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autonomia
Heriberto Cairo*
Este artigo procura entender as transformações nas formas de inserção da América Latina no
contexto de eras geopolíticas, buscando explicitar suas causas e, sobretudo, suas conseqüênci-
as, no contexto da nova geopolítica contemporânea, em que a região se desloca de uma posição
marginal ou passiva para assumir contornos próprios de autonomia, às vezes marcados como
zonas de perigo. A análise ultrapassa a simples posição da região na geopolítica Ocidental e
baseia-se num exercício de uma geopolítica do conhecimento. Para tanto, o autor resgata as
principais contribuições da literatura sobre processos de continuidade de ordens geopolíticas
permeadas de mutações, identificando as sucessivas eras geopolíticas de John Agnew que,
grosso modo, se correlacionam com as ordens geopolíticas existentes: a geopolítica
naturalizadora, do início do século XX; a era pós Segunda Guerra Mundial, da geopolítica
ideológica; e a formação de uma nova era geopolítica com o fim da Guerra Fria.
PALAVRAS-CHAVE: América Latina, geopolítica moderna, geopolítica do conhecimento, represen-
tação do espaço, hegemonia.
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A AMÉRICA LATINA NOS MODELOS GEOPOLÍTICOS MODERNOS...
ordem da globalização militarizada, por falta de diplomatas e militares que, obviamente, respon-
consenso sobre a questão, a qual se traduz por um dem a uma determinada visão do Estado.
discurso homogeneizador da geopolítica, cujo con- Ocuparemo-nos agora da América Latina
teúdo seria estender as formas econômicas de mer- nos modelos geopolíticos modernos, o que supõe
cado de acesso livre e as formas políticas de demo- situar nossas indagações no início do século XX,
cracia representativa a todo o planeta. com o primeiro modelo geopolítico formal formu-
Nessas ordens geopolíticas, a política mundi- lado pelo inglês Halford T. Mackinder, para, em
al foi organizada em torno de caracterizações do es- seguida, transitar pela era geopolítica da Guerra
paço definidas por sucessivos discursos geopolíticos Fria e, finalmente, analisar os modelos posteriores
que formulam, ao mesmo tempo, modos de repre- ao final da Guerra Fria, que oferecem novas formas
sentação dos espaços. São as eras geopolíticas, se- de pensar a América Latina no mundo. Não se
gundo a definição de John Agnew (2003). Elas trata apenas de caracterizar a América Latina na
correspondem, grosso modo, aos três períodos das tradição geopolítica ocidental, mas de fazer um
ordens geopolíticas: a geopolítica civilizacional, a exercício de geopolítica do conhecimento como tão
geopolítica naturalista e a geopolítica ideológica. magistralmente o fizeram recentemente autores
Essas periodicidades não são absolutamente exa- como Walter Mignolo (2005) ou David Slater (2004)
tas. Existem continuidades entre elas, mas, em cada sobre essa região.
período, diferentes princípios se inter-relacionam de
diversas maneiras, produzindo uma combinação
distinta de representações e práticas geopolíticas, e, REGIÃO MARGINAL NA GEOPOLÍTICA NATU-
nesse caso, também, as eras geopolíticas estão asso- RALISTA
ciadas aos períodos hegemônicos, ainda que não
coincidam exatamente com eles. Segundo Agnew, Na era da geopolítica naturalista, que coin-
cide, grosso modo, com a ordem geopolítica da ri-
a imaginação geopolítica dominante, que retro-
cedeu nesses períodos, teria antigas raízes no cres- validade inter-imperial, vão se desenhar modelos
cimento do capitalismo e da formação dos Esta- geopolíticos cuja principal característica
dos na Europa, no início da era moderna e na
expansão européia sobre o resto do mundo. As
hegemonias que caracterizariam as diferentes foi enfatizar o caráter determinante da localiza-
eras não estão livres de contradições nem de crí- ção geográfica ou das condições ambientais. O
tica. De fato, partindo de suas contradições inter- relativo êxito de certos Estados na competição
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nas é que as velhas hegemonias são subvertidas, internacional era atribuído às vantagens absolu-
e surgem as novas (2003, [2005, p.103]). tas que sua localização lhes proporcionava e a
algumas condições meio ambientais superiores”
(Agnew, 2003, [2005, p.119]).1
Na conformação da imaginação geopolítica
de cada era, as universidades e os institutos de Um Estado estaria condenado, por exem-
pesquisa desempenham um papel fundamental. plo, à falta de estabilidade, caso se encontrasse em
É a geopolítica teórica que, junto à geopolítica prá- uma localização maldita, enquanto poderia gozar
tica dos intelectuais do Estado, como diplomatas e de certa tranqüilidade em outras latitudes. A ex-
militares, conformam a visão geopolítica de cada plicação do comportamento dos Estados, nesse tipo
Estado. Os modelos geopolíticos não só proporci- de geopolítica, respondia a uma metafísica do solo,
onam uma representação do espaço perfeitamente do território: acompanhavam forças telúricas das
ordenada, mas também são um lócus de enunciação quais, em termos gerais, não poderiam escapar.
muito mais poderoso que o de outras representa- Não faremos uma análise exaustiva de to-
ções do espaço. Os modelos são científicos, ou seja,
1
são considerados verdadeiros e neutros – ignoran- Isto é o que poderíamos considerar como o pecado origi-
nal da Geopolítica como disciplina, já que, muitas vezes,
do-se, freqüentemente, seu caráter interessado –, acaba sendo associada a essa forma particular de abordar
a análise das práticas espaciais dos Estados e de suas
diferentemente do conhecimento formulado por representações.
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dos os modelos elaborados. Ocuparemo-nos do qual dominam a barbárie e o caos, serão direta-
primeiro e mais importante, o de Mackinder, do mente refletidas nos mais distantes cantos do glo-
de Nicholas J. Spykman, que o segue, e de outro bo e, por esta razão, os elementos frágeis do orga-
modelo, de certa forma alternativo, o de Karl nismo político e econômico do mundo serão des-
Haushofer. troçados.” (Mackinder, 1904 [1975, p.66]).3
Em tais circunstâncias, e a partir dessa per-
cepção, Mackinder elaborou seu conhecido mode-
O caráter crucial da obra de Mackinder lo (Figura 1), apresentado primeiramente no artigo
The geographical pivot of history, publicado em
A obra de Mackinder foi de importância 1904, na revista Geographical Review, e desenvol-
capital no surgimento da Geopolítica,2 ou seja, foi vido extensamente num livro posterior, publicado
Mackinder quem conformou essa subdisciplina tal em 1919, Democratic Ideals and Reality. Com base
como hoje a conhecemos; e foi ele precisamente na interpretação da história européia, Mackinder
quem encaixou as diversas peças do conjunto. considerava que o Estado que ocupasse o coração
Não é por acaso que a obra de Mackinder se continental (Heartland) – ou a região pivô (Pivot
desenvolve em plena época de expansão imperial Area), segundo a versão de 1904 –, dentro da
britânica, momento que deu lugar a um crescente Eurásia, poderia exercer uma influência decisiva
interesse pelos problemas de ultramar. Sua preo- sobre a vida política do mundo inteiro. A fim de
cupação com vantagens geoestratégicas da potên- opor essa superioridade geoestratégica, Mackinder
cia terrestre sobre a potência marítima, para o do- prescrevia à potência marítima – naquele momen-
mínio do planeta, refletia, em grande medida, um to, o Reino Unido – uma política de equilíbrio de
fato: a repartição colonial dos territórios livres ul- poder no cinturão interior (Inner Crescent), a peri-
tramarinos havia se completado, e diversas potên- feria da Eurásia, que contorna o coração continen-
cias começavam a exigir novas divisões, tal, já que, se essa massa fosse dominada pela po-
inconformadas com as injustiças da repartição an- tência terrestre, inevitavelmente essa última domi-
terior, quando não passavam diretamente à ação, naria a ilha mundial (World-Island), ou seja, o con-
desalojando velhos impérios de seus domínios junto terrestre da Eurásia e África, e, em última
coloniais – sem ir mais longe, veja-se a agressão instância, o mundo. Essa idéia está claramente
norte-americana aos restos do império espanhol explícita em sua conhecida fórmula:
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modelo, que estaria situada no âmbito de influên- O desenvolvimento das grandes potencialidades
da América do Sul pode ter uma influência deci-
cia do Reino Unido nessa época. siva para o sistema. Podem fortalecer os Estados
Se julgarmos pela extensão que a região Unidos ou, pelo contrário, se a Alemanha pudes-
se desafiar com êxito a doutrina Monroe, pode-
ocupa em seus escritos, para Mackinder, ela era, ria separar Berlim do que talvez possa descrever
como uma política de pivô (1904 [1975, p.80]).
inclusive, de menor importância que a África
subsariana. Por exemplo, no texto de 1919, ele lhe Mas essa reflexão tampouco muda muito a
dedica escassos comentários, quase sempre ligados, representação mackinderiana da América Latina,
ademais, a reflexões sobre os Estados Unidos.5 De e é importante destacar que, para ele, ainda que
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sua perspectiva, é plenamente lógico centrar-se no sua influência pudesse chegar a ser decisiva, ape-
continente euro-asiático, porque aí é onde se nas desempenharia um papel subordinado à po-
decide o futuro do mundo. Nesse marco, a América tência hegemônica européia ou norte-americana
Latina seria uma dessas regiões do globo que se dá (seja essa qual fosse).
por suposto, ou seja, que está dentro dos domínios
da potência marítima, distanciada das zonas de
conflito principal, mas também do centro do mundo. Spykman: o teórico da transição da potência
No entanto, Mackinder não descarta a futu- marítima
ra importância da região:
vantes são determinados pela posição que as diferentes Nicholas J. Spykman foi um norte-america-
potências ocupam no planeta. De fato, essa concepção
lembra muito a interpretação que Ratzel fazia do no de origem holandesa, que, ao final dos anos de
evolucionismo darwinista, e que poucos estariam dis-
postos ainda a defender na atualidade. No entanto, as 1930, se aprofundou na análise das relações entre
fórmulas de ação prescritas por Mackinder não se geografia e política exterior (p. exe. 1938a; 1938b),
adéquam a esse tipo de fatalismo já que, como afirma G.
Parker, “pressupunham um alto grau de potencial expressando, de novo, a fórmula que, desde
emancipável daquelas ataduras ambientais que tanto se
haviam apertado historicamente” (1985, p.27). Napoleão, fascina a todo homem de Estado realis-
5
Reflexões que não chegam nem a uma página das 148 ta: “A Geografia é o fator condicionante mais fun-
que tem a edição trabalhada.
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damental na formulação de uma política [exterior] nas terras periféricas da Eurásia, ele está afirman-
nacional porque é o mais permanente” (Spykman, do claramente que se produziu uma transição
1938a, p. 29). geopolítica – ou se está produzindo.
Spykman é conhecido especialmente por E que ocorre com a América Latina, no mo-
seus dois livros (1942; 1944), escritos com a in- delo de Spykman? A região não está nesse anel
tenção explícita de intervir na formação da política continental, e, portanto, não é peça fundamental
exterior norte-americana. Neles, partindo da con- da estratégia de domínio global do autor. Isso se
sideração de que reflete na escassa atenção que Spykman presta à
América Latina.
a sociedade internacional é [...] uma sociedade Essa posição é paradoxal, já que seria de se
sem uma autoridade central para manter a lei e
a ordem e sem uma instância oficial que proteja esperar que, em um modelo geopolítico no qual os
seus membros no uso de seus direitos [...]
[Spykman estabelece que] uma acertada políti- Estados Unidos ocupam um lugar central, a região
ca exterior para os Estados Unidos [...] deve de- terrestre adjacente tivesse um maior protagonismo.
senvolver uma ‘estratégia global’ (grand
strategy), tanto para a guerra como para a paz, Mas, de fato, quando Spykman faz alusão ao He-
baseada nas implicações de sua localização geo- misfério Ocidental, que as Américas ocupam, trata
gráfica no mundo (1942, p.7-8).
quase exclusivamente dos problemas, necessida-
Tendo como base o modelo de Mackinder, des e objetivos dos Estados Unidos. E isso não é
Spykman minimiza o interesse no controle do co- estranho, já que, para Spykman, “o autêntico cen-
ração continental. Para ele o anel continental tro de poder no Hemisfério Ocidental está na costa
(Rimland) é a área chave – que corresponde, gros- atlântica da América do Norte.” (1944, p.24).
so modo, ao cinturão interior de Mackinder –, cujo Essa combinação de territórios tão diversos
controle permitiria um domínio global do planeta como o continente americano (o Hemisfério Ociden-
(Figura 2). Uma tarefa da potência marítima seria, tal de Spykman), nucleado pela região mais desen-
portanto, o controle de um anel continental euro- volvida, não será alheia a outro modelo geopolítico,
asiático unificado. A potência marítima, nas pro- que, curiosamente, também se autodenominava
ximidades da Segunda Guerra Mundial, já não era “mackinderiano”, ainda que rompesse com algu-
mais a Grã-Bretanha. Assim, quando Spykman mas de suas premissas, e que foi proposto pela
(1944) defendia a intervenção dos Estados Unidos Geopolitik alemã, o modelo das pan-regiões.
Figura 2 - O mundo segundo Spykman (1944)
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Geopolitik deve determinar a área natural do Esta- Haushofer e associados (Figura 3) produziram,
do – já que essa seria sua melhor forma de vida –, definiam três ou quatro grandes espaços: Pan-Eu-
do mesmo modo a Oekopolitik deve esforçar-se em ropa – que, às vezes, se formula como Pan-Euráfrica
mostrar as vias para alcançar a autarquia – que seria –, com centro na Alemanha e nas zonas industri-
a melhor forma de vida do Estado no terreno eco- ais adjacentes, incorporando explicitamente a África
nômico. Lebensraum e autarquia estavam, então, em alguns momentos, mas, em outros, mantendo-
estreitamente associados. O resultado é que as ne- a como região separada, mas subordinada; Pan-
cessidades do Estado, e, em particular, do Estado Ásia, com centro no Japão; Pan-América, com cen-
alemão, deviam ser satisfeitas por outras regiões, tro na região nordeste dos Estados Unidos; final-
incorporadas em grandes espaços, organizados em mente, também, em alguns desenhos, aparecia a
torno ao centro alemão e outros centros industriais Pan-Rússia, com centro em Moscou.6
no Norte, então concebidos como pan-regiões. 6
A presença ou não da Pan-Rússia pode estar relacionada
Um terceiro elemento nesse esquema era as às idas e vindas das relações da Alemanha hitleriana com
“pan-idéias” (Panideen), concebidas como um prin- aRússia União Soviética: se, no desenho da Figura 3, a Pan-
não está presente, quando os exércitos hitlerianos
cípio ideológico fundamental sobre o qual os Esta- invadem a URSS, a Pan-Rússia desaparece – literalmente
– do mapa, sendo a maior parte de seus territórios incor-
dos poderosos desenvolviam sua política. Era uma porada à pan-região dominada pela Alemanha.
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campo do direito internacional, “apesar da oposi- cer nenhuma aliança definitiva. Como afirmava
ção entre o norte germano-americano e o sul ibero- Agnew (2003), essa afirmação teve uma grande
americano” (1986, p.219), o que, em todo caso, influência nas decisões políticas dos Estados Uni-
não seria suficiente para dissolver a poderosa cola dos em relação à Guerra Civil grega (1947) e à fun-
das pan-idéias. dação da OTAN (1949). Aqueles que, durante a
Pode-se supor que essa é uma situação ra- Segunda Guerra Mundial, tinham sido aliados
dicalmente diferente do modelo mackinderiano, convertiam-se, assim, em nucleadores de dois es-
mas, a meu ver, nos encontramos, basicamente, paços fixos e imutáveis, que, em parte, nasceram
com o mesmo tipo de relações entre a América dos Acordos de Yalta, mas que seriam conforma-
Latina e os Estados Unidos, que, desde então, já dos nos primeiros anos da Guerra Fria. É certo
era a potência marítima: seja no modelo do cinturão que a estratégia estadunidense de fixar os limites
exterior ou no da Pan-América, a América Latina da área de influência soviética responde, em boa
sempre é representada como um apêndice subor- medida, às prescrições do modelo de Mackinder,
dinado da potência hegemônica. com as modificações introduzidas por Spykman.7
7
“George Kennan pode não reconhecer a dívida, mas [seus
trabalhos] direta ou indiretamente levam o carimbo da
visão do mundo de Mackinder” (Gray, 1988, p.4).
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E essa relação parece ficar mais clara se levarmos pa, seria prejudicada se não conseguissem prote-
ger os Estados satélites situados nos cantos mais
em consideração que as áreas que Kennan afirma- remotos do globo. Em tais circunstâncias, a reso-
va como vitais para a segurança nacional dos Esta- lução dos Estados Unidos de resistir a qualquer
agressão seria colocada em dúvida, e o Grande
dos Unidos – as quais, sob nenhum pretexto, de- Inimigo se sentiria encorajado (Agnew, 2003
[2005, p.132]).
viam cair em mãos contrárias – coincidem pratica-
mente com o cinturão interior mackinderiano ou O conceito de estabilidade hegemônica se
o anel continental de Spykman, mais as áreas desenvolveu de forma mais consistente na Guerra
acrescentadas do Japão, Filipinas e dos países de Fria, e aludia à necessidade de alguma potência
Sul-americanos do oriente para o norte (ver Gaddis, impor certa ordem nas relações internacionais.
1982). É certo também que essas últimas contri- Nesse caso a hegemonia estadunidense se apre-
buições deixam claro que as argumentações de sentava como benevolente ou, ao menos, como um
Kennan não são mackinderianas, mesmo que pos- mal necessário.
sam se aproximar em alguns aspectos. A imagem de dois enormes blocos espaci-
O estabelecimento de um verdadeiro arco ais, que não deveriam ter variações internas signi-
de alianças militares anti-soviéticas nas periferias ficativas, converteu-se em elemento fundamental
euro-asiáticas (OTAN, CENTO, SEATO) respon- da imaginação geopolítica da Guerra Fria (Figura
de à necessidade de impedir a expansão da União 4). A América Latina estava incorporada na área
Soviética nessa área, pois poderia se apoderar de de influência dos Estados Unidos, uma parte, in-
todo o mundo. Ela está orientada fundamental- clusive, como foi mencionado acima, integrava o
mente por um projeto ideológico anticomunista, anel de contenção do comunismo. Talvez a teoria
mais que por considerações acerca do eterno do efeito dominó tenha sido a que serviu para legi-
enfrentamento entre a potência continental e a timar e tornar compreensíveis numerosas interven-
potência marítima. Trata-se do desenvolvimento ções estadunidenses na América Latina, sob a jus-
ampliado do conceito de contenção, primeiramen- tificativa da necessária contenção do comunismo.
te elaborado por Kennan, ao fazer referência ao
embargo econômico e militar da União Soviética,
pelo que advogava. A Geopolítica conservadora, herdeira de
A contenção é um dos três conceitos Mackinder
geopolíticos que, segundo Agnew (2003), desempe-
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mo entre a potência terrestre e a potência marítima truição mútua era uma realidade. Com exceção de
sobre a qual Halford Mackinder escreveu” (Gray, uma perspectiva suicida, a posse desses arsenais,
1988, p.194-195). E a obra de Spykman estabelece então, já não supõe uma dissuasão definitiva.
conexões entre os pais fundadores e essa Geopolítica Os advogados do velho dito de Si vis pacem
conservadora renovada. Gray (1988), em particular, para bellum sustentaram que a ausência de confli-
entende que a seqüência Mahan, Mackinder e to aberto entre as superpotências, desde o fim da
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Spykman conforma as bases de uma concepção da Segunda Guerra Mundial, se deve à adoção pelos
Geopolítica superior a outras alternativas. Estados Unidos de uma estratégia de dissuasão.
Partindo das idéias de Mackinder sobre a Sobre o processo aberto ao final dos anos 1980,
suposta superioridade geoestratégica da potência que culminou com o fim da União Soviética, tam-
continental, com vistas a restabelecer o equilíbrio bém estabelecia que ele só poderia ser mantido se
de forças e assegurar o êxito da estratégia da conten- continuassem desenvolvendo meios de contra-
ção durante a Guerra Fria com a União Soviética, dissuasão, como a guerra das galáxias, dado que
torna-se necessário dotar-se de armas superiores
(Gray, 1977). A decisão de desenvolver um arsenal um acordo geral – a diferença de um modus
vivendi tático – nas relações soviético-america-
nuclear que tornasse acreditável a dissuasão inau- nas é estruturalmente impossível a não ser que
gura a corrida de armas nucleares entre as superpo- se produzam mudanças fundamentais na natu-
reza do Estado soviético, e talvez nem sequer neste
tências, já que a percepção soviética de sua situação momento”, já que “a União Soviética é a potência
terrestre [...], o império Grande Russo organiza-
de inferioridade estratégica, por não possuir armas do por e para a maior satisfação dos patrióticos
nucleares, a conduz a desenvolver a bomba, e as- grandes russos, legitimados por uma ideologia
transnacional que é inteiramente uma ferramen-
sim deflagra-se a espiral. No entanto, paradoxalmen- ta de controle para a elite política governante
te, chega um momento em que a magnitude dos (Gray, 1988, p.194-195, o destaque é nosso).
respectivos arsenais nucleares foi tanta, que a des-
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de-se definir as linhas divisórias entre civilizações esses traços poderiam ser também diferenciadores
como aquelas centrais do conflito na política glo- –, mas a presença significativa de civilizações indí-
bal. Este fato viria garantido pela graduação do genas certamente seria seu traço fortemente distinti-
antagonismo que Huntington estabelece entre a vo, tanto que caberia a pergunta se essa é a chave
civilização Ocidental e as demais, sendo a Islâmica para diferenciar a América Latina do ocidente, mas
a mais perigosa, seguida da Ortodoxa, a Sínica e a esta se dilui com a menção a dois outros traços.
Japonesa, ficando o resto em uma situação de ali- Sobre esse aspecto voltaremos no final.
ança mais ou menos estreita.
Mas, no que nos interessa, existem dois ele-
mentos importantes para o fato de a América Latina Thomas P. Barnett: o novo mapa do Pentágono
ter sido definida como uma região geopolítica (uma
civilização, em termos de Huntington) independen- Quase um século depois da obra de
te. Um deles resulta de dúvidas do autor quanto à Mackinder, Thomas P. Barnett (2003) quebra o ci-
real existência de uma civilização latino-americana. clo argumental do inglês: já não há que resolver
No seu primeiro artigo (Huntington, 1993), ele se problemas que encontramos num mundo fecha-
pergunta se a América Latina é uma civilização in- do, pós-colombino, mas, ao contrário, o perigo é a
dependente ou não, deixando nos leitores a dúvi- desconexão. Num primeiro artigo escrito na con-
da. Mas, no seu livro posterior, embora permaneça servadora revista Esquire, ele condensa os argu-
na incerteza, assume uma determinação: mentos que mais tarde apresentará em forma de
livro (2004). Barnett se afasta decisivamente do
A América Latina poderia ser considerada, ou uma
sub-civilização dentro da civilização ocidental, ou modelo mackinderiano, embora muitas de suas
uma civilização à parte, intimamente relaciona- zonas de perigo continuem coincidindo com as do
da com Ocidente e dividida quanto ao seu domí-
nio com o mesmo. Para uma análise centrada nas cinturão interior.
conseqüências políticas internacionais das civili-
zações [...] a segunda opção é a mais adequada e Seu argumento principal é que a globalização,
útil (Huntington, 1996 [1997, p.52]. por mais problemas que possa ter, conduz a go-
vernos estáveis e a políticas exteriores dos Esta-
O segundo elemento importante resulta das
dos previsíveis e pacíficas. Nesse sentido, os pro-
bases fundamentais de diferenciação que a distin-
blemas no mundo surgem exatamente naqueles
guem da ocidental (européia e norte-americana),
Estados que tentam resistir à globalização. Desse
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rica Andina – é significativa a ausência do Chile. to (ou de ruptura) entre as potências mundiais
Como era de se esperar, em seguida, na lista de (Europa Oriental Oriente Médio, Sudeste Asiáti-
problemas reais anexada por Barnett (2003), estão co, Ásia Oriental).
incluídos países como Haiti e Colômbia, que se Mas não se trata somente de uma margina-
ajustam bem ao seu argumento. E, surpreendente- lização originada nas áreas centrais do sistema
mente, inclui-se também a Argentina e Brasil, que mundial e concebida por seus intelectuais; pelo
sequer compõem a dita “brecha não integrada”. contrário, sem a aceitação e o acatamento de boa
Quais são os motivos que levam a Barnett a este parte da intelligentsia latino-americana, não se pro-
juízo? Entre os principias argumentos que Barnett duziria tão facilmente esta relegação. Um bom
utiliza está, nem mais nem menos, o de que am- exemplo nos proporciona Golbery do Couto e Sil-
bos os países tentam resistir à ALCA, que o Brasil va, na ocasião um dos poucos intelectuais latino-
não cuida da Amazônia e permite que se continue americanos que elaborou um modelo geopolítico
produzindo um dano ecológico incalculável nessa para o Brasil. Sua obra Geopolítica do Brasil glosa
área ingovernável. extensamente as teorias de Mackinder e Spykman,
Talvez esses argumentos sobre os países- afirmando seu acerto, especialmente no contexto
chave do MERCOSUL lancem mais luzes sobre a da luta anticomunista da Guerra Fria. Introduz
lógica do modelo geopolítico de Barnett do que somente um “porém”: o Ocidente, e em particular
todo seu palavreado sobre a “desconexão da Estados Unidos, não levam em conta a relevância
globalização”. O perigo desses países está em que, da América Central e da América do Sul na luta de
eventualmente, podem chegar a serem autônomos contenção do comunismo, em termos de apoio di-
em relação ao projeto hegemônico. Por isso, países plomático, fornecimento de materiais estratégicos,
como o México, cujos governos se curvam aos pro- proteção do tráfico marítimo ou potencial
jetos hegemônicos são tão importantes, são os Es- demográfico para participar em campanhas milita-
tados junção (seam states), que são chaves nas es- res.” (Silva, 1967). Mas, é importante ressaltar o
tratégias de redução da brecha. caráter subordinado de sua formulação: o Ociden-
te necessita do Brasil e da América Latina, mas
por outro lado, o Brasil depende essencialmente
CONCLUSÕES – e quanto! – do restante do Ocidente e, em par-
ticular dos E.U.A., para o seu comércio, o seu
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Figura 5 - O mundo segundo Barnett (2003)
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A AMÉRICA LATINA NOS MODELOS GEOPOLÍTICOS MODERNOS...
la como uma região autônoma. E é quase pela pri- ______; CORBRIDGE, Stuart. Mastering Space: Hegemony,
Territory and International Political Economy, Londres:
meira vez que, desde a independência formal dos Routledge, 1995.
Estados latino-americanos, nos encontramos com BARNETT, Thomas P. The Pentagon’s New Map: It explains
why we’re going to war, and why we’ll keep going to war.
projetos políticos relativamente independentes das Esquire: magazine for men, Chicago-USA, mar., 2003.
potências européias e da potência hegemônica. São ______. The Pentagon’s New Map: War and Peace in the
Twenty-First Century. Nova York: Putnam, 2004.
bons exemplos disso o acesso à presidência de
BRZEZINSKI, Zbigniew. The Grand Chessboard. American
um integrante de um dos grupos excluídos nos Primacy and its Geostrategic Imperatives. Nova York: Basic
processos de independência há dois séculos, Evo Books, 1997 [Trad. ao castelhano El tablero mundial. La
supremacía estadounidense y sus imperativos
Morales, na Bolívia, mas também o projeto bolivi- geoestratégicos. Barcelona: Paidós, 1998].
ano de construção da unidade latino-americana, GADDIS, John L. Strategies of Containment. Oxford:
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do presidente Chávez na Venezuela, ou a condu-
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ção de uma política exterior autônoma que procu- Heartland, Rimlands, and Technological Revolution. Nova
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ra desenhar uma nova geografia mundial do co-
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E a esses projetos políticos somam-se pro- HAUSHOFER, Karl. Geopolitik der Panideen. Berlim:
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jetos intelectuais autônomos, como o projeto
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This paper tries to understand the transformations Dans cet article, il s’agit de comprendre comment
in the ways of insertion of Latin America in the context les manières d’insérer l’Amérique Latine dans le
of geopolitical eras, trying to show their causes and, contexte des ères géopolitiques se sont transformées.
above all, their consequences, in the context of the Nous essayons d’expliciter les causes et surtout les
new contemporary geopolitics in which the region conséquences de ces transformations dans le contexte
de la nouvelle géopolitique contemporaine où la région
K EYWORDS : Latin America, modern geopolitics, MOTS-CLÉS: Amérique Latine, géopolitique moderne,
knowledge geopolitics, representation of space, géopolitique de la connaissance, representation de
hegemony. l’espace, hégémonie.
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