Covert Action Can Be Just. In: Loch K. JOHNSON, James J. WIRTZ
(eds.). Strategic Intelligence: Windows Into a Secret World – An Anthology. Los Angeles, California: Roxbury
Publishing Company, 2004, cap. 22.
114
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Destacadas tais características, antes de ser dada atenção à definições mais específicas
sobre as Operações Especiais, bem como acerca das Forças de Operações Especiais, é
necessário um enfoque, ainda que breve, nas definições e conceitos de guerrilha e de
terrorismo, mas não sem antes serem relembradas algumas idéias propostas pelo general
prussiano Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz (1780-1831).
Serão apontadas aqui algumas opiniões que Carl von Clausewitz apresenta em sua
obra máxima e clássica: Vom Kriege (Da Guerra), livro em três volumes escrito na língua
alemã e publicado pela primeira vez entre 1832-1834, ou seja, após o falecimento do general.
Tais propostas auxiliarão a melhor compreender aquilo que será tratado no decorrer deste
apêndice, sendo por isso fundamental relembrá-las. Inicialmente é importante destacar que
existem diversas interpretações da obra de Carl Clausewitz37, sendo que o enfoque adotado
aqui será essencialmente no livro oito de Da Guerra (1996): O Plano de Guerra, que é
suficiente para os intentos deste apêndice, embora insumos serão buscados também no livro
IV – A Defesa – na porção final desta parte.
37
Uma biografia e algumas das leituras de Da Guerra estão disponíveis em Hew STRACHAN. Sobre a guerra
de Clausewitz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
115
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
No primeiro capítulo do livro oito, Clausewitz relembra o que concluiu no Livro I (“A
natureza da guerra”) – que o objetivo capital de todo ato de guerra é a derrota do inimigo,
quer dizer, a destruição de suas forças militares (CLAUSEWITZ, 1996: 825). O meio do ato
de guerra é o “recontro”, isto é, o embate dos que lutam (lembrando que “embate” é um
choque impetuoso – sendo diferente de “combate”, que é uma ação bélica de amplitude menor
do que a batalha, travada em área restrita, entre unidades militares de pequeno vulto). De
acordo com Clausewitz, é contra o “centro de gravidade” do inimigo, um centro de poder e de
movimento, que se deve desferir o golpe concentrado de todas as forças (CLAUSEWITZ,
1996: 854).
116
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Já salientamos de uma maneira geral que a defesa é mais fácil do que o ataque. Mas
como a defensiva tem um objeto negativo, o de conservar, e a ofensiva um objeto
positivo, o de conquistar, e como este último aumenta os nossos próprios recursos de
guerra, enquanto a conservação não o faz, devemos dizer, para nos exprimirmos com
precisão, que a forma defensiva de guerra é em si mesma mais forte do que a ofensiva
[destacado no original]
Porém, a Teoria das Operações Especiais proposta por William McRaven mostrará
que, com o uso de uma Força de Operações Especiais, o ataque pode se tornar mais forte do
que a defesa, invertendo a fórmula sugerida por Clausewitz e desafiando o conhecimento
convencional na área. Isto será visto no item 1.3. Agora, com os subsídios de Clausewitz,
tem-se mais ferramental para se estudar a guerrilha (que Clausewitz de certa forma já aponta
no capítulo XXVI – “O armamento do povo” do livro IV) e o terrorismo (que serão os
intrumentos para melhor se entender as Operações Especiais).
1.2.2 Guerrilha
Não é a tática que define o tipo de guerra, mas sim a política que a comanda,
conforme visto acima com Carl von Clausewitz – a guerra como um instrumento da política.
Dessa forma, como observa Héctor Luis Saint-Pierre, a guerrilha é mais corretamente definida
como tática do que como guerra (SAINT-PIERRE, 2000: 173, 175). No capítulo seis de A
Política Armada (“Guerrilha e Revolução”), Saint-Pierre discute os elementos definicionais e
as características fundamentais da guerrilha. Para tanto, debate idéias de pensadores, entre
outros, como o alemão Carl Schmitt e a sua Teoria do Guerrilheiro (presente no texto O
Conceito do Político), o francês Raymond Aron e o argentino Ernesto “Che” Guevara. Não
haverá aqui um aprofundamento em tal discussão, mas sim se destacará os pontos mais
importantes para auxiliar na compreensão das Operações Especiais.
Do ponto de vista técnico, a tática de guerrilha se constitui em uma forma armada não
regular: caracteriza-se por uma estrutura armada que não possui nenhuma das características
identificadoras de um exército regular (como uniforme reconhecido, exibição ostensiva do
armamento, bandeiras de identificação, hierarquia rígida e reconhecimento internacional)
como exigidas pela Convenção de Haia (1907) e pela Convenção de Genebra (1949), as quais
versam sobre o direito na guerra, particularmente sobre os combatentes irregulares. Assim, a
guerrilha apresenta uma metodologia diferente das tropas regulares. Dessa forma, e levando
em conta inferência de Schmitt (SAINT-PIERRE, 2000: 183-184):
117
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Como a tática de guerrilha é caracterizada por uma forma “irregular” de guerra, ela se
constitui definicionalmente como a negação da guerra regular. Daí que ela possa ser
ancorada historicamente na existência do exército regular, isto é, no exército moderno
como hoje é entendido. Portanto, embora todos reconheçam que a tática de guerrilha é
tão antiga quanto a própria guerra, poder-se-ia datar a sua origem, como exército
irregular e por contraste definicional com o exército regular, a partir da resistência
armada e não regular ao exército moderno, ao napoleônico, pois é a partir do
republicano francês que os exércitos assumem as características de regularidade e
modernidade que tentamos apontar.
Do ponto de vista tático para a teoria da guerra, a guerrilha abre uma nova dimensão
no campo de batalha: a dimensão da profundidade. Normalmente, o teatro de operações é
composto pelas dimensões do comprimento e da largura. Com a artilharia e o poderio aéreo,
somou-se outra dimensão ao campo: a da verticalidade. Do mesmo modo como o submarino
introduziu um elemento novo na guerra naval, isto é, a surpresa oriunda das profundezas dos
oceanos, o guerrilheiro o fez na guerra terrestre. Da mesma forma como o submarino pode
atacar e desaparecer, antes do inimigo poder articular uma resposta, assim também faz o
operador da guerrilha, o qual, após atacar, “submerge” no tecido social (SAINT-PIERRE,
2000: 195-196):
guerrilha por meio do terrorismo; dessa maneira, esperavam eliminar o apoio logístico
que a resistência obtinha do povo. Por essas características especiais e por sua
analogia com a guerra submarina, Carl Schmitt denominou “dimensão de
profundidade” esta ruptura do campo de batalha.
Além de Héctor Saint-Pierre, Basil Henry Liddell Hart (1895-1970), mais conhecido
pelas siglas B. H. Liddell Hart, também faz algumas considerações sobre a guerrilha que são
interessantes para apoiar o entendimento das Operações Especiais. Em capítulo dedicado à
“guerra de guerrilha” do livro Estratégia, Liddell Hart lembra-se que cunhou a máxima “se
você quer a paz, entenda a guerra” para substituir a antiga passagem “se você deseja a paz,
prepare-se para a guerra”. Em seguida, Hart muda seu próprio aforismo para o seguinte: “se
você deseja a paz, entenda a guerra – particularmente a guerrilha e as formas subversivas de
guerra”. Conforme Basil Liddell Hart, a guerrilha, apesar de ser um fenômeno antigo, e de ter
sido brevemente tratada por Clausewitz em Da Guerra (armando o povo, uma medida
defensiva contra o invasor, cap. XXVI do livro VI), só entrou na agenda da teoria militar
ocidental a partir do século XX (LIDDEL HART, 1991: 361).
Uma análise mais ampla e profunda do tema guerrilha, conforme o capitão Basil Hart,
aparece no livro Os Sete Pilares da Sabedoria (1935), obra autobiográfica do oficial britânico
Thomas Edward Lawrence (1888-1935), também conhecido pelas iniciais T. E. Lawrence ou
como Lawrence da Arábia (sobre o qual há um longa-metragem lançado em 1962 e dirigido
por David Lean). Segundo Hart, o ponto principal da teoria de guerrilha “lawrenciana” é o
enfoque no valor ofensivo da mesma. Trata-se de produto da experiência e reflexão de T. E.
Lawrence na revolta dos árabes contra os turcos, o único episódio, onde a guerrilha teve uma
influência relevante durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Já ao longo da Segunda
Guerra Mundial, a guerrilha se difundiu ao ponto de se tornar um recurso universal (LIDDEL
HART, 1991: 362).
119
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
em cooperação com os países aliados, a orientação das forças militares existentes para a
conduta de guerra não-nuclear, operações pára-militares e guerras sub-limitadas/não-
convencionais (LIDDEL HART, 1991: 364). Nas guerras passadas, a guerrilha foi a arma do
lado mais fraco e, assim, primariamente defensiva, mas, na era atômica, ela pôde ser
desenvolvida amplamente como uma forma de agressão, sendo conveniente para explorar a
paralisação nuclear. Assim, o conceito de Guerra Fria, segundo Basil Henry Liddell Hart,
estaria desatualizado, e deveria ser substituido por “guerra camuflada” (LIDDEL HART,
1991: 367).
De acordo com Hart, a violência é muito mais profunda em uma guerra irregular do
que na regular. Nesta, a violência é contrabalançada pela obediência à autoridade constituída,
enquanto que, na guerra irregular, a desobediência à autoridade e a violação da regras – a
dimsensão da ilegalidade do operador guerrilheiro (SAINT-PIERRE, 2000: 184-188) – são
consideradas virtudes. Fica muito difícil reconstruir um país, e um Estado estável, em uma
fundação derrubada pela experiência da guerra irregular. Dessa forma, um entendimento dos
perigos posteriores a uma guerra de guerrilha fez com que Hart refletisse sobre as campanhas
de T. E. Lawrence na Arábia. O livro em que Hart analisa tais campanhas – onde o autor faz
uma exposição sobre a teoria da guerrilha – foi tomado como guia por inúmeros líderes de
unidades de Comandos e movimentos de resistência (LIDDEL HART, 1991: 369).
1.2.3 Terrorismo
120
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Segundo John Gray, ao longo do século XX o terrorismo foi usado em ampla escala
por regimes seculares. Embora os terroristas islâmicos da atualidade afirmem rejeitar todas as
características modernas e ocidentais, eles dão continuidade à tradição ocidental moderna de
usar a violência sistemática para transformar a sociedade. As raízes do terrorismo
contemporâneo estão muito mais na ideologia ocidental radical – especialmente no leninismo,
conforme Gray – do que na religião. Para Vladimir Lênin (1870-1924), o terror não era só um
meio de defender a revolução contra os inimigos, mas também uma ferramenta fundamental
de engenharia social. Juntamente com Leon Trotsky (1879-1940), Lênin criou campos de
concentração, instituiu um sistema de reféns para assegurar a obediência de grupos suspeitos e
executou um número razoável de pessoas. Os líderes bolcheviques julgavam que o terror de
Estado era indispensável para se alcançar uma sociedade comunista em que o Estado,
juntamente com a guerra, pobreza e religião, não existiria mais. John Gray (2007) continua:
toda forma de religião – que o idealizaram. Foram os Tigres Tâmeis que desenvolveram o
cinturão explosivo usado por terroristas suicidas do Hamas e da Jihad Islâmica. Até a guerra
do Iraque (2003), os Tigres Tâmeis haviam cometido mais desses ataques do que qualquer
outra organização do mundo. A primeira onda de ataques suicidas no Líbano nos anos 1980
também foi obra, em grande parte, de grupos seculares. De 41 ataques entre 1982 e 1986,
incluindo o ataque em 1983 que matou mais de uma centena de marines norte-americanos e
resultou na brusca retirada das forças estadunidenses pelo presidente Ronald Reagan (1981-
1989), 27 foram realizados por membros de grupos esquerdistas como o partido comunista
libanês e a União Socialista Árabe. Somente oito eram islâmicos – e três eram cristãos.
Conforme Anna Simmons e David Tucker, quando ambos tratam das Forças de
Operações Especiais dos EUA na “guerra ao terror”, lembram que o terrorismo é uma tática
que se caracteriza por ser um esforço político e psicológico mais direto do que a guerra, já que
os terroristas manobram em torno do escudo militar de um determinado país para atacar
diretamente o processo político, atingindo os não-combatentes que o conduzem. De acordo
com os analistas, para conter organizações terroristas, deve-se, assim como elas mesmas,
fazer uma manobra para conter o apoio político e psicológico à tais grupos. Uma organização
terrorista se constitui basicamente de um núcleo composto por estrategistas e operadores
fortemente compromissados com a causa. Em torno deles há pessoas que os apoiam e dão
assistência logística e de inteligência. Estes, por sua vez, são protegidos por simpatizantes,
que ajudam com recursos. Finalmente, há os neutros e, depois deles, aqueles que condenam o
emprego dos métodos terroristas. Para agirem, os terroristas precisam estar escondidos e
protegidos e é por isso que as camadas de apoiadores e simpatizantes são necessárias. Porém,
os neutros também são importantes, já que podem ser convertidos em simpatizantes ou
apoiadores para que a organização se fortaleça (SIMMONS; TUCKER, 2003: 78-79).
Agora que já há bases mais sólidas, isto é, após ter-se visto Carl von Clausewitz, as
táticas da guerrilha e do terrorismo, é hora de se atentar com mais segurança no campo das
Operações Especiais. Para continuar com o desenvolvimento do argumento, agora será
lembrado o historiador britânico M. R. D. Foot. Para contextualizá-lo, Foot entrou em um
batalhão de engenharia do exército britânico quando explodiu a Segunda Guerra Mundial e
depois foi transferido para a artilharia real. Da mesma forma, também atuou na resistência
francesa à invasão alemã e trabalhou como oficial de inteligência – sendo o que
122
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
O que são operações especiais? São golpes súbitos heterodoxos, isto é, golpes de
violência inesperados, geralmente concebidos e executados fora do estamento militar
corrente, exercendo um efeito surpreendente sobre o inimigo, de preferência em seu
mais alto nível. O tipo ideal de operação especial é aquele que deixa fora de atividade
todo o Estado-Maior do inimigo em um único e inesperado sopro.
Foot tenta concluir seu argumento fazendo um sumário daquilo que acha necessário
para o estabeleceimento de uma Força de Operações Especiais que terá um uso político ou
militar sério. A primeira característica absolutamente essencial é sorte. A segunda são
informações precisas de inteligência sobre o que o inimigo é capaz de fazer. A terceira, quase
123
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
sempre indispensável, é ter uma grande potência para apoiá-lo. Outra necessidade é ter uma
população que coopere, mesmo que decorrente do terror, ou preferencialmente da simpatia e,
além disso, são necessárias as virtudes militares ordinárias: coragem, tenacidade, flexibilidade
e velocidade. Sem elas, não é possível vencer uma batalha militar convencional; sem elas, não
é possível vencer uma Operação Especial. Entretanto, há resistência institucional às
Operações Especiais. Foot lembra que, em Estados antigos e já constituidos, os estamentos
militares e os chefes dos Estados-Maiores suspeitam dos corpos que executam as Operações
Especiais. Porém, ctitica M. R. D. Foot, o que tais “conservadores” tem a oferecer no lugar
das Operações Especiais? O holocausto nuclear, que de qualquer maneira não oferece nenhum
panorama para a humanidade (FOOT, 1970: 45-47);
De maneira parecida com Foot, o analista militar estadunidense Edward Luttwak (et
all.) descreve as Operações Especiais como “ações de guerra auto-contidas encaminhadas por
forças auto-suficientes operando dentro de território hostil” (LUTTWAK, Edward; CANBY,
S. L.; THOMAS, D. L. apud BRAILEY, 2005: 5). Entretanto, o capitão australiano Malcolm
Brailey observa que, no pensamento militar ocidental, as Operações Especiais são comumente
definidas em um contexto de guerra convencional de alta-intensidade, como foram formadas
pela experiência de conflitos interestatais significativos durante o século XX. Porém, Brailey
aponta que Maurice Tugwell e David Charters notaram corretamente que as definições como
as de Foot e Luttwak são deficientes, pois falham em considerar que as Operações Especiais
contemporâneas são freqüentemente conduzidas fora do contexto de guerra convencional –
isto é, sem um inimigo bem definido, muitas vezes não necessariamente em um território
hostil (embora ainda bastante perigoso) e nem sempre envolvendo a utilização da violência
(BRAILEY, 2005: 5). E isso leva à uma definição mais precisa das Operações Especiais,
como será visto no item a seguir.
Tugwell & Charters afirmam que muitos analistas ocidentais enfrentam um dilema
conceitual nas tentativas de definir as Operações Especiais. Geralmente trabalham dentro de
um contexto filosófico ocidental que tendeu a traçar distinções bastante claras entre a paz e a
guerra. Há uma tendência, consoante Tugwell e Charters, a definir as Operações Especiais
apenas em termos militares. Já os soviéticos (T&C escrevem em 1984), por outro lado, com
uma ideologia de esforço permanente e apreciação clausewitziana de um contínuo entre a
política e a guerra, não fizeram uma distinção clara entre guerra e paz ou entre assuntos
124
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
38
Michael HIRSH; John BARRY. O caçador de Bin Laden. O Estado de S. Paulo, 09 mar. 2004, Internacional,
p. A12. Publicado originalmente na Newsweek.
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APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
E por que uma teoria das Operações Especiais é importante? Pois uma Operação
Especial bem-sucedida desafia o conhecimento convencional usando uma pequena força para
derrotar um oponente muito maior ou mais bem entrincheirado. O livro de William McRaven
– que se originou a partir da tese de doutorado do autor – desenvolve uma teoria das
Operações Especiais para explicar porque tal fenômeno acontece. O autor demonstrará que,
com o uso de certos princípios da guerra, uma Força de Operações Especiais pode reduzir
para um nível controlável o que Clausewitz chama de “fricções da guerra”. Minimizando tais
“fricções”, a Força de Operações Especiais pode alcançar uma relativa superioridade sobre o
inimigo. Uma vez que tal superioridade relativa é alcançada, a força de ataque não está mais
em desvantagem e tem a iniciativa de explorar as fraquezas do inimigo e garantir a vitória.
Embora a obtenção da superioridade relativa não garanta o sucesso, é necessária para o
mesmo (MCRAVEN, 1996: 1).
126
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
Embora esta formulação esteja longe de englobar a totalidade do que elas fazem, as
Forças de Operações Especiais têm como seu conceito estratégico a condução de
operações heterodoxas de pequena escala e alto-risco, que estão fora dos limites da
guerra regular. Dependendo criticamente da surpresa – para compensar suas
limitações em número de indivíduos e poder de fogo – as Forças de Operações
Especiais conduzem missões que as forças regulares ou não podem fazer ou não
conseguem fazer a custos aceitáveis. Além da surpresa, o sucesso das Operações
Especiais depende tipicamente de um apropriado treino não-convencional e de
equipamento. Em tempos de paz, tais operações estão propensas a ser conduzidas
visando objetivos, e passando por condições, de alta sensibilidade política.
Para se entender melhor as Forças de Operações Especiais, é útil saber o que são as
pequenas guerras: trata-se de um termo cunhado por Charles E. Callwell em 1906 no livro
Small Wars: A Tactical Textbook for Imperial Soldiers, e que significa “todas campanhas que
não sejam aquelas onde os dois lados opostos consistem-se de tropas regulares”. Uma
pequena guerra, definida dessa forma, não precisa ser necessariamente uma guerra conduzida
em pequena escala. Callwell escreve sobre pequenas guerras – guerras conduzidas entre
forças regulares e irregulares (tribos, partisãos, pessoas inspiradas religiosamente, moradores
locais, etc). Essencialmente, Callwell escrevia sobre guerra assimétrica, “não-civilizada” e,
até mesmo, “selvagem”. Essa distinção era suficientemente clara para os contemporâneos do
autor na Inglaterra, França, Espanha, Rússia, Alemanha e EUA. Havia a “guerra civilizada”,
ou européia, entre Estados, sociedades e forças armadas similares, bem como havia a guerra
“não-civilizada”, ou “selvagem”, conduzida para espalhar a civilização, avançar a religião
cristã, fazer dinheiro ou aventura e por muitos outros motivos GRAY, 1999a: 273, 275).
128
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
De acordo com Callwell, a conduta das pequenas guerras é, de certa forma, uma arte
em sí mesma, diferenciando-se daquilo que é adaptado às condições da guerra regular. As
pequenas guerras desafiam o teórico estratégico com uma atraente diversidade. Nas pequenas
guerras, como explica Callwell, o grande problema militar-operacional para o lado dos
regulares é encontrar alguma maneira de trazer para a batalha um inimigo difícil de se
compreender. Forças Armadas que não levam as pequenas guerras a sério como uma forma de
arte militar com suas próprias regras táticas, operacionais e políticas – embora não
necessariamente estratégicas – são derrotadas. Alguns elementos entre as forças regulares
podem operar como guerrilhas, embora não se eles funcionem em maneiras regulares – guerra
irregular é um estado da mente, um recorte, assim como um conjunto de habilidades táticas –
e eles podem operar em um modo anti-guerrilha. Pequenas guerras de vários tipos estão
preocupando muitos profissionais militares atualmente porque tais conflitos aparentemente
continuarão existindo nos próximos anos (GRAY, 1999a: 276-280).
40
De acordo com Gray, proeminentes entre os melhores estudos estão M. R. D. FOOT. Special Operations /1 e
Special Operations /2. In: Michael ELLIOTT-BATEMAN (ed.). The Fourth Dimension of Warfare. New York:
Praeger Publishers, 1970, v. 1 (Intelligence, Subversion, Resistance), pp. 19-34 e 35-51. Frank R. BARNETT; B.
Hugh TOVAR; Richard H. SCHULTZ (eds.). Special Operations in US Strategy. Washington, DC: National
Defense University Press, 1984. Rod PASCHALL. LIC 2010: Special Operations and Unconventional Warfare
in the Next Century. Washington, DC: Brassey’s Inc, 1990. Lucien S. VANDENBROUCKE. Perilous Options:
Special Operations as an Instrument of U.S. Foreign Policy. New York: Oxford University Press, 1993. William
H. MCRAVEN. Spec ops: case studies in special operations warfare theory & practice. Novato, California:
Presidio Press, 1996. John ARQUILLA (ed.). From Troy to Entebbe: Special Operations in Ancient and Modern
Times. Lanham, Md.: University Press of America, 1996. Susan L. MARQUIS. Unconventional Warfare:
Rebuilding U.S. Special Operations Forces. Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 1997. Thomas K.
ADAMS. US Special Operations Forces in Action: The Challenge of Unconventional Warfare. London: Frank
Cass Publishers, 1998.
129
APÊNDICE – AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E AS FORÇAS DE OPERAÇÕES ESPECIAIS
130
ANEXO I
Nas duas fotos abaixo, soldados das Forças Especiais dos EUA montados em cavalos no
Afeganistão durante o início da Operação Liberdade Duradoura em 2001.
131
ANEXO II
MAPA DO AFEGANISTÃO
Fonte: Perry-Castañeda Library Map Collection, The University of Texas at Austin. Disponível em:
<http://www.lib.utexas.edu/maps/middle_east_and_asia/afghanistan_pol_2003.jpg>. Acesso 12 jan. 2009.
132
ANEXO III
MAPA DO PAQUISTÃO
Fonte: Perry-Castañeda Library Map Collection, The University of Texas at Austin. Disponível em:
<http://www.lib.utexas.edu/maps/middle_east_and_asia/pakistan_pol_2002.jpg>. Acesso 12 jan. 2009.
133
ANEXO IV
BIBLIOGRAFIA ADICIONAL41
AFEGANISTÃO
JALALI, Ali A. The Future of Afghanistan. Parameters, Spring 2006, pp. 04-19. Disponível
em: <http://www.carlisle.army.mil/usawc/parameters/06spring/jalali.pdf>. Acesso 29 jan.
2009.
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edu/programs/ccs/docs/pubs/understanding%20the%20taliban%20and%20insurgency%20in
%20afghanistan.pdf>. Acesso 29 jan. 2009.
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ROTHSTEIN, Hy S. Afghanistan & the Troubled Future of Unconventional Warfare. Manas
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Terror in Afghanistan. New York: Presidio Press, 2007 [publicado originalmente em 2005].
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AL-QAEDA
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Globo, 2008.
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2009.
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2007.
RIEDEL, Bruce. The Search for Al-Qaeda: Its Leadership, Ideology, and Future. Washington:
Brookings Institution Press, 2008.
WRIGHT, Lawrence. O Vulto das Torres: A Al-Qaeda e o caminho até o 11/09. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
41
Trata-se de material coletado ao longo da pesquisa, mas que acabou não sendo utilizado na versão final desta
dissertação. Todavia, foi compilado neste anexo quatro com o objetivo de auxiliar em eventuais pesquisas sobre
algum dos temas abordados ao longo deste trabalho.
134
Congress, 2005. Disponível em: <http://www.fas.org/man/crs/RS22017.pdf>. Acesso 29 abr.
2008.
BRUNER, Edward F.; BOLKCOM, Christopher; O’ROURKE, Ronald. Special Operations
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for Congress, The Library of Congress, 2001. Disponível em: <http://fpc.state.gov/
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of Intelligence and Counterintelligence, Vol. 18, No. 4, Winter 2005, pp. 575-592.
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Operations. Virginia: Pergamon-Brassey’s International Defense Publishers, 1988.
DENÉCÉ, Éric. Forces Spéciales, L’Avenir de la Guerre? De la guérilla aux opérations
clandestines. Paris: Éditions du Rocher, 2002.
FEICKERT, Andrew. U.S. Special Operations Forces (SOF): Background and Issues for
Congress. CRS Report for Congress, The Library of Congress, 2004. Disponível em:
<http://www.fas.org/sgp/crs/natsec/RS21048.pdf>. Acesso 29 abr. 2008.
FINLAN, Alastair. Warfare by other means: special forces, terrorism and grand strategy.
Small Wars & Insurgencies, Vol. 14, No. 1, Mar. 2003, pp. 92-108.
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Special Operations Forces. Defense and Security Analysis, Vol. 19, No. 3, Set. 2003, pp.
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GRAY, Colin S. Another Bloody Century: Future Warfare. London: Phoenix, 2006.
HANEY, Eric L. Força Delta: Por dentro da tropa antiterrorista americana. São Paulo:
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on Special Operations. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2004.
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PAUTREMAT, Pascal Le. Forces spéciales: nouveaux conflits, nouveaux guerriers. Paris:
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135