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Organização:

Yanet Aguilera
Natalia Christofoletti Barrenha
Lúcia Ramos Monteiro

IMAGENS DE
UM CONTINENTE
Livro Eletrônico
1ª Edição

São Paulo
2016

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SUMÁRIO

Prefácio, por João Batista de Andrade


................................................................................................................11

I. Introdução, por Yanet Aguilera.
. ...............................................................................................................13
.
II. Ensaio coletivo, por Gecilava
Sobre “Del olvido al no me Acuerdo”, (Juan Carlos Rulfo, México, 1999)
................................................................................................................30
.
III. Ensaio coletivo, por Gecilava
Sobre “A raiva” (“La rabia”, Albertina Carri, Argentina/ Holanda, 2008)
. ...............................................................................................................33
IV. Ensaio coletivo, por Gecilava
Sobre “Um tigre de papel” (“Un tigre de papel”, Luis Ospina Colômbia, 2007)
. ...............................................................................................................36
.
V. Ensaio Coletivo, por Gecilava
Sobre “Así es la vida”, (Arturo Ripstein, México, 2000)
................................................................................................................40

VI. . Um breve passeio pela Terra do Sol, por Rodrigo Frare Baroni
Sobre “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, Brasil, 1964)
..........................................................................................................................44

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VII. Oh, abandonado como los muelles al alba, todo en ti fue
naufragio: expectação e isolamento em “Memórias do subde-
senvolvimento”, por Cristina de Branco e Miguel Dores
Sobre “Memórias do subdesenvolvimento” (“Memorias del subdesar-
rollo”, Tomás Gutiérrez Alea, Cuba, 1968)
. ...............................................................................................................54

VIII. Para não dizer que não falei do fim da democracia, por Lúcia
Ramos Monteiro e Sérgio César Júnior
Sobre “Os anos JK” (Silvio Tendler, Brasil, 1980)
................................................................................................................63
.
IX. (Re)encenações do exílio, por Lívia Fusco
Sobre “Tangos, o exílio de Gardel” (“Tangos, el exilio de Gardel”, Fer-
nando Solanas, Argentina/França, 1985)
. ...............................................................................................................74
.
X. A transgressão no filme “A história quase verdadeira de Pe-
pita, a Pistoleira”, por Dirceu Antonio Scali Junior
Sobre “A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira” (“La his-
toria casi verdadera de Pepita la pistolera”, Beatriz Flores Silva, Uruguai, 1993)
. ...............................................................................................................83
.
XI. O espírito da contra perspectiva ou a razão do caminho
inverso, por Sérgio César Júnior
Sobre “Terra estrangeira” (Walter Salles e Daniela Thomas, Brasil/Portugal, 1995)
................................................................................................................89

XII. Pablo Trapero e o novo cinema argentino, por Daniela Gillo-


ne e Rosângela Fachel
Sobre “O outro lado da lei” (“El bonaerense”, Pablo Trapero,
Argentina/Chile/França/Holanda, 2002)
. ...............................................................................................................98

XIII. Uma outra globalização audiovisual, por Vanderlei

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Henrique Mastropaulo
Sobre “Encontro com Milton Santos”, ou “o mundo global visto
do lado de cá” (Silvio Tendler, Brasil, 2006)
. ............................................................................................................ 107
.
XIV. Dos heróis bandoleiros ao cobrador, por Daniela Gillone
Sobre “O cobrador” (“Cobrador: in God we trust”, Paul Leduc,
Argentina/Brasil/Espanha/França/México/Reino Unido, 2006)
. ............................................................................................................ 113
.
XV. Violência e sociedade em “La rabia”, por Mônica Brincalepe Campo
Sobre “A raiva” (“La rabia”, Albertina Carri, Argentina/Holanda, 2008)
. ................................................................................................................. 122

XVI. Dor elegante: Itamar Assumpção e o pertencimento, por


Mona Perlingeiro
Sobre “Daquele instante em diante” (Rogério Velloso, Brasil, 2012)
. ............................................................................................................ 130

XVII. Risco e engajamento no documentário “O veneno está na


mesa”, por Carla Daniela Rabelo Rodrigues
Sobre “O veneno está na mesa” (Silvio Tendler, Brasil, 2012)
. ............................................................................................................ 136

XVIII. .O mito como sobrevivência, por Luís Fernando Beloto Cabral


Sobre “A memória que me contam” (Lúcia Murat, Argentina/Brasil, 2012)
. .....................................................................................................................................144

XIX. Sensibilidade e forma, por Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho


Sobre “Caíto” (Guillermo Pfening, Argentina, 2012)
. ............................................................................................................ 152

XX. Crônica de um testemunho, por Jennifer Cazenave e Natalia


Christofoletti Barrenha
Sobre “Os dias com ele” (Maria Clara Escobar, Brasil/Portugal, 2013)
. ............................................................................................................ 158

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XXI. Em busca do lirismo no concreto armado, por Marília Bilemjian Goulart
Sobre “Pelo malo” (Mariana Rondón, Alemanha/Argentina/Peru/Vene-
zuela, 2013)
. ............................................................................................................ 166

XXII. A representação da tortura e a política da memória justa, por


Cristina Alvares Beskow e Lúcia Ramos Monteiro
Sobre “Corte seco” (Renato Tapajós, Brasil, 2014)
. ............................................................................................................ 174

XXIII. .O Estado ausente e a destruição da natureza, por Alexsandro


de Sousa e Silva
Sobre “Matar a um homem” (“Matar a un hombre”, Alejandro Fernán-
dez Almendras, Chile/França, 2014)
. ............................................................................................................ 183

XXIV. Autores
............................................................................................................. 191

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Prefácio

Ao propor e formatar o Festival de Cinema Latino-Americano de São


Paulo, em 2006, sentia falta de um espaço que privilegiasse a exibição
da produção cinematográfica contemporânea da América Latina. Assim
como no Brasil tivemos o chamado cinema da Retomada, a partir de mea-
dos dos anos 90, imaginava que nos países vizinhos também haveria uma
nova geração de cineastas que precisava ser conhecida. Naturalmente, o
melhor lugar para esse diálogo audiovisual se efetivar era o Memorial da
América Latina.
E lá se vão onze anos de Festlatino, hoje uma referência no calendário
cultural da cidade e do país. A partir do Memorial, ele se irradiou para
outras instituições culturais, aglutinou os cinéfilos paulistanos (que não
são poucos). Não hesito em afirmar que nosso Festival formou uma nova
geração de amantes do audiovisual com a nossa cara, o nosso falar, a nossa
cultura. Uma demonstração do que estou falando pode ser considerado
este livro de ensaios que o Memorial ora lança em edição eletrônica, sob o
título “Imagens de um continente”.
Em 2013 fomos procurados por jovens pesquisadores que propuseram
refletir sobre alguns dos filmes do Festlatino daquele ano. Eles se autode-

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nominavam Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema Latino-Americano e
Vanguardas Artísticas) e eram ligados especialmente à Universidade Fed-
eral de São Paulo, mas não só. Coordenados pela professora Yanet Agu-
ilera, esses estudiosos se apresentavam ávidos por analisar filmes que fala-
vam sobre a realidade na qual viviam, assim como olhamos com atenção
diante do espelho.
Reuniões entre o Gecilava, os realizadores do Festlatino e o CBEAL
(Centro Brasileiro de Estudos da América Latina), deste Memorial, acer-
taram que não apenas filmes contemporâneos seriam contemplados, mas
também clássicos da nossa filmografia. Afinal, para se conhecer o presente
é imprescindível a História. A Associação do Audiovisual providenciou os
links dos filmes escolhidos das 8ª, 9ª e 10ª edições do Festlatino.
E aí temos, agora, nosso e-book.
Tenho certeza que ao percorrer as páginas luminosas e fluídas deste
livro eletrônico o leitor vai se sentir motivado a ver ou rever os filmes
analisados. Um prazer estético e intelectual que só a arte, em especial as
artes narrativas, como o cinema e a literatura, podem nos proporcionar.

João Batista de Andrade


Diretor presidente da
Fundação Memorial da América Latina

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I. Introdução

Yanet Aguilera

O cinema da América Latina tem despertado cada vez mais interesse


no Brasil e este e-book pretende ser uma pequena contribuição sobre o
assunto. Estes ensaios foram publicados numa versão bastante reduzida,
quando os membros do Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema Latino-
Americano e Vanguardas Artísticas, da Universidade Federal de São Paulo)
analisaram coletiva e individualmente vários filmes apresentados pelo Fes-
tival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, na 8ª, 9ª e 10ª edições. Se
naquela ocasião os ensaios tentavam se adequar às linguagens da internet
e dos festivais, nesta publicação os autores se debruçaram mais demora-
damente sobre os filmes e transformaram pequenos trechos críticos em
reflexões mais aprofundadas e cuidadosas. O objetivo do grupo não é
apenas divulgação, pois desde os pequenos artigos para o site do Festival
buscou-se um equilíbrio entre o formato mais breve e uma análise mais
consistente e não apenas ilustrativa que, embora limitada pelo espaço, fiz-
esse jus à obra em estudo. O nosso interesse é poder ajudar a criar, para o
público paulista em particular, um espaço para este debate, que nos parece
fundamental para entender a própria história do cinema brasileiro. Os in-

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úmeros fios de diálogos que se entrecruzam constantemente nas filmo-
grafias da América Latina não têm ainda uma fortuna crítica à altura deles.
As poucas iniciativas, embora de fôlego, ainda são insuficientes para dar
conta deste assunto.
Num primeiro momento, decidimos publicar os quatros textos feitos
coletivamente no formato original. O intuito seria esclarecer os pressupos-
tos das análises que nortearam o grupo. Mais do que uma metodologia, as
leituras dos filmes levantam questões sobre a imagem, a narrativa, a histó-
ria, os processos interpretativos, as relações com a literatura, a filosofia, a
história da arte, a política etc. No caso de Del olvido al no me acuerdo (1999),
pensou-se o documentário enquanto gênero estabelecido pelos estudos
cinematográficos. No caso dos ensaios coletivos, evitamos assumir sim-
plesmente a divisão entre clássico e moderno, ou quaisquer outras classi-
ficações, pois nos pareceu que elas faziam os documentários da América
Latina um mero apêndice das cinematografias da Europa e dos Estados
Unidos. A opção foi não assumir o ranço neo-colonizado e o dogmatis-
mo embutidos nessas catalogações. As caixinhas classificatórias facilitam a
ordenação daquilo que queremos pensar, mas impedem de ver o processo
hierárquico que se estabelece e nos deixam apenas como meras cópias de
processos de filmagens que têm outras questões e outros contextos. É na
concretude das práticas cinematográficas – fílmicas, narrativas e iconográ-
ficas – e na sua relação com outras formas de saberes e práticas culturais,
locais e vizinhas, que devemos pensar para fazer justiça ao enorme acervo
de filmes que já produzimos. Não é que neguemos a validade de vários
processos hermenêuticos historicamente estabelecidos, mas recusamos
qualquer categorização a priori e dogmaticamente inamovível. A moderni-
dade não é mais horizonte para ninguém, assim como a questão formal,
estritamente ligada à categoria do cinema moderno, não é mais o critério
de validação de um filme. Del olvido al no me acuerdo exige que não nos ate-
nhamos à estrutura formal do filme, aparentemente bastante tradicional:
trata-se de fazer uma biografia fílmica do grande escritor Juan Rulfo por
meio de entrevistas e depoimentos das pessoas que tiveram algum contato

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com ele. Entretanto, as testemunhas são pessoas velhas, não se lembram
do célebre escritor e acabam falando banalidades sobre o amor e cantando
velhos boleros sentimentais. Apesar do diretor se manter estritamente
dentro da forma “clássica” das entrevistas, entremeadas com paisagens de
Jalisco, a potência das falas do esquecimento e das imagens vão além da
estrutura convencional do filme. As questões que Juan Carlos Pérez Rulfo
plasma nesses depoimentos banais e fragmentários e nas belas paisagens
pétreas reencontram as questões da literatura do pai, que o tornaram um
dos maiores escritores da América Latina. A surpreendente novidade da
obra de Rulfo é que ela propõe uma metafísica diferente da ocidental, que
está relacionada aos problemas cruciais da vida e da morte. Nos livros do
mexicano, a morte já não é o horizonte como para a teologia cristã, marca
da metafísica ocidental. A vida não é um mero caminho para o nada. Se
estamos todos mortos como Juan Preciado constata em Comala, viver
significa ter a morte como companheira. Então, o ser é ao mesmo tempo
existência e vazio. O mundo deixa de ser mera aparência descartável e o
além não é mais o lugar almejado ou temido como é para o Ocidente. Na
obra de Rulfo cria-se um plano de imanência fundamental. É nele que
devemos constituir fagulhas de vida, apesar da morte, ou instante intensos
e fugidios que possam sobrepor-se, ainda que momentaneamente, à inexo-
rabilidade do tempo E, se o fundo da história são murmúrios interminá-
veis, viver é a capacidade de criar faíscas e sons que se sobreponham aos
sussurros espectrais. Daí que a história não é formada por acontecimentos
neutros, mas por opções políticas de tornar visível e audível os aconte-
cimentos. E o filme, ao insistir na materialidade desses “corpos prestes
a retornar à terra”, torna a imagem da vida ainda mais viva, pois ela está
a ponto de extinguir-se. E sabemos que os desdobramentos conceituais,
históricos e políticos certamente serão outros nesta radical mudança me-
tafísica. Uma narrativa ainda a construir.
Em La Rabia (2003), os diversos componentes do filme – as imagens,
os sons, o enredo, as falas, os elementos ditos “fílmicos” (plano, enqua-
dramento, ponto de vista etc.) – foram analisados. A conclusão foi que a

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história de violência rural contada pelo filme é apenas um pretexto (no
sentido cabal do termo) para provocar uma relação intensa, nem um pou-
co distanciada, entre cinema e público. A atmosfera, tensionada principal-
mente pela duração das sequências (um recurso relativamente conhecido
mas ainda não tão comum no fazer cinematográfico), vai além da narrati-
va, pois cria um componente diretamente ligado à maneira como o filme
pretende chegar a seu espectador. O mesmo acontece com as referências
iconográficas. A imagem do porco faz alusão ao Figure with meats, de Fran-
cis Bacon, duplicando o estranhamento do grotesco tanto no plano cine-
matográfico como no quadro do pintor inglês. De modo que a violência
da imagem é escancarada com uma certa sorna, dialogando ambiguamente
com o espectador, pois não apenas quer chocá-lo como se burla dele. O
Cristo representado no coelho espetado tem também o mesmo efeito,
porém com um quê de profanação, pois nessa ligação entre o Cristo e o
animal, não estranha à doutrina cristã, o corpo vai ser assado ou queimado
como os hereges ardiam nas fogueiras da Inquisição. Distensão histórica
que vai além do contexto circunscrito pelo enredo do filme. O som é
igualmente um elemento que ultrapassa a narrativa. Em crescendo musi-
cal, a trilha sonora também tem a finalidade de provocar o espectador. As
animações nunca podem ser atribuídas à ilustração da fantasia, sonho etc.,
de um personagem, menos ainda as que aparecem no filme. Imagens mar-
cantes, elas dialogam estreitamente com o processo criativo da animação
e seu vaivém entre linhas e figuras. A opção pelo espargimento de tinta na
tela mostra que não se trata da mera passagem do figurativo ao geométri-
co ou abstrato que está colocada, mas do corpo daquele que, jogando tinta
na tela, parece estar fora dela, como o espectador. De modo que todos os
recursos audiovisuais estão em função, não da história, mas de um relacio-
namento estreito com o público. Para além de uma crítica à violência – o
tema do filme –, Albertina Carri dele solicita não apenas compreender o
filme, mas uma relação sinestésica que envolve o corpo do espectador.
Em Um tigre de papel (2007), a relação entre documentário e história foi
o tema discutido. A ironia com que se trata a questão da representação

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cinematográfica e sua relação com os “fatos” históricos deixam claro qual
a posição que Luis Ospina toma neste debate. Como toda paródia, o filme
rebaixa e, ao mesmo tempo, emula os pressupostos do documentário. De
modo que a pretensão à verdade deste gênero – pelo talking head e material
de arquivo – não passa disso, uma mera pretensão, mas que, enquanto tal,
é louvável. Entretanto, a reconstituição biográfica que supõe uma crono-
logia, essa não tem remissão. À ordenação de uma vida, que ilusoriamente
a torna inteligível, propõe-se a técnica da colagem com os elementos mais
heterogêneos e grotescos. Assim, nem a imagem “artística” é limpa, bonita
e transparente, nem a sua associação com o texto é coesa ou apaziguadora.
O buraco do passado é sempre mais fundo do que os documentários fa-
zem supor.
Em Así es la vida (2000), discutimos as relações entre estética e política
que o cinema pode estabelecer do ponto de vista das culturas erudita e
popular. A validação cultural é uma questão que diz respeito diretamente
ao cinema, pois seu valor só foi amplamente reconhecido nos anos 1960.
Não se trata de consolidar este juízo, mas de questioná-lo, assim como
Arturo Ripstein fez no filme ao obrigar-nos a percorrer um caminho de
mão dupla. Quer dizer, postulam-se não apenas os ganhos que o fait di-
vers dos cortiços mexicanos tem com a Medeia de Sêneca, mas também
de que modo os elementos da cultura popular repercutem na adaptação
cinematográfica do texto latino. Há uma tensão entre imagens e textos.
O que se sugere é que o texto de Sêneca em certo sentido não passa de
um fait divers, não muito diferente ao da história mexicana. Questiona-se
explicitamente o julgamento de valor que nos leva a cultuar um texto e a
menosprezar outro. A substituição do coro, que representa a comunidade
na tragédia “clássica”, pelo quarteto de Mariachis, que saem da TV para
a tela do cinema, é pura ironia. Afinal, o diálogo entre cinema e televisão,
pelo menos no caso do México, é fundamental e ainda não foi feito. O me-
lodrama como ponte entre as duas mídias não deixa dúvida sobre a visada
crítica de Ripstein. Por outro lado, ele tampouco poupa a figura do autor
cinematográfico, dependente da relação entre cinema e literatura (a figura

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do autor é fundamentalmente a do escritor). É outro o caso das estatuetas
e das pinturas populares do “consultório” da protagonista, pois este cená-
rio enigmático potencializa ainda mais a questão de gênero colocada pelo
filme. Assim como a iconografia popular é quase sempre pouco valoriza-
da, o desejo feminino também foi bastante negado, ainda mais quando se
trata de uma mexicana pobre. O gênero e a arte popular, até pouco tempo
pontos cegos dos estudos cinematográficos, são fundamentais para enten-
der o nosso cinema.
É um privilegio e um belo encontro este diálogo com os autores indi-
viduais do livro. Nesta introdução procurei mimetizar as discussões que
tivemos quando começamos a produzir estes textos e ensaiamos uma ex-
periência coletiva. Não se trata então de um resumo ou explicação dos
textos, mas de uma conversa crítica, lamentavelmente de uma mão só,
mas que tem o intuito de se prolongar nas inúmeras conversas que ainda
espero tenhamos futuramente.
Em Um breve passeio pela Terra do Sol, Rodrigo Baroni reflete
sobre o desejo de justiça dos protagonistas, Manuel e Rosa, deste que é um
dos filmes ícones do cinema brasileiro. Questão espinhosa, pois a justiça
é sempre precedida por um acontecimento brutal e só pode ser produto
de um pacto. Então, com quem pactuar? Se Deus e o Diabo são a mesma
coisa (ambos exigem paga), parece que este último oferece alguma vanta-
gem: os benefícios, embora mínimos e pouco duráveis, são deste mundo
e não do outro. A sabedoria não é optar pelo cangaço ou pelo diabo,
deixando Deus ou o messianismo de lado, mas perceber que a escolha da
imanência é a única possível se quisermos fazer prevalecer o nosso desejo
de justiça. Embora breve, a vida não é de Deus nem do Diabo, mas do
próprio homem.
O mundo em transe cubano segue ao brasileiro. Cristina Branco e
Miguel Dores analisam Memória do subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez
Alea, a partir do livro escrito por ele, A dialética do espectador. Se o públi-
co se identifica com Sérgio, o intelectual protagonista, as diversas lentes
que Alea distribui sabiamente durante todo o filme criam um vaivém de

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aproximação e distanciamento entre espectador e filme, como afirmam
os autores. Mas, o que interessa não é a distância brechtiana, produzida
pela mistura de ficção e fontes documentais, já que ela não é finalidade. O
distanciamento apenas serve de passagem para evitarmos a identificação
sentimental com o protagonista e seu complexo de Malinche, e cairmos no
transe histórico e na dança revolucionária.
Em Para não dizer que não falei do fim da democracia, Lúcia Ra-
mos Monteiro e Sérgio César Júnior fazem duas reflexões que, embora
paralelas a princípio, acabam se entrecruzando. À relação entre cinema
e disciplina histórica junta-se uma visão sobre o processo político brasi-
leiro, representado pelo vaivém entre democracia e ditadura. Em Os anos
JK, os autores refletem sobre as ligações entre as imagens do poder e o
poder das imagens. Neste balanço, explicita-se ao mesmo tempo a relação
entre dois tópicos fundamentais para a compreensão do Brasil, que não
dizem respeito apenas ao contexto histórico do filme. Nas imagens de
JK misturam-se o ideal desenvolvimentista e a figura do homem cordial
civilizado. O primeiro assombra os países considerados subdesenvolvidos,
carimbando suas populações como pessoas de segunda classe. E o último
é uma velha e escabrosa figura que, apesar de criticada (principalmente
por Sergio Buarque de Hollanda e Antônio Candido), teima em reaparecer
de tempos em tempos. Visão classista, na qual o povo é inferiorizado, en-
quanto o presidente burguês é o tipo do branco fino e urbano. A ironia de
Tendler é fraca não porque não tenha um alcance maior e permaneça nas
construções do poder, como sugere Bernardet, mas porque toda ironia
está inserida num contexto de poder. Segundo Isabelle Stengers, na grande
partilha entre o sujeito e o objeto, a ironia cria um lugar transcendente ao
espaço estudado. A posição de transcendência do sujeito irônico compro-
mete o equilíbrio simétrico, fazendo pender a balança para os detentores
do poder do conhecimento, constituindo-se como o ponto cego da crítica
moderna.
Em (Re)encenações do exílio, Lívia Fusco se debruça sobre o tema
ao analisar Tangos, o exílio de Gardel, de Fernando Solanas. Feito na época

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em que os argentinos estavam voltando para casa, depois de um longa e
sangrenta ditadura, o filme coloca em pauta o sentimento de que o des-
terro, uma vez vivido, jamais deixa de nos assombrar. Não há retorno
ou volta para casa. Essa imagem do exílio se torna mais radical quando
se pensa nas experiências de deportados ilustres: José de San Martin e o
próprio Carlos Gardel. Fusco afirma que as experiências dos desterrados
já são parte da história, correndo o risco de se transformar num fato quase
esquecido. O filme é uma pequena tentativa para que isso não aconteça.
Em A transgressão no filme A história quase verdadeira de Pepi-
ta, a Pistoleira, Dirceu Antonio Scali Junior mostra como Beatriz Flores
Silva renova o cinema uruguaio e, consequentemente, o latino-americano.
A um tratamento diferenciado de construir a figura feminina se acrescenta
necessariamente uma transgressão da forma hipertrofiada em gêneros ci-
nematográficos. A história quase verdadeira de Pepita, a pistoleira não cabe nas
caixinhas convencionais que os estudos cinematográficos fabricaram para
pensar os filmes. Ficiconalização de uma história real? Se o acontecimento
é justamente fabular a própria vida, a ideia de uma ficção da ficção é insu-
ficiente. Documentário ficcionalizado ou dulcodrama? É uma completa
inadequação. Insistir nos gêneros cinematográficos é obliterar o ato políti-
co fundamental do filme: nas narrativas de mulheres sobre mulheres, não
se expõem apenas a brutalidade e o ridículo das narrativas oficiais, mas se
abre a possibilidade de outro pensamento e outro fazer do próprio cine-
ma. Na ficcionalização que Susana faz da própria vida, a cineasta destaca a
infinita capacidade de resistência que as pessoas têm ao recriar-se por meio
de personagens surpreendentes e empolgantes, como é o caso de Pepita.
A viagem de volta que se delineia em Terra estrangeira, de Walter Salles
e Daniela Thomas, é o assunto de Sérgio César Júnior. Crítica funda à
atmosfera de grandiosidade épica com que sempre se narraram estas
histórias de saques e infâmias. As caravelas europeias são apenas navios
fantasmas, governadas por Nosferatus sedentos de sangue e cobiça. A
ruína do barco encalhado, símbolo do passado sangrento, remete também
à frustração da viagem de volta, no qual o euro-brasileiro se embrenhou

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em busca de outra vida que lhe permitisse sair do papel de vítima. Lesa
ilusão? Sim e não, pois afinal sempre há um espaço e um gesto para a
resistência. À viagem sem saída, representada pelo fado ou o destino im-
placável, o vapor barato macaliano se torna um respiro, ainda que curto e
mínimo. Justamente por se colocar no horizonte do rebaixamento, o Vapor
barato, esta música tropicalista e o próprio filme são a possiblidade de uma
contra-narrativa para essa geração descrente. Resistência ao poder nomea-
dor dos acontecimentos impingidos pelos vencedores. À vazia grandiloqu-
ência das chamadas “conquistas marítimas” ou “viagens do descobrimen-
to”, contrapõe-se o barato, como possibilidade de outra viagem.
A trilha musical é também destaque em El bonaerense, de Pablo Trapero,
analisado por Daniela Gillone e Rosângela Fachel. Embate entre a mú-
sica folclórica gauchesca e a cumbia villera, que representam respectivamente
o ambiente rural e urbano. A ligação com o Nuevo Cine Argentino dos
dois Fernandos, Solanas e Birri, pode ser colocada dentro deste contraste
dos ritmos musicais. A referência ao universo urbano é uma constante nos
três diretores. Entretanto, Trapero se afasta das denúncias das mazelas so-
ciais, marca distintiva dos outros cineastas, para observar e até se envolver
com os espaços marginais retratados, como é mencionado neste ensaio.
O que não se diz é que o gaucho e sua música, para a maioria das narrati-
vas – históricas, literárias e musicais –, é a figura símbolo da identidade
nacional argentina. É deste contexto nacionalista que Trapero se afasta ao
optar pela onipresença da cumbia villera no filme. Nascida nas villas misérias
(assentamentos precários, semelhantes às nossas favelas) que cercam as
grandes cidades argentinas, principalmente Buenos Aires, este ritmo mu-
sical é produto de uma mistura de imigrantes de países latino-americanos
que chegaram à Argentina e foram marginalizados, tornando-se cidadãos
de segunda classe, assim como grande parte dos argentinos do interior
que se deslocam para os grandes centros urbanos. O filme se debruça
sobre uma Argentina misturada, na qual o euro-argentino já não tem a
prevalência. Neste mundo de argentino-paraguaio, argentino-boliviano,
argentino-peruano, argentino-colombiano, argentino-bonaerense etc., o

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que se prefigura é uma Argentina que ignora soberanamente a moder-
nidade, que geralmente foi posta como um horizonte a ser atingido. A
Trapero não lhe interessa desfazer a ilusão neocolonialista de que este
país é o mais europeu da América Latina, denunciando as mazelas que
acontecem em suas bordas. A relação campo cidade não se subordina à
leitura, infelizmente paradigmática para o cinema latino-americano, que vê
nestas imagens uma relação entre as periferias e um centro: Buenos Aires
como metáfora da Europa. Este drama com toda sua violência reivindica
outro território a ser construído por um olhar que ignora o Atlântico e se
volta para paisagens e associações quase nunca dantes navegadas: o campo
não como o atraso ou o espaço ideal contraposto à cidade, mas o interior
argentino diretamente ligado aos países vizinhos, latino-americanos. Um
belo reencontro com a tradição do Nuevo Cine Latinoamericano, pois traz
uma nova carga estética e política a ser explorada.
Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá é um es-
forço de traduzir numa narrativa audiovisual as refinadas teorias de Mil-
ton Santos, segundo Vanderlei Henrique Mastropaulo. Às imagens e aos
imaginários que produzem a fabulação ideológica da globalização, San-
tos acrescenta as imagens de uma exclusão sem precedente, resultado das
imposições econômicas neoliberais globalizadas. Segundo Mastropaulo,
Silvio Tendler divide pedagogicamente o filme em dois momentos. O pri-
meiro denuncia que estas ideias que querem implantar hegemonicamente
são apenas construções históricas e culturais. O segundo mostra as pos-
sibilidades e formas de resistência, que também têm que ser globais para
poderem se opor ao poder hegemônico da “má globalização”. A vitória
pela não privatização da água, em Cochabamba-Bolívia, é um resultado
concreto dessa luta. Entretanto, paira uma dúvida a respeito da reafirma-
ção de um discurso globalizado sob a égide da informação: não reforçaria
ainda mais o “autoritarismo da informação” dos grandes conglomerados
midiáticos? Informar não é necessariamente conhecer e seria ingênuo
pensar que a grande mídia não denuncia e não informa. O problema é jus-
tamente o que se denuncia e a quantidade de informações com que se me-

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tralha o público diariamente, de modo que ele fica meio anestesiado diante
de tanta notícia. A simples denúncia não é suficiente para enfrentar este
dilúvio informativo. Além disso, a “boa globalização” não tem recursos
suficientes para ser repetitiva o bastante afim de fazer valer a resistência.
Os exemplos esporádicos como aquele da defesa da água apenas nos con-
solam das inúmeras derrotas diárias, às quais as pessoas são submetidas
pela “má globalização”.
Em Dos heróis bandoleiros ao Cobrador, Daniela Gillone se detém
sobre a figura mítica do bandido-herói que povoa o imaginário popular
desde a Idade Média e que fez fortuna no imaginário artístico da América
Latina. Porém, distante da imagem do bandoleiro romântico do cinema
épico, o protagonista de O Cobrador faz parte de uma galeria recente de
personagens que se caracterizam por um “individualismo pragmático” e
por encarnar a figura do ressentimento, afirma Gillone, citando Ismail
Xavier. A luta individual do protagonista é mera vingança e se objetiva em
pura violência, não almejando nenhum fim coletivo ou fundo utópico. En-
tretanto, talvez a sua potência narrativa esteja em se desfazer de qualquer
ranço consolador das narrativas épicas com que normalmente se construiu
este personagem. Num mundo enlouquecido, de extrema violência, to-
dos são bandidos e estão fraturados, portanto, são ressentidos. O Cobrador
ainda distingue, sem romantizar, o bandido pobre dos ladrões e sádicos
assassinos ricos. Porém, este contraponto não é essencial no filme. O que
se busca é uma estratégia imagética e narrativa que exponha os esquemas
de visibilização que, ao mesmo tempo em que torna esta fratura um espe-
táculo, a parcializa e a higieniza. A figura do bandido cruel e enlouquecido
não é uma criação de Leduc, ela já aparece abundantemente na televisão
e numa série de filmes que se comprazem em mostrar detalhadamente a
violência destas pessoas marginalizadas. Assim, O Cobrador investe contra a
invisibilização da fratura do poder (os assassinatos cruéis e as roubalheiras
do empresário e do policial corrupto não são tão conhecidos...) e também
na exacerbação irônica da espetacularização corriqueira dos atos violentos
cometidos pelo bandido pobre. No capitalismo, a busca ensandecida pelo

23
lucro a todo custo não permite que se fale em justiça, mas apenas em co-
branças. Os juros que o protagonista impõe são tão exorbitantes como os
do mercado financeiro.
A violência que incomoda e choca, e que, portanto, provoca o debate
no público espectador, é o tópico que caracteriza, para Mônica Brincale-
pe, o filme de Albertina Carri, La rabia. Em Violência e sociedade em La
Rabia, a estudiosa afirma que o aspecto lúdico das 5 animações do filme é
soterrado por uma associação dos desenhos aos filmes de terror. Perigo e
medo, “sentimentos mais complexos”, estariam por trás deles. De modo
que o “tom sisudo do retrato da opressão mais primária de nossas existên-
cias” prevalece no filme. Entretanto, não há como negar que o medo e o
perigo são estratégias lúdicas muito bem desenvolvidas e utilizadas pelos
filmes de terror. Daí, haver uma certa indiscernibilidade entre violência
e pulsão lúdica. Na análise coletiva do grupo Gecilava deste mesmo fil-
me, sustenta-se que estas animações inusitadas não podem ser apenas da
imaginação da criança, pois são sofisticadas em demasia. De ilustrações
das histórias vivenciadas pela menina as animações passam a simbolizar
a própria violência na tinta negra que é jogada na tela e em alguns traços
vermelhos que finalizam a animação. Porém, não são apenas os aspectos
estético e simbólico que contam, pois a forma de animar é fundamental:
da figuração se passa ao respingo violento de tinta. Ao aspergi-la energi-
camente na tela, cria-se um ritmo frenético que, intensificado pelo rock,
potencializa ainda mais o gesto do expressionismo abstrato que é emulado
na animação. Mais do que uma história que debate e critica a violência e o
machismo da vida no campo argentino, La Rabia quer que o espectador,
por meio da combinação inusitada de imagens e sons dos mais heterogê-
neos, vivencie intensamente a brutalidade mostrada e tematizada.
Cinema e música têm dado frutos muito bons no cenário brasileiro.
Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, e O homem que engarrafava nuvens,
do Lírio Ferreira, são dois bons exemplos desta associação. O documentá-
rio sobre Itamar Assumpção, de Rogério Velloso, Daquele instante em diante,
faz parte desta safra. Em Dor elegante: Itamar Assumpção e o per-

24
tencimento, Mona Perlingeiro destaca a biografia que se faz do artista.
A carreira e percurso do músico-ator são mostrados por meio de material
de arquivo e depoimentos de amigos e companheiros de estrada. O tom
autobiográfico predomina ao mostrar um Itamar intimista, marido, pai e
amante de orquídeas, ao lado de seu oposto, o performático irreverente
dos palcos. A delicadeza e despretensão do filme retiram o tom conven-
cional ou a mesmice do mainstream documental, afirma Perlingeiro, mas
não evita que sintamos saudade do Itamar intrépido, contestador, inte-
grante da Lira Paulistana. A encenação que o filme faz do músico parece
“domesticar” alguém que bradava, com muita dor e ironia, ser “isca de
polícia” apenas pela sua cor.
Em Risco e engajamento no documentário O veneno está na
mesa, Carla Daniela Rabelo Rodrigues põe em pauta a crítica que sem-
pre viu como ideológicos e conservadores os documentários de feições
“clássicas”. A denúncia que Silvio Tendler faz das atividades da Monsanto,
Syngenta, Bayer, Dow, DuPont não se limita ao poder incomensurável que
exercem sobre o governos, a mídia e a sociedade, pois o documentário
desenha um histórico aterrorizador destes conglomerados empresariais.
A Bayer fabricou o gás que matou milhares de alemães, ciganos, homos-
sexuais, doentes e judeus, na Segunda Guerra Mundial; e a Montsanto
produziu o gás tóxico na guerra do Vietnam, que provocou milhares de
mortes e muitas malformações nas crianças vietnamitas. Além disso, as
inúmeras entrevistas com os pequenos agricultores – quase todos vítimas
dos venenos fabricados por estas empresas – torna repetitivo e, portanto,
contundente os efeitos nefastos dos agrotóxicos para a cultura, as pessoas
e a natureza. Saberes tradicionais soterrados, pessoas mortas e doentes,
natureza contaminada e desertificada. O veneno está na mesa busca “objeti-
vidade e clareza em narrar os fatos de modo crível, assertivo, persuasivo,
argumentativo, dando continuidade à narrativa”. Apesar do formato “clás-
sico”, cumpre de maneira exemplar e com muita eficácia, o papel ativista
que se propõe, sustenta Rabelo. Abordagem rara que defende o cinema
militante tout court, afastando-se da ditadura formal em que os estudos so-

25
bre o documentário se calcificaram.
Em O mito como sobrevivência, Luís Fernando Beloto Cabral se
debruça sobre a história e as imagens que estão sendo construídas sobre o
pesado período ditatorial brasileiro, em A memória que me contam, de Lúcia
Murat. A luta da resistência contra a ditadura e os terríveis atos praticados
por ela se configuram numa memória complexa que este filme recria de
várias maneiras. O fundamental é escancarar os efeitos tenebrosos dos
anos de repressão e mostrar, como um mínimo de reparação, as histórias
das inúmeras vítimas da violência dos governos militares. É urgente e ne-
cessário a abertura dos arquivos deste período escabroso. Uma segunda
questão é a memória dos atos extremos da resistência, que não deixam de
estar carregados de ambiguidade política e moral, já que se joga com a vida
e a morte. Porém, não há como esquecer que se trata de uma luta desigual
e que a justiça só será feita se os torturadores e assassinos, resguardados
pelo Estado, forem julgados. E, finalmente, como herança deste período
violentíssimo, a nova geração repensa os acontecimentos e ensaia fazer
outra forma de política, na qual os afetos e os corpos sejam vivenciados
de maneira menos traumática.
Em Sensibilidade e forma, Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho ana-
lisam o caso singular de Caíto, de Guillermo Pfening. Um filme sobre a
figura do irmão doente, sem cair na exploração indecente das representa-
ções piegas costumeiras a este tipo de tema, não é tarefa muito fácil. Expor
os bastidores para mostrar Caíto participando ativamente, juntamente com
Guillermo, na montagem e na filmagem, não é suficiente. A auto-exposição
do cineasta pode ser apenas uma espécie de confissão, cuja finalidade seria
a absolvição fácil. O que torna instigante o filme é o esforço de criar uma
ficção, mesmo que esta seja também uma história sentimental, pois ela é mo-
tivo para produzir planos admiráveis. É realmente comovente a sequência
em que o corpo de Caíto, enrijecido pela doença, usufrui como os demais
personagens das ondas do tanque de água. A luz e a cor tornam ainda mais
lúdica a cena deste documentário que se quer e se mostra como um faz de
conta que, se não resgata os personagens e a história, pelo menos dá a ver o

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intenso envolvimento e o prazer de sua realização.
Em Crônica de um testemunho, Jennifer Cazenave e Natalia Chris-
tofoletti Barrenha esmiúçam as relações políticas do privado e do coletivo,
que Os dias com ele elabora com o objetivo de criar uma memória pessoal
e coletiva de um período traumático como foi o da ditadura brasileira.
Se Maria Clara Escobar não consegue delimitar seu próprio lugar, que
oscila entre filha e cineasta, como se afirma no ensaio, é porque aqueles
que sofreram, direta ou indiretamente, a extrema violência dos governos
militares em quase toda América Latina, perderam bruscamente o lugar
de pertencimento, ficaram à deriva. É a partir deste doloroso não-lugar
que Maria Clara consegue construir uma história pessoal e política com
os pedaços da infância de outras crianças. Histórias traumáticas só podem
ser contadas escancarando as feridas que não saram. A coragem de exibir
esse tour de force entre ela e o pai mostra como a potência da política apare-
ce muito mais nessas histórias pessoais, no cotidiano, na memória afetiva,
invertendo uma fórmula de Cazenave e Barrenha.
Marília Bilemjian Goulart analisa Pelo malo, de Mariana Rondón, pelo
viés do gênero e da relação cidade/cinema. O conflito entre mãe e filho
se plasma também na oposição entre racionalidade e lirismo ou entre uma
“face escura” da modernidade e uma outra libertária. Entretanto, o filme
pode ser visto como uma história que confronta uma mulher ao mundo
masculino e patriarcal, representado pelo mercado de trabalho, pela cidade
e pelos filhos. Podemos perceber na protagonista o desespero do desem-
prego, a homofobia, porém não uma incapacidade de afeto, visto que,
embora não o seja com Junior, ela é bastante carinhosa com o bebê. Além
disso, a recusa de uma afeição explícita não implica num desapego, pois
apesar das dificuldades, ela não entrega o filho à avô, nem pelo dinheiro
que esta lhe oferece. As desavenças com Junior podem ter várias razões,
uma delas pode ser justamente o fato de a protagonista reconhecer no me-
nino traços “femininos” (no sentido dos afetos), que também podem ter
sido os seus, antes de ser triturada pelo mundo urbano. O jogo interpreta-
tivo está aberto. Por outro lado, o edifício 23 de Enero como fracasso do

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projeto de erradicação do cinturão da pobreza de Caracas não representa a
“face escura” da modernidade. O “iluminismo” do mundo moderno, com
seus projetos urbanos de cidades para os países da América Latina, nunca
foi uma promessa de libertação. Desde a invasão europeia, neste canto do
Mundo, só houve genocídio, exploração e humilhação.
Em A representação da tortura e a política da memória justa, Cris-
tina Alvares Beskow e Lúcia Ramos Monteiro se perguntam sobre a pos-
sibilidade de representação das catástrofes. Se não há equivalência entre
elas, como pensar as nossas, que têm dimensões estratosféricas – estima-se
que mais de 40 milhões de índios foram mortos desde 1492, praticamente
mais de 8 milhões por século. E o genocídio continua: na ditadura brasi-
leira o número de mortes e indígenas presos supera ao dos desapareci-
dos e presos políticos urbanos. Mas não se trata apenas de quantificar as
vítimas. Renato Tapajós, em Corte Seco, não quer nenhuma possibilidade
de mediação diante da impossibilidade de figurar o horror. A opção pela
frontalidade dos planos longos e pelo corte seco intensifica ainda mais as
sequências de tortura. Não bastasse isso, “cenas escuras, câmera nervosa,
planos fechados”, descritos por Beskow e Monteiro, tornam ainda mais
lancinantes os “berros de dor e sofrimento que ecoam ao longo do fil-
me”. Gritos dos que não falam “por medo ou porque estão mortos”. Foco
narrativo dos que sofreram a tortura, vivência extravasada e intensificada
pelos inúmeros recursos fílmicos – incluindo ironicamente a ficção –, que
nos lembram que essas cenas chocantes são ainda práticas do presente. O
pau de arara sobrevive incólume nos quarteis das polícias. Neste choque
de dois presentes – o do filme e a da tortura –, pergunto se é possível falar
de uma política da memória justa. Toda memória é fundamentalmente um
lugar de disputa, tanto do que se tornará memória como de seu sentido,
além de que todo trauma é pura memória latente, não se explica nem se
cura (citando Graciela Foglia e Fabio Carmaneiro respectivamente).
Ruas desertas, justiça pelas próprias mãos e desmatamento compulsó-
rio são os efeitos mais visíveis do abandono do poder público nos gover-
nos liberais chilenos que reduziram o Estado ao mínimo possível. Estas

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são as questões levantadas por Alexsandro de Sousa e Silva, em O Estado
ausente e a destruição da natureza, ao analisar Matar a un hombre, de
Alejandro Fernández Almendras. Que o Estado e a família não se interes-
sem pela existência do protagonista e pelos acontecimentos devastadores
no Chile da ditadura e da pós-ditadura, nos parece familiar. Todavia, que
nem mesmo o espectador se interesse por esta história é uma conclusão
que de tão lúcida fica amarga. Talvez seja isso que nos reste, a tristeza do
desinteresse. Mas desde que visibilizemos esse estado de coisas, sempre
encontraremos um antídoto ao luto interminável de todas as tragédias que
nos assolam.

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II. Del olvido al no me Acuerdo
(México, 1999, Juan Carlos Rulfo)

Ensaio coletivo – por Gecilava

Del Olvido al no me Acuerdo, filme de Juan Carlos Rulfo, narra a jornada


de um filho em busca do passado de seu pai, o renomado escritor mexi-
cano Juan Rulfo. O cineasta vai a Barranco de Apulco, vilarejo de Jalisco,
onde o pai passava as férias quando jovem e, nessa região, entrevista um
grupo de antigos funcionários da fazenda da família e velhos moradores
do lugar, com a esperança de que tenham conhecido e se lembrem do es-
critor. Porém, ele é quase um desconhecido para seus conterrâneos.
Sem ter nada a dizer sobre o romancista e lembrando pouca coisa da
época em que ele visitava Jalisco, os entrevistados desandam a falar sobre
o amor, a vida e a morte. Dona Rebeca e dona Fausta, ambas com mais
de oitenta anos, conseguem arrancar do esquecimento, pessoal e coletivo,
algumas estrofes de antigos boleros. As vozes alquebradas das velhas senho-
ras retiram todo traço sentimentalista das canções de amor que povoam o
imaginário da sociedade mexicana. A exaltação amorosa se torna ainda mais
intensa no percurso saudoso que dona Clara, mãe do cineasta, faz na capital

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mexicana para rememorar a grande paixão que viveu com Juan Rulfo.
As lembranças dos amores vividos e sonhados dão uma vitalidade inu-
sitada àqueles corpos curvados pelo tempo. Alguns primeiros planos des-
tacam sorrisos e olhares, reforçando ainda mais o halo de energia que as
imagens desses anciões conseguem transmitir. Detalhes das peles enruga-
das e dos pés curtidos pelo pó lembram que esses corpos estão prestes a
retornar à terra. Assim, o filme capta de maneira exemplar, na visualização
da materialidade corporal, momentos em que a vida, graças à rememora-
ção, parece sobrepor-se ao peso inexorável do tempo.
Os depoimentos de pessoas próximas e mais ou menos com a mesma
idade do escritor mostram que Juan Carlos Rulfo se lançou, no início do
documentário, na busca de “autenticidade” para a construção da figura
paterna. E, diante das falhas de memória dos entrevistados, concentra-se
em visualizar, nessa velha geração, instantes pungentes, em que a vida é
ainda mais vida, já que está em vias de se extinguir.
A célebre frase que inicia o romance mais conhecido de Juan Rulfo –
“Vine a Comala porque acá me dijeron que vivía mi padre, un tal Pedro Páramo”–
mostra que não é mera coincidência que o cineasta esteja em busca do pai.
Outra característica que liga o filme ao romance: ambos alinhavam retalhos
de memórias truncadas, materializados em fragmentos de histórias, de can-
ções e de lamentos. Segundo Octavio Paz, em Pedro Páramo, essas vozes são
sussurros que “surgen de la nada aturdiendo nuestros oídos y señalándonos
la proximidad de nuestra propia extinción”. Juan Preciado fala das profun-
dezas de Comala, está morto, os rumores e murmúrios o mataram. Se a
morte é o ponto de partida e de chegada desse relato fantasmagórico, na
visão do célebre crítico mexicano, o esforço de Juan Preciado de reconstruir
Comala, que é também o dos leitores, infunde-lhe nova vida, dando a ilusão
de que a morte pode ser vencida ou pelo menos adiada.
Não é justamente isto que o filme obtém por meio da sutura das lem-
branças fragmentadas com a visualização dos corpos consumidos pelo
tempo? As memórias imprecisas, plasmadas no filme, não são também

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uma tentativa de falar da vida a partir, mas também, apesar da morte? As-
sim, o filho não acaba reencontrando o pai por um viés, talvez muito mais
intenso, do que se tivesse obtido depoimentos diretos sobre ele?
Perfis humanos, esculpidos nas rochas pelos agentes exógenos, são enqua-
drados em contraluz pelo filme, sugerindo que nos desertos de Jaliscos, a vida
esvaída se plasmou em pedra. Reproduz-se sugestivamente, em imagens, o
nome Pedro Páramo, aquele que “se fue desmoronando como si fuera piedra”.
Os planos gerais das tomadas externas que ambientam o filme também
remetem, ainda que de maneira indireta, a situações e a questões colocadas
por Juan Rulfo em seus romances. Monumentalizadas e desmaterializadas
pela contraluz e pela câmera ao rez do chão, personagens desconhecidas
atravessam como fantasmas as paisagens ermas. O som materializa a pre-
sença do vento – “el viento de la muerte”, como diria Octavio Paz. O pôr
do sol, os escuros enquadramentos noturnos, a lenha sendo consumida
pelo fogo são também símbolos do fim, da passagem do tempo.
Dois enquadramentos inesperados conseguem chegar ao ápice da re-
produção de uma atmosfera onírica e estranha. Num deles, planos gerais
de um dos paramos de Jalisco compõem uma pintura surrealista, à René
Magritte. A cadeira solitária é um elemento bizarro dentro da aprazível
composição cromática do enquadramento. A beleza da composição do
azul suave do céu e do rosa terroso do chão é perturbada pela cadeira,
elemento estranho que potencializa um aspecto que teria ficado soterra-
do pela plástica da paisagem: o vazio da imagem. No outro, vemos dona
Fausta cantando, em primeiro plano, enquanto uma mosca insiste em so-
brevoar o rosto da velha senhora. Estes planos em movimento lembram
vanitas, pinturas sobre a insignificância da vida, ou melhor, aparentam-se
aos ars moriendi, quadros em que se transforma a inevitabilidade da morte
em arte de morrer. Resultado belo e comovente do acaso, que Juan Carlos
Rulfo e a equipe de filmagem souberam aproveitar.
Não há melhor encontro entre pai e filho do que este.

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III. La Rabia
(Argentina, 2008, Albertina Carri)

Ensaio coletivo – por Gecilava

Em La Rabia, filme da diretora argentina Albertina Carri, duas crianças defi-


cientes vivenciam um ciclo de relações violentas, que as contamina de maneira
inelutável. Nati vê o pai bater na mãe e tem que suportar que o amante desta se
exiba obscenamente para ela. Ladeado vive com um pai patrão, que o maltra-
ta. Trata-se de uma narrativa marcada pelo domínio do forte contra o fraco e
ilustrada pela matança explicita e detalhada de animais. O embrutecimento pela
sobrevivência e os conflitos das duas famílias vizinhas nos pampas argentinos
poderiam ser apenas uma corriqueira crônica de rudes costumes rurais não
fosse a atmosfera carregada de tensões que se cria no filme.
A mistura de cenas banais e acontecimentos brutais não deixa indiferente
o espectador. Ao vermos o menino sair do bosque com uma sacola de pano
e uma espingarda, seguido de dois cães, parece que estamos diante da vida
simples do campo. Entretanto, quando em seguida o jovem bate fortemente
a sacola numa árvore, somos tomados de apreensão imaginando que se trata
da matança cruel de algum animal apanhado há pouco. Essa impressão é ainda

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mais desconfortável porque a sacola é jogada num pântano e somos levados
a ver e ouvir o objeto desaparecer lentamente na água. Não há lugar para o
cinéfilo comum usufruir da referência ao gênero noir, pois o momento citado
é justamente aquele em que se faz desaparecer o corpo assassinado, além de a
distensão temporal prolongar o acontecimento e a trilha sonora intensificá-lo
ainda mais.
O espectador sente-se atingido pelo clima grotesco, principalmente se for
urbano e não estiver habituado à violência do mundo rural. Os guinchos agu-
dos do porco tornam torturante a sua morte. Embora a pequena incisão na gar-
ganta mate rapidamente o animal, a visão do sangue a jorrar se prolonga para
nós, de modo que somos levados a acompanhar, nessa prática culinária (com o
sangue se faz a morcela, uma apreciada iguaria), o acréscimo de violência que
ela acarreta. Pode-se dizer que se trata de um filme de difícil digestão, com o
perdão do trocadilho fácil.
Além disso, o coelho no espeto lembra uma figura crucificada e o por-
co pendurado faz uma referência à Figure with meat, do pintor inglês Francis
Bacon. A violência dos acontecimentos é potencializada pela carga simbólica
das iconografias cristã e do estranhamento artístico. Assim, pensar que se quer
evidenciar o que há de animal no homem é pouco, mesmo porque não se trata
de criticar a vida no campo por meio da ótica de um urbanismo superior, que
muitas vezes é ainda mais brutal.
No filme, não há silêncios, mas gradações de sons. O áudio é construído
como se fosse uma partitura musical, cujo movimento dominante é o crescendo:
ao allegro das vozes dos animais do campo se sobrepõem ruídos estridentes pro-
duzidos por máquinas, pessoas etc. O espectador é envolvido auditivamente
sem pausa alguma. A trilha sonora pauta a história para além de sua inteligibili-
dade, propondo tonalidades que surpreendem e às vezes agridem o espectador.
Enquadramentos inesperados também contribuem para criar a atmosfera
intensa, como quando a câmera foca do alto os rostos dos amantes no mo-
mento mais intenso do ato sexual, tornando palpável, pela maneira inabitual
de mostrar, como o gozo pode ser inseparável da dor e como ele se manifesta

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por meio de rictos grotescos que lembram expressões animalescas. Tons frios
e escuros produzem o aspecto sombrio das inúmeras paisagens, de modo que
pela cor e a luz da fotografia, La Rabia é um filme belo e inquietante.
Os desenhos feitos por Nati, embora sejam traços de uma criança, são pesa-
dos: olhos vazados ou o amante da mãe nu e excitado refletem a agressividade
das cenas obscenas que acaba presenciando. Como não fala, desenhar é sua
forma de expressão, que lhe permite digerir a brutalidade que a rodeia. Por outro
lado, se os desenhos ajudam a menina esconjurar a violência, eles duplicam sua
representação para o espectador, tornando-a ainda mais presente.
As animações podem ser produtos da imaginação de Nati, mas são sofisti-
cadas demais – aquarelas coloridas e tinta negra que formam figuras e pincela-
das mais ou menos abstratas. Além disso, elas não mantêm um padrão. Se no
começo são ilustrações de lendas e histórias que a menina escuta ou vê, depois
se tornam traços indiscerníveis, em que as cores desaparecem para dar lugar
a respingos de tinta negra e alguns traços vermelhos. O aspecto simbólico se
sobrepõe ao ilustrativo, deixa-se de figurar uma narrativa para marcar simboli-
camente acontecimentos tais como a perda de inocência de Nati. Entretanto,
o que impressiona na animação não é apenas a transformação da ilustração
figurativa em simbolismo abstrato, mas os modos de animar. No começo, os
personagens surgem de uma linha horizontal e são animados para realizar uma
ação. Mais tarde, o movimento se concentra em espargir rapidamente a tinta
na tela, impondo um ritmo frenético, intensificado pelo rock que invade a tela.
Como se pode ver, a força de La Rabia é resultado da combinação surpreen-
dente de diversos tipos de imagens e de sons. Albertina Carri não se contenta
em realizar um trabalho que critica a violência, o machismo e a vida limitada
dos trabalhadores assalariados nos pampas argentinos. O filme busca provocar
certa ansiedade no espectador, atingindo-o visceralmente, de modo que sinta a
brutalidade exibida. Não há como negar que o diálogo que Carri propõe a seu
público é bastante instigante.

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IV. Um tigre de papel
(Colômbia, 2007, Luis Ospina)

Ensaio coletivo – por Gecilava

Um tigre de papel é a tentativa de reconstruir a história de um artista plás-


tico colombiano, Pedro Manrique Figueroa, suposto precursor da colagem
em seu país. Seria um documentário convencional sobre a vida e a obra de
um grande artista militante, não fosse ele apenas um personagem de Luis
Ospina. A biografia do artista é imaginada como uma trajetória mirabolan-
te, quase uma viagem picaresca de um anti-herói desiludido, outrora um
simpatizante da vibrante esquerda colombiana.
As desventuras do protagonista permitem traçar uma linha do tempo
que vai até os dias atuais e que começa na Colômbia dos anos 1930, década
que antecede ao primeiro período de violência que o país vive até hoje.
Essa época foi marcada pelo assassinato do líder liberal Jorge Gaitán, que
desencadeou uma série de protestos e provocou uma situação caótica, co-
nhecida como o bogotazo.
O percurso de Figueroa também permite colocar em pauta os mo-

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vimentos e tensões que marcaram largamente a história do século XX,
principalmente a divisão do mundo entre socialistas e capitalistas. A guerra
fria teve um grande impacto sobre os movimentos latino-americanos de
esquerda, produzindo um clima, por assim dizer, esquizofrênico, que se
instaurou no relacionamento entre seus membros. Perseguidos e jogados
na clandestinidade pelas ditaduras que proliferaram na América Latina,
todo militante era potencialmente um traidor. Na Colômbia da década de
1950, sob a ditadura de Gustavo Rojas Tenilla, a situação política era muito
difícil e, em Bogotá, nos finais de tarde, tudo era tomado pelo exército. Os
boêmios, artistas e intelectuais costumavam passar as noites no Café Au-
tomático, onde se vivia um ambiente de “revolução, utopia, vida e morte”,
como afirma um dos entrevistados no filme.
Figueroa participou do bogotazo, foi considerado um traidor, sendo assí-
duo frequentador do famoso Café. Se a biografia deste personagem chama
a atenção pelos feitos extraordinários e até inviáveis para um só homem,
essas “inverdades” são tensionadas pela exibição de inúmeras imagens de
arquivo de episódios largamente conhecidos, que carregam o filme de uma
textura de “registro” do acontecimento “real”. Por outro lado, combinar
importantes eventos da história com o tradicional formato talking head não
produz a esperada credibilidade da obra cinematográfica que recorre a
esse tipo de associação. Como muitas vezes as entrevistas veiculam um
conteúdo absurdo, ironiza-se, justamente, o gênero documentário como
discurso da verdade, impedindo a simplificação do filme e evitando que
nele se coloque a etiqueta de “falso documentário”.
Longe de se limitar à crítica irônica do documentário ou aos desdobra-
mentos conceituais da tensão entre verdade/invenção, Um tigre de papel é
um elogio à colagem, tanto que o próprio filme pode ser considerado uma
longa, refletida e divertida colagem. A associação de intrigantes imagens
de arquivo, de animações, de quadros e de entrevistas se traduz numa po-
lifonia de vozes compostas por muitas línguas e sotaques, por diferentes
ruídos, texturas e tons. Assim, pode-se dizer que o tema é a forma.
A ironia, a irreverência e a paródia contagiam a narrativa, de modo que

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a colagem, do tipo surrealista, domina o filme. Associações inesperadas
desmantelam de maneira engraçada o formato do documentário. Ao pe-
queno filme sobre a ascensão de Mao, por exemplo, são acrescentadas pa-
lavras que, pela forma, parecem ser os créditos finais do curta – uma atrás
da outra, as frases entram e saem do quadro, num movimento vertical –,
mas que são informações sobre o nascimento do artista colombiano.
Nas colagens de Figueroa, o efeito cômico é produzido pela relação
entre imagens e textos: Bailando con la más fea é o título do quadro em que
vemos Nixon nos braços de Stalin e, em Los huevos del pecado, cola-se na
mão de um lavrador a foice e o martelo, que esmagam os testículos do
Capitão América. Estes não são os únicos exemplos. A maneira de mos-
trar esses trabalhos potencializa a irreverência, já que parodiam as edições
dos livros de artes ou as exposições artísticas. Uma crítica negativa inicia
a avaliação da obra, mas logo é relativizada pela apreciação entusiasta de
outros estudiosos e pela constatação da consagração do artista, evidente
nos trabalhos apócrifos que começam a aparecer. O aspecto rudimentar
e grotesco das colagens sobre um elegante fundo negro debocha da “re-
cuperação” que o meio intelectual e artístico faz do artista “primitivo”, de
origem humilde.
Divertidíssimo, o filme instrumentaliza o riso para uma reflexão crítica
sobre os fundamentos que sustentam os gêneros narrativos que ele paro-
dia – os documentários sobre artistas e as retrospectivas da televisão. O
que está em jogo é o próprio conceito de História. Ironiza-se a necessi-
dade de uma cronologia com a qual os críticos, curadores e historiadores
pretendem ordenar diversos acontecimentos históricos ou a vida de um
artista. A História, em Um tigre de papel, será uma narrativa composta de
pedaços díspares que, combinados, produzem mais do que um significado
coerente e apaziguador do passado.
Assim, mais do que a mera adoção da ironia e da parodia como retóri-
cas da narração próprias à colagem, o filme parece endossar a ideia do ar-
tista alemão Kurt Schwitters, apresentada no início: se tudo foi derrubado,
é preciso criar com os fragmentos que, recombinados, não mostram como

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as coisas são ou foram, mas o modo como são vistas pelo artista. A compi-
lação que compõe a memória criada por Um tigre de papel só é possível pelo
trabalho dos cinematografistas desconhecidos, os verdadeiros artistas ou
autores do filme. Afinal, sem o trabalho deles não haveria memória, como
o próprio filme afirma.

39
V. Así es la vida
(México, 2000, Arturo Ripstein)

Ensaio coletivo – por Gecilava

Pode-se resumir deste modo a história do filme mexicano “A Vida é


Assim”: mulher traída, abandonada e expulsa de casa resolve se vingar
matando seus dois filhos no dia do casamento do ex-marido com a filha
do dono do cortiço onde moram. Ao assumir que se trata de uma adapta-
ção da Medeia, de Sêneca, Arturo Ripstein parece introduzir uma dimensão
estética e política na crônica policial do México pobre dos cortiços. En-
tretanto, devemos perguntar igualmente como essa história de imprensa
sensacionalista pode repercutir na adaptação cinematográfica de uma peça
teatral tão cultuada como Medeia, de Sêneca, cuja força vem da tragédia
grega escrita por Eurípedes no século V antes de Cristo.

Estatuetas e quadros pequenos tomam conta do ambiente em que vive


a protagonista. Como não temos certeza a que época ou cultura perten-
cem, testemunham apenas o sincretismo religioso de Júlia. Por outro lado,

40
as pequenas esculturas e pinturas estão dentro de planos cinematográficos.
A duplicação das imagens flexiona o texto ocidental para figurar a cama-
da pobre da sociedade mexicana, cujo hibridismo cultural é quase todo
expresso visualmente. Cria-se uma tensão entre um texto cultuado e as
imagens da esfera popular, já suposta na transposição da tragédia a um fait
divers do lumpen mexicano.
A protagonista é a expressão da tensão dessa mistura: imagem de mu-
lher pobre e voz que reproduz o texto teatral. A mesa de boticário, as
ferramentas para fazer abortos, o altar religioso, o berço e outros objetos
dos cenários remetem aos papéis que a sociedade atribuiu historicamente
à mulher: parteira, dona de casa, mãe etc. Assim, a loucura de Júlia pode
ser o resultado não apenas do abandono, mas de carregar nos ombros o
pesado fardo de ser mulher numa sociedade tão patriarcal como a mexica-
na. Os homens da trama são claramente os detentores do poder – não por
acaso, Nicolás deixará Julia para ficar com a filha do homem mais rico do
cortiço. A aguda consciência do jugo masculino se manifesta ainda mais
quando a tia de Júlia nos conta que teria comentado “menos uno”, quando
soube que a criança que tinha abortado era um menino. A situação com-
plicada da mulher na América Latina alcança, no México, ares de verda-
deira tragédia (a cidade de Juárez é um triste exemplo disso). Entretanto, o
filme não se limita a escancarar essa situação social crítica
O comovente monólogo, quando vemos pela primeira vez a protago-
nista, é pautado pela pergunta: “¿Y yo qué?”. Repetida inúmeras vezes, a
frase ajuda a tornar explícito aquilo que é negado a essa mulher que se
restringe às representações que a sociedade lhe impõe. Júlia não quer ser
vista como mãe e trabalhadora, mas como sujeito que deseja. As cenas
do ato sexual de Júlia e as de sua rival com o ex-marido, na mesma sequ-
ência, são uma duplicação estranha que afirma ainda mais o desejo como
constituinte da figura feminina. Pathos que transforma os sentimentos da
personagem em uma reivindicação política.
Os longos planos e as falas para a câmera constroem concisos atos de
uma peça dramática. Os atores ocupam o cenário como se fosse um palco

41
a ser explorado, começam e terminam cada diálogo sem corte. Nos planos
do monólogo, é para nós que Júlia se lamenta, é a nós que encara. Entre-
tanto, uma câmera inquieta, na mão, aventura-se pelos espaços, segue os
personagens, solicitando dos espectadores mais do que a posição estática
do público do teatro. Somos interpelados para que sintamos, consterna-
dos, a profunda crise da protagonista. Ao exagero das emoções se contra-
põe a sobriedade com que se filma o assassinato das crianças. Desse modo,
a desmesura sentimental rompe o frágil equilíbrio entre as encenações das
emoções femininas e do ato inominável do infanticídio da peça teatral. “A
Vida é Assim” se afasta, então, da cena trágica para enredar-nos nos me-
andros do melodrama, gênero predileto da televisão e cinema mexicanos.
Entretanto, o exagero se concentra na explosão de amor e ódio de Júlia,
sentimentos obscuros e misturados que obliteram o sentimentalismo cor-
-de-rosa do melodrama domesticado.
A substituição do coro de cidadãos da cena trágica por um conjunto
de mariachis, além do rebaixamento sarcástico, aponta para esse diálogo
complexo com o melodrama. Os boleros não comentam a situação digna
de piedade da protagonista, como na Medeia de Sêneca, mas glosam ironi-
camente o excesso de amor, apontado como causa da submissão femini-
na. Os músicos estão longe de representarem a coletividade, suposta no
coro da cena clássica. Ao descartar o centro estético e político da tragédia,
abandona-se irremediavelmente o espaço teatral para assumir um diálogo
com o cinema mexicano e a televisão. Não por acaso os músicos transi-
tam entre a tela da TV e a do filme, criando situações que debocham da
tradição sentimental que prevaleceu na dramaturgia das duas mídias. Não
bastasse o grupo de músicos invadir a casa de Júlia, zombando de sua
dor de cotovelo, a moça do tempo da televisão chega a reclamar indig-
nada do anarquismo cênico. Não se poupa nem mesmo o velho trio de
mariachis, pois se lhe acrescenta um jovem, ridiculamente vestido, que faz
rir pela sua falta de jeito. O próprio diretor e o cinegrafista são inseridos
no filme como personagens cômicos; ficam constrangidos quando são
flagrados pela câmera no ato de filmar e apresentam-se como bisbilho-

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teiros surpreendidos em pleno ato proibido. Não há como negar que o
rebaixamento destas figuras emblemáticas – afinal, o autor foi o atalho
pelo qual se tentou validar culturalmente o cinema – contamina a esfera
cinematográfica. Diante da cena teatral, o filme parece assumir um papel
menor, identificando-se ao fait divers da esfera popular. Entretanto, a gente
sabe quão poderosa é a retórica da humildade.

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VI. Um breve passeio pela Terra do Sol
Deus e o Diabo na Terra do Sol
(Glauber Rocha, Brasil, 1964)

Rodrigo Frare Baroni

Deus e o Diabo na terra do Sol narra a trajetória de Manuel e Rosa à procu-


ra de justiça num sertão dominado pela lógica da luta entre Deus e o Dia-
bo. Depois de matar o coronel que tentara roubá-lo na partilha do gado e
de ver a mãe assassinada por jagunços, Manuel, juntamente com Rosa, se
alista nas hostes do beato Sebastião. Ao confirmar que a justiça de Deus,
encarnada no religioso, é falha, Rosa mata o “homem santo”, sem saber
que Antônio das Mortes, a mando dos coronéis, dizima os seguidores do
beato. Poupado pelo matador de aluguel, o casal é conduzido pelo cego
Júlio, um dos narradores do filme, até o lugar onde se escondem os canga-
ceiros que haviam sobrevivido ao massacre do bando de Lampião. Porém,
o diabo tampouco é justo.
Como bem aponta Ismail Xavier em Sertão mar, o filme assume uma
dupla complexidade: a da literatura de cordel e a da música “erudita” de

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Villa-Lobos. O cordel utilizado no filme, escrito por Glauber Rocha e por
Sérgio Ricardo, é a apropriação de uma forma específica e popular de se
contar história que foge à regra da História como disciplina acadêmica
(bem como o cinema o faz), mas que se legitima culturalmente, talvez, tan-
to quanto a última. A forma popular de narração apropriada por Glauber
Rocha atribui ao filme uma polifonia no sentido de que este rompe com
uma espécie de “dever ser”, de um padrão que confere academicamente
certa legitimidade ou autoridade para determinadas maneiras de se narrar
a História. Pedro Paulo Gomes Pereira, em seu artigo “O sertão dilacera-
do: outras histórias de Deus e o Diabo na Terra do Sol” recorre ao pensamen-
to de Michel de Certeau para apontar a relação entre narrativa e espaço.
Para o autor:

[...] A locomoção, a transposição no espaço, é metafórica, já


que a metáfora é justamente a manifestação das maneiras de
se passar a outro, de se transfigurar. As narrativas possuem,
assim, valor de sintaxes espaciais: são práticas do espaço
(Pereira, 2008).

Entre o cordel e a música de Villa-Lobos encontrar-se-ia,


portanto, uma disputa pela formação de um imaginário do
sertão. A música de Villa-Lobos não está dissociada de um
projeto hegemônico de nação. Em diversos momentos do
filme, as músicas, que estariam ligadas ao que seria de mais
“erudito”, aparecem, no entanto, associadas à barbárie, à
violência e ao fascismo.

O cordel mescla, claramente, assim como o filme, elementos históricos


e elementos imaginários (ou fictícios), explorando ainda mais as poten-
cialidades da narrativa e possibilitando sua estruturação, contando uma
história das lutas sertanejas diferente na forma e no conteúdo da história
“oficial”. A disputa entre o cordel e a música “erudita” se dá desde as pri-
meiras imagens, nas quais o espaço do sertão nos é mostrado em um plon-
gée da caatinga ao som de Villa-Lobos. Dado o acompanhamento musical,

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nestes planos, é o relato “oficial” que inicia uma prática do espaço do ser-
tão fílmico. Além disso, a última canção de cordel do filme é abafada pela
música de Villa-Lobos; é dela a primeira e a última palavra sobre o sertão.
Como sabemos, o messianismo e o cangaço são dois grandes temas da
literatura de cordel. O filme os retoma para mostrá-los como duas faces
da mesma moeda, embora o bando de Corisco possa ser visto como uma
“opção” melhor do que a do beato Sebastião, como afirma Ismail Xavier.
Entretanto, as aproximações entre as duas esferas chegam a criar indefi-
nições que podem diluir suas diferenças. Elementos que primeiramente
são vistos como antagônicos ao longo do filme tomam semelhança e até
mesmo unicidade através da encarnação nas personagens. Assim, é pos-
sível ao filme mostrar uma lógica de separação e classificação do mundo
presente na cultura dos personagens, mas, ao mesmo tempo, permite de-
monstrar como essa lógica pode ser operacionalizada de forma complexa
e como esferas antagônicas desta forma de classificação podem coexistir
na mesma figura.
Essa lógica entrelaçada também aparece no tratamento da trilha mu-
sical, pois a complexidade de um elemento popular é apropriada com a
devida maestria pelo diretor do filme e somada a elementos que poderiam
ser vistos como “eruditos”, por exemplo, as músicas de Heitor Villa-Lo-
bos fazem a ligação entre diferentes partes do filme. Mas não há como
esquecer que as músicas do compositor também parecem, em determina-
das cenas, estarem associadas a estéticas semelhantes às das propagandas
fascistas.
Podemos verificar isso quando Manuel e Rosa sobem o Monte Santo
para se unirem a Sebastião: “imagem e som imprimem um tom de solene
grandiosidade ao momento capaz de expressar a força e o valor do êxtase
coletivo” (Xavier, 2007: 119). A música de Villa-Lobos, associada às ima-
gens dos estandartes dos beatos, poderia lembrar os mastros de caravelas
portuguesas – imagem evocada pela associação ao discurso do santo que
exalta os portugueses –, bem como também aludir, através da relação en-
tre música e imagem, à propaganda fascista europeia na qual são exaltados
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estandartes com o símbolo do partido político vigente, juntamente com
músicas “eruditas” nacionais. Neste sentido, Ismail Xavier diz:

É a mesma peça musical de Villa-Lobos que consagra o in-


stante de triunfo em Monte Santo, quando Manuel adere a
Sebastião, e o instante da violência, no ataque do cangaço à
fazenda, quando se define a iniciação de Manuel-Satanás, sua
passagem da cruz à espada, sua participação traumática no
ritual de sangue onde Corisco é o sacerdote (Xavier, 2007:
122).

O fato de a mesma música que marca a ascensão dos fiéis a Monte


Santo também marcar a cena em que o novo bando de Corisco destrói a
casa de um fazendeiro em um “ritual de sangue” confirma a suspeita de
que o messianismo está irremediavelmente contaminado pela violência do
cangaço, como já tinha sido apontado por Ismail Xavier. Entretanto, na
repetição, a música de Villa-Lobos, que sublinhava o aspecto apoteótico
da narrativa messiânica, contamina a trajetória do cangaço com uma gran-
diloquência vazia. Assim, através da música é estabelecida uma relação de
semelhança entre as duas cenas, apesar de suas diferenças. O autoritarismo
do messianismo e o do cangaço se mostram pelos exercícios de poder
que, embora se apresentem sob diferentes formas, são aproximados pela
música de Villa-Lobos.
Portanto, a cena, que aparentemente parece engrandecer os beatos e
o santo, contém em si suas próprias contradições. É possível interpretar
o discurso de Sebastião – no qual seus seguidores veem a possibilidade
de libertação – como análogo ao das formas opressivas do colonizador e
do ditador. Isso se deve ao fato de que tanto Sebastião, na referida cena,
quanto Corisco (na cena ligada pela repetição da mesma música de Villa-
-Lobos) são apresentados sob o ponto de vista ambíguo (Deus e Diabo,
sagrado e profano, libertação e opressão). O filme apresenta o messianis-
mo e o cangaço como perspectivas que almejam justiça e ao mesmo tem-
po atuam de forma violenta, que é o elemento de controvérsia nos ideais

47
apresentados por ambos os movimentos.
Sebastião, ao mesmo tempo em que pode ser visto como um “santo”
– que prega a justiça e promete uma vida melhor em um mundo onde
a fartura deixaria de ser utopia – também pode ser encarado sob outro
prisma, como um “ditador”. Pode igualmente ser visto sob o prisma de
“Diabo” por suas ações violentas cometidas contra prostitutas e crianças,
bem como seu senso de justiça social pode ser relativizado, pois ao invés
de propor a extinção da desigualdade, o que Sebastião propõe em seu
discurso para os beatos é a ideia de uma inversão social, que preserva a
mesma lógica estrutural: “Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus, e
quem é rico vai ficar pobre nas profundezas do inferno”.
A cruz quase sempre é apresentada ao lado de uma espada, faca ou
fuzil, elementos presentes ao longo de todo filme, fazendo alusão não só à
violência da religião, mas também aproximando, através dessas imagens, o
imaginário de Deus e do Diabo, sempre aparecendo conjuntamente. Esses
elementos podem ser observados, por exemplo, no saque realizado pelos
beatos de Sebastião. Além disso, o próprio utiliza-se de um punhal num
ritual religioso para sacrificar uma criança com a finalidade de “purificar”
as almas de Manuel e Rosa.
Tal aproximação culmina no momento em que, pela primeira vez, Rosa
encontra Antônio das Mortes, logo após o massacre de Monte Santo. Nes-
ta cena, a sombra projetada na parede pelo rifle empunhado por Antônio
das Mortes e pelo punhal nas mãos de Rosa forma uma cruz. Corisco,
pouco depois, nos é apresentado como portador de ambos os instrumen-
tos, e seu punhal é para ele a lança emprestada por São Jorge para enfren-
tar o “dragão da maldade”. A crença parece então justificar a violência que
está diretamente associada a ela. A diferença entre a cruz, o rifle e a espada
parece dissolvida ao longo do filme.
A aproximação entre Deus e o Diabo é realçada ainda pela fala de An-
tônio das Mortes, quando este diz: “O padre pode achar que Sebastião tem
parte com o Diabo, mas eu acho que ele tem parte com Deus também”.

48
Longe, então, de Sebastião e Corisco representarem Deus e o Diabo res-
pectivamente, eles representam ambos simultaneamente.
Corisco e Sebastião são, portanto, outra grande cabeça bicéfala entre as
muitas que povoam o imaginário do sertão. Dentre todas elas, a de Manuel
e Rosa é fundamental, pois dela depende a compreensão dos outros pares
que aparecem no filme. Afinal, como afirma a fita, “a terra é do homem,
não é de Deus nem do Diabo”.
Passaremos, portanto, a debruçar-nos sobre as figuras de Manuel e
Rosa dentro do filme. No início, Rosa é uma figura desesperançada, ainda
mais se considerarmos as expectativas do companheiro. Diante dos proje-
tos de Manuel de conquistar um futuro melhor, ela deseja apenas conser-
var o pouco que possui com o marido. Entretanto, o filme se encarrega em
contradizer, das maneiras mais inesperadas, a imagem apequenada de sua
figura. Por exemplo, na sequência da fabricação da farinha de mandioca,
quando parece reproduzir-se uma cena “documental” de um labor cotidia-
no do sertão, a câmera sugere outra esfera completamente diferente: um
primeiro plano de Yoná Magalhães transforma uma cansada sertaneja em
uma bela e enigmática Moira que manipula a Roda da Fortuna, deixando
frouxas as “correias” gastas que mexem com o destino dos homens. A
complexidade da figura feminina já tinha sido trabalhada no artigo “Nem
Deus, nem o Diabo: Rosa na Terra do Sol” (Telles e Silva, 2012), no qual
os autores analisam a figura de Rosa em diferentes momentos do filme. No
mesmo artigo, os autores dizem que: “[...] não é apenas ‘coincidência’ que
o nome da personagem ‘Rosa’ seja o mesmo de uma flor cheia de outros
significados [...]” e, em uma passagem anterior, comentam: “Fato é que a
flor é elemento que se sobressai aos outros nessa vegetação amarelada”.
De fato, no Monte Santo podemos observar uma cena que deixa cla-
ro que o nome da personagem realmente não é “Rosa” à toa. Ele marca
um forte contraste com o cenário do filme, como bem apontam os dois
autores citados. Em um plano sequência é mostrada uma flor que nasce
em meio às pedras de Monte Santo para, seguindo as rochas da escadaria
do local, mostrar outra flor. Desta vez, a personagem Rosa aparece con-
49
trastando com um meio, um universo simbólico do qual ela parece não
compartilhar. A relação de Rosa no Monte Santo é de choque, ao contrário
de Manuel que, na maior parte do tempo (até pouco antes do rompimento
com o Santo), é de uma submissão completa aos desígnios impostos pelo
beato a seus seguidores.
Por outro lado, a relação de choque de Rosa traz uma dupla conotação:
não se trataria da relativização dos valores do outro e um contato com a
alteridade por parte da personagem (embora o filme ainda possa provocar
esse movimento no espectador), mas sim a repulsa e a negação dos valores
dos beatos. Por outro lado, ela parece ser a única a ver nas ações do “San-
to” o emprego injustificado da violência baseado em promessas vazias.
No artigo citado anteriormente, os autores analisam a cena em que
Rosa aparece na frente dos beatos que cantam Ave Maria. Nesta cena
observa-se, fixado na parede ao fundo, um quadro que parece ter rosas
desenhadas. A respeito desta imagem, os autores do texto afirmam que:

O olhar da mulher é, ao mesmo tempo, de compaixão e nojo


com os religiosos sem-face. Antes de sair de cena, ela dá de
ombros, aparentemente repugnada com o cântico insosso
daqueles que têm fé na vida póstuma, no outro mundo – a
salvação dela e de Glauber Rocha é da ordem deste (Telles
e Silva, 2012).

Já Manuel nega os valores do “santo” e dos beatos apenas após a osten-


siva de Rosa contra o “santo”1 pela qual, através do choque, faz Manuel
suspender os valores aos quais tinha aderido e inverter a afirmação de
“É preciso lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes” para
“Não se pode lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes”.
É através da inversão da sentença que podemos observar um claro
rompimento por parte de Manuel com as ações e ideias impostas a ele
por sua devoção ao “Santo”. Porém, apesar desse rompimento, Manuel
continuará a idealizar as atitudes e ideias de Sebastião – pelo menos até a
disputa com Corisco, na qual discutem sobre quem é maior, Virgulino ou

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Sebastião – tudo para concluírem que ambos tinham suas fraquezas.
Os registros narrativos se misturam: à busca progressiva por justiça de
Manuel, embaralha-se a trajetória de uma Rosa mítica, responsável por
grandes mudanças no seu próprio destino e no do companheiro. O uni-
verso da lenda coloca no centro do relato não apenas a figura de Deus e
do Diabo, como no início, mas a sua lógica, na qual o homem só pode
sobreviver por meio do pacto, como nos ensina Guimarães Rosa.
Com o beato Sebastião o pacto só pode ser de total submissão, excluin-
do qualquer outro, mesmo aquele entre marido e mulher. Manuel abre
mão de Rosa e se torna soldado de Deus, obrigado a humilhar pequenas
prostitutas e ajudar a assassinar crianças para aplacar a fúria divina. Rosa
não abre mão do pacto que tem com Manuel e desconfia do autoritarismo
de Sebastião, corporificado na submissão incondicional que exige de seus
comandados e na histeria que ele provoca.
O pacto com o cangaço é muito mais horizontal: tem início na primeira
troca de olhares entre Dadá e Rosa e é, finalmente, consumado no mo-
mento em que se dá a troca de carícias entre Corisco e Rosa. O diabo não
é tão exigente quanto Deus. Embora de Manuel se exija um ato cruel de
iniciação – castrar um inimigo –, Corisco respeita o desejo de justiça que
move o vaqueiro e, no final, libera-o do fardo de seguir a sua sina.
Não há dúvida de que, na esfera do cangaço, as experiências abrem
outras perspectivas, embora marcadas pela violência. Essas possibilidades
não escapam a Rosa. A troca simbólica da flor com o lenço entre ela e
Dadá inaugura uma nova forma de pactuar que vai repercutir em sua rela-
ção com Manuel. Pela primeira vez, ela é consultada sobre o rumo que o
casal deverá seguir.
Porém, morto Corisco, o pacto de Rosa com os cangaceiros se dissol-
ve; não mais envolto pela relação simbólica de obrigação para com estes,
Manuel e Rosa fogem correndo pela caatinga. Na fuga, Rosa cai e é dei-
xada para trás por Manuel. Cria-se assim uma situação de suspensão da
ordem: ao mesmo tempo em que Manuel livra-se de todos os laços que

51
o prendiam na relação entre “Deus” e “Diabo”, sua corrida sem destino
e os planos finais do filme sugerem tanto a possibilidade de rompimento
dessa lógica quanto a de sua restituição. Cria-se, nas últimas sequências
do filme, a alternativa de Manuel, livre dos pactos que o obrigavam ante-
riormente, começar uma nova busca por justiça, mas desta vez “fora da
cegueira de Deus e o diabo” (conforme dizia a profecia de Antônio das
Mortes), abrindo-se uma brecha para a possibilidade de uma permanência
das personagens no interior desta lógica.
Por outro lado, diante da ambiguidade que pode suscitar esta sequência
do filme, pode se entender que não há de fato uma libertação, mas uma
restituição, pois no meio da fuga, mais uma vez, Rosa é deixada para trás
por Manuel, como centenas de mulheres sertanejas abandonadas pelos
maridos que se aventuram em busca de uma vida melhor longe do ser-
tão. Este fato, nada negligenciável, compromete qualquer visão da história
como uma prefiguração de uma revolução redentora. Rosa é a cisão ir-
reparável, que torna espúria a corrida de Manuel para o futuro. O que se
rompe é aquilo que tinha sido ganho a muito custo, o pacto de solidarieda-
de entre as duas cabeças essenciais da história, Manuel e Rosa.
Isso parece se confirmar na última sequência: o enquadramento do tão
ansiado mar é semelhante ao do sertão, do início do filme. Essa falta de
horizonte, nas duas imagens2, muito mais do que sugerir que Manuel pode
chegar lá, parece confirmar o destino inexorável da profecia do beato Se-
bastião: o sertão vai virar mar, mas também o mar vai virar sertão. O movi-
mento circular instaura de novo a lógica de Deus e do Diabo e a exigência
de uma contrapartida violenta – não há redenção, pois sempre haverá um
sertão, o que nos remete ao vaticínio de Guimarães Rosa, “o sertão está
em toda parte” (Rosa, 2006: 08).

Referências bibliográficas:

CERTEAU, Michel de. “Caminhadas pela cidade” in A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petró-

52
polis: Editora Vozes, 1998.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. “O sertão dilacerado: outras histórias de Deus e o Diabo na Terra do
Sol” in Lua Nova, nº 74. São Paulo: 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-64452008000200002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 06 de abril de 2015.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

SILVA, Alexandre Rocha da e TELES, Marcio. “Nem Deus nem Diabo: Rosa na Terra do Sol” in
Imagofagia, nº 5. Buenos Aires: 2012. Disponível em:
http://www.asaeca.org/imagofagia/sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=185%
3Anem-deus-nem-o-diabo-rosa-naterradosol&catid=44&Itemid=107. Acesso em 21 de novembro
de 2013.

XAVIER, Ismail. “Deus e o Diabo na Terra do Sol: As figuras da Revolução” in Sertão mar: Glauber
Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Notas:

1. No artigo citado, os autores também comentam esta passagem dizendo que: “Manuel, porém,
atordoado ao perceber a sanguinolência do homem santo, queda-se calado. Chora copiosamente
e não é capaz do único ato sensato para libertar-se: repetir o assassínio. A saída do impasse só é
tomada por Rosa, santa libertadora” (Telles e Silva, 2012).

2. Como já havia apontado Ismail Xavier: “A câmera, em movimento, nos mostra um mar visto
de cima, de modo a evitar que se desenhe uma superfície lisa, delimitada pela linha estável do
horizonte” (Xavier, 2007: 122).

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VII. Oh, abandonado como los muelles
al alba, todo en ti fue naufragio:
expectação e isolamento em
Memórias do subdesenvolvimento
Memórias do subdesenvolvimento (Memorias del
subdesarrollo, Tomás Gutiérrez Alea, Cuba, 1968)

Cristina de Branco e Miguel Dores

Memórias do subdesenvolvimento é uma adaptação cinematográfica da obra


literária homônima de autoria de Edmundo Desnoes, que também foi cor-
realizador e corroteirista do filme. O nosso enfoque neste artigo não se
prenderá nem à relação obra literária e adaptação cinematográfica, nem ao
relativo processo de transladação estética, mas sim ao filme em si, tendo
como eixo de análise as estratégias estéticas de articulação entre o protago-
nista e o tempo histórico do filme. Esta escolha é determinada pelo caráter
modular de ambos para a estética cinematográfica de Alea, essencialmente
tomados na sua correlação.
Nos primórdios do processo revolucionário cubano, Sérgio, o protago-

54
nista, torna-nos espectadores de uma La Habana particular, visibilizando
a perspectiva de um não-participante no processo histórico da sua con-
temporaneidade. Vê sua família e amigos partirem de Cuba e assiste do
cimo do mais alto edifício da capital às transformações urbanas, políticas
e sociais mais ou menos perceptíveis à sua condição altaneira. Ao envol-
ver-se com Elena, jovem que para ele personifica o subdesenvolvimento,
Sérgio permanece distante e alheio ao questionamento que faz sobre a sua
condição no espaço e a dinâmica que o rodeia, funcionando como uma
lente de graduação única. Entretanto, vários contrapontos, várias outras
lentes são intercaladas no filme através de momentos documentais que
mostram registos sonoros, fotográficos e audiovisuais da realidade pré e
pós-revolucionária, desestabilizando, assim, a visão unilateral e confessio-
nal de Sérgio.
Memórias do subdesenvolvimento começa em transe com a cena de uma
festa afro-cubana: ¿dónde está Teresa? / ¿Teresa? / ¿dónde está Teresa?, a batida
repete-se incessantemente balançando corpos incógnitos que, apertados,
dançam, mesmo que interrompidos por um disparo e consequente morte
de um dos indivíduos bailantes entre a plateia atuante e extasiada. A cena
conclui-se com o olhar congelado de uma jovem mulher sobre a câmera,
sobre nós, presentificando o espectador no meio cênico e levando-o a
sentir-se, frente à sua face, como um meio comunicante e construtor do
filme. Não é só o espectador que recebe o filme, mas também o filme re-
cebe o espectador e suas expectativas. Esta cena propõe-nos um ritmo de
entrada vibrante bruscamente amputado pela cena seguinte, no aeroporto
de Havana, em que o protagonista despede-se de seus pais e esposa, que
abandonam o país pela discordância ideológica perante o processo revo-
lucionário.
Ao regressar à casa, Sérgio aproxima-se da sua varanda e encontra um
dos passarinhos morto dentro da gaiola. Friamente, lança-o, varanda abai-
xo. “Mantengo una lucidez, un vacío”. Sérgio é este personagem isolado peran-
te uma construção histórica que ganhou um sentido coletivo, a Revolução
Cubana, na qual ele não participa, apenas observa e critica, embora frente

55
a sua classe, família e amigos seja visto como um resistente, expectante por
aquilo que em Cuba possa vir a acontecer. “Nada, no eres nada”. Não sendo
motor ativo nesse tempo histórico, Sérgio pertence a ele e é seu agente,
mesmo que indireto. Embora não seja protagonista da sua contempora-
neidade, Sérgio é o motor do filme.
A prolixidade deste personagem não reside de forma simples no seu
isolamento pequeno-burguês, quanto menos no apanágio de uma visão
descomprometida. Para compreendê-la, teremos que mergulhar de modo
mais profundo na dimensão de “expectação” que esta provoca, ou, por
outros termos, de recepção do espetáculo. Sérgio está para a Revolução
Cubana numa posição de relativo distanciamento, tão relativo quanto à
posição de um espectador frente ao espetáculo cinematográfico. “Todo si-
gue igual. Aquí todo sigue igual. Así de pronto, parece una escenografía, una ciudad de
cartón. [...] Sin embargo, hoy todo parece tan distinto. ¿He cambiado yo o ha cambiado
la ciudad?”. Tal como a sua condução escrita da realidade cubana “nega
dialeticamente” esta mesma, o filme nega dialeticamente a vida. O cinema
compõe, segundo esta perspectiva, uma interrupção (e não um prolonga-
mento) da realidade que constitui, a priori, uma contradição alienante, com-
petindo ao criador da obra artística fazer desta instituição uma contradição
comunicante que devolva o espectador à realidade, para que a negação
artística se torne verdadeiramente dialética e o “espetáculo socialmente
produtivo”. Todas estas concepções Tomás Gutiérrez Alea sistematizará
mais tarde na obra Dialética do espectador, embora a sua composição esteja
germinada já em Memórias do subdesenvolvimento.
Sérgio é, deste modo, a figura-chave deste espectador que, embora não
participe de um tempo histórico, o questiona como uma entidade externa.
A dinâmica entre a identificação/desconstrução do protagonista permite
ao diretor encenar um movimento de relativa distância e questionamento
no espectador, levando-o, portanto, a não aceitar totalmente a orientação
do personagem, mas a criticá-la, aceitá-la em parte, recusá-la em parte; en-
fim, pensá-la. Alea procura com este protagonista a figura de um especta-
dor em constante processo de produção de eixos de interpretação do real.

56
¿Cómo se sale del subdesarrollo? Cada día lo pienso más di-
fícil. Lo marca todo. Todo. ¿Y tú que haces acá abajo, Sérgio?
¿Qué significa todo eso? Tú no tienes nada que ver con esa
gente. Estás solo. En el subdesarrollo nada tiene continuidad,
todo se olvida. La gente no es consecuente. Pero tú recuerdas
mucha cosa, recuerdas demasiado (Sérgio em Memórias do
subdesenvolvimento).

Por outro lado, deixa clara a sua condição burguesa, eurocêntrica, au-
toexcludente e coisificante da realidade cubana, a ponto de submergi-la
no discurso do subdesenvolvimento. “Siempre trato de vivir como un europeo.
Y Elena me hace sentir el subdesarrollo a cada paso”. Esta confissão do prota-
gonista leva-nos a considerar o “Complejo de la Malinche”, descrito por
Octavio Paz em El laberinto de la soledad, como uma tendência do pensamento
latino-americano segundo a qual o dominado se apaixona pelo dominador.
Afirma-se, assim, o isolamento de Sérgio como uma construção labiríntica
da solidão. O seu ninguneo, conforme Octavio Paz, surge como característica
da sua própria dominação e subdesenvolvimento.
Esta segunda dimensão do personagem incita também o espectador a
criar com ele uma relação dialética através de uma operação contrastan-
te de alienação/desalienação que apenas se torna possível por meio de
uma identificação desconstruída, de um efeito de distanciamento que se
vai construindo ao longo do filme. Seguindo esta perspectiva de análise,
chegaremos à ampla conexão entre Memórias do subdesenvolvimento e o teatro
brechtiano. Contrariamente à noção coercitiva do personagem como guia
moral do espectador e à imposição de um processo de identificação catárti-
ca entre personagem e público, o conceito de espetáculo de Alea considera
a percepção reflexiva e crítica do espectador diante do espetáculo como
contradição fundamental da vida. Tal como Brecht, Alea apresenta-nos
no filme um aparato de superação cinematográfica da poética moralizante
aristotélica. Sérgio não é um protótipo heroico da Revolução, nem um ser
que se lhe apresenta heroicamente antitético. É, sim, um personagem que
mostra as suas debilidades, contradições e incongruências enquanto sujei-

57
to discursante. A formulação desalienante do teatro brechtiano poderá ra-
dicar-se no espetáculo como experimentação científica ou negação da sua
completude realista, no entanto, a estética de Tomás Gutiérrez Alea não se
encerra necessariamente nesse pressuposto. A cena inicial de Memórias do
subdesenvolvimento em que somos imediatamente colocados num ambiente
de adesão a um corpo em transe é paradigmática. Como o próprio autor
enuncia em Dialética do espectador, a alienação é uma função essencial do
espetáculo, o que inclui claramente o divertimento e a fuga do espectador
para dentro do mundo ficcional. O espetáculo socialmente produtivo se
propõe a um processo de alienação e desalienação:

Yo pienso que todo cine debe ser desalienador, pero para serlo
debe alienar previamente al espectador. Me parece inevitable.
Hay películas que solo alienan, que no ayudan a comprender
la realidad. Pero la alienación del espectador ante la pantalla
es útil si la utilizamos posteriormente para desalienarlo. La
acción tomada como un fin en sí misma es puramente alie-
nante, pero en cambio podemos utilizarla para captar, empati-
zar al espectador con el objetivo de transcenderla (Alea apud
Avellar, 1995: 276).

É através das contradições internas da ficção que o espectador pode ser


levado a um processo crítico de desalienação. Neste sentido, o “espetáculo
socialmente produtivo” é aquele que consegue transportar esta reflexão
crítica da ficção à realidade do espectador. Em Memórias do subdesenvolvi-
mento este processo relaciona-se com o processo de montagem de con-
tradições imagéticas. Isto é, mediante a contradição discursiva de Sérgio
(personagem tutelar das memórias individuais de Havana) e as interrup-
ções documentais que se lhe vão opondo assume-se uma lógica interna
semelhante à da montagem eisensteiniana.
Tendo em conta esta perspectiva da atividade dialética do espectador
como condição necessária ao desenvolvimento de um “espetáculo social-
mente produtivo”, poderemos então compreender outra dimensão impor-

58
tante da escolha da novela de Desnoes e deste protagonista controverso.
Por um lado, a escolha pela figura de Sérgio permite a abordagem de um
personagem que encarnasse o universo do espectador; por outro, mais do
que a projeção conteudística de uma realidade que expressasse a tendência
política correta, parece importar ao diretor a correção da forma estética,
esta sim capaz de expressar uma tendência política correta. Ou seja, o po-
tencial transformador de um espetáculo reside na sua capacidade de ser so-
cialmente produtivo e, para tal, mais do que demandar a identificação com
certos discursos ou imagens, deve inserir-se corretamente na transformação
das formas de produção. Este problema da expressão da tendência artística
correta como condição para a expressão de uma tendência política correta
apresenta, desde logo, uma clara afinidade com os problemas essenciais de
Walter Benjamin em O autor enquanto produtor:

[...] a tendência política correta implica uma tendência literá-


ria. E para completar a ideia desde já: esta tendência literária
que está contida, implícita ou explicitamente, em qualquer
tendência política correta – esta, e nada mais do que esta,
determina a qualidade da obra. Por essa razão, a tendência
política correta de uma obra implica a sua qualidade literá-
ria, porque engloba a sua tendência literária (Benjamin, 1995:
138).

Considerando o processo de transformação dos meios de produção levado


a cabo pela Revolução Cubana, Alea estabelece uma estética dialética que utili-
za como maior dispositivo a transição entre a narrativa linear da vida de Sérgio,
seu envolvimento com Elena e com a época histórica que lhe coube, os flash-
backs que nos trazem as suas lembranças íntimas e ainda trechos documentais
que abordam o passado e o presente vivenciados coletivamente.
O ato de escrita confessional, como meio construtor das memórias in-
dividuais visibilizadas pelo filme, será desbloqueado pelo distanciamento
dos seus familiares e resultará num relato, em forma de diário-áudio, sobre o
que o rodeia. Este diário funcionará no filme como uma estratégia de adap-

59
tação da obra literária de Edmundo Desnoes ao discurso cinematográfico e
também como forma de surgimento de uma voz-off dirigente que singula-
riza e distancia o sujeito dos objetos narrados. A experiência revolucionária
cubana passa a ser projetada no filme, por um lado, como algo interno à pró-
pria consciência de Sérgio. Por outro lado, a contraposição aos seus juízos
sobre a sua contemporaneidade figura através de cenas documentais sobre
o tempo histórico coletivo. Forma-se, assim, uma relação dialética no filme
entre a significação individual da consciência de Sérgio e as interrupções do-
cumentais que nos trazem algumas vozes e retratos sobre a mesma realidade
geográfica e política. A voz de Sérgio assume-se como um todo, enquanto o
todo se assume como parte. “Cada uno se remete a su propia individualidad cuando
se quiere alejar de la miseria ajena que lo contamina”.
As memórias de Sérgio durante a sua vida na isla subdesarrollada, ou ain-
da as memórias do subdesenvolvimento do próprio protagonista, imerso
num individualismo e artificialismo que bloqueiam a sua reflexão e ação,
dão conta da sua individualidade e de alguns fatores que a compõem.
Em três flashbacks, a câmera toma o olhar de Sérgio como perspectiva em
travelling. Sempre sob o formato diarístico, o personagem retoma as suas
lembranças de infância – o seu melhor amigo e o convívio escolar –, da
adolescência – sua primeira experiência sexual num bordel barato –, e
da juventude – sua primeira paixão, Hanna, e a frustração com o início
da vida adulta ao ser responsabilizado pela loja de móveis de sua família.
Sérgio relaciona as suas lembranças íntimas a uma insatisfação perpétua,
revolvida em si mesma e obtusa perante as memórias coletivas e múltiplas
dos enormes desafios ao desenvolvimento socioeconômico que a socie-
dade cubana atravessava. De certa maneira, Sérgio repulsa diretamente o
cosmos social ao qual pertence e indiretamente a si próprio, permitindo-
-se apenas à adoração material e às reflexões inconclusas. Resulta daí, por
exemplo, a tendencial coisificação do outro, a concepção e relação com o
outro como coisa – como diante de la delgada de Vogue, dos joelhos de Ele-
na e como também demonstram as suas considerações impositivas sobre
rostos que vai vendo nas suas parcas jornadas pelas ruas de La Habana.

60
Por mais que veja em Elena a personificação do subdesenvolvimento, ou
seja, a figura que sendo humana ainda não consegue relacionar fatos e tex-
tos, Sérgio prova-se, ele mesmo, mais uma figura do subdesenvolvimento,
consequência da asfixia intelectual e emocional causada, por sua vez, pelas
dinâmicas sociais próprias do sistema capitalista.
Entre as percepções íntimas de Sérgio, suas memórias e considerações,
a narrativa é novamente interrompida por três momentos documentais
(igual número dedicado aos flashbacks). Ao envolver-se com Elena, Sérgio
promete-lhe apresentá-la aos seus amigos cineastas. Percebemos a con-
cretização da promessa ao vê-los numa plateia após o surgimento de uma
sucessão de cenas eróticas cortadas de seus filmes e reeditadas numa nova
proposta cinematográfica. O próprio Tomás Gutiérrez Alea explica-se na
cena seguinte: “Una película que sea como un collage, donde se pueda meter de todo”.
Sérgio desafia-o: “Pero tiene que tener algún sentido”. Ao que Alea responde: “Y
va a salir. Tú verás”. As cenas documentais de Memórias do subdesenvolvimento
são, também elas, montadas como um collage de vários registros de áudio,
audiovisuais e fotográficos do período pré e pós-Revolução. O primeiro
trecho documental surge entre as conversas de Sérgio e seu amigo Pablo,
prestes a partir para os Estados Unidos. Após um longo bocejo do pro-
tagonista surgem imagens fixas e em movimento referenciais à miséria e
fome sofridas pelas crianças e pelos povos latino-americanos, entre eles
o cubano. “En América Latina mueren cuatro niños por minuto, por enfermedades
provocadas por la desnutrición”. A gravidade dos fatos relatados provam a opi-
nião que Sérgio vai formando sobre a inconsistência discursiva de Pablo
perante a situação sociopolítica de Cuba e seu envolvimento como cida-
dão cubano (inconsistência essa continuada pelo próprio Sérgio). Existe,
então, uma frágil ponte entre os registros documentais e a consciência de
Sérgio. O segundo momento documental prolonga-se ao ilustrar por ima-
gens de objetos de tortura, de torturados e seus familiares e de torturado-
res e seus cúmplices, várias vozes em off captadas durante os julgamentos
realizados após a Revolução aos coniventes com o regime de Baptista. En-
tre a voz de uma testemunha que denuncia emocionadamente o assassina-

61
to e a profanação do corpo de seu companheiro, também são transmitidas
reflexões sobre o conflito de classes próprio do capitalismo. A presença da
classe burguesa, como se discute no próprio filme,

permite, por otra parte, la existencia de aquellos que no es-


tán en contacto directo con la muerte y que pueden sus-
tentar, como individuos separados, sus almas limpias. […]
Todos aparecen dislocados de un sentido global que nadie
asume completamente.

No mesmo sentido ideológico, o último momento documental é con-


cluído com um discurso histórico de Fidel Castro: “Tenemos que saber vivir
en la época en que nos ha tocado vivir. Y con la dignidad que debemos vivir. Todos.
Hombres y mujeres. Jóvenes y viejos”. Em tom crítico e sugestivo direcionado
ao protagonista e àqueles que, fazendo parte de uma sociedade, não con-
tribuem ativamente para o seu desenvolvimento, Tomás Gutiérrez Alea
fecha o enredo com a chave política que permeia todo o filme. Em pleno
período pós-revolucionário, Alea apropria-se da figura do burguês desen-
contrado, de suas memórias e da sua tendência individualista para dar con-
ta, dialeticamente, da importância da construção histórica coletiva. Este
movimento encena por sua vez uma necessidade de pensar as inscrições
dialogantes do filme e atribui ao espectador a capacidade de sujeitar estas
mesmas a um sentido crítico sobre as memórias do subdesenvolvimento.

Referências bibliográficas:

AVELLAR, José Carlos. A ponte clandestina – Teorias de cinema na América Latina. São Paulo:
EDUSP, 1995.

BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1992.

PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. Madri: Letras Hispánicas/Fondo de Cultura Económica, 2006.

62
VIII. Para não dizer que não falei do fim
da democracia
Os anos JK (Silvio Tendler, Brasil, 1980)
Lúcia Ramos Monteiro e
Sérgio César Júnior

Foi depois de uma adolescência de cineclubista no Rio de Janeiro, de


um período de um ano e meio no Chile de Salvador Allende e de quatro
anos de estudos na França que Silvio Tendler volta ao Brasil (Mengardo,
2011: 13) e realiza Os anos JK, seu primeiro longa-metragem, lançado em
1980. Na temporada parisiense, aproxima-se de Jean-Rouch, de Chris Ma-
rker e de Marc Ferro. Três figuras que tiveram, de maneiras distintas, peso
fundamental em sua formação e cujos trabalhos iluminam a compreensão
que se pode ter, hoje, da obra do cineasta brasileiro. Nos cursos de Rouch,
iniciou-se no cinema documentário; como voltara ao Chile em 1973, pou-
co antes do golpe que derrubou o presidente Allende, teve a oportunidade
de colaborar com Marker em A espiral (1976); quanto a Ferro, ele teve
influência no percurso acadêmico de Tendler, que pesquisou o cineasta
holandês Joris Ivens no mestrado em Cinema e História.
Silvio Tendler começa a trabalhar em Os anos JK em 1977, assim que

63
regressa ao país, motivado, ao menos em parte, pela comoção causada pela
morte de JK no ano anterior (Elias, 2010). É impossível ver o longa, hoje,
sem encará-lo como documento não apenas do período em que Kubits-
chek governou, mas sobretudo como documento das últimas etapas do
regime militar no Brasil. O movimento de deslocar o olhar do conteúdo
do filme para seu contexto de fabricação é, aliás, uma das bases do pensa-
mento que Ferro estabeleceu, principalmente, a partir de sua participação
na revista Annales, no início dos anos 1960, enquanto defensor do cinema
como fonte para a historiografia.
Se antes de Ferro outros historiadores, no Brasil inclusive, já haviam
chamado a atenção para a riqueza do material fílmico como documenta-
ção para os historiadores (Morettin, 2013: 132), Ferro desempenhou um
papel pioneiro ao sistematizar esse pensamento, posto que, até então, o
cinema era, em geral, desprezado no fazer histórico. “A exclusão da ima-
gem cinematográfica do fazer histórico, para Ferro, ocorreria em função
desta pertencer ao imaginário da sociedade que, por sua vez, também não
era considerado pelo historiador. A vinculação entre cinema e imaginário é
fundamental para o seu trabalho, é o seu postulado”, afirma Eduardo Mo-
rettin (2007: 48). Qual é a hipótese de Ferro? A de que “o filme, imagem
ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura inven-
ção, é História”. E seu postulado? O de que “aquilo que não aconteceu (e
por que não aquilo que aconteceu?), as crenças, as intenções, o imaginário
do homem, são tão História quanto a História” (Ferro, 1992: 86)3. Ferro
advogava, entre outras coisas, que o valor de documento do cinema não
se restringia ao documentário, sendo igualmente presente na ficção, pois
todo filme documenta, em primeiro lugar, seu processo de fabricação e o
tempo em que é feito.
O pensamento de Ferro não se tornou hegemônico e, se atualmente
historiadores de fato trabalhem com fontes fílmicas, isso não significa que
sejam completos seguidores de Ferro. Não é consensual, por exemplo, a
importância que ele dá para “o não visível”, para o que escapa dos filmes e
das intenções de seus autores. De todo modo, algo permanece inegável: “o

64
filme histórico, tomando como base eventos passados, ilustra problemas
políticos contemporâneos e opera, de ponta a ponta, uma translação em
direção ao presente” (Sorlin, 1974: 267. Tradução nossa). Dessa maneira,
examinar Os anos JK hoje em dia é observar o desejo corajoso de, na segun-
da metade da década de 1970, celebrar uma figura icônica da democracia
brasileira. O jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho
haviam sido assassinados entre 1975 e 1976 e, embora os crimes tenham
contribuído para desmoralizar a chamada “linha dura” e a distensão come-
çasse pouco a pouco a se colocar desde o mandato de Geisel, a abertura só
vem com o general João Batista Figueiredo (1979-1985), último presidente
militar. Ou seja: o filme de Tendler não poderia ter sido lançado antes.
O documentário de longa-metragem de Silvio Tendler traça a trajetória
do ex-presidente da república Juscelino Kubitschek de Oliveira, com base
nas atuações parlamentar e executiva de âmbito regional e federal de sua
carreira política. O filme articula a narração voice over do ator Othon Bastos
com arquivos fotográficos e audiovisuais que datam de 1940 a 1976 e com
entrevistas que o cineasta realizou com personalidades políticas contem-
porâneas de JK. Tendler alia um trabalho exaustivo de pesquisa histórica
ao vultoso material textual, iconográfico e sonoro, para fundamentar a
imagem do estadista brasileiro no trinômio “respeito, liberdade e anistia”.
O filme apresenta, ainda, o movimentado contexto do país no período do
pós-Segunda Guerra Mundial e reconstitui o ambiente político no qual se
deu o Golpe de 1964, contendo um questionamento implícito da legiti-
midade do regime militar. Como diz Jean-Claude Bernardet em um artigo
escrito logo após o lançamento de Os anos JK:

O filme parte da premissa de que o regime político atual-


mente vigente no Brasil é ruim, o que ele não precisa de-
monstrar, pois se dirige implicitamente a um público que
pensa dessa forma. Bastarão algumas imagens grotescas e si-
nistras de presidentes militares [...] para confirmar esse dado
(Bernardet, 2003: 243).

65
Na abertura do filme, surgem planos com fotografias e gravações ra-
diofônicas do ato de promulgação da Constituição de 1946. O plano inicial
mostra a manchete do Correio da Manhã: “Promulgada, ontem, solenemen-
te, a Nova Constituição”. Enquanto se ouve a gravação do “Noticiário
Radiofônico da Agência Nacional”, são reproduzidas fotografias do mo-
mento do pronunciamento. Um trecho de cinejornal mostra a assinatura
do presidente Eurico Gaspar Dutra. Mais adiante, no plano-sequência que
finaliza a abertura do documentário, Juscelino toma posse da presidência
em juramento à mesma Constituição que havia ajudado a elaborar quando
deputado federal. Esse destaque dado à promulgação da Constituição não
pode ser pensado separadamente do fato de que, no momento da conclu-
são do longa de Silvio Tendler, já fazia dezesseis anos que essa Constitui-
ção deixara de valer integralmente, por conta das emendas que surgiram
na esteira do Golpe de 1964 (Sodré, 2010: 473); no final de 1966, o Ato
Institucional Número 4 determinava um novo projeto de Constituição e
revogava a de 1946 por completo (Sodré, 2010: 474).

Pé-de-valsa
Sem criticar diretamente o regime militar então em vigor, o documen-
tário ressalta o papel de JK como um presidente que respeitava a Cons-
tituição. Ele é caracterizado como um homem simpático, carismático,
“pé-de-valsa”, elegante, atencioso, popular e, acima de tudo, democrático,
ouvinte das reivindicações feitas pelos setores sociais. Um dos exemplos
disso é o episódio da manifestação estudantil contra o aumento da tarifa
do transporte de bonde elétrico, promovida pela empresa Light. O ex-
-líder estudantil da União Nacional dos Estudantes (UNE), Marcos Heusi,
dá a sua versão sobre o encontro que teve com o presidente JK naquela
ocasião. Ele comenta que o presidente estava lúcido sobre a situação e se
mostrou disposto a aceitar a reivindicação dos estudantes. Segundo Heusi,
o presidente cedeu a ele a cadeira presidencial, durante a conversa, num
gesto de cortesia e para mostrar como o estudante se sentiria se estivesse

66
no lugar do presidente. O ex-estudante alegou que o presidente cumpriu
com a promessa de manter congelado o preço da tarifa. A narração con-
firma o cumprimento do acordo.
Elabora-se, assim, a imagem de um homem compreensivo ou, nas pala-
vras de Bernardet, “de um presidente liberal que sabia lidar com os vários
setores da sociedade e as várias forças em presença no jogo político”, de
alguém que “absorve e neutraliza os conflitos dentro da legalidade, inclu-
sive quando é hostilizado” (2003: 244). O ápice dessa característica está na
questão da anistia, abordada quando o documentário evoca a intentona
de militares da Força Aérea Brasileira. Liderados pelo Major Veloso, eles
se organizaram na região Amazônica, tentando criar um foco de guerri-
lha com o objetivo de proclamar uma nova “República do Galeão”4 em
protesto à gestão de JK. A ação foi contida pela própria FAB, e JK não
ordenou punições graves ou exonerações dos cargos. Para um espectador
dos anos 2000, a anistia aos militares concedida por JK soa como um
prenúncio da maneira como a ditadura militar terminaria, em 1985: com
anistia “geral e irrestrita”. Tanto no governo JK quanto depois, os milita-
res golpistas não seriam punidos. Assim, além de salientar a postura conci-
liadora do presidente, o filme acaba por fornecer elementos que permitem
compreender a subserviência da democracia brasileira ao poder militar.
Em alguns trechos, o filme apresenta o presidente como um sonhador,
comparado a Dom Quixote. Dentre seus projetos desbravadores, o mais
importante é, evidentemente, a fundação da nova capital federal. O de-
poimento do arquiteto Oscar Niemeyer exalta o entusiasmo de JK como
principal responsável para a concretização da utopia de Brasília. Nem só
de elogios, porém, se constitui o retrato de JK proposto por Silvio Tend-
ler. O cineasta faz ressalvas com relação a sua opção por abrir estradas e
incentivar a criação de parques industriais de empresas estrangeiras. “JK
não entendeu a diferença entre a Volkswagen no Brasil e a Volkswagen
do Brasil”, diz, de maneira um tanto irônica, o narrador. Ainda que sutil,
a crítica serve, também, para pensar o nacionalismo e a política industrial
do período em que o filme foi lançado.

67
No consenso público, a imagem de gestor desenvolvimentista vincula-
da a Juscelino Kubitschek não lhe foi atribuída no governo presidencial;
ela já o acompanhava desde quando era prefeito de Belo Horizonte. Na
presidência da República, ele lança a agenda de modernização das ativi-
dades econômicas produtivas do País. Vivia-se, então, o contexto da “lin-
guagem do desenvolvimento”, conforme expressão cunhada no período,
segundo a observação da historiadora Vania Maria Losada Moreira (apud
Ferreira e Delgado, 2003: 159). A industrialização está na pauta de urgên-
cia, no pacote de reestruturação econômico-administrativa do Plano de
Metas de Kubitschek. Mobilizando não apenas os setores da construção
civil, como também indústrias de base e de bens duráveis, o presidente
contava com os políticos de seu partido PSD e do aliado PTB na aprova-
ção da realização das obras. A aliança entre PSD e PTB é classificada pela
socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides como o “ponto ótimo”
da política naquela situação (1976: 59).
No filme, fica evidente a relação entre os partidos aliados e a identi-
ficação de algumas ideias de JK com as de Getúlio Vargas, pois ambos
defendiam a bandeira do desenvolvimentismo. Alguns trechos mostram
retratos e imagens em movimento dos encontros entre ambos, conversan-
do muito próximos e sorrindo. O carisma de Juscelino Kubitschek con-
quistou a aprovação de Vargas, unindo PSD e PTB no combate à oposição
da UDN de Carlos Lacerda, Brigadeiro Eduardo Gomes e Juarez Távora,
ex-líder tenentista e concorrente de JK. O plano-sequência em que Vargas
visita uma plataforma de extração de petróleo, da recém-fundada Petro-
brás, sinaliza as ações preparatórias do novo parque produtivo para a fase
da indústria automobilística, nos anos 1950. A sequência do ato de inau-
guração dessa empresa estatal de exploração petrolífera abre com Vargas
chegando, em pé e acenando aos presentes de dentro do automóvel em
movimento. Em seguida, vêm o plano geral dos trabalhadores e outros
planos do estadista tocando o líquido preto, na pose para a posteridade.
O ato solene do aperto de mão entre Vargas e um presente, ambos com
as mãos besuntadas de petróleo, simboliza o pacto do governo brasileiro

68
com o desenvolvimento industrial.
O caráter combativo de Juscelino Kubitschek aparece em outro ponto
do filme, na celeuma com o presidente Café Filho. As imagens de Café
Filho com os “militares anti-getulistas” Eduardo Gomes e Juarez Távora
surgem numa recepção no salão de cerimônias do palácio presidencial.
Em seguida, vê-se o plano conjunto do pronunciamento de Café Filho,
sentado à mesa de seu gabinete, cercado de políticos, jornalistas e alguns
partícipes. As imagens do pronunciamento estão sincronizadas com uma
declaração voice over de JK sobre a tentativa de Café Filho de desestabilizar
sua campanha presidencial. A resposta de Kubitschek refuta as acusações
do presidente.
Depois dos resultados das eleições, JK sofreu uma intentona contra a
sua posse legítima. Resolvida a situação, ele assume a presidência da Repú-
blica em 1956, tendo como vice o membro do PTB João Goulart. Já como
chefe de Estado, passa a visitar os Estados Unidos da América e a Ale-
manha Ocidental. Os motivos das viagens a esses países, segundo Paulo
Fagundes Vizentini, residem no interesse de JK pela tecnologia alemã, e na
manutenção de boas relações com o governo estadunidense, para atrair o
investimento estrangeiro (Vizentini, 2008: 20). No filme, podemos identi-
ficar planos que mostram a chegada de JK aos Estados Unidos, ao lado de
Richard Nixon, do presidente da época, Eisenhower, e de Foster Dulles.
Conforme a explicação do narrador, o presidente era uma personalidade
encantadora e com poder de persuasão eficaz. Ele consegue simpatia até
mesmo das personalidades mais influentes da política internacional. Os
comentários do narrador sobre o seu modo elegante e agradável com as
autoridades nacionais e internacionais mostram a habilidade do presidente
de tornar prazeroso o momento de negócios. Nos planos em que visita
as instalações de uma fábrica alemã, conferindo as maquetes de navios
e testando um jipe numa pista com o trajeto irregular, o presidente está
à vontade, sorridente e esportivo. Em uma curta sequência, JK também
é mostrado como um bom cristão ao visitar e ser abençoado pelo Papa
Pio XII. Um estadista para ganhar a credibilidade e evitar ser chamado de

69
comunista, no período da Guerra Fria, precisa demonstrar sua fé católica.
Filme-túmulo
Sobre as imagens do sepultamento de JK, morto num acidente na Via
Dutra em 1976, o narrador reforça seus princípios de “respeito, liberdade
e anistia”: cumprir a Constituição, dar liberdade de manifestação e expres-
são e anistiar os revoltosos. O filme de Silvio Tendler faz, assim, prova de
coragem e fineza de diagnóstico: reconstitui o momento do golpe de 1964,
opõe o jogo democrático dos anos JK à ditadura que sobreveio, reproduz
trechos de discursos de Che Guevara e aborda o assassinato do estudante
Edson Luiz. O fim do governo JK é considerado, pelo filme, como o fim da
cordialidade na condução da política brasileira. Como diz a voz do narrador,
sua morte, “num momento feito de mesquinharias e ressentimento”, serviu
para atualizar uma série de temas que permaneciam fundamentais na política
brasileira, dentre eles o da anistia, debatido até hoje.
O filme de Tendler teve um grande sucesso de bilheteria, estimado em
cerca de 800 mil espectadores. Em 1981, o cineasta chega a uma plateia
ainda maior (estimada em 1,8 milhão de espectadores) com O mundo mágico
dos Trapalhões, documentário sobre o quarteto de humoristas, produzido
por Renato Aragão e com narração de Chico Anysio (Mengardo, 2011:
14). O terceiro título lançado por ele no início da década de 1980 é Jango
(1984), dedicado à figura do presidente João Goulart, deposto em 1964,
no golpe que marca o início da ditadura. Agora sim, o regime militar estava
em seus estertores e era possível abordar frontalmente as estruturas que o
haviam estabelecido, vinte anos antes. O filme foi visto por cerca de 500
mil espectadores.
Com Os anos JK, Silvio Tendler cumpre papel crítico como realizador
ao concentrar nessa narrativa fílmica muito mais do que imagens e vozes
gravadas de uma experiência – ou de uma trajetória política. Em seu texto,
Bernardet faz uma ressalva importante: o filme de Tendler baseia-se qua-
se exclusivamente no uso de materiais oriundos de cinejornais. Segundo
Bernardet (2003: 250-251), apesar do tom crítico da locução instaurada

70
pelo cineasta, as imagens são oficiais e traduziriam somente o ponto de
vista das elites. Sua crítica atinge de maneira ampla os filmes de montagem
históricos, “filmes-túmulos”, como diria Chris Marker, cujos autores tra-
balham necessariamente com um material fílmico limitado.

A recuperação, revalorização, ressignificação das imagens


cinematográficas ligadas à história do Brasil acabam operan-
do predominantemente, se não totalmente, no âmbito do
poder. Quando se louva tão insistentemente tal recuperação
das imagens históricas brasileiras, o que de fato se elogia é a
recuperação das imagens do poder, mesmo se tratadas com
ironia (Bernardet, 2003: 251).

Embora a crítica de Bernardet seja válida e pertinente, é inegável que


montagens como a de Silvio Tendler demonstram uma crença tremenda
no “poder das imagens” (Marin, 1993), poder que escapa às intenções de
seu autor e no qual se apoiam filmes de montagem posteriores, como os
de Harun Farocki (En sursis, 2007) e Rithy Panh (La France est notre patrie,
2014), baseados exclusivamente em imagens rodadas por “carrascos”, se-
jam eles os agentes de campos de concentração e extermínio nazistas ou
representantes dos colonizadores. Ao se apoiar nas imagens “oficiais” dos
“anos JK”, Silvio Tendler observa-as com afinco, como se elas pudessem
revelar algo além de suas camadas mais superficiais; como se pudessem
mostrar também contradições, fraquezas, conflitos que estariam escon-
didos em camadas mais profundas da imagem. O olhar do cineasta, em
um tempo posterior, seria capaz de revelar e traduzir, por meio de seu
comentário irônico.
De todo modo, o longa de Silvio Tendler traz, por um lado, uma impor-
tante contribuição para o debate sobre a representação histórica da figura
de Juscelino Kubitschek. Por outro lado, ao apresentar para o espectador
rupturas e continuidades existentes entre o período em que JK governou e
o ano de sua morte, já no pós-1964, o filme de Tendler revela relações de
força entre os interesses dos grupos hegemônicos de nossa sociedade que

71
permaneciam extremamente atuais quando do lançamento do filme. Tais
embates, não seria demais dizer, continuam vivos no Brasil do século XXI.

Referências bibliográficas:

BERNARDET, Jean-Claude. Os anos JK: como fala a história? São Paulo: Companhia das Letras,
2003. Publicado anteriormente na revista Novos Estudos, Cebrap, 1981.

BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e


estabilidade política (1956-1961). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves e FERREIRA, Jorge (orgs). O Brasil republicano. O tempo
da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

ELIAS, Rodrigo. “Se o Jango não tivesse sido deposto, o Brasil não estaria, hoje, nas condições em
que está” in Revista de História da Biblioteca Nacional, no 57. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional, junho/2010. Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/silvio-tendler. Acesso em 03 de abril de 2015.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

MARIN, Louis. Des pouvoirs de l’image. Paris: Éditions du Seuil, 1993.

LUEDEMANN, Cecília; MENGARDO, Bárbara; NAGOYA, Otávio; PRADO, Débora; RODRIGUES,


Lúcia; SOUZA, Hamilton Octávio de e TAVARES, Lúcia. “Entrevista Silvio Tendler. O cinema
brasileiro não tem espaço de exibição” in Caros amigos, no 168. São Paulo: Casa Amarela, mar-
ço/2011. Disponível em:
http://issuu.com/carosamigos/docs/168/12. Acesso em 03 de abril de 2015.

MORETTIN, Eduardo. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013.

“O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro” in CAPELATO, Maria Helena Rolim;
MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos e SALIBA, Elias Thomé (orgs). História e cinema. São
Paulo: Alameda, 2007.

SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

SORLIN, Pierre. “Clio à l’écran, ou l’historien dans le noir” in Revue d’Histoire Moderne et Con-
temporaine, t. XXI, avril-juin 1974.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula. São Paulo: Perseu
Abramo, 2008.

72
Notas:

3. Sobre o papel de Marc Ferro nas relações entre História e cinema, ver também Pascal Dupuy,
“Histoire et cinéma” in L’homme et la société, nº 142, 2001/4, e Michel Marie, “Texte et contexte
historique en analyse de films” in CinémAction, n° 65, 1992: “Cinéma et Histoire, autour de Marc
Ferro”.

4. República do Galeão é como ficou conhecido o Inquérito Policial e Militar (IPM), sob os
auspícios da Aeronáutica, instalado na Base Aérea do Galeão, em agosto de 1954, para investi-
gar o Atentado da Tonelero, que vitimou o major Rubens Vaz. O episódio levou ao suicídio de
Getúlio Vargas.

73
IX. (Re)encenações do exílio
Tangos, o exílio de Gardel
(Tangos, el exilio de Gardel, Fernando
Solanas, Argentina/França, 1985)

Lívia Fusco

A Paris da década de 1970 é o cenário de Tangos, o exílio de Gardel, longa


do diretor argentino Fernando Solanas. A história trata da experiência de
um grupo de exilados argentinos na capital francesa, tentando sobreviver
e realizar uma peça teatral – que leva o mesmo título do filme – sobre a
ditadura argentina. A ligação entre teatro e cinema vai além da encenação
da narrativa, já que o longa, dividido em atos, lembra a estrutura de uma
peça teatral.
A costura realizada entre o teatro e o cinema, utilizando Paris como
pano de fundo, é feita por Solanas pelo tango. A música liga o filme a um
período determinado e a um gênero cinematográfico que esteve muito em
voga na Argentina. De 1931 a 1943, produziu-se um número significati-
vo de filmes que tinham o tango como elemento central ou que exibiam

74
alguns números de dança e música do gênero. Esses trabalhos ficaram
conhecidos desde o começo do cinema sonoro na América Latina como
“filmes de tango”.
Participavam dessa produção grandes cantores populares. O ícone mun-
dial do tango, Carlos Gardel, foi o protagonista de uma série de filmes ro-
dados fora da Argentina, como foi o caso de El tango en la Broadway (1934) e
Melodía de arrabal (1933), dirigidos pelo francês Louis Gasnier. Alguns desses
filmes foram rodados nos Estados Unidos e na França. O próprio Gasnier
filmou Melodía de arrabal reconstituindo cenários argentinos.
A ligação entre Solanas e esses musicais é evidente. Embora Tangos,
o exílio de Gardel tenha sido rodado em Paris, as paisagens da cidade não
são cenários recriados servindo de ambientação ao drama, como é o caso
dos “filmes de tango”. Ao contrário, há uma comunicação intensa entre
a cidade e o tango. No diálogo construído entre a Cidade Luz e o tango,
transparece a escolha de Solanas em trabalhar com esses dois elementos:
Paris simboliza o exílio e o tango é o responsável por conectar as perso-
nagens exiladas e o grande público aos costumes de seu país de origem, a
Argentina.
No início de cada ato, um grupo de jovens dança e canta diretamente
para a câmera. A canção fala das dificuldades no exílio e do sonho de
viver em um país onde todos tenham voz. A repetição faz desse número
uma espécie de “moldura”, que enquadra todos os acontecimentos narra-
dos, como se fosse um manifesto, no qual se reafirma a esperança de um
destino melhor para aqueles que foram obrigados a abandonar seu país.
Ela é também uma homenagem a Paris – que acolheu tantos refugiados
políticos.
As belas locações escolhidas lembram as paisagens parisienses tantas
vezes retratadas por musicais notáveis, como Sinfonia de Paris, realizado
por Vincent Minelli em 1951, por exemplo. Por outro lado, a música, o
ritmo, os passos da dança e a temática política fazem desse preâmbulo algo
próximo a Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg), dirigido por

75
Jacques Demy em 1964.
Como se trata de um número musical curto, pode ser visto como um
“prelúdio” da tanguedia, drama musical que os personagens do filme al-
mejam montar. Porém, como o prólogo alude ao musical cinematográfico,
o tango não é a única referência e não pode ser considerado apenas uma
introdução à história do exílio narrada por meio da música e da dança.
Como se verá mais adiante, trata-se mais de uma relação contrapontística
em que duas vozes melódicas se sobrepõem, trazendo consequências na
própria interpretação da relação entre musical e exílio.
A escolha de Solanas pelo domínio da ficção para contar sua história
pontua uma nova fase de sua carreira. La hora de los hornos: notas y testimonios
sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación (1968), considerado seu fil-
me documentário manifesto, dirigia-se a um espectador militante. O filme
tornou-se lendário também pelas diversas exibições clandestinas, numa
época terrível da ditadura. Já em Tangos, a didática militante desaparece e
se busca atingir um público maior. É um trabalho mais reflexivo, ligado
às questões que unem o cinema a problemas políticos de natureza diversa
que os de outrora.
Se em La hora de los hornos Solanas tenta impulsionar uma tomada de
consciência política e ideológica por meio de estímulos intelectuais, em
Tangos, o exílio de Gardel a narrativa e a mise en scène, repletas de metáforas e
alegorias, visam mobilizar o imaginário coletivo tanto do cinéfilo como do
espectador argentino comum. Em paralelo com o desenrolar da história
das personagens, surgem três figuras míticas argentinas: Carlos Gardel,
Enrique Santos Discépolo e San Martín. Eles aparecem quando as perso-
nagens estão atravessando alguma situação limite e, sempre envoltos em
uma atmosfera de mistério, trazem mensagens de esperança.
O ato “A volta ao mundo” é um bom exemplo de como essas figuras
fazem o contraponto com as dificuldades que os protagonistas estão atra-
vessando: Juan Dois e Mariana tentam desesperadamente se comunicar
com Juan Um, que está na Argentina. Discépolo aparece para consolá-los

76
e lhes explicar que Juan Um não revela o final da obra pois tem medo da
repressão da ditadura. A eles se junta, em seguida, Gardel e alguns músi-
cos, transformando o diálogo em um número musical. A canção Anclao en
Paris serve de fundo para a dança entre Mariana e Juan numa rua parisiense
enevoada. A névoa branca da cena nos remete à descrição de um sonho,
o que pode ser lido como uma metáfora de esperança e de que tudo será
resolvido, ao mesmo tempo em que é um comentário irônico da situação
do casal.
Outra característica importante de Tangos, o exílio de Gardel é a mescla
de distintos gêneros. Os mais evidentes são o melodramático e o musical,
que permeiam toda a narrativa. O musical, apoiado no tango, como já
comentado anteriormente, apresenta-se como pano de fundo para o gêne-
ro melodramático impresso nas histórias individuais de cada membro do
grupo de exilados; histórias estas repletas de sofrimentos que comovem
o espectador.
O film-fresco é outro gênero encontrado no longa. Segundo Pablo
Piedras, em seu artigo sobre o diretor: “O modelo de film-fresco remete à
possibilidade de construir um grande relato sobre a pátria no qual se privi-
legiam símbolos, metáforas e alegorias que excedem o âmbito da história
individual de uma série de personagens para construir um discurso totali-
zante sobre a Nação” (2011: 656. Tradução nossa).
É possível aproximar a arquitetura do grande relato sobre a pátria com
o ideal do próprio San Martín de formar uma grande nação latino-ameri-
cana que pudesse fazer frente à dominação estrangeira. San Martín, além
de ser considerado o Libertador, tem um papel fundamental na constru-
ção da identidade nacional argentina. O militar e jornalista Bartolomé Mi-
tre, através da famosa biografia que escreveu sobre San Martín, enfatiza
ainda mais a imagem de herói do Libertador.
Partindo do testemunho do exílio, no primeiro ato, a jovem María, que
também faz parte do grupo de jovens dançarinos do “prólogo”, narra em
off sua história e a de um grupo de artistas exilados no subúrbio de Paris

77
durante os anos 1970 e 1980. Desse modo, ela, além de narradora, é tam-
bém personagem da trama. O primeiro ato se divide em três subtítulos:
“Miséria em Paris”, “Tanguedia de Ángel” e “A poética de Juan Um”.
Nesse primeiro ato, a miséria é revelada através das dificuldades das
personagens em conseguir um emprego e nos subempregos que são obri-
gados a aceitar. Um exemplo disso é a sequência na qual dois membros do
grupo vestem uma fantasia de cachorro com uma placa da cadeia de lojas
C&A e saem divulgando a marca por centros comerciais. A ironia nesta
vida de cachorro literal é acrescida pelo fato de que um dos exilados, o
único uruguaio da trupe, aquele que faz chamadas internacionais sem usar
moedas, é apelidado de Miséria5. A “Tanguedia de Ángel” e “A poética de
Juan Um” estão ligados à concepção desordenada da tanguedia El exilio de
Gardel, que passa a ser um dos fios condutores do filme. A tanguedia mescla
música, tragédia e comédia, apropria-se da popularidade e do caráter nos-
tálgico do tango, bem como da familiaridade que o espectador tem com
os gêneros da tragédia e da comédia. De outro lado, criar a tanguedia seria
recontar a história do exílio como resistência. Além disso, ela é vista pelos
personagens como um credo estético: uma poética do risco, segundo Juan
Um, o autor ausente da peça. Sem sequência preestabelecida, o diretor que
tentar montá-la deve inventar ou encontrar uma lógica para ela. A anar-
quia da proposta tem como um dos objetivos diluir as fronteiras entre os
gêneros e celebrar a incompletude da arte, no seu esforço de se aproximar
da vida. O filme cria uma dialética entre aspectos familiares ou facilmente
identificáveis com a desordem da proposta estética.
El exilio de Gardel busca a amplitude do exílio de quem vai e de quem
fica, usando como ponto de apoio o fluxo entre a ditadura militar pela
qual a Argentina passa e Paris, a “capital de todos os exílios”. O grupo
de exilados tem como objetivo concluir esse projeto. Mas essa não é uma
tarefa fácil. Logo no início, o primeiro diretor da tanguedia, Ángel, se recusa
a continuar na peça. Para seguir com o projeto adiante, Juan Dois convida
um francês, Pierre, para dirigi-la.
Na sequência seguinte, Juan Dois convida Pierre para seu apartamento,

78
meticulosamente decorado com personagens míticos do coletivo argenti-
no. Nessa atmosfera, entre diversos papéis desorganizados contendo parte
da obra, ele apresenta para o francês o berço da tanguedia, tendo ela a ideia
da descontinuidade, repleta de variações, organizada de forma orgânica,
imperfeita e sem fim.
O segundo ato tem como introdução a música cantada sobre as cartas
do exílio pelo mesmo grupo de jovens, seguida do subtítulo “Cartas do
exílio”, que revela o quão importante é para as personagens receber notí-
cias de sua pátria. Para ajudá-los a “dialogar” com seu país de origem e a
viverem melhor no exílio, surge uma comissão de solidariedade, composta
por franceses e exilados, em que se discutem desde questões filosóficas até
práticas como, por exemplo, a organização das viagens de parentes. O sub-
título que segue é “Um em Paris” e revela o processo criativo da tanguedia
sempre em mutação, usando como pano de fundo diversos momentos da
encenação que sugerem ao imaginário coletivo uma espécie de “manifesto
político” de forma poética livre e intuitiva.
O grande clímax do filme acontece em “Eram dois exílios”, em que o
conceito anárquico da criação livre da tanguedia passa a afetar o grupo dire-
tamente, já que sem encontrarem um “final” para a obra não será possível
colocá-la em cartaz. Sem a realização da tanguedia de forma convencional
– como produto final para uma plateia –, o processo de criação no qual
ela foi gerada ficaria desvalidado e se perderiam os benefícios econômicos
que a peça em cartaz traria para o grupo de exilados.
Esse embate entre concreto e irreal pode ser lido como uma metáfora
do rompimento da geração dos anos 1960 com certa ideologia socialis-
ta. Além de lutar por uma sociedade sem diferenças entre classes sociais,
essa ideologia tinha um caráter anticapitalista e antiamericano. Ela havia
se espalhado rapidamente entre os países latino-americanos e resultado
no Nuevo Cine Latino Americano (NCL). Foi através desse movimento
que, pela primeira vez, a produção cinematográfica latino-americana se
reuniu formalmente, tendo como principais características a proposta de
conscientização política, o tom de denúncia, o uso de circuitos alternativos

79
de difusão e a organização das ideias expressas em forma de manifestos e
de publicações nas décadas de 1960 e 1970. Solanas, junto ao Grupo Cine
Liberación, atuou diretamente no NCL.
“Ausências” marca o terceiro ato. Nele, Gerardo leva María e sua mãe
Mariana para conhecer a casa, nos arredores de Paris, onde viveu San Mar-
tín durante seus 25 anos de exílio. Isso significa que as experiências dos
desterrados já são parte da História, correndo o risco de se transformar
num fato quase esquecido, a exemplo dos exílios de San Martín e do pró-
prio Gardel.
Dessa forma, Solanas, por meio de Gerardo, evoca figuras importantes
do coletivo argentino, aproximando mais uma vez o grupo de exilados do
heroísmo desses personagens já históricos, provavelmente instigando uma
espécie de resistência dentro do grupo de exilados e no próprio espectador.
Em “Milonga louca” e “A volta do Mudo”, a procura pelo final da tan-
guedia é acentuada pelo trecho já comentado em que Juan Dois e Mariana
buscam desesperadamente entrar em contato com Juan Um e se encon-
tram com Discépolo e Gardel.
O quarto ato começa com uma passeata feita pelas ruas de Paris, na
qual os exilados reclamam por seus parentes desaparecidos, seguido pelo
subtítulo “Lolo”. Ali, Juan Dois volta para Argentina, sinalizando um
novo momento. Veem-se trechos da encenação da tanguedia sob a dire-
ção do francês Pierre. Em sua concepção destacaram-se fotos em preto
e branco de enfrentamentos e de lugares da memória. Na trilha sonora,
ouve-se a música Solo. Essa equação de tango e imagem tem a função,
nesse momento, de legitimar e fazer o espectador refletir sobre o passado
e o presente da Argentina.
“Volver” traduz o que deveria ser o título desse último ato: Gerardo doente
recebendo a visita de San Martín e Carlos Gardel, que dizem que já é hora de
ele voltar. A questão que paira é como ficará a Argentina após a ditadura? Ao
apropriar-se dessas duas figuras míticas do inconsciente popular argentino,
Solanas evoca muito mais do que uma nova gramática estética para seu filme

80
e a vontade do próprio povo argentino de pertencer a seu país, mesmo a
quilômetros de distância. Ele está referenciando o próprio cinema argentino
do exílio6, do qual Solanas não foi parte, praticado por realizadores exilados
como forma de se fazerem presentes na lida política, mesmo estando geogra-
ficamente em outro lugar e muitas vezes de forma clandestina.
María, que fala diretamente para a câmera, como se convidasse o es-
pectador a participar da história com ela, toma assim a posição de inter-
locutora privilegiada do público – mesmo que nem todas as histórias ou
imagens possam ser consideradas como fazendo parte de seu relato. Ela
narra a sequência final, em que relembra com nostalgia as tentativas de
ligar para Buenos Aires da cabine telefônica da estação, o desfecho de cada
um dos personagens e seu impasse entre França e Argentina. Devemos,
então, questionar: quem é ela? Filha de desaparecido, ela viu os esbirros
da ditadura levar o pai e acompanhou, ainda criança, a mãe no seu exílio.
Como ela cresce e se torna adulta fora da Argentina, não vive o exílio
como saudade insuportável, pois é capaz de criar laços com o país que a
acolheu e que os exilados mais velhos não conseguem estabelecer.
A peça El exilio de Gardel funciona como um espelho do próprio filme.
A narração da jovem María imprime o gênero narrativo épico ao contar a
história do povo argentino transformando o grupo de exilados em heróis
da resistência, além de projetar a própria interioridade dos personagens e,
porque não, do próprio Solanas em personagens heroicos do folclore ar-
gentino como San Martín, Carlos Gardel e Discépolo. A tanguedia também
se coloca como credo estético de regras. Dessa forma, Solanas consegue
diluir as fronteiras entre esses gêneros narrativos.
Solanas busca fazer de Tangos, o exílio de Gardel não apenas uma homena-
gem aos filhos do exílio, mas o retrato de uma época. Revela a problemática,
pouco discutida, dessa geração nascida entre ditaduras, que não se sente
pertencente ao local onde nasceu e nem àquele em que vive. A constru-
ção dessa nova identidade carrega com ela a esperança e o futuro do país.

81
Referências bibliográficas:

CAMPO, Javier. “Argentina es afuera. El cine argentino del exilio (1976-1983)” in LUSNICH, Ana
Laura e PIEDRAS, Pablo (eds). Una historia del cine político y social en Argentina: formas, estilos y
registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2011.

PIEDRAS, Pablo. “Fernando Solanas: esplendor y decadencia de un sueño político” in LUSNICH,


Ana Laura e PIEDRAS, Pablo (eds). Una historia del cine político y social en Argentina: formas,
estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2011.  

Notas:

5. O primeiro subtítulo do primeiro ato faz um trocadilho com o apelido desse personagem.

6. “El cine argentino del exilio (1976-1983) representó una realidad política sin que sus realiza-
dores estuviesen presentes en el teatro de las operaciones, el lugar de los hechos” (Campo, 2011:
225).

82
X. A transgressão no filme A história
quas verdadeira de Pepita, a Pistoleira
A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira
(La historia casi verdadera de Pepita la pistolera,
Beatriz Flores Silva, Uruguai, 1993)

Dirceu Antonio Scali Junior

“Os artistas são a antena da raça”, diz-nos Ezra Pound (1934-2006),


expressão citada e posta em evidência trinta anos depois por McLuhan
(1964). Essa frase possibilita-nos olhar o fazer artístico não apenas como
um ato de inspiração, mas também como uma confluência de alguns fato-
res que em suas conexões permitiriam a concepção da obra de arte, não
necessariamente engajada, mas simbolizante de determinadas conforma-
ções econômicas, políticas e socioculturais da época na qual (con)vive.
Ser a antena diz respeito ao captar, por intermédio de uma dada intui-
ção e também de uma espécie de consciência que dialogam de forma dia-
lética e possibilitam um acesso do artista ao que é fundante quanto ao en-
torno, quer dizer, ele capta as superfícies e as estruturas que as sustentam.

83
Estar em determinado local e num determinado tempo conferiria, as-
sim, uma espécie de pertencimento e, ao mesmo tempo, a possibilidade de
leitura das contingências advindas desses lugar e tempo, porém apenas o
pertencimento talvez não desse as condições suficientes para a captura dos
internos à realidade para a qual nos apontam obras de arte dignas dessa
nomenclatura.
Essas condições suficientes talvez pudessem ser-nos dadas por algo
como uma determinada originalidade e espontaneidade nesse estar, de tal
maneira que se possibilite uma expressividade e originalidade do próprio
ser. Falamos até aqui de dois termos da frase de Pound, a antena e a raça
(raça no sentido do aqui-agora de uma convivência espaço-temporal). Fa-
lemos agora do terceiro termo, o artista.
O artista seria, em nossa equação, aquele que possibilita uma possível
interpretação da raça para ela mesma num certo tempo e também para
outros tempos. É aquele que, ao pertencer, transcende, podendo captar
o sutil das conexões dos fios do real, mas só pode ser denominado como
tal se realiza a obra. Então, é aquele que transforma a técnica – que é algo
específico e de certa maneira datado – em artifícios.
Artifícios esses que poderíamos pensar como as técnicas do fazer, con-
cebidas historicamente, manejadas pela subjetividade do artista na criação de
algo original e expressivo que seria a obra. Nesse sentido, o artista só pode ser
a “antena da raça” porque em si mesmo, e porque é pertencente a ela, capta
tanto o que está à vista (de todos) quanto o que se oculta no íntimo do real.
A diretora Beatriz Flores Silva nos mostra que nos internos da realidade
daquele Uruguai do período em que se passa a trama do filme A história
quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira (entre fevereiro e junho de 1988) nem
tudo eram rosas. Como os artistas de Pound, Flores capta o momento e o
transforma em arte; arte essa que é original na medida em que reconstrói
as maneiras do narrar, e o olhar tem de ser desviado, realizando um volteio
para tanger a interpretação de uma realidade nela mesma.
A realidade interpretada nela mesma, como própria e diferente ao mes-

84
mo tempo, é possibilitada pela transgressão estabelecida pela personagem
Susana, uma mulher de trinta e poucos anos, mãe de uma garotinha de
sete anos, que está em dificuldades financeiras e inserida em um mundo
preponderantemente masculino, por vezes machista, que não “cumpre sua
função” de sustentação. Para sobreviver, vê-se transformada em Pepita, a
Pistoleira, apropriando-se, assim, de tudo o que lhe fora negado.
A transgressão de Susana se dá não pela agressividade – pois a protago-
nista realiza seus assaltos com a tranquilidade de quem realiza um trabalho
formal, bate o cartão de ponto e, ao final do expediente, recebe o mereci-
do pagamento pelo trabalho realizado –, mas por ela colocar em evidência
a ineficiência das instituições sociais em cumprir suas funções, sejam elas
suprir as necessidades essenciais do cidadão, no caso das instituições go-
vernamentais, ou transmitir informações relevantes e averiguadas, no caso
dos veículos de comunicação. Essa atitude da personagem ganha mais re-
levância quando pensamos em um Uruguai que acabara de sair de uma
ditadura (que vigorou entre 1973 e 1985) e passava por mudanças políticas
fundamentais.
A história da protagonista pode dividir o filme em dois momentos. No
primeiro, vemos Susana às voltas com suas dificuldades financeiras, a de-
ambular pelas ruas, com a filha a tiracolo, tentando vender quinquilharias
e vivendo em um local inóspito. Trata-se de cenas típicas de uma histó-
ria melodramática. O segundo momento começa no instante em que lhe
ocorre a ideia de cometer os assaltos, ao olhar para a casa de empréstimos.
Nessas imagens, significativamente, há um cartaz com os dizeres “a vivir
dignamente”.
Há algo de pueril, naïf, no comportamento de Pepita quando utiliza o
dinheiro dos assaltos nos passeios e diversões. De modo que se pode jul-
gar que ela passa a viver de uma forma que seria “digna” do ponto de vista
da ideologia de determinada classe social. Entretanto, viver dignamente
pode também significar, nesse momento, ainda que por um ato radical,
deixar o papel de vítima para tomar em suas próprias mãos as rédeas de
seu destino, que vai se confirmar na decisão de facilitar sua captura para

85
inocentar outra mulher, mãe de duas meninas, injustamente culpada por
seus crimes.
No filme, as diversas instituições são simbolizadas por elementos do
mundo masculino, como policiais, jornalistas, entre outros. Nesse sentido,
ela se coloca no lugar do outro, em uma posição de poder numa sociedade
em que seu papel estaria mais associado ao da vítima (daí a transgressão),
mas ao mesmo tempo evidencia a busca de seu próprio lugar.
O mundo dos homens é retratado em tons brancos, pretos ou em cores
esmaecidas, refletindo a inexpressividade dos poucos personagens mas-
culinos que transitam pelo filme; e quando não medíocres, são caricatos
– como o gordo chefe de polícia, por exemplo. Em certos momentos, a
polícia torna-se objeto de cenas cômicas, como em uma das cenas em que
dois policiais pedem documentos para uma senhora cega, explicitando,
na verdade, a “cegueira” dos mesmos oficiais que, segundos atrás, haviam
permitido que Susana lhes escapasse, deixando-se enganar por suas des-
culpas inverossímeis (quando pedem seus documentos, ela diz que perdeu
tudo e que estava indo ao banco para comunicar o extravio do talão de
cheques). Com efeito, para ser apanhada, foi necessário que Susana faci-
litasse ao máximo e é impossível conter o riso na cena em que ela espera
a polícia jogando tarô e olhando de quando em quando para a rua, a fim
de ver se os policiais já haviam chegado. Tudo se passa como se ela jogasse
paciência com seu próprio destino.
Essas anedotas permitem ao filme se colocar em rota de colisão com o
mito que a mídia tenta criar de Pepita. A visão da personagem perigosa é
ridicularizada o tempo todo. Quando é presa, o objeto que pode incrimi-
ná-la, que o policial retira dos pacotes que a personagem carregava, é um
brinquedo de criança. A própria “pistola” é o cabo do guarda-chuva da
filha. Mesmo os assaltos parecem brincadeiras de menina fazendo arte...
O que está por trás da “cegueira da polícia” é a ideia de que a visão dos
homens está permeada pelo preconceito e por estereótipos. Pepita só po-
deria ser alguém perigoso e agressivo. Por isso, a princípio, não acreditam

86
que ela seja uma mulher “comum” e buscam a pistoleira entre os travestis
e outros suspeitos. Quando prendem a mulher errada, ela é considerada
suspeita não apenas porque é erroneamente identificada como Pepita, mas
também porque tem como marido um chino (homem moreno dotado de
traços indígenas). Pepita, para ser levada a sério por suas vítimas, afirmava
que um chino cruel era seu comparsa e que estava observando o assalto
para interferir caso ela necessitasse. Susana apelava para o preconceito,
bastante difundido, de que os malfeitores de traços indígenas são particu-
larmente cruéis. É bem conhecida a inversão dos fatos históricos, em que
a vítima é apresentada como o algoz. Aliás, o western nos habituou a ver, no
índio, um bandido cruel. O próprio fato de a polícia deixar Susana escapar
várias vezes deve-se a ela ser uma jovem loira, de olhos verdes e, portanto,
acima de qualquer suspeita.
É digno de nota o fato de as vítimas de Pepita serem sempre mulheres.
Isso faz com que as cenas dos assaltos e mesmo as da prisão sejam de uma
leveza e cumplicidade em que o lado humano se sobressai, haja vista o fato
de a assaltante ser reconhecida por seu sorriso e não por uma aparência,
digamos, de agressividade ou violência. Os momentos lúdicos acabam por
dar uma leveza às situações tensas, como os assaltos. Em determinada
cena, Susana e a filha brincam de gangsters, enquanto se ouve ao fundo o
som de um noticiário comentando os assaltos de Pepita, a Pistoleira.
O que move o mundo das mulheres são as histórias melodramáticas
que Susana vê na televisão ou aquelas que conta para suas vítimas sobre
o que a levou para o mundo do crime. As cores fortes marcam o exagero
sentimental que parece unir as personagens femininas. O encontro entre
Susana e suas vítimas, quando de sua prisão, provoca certa comoção. As
mulheres perguntam por sua filha e chegam a desejar-lhe boa sorte.
Dessa maneira, a transgressão aparente (de ordem jurídica) oculta uma
mais profunda que é a emancipação da própria mulher uruguaia, que nos
é evidenciada pela cumplicidade das mulheres que trabalham nas institui-
ções, que são vítimas dos roubos de Pepita; cumplicidade essa no sentido
do compartilhar de uma mesma situação socioeconômica como se todas

87
se espelhassem na personagem que simbolizaria o desejo de participar e de
ter os direitos que lhes foram propostos como conquistas políticas, porém
em vez de supridos, foram suprimidos.
Pepita, por meio de suas narrativas sedutoras, acaba por colocar em
evidência a necessidade de as mulheres, para se emanciparem, estabele-
cerem suas próprias narrativas, evitando assim a assunção das narrativas
oficiais que colocavam a mulher em situação de subserviência ou menos
valia.
A própria pistola, símbolo fálico, é tomada como arma e, na narrativa, ne-
nhuma das vítimas realmente a viu. Esse recontar as histórias estabelece uma
narratividade do feminino ou uma apropriação da narrativa que daria à mulher
a possibilidade de se colocar como agente na sociedade que se instaura.
Beatriz Flores Silva, com seu filme, realiza o mesmo gesto transgressor
de Pepita com sua arma fictícia: em certa medida, a autora, artista poun-
diana, antenada com as vicissitudes das mulheres de seu entorno e além,
nos traz pelo seu narrar os desejos e conquistas daquelas mulheres.
Em La historia casi verdadera de Pepita la pistolera, o “quase” é uma
forma irônica de se referir à divisão do cinema em ficção e do-
cumentário. Beatriz Flores Silva sabe muito bem como a Histó-
ria (não precisa ser a oficial) sempre tratou as mulheres. O filme brin-
ca com as categorias documentário/ficção, propondo uma nova
maneira de se narrar histórias e uma estética distinta do que se fazia até
então. Tornou-se, por esse motivo, um novo marco no cinema uruguaio.

Referências bibliográficas:

POUND, Ezra. Abc da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.

88
XI. O espírito da contra-perspectiva
ou a razão do caminho inverso
Terra estrangeira (Walter Salles e
Daniela Thomas, Brasil/Portugal, 1995)

Sérgio César Júnior

Terra estrangeira é um filme brasileiro realizado no período do cinema


da Retomada, quando o Estado já não fomentava mais a arte do audiovi-
sual no país (Nagib, 2002: 21). A trama se passa no governo de Fernando
Collor de Mello (1990-1992), durante o processo de privatizações de em-
presas estatais, confisco da poupança e demissões nos setores privados
nacionais (Nagib, 2002: 196). Essa situação de instabilidade econômica
obrigou muitos brasileiros a migrarem para outros países, buscando novas
oportunidades de trabalho. Walter Salles e Daniela Thomas basearam o
argumento de Terra estrangeira nesse contexto. A obra trata da desvaloriza-
ção da cidadania brasileira, do intenso fluxo migratório e do destrato de
Portugal com os imigrantes de suas ex-colônias da América e da África
(Oricchio, 2003: 195).
Os recursos de imagem e som nos sugerem a sensação de estranheza,
89
contradição e ruptura. Nos planos iniciais a música de Zé Miguel Wis-
nik, executada no piano, tem o tom agudo e forte de um som trágico e
desumano – como um grito quase inaudível de alguém desesperado e em
apuros, sofrendo por estar num lugar hostil. Os planos em cor preta cha-
pada simulam páginas de passaporte carimbadas apresentando o elenco
artístico, numa ordem seguida conforme a aparição de seus personagens.
Em cada nome dos atores, ouve-se uma forte batida da pressão do ca-
rimbo, impressionando a página do passaporte. No último plano surge o
Selo da República Federativa do Brasil em cor cinza, recebendo o carimbo
do título da obra (Terra estrangeira). Ressalta-se aqui a ideia de que há um
destino desconhecido para o brasileiro. O título é uma crítica ao país que
não reconhece os seus conterrâneos nas políticas de governo e o coloca
na situação de desterro.
Os planos conjuntos que abrem a primeira cena focam os edifícios ao
redor do Elevado Costa e Silva, na cidade de São Paulo, mostrando apar-
tamentos com luzes internas apagadas; restando acesa apenas a do quarto
de Paco. O antigo prédio tem o aspecto de penitenciária, pois cada janela
lembra uma cela. As luzes apagadas simbolizam a atmosfera de apagão
econômico e existencial da era Collor. A socióloga Marina Soler Jorge
observa os sentimentos de solidão, angústia e desejo de ascensão social e
econômica, que provocam em Paco o estado de insônia (Jorge, 2009: 48).
Ele declama um trecho de Fausto (1808-1832), de Goethe (1749-1832),
preparando-se para o teste de ator, o qual ele acredita que vai mudar sua
vida. A leitura do Fausto já nos antecipa o fato de o personagem buscar
aquilo que está além do seu alcance, e que só poderá conseguir por meio
de pactos sinistros, com pessoas sem escrúpulos e em ambientes clandes-
tinos.
Na fachada lateral do edifício em frente ao Elevado Costa e Silva há
um outdoor com a propaganda de peças íntimas, uma masculina da marca
Mash e outra feminina da marca Hope. Os termos de origem inglesa enfa-
tizam o caráter de dominação estrangeira em nosso território. Por outro
lado, as semânticas das palavras dão um sentido importante para o con-

90
texto tratado no filme. A palavra Mash significa triturar, amassar até for-
mar um malte ou se tornar líquido. Hope é esperança. Num modo geral, o
anúncio publicitário contém os sinais de pessimismo da situação social do
país, pois indica que a esperança de alguém será esmagada por uma ordem
verticalizada.
Maria, mãe de Paco, sente dificuldade ao subir as escadas com as com-
pras, mas lhe sobra apenas esta opção, visto que o elevador está com defei-
to. Nessa cena, Paco ajuda a sua mãe a entrar com as sacolas e critica a falta
de sensibilidade do síndico em providenciar o reparo. Este comentário
serve como denúncia ao mau funcionamento dos aparelhos públicos no
país, pois, nesse caso, o síndico pode ser comparado a um mau adminis-
trador público.
Maria é a personagem que contém uma expressiva carga retórica na
relação entre o povo brasileiro e o governo Collor. Mãe do protagonista
(Paco), ela encarna o novo modelo brasileiro de chefe de família do final
do século XX: mulher, viúva e responsável pelo sustento e cuidados do lar
e dos filhos. Na meia-idade e de origem basca, Maria representa as muitas
europeias que chegaram ao Brasil nos primeiros quartéis do século XX,
junto ou não de suas famílias, refugiando-se das instabilidades econômicas
e dos conflitos bélicos na Europa, para tentarem viver dignamente num
lugar próspero e estável. Com filho jovem ainda para sustentar, ela simbo-
liza a mulher que enfrenta idoneamente as situações sem comprometer a
integridade do que restou do seu núcleo familiar.
Num plano médio, Maria está no sofá da sala vendo televisão. Em pri-
meiro plano, a imagem da ministra da economia Zélia Cardoso de Mello,
no televisor, anuncia a ação de confisco das contas poupança dos brasi-
leiros. A sequência é trágica, pois Maria imediatamente sofre um infarto.
Todo o esforço de reservar a quantia necessária para realizar o sonho de
visitar sua terra natal, San Sebastián, é frustrado pelo plano econômico
desastroso do governo recém-empossado. Maria personifica a República
Brasileira ao sofrer o golpe contra a estabilidade econômica.

91
A morte da mãe deixa Paco abalado psicologicamente, perdendo tanto
a perspectiva quanto sua integridade moral, e ele acaba desenvolvendo
seu lado mais sombrio e ambicioso. Ele passa a transitar em lugares onde
se relacionam tipos humanos de caráter precário, que tratam de negócios
escusos, objetivando apenas saciar seus interesses pessoais. Assim, Paco se
torna uma das vítimas dos projetos políticos e econômicos de Estado, que
não incluem soluções aos problemas crônicos sociais. A situação de crise
no Brasil propicia as brechas fiscais para que quadrilhas recrutem pessoas
como Paco, que nunca atuaram em comércios ilícitos. Desolado pela perda
materna e em dificuldades financeiras, Paco aceita contrabandear diaman-
tes para Portugal, com a intenção de, em seguida, conhecer San Sebastián,
a terra de sua mãe.
A fotografia em branco e preto faz referência ao noir; porém, Terra
estrangeira não cumpre à risca as regras do gênero – mesmo com cenas de
perseguição, violência, assassinato e tráfico de pedras preciosas, o espera-
do suspense não se concretiza. Desse modo, talvez possamos pensar que o
interesse pela estética do gênero se sobrepõe à sua influência na narrativa.
Tampouco é possível limitar essa obra a um único gênero, pois percebe-
mos que as influências são múltiplas. As referências abrangem desde obras
do expressionismo alemão e do cinema noir até chegar ao cinema brasilei-
ro dos anos 1930. Especificamente são citados o Fausto, de F. W. Murnau
(1926); Limite, de Mário Peixoto (1931); O falcão maltês (The maltese falcon),
de John Huston (1941); Aguirre, a cólera dos deuses (Aguirre, der zorn gottes), de
Werner Herzog (1988); e Paris, Texas, de Wim Wenders (1984).
Agravada no governo Collor, a situação de crise é uma consequên-
cia de governos anteriores. Em Terra estrangeira, as imagens de Lisboa e o
contrabando de diamantes não podem deixar de ser associadas às práti-
cas ocorridas desde o período da América portuguesa – entre os séculos
XVII-XVIII, em que os minérios preciosos eram transportados em san-
tinhos do pau oco. Numa associação entre os dois períodos históricos,
Walter Salles e Daniela Thomas ligam o processo crítico da imigração aos
grandes saques perpetrados pela Europa em suas colônias. Do mesmo

92
modo, as inúmeras imagens do Elevado Costa e Silva – uma ferida aberta
na capital paulista que leva o nome de um dos mais truculentos militares
brasileiros7 – relacionam a crise financeira às recentes ditaduras america-
nas do século XX, herdeiras do processo histórico de depauperamento
do continente. Como o sobrenome de Paco se pronuncia “Exaguirre”, o
filme propõe um jogo de linguagem a ser decifrado. O “ex” como prefixo
de Aguirre tanto pode desqualificar os novos viajantes quanto o próprio
personagem lendário, já que “ex” pode ser entendido como negação (Jor-
ge, 2009: 56). No contexto crítico do filme, a segunda opção parece mais
adequada. Nesse sentido, o que se subtrai ao conquistador é a possibilida-
de de transfiguração de seus atos nefastos num acontecimento grandioso.
Assim, a viagem dos imigrantes retira do horizonte a tradicional atmosfera
épica que sempre envolveu a travessia dos oceanos.
Paco não está sozinho nesta desventura. Ele conhece Alex, garçonete
de um bar popular onde o patrão aproveita da sua condição de imigrante
brasileira para explorá-la. Ela namora Miguel, um trompetista, contraban-
dista de diamantes e viciado em narcótico. O casal é amigo de Pedro, o
português proprietário da livraria “A Musicóloga”. O livreiro tenta fazer
de Miguel um trompetista reconhecido na cidade, ao lhe arranjar apresen-
tações numa casa noturna frequentada por imigrantes afro-lusófonos. A
iniciativa não tem êxito, pois o público da casa não se interessa pela música
do brasileiro.
Miguel entra em conflito consigo mesmo. Em plano próximo, após
executar a música, somente a parte esquerda de seu rosto está iluminada,
embora o olho esteja fora do campo de visão. Este contraste de claro e
escuro pode significar uma cisão de caráter, visto que Miguel está no di-
lema entre enfrentar as dificuldades da carreira artística ou debandar ao
submundo do tráfico de diamantes. Por enquanto ele é apenas alguém que
recebe do Brasil a remessa das pedras para entregá-la aos contrabandistas.
A precariedade financeira, a falta de público para sua arte e a desilusão na
nova terra torna-o um pessimista e, para compensar a decepção, faz das
drogas o seu refúgio. O plano conjunto do quarto de hotel mostra o lado

93
egoísta do musicista. Ele não se importa mais com Alex. No momento em
que ela o repreende por ter gasto as economias com drogas, Miguel fica
despreocupado, fumando e ouvindo Miles Davis. A sua justificativa é de
que ele não vai entregar os diamantes e vai vendê-los por conta própria.
Porém, o plano não dá certo, e ele acaba morto durante a negociação das
pedras.
Paco e Alex não conseguem deixar Portugal, nem mesmo pelo mar.
O plano-sequência do litoral com o barco encalhado perfaz uma imagem
contrária à dos antigos navegantes que singraram com êxito em sentido à
América. Os personagens se deparam com a desventura e a frustração ao
tentarem o sentido inverso da viagem do descobrimento. Dada a dificul-
dade de retornar ao Brasil, resolvem prosseguir por terra a San Sebastián.
A estrada é a única via de acesso que lhes restou para se refugiar e escapar
das encrencas da capital lusitana. As circunstâncias forçaram Alex a se
aproximar mais de Paco, obrigando-os a constituírem um vínculo afetivo,
cada vez mais estreito. Eles já não vivem mais ao sabor de seus planos
pessoais e pouco importa que as políticas de governo, do Brasil e de Por-
tugal, tenham determinado a sua sorte, pois eles dependem, agora, apenas
do destino, como no tema das canções de fado que escutavam em Lisboa.
A música no filme é um elemento relevante da relação entre Brasil e
Portugal, pois contextualiza e cria atmosferas, inserindo os personagens
no tempo, no espaço e na densidade de seus estados espirituais. A música-
-título, Terra estrangeira, de Wisnik, em breve trecho apenas instrumental
incide no plano conjunto de um pequeno barco navegando próximo da
região portuária lisboeta. A música também marca a apresentação de Mi-
guel e Alex. Se a lírica dessa canção fosse cantada, as estrofes estariam
pertinentes aos sentimentos dos personagens:

Muito além ou aquém da saudade / Sou ninguém ou alguém


além da dor / Que chegou até onde vai o mar e voltou /
Encalhado no fado estou / Viajante adiante da viagem / A
levar todo mar e Atlântida / Sou curare de uma tribo

94
sem margem / Sem mais terra sem mal a buscar.

Saudade, frustração e desterro ocupam as consciências de Miguel e de


Alex. O pequeno barco representa as possibilidades reais mínimas da vida
dos imigrantes lusófonos em Lisboa – o limitado espaço de circulação na
cidade, pouco dinheiro, subempregos e os pardieiros. Simbolicamente es-
tão eles neste pequeno barco “A levar todo mar e Atlântida”, desfazendo-
-se das utopias e tentando manter o curso marítimo durante a procela dos
novos tempos.
O fado é o gênero musical que ganha expressividade numa única cena
do filme. Primeiro, por ser uma instituição da identidade lusitana; segundo,
pelo tema da saudade, lágrimas, tragédias e dor, produtos do destino. Não
é gratuito que fado signifique destino. Na cena em que Paco está no restau-
rante à mesa com Igor, Kraft (francês, dono do contrabando) e Carlos
(comparsa de Igor), vemos Maria João (fazendo o papel de si mesma) in-
terpretar Estranha forma de vida 8. Os versos “Coração independente, / Que
não comando / Vive perdido entre a gente, / Teimosamente sangrando,
/ Coração independente [...]” expressam o desejo de Paco de se libertar
da enrascada. Ele declama dissimuladamente versos do Fausto para se safar
do clima tenso e escapar da armadilha preparada pelos bandidos. Paco
literalmente vira a mesa e foge, para tentar seguir o seu próprio “coração
independente”. Em Estranha forma de vida, a lírica trata de um sentimento
forte e incontrolável. Da mesma maneira, ao ser pressionado pelos tra-
ficantes, Paco decide enfrentar a angústia e o medo e trilhar seu próprio
caminho apesar dos perigos.
A canção Vapor barato (1971), de Jards Macalé, é o tema de Alex e Paco
durante a fuga. Essa música surgiu num período de frequentes exílios na
história do Brasil, entre os anos 1960 e 1970, quando muitos brasileiros
deixaram o país devido à forte repressão da ditadura militar. Próximo ao
movimento tropicalista, o compositor nos fala tanto de uma viagem real,
aquela empreendida pelos exilados, quanto metafórica, aquela do barato
ou alheamento que os psicotrópicos produzem nas pessoas (Zan, 2010:
87). Vapor também tem dupla acepção, significando “navio velho”, uma

95
forma de chamar o narcotraficante.
A viagem de Paco dialoga intensamente com a canção de Macalé. A
primeira frase de Vapor barato, “eu estou tão cansado”, contextualiza tam-
bém o desânimo da geração dos anos 1990, vivendo sem perspectiva po-
lítica, cultural e econômica. Por outro lado, a viagem, em Terra estrangeira,
é a realização do sonho de ir embora sem lenço e sem documento, como
apregoava o hino dos tropicalistas, Alegria, alegria (1967), de Caetano Velo-
so. Vítima do governo Collor, Paco fará de sua viagem forçada uma resis-
tência, não apenas recusando que o transformem em mais um imigrante
marginalizado, mas resgatando Alex dessa condição.
Em plano conjunto na estação de metrô de Lisboa, os trens se mo-
vimentam entre as breves paradas de embarque e desembarque. Pessoas
circulam pela estação passando em frente ao violinista cego de aparência
deplorável, com óculos escuros, tocando uma música triste. Também é su-
gestivo que ele esteja sentado embaixo da placa que sinaliza a saída. Com
a sua arte no local público, ele espera receber algum tipo de apreciação
dos transeuntes apressados e indiferentes ao seu valor artístico. Apenas
deixam algumas moedas no estojo do violino. De modo desastrado, um
deles esbarra no estojo, espalhando as moedas e os diamantes, que esta-
vam escondidos nele. Em primeiro plano, em plongée, pés apressados pisam
nas pedras preciosas. Os diamantes incrustam-se nas solas dos calçados e
são levados aos destinos indeterminados; ninguém percebe. É uma alusão
ao modo como é feito o tráfico, por pessoas comuns, no anonimato em
meio à multidão, em vias subterrâneas, na vida cotidiana.
Trata-se da indiferença do indivíduo diante da arte e da banalização
do humano perante a hegemonia do capital. O violinista simboliza a nos-
sa precária condição gerada pelas crises de grande proporção provocadas
pelos governos neoliberais. Sem enxergar a saída, o violinista não perce-
be o valor de sua arte, e isso o mantém na vida subterrânea. A música
triste que ele toca é o seu fado – última tentativa de espantar os males
de sua alma para sobreviver. Nossa situação é análoga à do violinista e
à dos usuários do metrô, com passos objetivos, anônimos na multidão,

96
buscando a saída e a própria identidade. Terra estrangeira é um filme numa
contra-perspectiva da viagem, da razão invertida dos valores e do espírito
sem corpo, na praia deserta onde repousa a nau inerte do vapor barato

Referências bibliográficas:

JORGE, Marina Soler. Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90. São Paulo: Arte e Cultura/
FAPESP, 2009.

NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo:
Editora 34, 2002.

A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.

ZAN, José Roberto. “Jards Macalé: desafinando coros em tempos sombrios” in Revista USP, nº 87.
São Paulo: setembro/novembro/2010. Disponível em:
http://www.nics.unicamp.br/~marcelo/muspop/Musica_Popular/Publicacoes_files/Zan%202010.
pdf. Acesso em 16 de setembro de 2013.

Nota:

7. Em julho de 2015, foi retomado um projeto de lei (em tramitação desde 2013) chamado Ruas de
Memória, para alterar o nome de ruas, pontes, praças e viadutos relacionados à ditadura militar – uma
recomendação da Comissão Nacional da Verdade. O Elevado Costa e Silva deve oficialmente passar a
se chamar Minhocão, nome pelo qual é popularmente conhecido.

8. Estranha forma de vida (1962), de Alfredo Rodrigues Coelho e Amália Rodrigues. Um dos intérpretes
brasileiros desta canção foi Caetano Veloso, no filme Fados (2007), de Carlos Saura.

97
XII. Pablo Trapero e o
novo cinema argentino
O outro lado da lei (El bonaerense,
Pablo Trapero, Argentina/Chile/França/Holanda, 2002)

Daniela Gillone e Rosângela Fachel

Segundo longa-metragem realizado por Pablo Trapero, El bonaerense é


considerado um filme emblemático do chamado Nuevo Cine Argentino.
E, mesmo que para Trapero esta seja uma nomenclatura arbitrária que
agrega sob um mesmo espectro produções heterogêneas que não foram
realizadas sob a égide de um movimento cinematográfico organizado para
tal, ele reconhece o diálogo que há entre as produções e que une seus rea-
lizadores enquanto geração:

No hubo un manifiesto y eso para mí le da la validez. De ca-


sualidad aparecieron películas en común, y muchas veces los
directores ni se conocían. [...] Lo que sí creo es que hay una
nueva generación en el sentido literal de la palabra. Durante
los años setenta hubo una dictadura muy fuerte que práctica-

98
mente eliminó cualquier posibilidad creativa en Argentina, y
en los ochenta resurge con la democracia, pero esta genera-
ción no era la generación de ese momento, era la mayoría de
la gente que volvía a filmar después de la dictadura, entonces
en el medio hubo una generación ausente, y es la que aparece
en los noventa, que analiza todo el cine de los ochenta, todo
el cine de la dictadura, y que vuelve a una conexión con los
sesenta, que fue el momento en que Argentina tuvo un cine
de autor o independiente (Entrevista de Trapero em Letelier,
2003).

Fica evidente a postura de Trapero de reconhecer, em seus filmes (bem


como nos de seus contemporâneos argentinos), um fazer autoral dire-
tamente relacionado ao cinema argentino da década de 1960, época em
que ganharam notoriedade internacional dois de seus cineastas argentinos
favoritos: Fenando “Pino” Solanas e Fernando Birri, cujos filmes, politica-
mente engajados e panfletários, nunca deixaram à margem o comprome-
timento com o fazer cinematográfico enquanto manifestação e linguagem
artística.
O Nuevo Cine Argentino surge como um cinema realizado por jovens
egressos de faculdades de cinema. Oriundo de um contexto de reflexão
teórico-prática sobre o fazer cinematográfico e de uma época com maior
oferta de filmes e com a facilitação do acesso a eles, o Nuevo Cine é um
cinema que nasce do Cinema. E que constrói sua identidade através de
processos produtivos e criativos de apropriação e de transculturação, nos
quais a leitura da alteridade hegemônica estrangeira associa-se à releitura
da tradição nacional, a partir de um olhar fortemente engajado em seu
tempo e em seu espaço.
Apesar de serem obras heterogêneas que não se auto-afirmavam como
um movimento, os filmes do Nuevo Cine surgem com as mesmas dificul-
dades, ou seja, as de começar a produzir sem possuir um espaço específico
e sem contar com um apoio financeiro concreto. E, mesmo que seus rea-
lizadores não defendam uma estética específica, é possível identificar em

99
suas obras características comuns. Quanto à linguagem cinematográfica,
decorrente das carências financeiras e de uma evidente busca pelo “re-
alismo”, há recorrências, como o imbricamento das linguagens ficcional
e documental, a utilização de atores não profissionais e de locações reais
(naturais ou urbanas), evitando cenas de estúdio, bem como a captação de
som direto. Compõe-se, assim, uma estética que foi chamada de “neorre-
alismo moderno”9 por sua proximidade às proposições do neorrealismo
italiano. Outra marca importante com relação a esse Nuevo Cine é o fato
de os diretores, geralmente, serem os autores ou coautores dos roteiros
e, também, de exercerem controle absoluto sobre a produção, resgatan-
do a figura do cineasta/autor. Outra forte marca desses filmes é contar
histórias “mínimas”, histórias cotidianas de pessoas comuns, tendo como
temáticas a marginalidade, a pobreza, os excluídos sociais, a classe média
decadente e a violência. Características essas que, como veremos a seguir,
estão presentes em El bonaerense.
O filme está narrativamente centrado em Zapa, que será obrigado a
migrar de um povoado para a região periférica de uma metrópole. A tra-
jetória do protagonista será narrada através de uma estética que recorre
a elementos do neorrealismo italiano10. O plano-sequência tão caracte-
rístico neste cinema é um dos recursos que sustentam a abordagem da
trajetória de Zapa, pois ele expressa uma narrativa que não se baseia numa
concepção tão controladora de produção, e que busca introduzir o acaso e
o fluxo contínuo, elementos que estariam mais próximos da manifestação
da própria vida. Assim, a realidade cotidiana do protagonista é apresen-
tada tendo como cenário locações reais que são apresentadas quase que
documentalmente. Tematicamente, Trapero apresenta a história de um
personagem comum e ordinário, contada sobre o pano de fundo de fatos
políticos e sociais reais, dando visibilidade a situações que estão muito pró-
ximas à realidade e fomentando, assim, um olhar crítico sobre a realidade
social. A combinação de atores profissionais e não profissionais (aspecto
que também aproxima a produção às proposições do Dogma 95) instaura
um estranhamento ao imbricar realidade e ficção, construindo um entre-

100
-lugar narrativo que está alicerçado na percepção do diretor de que:

Nunca se tendrá bien claro dónde empieza la ficción y dón-


de termina la realidad, digamos. Esto es algo que pasa mu-
cho en los países latinoamericanos, donde se ven muchas
situaciones más absurdas que las que uno puede concebir en
la ficción desde lo político, desde lo cotidiano, en cualquier
lugar. Uno se enfrenta a cosas en la vida real que superen
cualquier idea de la ficción. Esa ambigüedad de la ficción
es la que realmente me interesa. Entonces, el documental
como herramienta de copia de la realidad no me interesa, ni
tampoco me interesa hacer películas que copien la realidad
porque el cine es ficción (Entrevista de Trapero em Portal
del Cine y el Audiovisual Latinoamericano y Caribeño, s/d).

O filme se inicia apresentando uma rua quase deserta de uma cidade


interiorana, na qual, sob um sol inclemente, cinco homens observam ca-
lados e prostrados ao que deve ser uma partida de futebol de garotos. O
espectador não vê, mas advinha pelas vozes escutadas à distância. Quatro
desses homens estão sentados à mesa enquanto o quinto, um policial, está
apoiado sobre uma das cadeiras. Passam uma bicicleta, um cachorro latin-
do e um carro de som, mas nada disso parece perturbar a monotonia da
cena, que só será quebrada por uma mulher, que, sem se aproximar muito,
avisa a um desses homens, Zapa, que Polaco o está chamando.
É nesse momento, então, que conhecemos o protagonista de El bona-
rense, Zapa, um jovem pacato que trabalha como chaveiro para o grosseiro
Polaco, a mando de quem ele vai abrir um cofre em uma situação muito
suspeita, mas à qual ele parece completamente indiferente. Por esse traba-
lho, ele é acusado de roubo e preso, mas também isso lhe parece indiferen-
te. Para livrá-lo da prisão, Zapa conta com a ajuda de seu tio, que paga sua
fiança e, através de um jogo de favores, consegue arranjar-lhe um trabalho
em La bonaerense, a polícia da Grande Buenos Aires. Vem daí o título do
filme, que faz um jogo entre o nome da polícia e a condição de ser um

101
bonaerense, um habitante de Buenos Aires; mas que é, também, a alcunha
pela qual são conhecidos os integrantes da polícia da cidade.
A cena em que Zapa é levado pelo tio para tomar o ônibus rumo a
Buenos Aires demarca a fronteira entre o mundo interiorano e o mun-
do metropolitano, fronteira que será cruzada pelo personagem e pelos
espectadores. Ajuda a compor a cena rural e quase fora do tempo, desse
momento limiar, a música folclórica gauchesca que se escuta ao fundo, na
qual se destaca a voz de um bastonero, pessoa que coordena alguns ti-
pos de danças nos bailes, que avisa: “A la voz de aura! Aura!”. Aura é um
crioulismo para ahora (agora), que é utilizado pelo bastonero para indicar
o momento em que os bailarinos devem fazer um novo passo. E, como
vemos no filme, “agora” é o momento para Zapa dar um novo passo em
sua vida. Não por acaso, só após essa cena será apresentado o título do
filme. O volume da música vai diminuindo até que ela desapareça e surja,
em letras brancas sobre a tela negra, o título: El bonaerense.
Inicia-se, nesse momento, uma nova narrativa, uma narrativa urbana,
vertiginosa e contemporânea. Para apresentar a diferença entre os am-
bientes interiorano e urbano, Trapero utiliza planos amplos, oferecendo
uma visibilidade geral do conjunto do ambiente. O povoado parece viver
em um tempo mítico, fora do tempo, com suas ruas monótonas e qua-
se vazias, o entorno rural da casa de Zapa, o descampado que serve de
terminal de ônibus, onde ele embarca rumo a Buenos Aires. Já a Grande
Buenos Aires contemporânea reúne um turbilhão de luzes, imagens, sons,
ruas movimentadas e cheias de pessoas e de carros. Além disso, demarca
a diferença entre os dois ambientes o fato de as cenas no povoado serem
realizadas com movimentos de câmera suaves em contraposição à câmera
dinâmica e a menor duração dos planos que vão construindo a imagem
fragmentada da cidade. E se a música do ambiente interiorano é a nativis-
ta, a música do ambiente urbano é a cumbia villera.
Subgênero da cumbia, que nasceu nas villas (favelas) argentinas, a cumbia
villera, assim como o Nuevo Cine Argentino, surgiu em meio à crise eco-
nômica da década de 1990. E, ao se dedicar a dar voz à villa, não por acaso
102
comparte temáticas com esse Nuevo Cine, como: a pobreza, o universo
do tráfico e do consumo de drogas, a marginalidade, a exclusão social, a
falta de perspectivas e a violência. Enquanto manifestação musical híbrida,
a cumbia villera nasceu do encontro transcultural da cumbia com o reggae,
com o ska e com a música eletrônica, que é entrecruzado pela música
folclórica argentina. Em contraposição aos instrumentos tradicionais da
música nativista argentina, a cumbia villera é realizada através de instrumen-
tos eletrônicos, como a bateria eletrônica e keytars (teclado-guitarra), com
a utilização de sintetizadores, de vozes de teclado e de efeitos sonoros. E,
enquanto representação identitária dos indivíduos da villa, suas canções
utilizam a linguagem popular das vilas e dos marginais (lunfardo e lenguaje
tumbero) que é repleta de gírias.
Ao mergulhar no universo dos habitantes de La Matanza, partido mar-
ginal da Grande Buenos Aires onde nasceu Trapero, a trilha sonora urbana
do filme não poderia ter outro ritmo que não fosse a cumbia villera. Ficou
a cargo de Pablo Lescano, líder do grupo Damas Gratis e principal expo-
ente da popularização da cumbia villera na Argentina, dar cadência às cenas
urbanas de El bonaerense.
Para Trapero, que submerge seu filme no ritmo de Damas Gratis e re-
conhece a força do estilo musical que cruzou fronteiras do marginal para
o comercial, “la cumbia villera es el resultado de una mezcla de ritmos mucho más
activa de lo que sugiere su título. Lo interesante de la cumbia villera es que va más
allá de su lugar de origen. Musicalmente hay mezclas súper interessantes” (Entrevista
de Trapero em Plotkin, 2002). É justamente a condição híbrida do ritmo
que estreita o seu diálogo com o fazer cinematográfico de Trapero, que
igualmente se constrói através de processos de apropriação e de transcul-
turação.
A vida de Zapa na cidade resume-se à Bonaerense e ao processo de
metamorfose de Zapa em bonaerense, processo que inicia com uma rup-
tura brusca em sua identidade, uma vez que, ao chegar à cidade, não será
mais chamado pelo apelido, tratamento íntimo e familiar, passando a ser
identificado por seu sobrenome, Mendoza. Novato interiorano, ele precisa
103
se submeter às palavras depreciativas e aos desmandos de seus superiores,
tendo como único alento o caso amoroso que desenvolve com Mabel, ou-
tra policial. Aos poucos, Zapa adentra um mundo de brutalidade marginal
regido pela corrupção, pelo abuso de autoridade e pela força, passando de
observador à agente dessas violências, o que faz com que Mabel termine o
relacionamento com ele. Policial corruptível, ele é procurado pelo Polaco
para um novo trabalho; no entanto, o final inesperado e violento faz com
que Zapa decida voltar a seu povoado.
A violência é, então, o leitmotiv do filme; ela move os personagens, de-
linquentes e polícias; ela está presente na pobreza e na decadência das
instituições de Buenos Aires; e ela se ouve na linguagem dos personagens
e na cumbia villera, que demarca o território desses personagens urbanos de
fala coloquial e vulgar.
Produzido em um momento em que a polícia de Buenos Aires estava
muito depreciada em consequência das muitas acusações de corrupção
e de imprudência, o filme de Trapero mostra a Bonaerense de seu inte-
rior. Sem julgamentos éticos ou morais e sem distinções dicotômicas entre
personagens bons e maus, nessa perspectiva a cumbia villera, oriunda do
contexto marginal, acaba sendo, também, a trilha sonora da polícia, reve-
lando a permeabilidade da fronteira que separa os dois contextos. O filme
mostra a Bonaerense em seus paradoxos: a corrupção, as agressões e o
oportunismo dos policiais se misturam ao clima de irmandade e de com-
panheirismo que existe entre eles. O crítico argentino Gonzalo Aguilar, ao
analisar El bonaerense, destaca que:

Delito e lei não estão totalmente diferenciados em El bonaeren-


se. Forma-se, porém, uma associação, mas para que as coisas se
coloquem em funcionamento é necessário um terceiro elemen-
to: os afetos. A coloração afetiva faz com que o olhar do diretor
sobre o estreito vínculo entre delito e lei não seja denúncia, mas
de aproximação, de observação e até de envolvimento (Aguilar,
2008: 35. Tradução nossa).

104
A polícia é representada no filme como uma comunidade na qual se es-
tabelecem laços de lealdade e de suspeita. Para Aguilar, nesse lócus de afeto
se produz uma divisão marcante entre a instituição polícia e a sociedade:
enquanto de dentro da instituição se criam fortes laços, quase familiares,
o lado de fora é percebido como um lugar de risco, vulnerável ao controle
dos inimigos. Um exemplo se mostra na forma como um dos policiais ex-
plica a Mendoza/Zapa a situação em que se encontra a Bonaerense frente
à sociedade da província: alguém que mata um cana (policial) é, para os que
não pertencem à polícia, “um herói”; mas, para os policiais, é um negro de
mierda. Gonzalo percebe, ainda, que os cidadãos de La Matanza, de ma-
neira geral, ficam em um “fora de campo” da narrativa e, se aparecem nas
cenas, não chegam a se configurar como personagens.
Esse modo de representar o que está fora difere do modo como a polí-
cia se percebe em si mesma. A ideia de Trapero parece ser a de deslocar a
condição da polícia como um mundo asfixiante em que certas ações erra-
das e imorais são vividas como normais, inevitáveis ou ainda corretas. Em
defesa dessa percepção humana dos policiais, o diretor mostra que o afeto
é central para o funcionamento da polícia, o que, por sua vez, desvia-a do
caminho justo.
O filme termina com uma nova volta na jornada de Zapa que, assim
como nas letras da cumbia villera, utiliza a trapaça e a fraude para vencer o
sistema. Glorificado e promovido em um estratagema criminoso, ele con-
segue voltar para casa e assumir um posto na polícia local. Mas, apesar de
voltar a ser o Zapa, ele já não é o mesmo, pois sua passagem pela Bonae-
rense (onde experimentou a humilhação, a corrupção e a culpa) lhe mar-
cou tão profundamente quanto o tiro que o faz mancar. A circularidade de
seu destino, que parece estar iniciando um novo ciclo, é corroborada então
pela música que acompanha as últimas cenas da narrativa onde escutamos
mais uma vez a voz do bastonero, que novamente instiga: “A la voz de aura!
Aura!”. Ahora. Agora!

105
Referências bibliográficas:

AGUILAR, Gonzalo. Estudio crítico sobre El bonaerense: entrevista a Pablo Trapero. Buenos Aires:
Picnic Editorial, 2008.

BAZIN, André. O cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

“Cineasta: Pablo Trapero” in Portal del Cine y del Audiovisual Latinoamericano y Caribeño. Dispo-
nível em: http://www.cinelatinoamericano.org/cineasta.aspx?cod=54.

LETELIER, Jorge. “Pablo Trapero, director argentino: ‘El bonaerense es una especie de esquizofre-
nia’” in Mabuse Revista de Cine, 08 de outubro de 2003. Disponível em: http://www.mabuse.cl/
entrevista.php?id=31391.

MASINI, Fernando. “A opulência simples do cinema argentino” in Trópico – ideias de norte a sul,
s/d. Disponível em: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2507,1.shl.

PLOTKIN, Pablo. “Aquí y ahora. La cumbia: banda de sonido de la Argentina 2002” in Página 12,
17 de outubro de 2002. Disponível em:
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/no/12-426-2002-10-17.html.

Notas:
9. A expressão foi usada por Serge Toubiana, em artigo publicado na Cahiers du Cinéma, em
2001, para se referir, justamente, a um filme de Trapero, Mundo grúa (1999) que, conforme Tou-
biana, confirmava, à época, a renovação do cinema argentino (Masini, s/d).

10. Os filmes neorrealistas buscavam romper com os modos de produções feitos nos grandes
estúdios e com isso defendiam as filmagens em locações, a atuação de atores não profissionais e
uma decupagem que privilegiasse não a montagem, mas o plano-sequência. Para Bazin, o neor-
realismo destacou-se das principais escolas realistas anteriores, assim como da escola soviética,
porque não subordina a realidade a nenhum ponto de vista pré-determinado: “o filme neorrealista
tem um sentido, mas a posteriori, à medida que permite à nossa consciência passar de um fato
para o outro, de um fragmento da realidade ao seguinte, enquanto que o sentido é dado a priori
na composição artística [...]” (Bazin, 1991: 315).

106
XIII. Uma outra globalização audiovisual
Encontro com Milton Santos, ou o mundo global
visto do lado de cá (Silvio Tendler, Brasil, 2006)

Vanderlei Henrique Mastropaulo

Em janeiro de 2001, Silvio Tendler realizou uma entrevista com o geó-


grafo Milton Santos, célebre por sua trajetória de reflexão crítica sobre as
desigualdades causadas pelas formas de organização espacial segundo as
necessidades da lógica capitalista mundial. Se este sistema é, em si, mar-
cado por conflitos e contradições de origem econômica, social e política,
tais características terão resultado também na configuração dos territórios.
Conhecido por sua independência de pensamento, o autor de obras como
Por uma geografia nova (1978), A urbanização brasileira (1993) e A natureza do
espaço (1996), entre outras, dedicou-se a desenvolver teorias sobre a orga-
nização espacial pelas ocupações humanas, principalmente em ambientes
urbanos, formando redes dinamizadas pelas condições produtivas da eco-
nomia.
Após anos de reflexão, Milton Santos publicou, em 2000, o livro Por
uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, no qual teoriza

107
a respeito de como tornar a globalização um fenômeno mais humano. Sil-
vio Tendler tomou o livro como base para a realização do documentário
Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá (2006) e, em
acordo com as ideias do geógrafo, elabora um panorama que questiona
os mecanismos de produção econômica da globalização, os efeitos ide-
ológicos de seu discurso e de sua suposta unificação planetária. Ambos
não negam a globalização enquanto fenômeno social, mas a entendem
como uma construção histórica e cultural de longa data. Este é o ponto de
partida para contestar as ideias hegemônicas construídas em torno dela,
em que interesses particulares se travestem de igualdade para todos os
habitantes do mundo.
Assim como o livro, o filme esmiúça este “mundo confuso e confusa-
mente percebido” (nas palavras certeiras do geógrafo) em que a globali-
zação é construída de duas formas: como “fábula” e como “perversida-
de”. A “fábula” tem como base a produção de “imagens e do imaginário”
sustentada pela velocidade da informação na dita aldeia global. A “per-
versidade” é visível em práticas econômicas cujos resultados geopolíticos
potencializam desigualdades e a exclusão a níveis sem precedentes. Essas
contradições se percebem, por exemplo, na paisagem urbana das grandes
cidades, carregadas de sinais de negligência social (mendicância, trabalho
informal, prédios abandonados). Porém, apesar do panorama um tanto
desolador, livro e filme atestam que essas contradições farão germinar a
semente das novas formas de resistência, solidariedade e união entre os
que lutam. Esta nova ordem será “uma outra globalização”, muito distinta
do modelo atual.
Não é tarefa simples traduzir as refinadas teorias de Milton Santos em
narrativa audiovisual. Para tanto, Tendler constrói seu documentário com
base na entrevista de 2001 e em conferências do geógrafo em universi-
dades, nas quais são apontados os conceitos que guiam a crítica a esta
globalização excludente. Estas sequências encontram apoio no conjunto
de imagens de diversas procedências que o cineasta usa para pontuar as
teorias. Há fotografias, material jornalístico de TVs de vários países, ma-

108
terial de arquivo, vídeos de organizações militantes, e outros documentá-
rios com propostas narrativas e preocupações sociais similares, como The
Corporation (2003), de Mark Achbar e Jennifer Abbott, e Thirst (2004), de
Alan Snitow e Deborah Kaufmann. Tendler utiliza ainda mapas, pois uma
aproximação ao pensamento geográfico precisa de representações carto-
gráficas, elementos essenciais de comunicação convertidos aqui em instru-
mentos audiovisuais. Este recurso se faz imprescindível na sequência em
que se explica o processo contemporâneo de fabricação de aeronaves, no
qual cada parte de um avião procede de um país diferente apontado no
mapa. Assim, esclarece-se de forma didática a atual divisão internacional
do trabalho, conceito chave para entender o funcionamento da ordem
econômica global, que hierarquiza as nações de acordo com o papel de
cada uma na produção de bens de consumo e na geração de riqueza. Com
esta e outras estratégias similares, o filme desconstrói com grande eficácia
o discurso padronizado sobre a suposta igualdade trazida pela globaliza-
ção, repetido pela imprensa hegemônica nacional e internacional. Trata-se
de um elegante exercício de militância audiovisual, realizado por um cine-
asta cuja carreira é marcada por filmes de forte conteúdo político e que,
mais uma vez, desenvolve seu tema de maneira contundente.
Para desconstruir a “fábula”, faz-se necessário um recuo histórico. O
prólogo apresenta dois momentos do fenômeno: a “primeira globaliza-
ção”, com a violenta conquista da América no século XVI, cuja expansão
territorial promovida por exploradores espanhóis e portugueses em busca
de minérios e outras fontes de riqueza resultou no extermínio dos povos
nativos; a “segunda globalização”, marcada pela fragmentação dos terri-
tórios. Explica-se: a exploração econômica de um dado espaço resulta na
sua divisão em áreas centrais (mais ricas e opulentas) e periféricas (mais
pobres e distantes das mais ricas), conforme as necessidades da ocupação,
gerando um desnível entre áreas mais favoráveis à acumulação de riqueza
e outras de menor valor. Esta fragmentação se agrava ainda mais com
a velocidade desenfreada imposta pela globalização. Nestas condições, o
desnível econômico entre regiões mais ricas e mais pobres torna-se abis-

109
mal, escancarando a miséria e concentrando ainda mais a riqueza.
Por estas razões, Santos e Tendler se opõem ao discurso hegemônico
do “globalitarismo”, fruto das teorias neoliberais cujas práticas econômi-
cas trouxeram o desastre financeiro à América Latina durante a década
de 1990, período de instabilidade, desemprego e aumento da pobreza. A
respeito deste tema, as entrevistas com Eduardo Galeano, Boubacar Boris
Diop e Adetokunbo Borishade são precisas, pois ilustram as contradições
impostas por este modelo econômico, gerador de extrema desigualdade
social e de exércitos de miseráveis mundo afora. Esta e outras contradi-
ções inerentes a tal lógica global são postas em xeque. Como pode haver
fome no mundo se há comprovada superprodução de alimentos? Como
se pode imaginar a privatização da água, um bem essencial à vida? Por
que se permite o livre trânsito de mercadorias e capitais internacionais e
se proíbe o de indivíduos, barrados em fronteiras super vigiadas, sinal de
violência impresso na paisagem? Como falar em democracia se a suposta
formação de opinião se faz por pouquíssimos grupos de alcance mundial?
Questiona-se ainda a falta de lógica do consumismo (este novo “funda-
mentalismo”, como afirma Milton Santos) que cria falsas necessidades de
consumo, cadeias de produção e exploração de matérias primas e bens e
serviços vazios de significado. Ainda mais severa é a denúncia de todo o
aparato tecnocrático que visa escamotear a exploração pelo trabalho em
condições análogas à escravidão, realidade insuportável de vários países
(inclusive o Brasil), que necessita de soluções urgentes. Por fim, igualmen-
te importante é o debate sobre concentração de mídia vs. liberdade de
expressão. Não à toa, muitos temas vistos no filme não se encontram entre
os principais fatos veiculados em nossos meios de comunicação, visto que
a seleção de assuntos e notícias segue interesses empresariais.
Se a primeira metade do filme se dedica a questionamentos e denúncias, a
segunda metade propõe a busca de alternativas ao estado das coisas. O ritmo
dinâmico muda e abre espaço à necessária reflexão, para a qual Milton San-
tos elenca sinais que o permitem ser otimista na construção de uma globali-
zação solidária. Os protestos e reivindicações por mudanças e os resultados

110
conquistados por organizações sociais são, para ele, formas de luta em busca
de novos caminhos. Em paralelo a estas reivindicações, a emancipação dos
povos será possível se acompanhada pela aplicação do conhecimento e pela
apropriação da produção de discursos. Se antes o domínio técnico era ex-
clusivo de poucos, hoje há meios alternativos acessíveis para gerar e trans-
mitir informação e conhecimento graças, por exemplo, ao barateamento de
equipamentos. Prova disso são os grupos periféricos que se apropriam da
tecnologia digital, gerando uma inversão de forças que permitirá um futuro
possível. O documentário apresenta exemplos, como o rap e o cinema po-
pular. Entram em cena músicos, cineastas e artistas independentes, como
Carlos Pronzato, Aline Sasahara e Adirley Queirós, que realizam trabalhos
à margem dos circuitos culturais tradicionais. Tão importante quanto estas
manifestações culturais e produtoras de conteúdos é a impactante sequên-
cia que recupera a luta do movimento contrário à privatização da água, em
Cochabamba, Bolívia, liderado por Oscar Olivera, em 2000. A resistência
popular ao gerenciamento privado desse recurso essencial à vida ganhou re-
percussão internacional, e trouxe a vitória do movimento quando o governo
do país revogou o direito de exploração da água pela corporação envolvida
no caso. O episódio mostra que a resistência organizada em torno de uma
reivindicação legítima é o caminho para fazer frente às distorções econômi-
cas aberrantes e gananciosas das corporações.
Se a torrente de imagens e a estrutura narrativa da primeira metade
remetem aos documentários militantes dos anos 1960 e 1970 (quase um
collage audiovisual em tempos de produção digital), a segunda metade lança
mão de fatos e informações que visam uma descolonização do discurso
da globalização. Assim, Silvio Tendler mantém-se em franco diálogo com
cineastas latino-americanos com os quais conviveu e que são referências
no campo do cinema documentário, como o cubano Santiago Álvarez, o
chileno Patricio Guzmán e o argentino Fernando Solanas. São cineastas
que sempre mantiveram uma postura crítica e de denúncia à dependência
econômica e à colonização cultural da América Latina. Sobre isso, vale
recuperar o comentário irônico de Milton Santos, a respeito dos que insis-

111
tem em pensar, no Brasil, como se fossem europeus ou estadunidenses, o
que resulta em distorções de análise do mundo atual.
Ao final, o geógrafo conclui ser possível uma outra globalização. Para
tanto, mantém seu posicionamento político à esquerda. Entende necessá-
rio ser marxista, sobretudo hoje, pois as contradições do capitalismo nunca
estiveram tão evidentes. Atribui papel indispensável ao Estado na organi-
zação de uma nova ordem e no exercício de suas funções públicas. Refuta,
mais uma vez, as teorias neoliberais que pregam o esvaziamento do Esta-
do, pois é papel estatal abarcar a todos e evitar a exclusão social resultante
das regras do livre mercado. Milton Santos aponta ainda que o atual “to-
talitarismo de opinião”, capitaneado pelas grandes corporações de mídia,
é o grande cerceador da democracia, esvaziando seu sentido. O curso da
atual lógica global atenta contra a liberdade e, portanto, contra a cidadania.
Isto se mostrará insuportável no futuro. Por ora, já se revela insustentável.

Referências bibliográficas:

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2000. 

112
XIV. Dos heróis bandoleiros ao cobrador
O cobrador (Cobrador: in God we trust, Paul Leduc,
Argentina/Brasil/Espanha/França/México/Reino
Unido, 2006)

Daniela Gillone

As figuras marginais estão representadas em um conjunto de filmes


produzidos durante os ciclos e movimentos mais capitulares do cinema
da América Latina. A marginalidade heroica das revoluções e dos aconte-
cimentos políticos do início do século XX, passando pelos movimentos
indígenas e pelas repressões dos latifundiários no campo e da ditadura
militar nas cidades, foi tematizada conforme a proposta política de de-
terminados momentos do cinema. Durante o período clássico-industrial11
e no cinema de resistência da década de 1960, os filmes ressignificaram
em versões romântica e revolucionária as representação das revoltas dos
heróis bandoleiros: o Lampião no Brasil12, o Pancho Villa no México13 e
o gaucho desbravador de fronteiras na Argentina14 – e ainda temos a con-
figuração de outras personagens marginais em outras cinematografias, tal
como o cacique Tupac Amaru e as associações de sua imagem ao conflito

113
armado no cinema peruano.
Esses heróis bandoleiros que fizeram a história do início do século
anterior influenciaram na maneira de se pensar o contexto de dominação
e colonização pelo cinema produzido durante as ditaduras militares. Essa
associação da marginalidade à política do cinema suscitaria uma avaliação
de filmes cujos conteúdos são elaborados com estratégias desenvolvidas
por seus diretores no plano político. Mesmo que de forma sucinta, analisar
essas figuras historicamente representadas em diferentes períodos amplia-
ria o conhecimento e a crítica para entender as novas personagens margi-
nais e suas relações com a atual política do cinema.
O cinema de Paul Leduc é um exemplo para se refletir sobre o que se
modifica e se mantém entre as personagens marginais em distintos perío-
dos, já que o diretor atua desde a década de 1960 em um contexto contrá-
rio à produção massificada do cinema industrial mexicano. Em seu filme
Reed, México insurgente (1973), Leduc ficciona a participação do jornalista
estadunidense John Reed, autor do livro Os dez dias que abalaram o mundo, na
Revolução Mexicana. No filme e na vida real, Reed foi contratado para co-
brir essa Revolução, mas se tornou um militante e passou a seguir Pancho
Villa. O diretor, ao incluir o processo de conscientização do personagem
de Reed, quer levar o espectador a se identificar com a militância contra as
ditaduras. Consequentemente, este personagem deu visibilidade à política
do cinema da época que primava por resistência às ditaduras.
Depois de Reed, México insurgente, Leduc irá compor em seu filme O
cobrador outro ponto de vista sobre a marginalidade, distante do enqua-
dramento dado aos heróis que estiveram representados na cinematografia
anterior, que recorre às jornadas das lutas coletivas. Embora haja alguns
pontos em comum entre os dois filmes, que são adaptações literárias que
privilegiam figuras marginais, o deslocamento, em O cobrador, se dá no en-
foque utópico presente nos cinemas novos.
Para realizar O cobrador, Leduc parte do conto homônimo de Rubem
Fonseca, que conta a história de um operário que vive no Rio de Janeiro.

114
Assim como no conto, o filme começa em um consultório odontológico
em Nova Iorque, focando àquele que se transformará no cobrador. Ao ser
humilhado pelo dentista, o personagem torna-se um matador perigoso, a
fim de cobrar da sociedade o que ele acha que esta lhe deve, prosseguindo,
assim, a sequência dos assassinatos relatados no livro. Porém, o persona-
gem cinematográfico não fala uma só palavra, ao contrário do de Fonseca.
Outra diferença: o conto privilegia a linearidade narrativa, ao passo que
Leduc entrelaça várias histórias paralelas, que acontecem em diversos paí-
ses da América para situar o seu cobrador.
Os personagens do filme transitam por várias cidades. O cobrador,
quando descobre que está sendo procurado pelos assassinatos que come-
teu em Nova Iorque, segue para a Cidade do México. Lá, conhece Ana,
uma jornalista argentina que se torna sua namorada e parceira. Juntos de-
cidem matar pessoas públicas importantes do cenário mundial e sabotar
alguns estabelecimentos comerciais.
Ao contrário do personagem Reed, o cobrador não está defendendo
uma classe ou comunidade específica. Ele e sua namorada elaboram mani-
festos que parecem dizer respeito a uma cobrança deles próprios.

No somos guerrilleros ni terroristas, no somos ladrones ni


narcotraficantes, pero nos deben mucho, nos deben todo.
Nos deben mucho. (...) enquanto estiverem nos devendo,
nós continuaremos cobrando15.

Ana é a personagem que o filme sugere ser politizada pelo fato de ser
filha de militantes desaparecidos e por ter amigos que estão envolvidos
em manifestações políticas na Cidade do México. O espectador espera
uma atitude política nos movimentos populares mexicanos que parta dela
mesma. No entanto, após uma amiga dissidente ser morta por policiais,
ela passa a assumir o plano do cobrador. O principal alvo da dupla é Mr.
X, magnata e serial killer que vive em Miami e circula por Buenos Aires e
Nova Iorque. Ele é dono de uma mina de ouro no Brasil, que fica aos cui-
dados de Zinho, um suposto militar assassino e sem escrúpulos que está à

115
procura da dupla.
Atores brasileiros, argentinos, mexicanos e norte-americanos formam
o elenco de O cobrador, além de o autor do conto ser brasileiro e o diretor,
mexicano. Forma-se, por assim dizer, um “time” interamericano, o que
sugere que o filme pretende refletir sobre as figuras de resistência da es-
querda continental nos tempos atuais.
A trilha sonora tem a participação do músico brasileiro Tom Zé, co-
nhecido por suas metáforas políticas. Suas canções reforçam as mediações
do filme, principalmente na cena em que aparecem as imagens do bom-
bardeio às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, a partir de um
televisor. A informação noticiosa é um recurso utilizado para o espectador
associar o acontecimento com o momento em que se passa o filme e,
ainda, fazer uma alusão às relações de poder que se passam em universos
macro (o mundo) e micro (a mina). Nesses planos, as imagens do cobra-
dor ao lado da TV e da mina foram agenciadas com os trechos da música
Curiosidade:

Quem é que está botando dinamite na cabeça do século?

Quem é que está botando tanto piolho na cabeça do século?

Quem é que está botando tanto grilo na cabeça do século?

Quem é que arranja um travesseiro para a cabeça do século?

A música faz referência ao poder e ao “véu” que existe para ocultá-lo


para, assim, haver uma acomodação – com o travesseiro, como menciona
Tom Zé. A metáfora diz respeito à comodidade que existe após as guerras.
Michel Foucault reflete sobre essa comodidade que acontece após a bata-
lha final como uma “paz” imposta à sociedade civil que, por sua vez, seria
uma forma de perpetuar o movimento que engendra as relações de forças.
Tal “apaziguamento” inscreveria uma espécie de “guerra silenciosa nas
instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo

116
dos indivíduos” (Foucault, 1979: 98).
Para pensar mais sobre esse poder no contexto do filme, dispomos,
ainda, das menções contidas no exercício que Foucault propõe ao realizar
uma análise não só econômica do poder:

[...] o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se


exerce, só existe em ação, como também da afirmação que
o poder não é principalmente manutenção e reprodução das
relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de for-
ça. Questão: se o poder se exerce, o que é este exercício, em
que consiste, qual é sua mecânica?

[...] Teríamos, portanto, frente à primeira hipótese, que afir-


ma que o mecanismo do poder é fundamentalmente de tipo
repressivo, uma segunda hipótese que afirma que o poder é
guerra, guerra prolongada por outros meios (Foucault, 1979:
99).

No filme, as relações de poder, a repressão e a “guerra” estão mais


evidentes na Cidade do México e na mina brasileira. Enquanto ativistas
ligados ao meio ambiente e à política local confrontam policiais na capital
mexicana, os mineradores protestam por melhores condições de trabalho.
Além disso, a própria mina como espaço de extração de ouro é o resultado
de um domínio. A área dinamitada parece uma ferida exposta no meio da
selva. Uma câmera aérea sobrevoa a floresta para logo enquadrar um enor-
me buraco que corta a uniformidade da imensidão verde da mata. Imagens
de milhares de mineradores, que lembram Serra Pelada, confirmam a fis-
sura provocada pelo ouro, tanto na superfície terrestre como na vida das
pessoas.
As personagens principais envolvidas na mina lidam de algum modo
com atos de violência para exercer o poder. Observamos suas particula-

117
ridades: entre o cobrador e o magnata parece não haver nenhuma dife-
rença, ambos são agressivos e cometem os maiores assassinatos, mas são
completamente diferentes em dois aspectos. O homem rico é poderoso
– nenhuma autoridade o persegue mesmo sendo um serial killer; ao con-
trário do cobrador, que tem de se esconder para fugir do cerco da polícia.
Evidentemente, com sua arrogância, matando covardemente mulheres so-
litárias e indefesas, o magnata não desperta nenhuma empatia nos espec-
tadores. O mesmo se passa com Zinho, o militar que é capaz de assassinar
uma criança de sete anos para contentar a amante. Já o cobrador desperta
a simpatia das crianças do filme e inspira o amor de uma jovem, além de
ter um passado sofrido como minerador.
É claro que nenhum desses elementos faria do cobrador uma persona-
gem positiva de fato. Esse indício de empatia serve apenas para torná-lo
mais complexo. É em função do adensamento do personagem que o ator
Lázaro Ramos lhe empresta um aspecto feroz e melancólico, tornando-
-o ainda mais enigmático. O fato de não proferir nenhuma palavra deixa
ainda mais incompreensível a sua ação, já que não há nenhuma fala que
nos faça entender os motivos que o levaram a agir desse modo. Mesmo
o manifesto, que ele e a namorada publicam, é apenas uma cobrança, um
desabafo raivoso. De modo que o que caracteriza a ação do cobrador nes-
sa relação de forças é sua ininteligibilidade. Mas é justamente este enigma
que o torna uma fratura visível, que incomoda.
O magnata é também um homem cindido psicologicamente, está doen-
te, assim como Zinho, mas eles podem ficar incógnitos, devido ao poder
que têm de ocultar que são psicopatas. Quanto ao cobrador, é uma fenda
psíquica bem visível. No final, quando retorna à velha mina abandona-
da, começa novamente a se sentir incomodado pelo dente que o levou
ao dentista. De modo que voltamos ao problema do início que detonou
toda a ação furiosa do personagem – tudo começou com o seu dente que
precisaria ser tratado e futuramente trocado por um dente de ouro. Vale
notar que a ausência do dourado na boca do minerador em contraste com
as coleções de relógio de ouro do magnata contextualizaria a nefasta “dis-

118
tribuição” de renda e a condição da personagem se achar no direito de
cobrar da sociedade.
Além dos elementos que conformam a ideia das diferenças sociais e das
relações de poder, Leduc investe em imagens com esquemas plásticos que
diferenciam os ambientes e personagens. Em vários quadros predominam
os filtros azul e verde, outras vezes as imagens são em preto e branco,
sempre nos lugares em que o cobrador aparece. As manifestações políticas
são apresentadas sem uniformidade plástica. A mistura de registros parece
reforçar o aspecto conturbado do momento e também dos personagens
que estão implicados nos movimentos de protestos na Cidade do México.
Na mina brasileira do magnata, as cores opacas, provocadas pela poei-
ra levantada pela mineração e o trânsito das pessoas, tornam as imagens
fantasmagóricas, e os mineradores, cobertos de pó, parecem mortos vivos,
que estão deambulando sem rumo. Mesmo a mina fechada, no presente,
ainda é uma chaga, solo arrasado, infértil, pura rocha carcomida. Ao con-
trário, o mundo do magnata é clean, brilhante, bem iluminado, arejado.
Em seus ambientes há uma harmonia entre a iluminação, as cores e as
formas. Mas esse mundo, de uma beleza quase asséptica, contrapõe-se ao
ambiente sombrio pelo qual ele circula quando vai cometer os assassina-
tos, ou quando, em Buenos Aires, está à procura do vigor perdido. Essas
variações plásticas reforçam o significado dos diferentes contextos por
onde transitam as personagens. Com isso, podemos dizer que a estética
do filme está a serviço de sua retórica, que procura ressignificar, por meio
do cobrador, as figuras marginais que o cinema da América Latina tanto
cultuou.
O que se percebe a partir desta ressignificação é que na contempora-
neidade as figuras marginais surgem com projetos voltados aos seus in-
teresses pessoais e não às demandas de uma classe ou comunidade, tal
como tínhamos em um cinema mais épico ou dramático que expunha as
lutas coletivas dos heróis bandoleiros. Essa configuração dos interesses
das figuras marginais no cinema recente pode ser vista dentro daquilo que
Ismail Xavier (2000) chama de “pragmatismo do pobre”, ou seja, persona-
119
gens das classes populares que estão motivadas por seus próprios interes-
ses como a inserção no mercado de trabalho ou na sua sobrevivência. O
cobrador poderia ser pensado neste âmbito do pragmatismo.
O discurso do cobrador versa sobre a destruição para seu próprio be-
nefício ao passo em que o filme brinca com a questão do tempo e do
espaço e com aparente verdade ou ilusão dos acontecimentos em torno
da cobrança deste personagem. Seus manifestos fariam a mediação en-
tre o passado e o presente, entre os acontecimentos em diferentes es-
paços e as personagens envolvidas. Parte-se, então, da ideia de que tudo
que é mediado no filme gira em torno de um acerto de contas do cobra-
dor com o passado. Se o personagem cobra é porque se ressente e não
vislumbra um futuro que possa ser libertador. Ele parece estar preso às
reminiscências e por isso podemos também percebê-lo sob outra cate-
goria definida por Xavier (2000): a “figura do ressentimento”, que faz
referência às personagens que se fixam ao passado, com projetos de vin-
ganças, entre outras situações. Outro elemento que nos levaria a conside-
rá-lo sob essa categoria é o fato de ele ser um personagem que se distan-
cia do discurso utópico das lutas coletivas16. A raiva do protagonista se
transforma em melancolia, fúria e ressentimento preso à individualidade.
Por fim, podemos dizer que o cobrador e uma galeria de personagens
recentes estão presos ao individualismo pragmático, esvaziado da utopia
que existia em um cinema mais épico, no sentido grandioso do termo.

Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. “Genealogia e poder” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.

JAMESON, Fredric. Marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90” in Praga, nº 9. São Paulo: junho/2000.

Notas:

120
11. O período clássico-industrial na América Latina se estendeu durante as décadas de 1930 e
1940 até meados de 1950. Durante esse período, os grandes estúdios viabilizaram a composição
de fatos históricos. A Revolução Mexicana (1910-1917), a Revolução de Maio na Argentina (1910)
e o Cangaço (que ocorreu, aproximadamente, entre 1890 e 1940 no Brasil) são acontecimentos
bastante explorados nessas cinematografias.
12 . Na cinematografia clássica brasileira, a imagem do Cangaço e o mais conhecido “bandido
social” nacional, Lampião, líder deste movimento, estão representados no filme O cangaceiro
(Lima Barreto, 1953), que valoriza os códigos do melodrama que definiria a política do cinema
produzido pelos Estúdios Vera Cruz. A proposta desse filme contrasta com a resistência teatral de
Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), que se evidencia por sua linguagem épico-
-didática que caracterizaria a política idealizada por Glauber no Cinema Novo.

13. A representação do herói bandoleiro como uma figura política é explorada pelo cinema
mexicano em versões romântica e revolucionária, como propõem os filmes Enamorada (Emilio
Fernández, 1946) e Reed, México insurgente (Paul Leduc, 1973) para contarem suas histórias que
se passam em torno da Revolução Mexicana liderada por Pancho Villa.

14. Na história, na literatura e no cinema da Argentina, a figura do herói marginal que liderou
bandos e desbravou fronteiras é muito associada ao gaucho que interagiu na política do país. Ele
está presente desde o surgimento da literatura que recorre aos mitos fundadores, como explora a
obra La guerra gaucha (Leopoldo Lugones, 1905), que conta a história das guerrilhas dos gauchos
partidários e dos independentistas que originaram o ciclo da Revolução de Maio. No cinema, esta
obra foi adaptada com o mesmo título por Lucas Demare (1942). Nos filmes das décadas de 1960
e 1970, as “alegorias nacionais” aparecem associadas à outra política de produção do cinema.
Neste período de ditadura do General Onganía, os diretores Fernando Solanas e Octavio Getino,
junto com o grupo Cine Liberación, fizeram manifestos e realizaram a proposta de um “terceiro
cinema” ou Tercer Cine, que se legitimou com a produção do filme La hora de los hornos (1968),
com uma clara mensagem para o espectador aderir à guerrilha peronista. Mais tarde, Solanas di-
rigiu o filme Los hijos de Fierro (1972), que faz uma alusão à obra de Martín Fierro (1872), de José
Hernández, à qual ele se refere (sem a preocupação de reproduzi-la) para falar sobre a militância
sindical no início dos anos 1970.

15. No filme, esses manifestos são apresentados pela imprensa de distintos países.

16. Há certa ressonância entre a construção dessas personagens com o momento político da
sociedade, que Fredric Jameson (1995) considerou ser o período do fim das utopias, em que a nos-
talgia intelectual e a ascensão do pensamento pragmático são evidentes. Essa reflexão corrobora
esta análise sobre as maneiras pelas quais as representações da marginalidade influenciaram e

influenciam na formação da política e das estéticas no cinema.

121
XV. Violência e sociedade em La rabia
A raiva (La rabia, Albertina Carri,
Argentina/Holanda, 2008)

Mônica Brincalepe Campo

A raiva, substantivo feminino que intitula sucintamente o filme de Al-


bertina Carri, pode indicar tanto o sentimento, as emoções de insegurança,
frustração e ódio, quanto a doença infecciosa transmitida por vírus que
acomete animais mamíferos, incluindo, evidentemente, os seres humanos.
A trama desse filme se passa no campo, e o grau de violência nas relações
entre seus habitantes é alto. A diretora busca provocar intencionalmente o
incômodo no espectador ao submetê-lo a uma diversificada representação
da vivência conflituosa em sociedade. A violência nos é apresentada em
múltiplos aspectos de sua existência; no entanto, a obra não promove sua
estetização, apresentando-a realisticamente a fim de provocar o debate do
público espectador a partir do incômodo e do choque.
A violência permeia o cotidiano daqueles que convivem na sociedade
rural retratada – a nomear, inclusive, o lugar onde habitam os personagens
desse filme –, todos em um permanente processo de raiva. Ela aparece

122
das mais diversas maneiras: brota nos menores gestos, surge nos ataques
verbais e irrompe no confronto físico, nas vias de fato, expressa em tapas
e surras e, finalmente, no assassinato e morte. Todas as relações estão ar-
ticuladas sob a batuta da violência, seja entre adultos e crianças, homens
e mulheres, patrões e empregados (mesmo que os patrões nunca sejam
representados em tela) ou mesmo entre homens e animais. Há, no entanto,
diferenças, hierarquias: se entre os animais há a questão do ciclo da vida e
da cadeia alimentar de sobrevivência, entre os homens é o poder de sub-
missão de uns em relação a outros que impera neste trato mútuo insidioso.
A linguagem dos homens é a expressão de ódio a irradiar por todos os
poros, demonstrada nos olhares, nos gestos e na fala, tanto nos sussurros
quanto nos gritos (em palavras, frases ou mesmo no som gutural emitido
por um dos personagens) e, por fim, nos desenhos e nas animações inclu-
ídas em meio à trama.
Na interpretação feita pela pesquisadora Alejandra Josiowicz (2012),
o ponto de vista predominante na obra parte da observação de uma das
personagens, Nati, uma garota de comportamento autista. Para a autora, o
autismo da personagem é expresso de três maneiras principais – a primeira
é que ela não fala e no máximo emite gritos animalescos, sendo apelidada
como “a muda”. A segunda maneira é que ela se despe compulsiva e es-
pontaneamente em público. Por fim, desenha garranchos que são vistos
como monstruosos por aqueles que com ela convivem. Em meio à trama,
esses desenhos assumem o lugar da principal expressão das observações
de Nati, representando a subjetividade de sua personagem por meio de
animações que são inseridas no processo da narrativa fílmica. Alejandra
Josiowicz interpreta a personagem e o filme a partir da análise teórica de
gênero e dos estudos femininos, e é quem indica o autismo da personagem
como um sintoma consequente da violência que a cerca17.
Nati é a personagem que mais chama a atenção daqueles que se debru-
çaram sobre a análise do filme, carregando a síntese de toda a violência
que emana em tela. Seus pais são um casal em ruínas: Poldo e Ale vivem
em conflito, com a filha a justificar suas mútuas agressões e sempre a tes-

123
temunhar o fracasso conjugal.
Ale é amante de Pichón, vizinho e empregado hierarquicamente infe-
rior a Poldo, que estabelece uma relação sádica com a mulher. O sadoma-
soquismo do relacionamento de Ale e Pichón é filmado com requintes
de enquadramento e movimentação de câmera. Em setembro de 2013,
participando do IV Encontro Small Cinemas, na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), Albertina Carri afirmou que, nestas cenas, foram
tomadas como modelos as narrativas desenvolvidas em filmes pornôs.
Carri procurou o mesmo tipo de representação falocêntrica presente neste
gênero de produção. Ela pretendeu apropriar-se da expressão fílmica pre-
sente no discurso patriarcal para afirmar mais outra vertente de violência
– a que impõe um tipo de sexualidade masculina sobre a feminina.
Se entre Ale e Pichón ocorre o sexo como nos filmes pornográficos
presentes no mercado internacional, em que o homem submete a mulher
em busca de sua afirmação de poder, no personagem de Poldo, por sua
vez, o voyeurismo, a projeção de seu desejo estimulado por uma garota é a
sua representação de excelência. Ele vive em incontido desejo pela filha do
merceeiro de La rabia, Mercedes. Ela é uma jovem que incita a imaginação
de Poldo, sendo sua primeira aparição uma clara referência à personagem
de Lolita, pois está a esmaltar as unhas enquanto é observada na mercea-
ria. Ele a observa e se sente seduzido, a câmera acompanha a movimen-
tação de Mercedes, que parece perceber o efêmero poder que possui; ela
percorre a mercearia enquanto homens imóveis e aparentemente distraí-
dos a seguem com os olhos.
Entre as relações existentes no mundo adulto ressaltam-se a violência,
o sexo e o desejo, mas não há nada referente ao afeto. O arremedo de uma
relação de cuidado é o que se estabelece entre Poldo, o pai, e Nati, sua fi-
lha, mas mesmo este é distorcido. Poldo conta à filha a história do tio-avô
de Ale, com a intenção de ser “educativo”, para fazê-la superar a nudez
compulsiva, os gritos, a mudez. Imediatamente após ouvir o conto, Nati
inicia um desenho e, a partir deste, Carri insere uma animação. Serão exi-
bidas ao longo do filme cinco animações; são o momento da subjetividade

124
da personagem, a ilustrar o imaginário a partir do qual são expressas as
sensações de Nati, e parecem atuar como que para explicar a ela o mundo
ao seu redor. Estas imagens são o escape possível e são também sua mani-
festação da vivência nesse cotidiano violento.
Entretanto, cabe ressaltar que se delas emanam, em um primeiro mo-
mento, elementos característicos do lúdico, ou seja, uma manifestação que
poderia colaborar e expressar a possibilidade de escape da personagem
do mundo violento que a cerca (como afirmou Carri no debate do filme),
por outro lado, tais imagens também podem trazer outra interpretação a
nuançar a ludicidade. Cynthia Tompkins (2012) analisou a primeira destas
animações e a leu como referente ao gênero cinematográfico de terror;
assim, as animações transmitiriam a sensação de perigo e medo da perso-
nagem, ou seja, sentimentos mais densos e conturbados.
Nati convive com Ladeado, um adolescente filho de Pichón, cujos dias
seguem no cumprimento do trabalho que seria do pai. Na fazenda, Ladea-
do arruma a cerca, limpa, lava e anda para todo lado acompanhado de seus
cães. As tarefas deveriam ser desempenhadas por um adulto, mas são rea-
lizadas pela criança que, além de não estudar, perde sua infância na prática
da exploração de mão-de-obra infantil, algo constante especialmente no
campo. Muitas das sequências são feitas em travellings longos ou em planos
abertos. Ao acompanhar as tarefas que Ladeado realiza, o espectador tam-
bém percebe a vastidão e a solidão desse lugar, com a observação sobre
os animais e o campo, misturando os personagens a essa paisagem e quase
os perdendo de vista.
Logo nas primeiras sequências do filme vemos Ladeado bater com um
saco de estopa em uma árvore para, em seguida, jogá-lo na água (prova-
velmente um rio). Percebemos que nesse saco havia seres vivos e depois
concluímos que eram crias de gambá. Ladeado capturou um gambá e o
nomeou por Luisa, pretendendo domesticá-lo. Guarda o animal em uma
gaiola escondida de todos os demais adultos, e tem em Nati sua compa-
nheira neste segredo.

125
Na trama, os animais são os primeiros feridos e mortos: galinhas, ove-
lhas, um porco, cachorro. Todos são assassinados e correspondem ao viver
no campo, como deixa claro o letreiro do filme logo no início. Todos os
animais no filme morreram como seria a rotina de animais campestres,
assim, segue-se o cotidiano de violência; a morte de um porco para ser ser-
vido em um churrasco é filmada com requintes de documentário. Como a
própria Albertina Carri informou no debate já citado, ela pretendeu, nesta
sequência (que costuma incomodar sobremaneira a plateia urbana que as-
siste ao filme), trazer a experiência da vivência no campo e do cotidiano
cru de convívio com a morte.
O porco é pendurado de cabeça para baixo, é sangrado, desentranhado,
lavado, tudo em uma grande sequência filmada em observação frontal e
contínua. A câmera foca em plano aberto todo o processo descrito, em en-
quadramento fixo, para depois acompanhar de maneira editada, mas com
preocupação minuciosa, o momento em que ele é despelado, esquartejado
e finalmente assado em brasa para ser servido em churrasco. Este tipo de
narrativa opta pela confrontação do espectador com a ação crua da violên-
cia: é o espetáculo direto, mas não é uma estética da violência voyeurística a
que estamos habituados no cinema mainstream. O prolongamento da sequ-
ência elaborada em tomadas de enquadramento fixo e com poucos cortes
produz por efeito o distanciamento do espectador, que depois de certo
tempo se percebe em reflexão sobre o que está ocorrendo em tela. Assim,
não há a vertigem de uma sequência editada a anestesiar a recepção, em
ações entrecortadas que surgem do nada para suprir de picos de adrenalina
um espectador consumidor que é fisgado pelo sensível.
Apesar desta violência explícita em tela, para Carri, o momento de
maior violência representada no filme é o da surra que Pichón ministra em
seu filho Ladeado. Esta surra será principalmente ouvida, e a fotografia da
cena irá recortar a imagem da mão de Pichón segurando o sapato e abai-
xando o braço para fora de campo. A tomada assume o ponto de vista de
Nati, que, escondida, observa o que ocorre – portanto, em câmera subje-
tiva. Os gritos de Ladeado irão inundar o campo sonoro enquanto Pichón

126
berra impropérios e reprimendas ao filho. Carri afirma ter presenciado
várias dessas surras e reprimendas em sua vida no campo quando criança:
a violência e a exploração de adultos sobre as crianças é parte intrínseca da
vida cotidiana neste ambiente. Nessa sequência, não há o espetáculo direto
da cena de violência, mas também não é feita a opção pelo testemunho de
Nati, com cena do contracampo e a reação da menina ao que ocorre. O
enquadramento parcial da ação carrega a angústia de sua apreensão, pois
nem dá possibilidade de se visualizar o que ocorre. Tampouco sentimos o
alívio da ação com a apresentação do contracampo de Nati que, sabemos,
ouve impotente os gritos do amigo sem que tenhamos sua recepção e sem
que sua imagem possa nos confortar. Sentimos sua angústia ao observar-
mos o mesmo que ela estaria contemplando. A impotência do espectador
é o motivo principal desta cena, e o gênero cinematográfico do terror é o
seu discurso de base.
Logo no início do filme, em uma de suas primeiras sequências, assis-
timos Ale e Pichón fazendo sexo. Neste momento, Nati está escondida e
escuta a relação e os sons emitidos pela mãe. Esses sons irão povoar seu
imaginário e alimentarão as animações inseridas ao longo do filme. Para a
menina que vive imersa nesta relação cotidiana de violências, os gritos e a
respiração arfante da mãe são os sinais claros de mais violência. Portanto,
o campo sonoro do filme é fundamental para construir a trama. Os silên-
cios do campo, os sons dos animais e da natureza, a ausência de conversa-
ção e de capacidade de argumentação entre os adultos, os gritos (de quem
fala e também da “muda”).
No final do filme, Nati e Ladeado presenciam a relação sexual de Ale
e Pichón – sequência que foi alvo de grande polêmica em todas as apre-
sentações do filme. Carri, antes mesmo de iniciar seu debate no IV Small
Cinemas, afirmou salientando que todas as cenas de sexo, como também
este flagrante das crianças, foram encenação e domínio da técnica de fil-
magem, portanto, nada foi real ou explícito. A ideia, de fato, foi trazer a
sensação de realidade e transparência pedida para a ficção. A relação entre
o sexo elaborado no cinema pornográfico e a submissão de Ale ao poder

127
de Pichón expressa o olhar da diretora sobre a sociedade patriarcal, per-
cebida como fracassada e corroída. Assim, a utilização de sequências em
que a linguagem documental foi a principal referência produziu, no filme,
o embaralhamento da tênue fronteira a definir o que é ficção e o que é do-
cumentário. Essas mesmas sequências serviram para a diretora expressar
sua crítica à sociedade patriarcal e à relação que esta teria com as práticas
de violência. Nesse sentido, fica mais claro o objetivo de buscar no efeito
da montagem do filme a contraposição entre as filmagens documentais
das mortes dos animais (gambás e porco), procurando a afirmação de
um discurso de veracidade, de real, para, em seguida, confrontá-las com
as cenas construídas com maestria técnica de filmagem e edição, como as
sequências envolvendo a surra em Ladeado e o sexo entre Ale e Pichón.
Finalmente, a partir deste clima de violência representada, ocorre a
morte dos homens ao final da trama. Tanto Poldo quanto Pichón não são
mostrados sendo assassinados, mas ouvimos os tiros. A câmera fica fora
da casa quando Poldo a invade para atirar em Pichón, entretanto, em outra
sequência, a consequência do tiro de Ladeado em Pichón é vista no en-
quadramento do rosto do primeiro, caído e sorrindo. O efeito documental
e explícito realizado ao longo do filme contribui para a interpretação da
morte de Pichón e, ainda, para a suposição de que talvez Ladeado também
tenha se ferido gravemente (caso também não tenha morrido).
Para além deste mundo cru, exposto na ficção de Carri, as animações
são a expressão da imaginação de Nati. Elas foram realizadas em digital
e assumem características sofisticadas, com a utilização de poucas cores
(predominando os tons de cinza ao preto, com lances de verde e verme-
lho) em expressões abstratas e indicações ao figurativo, enquanto a banda
sonora assume sons de grunhidos e ruídos em geral. Cynthia Tompkins
analisou a primeira das animações inseridas na trama, que considera a mais
complexa de todas, utilizando os conceitos de intertextualidade e inter-
medialidade, além de considerar as implicações cognitivas advindas da in-
serção em meio ao filme. Tompkins procurou compreender a narrativa
fílmica construída por Carri e suas implicações em meio à trama e, nessa

128
análise, atesta o caráter de gênero de terror do filmete.
No debate sobre La rabia, Albertina Carri afirmou acreditar que, se há
a possibilidade de esperança de transformar esta realidade, ela se encontra
na arte e na infância. Talvez isso seja possível – no entanto, a explicação
otimista da autora pode ter tido fim retórico, convidando o público a ofe-
recer uma resposta propositiva para o fim da violência. No que concerne
à obra, o que predomina é o tom sisudo do retrato da opressão mais pri-
mária de nossas existências.

Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte – um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

JOSIOWICZ, Alejandra. “La rabia: Violence, Gender and Childhood in the Argentinean Pampas” in
Thinking Gender Papers, UCLA Center for the Study of Women, UCLA, 18 abr. 2012. Disponível
em: http://escholarship.org/uc/item/130070f9.

RIERA, Elena López. Albertina Carri, El cine y la furia. Valência: Ediciones de la Filmoteca, 2009.

TOMPKINS, Cynthia Margarita. “Cuestiones metodológicas resultantes del montaje ejemplificadas


mediante la representación de procesos psíquicos en La rabia (2008) de Albertina Carri” in Estu-
dios sobre las Culturas Contemporáneas, número XVIII. Colima: Universidad de Colima/México,
2012. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=31624694010.

Nota: 
17. Creio que esta interpretação está correta, entretanto, tendo a fazer a leitura desta mudez de
Nati desde uma reflexão filosófica proposta por Giorgio Agamben sobre a questão da linguagem
e da morte. Sigo o percurso do filósofo sobre a discussão estabelecida desde Hegel até Heidegger
questionando o ser e a morte, a linguagem e a ausência dela, mas este é um tema que pretendo
explorar em outro artigo e em outro momento.

129
XVI. Dor elegante: Itamar Assumpção
e o pertencimento
Daquele instante em diante
(Rogério Velloso, Brasil, 2012)

Mona Perlingeiro

“Vamos tomar um café?”. Com essa pergunta somos convidados a en-


trar no universo de Itamar Assumpção. Em um estúdio, com a ajuda de
arquivos armazenados na memória do computador, fitas cassetes guarda-
das desde que foram gravadas, fotografias, recortes de jornal e trechos de
composições cantadas por companheiros de vida e obra, começa o docu-
mentário do diretor Rogério Velloso sobre o músico paulista. O filme, que
surge como um projeto de cinema experimental para homenagear Itamar
Assumpção, não poderia resgatar sua obra sem se envolver com a história
pessoal do artista que foi além de todas as barreiras impostas pela indústria
fonográfica. Quem era, de fato, “o maldito”, ou seria melhor dizer, “Nego
Dito”?
Itamar Assumpção nasceu em 1949 na cidade de Tietê, interior de São

130
Paulo. Passou a infância no Paraná e se instalou na capital paulista em
1972. Com experiência no teatro e sob a influência de Arrigo Barnabé,
construiu obras musicais com uma identidade profundamente paulistana,
mas que não poderiam – e nem podem – ser entendidas como produções
regionais, nem como composições apenas para intelectuais.
O documentário apresenta a carreira de Itamar desde sua participação
em grupos de teatro em Londrina, onde já dava indícios dos caminhos
que sua criação artística tomaria. Essa experiência teatral seria a base para
a fundação de um movimento que estava em sua fase embrionária, a Van-
guarda Paulista.
No longa, relatos de quem conheceu e trabalhou com Itamar são com-
binados a registros de apresentações realizadas no auge da Vanguarda Pau-
lista, movimento cultural brasileiro que surgiu na cidade de São Paulo em
1979 e vigorou até meados da década de 1980, tendo como protagonista
uma geração que vivia a redemocratização do Brasil. Jornalista e músico
do Isca de Polícia, Luiz Chagas conta no filme que “em rápidas palavras
pode-se definir Vanguarda Paulista como uma série de ocorrências na área
cultural, gestadas e consumidas na virada dos anos 1980, com o fim do
regime militar, e concentradas em volta do teatro Lira Paulistana”.
A Vanguarda Paulista fazia suas apresentações no Teatro Lira Paulista-
na, localizado na Rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, palco de
um dos movimentos experimentais mais importantes da história da mú-
sica popular brasileira, deixando o público que o frequentava arrebatado
pela experiência musical, visual e performática de seus artistas. Os relatos
sobre o Lira Paulistana também podem ser encontrados no documentário
Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista (2012), dirigido por Riba de Castro,
um de seus criadores, que conviveu com Itamar e com outras figuras do
movimento, como Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Premeditando o Breque,
Tetê Espíndola e Ná Ozetti.
O resultado das apresentações de Itamar no Teatro Lira e a estreia de
seu primeiro disco, Beleleu, Leleu, Eu (1980), lançado pelo selo independen-

131
te Lira Paulistana, marcaram as primeiras críticas afirmando que Itamar
tinha uma tendência musical classificada como “marginal”. As afirmações
não eram algo de que Itamar se orgulhava ou apreciava. Ele era um grande
cancionista, além de ter uma musicalidade marcada por um “suingue da
pausa”, como define Zé Natálio, baixista gaúcho e membro do Trio Pre-
toBrás: “a música de Itamar soa complicada porque vem em camadas”.
Simplificar e colocar o artista dentro de uma classificação que basicamente
servia para excluí-lo representa algo que, com o passar dos anos, iria atin-
gi-lo profundamente. No início de sua carreira, Itamar sofreu diretamente
o racismo existente no Brasil. Assim como aconteceu com o sambista
João da Baiana anos antes, preso em flagrante por estar com um pandeiro,
Itamar também foi detido e passou cinco dias na cadeia, porque suposta-
mente não teria condições de portar instrumentos musicais. Afinal, ele era
um homem negro. O episódio o marcou pelo resto da vida, constituindo
uma de suas frustrações: o problema não é o fato de ser negro, mas ter
sido colocado nesse lugar de delinquente simplesmente em razão da cor
de sua pele, ter sido um alvo fácil para a polícia e objeto permanente da
desconfiança da sociedade. Por que ele, homem, negro, artista e pai, tinha
de sofrer pelo que era? Mesmo não participando do Movimento Negro – e
inclusive “rejeitando” esse tipo de organização – individualmente Itamar
fazia seus manifestos. Sua existência era a linguagem da música popular e
negra. O nome de sua banda, Isca de Polícia, não foi escolhido por acaso:
era essa a sua realidade.
O documentário segue em clima despretensioso, claramente em bus-
ca da intimidade de Itamar Assumpção, intercalando imagens de arquivo
que se costuram às diversas declarações de artistas, amigos e companhei-
ros de vida de Itamar. Ao longo do filme, tem-se a impressão de que
até mesmo seus próximos redescobrem o amigo. Nenhuma ideia parece
nos ser imposta, as falas vão se encontrando e construindo o homem
que, infelizmente, por toda sua verdade escancarada, talvez só pudesse
ser reconhecido postumamente. Fica clara a confirmação de que o novo
não tem vez enquanto está acontecendo, o novo só é aceitável depois que

132
passa; antes disso causa mal-estar, e Itamar incomodava, não se repetia e
era imprevisível.
Também nos chama a atenção o visual extravagante e sua coleção ousa-
da de óculos de todos os tipos, construindo a imagem desse vanguardista
tremendamente sarcástico, preocupado com sua criação artística e que,
consequentemente, fez o que quis. Talvez a “autossabotagem” gerada por
só fazer o que lhe dava na cabeça – inclusive negando trabalhos e apre-
sentações – tenha sido o preço de sua liberdade. Queriam que ele cantasse
samba, possivelmente por ser o que se espera de um negro brasileiro, e ele
não cantou. Somente anos depois, quando mergulhou na obra de Ataulfo
Alves, chegou a gravar um disco e fazer apresentações baseadas nas obras
do sambista. Apesar de gostar de samba e de ter nascido com ele, ao longo
de sua vida foi influenciado por artistas de diversos ritmos musicais, de
Miles Davis a Roberto Carlos, passando por Bob Marley e Michael Jack-
son. Sendo assim, nem ele mesmo poderia se limitar a um estereótipo. Ao
longo do documentário vamos compreendendo porque, de 1980 até 2004,
de seus dez discos lançados, nove foram de forma independente. Ele não
facilitava para a indústria musical, sua música exigia atenção.
Para o artista, uma das piores coisas que existia era a mesmice da mú-
sica (mainstream) brasileira. Itamar questionava o porquê de um número
reduzido de artistas serem exaltados enquanto tantos outros permaneciam
excluídos. Talvez o ápice da carreira de Itamar tenha sido o reconhecimen-
to que alcançou na Alemanha no final da década de 1980, que o fez pensar
seriamente em sair do país. Eis aí o que deve ser questionado: até quando
será necessário haver um reconhecimento de fora para aceitar o que é feito
aqui dentro? Mas, no caso de Itamar, essa boa fase ficou na Alemanha e
não se concretizou com tamanho êxito em seu próprio país.
A falta de reconhecimento também é assunto do longa. Seria ele um
artista maldito ou teria sido “amaldiçoado”? A grande maioria de seus
discos teve uma produção ruim apesar da alta qualidade musical, e isso se
deve, ao menos parcialmente, às dificuldades de se gravar um disco na era
pré-CD. Itamar esteve exatamente nesse lugar de dificuldade de gravação,

133
circulação e, principalmente, não queria fazer o que esperavam dele. Os
relatos, apesar da diversidade de experiências, vão apontando para uma
conclusão sobre o comportamento de Itamar e as decisões tomadas por
ele, como se fosse possível estabelecer uma espécie de diálogo direto, no
presente. Por meio dessa conversa, podemos tentar entender porque Ita-
mar dificilmente seria reconhecido vivo.
As participações de Wilson Souto, Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Alice
Ruiz e Zena, sua companheira por mais de trinta anos, além das filhas
Anelis e Serena Assumpção, fazem dos depoimentos um grande momen-
to de encontro do espectador com a alma de Itamar. O que o diretor nos
apresenta vai além do artista, mostra a intimidade do homem e a ligação
intrínseca da vida dele a tudo que fez pela música, através de seus shows
e performances.
Na sequência final do documentário, a vida pessoal de Itamar é
mais explorada, assim como sua relação com a cidade de São Paulo,
sua casa, as plantas, os pássaros, a importância da presença feminina
em sua vida pessoal e em sua obra. As cenas são uma espécie de an-
títese das apresentações musicais mostradas no início do documen-
tário; aquele Itamar sem medo, corajoso e irreverente pouco a pouco
vai dando lugar a um homem sensível, caseiro. No entanto, essa mu-
dança não deve ser interpretada como a anulação de um “eu” para
o nascimento de um novo, mas como a transição entre um momen-
to e outro, movimento feito com incrível sensibilidade pelo diretor.
Saímos do êxtase de saber quem era o artista, nos frustramos com a falta
de (nosso) reconhecimento e a sequência de imagens passa a despi-lo
ainda mais, destacando o homem que se desgastou e começou a deixar
este mundo. Itamar morreu de câncer no intestino em 2003, após quatro
anos lutando contra a doença, mas não ganhou nenhum programa em
sua homenagem na televisão. Itamar, e o seu “eu” Nego Dito, ganharam
alguns artigos de jornal após pouco mais de duas décadas de carreira.
Ele era dor e humor, encarou a doença que o definhou e, sempre muito
irreverente, fez seu último show usando um cocar, sentado e sentindo

134
muitas dores. Talvez o documentário esteja além da ideia de homena-
gem, mas nos alerta sobre a nossa falta de coragem para encarar o novo.

Referências bibliográficas:

CHAGAS, Luiz e TARANTINO, Mônica. PretoBrás: Por que que eu não pensei nisso antes? – Volu-
mes I e II. São Paulo: Ediouro, 2006.

DINIZ, André. Almanaque do samba: A história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

135
XVII. Risco e engajamento no documentário
O veneno está na mesa
O veneno está na mesa
(Silvio Tendler, Brasil, 2011)

Carla Daniela Rabelo Rodrigues

Introdução
O documentário O veneno está na mesa é um filme engajado que remete
a discussões sociais contemporâneas urgentes devido à gravidade do tema
(agrotóxicos), silenciado por mecanismos de vigilância e controle econô-
mico. Esses mecanismos operam no campo do privado, culpabilizando
indivíduos pelos seus atos e usos e, portanto, negligenciando o que deveria
de fato ser acionado: a ação política de âmbito público, coletivo. Antes de
adentrar na discussão sobre o filme, cabe primeiramente uma análise con-
juntural sobre o objeto ao qual o veterano diretor Silvio Tendler dedica sua
obra: os agrotóxicos e seus riscos sociais.
A produção agrícola está cada vez mais subordinada à economia de
mercado cujo motor é acionado pelo avanço tecnológico resultando em

136
aumento e diversificação da produção. Por outro lado, surgem novos da-
nos à saúde e à segurança daqueles que utilizam tais tecnologias. Há uma
crescente produtividade proporcionada pela difusão de tecnologias no
campo. Contudo, o agronegócio resulta em imensos desafios à saúde pú-
blica no meio rural, sobretudo no que concerne ao impacto ambiental e à
saúde do homem do campo:

Estima-se que dois terços da população do país estão expos-


tos, em diferentes níveis, aos efeitos nocivos desses agentes
químicos, seja em função do consumo de alimentos conta-
minados, do uso de agrotóxicos para o combate de veto-
res de doenças infectocontagiosas ou pela atividade laboral.
Mas nenhum grupo populacional brasileiro é tão vulnerável
a esses produtos quanto os trabalhadores rurais. Entender a
dimensão do problema para este grupo – com vistas à ela-
boração de estratégias de intervenção/mitigadoras – é um
dos grandes desafios da parcela do setor saúde voltada à as-
sistência e à vigilância das populações rurais (Lucca, Peres e
Rozemberg, 2005).

A escolha por um modelo de agronegócio cuja ação principal recruta


a indústria lucrativa dos agrotóxicos representa uma faceta implacável de
nossa era, a dos riscos sociais. No legado do sociólogo alemão Ulrich
Beck, falecido em janeiro de 2015, destaca-se o livro Risk society que teoriza
sobre a constituição de uma Sociedade de Risco (Beck, 1992). Seu diag-
nóstico aponta resquícios e degradações ambientais e sociais herdados da
Revolução Industrial, do avanço tecnológico e das decisões político-eco-
nômicas que esgotam os recursos naturais, criando uma situação de efei-
tos aos quais temos que conviver como a poluição, escassez, insegurança,
ansiedade, entre outros. A percepção negativa de Risco passa a dominar as
instituições sociais, nossas vidas e nosso cotidiano como uma nova cultura

137
com seus costumes paliativos para tentativas do “bem-estar social” dentro
de um modelo econômico predatório.
Nesse sentido, os líderes à frente das tomadas de decisões econômicas
globais não planejaram/anteciparam os efeitos gerais – a toda e qualquer
vida na Terra – obtidos no esquema de produção e consumo atuais. Um
dentre tantos exemplos é o incentivo à aquisição de automóveis novos e
sua automática conversão em gases tóxicos que circulam poluindo, cada
vez mais, o ar que respiramos, além do acúmulo de veículos nas ruas e
uma implacável obsolescência programada de produtos como esses. Ou-
tro caso grave seriam os agrotóxicos adotados persuasivamente como re-
cursos de produção na lavoura para garantir uma colheita mais segura. Os
pesticidas em geral são, por natureza, toxinas perigosas aos seres vivos,
mas servem aos interesses quantitativos da produção industrial justificada
pela ideia de garantia/segurança do alimento na mesa. E foi esse assunto
que inspirou o documentário O veneno está na mesa.

O veneno está na mesa e seu engajamento


Conhecido como o “documentarista dos vencidos” e “cineasta dos so-
nhos interrompidos”, Silvio Tendler é uma referência na cinematografia
brasileira, com cerca de trinta documentários realizados. Na sua história
do engajamento político libertário, buscou trabalhar com temas da memó-
ria e história nacionais associados a personagens públicos e conscientiza-
ção sobre autoritarismo, neoliberalismo, entre outros.
Seu filme O veneno está na mesa, de 2011, produto da campanha Agrotó-
xico Mata – Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, é
apoiado por uma série de movimentos sociais.
No início do filme, Eduardo Galeano – falecido em 13 de abril de
2015 – nos explica que, desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de
agrotóxicos no mundo. Imagens de arquivo de algumas das principais em-
presas brasileiras de comunicação, como a Rede Globo, denunciando os
efeitos nocivos dos venenos, atestam que o problema é tão sério que mui-
138
tas vezes foge do controle que os conglomerados tentam exercer sobre a
mídia. Todavia, essas notícias não são suficientes diante do domínio da
cena mundial da informação hegemônica e neoliberal, do marketing ver-
de e do “ecobranqueamento” (greenwashing). Dada essa espécie de censura
neoliberal, Tendler adota a internet como lugar alternativo de distribuição
para concorrer com o poder da propaganda ideológica da indústria do
agrotóxico e da grande mídia. Acaba atingindo gratuitamente uma “pulve-
rização” gigantesca nas mídias sociais.
O motivo dessa disseminação está associado à carência de informações
mais plurais, com outra versão dos fatos ou simpáticas à isenção editorial.
Há um controle da informação exercido pelos empresários detentores de
concessão pública para atuar na mídia brasileira. Os meios de comunica-
ção no Brasil não abarcam minimamente a pluralidade de discursos sociais
e políticos vigentes. Com a internet, grupos e indivíduos iniciaram ações
de ocupação discursiva midiática no intuito de conquistar lugares retóricos
públicos na comunicação digital a fim de trazer outros olhares e leituras
sobre temas marcadamente homogêneos segundo interesses privados.
É nessa vertente de evidenciar o não dito que Tendler trabalha. Com
dados específicos sobre o consumo de agrotóxicos no Brasil, o filme des-
taca os riscos à saúde pública e aos trabalhadores da lavoura devido à
manipulação do veneno, além de alertar que os brasileiros estão se ali-
mentando mal e perigosamente por conta do agronegócio. Com o objeti-
vo de conscientizar e mobilizar a população, posiciona-se contra o poder
de corporações transnacionais como a Monsanto, Syngenta, Bayer, Dow,
DuPont, entre outras. Vídeos, reportagens televisivas, fotografias e entre-
vistas servem para validar a tese de que os agrotóxicos, que se expandiram
em nome da produtividade progressista, são contra o pequeno produtor e
a própria ideia de sustentabilidade.
Eduardo Galeano aparece como autoridade intelectual de denúncia e
confere credibilidade ao filme por seu caráter questionador e crítico. Ele
explica que a história da América Latina foi marcada pela usurpação dos
recursos naturais e que a consciência de preservação desses recursos não

139
é tão veloz quanto a ação dos ladrões, que continuam atuando ainda com
mais rapidez. O divórcio entre desenvolvimento e direitos humanos, ou
da natureza, se manifesta no fato de que a permissão desses elementos
químicos nocivos nos países em desenvolvimento sustenta-se num critério
meramente economicista.
Venenos proibidos nos EUA e na China são usados no Brasil. Foram
retirados do mercado nos dois países justamente porque seus componen-
tes causam problemas no sistema nervoso, perda de memória em crianças,
entre outros. Tendler desenha uma história da tecnologia da revolução
verde ao vinculá-la à indústria da guerra. As imagens de arquivo são im-
pactantes: corpos esqueléticos jogados numa vala de um campo de con-
centração nazista denuncia a participação da Bayer como fornecedora do
gás que matou milhões de judeus e alemães; crianças vietnamitas deficien-
tes, vítimas do uso do gás tóxico na Guerra do Vietnã, que foi produzido
pela Monsanto. É assustador o poder que essas grandes indústrias têm
nas decisões políticas e na manipulação das informações. Ademais, há um
robusto arsenal de comunicação ideológica preparado para convencer o
homem do campo, agricultores e empresários a adotarem os agrotóxicos
– chamados muitas vezes de “remédio” – como forma de garantia da co-
lheita. Para isso e para estimular as vendas, essa poderosa indústria realiza
eventos de apresentação de novos produtos onde é comum ser distribuído
material de propaganda sobre o novo produto e outros da empresa. Além
disso, distribui folders, cartazes, cartilhas e demais materiais ilustrativos
com caráter persuasivo para este público, “no qual são apresentadas as
características de determinado produto, além das vantagens do seu uso”
(Peres e Rozemberg, 2003: 339).
Planos de plantações e entrevistas com agricultores, especialistas e
jornalistas reafirmam a nocividade dos agrotóxicos para a saúde humana
e para o solo. Os próprios trabalhadores do campo, os agricultores, são
contaminados, ficam doentes e ainda costumam levar a culpa pelo uso
incorreto como parte do discurso do comércio e da indústria que se exime
de qualquer responsabilidade. Assim, o agricultor que foi praticamente

140
obrigado a adotar o uso deste produto, “não recebeu treinamento/infor-
mação adequada sobre o manejo e agora é culpado no caso de um eventual
acidente” (Peres e Rozemberg, 2003: 344). Saberes locais e especializados
são ignorados pelo governo; e as instituições econômicas trazem à tona
essa pauta silenciada – por exemplo, os bancos não emprestam se os agri-
cultores não usarem sementes transgênicas e agrotóxicos.
A linguagem fílmica adotada está povoada por dados orquestrados para
impressionar, não só em decorrência da desinformação geral sobre a quan-
tidade de agrotóxicos contida nos alimentos consumidos pelos brasileiros,
como também pela ausência de divulgação dos impactos desses produtos
na saúde humana. Além do mais, a revolução verde do pós-guerra, que
colocou na cena mundial as indústrias dos agrotóxicos e dos transgênicos,
prejudicou a agricultura tradicional, instaurando um modelo que ameaça a
biodiversidade, a fertilidade do solo, contamina os mananciais, as pessoas
e o ar. Como apenas as transnacionais são ouvidas neste assunto, o filme
se faz porta voz daqueles que não tem vez no cenário político. É um filme
denúncia.
O documentário de Tendler é engajado no mundo (Comolli, 2008) e
reconstitui indagações primordiais sobre o documentário, cujo exercício é
trabalhado pelo teórico Bill Nichols:

[...] quem somos nós, que podemos vir a saber alguma coi-
sa? Que tipo de conhecimento é esse que os documentários
proporcionam? Que uso nós, e os outros, deveríamos fazer
do conhecimento que o documentário proporciona? O que
sabemos e a maneira pela qual passamos a acreditar no que
sabemos são assuntos de importância social. Poder e res-
ponsabilidade residem no conhecimento; o uso que fazemos
do que aprendemos vai além de nosso envolvimento com o
documentário como tal, estendendo-se até o engajamento
no mundo histórico representado nesses filmes. Nosso en-

141
gajamento neste mundo é a base vital para a experiência e o
desafio do documentário (Nichols, 2005:71).

O veneno está na mesa proporciona conhecimentos de um período históri-


co contemporâneo. Para isso, utiliza das estratégias narrativas tradicionais
que, por meio da imagem e da voz em terceira pessoa, exploram emo-
ções, tais como o medo, a indignação e a comiseração. Entretanto, o filme
cumpre bem o papel de informar e alertar sobre um inimigo invisível que
está diariamente nas mesas sem o conhecimento (e consentimento) dos
brasileiros. Outra questão que se levanta é sobre como a revolução verde
supostamente trouxe comida barata para a população. Esta é a posição de
uma senadora que, num depoimento ao Senado, acusa um diretor da An-
visa de irresponsável por alertar, “sem provas”, sobre os perigos que esse
tipo de produção traz para a população.
O trabalho de Tendler propõe uma revisão desse modelo de agronegó-
cio, esforçando-se em desfazer a desinformação e buscando conscientizar
sobre o risco que a população não sabe que corre. São cerca de setenta
entrevistas, em sua maioria com agricultores brasileiros. Quem melhor do
que aqueles que lidam com os riscos do envenenamento e que sofrem seus
efeitos implacáveis para nos falar dessa realidade invisível e apavorante?
Nesse sentido, o documentário dá voz aos silenciados.
A abordagem argumentativa deste documentário denota seu modo
expositivo (Nichols, 2005) – também conhecido como clássico por não
haver prioridade estética ou subjetiva, mas sim objetividade e clareza em
narrar os fatos de modo crível, assertivo, persuasivo, argumentativo, dando
continuidade à narrativa. Ademais, o que é dito está didaticamente apre-
sentado numa lógica textual, facilitando a difusão e a recepção do público
neste filme que explora elementos de noticiários de TV, comentários em
voz over e imagens confirmadoras/repetidoras da argumentação. A voz do
filme é uma voz ativista, com ponto de vista declarado; é Tendler usando
a técnica para expressar sua visão de mundo particular.
A obra revela os riscos e o sistema de poder que estão por trás do

142
agronegócio. Assume-se como panfleto de causas sociais e políticas que
se posicionam contra o avanço voraz das indústrias do agrotóxico e do
transgênico, apoiadas por políticos e empresários de diversos setores. O
documentário enquanto potência pode tanto ser instrumental quanto poé-
tico. Está aberto e engajado aos temas do mundo sob a ótica ou “verdade”
de quem o dirige ou roteiriza. Embora não seja e nem se pretenda experi-
mental e inovador, O veneno está na mesa é um filme ativista, de mobilização
social, cujo engajamento contundente é cada vez mais raro na era da tec-
nologia, da produção, do consumo e do risco.

Referências bibliográficas:

BECK, Ulrich. Risk society: Towards a new modernity. Londres: Sage, 1992.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida, Cinema, televisão, ficção, documentário.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

LUCCA, Sérgio Roberto de; PERES, Frederico e ROZEMBERG, Brani. Percepção de riscos no
trabalho rural em uma região agrícola do Estado do Rio de Janeiro, Brasil: agrotóxicos, saúde e
ambiente. Cad. Saúde Pública, volume 21, no 6. Rio de Janeiro: dezembro/2005. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005000600033. Acesso em 15 de abril de 2014.

PERES, Frederico e ROZEMBERG, Brani. “É veneno ou é remédio? Os desafios da comunicação


rural sobre agrotóxicos” in MOREIRA, Josino Costa e PERES, Frederico (orgs). É veneno ou é remé-
dio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.

143
XVIII. O mito como sobrevivência
A memória que me contam
(Lúcia Murat, Argentina/Brasil, 2012)

Luís Fernando Beloto Cabral

Em uma das primeiras cenas de A memória que me contam, de Lúcia Mu-


rat, a “personagem” Irene (Irene Ravache) está dirigindo sob uma pesada
chuva. O aguaceiro embaça agressivamente o vidro do carro, dissolvendo
a paisagem exterior a ponto de transformá-la em um conjunto luminoso
de formas e cores indefinidas. Irene acaba aprisionada pela chuva; deve pa-
rar o veículo até o aguaceiro passar. Ela não consegue enxergar: o olhar da
motorista, necessitando de uma imagem concreta (nesse caso, a imagem
da estrada), depara-se apenas com o abstrato. A chuva intercepta o cam-
po de visão e o olhar de Irene torna-se desencontrado. Temos um desejo
frustrado de visão, o anseio por uma imagem que não se concretiza. De
certa forma, este será o drama sofrido não apenas pelas personagens da
narrativa, mas pelos próprios espectadores do longa-metragem.
Numa das cenas posteriores, as estruturas da ponte rodoviária mais as

144
obras de construção urbana impedem uma livre visão da periferia que se
estende ao fundo – e Eduardo, que contempla essa paisagem confusa pelo
vidro do carro, nos é apresentado, momentos antes, pelo reflexo difuso
do vidro do veículo que simultaneamente vislumbra o complexo cenário
urbano a sua volta. Da mesma forma, as marcas da janela do hospital
dificultam a contemplação objetiva de uma Ana já inconsciente e à beira
da morte. Mesmo a câmera se nega a lançar mão desse olhar objetivo, ao
mostrar, via primeiríssimos planos, apenas algumas partes do corpo fraco
e envelhecido da veterana. Mais à frente, no jantar entre Irene e Paolo, os
próprios cálices de vinho, ressaltados por um contraplongée, se impõem pe-
rante os dois, impedindo uma imagem mais objetiva do casal.
No entanto, mesmo na ausência de obstáculos materiais, as próprias
personagens evitam um contato direto com a câmera. Até quando são en-
quadradas de perfil seus olhares encontram-se dirigidos para outro lugar,
num plano introspectivo de lembranças, culpas ou reflexões vagas. E não
bastasse esse rosto que se vira, temos a própria moldura do quadro que
“recorta” incisivamente esses corpos, às vezes quase os expulsando do
campo de visão do filme. Lidamos, portanto, com um olhar jamais con-
cretizado: em nosso exercício de contemplação e decifração, temos a ânsia
de observar diretamente essas pessoas, espaços e memórias, mas sempre
encontramos algum elemento ou fenômeno que intercepta esse ato de vi-
são objetiva. Com a possibilidade da irredutível perda de uma companhei-
ra tão querida, o antigo grupo de guerrilheiros evoca a todo o momento
o “fantasma” de Ana (Simone Spoladore), numa tentativa não apenas de
observá-la, mesmo que por uma última vez, mas também de preservá-la.
Ana torna-se uma imagem prestes a desaparecer, uma vez que a memória
sobre ela corre o risco de ser futuramente esvaziada ou perdida.
Nisso, Ana torna-se um símbolo óbvio da luta pela abertura dos ar-
quivos do regime militar, explicitada na narrativa pelo drama do ministro
vivido por Zé Carlos. Ana, nesse caso, é a memória que precisa ser desco-
berta, divulgada e preservada, em nome de todas as vítimas das violências
e repressões da ditadura – assim como Ana, prestes a se esvair em vagas

145
lembranças num país ainda bastante negligente para com sua história. É
visceral e urgentemente necessário, portanto, que Ana viva, nem que seja
por intermédio de uma lembrança, de uma alucinação ou, num sentido
metalinguístico, de um símbolo.
Mais especificamente, A memória que me contam possui um claro tom
autobiográfico. Lúcia Murat utiliza a “ficção” de seu filme para relembrar
a antiga companheira de luta, Vera Sílvia Magalhães (lembrada na dedica-
tória do final) – e tanto Murat quanto Magalhães são evidentes inspirações
para as personagens Irene e Ana, respectivamente. Nesse sentido, quando
vemos a cineasta Irene evocando a imagem da guerrilheira, como na cena
em que seleciona algumas fotografias e vídeos de arquivo, não deixamos
de igualmente enxergar a própria Murat evocando uma imagem que re-
meta à falecida companheira – ou, numa leitura metalinguística, evocando
a atriz ou o “avatar” que personificará esse ato de lembrança e homena-
gem. Na própria lógica do filme, aliás, temos uma certa ambiguidade. Não
sabemos se Spoladore é de fato Ana em seus tempos de juventude, uma
imagem simbólica, ou mesmo uma atriz, que a cineasta e as demais per-
sonagens convocam para representar a guerrilheira, ainda que num plano
imaginário.
Mas se há uma necessidade tão forte de recuperar a imagem de Ana ou
a memória sobre esta, por que fazê-lo por intermédio da representação de
uma atriz ou da simbologia de uma imagem? A resposta parece encontrar-
-se na própria dificuldade das personagens em encarar essa imagem, a
despeito de sua ânsia em encontrá-la e mantê-la. Ana não simboliza ape-
nas os louros e honras da resistência armada. É também com Ana que os
guerrilheiros se recordam das utopias e ingenuidades do dito movimento
revolucionário, bem como da violência praticada sob a “lógica perversa da
guerra” (pela guerrilha também posta em prática). Como bem alega Zezé
em dado ponto da narrativa, Irene e os demais não são apenas vítimas: a
despeito das torturas e outras violências, eles também mataram.
O italiano Paolo, mesmo que acidentalmente, foi responsável pela mor-
te de cidadãos inocentes, assim como Ana parece ter uma relação direta

146
com a morte de seu próprio companheiro (de luta e de vida). Nisso, o
fantasma de Ana também personificará um intenso sentimento de culpa
e desilusão, uma vez que reitera ou reflete os anseios e mágoas de boa
parte daqueles que o projetam (sobretudo o ex-guerrilheiro italiano). E se
veteranos como Irene parecem reclamar, mesmo que involuntariamente,
um papel unívoco de vítima, eles ainda devem lidar com os resultados
ambíguos de sua antiga luta pela democracia, como é evidente, por exem-
plo, na cena em que Irene dialoga com um taxista cujo clássico discurso
de desprezo pelos políticos brasileiros poderia facilmente desembocar no
desejo de retorno a um governo ditatorial.
Ana, portanto, igualmente revela a amarga complexidade dessa resis-
tência guerrilheira, e daí o desejo de vê-la não como o corpo decadente
ou moribundo com o qual vivia em seus últimos anos, mas sim sob a
imagem jovial e vigorosa de Simone Spoladore. Deseja-se ver Ana sob a
égide do mito: o mito da jovem revolucionária, com seu olhar desafiador
e irreverente e com seu cigarro sempre em punho. O mito da guerrilheira
impetuosa, excitada com o Manifesto Comunista, mergulhada nas utopias
empolgantes da revolução, disposta a mudar um continente inteiro, para
não dizer o mundo. Mas o próprio mito, de tão explícito, se auto-descons-
trói. Ana, mesmo apresentada pela imagem vitoriosa da guerrilheira, atira
no cenário vazio de uma periferia, desloca-se subitamente para o exílio na
França e enfrenta, sozinha e melancólica, o peso de seus erros, decepções
e fracassos.
E no diálogo final com Irene, o fantasma de Ana questiona se valeu
a pena. Não a luta revolucionária, mas a perpetuação desse mito. Quão
válida é essa imagem quase santificada da ex-guerrilheira se esta própria
encontra-se praticamente abandonada e decadente nos dias atuais? Con-
forme a própria Ana diz, ela sobrevive de si mesma: solitária e esquecida,
ela só está viva por causa de sua própria imagem e legado. Ou melhor:
ela só está viva por causa de um ícone a ela associado, de uma imagem
cultuada (possivelmente não verdadeira) que esconde a verdadeira contra-
dição e complexidade dos fatos – fatos, aliás, que continuam a destruí-la.

147
E quando Irene pede para que Ana fique, a cineasta reivindica não apenas
a memória de um tempo que corre o risco de ser sepultada, mas também
a imagem revigorante que continue dando um sentido ao que foi feito e
ao que se sucede – ainda que essa imagem seja vinculada a uma pessoa em
relação a qual a própria Irene guarda alguns ressentimentos.
Ainda nesse contexto, é válido observar a relação da juventude para
com essa velha guarda de militantes (e para com esse mito da guerrilhei-
ra). Os personagens jovens, em verdade, são corpos estranhos no longa-
-metragem. Em oposição aos ex-guerrilheiros que se relacionam quase
que friamente entre si, como se o peso da morte de Ana impossibilitasse
grandes demonstrações de afeto, os jovens aspiram aos toques e carícias,
às danças e abraços, aos beijos e relações sexuais. Eles, no caso, também
evocam o mito de Ana, tanto pela imagem estimulante que essa idealiza-
ção transmite quanto pela memória afetiva que possuem da tia revolucio-
nária (a qual impede a projeção de uma imagem mórbida). Mas os jovens
também se identificam com esse fantasma: na condição de “filhos da re-
volução” e a partir de seu próprio engajamento político, a segunda geração
compartilha a impetuosidade, irreverência e ingenuidade da Ana guerri-
lheira e rebelde – e assim como os veteranos, eles não deixam de projetar
parte de seus próprios anseios, inseguranças e utopias no fantasma da tia.
É interessante, aliás, a interação dos jovens com essa herança do “movi-
mento revolucionário”, bem como seu ativismo tão libertário e contraditó-
rio quanto o praticado pelos veteranos. Eduardo, por exemplo, provoca as
utopias da guerrilha com sua instalação artística: a rede que personifica as
armadilhas da revolução, enclausurando os velhos guerrilheiros ao som de
“Embaixador, não se preocupe! Nós somos revolucionários!”. Entretanto, a
obra se converte ela própria em potencial armadilha de alienação, uma vez
que o divertimento que sua interatividade proporciona parece inibir qual-
quer reflexão mais aprofundada de cunho político ou social (e isso por parte
tanto das crianças da periferia que claramente se entretêm com a rede, quan-
to dos próprios militantes que interagem fascinados com a obra).
No entanto, o mesmo trabalho continua denotando uma pequena re-

148
volução: a dessa nova experiência de fruição artística. Mesmo apenas se di-
vertindo com a rede, as crianças da periferia ainda vivenciam uma experi-
ência de interatividade que pode, por si só, implicar em novos significados
e sensações, potencialmente válidos e até transformadores – mesmo que
num plano puramente estético ou sensorial ou num âmbito de possível
domesticação de “incisivas reflexões engajadas”. Eduardo, por fim, decla-
ra em certo ponto: “Não acredito mais em revoluções, nem em caminhos
hiper-inovadores, mas continuo sonhando. Acredito nas micro revoluções,
na explosão dos afetos. Não dou ouvidos a essas declarações vazias de que
a arte não serve pra nada. Eu insisto, persisto: levo a arte pras ruas, expan-
do os desejos. Essa é a minha revolução”.
Dessa forma, a juventude também responde ativamente à velha guar-
da, mesmo que viva sob a influência de seu legado. Eduardo, por exemplo,
é uma espécie de herdeiro de artistas como Hélio Oiticica (cujos trabalhos,
inclusive, são visualizados na cena de uma palestra), do legado do ativismo
LGBT, até das contestações dos anos 1960 para frente e a um modelo
tradicional de relacionamento monogâmico (vide uma das cenas finais em
que ele, o namorado e a amiga de infância trocam afetos, abraços e beijos
na frente de uma toilette feminina).
Por outro lado, a jovem Chloé não hesita em analisar os ex-guerrilheiros
e em tirar conclusões próprias a respeito da situação, anotando tudo o que
lhe parece mais interessante; e Gabriel possui uma relação conflituosa com
o pai Ricardo, outro ex-guerrilheiro. Em dado diálogo com a mãe, Irene,
Eduardo retruca: “Mãe, você realmente acha que vocês fizeram tudo”. A
velha guarda não foi suficiente para gerar um berço de conforto e esta-
bilidade: as lutas continuam, os desafios persistem. A homossexualidade
de Eduardo, por exemplo, certamente ainda lhe implicará uma igual vida
de resistências e perseguições – e é conveniente que, após esse diálogo
com a mãe, o filme vislumbre a relação sexual entre Eduardo e Gabriel,
evidenciando tanto o romance e o erotismo da transa (os corpos nus no
quarto semi-iluminado em tons de sépia) quanto o tabu que ainda impede
que o ato da penetração seja diretamente visto (os corpos recortados pela

149
moldura do quadro).
Por fim, temos a figura inesperada de João Tavares, o ex-presidiário
que, ainda na cadeia, fundou com outros prisioneiros um jornal inspirado
em suas experiências com Ana, a qual lecionou um curso de cidadania na
prisão, já idosa, após a ditadura. João, especificamente, amplia e ressignifi-
ca as ações políticas da guerrilheira, abalando, inclusive, o predomínio de
uma classe média nesse cenário de lutas e resistências, na medida em que
expressa os movimentos próprios de um âmbito social até então perifé-
rico. E quando João conta sobre a rebelião dos presidiários em seu breve
relato, ele não deixa de fazer menção a um outro tipo de guerrilha, tão
digna ou válida quanto a dos “clássicos revolucionários”. Dessa forma, é
natural que sejam os jovens os únicos a conseguirem um contato direto
com o fantasma de Ana. Mesmo se identificando com o mito e projetan-
do essa imagem idealizada, a segunda geração também rompe com a aura
do mesmo, na medida em que o desconstrói e o desbrava. João Tavares
chamava Ana de “coroinha chapa quente”, Eduardo visita a antiga casa da
guerrilheira e encara diretamente o fantasma, Chloé abraça e beija o fan-
tasma ao mesmo tempo em que este afaga carinhosa e melancolicamente
o seu rosto.
Finalmente, o mito acaba, ele próprio, por se libertar. Ana quebra a
quarta parede e encara o espectador. Seus olhos finalmente encontram os
nossos, no momento em que a moça narra a reação de seus companheiros
quando souberam de seu primeiro câncer. “Irene, choro não!”, ela conclui.
Curiosamente, é nesse instante de libertação que o fantasma é ignorado:
tanto os jovens quanto os veteranos encontram-se reunidos no bar, em
claro momento de descontração (prolongado, inclusive, pelo slow motion da
câmera). Esse fantasma dos anos de chumbo nos encara não numa cena
de drama ou solenidade, mas de celebração e riso. Ou seja, na complexida-
de da alegria e da confraternização, assombradas pela iminência da morte
e pelo peso de um passado sangrento. Ana, mesmo na idealização de seu
mito, nos encontra em meio à complexidade desse grupo revolucionário,
impetuoso em suas atitudes, transgressões e contestações, embora ainda

150
rodeado de tantos casulos e idealismos.
No flashback final, Ana (ou a atriz que a incorpora) contempla o jornal
que reporta o seu recente ato “criminoso” como guerrilheira. O jornal, in-
clusive, possui um “retrato falado” da loira de óculos escuros que assaltou
o banco. Ana se envaidece com essa imagem e até põe seus óculos escuros
como forma de imitação irreverente daquele retrato. Ela própria assume a
égide do mito, o ícone da guerrilheira impetuosa, revolucionária… e vai-
dosa. No entanto, talvez para a infelicidade de Ana, o corpo sobreviveu ao
mito. Os heróis não se tornaram mártires: sobreviveram para presenciar
os frutos ambíguos do heroísmo, a dor das cicatrizes, dos traumas e das
dúvidas, a decadência de sua própria integridade física e mental. A ingenui-
dade anárquica de outrora, personificada pelo mito, é vista atualmente sob
a interferência da amargura e da melancolia, a despeito da imagem revigo-
rante e saudosa que se deseja projetar. E, infelizmente, o mito torna-se a
única chance de sobrevivência de um corpo já afundado e sepultado pelo
oceano implacável do tempo.

151
XIX. Sensibilidade e forma
Caíto (Guillermo Pfening,
Argentina, 2012)

Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho

É inevitável o impulso de tentarmos resumir uma obra, logo depois


que a vivenciamos, sob um ponto de vista sensível. Apesar de genéri-
co, esse sentimento sublinha fortemente as linhas que traçamos para nos
aprofundarmos em uma análise mais detida do objeto. No caso de Caíto
(2012), do ator e diretor argentino Guillermo Pfening, podemos resumir
essa sensação com as palavras leveza e sutileza.
Este filme é sobre Luis Caíto, irmão do realizador, que sofre de Distro-
fia Muscular de Becker, uma doença que leva à perda progressiva de massa
muscular e provoca a paralisação dos movimentos corporais. No início
da fita são inseridas passagens de um curta-metragem feito por Pfening
(também intitulado Caíto, de 2004), que mostram como Caíto aprendeu a
conviver com a terrível doença neuromuscular. Essas imagens exibem as
condições em que ele vive e sua extrema singularidade. O longa dá con-
tinuidade, portanto, à relação cinematográfica que se iniciou, anos antes,

152
entre os irmãos. Nas duas obras percebe-se o afeto e a grande cumplicida-
de que existe entre eles. Curioso como essa impressão entra em choque
com a dificuldade motora do personagem. Não há dúvidas sobre a gra-
vidade, na acepção primeira do termo, como algo que confere peso e até
uma dimensão dramática da doença de Caíto. Mas a Distrofia Muscular
de Becker não assume papel central na trama, antes serve como pano de
fundo de uma história que não apela e conquista pela naturalidade com
que as relações interpessoais se desenrolam.
Os enquadramentos dos irmãos com a família, a representação do cor-
po de Caíto e seus depoimentos sobre a doença dão à história um caráter
bem pessoal; afinal, trata-se de um cineasta fazendo um filme, que se tor-
nará público, sobre um ente querido em sérias dificuldades. Pfening não
quer ser visto como a “voz” do irmão e não poupa esforços para deixar
claro que este participou em todos os momentos da feitura do longa – por
exemplo, vemo-lo acompanhar na tela do computador a montagem dos
planos. Imagens reiteradas dos irmãos falando sobre a nova produção e
lembrando as filmagens do curta reforçam o fato de Caíto ter desempe-
nhado um papel ativo na realização da obra. Essa preocupação acaba pro-
duzindo um leve deslocamento de foco: a fita deixa de ser apenas sobre
Caíto para se transformar no processo de fazer um filme sobre ele.
O êxito só é alcançado pelo tratamento formal que Pfening dá ao longa.
Há pelo menos duas camadas narrativas com aspectos de cor, movimento
e enquadramento totalmente diferentes. Todo esse cuidado explicita que
os dois irmãos estavam bem conscientes das questões éticas que se levan-
tam quando se faz um documentário sobre uma pessoa enferma. Para não
correr o risco de acabar contando uma história apelativa, a doença passa a
segundo plano e o filme se propõe a outro enredo: o dos sonhos e desejos
de Caíto.
Evidente que, para falarmos de narrativa, precisamos de um narrador.
Esse, no caso da linguagem audiovisual, é a câmera e seus diferentes “olha-
res”. Aparentemente essas camadas não se alternam, pois há um momento
em que a ficção começa declaradamente. Com o objetivo de narrar uma

153
outra história de Caíto, cria-se uma pequena ficção, na qual ele poderá dar
vazão a seu instinto paternal (Pfening soube pela fisioterapeuta que seu
irmão sonhava em ser pai) e viver um relacionamento amoroso.
Os depoimentos e as imagens do cotidiano de Caíto são substituídos
por planos em que se concretiza a trama imaginada e por enquadramentos
que insistem em mostrar o processo fílmico dessa encenação. Caíto dei-
xa de ser assunto para se tornar assumidamente personagem. As pessoas
que fazem parte de sua vida serão representadas por atores profissionais.
Além disso, alguns personagens fictícios são introduzidos: Anita e Suzuki.
Com a primeira, Caíto será paternal e, com a outra, manterá um relaciona-
mento amoroso. Cria-se todo um quiproquó para sustentar essa história:
imagina-se que a relação conturbada com a mãe e o padrasto fará com que
a criança acabe estreitando laços de amizade com o protagonista. Suzuki
se afeiçoará por ele, porque foi o único homem que se importou de fato
com ela. Enfim, uma narrativa simples e sentimental que acaba criando
cenas memoráveis.
Muitas das sequências são ensaios do que deverá se realizar no filme.
Essa preparação de atores permite a Guillermo dar vazão a sua extensa
experiência de ator no cinema e na televisão. Aliás, ele é mais conhecido
como ator do que como diretor. Entre outros trabalhos, foi o protagonista
de Nascido e criado (Nacido y criado, 2006), o quarto longa de Pablo Trapero,
um dos mais importantes realizadores argentinos da atualidade.
A fronteira que separa a diferença de olhar é a linda cena da piscina,
na qual os atores e personagens misturam-se a Caíto numa espécie de
abandono corporal, em que suas limitações não são relevantes. Guillermo
propõe uma dinâmica, na qual as pessoas correm de um lado para outro,
criando um movimento ondulatório na água. Caíto é deitado sobre a água
agitada e as ondas parecem insuflar movimento a seu corpo enfraquecido
pela doença. A câmera enquadra de cima esta sequência, abrindo o plano
de tal maneira que capta as outras pessoas tendo as mesmas sensações
do protagonista. Parece não haver diferença alguma entre os corpos que
boiam prazerosamente na água. A luz reverbera no azul piscina, mudando

154
o aspecto da fotografia. As cores ficam mais vibrantes, sublinhando o mo-
mento lúdico deste “faz de conta” que se inicia, mas que não se descola da
imagem do corpo de Caíto.
O limite de gênero imposto pelo olhar do narrador/câmera, no entan-
to, não é total. Apesar da notável mudança nos enquadramentos, no ritmo
e nas cores da história “mais ficcional”, a cisão não acontece completa-
mente, pois a ficcionalidade está – ainda que diluída por mecanismos que
dão certo grau de realismo (não realidade) – presente na primeira parte
do filme. Como quando os irmãos estão conversando na sala de casa e a
empregada aparece para falar com Caíto. Nada lhe ocorre enquanto está
contracenando enfocada pela câmera principal, mas ela tem vergonha e se
desembaraça da cena quando Guillermo pega outra câmera para filmá-la.
Aquela é sua reação natural ou roteirizada? Ou quando Caíto e Guillermo
se abraçam no quarto, revelando a ternura da relação entre os irmãos. Qual
a expectativa que o diretor cria com esse encadeamento de cenas e seu
posterior desenlace? Contudo, não há apelo para que haja uma empatia do
espectador com os personagens do filme. Nós não colamos nossa expe-
riência à dos personagens, pois vemos ali uma relação única que pode ser
transmitida não por um chamado à realidade e dramaticidade da situação,
mas pela sensibilidade e possibilidade de dar voz ao elemento mais frá-
gil (fisicamente, claro) da trama. Mas lembremos: Caíto participa de cada
momento da confecção do filme. Somos alertados sobre a ficcionalidade
própria do gênero o tempo todo. Parece haver sempre a radicalidade da
experiência fílmica que se contrapõe ao relato documental. Aí está o ponto
nevrálgico: não há conteúdo sem forma. A máxima do “baseado em fatos
reais” não passa de um artifício que chama a atenção de um público seden-
to por uma suposta “verdade”. Sabemos que o cinema, assim como a lite-
ratura e outras linguagens que nos contam histórias, é fundamentalmente
produtor de “mentiras”. Não se deve esperar nada que leve a qualquer
coisa parecida com uma visão panorâmica do real a troco de não conseguir
nada além de sua própria visão, entrecortada e predisposta pelo real.
Abandonar-se para vivificar aquilo que a experiência do filme nos per-

155
mite é pressuposto básico para a sensibilização e o entendimento. Senti-
mo-nos bem quando um filme como Caíto não nos “engana” na tentativa
de realizar como verdadeiro o padecimento do personagem. É o cuidado
com a exposição do sujeito real/personagem que faz com que aquilo deixe
de ser experiência pessoal para se tornar coletiva.
Andrei Tarkovski, em seu livro Esculpir o tempo, diz que “os artistas se
dividem entre aqueles que criam seu próprio mundo interior, e aqueles
que recriam a realidade” (1998: 140). Caíto pode ser aquele que, por sua
condição, esteja mais na posição de quem deve criar um mundo interior e,
seu irmão, aquele que, por meio do cinema, (re)cria outra realidade. Luis
Caíto Pfening é o homem comum – no sentido de que não constrói, como
seu irmão, uma outra “verdade” através de suas atuações – que, para além
do fato de ser protagonista, também é um espectador em busca do tempo
“perdido” e o reencontra no cinema. O diretor possibilita a Caíto a experi-
ência dentro do tempo de uma película, reformulando sua vida. A viagem
pelo campo num quadriciclo é o momento em que Caíto e as atrizes que
representam Anita e Suzuki estão mais à vontade. A montagem contribui
também para que acabemos acreditando que se trata de uma “verdadeira”
ficção com atores convincentes. De modo que Caíto não apenas realiza
a fantasia de ter uma mulher e uma filha, como se revela um bom ator,
dirigido pelo irmão.
Apesar do impacto de o espectador ter que lidar com o problema fí-
sico do outro – pelo estranhamento provocado pelo que é diferente –, a
alteridade torna-se um fenômeno presente, pois se contempla em primei-
ro plano uma figura fora dos padrões, portadora de uma doença pouco
conhecida, dando à produção uma sutil sensibilidade que acima de tudo
nos mostra a relação de respeito que os irmãos têm um com o outro, sem
haver exploração de uma situação delicada.
Ao fim, não importa qual dos “Caítos” é verdadeiro e se de fato
ele amou aquela mulher ou se teve uma relação paternal com a ga-
rota. Os desejos realizados pelo personagem, que são os desejos
do Caíto real, fazem sentido como organização narrativa do filme e

156
comemoram a realização do possível e do verossímil. Não nos com-
padecemos por um sujeito digno de pena, mas nos envolvemos por
suas apreensões e desejos, comuns e, ao mesmo tempo, singulares.

Referências bibliográficas:

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

157
XX. Crônica de um testemunho
Os dias com ele
(Maria Clara Escobar, Brasil/Portugal, 2013)

Jennifer Cazenave e Natalia Christofoletti Barrenha

Nas últimas três décadas, o documentário ampliou suas fronteiras para


acolher abertamente a expressão da subjetividade como um elemento ha-
bitual dentro de suas práticas. A influência de movimentos como o Ci-
nema Direto e o Cinema Verdade (os quais, surgidos no fim dos anos
1950, desembaraçavam o cinema documentário de suas estruturas rijas
e estimulavam a experimentação formal e a maior proximidade entre o
cineasta e a realidade que o cercava) e o desenvolvimento tecnológico são
alguns dos fatores que explicam e promovem a progressiva subjetivação
das práticas documentais em décadas recentes. Há, ainda, nos anos 1960
e 1970, a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivin-
dicação de uma dimensão subjetiva e a necessidade de reconstituição da
vida e da verdade abrigadas na rememoração da experiência. Beatriz Sarlo
agrupa estes eventos como consequências do reordenamento ideológico
e conceitual da sociedade do passado e de seus personagens, que se con-

158
centra nos direitos e na verdade da subjetividade – e que ela denominou
guinada subjetiva18.
O interesse pelas diversas formas do documentário chamado subjetivo
coincidiu com essa virada nas Humanidades e Ciências Sociais descrita
por Sarlo, particularmente, na França, onde os estudos de Philippe Le-
jeune contribuíram para o estabelecimento da autobiografia como gênero
legítimo. Contudo, apesar de algumas publicações na década de 1980,19 foi
somente durante a última década que um verdadeiro campo de pesquisa
internacional, dentro dos estudos cinematográficos, começou a se desen-
volver. De fato, os anos recentes viram não só a publicação de numerosas
monografias e coletâneas sobre o cinema “autobiográfico”,20 mas tam-
bém a proliferação de etiquetas destinadas a delimitar uma forma cinema-
tográfica ainda dificilmente classificável que agrupa tanto o autobiográfico
como o político e o histórico. De todas elas, convém mencionar a de “do-
cumentário performático”, cunhada por Bill Nichols, para designar fil-
mes centrados na experiência pessoal do cineasta; ou a de “documentário
em primeira pessoa”, adotada, entre outros teóricos, por Michael Renov
(2004, 2008), para se referir às obras organizadas a partir da intervenção
pessoal do cineasta.
A primeira pessoa aparece nos documentários latino-americanos dos
anos 2000 como parte de um processo no qual o político relaciona-se com
uma atitude de presença de individualidades em reflexão. Esses filmes re-
consideram o passado a partir da experiência subjetiva: uma visão política
nasce a partir de uma fratura familiar, e o que pareceria ser o documento
de uma problemática doméstica transforma-se no registro de uma memó-
ria cujo destino é ser compartilhada, ou seja, social e não pessoal (Rival,
2007). No caso de documentários ditos “subjetivos” enfocados especifica-
mente nas ditaduras militares, a exploração das relações entre identidade,
memória e infância torna-se, frequentemente, uma “busca que os filhos
fazem dos vestígios de um pai ou mãe desaparecidos” (Sarlo, 2007: 94).
Podemos citar, entre os filmes realizados por uma nova geração de cine-
astas latino-americanos, M (2007), do argentino Nicolás Prividera, Mi vida

159
con Carlos (2010), do chileno Germán Berger, e Diário de uma busca (2010),
da brasileira Flavia Castro – obras que representam o passado através de
uma busca por vestígios de seus pais, incluindo material tanto privado
(fotos e filmes de família) como público (recortes de jornais e reportagens
televisivas).
Se Os dias com ele, de Maria Clara Escobar (2013), apresenta-se como
mais um filme em primeira pessoa, ele se diferencia de seus predecessores,
sobretudo, através da presença do pai da cineasta. Nesse documentário,
ela o entrevista: Carlos Henrique Escobar, filósofo e dramaturgo que foi
preso e torturado durante a ditadura militar no Brasil e se auto-exilou em
Portugal há 12 anos. Centrado na figura desse renomado intelectual, que
esteve relativamente ausente durante a infância da filha, o filme oscila, por
um lado, entre a busca de uma memória da relação afetiva da filha-cineasta
e, por outro, da experiência dele durante a ditatura. Além disso, o filme
põe em cena uma confrontação entre dois protagonistas que faz do filme
tanto uma investigação do passado como uma reflexão sobre a possibili-
dade (ou, mesmo, impossibilidade) de representá-lo. O filme constrói, a
partir desse confronto, um modo de se aproximar do passado e fazer uma
reflexão sobre a história já não pensada em termos de uma lógica pro-
gressiva, mas a partir de um sentido alternativo e pessoal. O que está em
questão são dois passados traumáticos que a cineasta tenta, ao longo do
filme, explorar, relacionados às duas facetas de Carlos Henrique – um pai
ausente e um homem torturado, uma história pessoal e coletiva.
Em Os dias com ele, Maria Clara Escobar explica repetidas vezes que o
filme é para entender a própria experiência pessoal cheia de lacunas. Como
ela declara, é “uma reflexão sobre o silêncio, os silêncios históricos e pes-
soais..., o silêncio da ditadura e o silêncio que eu tenho na minha própria
história com relação à sua”. Perante essa filha procurando vestígios do
passado, Carlos Henrique a interpela constantemente, por sua vez, sobre
as reais motivações que a levaram a querer realizar o documentário. Além
disso, referindo-se aos trabalhos de Jacques Derrida sobre a impossibilida-
de de revelar a verdade na base do testemunho, ele pretende demonstrar,

160
ao mesmo tempo, os limites de sua posição como testemunha e à de sua
filha como cineasta. Carlos Henrique sugere insistentemente o quê e como
ela deve perguntar, ou como efetuar a montagem – chegando mesmo a
evocar, em algum ponto, um roteiro do filme que ele mesmo está escre-
vendo –, recusando-se em se adequar tanto às expectativas da filha como
às da cineasta. Assim, como observa o crítico Raul Arthuso (2013), Maria
Clara coloca tal confronto – ele não quer fazer o filme proposto por ela,
e ela não quer fazer o filme ao qual ele se dispõe – no centro do longa,
construindo Os dias com ele por meio de um tour de force. Afinal de contas,
Carlos Henrique jamais aceitara dar entrevistas sobre si mesmo, e uma ba-
talha gera o documentário, já que ambos brigam por um espaço simbólico
mediado pela câmera. Na primeira parte do filme, as recusas do pai em
falar sobre suas experiências, principalmente aquelas que dizem respeito à
tortura, são acompanhadas por imagens que sugerem a dificuldade de es-
tabelecer um diálogo com ele: vemo-lo caminhando em direção ao fundo
do plano, numa profusão de quadros dentro do quadro, observado através
de janelas, fragmentado pelos tijolos vazados do muro ou ainda entre uma
infinidade de livros.
Uma herdeira à procura de histórias ausentes, a cineasta esconde seu
corpo e deixa sua presença reduzida quase completamente a uma voz off
que tenta arrancar fragmentos do passado desse pai sempre localizado no
campo do visível. Esse contraste revela que, ainda que Maria Clara não
consiga delimitar seu próprio lugar, que oscila entre filha e cineasta, ela
sabe qual é o do pai: uma testemunha, tanto da história do país como da
infância da diretora. Esse deslocamento de Maria Clara fora de quadro é
enfatizado através da onipresença de Carlos Henrique, particularmente,
no momento em que ela lhe pergunta, pela primeira vez, sobre a tortura
que sofreu. Nesse instante, em vez de relatar sua experiência, ele lê breve
passagem de uma de suas peças, Matei minha mulher, onde o protagonista
recorda sua própria tortura. Todavia, no meio da cena, a voz do pai – de-
pois de ser silenciada inteiramente e de ele desaparecer da tela – fica co-
berta pela voz da cineasta que acaba a descrição em off, enquanto desfilam

161
imagens de um filme caseiro qualquer. Fragmentos de memórias “alheias”
(no início do projeto, inclusive, o filme intitulava-se Memória emprestada),
esse material privado é objeto de desvio: contrariamente aos filmes latino-
-americanos que já citamos, os Super 8 utilizados por Maria Clara ao longo
de Os dias com ele pertencem a outras pessoas – ou seja, não mostram nem
o pai, nem ela. Como revela a voz da cineasta numa sequência, a respeito
de cada adulto que aparece na tela: “esse não é meu pai”.
Da mesma maneira que o pai nega a possibilidade de representar o
passado, o trabalho com os filmes de família põe em cena os limites que
assombram a própria busca de Maria Clara. Enquanto o pai, do início ao
fim, insiste que o projeto dela é impossível, a negação da cineasta manifes-
ta-se de maneira implícita e, sobretudo, através da montagem. Mais preci-
samente, ao não usar nem imagens de arquivo nem imagens de sua família,
seu próprio caminho de cineasta encontra o caminho do pai-filósofo. Esse
encontro é resultado de um processo inerente aos dois tempos do filme: a
filmagem e a montagem. Em Os dias com ele, a distância se cristaliza na cena
culminante – que é também o ponto alto da confrontação entre o pai-
-filósofo e a filha-cineasta: quando ela lhe pede para ler o documento do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que autorizava sua pri-
são. De fato, no momento de ocupar o seu lugar na frente da câmera, o pai
descobre o documento sobre a cadeira. Recusando-se a sentar e lê-lo, ele
passa o mandado à sua filha antes de deslocar-se fora do campo. Nenhum
dos dois é visível e decorre uma discussão prolongada sobre a questão da
representação do passado, ao longo da qual a noite começa a cair. Embora
a cineasta queira aprofundar simultaneamente a história do Brasil e de seu
pai, ele lhe explica sua negação à leitura do documento “deles” (isto é, dos
responsáveis pela tortura), ou para falar de sua própria detenção quando
tantos outros sofreram o mesmo destino. Por fim, ele sai, e a cineasta se
vê, então, obrigada a ocupar o lugar do pai para compensar essa ausência:
sentada na cadeira dele, e pela primeira vez completamente visível no fil-
me, ela lê o mandado na frente da câmera.
Embora essa tensão entre Carlos Henrique e Maria Clara não desapa-

162
reça em todo o documentário, ela se dilui um pouco para dar lugar a uma
interação que estabelece, pela primeira vez, uma frágil ligação nessa com-
plexa relação que o filme busca realizar entre a esfera privada e a pública. A
cineasta deixa de se confrontar diretamente com o pai para aceitar retori-
camente suas sugestões, sem abrir mão de fazê-lo falar sobre seu passado.
Aos poucos, ela consegue compreender que as evasivas do pai não são
recusas de estabelecer uma relação com ela, repetindo voluntariamente
no presente o que fora obrigado a fazer no passado. Torna-se claro que a
resistência dele deve-se a sua dificuldade em expor suas experiências trau-
máticas. Não por acaso, deixa-se de enfocá-lo centralizado e de baixo para
cima. A partir desse momento, Carlos Henrique conseguirá expressar, pela
insistência da filha, a profunda mágoa que realmente marca as pessoas um
dia torturadas. Esse homem, áspero e descrente do gênero humano, fala
sobre um dos gestos mais comoventes em meio ao horror da tortura – já
bastante machucada, a companheira presa junto com ele lhe apertara a
mão para lhe dar coragem.
Através das resistências e das sinuosidades subjacentes no testemunho
fragmentário de Carlos Henrique Escobar e na participação de Maria Cla-
ra como cineasta, Os dias com ele coloca em cena os limites implícitos a
toda busca de uma representação do passado. Da mesma forma, tomando
como ponto de partida as ausências que assombram tanto a história co-
letiva do Brasil como a história pessoal de Maria Clara Escobar, o filme
é construído em torno de uma série de limites, tal como a exclusão de
imagens de arquivo da ditadura, o desvio de filmes de família e a quase
invisibilidade da cineasta. Enquanto ilustrando a posição incerta do “eu”
na representação de um passado no qual ela não é a protagonista princi-
pal, mas a herdeira, esse deslocamento formal problematiza a questão da
transmissão – e sua representação – da história da ditadura de uma gera-
ção para a outra.
Em Os dias com ele, Maria Clara Escobar propõe contar suas versões da
História (e como esta a afetou pessoalmente), ressignificando a leitura do
passado através da própria subjetividade e encontrando verdades-tenta-

163
tivas, parciais e provisórias, mas profundamente encarnadas e operativas
para a construção de uma memória que transite do individual ao coletivo
(Piedras, 2013). O filme cede protagonismo à duplicidade da figura de
Maria Clara enquanto filha e cineasta, estando pessoalmente involucrada
nessa reconstituição de uma memória de acontecimentos dos quais ela
esteve ausente. Ela está contida no depoimento do entrevistado, e sua
vivência, assim como a experiência da filmagem, reforça o aspecto lacu-
nar – não para dizer que o passado não pode ser recuperado (pelo menos
no sentido de uma verdade), mas para mostrar, mais uma vez e quantas
forem necessárias, como as lacunas e ausências desse período estão ali.

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164
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Notas:

18. Em seu ensaio Tempo passado, Sarlo reflete especialmente sobre os processos de reconstrução
do passado na Argentina (cujas considerações podemos estender a outros países latino-americanos)
após a redemocratização. Sarlo apresenta esse cenário da irrupção dos relatos em primeira pessoa
no campo artístico argentino contemporâneo para depois criticá-lo, pois para ela tais obras teriam
seu sentido político esvaziado justamente porque “preferem postergar a dimensão mais especifica-
mente política da história, para recuperar e privilegiar uma dimensão mais ligada ao humano, ao
cotidiano, ao mais pessoal” (2007: 105). Na contramão da proposta da intelectual, queremos pen-
sar aqui na potência do cotidiano e do pessoal através dos aspectos estéticos e políticos suscitados
pela memória afetiva.

19. Ver, por exemplo, o dossiê sobre o cinema autobiográfico publicado em 1987 pela Revue
Belge du Cinéma que inclui um artigo do especialista francês da autobiografia Philippe Lejeune.
Importa notar, também, que Elizabeth Bruss, pesquisadora americana na área de Literatura, foi a
primeira que problematizou a relação entre o cinema e a autobiografia num artigo publicado em
1980, “Eye for I: Making and unmaking autobiography in film”.

20. Pensamos, entre outros, no livro de Michael Renov, The subject of documentary (2004), ou no
de Laura Rascaroli, The personal camera: subjective cinema and the essay film (2009), assim como
na coletânea publicada por Gregorio Martín Gutiérrez, Cineastas frente al espejo (2008).

165
XXI. Pelo malo: em busca do lirismo
no concreto armado
Pelo malo (Mariana Rondón, Alemanha/
Argentina/Peru/Venezuela, 2013)

Marília Bilemjian Goulart

O venezuelano Pelo malo aborda com sensibilidade as problemáticas


que marcam a vida metropolitana na América Latina, em especial aquelas
que se impõem sobre os habitantes mais pobres que lutam para sobreviver.
Desempregada, Marta se vê às voltas para criar dois filhos: um bebê de
colo e Júnior – que, com cerca de oito anos, tenta quase de tudo para alisar
o cabelo e, na foto do colégio, ficar parecido com o cantor que idealiza.
Apesar de próximos e unidos pelo desamparo e as dificuldades, Júnior e
Marta parecem estar em oposição. Interpondo-se contra o vagueio e os
sonhos do filho, Marta é dura e com frieza e precisão se lança contra a
imaginação de Júnior. Tendo como cenário principal o simbólico conjunto
habitacional 23 de Enero, a tensão entre os polos representados por cada
um dos personagens constrói o drama do filme e tece também uma crítica

166
sobre a cidade moderna.
A conflitante relação e as dificuldades dessa família colocam em pauta
os entraves enfrentados por um número cada vez maior de mulheres que
chefiam famílias em outras metrópoles da América Latina. Em sociedades
marcadas pela desigualdade de gênero e pelo machismo essas mulheres
assumem duplo papel de mãe e pai. Na dupla, e às vezes tripla jornada,
não raro falta-lhes apoio familiar e subsídios básicos, financeiros e mes-
mo emocionais para lidar com desafios e complicações da empreitada que
assumem sozinhas. A obsessão de Júnior por alisar o cabelo e o repúdio
de Marta ao comportamento do filho, segundo ela afeminado, lançam luz
sobre a imaturidade da mãe, as problemáticas oriundas dos padrões de
gênero largamente impostos e sobre o racismo que alimenta a imaginação
infantil.
O conflito entre Júnior e Marta e as relações dos personagens com os
espaços versam também sobre a capital venezuelana, tecendo metáforas
entre o urbano e os protagonistas. Como buscarei argumentar, para além
das analogias entre localidades e personagens, em Pelo malo a dramaticida-
de e as tensões são desenvolvidas através das relações com os cenários e,
sobretudo, através da construção dos espaços em tela.
Em quadro: significações da cidade
Com pequenas folgas o atrito entre Marta e Júnior segue do começo ao
fim do filme. Inábil com afetos, Marta repele carinhos e assume a rigidez
em praticamente todas suas relações. À exceção do filho menor, que rece-
be os poucos gestos ternos que ela parece ter para oferecer – e de Júnior,
que vez ou outra ganha um sorriso ou um único cafuné –, Marta se rela-
ciona com frieza com os demais homens e com as mulheres que cruzam
seu caminho.
Pelo malo apresenta-nos um universo em que as figuras femininas cami-
nham alheias aos homens que, embora ausentes nas famílias, permanecem
como entidades onipresentes. Assim, o pai que já se foi é evocado na
designação do filho (“Júnior”) e, mesmo se assemelhando a uma figura

167
mítica, capaz de se esquivar constantemente, o antigo chefe é buscado,
ou caçado, com persistência por Marta. Nessa relativa ausência, as figuras
masculinas têm importância e detêm certo poder nas relações que são
construídas no filme. Assim, Marta esforça-se para esboçar uma mínima
simpatia com o vizinho e com o chefe, homens com quem se relaciona
para atender objetivos específicos e pontuais, como o desejo sexual e a
reconquista do emprego. Através de ações peculiares e um tanto avessas,
Marta deseja se tornar exemplar para o filho e, em particular, oferecer um
modelo a Júnior para que ele desempenhe um papel masculino alinhado a
um padrão de gênero tido como normal.
Desviando desse padrão de normalidade, as mais variadas ações de
Júnior são reprimidas com palavras e olhares. Atos tão diversos quanto
cantarolar, demorar para comer, dança e urinar sentado recebem sempre
contundentes interdições de sua mãe. Central antagonista do maior desejo
do filho, Marta repreende ferozmente todas as vãs tentativas de Júnior de
alisar o cabelo.
Nessa construção, a tensão entre mãe e filho não se restringe à caracte-
rização e ao comportamento dos personagens, mas transborda nos cená-
rios que basicamente compreendem locações nas agitadas ruas de Caracas
e o complexo habitacional onde residem. Ora pendendo para o acelerado
ritmo de Marta, ora para o vaguear de Júnior, a composição audiovisual
dos espaços participa ativamente da construção dos dois polos conflitan-
tes. Essa conexão entre cenários e personagens instiga uma leitura que
reflita sobre o conflito da trama em analogia às problemáticas e conflitos
urbanos.
O ritmo certeiro dos passos de Marta em sua obstinação para recon-
quistar o emprego integra-se ao acelerado compasso das caóticas ruas por
onde ela se move com expertise entre carros e transeuntes. Nesses mo-
mentos a câmera lança-se com ela em meio ao fluxo e, com movimentos
agitados, acompanha a personagem em seu labiríntico e arriscado deslo-
camento.

168
Nas crescentes repressões a Júnior, que com falas ou olhares interdi-
tam o afeto e a sensibilidade, Marta parece encarnar o “espírito da vida
moderna” que Simmel identificou nas urbes do início do século XX. Em
oposição à cidade pequena, marcadas pelo ânimo e por relações pautadas
pelo sentimento, a cidade grande é regida pela objetividade, ou pelo “es-
pírito objetivo”, em que impera o órgão menos sensível, isto é, o intelecto
(Simmel, 2005). Algo semelhante a esse espírito objetivo parece comandar
todos os movimentos de Marta, personagem que age e se relaciona com os
demais sempre com um intuito bem definido. Neste universo, as relações
de Marta são intensas e as finalidades que as orientam estão basicamente
ligadas às necessidades imediatas. O excesso de estímulos da metrópole
resultou na incapacidade de reação do indivíduo que a habita (Simmel,
2005: 581) e a dureza da vida parece ter dado forma à Marta, que se torna
incapaz de delicadezas e afetos.
Em harmonia com a torrente urbana, a personagem reproduz certo
aspecto ordenador da acelerada cidade moderna e tenta alinhar Júnior
neste passo veloz e racional; “anda, corre!”, “por que tem que fazer isso
tão lento?” são frases que se repetem ao longo do filme. Na busca pela
sobrevivência, os passos dos habitantes das metrópoles se submetem a
uma rigorosa disciplina dos sentidos de espaço e de tempo, rendendo-se
à hegemonia da racionalidade econômica (Simmel apud Harvey, 2014: 34).
Esse também é o ritmo que se impõe sobre Marta que, completamente
desamparada, vai sendo engolida pela feroz cidade e se torna ainda mais
dura com o filho. Se na primeira cena Marta tenta defender Júnior da fúria
da patroa, ao fim ela se lança contra o filho, renunciando a toda possibili-
dade de afeto e rifando também sua própria posição de mãe, caso ele não
se submeta à sua vontade.
Em oposição a essa rígida relação com o espaço e com o tempo, con-
trário ao sentido pragmático e ordenador das ações de Marta, Júnior se
apropria de modo mais lírico do ambiente que lhe envolve e não segue o
frenético compasso da mãe. Sem se lançar por completo na urbe caraque-
nha, Júnior tem o conjunto habitacional como local central de permanên-

169
cia e faz das estruturas de concreto que lhe rodeiam os elementos de sua
restrita diversão. Nesses momentos, acompanhando o olhar da criança, a
câmera parece mais livre, em enquadramentos mais fecundos que recor-
tam o monumental 23 de Enero de maneira inusitada. Assim, as inúmeras
janelas do gigante e maciço conjunto se convertem em um tabuleiro de
jogo imaginário, formam as trincheiras da brincadeira com bonecos de
plástico e ainda o curioso cenário para os bonecos de fósforo que Jú-
nior cria. Distante da ordenação materna, Júnior opera com liberdade essa
transformação no espaço que, pelo uso e pela composição audiovisual, se
torna mais leve e poético.
Além de Júnior, o olhar infantil capaz de se encantar, imaginar e ultra-
passar a crueza do dia a dia surge com La Niña, sua melhor – e também
única – amiga. Com bastante ironia, a montagem exalta o contraste entre
a menina que sonha (La Niña) e a mulher desiludida (Marta) através das
ações lançadas em paralelo. Enquanto La Niña permanece extasiada com
o concurso de Miss a que assiste na TV e do sofá, fantasiada, e reproduz
o jingle (“hoje é o dia da beleza, todas podemos ganhar”), Marta se arrisca
entre carros e encontra apenas negativas na busca por emprego.
A montagem paralela produz confronto entre as duas perspectivas,
mas também aproxima os dois mundos. Se La Niña sonha com a figura
de Miss e literalmente usa essa fantasia como ornamento para a foto do
colégio, de modo similar Marta também desfila com sua “fantasia” de vi-
gilante, uniforme que na maior parte do filme permanece como adereço e
não como roupa do trabalho ainda não reconquistado.
O paralelo entre as fantasias femininas reforça a recusa da personagem
adulta com relação ao modelo feminino hegemônico, isto é, da Miss que
ainda encanta La Niña. A escolha de Marta pelo modelo duro em detri-
mento de um tipo frágil/sensual parece representar a busca de se alinhar
ao universo masculino (daí o pavor de que o filho mais velho seja gay).
Nessa escolha, Pelo malo reforça o fracasso da saída de Marta, cujo pragma-
tismo exagerado adquire aspectos de um racionalismo que de tão extremo
se torna delirante, mas que, mesmo assim, se impõe.

170
23 de Enero e o triunfo do ornamento racional

Participando ativamente da tensão entre os polos e pendendo ora à


dureza de Marta, ora ao olhar de Júnior, o complexo 23 de Enero é marca
e testemunha das transformações que a cidade de Caracas enfrentou na
última metade do século XX. Situado em Cata, zona oeste de Caracas, o
imponente empreendimento foi erguido com a sugestivamente denomi-
nada política de cemento armado. Implementada pelo ditador Pérez Jiménez, a
política promoveu, em meio à nefasta repressão, intenso salto nas constru-
ções caraquenhas que, com “grandes edifícios, muitas rodovias, variadas
urbanizações, obras suntuosas e utilitárias [...] alteraram a face da cidade
[...]” (Veracoecha, 1992: 250. Tradução nossa).
Na política de concreto armado, a construção de habitações populares
representou importante frente. Longe do enfrentamento de problemáti-
cas sociais, essas construções buscaram combater o chamado “cinturão
da pobreza” – composto por autoconstruções erguidas nas colinas que
rodeiam a cidade. Em meio a essa empreitada ergue-se entre os anos de
1954 e 1957 o mais ambicioso projeto de renovação urbana da América
Latina: o monumental 23 de Enero. Remetendo às unités d’habitation de Le
Corbusier, o projeto – marcado por um ordenamento racionalista das li-
nhas e formas que dialogam com o solo acidentado e com a paisagem do
entorno – configura-se como uma cidade funcionalista: entre os blocos
de habitação são planejados estabelecimentos comerciais, escolas, igrejas,
áreas de lazer e esportivas.
O monumental empreendimento, associado à concepção que preten-
dia impor disciplina coletiva também no âmbito urbanístico, rapidamente
colapsa. A busca por resultados rápidos no combate à pobreza, visível
através das construções financiadas pelo Banco Obrero, cujos projetos
restringem-se exclusivamente às intervenções arquitetônicas, não dão con-
ta das problemáticas que continuaram crescendo. Com a deposição do
ditador em 1958, os apartamentos que não foram entregues são ocupa-

171
dos por cidadãos e, na década seguinte, as áreas comuns e espaços livres
existentes entre os blocos são ocupados por autoconstruções (Lucente e
Mendes, 2012).
A apropriação por parte da população aponta a força da dinâmica social
e das problemáticas específicas da cidade. Contrariando a utopia moderna,
com os anos muitas experiências demonstraram a incapacidade de se so-
lucionar problemas urbanos e sociais por meio de projetos mais alinhados
aos congressos internacionais do que à conjuntura local. Além disso, as
ocupações “também revelam a face escura da modernidade, caracterizada
pelo desalojamento, desigualdade e instabilidade, ainda mais dividida em
termos econômicos, sociais, raciais e espaciais“ (Tamayo et al., 2005: 80.
Tradução nossa).
Mais do que o resultado de uma ação oposta à racionalidade e ao or-
denamento, a transformação sofrida pelo 23 de Enero pode ser pensa-
da como uma síntese de forças, em que o projeto moderno encontra a
energia local, eclodindo um novo ordenamento. Nele, cada rua, passagem,
escada e construção compreende uma célula do complexo sistema da “ci-
dade informal” (Tamayo et al., 2005: 75) . Essa síntese entre o projeto mo-
dernista e as casas erguidas pelos populares é sugerida pelo modo como
os moradores se referem ao 23 de Enero, denominado “barrio21 vertical”.
A despeito das transformações no Conjunto 23 de Enero e do declínio
da utopia moderna, em Pelo Malo o racionalismo e a regulação permane-
cem com força, em especial através da atitude ordenadora de Marta que
se torna mais intensa ao longo da trama. Parecendo cada vez mais con-
formada à rigidez que lhe cerca, a dureza da mãe contra o filho atinge seu
limite ao final.
Apesar da leveza impressa nas estruturas de concreto pelo olhar de
Júnior, a Caracas de Pelo malo não é suave como a soft city de Raban22. Ao
fim, ambos os projetos de relativo fracasso (a ordenação modernista que
sucumbe e a reconquista do subemprego mediante sedução do chefe) se
impõem sobre Júnior. A rigidez que se insinuara sobre o personagem ven-

172
ce e é também assumida na composição do espaço na tela. Sem fissuras
para a imaginação ou fruição, o longa termina sobre a austera escola. Re-
metendo à face tenebrosa do mito do projeto moderno, triunfa assim o or-
denamento racionalista que, distante da promessa iluminista de libertação,
oprime e aprisiona (Harvey, 2014).
Na cena final vemos pela primeira vez uma das faces do conjun-
to, que tem aos fundos uma escola. Nem a composição visual, nem a
situação oferecem qualquer saída a Júnior. Alinhados às linhas per-
pendiculares das colunas do colégio, os alunos permanecem em fila.
Sem cabelo, Júnior já não canta mais, permanece sério e calado en-
quanto os colegas recitam o hino nacional que se inicia: “glória ao
bravo povo, que o jugo lançou, respeitando a lei, a virtude e a honra”.

Referências bibliográficas:

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São
Paulo: Edições Loyola, 2014.

LUCENTE, Roberta e MENDES, Patrícia. “The 23 de Enero public housing in Caracas: re-thinking
the relationship between the formal and informal city” in EURAU12 – Espaço Público e Cidade.
Porto: FAUP, 2012.

SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito” in Mana, volume 11, no 02. Rio de
Janeiro: janeiro-outubro/2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132005000200010&script=sci_arttext.

TAMAYO, A.B. et al. Informal city: Caracas case. Nova Iorque: Prestel, 2005.

VERACOECHA, Ermila Troconis de. Caracas. Madri: Fundación MAPFRE, 1992.

Notas:

21. Na Venezuela, e em algumas cidades da América Latina, o termo barrio equivale ao favela
brasileiro.

22. Ver Soft city, publicado por Jonathan Raban em 1974 (apud Harvey, 2014).

173
XXII. A representação da tortura e a
política da memória justa
Corte seco (Renato Tapajós, Brasil, 2014)

Cristina Alvares Beskow e Lúcia Ramos Monteiro

Exercer a violência, libertar o peso com que ela oprime o


peito, com que ela estrangula o pescoço e põe um círculo de
ferro em volta do crânio. Soltar o grito acumulado, o grito
formado por milhares de vozes caladas, o grito jamais pro-
ferido e que libertará todos os fantasmas. O grito que re-
sume toda a dor, que é ao mesmo tempo vermelho como
sangue e luminoso como o sol, um grito maior que a maior
das bombas, a explosão definitiva de tudo o que ficou calado
e não existem palavras para traduzir. O grito de todos os
calados: dos que não falam por medo e dos que não podem
mais falar porque estão mortos. Esse grito que rasgará os
ouvidos, arrebentará os tímpanos e fará saltar a consciência
de todos os bem-pensantes – mensagem inarticulada, selva-
gem, irracional (Renato Tapajós, 1977: 140).

174
A potência criadora da repetição, noção que devemos a Ki-
erkegaard, está inteiramente ligada ao poder de reabrir o
passado sobre o futuro [...]. Para nós, é infinitamente mais
promissora a afirmação segundo a qual repetir não é nem
restituir après-coup nem re-efetuar, mas sim realizar de novo.
Trata-se, aí, de um relembrar, de uma réplica, de uma respos-
ta, até de uma revogação das heranças. A potência criadora
da repetição cabe ela toda no poder de reabrir o passado
sobre o futuro (Paul Ricoeur, 2000: 495).23

Em L’histoire, la mémoire, l’oubli, Paul Ricoeur (2000) põe ênfase na per-


manência do passado no presente e na necessidade de uma política da me-
mória justa. É nessa chave que propomos analisar Corte seco, filme lançado
por Renato Tapajós em 2014, ano em que o golpe que instaurou a ditadura
militar no Brasil completava meio século. Como já era o caso em boa parte
de sua produção anterior, o foco do longa-metragem de Tapajós é o terro-
rismo de Estado praticado durante a ditadura, como se o cineasta estivesse
mais uma vez a reafirmar a necessidade desse trabalho de memória, tanto
na esfera de sua individualidade quanto de maneira coletiva, para toda a
sociedade.
De certo modo, pode-se dizer que o pensamento sobre as narrativas
do trauma e o trabalho de memória a partir de eventos catastróficos en-
controu um ponto de inflexão ao ter de elaborar os horrores das duas
guerras mundiais e dos genocídios que marcaram o século XX. Mais espe-
cificamente, referimo-nos à literatura que se esforça por elaborar a terrível
herança que os campos de extermínio e a bomba atômica – tentativas
deliberadas de aniquilação da humanidade pela humanidade – legam às
gerações posteriores. Não é sem um certo estranhamento que recorre-
mos, nós, pesquisadores e críticos latino-americanos, a essa literatura – de
Benjamin e Hannah Arendt a Claude Lanzmann e Didi-Huberman, sem

175
esquecer do lugar da psicanálise e de Freud nessa trajetória – para elaborar
nossos traumas, em especial aqueles ligados à violência praticada por regi-
mes ditatoriais militares em nossos países, a partir dos anos 1960.
Tal estranhamento deve-se, por um lado, ao fato de que, tomando em-
prestada a fórmula de Jean-Luc Nancy (2012: 11), “as catástrofes não são
equivalentes” e, portanto, elas se tornam, no limite, incomparáveis. Por
outro lado, afirmar o peso paradigmático da Shoah não significa um ol-
vido das catástrofes ocorridas em território brasileiro e latino-americano,
de que nossas sociedades contemporâneas são fruto e cujo trabalho de
memória ainda carece ser feito. Referimo-nos, por exemplo, ao genocídio
ameríndio e africano, iniciados com a colonização e, a esse respeito, o tra-
balho de Frantz Fanon (2005, 2008) ocupa um lugar fundador.24
Ao articular análises de filmes de diversos continentes, resultantes de
diferentes genocídios que marcaram o século XX, Sylvie Rollet (2011) per-
mite-se estabelecer relações entre maneiras de pensar a catástrofe que fo-
ram determinadas em momentos distintos da história. No caso brasileiro,
um dos autores que faz essa ponte é Márcio Seligmann-Silva, no trabalho
de longo fôlego que ele vem desenvolvendo, ao articular conceitos como
trauma, catástrofe, representação e memória. Uma das discussões levan-
tadas por Seligmann-Silva (2000) diz respeito à polêmica que envolve a
representação da catástrofe: afinal, existem imagens que possam representar
a Catástrofe? Se o epicentro da polêmica diz respeito às discussões, em
grande parte protagonizadas por Lanzmann e Didi-Huberman, sobre a
legitimidade de se trabalhar com fotografias de campos de concentração
e extermínio, a questão de fundo é de fato maior: pode um evento catas-
trófico, um trauma, ser figurado? Essa questão tem um longo caminho. Já
estava presente na célebre obra de Lucrécio, De rerum natura25, escrita no
século I a.C., e nunca foi resolvida. De fato, como traduzir imageticamen-
te os genocídios da história da humanidade? Esses acontecimentos são
repletos de imagens indeléveis e, no entanto, a eles se opõe outro extre-
mo, como já refletiu Seligmann-Silva: “o da ausência de imagens” (2012:
63). Como representar histórias de violência que mal deixaram vestígios?

176
Quais os recursos imagéticos possíveis de (re)construção destas histórias
traumáticas?
O cineasta Renato Tapajós encontrou na ficção a melhor forma para
figurar a violência que sofreu nas salas de tortura durante a ditadura civil-
-militar brasileira (1964-1985). A partir desse recurso, reafirma a necessi-
dade de seu trabalho de memória e oferece um caminho para se pensar a
questão da representação do trauma com recursos ficcionais.
Autor de documentários políticos, a maioria deles tratando da militân-
cia de esquerda e dos movimentos populares durante a ditadura, como
Universidade em crise (1966), A luta do povo (1980), Linha de montagem (1981),
Em nome da segurança nacional (1983), No olho do furacão (2002, em codireção
com Toni Venturi), O fim do esquecimento (2013) e A batalha da Maria Antônia
(2013), Renato Tapajós faz, com Corte seco, seu primeiro filme de ficção.
Cinquenta anos depois do Golpe de 1964 e num momento em que os cri-
mes cometidos pelo aparelho repressivo do Estado têm sido investigados,
graças à atuação da Comissão da Verdade, muito embora até hoje nenhum
torturador tenha sido punido, o cineasta lançou o longa que preparava
havia mais de dez anos sobre a tortura no regime militar. A violência e a
crueldade dos torturadores, na época abafadas pelos grandes jornais, são
escancaradas pelo filme. Nesse trabalho de memória, o recurso à narrativa
ficcional tornou-se essencial. Foi a estratégia que o realizador encontrou
para retratar a tortura sofrida pelos presos políticos de maneira absoluta-
mente frontal.
O roteiro de Corte seco baseia-se na própria experiência de Tapajós, que
era membro da Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil, esteve pre-
so e foi brutalmente torturado. Suas lembranças haviam sido relatadas
anteriormente no livro Em câmara lenta (1980), escrito na prisão e conside-
rado pelo autor como um romance26, embora assustadoramente próximo
da realidade.
O filme se inicia com a tomada da Rádio Independência de Santo An-
dré por um grupo de militantes da Ala Vermelha, com o objetivo de trans-

177
mitir um manifesto conclamando os trabalhadores a se organizarem em
seus sindicatos para combater o regime e lutar por justiça social. Rodrigo
e Aldo destacam-se como protagonistas e aparecem acompanhados de
suas respectivas companheiras. Pouco depois, os dois são vistos dividindo
a mesma cela, nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban), onde
passarão sete dias intermináveis, em que o cotidiano de maus-tratos na
cela é intercalado por interrogatórios de terror na sala de tortura.
Embora em nenhum momento recorra ao didatismo, Corte seco oferece
ao espectador referências históricas do ano de 1969: as ações represen-
tadas no filme ocorrem, grosso modo, no período que vai da tomada da
Rádio Independência, efetivamente ocorrida no dia 1º de maio, em Santo
André, ao derrame do General Artur da Costa e Silva (no dia 31 de agosto)
e ao sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (em
04 de setembro), esses dois últimos eventos mencionados no âmbito da
prisão. O personagem Rodrigo é claramente inspirado em Renato Tapajós,
enquanto Aldo baseia-se em Alípio Freire, seu amigo e companheiro de
luta. Assim, Rodrigo é visto com a namorada em seu “aparelho”, sentado à
máquina de escrever e, noutra cena, com a câmera na mão, filmando cam-
poneses no trabalho; Aldo, por sua vez, pinta uma tela, também acompa-
nhado pela namorada. Ambos militantes, em 1969 Tapajós já era cineasta
e Freire, artista plástico. Além disso, o personagem do capitão Guimarães,
cruel e sádico, é uma clara referência a um dos torturadores mais temidos
do período. No filme, ele diz que, na sala de tortura, “todo mundo se cha-
ma Guimarães”. Guimarães era o codinome do Major Beltrão, um dos co-
mandantes iniciais da Oban, denunciado pelo grupo Tortura Nunca Mais.
As cenas de tortura são filmadas em planos longos e frontais, com
sequências de socos, pontapés, baldes d’água fria, choques elétricos no
pau de arara e na cadeira do dragão. A narrativa adota majoritariamente o
ponto de vista de Rodrigo. Um exemplo de sequência filmada desde sua
perspectiva se dá quando ele é encapuzado, no caminho do carro à sala
de tortura: a tela fica negra e a imagem só reaparece quando os policiais
tiram-lhe a venda do rosto. Isso não significa uma incursão em sua subjeti-

178
vidade, já que, de certa forma, o ponto de vista de Rodrigo abarca a visão
de muitos outros presos do período. Isso chega a se manifestar de maneira
concreta nas cenas rodadas dentro da cela, em que a perspectiva do perso-
nagem alterna-se com a dos demais detentos. Pode-se dizer, portanto, que
o foco narrativo do filme, embora cambiante, apresenta uma coerência:
ele pertence aos que sofreram a repressão política. Não se cede à tentação
do personalismo, da vitimização ou do heroísmo. Fica no ar, por exem-
plo, o que terá acontecido com a namorada de Rodrigo, presa ao mesmo
tempo que ele. Resiste-se, dessa forma, à identificação espectatorial e ao
melodrama.
A trilha sonora discreta reforça essa opção, aliada à montagem sem tru-
ques e flashbacks, o que incrementa o realismo das sequências. Além disso,
a transição entre os planos, como indica o título, se dá de forma brusca,
com cortes secos. Acentua-se, assim, o impacto das sequências de tortu-
ra, marcadas por cenas escuras, câmera nervosa, planos fechados e som
de gritos. O corte seco do título também pode ser interpretado como uma
metáfora das diversas rupturas causadas pelos anos de chumbo. Os berros
de dor e sofrimento que ecoam ao longo do filme também podem ser
encarados como o “o grito de todos os calados”, como escreve Tapajós
(1977: 140), na primeira epígrafe deste texto. O grito “dos que não falam
por medo e dos que não podem mais falar porque estão mortos, [...] que
rasgará os ouvidos, arrebentará os tímpanos e fará saltar a consciência de
todos os bem-pensantes”. Assim, neste caso, o espectador pode também
ter um papel ativo na relação com o filme, sendo um participante da nar-
rativa histórica.
Há, portanto, dois movimentos principais. Ao apresentar no campo fíl-
mico a tortura frontalmente, o filme transforma o espectador em testemu-
nha ocular desse período ainda obscuro da história brasileira e também em
alguém que sente os horrores transmitidos na tela. Além disso, ao incluir
referências sutis a personagens reais e fatos históricos, instiga o espectador
a buscar seu contra-campo invisível ou “a parte da sombra, o que não se
mostra, o fora de campo, o subtraído, o ainda não visível e talvez o jamais

179
visível” (Comolli, 2010: 14). Assim, enquanto o filme escancara a tortura,
oculta o que ainda precisa ser investigado fora do campo fílmico.
Nesse sentido, é interessante notar a atenção que o filme demonstra
em relação a presos comuns, que dividem a cela com presos políticos. O
personagem interpretado pelo ator Jesser de Souza, um preso comum, dá
a Rodrigo informações sobre como manter o corpo forte para resistir à
tortura. Outro companheiro de cela é um artista (cujo nome é o mesmo
do videoartista Toshio Matsumoto, e que se tornou notório por filmes que
abordavam a homossexualidade no Japão dos anos 1960 e 1970). Devido à
tortura, Matsumoto acaba por ceder ao delírio. Mais tarde, Rodrigo e Aldo
dividem a cela com um estelionatário francês, aparentemente também ha-
bituado àquele ambiente.
Essa atenção dada a presos comuns funciona como uma estratégia para
deixar claro que a tortura era novidade para os militantes, em sua maioria
de classe média, mas não para a maior parte dos detentos de origem mais
pobre que, aliás, continuam a sofrê-la até os dias de hoje. Assim, o filme
se diferencia do conjunto de produções, sejam elas ficções ou documen-
tários, que se concentram nas trajetórias de presos políticos, narradas de
maneira épica. Talvez se possa estabelecer aí um paralelo com Quase dois
irmãos (Lúcia Murat, 2004), que mostra os destinos de dois presos durante
a ditadura militar, um político e um comum, cujos destinos se encontram
porque compartilham a mesma cela; num outro registro, o filme de Tapa-
jós talvez possa oferecer uma resposta às provocações cínicas de Sérgio
Bianchi em Jogo das decapitações (2013), que procura minimizar o sofrimento
dos presos políticos durante a ditadura ao compará-lo com a tortura en-
frentada atualmente nos presídios brasileiros.
Se, em Corte seco, as referências a fatos e personagens históricos con-
vidavam o espectador a imaginar um contra-campo que permanece invi-
sível no filme, as menções aos presos comuns conduzem a uma reflexão
sobre o futuro da violência instituída pelo regime militar. Assim, não
haveria por que comparar qual violência é maior, a tortura dos milita-
res ou a tortura da polícia atual. Trata-se, na verdade, de uma continui-

180
dade, de um processo que não foi investigado em profundidade e que
deixa marcas da impunidade até os dias de hoje. A violência policial e
a situação carcerária no Brasil de hoje são apenas algumas das provas
dos impactos da carência de uma política da memória justa, para relembrar
o que diz Ricoeur, ou seja, da necessidade de se pensar o passado no
presente. Corte seco oferece uma inegável contribuição nesse sentido e re-
força a necessidade tão atual de elaboração dessa memória, que também
se traduz na frase de Alípio Freire, lembrado por Tapajós no filme, “nós
sobrevivemos ao pau de arara, mas o pau de arara também sobreviveu”.

Referências bibliográficas:

COMOLLI, Jean-Louis. Cine contra espectáculo seguido de técnica e ideología. Buenos Aires:
Manantial, 2010.

DELEUZE, Gilles. Le Bergsonisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1966.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

LUCRÉCIO. Da natureza (séc. I a.C.). São Paulo: Abril Cultural, 1980. Também disponível em
EPICURO, LUCRÉCIO, CÍCERO, SÊNECA, MARCO AURÉLIO. Antologia de textos, coleção Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

MAUÉS, Eloísa Aragão. “30 anos de uma prisão” in Carta Maior, setembro de 2007. Disponível
em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/30-anos-de-uma-prisao/12/13553. Acesso em 01 de
abril de 2015.

NANCY, Jean-Luc. L’Équivalence des catastrophes (Après Fukushima). Paris: Galilée, 2012.

NESTROVSKY, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo:


Escuta, 2000.

RICOEUR, Paul. L’histoire, la mémoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.

ROLLET, Sylvie. Une éthique du regard. Le cinéma face à la Catastrophe, d’Alain Resnais à Rithy
Panh. Paris: Hermann, 2011.

181
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Imagens do trauma e sobrevivência das imagens: sobre as hiperima-
gens” in CORNELSEN, Elcio Loureiro; SELIGMANN-SILVA, Márcio e VIEIRA, Elisa Maria Amorim
(orgs.). Imagem e memória. Belo Horizonte: Rona Editora, FALE/UFMG, 2012.

TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.

Notas:

23. Nesta e nas demais citações, quando o texto original estiver em uma língua diferente do
português, a tradução é de responsabilidade das autoras.

24. Na célebre obra Os condenados da terra, Fanon reflete sobre os efeitos catastróficos da colo-
nização nos países de “terceiro mundo”. Segundo ele, “o colonialismo e o imperialismo não estão
quites conosco quando retiraram de nossos territórios as suas bandeiras e as suas forças policiais.
Durante séculos, os capitalistas se comportaram, no mundo subdesenvolvido, como verdadeiros
criminosos de guerra. As deportações, os massacres, o trabalho forçado, o escravagismo foram os
principais meios utilizados para aumentar as suas reservar de ouro e diamantes, suas riquezas, e
para estabelecer a sua potência” (2005: 121).

25. Lucrécio traz uma reflexão fundadora sobre a posição de quem observa um evento catastró-
fico e, no limite, sobre a possibilidade de uma obra de arte representar a catástrofe. Um dos versos
do prooemium do segundo livro diz o seguinte: “É doce, quando no mar imenso os ventos agitam
as águas / observar a partir de terra as tribulações alheias”, ou em outra tradução: “É bom, quando
os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão
passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom
presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes combates de guerra
travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo” (1985: 111).

26. A palavra “romance” aparece na capa do livro, provavelmente como uma estratégia do autor
para driblar a censura do período. Mesmo assim, a obra foi proibida de circular e, em virtude de
sua publicação, Tapajós foi novamente preso, em 27 de julho de 1977 (Maués, 2007). Na pasta
que contém a documentação ligada à prisão de Tapajós, localizada no acervo do DOPS, atual-
mente depositada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, consta a seguinte descrição sobre
o livro: “não se trata de uma ficção, mas sim de uma apologia da subversão, do terrorismo e da
guerrilha rural e urbana, em todos os seus aspectos, cujo texto tem como personagens principais
o próprio Renato Carvalho Tapajós”. Na mesma época, Antônio Candido escreveu um parecer
crítico sobre o livro, contrariando as afirmações do órgão da repressão judicial e denunciando a
arbitrariedade do Estado (Idem).

182
XXIII. O Estado ausente e a
destruição da natureza
Matar a um homem (Matar a un hombre,
Alejandro Fernández Almendras, Chile/França, 2014)

Alexsandro de Sousa e Silva

Matar a un hombre é o quarto filme na carreira do chileno Alejandro


Fernández, que também dirigiu e escreveu os roteiros de Lo que trae la lluvia
(2007), Huacho (2009) e Sentados frente al fuego (2011). No enredo marcado
pelo gênero thriller, Jorge, trabalhador de uma área florestal, e sua família –
a esposa Marta e filhos Nicole e Jorgito – são assediados por Kalule e seus
comparsas, sem motivo aparente. Pressionado pela falta de escrúpulos do
inimigo e pela ausência de amparo por parte da justiça, Jorge assassina-
-o e esconde o corpo. Sem perspectiva de seguir com a família e diante
da inércia do Estado em investigar o desaparecimento de Kalule, Jorge
recolhe o cadáver e se entrega aos carabineros. O roteiro simples, baseado
em fatos reais, dá suporte a um cuidadoso trabalho de mise en scène, o que
nos faz pensar em três questões, que se entrelaçam ao longo da narrati-
va: a temática que relaciona a omissão do Estado com a busca do “fazer

183
justiça com as próprias mãos” por parte dos indivíduos; o trabalho com a
câmera, que combina um predomínio de planos fixos com alguns travellings
em momentos precisos; e, finalmente, uma problemática articulação entre
homem e natureza.
A primeira questão é de ordem temática. Diante da omissão do Estado
em proteger seus cidadãos, restou ao pacato Jorge buscar a saída pelas pró-
prias mãos. Aqui no Brasil, tivemos casos similares, mas de outra natureza.
No começo de 2014, coincidentemente ao lançamento do filme de Ale-
jandro, um grupo de moradores de classe média alta do Rio de Janeiro lin-
chou um menor de idade, acusado de roubar uma mulher, e o prendeu jun-
to a um poste de ferro, deixando-o sem roupas e atado pelo pescoço. Esta
imagem atroz remete à época da escravidão, à maneira como se castigavam
os escravos. Em maio do mesmo ano, um grupo de populares linchou e
assassinou uma mulher acusada erroneamente de sequestrar crianças no
Guarujá, São Paulo. Seu corpo foi filmado e colocado em redes virtuais
para a apreciação dos olhares sádicos. Foram mais de trinta infelizes casos
de “justiçamentos”, realizados por pessoas insatisfeitas com a lentidão da
Justiça e crentes de que os “criminosos”, todos cidadãos pobres, tinham
que “pagar caro” pelos seus crimes. Mas o filme em questão passa por
outro caminho.
Jorge e sua família buscaram amparo legal nas instâncias devidas. O
julgamento de Kalule, que havia molestado e atirado em Jorgito, senten-
ciou-o a um ano e meio de prisão. Marta achou pouco, mas a advogada,
que achou a decisão satisfatória, afirmou que não havia mais testemunhas
além do próprio Jorge para ampliar a pena. De fato, há um grande vazio
nas ruas de Tomé e Concepción, onde o filme foi rodado. As relações
humanas, conflituosas ou não, são retratadas em sua maioria em espaços
fechados: na casa da família, nas delegacias, no tribunal, no salão de ca-
beleireiros de Marta, nos bares, no trabalho de Jorge. Os espaços abertos,
por sua vez, são lugares de abandono e tensões. Por exemplo, os flaites
(termo pejorativo a jovens agressivos, geralmente vinculados ao mundo
das drogas) “se divertem” nestes lugares: assaltaram Jorge, acossaram sua

184
filha e agrediram Jorgito duas vezes. Na agressão sexual de Kalule a Ni-
cole, em plena luz do dia, apenas os comparsas assistiam à cena no carro.
Um senhor no alto do plano até vê o crime à distância, porém vai embo-
ra calmamente. Sabendo desse vácuo humano no espaço aberto, Jorge
sequestra seu desafeto e o conduz à morte, ocorrida dentro da caçamba
fechada de um caminhão utilizado para transporte de cargas refrigeradas.
Dessa forma, os espaços abertos configuram-se em territórios de conflito,
com ausência de convívio e harmonia social.
As decisões de Jorge em assassinar o inimigo, esconder o corpo, recu-
perá-lo e entregá-lo às autoridades não são realizadas friamente. Como é
comum acontecer nos thrillers, as cenas do sequestro e da morte de Kalule
são longas e tensas, com breve intervenção musical, violoncelos e clarine-
tes, que ligam as duas sequências. A música com essa base instrumental
e o som da gaita tocada por Jorge expõem de forma sonora a tensão do
protagonista ao longo do filme. No entanto, o silêncio é personagem que
marca presença, como uma forma sonora de sintetizar o vazio representa-
do no espaço público. A insegurança de Jorge, segurando a arma e impro-
visando um meio de capturar o inimigo, é acompanhada pela câmera, que
registra a atuação de Daniel Candia. O pai da família olha para os lados,
quase arrependido, não acreditando no que está fazendo. A estratégia de
capturar Kalule foi utilizar-se do alarme do carro, de madrugada. A inter-
mitência entre os sons do alarme, a cada vez que Jorge batia no carro e o
outro desativava o ruído com o controle, ressalta a presença do silêncio e
do vazio na rua. Intrigado com o alarme, Kalule vai conferir o automóvel
e é rendido por Jorge. Em seguida, na hora do crime fatal, segue a incer-
teza do protagonista, que abre a porta da caçamba, parece querer fuzilar
o inimigo, fica em dúvida, manda voltar, tranca. Ouvimos Kalule em off
desculpando-se e amaldiçoando Jorge. Este tem a ideia de asfixiar o inimi-
go com a fumaça do escapamento, e acompanhamos todo o processo até
os primeiros sinais do humo saindo pelas frestas da caçamba. Mais uma
vez, o espaço aberto está vazio.
Os carabineros e os oficiais de justiça são figuras simbólicas do poder

185
do Estado e mostram as limitações da mesma instância em lidar com as
dificuldades do cotidiano civil. A formalidade dos espaços inibe os per-
sonagens e os fazem seguir as regras impostas. Nas delegacias, vemos a
imagem do então Presidente Sebastián Piñera (2010-2014) sorridente nos
quadros. Os retratos oficiais destoam da gravidade das situações mostra-
das, como se o Presidente estivesse se divertindo. Suas “marionetes”, os
funcionários públicos, preocupam-se apenas com os documentos (teste-
munhas, fotos, vídeos) que comprovem as agressões denunciadas. Buro-
cratização. Marta, numa excelente atuação de Alejandra Yañez, mostrando
um temperamento explosivo e verborrágico, reclama que as investigações
nunca são feitas, e que o criminoso nunca será detido. Estado e sociedade
civil parecem viver em duas instâncias distintas.
A segunda questão entrelaçada na narrativa é o trabalho com a câmera,
constantemente estática. Há um dado intrigante: prevalece ao longo do fil-
me uma forma peculiar de enquadramento, algo como um plano america-
no, porém a câmera é posta mais para o alto, de forma que os personagens
sejam mostrados muitas vezes dos ombros para cima. A ação concentra-se
na porção inferior da tela, enquanto na metade superior veem-se, sobretu-
do, os elementos de cenografia. Nas cenas das delegacias, por exemplo, é
na parte superior da tela que são exibidos os retratos sorridentes de Sebas-
tián Piñera. Tal forma de enquadramento empurra os personagens sempre
para baixo, como uma forma de inferiorização.
A ausência de movimentos de câmera é recorrente ao longo da película,
dentro do enquadramento acima descrito. A fixidez do aparelho e este tipo
de quadro são notados tanto nas filmagens realizadas em interiores como
em exteriores. Há uma cena em que a família é atacada por Kalule e seus
companheiros que só entendemos pelo som em off: as ameaças do crimi-
noso, os sons dos impactos das pedras (ou outros objetos) contra a porta e
a parede externa, os vidros se quebrando. A tensão do lado externo resulta
no nervosismo da família no plano interior, defendendo-se e, ao mesmo
tempo, sendo obrigada a registrar a cena para acumular provas e, assim,
poder ter uma suposta vantagem na hora do julgamento que nunca chega.

186
A câmera no ombro em movimento, em geral travellings para trás, é re-
servada a momentos de tensão: as duas vezes que Jorge passa pelos flaites
no pequeno campo de futebol, a expulsão de um homem da área florestal,
o sequestro de Kalule e a chegada ao posto de carabineros para se entregar.
São cenas de conflito no espaço aberto. Chama a atenção a sequência de
conflito com um homem que “invade” o lugar de trabalho de Jorge, o
Centro de Investigación Forestal Santa Julia. Mesclando planos estáticos
com o plano final em movimento, o protagonista sai de um serviço com
agrotóxico, vê a fumaça (sequências antes, Jorge aterrara uma pequena
fogueira) e tenta convencer o “invasor” a sair daquela “propriedade pri-
vada”. O homem, como reação, quer agredir o protagonista, que retorna
armado e o expulsa. A luz do sol faz estourar a fotografia, demarcando
uma virada no filme: entendemos que a luminosidade aponta um “esclare-
cimento” para a solução dos problemas de Jorge. Posteriormente, a mes-
ma arma será usada no sequestro de Kalule.
No último plano do filme, quando Jorge chega com o caminhão para
entregar o cadáver, há uma síntese entre as duas formas de movimento de
câmera mais presentes na tela. Um travelling para trás mostra o protagonis-
ta dirigindo o veículo entrando em diversas esquinas, com as ruas vazias.
Chegando ao estacionamento, a câmera fica estática, de forma a mostrar a
traseira do caminhão e a porta de acesso à caçamba. Assim permanece até
escurecer a tela, quando escutamos os sons em off das portas se abrindo,
encerrando a narrativa e dando início aos créditos finais. Movimento e es-
taticidade se combinam no final, de forma a equacionar as tensões e fazer
o desfecho: Jorge, então divorciado de Marta, não vê sentido em continuar
com a família (nas cenas domésticas predominam os planos estáticos) e
resolve encarar o preço de suas ações (nesses momentos, a câmera está
em movimento).
Finalmente, a última problemática refere-se à representação da dinâmi-
ca entre o ser humano e a natureza no filme. Ao longo da narrativa, apa-
recem indícios sobre o trabalho de Jorge que, numa primeira vista, não se
relacionam com o núcleo dramático principal do filme, a morte a Kalule.

187
A primeira imagem do filme é uma floresta, vista em plano geral. Vemos
o protagonista, à distância, caminhar entre as árvores. A trilha musical po-
tencializa nesse plano um momento de tensão, num crescendo ao longo
da cena. Na sequência seguinte, Jorge toma insulina em meio às árvores,
guarda suas coisas no Centro de Investigación Forestal, e se prepara para
retornar para casa. Após o julgamento de Kalule, a narrativa salta dois
anos adiante, e vemos Jorge cortando árvores; está sozinho, divorciado
de Marta (as causas não são claramente expostas ao espectador). A partir
de então, em sua nova vida, surgem novas evidências sobre o trabalho do
protagonista: um caminhão carregado de madeiras, um empreendimento
imobiliário à beira mar; a confirmação de que é guarda de uma “proprie-
dade privada”; as árvores derrubadas.
Assim sendo, relacionamos a derrubada das árvores, a cargo de Jorge,
com a construção de habitações luxuosas. O local de trabalho é um am-
biente isolado, de forma que só vemos o homem em serviço. Além dele,
os únicos a adentrarem o local são o “invasor” em efêmera passagem, o
corpo de Kalule e os carabineros – estes últimos buscando-o para prestar
depoimento sobre o desaparecimento do inimigo de Jorge.
Há outras referências à natureza, cada vez mais rarefeitas. Pouco antes
dos carabineros intimarem Jorge, o personagem estava numa pequena área
de plantas (não as vemos bem devido ao enquadramento peculiar) equipa-
do com roupa branca especial e caracterizado como quem aplicasse pro-
dutos químicos. Aparentemente, parece um espaço para testes. Isso não é
explicado ao espectador. Mas a devastação da natureza continua. Daí até o
final da película não vemos mais rastros de florestas como víamos nas pri-
meiras sequências. Mais uma vez, o filme não explicita as razões. Convém
não explicitar. As sugestões abrem caminhos interpretativos e não encer-
ram totalmente a película, que dá margem para leituras simplistas, uma vez
que o roteiro não traz grandes complexidades. As “pistas” que seguimos
indicam que Jorge seria um instrumento do avanço do liberalismo sobre o
patrimônio ambiental, tema que gerou constantes mobilizações no Chile
por parte dos ambientalistas nas últimas décadas.

188
O paralelo resulta um tanto frágil para argumentar nessas linhas, mas
acreditamos que haja uma relação entre o abandono da coisa pública por
parte do Estado, sintetizado visualmente nas ruas vazias e na liberdade dos
flaites pela cidade, e a devastação da natureza para empreendimentos pri-
vados, conforme os indícios do trabalho de Jorge no filme. Ambas estão
inseridas na lógica do “Estado mínimo”, defendida pelos liberais desde
Adam Smith até sua imposição no Chile, pela força, durante a ditadura
militar (1973-1990) através dos Chicago Boys, que ocuparam cargos pú-
blicos para beneficiar interesses privados de grandes corporações. A lógica
seguiu com os anos de governo da Concertación (1990-2010). A violência,
outra “herança” dos militares, também se faz presente na narrativa fílmica,
porque será o recurso explorado pelo protagonista para conseguir “nor-
malizar” a situação. Foi assim com o “invasor” na “propriedade privada”
onde trabalha, e assim seria com o criminoso que ocupa o espaço abando-
nado pelo poder público.
Voltando à película, as imagens que sintetizam a ausência do Estado
e a devastação da natureza estão na sequência em que Jorge carrega o
cadáver de Kalule. O corpo deformado é encontrado no quarto do em-
preendimento imobiliário próximo ao local de trabalho (vazio de presença
humana, por sinal) e é arrastado envolto num plástico. O “trabalho sujo” é
executado em meio a paisagens que se afastam da floresta e se encaminha
ao mar, que rejeitará o defunto posteriormente. O plano geral e estático
que mostra o protagonista tentando arrastar o corpo é sintomático: a trilha
de terra corta a imagem em diagonal, de forma que a ação concentre-se na
parte inferior e central da tela. O amplo espaço é cercado por uma vege-
tação rasteira, com rochas no canto superior esquerdo da tela. São quase
40 segundos de um plano geral que exibe um ambiente sem árvores, sem
testemunhas, sem guardas e sem música, representando uma espécie de
via-crúcis de Jorge carregando sua “cruz” e com uma temporalidade que
estende a tensão da cena. O cadáver é o pedaço indesejado, que não cabe
numa cidade “civilizada” nem em meio à natureza.
A última dose de insulina que Jorge se aplica no filme é vista no banhei-

189
ro de um prostíbulo, em uma das derradeiras cenas da narrativa. Junto
com a devastação da natureza, está a destruição da própria moral do pro-
tagonista. Sobreviver naquela vida pacata não parecia mais fazer sentido.
No trabalho, a solidão. Na família, a indiferença. A prostituta se nega a
continuar o trabalho com ele. A extensa vegetação que abriu o filme está
agora ausente. O corpo do inimigo, abandonado a céu aberto, na beira
do mar. O Estado não investiga as denúncias. Resta a última ação que
visa dar dignidade a si mesmo, uma vez que ninguém, nem empresa, nem
Estado, nem família, talvez nem mesmo o espectador, pode dar valor a
sua existência. Fica uma questão ao terminarmos de assistir à película: ao
falarmos de “matar um homem”, título do filme, estaríamos nos referindo
ao assassinato de Kalule ou ao extermínio da própria humanidade ante a
indiferença com o outro e com a natureza?

190
XXIV. Autores

Alexsandro de Sousa e Silva é bacharel e licenciado em História pela


Universidade de São Paulo (USP), mestrando em História Social pela
USP e professor da rede estadual de educação de São Paulo. Partici-
pante dos seguintes grupos: Laboratório de Estudos sobre História das
Américas (LEHA), Associação dos Professores e Pesquisadores de
História das Américas (ANPHLAC) e História e Audiovisual: circu-
laridades e formas de comunicação (Escola de Comunicações e Artes
– ECA e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH).

Carla Daniela Rabelo Rodrigues é professora adjunta do bacha-


relado em Produção e Política Cultural na Universidade Federal do
Pampa (UNIPAMPA). Doutora e Mestre em Ciências da Comuni-
cação pela ECA/USP. Pesquisou temas como: ética na publicidade
audiovisual infantil, comunicação de risco e documentário. Atu-
almente se dedica ao estudo do cinema peruano contemporâneo.

Cristina Alvares Beskow é doutoranda em Meios e Proces-


sos Audiovisuais na ECA/USP e pesquisa o cinema militante
do Nuevo Cine Latinoamericano das décadas de 1960 e 1970,
com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP). Fundadora da Camará Comunicação e
Educação Popular e do Coletivo de Comunicadores Popula-

191
res e integrante da comissão organizadora de seis edições da
Mostra Luta, em Campinas, entre os anos de 2008 e 2013.
Desde 2006, trabalha com produção audiovisual.

Cristina de Branco é mestre em Antropologia Visual pela Uni-


versidade Nova de Lisboa com o projeto intitulado Invenção latino-
americana através do audiovisual a partir da Oficina Popular de Audiovisual
Latino-americano. Dedica-se hoje ao estudo de diferentes cinemato-
grafias latino-americanas e indígenas contemporâneas e trabalha
em mediação cultural, criação e produção audiovisual em São
Paulo.

Daniela Gillone é professora e pesquisadora de cinema e audio-


visual. Com pós-doutorado pela ECA/USP, desenvolveu pesqui-
sas com apoio FAPESP e CNPq (Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico). É docente colaboradora
no curso de pós-graduação em Comunicação Social do Centro de
Pesquisa e Pós-Graduação das Faculdades Metropolitanas Unidas
(CPPG/FMU). Sua área de pesquisa abrange a percepção estética
e política das imagens cinematográficas.

Dirceu Antonio Scali Junior é doutor e mestre em Psicologia


Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), graduado em Letras e Psicologia e docente na PUC-Campi-
nas. Autor do livro Retratos de subjetivação: nuanças na migração campo-
cidade pequena/metrópole (Casa do Psicólogo, 2002).

Jennifer Cazenave desenvolve seu pós-doutorado no Departa-


mento de Estudos Franceses e Francófonos da Faculdade Ho-
bart and William Smith (Estados Unidos). Doutora em Cinema
e Literatura Comparada pelas Université de Paris VII (França) e
Northwestern University (Estados Unidos). Sua pesquisa enfoca
as relações entre documentário, história e subjetividade. Publicou
diversos artigos sobre as representações do Holocausto na litera-
tura e no cinema e sobre a história da cinefilia francesa.

192
Lívia Fusco é mestre em Comunicação pela Universidade An-
hembi Morumbi, especialista em Crítica de Cinema pela Fundação
Armando Álvares Penteado (FAAP) e Bacharel em Comunicação
Social com Habilitação em Radialismo pela Universidade Metodista
de São Paulo. Atua como pesquisadora do cinema latino-americano
desde 2009 e tem experiência na produção de grandes festivais na-
cionais e internacionais de cinema. Trabalhou como produtora no
setor de Difusão da Cinemateca Brasileira entre 2014 e 2015.

Lúcia Ramos Monteiro é doutora em cinema pela Univer-


sidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 e em Ciências da Comu-
nicação pela ECA/USP. Foi professora assistente do curso
de cinema da Sorbonne Nouvelle Paris 3 e da Universidad
de las Artes de Guayaquil, Equador. Coorganizadora, com
Philippe Dubois e Alessandro Bordina, do livro Oui, c’est du
cinéma. Formes et espaces de l’image en mouvement (Campanotto Edi-
tore, 2009), vem trabalhando como curadora de mostras de
filmes junto ao coletivo parisiense Le Silo, na articulação en-
tre cinema e arte contemporânea.

Luís Fernando Beloto Cabral é graduando do curso de História


da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). De-
senvolve um projeto de iniciação científica, vinculado à FAPESP,
relacionado aos documentários sobre fatura artesanal presentes na
Biblioteca do Memorial da América Latina.

Marília Bilemjian Goulart é mestre pelo Programa de Meios e


Processos Audiovisuais da ECA/USP com a dissertação Um Salve
por São Paulo – narrativas da cidade e da violência em três obras recentes.
É graduada em Ciências Sociais, tendo realizado pesquisas sobre
violência nas cidades através da Antropologia e da Sociologia da
Comunicação. Atualmente trabalha na Coordenação de Direito à
Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos e Cidada-
nia da Prefeitura de São Paulo.

193
Marina da Costa Campos é mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar) e graduada em Comunicação – Bacharelado em
Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2014,
atuou como Especialista em projetos audiovisuais pelo Ministério
da Cultura. Compõe o grupo editorial da Imagofagia – Revista de la
Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAE-
CA). É representante discente da Sociedade Brasileira de Estudos
de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Atualmente, dedica-se ao es-
tudo sobre cineclubismo, História e produção em super-8.

Miguel Dores é português e imigrante em São Paulo há cerca


de dois anos. Formado em Estudos Artísticos: Artes e Culturas
Comparadas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lis-
boa, desenvolveu trabalhos acadêmicos sobre literatura e cinema
da América Latina e da África. Atualmente correaliza projetos
culturais ligados ao contexto migratório da cidade de São Paulo,
através do enfoque múltiplo da produção, recepção e formação
audiovisual.

Mona Perlingeiro é bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela


UNIFESP, pesquisadora de história e cultura árabe, povos do Ori-
ente Médio e norte da África. Integrante do Coletivo Resistência
Cultural. Professora de Sociologia no cursinho popular da Asso-
ciação Cultural dos Estudantes e Pesquisadores da Universidade
de São Paulo (ACEPUSP) e educadora em diversas instituições,
como a Fundação Bienal de São Paulo.

Mônica Brincalepe Campo é doutora em História Cultural pela


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com a tese inti-
tulada História e Cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e
Beto Brant. Possui artigos publicados em diversos periódicos e tem
se dedicado às pesquisas em torno das relações entre História e
Cinema. É professora no Instituto de História (INHIS) da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (UFU) desde 2011.

194
Natalia Christofoletti Barrenha é doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Multimeios da UNICAMP, onde desenvolve
um projeto sobre a representação do espaço urbano no cinema
argentino contemporâneo com apoio da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Autora do
livro A experiência do cinema de Lucrecia Martel: resíduos do tempo e sons
à beira da piscina (Alameda Editorial/Fapesp, 2013). Membro do
corpo editorial da Imagofagia – Revista de la Asociación Argentina
de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA) e da Cine Documental.

Rodrigo Frare Baroni é aluno de graduação do curso de Ciências


Sociais da UNIFESP. Além de participar do GECILAVA, também
integra o Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB).

Rosângela Fachel de Medeiros possui doutorado e mestra-


do em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e graduação em Comunicação Social
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS). Atualmente é professora do Mestrado em Letras – Literatura
Comparada da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI), atuando nas linhas de pesquisa Comparatismo
e Processos Culturais e Leitura, Linguagens e Ensino.

Sérgio César Júnior é mestrando e graduado em História pela


UNIFESP. Pesquisador da linha de estudos visuais, cultura visual,
história-cinema e história cultural, especializando-se em assuntos da
história do Brasil República e história do cinema brasileiro do perío-
do pós-1945. Atualmente, em sua dissertação, estuda o filme Canto
da saudade (1952), de Humberto Mauro, com apoio da FAPESP.
Membro do GECILAVA e do grupo de estudos História e Audiovi-
sual: circularidades e formas de comunicação (ECA/USP).

Thiago Carvalho é bacharel em Letras pela USP, com interesse


pela interdisciplinaridade e diálogo entre as linguagens artísticas.
Pesquisa as áreas de Filosofia e História, fazendo sempre maté-

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rias nesses cursos como formação paralela na universidade. Atual-
mente dedica-se à área de literatura comparada e tem como hori-
zonte um projeto em literatura angolana.

Vanderlei Henrique Mastropaulo é pesquisador de cinema la-


tino-americano, geógrafo pela FFLCH/USP e mestre em Comu-
nicação e Cultura pelo Prolam/USP (Programa de Integração da
América Latina) com a dissertação As ditaduras militares no cinema la-
tino-americano da democracia – os casos de Brasil e Argentina (1982-2007).

Yanet Aguilera Viruez Franklin de Matos é doutora em Filoso-


fia e Cinema pela FFLCH/USP e professora do Departamento
de História da Arte da UNIFESP. Organizadora e curadora dos
livros Entre quadros e esculturas: Wesley e os fundadores da Escola Brasil
(Discurso Editorial, 1997) e Preto no branco: a obra gráfica de Amilcar
de Castro (Discurso Editorial/Editora UFMG, 2005). Diretora, ro-
teirista e produtora do curta-metragem Preto no branco (2005). Ide-
alizadora do COCAAL – Colóquio de Cinema e Arte na América
Latina, realizado anualmente desde 2013.

O Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema Latino-america-


no e Vanguardas Artísticas) é formado por Amanda Aran-
tes (UNIFESP), Daniela Gillone (USP), Dirceu Antônio Scali
Junior (PUC- Campinas), Janaína Andrade (UNIFESP), Lívia
Fusco (UAM), Lucia Ramos Monteiro (USP), Marília Bilemjian
Goulart (Marie Goulart) (USP), Marina Machado (UNIFESP),
Mona Perlingeiro (UNIFESP), Natalia Christofoletti Barr-
enha (UNICAMP), Ormuzd Alves (UNIFESP), Rodrigo Bar-
oni (UNIFESP), Sérgio César Júnior (UNIFESP), Thays Salva
(UNIFESP), Yanet Aguilera Franklin de Matos (UNIFESP –
coordenadora) . Este foram os membros que participaram da
confecção dos quatro textos coletivos. Fazem parte do Gecilava
também Carla Daniela Rabelo Rodrigues (UNIPAMPA), Cristina
Alvares Beskow (USP), Cristina de Branco (UNINOVADELIS-
BOA), Lúcia Ramos Monteiro (USP), Luís Fernando Beloto Ca-
bral (UNIFESP), Marina da Costa Campos (USP), Miguel Dores
(UNIDELISBOA), Rosângela Fachel de Medeiros (UFRGS),
Vanderlei Henrique Mastropaulo (USP).

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