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Anais do

º. Encontro Nacional de Cognição e


Artes Musicais
Universidade Federal do Paraná
Reitor
Carlos Augusto Moreira Junior

Vice-reitora
Márcia Helena Mendonça

Diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes


José Borges Neto

Chefe do Departamento de Artes


Maurício Dottori

Coordenador do Curso de Música


Indioney Rodrigues

Coordenador do Programa de Mestrado em Música

Rogério Budasz
Anais do
º. Encontro Nacional de Cognição e
Artes Musicais

Maurício Dottori & Beatriz Ilari


editores

DeArtes
Curitiba, 
© Os contribuidores listados da página viii à xiii.
Anais do Primeiro Simpósio de Cognição e Artes Musicais

Dottori, Maurício e Ilari, Beatriz (eds.)

Anais do Primeiro Encontro Nacional de Cognição e Artes Musicais.


Curitiba : Deartes–UFPR, 2006.

296 p. : il. ; 14,9 x 21 cm.


ISBN 85-98826-08-1

1. Música – Cognição. 2. Psicologia – Processos mentais – Cognição


da Música. I. DOTTORI, Maurício; ILARI, Beatriz (ed.). II. Título

CDD — 781-15
— 153-4

Direitos reservados à
Editora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná
Rua Coronel Dulcídio 638
80420-170 Curitiba PR
Tel. e Fax (0xx41) 3222-6568
www.artes.ufpr.br
Printed in Brazil 2006
Curitiba, 20 e 21 de maio de 2006
Departamento de Artes – Universidade Federal do Paraná –
Programa de Pós-Graduação em Música

Comissão Organizadora:
Beatriz Ilari
Mauricio Dottori
Zélia Chueke

Comitê Científico e Editorial:


Acácio Piedade – UDESC Maria Ignês Mello – UDESC
Afonso Galvão – Universidade Católica Mônica Duarte – UniRio
de Brasília
Rodolfo Coelho de Souza – USP
Beatriz Raposo de Medeiros – USP
Rosane Cardoso Araújo – UFPR
Claudiney Carrasco – Unicamp
Thelma Sydenstricker álvares – UFES
Diana Santiago – UFBA
Zélia Chueke – UFPR
José Zula de Oliveira – USP

Agradecimentos:
Fundação Araucária
DeArtes – UFPR
Auditório Brasílio Itiberê, Secretaria de Cultura do Estado do Paraná
Quarteto de Violões da Escola de Música e Belas Artes do Paraná
Dirce Freire-Maia – web master
Alunos monitores:
Charlene Neotti Gouveia (coordenação), Ana Paula Moreno, Angelita Broock,
Auro Moura, Cíntia Effting, Felipe Hickmann, Fernanda Adamowski, Joana
Marini, João Pedro Caserta, Judson de Lima, Juliana Clara Bastos, Luís
Bourscheidt, Rodrigo Agostini, Samantha Batista, Tadeu Moreno, Vivian
Dell’Agnolo Barbosa.
vii

Apresentação

o fim do evento de enorme sucesso que foi o 1º Simpósio

A Internacional de Cognição e Artes Musicais, realizado pelo


Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná
em abril de 2005, havia no ar a vontade de todos os participantes de
levarmos adiante o projeto de estruturarmos uma Associação Nacional
que abrigasse os estudos em Cognição e Artes Musicais. Realizada uma
Assembléia, decidiu-se que faríamos mais um evento, um encontro de
caráter menos grandioso este ano, para que tivéssemos o tempo de
organizar a Associação. Marcando um importante momento para nosso
Departamento, no qual começamos nosso programa de mestrado – que
inclui a Cognição da Música como uma de suas Linhas de Pesquisa –
este evento, o Primeiro Encontro Nacional de Cognição e Artes
Musicais, é menor, mas não diminuiu a qualidade dos trabalhos
apresentados. Ao contrário, o nível se mantém e, aos poucos, a seleção
dos trabalhos vai-se estreitando à área de Cognição propriamente dita,
tendo funcionado a estratégia de, com uma abertura maior, vermos
atraídos pequisadores de áreas limítrofes.
O Encontro, a publicação destes Anais – juntamente com o lançamen-
to da Revista Internacional de Cognição e Artes Musicais, editada pela
Profª Beatriz Ilari – e a institucionalização de nossa Associação pare-
cem-nos etapas importantes para que já no Segundo Simpósio
Internacional, ano próximo em Salvador, organizado pela Universidade
Federal da Bahia, tenhamos uma área de pesquisa dinâmica e
florescente em Cognição e Música.

Curitiba, 20 de maio de 2006

Maurício Dottori
viii

Programa do evento:
SÁBADO 20/05/06 DOMINGO 21/05/06
(DeArtes) (DeArtes)
8-9:30 Credenciamento Assembléia da CAM
(hall de entrada) (auditório)
9:30 Abertura e Concerto com
o Quarteto de Violões
da EMBAP (auditório)
10:30 Sessões temáticas Sessões temáticas
paralelas I paralelas III
(auditório e sala 103) (auditório e sala 103)
12:30-14:00 Pausa para almoço Almoço por adesão
(informações na recepção –
hall de entrada)
14-16:00 Sessões temáticas Sessões temáticas
paralelas II paralelas IV
(auditório e sala 103) (auditório e sala 103)
16-16:15 Coffee-break
16:15- 17:30 Sessão de pôsteres Sessões de demonstração
(corredor); (auditório)
Simpósio de alunos de
graduação (auditório)
17:30- 18:30 Lançamento de livros e Deslocamento para o Auditório
materiais (sala 101) Brasílio Itiberê
18-19:30 Sessão plenária: Concerto final e encerramento
Dr. Afonso Galvão (UCB), (Auditório Brasílio Itiberê
Aspectos psicológicos R. Ébano Pereira 240,
do trabalho orquestral esq. R. Cruz Machado
(auditório) – Centro – entrada pela Cruz
Machado
ix

Índice
Sessões Temáticas

1. A Mente e a Percepção das Artes Musicais

A re-afinação neural a que induz à prática musical


José Zula de Oliveira 3
A inteligência musical na ótica dos desafinados
Luiz Vieira 12
Curvas de dissonância para sistemas de afinação alternativos
Alexandre Torres Porres & Jonatas Mânzolli 20
A percepção na música
Valéria Gobbi & Valéria da Cruz Machado 26

2. A Mente e a Produção das Artes Musicais

Pianista e Professor: questões básicas de ensino de prática instrumental


Zélia Chueke 39
Um estudo de desenvolvimento de corte transversal
sobre saberes docentes de professores de piano
Rosane Cardoso de Araújo 46
Processos composicionais em um ritual musical indígena
Maria Ignês Cruz Mello 52
Movimento, coordenação e desempenho músico-instrumental:
conexões interdisciplinares
Maria Bernadete Castelán Póvoas,
Elian Dirce Colombi & Ester Bencke 59
Marcação de arcadas: carga cognitiva e estratégias de regulação
na atividade de violistas de orquestra
Cristina Porto Costa 65
x
Concerto para piano e orquestra de José Alberto Kaplan,
um exemplo de intertextualidade em música
Tarcísio Gomes Filho 72
Aspectos psicológicos na preparação para a performance musical
Vivian Deotti Carvalho & Sonia Ray 78
O pianista e a psicologia da música: um diálogo necessário
Diana Santiago 84

3. Artes Musicais, Lingüística, Semiótica e Cognição

Estudos comparativos entre fala e canto


Beatriz Raposo de Medeiros 93
Contornos melódicos do canto e da fala em bebês de 12 a 24 meses
Esther Beyer & Cláudia Braga 100
Música e linguagem verbal: distanciamentos e aproximações
Silvia Cordeiro Nassif Schroeder 106
Parabolicamará: a construção de um objeto complexo
Wanderson Bersani & Peter Dietrich 114
Os conceitos de ritmo na música e na poesia
Judson Gonçalves de Lima 120
Preciso me encontrar: o intérprete como produtor de sentido
Andréa Picon & Peter Dietrich 125
O estatuto do timbre no modelo semiótico
Peter Dietrich 130
Aprendizagem musical e aquisição lingüística: um paralelo possível?
Valentina Daldegan 136

4. Tecnologia, Artes Musicais e a Mente

Do “quanto” ao “quando”: novos estudos sobre cognição do ritmo e a


experiência de um seqüenciador posicional
Darcy Alcântara Neto 145
xi
Modelagem da variação do timbre musical
utilizando modelos auditivos e mapas de Kohonen
Mauricio Loureiro, Hugo Bastos de Paula
& Tairone N. Magalhães 156

5. Artes Musicais e Cognição Social

Mídia, gosto musical e a construção social da noção de infância


Maria José Dozza Subtil 165
Relações estéticas, programação e “Do belo na música hoje”
Isaac Chueke 171
O ouvido popular: notas sobre o relativismo da musicalidade
Acácio Tadeu Piedade 177
Música para consumir
Irídio Magaldi Johansen de Moura 183

6. O Desenvolvimento Paralelo da Mente e das Artes Musicais

Construção inacabada, aberta e em constante movimento:


Sobre a constituição do sujeito -
Analogia com a obra musical “Canon em Ré” de Pachelbel
Patrícia Wazlawicz, Kátia Maheirie
& Glauber Benetti Carvalho 190
Tabus, mitos e preconceitos: o talento sob diferentes perspectivas
Graziela Bortz 197
Musicoterapia na educação musical do portador de atraso do
desenvolvimento: período crítico e plasticidade cerebral
Cybelle Maria Veiga Loureiro, Leonor Bezerra Guerra
& Maria Cecília Cavalieri França 203
Discutindo o talento musical a partir da visão de estudantes de música
Sérgio Figueiredo & Luciana Schmidt 209
xii
Sessões de Demonstração

Interação e cognição no processo de interpretação mediada da marimba


Cesar Traldi & Jônatas Manzolli 216
Preparação para a performance de Now Here is Nowhere para contrabaixo
e suporte fixo: considerações sobre percepção timbrística e rítmica
Sonia Ray 222
O conceito de modulação métrica e sua aplicabilidade em exercícios da
Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado
Sara Cohen & Salomea Gandelman 227
Considerações sobre aspectos neurológicos na preparação
para uma performance musical
Sonia Ray 234

Simpósio de Alunos de Graduação

Técnicas de ensaios gerais para a performance musical em grupos de câmara


Thiago Cazarim & Sonia Ray 239
Etnomusicologia Aplicada:
metodologias de pesquisa e ação em contextos musicais tradicionais
Júlia Zanlorenzi Tygel 244
O papel dos efeitos sonoros na significação em jogos eletrônicos
Felipe Hickmann 251
Construção da performance por um aluno de graduação em piano:
um estudo de caso
Estevam Brito Meireles Dantas 256
xiii
Posters

A análise da utilização da música funcional em supermercados


na cidade de Curitiba
Eduardo F. Frigatti, Mariane N. Oselame,
& Thomas R. Brenner 258
Ponteio 36 de Guarnieri: Linguagem Nacional e Abstrações
Ester Bencke 259
Beethoven e Brahms na Sonata Op.9 de Alberto Nepomuceno
Igor Correia 260
Intencionalidade e criação em música
Caio M. Nocko 261
Pesquisas no campo das neurociências cognitivas e na Psicologia da Música
Patrícia Lima Martins Pederiva 263
Música, cognição e educação: um estudo comparativo
sobre as diferenças cognitivas entre músicos e leigos
Melody Lynn Falco Raby 264
Música como ferramenta nos processos clínicos em fonoaudiologia
Lênia Luz Nogueira 264
Quinteto de Metais: aspectos acústicos como ferramenta de composição
Felipe de Almeida Ribeiro 265
Complexidade e Controle: projetando interações musicais em rede
Fábio Furlanete 266
A Física-Matemática e a Neurociência na Música
Washington Roberto Lerias 267
Interação e Cognição no Processo de Interpretação Mediada da Marimba
Cesar Adriano Traldi 268
A Música o Sagrado e o Imaginário
Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira 269
xiv

Narrativa musical de história de vida: a música na velhice


Rosemyriam Cunha 271
A música como ferramenta de inserção social do deficiente mental
Carmen Lígia Barboza Gruner 273
O ensino de piano nas escolas de Curitiba.
Carolina Melo das Chagas Lima 273
Musicalizando bebês
Celina Maydana & Maria de Fátima Machado Brasil 274
Autismo Infantil: como a Educação Musical pode ajudar na
integração social dessas crianças?
Giovana Moreira Di Bernardo 275
Coleta de Ferramentas Musicais Avaliativas para a Cognição
Leonardo da Silveira Borne, Patrícia Danieli Schulz
& Esther Sulzacher Wondracek Beyer 276
Atenção visual em músicos e não-músicos: um estudo comparativo
Ana Carolina Rodrigues, Leonor Bezerra Guerra
e Maurício Alves Loureiro 277
Significados e Sentidos da Música: “Re-criando” e “compondo”
entre a Psicologia Histórico-Cultural, Música e Musicoterapia
Patrícia Wazlawick 278
O Canto Coral no Contexto Escolar
Jucélia Cristina Ribeiro 280
O desenvolvimento vocal de crianças de 2 a 6 anos de idade
Vivian Dell’Agnolo Barbosa 281

Sessões Temáticas

1. A Mente e a Percepção das Artes Musicais


A Re-afinação Neural a que Induz a Prática Musical


José Zula
Universidade de São Paulo

s estímulos sonoros são captados no córtex auditivo através do

O sistema auditivo periférico, com papel de destaque para a


cóclea onde a energia mecânica do som é convertida em
energia elétrica.
O papel da audição consiste em analisar e organizar os eventos sonoros
recebidos de fontes e localizações diferentes, dispondo-os em grupos
separados e estabelecendo (ou não) ligações entre eles. Esse trabalho
efetua-se segundo as dimensões dos elementos musicais (freqüência,
amplitude, posição temporal, localização espacial, propriedades multi-
dimensionais, como por exemplo, o timbre), um processamento que é
função da vida pregressa do indivíduo sedimentada em sua cultura, em
sua época, em seu estilo de vida individual, entre outros aspectos.
Uma das principais características dos sons musicais é a freqüência
para cuja captação existe um grande número de mapas tonotópicos1,
entre os quais existem múltiplas relações.
Durante muito tempo a organização tonotópica foi considerada fixa.
Hoje é admitido que esta organização efetua-se de maneira plástica,
modificando-se de acordo com características pessoais de quem ouve,
geralmente sob as insinuações do meio ambiente. Trata-se de uma
habilidade de o sistema nervoso adaptar-se às necessidades exigidas
pelo meio ambiente. Vários experimentos realizados por Christo Pantev 2 Os cinco
e seus colegas Bernard Ross, Takako Fujioka, Michael Schulte, Mathias do Instituto
de Pesquisas
Schultz2, Laurel J. Trainor3 e outros têm demonstrado uma incrível plas- de Rotman e
ticidade de adaptação do cérebro vinculada, sobretudo à prática cons- Centro de
tante de uma atividade, por exemplo, estudar um instrumento musical. Tratamento
Geriátrico de
Para quem não tem “presente” na memória o percurso da audição Baycrest em
Toronto,
humana vamos acrescentar aqui algumas notas a respeito da Ontário,
neuroanatomia da audição, seguindo de perto as informações Canadá.
fornecidas por Norman M. Weinberger, ao qual pedimos vênia para 3 Este último
usar os diagramas por nós numerados como 1 e 2. do departa-
mento de
1 A “tonotopia” é uma organização sistemática pela qual freqüências contíguas são processadas
Psicologia,
por estruturas anatomicamente contíguas, em várias instâncias do percurso auditivo desde a Mc Máster
cóclea e até o córtex auditivo primário, fenômeno comparável a um grande piano fixado na University,
cóclea e no córtex auditivo primário, em que a cada freqüência corresponde uma corda. Esse Hamilton,
fenômeno evidencia-se em vários níveis do percurso pelos quais passam os estímulos auditivos Ontário,
até o córtex primário no lobo temporal do cérebro. Canadá.

Diagrama 1: Percurso da audição de sons segundo as instâncias


de transmissão das freqüências.

1. Quando alguém presta atenção a uma música, as respostas
cerebrais envolvem um número de regiões não só do córtex
auditivo, mas também de outras regiões do cérebro, inclusive de
áreas normalmente compromissadas com outros tipos de
atividades, por exemplo, experiências visuais, táteis e emocionais,
que por sua vez em conjunto, também afetam a localização no
cérebro onde é processada a música.
2. As ondas sonoras, ondas formadas por oscilações de pressão no
ar que são captadas pelo pavilhão da orelha, são convertidas pelo
ouvido externo e ouvido médio em ondas fluidas no ouvido inter-
no. Um ossículo chamado estribo, as empurra para dentro da
cóclea, criando variações de pressão no líquido que preenche a
cóclea.
3. Vibrações sucessivas na membrana basilar da cóclea movimen-
tam as células ciliadas, os receptores sensoriais, que geram sinais
elétricos que são encaminhados, via nervo auditivo ao cérebro.
Inicialmente cada célula é afinada com uma vibração de determi-
nada freqüência.
4. O cérebro processa música ao mesmo tempo de maneira
hierárquica e distribuída.
4. 1 De todo o córtex auditivo, o córtex auditivo primário, que é o
primeiro a receber os impulsos transmitidos pelo ouvido e pelo
sistema auditivo inferior4 via tálamo, é que está compromissa-
do com os primeiros estágios da percepção musical, tais como
o faz com a altura (a freqüência do som) e delineamentos
melódicos (padrões de mudanças na altura), que são o
fundamento para a melodia.
4. 2 Estudos recentes têm demonstrado que o córtex auditivo
primário, dada a sua plasticidade, é re-afinado, a partir da
experiência do ouvinte, de tal forma que muitas células
tornam-se responsivas aos mesmos sons e freqüências (sons)
musicais importantes para o ouvinte, afastando-se do princípio
da tonotopia.
4. 3 Esta re-afinação, induzida pela aprendizagem, afeta, sobretudo
o processamento cortical em áreas como a) os campos corti-
cais secundários da audição e as b) regiões associativas, que
estão envolvidas com o processamento de padrões musicais
mais complexos, por exemplo, de harmonia, de melodia e de
4 Relembrando as instâncias que compõem esta fase da audição: (a) orelha externa, média e
interna; b) cóclea com suas membranas e órgão de Corti; c) nervos vestíbulococlear e núcleo
colear; d) sistema de fibras auditivas que através de sinapses se comunicam: as primárias com
as secundárias e estas com as terciárias; e) complexo olivar superior; f) corpo trapezóide; g)
lemnisco lateral; h) colículo inferior; i) corpo geniculado medial e finalmente j) áreas cerebrais
da audição: A-I e A-II.

ritmo.
4. 4 Quando um músico está tocando uma música em um
instrumento, também estão ativas outras áreas como as do
córtex motor e do cerebelo que estão envolvidas com o
planejamento e a execução de movimentos específicos e
precisos ligados ao
tocar (ou cantar) a
respectiva música.
Diagrama 2: Re-afinação neu-
ral de células receptoras de
freqüências.
5. Re-afinando o cérebro:
5. 1 a) O princípio funda-
mental para a cap-
tação das freqüências
é que cada célula do
cérebro individual-
mente responde me-
lhor a uma determina-
da freqüência;
b) Todavia este princí-
pio pode mudar, e de
fato mudam, de modo
que a afinação original
das células se ajustam
à captação de outras
freqüências. Isto se dá
quando um animal ou
o ser humano aprende
que um determinado
som é importante para
ele, seja por que razão
for;
c) Trata-se de um ajus-
tamento celular que
modifica o mapa de
freqüências (fato evi-
denciado em experi-
mentos em cérebros
de ratos), de tal forma
que a área do córtex
auditivo responsável

pela audição de um determinado som se torna maior, sendo
capaz de processar os “sons importantes” de forma mais intensa,
chegando este ajustamento (re-afinação) a expandir o mapa,
aumentando a intensidade da audição em até 8 kiloHertz quan-
do se trata de uma freqüência importante para o ouvinte;
d) em humanos foram encontradas alterações semelhantes no
córtex auditivo que, ao mesmo tempo em que amplia seus mapas
de audição, especializa e refina as respostas a determinados estí-
mulos musicais. Possivelmente seja isto que diferencia, por
exemplo, um bom instrumentista de um que não é tanto. Por
exemplo, em um violinista a posição e a pressão dos dedos no
braço do violino, o tempo absolutamente preciso para a efeti-
vação do ataque (onset) e sua retirada (offset) para a nota
seguinte, fazem a diferença, e tudo isto, constitui a sensibilidade
que se espelha na musicalidade do instrumentista. O que se
insinua aqui é que um “mapa maior” de neurônios pode captar e
efetuar respostas mais precisas de forma a atender a todas as
exigências que se faz de um bom instrumentista.

Os experimentos
Pesquisas têm sido feitas tanto em cérebros de animais (a exemplo das
de Frances H Rauscher, K. D. Robinson, . & J. J Jens5), como em
cérebros humanos. Christo Pantev, um dos pesquisadores mais
conceituados na área de cognição musical e especializado em magne-
toencefalografia, juntamente com outros pesquisadores, em vários
experimentos neurológicos estudaram o impacto da música e do treino
musical na organização funcional e na representação auditiva e senso-
riomotora em músicos. Como técnica para a realização de seus estudos
usaram a magnetoencefalografia (MEG)6, uma técnica não invasiva,
que com precisão e confiabilidade registra as mudanças que ocorrem
no córtex humano quando uma habilidade está em ação, por exemplo,
aprender a tocar um instrumento musical. Christo Pantev e seus colegas
A. Engelien, V. Candia e T. Elbert7 estudaram em músicos profissionais
a representação cortical de sons musicais comparados com a represen-
tação de sons puros. Para os sons puros, ou seja: aqueles nos quais esta-

5 do Departamento de Psicologia da Universidade de Wisconsin, Oshkosh.


6 A magnetoencefalografia é feita medindo-se nas imediações do crânio do paciente o campo mag-
nético gerado pelas correntes elétricas circulantes no cérebro. Um craque desta técnica para estudos
relacionados com a percepção musical e Christo Pantev.
7 (na época, os dois primeiros do Instituto de Audiologia Experimental da Universidade de Münster
na Alemanaha, e os dois últimos do Departamento de Psicologia da Universidade de Konstanz,
Konstanz, Alemanha).

va presente apenas uma freqüência, foram encontrados efeitos tran-
sitórios (de curta duração) nas respostas neurais no córtex auditivo, ao
passo que para sons musicais, de timbre complexo, com múltiplas fre-
qüências simultaneamente presentes, foi encontrado um aumento sig-
nificativo de atividade cortical. O aumento estava relacionado com o
tempo e a idade em que os músicos efetuaram seus estudos, apresen-
tando-se maior quando o estudo havia sido iniciado na infância. A plas-
ticidade, ou seja, a re-organização do tecido nervoso, foi observada
especificamente no córtex sensoriomotor, e no estudo com violinistas,
principalmente na área que controla os dedos usados com freqüência
8 os dois
primeiros e o
na prática musical. A mudança não foi verificada nas áreas que con-
último do trolam os dedos e mão direita que são pouco usados na atividade musi-
Centro de cal por estes instrumentistas Estudo referente à plasticidade de curta
Biomagnetis duração, para sons puros também foi efetuado por Christo Pantev,
mo do
Instituto de Andréas Wollbrink, Larry E. Roberts, Almut Engelien e Bernd
Audiologia Lütkenhöner8 em “Short-term Plasticity of the Human Auditory Cortex”.
Experimental Neste experimento os autores encontraram que mudanças rápidas
da Univer-
sidade de podem ocorrer na afinação neural no córtex auditivo de humanos
Münster, adultos. Alguma forma de dinâmica poderia estar subjacente ao que foi
Alemanha, o observado no experimento em questão, sobre a qual não se tem ainda
terceiro do
Departamen- claro sua origem.
to de Psico-
logia da O fundamento para o julgamento através da percepção musical da
Universidade importância de um som para a vida do ouvinte foi estudado através do
de condicionamento clássico, por Jonathan S. Bakin, David A. South e
McMaster,
Hamilton, Norman Weinberger9 em um estudo com pombos, sugerindo que,
Ontário, mesmo estímulos aversivos (por exemplo, choques elétricos) não con-
Canadá e o seguem inibir a plasticidade no campo responsivo aos estímulos.
quarto,
Almut Ao lado de outros experimentos neurológicos, Christo Pantev, junta-
Engelien,
Laboratório mente com seus colegas E. Larry Roberts, Matthias Schulz, Almut
de Neuro- Engelien e Bernard Ross, desenvolveram um experimento em que estu-
imagem daram representações corticais para a percepção de timbres diferentes,
Funcional do
Departament por exemplo os timbres de violino e de trompete. Foi encontrado que a
o de Psiquia- representação era aumentada de acordo com a habilidade dos instru-
tria da mentistas: nos violinistas para a nota com o timbre de violino e para os
Universidade
de Cornell, trompetistas para a nota com timbre de trompete. Problemas como se
New York, os atributos cerebrais relacionados com a música são atributos incenti-
USA. vadores para a prática musical ou se a hereditariedade influencia a
9 da Univer- decisão de dedicação de uma pessoa à música, ainda são objeto de
sidade da controvérsias, tidos como pertencentes mais à área pedagógica. De
Califórnia, qualquer forma as solicitações do ambiente podem interferir na incli-
Irvine, USA.

nação de um determinado indivíduo, como é o caso de pessoas que
ficaram cegas precocemente. As bases neurais para a freqüente musi-
calidade em cegos têm sido pouco estudadas. Um destes estudos é o
de David A. Ross10, Ingrid R. Olson11 e John C. Gore12, que estudam a
plasticidade cortical em uma musicista cega desde a infância. Os testes
preliminares revelaram que ela tinha ouvido absoluto, da mesma forma
que algumas pessoas com visão normal. Os estudos com a paciente
demonstraram que áreas semelhantes às encontradas em estudos com
literatura, estavam ativadas e que isto poderia ser estendido como a
demonstração da plasticidade cortical subjacente à prática musical e
musicalidade como por exemplo, a demonstrada por Ray Charles,
Stevie Wonder, Andrea Bocelli e outros músicos cegos de menor sig-
nificância para a literatura. Josef P. Rauschecker13 em seu trabalho
“Cortical Plasticity and Music” também se refere a esta musicalidade
em cegos e a atribui ao aumento de áreas compromissadas com a
audição. Segundo este autor, da mesma maneira que em animais, o
córtex auditivo de pessoas cegas é afetado por dramática reorganiza-
ção: por exemplo, o córtex occipital, normalmente compromissado
com a visão em pessoas normais, inicia-se no recebimento de estímu-
los auditivos, o mesmo acontecendo com o córtex parietal, geralmente
compromissado com o processo da audição espacial. Processo seme-
lhante, porém em menor intensidade, acontece com pessoas que se
tornaram cegas depois de adultas. Franco Lepore14 mostrou que cegos
são melhores na localização dos sons do que as pessoas normais e que
isto poderia ser reflexo da atuação do córtex occipital exercendo
função de córtex auditivo. Robert Zatorre15 sugeriu que o contrário
acontece com os surdos precocemente, em que o córtex auditivo
assume funções de córtex visual. Do exposto dá para expressar a
hipótese de que com um “cérebro auditivo expandido” ter-se-ia uma
audição mais intensa e refinada que parece ser a chave para a
musicalidade. 10Do Departamento de Radiologia Diagnóstica, da
Atividades musicais como tocar um Escola de Medicina doYale, New Haven, C, USA.
instrumento demanda procedimentos 11 Departamento de Psicologia da Universidade da
prolongados e aprendizagem motora Pensilvânia, Philadelphia, PA, USA.
de tal forma que disto resulta uma 12 Departamento de Radiologia e Ciências
reorganização do cérebro da pessoa. Radiológicas, Venderbilt, escola da Universidade de
Trata-se de mudanças plásticas que medicina, Nashville, Tn, USA.
parecem envolver um rápido desmas- 13 da Universidade de Georgetown, USA.
caramento de conecções existentes e o
14 da Universidade de Montreal, Canadá.
estabelecimento de novas. Álvaro
Pascual-Leone em um experimento, 15 na época da Universidade de McGill, Canadá.

intitulado “o cérebro que toca música, se modifica com isto”, afirma
que as mudanças, tanto funcionais como estruturais têm lugar no
cérebro de instrumentistas como subsídio para as exigências de sua
atividade. Isto tem sido demonstrado através de técnicas de neuro-
imagem. Mas determinadas mudanças podem constituir um risco para
o desenvolvimento de disfunções do controle motor, constituindo sín-
dromes de distonia focal de mãos e dedos para tarefas específicas,
decorrentes de prática musical geralmente mal orientada.
Também se faz necessário para o estudo de um instrumento a repetição
e a memória. A repetição que emoldura a experiência influencia as
funções de sensibilidade e da emoção e de modo especial as funções
cognitivas, particularmente a memória. A partir deste fato pode ser
especulado a respeito do aprendizado em recém-nascidos. Será que a
ausência de experiência facilitaria a prontidão para entradas decisivas
no sistema nervoso que eventualmente “vazio”, poderia estar pronto
para memorizar e relembrar informações, cuja memória perduraria por
toda a vida? Mesmo admitindo que aprendizagem e memória são fun-
damentais em termos adaptativos em nossa espécie, tais potenciais do
sistema nervoso que permitem a codificação e retenção de nova infor-
mação, são marcadamente maleáveis e sujeitos à extinção, a exemplo
do que ocorre em traumas. Esta flexibilidade para receber e ao mesmo
tempo para esquecer, é retida por muitos anos, tanto quanto for
solicitado do sistema nervoso, um assunto pertinente ao estudo da
duração dos sistemas de memória.
Os estudos neuropsicológicos cada vez mais sugerem que a música
não é função de apenas um hemisfério cerebral. Estudos através de
tomografia por emissão de pósitrons (PET), ressonância magnética (RM)
e outros recursos indicaram que a percepção musical não é dependente
apenas do hemisfério direito, mas de uma rede neural distribuída por
várias instâncias do cérebro em ambos os hemisférios, aparelhada para
a percepção dos diferentes componentes da música e provocação de
seus efeitos. E. Baeck em um trabalho sobre redes neurais em música,
referenda que músicos têm características neurais, anatômicas e fun-
cionais, que estão relacionadas com a idade em que começaram seus
estudos musicais. Isto poderia explicar uma organização típica e
especificação como resultado dos estudos musicais. Se apenas
características decorrentes da idade podem explicar a plasticidade ou
se propriedades estruturais inatas, ou se ambas, é ainda uma questão
em aberto. No mesmo estudo E. Baeck refere-se a aberrações
cromossômicas, anormalidade bioquímicas e artefatos morfológicos
decorrentes de doenças cerebrais congênitas e degenerativas que

poderiam impulsionar entradas especiais da musicalidade em
substratos neurais.
O capítulo da plasticidade neural ou re-organização neural é um assun-
to em crescimento nas pesquisas, que no presente tem demonstrado,
sobretudo três encaminhamentos:
Primeiro: mostrando-nos a confiabilidade do uso da MEG para medir,
em laboratórios os efeitos do treino relativo a curto e longo prazo e que
o segredo para a percepção da altura se manifesta na amplitude da
“banda neural” que percebe a freqüência.
Segundo: a plasticidade do córtex auditivo estende-se a outros ter-
ritórios corticais (occipital, frontal, p. ex.) e podem ativar outras áreas
como é demonstrado isto no exemplo do comportamento dos lábios
dos trompetistas que são estimulados da mesma forma como ao exe-
cutar na realidade o som em um trompete, ativando com este compor-
tamento o córtex somatosensório, de forma mais acentuada do que
acontece no estado em que os lábios permanecem inativos. 16 16 Os
trompetistas
Terceiro: mostrou-se que a codificação automática e a discriminação demonstram,
de contornos de altura e a informação dos intervalos no contexto à audição de
melódico são especificamente mais aumentados nos músicos do que música exe-
em não-músicos e que os músicos mostram bem mais respostas coer- cutada ao
trompete,
entes com o sentido musical em contornos melódicos ou de intervalos, uma ativação
mas que os dois grupos exibem respostas similares a mudanças de fre- de áreas cor-
qüências de sons puros. ticais ligadas
aos lábios
como se
Referências Bibliográficas estivessem
BAECK, E. (2002). The neural networks of music. European Journal of tocando de
Neurology, 9(5), 449. fato o instru-
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A Inteligência Musical na Ótica dos Desafinados


Luiz Vieira
ste trabalho não tem a pretensão de ser conclusivo e sim, um rela-

E to dos achados, durante os trabalhos de pesquisa. Teve origem na


necessidade de respostas a uma gama de questionamentos que no
decorrer dos ensaios de coros ficavam truncados, prejudicando a qua-
lidade da performance. Por não ter respostas adequadas para a falta de
“afinação” dos naipes do coro ou de alguns que “desafinam” indivi-
dualmente. Esses integrantes com problemas ou eram convidados a se
retirarem do coro ou camuflados como contralto, no caso de vozes
agudas, e como baixo, no caso de vozes graves.

Qual fosse a solução adotada, sempre seria inadequada. A primeira,
provocaria uma violenta experiência exclusiva, cuja frustração deixaria
marcas profundas no indivíduo bem como o constrangimento sofrido
pelo regente. A segunda, mais amena, comprometeria a performance
do grupo, o que seria injusto, e incoerente.
A falta de conhecimento dos padrões sonoros musicais, tidos como
falta de percepção, abrange uma camada da população, maior do que
se possa imaginar. Vasculhando uma vasta literatura pertinente ao
assunto, foi encontrada muito pouca especificidade em entendimento
mental da organização dos materiais sonoros musicais, e raríssimas as
que abordassem diretamente a inteligência musical dos “desafinados”.
Dada a abundância de material humano com esse enorme potencial,
um verdadeiro banco de informações disponíveis em nosso meio,
optou-se por “ir direto à fonte”, ou seja, buscar as informações diretas
in loco, sem ignorar obviamente, a literatura já existente nesta área.
Quanto mais se perscruta, mais claro e evidente vão se tornando as
respostas. É surpreendente e até, de certo modo, irônico a simplicidade
dos materiais que os desafinados utilizam para metaforizar. Eles têm
dificuldade em estabelecer relações entre materiais ou sensações,
como, por exemplo, relação de intensidade, forte-fraco ou, de agudo-
grave ou ainda, os termos grosso x fino, usados ainda que incorreta-
mente, mas necessários para melhor compreeção. Os desafinados dão
a impressão de que o entendimento se dá, esclarecendo detalhes tão
mínimos, que do ponto de vista de quem tem percepção, são insignifi-
cantes e às vezes, até inadmissíveis.
Para quem não é desafinado, entender algo que não tem necessidade
de ser entendido, por ser óbvio como o é o som e seus padrões, é difícil
refletir sobre a possibilidade de alguém não conseguir entendê-los. Essa
pode ser uma das causas que levam algumas pessoas a considerarem o
“desafinado” como um deficiente ou, não querer pesquisar esse campo
tão promissor, já que está em voga prática de idéias que envolvem
“inclusão social”. Integrar um “desafinado” ao meio artístico, é
inclusão social.
Entrar nesse mundo é tão ou até mais difícil do que sair dele. Seria o
mesmo que ter que aprender a “desaprender” para poder entender. Isso
talvez justifique a carência de pesquisa nessa área.
Para quem já vivenciou problemas com a percepção e conseguiu
superá-los, fica menos complicado vasculhar esse terreno que lhe é

familiar, podendo apontar alguns caminhos que levem ao desvelo de
muitas incógnitas.
O som chega à mente de muitos “desafinados”, arrebatando, extasian-
do e, muitas vezes, decepcionando. Nisso, divergem pouco de quem é
afinado (estão sendo usados os termos: desafinado e afinado, apesar de
contestá-los, para facilitar a compreensão). É como (já introduzindo
aqui uma metáfora) receber um objeto artisticamente acabado, porém
confeccionado de materiais cujas propriedades lhe são desconhecidas,
não sendo possível a sua reconstrução. O objeto pode ser bonito,
porém, estranho. Por outro lado, para quem conhece os materiais e a
receita, esse objeto é muito familiar e é passível de reconstrução.
Nesses dois casos o diferencial é a cognição.
Serafine (1988, cap. I), define música como cognição, tendo em seu
teor: “a universalidade, a diversidade, as variações e as aquisições”. O
tópico que é pertinente a esta pesquisa é o da universalidade, por dizer
o conceito de que todos são musicais.
“Em um grau mais simples, qualquer pessoa pode, facilmente distinguir
uma música de outros sons e pode identificar sua própria música como
distinta entre outras internacionais. Pode identificar um estilo musical
como: folclore, clássico, jazz (talvez fazer até distinções melhores) e
decidir sua preferência” (Serafine, 1988, cap. I: 3). E complementando,
nas palavras de Salt (1987), que qualquer pessoa sem anomalias neu-
rológicas ou fisiológicas dos aparelhos e órgãos pertinentes a per-
cepção e reprodução dos sons pode adquirir habilidades de reproduzir
música e canto.
Serafine (1988), defende a idéia de música como “uma forma de
pensamento”, e assim sendo, o pensamento é uma forma de organizar
idéias, e isso somente é possível através de um processo mental, ou
seja, uma habilidade inteligente. Para ela, a “cognição musical” recebe
a denominação de “pensamento musical” ou seja, música, como forma
de pensar o som.
Música como cognição pré-supõe, entre outras, o resultado do conhe-
cimento dos materiais, o potencial de cada um deles, o experienciar, a
fim de gerar resultados que possam ser apreciados e recriados, quando
necessários, para melhorar sua qualidade de apreciação.
Na atividade musical cada uma das partes é cognitivamente diferente
das outras e cada uma usa seu próprio esquema de processamento; o
ritmo, a leitura, a reprodução vocal e a instrumental, etc…

A cognição implica todo um processo ativo, construtivo. Daí, o ato de
perceber reivindica um prévio conhecimento do material a ser
percebido; enquanto que a memória, pré-supõe um evento percebido
anteriormente para ser lembrado. Se não há memória, não poderá
haver reconhecimento.
A manipulação dos materiais pertinente à música: escrita, leitura,
execução instrumental, ritmo, pulso, dinâmica, etc…, parece fazer
parte do mesmo processo mental de esquematização e preensão, como
o são os esquemas e processamentos usado na matemática, na gramáti-
ca e sintaxe da linguagem falada e escrita, que pouco envolvem a
emoção e o sentimento. A pessoa pode ler e escrever correta e fluente-
mente num determinado idioma, porém, se não entender sua semânti-
ca, isso não terá o menor significado. É, portanto, a compreensão do
significado que fará o intelecto estabelecer a racionalidade, contida ou
não, naquilo que foi lido, ouvido, cujo significado, irá produzir o
conhecimento.
Segundo Swanwik (2003), material enquanto material, ainda não é
música. Ela só acontece quando os recursos oferecidos pelos materiais
são selecionados e organizados por um processo inteligente, tornando-
se sensação, procedimento este, que só uma mente é capaz. A
assimilação dos procedimentos desse processo mental irá gerar o
conhecimento, que será quantitativa e qualitativamente proporcional à
quantidade e à qualidade daquelas experiências vivenciadas. Entende-
se por materiais, tudo o que é usado para a produção das vibrações,
bem como as próprias vibrações e os seus condutores físicos. O som,
já é vibração mentalmente elaborada em sensação e, portanto, não
física, mas ainda material. A qualidade do som depende da qualidade
de seus emissores, dos condutores e dos receptores e ainda, da mente
que o recebe.
Da mesma forma que a constituição física difere de indivíduo para
indivíduo, assim também os processos mentais que induzem ao conhe-
cimento, e a criação de esquemas resolutivos, também diferem de
indivíduo para indivíduo em quantidade e qualidade. Assim sendo, a
aptidão para a cognição musical é desproporcional entre os indivíduos,
se estendendo da mínima à máxima, da única à múltiplas, etc…, isso
se aplica tanto a habilidades quanto à dificuldades.
Tendo, como pressuposto, a constatação de Cuddy & Upitis (1992), de
que “cada caso é um caso, e existe diferença entre indivíduos e nos
indivíduos”, deduz-se que cada indivíduo, além de ser diferente dos

outros no contexto, tem as diferenças nele próprio, e são essas diferen-
ças que determinarão seu modo específico de ação – reação face às
experiências a que for exposto, evidenciando sua individualidade.
Neste aspecto, generalizações são pouco adequadas.
“É claramente importante, entretanto, identificar a fonte da dificuldade
para que se providenciem experiências educacionais apropriadas que
ajudem a superar o problema …, poucas investigações tem sido dire-
cionadas para a questão da desafinação envolver dificuldades percep-
tivas”. (Cuddy & Upitis, 1992: 338). Grande parte das literaturas que
abordam a percepção, alegam carência de pesquisa nessa área.
Para ficar mais esclarecido o que foi apurado durante as investigações,
veremos alguns casos, de dificuldades detectadas:
Na média de 10 encontros individuais de duas horas cada, foi possível
detectar as dificuldades maiores, em cada um dos pesquisados
cumpriu-se a maior parte do objetivo que havia sido proposto: co-
nhecer um som, ouvi-lo, reconhecê-lo e finalmente reproduzi-lo.
Depois, reconhecê-lo num acorde seqüencial com até 3 notas, re-
conhecê-lo num acorde harmônico simultâneo. Em seguida, cantar
notas de acordes propostos para reconhecer e estabelecer uma ordem
seqüencial de tons e assimilá-los para, somente depois, experimentar
uma pequena linha melódica com dois ou três tons, para aos poucos
ampliar a extensão da percepção. Na maior parte desse aprendizado,
necessita-se que as práticas de ensino sejam aplicadas em “câmera
lenta”, devido a lentidão com que esses dados são sendo processados.
Neste ponto do aprendizado, ele já é capaz de conhecer e reconhecer
os sons trabalhados, porque tem memória deles, e como os assimilou
experienciando-os vocalmente, resolveu a falta de percepção para com
aquelas notas apreendidas, assimiladas e reconhecidas, podendo agora
reproduzi-las com consciência e consonância.
Uma boa performance, tem consonância. “Quando ocorre o fenômeno
batimento o som se torna incômodo ao ouvido”, Mantras, (1991: 13),
seja na produção vocal ou instrumental.
Em 100 amostras, durante dois anos, foram encontrados inúmeros
casos, que pudessem ter sido a causa da incompetência das aptidões
para com a música. Dentre elas serão citadas a seguir, algumas, para se
ter idéia de como, no início da pesquisa, cada um desses indivíduos
estava envolvido em dificuldades perceptivas e o variado grau de
envolvimento:
– Não demonstram indício claro de a mente ter desenvolvido

algum esquema ou aptidão de identificar e diferenciar as alturas
tonais.
– A ausência do uso de metáforas, para entender os sons por meio
da audição.
– A ausência do hábito da apreciação crítica.
– A estrutura do som é uma incógnita.
– Cantar mais forte do que o modelo proposto.
– Ausência de esquemas motores no aparelho fonador, direciona-
dos à reprodução das alturas tonais.
– A necessidade de monitoramento continuado enquanto estiverem
produzindo o som.
– Quando cantam, não o fazem pela percepção e sim através de
um esquema decorativo, em que a letra serve como referência de
mudanças tonais.
– Incapacidade de retomar o canto, partindo de qualquer ponto.
– Memória tonal de curto prazo não desenvolvida, a de médio e
longo prazo é um pouco desenvolvida, porém, atrelada à letra e
sua métrica.
– Reproduzem o que ficou na memória de médio e longo prazo,
não fazendo comparações eqüitativas com o modelo proposto,
por não estarem ouvindo enquanto cantam.
– Dificuldade de entender os três tons acordes de uma tonalidade.
– Dificuldade de iniciar um canto, partindo de um acorde.
– Não conseguem entender quando o tom está na tônica, na sub-
dominante ou na dominante.
– Grande dificuldade em sustentar o tom.
– Resistência de alguns em admitir que não têm percepção musical.
Para resolver cada uma dessas situações, foram sugeridas muitas alter-
nativas de resoluções de esquemas mentais, porém tendo consciência
de que cada esquema é exclusivo e somente quem o montou sabe seu
segredo. Portanto, dizer ao indivíduo, que se deve proceder dessa ou
daquela maneira, será inútil, pois é necessário dar inúmeras pistas, para
que em uma delas, ele encontre o esquema requisitado, e quando isso
irá acontecer, não se tem previsibilidade. Às vezes ocorre através de
uma palavra ou gesto, aleatório ao que se está trabalhando. É nesses
casos que o uso de metáforas se torna eficiente.
Dos procedimentos didáticos aplicados, os mais eficientes, foram os da

descontração, controle da ansiedade que é muito forte, por estar revol-
vendo sua intimidade, a educação da respiração, conhecer e sentir a
anatomia do aparelho fonador es seus pertinentes; muito diálogo, prin-
cipalmente ao que diz respeito de se conhecer melhor; saber que
ninguém é igual, as diferenças são salutares; que as inabilidades podem
ser resolvidas; que o cantar se faz primeiramente, para si mesmo,
depois para os outros, a fim de que possam apreciar uma boa perfor-
mance; isso deve acontecer assim que conseguirem um bom desem-
penho; nem que seja uma única música a ser mostrada para lhe dar
certeza de superação, e uma fortíssima sensação de prazer por experi-
mentar, naquilo que lhe era privado, e agora poder se sentir incluso no
rol dos músicos cantores ou instrumentistas.
Outra observação importante também detectada: os instrumentistas
que não conseguiam tocar seu instrumento favorito apenas de ouvido,
o conseguiram depois que aprenderam cantar “afinadamente”. Isso
sugere que as dificuldades, tanto cognitivas quanto perceptivas, encon-
tradas em quem não consegue cantar “afinadamente” e em quem não
consegue tocar um instrumento sem qualquer notação, se assemelham.
Deduzindo: quem “desafina” ao cantar, não toca instrumentos sem
notação musical, e para isso deve passar pelo mesmo processo de
aprendizado que é aplicado para o canto, além, é claro, do aprendiza-
do das técnicas pertinentes aquele instrumento, tendo, porém, já
desenvolvido a percepção rítmica; isso demonstra que o processamen-
to rítmico é processado no cérebro em área diferente da que processa
o som; não foram encontradas evidências de que as dificuldades per-
ceptivas sonoras de um “desafiado” estejam relacionadas diretamente
com a falta de percepção rítmica no mesmo indivíduo; muitos que não
tem dificuldades perceptivas sonoras as tem na percepção rítmica;
também, podem ocorrer simultaneamente no mesmo indivíduo.
Resumindo:
– A mente elabora, organiza e processa dados que lhe chegam
como informações, pelos canais neurológicos.
– Sem experimentação não existem dados a serem analisados.
– A experiência é conhecimento, somente depois de resolvida e
assimilada.
– O conhecimento, pode ser lembrado por estar no lastro de expe-
riências assimiladas e acomodadas.
– A percepção “de”, só é possível se a mente tiver dele(de) algum
conhecimento (referência).

– Para reconhecer, é indispensável ter ocorrido anteriormente, o
conhecimento “de”.
– Inteligência, pode ser entendida como aptidão da mente na
apreensão, respostas a estímulos, resolução e organização dos
materiais experimentados.
– A qualidade da inteligência musical, pode estar diretamente
vinculada à capacidade de resposta aos estímulos aos quais o
indivíduo é exposto.
Ficam as questões: Aquele que não conhece o sistema tonal pode ser
considerado, musicalmente não inteligente? É correto usar o termo
“falta de percepção” para designar um desconhecedor do sistema
tonal? Até que ponto alguém pode ser considerado desafinado?

Referências bibliográficas
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Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna.


Curvas de dissonância para sistemas de afinação alternativa


Alexandre Torres Porres
Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

conceito que existe sobre consonância/dissonância poderia ser

O descrito, do ponto de vista do senso comum, da seguinte forma:


dois tons simultâneos são ditos dissonantes se o resultado for
desagradável para o ouvido e consonantes se o resultado for agradável.
Apesar da aparente simplicidade, esta definição carrega um alto grau
de complexidade que perpassa estudos voltados à Psicoacústica (Plomp
& Levelt, 1965).
O estudo aqui apresentado é um recorte de pesquisa em andamento no
programa de Mestrado em Música no Núcleo Interdisciplinar de
Comunicação Sonora (NICS) da UNICAMP, na qual investigamos o uso
de microtons por compositores do século XX no sentido de subsidiar o
desenvolvimento de novos modelos para composição musical. O estu-
do de curvas de dissonância sensorial fundamenta o desenvolvimento
de um processo composicional próprio, o qual explora a relação entre
afinações alternativas e espectro sonoro no que diz respeito ao controle
de dissonância sensorial.

Referencial teórico
Na literatura fundamental da área, as medidas de dissonância são
geralmente associadas às interações entre os componentes espectrais
ou parciais de um som. A pesquisa de Plomp & Levelt (1965) provê os
fundamentos para a construção das Curvas de Dissonância Sensorial.
Utilizando-se deste estudo, William Sethares (2005) desenvolveu um
modelo que relaciona o timbre de um instrumento musical (i.e. re-
presentado pelo espectro sonoro) com a construção de uma escala.
Sethares relaciona a distribuição espectral com uma dada escala/afi-
nação com o objetivo de obter níveis mínimos de dissonância nos
intervalos musicais da escala. Em paralelo, o compositor Clarence
Barlow (1980) expande os conceitos de Plomp & Levelt (1965) ao
incluir no cálculo das Curvas de Dissonância Sensorial as Curvas de
Fletcher & Munson (1933) que relacionam a percepção de intensidade
sonora e distribuição de freqüência a um conjunto de curvas não-linea-
res denominadas de Curvas de Iso-Loudness.

1. Afinação Justa e Temperamento
As definições fundamentais relacionadas ao nosso trabalho podem ser
resumidas da seguinte forma: Intervalos justos são aqueles que podem
ser representados por proporções de números inteiros, ou seja, frações
racionais. Ex: [2:1] (oitava), [3:2] (quinta). Já intervalos temperados não
podem ser representados por proporções de números inteiros, pois são
descritos por relações de números irracionais. Ex: [2½:1] = 1.4142…
(trítono temperado). A afinação justa possui apenas intervalos justos,
enquanto o temperamento, além de intervalos temperados, pode
também conter intervalos justos. Intervalos justos possuem relações
harmônicas e são periódicos. Intervalos temperados são inarmônicos e
aperiódicos.
Todavia, alguns autores consideram como harmônicos os intervalos
representados por frações racionais associadas aos primeiros termos da
série harmônica e inarmônicos as razões associadas aos termos de
ordem superior. Intervalos inarmônicos são, desta forma, aproximados
aos termos superiores da série harmônica. Ex: [1.414:1] ao invés de
[2½:1] para representar o trítono temperado.

2. Dissonância
Tenney (1988) destaca cinco noções distintas de dissonância no
decorrer da história: melódica, polifônica, funcional, contrapontística,
e psicoacústica. A noção mais recente é a psicoacústica, focada em
mecanismos perceptuais do sistema auditivo, o termo dissonância sen-
sorial está sob esta ótica e é geralmente creditado à Helmholtz (1954),
apesar de ter sido significativamente refinado por Plomp e Levelt
(1965). Este estudo contemporâneo da dissonância sensorial é
vinculado à Banda Crítica e ao Mapeamento Espectral da Dissonância,
apresentados a seguir.

2. 1 Banda Crítica e Percepção de Dissonância


Segundo Helmholtz (1954), a percepção de dissonância ocorre quando
há a presença de batimentos1. Helmholtz partiu de três princípios
básicos para elaborar Curvas2 de Dissonância Sensorial: “a) o espectro
de tons complexos contém parciais harmônicos3, b) a sensação de
1 Dois tons puros (ondas senoidais) de freqüências muito próximas interagem no mecanismo do ouvido
gerando a percepção de batimentos. Batimentos lentos produzem a sensação de trêmolo na taxa da dife-
rença entre as freqüências, enquanto batimentos rápidos tendem a ser rugosos e incômodos.
2 Os gráficos se encontram na página 193 em Helmholtz (1954), um gráfico semelhante é fornecido na
Figura 1.
3 Portanto podem ser representados racionalmente, como os intervalos justos, e são periódicos.

rugosidade mais intensa ocorre nos batimentos rápidos de 32hz e c) a
rugosidade dos componentes espectrais pode ser somada”. Por causa
do primeiro princípio, o gráfico resultante aponta níveis mínimos de
dissonância em intervalos justos4.
O termo consonância tonal foi cunhado por Plomp & Levelt (1965)
para distinguí-lo da Teoria de Batimentos de Helmholtz e também do
conceito de consonância da Teoria Musical. Nos seus experimentos,
Plomp & Levelt pediram que voluntários sem treinamento musical
avaliassem a consonância entre dois tons puros através da resposta a
estímulos senoidais. Foi encontrada uma tendência clara: no uníssono
a dissonância sensorial é zero, e aumenta rapidamente até um
determinado ponto na medida em que o intervalo entre os dois tons se
afasta do uníssono, decaindo até se estabilizar em um nível baixo de
dissonância. O ponto máximo de dissonância, independentemente do
registro, está em torno de um quinto da banda crítica5 e decai consi-
deravelmente até a passagem do limite da banda crítica, após o qual o
nível baixo de dissonância se estabiliza. Plomp & Levelt concluíram
que as curvas de dissonância sensorial extraídas dos seus experimentos
apontam para a relação entre dissonância e banda crítica.

2. 2 Mapeamento Espectral da Dissonância


Sethares (2005), baseado no modelo de Plomp & Levelt (1965), fornece
um algoritmo para calcular e gerar curvas de dissonância de um dado
espectro partindo de uma lista de freqüências e suas amplitudes
relativas. A curva de dissonância abaixo (Fig. 1) 6 é de um espectro
harmônico com sete parciais, cujas amplitudes relativas decaem na
taxa de 88%.
Figura 1 - Curva de
12-tet scale steps
unison m3 M3 fourth fifth M6 octave
dissonância com níveis
mínimos de dissonância em
dissonance

intervalos justos, repre-


sensory

sentados pelas razões de


números inteiros na parte
inferior, estes intervalos são
1/1 6/5 5/4 4/3 3/2 5/3 2/1 comparados com os do
frequency ratio sistema igualmente tempe-
rado na parte superior.
4 Os níveis mínimos de dissonância dependem das relações entre os parciais do espectro sonoro.
5 A diferença em freqüência entre dois tons puros onde a sensação de rugosidade desaparece. A
banda crítica varia em torno de uma segunda maior e uma terça menor de acordo com o registro. No
grave a banda crítica é maior que uma terça maior.
6 Elaborada por Sethares, disponível em: <http://eceserv0. ece. wisc. edu/~sethares/consemi. html>

Sethares analisou também espectros inarmônicos e encontrou níveis
mínimos de dissonância que correspondem às relações inarmônicas 7 Sethares
dos componentes espectrais. Sua conclusão se posiciona na direção adota
oposta do que se poderia pensar originalmente. Pois ele demonstrou aproxima-
ções racio-
que determinados intervalos justos são percebidos como mais nais, como
dissonantes que outros intervalos inarmônicos. Um exemplo é descrito
fornecido por Sethares onde o intervalo de uma oitava [2:1] é mais dis- na seção 2.
1, para
sonante que o intervalo em torno de uma sétima maior [1.86:1]7 (Fig. descrever
2). Neste exemplo, o espectro é formado apenas por dois parciais que relações
estão na relação de [1.86:1]. Outro exemplo (Fig. 3) mostra dois inarmôni-
cas.
parciais na relação [1.15:1].
Figura 2 - Verifica-se que, ao con-
trário da Figura 1, o valor 1.86 (em
Dissonância
torno de uma sétima maior) tem seu
vale na curva antes do valor 2.0
(oitava). Tal comportamento
demonstra como o nível de dis-
sonância de um intervalo musical 1. 0 2. 0
depende dos componentes espec-
trais dos tons envolvidos.
Dissonância

Figura 3 – Diferentemente da figura


1, com níveis mínimos em [6:5] e
[5:4] (primeiros termos da série har-
mônica), encontramos um nível
mínimo de dissonância no intervalo 1. 0 2. 0
[1.15:1].
Barlow (1980) ampliou o modelo de dissonância sensorial de Plomp &
Levelt (1965), incluindo no cálculo do mesmo as curvas de iso-loud- 8 Tal como
ness8 de Fletcher e Munson (1933), que influem no peso de amplitude o experi-
mento de
de cada parcial. Barlow também mede a relação entre todos os com- Plomp e
ponentes espectrais, e não somente aos pares adjacentes como Levelt,
Sethares. Fletcher e
Munson
mediram a
Discussão & conclusão percepção
de intensi-
Ainda são poucos os estudos focados na medida de dissonância senso- dade
rial como apresentados neste trabalho. Os modelos e métodos sonora de
um som
disponíveis são, inevitavelmente, simples para tratar de um objeto com- com inten-
plexo como o timbre de instrumentos. Barlow também aponta para sidade fixa
algumas melhorias em seu modelo, como a inclusão do fenômeno de de acordo
com a fre-
mascaramento. Nós apontamos que estes métodos podem ser amplia- qüência.

dos com o procedimento de subdividir o espectro temporal em janelas
de tempo. Todavia, tanto Sethares quanto Barlow atestaram seus mode-
los como suficientes em seus respectivos objetivos composicionais.
Sethares (2005) elaborou afinações alternativas que possuem baixo
nível de dissonância a partir de um espectro inarmônico, utilizando
técnicas de síntese sonora digital. Barlow (1980) comparou os interva-
los de um piano em todo o registro para gerar uma tabela de intervalos
em ordem crescente de dissonância, organizada por oitavas9.
9 Barlow
encontrou Afinações justas buscam minimizar a dissonância de intervalos musi-
diferentes cais. Pelo exposto neste artigo, podemos verificar que níveis mínimos
graus de de dissonância dependem dos componentes espectrais dos sons. Desta
dissonân-
cia para os forma, o uso de afinações justas se baseia em um conceito que consi-
mesmos dera o comportamento espectral dos instrumentos musicais como
intervalos sendo idealmente harmônico e estático. Todavia, quando se trata de
em dife-
rentes instrumentos musicais acústicos, há sempre um índice de inarmonici-
oitavas. dade associado, principalmente em instrumentos de percussão como
Assim, sinos e de barras de metais. Instrumentos de corda e sopro são os que
cada oita-
va na possuem o menor índice de inarmonicidade, e de fato um nível mais
tabela pos- baixo de dissonância pode ser obtido no uso de sistemas de afinação
sui uma justa nestes instrumentos. Todavia, há um limiar de percepção onde as
ordem
diferente vantagens de uma afinação justa não prevalecem sobre o uso de inter-
de interva- valos temperados, especialmente em relações onde se constroem estru-
los. turas formadas por termos superiores da série harmônica. Por isso,
intervalos temperados são usados como uma solução mais prática e
alternativa ao ideal de afinação justa, ou ainda o contrário (como
adotado por Sethares).
Esta pesquisa não visa avaliar empiricamente as curvas de dissonância
sensorial, nem propor incrementos aos modelos existentes.
Pretendemos discutir sua aplicação em processos composicionais,
especialmente baseados em afinações alternativas. As curvas de dis-
sonância sensorial subsidiam uma abordagem que vincula intervalos
musicais ao comportamento espectral dos sons, numa aplicação, por-
tanto, similar à da música espectral, que adota o uso de microinterval-
os para interferir no comportamento espectral de uma massa sonora.
10 Pure Neste sentido, estamos trabalhando num software escrito em Pd10 para
Data, soft- composição musical interativa onde o compositor poderá manipular
ware livre
disponível afinações e dissonância sensorial como fator de interação com o intér-
em: prete. Com o objetivo de avaliar a interação entre afinações alternativas
http://pure e as curvas de dissonância, desenvolveremos um estudo de caso para
data. info/
avaliar como as mesmas variam para diferentes escalas. O experimen-

to será realizado por meio de um programa escrito em Pd que utilizará
a formulação de Sethares. Os resultados encontrados serão utilizados
na formulação de um conjunto de estratégias composicionais.

Agradecimentos
A implementação em Pd está sendo realizada com a essencial ajuda do
doutorando Fábio Furlanete. O projeto de pesquisa é apoiado pela
FAPESP com a concessão de bolsa de mestrado e pelo CNPq com a
concessão de bolsa Pq.

Referências bibliográficas
Tenney, J. (1988). A History of “Consonance” and “Dissonance. ” White
Plains, NY: Excelsior, 1988; New York: Gordon and Breach.
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edition.
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BARLOW, Clarence (1980). Bus journey to Parametron. Feedback Papers vol.
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FLETCHER, H and MUNSON, W A (1933), Loudness, its definition, measurement
and calculation in Journal of the Acoustical Society of America 5, 82-108.


A percepção na música
Valeria Gobbi
Raquel da Cruz Machado
Universidade de Passo Fundo

“S
ó existem três espécies de mecanismos figurativos por
oposição aos mecanismos operativos das funções cognitivas: a
percepção, a imitação e a imagem”. (Piaget, 1977:493). Se
nossa relação com o mundo inicia através da experiência que
temos com ele e esta relação seria responsável pela construção de co-
nhecimentos, a percepção seria o primeiro encontro com a realidade.
Partindo da idéia de que outras teorias como o behaviorismo e a gestalt
não responde o que há entre o sujeito e o meio, Piaget avança em seus
estudos dos mecanismos do desenvolvimento cognitivo ao se apartar
dos mecanismos perceptivos que a cultura fornece. Estudando o cami-
nho da percepção e sua evolução constata-se que seus efeitos primários
ou de campo só se modificam com a idade e alguns esboços de está-
gios que aparecem e se transformam, não podem ser comparados com
o desenvolvimento das operações. Não existe autonomia nesta
evolução das percepções, por que ela precisa da intervenção de
mecanismos que vão além da percepção e, justamente, estes mecanis-
mos exteriores vão contribuir para o aparecimento de novos efeitos per-
ceptivos.
Em princípio, pode-se mencionar que a percepção é influenciada pela
maneira como os corpos estão estruturados para receber e elaborar os
estímulos do meio, porém tudo inicia pela refutação da hipótese de que
o conhecimento é uma cópia do real e da afirmação da hipótese de que
se trata de uma assimilação.
Partindo da questão de que a imagem constitui a fonte das operações
intelectuais ou se, ao contrário, ela interfere no desenvolvimento destas
operações, trata-se de buscar origem a propósito da percepção incidin-
do sobre as relações entre os aspectos figurativos e operativos das
funções cognitivas, nos domínio visuais e por vezes tátil-sinestésicos.
Piaget relaciona a imagem e a percepção, analisa as transformações da
imagem e as antecipações da mesma realizada pelo sujeito. Observa as
antecipações nas relações topológicas mais gerais, tais como a
vizinhança e o envolvimento, questiona se a imagem depende da ação

do sujeito e qual sua relação com o pensamento operatório para
alcançar, finalmente, compreender a relação entre a intuição geométri-
ca, as imagens e as relações de natureza imagética ou operatória.
Constituindo-se como funções figurativas do pensamento, as imagens
de reconstituição e antecipação – próprias da representação imagética
– apresentam um problema similar à percepção, que é outra parte das
funções figurativas, as relações entre os efeitos de campo e as
atividades perceptivas. Se não existe autonomia na evolução das
percepções, tal não acontece com as operações da inteligência cujo
desenvolvimento apresenta as características de desenrolarem-se
segundo estágios bem definidos e segundo um processo autônomo. De
acordo com Piaget (1977:483):
“Uma tal evolução é, por outro lado, autónoma pois as estruturas
assim construídas engendram-se umas a partir das outras em virtude de
razões que só dependem da inteligência (acordo com a experiência,
coerência interna, etc. ), podendo os factores afectivos, por exemplo,
acelerar ou retardar a formação duma estrutura, mas não modifica-la
enquanto estrutura (autónoma não significa portanto isolável, mas que
se desenrola segundo filiações contínuas)”.
Examinar as questões do significado de estágios ou da sua própria
existência e, antes de tudo, o mecanismo de sua evolução contribui
para esclarecer sobre as relações da imagem com a percepção e com a
inteligência. O aparecimento da imagem coincide com o provável
momento da constituição simbólica, ou seja, entre um e meio a dois
anos e não apresenta dinamismo de contínuo, quer se trate da con-
tinuidade de movimento ou de modificação. A percepção, por sua vez,
é centrada e contenta-se com algumas amostras de informação forneci-
das por centrações e encontros em parte aleatórios do objeto, cujo
resultado é uma probabilidade de acertos uma vez que atinge somente
uma parte dos elementos percepcionados ou das relações em questão.
A imagem, pelo contrário, busca uma figuração esquematizada, sim-
bólica. As deformações observadas são próprias desta figuração e o seu
caráter estático se deve a impossibilidade de captar o contínuo cujo
simbolismo vem para suprir aquilo que não foi possível representar.
“(…) Da mesma maneira, se a imagem é simbólica, a percepção não o
é certamente no sentido que tomamos do termo de símbolo”. (idem:
495). A sensação, por sua vez, é um símbolo entendido como um
índice ou sinal e não como semelhança, portanto, ela não se constitui
como cópia fiel do estímulo.
Quando Guillièron (1979) demonstra que as crianças pequenas estão

mais sujeitas aos “efeitos de campo” no desenvolvimento das per-
cepções, são mais sensíveis às ilusões perceptivas primárias, não está
eliminando a possibilidade de que isso aconteça também no adulto.
Devido possuir poucas atividades perceptivas, a criança, até aos seis
anos, é muito sensível a estas ilusões. Elas apresentam “grandes difi-
culdades na decomposição de uma figura complexa em unidades que
não sejam ‘naturais’, ‘primárias’, isto é, em unidades simples organi-
zadas segundo as leis da Gestalt” (p. 155).1 Mesmo que a figura seja
organizada segundo essas leis, porém complexa e o desenho não cor-
responder a uma unidade simples, a criança conseguirá reconhece-lo
somente após os seis anos. Outra característica consiste em que suas
percepções são sincréticas, sem relações entre as diversas partes de um
todo. Tem uma visão global do conjunto sem apresentar a análise e sín-
tese das partes, nem tampouco atividades exploratórias e, se por acaso,
aparecer uma visão de detalhes, estes serão isolados, em justaposição.
Quando chegam a fase pré-operatória e as primeiras operações, entre
seis e oito anos, aparece uma nova forma de organização. Assim, pode-
se “entender a evolução das percepções como uma assimilação pro-
gressiva da percepção por parte das funções cognitivas superiores”
(idem: 157). Piaget, com seus estudos, esclarece que a reversibilidade,
como capacidade de executar a mesma ação nos dois sentidos do per-
curso com consciência de que se trata da mesma ação, para a qual as
comparações e transposições se encaminham das regulações percepti-
vas, é a grande responsável pelo início das operações. A percepção,
portanto evolui sem que seu nível de organização primária desapareça.
Egocêntrica, sempre está centrada num objeto presente, em função da
própria perspectiva do sujeito, por isso só tem satisfação prática. Não
busca a explicação, a classificação, a comprovação por si mesma e não
relaciona causalmente. Não é reflexiva.

1 A psicologia de Gestalt ou psicologia da forma foi uma corrente que muito se


dedicou ao estudo e experimentação no campo da percepção. De acordo com
seus psicólogos, que introduziram a distinção Figura x Fundo, a figura é o foco de
interesse, diz respeito àquela percepção elaborada numa forma plena, pregnante,
sobre a qual se focaliza nossa atenção. O fundo é o suporte neutro dessa figura, é
o espaço em volta, percebido de maneira vaga, podendo-se chamá-lo de cenário
ou contexto. Mais tarde foi acrescentado um terceiro termo, Campo, significando
o lugar onde ocorreu a observação. A fenomenologia apontou para o fato de o
percebido como figura ou fundo é, também, determinado principalmente pelo
campo e pelas relações que o sujeito mantém com esse campo. Os termos figura,
fundo e campo, fornecem uma estrutura para organizar a experiência. Eles
próprios são produtos de um conjunto de hábitos culturais e perspectivos em que
a experiência tende a se organizar ao longo de linhas perspectivas com frente,
fundo e horizonte distante. Defende, portanto, a idéia do conhecimento-cópia.

Muitos fatores possuem efeito sobre a percepção, referindo-se à
música, pode-se dizer que ela desperta emoções, evoca lembranças e
manifestações físicas. A emoção musical é um diálogo, uma
comunicação não-verbal e o prazer que ela provoca regula os
comportamentos afetivos.
Pesquisas recentes, no entanto, indicam que as avaliações emocionais
de diferentes ouvintes, incluindo aquelas que se baseiam em história
pessoal e na própria sensibilidade estética, não dependem totalmente
de fatores individuais. De acordo com os resultados obtidos nessas
pesquisas, as reações emocionais de músicos e sujeitos sem formação
musical são bastante parecidas, o que comprova que a percepção das
emoções musicais é muito estável, tanto no plano individual como
entre diferentes ouvintes, o que leva a crer que as emoções musicais
garantem uma coesão social numa dada cultura. Exerce grande poder
sobre o comportamento e ativa zonas cerebrais que participam do
processamento das emoções, assim comprova-se que a música não
evoca emoções subjetivas somente, mas que ela de fato as provoca.
O estudo das emoções musicais requer algo que torne possível o con-
trole de um pequeno número de fatores musicais supostamente impor-
tantes na expressão e na percepção dessas emoções. Algumas teorias
procuram mostrar que as emoções nascem das expectativas musicais
determinadas pelos momentos de tensão e repouso que se sucedem nas
peças de música erudita ocidental, esta que produz a impressão de um
movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para novas
regiões, onde cada tensão se constrói buscando o horizonte de sua
resolução. Nesse movimento de tensões e repousos, que se desenrola
com uma nova organização do campo das alturas sonoras coloca em
cena uma procura permanente, uma demanda que só se reencontrará 2 Pesqui-
com seu próprio fundamento à custa de um percurso muitas vezes sas reali-
zadas pelo
longo. Tensão e repouso aparecem tanto na frase melódica como na Labora-
estrutura harmônica da música tonal. tório de
Neuro-
De acordo com estudos de Peretz (2003), as crianças identificam bem psicologia
mais cedo os índices emocionais na estrutura musical e sua percepção da Música
e da
desses índices aumenta durante o desenvolvimento. Os parâmetros de Cognição
andamento e de modo, de acordo com dados experimentais, represen- Auditiva,
tam um índice perceptivo que provoca uma resposta emocional, ou dirigido
por
seja, processos cognitivos específicos da música provocam emoções2. Isabelle
Peretz, da
A percepção da música implica processamentos cognitivos complexos Universida
ao seguir o desenvolvimento temático de uma sonata ou perceber li- de de
Montreal.

gações entre um tema e suas variações. Esse processo requer operações
cognitivas abstratas que colocam em atividade capacidades de atenção
e memória, e operações de categorização e raciocínio.
Bruner escreveu em 1960, que qualquer tema podia ser eficazmente
ensinado de alguma maneira intelectualmente honesta em qualquer
etapa de desenvolvimento de qualquer criança, já sua versão desta
hipótese do ano de 1966 se concentra nas formas pré-verbais de conhe-
cimento da criança pequena. À medida que a criança forma conceitos
através da manipulação dirigida aos elementos da música, pode
começar a praticar a audição, o movimento, o canto, a execução
instrumental e a criação, descobrindo seus próprios sentimentos a par-
tir de suas percepções. Sua percepção e compreensão virão provavel-
mente facilitadas, pois tanto a criança como o artista (…) “encontram
um estímulo espontâneo nas qualidades dinâmicas ou expressivas… as
qualidades mais fortes e imediatas da percepção” (Aronoff, 1974). A
intuição e a fantasia da criança pequena e a representação direta do
seu mundo através da ação e da manipulação parecem ser os ver-
dadeiros ingredientes da expressão estética. A liberdade para reagir afe-
tivamente pode aguçar a criança porque sua percepção nos primeiros
anos se caracteriza, como já foi citado, por ser autista, ou seja, centra-
da no seu afeto, egocêntrica, no sentido de que tem como referência a
si própria, e também dinâmica, por estar estritamente vinculada a ação.
Segundo enfoque de Bruner (1966), o conhecimento mediante o movi-
mento e a percepção de imagens auditivas constituem as bases da
expressão musical não só em nível cognitivo, mas também no afetivo.
3 Jacques Dalcroze,3 a partir da mais simples resposta individual aos sons da
Emile música, desenvolveu uma prática de educação musical, que se con-
Dalcroze
(1865-1950)
figura tão positiva para o desenvolvimento do crescimento musical na
vienense, atualidade, assim como foi na sua época. Ele propôs uma educação
considera- musical baseada na audição (escuta consciente), entendendo-se que
do o
criador da
esta acontece através da participação de todo o corpo, da ativação do
rítmica. sistema nervoso, num cultivo de sensações táteis e auditivas
combinadas. Dalcroze lançou as bases de uma educação musical ativa,
baseada na sensorialidade e na sensibilidade de todo o corpo como
uma unidade, conduzindo a uma consciência auditiva. A música se
transforma num meio de incitar o movimento. Quando a criança
escuta, tende a organizar suas percepções e a traduzir essas experiên-
cias musicais a seu próprio movimento. Aprende a ficar tenso e a
relaxar quando deseja e conhece a satisfação da espontaneidade e do
controle. Podem ser dadas oportunidades de responder as questões

musicais e/ou de tomar decisões independentes.
“O maior benefício na criança gerado pelas experiências musicais
guiadas por sons e movimentos vem da percepção sensitiva da música
utilizada. A música por si só, pode constituir um importante estímulo
para o movimento. Também pode introduzir o elemento da
autodisciplina que tem importantes ramificações no desenvolvimento
com gratificações tanto cognitivas como físicas e afetivas” (Aronoff,
1974: 51).
Dalcroze especificava que, a música lida com a emoção, e responde a
diferentes necessidades do indivíduo, seja como vibração sonora que é
(agindo fisiologicamente), seja como experiência estética (agindo psi-
cologicamente), seja como expressão, facilitadora de desenvolvimento
e socialização, prazer e gozo estético, seja, ainda, como auxiliar do
bem-estar, colaborando na formação plena da personalidade e na rein-
tegração do infradotado à sociedade. Refletindo em relação à educação
formal e atentando para as considerações da psicologia genética –
quando nos informa que a organização do pensamento e a estruturação
do saber advêm fundamentalmente da atividade do sujeito –, concluí-
se que a prática musical constitui significativa ferramenta no processo
educacional, visto ser uma atividade (construção, performance e/ou
escuta), animada pela afetividade, que, nascendo do homem, atinge o
homem no seu todo (Sekeff, 2002).
Segundo Piaget (1962), a unidade básica de pensamento é qualitativa-
mente diferente em cada estágio do desenvolvimento de um sujeito. No
processo de crescimento, a criança demonstra a habilidade para
representar um objeto através de outro objeto. Esta habilidade é resul-
tado da construção de esquemas representativos desenvolvidos através
de imagens, da linguagem ou de símbolos. O pensamento representa-
tivo manifesta-se como uma característica física da função simbólica.
Assim, a exteriorização de uma proposição musical, a representação de
música em movimento, a representação de música através de símbolos,
são evidências crescentes da função simbólica. São também as
primeiras indicações de que a expressão musical consiste de um esque-
ma representativo no seu processo efetivo. A música como produto
desse processo, é uma forma de representação sonora da experiência
sensível interior da criança. Há uma forma complexa como a atividade
mental desempenha a transformação de uma sensação em uma
imagem ou representação. No estágio da representação o sujeito con-
segue projetar mentalmente o discurso musical, seguindo ou acom-
panhando a trajetória do discurso sem precisar da ação concreta do

real. A percepção que até então era analítica linear, torna-se progressi-
vamente analítica estrutural, comportando explorações no sentido
vertical. A compreensão da relação antecedente-conseqüente nas fras-
es musicais é uma demonstração clara do pensamento proposicional e
da capacidade hipotético-dedutiva da cognição. As estruturas de
operações combinatórias, de proporções de probabilidade e previsão,
passam a ser uma capacidade implícita neste estágio do
desenvolvimento. (Martins, 1993).
Piaget e Inhelder dedicam grande importância a representação da
imagem no desenvolvimento de processos de pensamento: “… uma
imagem motora é muito mais que uma percepção esvaecida… ela
consiste de uma imitação internalizada… O mesmo é verdade em se
tratando de imagens visuais” (Piaget e Inhelder, 1971: 17). Eles
classificam as imagens em termos de conteúdo (auditivo, visual, motor)
e em termos de estrutura.
(…) “As imagens reprodutivas evocam objetos ou eventos conhecidos;
as imagens de antecipação (expectativa, antevisão), projetadas pela
imaginação figurativa, representam eventos não percebidos previa-
mente. De acordo com esta visão a imagem mental é uma imitação
internalizada e ativa resultado de uma imagem gráfica, de um produto
visível; o gesto imitativo é o fator motriz que possibilita a produção de
uma imagem gráfica” (…) (1971: 349-350).
Dois períodos são propostos como importantes para o desenvolvimen-
to da imagem: o pré-operacional – antes dos sete ou oito anos – onde
as imagens são essencialmente estáticas e o operacional, onde as ima-
gens podem ser antecipatórias e podem reconstituir processos
sinestésicos, de transformação. A percepção não vem acompanhada de
símbolo, assim como a negação e a afirmação seriam desprovidas de
tal. Também a sensação é só um índice ou um sinal que também não é
um símbolo e é isso exatamente o que as diferencia. A imagem é sim-
bólica por se caracterizar como instrumento semiótico necessário para
evocar e para pensar aquilo que é percebido. É possível constatar que
a imagem é essencial para a construção do esquema representativo. O
sistema sensorial funciona como base sobre a qual a imagem se proces-
sa. É importante salientar que a música, assim como outras artes, é um
sistema de representação e “a origem do nível perceptivo e do nível
lógico é a mesma nas atividades desenvolvidas pela criança no período
sensório-motor”. (Martins, 1993).
As investigações e estudos realizados por Piaget (1971), vêm reforçar a
importância da imagem e da representação na aprendizagem musical,

das artes e da aprendizagem de uma maneira geral. As sensações tor-
nam-se percepções quando formamos imagens ou esquemas represen-
tativos convertidos mais tarde em conceitos. A percepção humana e o
desenvolvimento dos sistemas representativos envolvem todo o aparato
sensorial numa complexa rede de interações físicas que possibilita o
processo cognitivo do significado, assim como a experiência estética
que aparecerá mais tarde. A memória musical depende de modalidades
específicas de representação e internalização, de abstração e
simbolização, para construir o sentido da música como discurso e
como conhecimento.
A impressão é uma das metades da percepção. A outra metade é a
expressão. Na sua ligação está a inteligência – o conhecimento acura-
do das observações perceptuais. Pela impressão conciliamos a infor-
mação que recebemos do ambiente. Ela atrai e ordena; a expressão
afasta e projeta. Juntas, essas atividades e talvez algumas outras, fazem
o que foi descrito por Schafer (2001) como “competência sonológica”,4 4 A com-
declarando que a mesma não resulta da mera recepção de informação petência
sonológica
sensorial. une
impressão
Piaget (1962), distinguiu com clareza dois elementos específicos para e conheci-
os quais voltou sua atenção neste estudo: a teoria da percepção e a teo- mento e
ria sobre a percepção. Martins (1993) explica que na teoria da per- torna pos-
sível for-
cepção, Piaget descreve o funcionamento do aparelho perceptivo e, mular e
basicamente, os estudos feitos sobre a percepção usam como base os expressar
estímulos visuais. Na teoria sobre a percepção, Piaget estabelece um per-
cepções
paralelo entre a cognição e a percepção esclarecendo que, a sônicas.
percepção, assim como a inteligência é um tipo de adaptação.
Desde o primeiro instante, acontece o desenvolvimento de uma cons-
trução dual com o intelecto e a subjetividade levando o sujeito a uma
dimensão maior, abrangendo a intuição, a imaginação e o pensamento
lógico. A percepção engloba poucos comportamentos, ficando a cargo
da cognição uma série de ações – como julgar, classificar, reorganizar
– anteriormente concebidos como atos perceptivos.
A percepção e a memória são faculdades solidárias. O grau e o perío-
do de persistência é o que as difere. A percepção se dá, quando a cons-
ciência das impressões colhidas pelos sentidos é imediata. Já na ação
da memória, ela é mediada. Quase todas as memórias são feitas de
muitos padrões diferentes de conexão de neurônios, uns destinados aos
sons, outros à visão, outros a texturas, e a combinação de todos eles é
que vai nos dar a percepção completa. Enquanto a persistência dos

padrões absorvidos transforma a percepção ocorrida em memória, bi-
lhões de neurônios transformam as memórias armazenadas em ima-
gens, frases, sons, vozes que emergem. Mas, então não será simples-
mente percepção.
Ehrenzweig (1977), elaborou um estudo da dimensão estética humana,
sustentado por descobertas da psicologia ligadas particularmente ao
tema da percepção. Relativizando os conceitos Figura x Fundo, ele
demonstrou a existência de outra percepção que vai além dessa, con-
sciente: é a percepção inconsciente, que não segue as leis formuladas
pela Gestalt. Para ele, a atividade de nosso campo perceptual apresen-
ta, ao lado da percepção consciente, outro tipo de movimento, a per-
cepção inconsciente, diferente e desarticulada em relação à primeira.
A percepção inconsciente resulta sincrética e “mais emocional”, porém
propicia aos elementos do campo total apreensão no mesmo plano de
importância, ou seja, sem a hierarquização imposta pela Figura x
Fundo.
Nesse processo, o autor procura mostrar que a percepção consciente
objetiva sempre elaborar o campo, juntando seus elementos em formas
perfeitas, reconhecíveis, reprimindo aquelas outras formas inarticu-
ladas, representações de formas emocionais do inconsciente e objeto
da mente profunda (percepção inconsciente), a fim de organizar figura
e fundo. O mesmo acontece na escuta musical, onde as duas
percepções trabalham juntas, embora nem sempre se considere isso
conscientemente.
Sendo a música uma linguagem perceptiva por excelência, entendê-la
e exercitá-la equivale aos conceitos de compreender e falar.
Compreender a linguagem que se lê e se escuta, vivenciar seus múlti-
plos sentidos, integrar seus aspectos sensoriais, afetivos, intelectuais,
estéticos e contraponteá-los com outras matrizes de conhecimento, é o
objetivo da música como ferramenta auxiliar da educação, pois sua
vivência é atributo essencialmente humano. (Sekef, 2002).
Percepção e imaginação são, caminhos recortados no processo educa-
cional, objetivando produzir no educando essa particular espécie de
aptidão que é a emocional. Sugerir música na educação é comprovar a
importância da percepção, cuja atividade tem muito em comum com a
inteligência, já que envolvem mecanismos similares; é incursionar na
compreensão de faculdades como a aural, a memória, a inteligência; é
penetrar no mundo da materialidade sonora, porquanto o som, ao con-
trário da vibração, “é algo que uma mente faz”, assinala Jourdain

(1998: 21); é penetrar no universo da psicoacústica, que investiga como
percebemos o som.
Em resumo, não se pode considerar o que é posterior a gênese, e, desta
forma, volta-se ao início. Piaget concluiu que “a representação do dado
percepcionado ou perceptível não constitui só por si um conhecimen-
to, e só se torna um conhecimento quando se apóia sobre a com-
preensão operatória das transformações” (1977: 525). Somente a per-
cepção e a motricidade efetiva seguirão exercitando-se tal qual são,
sem carregar-se de significações novas nem se entregar em novos sis-
temas de compreensão. Caberia ainda perguntar: por que a psicologia
da inteligência se preocupa com o problema perceptivo?
Provavelmente, porque envolve o “saber construir” através de oper-
ações apropriadas uma figura não dada e semelhante a um modelo
dado (1993: 339), porque, a partir da percepção, inúmeros sistemas se
desenvolvem pela experiência e interação entre sujeito e objeto, enten-
dendo como “experiência não o que se fez, mas o que se faz com o que
se fez”. Em outras palavras, “… é que uma percepção nunca se apóia
senão em campos restritos, ao passo que um sistema de coordenadas
supõe, ao contrário, a coordenação operatória de todos os campos
entre si”. (1993: 435). A partir da percepção de um dado específico,
existe uma verdadeira engenharia de construções internas do sujeito
permitindo evoluir com esse dado em níveis superiores do conheci-
mento, mas a percepção estará lá, a serviço do “saber construir”. O
som é sensação, a música é um deslocamento no tempo e esse deslo-
camento ocorre no espaço, com o contato pedagógico entre a música
e o sujeito, este só expandirá o suporte para as operações lógicas.
Sendo assim, permitir que a educação musical fique fora da formação
do sujeito é o mesmo que lhe negar a educação como um todo, é
renegá-lo a condição de indiscriminação sonora devido à estatização
perceptiva do objeto quando se deveria privilegiar a evolução da
percepção auditiva. Sendo esta, portanto, uma construção.

Referências Bibliográficas
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2. A Mente e a Produção das Artes Musicais


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Pianista e professor:
questões básicas de ensino de prática instrumental
Zélia Chueke
Universidade Federal do Paraná

Questões de ensino

“T eachers come in different shapes and sizes.” Assim começa o


artigo de Bernard Holland no New York Times de 7 de setem-
bro de 1998. Apesar dos “diferentes tamanhos e formas” de professores
e alunos, existem certas condições básicas para que o processo ensino-
aprendizado tenha êxito:
1. Educar é um ato de generosidade; o educador deve estar dispos-
to a transmitir informação e orientar o aprendiz na busca de seu
próprio caminho.
2. O estudante precisa estar aberto a receber informação, escutan-
do e ponderando sobre a orientação do professor para no tempo
devido, ajustá-la a seus próprios ideais.
3. Ambos devem estar movidos pelo mesmo ideal: cultivar e
partilhar para crescer.
Seja qual for a disciplina, se o professor retém a informação ou a faz
parecer inatingível, após algum tempo o aluno abandona sua busca,
desacreditando em sua capacidade de aprender assim como na dis-
posição de ensinar dos professores. No entanto, a função do professor
é justamente desmitificar o assunto abordado, facilitando o acesso à
informação e incentivando a curiosidade do aluno. Infelizmente não é
esta a realidade na maioria das situações de ensino-aprendizado,
incluindo o ensino de prática instrumental em todos os níveis.

A função do professor
O papel do professor está implícito na função do instrumento musical.
Tomando como exemplo o piano, verificamos que sua evolução – do
monocórdio ao piano moderno – deu-se essencialmente em função de
exigências musicais. Esta constatação origina outra, que caracteriza a
música como arte performática. “Estritamente falando, a música é pro-
duzida unicamente através da execução, e o sentido a ela atribuído
depende de cada indivíduo” (Blacking, 1979: 3). Fica assim definida a
função do professor: orientar o aluno para que este possa descobrir seus
próprios meios de transformar idéias musicais em som.

Professor ou pianista?
Um aspecto que tem sido freqüentemente abordado em se tratando do
ensino de piano é a necessidade da experiência do professor como
intérprete profissional.
Na opinião de Georgy Sandor (1995: 200) “os intérpretes devem
aprender de outros intérpretes”. Curiosamente, seu enfoque recai sobre
as vantagens do professor que pode demonstrar o que ensina.
Consideremos este enfoque juntamente com o testemunho de Leon
Fleisher (apud Mach, 1988: 106): devido a problemas nas mãos, que o
impediram de executar muito do que ensinava, Fleisher viu-se forçado
a se tornar mais verbal, criando imagens que procurava associar à
experiência de cada aluno. Reconhecendo ser muito mais simples
sentar-se ao piano e tocar uma certa passagem, o pianista acredita que
a imitação no início do aprendizado é importante, pois “existem
aspectos que apesar de copiar satisfatoriamente, o aluno só virá a
compreender um pouco mais tarde”.
Estes dois pianistas valorizam as habilidades performáticas do professor
de instrumento sob um ângulo deveras inconveniente, sendo a imitação
geralmente desprovida de escuta e reflexão, o que pode facilmente
impedir o auto-conhecimento, objetivo importantíssimo no processo de
aprendizado. Além disto, qual seria a finalidade de se sugerir ao aluno
a cópia da execução de um material sonoro que ele não pode ainda
compreender? Afinal, contamos com opções de repertório as mais
diversas, acessíveis às diferentes condições emocionais, culturais e
técnicas, possibilitando o desenvolvimento individual e paulatino da
compreensão musical e sua relação íntima com a técnica.
Esta é a postura de pianistas como Rudolf Buchbinder (apud Chueke,
2000: 38) que acredita ser atribuição do professor encorajar e patroci-
nar a individualidade de cada estudante. O pianista austríaco afirma
que o professor deve ter o cuidado de não impor sua própria persona-
lidade ao aluno. Rudolf Firkursnik (apud Mach, 1980: 84) declara igual-
mente que “tenta ajudar seus alunos a desenvolver sua própria indivi-
dualidade, principalmente no que diz respeito à expressão musical”.
Respondendo à nossa questão, não restam dúvidas quanto às vantagens
da experiência do professor enquanto intérprete profissional; porém
estas se manifestam não na demonstração pura e simples de suas
próprias idéias, mas no acompanhamento do processo do aluno, que
inicia com a escolha de uma obra a ser incluída no repertório, seguida
do primeiro contato com a partitura, a compreensão e absorção do

texto musical, a preparação da execução e o momento mágico da
comunicação entre o artista e o ouvinte. Uma grande e real vantagem,
é que o profissional poderá orientar o aluno a tirar o melhor proveito
do tipo de experiência que só pode ser vivida no palco, como por
exemplo, a adaptação à acústica da sala, sua relação com o
instrumento, com possíveis microfones e com a presença do público,
entre outros aspectos.
Como resultado de um ensino apropriado, o jovem instrumentista: (a)
torna-se capaz de usar sua bagagem musical e técnica para trazer
consistência à sua interpretação, (b) adquire auto-confiança, que ira
guiá-lo em sua busca de individualidade na execução, (c) aprende a
monitorar conscientemente seu trabalho de preparação e a execução
propriamente dita, vivenciando-a com prazer.

Os mitos, suas origens e conseqüências


Os testemunhos de grandes pianistas e igualmente de jovens intérpretes
a respeito de suas experiências enquanto aprendizes, fazem menção a
certos mitos que podem desencorajar o futuro intérprete em suas
aspirações profissionais. Estes refletem geralmente uma atitude de auto-
proteção da parte dos professores, que se sentem ameaçados pelos
possíveis questionamentos que possam abalar os alicerces já pouco
sólidos de sua formação, cujos pontos fracos residem em sua maioria
no campo da leitura/escuta e compreensão do texto musical.
Consideraremos a seguir os mais comuns destes mitos e suas
conseqüências.

O mito do inalcançável
A função primordial do intérprete é “esclarecer” (Schoenberg, 1984:
347) para os ouvintes as idéias musicais que extraiu da partitura. No
entanto, ele só será capaz de esclarecer algo que tenha compreendido.
Usando o texto musical como referência, o professor certamente
poderá ajudar o jovem intérprete que tenha manifestado alguma difi-
culdade de compreensão. Infelizmente, inseguros em relação ao uso
devido da notação, professores tentam descrever o discurso musical
com imagens extra-musicais muitas vezes inconsistentes, distantes da
realidade do aluno e do próprio contexto da obra, gerando apenas mais
insegurança. Estabelece-se assim o mito do inatingível e com este, uma
eterna relação de dependência. O aluno não se sente capaz de decifrar
uma partitura, muito menos de formar uma imagem sonora a partir dela

uma partitura, muito menos de formar uma imagem sonora a partir dela
e nem mesmo de escolher o que tocar sem pedir “permissão” ao pro-
fessor. O professor, por sua vez, baseia sua orientação no que ouviu de
seus antigos professores ou copiou de outras interpretações e, sobretu-
do, na famosa “tradição”. Criticando os vícios da tradição, Andras
Schiff (apud Chueke, 2000: 36) fala de seu trabalho de “resgate” de
obras, como a Apassionata de Beethoven. O pianista se dispôs a explo-
rar a partitura, liberto de todas as famosas “tradições”, constatando que
estas não correspondem em absoluto ao que Beethoven escreveu.

O relacionamento com a obra


A falta de acuidade na leitura de toda uma geração de professores
tornou o ensino de prática instrumental limitativo, uma vez que só se
ensina o que se tocou e como tocou. Logicamente a escolha de uma
obra inédita exigirá igualmente do professor e do aluno um trabalho de
leitura – e não de “surda” re-leitura – que pode se revelar estimulante
para ambas as partes, dependendo da motivação. Este tem se revelado
um dos caminhos mais consistentes para tornar o aluno capaz de
moldar a partir do texto notado, a sua própria concepção – original e
pertinente – de uma determinada obra, por mais numerosas que sejam
as interpretações já existentes; cabe ao professor orientá-lo no sentido
de trazer consistência à sua execução. Obviamente, trata-se aqui da
interpretação do aluno e não do professor.
Exploremos esta idéia na prática: Lerdhal (1983: 63) sugere que o intér-
prete, “ao escolher uma determinada interpretação escolhe na verdade
como escutar a obra, e como quer que outros a escutem”, concluindo
que “a percepção do agrupamento é uma das variáveis mais impor-
tantes manipuladas pelo intérprete ao projetar uma determinada con-
cepção de uma certa obra”. A abordagem de Lester (apud Rink, 1995:
199) exemplifica esta afirmação: são consideradas duas interpretações
distintas do Minuetto da Sonata para piano KV 331 de Mozart, uma de
Vladimir Horowitz, outra de Lili Kraus. Segundo Lester, na gravação de
um concerto de Lili Kraus por volta do ano de 1996, ouvimos o acorde
de dominante no compasso n° 40 resolvendo na tônica do compasso
n° 41, finalizando o primeiro tema no primeiro tempo deste compasso
onde se inicia concomitantemente o segundo tema. Horowitz por sua
vez, em seu recital do Carnegie Hall também em 1996, faz uma meia-
cadência no compasso n°40, ao invés de continuar a frase até o
primeiro tempo do compasso n° 41, fazendo um ritardando e um
diminuendo e respirando notadamente antes de começar uma nova
frase no compasso 41. Examinando a partitura, verificamos que ambas

O mito da técnica
Como se a riqueza do repertório não fornecesse material suficiente para
ocupar o aluno em sua formação, criou-se outro mito: a técnica, que
deveria servir à música, ocupa seu lugar, distanciando mais uma vez o
aluno de seus objetivos musicais.
O fato é que todas os instrumentistas – compositores, intérpretes, estu-
dantes de música, profissionais ou amadores – possuem algo em
comum: para fazerem música através do instrumento de sua escolha,
precisaram antes aprender a tocá-lo e para tanto, tiveram que adquirir
a técnica apropriada. Após algum tempo de treinamento, tornaram-se
capazes de exercer a atividade, cada um dentro de suas possibilidades.
No entanto, universalmente, o termo “práticas instrumentais” per-
manece associado à formação de um único tipo de instrumentista: o
vencedor de concursos, que deslumbrará platéias com suas exibições
de bravura.
Temos aqui duas questões a serem resolvidas:
1. A visão estreita de uma formação elitista que encaminha o aluno
para uma única possibilidade de carreira, numa perspectiva
extremamente limitada e cada vez mais em desacordo com o
mercado atual.
2. A negligência do aspecto mais essencial de qualquer atividade
musical, que é a experiência com o material sonoro.
Examinando o primeiro ponto, constatamos que este tipo de formação
elitista é limitativa pois afasta inúmeras opções que poderiam ser vis-
lumbradas pelo estudante através de uma relação saudável com seu
instrumento, desde o simples prazer de fazer música confortavelmente
(este é afinal o objetivo da técnica) até os inúmeros tipos de atividade
dentro da área, seja como artista, produtor de eventos, professor, críti-
co de arte, administrador de salas de concertos ou qualquer outra ativi-
dade que tenha como objetivo tornar a música acessível ao público em
geral. Quanto ao segundo item, a ênfase desmedida sobre a técnica
como um fim em si mesma limita igualmente a formação do músico –
amador ou profissional – que antes de tudo precisa estar familiarizado
com a linguagem musical, ser capaz de decifrá-la e compreendê-la, por
mais simples que ela possa parecer, para poder dela usufruir, transmitir
e/ou partilhar. Segundo Suzanne Langer (apud Chueke, 2000: 85) os
dedos seguem a escuta. Em resumo, temos que ouvir o que lemos e
tocar o que ouvimos.

Individualidade
Ora, se a técnica serve à escuta, está também subordinada ao intér-
prete, adaptando-se respectivamente à imagem sonora formada a partir
do texto musical e ao seu tipo físico. Este trabalho de adequação, não
pode se limitar ao empirismo: “um método racional deve englobar todo
o conhecimento disponível e aplicável na realização de um objetivo. O
propósito da pedagogia do piano é treinar o corpo para ser capaz de
manipular o mecanismo do piano adequadamente para expressar Arte,
composta de idéias, sentimentos e estética. (Schmitz, 1935: 1). Esta
concepção é sustentada pelas de Singer (1980: 591) e as de Radocy &
Boyle (1997: 374). O primeiro nos alerta: «os indivíduos desenvolvem
a capacidade de execução na medida em que começam a adequar
diferentes estratégias à determinadas situações, ao invés de aplicar
aquelas que lhes foram impostas» e os segundos declaram que a teoria
de Howard Gardner sobre os diversos tipos de inteligência aplica-se
perfeitamente aos alunos dotados de habilidade musical. Retomando o
artigo de Holland, fica claro que não importando os tipos ou formas
dos personagens envolvidos no processo de ensino do instrumento, o
jovem intérprete deve ser encorajado, em todas as etapas deste proces-
so, a realizar algo único.

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

Um estudo de desenvolvimento de corte transversal


sobre saberes docentes de professores de piano
Rosane Cardoso de Araújo
Universidade Federal do Paraná – UFPR

s estudos sobre os saberes são estudos que se voltam para os

O processos de construção e aquisição de conhecimentos e têm


sua origem na área da Educação. Tais estudos têm orientado
investigações voltadas para formação de professores e para as pesquisas
sobre profissionalidade. Dentre os autores que discutem esta temática,
encontram-se Gauthier (1998), Tardif (2002), Pimenta (1999), Ramalho,
Nuñes e Gauthier (2005), entre outros. O escopo neste enfoque é a dis-
cussão do repertório de conhecimentos que norteiam a prática
pedagógica do professor, considerando sua formação acadêmica, suas
experiências acumuladas ao longo da carreira, bem como os contatos
sociais com os pares e alunos, além de nortear a discussão sobre carac-
terização da função laboral do professor. Este trabalho, portanto, teve
como objetivo investigar os processos de mobilização e aquisição dos
saberes que norteiam a prática pedagógica de professores de piano, ao
longo do desenvolvimento de suas carreiras docentes.
A linha discursiva desta pesquisa foi a fenomenologia focalizada no
pensamento de Heidegger (2002), e o referencial teórico para discussão
dos dados teve como base os estudos de Tardif (2002), sobre saberes
docentes e de Huberman (1995), sobre etapas da carreira. Em comum,
entre estes três autores, encontra-se a alusão à temporalidade.
No pensamento fenomenológico de Heidegger (2002), o homem é um
ser situado num contexto histórico, que possui um passado e dirige-se
para um futuro. Neste sentido, a historicidade é um componente
necessário para o enfoque do fenômeno focado no presente. Assim,
esta pesquisa interrogou o fenômeno – a docência de professoras de
piano – dirigindo-se para a busca da essência – seus saberes – comuni-
cados por meio do discurso e da prática de cada docente participante
desta investigação, considerando-se suas histórias de vida.
Para tratar dos saberes docentes, foram consideradas as pesquisas de
Tardif (2002), que cita quatro grupos de saberes: disciplinares, curricu-
lares, da formação profissional e experienciais. Segundo o autor são os
saberes experienciais que assumem uma posição privilegiada em

relação aos demais grupos, uma vez que é por meio deste, que o sujeito
transforma suas certezas subjetivas em conhecimentos práticos e valida
os demais grupos de saberes. Para Tardif, os saberes experienciais são
interativos, mobilizados e modelados por meio das interfaces que se
apresentam entre o professor e outros atores educativos, destacando,
portanto, a temporalidade como fator de construção e aquisição da
experiência.
A contribuição de Huberman (1995), nesta pesquisa deu-se no diálogo
entre os dados encontrados e a discussão da construção da carreira
docente. Neste processo, a temporalidade também foi um fator
relevado. Huberman destaca uma série de etapas – não necessaria-
mente lineares – que atravessam a carreira do professor. Sua
classificação foi um ponto de partida para discutir as distintas fases da
carreira que os professores, participantes desta pesquisa, atravessavam.

Metodologia
O método da pesquisa foi o estudo multicasos, orientado por um estu-
do de desenvolvimento de corte transversal, ou seja, a observação, em
um determinado espaço de tempo, da prática docente de professores
em períodos distintos de suas carreira. Participaram deste estudo, três
professoras de piano, bacharéis em música, localizadas num período
inicial, intermediário e de final da carreira. A coleta de dados foi
realizada por meio de entrevistas e observações de aulas, de cada
participante.
A primeira professora – Rita – encontrava-se numa fase de início de car-
reira, com três anos e meio de atuação profissional. Suas dificuldades e
conflitos eram características de duas fases iniciais da carreira que
Huberman (1995) descreve como fase de entrada na carreira e fase da
estabilização. A primeira fase – entrada na carreira – é uma fase de
descoberta, caracterizado por um entusiasmo inicial advindo da expe-
rimentação e exaltação que o professor vivencia por estar, finalmente,
numa situação de responsabilidade perante os alunos e colegas. A
segunda fase, da estabilização, seria característica como uma fase de
tomada de responsabilidades e de aquisição da identidade profissional.
Esta professora, portanto, se encontrava num período transitório entre
estas duas fases, apresentando, em seu discurso, momentos de
fragilidade característicos de uma entrada na carreira e momentos que
revelavam já um comprometimento maior com sua escolha
profissional, característico da fase de estabilização.

O segundo caso foi conduzido com a professora Maria, de 19 anos de
atuação profissional. Sua determinação e dinamismo observados no
seu discurso e na condução de suas atividades coincidiram com a fase,
descrita por Hubeman como a maior etapa vivida por docentes no
desenvolvimento de suas carreiras – a fase da experimentação e da
diversificação. Para o autor é nesta fase que o professor busca alcançar
maior respeito e prestígio diante dos colegas, bem como procura
desenvolver seu trabalho de forma mais dinâmica.
Por fim, o terceiro caso foi conduzido por meio do estudo da carreira,
da prática profissional e do discurso da professora Tereza. Esta profes-
sora, com 43 anos de atividade docente, revelou-se como uma docente
particularmente tranqüila e segura tanto na condução de sua atividade
de ensino quanto no seu discurso. De acordo com Huberman, é numa
fase de final de carreira que a serenidade torna-se um elemento mar-
cante, no qual o professor praticamente não se depara com situações
conflitantes com as quais já não possua certa intimidade.
Estes três casos, por sua vez, foram analisados por meio do estudo de
desenvolvimento de corte transversal, ou seja, foram considerados na
diferentes etapas da carreira – início, meio e final – trazendo, por meio
da transversalização, elementos para discutir os saberes docentes que
norteavam a prática docente das professoras, a aquisição da experiên-
cia e as peculiaridades da construção de suas carreiras.

Resultados
Como resultado, foi especificada uma tipologia de saberes, observadas
a partir do elemento temporal, isto é, pela observação dos aspectos
históricos/pessoais e de formação profissional de cada participante.
Para este fim foi considerada a mobilização dos saberes por meio do
discurso – observados durante as entrevistas e durante as aulas – e da
prática de ensino das professoras, verificadas por meio das observações
e do registro das aulas ministradas.
Assim, foi estabelecida uma tipologia de saberes própria para os dados
encontrados nesta pesquisa. Tal tipologia, embora vinculada a este estu-
do, pode servir para nortear outros trabalhos sobre o enfoque dos
saberes docentes de professores de instrumento. Nesta tipologia foram
identificados, como norteadores da função docente das professoras de
piano, os saberes disciplinares – adquiridos na formação inicial, ou
emergentes – os saberes curriculares; os saberes da função educativa; e
os saberes experienciais.

Os saberes disciplinares – da formação inicial ou emergentes – foram
considerados os conhecimentos relativos às diferentes disciplinas da
música, que as professoras utilizavam em suas práticas. Tais saberes,
oriundos de suas formações, eram relativos aos conhecimentos de
harmonia, contraponto, o estudo do piano, história da música, entre
outras.
Os saberes curriculares, por sua vez, foram considerados como o
conjunto de conhecimentos que as professoras dominavam, relaciona-
dos ao programa de ensino, ao planejamento de suas atividades, da sis-
tematização, da progressividade das etapas do ensino, contemplando
diferentes possibilidades de repertório e de uso de métodos.
Já os saberes da função educativa, foram considerados como os
conhecimentos mobilizados pelas professoras referentes ao uso da
didática, da motivação e de recursos educativos. Neste grupo também
foram considerados os critérios de avaliação e o uso de metodologias
de ensino.
Por fim o grupo dos saberes experienciais foi o grupo que teve como
foco tanto os processos de condução da atividade docente, referentes
ao contato entre alunos e professoras, quanto ao discurso das mesmas
em relação às suas impressões e interações com a profissão, seus
alunos e pares. Neste sentido, foi considerado, neste grupo, a flexibili-
dade das professoras diante das situações vivenciadas em sala de aula,
a forma como estas conduziam suas atividades, seus relacionamentos
com os alunos, suas formas de ensinar e conduzir o estudo do
repertório, bem como suas opiniões em relação à carreira.
Analisando estes grupos de saberes observou-se que, dentre todos os
grupos, os saberes experiencias assumem uma função de destaque em
relação aos demais, pois é a partir deste que os outros grupos são
validados e mobilizados na prática cotidiana. Além disso, os saberes
experienciais, que têm sua origem no exercício cotidiano da profissão,
estão vinculados, de forma particular à temporalidade. Neste sentido,
eles adquirem uma personalização em cada caso, de acordo com a
carreira particular de cada docente. Assim os saberes experienciais
foram discutidos por meio do fator temporal, por meio de três
possibilidades discursivas: a mobilização dos saberes experienciais e
sua relação temporal com o domínio da situação pedagógica; os
saberes experienciais e sua relação com os contatos sociais do profes-
sor; e os saberes experienciais como um fator de validação dos demais
saberes que norteiam a prática docente.

Ao analisar o primeiro elemento discursivo – a mobilização dos saberes
experienciais e sua relação temporal com o domínio da situação
pedagógica – pôde-se verificar que cada caso, conforme o período da
carreira docente, vislumbrava certas características próprias. O
primeiro caso, por se tratar de um início de carreira demonstrava, em
relação aos outros dois casos – vinculados aos períodos intermediário
e de final de carreira – um postura profissional mais latejante, em
relação à sua forma de agir e tomar decisões em sala de aula. Tal inse-
gurança, associada a pouca experiência docente, lhe proporcionava
momento de instabilidade verificada tanto em sua prática quanto em
seu discurso. Fato que nos outros dois casos, não foram observados.
O segundo elemento de discussão da experiência foi sua relação com
os contatos sociais do professores – os alunos e os pares. Neste
elemento, pôde-se verificar que, a medida que o professor adquire
experiência em seu trabalho, maiores são suas convicções e maior sua
confiança diante da diversidade de sujeitos que este orienta. No
entanto, ao abordar a relação do professor com seus pares, observa-se
que é no final da carreira que o distanciamento torna-se mais significa-
tivo. Em parte porque o professor, por apresentar uma postura de
confiança em seu desempenho, torna-se cada vez mais auto-suficiente
em seu trabalho. Ao mesmo tempo, como define Huberman (1995) em
seus estudos sobre a carreira, o docente freqüentemente tende a ser
mais individualista, liberando-se do investimento nas situações do
trabalho, para dedicar um tempo maior a si próprio.
Por fim o último elemento verificado sobre a aquisição da experiência
e a temporalidade diz respeito aos saberes exeperienciais como um
fator de validação dos demais saberes que norteiam a prática docente.
Ao observar a mobilização dos saberes, na prática docente das profes-
soras, pôde-se concluir que os saberes experienciais adquirem uma
certa objetividade me relação aos demais saberes, observando-se uma
relação crítica-avaliativa, retaduzindo-os de acordo com as condições
limitadoras da experiência. Na observação dos casos, portanto, perce-
beu-se, por meio do estudo de desenvolvimento de corte transversal,
que o grupo de saberes experienciais, especialmente no último caso, da
professora com 43 anos de atividade, impregnavam de tal forma seu
discurso e sua prática que se tornava particularmente difícil a tarefa de
visualizar as outras categorias específicas de saberes. Além disso,
também pôde-se perceber que os saberes experienciais não apenas
validam os demais saberes, mas também são fonte de aquisição dos
mesmos. Neste sentido exemplifica-se observando que, as professoras

participantes deste estudo, por não possuírem uma graduação em curso
de formação de professores, mas no bacharelado em instrumento,
utilizaram-se dos saberes experienciais para consolidar seus saberes da
função educativa. De acordo com seus relatos, pôde-se verificar que
muitos conhecimentos relativos ao uso da didática, utilização de
metodologias, processos de avaliação, entre outros, foram configurados
em saberes da função educativa, a partir da experiência cotidiana.
Concluindo este estudo, pode-se afirmar que esta investigação,
conduzida por meio do estudo de desenvolvimento de corte transversal
– no qual foram observadas professoras em diferentes etapas da carreira
– pôde revelar alguns elementos novos para os estudos sobre saberes
docentes de professores de instrumento a partir do enfoque da
experiência e da temporalidade. Tal enfoque, traz contribuições quanto
ao reconhecimento dos processos de aquisição e formatação de
conhecimentos que orientam a prática docente de professores de piano
e abre possibilidades para subsidiar novos enfoques vinculados à esta
temática.

Referências Bibliográficas
GAUTHIER, C. (et. alii) (1998). Por uma teoria da pedagogia: Pesquisas con-
temporâneas sobre o Saber Docente. Ijuí: UNIJUÍ.
HEIDEGGER, M. (2002). Ser e Tempo. Parte I. (12 ed.). Tradução de Márcia de
Sá Cavalcante Schumbak. Petrópolis: Editora Vozes.
HUBERMAN, M. (1997). O Ciclo de vida profissional dos professores. In
Nóvoa, A. (org). Profissão professor (pp. 31-62). Porto: Porto Editora.
PIMENTA, S. (1999). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo:
Cortez.
RAMALHO, B. ; NUNES, I & GAUTHIER, C. (2003). Formar o professor, profis-
sionalizar o ensino. Porto Alegre: Sulita.
TARDIF, M. (2002). Saberes docentes e formação profissional (2. ed.)
Petrópolis: Editora Vozes.


Processos Composicionais
em um Ritual Musical Indígena.
Maria Ignez Cruz Mello
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

este texto pretendo apresentar algumas operações

N composicionais empregadas pelos Wauja1 em um ritual


específico, o iamurikuma, e comentar a ligação deste
ritual com outro, conhecido como ritual das flautas
kawoká. Em outra oportunidade2 apresentei aqui em Curitiba um
resumo de minha tese de doutorado em Antropologia Social (Mello
2005) onde procurei mostrar em linhas gerais as implicações sociais e
os nexos com a mitologia local a que se reportava este ritual. Também
apresentei um resumo das operações composicionais que pude cons-
tatar nas análises desenvolvidas. Pretendo agora, portanto, aprofundar
os comentários sobre as análises dos cantos femininos deste ritual
trazendo mais um exemplo das transcrições efetuadas.
Estes dois rituais podem ser considerados “rituais de gênero”, entendi-
dos como rituais nos quais questões relativas às relações de gênero são
enfatizadas. É importante destacar que os rituais de kawoká e iamuriku-
ma, principalmente em suas versões intratribais, estão relacionados ao
xamanismo, e desta forma, à cura de doenças cuja causa é a ação dos
seres apapaatai, “espíritos”3.
Iamurikuma é um ritual que atualiza o mito cuja temática é a transfor-
mação das mulheres em apapaatai poderosos e perigosos chamados
iamurikuma. As mulheres, no mito, se transformam nestes seres após
serem enganadas pelos homens. É um ritual intertribal feito apenas por

1 Os índios Wauja são hoje cerca de trezentas pessoas, vivendo em uma aldeia circular com dezoito
casas, próxima à lagoa Piulaga, na região dos formadores do rio Xingu. Os Wauja são um dos dez
grupos indígenas que fazem parte do que se conhece na literatura etnológica como povos xingüanos,
aqueles que habitam a região sul da Terra Indígena do Xingu (TIX) no estado do Mato Grosso.
2 Mello, M. I. C. Iamurikuma: música, mito e ritual In: Anais do Simpósio de Pesquisa em Música,
Curitiba: Editora DeArtes/UFPR, 2005. pp.118-130.
3 A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por “espíritos”. Estes seres sobre-
naturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenças e mortes, ou se tornarem aliados dos
humanos, desde que estes últimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai têm a
capacidade de ouvir os pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e desejos
não realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem nos
corpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas.

mulheres, sendo que o chefe da aldeia muitas vezes toma parte
conduzindo os cantos. Acompanhei um destes rituais em sua versão
intratribal, que ocorreu entre agosto e novembro de 2001. Neste perío-
do, as mulheres se reuniram no centro da aldeia para cantar e dançar
durante muitos finais de tarde. Algumas madrugadas também foram
preenchidas pelos cantos femininos que se estendiam até o amanhecer.
A temática dos cantos femininos girou em torno das relações afetivas,
do ciúme, inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazerem
referências diretas ao mito de origem da festa. Também foi comum ver
as mulheres usarem deste espaço ritual para reclamarem de atitudes
dos homens através de canções especialmente compostas por elas. Ao
longo de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantos
diferentes, organizados em quatro sub-repertórios, dos quais, pode-se
destacar o de iamurikuma propriamente (aqueles cantos que se referem
ao mito), e o de kawokakuma (cuja referência das canções são as
flautas kawoká) como os principais sub-repertórios.
4 Caso acon-
Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busquei teça de algu-
compreender a ligação entre a música vocal do ritual de iamurikuma e ma mulher
a música instrumental das flautas kawoká, pois as mulheres afirmavam ver as tais
flautas
que “música de iamurikuma é música de flauta”. No entanto, pelo fato kawoká –
delas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um con- tanto em
tra-senso4. Através da análise de uma parcela deste repertório, nota-se repouso
quanto ao
que ele está ancorado em operações musicais complexas, que exigem serem
um alto grau de conhecimento por parte das mulheres cantoras, princi- tocadas –,
palmente da cantora-compositora central. Estes cantos podem ou não ela será
estuprada
ter letra, mas em todos os casos estão relacionados aos sentimentos e por todos os
emoções experimentados pelos Wauja ao londo de suas vidas. homens da
aldeia, não
Kalupuku, a cantora principal deste ritual, aprendeu muitos dos cantos importando
com o mestre de flautas da aldeia. Pude observar durante as frias se ela
infringiu a
madrugadas xinguanas os ensinamentos do mestre Kaomo para a can- regra
tora Kalupuku. O mestre cantava muito baixinho, quase num sussurro, proposital-
uma pequena sequência de notas que Kalupuku prontamente repetia, mente ou
involuntaria-
também em volume muito baixo. Kaomo não repetia muitas vezes os mente.
ensinamentos, sempre se detendo em uma pequena frase, imediata- Contudo,
mente reproduzida por Kalupuku. Logo após sua breve aula, Kalupuku não se tem
registro de
se dirigia a um grupo de mulheres que aguardavam, e repassava os que tenha
novos cantos que então eram executados em voz alta juntamente com ocorrido tal
movimentos coreográficos. Isto ocorreu durante toda a madrugada até fato nos últi-
mos
o amanhecer. Reparei que o que as mulheres cantavam era muito maior quarenta ou
do que aquilo que o mestre havia ensinado e, em alguns casos, as mu- cinqüenta
anos.

lheres cantavam uma letra que o mestre não havia pronunciado. O
canto do mestre era sempre entoado utilizando algumas sílabas, tais
como né-ri- pé-ri, da mesma forma como ele costumava ensinar os
aprendizes de flauta.
Em outra oportunidade, ao mostrar as gravações para Kalupuku, tanto
aquelas dos “ensaio” quanto as das “apresentações”, pude começar a
compreender como as coisas se passavam: nos cantos de kawokakuma
cada peça é constituída por um conjunto de temas e motivos.
Dependendo da peça, cada motivo pode ser curto, com poucas notas,
ou não tão curto, quase uma frase, [sendo designados por letras (a), (b),
(c), etc. nas trancrições que se seguem]. Estes motivos podem ter uma
ou mais variações cada um [designadas então por (a’), (a’’), etc]. As
variações são entendidas como aplicações de princípios fundamentais
de diferenciação no interior dos motivos, operações tais como trans-
posição, pequena alteração intervalar ou rítmica no início ou no final
do motivo, adição ou exclusão de uma nota, entre outras. Obviamente,
Kalupuku não expos o processo de constituição do material temático
nestes termos, o que apresento aqui é uma síntese de minhas análises
a partir das transcrições musicais, das entrevistas e de observações de
campo. Seguindo as explicações, pode-se dizer que as variações em
conjuntos de motivos, entendidos como frases que constituem os
temas, podem ser pensadas como transformações, que ocorrem por
mecanismos de inclusão e exclusão de motivos, ou através de variações
nos seus motivos constituintes. A diferença entre uma variação e um
motivo novo é a resposta estrutural da seqüência de notas organizada
no interior da peça. Os motivos, portanto, são as partes constitutivas
dos temas a que chamei de A e B . Há também uma frase, chamada
na análise de K , que surge geralmente no início das peças, como
separação dos temas A e B , e ainda no final, correspondendo sempre
ao centro tonal das canções.
Desta forma, conclui-se que o que Kaomo cantava para Kalupuku era
apenas o motivo central do tema A , deste derivando o B , e todo o
restante seria como uma consequência desta escolha temática.
Resumidamente, a relação entre os temas A e B é dialógica e dialéti-
ca, o primeiro tema constituindo o material básico da peça, e o segun-
do configurando uma elaboração deste material em uma camada supe-
rior (em termos de alturas), geralmente atingindo a nota mais aguda da
escala. Nesta espécie de transposição, muitas vezes ocorre uma série
de transformações, que variam de peça para peça. Um outro fato obser-
vado é o englobamento de A por B , ou seja: a antítese elabora a tese

de forma a incluí-la em sua terminação, às vezes integralmente.
Observa-se também que o motivo funciona como âncora, indicador e
reforço do centro tonal, vinheta de separação entre temas e entre
canções. Um outro ponto importante é o tema B , que é o tema B com
L

letra adicionada pelas mulheres.


Segue um exemplo de canto de kawokakuma:

Kanumana piyawiu Onde você foi, Nataki?


Nataki, Nataki Turista escondeu você?
Turista hayá eheje Ele me escondeu,
Eheje natuwiu kata falou Nataki
Omapai Nataki

Explicação da cantora com nota do tradutor:



[Nota do Tradutor: Kalupuku diz que fez esta música para Nataki, outro nome
de Araku, filho de Kaomo quando ele foi trabalhar para os turistas na fazenda
do Estênio]. “Sempre que as mulheres cantavam, Nataki emprestava colar,
cocar, guizos, tudo que a gente precisava. Ele gostava muito das cantoras.
Então, quando ele foi para a fazenda, elas fizeram a música dizendo que o
turista escondeu Nataki”.

Quadro da seqüência dos temas e motivos

K K A K A B
abcd abcd e f e f c' f c'' c' c d A
K K A K K BL
abcd e f e f c' f c'' c''' e f e f c' f c'' c''' b' c d A

K BL
e f e f c' f c'' c''' e f e f c' f c'' c''' b' c d A
K A K K A BL
abcd abcd e f e f c' f c'' c''' e f e f c' f c'' c''' b' c d A

K A K K A K K
abcd abcd

O início desta peça é uma afirmação do centro tonal com K K , seguin-


5 Ou seja, do-se o tema A , composto por 4 motivos: a, b, c, d. O motivo (a) ter-
não vale a mina em um intervalo de 3a m (terça menor) acima do centro tonal,
pena
destacar esta enquanto os demais motivos de A reforçam este centro, terminando
unidade do sempre em sol. As terminações dos motivos são ponto fundamental
motivo e neste repertório: muitas vezes é ali que a diferença se coloca de forma
entendê-la
como uma relacional aos motivos antecedentes, ou seja, é onde se dá o jogo
célula inde- motívico. Como afirmei que os motivos constituem a unidade mínima
pendente. do estrato sintático, esta sua fração final deve ser entendida como uma
Vale muito
mais oscilação de sua curva, um diferencial em seu desenho como um todo,
entendê-la portanto sem pertinência fora do motivo5. Além disso, as terminações
como uma de motivos são, na maioria das vezes, aquilo que antecede a respi-
saliência do
desenho ração, portanto um ponto de articulação, e parece sempre girar em
motívico. torno do centro tonal, como que se dirigindo a ele. Nos motivos (c) e
6 Este termo (d) surge o fá, breve oscilação inferior do centro tonal, característica de
aqui não muitas peças, ocorrendo geralmente nas terminações de motivos. Este
corresponde tipo de motivo, que elabora uma oscilação entre centro tonal e nota
exatamente
ao seu uso adjacente, geralmente inferior, pode ser chamado de bordadura.6 Após
na música K , uma re-exposição de A e um novo K , inicia-se o tema B , onde
ocidental em ocorre uma elevação da 3a m no motivo (e), alcançando o si, nota mais
geral.

aguda da escala. O motivo seguinte, (f), inicia na 3a M (terça maior) e
retorna à 3a m, repetindo o segmento final de (a), parte do jogo das ter-
minações. Segue-se uma repetição de (e, f) e então o motivo que em A
era (c), reaparece em B como (c’), variado em sua primeira nota: ao
invés de ser a tônica (sol), é a 3a M. Trata-se aqui de uma variação que
se instaura na cabeça do motivo, uma variação tética. O (f) volta a in-
sistir na 3a m, articulando-se com (c”), que insiste no sol e que difere
do original quanto à última nota: a 3a m e não a tônica, nota que
corresponde ao centro tonal. Podermos dizer que se trata de uma varia-
ção sufixal, atingindo a parcela final do motivo. Ocorre então uma
espécie de flashback de todos os (c): um retorno a (c’) e ao (c) original
seguido de (d), assim como o final do tema A . Voltamos ao começo da
peça: novamente K K e A e K K . Então, toda a seqüência de B é
repetida com letra em B , e no entanto, após (c”), ao invés de haver a
L

retroação a (c’), como ocorrera em B , surge uma nova operação que


funde a primeira metade de (c’) à segunda metade de (c”), gerando (a’),
variação por fusão do motivo inaugural da peça. Este (a’) é seguido de
(b’ c d), franca retomada de A dentro de B . A partir daí a peça repete
L

duas vezes a estrutura B K A K K A , finalizando com K K .


L

Tanto os cantos kawokakuma quanto a música das flautas kawoká apre-


sentam uma classificação nativa semelhante, correspondendo a grupos
de cantos que apresentam coerência temática e formam unidades
nomeadas, como por exemplo, kisoagakipitsana, sapalá, mututute,
entre outras, as quais Piedade (2004) identifica como suítes (cf.
Menezes Bastos, 1990). Portanto, quando as mulheres dizem que seus
cantos são “música de flauta”, elas não estão se referindo a algo genéri-
co, como se tudo que elas cantassem pudesse ser “música de flauta”.
Há uma série de cantos, mesmo no ritual de iamurikuma que não são
considerados “música de flauta”. Desta forma, as mulheres estão tratan-
do de conjuntos específicos de cantos, todos considerados kawokaku-
ma, mas subdivididos de acordo com uma tipologia que mantém
relação com aquela das flautas. Estes diferentes tipos de cantos seguem
prescrições em relação à topologia e cronologia, o que significa que
determinados cantos só poderão ser executados em determinados
espaços (centro da aldeia, dentro das casas, etc.) e em partes específi-
cas do dia. Kalupuku descreveu-me como havia aprendido uma nova
música através de um sonho, e que, ao relembrá-lo ao acordar, reco-
nhecia esta nova música como estando “dentro” de sapalá. Era, por-
tanto, uma nova música a ser incluída na suíte sapalá. Ao expressar esta
idéia de inclusão, de pertencimento e, portanto, de identidade entre
diferentes cantos, Kalupuku deixa claro que está consciente das

sutilezas que diferenciam e aproximam uma suíte de outra, o que torna
sapalá diferente de mututute, por exemplo. Tal relato é ainda mais sig-
nificativo se observamos que nele está presente um dos processos com-
posicionais amplamente aceitos: as músicas vêm dos sonhos. Diz-se
que qualquer um pode sonhar uma nova música, no entanto, somente
os mestres de música, os apaiwekeho, têm capacidade de memorizá-
las. Esta informação de Kalupuku complexifica um pouco mais o ciclo
em que os processos de significação das peças de kawoká e de
kawokakuma estão inseridos, pois, ao executarem os cantos de
kawokakuma no ritual de iamurikuma elas estariam agregando uma
outra camada de significação dada pela letra do canto ao repertório
instrumental das flautas. Este significado passa a fazer parte também
das músicas instrumentais, a ponto de emergir quando os homens
voltam a tocá-las. No entanto, o fato das mulheres também comporem,
trazendo novos cantos para o repertório, faz com que este círculo se
abra tanto para homens como para mulheres no que tange à produção
musical.

Referências bibliográficas:
MELLO, Maria Ignez C. (2005) Iamurikuma: Música, Mito e Ritual entre os
Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado em Antropologia Social.
PPGAS/UFSC, Tese disponível em pdf no site www. musa. ufsc. br
MENEZES BASTOS, Rafael José de. (1990) A Festa da Jaguatirica: uma partitura
crítico-interpretativa. Dissertação de Doutorado, USP, 1990.
Piedade, Acácio Tadeu de C. (2004). O Canto do Kawoká: música, cos-
mologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado,
PPGAS/UFSC, Tese disponível em pdf no site www. musa. ufsc. br


Movimento, coordenação e desempenho músico-instrumental


– conexões interdisciplinares
Maria Bernardete Castelan Póvoas
Elian Dirce Colombi
Ester Bencke
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

pesquisa “Ação pianística e coordenação motora –

A relações interdisciplinares” tem como objeto de estudo


investigar sobre a coordenação motora e estabelecer
conexões com a atividade pianística. Tem por referencial o pressupos-
to de Rasch sobre o desempenho humano, este entendido como “a
expressão de vários componentes denominados fatores do desempe-
nho” (Rasch, 1991: 183). O movimento é considerado o elemento-
meio da ação pianística. Sabe-se que o desempenho desta ação físico-
motora está sujeita à intervenção de vários fatores como coordenação,
flexibilidade, rapidez de movimento, força e fadiga e que aspectos a
eles relacionados interagem, sobremaneira, na prática pianística, desde
o início do treinamento até seus resultados no desempenho. Nesta
pesquisa optou-se por investigar a coordenação motora, estabelecen-
do-se inter-relações com a ação pianística, ação esta “construída
através do processamento das questões envolvidas na música selecio-
nando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção
musical que constituem e caracterizam cada obra quanto os movimen-
tos que possibilitam esta ação” (Póvoas, 1999: 80).
Em investigações anteriores a esta proposta, constatou-se que a lite-
ratura que trata especificamente sobre coordenação motora é vasta, no
entanto, pouco se refere à ação pianística. Por outro lado, a literatura
na área da técnica instrumental raramente se refere à coordenação
motora em suas particularidades enquanto fator de primordial relevân-
cia para a área do desempenho musical ou mesmo a ela associada. Esta
literatura também não apresenta orientações sobre maneiras mais ade-
quadas de tratar questões da técnico-instrumentais cuja otimização
dependeria da consideração de aspectos relativos à coordenação, tais
como a adequação de movimentos coordenados ao design de uma
obra musical, de parte dela ou à velocidade de execução pretendida.
Uma prática instrumental que desconsidere tais matérias quando da
escolha e utilização de técnicas de treinamento e execução instrumen-

tal pode resultar, muitas vezes, em conseqüências indesejáveis para o
aprendiz ou pianista profissional. Estas conseqüências seriam desde
ineficiência no desempenho, fadiga e mesmo danos fisiológicos senão
irreversíveis, de difícil recuperação. Tais argumentos indicam para uma
revisão de conceitos da área da técnica pianística e de áreas que tratam
de questões referentes ao movimento humano, associados ao trabalho
instrumental e ao fator do desempenho coordenação motora dentro de
uma visão científico-fisiológica, portanto, interdisciplinar. Vêm sendo
percorridos trabalhos de autores que apresentam pressupostos sobre a
técnica pianística e abordagens teórico-científicas que dão suporte para
esta investigação. Pressupõe-se que a consideração de aspectos ine-
rentes à coordenação motora em conexão com opções técnico-instru-
mentais específicas durante a prática, em suas fases de treinamento e
de desempenho, possa influir no desenvolvimento, manutenção e/ou
otimização do nível de eficiência da ação pianística.
Aprofundar o estudo sobre a coordenação motora; levantar conceitos e
princípios que regem as classificações de habilidades motoras, tipos de
prática e de feedback, relacionando-os à ação pianística e estabelecer
conexões inter áreas (perspectiva interdisciplinar) estão entre os
objetivos desta proposta de pesquisa. Ao término deste estudo,
pretende-se verificar em que aspectos o recurso técnico-pianístico de
flexibilização do movimento ciclos de movimento (Póvoas, 1999)
evidenciaria a utilização de conceitos e princípios relacionados à
coordenação motora e se o nível de relação entre os ciclos e a
utilização de argumentos inter áreas o classificaria como um recurso
técnico-instrumental interdisciplinar.
Entre as ações propostas para a realização desta investigação está a
revisão bibliográfica que vem sendo articulada em dois eixos: o
primeiro percorre abordagens técnico-teóricas da área pianística que se
refiram ao tema proposto, desde o final do século XIX até contribuições
mais recentes; o segundo eixo consiste de pressupostos interdiscipli-
nares de áreas como ergonomia, cinesiologia e biomecânica cujas
inferências à ação físico-muscular e/ou pianística dão suporte para o
estudo aqui proposto.

Conceitualizações preliminares
Segundo Rasch (1991: 183), “todo desempenho humano pode ser visto
como a expressão de vários componentes denominados fatores do
desempenho”. Tanto esta afirmação quanto os estudos e observações
realizadas em investigações anteriores a esta proposta indicaram para o

aprofundamento das relações entre questões técnico-instrumentais, o
estudo do movimento humano e aspectos mais específicos aos fatores
do desempenho, entre eles a coordenação motora.
Durante o desempenho músico-instrumental o executante deve
realizar, coordenadamente, uma série de movimentos de grande
precisão, refinamento e diferentes graus de rapidez e força em função
da compreensão e realização do texto musical. Muitas vezes, para a
interpretação de uma obra ou parte dela, faz-se necessária uma prática
minuciosa com treinamento dos segmentos direito e esquerdo
separadamente, para melhor consciência das diferenças entre
movimentos necessários para a execução de linhas musicais com suas
particularidades de articulação, fraseado, agógica e planos sonoros.
Observe-se que movimentos treinados e automatizados, uma vez
tornados conscientes são transferíveis para situações equivalentes e que
um padrão de movimento quando mal organizado refletirá, direta e
desfavoravelmente, na execução de uma tarefa.
A prática pianística é uma atividade que tem por meta a produção
sonora e por tal razão, torna-se essencial que o executante, além de
adequar movimentos à resolução de situações técnico-musicais
segundo o texto, tenha o controle da potência do movimento a ser
aplicada. Esta potência seria o grau de entrada de força na execução de
movimento e sua medida “o grau dos golpes de força desenvolvidos no
decurso do movimento, como pode ser determinado por métodos
dinamográficos” (Meinel, 1987: 144) e/ou fisiológicos, como a eletro-
miografia. A potência muscular é definida como o produto da força e
velocidade (Nigg; Herzog, 1994), havendo uma relação de causa e
efeito entre força e flexibilidade. Na biomecânica, “parâmetros co-
determinantes do decurso do movimento [como] impulsos de força a
serem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987: 2) são consi-
derados dentro do conceito de coordenação. Para Meinel (1987: 2),
uma "coordenação na atividade do ser humano é a harmonização de
todos os processos parciais do ato motor em vista do objetivo, da meta
a ser alcançada pela execução do movimento” e que coordenação quer
dizer literalmente “ordenar junto”.
No esporte o conceito de coordenação se refere às fases do movimen-
to ou aos movimentos parciais, operações, que aparecem na estrutura
básica e no ritmo de movimentos (parciais e isolados) que devem ser
coordenados e em outras formas de movimentos. Nas áreas da cine-
siologia e anatomia funcional entende-se por coordenação as orde-
nações próprias da atividade de cada músculo e de grupos musculares.

Na biomecânica, dentro do conceito de coordenação, impulsos de
força a serem coordenados na ação motora são considerados como
parâmetros codeterminantes do decurso do movimento (Meinel, 1987).
Bernstein determina a “coordenação de movimento como a ‘superação
de graus de liberdade supérfluos do órgão que se movimenta’, o que se
assemelha à ‘organização da direcionalidade do aparelho locomotor”
(Bernstein, apud Meinel, 1984: 24-25). Os graus de liberdade
representam a possibilidade de um determinado segmento corporal
mover-se livremente em um espaço acessível. O corpo humano, por
constituição anatômica, tem muitos graus de liberdade e quanto
maiores forem as proporções de movimentos de todo o corpo ou
número de graus de liberdade que se necessite utilizar em uma
atividade específica, aumenta a dificuldade de coordenação. Na ação
pianística, um trabalho de coordenação motora refere-se à utilização
dos músculos necessariamente ativos durante a realização de cada
situação específica de desempenho, enquanto os demais músculos
mantêm-se relaxados ao máximo possível para que, na seqüência da
execução, se evitem tensões. “A compreensão e a elaboração exatas
das informações sensoriais de movimento como base da uma direção e
regulação corretas do decurso de movimento já nos são conhecidas
como processo parcial essencial da coordenação motora” (Meinel,
1984: 153).
Coordenação e flexibilidade articulares são consideradas fatores
altamente específicos para o desempenho e que variam de acordo com
as características da atividade. Rasch (1991: 183) esclarece que “qual-
quer desempenho pode ser formal ou informalmente analisado para
determinar seus componentes em termos de fatores gerais ou específi-
cos. Uma vez identificados tais fatores, pode-se formular programas de
desenvolvimento ou treinamento” de habilidades. Destaca-se o pressu-
posto de que a "coordenação na atividade do ser humano é a harmo-
nização de todos os processos parciais do ato motor em vista do obje-
tivo, da meta a ser alcançada pela execução do movimento” (Meinel,
1987: 2) em função da compreensão e realização do texto musical.
Quanto à orientação espacial de movimentos relacionada ao planeja-
mento de distâncias é apontada como uma das estratégias mais impor-
tantes a ser utilizada durante o treinamento pianístico. Kochevitsky
(1967) refere-se à realização ao piano de “distâncias” entre eventos
musicais para as duas mãos como a questão mais difícil a ser resolvida,
isto devido à conformação assimétrica do teclado. As mudanças de
posições devem então ser previstas e mentalmente preparadas anterior-

mente à realização durante o percurso do movimento e, quando for o
caso, em direção ao evento seguinte, fato este que, em princípio, exige
do pianista um planejamento do trabalho a ser realizado. Assim, quan-
do do treinamento pianístico de um trecho musical em que as linhas a
serem executadas são opostas e distantes entre si, muitas vezes, pelo
fato de o executante não conseguir visualizar os segmentos esquerdo e
direto ao mesmo tempo devido à grande distância entre eles, há
necessidade de buscar movimentos mais objetivos e mais econômicos.
Torna-se essencial que sejam observados, pelo executante da tarefa,
aspectos como a preparação dos saltos e a sensação corporal durante a
execução do movimento utilizado, aliados ao controle cinestésico. Tais
condições tornam possível, mais facilmente, a realização de movimen-
tos mais ágeis, no andamento adequado, por exemplo, e a obtenção de
uma sonoridade prevista. Há situações em que, para melhor consciên-
cia das diferenças entre os movimentos essenciais para a execução de
diferentes linhas musicais ao mesmo tempo, faz-se necessária uma
prática minuciosa e organizada do movimento, com treinamento dos
segmentos direito e esquerdo separadamente. A coordenação motora
engloba diferentes formas de manifestações, independentes entre si, e
tem uma influência preponderante na agilidade (Moreira, 2000). Desta
forma, o conhecimento sobre os tipos de prática, segundo os princípios
da coordenação motora, entre outros aspectos desta matéria, são de
extrema funcionalidade para o músico instrumentista.
Na ação pianística, a utilização de movimentos complexos exige do
executante uma coordenação bastante elaborada e um alto nível de
dissociação muscular. Para Kaplan (1987), “dissociação muscular” é o
domínio das sensações de contração e de relaxamento e que além de
um controle sobre as sensações, a dissociação possibilita desenvolver a
capacidade de auto-observação e, igualmente, a controlar e a coor-
denar conscientemente o próprio corpo em função do objetivo musical
a ser atingido. Dissociar e coordenar movimentos que abrangem a mus-
culatura dos membros superiores, sobretudo dos segmentos braços,
antebraços, mãos e dedos, e o emprego dos pedais que exige o contro-
le e a coordenação dos movimentos das pernas direita e esquerda
constituem-se em tarefas bastante complexas. Somente através de uma
prática planejada e consciente pode-se obter uma habilidade motora
mais eficiente e otimizada.
O termo habilidade é uma palavra que serve para designar uma tarefa
com uma finalidade específica a ser atingida, portanto, voluntária
(Magill, 2000). A habilidade motora é parte integrante da prática pianís-

tica uma vez que esta exige movimentos voluntários do corpo e/ou de
membros para atingir o objetivo e pode ser adquirida por meio de um
processo de aperfeiçoamento da coordenação dos diversos grupos
musculares que atuam, diretamente, em uma ação específica. A ação
pianística utiliza-se, mais precisamente, da habilidade motora fina que
requer o controle de músculos pequenos, tais como aqueles envolvidos
no movimento das mãos e dedos e que exigem um alto grau de pre-
cisão para tocar ou pressionar teclas, na seqüência certa e no tempo
correto. Embora os grandes músculos possam estar envolvidos no
desempenho de uma habilidade motora fina, os músculos pequenos
são os mais acionados para atingir a meta de uma habilidade motora
fina. Esta organização é que vai permitir que o indivíduo atinja a meta
da habilidade pretendida. Assim, o hábito é o produto final da apren-
dizagem motora. “Do ponto de vista da execução instrumental, a
aquisição e posterior reorganização dos hábitos constitui a base sobre
a qual irá se construir a técnica” (Kaplan, 1987: 45).

Conclusões parciais
O procedimento essencial para a construção de uma técnica a ser
desenvolvida adequadamente é estabelecer, inicialmente, hábitos
motores corretos, a partir da individualização dos movimentos
primários de maneira que possam, posteriormente, ser reorganizados
ciclos de movimento, de acordo com as exigências de cada obra. O
fato de o movimento, um ato motor, ser o elemento meio da ação
pianística, já tornaria essencial que aspectos inerentes à coordenação
motora fossem estudados e aplicados no processo de aprendizagem e
na construção de uma realização músico-instrumental. A prevenção e
a resolução de problemas que interferem no desempenho instrumental
encontram-se, em grande parte, em argumentos de áreas como fisiolo-
gia, ergonomia, biomecânica. Este fato justifica a realização de estudos
interdisciplinares e procedimentos experimentais com utilização de
métodos de análise biomecânicos, procedimentos possibilitam
medições de parâmetros cinemáticos de movimentos executados por
pianistas, cujos resultados podem ser essenciais no auxílio da prática e
do desempenho nesta área de atuação.

Referências bibliográficas
KAPLAN, J. A. (1997). Teoria da aprendizagem pianística. Porto Alegre:
Movimento.
KOCHEVITSKY, G. (1967). The Art of Piano Playing: A Cientific Approach. New
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Instituto de Artes.
RASCH: J. (1991). Cinesiologia e anatomia aplicada. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan.

Marcação de arcadas:
carga cognitiva e estratégias de regulação na atividade de
violistas de orquestra
Cristina Porto Costa
CEP – Escola de Música de Brasília

estudo da atividade dos músicos de orquestra tem possibilitado

O a aproximação entre distintas áreas do conhecimento. De


questões atinentes ao aprendizado psicomotor à saúde do músi-
co e considerações sobre riscos ocupacionais, o fazer musical apresen-
ta um campo fértil para a interdisciplinaridade. Neste contexto, a
ergonomia pode contribuir para a investigação e o entendimento da
situação de trabalho, suas características e as relações que a permeiam

(Costa & Abrahão, 2002).
O presente artigo originou-se em pesquisa acerca da ocorrência de dor
relacionada ao tocar em violistas de uma orquestra sinfônica.
Evidenciou-se a presença de estratégias de regulação de cunho cogni-
tivo, como a marcação de arcadas, objetivando dar conta das tarefas
atribuídas e diminuir o Custo Humano do Trabalho. Observou-se que a
alta demanda cognitiva característica desta atividade traz à baila
estratégias coletivas que envolvem comunicação e cooperação, media-
das pela organização do trabalho (Costa, 2003).

1. Ergonomia da atividade: integrando as dimensões do trabalho


A atividade de trabalho, enquanto objeto de estudo e de aplicação da
ergonomia, pode ser entendida como um processo pessoal em perma-
nente construção, resultado de uma interação inteligente entre o ser
humano e as exigências de sua tarefa. Se, por um lado, a performance
musical é um produto, é no devir do próprio fazer, na sua dinâmica,
que se acessam as representações dos que dela participam, suas con-
seqüências para a saúde dos músicos e sobre a vida no trabalho.
A ergonomia, ciência que estuda as relações do homem e seu trabalho,
tem por eixos o bem-estar, a segurança e a eficácia de quem trabalha
face às metas de produtividade, podendo ser aplicada a distintos cam-
pos laborativos. Sua visão antropocêntrica propõe o entendimento das
características e limites humanos, integrando diferentes dimensões do
trabalho em dado contexto sócio-técnico. Desta forma, a identificação
de fatores de risco ocupacional se expande necessariamente a deman-
das de natureza cognitiva e afetiva, bem como sua inter-relação com
exigências físicas presentes.
Contribuições da biomecânica ocupacional e da antropometria propi-
ciam a adequação de postos de trabalho, equipamentos e acessórios,
visando reduzir o desgaste físico. Contudo, um aprofundamento na
atividade do músico de orquestra sinalizará fortes solicitações mentais
que interagem no processo saúde-adoecimento. Posturas assumidas por
longos períodos sem o devido preparo muscular e a impossibilidade de
realizar pausas quando necessário se aliam a cobranças de perfeição
sob forte pressão temporal, exercidas por uma hierarquia nitidamente
estabelecida. Estas peculiaridades acentuam a procura por estratégias
que minimizem a possibilidade de ocorrência de dor ao tocar e de
disfuncionamentos na realização das performances em público (Costa,
2003).

O acima exposto explicita parte do Custo Humano do Trabalho,
expressão do que é dispendido pelo músico em termos do seu agir,
pensar e sentir para resolver dificuldades e contradições em sua ativi-
dade. O gerenciamento dos constrangimentos impostos pela organiza-
ção do trabalho se dá via estratégias de regulação, mediações
individuais ou coletivas, que impactam sobre seu bem-estar. Estas
estratégias objetivam reduzir o Custo Humano do Trabalho, propondo
enfrentamentos que propiciem uma resultante satisfatória na conse-
cução da atividade, reduzindo discrepâncias e se estruturando na
própria experiência de trabalho (Ferreira & Mendes, 2003).

2. Carga cognitiva na atividade do músico de orquestra


O custo cognitivo no trabalho, entendido como o dispêndio mental
presente na aprendizagem, na resolução de problemas e nas tomadas
de decisão que caracterizam a tarefa do músico, manifesta-se tanto no
uso dos processos de percepção, exemplificado na afinação do instru-
mento, quanto na escolha de estratégias de estudo frente à exigüidade
de tempo para preparar novas obras. As diferentes competências que
possibilitam ao músico de orquestra lidar com a variabilidade da situa-
ção laboral também evidenciam o nível de expertise do instrumentista.
O domínio técnico, o conhecimento do repertório e a experiência do
músico articulam-se na preparação da obra (Costa, 2003).
A marcação de arcadas apresenta-se como uma regulação do gestual
inerente à produção sonora dos instrumentos de arco, conferindo
unidade à execução e mapeando a obra a ser realizada coletivamente.
Tais antecipações espaciais e temporais implicam sincronia motora e
atenção seletiva no preparo de reações baseadas em discriminações
sensoriais, acarretando noções de localização, de distância e uso da
memória.
Frente a estas especificidades, é pertinente ressaltar a premência por
estratégias que viabilizem ler à frente do que estiver tocando, prevendo
estruturas e padrões, propiciando uma leitura à primeira vista
consistente e que conduza a uma performance confiante. A
decodificação dos signos musicais e sua tradução subjetiva, as possi-
bilidades técnicas dos intérpretes e sua conseqüente habilidade de
desempenho convergem na execução, revelando a integração de
processos automatizados e de outros mais sofisticados (Gardner, 1997).

3. Comunicação e cooperação: o fazer coletivo


A sincronia e o uso de diferentes saberes em uma orquestra evidenciam

a gestão e o repasse de dados necessários à seqüência das tarefas que
concretizam a concepção do compositor e a interpretação do maestro.
Comunicação e cooperação promovem uma troca significativa,
implicando uma coordenação dinâmica que visa objetivos comuns.
A coordenação é essencial às atividades conjuntas, assim como uma
preparação da atividade que minimize dificuldades e estabeleça linhas
gerais. O planejamento possibilita seqüenciar a ação considerando o
desempenho coletivo e as formas de comunicação existentes, sejam
regras, convenções ou hierarquia, pressupondo comunicação efetiva
entre estratos e pares, trazendo em seu bojo questões sobre autonomia,
referencial comum e cooperação. A atividade coletiva traz conseqüên-
cias para o grupo tanto em termos de satisfação quanto em possibili-
dade de conflitos (Decordis & Pavard, 1998). Neste contexto, os
músicos articulam seus saberes cooperativamente e procuram, no
decorrer dos ensaios, resolver conjunta e dinamicamente os problemas
que se apresentam.
O reconhecimento recíproco das intenções comunicadas, verbais ou
não-verbais, faz-se necessário. A cognição é distribuída entre os
músicos, resultando em conhecimento coletivo maior que a soma
literal dos conhecimentos individuais. Estas interações geram
expectativas compartilhadas que estruturam ações coordenadas,
suportadas pela intersubjetividade. Dada a natureza da tarefa, a comu-
nicação ocorre não apenas por meio de palavras, mas de gestos,
olhares, posturas, respirações conjuntas, exemplificações ao instru-
mento, manifestações que assumem caráter de comunicação funcional.

Objetivos
Pretende-se investigar e identificar estratégias de natureza cognitiva
presentes na atividade de violistas de orquestra, considerando a
articulação entre as dimensões física, cognitiva e afetiva do trabalho
sob a ótica da ergonomia. Busca-se entender as regulações feitas pelos
músicos para diminuir o Custo Humano do Trabalho frente às tarefas
propostas.

Método
A Análise Ergonômica do Trabalho foi o suporte metodológico desta
pesquisa. Procedeu-se a duas observações globais em dois ensaios,
perfazendo sete horas, e seis observações sistemáticas em quatro
ensaios regulares, um ensaio geral e um concerto, somando mais dez

horas registradas cursivamente. Realizaram-se seis entrevistas
individuais semi-estruturadas e aplicação de questionário. A amostra
constituiu-se de seis violistas, com idade entre 22 e 47 anos, sexo
masculino, experiência de um a 29 anos.

Resultados: o processo de marcação de arcadas e suas implicações


Os dados coletados evidenciam intensa solicitação de processos cog-
nitivos no ciclo de trabalho e revelam acentuada ocorrência de estraté-
gias de regulação de natureza cognitiva, permeadas por processos de
comunicação coletivos que objetivam a realização da tarefa e a pre-
venção de disfuncionamentos. A tabela abaixo expressa a freqüência
de comportamentos dos violistas em situação de ensaio, quando não
estão tocando.

Freqüência de comportamentos durante as pausas do naipe


em 7 horas de ensaio
Violista
Anos de experiência 29 27 16 13 11 1
Comportamento observado V1 V2 V3 V4 V5 V6
Chefe naipe Concertino
Alongar pescoço, braços,
mãos; massagear ombros 9 - - 15 3 -
Anotar arcadas 13 18 18 6 24 1
Conferir anotações com colega 11 2 5 3 8 1
Dedilhar viola 32 20 9 4 4 -
Tocar trechos 8 6 9 7 6 -

A procura por modos operatórios eficazes alia-se à gestão das


instruções que são codificadas, repassadas aos colegas de naipe e
atualizadas a cada ensaio. Tais informações orientam ações imediatas,
suas conseqüências no gestual e no uso do tempo para preparar a obra,
regulando coletivamente o enfrentamento das exigências cognitivas do
trabalho. O papel da marcação de arcadas, entendidas como os
grafismos indicadores do manejo dos arcos na execução das partes,
consideradas as exigências das frases e as articulações propostas pelo
compositor, é fundamental neste contexto, o que é observável pela
freqüência deste comportamento. Esta estratégia é construída na ação e
para a ação, sendo estruturante e reguladora da carga de trabalho.
Na medida em que as arcadas são escolhidas pelo chefe do naipe e

seguidas pelos demais violistas, estabelece-se uma interface entre a
dimensão individual e a coletiva no tratamento destas informações.
Embora prevista no Regimento Interno da orquestra e atribuída ao chefe
de naipe mediante estudo prévio das partes, a marcação de arcadas
ocorre de fato durante os ensaios. Seu repasse não é formalizado em
momento algum, o que acarreta uma dinâmica para sua circulação e
apropriação por meio de gestos com o arco, meneios de cabeça,
palavras soltas ou procura ostensiva nas partes colocadas em outra
estante. Para tal, os violistas se levantam e procuram ler as indicações
sobre os ombros do colega à frente, copiando-as ou indicando com o
arco o trecho sinalizado. Os violistas se ressentem de freqüentes altera-
ções e estabelecem uma rede de comunicação para agilizar o repasse.
As verbalizações sobre a marcação de arcadas sinalizam sua relação
com a planificação de ações e uniformidade no resultado sonoro,
diminuindo as microdecisões e possibilitando aos músicos dispor de
seus recursos para outras demandas.
“É preciso marcar a arcada, se o arco é para cima ou para baixo, se
começa subindo ou descendo, ligado ou desligado. Quando não tem
(marcação) não há preparo prévio adequado, você olha o chefe e sai
uma droga. A gente gosta de marcar tudo, tudo. Sem marcação me dá
agonia, mau humor. Prepara uma intenção e é outra. É desconcertante,
desgastante”.
“A gente toca a mesma sinfonia duzentas vezes. E cada vez muda a
arcada. É muita troca! A gente não tem um padrão para tocar. O mate-
rial já devia vir marcado, pelo spalla, por reunião dos chefes de naipe,
sei lá. Mesmo que a gente não goste não devia ficar mudando, ainda
mais no dia do concerto, mas já ficou tão comum que é quase
normal!”
As verbalizações indicam que a marcação de arcada estrutura a ativi-
dade dos músicos enquanto naipe, visto que as referências comuns
favorecem coesão e maior segurança na performance. As alterações
constantes e a falta de comunicação podem criar desconfortos físicos e
psíquicos, acentuando a variabilidade presente na situação laborativa e
colaborando para quadros de fadiga relatados pelos sujeitos.
Os violistas ressaltam a necessidade de atenção constante, de uso da
memória e concentração, o uso da percepção para entrosamento do
grupo, especialmente em situação de concerto. As partes a serem
decodificadas influenciam a carga cognitiva da atividade mediante a
qualidade das informações contidas, legibilidade, tipo e tamanho de
fonte. Mesmo as obras já conhecidas precisam ser repensadas face às
novas interpretações.

Dada a forte pressão temporal, os violistas procuram conhecer a
agenda de concertos previamente e acessar as partes para estudo,
antecipando soluções às dificuldades do repertório. Alterações nestes
quesitos podem dificultar a utilização desta estratégia.

Conclusão
A articulação entre as diferentes dimensões do trabalho permitiu
hipotetizar que as exigências cognitivas da tarefa e suas implicações
frente à pressão temporal existente e à organização do trabalho pode-
riam estar contribuindo para o aparecimento de dor e desconforto rela-
cionados ao tocar. O processo de marcação de arcadas é essencial à
estruturação da atividade e requer comunicações entre os violistas para
repasse de informações determinantes ao desempenho do grupo. A
troca freqüente de arcadas e a ausência de um momento específico
para sua checagem pode estar colaborando para a ocorrência de
disfuncionamentos e de tensões que se somam a questões posturais e
técnicas. A marcação de arcadas se coloca, desta maneira, como
momento crucial na atividade dos violistas, sendo reguladora das altas
solicitações cognitivas presentes.

Referências bibliográficas
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Violistas de Orquestra. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de
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GARDNER, H. (1997). As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre:
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caso dos auditores-fiscais da Previdência Social brasileira. Brasília: Edições
Ler, Pensar, Agir LPA.


Concerto para piano e orquestra de José Alberto Kaplan –


um exemplo de intertextualidade em música.
Tarcisio Gomes Filho
UNICAMP

o século XX, aproximadamente nos fins de sua segunda

N década, junto ao desenvolvimento do direito autoral,


começaram a ser difundidas, nos meios literários, teorias
sobre intertextualidade oriundas dos russos Iuri Tynianov
(1894-1943) e Mikhail Bakhtine (1895-1975), todavia, a palavra
Intertextualidade, “intertextualité”, foi utilizada pela primeira vez por
Julia Kristeva (1941) em Introdução a semanálise (1969), quando apre-
sentou sua proposta teórica, desenvolvida a partir das noções de dialo-
gismo e polifonia, formuladas por Bakhtine (Christoff, 1996: 59).
Mas afinal, o que fez Bakhtine? Estudando a obra de Dostoievski,
Bakhtine, ao verificar, as relações entre o autor e suas personagens, dis-
tinguiu dois tipos de romance: os monólogos e os polifônicos. O
primeiro tipo se caracterizava pela comunhão do ponto de vista e de
uma só ideologia, era a voz do autor. O segundo tipo era caracterizado
pela presença, entre as personagens, de um coro de vozes simultâneas,
onde cada voz carrega um ponto de vista e uma ideologia. Para ele,
todo texto pertence ao corpus literário anterior e ao atual e qualquer
enunciação, por mais completa que seja, constitui apenas uma fração
de uma combinação ininterrupta na evolução contínua das interações
verbais. A obra de um autor inscreve-se, pois, num continuum históri-
co, literário e social, o que não anula sua especificidade (Christoff,
op.cit.: 61).
Em introdução a Semanálise (1969), Kristeva propõe a intertextualidade
como trabalho de transposição e absorção de vários textos na constitu-
ição de todo o texto literário. Apresenta o texto como um mosaico de
citações, trabalho de absorção e transformação de um texto em outro
(idem: 62).
O compositor José Alberto Kaplan observa que:
“A Intertextualidade veio mostrar que, pelo contrário, a obra de arte é
o local onde confluem todos os elementos culturais que o autor assim-
ila como ser social e que fazem parte de sua experiência pessoal (…)
processo intertextual não pode ser alegado para justificar a simples
repetição ou a falta de criatividade, pois o procedimento em pauta não

é mera assimilação e sim um processo dinâmico e transformador. (…)
a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de
influências, mas o trabalho de assimilação e transformação, ou melhor,
de remodelação de um ou vários textos, operado por um texto cen-
tralizador, que detém o comando do sentido” (Kaplan, sd.: 5).
Na música, o uso da intertextualidade como recurso composicional
não se constitui em novidade, já que, desde o século XIV era utilizada.
No século XVII, compositores como Bach, que fez aproveitamento das
melodias do hinário protestante em seus corais e Haendel, que também
fez empréstimos de temas de muitos compositores da época – como
Gottlieb Muffat, Johann Kaspar Kerll e Alessandro Stradella confirmam
a afirmação de um remoto uso da intertextualidade.
Afonso Romano de Sant’Anna, no ensaio Paródia Paráfrase & Cia, dis-
tingue quatro tipos de intertextualidade, a apropriação, a paródia, a
estilização e a paráfrase. Estes são por ele apontados como os diversos
graus de integração entre um texto e seus intertextos, resultantes do
propósito da semelhança ou diferença (Sant’anna, 2003).
Detalharemos agora cada um dos tipos de manifestação intertextual
apontado por Sant’Anna:
Apropriação – É uma técnica onde textos de outrem são articulados em
um contexto diferente, como numa colagem ou montagem. Segundo
Sant’Anna:
“A técnica da apropriação, modernamente, chegou à literatura através
das Artes Plásticas. Principalmente pelas experiências dadaístas, a par-
tir de 1916. Identifica-se com a colagem: a reunião de materiais diver-
sos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico”
(Sant’anna, op. cit: 43)
“(…) a idéia da realização é que é importante. A forma é secundária.
O artista está querendo desarrumar, inverter, interromper a normali-
dade cotidiana e chamar a atenção para alguma coisa”. (idem: 45)
Paródia – Na paródia há uma inversão do sentido do texto parodiado,
seja por meio da troca de um elemento por outro, da repetição de um
estilo ou efeito técnico ou caricaturando a forma ou o espírito de um
autor, gerando um produto que carrega traços do antigo e do novo.
Sant’Anna observa que:
“A paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez
mais presente nas obras contemporâneas. A rigor, existe uma con-
sonância sobre paródia e modernidade (…) a paródia é um efeito sin-
tomático de algo que ocorre com a arte de nosso tempo (…) a fre-
qüência com que aparecem textos parodísticos testemunha que a arte

contemporânea se compraz num exercício de linguagem onde a lin-
guagem se desdobra sobre si mesma num jogo de espelhos” (idem: 7).
Estilização – A estilização acontece quando ao fenômeno intertextual
acontece numa mesma direção do texto estilizado. A paródia de uma
comédia será uma tragédia e vice-versa, já na estilização não há esta
mudança de direção e os dois textos concordam entre si.
Paráfrase – A paráfrase se constitui de um texto que reafirma, em out-
ras palavras, o mesmo sentido de outro. Segundo Sant’Anna a paráfrase
é “Mais do que um efeito retórico ela é um efeito ideológico de con-
tinuidade de um pensamento, fé ou procedimento estético”. (idem: 22)

O compositor
José Alberto Kaplan nasceu em Rosário de Santa Fé, Argentina em 16
de julho de 1935. É naturalizado brasileiro e teve parte da sua formação
musical na Europa onde estudou com Nikita Magaloff em Genebra e
com Wladyslaw Kedra em Viena (Mariz, 2000: 501). Em 2005 foi ho-
menageado com o título de Professor Emérito da Universidade Federal
da Paraíba onde lecionou durante os anos 1964 a 1992. Kaplan possui
papel ativo no cenário da música contemporânea nacional e é figura
importante no meio musical da região nordeste. Segundo a composito-
ra Ilza Nogueira, “José Alberto Kaplan é um compositor que desen-
volveu um estilo pluralista, no qual aspectos da musica brasileira
nordestina rural, em citações literais ou imitações, adaptam-se às
idiossincrasias estilísticas de compositores da tradição culta ocidental
(…)” (Nogueira, 2003: 6).

O Concerto para piano


O Concerto para Piano e Orquestra de José Alberto Kaplan1, a partir da
informação do compositor, foi composto utilizando, dentre outras, a
técnica da intertextualidade, tendo como ponto de partida o Concerto
nº2 para piano e orquestra opus 102 de Dimitri Shostakovich.2 O
primeiro movimento do Concerto de Kaplan, assim como o de

1 Esta obra foi estreada na cidade do Recife em concerto da Orquestra Sinfônica da mesma cidade,
tendo como solista a pianista Eldia Carla de Farias, aluna do compositor. Depois a obra foi executa-
da no "Panorama da Música Contemporânea" (1990), no Rio de Janeiro e na "IX Bienal de Música
Contemporânea" (1990), regida pelo maestro Ricardo Duarte sempre com a mesma solista. (Kaplan,
1999: 298).
2 Informação obtida em entrevista realizada pelo pesquisador no dia 11 de Janeiro de 2005 em João
Pessoa PB. Material em fita cassete pertencente ao acervo do pesquisador.

Shostakovich, possui uma forma ternária que sugere uma insinuação à
forma sonata do século XVIII.
Neste trabalho estamos chamando de “idéia” os principais desenhos
melódicos que fazem alusão ao que se chamaria de tema em uma
Forma Sonata clássica. Assim sendo, temos em Kaplan e Shostakovich
os seguintes esquemas formais:

Figura 1 – Esquema formal dos Concertos de Kaplan e Shostakovich


De acordo com a tabela exposta é possível verificar que Kaplan utiliza
o mesmo número de idéias e as distribui entre as seções do mesmo
modo que Shostakovich. Apenas na cadência Kaplan faz maior uso dos
materiais já expostos. Outra informação importante é que Kaplan utili-
zou a mesma orquestração que Shostakovich, conferindo ao seu
Concerto também uma semelhança timbrística.

3 Nas figuras Exemplos de semelhanças e diferenças entre as idéias musicais.3
que seguem
os trechos Idéia 1 – c.1 a 4
marcados e
numerados
indicam as
modificações
realizadas
por Kaplan
no Concerto
de Shosta-
kovich. Para
cada figura
há uma
numeração
correspon-
dente nos
comentários.

Figura 2 – Shostakovich c. 1 a 4 Kaplan c. 1 a 4


Trata-se aqui da introdução do Concerto. (1) No primeiro compasso
Kaplan muda o ritmo do motivo, utilizando uma tercina e aumentado-
o em uma nota. Direção melódica ascendente, (2) no segundo com-
passo há uma inversão da ordem dos intervalos – lá sol dó – uma
segunda maior descendente e uma quarta justa ascendente, para dó lá
sol – terça menor e segunda menor descendentes, (3) no terceiro com-
passo há inversão da ordem dos intervalos – fá sol lá – segundas
maiores, para fá lá sol – terça maior ascendente e segunda maior
descendente na voz superior, no Kaplan baixo utiliza segundas
menores. (4) No quarto compasso há mudança do movimento da linha
melódica de descendente para ascendente (4).
Idéia 3 – c. 23 a 26

Figura 3 – Shostakovich c. 23 a 26 Kaplan c. 23 a 26



(1) Neste trecho Kaplan mantém o ritmo e muda a direção das alturas,
(2) logo após ele mantém apenas a primeira célula rítmica e cria uma
nova célula, mais adiante (3) realiza uma mudança da primeira célula
rítmica e conserva os demais tempos do compasso, alterando a direção
dos intervalos, (4) no final realiza uma diminuição do ritmo.
Idéia 4 – c. 48/49 a 87 (Shostakovich) e c. 48/49 a 56 (Kaplan)

Figura 4 – Shostakovich c. 48/49 – 56, Kaplan c. 48/49 – 56


Shostakovich trabalha esta idéia apenas no piano, já Kaplan expõe, ini-
cialmente, nas madeiras e depois no piano. Kaplan mantém o mesmo
ritmo e praticamente a mesma direção. (1) Há mudança de altura na
primeira nota da anacruse e no terceiro e quarto tempos do segundo
compasso, no próximo compasso (2) há semelhança na direção da
linha melódica e no trecho final (3) há apenas a nota inicial em
comum.

Considerações finais
A intenção principal neste trabalho foi mostrar, por meio da análise
comparativa de trechos dos Concertos de Kaplan e Shostakovich, como
foi possível, utilizando a intertextualidade como ferramenta composi-
cional, construir um novo texto musical a partir de um pré-existente.
Em relação aos pontos de ligação entre as duas obra, pela análise dos
fragmentos das apresentados, verifica-se que Kaplan utilizou a mesma
forma e conseqüentemente o mesmo número de idéias que
Shostakovich. Os elementos de intertextualidade foram apresentados a
partir do momento em que Kaplan seguiu a mesma direção apontada
por Shostakovich configurando o seu trabalho como uma estilização,
pois de acordo com Sant’Anna, a estilização acontece quando o fenô-
meno intertextual acontece numa mesma direção do texto estilizado.

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Aspectos psicológicos
na preparação para a performance musical
Vivian Deotti Carvalho
Sonia Ray
Universidade Federal de Goiás – UFG

s instrumentistas frequentemente ficam sujeitos a situações que

O exigem maior esforço psicológico do que estão habituados,


como a necessidade de se preparar para uma prova prática, ou
teste de seleção, apresentações em recitais, festivais e outros. Nestes
contextos, em aulas práticas e ensaios (que se realizam em grande

número e num curto espaço de tempo) podem gerar sentimentos con-
fusos que interferem no desempenho do performer, quase sempre
oriundos da ansiedade. Algumas destas interferências são: náuseas,
taquicardia, sudorese, tremor, perda de memória, entre outros. Segundo
especialistas das áreas de psicologia e psicanálise (Oliveto, 2001), e
neurologia (Houzel, 2002), a atividade do performer musical está
muitas vezes conectada a problemas pessoais do indivíduo, ou seja, a
própria apresentação pública requer aptidões de controle psicológico
que podem chegar aos limites da condição humana.
Grande parte da literatura sobre psicologia aplicada ao músico que
atua no palco (Psicologia da Performance) está em língua estrangeira ou
em periódicos de pouca circulação no meio musical. O pouco acesso
a esta literatura tem contribuído com o aumento do nível de interferên-
cias negativas na performance musical (Ray, Vieira e Dias, 2002), bem
como distanciado o músico dos recursos disponíveis e aplicáveis à sua
realidade. O alto grau de incidência em músicos que desenvolvem
problemas de origem psicológica no exercício de sua profissão indica
que grande parte dos instrumentistas e cantores não têm consciência de
suas limitações psicológicas. Lehrer (apud Oliveto, 2001), psicólogo e
diretor de uma clínica especializada no tratamento de ansiedade e
tensão, sublinha que o aprendizado na modulação da tensão perfor-
mática seria tão importante quanto o da técnica instrumental. Para
evitar que estes desequilíbrios corporais tornem-se constantes ou se
agravem, é de extrema importância a adoção de medidas com intuito
de ajudar solucioná-los.
A carência de literatura na língua portuguesa direcionada ao problema
e a grande incidência de problemas psicológicos nos músicos
dificultam possíveis aplicações dos estudos existentes a atividade
musical. Isto tudo, somado a falta interação entre profissionais de áreas
a fins com a música (Mcardle, Katch, e Katch, 1974), reforça a
pertinência do presente trabalho.

Metodologia
O trabalho foi desenvolvido em dois momentos principais: 1) O levan-
tamento de dados bibliográficos os quais geraram uma revisão da lite-
ratura disponível referente a distúrbios psicológicos relacionados à
atividade do performer musical (Carvalho e Ray, 2004) e 2) análise dos
dados coletados na revisão de literatura e na aplicação de questionários
aos alunos de graduação de licenciatura e bacharelado em instrumen-
to musical e canto no período do mês de setembro de 2004. O ques-

tionário teve como objetivo fazer um levantamento de dados dos
fatores responsáveis por desgastes emocionais na visão dos sujeitos.
Ao todo, foram respondidos sessenta e três questionários, os quais con-
tinham doze questões com respostas de múltipla escolha e abertas, de
forma combinada.

Resultados
O primeiro gráfico (referente a questão n. 1 do questionário), demonstra
que todos os performers já vivenciaram em alguma dimensão o estado
de ansiedade e tensão em suas apresentações em público.

14%

Nunca Figura 1 –
0%
Questão
Quase sempre número 1 do
questionário:
45%
“Você se sente
Sempre
ansioso ou
tenso quando se
Às vezes
apresenta em
41%
público?”

Com a análise dos dados coletados nos questionários, foram detectadas


três possíveis causas de alteração na concentração do performer. A
primeira delas vem a ser a tensão e a ansiedade, tendo em vista que
71% das respostas evidenciaram a constância de dificuldade de con-
centração nas performances. A apresentação para platéias diferentes
surge como segundo fator que traz dificuldades à concentração do per-
former. Porém, isso não é uma constância, pelo que se extrai da análise
do gráfico referente à questão de número 4.
16%
Figura 2 –
28%
Questão
5%
Sempre número 4 do
questionário:
Às vezes “4. Sua
capacidade de
se concentrar é
Nunca
diferente quan-
do você se
Quase sempre apresenta para
platéias
51%
diferentes?”

No que tange a terceira e última causa de dificuldade de concentração,
é suficiente uma breve análise da questão de número 5, na qual foi pro-
porcionado ao aluno a opção de escolher em ordem de prioridade
entre a “falta de estudo”, “presença de determinada pessoa na platéia”,
“executar um obra pela primeira vez”, bem como se ele nunca sentisse
dificuldade de se concentrar ou, caso preferisse, mostrar outra causa
para o problema. Pelos gráficos apresentados quanto a esta questão ver-
ificou-se como causa de maior atenção e prioridade a falta de estudo
suficiente para a apresentação, com 74% de favoritismo.
Na questão 6 foi perguntado o que geralmente os performers sentem
minutos antes de entrar no palco, proporcionando aos entrevistados
opções do tipo “Se lembra dos bons momentos vividos nos ensaios”;
“Sente medo de perder o controle e se apresentar mal”; “Sente vontade
de começar logo para não perder o aquecimento” etc. As duas opções
mais escolhidas, como esperado, se dirigem a sentir medo de perder o
controle e se apresentar mal (24%) e sentir medo de esquecer o que foi
memorizado (23%). Mesmo tendo sido disponibilizado sete diferentes
respostas para o entrevistado escolher, houve quem ainda apresentasse
opiniões do tipo “Diminuição diante dos colegas”, diz um aluno de
licenciatura em violão; “Sem querer, lembro-me de uma vez que me
apresentei mal”, diz um aluno de licenciatura em violino, “Penso em
que devo fazer na performance”, diz outro aluno.
4%
2%

PRIORIDADE 1
14%

Não estuda o suficiente (A)

6% Tem alguém na platéia que te deixa


nervoso/a (B)
Está executando uma obra pela
primeira vez (C)
Nunca sinto dificuldade de me con-
centrar em minhas performances (D)

74%
Outro ( E )

Figura n. 3 – Questão número 5 do questionário. “Você sente maior


dificuldade de se concentar em suas performances quando: (enumere
de 1 a 5 em ordem de prioridade).”
Na questão 10 procurou-se observar de forma mais detalhada quais são

os motivos pelos quais os performers ficam sujeitos a perda do controle
durante a performance musical. Com 41%, destacou-se o item relativo
a “tocar num local com grande prestígio”, como sendo o fator que mais
interfere no controle da apresentação. Na questão aberta foram ofere-
cidas algumas opiniões pelos entrevistados que relatam situações difer-
entes às apresentadas como “quando sei que não domino a técnica” e
“apresentação sem ensaio”, dizem os alunos de bacharelado em piano.
Analisadas todas essas questões sobre tensão, ansiedade, concentração
e controle, fica evidente que o surgimento de alguns sintomas físicos
decorrentes de fatores psicológicos, são normais. Os quais são mais
detalhados na questão 7, que proporcionou ao entrevistado a escolha
de cinco sintomas previamente destacados (Boca seca; Taquicardia;
Sudorese; Irritação e; Tremor). O tremor foi escolhido por 30% dos
entrevistados e a Taquicardia por 24% de escolha. Mesmo tendo sido
disponibilizado diferentes respostas para o entrevistado escolher, houve
quem ainda apresentasse outros sintomas, entre eles: sono, frio na bar-
riga, falta de fome, mãos geladas, impaciência e pressão baixa.
Nas questões 11 e 12 ficou-se evidenciado que um número consid-
erável dos entrevistados (46%) não pratica qualquer exercício físico
regularmente. Por outro lado, somente 20% não realizam alongamen-
tos logo antes da performance. Segundo Lehrer (apud Oliveto, 2001), a
eficiência física é também um pré-requisito indispensável na finalidade
de otimizar os resultados do desempenho musical tendo como objeti-
vo ter o mínimo de esforço e com isso prevenir qualquer tipo de lesão.

12%
16% Figura 4 –
Outro Questão
número 7 do
Boca seca
questionário:
Taquicardia
“Assinale os sin-
tomas que você
Sudorese tem antes ou
durante sua per-
Irritação formance
30%
(Assinale todos
24% Tremor os que forem
pertinentes)”
1% 17%

As questões 2 e 8 confirmam que a maioria dos músicos acredita que



um acompanhamento psicológico e a autoconfiança são requisitos
necessários para melhor enfrentarem a preparação para suas perform-
ances.

Conclusão
Ao analisar os questionários pode-se observar que todos os entrevista-
dos, em alguma dimensão, já vivenciaram o estado de ansiedade ou
tensão, desconsiderando assim a segunda hipótese. Por outro lado,
confirma que muitas vezes a experiência de palco não é um fator rele-
vante que retira o sentimento de ansiedade ou tensão vivido durante a
performance.
Confirmou-se que a sobrecarga de responsabilidade imposta pela
comunidade musical aos performers e o aspecto competitivo, inerente
à atividade do performer musical, são possíveis causas de ansiedade e
pânico de palco, e são também fatores que dificultam a concentração
do performer interferindo em sua atividade. Registrou-se ainda um
índice assustador de 74% dos sujeitos no experimento têm consciência
de que o fator responsável pela dificuldade de concentração é o pouco
tempo destinado a preparação das peças.
Ao apresentar os resultados do experimento, espera-se contribuir com
o aumento da literatura na língua portuguesa direcionada psicologia da
performance e propor reflexões a instrumentistas e cantores no sentido
de encontrarem caminhos pra otimizar sua performance.

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Universidade Federal de Goiás Goiânia, Brasil.

O pianista e a psicologia da música: um diálogo necessário


Diana Santiago
Universidade Federal da Bahia –UFBA

m artigo notório na área da teoria da música, Janet Schmalfeldt,

E tentando encontrar respostas para o problema de como uma


análise pode auxiliar a construir uma execução musical, con-
fronta a relação entre analista musical e músico (Schmalfeldt, 1985).
Para alcançar tal desiderato, assume alternativamente ambos os papéis,
tomando como ponto de partida o opus 126 de Beethoven. De modo
semelhante, neste artigo, pretende-se estimular um diálogo interno no
pianista, com base em duas posições: a do psicólogo clínico, terapeu-
ta, e a do psicólogo pesquisador, cognitivista e biopsicólogo. Partindo
de exemplos da literatura, particularmente dos trabalhos de Bruser
(1997), Parncutt & McPherson (2002) e Williamon (2005), focam-se
aspectos da personalidade do músico e dos processos psicofosiológicos
da execução musical, tais como: estilos de atuação, preparação do
músico para tocar, treinamento das habilidades físicas e mentais em
música, técnicas de ensaio, expressividade em música, memorização.
É comum que o músico e o professor de instrumento conduzam suas
práticas de forma intuitiva e atendo-se à tradição recebida. Contudo, os
achados na área da pesquisa psicológica oferecem excelente
contribuição para a otimização dessas práticas, e não podem ser
desconsiderados. Esta discussão objetiva contribuir para a melhoria das
mesmas.

Ao examinar as relações possíveis do pianista com a psicologia, sobres-
saem aquelas que podem se estabelecer entre as psicologias do desen-
volvimento, da educação, da personalidade, a psicologia social, a cog-
nitiva, a biopsicologia, a psicologia clínica e a neuropsicologia. Isso,
porque os principais pontos de contato entre o pianista e o psicólogo
são aqueles situados no âmbito da preparação do intérprete para tocar,
que lidam com o estudo dos processos psíquicos e psicofisiológicos da
performance musical: estudos e atuações que pretendem compreender
o self do músico e os fundamentos da prática musical, buscando uma
otimização do desempenho do músico, ou seja, melhores técnicas de
prática (ensaio), melhor aproveitamento do tempo pelo músico e
melhores resultados audíveis. Essa otimização tem por corolário uma
melhor qualidade de vida para o intérprete.
Em artigo notório na área da teoria da música, Janet Schmalfeldt, ten-
tando encontrar respostas para o problema de como uma análise pode
auxiliar a construir uma execução musical, confronta a relação entre
analista musical e músico (Schmalfeldt, 1985). Para alcançar tal objeti-
vo, assume alternativamente ambos os papéis, tomando como ponto de
partida o opus 126 de Beethoven. Com aquele texto, Schmalfeldt
trouxe a análise para mais perto do músico, tentando diminuir a dis-
tância entre formulações teóricas e a prática musical. De modo semel-
hante, neste artigo, pretende-se estimular um diálogo interno no
pianista, com base em duas posições: a do psicólogo clínico, terapeu-
ta, e a do psicólogo pesquisador, cognitivista e biopsicólogo. Esse diál-
ogo pode ser muito enriquecedor, por trazer impactos na prática pianís-
tica desde o estúdio do professor de piano até o palco de concertos.

Estilos de atuação
Um dos principais pontos sobre os quais o estudo da personalidade
pode contribuir para a prática musical é na definição dos estilos de
atuação dos músicos, o que pode servir como fundamento para o trata-
mento da ansiedade na performance e para a redução da tensão psi-
cofísica no momento da execução musical . Westney (2003: 150-1)
chama a atenção para dois estilos de intérprete: o primeiro caracteriza-
se pela preocupação em questionar-se “o que você pensa de mim?”;
esta preocupação gera uma constrição mental e física, causadora de
tensão corporal; o segundo caracteriza-se pela idéia “deixem-me com-
partilhar isso com vocês”; essa idéia gera expansão e libera a energia
do intérprete, completando o circuito intérprete-platéia. Bruser (1997:
151-9) enumera três estilos de tocar: um de paixão exagerada, no qual

nos agarramos deseperadamente à música; um de fuga/evasão, no qual
resistimos a lidar com a música, e um de agressão, ataque à música. O
primeiro gera exagero na interpretação, o segundo gera um toque
impreciso e o terceiro, tensão desnecessária e um toque áspero. Esses
estilos fazem parte tanto de nosso comportamento cotidiano quanto da
prática instrumental, e o único modo de nos libertarmos deles é pela
autoconscientização de sua existência.
Uma descrição detalhada de achados de pesquisa psicológica sobre a
personalidade dos músicos, incluindo diferenciações tipológicas
segundo o grau de profissionalismo, a categoria do instrumento que
tocam e até o estilo de música em que se especializaram pode ser
encontrada em Gabrielsson (1999: 564-5). Já Imreh (in Chaffin et alii,
2002, cap. 3) faz uma meticulosa revisão de declarações de pianistas
famosos sobre sua maneira de serem músicos, especificamente, sele-
cionando considerações sobre as características de suas memórias
(tipos), o modo de conduzirem sua prática para aprenderem uma peça
nova e seu método de memorização, como lidam com a ansiedade e a
maneira como preparam uma apresentação pública de alto nível. É
impressionante a variedade das personalidades dos artistas e, portanto,
dos achados da pesquisa!

Contribuições da psicologia cognitiva


A psicologia cognitiva da música tem muito a contribuir para o intér-
prete. Estudos nesta área nos oferecem uma melhor compreensão dos
estágios da prática. Por exemplo, após extenso estudo de caso, Chaffin
a subdividiu nos seguintes estágios: exploratório, sessão por sessão,
estágio cinza (uma fase de transição), montagem da peça, polimento
(preparando para a primeira apresentação, repolimento, aumentando o
andamento), manutenção (Chaffin et alli, 2002: 239-246).
Igualmente importantes têm sido as contribuições da psicologia cogni-
tiva no que diz respeito à memorização. Introduzida por Clara
Schumann em 1828, a prática da performance de memória foi popu-
larizada por Liszt, mas, apesar disto, considerada de mau gosto e osten-
tosa até o final do século XIX. Contudo, sua aceitação foi crescendo,
apesar das demandas enormes que requer do músico – memorizar mi-
lhares de notas e saber recordá-las e executá-las em situações de stress
como são as apresentações públicas (Williamon, 2002: 113). O traba-
lho minucioso de estudo da prática da pianista profissional Gabriela
Imreh realizado por Roger Chaffin e Mary Crawford, enquanto aquela
estudava o Presto do Concerto Italiano de J. S. Bach (Chaffin, Imreh &

Crawford, 2002) confirmou a importância da utilização de estratégias
analíticas para estabelecer uma representação mental confiável da
música. Estudos na área sugerem que os músicos devem se valer das
técnicas analíticas que preferem durante o processo de prática, de
modo a estabelecer pontos de referência confiáveis no momento da
execução musical (Williamon, 2002: 124).
Ginsborg afirma que a música é armazenada na memória de longo
prazo através de múltiplas representações e sugere as seguintes estraté-
gias na memorização musical: analisar a música a ser estudada, de
modo a compreendê-la e organizá-la; dividi-la em partes estruturais
curtas para o estudo, aumentado o tamanho das partes à proporção em
que a música se torna mais familiar; e usar a memória cinestésica em
conjugação com a memória visual ou auditiva. Além dessas recomen-
dações específicas, ter consciência de que:
· Pouco e freqüentemente é uma estratégia melhor para memoriza-
ção que a tentativa de memorizar trechos grandes em uma ou duas
sessões maiores;
· No estágio final da preparação da peça a ser tocada de memória,
deve-se buscar um estado de confiança que seja independente do
fato do momento ser uma sessão de prática ou uma apresentação
pública e deve-se buscar ainda um estágio de aprendizado no con-
texto, ou seja, treinar de memória no ambiente comum da prática
e no local onde ocorrerá a performance (2005: 137-8).

Treinamento das habilidades físicas e mentais em música


O pioneiro no estudo dos aspectos físicos da performance foi Carl
Seashore, que desenvolveu métodos para registrar as características
detalhadas da determinação do tempo e da dinâmica em performances
musicais. Dentre as habilidades físicas da performance musical
encontram-se o movimento complexo (incluindo independência e
coordenação motoras) e habilidades de determinar o tempo. Dentre as
habilidades mentais, leitura de notação (já que tratamos da música de
tradição ocidental), memorização e imaginação ou representação
mental (Clarke, 2002: 60-3).
Estudos em performance de alto nível em várias áreas demonstraram
que são necessários ao menos 10 anos de prática intensa para um
profissional atingir a excelência (Ericsson, 1997: 23-5). Essa “regra dos
10 anos” aplica-se desde a atividades predominantemente físicas como
correr até àquelas predominantemente mentais, tais como xadrez e,
igualmente, à música da tradição ocidental. Chaffin & Lemieux (2005)

definem a prática efetiva por meio de cinco características: concen-
tração, estabelecimento e conquista de objetivos específicos, constante
auto-avaliação, uso flexível das estratégias, capacidade de quem
pratica ter em mente a visão geral da peça.
Ao tratarmos do preparo físico do músico, é importante considerarmos
a necessidade de um bom condicionamento corporal para a excelência
do desempenho no instrumento. Técnicas e intervenções utilizadas em
pesquisas pioneiras com músicos realizadas em vários países, buscan-
do tornar melhores as condições de preparação dos mesmos, têm
incluído exercícios físicos, técnica de Alexander, biofeedback e neuro-
feedback para auto-regulação fisiológica, programa de treinamento de
habilidades mentais e ensino da expressividade musical por meio de
feedback da aprendizagem (Williamon, 2005). Infelizmente, ainda são
poucas as instituições que incluem cursos de tal tipo em seu currículo
regular, ou mesmo como atividade de extensão, e poucos os profes-
sores de instrumento conscientes da necessidade dos mesmos.

Técnicas de ensaio (prática)


Estudos sobre técnicas de ensaio (prática) têm esclarecido a natureza
dessa prática e sugerido estratégias para ensaio individual ou coletivo.
Jorgensen (2005: 85-6) apresenta uma visão abrangente da prática
musical, incluindo uma perspectiva histórica. Partindo da visão susten-
tada por Gamalian, ele afirma que a prática efetiva consiste numa auto-
intrução e, como tal, deve incluir três fases: planejamento e preparação
da prática; realização da prática; observação e avaliação da prática. As
estratégias de planejamento e preparação incluem estratégias para
seleção de atividades e organização e estratégias para gerenciamento
do tempo; as estratégias executivas incluem estratégias de ensaio,
estratégias para a distribuição da prática ao longo do tempo e estraté-
gias para a preparação de uma apresentação pública; já as estratégias
de avaliação incluem o conhecimento, o controle e regulação das
estratégias como um todo.
Barry & Hallam (2002: 150 ss.) apontam muitos pontos em comum aos
mencionados por Jorgensen para a eficácia da prática: a necessidade
do controle do tempo (duração total do ensaio/prática, organização do
tempo); estratégias cognitivas (prática mental, análise, metacognição,
respeito às diferenças individuais). Segundo as autoras, as pesquisas
revelam que a prática é melhor sucedida quando os músicos incluem
reflexão sobre seus próprios processos mentais (metacognição),

empregam a prática mental em combinação com a física, acercam-se
da prática de forma organizada, estudam e analisam partituras, plane-
jam sessões relativamente curtas e regulares, estão intrinsecamente
motivados, e escutam exemplos musicais apropriados – incluindo
gravações profissionais e/ou demonstrações do professor.
Para Chaffin et alii, as características da prática efetiva são: o desejo
ardente de aprender, uma concentração focada, determinação de obje-
tivos, o hábito da avaliação, estratégias de prática, agendamento da
prática (practice scheduling), monitoramento dos níveis de energia de
modo a saber parar se o grau de eficiência estiver caindo, trabalho e
testagem dos trechos trabalhados (work and runs), uso da estrutura
formal para a divisão das partes a serem estudadas; antecipação dos
objetivos futuros (2002: 254-261).
É importante também para o músico compreender as várias pesquisas
sobre a comunicação verbal e não-verbal em ensaios de música de
câmara e sobre a utilização do corpo na performance (Williamon,
2005).

Expressividade em música
Pode a expressão emocional ser aprendida? As abordagens tradicionais
da expressividade em música incluem a modelagem auditiva (o profes-
sor toca para o aluno ouvir e tentar imitar) e estratégias de experimen-
tação (testagem de diversas possibilidades); abordagens alternativas de
ensino são o ensino da teoria da comunicação emocional e o feedback
cognitivo e suas aplicações, em busca de uma integração de técnica e
expressão (Juslin & Persson, 2002: 227ss.). Para que variações em
expressividade sejam efetivas, devem ser não apenas detetadas pelos
ouvintes, porém, fazerem sentido para eles (Sloboda, 1994: 158).
Na área, destacam-se os trabalhos de Juslin. Com base em achados de
pesquisa, ele argumenta que a expressividade deriva de cinco fontes
principais, que denomina de Modelo GERMS :
· regras gerativas (G) – são aquelas que marcam a estrutura de
maneira musical;
· expressão emocional (E) – serve para transmitir emoção ao públi-
co;
· flutuações ao acaso (R) – refletem as limitações motoras humanas;
· princípios do movimento (M) – que sustentam que mudanças de
andamento devem seguir padrões naturais do movimento humano;

· desvios do estilo (S) – que refletem tentativas deliberadas do intér-
prete para desviar das expectativas do estilo em relação à perform-
ance, de modo a adicionar tensão e imprevisibilidade à mesma
(Juslin et alii, 2005: 252-3).
A partir de achados de pesquisa, recomenda formas alternativas para o
treinamento da expressividade, centrando-se no uso do computador
(Juslin et alii, 2005: 259-265; Juslin & Persson, 2002: 230-3).

Coda
O contato com a vasta literatura que já existe sobre performance e psi-
cologia da música é ocasião para reflexões produtivas para o músico.
Tomando a frase do pianista Seymour Bernstein (1981: 9) quando
afirma que “A prática produtiva é um processo que promove auto-inte-
gração”, façamos votos para que a voz do psicólogo cientista possa nos
auxiliar a encontrar melhores estratégias de estudo e desempenho; e
para que a voz do psicólogo terapeuta possa nos auxiliar na integração
do ser. A música soará mais bela.
Este artigo baseia-se em literatura revista para pesquisa financiada pelo
CNPq.

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

4. Artes Musicais,
Lingüística, Semiótica e Cognição


Um panorama de estudos comparativos entre fala e canto


Beatriz Raposo de Medeiros
Universidade de São Paulo – USP

proposta deste panorama é resumir achados de estudos

A sobre a produção acústica dos segmentos de fala cantados


(Raposo de Medeiros, 2002, 2003) e sua relação com
dados articulatórios, bem como apresentar resultados de experimento
perceptual envolvendo a discriminação de vogais faladas e cantadas.

Vogais deformadas (centralizadas) e não mal pronunciadas


O aparelho fonador funciona como um instrumento através do qual
podem-se ajustar diferentes ressonâncias. Para simplificar a idéia deste
instrumento, podemos considerá-lo na forma de tubos. Por exemplo: a
laringe seria um tubo possuindo pregas vocais sujeitas à vibração (ver
Stevens, 1977, para detalhes), as quais possuem músculos e cartilagens
responsáveis por ajustar modos de vibração e freqüência fundamental.
O trato vocal1, seria um tubo cujos articuladores ativos (mandíbula, 1 O trato
lábios e língua) filtrariam o som produzido na laringe. Estes sons podem vocal
também é
ser tanto da fala como da música. No caso mais específico desta últi- formado
ma, temos os vocalizes, em que uma vogal qualquer, destituída de sen- pelo trato
tido, faz soar uma melodia. No caso da canção, temos duas linguagens nasal, consti-
tuído das
entrelaçadas, dando conta, a um tempo, das restrições da fala e das cavidades
restrições da música. O termo restrições será entendido aqui, grosso nasais,
modo, como regras. Regras fonético-fonológicas envolvem a produção responsáveis
pela
de diferentes sons da fala estabelecendo-se relações de diferença entre ressonância
si, e as regras musicais envolvem basicamente, entre outras exigências, nasal que
ajuste de altura e tempo. Sendo assim, ao se cantar com texto, ou seja, nos permite
produzir e
não simplesmente vocalizar, quem canta está ao mesmo tempo imple- perceber as
mentando seu conhecimento lingüístico e musical. A tarefa não é das consoantes e
mais simples, dado que, para responder às necessidades de afinação e as vogais
nasais nas
sustentação de uma nota musical, muitas vezes o cantor/a tem de com- línguas natu-
prometer a inteligibilidade da fala. Surge, então, uma pergunta clássica rais.
no que toca a inteligibilidade do canto. Por que, em notas altas, fica tão
difícil entender o que se canta? Vogais fechadas deformam-se ao serem
cantadas em freqüências de fonação acima de 700 Hz mais ou menos
e isto recebeu um tratamento aprofundado e uma explicação convin-
cente a partir de Sundberg (1977, 1987), que explicou a relação da

natureza fonética acústica da vogal, com a freqüência da nota cantada
ou freqüência de fonação.
A partir da explicação de Sundberg (1977), difundida juntamente com
o conceito de formante do cantor, desenvolveu-se um estudo compar-
ativo de aspectos fonéticos da fala e do canto (Raposo de Medeiros,
2002) a fim de levantar evidências na fala cantada do português
brasileiro, através de canções eruditas, de que atribuir a não inteligibil-
idade à má dicção do cantor/a ou ao compositor, apenas fortalece o
mito da má dicção no canto. Uma vez citada a questão do formante do
cantor, é preciso esclarecer que, assim como a necessidade de abaixa-
mento da mandíbula no canto para maior energia do sinal, o formante
do cantor é também uma resultante acústica para a voz cantada obter
maior energia e se destacar na massa de sons da orquestra. Este fenô-
meno é encontrado em vozes de baixos, barítonos, tenores e contraltos
com treinamento vocal de belcanto (Sundberg,1999). Estão portanto,
de fora, as vozes de sopranos, que, por sua vez, para maior volume do
sinal sonoro cantado, empregam o abaixamento da mandíbula para a
produção de notas cantadas, mesmo em torno de 420 Hz de freqüên-
cia (Raposo de Medeiros, 2002).
Investigando acusticamente o que acontecia com cada uma das sete
vogais tônicas do PB2, chegamos à conclusão que, de fato, no canto, as
vogais são deformadas, em relação ao padrão acústico das vogais fal-
adas. Na teoria de produção acústica da fala (Fant, 1960) as caracterís-
ticas acústicas das vogais podem ser representadas através dum padrão
formântico, (f-pattern). Para se entender isso é preciso lembrar que as
ressonâncias específicas de cada vogal são os formantes, e que, dentre
eles, os três primeiros são suficientes para nosso ouvido perceber a
vogal produzida. Uma vez que os dados de vozes femininas de sopra-
no3 indicavam-nos um determinado padrão formântico na fala,
pudemos compará-lo com o do canto e daí inferirmos o que estava
acontecendo articulatoriamente no canto ao se cantar uma determina-
da vogal, entoando-se uma freqüência de fonação por volta de 420 Hz.

2 Para comparar a fala e o canto em PB, escolhemos as sete vogais orais tônicas [i,e,E,a,ç,o,u] e as
consoantes oclusivas surdas [p,t,k], que foram realizadas no logatoma /la'CV/, contido na frase
veículo: “Canto /la'CV/ baixinho numa velha canção de ninar”, na qual V era entoada num freqüên-
cia fundamental em torno de 420 Hz (lá b 3). Uma pequena alteração rítmica se deu para encaixar
as sílabas lapá (exemplo de um dos logatomas possíveis), sem alteração da estrutura do compasso,
sequer da melodia.
3 Cinco informantes cantoras, com voz de soprano, foram gravadas cantando e falando as mesmas
frases veículos, produzidas cinco vezes por cada informante. Isso permitiu-nos chegar a um média
de F1, F2 e F3, individual e por fim, geral, de cada vogal.

O achado mais geral deste estudo foi o de que as vogais cantadas, exce-
to [a] são produzidas com a mandíbula mais baixa se comparado à
fala. Isso vai ao encontro do achado de Sundberg (1977). Ora, se, a
cada nota mais acima na escala a cantora é obrigada a produzir a vogal
com a boca mais aberta (mandíbula mais abaixada), forçosamente esta
vogal é deformada, ou seja, perde a qualidade vocálica exigida pelo
texto, uma vez que quanto mais baixa a mandíbula, mais alto é o F1.
Assim, uma vez deformada a fala, sua inteligibilidade fica compro-
metida em favor das restrições musicais. Um segundo achado mais
específico é o de que se produz uma centralização das vogais no canto,
ou seja todas elas tendem a ficar parecidas com um schwa, ou vogal
neutra, assim representado [´]. Esta vogal é produzida com os articu-
ladores exercendo pouca constrição no trato oral. O/a cantor/a tenta
implementar um tubo uniforme ao cantar vogais, dado que ele/a deve
manter a laringe livre de maiores contrições, pois é ali que se produz a
freqüência fundamental.
Ao aprofundarmos os conhecimentos sobre a relação entre acústica da
fala e a acústica do canto, vemos que as manobras específicas do
canto, como manter a mandíbula mais baixa e a configuração do trato
mais neutra, limita a dicção da fala. Em um estudo de filmagens da face
(Raposo de Medeiros, 2005), verificamos que a mandíbula é de fato
mais abaixada na produção da vogal cantada como se pode ver nos
fotogramas a seguir.4

Fotogramas a: à esquerda, [ç] cantado e à direita, [ç] falado.

4 Nota-se no fotograma de [i ] cantado, que há elevação do lábio superior em comparação ao [i ]


falado. Isso pode ser uma compensação para o pouco abaixamento da mandíbula exigido pela
vogal alta. Estudos futuros, filmando mais informantes, podem confirmar essa hipótese da
compensação.


Fotogramas b: à esquerda [i] cantado e à direita [i ] falado.


Tanto acústica, como articulatoriamente, evidenciamos as diferenças
entre o canto e a fala. A questão que ficou suspensa no ar foi aquela
relacionada à percepção das vogais cantadas. Agora resta deslindar o
que acontece com a outra ponta do processo.
5 Os
ouvintes
foram expos- Percepção de vogais cantadas isoladas do contexto
tos aos estí-
mulos usan- A premissa básica deste experimento é de que os cantores tentam man-
do fones de ter o espaço vocálico em busca da inteligibilidade, mesmo realizando
ouvido, em manobras do canto, diferentes daquelas da fala. Esta inteligibilidade,
uma sala
silenciosa, até onde podemos atestar , ocorre nas vizinhanças de uma faixa de fre-
da seguinte qüência de baixa para média (Raposo de Medeiros, 2002, Scotto di
maneira: as Carlo, 1985). No entanto, o estudo sobre o canto em PB apresentado
diferentes
modalidades, anteriormente reuniu evidências de que há uma sobreposição entre as
ou seja o vogais [E,a,ç] cantadas quanto a F1, mas não quanto a F2. Isto nos levou
canto e a a considerar que embora a produção esteja consideravelmente alterada
fala, foram
apresentados no canto, impondo uma mudança articulatória ao trato vocal, a dis-
em blocos tinção fonológica não fica completamente afetada. Em outras palavras,
separados, e as vogais cantadas, assim como as faladas, mantêm a distinção entre si.
nestes a
ordem das O experimento em questão envolveu estímulos criados a partir das fra-
vogais era
aleatória. Ao ses faladas e cantadas por uma das cantoras gravadas para o estudo
ouvir a acústico apresentado na seção 2. Para ouvir tais estímulos, 22 infor-
vogal, o mantes (universitários, de ambos os sexos, com audição perfeita) foram
ouvinte a
identificava voluntários5. Os estímulos criados consistiram no seguinte: escolheu-se
entre as sete o conjunto de vogais cantadas e faladas por apenas uma cantora e no
vogais subconjunto de cada vogal, escolheu-se aquela cujos valores de for-
possíveis.

mante eram mais parecidos com a média desta cantora. Tais vogais
foram isoladas do contexto que as circundava, ou seja da palavra. Em
seguida, a duração das vogais foi ajustada da seguinte forma: [E,a,ç]
ficaram com 110 milissegundos, [e,o] com 90 ms e [i,u] 60 ms, numa
tentativa de normalizar a duração vocálica segundo a duração intrínse-
ca destes segmentos. Os resultados são apresentados nas tabelas
abaixo.
Fala: Vogais Percebidas
a E e i ç o u acerto
a 197 1 0 0 0 0 0 99%
Fala: Vogais Apresentadas

E 0 197 1 0 0 0 0 99%
e 0 0 194 4 0 0 0 98%
i 0 0 6 192 0 0 0 97%
ç 2 0 0 0 187 9 0 94%
o 0 0 0 0 0 162 35 82%
u 0 0 0 0 0 43 154 78%
sr 199 198 201 196 187 214 189 92%

Tabela 1. Matriz de confusão das vogais faladas para todas as respostas dos
ouvintes. No eixo horizontal, sr é a soma dos acertos e erros. A
célula sombreada contém a porcentagem total dos acertos.
Canto: Vogais Percebidas
a E e i ç o u acerto
a 190 0 0 0 7 0 0 96%
Canto: Vogais Apresentadas

E 1 174 20 0 0 3 0 88%
e 0 8 79 111 0 0 0 40%
i 0 0 2 196 0 0 0 99%
ç 26 0 1 0 134 37 0 68%
o 0 1 2 1 44 117 33 59%
u 0 0 0 0 0 3 194 98%
sr 217 183 104 308 185 160 227 78%

Tabela 2. Matriz de confusão das vogais faladas para todas as respostas dos
ouvintes. No eixo horizontal, sr é a soma dos acertos e erros. A
célula sombreada contém a porcentagem total dos acertos.
O percentual de acerto geral, destacado em cinza nas tabelas, como se
esperava, é maior na fala que no canto. Isso é coerente com os dados
acústicos e articulatórios que destrinçam as diferenças entre a pro-
dução da fala e do canto. A vogal cantada que mais parece ser afetada
no tocante a inteligibilidade é a vogal [e], percebida 111 como [i].

Algo semelhante acontece com a vogal [o]. Estas vogais são médias-
altas e, ao serem cantadas, oferecem um desafio para a articulação: não
se pode abaixar demais a mandíbula, caso contrário passam a ser
ouvidas como vogais médias-baixas, por exemplo, [E,ç]. A hipótese
explicativa para o fato de [e] ser ouvido como [i] é que a cantora evita
ao máximo a abertura exagerada da boca, mas acaba ocasionando o
contrário e alçando a vogal; ou seja o timbre passa a ser o de uma vogal
fechada (ou alta).
O caso de [o] não é tão exemplar quanto o de [i] e dificulta
uma hipótese explicativa esclarecedora, uma vez que foi percebido 33
vezes como [u] e 44 vezes como [ç]. Por um lado, pode-se dizer que a
vogal foi alçada, e por outro pode-se dizer que a manobra de abaixa-
mento da mandíbula foi implementada e os ouvintes identificaram [ç]
no lugar de [o]. Pode-se dizer que as vogais médias-altas “ficam inde-
cisas” no canto, ou seja, são produzidas num meio caminho entre as
médias-baixas [E,ç] e as altas [i,u].
De modo geral, 78% de acerto das vogais cantadas em uma freqüência
de fonação de 420 Hz, aproximadamente, é uma porcentagem alta,
indicando que as vogais cantadas têm boa inteligibilidade. Há ainda
que se considerar, em defesa de nosso argumento, que essas vogais
foram isoladas do contexto, que por sua vez é facilitador de inteligibi-
lidade. Caso levemos um experimento com vogais contextualizadas em
suas palavras cantadas, devemos elevar a porcentagem de acerto.

Discussão (quase) final


A questão da manobra articulatória típica do canto, o abaixamento da
mandíbula, quando relacionada aos fenômenos acústicos, tanto de pro-
dução como de percepção, faz convergir para a seguinte idéia: o canto,
ou fala cantada, é produzido a partir de negociações entre as restrições
lingüísticas do texto e as restrições musicais. Aquelas requerem
entendimento do texto cantado, e as últimas, afinação e volume do
sinal sonoro. A questão pode ainda ser refinada. As filmagens da face
nos permitiram registrar o que acontece com a mandíbula, mas os
movimentos da língua, ficam ainda a ser revelados, o que se pode ser
feito com técnicas baseadas em raio-X ou similares. Ao se revelar movi-
mento da língua no canto, comparado ao da fala, poder-se-ia confirmar
a hipótese explicativa de que o trato vocal configura-se de modo mais
uniforme no canto. Quanto à percepção das vogais, seria interessante
investigar dois diferentes grupos de ouvintes (um formado por cantores
e outro por não-cantores) para verificar se o primeiro grupo tem uma

taxa de acerto maior do que o segundo. Se isso se confirmar, é possível
postular que os ajustes articulatórios para manter a distintividade entre
as vogais cantadas são implementações sistemáticas e controladas por
quem canta, o que significa dizer que a inteligibilidade não é um
acaso, mas resultado de um elo construído entre produção/percepção,
a partir de capacidades lingüísticas e musicais.

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

Contornos melódicos do canto e da fala


em bebês de 12 a 24 meses
Esther Beyer
Cláudia Braga
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

Introdução

ste estudo teve início em setembro de 2005, com os alunos

E matriculados nas aulas do curso de extensão de Música para


Bebês da Profª. Drª. Esther Beyer na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - Instituto de Artes. Participaram 21 bebês com idades de
12 a 24 meses.
Autores como Mársico (1982), Gordon (2000), e Seeliger (2003) têm
escrito sobre o desenvolvimento musical. De uma forma bem mais
detalhada, Beyer (1994, 1996, 2004) e Barceló (2003) descrevem a
íntima relação entre fala e canto, relacionada ao desenvolvimento
musical.
A hipótese deste trabalho é que as diferentes formas de estímulo para
uso da voz, ou ainda a presença ou não de estímulos, favoreçam o seu
uso de forma expressiva, possibilitando vocalizações de melodias e a
aquisição da comunicação verbal. Não foram considerados dados
referentes às motivações dos pais, contexto cultural, entre outros.
No plano musical, inventar é para a criança confrontar-se com a
matéria sonora: manipulá-la, experimentá-la, agrupá-la, recombiná-la,
etc., sem se deixar subjugar por ela, mas procurar aos poucos dominá-
la (Mársico, 1982). É provável que, sendo facilitadas estas experiências
sonoras já nos primeiros anos de vida, isto resulte de um domínio das
suas possibilidades. O domínio das experiências sonoras, por sua vez,
pode auxiliar a comunicação de forma integral, o desenvolvimento da
fala e do canto. Esta aquisição favorece o sujeito no seu convívio social
através da comunicação verbal adequada (Ploog, 1992). O convívio
com música desde a tenra infância pode beneficiar o desenvolvimento
de uma forma integral, motor, intelectual e emocional.

Objetivos
– Analisar as diferentes vocalizações de bebês de 12 a 24 meses
– Verificar nestes momentos as aquisições no desenvolvimento do
canto e da fala

Metodologia
A coleta de dados foi feita de 16 de setembro de 2005 a 11 de novem-
bro de 2005, num total de 8 semanas. Todos os registros foram feitos
com fita cassete, em aparelho Aiwa – aparelho gravador TP – VS535.
Participaram da pesquisa todas as crianças das turmas C1 (idades de 12
a 17 meses no ato da matrícula) e D2 (idades de 17 a 24 meses no ato
da matrícula) do curso de extensão Música para Bebês da profª. Esther
Beyer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Todas as crianças
contavam com idades de 12 a 24 meses no início da pesquisa. Os re-
gistros sonoros foram realizados pelos pais ou cuidadores. Todos os
responsáveis pelos bebês que acompanhavam-nos nas aulas receberam
orientação oral e por escrito sobre os procedimentos para o registro
sonoro do bebê. Foram utilizados 4 gravadores, sendo dois por turma.
Cada responsável ficava com o kit de gravação por 7 dias. O kit de
gravação continha 1 CD identificado, com músicas utilizadas nas aulas
de música para bebês, com duração total de 15 minutos; 1 formulário
para preenchimento que também continha esclarecimentos sobre
como proceder com o registro sonoro; 1 gravador; 2 fitas K-7 identifi-
cadas com o dia em que deveriam ser utilizadas. Os responsáveis de-
veriam gravar durante 15 minutos diários as vocalizações do bebê. O
momento escolhido deveria ser o mesmo durante os 7 dias de registros
(por exemplo, hora do banho). O CD deveria ser colocado para tocar
durante os 15 minutos da gravação.
Após a coleta, o conteúdo das fitas foi passado para CDs.
Posteriormente, os dados de canto e fala foram selecionados, transcritos
e analisados. A análise sonora das gravações foi feita no programa Sony
Sound Forge 7.0. Para a relativização das alturas “cantadas/faladas” dos
bebês foi utilizado um teclado.

Coleta de dados
Foram transcritos todos os trechos de vocalizações dos bebês pesquisa-
dos. Os sons relatados aproximam-se ao som produzido pelos bebês e
não sugerem sustentação exata ou saltos exatos. As transcrições foram
feitas utilizando a afinação padrão de um teclado, com afinação tem-
perada cromática de 12 sons com lá 440 Hertz.

Análise e discussão dos dados
Questionários preenchidos Permanência com o gravador
Questionários
1ª semana (72,23 %)
preenchidos (85,71%)

Questionários não 2ª semana (22,22 %)


preenchidos (14,29%)
3ª semana (5,55 %)

Percentual de bebês por turma


turma C (50 %) Foram pesquisados 21 bebês. Ao
todo foram 18 questionários
turma D (50 %)
preenchidos (85,71%), 1 gravação
não feita (4,76%) e ainda 2
famílias que não levaram o
gravador para casa (9,53%). 9
crianças pertenciam à turma C1 e
9 crianças à turma D2. 4 famílias
ficaram com os gravadores durante 2 semanas e 1 família durante 3
semanas. Todos os demais ficaram durante os 7 dias estipulados. Todas
as vocalizações registradas foram transcritas.
Na primeira turma ainda é possível verificar uma construção de experi-
mentos e “exercícios” instintivos para a maturação do aparelho fona-
dor. Balbucios, grunhidos, guinchos que vão de graves a agudos, bus-
cam a sustentação do som, movimentos de lábios e língua buscando
reconhecer diferentes formações para a emissão de som, experimen-
tação de ressonadores, imitação de sons produzidos pelos cuidadores
(mãe e pai especialmente) e o início de uma distinção entre fala e
canto. Na segunda turma, que vai do 17º ao 24º mês, a entonação das
palavras e frases reflete o crescimento na linha melódica, que já teve o
início de seu desenvolvimento em alguma fase anterior. O vocabulário
aumenta gradativamente. As canções cantadas já são reconhecíveis e
seus repertórios vão se ampliando. As letras das canções são incom-
pletas, e/ou ritmos e linhas melódicas entoadas são inexatas.
Ao analisar os textos e desenhos escolhidos para descrever a primeira
turma, nota-se claramente um crescimento nas experimentações dos
bebês. Desta mesma forma há pontos de partida que se assemelham em
várias tomadas, com relação às alturas entoadas. As diversas manifes-

tações de produção de sons vão se somando, o que faz com que os
bebês não abandonem nenhum dos já manipulados, mas vão acres-
centando aos seus “repertórios” um número cada vez maior de possi-
bilidades sonoras. A tentativa de sustentar um mesmo som, por exem-
plo, quase permite a “visualização” da imaturidade do seu aparelho
fonador, pelo grande esforço que parece estar sendo empregado. Tanto
no sentido ascendente quanto descendente, a emissão de sons em
pequenos intervalos parece servir como trampolim para a experimen-
tação de intervalos maiores. Mesmo grandes intervalos descendentes
são facilmente imitados pelos bebês. Os bebês aventuram-se na experi-
mentação de novas consoantes. Aparece o início de uma diferenciação
entre canto e fala, com construções melódicas primárias e junção de
movimentos rítmicos com a melodia nos bebês mais velhos dentro
deste grupo C.
A partir dos 17 meses, os bebês já conseguem manter algum diálogo
com um interlocutor familiar. Alguns contornos vocálicos que eram
feitos nos primeiros meses registrados ainda aparecem bastante, como
brincadeiras com glissandos. A “produção” musical (improviso) já pode
ser identificada, o que não acontecia no primeiro corte analisado (12 a
17 meses). Brincam com as palavras, seus sons e significados. Parecem
dar-se conta de algumas transformações que são possíveis na lin-
guagem falada. Cantam estimulados ou por conta própria. Manipulam
as canções, improvisam sobre elas. Nas tomadas registradas é possível
perceber constância no pulso e ritmo de alguns bebês em algumas
canções. Conseguem cantar ao menos um pequeno conjunto de
palavras das canções que reconhecem. Quando estimuladas, cantam
mais partes de letra das canções do que quando sozinhas, especial-
mente os finais de palavras e frases. Mantêm brincadeiras com sons
graves e agudos.

Conclusão
De acordo com Beyer (1988), quando se compara a evolução dos
estágios na linguagem verbal com a linguagem musical, verifica-se um
atraso na aquisição desta segunda com relação à primeira, embora as
estruturas cognitivas necessárias já tenham sido formadas durante a
aquisição da linguagem verbal. O uso significativamente maior da lin-
guagem verbal em relação à musical pode ser apontado como expli-
cação para a existência desta decalagem. Considerando o estímulo
oferecido aos bebês da pesquisa, pode-se dizer que a probabilidade
para esta decalagem é um pouco menor. Ainda que as palavras e/ou

frases não estejam completas no processo da fala, a entonação utiliza-
da é bastante clara, com uso de interrogações e exclamações com um
bom domínio. Os esquemas adquiridos para o desenvolvimento da fala
e que ainda estão em formação nesta faixa etária final avaliada de 24
meses, assemelham-se aos do canto se pudermos comparar a emissão
das palavras ainda com “erros”, com a dificuldade dos bebês em man-
ter a linha melódica de uma canção, apesar do reconhecimento e emis-
são de parte do texto e do ritmo desta mesma canção.
Se considerarmos na linguagem falada e na musical, o uso dos quatro
parâmetros do som: duração, altura, intensidade e timbre, aproxi-
mamos a aquisição destas duas linguagens como meios de expressão.
O acompanhamento da evolução da linguagem em bebês possibilita a
visualização destes quatro parâmetros e evidencia a facilidade que eles
têm na reprodução rítmica se comparada à melódica. A própria lin-
guagem falada observada parece poder relacionar-se a isto.
Em Beyer (1988), pág. 89, lê-se que ”o simples ouvir não irá produzir
no sujeito aquisição da linguagem musical. Torna-se necessário que a
criança exerça sua ação sobre o som, produzindo música, para que
aprenda a codificar e decodificar mensagens musicais.” Considero,
desta mesma forma que a aquisição da linguagem falada é facilitada
porque a manipulamos e estamos expostos a ela durante longos perío-
dos inclusive já dentro do útero, especialmente se levarmos em conta
que nos humanos a maturidade do ouvido se dá a partir do sexto ou
sétimo mês de gestação. Por mais que haja estímulo sobre a linguagem
musical, ela jamais se equiparará à da linguagem falada. De qualquer
forma, é possível verificar aqui que os estímulos musicais podem
favorecer a aquisição da linguagem falada. Ao final dos 24 meses, com
relação ao desenvolvimento musical e da fala, os bebês emitiam
pequenas frases, identificavam canções através de melodias e/ou ritmo,
brincavam com a estrutura musical de forma rudimentar, cantavam
canções com alguma linha melódica, com ritmo bastante constante e
com letra incompleta e pareciam identificar graves e agudos na voz e
instrumentos. É necessário a continuação do registro sonoro destes
grupos pesquisados, para que haja a possibilidade de se fazer uma
comparação entre os dados coletados.

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maior detalhamento desta pesquisa: ebeyer@sogipa.esp.br e/ou


c3braga@terra.com.br


Música e Linguagem Verbal:


distanciamentos e aproximações
Silvia Cordeiro Nassif Schroeder
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

concepção da música como uma forma de linguagem,

A embora amplamente difundida no meio educacional (cf.,


por exemplo, Swanwick, 2003; Gaínza, 1997; Fonterrada,
1991; Penna, 1998, etc.), sempre teve opositores radicais em outras
áreas do conhecimento, sobretudo na filosofia. Sem a intenção de
fechar essa questão, gostaria, neste trabalho, de tecer algumas analo-
gias entre a linguagem verbal e a música, no intuito não apenas de
entender melhor as razões dessa polêmica, buscando subsídios para
um posicionamento fundamentado, mas sobretudo de investigar em
que medida essas analogias podem ajudar numa compreensão mais
profunda da própria música.
Antes de qualquer análise mais aprofundada, podemos dizer que a
música (e aqui me refiro especialmente à música ocidental) e a
linguagem verbal possuem semelhanças bastante óbvias: ambas traba-
lham com sons que se articulam temporalmente e possuem formas de
organização de tal modo similares que os próprios termos de análise
musical são emprestados da análise lingüística (frases, períodos,
pontuações, pergunta e resposta etc.). Partindo dessa constatação,
trabalharei, nos limites deste texto, algumas questões relativas à possi-
bilidade de existência de uma sintaxe musical análoga à sintaxe verbal
ou lingüística, procurando verificar quais as suas especificidades em
relação a esta. Considero esse o primeiro passo em direção a uma
aceitação efetiva da música como uma forma de linguagem.

Sintaxe musical x sintaxe lingüística


Quando falamos em sintaxe, temos implícita a idéia da existência de
regras combinatórias que permitem que, dentro de um sistema, peque-
nas unidades dêem origem a unidades maiores. Para que possamos
falar em sintaxe, portanto, dois pressupostos são necessários: a descon-
tinuidade, ou seja, a possibilidade de decomposição de um continuum
(no caso, sonoro) em unidades discretas básicas e a presença de algum
tipo de hierarquia entre essas unidades que lhes atribua funções ou
condições de aparecimento. Do ponto de vista da música, podemos

dizer que esses dois pressupostos estão presentes: toda música é
decomponível em unidades sonoras (não necessariamente “notas”, mas
“eventos” musicais) e em toda música as unidades se combinam de
acordo com determinadas regras, quer seus praticantes tenham ou não
consciência delas. Num primeiro momento, então, podemos falar na
existência de uma sintaxe musical análoga à sintaxe lingüística.
Ao aprofundarmos a comparação, entretanto, começamos a perceber
que não apenas os modos de combinação musicais e lingüísticos não
são exatamente os mesmos, como também não são as mesmas as ca-
racterísticas de suas unidades básicas. Isso desencoraja alguns autores
a reconhecer a existência efetiva de uma sintaxe musical (e artística,
por extensão). Entre os opositores a uma abordagem da arte de modo
geral como uma forma de linguagem que possui sintaxe própria,
podemos citar, por exemplo, a filósofa Susanne Langer (1989), que, ao
dividir as formas simbólicas em discursivas (que corresponde à
linguagem verbal) e apresentativas (onde encontramos a arte), coloca
como uma das diferenças fundamentais entre essas duas formas de
simbolismo a natureza de suas unidades, questionando, mesmo, a
possibilidade de se considerar “linguagem” qualquer representação
não verbal. Segundo Langer (1989), enquanto a linguagem (que para
ela é sinônimo de língua) possui um vocabulário (palavras com signifi-
cado fixo) e uma sintaxe, nos simbolismos não discursivos a própria
fragmentação em unidades básicas é questionada e, na possibilidade
disto ocorrer, essas unidades não apresentam uma identidade tal que
possam ser reconhecidas em outros contextos (ou seja, não existe aqui
a idéia de um vocabulário).
Nessa mesma linha de pensamento, M. Dufrenne (1998) nega a
existência de um “sistema” nas obras de arte:
Compreende-se, então, que, enquanto a língua se manifesta no con-
junto dos discursos e impõe a cada um qualquer coisa de comum pelo
qual eles constituem uma totalidade homogênea, o conjunto das obras
de determinada arte não apresenta caracteres onde se revelaria um
sistema. A arte é feita de criações singulares e a praxis criadora é
sempre anárquica (op. cit.: 112).
E questiona que a harmonia constitua efetivamente uma gramática da
música tonal e dê origem a uma “língua musical”:
Isso nos conduz à colocação de uma última questão: há, verdadeira-
mente, um campo sonoro preexistente à obra? Há um campo lingüís-
tico preexistente à fala: um em-si da língua que existe, como diz
Saussure, na massa falante, e que o lingüista estuda aquém da fala ou,

então, supondo uma fala anônima que não introduz nem singularidade
nem mudança (graças a isso ele pode privilegiar a sincronia). Mas não
há em-si do campo musical. A música não existe fora das obras musi-
cais, e o músico é um homem que se instrui junto das obras, como o
pintor, conforme lembra Malraux, junto dos quadros (Idem: 120).
Segundo a perspectiva de Dufrenne, só poderíamos considerar a idéia
de uma sintaxe na música, se tomarmos cada obra isoladamente, uma
vez que, para o autor “cada músico reinventa a música por sua própria
conta” (1998: 121).
Vejo nesses autores um problema bastante comum quando se tenta
comparar música e linguagem verbal. A língua é tomada, sob a ótica
saussureana, como um sistema fechado, abstrato, sujeito a regras fixas.
Já a música, por outro lado, é tomada em sua realização concreta, com
todas as singularidades (e “deformações” do sistema”) que aí podem ser
encontradas. Ora, também a língua, quando tomada em funcionamen-
to, está sujeita a todo o tipo de variações e idiossincrasias. A confusão
estabelece-se, então, porque tenta-se comparar níveis distintos na
língua (o nível abstrato do sistema) e na música (o nível individual da
realização concreta). Com efeito, não podemos abstrair da música sua
dimensão sonora, concreta, sem a qual ela efetivamente não existe.
Nesse sentido, para que possamos estabelecer analogias frutíferas, pre-
cisamos buscar também na língua sua dimensão concreta, analisá-la
em seu funcionamento. Não me refiro aqui ao nível saussureano da
“fala”, pois esta é tida por Saussure simplesmente como um ato indi-
vidual, algo “acessório e mais ou menos acidental” (s/d: 22) em relação
à língua, esta sim essencial para os estudos lingüísticos. Quando falo
em funcionamento, penso sobretudo no nível discursivo, instância da
linguagem sempre em movimento, onde as posições e as percepções
dos locutores não são fixas, mas vão se constituindo ao longo do
processo discursivo. Penso que se olharmos para a linguagem sob essa
ótica, as comparações com a música começarão a ser possíveis. De
nada adiantará compararmos, como muitas vezes tem ocorrido, um sis-
tema abstrato e inerte com algo vivo e pulsante. Só faremos encontrar
diferenças e constatar apressadamente a impossibilidade de aproxi-
mações entre esses dois universos simbólicos. Mas se, ao contrário,
considerarmos o sistema lingüístico sincrônico como uma “ficção”
(expressão bakhtiniana), que em nenhum momento está realmente em
equilíbrio, e que as formas lingüísticas (assim como as musicais) tam-
bém são sempre percebidas como signos mutáveis (Bakhtin, 2002: 15),
então poderemos efetuar paralelos frutíferos.

Um dos principais argumentos contrários a aproximações entre a
música e a linguagem verbal seria a ausência, na primeira, de unidades
significativas generalizantes. Benveniste (1989), por exemplo, tomando
a nota como unidade básica, tenta mostrar que a música não dispõe de
unidades dessa natureza. Entretanto a nota, se quisermos fazer um
paralelo estreito com a linguagem verbal, corresponderia ao fonema
(Schaeffer, 1993; Molino, 1975). É, portanto, um traço distintivo (de
altura e duração) e não uma unidade significativa. Cada nota, isolada,
não tem nenhum sentido, mas se trocarmos uma nota por outra,
mudamos completamente o sentido do trecho onde ela está inserida.
Por outro lado, se fizermos o recorte não na nota mas na célula musi-
cal, veremos que esta, até certo ponto independentemente do contexto
maior da obra completa, já apresenta várias significações dentro do sis-
tema tonal: um impulso rítmico, um campo harmônico delimitado,
uma direção melódica. Se essas significações (talvez melhor fosse
chamá-las “previsões significativas”) vão se manter ou não quando
inserirmos a célula num contexto maior é irrelevante. Também na lin-
guagem verbal não podemos falar em significados absolutos e
imutáveis, pois estes também estão vinculados ao contexto onde as
palavras estão inseridas (tanto no sentido interno do texto quanto em
relação a sua situação de produção). Na verdade, de acordo com
Bakhtin (2002), existem dois tipos de significado na língua: o tema, isto
é, um sentido específico, definido não apenas pelas formas lingüísticas,
mas por todo o contexto situacional, e a significação, ou seja, um sen-
tido convencional, abstrato, idêntico a cada vez que é repetido. Há
entretanto, uma diferença fundamental, é importante assinalar, entre as
unidades significativas musicais e verbais. Enquanto a palavra, por mais
sentidos (temas) que possa ter, guarda uma certa unicidade, ou seja,
mantém algo em comum em todas as significações possíveis (Bakhtin,
2002: 106), nas formas significativas musicais não há nada que garan-
ta uma unicidade em relação a todas as suas significações possíveis,
sendo bastante comum, aliás, a mesma unidade, no mesmo sistema,
adquirir sentidos completamente opostos, de acordo com o contexto. A
polissemia, nesse sentido, em música, não é apenas predominante, mas
o único modo de significância possível.
Outro argumento contrário a uma aproximação entre a arte (e a músi-
ca, por extensão) e a linguagem verbal seria o fato de que, enquanto a
língua se submeteria a regras sintáticas rigorosas, nas obras artísticas
haveria uma suposta liberdade sintática total. De acordo com Dufrenne
(1998), a “arte autêntica” gera sua própria língua, enquanto que só os
“artistas menores” obedecem a um código. Temos aí vários pontos a

considerar. Em primeiro lugar, já vimos que em se tratando da língua
em funcionamento, ou seja, de suas enunciações concretas, essa
submissão total a regras fixas é bastante relativa, pois como aconteci-
mento vivo, a língua, através de seus locutores, está em permanente
reestruturação. Por outro lado a música, mesmo a “autêntica” de que
fala Dufrenne (a qual, podemos inferir, se refere à música considerada
“legítima” segundo os padrões da cultura ocidental moderna), por mais
inovadora que seja, está sempre ligada de algum modo a um gênero
musical preexistente, nem que seja para negá-lo.
Para entender melhor essa questão, façamos novamente um paralelo
com a língua, tomando os conceitos bakhtinianos de enunciado e
gênero discursivo. De acordo com Bakhtin (2000), a utilização da
língua se dá em forma de enunciados concretos (orais ou escritos)
proferidos por sujeitos concretos em situações específicas. Cada
enunciado, independente do seu conteúdo e volume têm característi-
cas estruturais definidas e fronteiras bem delimitadas. Um enunciado
termina quando completa um sentido e provoca uma atitude responsi-
va por parte do interlocutor (que não precisa ser necessariamente uma
resposta fônica e nem imediata). Todo enunciado, desse modo, se liga
a um enunciado anterior (ao qual ele é de alguma forma uma resposta)
e a um posterior (que também de algum modo lhe estará respondendo).
Nenhum locutor, nesse sentido, é o primeiro “que rompe pela primeira
vez o eterno silêncio de um mundo mudo” (p. 291), mas sua fala
pressupõe não somente a existência da língua, como de enunciados
anteriores. “Cada enunciado é um elo na cadeia muito complexa de
outros enunciados” (p. 291). Também segundo esse autor, “qualquer
enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada
esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados” (p. 279, grifos do autor), aos quais ele denomina
gêneros do discurso. Isso significa que os falantes de determinada lín-
gua produzem enunciados não apenas segundo as regras sintáticas e
semânticas da língua, mas também segundo os seus “gêneros discur-
sivos”. Esses gêneros, tanto podem ser padronizados (cumprimentos,
formulação de documentos oficiais etc.) quanto mais livres e criativos.
Na verdade, para Bakhtin, a maior parte dos gêneros se presta ao que
ele chama de reestruturação criativa, o que não deve ser confundido
com a criação de um novo gênero. Ainda segundo esse autor, manifes-
tamos melhor nossa individualidade nos gêneros discursivos que mais
dominamos. É aí que podemos exercer nosso poder de “reestruturação
criativa” de modo mais original. Trazendo esses conceitos para o
universo da música, podemos dizer que toda obra musical também é

um elo numa cadeia de obras e, de algum modo, uma “resposta” ao
que veio antes. Um compositor pode compor não apenas porque ele
dispõe de um sistema musical, mas principalmente porque ele dispõe
de outras músicas que foram compostas anteriormente e com as quais
ele vai “dialogar”. Tomada isoladamente, também cada música é
individual, mas que sempre se liga a uma esfera musical coletiva
específica (a um gênero). A maior parte das criações musicais (e artísti-
cas, poderíamos estender) nada mais são do que reestruturações criati-
vas de gêneros existentes e não criações no sentido de “invenções” pro-
priamente ditas. A individualidade de um compositor geralmente se
desenvolve a partir do domínio de um gênero específico, o qual ele
tenta a todo o custo transcender. Não existe, considerando-se um
sistema musical determinado, algo como a possibilidade de uma
combinação completamente livre das unidades musicais, pois o com-
positor está preso não somente à sintaxe do sistema como também ao
gênero ao qual se filia (afirmativa ou negativamente). A história da
música ocidental erudita está repleta de exemplos que comprovam essa
teoria. Lembremos, por exemplo, que aquele que é até hoje considera-
do um dois maiores gênios musicais de todos os tempos, J. S. Bach,
praticamente uma unanimidade entre músicos dos mais variados
gêneros e estilos, tem seu valor creditado ao fato de ter levado às últi-
mas conseqüências os procedimentos composicionais e o sistema
musical já usados há bastante tempo, e não por ter “inventado” um
novo sistema, por exemplo. E não apenas Bach não foi um músico “de
invenção”, como sua música polifônica era considerada completa-
mente antiquada por seus contemporâneos (inclusive por seus filhos,
todos músicos), sendo que sua genialidade só foi “descoberta” muito
tempo depois de sua morte, já no início do período romântico
(Carpeaux, 2001). Esse caso ilustra o fato de que na música (assim
como na língua) o conceito de criação ou inovação, assim como os
valores atribuídos a eles são bastante relativos, de modo que não só os
“artistas menores” se submetem a regras sintáticas, mas também muitos
dos maiores porta-vozes da “arte autêntica”.
As colocações acima, é importante frisar, não pretendem de modo
algum excluir a possibilidade da existência da “invenção” musical, da
música original, que não busca um diálogo com o que já existe, mas
aspira a um monologismo puro. Voltando à analogia com a língua,
vemos que o próprio Bakhtin admite um tipo de linguagem – a
linguagem poética – que busca o seu isolamento, que tenta libertar o
discurso das marcas dialógicas, privando-lhe de intermediações, fazen-
do com que ele seja expressão direta do seu autor-criador (Tezza, 2003:

270) . Entre essa “pura poesia” e a “pura prosa” (a fala cotidiana, essen-
cialmente dialógica) existem, de acordo com Bakhtin, inúmeras
gradações em relação ao “modo como o autor-criador lida com a dia-
logicidade interna” (Tezza, 2003: 266). Nesse sentido, a diferença entre
o estilo poético e o estilo prosaico seria mais quantitativa (em relação
a essa dialogicidade), visto serem as formas lingüísticas (gramaticais) as
mesmas em ambos os casos. Na música temos uma situação bastante
semelhante. Entre a chamada “música de consumo” ou “música de
massa” – que trabalha quase que exclusivamente com clichês musicais
– até as vanguardas eruditas – que tentam não apenas criar novas sin-
taxes, mas “inventar” seu próprio som, usando fontes sonoras total-
mente inovadoras, por exemplo – temos uma série de gradações em
relação aos modos de apropriação de discursos musicais alheios. Não
há duvida, contudo, que a música mais dialógica (aquela que de algum
modo dialoga com o que já existe, se apropriando de sentidos musicais
constituídos) é absolutamente predominante no universo musical, qual-
quer que seja o gênero considerado (popular, erudito, folclórico, jaz-
zístico etc.). Também não há dúvida de que mesmo a vanguarda mais
original não pode ser tomada como um “monologismo puro”, pois suas
inovações, por mais radicais, o são sempre em relação a o que já existe.

Considerações finais
Em suma, face ao que foi visto, podemos retornar à questão inicial e
afirmar sem medo a existência de uma sintaxe musical, a presença nas
músicas de um sistema no qual unidades menores (células) vão se
combinando, formando unidades maiores (frases, períodos etc.) e
constituindo a obra como um todo. Como já foi dito, essas unidades
têm suas próprias características, distintas das unidades lingüísticas, e
se organizam segundo as normas das “gramáticas musicais” (tonal,
atonal, modal, serial etc.) bem como dos diversos gêneros existentes na
música, de tal modo que pode-se falar em “línguas musicais”, que nada
mais são do que abstrações inferidas a partir de um conjunto de obras.
Aproximamo-nos, assim, de uma concepção efetiva da música como
linguagem, investigação esta que se completaria com uma análise
também da dimensão semântico-musical, análise essa que deixo para
um outro momento.

Referências bibliográficas
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BAKHTIN, M. (2002). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
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Média ao século XX. Rio de Janeiro: Ediouro.
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SCHAEFFER, P. (1993). Tratado dos objetos musicais. Brasília: Edunb.
SWANWICK, K. (2003). Ensinando música musicalmente. São Paulo: Moderna.
TEZZA, C. (2003). Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio
de Janeiro: Rocco.


Parabolicamará: a construção de um objeto complexo


Wanderson Bersani
Faculdade de Música Carlos Gomes – FMCG
Peter Dietrich
Universidade de São Paulo – USP

”P arabolicamará” foi gravada no segundo semestre de 1991,


época em que Gil cumpria seu mandato de vereador em
Salvador. Podemos observar ainda hoje a contemporanei-
dade desta obra, uma vez que a globalização ainda é o tema que toma
conta do debate no início do século XXI.A integração cultural e
comercial e a interligação quase instantânea entre os mais distantes
pólos do planeta caminham lado a lado com a rotina de milhares de
comunidades rudimentares espalhadas pelo globo, totalmente
excluídas do avanço tecnológico.

Fundamentação teórica
Influenciado sobretudo pelas pesquisas de Saussure, Propp e Lévi-
Strauss, Greimas lança as bases para uma teoria que considera a ger-
ação do sentido em um plano mais profundo, anterior à manifestação
– seja ela verbal, visual ou musical. Este procedimento abriu as portas
para pesquisadores que, posteriormente, desenvolveram a teoria em
direção a semióticas específicas. Para a análise desta canção, seguire-
mos o modelo geral proposto por Luiz Tatit, conforme apresentado nas
obras “Musicando a semiótica” e “O cancionista: composição de
canções no Brasil”.

Estrutura verbal
Como ponto de partida para a análise do texto verbal da canção,
podemos rapidamente destacar certos elementos semânticos: “de
saveiro”, “de jangada”, “tempo que levava Rosa pra aprumar o balaio”,
“tempo de um raio” – elementos estes associados ao conceito de
natureza – e “de avião o tempo de uma saudade”, “onda luminosa” –
elementos associados à cultura.
O modelo semiótico prevê um nível de organização de sentido articu-
lado por uma categoria fundamental – no caso, natureza versus cultura.

Os termos desta categoria são determinados como positivos ou eufóri-
cos, e negativos ou disfóricos, conforme a relação do ser vivo que
percebe com os conteúdos percebidos. Porém, em “Parabolicamará”
parece ter havido uma suspensão da determinação fórica: euforia e dis-
foria não aparecem alinhadas nem com natureza nem com cultura.
Percebe-se também, como em “pela onda luminosa (fibra ótica: cultura)
leva o tempo de um raio (natureza), o mesmo tempo que Rosa levava
pra aprumar o balaio”, indicativos de que o autor tenha trabalhado todo
o texto sobre um termo complexo. Ou seja, ao invés de polarizar a ca-
tegoria natureza versus cultura, valorizando positivamente um dos ter-
mos, o autor investe na união entre os opostos. Esta união se faz ple-
namente representada pela palavra “Parabolicamará”: vocábulo criado
com a palavra “parabólica” e o vocativo “camará” (usado comumente
nas rodas de capoeira), realizando perfeitamente o sincretismo entre
cultura e natureza.
Não há uma percepção de um percurso entre os termos, não havendo
passagem do estado de natureza ao estado de cultura ou vice-versa.
Não é possível perceber também a construção clara, num processo
narrativo, dos estágios de manipulação, competência, performance e
sanção (previstos no modelo geral de análise), tornando-se inviável a
interpretação do texto dentro de uma narrativa linear. Podemos afirmar
que esta é uma estratégia narrativa que opta por não hierarquizar valo-
res. Se nas estruturas fundamentais não percebemos uma polarização,
nas estruturas narrativas não poderemos ver um sujeito em busca
exclusivamente de valores de natureza ou de cultura.
Acima das estruturas fundamentais e narrativas, a semiótica prevê um
terceiro patamar de significação, capaz de dar conta de elementos mais
concretos e complexos que os demais. Neste nível, denominado “nível
discursivo”, podemos perceber as relações entre enunciação e enun-
ciado, temas e figuras.
“Parabolicamará” instaura um discurso em 3ª pessoa, recurso utilizado
para a criação da ilusão de objetividade. Com esse recurso, o enunci-
ador finge um distanciamento da enunciação, que passa a ser neutra-
lizada e assume o papel de fazer nada mais do que comunicar os
“fatos”. É a chamada “desembreagem enunciva”, onde a utilização de
um espaço do “lá” (ao invés de “aqui”) acaba por determinar, ainda que
secundariamente, mais um traço de aspectualização que contribui para
a criação do efeito de realidade e de objetividade.
Antes de desenvolver a análise sobre o tempo, temos que estabelecer a

diferença entre tempo como recurso da linguagem de estabelecer
relações cronológicas entre acontecimentos (articulando antes, durante
e depois), e o tempo como um tema do discurso, ou seja, reflexões
sobre o assunto “tempo”. “Parabolicamará” realiza uma interessante
operação entre essas duas acepções.
Na expressão “Antes longe era distante, perto só quando dava”; “De
jangada leva uma eternidade, de saveiro leva uma encarnação, pela
onda luminosa, leva o tempo de um raio”; “De avião o tempo de uma
saudade”, o autor alude claramente à questão das distâncias sendo
encurtadas com a chegada da tecnologia. Como observador, o sujeito
da enunciação simplesmente relata os acontecimentos, a visão do
mundo “antes” do advento tecnológico e do mundo “agora”. Mais uma
vez, o autor opta por não polarizar a oposição: embora reconheça as
transformações, ele nem exalta nem critica o avanço tecnológico. Mais
que isso, ele ressalta a simultaneidade entre esses mundos, apoiado na
existência concomitante de mundos rurais e urbanos, o que aponta
imediatamente para uma concomitância entre o “antes” e o “agora”.
Embora reconheça a competência dos elementos tecnológicos em
encurtar o tempo e espaço (avião e onda luminosa), ele também vê a
mesma competência nos elementos naturais (raio e rosa).
Uma outra abordagem da categoria temporal pode ser feita levando em
conta o aspecto de duratividade e pontualidade. O autor prefere não
relacionar diretamente o aspecto pontual e o durativo com os termos da
categoria fundamental natureza versus cultura. O tempo da natureza
tanto é durativo (jangada = eternidade) quanto pontual (raio = balaio).
O mesmo acontece com o tempo da cultura, que é durativo (avião =
tempo da saudade) e pontual (onda luminosa = tempo do raio).
O discurso se organiza semanticamente com a reiteração de termos
correlacionados. Este fenômeno recebe o nome de “isotopia”. É a par-
tir das isotopias, ou seja, das recorrências, que podemos perceber os
temas tratados pelo discurso. Em “parabolicamará” podemos ressaltar
as seguintes isotopias: isotopia rural: camará (gíria de roda de
capoeira), berimbau, balaio, cabaça, jangada, saveiro; isotopia urbana:
parabólica, avião, onda luminosa; isotopia do tempo: tempo de um
raio, tempo nunca passa, tempo não tem rédea. Estas isotopias se
alinham no tema do avanço tecnológico, da transformação, em
passagens que trabalham a oposição entre antes e depois. Mas elas
também constroem o tema da imutabilidade, quando realinhadas sob o
aspecto da concomitância. A falta de uma oposição semântica
claramente associada com valores eufóricos e disfóricos resulta numa

colocação sobre a questão tempo como uma questão problematizada,
não como um tema estabelecido e resolvido.
Os percursos temáticos de “Parabolicamará” não são totalmente
recobertos por percursos figurativos (figuração esparsa), uma vez que
não chegam a constituir percursos figurativos completos. A coerência
semântica do discurso é garantida pela recorrência temática.Dessa
forma o texto em questão se aproxima muito ao texto científico e filosó-
fico, tendo como contribuinte o tempo verbal presente numa “verdade
absoluta”, enunciva – é um tempo presente: “isso é assim”.
Um dos princípios que regem a chamada Semiótica Tensiva (Claude
Zilberberg em seu ensaio “Essai sur les modalités tensives”, 1981) é a
questão da aceleração e desaceleração. Aplicando esta teoria em
“Parabolicamará”, destacamos a “evolução tecnológica” (cultura) apre-
sentada como aceleração. Esta evolução encurta tempo e encurta
espaço, e está associada ao aumento de velocidade: “de avião, o tempo
de uma saudade” ou “trás dos montes, den de casa (antena parabóli-
ca)”. No entanto, estes valores de aceleração também estão presentes
na natureza: “tempo de um raio” ou “tempo que levava Rosa pra apru-
mar o balaio. Já ”saveiro” e “jangada” estão alinhados à natureza e são
relacionados também com desaceleração.

Estrutura musical
A primeira parte das estrofes 1, 2,4, 5 e 7 será chamada de A. Todos os
trechos “Ê, volta do mundo…” ficam aqui representados por B. A letra
C representará os parágrafos que se iniciam em “de jangada leva uma
eternidade”.
Podemos verificar a recorrência de uma figura melódica em A, repre-
sentando uma forte tematização, que é corroborada pelo gênero da
Capoeira, com sua estaticidade harmônica e repetição dual de notas no
instrumento berimbau – repetição esta seguida pelos outros instrumen-
tos, como a guitarra, o contrabaixo elétrico e a marcação linear da per-
cussão. Esta figura melódica recorrente, que se inicia com um grande
salto ascendente, se degrada em pequenos saltos descendentes e se
finaliza numa alternância de duas notas, sendo que o último salto é
descendente.Estes tonemas descendentes auxiliam para com o aspecto
afirmativo de A, a exposição “do que é”, do “assim que as coisas são”.
Outros indícios da tematização de A são o efeito de segmentação cria-
do pela recorrência de ataques na forma de consoantes e a diminuição
do prolongamento das vogais terminativas.Este efeito repetitivo acaba

por gerar desdobramentos secundários, como uma maior percepção do
ritmo.
Existe uma variação na última frase de A, onde o tonema agora se apre-
senta no sentido ascendente, dando um caráter tensivo e interrogativo
à frase, tendo como resposta a estrutura B, com seus tonemas descen-
dentes afirmando novamente o “é assim do mundo”.Percebe-se em B
um amplo alongamento das vogais: “ê volta do mundo camará...”, fator
este que atenua a recorrência dos ataques (ainda presentes em “volta
do mundo camará...”) e acaba por diluir a percepção da tematização
desta melodia. Porém, a maior ruptura se dá em C, onde o alongamen-
to das vogais diminui a percepção do ritmo. Esta diluição do ritmo é
gerada tanto pela abertura melódica da voz como pelos timbres dos
instrumentos: o prato da bateria passa a ser atacado na cúpula, geran-
do um som agudo e contínuo; o teclado conduz acordes numa região
mais aguda e com aberturas maiores entre as notas de seus acordes; e
a flauta executa notas longas, que se encurtam ao final das frases
trazendo dicotomias entre continuidade e descontinuidade. A passiona-
lização de C gera um processo de desaceleração.
A última exposição de A apresenta o maior salto ascendente de toda a
canção, gerando uma expansão da tessitura para 11 semitons e levan-
do o último B para uma região mais aguda, que se repete até o final da
canção. Este final possui uma grande sobreposição de instrumentos e
timbres, mesclando sons “orgânicos” a sons digitais e vozes de “sam-
pler”. Estes instrumentos aos poucos vão saindo de cena, gerando um
processo de decantação, onde somente restam o berimbau com seu
caxixi e o timbre digital dos teclados. Trata-se aqui de um reflexo, agora
no arranjo, da complexificação, entendida como uma união de termos
opostos. Timbres “artesanais” (berimbau, caxixi) são mesclados com
timbres processados (guitarra distorcida, samplers). A união entre
natureza e cultura materializa-se no arranjo.
Embora neste trabalho não nos aprofundamos no estudo da harmonia,
pode-se referir ao uso do estilo Modal na criação harmônica de A e B,
contrastados com uma construção harmônica Tonal Maior no trecho C,
colaborando fortemente com sua abertura e passionalização.

Conclusão
Percebemos tanto no plano verbal quanto no plano musical um con-
stante investimento sobre o termo complexo das diversas oposições
semânticas apresentadas (natureza versus cultura, aceleração versus

desaceleração, durativo versus pontual, antes versus hoje, timbres “na-
turais” versus timbres artificiais). A suspensão da polarização no plano
verbal foi amplamente confirmada no plano musical. A tematização
(aceleração) e a passionalização (desaceleração) aparecem claramente
na melodia em trechos em que o texto verbal enfatiza tanto elementos
de natureza como de cultura. A junção de opostos não se restringe ao
plano verbal, mas atinge todas as estruturas da canção. No plano musi-
cal temos a apresentação concomitante do berimbau e da guitarra, da
percussão e dos teclados, da voz humana e da voz digitalizada.
A recorrência de um mesmo procedimento em diversas partes da letra
e da música confere a “Parabolicamará” um extremo grau de coesão, o
que contribui não só para sua inteligibilidade como também para sua
eficácia. Resultado de uma minuciosa estratégia discursiva, tanto verbal
como musical, ela supera a dicotomia entre avanço tecnológico e
preservação de costumes com um amplo processo de complexificação.

Referências bibliográficas
BARROS, D. L. P. (2002). Teoria do discurso. São Paulo: 3ª ed. Editora
Humanitas
FIORIN , J. L. (1999). As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,
espaço e tempo. São Paulo: 2ª ed., Editora Ática.
RENNÓ, C. (1996). Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras.
TATIT, L.A.M. (1998). Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo:
Annablume.
ZILBERBERG, C. (1981). Essai sur les modalités tensives. Amsterdã:
Benjamins.


Conceito de ritmo em música e poema


Judson Gonçalves de Lima
Universidade Federal do Paraná – UFPR

osso objetivo neste artigo é discutir um pouco a relação

N existente entre ritmo em música e poesia. Essa preocu-


pação nasce em função de um trabalho de pós-graduação
no qual pretendemos estudar o ritmo e a melodia no
poema lido e no poema musicado. Em função desse estudo precisamos
delimitar as fronteiras do que é chamado de ritmo e melodia em uma e
na outra forma de produção. Queremos chegar à análise do que ocorre
com esses aspectos textuais quando eles são manifestados pelo canto e
pela fala (As considerações aqui tecidas são, portanto, referentes à
canção, e os exemplos pensados na canção brasileira).
Quando tentamos chegar a um consenso em relação a esses conceitos
não encontramos muitos problemas em relação à melodia, aceita como
“o jogo de alturas entre as notas” , na definição de Bosi (2000), mas
extremamente ligada ao ritmo. O Dicionário Grove, verbete “Melodia”,
sendo menos simplista que a definição anterior, diz que melodia é
“uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determinado
padrão rítmico, para formar uma unidade identificável” (O grifo é nosso
e mais à frente ser-nos-á útil).
Não surpreende que na definição de alguém dedicado à literatura,
como é o caso da definição de Alfredo Bosi, não seja patente a pre-
ocupação em definir a melodia como “jogo de alturas entre as notas
dispostas com determinado rítmico”. O ritmo na melodia da palavra é
o próprio ritmo da palavra, e ele necessariamente existe. Então, por
mais que o ritmo da palavra “medida” possa ser diferente na pronuncia
de uma pessoa para outra, em uma situação como “Essa cova em que
estás/ Com palmos medida” é bem provável que o ritmo da palavra
“medida” seja muito parecido numa e noutra leitura. Na canção, no
entanto, a mesma palavra pode aparecer em canções diferentes com
curvas melódico/rítmica muito distintas. Essa grande diferença não é
possível na fala porque a tessitura utilizada na linguagem cotidiana,
bem como o tempo de sustentação de determinada sílaba/nota, é muito
pequena se comparada à música. Na música pode se usar algumas
oitavas para a construção melódica e tempo indeterminado para
sustentação da nota.

Da mesma forma, quando a definição do dicionário diz que a melodia
é “uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determina-
do padrão rítmico”, não carece dizer que elas são executadas em
alturas que podem ser diferentes ou não, mas não ter altura é impos-
sível. Mais importante destacar, no entanto, o “jogo de alturas” entre as
notas na poesia, porque a fala se utiliza de uma tessitura tão pequena
em relação à música, que existe o risco de desdenharem a melodia do
verso, o que seria imperdoável.
A grande diferença melódica entre poesia e música é justamente essa.
A melodia é a mesma coisa em uma e em outra, mas a utilização se dá
de forma diferente. Na nossa música ocidental não há, em moldes
escalares, intervalos melódicos menores que um semi-tom1, já na fala 1 Há os
ocorrem intervalos mínimos o tempo todo, intervalos menores que um “bends” que
são notas
semi-tom variando por um ou dois tons dependendo da situação não exis-
semântica – alguém exprimindo surpresa, por exemplo, deve falar tentes na
“Nossa!” com uma curva rítmico/melódica mais acentuada do que ao escala tem-
perada pro-
expressar numa oração “Nossa Senhora Mãe da Misericórdia”. duzidas pelo
estiramento
Na questão rítmica é que residem alguns problemas. O conceito é das cordas.
tumultuado dentro das próprias áreas de literatura e música.
Na literatura, há séculos, luta-se contra a redução do ritmo ao metro, o
que na música poderia ser semelhante a reduzir o ritmo à fórmula de
compasso. O que estamos inclinados a acreditar e tentaremos defender
aqui, é que ritmo tanto em música quanto em poesia são a mesma
coisa, assim como a melodia.
A despeito do metro, que se constrói sobre o número de sílabas e
alguns acentos e cesuras pré-definidos, o ritmo no poema se constrói
sobre cada palavra, e cada ausência de palavra. E se materializa na
leitura: se um poema é diferente do outro, temos ritmos diferentes
mesmo que ambos tenham a mesma forma.
Do prisma rítmico, não há dois poemas iguais, ainda que moldados
pela mesma fôrma: dois sonetos em decassílabos rimados segundo o
esquema abab abab ced fef, por exemplo, assemelham-se na forma ou 2 Além de
na estrutura de superfície, mas não no ritmo (...) Mesmo que se tratasse Massaud e
de duas ou mais versões de um poema, o quadro não se alteraria: para Bosi há
vários outros
fins do ritmo, cada versão corresponderia, aproximadamente, a um autores que
novo poema. (Moisés, 1997: 100) destacam
essa diferen-
Ao passo que o ritmo é dado pela intensidade, duração, timbre, ciação. Por
cesuras, pausas e rimas, o metro se refere à acentuação obrigatória2, exemplo,
cadência – que faz parte do que Massaud está chamando de “fôrma” Campos
(1960).

na citação acima. “O domínio do ritmo não é o da contagem. Liga-se
não à escansão artificial mas à pronúncia real” (Tomachevski apud
Medeiros, 2001: 135). O ritmo do poema é o ritmo da fala. Se uma
leitura é diferente de outra, o ritmo se refaz.
Os teóricos dizem que o mesmo poema lido duas vezes terão dois
ritmos diferentes. Porque em cada leitura acentua-se diferentemente,
realiza uma determinada duração em determinada sílaba que é
diferente da leitura anterior, nunca conseguindo repetir exatamente o
ritmo do poema. A princípio não há nenhum problema nessa variação
“inevitável”. Diz Jean Cohen:
“Os próprios foneticistas não estão de acordo quanto à maneira corre-
ta de dizer um verso. De onde vem tal desacordo? A resposta é fácil.
Nunca os poetas se preocuparam em anotar na “partitura” qualquer
indicação. No tocante ao ritmo, sobretudo, teria sido fácil indicar com
um signo o lugar dos acentos. Os poetas nunca o fizeram.” (Cohen,
1974: 49).
Edgar Allan Poe poderia quase concordar com essa afirmativa. Apenas
a ressalva de que em 100 leitores um faria “a” leitura rítmica correta de
um poema. (Poe, 2004)
Uma questão: será que uma marcação de acentos orientaria correta-
mente a leitura? As palavras já possuem acentos e, num verso, identi-
ficá-los (mesmo não coincidam com todos os acentos de palavras) não
é a tarefa mais difícil. E ainda assim, mesmo sabendo onde ficam os
acentos, as leituras podem ser diferentes.
O Dicionário Grove de Música, verbete “Ritmo”, diz que o ritmo na
música é o “grupamento de sons musicais, principalmente por meio de
duração e ênfase”. Essa definição não parece apresentar problemas,
mas depois o verbete segue dizendo do tempo: “[...] Na música
ocidental, o tempo é geralmente organizado para estabelecer uma
pulsação regular, e pela subdivisão dessa pulsação em grupos
regulares” . A questão é que ritmo tem determinada liberdade dentro do
tempo; ele se constrói dentro do tempo mas não o é, e nesse ponto
algumas definições se perdem, como se perdem os que confundem
metro e ritmo no verso. Por mais que a definição em sua primeira parte
alerte sobre a “ênfase”, não lhe dedica a atenção necessária. Um
mesmo agrupamento de sons pode ter ritmo diferente de acordo com a
acentuação que as notas recebam. É possível tocar uma mesma música
variando o seu estilo – não é incomum no Brasil uma mesma canção
ser gravada em ritmo de samba e depois em forró, por exemplo;
ademais, talvez nenhum exemplo seja melhor que o de João Gilberto

que rearranjou para a bossa nova, sambas e sambas-canção, e às vezes
respeitando as mesmas figuras rítmicas tem-se ritmos diferentes.
O ritmo na música corresponderá ao modo como as notas são execu-
tadas: duração, intensidade, se em tempo forte, médio ou fraco, no
contratempo, se é uma síncope, se é apojatura. Tudo isso vai definir o
ritmo musical. Se levarmos a discussão à cabo, chegaremos à con-
clusão de que o ritmo na fala se dá da mesma forma. Assim, mesmo que
no poema o ritmo se faça sobre a palavra e na música sobre as notas,
seus elementos são os mesmos. E assim como o uso da melodia se faz
diferente em poesia e música ocorre o mesma com o ritmo.
Para usar uma palavra que chame a atenção, estamos crendo que o uso
de ritmo e melodia em música é “exagerado” em relação à poesia. Em
melhores palavras, podemos dizer que a utilização desses elementos se
dá em maior escala na música: maior tessitura melódica e maiores pro-
porções rítmicas.
2 O verso
Mas a utilização deve ser mais zelada também na música, já que esta, pode explo-
mais do que a poesia – embora isto seja necessário também no verso –, rar outros
depende da recorrência e da repetição “para formar uma unidade iden- aspectos
com mais
tificável” – como diz o Grove. Por isso criar um sistema de notação proficiência
capaz de indicar duração, intensidade e altura das notas a serem exe- que a músi-
cutadas. Mas não é verdade dizer que essa notação não ocorre no ca; e tam-
bém, não
verso, porque a palavra é um sistema de notação de duração, intensi- podemos
dade e altura. É bem verdade que é um esquema mais fácil de burlar reduzir o
do que a notação musical, mas ele existe e junto com a situação verso à músi-
ca, como
semântica, ajudado pela acentuação e pontuação, indica com relativa não é possí-
precisão esses quesitos. Não é comum pronunciar a palavra “medida” vel o con-
acentuando-se a primeira ou a última sílaba, a menos que o leitor não trário (ter
ritmo e
compartilhe de conhecimentos de língua portuguesa. Ao ler “medida”, melodia não
é bem provável que a sílaba “di” tenha maior duração bem como maior é tudo e nem
altura melódica. é uma exclu-
sividade
Concluindo, acreditamos que ritmo e melodia tenham um conceito musical, até
porque
único, ao menos no campo da música e da poesia, o que não é sufi- ambos
ciente, no entanto, para concordar com E. A. Poe quando ele diz que o nasceram a
verso “não pode ser melhor designado que como uma Música inferior mesma
coisa.
ou menos capaz”2. Lembrando
Segundo Luiz Tatit, o canto traz consigo, um determinado índice de Rousseau,
“outrora,
oralidade, o que chama de “lastro entoativo”. Ou seja, há presença do falar e cantar
ritmo e da melodia da fala na linha rítmico/melódica da canção: eram a
“alguém cantando é sempre alguém dizendo”. (Tatit, 1995: 20) mesma
coisa”).

Referências bibliográficas
BOSI, Alfredo (2000). O ser e o tempo da poesia, 6ª ed. São Paulo: Cia das
Letras.
CAMPOS, Geir (1960). Dicionário de arte poética. Rio de Janeiro: Conquista.
COHEN, Jean (1974). Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Ed.
Cultrix/EdUSP.
Dicionário Grove de Música (1994). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
MATOS, C., TRAVASSOS, E., MEDEIROS, F.T. (org.) (2001). Ao encontro da palavra
cantada. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras.
MEDEIROS, F. T. (2001) Pipoca moderna: Uma lição – Estudando canções e
devolvendo a voz ao poema. In MATOS, C.N., TRAVASSOS, E., MEDEIROS, F.T.
(org.). Ao encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras.
MOISÉS, Massaud (1997). A criação poética. São Paulo: Edições
Melhoramentos/ EdUSP.
POE, Edgar A. (2004) Os fundamentos racionais dos versos. In Poética (textos
teóricos). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ROUSSEAU, Jean-Jacques (1973). Ensaio sobre a origem das línguas. Coleção
Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
TATIT, Luiz (1995). O cancionista: composição de canções no Brasil. São
Paulo: EdUSP.


Preciso me encontrar: o intérprete como produtor de sentido


Andréa Picon
Faculdade de Música Carlos Gomes – FMCG
Peter Dietrich
Universidade de São Paulo – USP

ualquer canção é um recorte das inúmeras possibilidades que a

Q língua e o sistema musical oferecem. Compor significa


selecionar valores e direções, resultado final de um complexo
processo de triagem. No entanto, nenhuma composição – e
isso é especialmente válido na música popular – é capaz de definir
todos os parâmetros envolvidos na produção de uma peça. Mesmo
depois de “acabada”, qualquer composição deixa inúmeros elementos
potencialmente abertos. É exatamente neste campo que arranjadores,
instrumentistas e intérpretes podem atuar, e um novo processo de esco-
lhas e seleções tem início. Este trabalho realiza a análise de três inter-
pretações da canção “Preciso me encontrar”, de Antônio Candeia
Filho. Escolhemos as versões de Cartola (1976), Marisa Monte (1989) e
Ney Matogrosso (2003). Além das interpretações vocais individuais,
levaremos em conta também a atuação do coro que finaliza a versão
de Cartola.

Fundamentação teórica
Luiz Tatit descreve dois tipos de investimentos dentro do sistema da
semiótica da canção. O primeiro, resultado de um processo geral de
aceleração, tem como foco principal o campo das durações. A reação
natural à rápida repetição do pulso em um andamento mais acelerado
é o surgimento de motivos rítmico-melódicos repetidos. A recorrência
destes motivos ativa a memória, reduzindo o fluxo de informações, o
que estabiliza o pulso rápido, evitando a sua dissolução. Esse processo
recebe o nome de tematização. O segundo investimento é regido pela
desaceleração, e tem como foco principal o campo das alturas. O pulso
desacelerado tem como principal conseqüência o aumento da duração
das notas, valorizando o contorno do perfil melódico e ampliando a
tessitura. Esse é um terreno propício para a proliferação de grandes
saltos intervalares e o prolongamento das vogais – fenômeno que
recebe o nome de passionalização.

O pesquisador prevê também a possibilidade de infiltração de elemen-
tos desestabilizadores, que se opõem ao investimento na estruturação
musical. Esse processo evidencia a fala que está por trás da voz que
canta, ou seja, promove um retorno à instabilidade do discurso oral:
trata-se da figurativização. Evidentemente, esses procedimentos não
são mutuamente exclusivos. Eles podem aparecer combinados em
proporções diversas. Uma canção pode escolher a tematização como
projeto entoativo principal e apresentar passionalização residual. Ou
então pode escolher um procedimento principal para a primeira parte
e outro para a segunda. A tematização e a passionalização podem ser
entendidos como projetos entoativos de concentração e extensão,
respectivamente. No primeiro caso, surgem os mecanismos de
involução (tematização e refrão) e evolução (desdobramento e segunda
parte). No segundo, os movimentos conjuntos (graus imediatos e
gradação) e disjuntos (salto intervalar e transposição). Além de aplicar-
se diretamente à análise das canções, a teoria se aplica também a
qualquer melodia incidente fora do contexto canção.

Método
Para fazer a transcrição da melodia, utilizaremos o diagrama proposto
por Luiz Tatit, onde cada linha corresponde a um deslocamento de
meio tom. Desta maneira poderemos imediatamente perceber o perfil
melódico, assim como a tessitura da canção (o espaço entre a linha
mais grave e a mais aguda) e a região em que se encontra cada trecho.
Após a transcrição da melodia, faremos uma análise dos aspectos
invariantes das três versões, seguindo a orientação semiótica. Uma vez
isolados os elementos fixos, poderemos comparar as diferentes atua-
ções de cada interpretação e verificar quais são os efeitos de sentido
decorrentes.

Resultados
A - Figura 1

A’ - Figura 2

B - Figura 3

B - Figura 4

Podemos notar a recorrência da linha melódica por toda a


canção. Observamos nas duas primeiras frases
(Figuras 1 e 2) uma alternância entre três notas e o mesmo desenho
melódico ascendente e descendente entre eles. É importante ressaltar
que todas as frases desta melodia terminam com inflexões descen-
dentes. No modelo de Tatit, a finalização da frase – o tonema – tem
uma importância especial, já que eles se reportam diretamente ao
caráter afirmativo ou interrogativo da frase. A presença exclusiva de
tonemas descendentes confere à melodia de “Preciso me encontrar”
um caráter fortemente asseverativo. Esse procedimento transmite à letra
um forte teor de verdade, de certeza absoluta. O efeito de sentido
resultante é a instauração de um sujeito que não tem dúvidas sobre o
aquilo que diz. Este é um fato inscrito na melodia, que independe da
interpretação.
Outro fator importante, observável na parte A, é o insistente repouso na

nota Ré, que além de ser a tônica da canção é também sua nota mais
grave. O pequeno motivo de três notas está “atrelado” ao registro mais
grave, como se ele não tivesse força suficiente para “descolar”. Atuando
diretamente na percepção do que é dito pela letra, esta configuração
promove um efeito de sentido de imutabilidade e de impotência, como
se o sujeito também não tivesse forças suficientes para realizar
transformações.
Esta situação se modifica parcialmente na parte B. Apesar de manter o
mesmo perfil melódico, sempre com tonemas descendentes, ela está
em uma região mais aguda, até atingir o auge na frase “eu quero
nascer”. Após esse grande esforço de tensionamento, a frase decai até
a nota mais grave, como se toda a energia disponível já tivesse sido
consumida pelo esforço anterior.

II - Interpretação
A primeira escolha que o intérprete faz (incluindo aqui também o papel
do arranjador) é a do andamento da canção. Observando as definições
de tematização e passionalização, podemos ver que a velocidade do
pulso é um fator determinante (embora não seja o único). O andamen-
to de cada interpretação pode ser observado na Tabela 1:
Tabela 1
Versão Andamento (BPM)
Cartola 78
Ney Matogrosso 65
Marisa Monte 56

Uma dedução pautada exclusivamente pela análise do pulso poderia


chegar à conclusão de que a versão de Cartola tende mais à tematiza-
ção, enquanto que a versão de Marisa Monte seleciona um projeto de
passionalização. No entanto, este não é o único fator a ser levado em
conta. É evidente que em um andamento desacelerado as notas tendem
a ficar mais longas, mas o intérprete tem sempre a liberdade de
modificar as durações relativas das notas para criar determinados
efeitos de sentido.
Na versão de Marisa Monte, podemos perceber que a cantora preenche
todos os espaços disponíveis com o alongamento das vogais. É uma
interpretação que expande, chamando a atenção para o perfil melódi-
co e atenuando as marcações rítmicas. Esta é a clássica configuração
de uma canção passionalizada. O resultado deste procedimento é uma

intensificação dos elementos passionais relatados pela letra. Na canção
passionalizada, o foco principal é a situação emocional do sujeito que
narra, ou seja, seu estado afetivo.
Cartola opta por uma outra estratégia entoativa. Ao contrário de Marisa
Monte, ele não alonga as vogais. Não se trata de uma tematização, pois
ele também não prioriza os ataques consonantais, ou seja, sua inter-
pretação não reforça a percepção do pulso. A extrema irregularidade de
sua entoação deixa a melodia no limite da inteligibilidade musical. Sua
interpretação está muito mais próxima de uma fala do que de um
canto. Esse fenômeno é denominado figurativização. Com esse
procedimento, o intérprete focaliza o momento de enunciação. Com
isso, ele alcança um alto grau de realismo (melhor seria dizer: “efeito
de sentido de realidade”), pois podemos perceber, por trás daquele que
canta, alguém que fala.
No final da versão de Cartola, surge o coro cantando apenas a parte A.
Apesar de ser uma inserção bem rápida, podemos perceber uma nítida
diferença na estratégia enunciativa. Aqui as notas são precisas, tanto em
altura quanto em duração. Os ataques são claros e marcados, e com
isso há uma automática valorização do pulso. É uma interpretação que
segmenta e delimita os espaços. Trata-se de uma interpretação temati-
zada. O foco agora não é mais nem o enunciador, nem tampouco seu
estado afetivo. Com a tematização o foco desloca-se para a narrativa,
ou seja, para a evolução dos acontecimentos e a transformação dos
estados.
A interpretação de Ney Matogrosso oscila entre a passionalização e a
figurativização, situando-se no meio do caminho entre Cartola e Marisa
Monte. Em alguns pontos, ele chega a alternar estes procedimentos
verso a verso, construindo uma peça balanceada. Justamente por isso,
em nenhum momento podemos determinar qual o investimento pre-
dominante. O efeito resultante é um foco dividido entre o efeito de
realidade, da pessoa que fala, e entre o valor afetivo do que é dito.
Podemos observar a disposição de cada interpretação no quadrado
semiótico (figura 5): Coro Marisa Monte

Conclusão Ney Matogrosso

A partir dos resulta-


dos obtidos pudemos
verificar a con-
tribuição do intér- Cartola

prete na construção do sentido da canção. A atuação do intérprete
recai sobretudo no tratamento rítmico dado à frase musical. A escolha
do andamento e a valorização do pulso (acentuação ou atenuação)
interferem diretamente na percepção global da melodia. Este trabalho
também comprova o rendimento do modelo de Tatit para a análise da
canção, especialmente no tratamento de alturas e durações.

Referências bibliográficas
BARROS, D. L. (2002). Teoria do discurso.São Paulo: 3ª ed. Editora Humanitas.
———. (2003). Teoria semiótica do texto. São Paulo: 4ª ed., Editora Ática.
TATIT, L.A.M. (1998). Musicando a semiótica. São Paulo: Annablume.
———. (1996).O cancionista: composições de canções do Brasil. São Paulo:
EdUSP.

O estatuto do timbre no modelo semiótico


Peter Dietrich
Universidade de São Paulo – USP

esde a sua primeira publicação, em 1994, a semiótica da

D canção não sofreu alterações significativas em sua estrutura


de base. O ponto que nos interessa em especial é a fronteira
que separa plano de expressão e conteúdo: quais são e como se
organizam os elementos em cada plano, e as relações entre ambos. A
afirmação que segue, extraída de um trabalho publicado recentemente,
resume bem a solução de Tatit para a problemática a que estamos nos
referindo:
É suficiente, para nossa finalidade, atribuirmos à organização melódica
a função de elemento estruturador do plano da expressão e à
organização lingüística a incumbência de conformar o plano de

conteúdo (Lopes & Tatit, 2003).
Esta é a premissa elementar da teoria: o verbal constitui o plano de con-
teúdo, o melódico o de expressão, e a interação entre eles se dá por
relações semi-simbólicas, ou seja, relações entre categorias. Na
aparente simplicidade desta descrição não cabe nenhuma crítica: a
economia do modelo é perfeita para descrever satisfatoriamente a
maioria das canções, fato comprovado em dezenas de análises
realizadas por inúmeros pesquisadores nestes últimos dez anos.
O principal instrumento de análise melódica do modelo original é o
perfil da curva melódica: a predominância de saltos intervalares e o
aumento das durações sugerem um regime desacelerado, regido pela
égide do /ser/, propício para sustentar as manifestações de tensões pas-
sionais descritas pela letra. Por outro lado, uma melodia com notas cur-
tas e poucos saltos representa um regime acelerado, regido pela égide
do /fazer/. Esses regimes são denominados passionalização e tematiza-
ção, respectivamente. Contrapondo-se a esses recursos de estruturação
melódica, o modelo prevê também a possibilidade de remissões ao
estado desorganizado da fala: a figurativização. A manifestação da fi-
gurativização concentra-se no final de cada frase melódica: o tonema.
Tonemas descendentes indicam asseveração, tonemas ascendentes e
suspensivos indicam uma interrogação. Dentro do modelo, essas infor-
mações são atribuídas exclusivamente ao plano de expressão.
A imensa maioria das análises que ultrapassa este procedimento básico
“enriquece” o plano da expressão da canção com elementos de
expressão verbal: rimas, aliterações, etc… A análise da letra da canção
segue o rumo de uma análise de poesia, e a análise musical continua
estritamente focada na melodia, ou para ser mais preciso, no perfil
melódico.

Objetivos
O objetivo principal deste trabalho é questionar a separação entre ver-
bal (conteúdo) e musical (expressão) no modelo clássico, a partir de
uma discussão do estatuto semiótico do timbre.

Contribuições
Na famosa peça instrumental “Duelo de Banjos” de Eric Weisberg, tri-
lha sonora do filme Amargo Pesadelo, de 1972, temos – como sugere o
título – dois instrumentos “duelando” entre si. Nossa análise tentará
anular por completo a informação verbal transmitida pelo título, e

verificar se o conceito de “duelo” pode ser extraído exclusivamente da
informação musical.
Um primeiro fator capaz de sustentar o sentido de duelo é a apresen-
tação das frases melódicas. Alternadamente, são apresentadas frases
ritmicamente bem resolvidas e mal resolvidas. As frases ímpares são
apresentadas com pulso regular e acentuação constante. As durações
são homogêneas. As expectativas das resoluções rítmicas são confir-
madas. Nas frases pares, acontece o oposto. Embora sejam tocadas as
mesmas notas (alturas), as durações não são homogêneas e as
resoluções rítmicas não são confirmadas. Entre essas frases, podemos
perceber a permanência de determinada informação (alturas) e a
deterioração de outra (durações). A impressão auditiva é muito clara:
estamos diante de um processo de comunicação, ou seja, a peça
constrói uma cena sobre a transmissão de um /saber/.
Se esta tese se sustenta, temos também que admitir que estamos diante
de dois actantes. De fato, se a primeira frase melódica é ritmicamente
perfeita, temos um sujeito competente, em conjunção com o /saber-
fazer/. A segunda frase melódica, ritmicamente imperfeita, mostra um
sujeito em disjunção (ao menos parcial) com o /saber-fazer/. É interes-
sante notar que o material sonoro é aqui antropomorfizado, construin-
do um plano narrativo – no caso, uma manipulação. Para a semiótica
greimasiana, a aquisição do /saber/ faz parte de uma etapa do esquema
narrativo denominado “aquisição de competência”. Para poder tocar a
melodia, o sujeito precisa estar em conjunção com o /saber-fazer/. No
decorrer da música, esta performance recebe uma sanção positiva: as
duas melodias se encontram, desembaraçadas, sem entraves rítmicos.
Um outro fator capaz de sustentar a tese do duelo é o timbre. Como
vimos, a peça começa com a apresentação e repetição de frases sim-
ples. No entanto, o timbre das frases pares é diferente do das frases
ímpares. O primeiro instrumento é um violão de aço, e o segundo um
banjo. Todo instrumento de corda tem um leque de variações timbrísti-
cas possíveis, reguladas pela maneira como as cordas são tocadas (com
palheta ou com dedo, com ou sem unha) e pelo ponto de ataque (mais
perto do cavalete, mais perto do braço). Essas variações podem ser
usadas por um mesmo intérprete em uma mesma peça, mas geralmente
acabam por constituir uma “assinatura pessoal”: é possível reconhecer
um instrumentista apenas pelas características do timbre do seu toque.
Ou seja, o timbre pode ser um elemento que produz o efeito de senti-
do de identidade (ou parcialidade). Por outro lado, em determinadas
situações musicais, o timbre pode ser usado para criar o efeito de sen-

tido de homogeneidade, ou de totalidade. De qualquer forma, é impor-
tante perceber que o timbre é um dos recursos que o enunciador do
discurso musical possui para criar efeitos de sentido. No início de
“Duelo de banjos”, é possível perceber que existem dois instrumentos
distintos. Mais que isso: foi produzido o efeito de sentido de dois
instrumentos distintos.
Essa música pode ser o ponto de partida para uma reflexão mais pro-
funda sobre o conceito de timbre. O timbre, independentemente de
suas características acústicas, é sempre o som de algum instrumento. E
um instrumento – uma vez reconhecido pelo seu timbre – passa a ser
não só um som, mas uma figura do mundo. O som de um violino pres-
supõe um violino tocando. E um violino é um instrumento que tem
tamanho, cor e forma. Mais que isso: tem história, e por isso mesmo,
tem contexto. Sabemos que o violino é um instrumento de orquestra,
assim como sabemos também que é um instrumento antigo. Um violi-
no em uma escola de samba (como ocorreu no samba enredo da Beija-
flor em homenagem a Bidu Sayão, em 1998) é algo absolutamente
inusitado e original (foi na época e ainda seria hoje) – o mesmo acon-
teceria com um pandeiro numa orquestra. Neste ponto, o processo de
construção do sentido musical aproxima-se muito do verbal.
Aprendemos a associar o som da palavra “violino” com o conteúdo
violino (instrumento de orquestra, tocado com arco, feito de madeira,
pequeno, etc…). A única diferença é que aqui não estamos mais
tratando do som da palavra violino, construída com vogais e
consoantes, mas do som do instrumento violino, construído a partir da
fricção entre arco e cordas.
Resumindo: o timbre é uma figura do mundo, é um marcador de
presença, e – como vimos em “Duelo de banjos” – pode atuar na
função de ator do discurso. Por todas essas funções, fica claro que o
nível discursivo é o lugar (ou pelo menos um dos lugares possíveis) para
o timbre.
Devemos ressaltar que estamos definitivamente falando de plano de
conteúdo. A presença do timbre no plano de expressão tem caracterís-
ticas essencialmente diferentes. Na expressão, o timbre poderia opor a
categoria de brilhante versus opaco, por exemplo, e contrair relações
semi-simbólicas com a letra – se for uma canção – ou com outros ele-
mentos do plano de conteúdo musical. No plano de conteúdo, os tim-
bres são identificados a partir de figuras do mundo (vozes, instrumen-
tos, sons eletrônicos, etc…). Além disso, eles podem ser sérios ou
descontraídos, frívolos ou austeros. Um timbre pode também ser

dramático – ou simplesmente engraçado. Na canção Julia/Moreno, de
Caetano Veloso, há uma flauta doce (timbre suave) acompanhando o
trecho “Julia” e uma guitarra elétrica distorcida (timbre áspero) acom-
panhando o trecho “Moreno”. Daí se extrai uma relação semi-simbóli-
ca áspero versus suave e masculino versus feminino (Dietrich, 2003).
Neste caso, ressaltamos uma característica do timbre presente no plano
de expressão. Poderíamos nos limitar ao discurso musical, e verificar a
relação entre áspero versus suave e guitarra versus flauta, estes últimos
tomados aqui como atores do discurso musical, e figuras do mundo. A
guitarra é o instrumento símbolo do Rock, que por sua vez carrega va-
lores de rebeldia e agressividade. A flauta é associada ao conceito de
pureza e leveza. Estaríamos então relacionando uma manifestação de
expressão do timbre com uma manifestação do conteúdo do timbre.
Outro elemento que parece contribuir para a caracterização deste “ator
musical” é a intensidade. A intensidade é antes de tudo um marcador
da presença do sujeito. A oposição forte vs. fraco, no plano da
expressão, pode marcar a intensidade da presença desse ator no plano
do conteúdo. Sons mais fortes (qualquer operador de mixagem sabe
disso) parecem estar mais próximos. Em uma primeira análise, a
intensidade opera uma categoria própria do nível discursivo: aproxi-
mação vs. distanciamento. Ela pode também marcar a presença de
determinadas passagens (ou determinados sujeitos) como átonos ou
tônicos. O ouvido tende a atribuir maior importância a sons mais altos.
Em um arranjo polifônico (com muitos atores, portanto) é muito
comum variar ao longo da peça o instrumento que toca mais alto. É
como se o discurso “focalizasse” um ator diferente a cada momento –
o correspondente desse efeito no teatro, por exemplo, é o foco de luz
que pode passar de um ator a outro.
A intensidade pode também “deformar” o timbre do instrumento,
podendo com ele compor uma imagem de agressividade – ou de
mansidão. São efeitos de sentido que estão atuando também no nível
discursivo.

Conclusões
A semiótica greimasiana está hoje em franco desenvolvimento.
Pesquisadores de vários países se empenham para proporcionar ao
modelo novas ferramentas, capazes de descrever um número cada vez
maior de fenômenos. No Brasil, graças principalmente ao desenvolvi-
mento das pesquisas de Luiz Tatit, podemos ver o surgimento de um
importante pólo de pesquisa em semiótica da canção. Isso faz com que

o modelo original se mantenha em constante revisão e ampliação. Para
que o desenvolvimento da semiótica da canção aconteça sem o
surgimento de incoerências e contradições internas, acreditamos ser
necessário enriquecer o plano do conteúdo, atualmente formado
apenas pelo verbal, com elementos extraídos do discurso musical.
Além de ampliar as ferramentas descritivas do modelo, este
procedimento abre o caminho para a consolidação de uma semiótica
do discurso puramente musical.

Referências bibliográficas
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

Aquisição de língua e aprendizagem de música:


um paralelo possível?
Valentina Daldegan

“Seria interessante descobrir se existe algum outro domínio cognitivo


além da linguagem cuja teoria da aprendizagem seja idêntica ou
similar à da linguagem. Até hoje não foi feita sugestão alguma que
fosse persuasiva, mas é concebível que tal domínio exista.”
Noam Chomsky (1975: 20).

omparações entre linguagem e música existem há muito tempo.

C Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, defendeu a idéia de que a


língua e a música de cada povo têm uma origem comum e
entrelaçada. Para Rousseau, tanto a música quanto a língua têm
sua origem no canto, entendendo ele por “canto” a declamação entoa-
da, a expressão vocal (le cri) da paixão do homem primitivo. Ele a dis-
tingue da linguagem dos gestos, suficiente para a comunicação das
necessidades: “As necessidades ditaram os primeiros gestos e as
paixões arrancaram as primeiras vozes” (Rousseau, 1781, apud Didier,
1985: 156). Segundo ele, a separação entre música e língua deu-se com
o crescimento da complexidade das relações sociais, por um processo
de intelectualização:
“à medida em que as necessidades crescem, que os negócios se com-
plicam, que as luzes se estendem, a língua muda de caráter; ela torna-
se mais exata e menos apaixonada, ela substitui os sentimentos com
idéias; ela já não fala mais ao coração, mas à razão.” (idem, ibidem)
É a música, então, que exprime a paixão. Esta gênese comum da
música e da língua em Rousseau é menos histórica do que mítica: ele
parte da observação da aquisição da língua na criança, igualando-a ao
selvagem, ao homem primitivo.
A teoria lingüística tem como objeto de análise a linguagem,
instrumento que dá forma aos atos, vontades, emoções, sentimentos e
projetos humanos. Segundo Coelho Netto (1983: 15), esta é a razão da
teoria lingüística ser utilizada no estudo de outros campos gerados e
sustentados pela linguagem, inclusive o campo das artes. Para
Ferdinand Saussure a lingüística tem caráter geral aplicável aos dife-
rentes aspectos da atividade humana. Ao estudar os signos dentro da
vida social – estudo batizado por de Semiologia – se estudaria também
a linguagem, que seria o gênero do qual a lingüística é a especie (apud
Coelho Neto, 1983: 17) . Muitos são os domínios humanos abordados

hoje do ponto de vista da linguagem ou da lingüística, utilizando-a
como corpo de métodos heurísticos e descritivos. Não são poucos os
estudiosos que, tomando como base especialmente a teoria saussuriana
da lingüística estrutural, comparam as estruturas da música com as das
línguas naturais. (Seixo, s/d, passim) Estes estudos fogem ao escopo
deste trabalho.
O objetivo aqui é propor uma averiguação sobre até que ponto são
pertinentes as afirmações sobre a identidade, mesmo que parcial, entre
o aprendizado da língua e o da música.

Linguagem, música e cognição


Estudos que comparam o processamento cognitivo da linguagem e da
música não são incomuns hoje em dia. Pelo estudo de caso de indiví-
duos que sofrem de afasia – dificuldade de processamento da lin-
guagem – ou amusia – dificuldade de processamento da música –, a
neuropsicologia aponta na direção de que música e linguagem não são
faculdades mentais completamente independentes e que ambas têm
processamentos complexos, alguns deles sobrepostos, outros não. Por
um lado, a comparação da percepção de contornos melódicos na músi-
ca com a intonação na fala sugere o processamento semelhante de
ambas (Trehub, 2003; Patel et alii, 2005). Por outro lado, o processa-
mento das relações das relações sintáticas (harmônicas) na música, por
exemplo, não teria nenhuma associação com o processamento da sín-
taxe na linguagem. Chega-se a esta conclusão ao comparar sujeitos que
sofrem de afasia e percebem música normalmente e outros que têm
amusia e processam a linguagem sem problemas. Já resultados da neu-
roimagética parecem indicar que este processamento seria semelhante.
Num experimento, músicos escutaram sentenças lingüísticas e seqüên-
cias de acordes com níveis variados de incongruidade sintática (basea-
dos em regras gramaticais da língua e princípios harmônicos tonais na
música) e as imagens pesquisadas mostraram que o processamento
sintático da música ativou áreas no cérebro ligadas à linguagem (Patel,
2003; Patel & Peretz, 1997). A meu ver, o erro está em considerar na
música um aspecto muito restrito: a harmonia tonal simplificada, que
representa apenas um fragmento da tradição musical ocidental. Para o
ouvinte submetido ao teste, isto representa uma caso típico de música
que, na concepção de Jos Kunst (apud Dottori, 2005), “colapsou em
linguagem”.
Já no campo do ensino musical, autores modernos têm elaborado
teorias sobre o aprendizado da música relacionando-o ao da língua
materna.

Aquisição lingüística
Antes de seguirmos adiante, cabe discorrer suscintamente aqui sobre
aquisição linguística. O interesse por este fenômeno é muito antigo na
humanidade, mas foi apenas a partir do século passado que os estudos
sobre o assunto se tornaram mais sistemáticos, e foram criadas teorias
para explicá-lo. Cada uma delas vê o fenômeno linguístico sob um
certo prisma e colabora de maneira diferente no sentido de esclarecê-
lo. As quatro principais abordagens sobre a aquisição língua são:
– A teoria cognitiva de Jean Piaget, segundo a qual existe uma
capacidade genérica de aprendizagem; a criança primeiro aprende
conceitos e depois adquire palavras para nomer tais conceitos. As
idéias mais simples são então expressas antes das mais complexas
mesmo que sejam gramaticalmente mais complicadas.
– A teoria behaviorista, baseada nas idéias de Burrhus Frederic
Skinner populares nos anos 40 e 50, que prega que as crianças
aprendem imitando e repetindo o que ouvem e que o reforço po-
sitivo e a correção são de fundamental importância na aquisição.
– A teoria sócio-histórica de Len S. Vygotsky, que explica a
aquisição linguística como um fato social, que vem da necessidade
do ser humano de comunicar-se e interagir com o mundo – a lin-
guagem seria a principal forma de mediação entre o homem e o
mundo em que vive. Segundo Vygotsky, existe uma fase “pré-in-
telectual da linguagem” – em que os sons que um bebê faz são uma
forma de estravasamento de suas emoções e um meio de contato
social – e uma fase “pré-linguística do pensamento” – que permite
à criança solucionar problemas práticos e de usar instrumentos
para conseguir seus objetivos. Por volta dos dois anos de idade,
essas duas condutas que vinham separadas se juntam para formar
o “pensamento linguístico”, que passa a dominar as ações psi-
cológicas humanas, passando o homem de “ser biológico a sócio-
histórico.” (Oliveira, 1993)
– A teoria inatista, com a qual Noam Chomsky defende a idéia de
que a faculdade lingüística funciona de acordo com as regras de
uma “Gramática Universal”, que especificará as propriedades do
som, significado e organização estrutural das línguas. Segundo
Chomsky, a investigação destas regras poderia levar a alguma elu-
cidação sobre as características específicas da inteligência humana,
e portanto sobre a própria natureza humana, se é a capacidade
cognitiva do homem a mais notável característica da espécie. Para
ele, a aquisição da linguagem não pode ser explicada a partir da
aplicação de capacidades de aprendizado genéricas, existindo no
homem uma “faculdade de aquisição da linguagem” (Language

Aquisition Device: L.A.D.), que seria inata e seguiria mecanismos
próprios. (Chomsky, 1975: 4ss.)
Não obstante as diferenças e divergências entre as teorias, alguns fatos
são aceitos universalmente: a aquisição linguística é uma consequên-
cia natural de sociedade humana, todas as crianças expostas a uma lín-
gua a adquirem naturalmente sem esforços deliberados de ensino e
aprendizagem, não importando diferenças individuais de inteligência.
Universais também são os estágios da aquisição:
“Pré-fala” – Muito antes de tentar proferir as primeiras palavras, os
bebês estão em contato com a língua que os cercam. Ouvem – e
prestam atenção – os sons a entonação e o ritmo do discurso.
Reconhecem a voz das pessoas com quem estão em contato e
entendem o que se fala ao seu redor.
“Balbucio” – os bebês começam a proferir sons de fala, muitos dos
quais não fazem parte de sua língua materna e serão descartados
mais tarde.
“Palavras soltas” – os bebês falam as primeiras palavras, que nor-
malmente lembram o balbucio (mama, papa, baba). Começam a
nomear as coisas e muitas vezes as “palavras” são simplificadas”
(“bo” para bola, por exemplo). O significado das palavras podem às
vezes não corresponder àquele dos adultos.
“Combinação de palavras” por volta de um ano e meio a dois anos,
as crianças conseguem falar frases com vearias palavras. Muitas
vezes, entretanto, sua gramática não é a mesma dos adultos – geral-
mente elas tentam evitar irregularidades.
Por volta dos seis anos, as crianças já falam a sua língua materna com
proficiência semelhante à de um adulto.

Aprendizado de música
Em meados dos anos quarenta, Shinichi Suzuki desenvolveu uma abor-
dagem para o ensino de música baseada nestes estágios universais da
aquisição linguística. Para Suzuki, o processo de aquisição da língua
materna é a chave de qualquer aprendizado. De acordo com ele, qual-
quer criança é capaz de desenvolver habilidades musicais a um nível
muito elevado — assim como toda criança normal desenvolve a
capacidade de falar — se o “Método da Língua Materna”, como ele
mesmo o denominou, for utilizado. Defendendo a idéia de que talento
não é um acaso do nascimento e que o indivíduo é fruto do meio em
que vive, cada aspecto de seu método é, intuitivamente, relacionado a
um aspecto do processo de aquisição da língua materna.

Segundo Suzuki, quanto mais cedo, e o quanto mais música houver no
ambiente da criança, tanto melhor (para a aquisição, ela está envolvi-
da constantemente com sua língua materna). Os primeiros sons no
instrumento, as primeiras melodias, deveriam estar internalizados antes
da criança tentar tocar, isso se consegue através de muitas repetições
(assim como as primeiras palavras na língua, como “mama”, que são
repetidas inúmeras vezes antes que a criança consiga proferi-la). Deve
haver constante motivação e incentivo por parte dos pais a cada
pequeno passo e a cada obstáculo superado pela criança (durante a
aquisição, cada ação da criança ao tentar falar é motivada com entusi-
asmo pelos que a cercam). O progresso se daria pela prática diária (as
crianças normalmente não passam um dia sem falar, e assim a fala
torna-se natural e fluente). A leitura não deveria ser ensinada antes da
fluência no instrumento (assim como ninguém aprende a ler antes de
falar).
O Método Suzuki tem méritos em muitos aspectos, mas sua falha é
pensar na aquisição da língua materna através da repetição – o que
reflete o pensamento behaviorista, que teve seu auge durante a criação
do método.
Apesar de sua abordagem ser bastante diferente daquela de Shinichi
Suzuki, Edwin Gordon também faz uma analogia entre a aprendizagem
da música e da língua. Segundo ele, música e língua estruturam-se e
são aprendidas semelhantemente:
“Considere-se linguagem, fala e pensamento. A linguagem é o resulta-
do da necessidade de comunicar. A fala é o modo como nos comuni-
camos. O pensamento é aquilo que foi comunicado. Música, interpre-
tação e audiação (audiation) têm significados paralelos. A música é o
resultado da necessidade de comunicar. A interpretação é como a
comunicação acontece. Audiação é aquilo que é comunicado.”
(Gordon, 1997: 6)
Gordon comenta que a aquisição da língua materna dá-se pela imersão
do bebê no ambiente em que ela é falada. A criança absorve o que
ouve, vocalizando sons por imitação até ser capaz de articular as
primeiras palavras e, em seguida, apreender o código da língua de sua
cultura. Gordon considera que infelizmente a experiência musical
segue, em geral, um caminho diferente, pois as crianças não recebem
orientação formal ou informal até sua entrada na escola, criando-lhes
grandes dificuldades. Na introdução ao livro Music Play, Gordon (et
alii, 1998) ressaltam a importância dessa orientação a crianças peque-
nas, pois segundo pesquisas recentes
“existem períodos críticos associados ao surgimento de conexões neu-

rológicas e sinapses que ocorrem antes do nascimento e durante a
primeira infância. (…) A Natureza proporciona à criança uma super-
abundância de células para estabelecer estas ligações, quer antes do
nascimento quer em alturas cruciais após o nascimento. Se estas célu-
las não forem usadas para este objetivo durante esses períodos cru-
ciais, acabam por se perder e nunca mais podem ser recuperadas.”
Sendo assim, se uma criança muito pequena não tiver a oportunidade
de desenvolver um vocabulário de audição musical, as células que
teriam sido usadas para estabelecer esse sentido auditivo serão dire-
cionadas para um outro. Nenhuma medida de educação compen-
satória posterior poderá eliminar na totalidade essa deficiência.”
Este “vocabulário musical” seria desenvolvido através da internalização
de padrões (“patterns”) rítmicos e tonais que formam a base da teoria
de aprendizagem musical (Music Learning Theory) de Gordon. Segundo
ele, assim como o morfema é a unidade básica de significado da
linguagem, os padrões — rítmicos e tonais — são as unidades básicas
de significado na música. São as palavras, não fonemas isolados, que
tornam possível nossa compreensão da linguagem e assim quanto mais
palavras temos em nossos vocabulários ativo e passivo, tanto melhor
somos capazes de pensar sobre aquilo que nos é dito e de formar
conclusões próprias. Da mesma maneira, pessoas com vocabulários
musicais limitados têm a capacidade de imitar a música, mas não de
“audiá-la” (audiate). (Gordon, 1997: 113)
É importante frisar, entretanto, que, apesar de enfatizar o paralelismo
entre música e linguagem, Gordon também reforça em seus textos as
diferenças entre elas:
“Não obstante as analogias que tenho feito entre linguagem e música,
deve-se ficar entendido que música não é uma linguagem. Música não
tem palavras ou gramática. Ao contrário, ela tem apenas sintaxe, que
é o arranjo ordenado dos sons. É interessante especular, entretanto, se
a linguagem poderia na verdade ser uma forma de música.” (Gordon,
1997: 6)
Assim como Suzuki, ao dar demasiado valor à repetição, Gordon peca
ao enfatizar incansavelmente o desenvolvimento de “patterns”. A
música consegue ter significado mesmo quando se livra dos “patterns”
rítmicos e tonais; e é justamente quando ela foge disso e deixa de ser
previsível que ganha mais expressividade.

Considerações finais
Até hoje ninguém foi capaz de explicar como, exatamente, as crianças
adquirem sua língua materna. Assim como não existe uma teoria defi-

nitiva sobre aquisição de língua, as teorias de aprendizagem musical
também têm um longo caminho à sua frente. Por isto, as hipóteses com-
parativas entre processamento cognitivo musical e lingüístico repousam
em fundações pouco firmes. De qualquer modo, abordagens como as
de Suzuki e de Gordon, dentro de suas limitações, têm sido ampla-
mente utilizadas e com sucesso. A existência de um L.A.D. não é com-
provada, e não penso que devêssemos ir em busca de um M.A.D., pois
a evolução não parece ter-nos dotado de mecanismos específicos para
a música. Mesmo assim, acredito que os estudos de nossa capacidade
cognitiva de aquisição lingüística podem ainda vir a colaborar muito no
campo da aprendizagem musical e quem sabe um dia possamos pen-
sar em “aquisição musical”.

Referências bibliográficas
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VYGOTSKY, Len Semyonovitch (1967). Thought and Language. Cambridge:
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

4. Tecnologia, Artes Musicais, e a Mente




Do “quanto” ao “quando”:
novos estudos sobre cognição do ritmo e a experiência
de um seqüenciador posicional
Darcy Alcantara Neto
Universidade Federal do Espírito Santo

o artigo “The Comeback of systematic Musicology: new

N Empiricism and the Cognitive Revolution”, Henkjan


Honing (2004) considera uma mudança na visão sobre
a música, nas duas últimas décadas: de arte (ou objeto
artístico), a música passa a ser vista como processo, em que desem-
penham papéis centrais o intérprete, o ouvinte e a própria música,
enquanto som. Essa mudança de foco é especialmente visível no
campo da musicologia sistemática, em que se deu
“a complete reorientation of the discipline to fundamental questions
which are non-historical in nature, [encompassing] research into the
nature and properties of music as an acoustical, psychological and
cognitive phenomenon”1. (…) While twenty years ago, music was 1 V. Duckles
hardly mentioned in any handbook of psychology (or appeared only in & J. Pasler,
a subsection on pitch or rhythm perception), it is now recognized, ‘Historical
along with vision and language, as an important and informative and
Systematic
domain in which to study a variety of aspects of cognition, including Musicology’,
expectation, emotion, perception and memory. (Honing, 2004). p. 491, apud
Honing
Robert Gjerdingen (2002), adverte para uma diferença fundamental no (2004).
tratamento do objeto entre a teoria e a cognição musical: “Music theo-
ry traditionally looks at music as something written. Music cognition
looks at music as something heard” (apud Honing, 2004). Na tese
“Musicalidade métrico-tonal: condições primeiras para a comunicação
verbal sobre a música”, Moraes (2003) alerta para a inadequação da
teoria musical convencional a seu objeto, em situação análoga à
descrita por Ferdinand de Saussure, que, no início do século XX, fez
notar que a ciência lingüística tomava indevidamente como objeto de
estudo a representação escrita da língua, e não a língua em si: confun-
dia “mapa” e “território” (Saussure, 1916). Também a teoria musical
tradicionalmente se constituiu numa descrição da escrita musical, à
maneira de uma cartilha, confundindo o objeto (a música) com a sua
representação (a notação musical) (Moraes, 1991). Nicholas Cook
(1990), também refletindo sobre essa inadequação entre teoria e práti-
ca, afirma que “music is full of things which even trained musicians find

hard or impossible to hear in terms of their structural organization”.
Cook também adverte para o fato de que pessoas musicalmente
letradas, ainda que possam acompanhar uma peça em termos técnicos,
não o fazem quando a ouvem naturalmente, isto é, por prazer.
And one might conclude from all this that the conventional theory of
music in which sonatas forms, tonal structures and thematic relation-
ships play so large a part is no more than a theory of unheard forms,
imaginary structures, and fictitious relationships.
A teoria musical, ao se ater tradicionalmente a descrever estruturas nem
sempre percebidas, entretanto, não o faz somente nos níveis superiores
de percepção (no plano dos esquemas tonais da forma-sonata, por
exemplo), mas também nos níveis mais fundamentais, precisamente no
núcleo axiomático constituído pelos quatro parâmetros do som, como
afirma Moraes (1991), em “Por uma teoria do ritmo: o caso da metáfo-
ra musical em lingüística”. Debruçando-se sobre a necessidade de uma
“teoria do ritmo”, Moraes identifica que algumas ciências, como a
Lingüística, quando necessitam de formulações teóricas sobre ritmo,
recorrem curiosamente à teoria musical – a “metáfora musical”.
Dentre as muitas falas de lingüistas e musicólogos, coletadas por
Moraes (2003), as seguintes afirmações embora datadas da década de
70, ainda são amplamente reveladoras – dão-nos a idéia do que se
podia esperar dessa incursão à teoria musical tradicional, que, tradi-
cionalmente, “works with impressionistic, non formalizing methods”
(Lidblom & Sundberg, 1976). E ainda a confissão de Hackman (1975):
“It took far too long for me to realize that the methods of music analy-
sis had to bear at least a superficial resemblance to other methods of
scholarly and scientific inquiry”.
Uma das formas que a teoria musical galgou status científico mais con-
sistente, a partir da década de 70, e se converteu em um “more diverse,
more interdisciplinary, and less balkanized field the world over than it
was in the 1970” (Grove, 2000), esteve seguramente garantida no inter-
câmbio com outros campos do conhecimento, entre eles, a lingüística
e a psicologia cognitiva. Entretanto, o diálogo interdisciplinar estabele-
cido fez com que a “metáfora musical” estivesse presente também no
campo da cognição musical, influenciando de maneira não-intencional
a elaboração de modelos de percepção, desde a construção dos estí-
mulos (nos trabalhos empíricos) à análise dos resultados, portando-se
como axiomas da percepção, ao invés de explicitarem sua condição de
paradigmas advindos da notação, e subjacente aos manuais
elementares de teoria musical. Mais à frente, explicitaremos como os

conceitos notacionais têm influenciado os estudos de cognição do
ritmo, em geral. Antes, porém, empreenderemos uma visita concisa a
textos recentes, focando alguns dos aspectos do atual estado-da-arte da
cognição de ritmo.

Cognição e ritmo
“The study of time in music (in the form of its durational parameters,
rhythm and metre) has received only modest attention from the Western
theory of music, as compared with the study of pitch issues (in the form
of melody and harmony”, como afirmado em “Just in time: towards a
theory of rhythm and metre” (Lopes, 2003). O maior número de estudos
sobre temporalidade e ritmo de que dispomos hoje de características
fortemente interdisciplinares, envolvendo cognição, semiótica, lingüís-
tica e filosofia procuram restabelecer ao ritmo um caráter fundamental,
anterior às alturas. Moraes (1991), encontra a fala de Cooper & Meyer
(1960), que, citado por Martin (1972), afirmam que
Every musician, whether composer, performer, or theorist, will agree
that ‘In the beginning was rhythm’. (…) For the shaping power of
rhythm and, more broadly speaking, of the temporal organization of
music is a sine qua non of the art (…) To study rhythm is to study all of
music.
Para Lopes, “a música relaciona vibrações físicas (i.e. propriedades
mensuráveis do som) com algum tipo de forma humana. The special
feature of that human form is the creation of a temporal order without
which sound could not be raised to the level of music” (Lopes, 2003).
Susanne Langer, em “Sentimento e Forma” (1953, apud Moraes, 2003),
também alertava para o fato de que:
quase no mesmo momento em que nos propomos pensar em termos
estritos sobre o fenômeno chamado “música”, apresenta-se a física do
som como o fundamento natural de qualquer teoria” (Langer,
1953:113), apesar de que, continua a autora, “… o som, e mesmo o
tom, como tal não é música”. (Moraes, 2003).
A necessidade dessa “ordem temporal”, sem a qual o som não se torna
música, é presente em textos de vários autores, em especial a partir das
últimas três décadas, quando observamos um crescente interesse no
estudo de ritmo e temporalidade, não apenas no domínio musical, mas
na lingüística, psicologia, neurociência e nas ciências exatas (Moraes,
1991). Curiosamente, é também na década de 70, a partir da
publicação de Fundações Biológicas da Linguagem (1967), por Erick
Lenneberg, que

talvez, pela primeira vez, tornou-se amplamente reconhecido que
domínios do conhecimento exibiam suas próprias regras e princípios,
e que estes podiam ser atribuídos, em alguns detalhes concretos, a
estruturas e mecanismos do cérebro (...), às surpreendentes especifici-
dades das funções cerebrais e às localizações corticais particulares,
nas quais elas eram executadas. (...) O trabalho de pesquisadores
como Chomsky, Lenneberg ou Geschwind (...) salientaram as con-
strições sob as quais o desenvolvimento opera. (Gardner,1991)
Gardner, então, enumera uma série de situações que exemplificam tais
“constrições” ou “cerceamentos” em nosso desenvolvimento cognitivo,
ressaltando a grande importância epistemológica e psicológica do fato
de que “crianças, também, dividem ou ‘analisam’ contínuos sensoriais
de nível mais alto de maneira muito semelhante à dos adultos”. No
caso da cor, elas reconhecem a existência de cores focais, bem como
os chipanzés, o que “assegura o argumento de que tais inclinações per-
ceptivas são construídas na neurofisiologia do sistema visual”. No
âmbito lingüístico, Gardner também apresenta “uma analogia reve-
ladora para o contínuo cromático”, na leve diferença de tempo de
emissão da voz de um /p/ e do /b/, lembrando que
[d]esde o começo, as crianças, como os adultos, tratam todos os /b/s
como /b/s, e todos os /p/s como /p/s, com a percepção categórica
sobrepujando a detecção de diferenças puramente físicas no tempo de
emissão da voz (...) O fato de que crianças de comunidades de fala
largamente diferentes analisam o continuum semelhantemente nos
primeiros meses de vida fornece evidência ainda mais decisiva de que
a natureza cerceou a percepção de estímulos lingüísticos auditivos.
(Gardner,1991)
Para Gardner, “a noção behaviorista de que os seres humanos podem
aprender – ou esquecer – qualquer coisa parece tão ingênuo como a
crença computacional inicial de que todas as resoluções de problemas
são uma só coisa”. A constatação de que há estruturas mentais que,
simultaneamente, limitam nossa capacidade de perceber o tempo, e ao
mesmo tempo nos permitem lidar com eventos rítmicos, memorizá-los
e repeti-los, segundo cerceamentos impostos pela natureza e biologia,
levanta a questão sobre quais são os cerceamentos impostos à per-
cepção de ritmo. Sakai et alii, 1999 dá-nos uma definição de ritmo que
se desdobrará até o final de nosso estudo:
Rhythm is a flow of time, a series of time intervals marked off by the
onsets of sensory or motor events, such as tones, flashes of lights, and
steps in dances. Thus, rhythm is a supramodal entity that is determined
solely by time information. The fact that we can recognize, discrimi-
nate and reproduce a large number of rhythms suggests that individual

rhythms can be internally represented, but its neural mechanism has
not been well understood. [g.n.]
Sakai et alii (1999), partindo do estudo de Essens & Povel (1985), que
propõe dois tipos de representação mental para ritmo, dependendo dos
intervalos de tempo – representação métrica e não-métrica, para ritmos
formados com razões de intervalos de tempo inteiras (e pequenas) e
não-inteiras, respectivamente –investiga se essas tais diferentes repre-
sentações ativam igualmente diferentes áreas do sistema nervoso. A
representação métrica consiste em “mapear um ritmo em uma estrutu-
ra temporal de referência, chamada de relógio interno, através do qual
as séries de intervalos temporais são metricamente relacionadas umas
com as outras”. É o caso dos ritmos formados com proporções simples.
Em síntese, Sakai et alii concluem que
there are two modes of neural representation for rhythm. Their selec-
tion depends on the interval ratios of the rhythm or, more precisely, on
the strategy used for encoding the rhythmn, metrical or nonmetrical.
Nonmetrical strategy may require explicit processing for the individual
time intervals, whereas metrical strategy may operate automatically,
and possibly implicitly, to allow hierarchical encoding of the whole
rhythm. In this regard, the right and left hemispheric dissociation
observed in the nonmetrical and metrical rhythm processing may be
closely related to the finding of Hazeltine et alii (1997), who showed a
similiar hemispheric dissociation between explicit and implicit motor
sequence learning.
Os dois padrões de ativação cerebral encontrados no estudo de Sakai
et alii, no entanto, correspondiam, não à razão dos ritmos apresenta-
dos, mas, em maior parte, à razão dos ritmos que foram produzidos
pelos sujeitos, quando lhes era pedido que repetissem o que tinham
ouvido, “sugerindo que as ativações observadas refletiram a represen-
tação interna do ritmo”. Os dados da ressonância magnética indicaram
também que os padrões de ativação para os ritmos 1:2:4 e 1:2:3 foram
muito parecidos, mas completamente diferentes daqueles observados
no ritmo 1:2.5:3.5. Em relação à localização dos hemisférios, houve
uma predominância da representação métrica associada ao hemisfério
esquerdo, enquanto a não-métrica ao hemisfério direito, o que está de
acordo com estudos anteriores que mostram que deficiências rítmicas
eram encontradas após lesões no hemisfério esquerdo. Uma outra con-
clusão importante de Sakai et alii é que “embora nós tivéssemos usado
estímulos auditivos para apresentar os ritmos, os lobos temporais não
mostraram ativação significativa; apenas uma pequena porção no lado
direito estava ativa para o ritmo 1:2.5:3.5”. Conclui, assim, que

The frontaparietal network active in the present study would, thus,
reflect the supramodal mechanism for rhythm processing, as suggested
by Mavlov (1980). Indeed, it was shown that the ability in rhythm pro-
cessing was preserved, even after the lesions in the temporal lobe
(Peretz and Kolinsky, 1993; Peretz, 1996). [g.n.]
Em consonância com o estudo, Guttman et alii (2005) no artigo de
sugestivo título “Hearing What the Eyes See: Auditory Encoding of
Visual Temporal Sequences” relatam os resultados de experimentos em
que ritmos veiculados através de impulsos visuais são codificados e
transformados em representação mental auditiva, de forma automática,
obrigatória e sem esforço. Baseado na “modality-appropriateness
hypothesis” (Welch,1999, e Welch & Warren, 1980), “perception gives
precedence to the ‘best’ sensory modality for the task at hand: vision for
spatial judgements and audition for temporal judgments. Intersensory
conflicts are resolved through subjugation of the less reliable sense – as
reliable by auditory driving – and possibly even through sensory
recalibration”.
A referência auditiva para estímulos visuais não é algo inteiramente
novo. Conhecemos a fala subvocalizada quando se lê um texto. No
entanto, os experimentos manifestam um “markedly different flavor”:
“It arouse automatically, unintentionally, and without learning or
practice”. Em um dos experimentos, a presença proposital de “incon-
gruent auditory information substantially impeded rhythm memory,
even though this information was irrelevant to the visual task”. Os
observadores foram incapazes de ignorar os sons e se concentrar
exclusivamente nas seqüências visuais.
O estudo também supõe a existência de um módulo perceptual para
processar tempo, que facilitaria a construção de uma estrutura tempo-
ral única a partir de múltiplas modalidades sensoriais, com diferentes
pesos para cada um dos sentidos, na entrada de informação, como su-
gerido pela “modality-appropriateness hypothesis” (Welch, 1999;
Welch & Warren, 1980). Conseqüentemente,
given the effectiveness with which auditory information reflects time,
the representations arising from such a module could well engender an
auditory (rather than amodal) character, resulting in the experience of
‘hearing’ visual temporal structure. [g.n.]
Outra idéia importante é a compreensão de que nossa percepção musi-
cal, assim como a visão e a linguagem verbal, em alguns aspectos,
opera discretizando o contínuo físico. David Temperley, em “The
Cognition of Basic Musical Structures” (2001), ressalta que “the per-

ception of rhythm is, in an important sense, categorical: we understand
notes as being in one rhythmic category or another, rather than merely
perceiving them as continually varying”. Temperley (2001) afirma clara-
mente que “duration patterns are not usually performed with perfect
precision, nor do they need to be in order to be recognized and under-
stood”.

A importância do metro: da duração à posição


Nos textos selecionados, observamos uma crescente importância
atribuída ao metro. Sakai et alii afirmam enfaticamente que
[i]nterestingly, some subjects unintentionally transformed the 1:2.5:3.5
rhythm into 1:2:4 rhythm, which was consistent with the finding of
Essens (1986). It has also been shown that voluntary motor behaviors
tended to fall into a time sequence related with 1:2 ratios (Essens and
Povel, 1985; Fulop et alii, 1992). Together, the results suggest that a
rhythm is represented, by default, in a metrical form rather than a non-
metrical form. [g.n.]
David Temperley (2001), afirma que “at the very least, listeners infer
some kind of structure of regular beats from music, which allows them
to synchronize their movements with it”, por exemplo, batendo os pés
na pulsação. No entanto, para Temperley, “the importance of meter
goes far beyond this; meter plays an essential role in our perceptual
organization of music”. [g.n.] Temperley exemplifica citando
experimentos em que mudar o contexto métrico de uma melodia,
apresentando-a com um outro acompanhamento, a faz soar totalmente
diferente (Povel & Essens, 1985), assim como colocar as barras de
compasso em lugares diferentes de uma mesma música ocasiona os
intérpretes a considerarem-nas como duas peças diferentes, “not even
recognizing the similarity between them” (Sloboda, 1985). Esses expe-
rimentos sugerem, também enfaticamente, que “the metrical context of
a musical passage greatly influences our mental representation of it.”
(Temperley, 2001).
Em Temperley (2001) e Sakai et alii (1991), a inferência da estrutura
métrica se dá a partir das proporções de tempo. As durações são con-
sideradas como o dado em si, sobre o qual se elaboram as represen-
tações métricas. A mesma música, com barras de compasso em lugares
diferentes, é percebida como músicas diferentes, mas sua essência –
aquela que atende ao axioma duracional da teoria musical – se man-
tém: daí a surpresa em ver que é a mesma música, contrariando a intui-
ção – ou a cognição musical. No entanto, não nos enganamos em dizer

que as músicas são, de fato, diferentes. O que há de comum entre as
melodias são as durações, que servem de base para a elaboração dos
estímulos experimentais, mas elas já não representam para nós a cate-
goria perceptiva fundamental que buscamos, com base na qual dis-
cretizamos o contínuo.
De fato, o que devemos procurar é uma inversão: uma supremacia do
cognitivo-métrico em relação ao físico-duracional. Moraes (2003) e
Moraes (1991) constata a negação da duração enquanto categoria per-
ceptiva, resultado daquela inadequada transposição dos parâmetros
físico-acústicos do som para o núcleo axiomático dos “parâmetros da
música”. Citando Bachelard (1933), “que mostra “grande ‘independên-
cia de espírito’ – em relação a uma poderosa musicoteoria”, Moraes
utiliza a frase do autor de A Dialética da Duração para corroborar a
idéia de que:
Para durarmos é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em
sistemas de instantes (...) [A] ‘duração de uma nota não é, em música,
um desses elementos puros, nitidamente primitivos, como fariam crer
os professores de solfejo” [grifo de Moraes]
Em contraste, juntamente com Moraes (1991 e 2003), adotamos um
modelo perceptual que não considera proporções temporais lineares,
mas outra categoria sígnica, denominada “quanDidade” (d/t): a infor-
mação rítmica que “sentimos” é a localização do “ponto” em que se
inicia um dado evento sonoro (ataque), situado em um complexo pul-
sativo hierárquico, sobre o qual “calculamos”, a posteriori, as medidas
de tempo, se desejamos escrever. Curiosamente, nos textos analisados
(por exemplo Sakai et alli e Temperley), podemos encontrar as
expressões “points in time”, “beat” e “onsets”, em significativos
momentos de definições do que é ritmo.

A experiência do Seqüenciador Posicional


Nos últimos anos, tivemos a oportunidade de experimentar, em circun-
stâncias educacionais diversas, o modelo de percepção para ritmo
desenvolvido em Moraes (1991) e (2003). A partir das diretrizes elabo-
radas em Moraes (1994, 1996), construímos um protótipo de um
“Seqüenciador Posicional”. O software permite lidar com as categorias
fundamentais do ritmo, minimizando os cálculos matemáticos – extra-
musicais – presentes na escrita duracional. Exemplificando: na escrita
tradicional, o usuário que deseja “situar” um som na segunda semi-
colcheia do quarto tempo de c , deve contar três tempos (pausas), adi-
cionar ¼ da unidade de tempo, selecionar as figuras adequadas segun-

do a u.t. para, sabendo já “onde” estaria a próxima batida, escrever um
“valor” que preencha a “quantidade” de tempo necessária. No software
posicional, seleciona-se a quadrícula do 4º tempo, escolhe-se o símbo-
lo correspondente ao terceiro nível de pulsação e apagam-se os três
pontos desativados (A/C/D). As notas são inseridas como graus e a
tonalidade é ajustada separadamente.
O software foi experimentado em oficina de criação musical, na VII
Mostra de Física e Astronomia realizada pela Universidade Federal do
Espírito Santo e Prefeitura Municipal de Vitória2, paralelamente à 2 A Mostra
Semana Nacional de Tecnologia, em outubro/2005, com alunos das 6ª, foi promovi-
da pelo De-
7ª e 8ª séries do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Vitória. partamento
Os alunos foram apresentados ao conceito de níveis pulsativos de Física da
hierárquicos, realizando-os corporalmente, e em seguida foram esti- Universidade
Federal do
mulados, no computador, a criar ritmos de 8 compassos, atendendo às Espírito
condições: repetição do conteúdo dos 4 primeiros compassos, a partir Santo,
do qual seriam estabelecidas variações; criação de letra para o ritmo e Laboratório
de Instru-
subseqüente adequação do ritmo à letra desejada, e vice-versa. Nesse mentação
estágio, os alunos demonstraram uma relativa facilidade para detectar para o
qual deveria ser a localização dos pontos na estrutura temporal, para Ensino de
Física e
atender à prosódia do texto desejado, apagando e re-escrevendo even- Prefeitura
tos sem ter que calcular durações, o que tornaria o processo muito Municipal de
menos eficiente, já que não envolveria atividades de verdadeira análise Vitória, entre
5 a 8 de out-
e síntese musical, mas puramente matemática. Notamos que seria útil ubro de
uma interface que permitisse arrastar um ponto de um locus temporal 2005.
para outro. Por último, os alunos adicionavam graus, com repetição e
variação de padrões de alturas, selecionando à parte, com o auxílio do
professor, a melhor tonalidade para a execução junto com o canto, e
gravando, ao final, o trabalho produzido pela dupla de alunos.
O software reflete o princípio de que nossa primeira ação musical é rít-
mica: situar “algo” em algum “lugar” no tempo: uma batida, uma síla-
ba, uma nota – ou, quem sabe, um gesto. Ele impulsiona uma com-
preensão intuitiva das estruturas musicais, especialmente no domínio
do ritmo, e possibilita a manipulação e feedback instantâneos e ade-
quados às representações mentais. Acreditamos que a necessidade de
um estudo aprofundado numa teoria de cognição do ritmo posicional
faz jus à preocupação de Trollinger (2005), segundo à qual
“[m]ost music programs seem to be created by non-professional edu-
cators who are very talented, professional performers and/or private
teachers. Generally, most of these individuals do not receive training
during their education in developmental and educational psychology
or learning processes”.

Espera-se estimular estudos experimentais em cognição rítmica, na
perspectiva posicional, com implicações na educação e na busca de
conteúdo musical em sistemas de informação.

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

Modelagem da variação do timbre musical


utilizando modelos auditivos e mapas de Kohonen
Maurício A. Loureiro
CEFALA - Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e Música, UFMG
Hugo B. de Paula
Pontifícia Universidade Católica de MinasGerais – PUC Minas
Tairone N. Magalhães
CEFALA – UFMG

Timbre Musical

timbre é percebido a partir da interação de propriedades estáti-

O cas e dinâmicas do som, agregando não apenas um conjunto


complexo de atributos auditivos, mas também uma gama de
aspectos psicológicos e musicais. Em 1964, o timbre foi definido pela
ASA (American Standard Association) como “aquele atributo do senti-
do auditivo em termos do qual o ouvinte pode julgar que dois sons sim-
ilarmente apresentados e tendo a mesma intensidade e altura, são dis-
similares”. Metodologias de testes subjetivos de similaridade empresta-
dos da psicologia experimental permitiram uma redução da dimen-
sionalidade deste atributo em representações de menor complexidade,
com a introdução da noção de “taxa de similaridade” entre estímulos
auditivos, o que possibilitou mapear geometricamente o conceito de
similaridade acústica, fornecendo uma quantificação psicológica de
uma estrutura relativamente complexa a partir de dados bem simples.
Estudos mais recentes estabeleceram correlações entre fatores percep-
tivos relacionados ao timbre e grandezas físicas mensuráveis direta-
mente do som, possibilitando outras abordagens na investigação de
timbre baseadas em análise acústica (Misdariis, Smith et alii, 1998).
Os instrumentos acústicos tradicionais permitem a produção e controle
de uma vasta gama de timbres, que dependem da altura da nota, da
maneira como é tocada e da habilidade do músico em seu controle
dinâmico. Entretanto, não há uma escala que o permita ser especifica-
do quantitativamente pelo sistema tradicional de notação musical
assim como volume e altura, descritos em escalas fraco-forte e de
gamas alturas. Investigações mais extensivas sobre a variação inten-
cional do timbre e sobre a capacidade do ouvinte em perceber e com-

preender esta intenção tornam-se cada vez mais necessárias para a
compreensão da contribuição de parâmetros acústicos , entre eles a
diferenciação de timbre para a condução e percepção da expressivi-
dade de uma performance musical.

Modelos Auditivos
Pesquisas em neuropsicologia e neurofisiologia da audição humana
têm possibilitado a construção de modelos que buscam representar o
comportamento dos componentes responsáveis pela audição, tais
como ouvido externo e médio, membrana basilar, células ciliares do
ouvido interno e fibras nervosas do oitavo nervo craniano do sistema
nervoso. Modelos auditivos ou cocleares vêm oferecendo uma alterna-
tiva promissora para pesquisa em timbre musical. Estes modelos trans-
formam o sinal em padrões de disparos neuronais, conhecidos como
neurogramas, resultando numa representação que não traduz neces-
sariamente a distribuição de energia do sinal ao longo de seu espectro
de freqüência. Estudos comprovaram uma maior eficiência destes mod-
elos frente aos tradicionais, em casos em que o sinal se apresenta alta-
mente corrompido por ruído. Esta propriedade os torna adequados para
a pesquisa em timbre, por implementarem uma característica complexa
da percepção auditiva, que é a capacidade de discriminação de timbres
mesmo com a presença de altos níveis de ruído. Estudos mais recentes
comprovam a robustez destes modelos na investigação dos mecanis-
mos perceptivos do timbre musical (Cosi, De Poli et alii, 1994;
Toiviainen, Kaipainen et alii, 1995; Toiviainen, 1996; De Poli e
Prandoni, 1997).

Mapas Auto-Organizativos de Kohonen


Mapas Auto-Organizativos de Kohonen, conhecidos como SOM (Self-
Organizing Maps), são algoritmos de redes neurais não supervisiona-
dos, capazes de mapear dados de entrada de grandes dimensões em
espaços de baixa dimensão, preservando as relações topológicas essen-
ciais dos dados originais (Kohonen, 1995; Braga, Ludermir et alii,
2000). Por não se fundamentar em suposições a priori sobre as carac-
terísticas dos dados analisados, SOM se mostra como uma ferramenta
poderosa para experimentos que envolvem análise de dados de grande
complexidade e com altos índices de não linearidade, tais como sons
musicais.
Leman propôs uma comparação entre os resultados obtidos por mapea-
mentos timbrísticos resultantes de redes SOM com aqueles espaços

construídos por MDS a partir de medições psicológicas, com o objeti-
vo de estabelecer uma plataforma que incorporasse fenômenos audi-
tivos e neuronais para a pesquisa musicológica (Leman, 1991; Leman,
1994). Toiviainen comparou a eficiência das representações do timbre
musical em espaços construídos por distâncias topológicas computa-
cionalmente calculadas por SOM e por medições de estimação subje-
tiva de similaridade (Toiviainen, Kaipainen et alii, 1995). Os resultados
deste trabalho comprovaram um alto grau de correlação entre os dois
domínios, sugerindo uma adequação do modelo de Kohonen para
representar complexos perceptivos multidimensionais A equipe de
pesquisa do CSC da Universidade de Pádua desenvolveu estudos de
classificação de timbres musicais utilizando SOM (De Poli, Prandoni et
alii, 1993; De Poli e Tonella, 1993).

Objetivos
Este trabalho buscou explorar as possibilidades de utilização de
modelos auditivos computacionais para investigar o significado dos
parâmetros físicos determinantes nas variações de timbre que ocorrem
na execução de uma nota musical. A rica variação timbrística da
clarineta foi utilizada para a construção de mapas timbrísticos, nos
quais similaridades entre sonoridades pudessem ser representadas por
distâncias geométricas em espaços de baixa dimensionalidade.

Métodos

Dados de Análise
Embora o timbre possa variar independentemente da intensidade ou da
duração, o alto grau de correlação entre timbre e intensidade facilita a
amostragem de "valores" distintos de timbre para uma mesma nota a
partir da especificação da intensidade. Assim, um músico foi instruído
a executar cada nota em quatro níveis de intensidade distintos: pianis-
simo, mezzo-piano, mezzo-forte e fortíssimo, com o mínimo de varia-
ção possível. As amostras foram obtidas a partir de gravações de todas
as notas dos dois registros mais graves da Clarineta em Si b, variando de
Ré 3 (147 Hz) a Lá 5 (880 Hz), executadas nos quatro níveis de intensi-
dade acima, com uma duração média de 3 segundos. Utilizamos tam-
bém neste estudo amostras de grande conteúdo expressivo e larga
variação de dinâmica e timbre, em diferentes registros do instrumento,
extraídas da Abertura do 1º movimento do Quintetto op. 115 em Si
menor para clarineta e quarteto de cordas de Brahms (compassos 5 a

17). As gravações foram reamostradas a 22,05 kHz, e suas amplitudes
foram normalizadas, para que fossem classificados em função de sua
variação dinâmica.

Modelos Auditivos
Estas amostras foram então representadas em cocleagramas, extraídos
com a utilização do modelo auditivo desenvolvido por Richard Lyon
(1988) implementado em Matlab por Malcolm Slaney (1998). Neste
modelo, um filtro linear simples simula a filtragem que ocorre no canal
auditivo. Na modelagem da cóclea, são combinados vários canais de
bancos de filtros, que modelam a propagação das ondas de pressão,
com ressonadores, as convertem em movimento da membrana basilar.
O movimento da membrana basilar é detectado pelas células ciliares
internas, que capturam apenas a fase positiva do sinal. Estas são simu-
ladas através de Retificadores de Meia Onda (Half Wave Rectifiers ou
HWRs), que fazem a representação neural do sinal. Controles de
Ganho Automático modelam efeitos como mascaramento, diferenças
de tempo de adaptação no ouvido interno e não-linearidades da cóclea
(Lyon e Mead, 1988). A saída gerada por esse modelo é uma matriz
com a probabilidade de ocorrência de disparos ao longo do nervo audi-
tivo, denominada cocleagrama. A fim de reduzir a quantidade de
dados, os dados de entrada foram decimados a cada 500 amostras.

SOM Toolbox
Os cocleagramas foram então classificados por um mapa auto-orga-
nizável de Kohonen bidimensional com topologia hexagonal. Os arran-
jos destes mapas neurais podem tomar várias formas, definindo as
relações de vizinhança entre os neurônios. Este estudo utilizou uma
implementação do SOM em Matlab desenvolvida por Juha Vesanto e
equipe, da Helsinki Unversity of Technology, o SOM Toolbox (Versanto,
Himberg et alii, 2000).

Resultados alcançados e discussão


Inicialmente, um mapa SOM hexagonal de tamanho 16x10 foi usado
para mapear as notas mais graves do instrumento. O mapa da esquer-
da da Figura 1 mostra os sons ff e π destas 7 notas. Observa-se que o
SOM foi capaz de discriminar os pontos pertencentes a cada som, agru-
pando-os em poucas células contíguas. Percebe-se também que tanto
as alturas quanto as intensidades foram adequadamente discriminadas
pelo SOM e que notas π foram agrupadas mais compactamente que

notas ff. Notas π tiveram a maioria de seus pontos concentrados em
uma célula. Isto pode ser melhor verificado no mapa do centro que
indica em cada célula a porcentagem da extensão total de cada som
nela mapeada, proporcional ao tamanho do ponto. Esta diferenciação
de espalhamento no mapeamento das intensidades também pode ser
verificada pela distribuição de distância métrica do mapa, mostrada no
gráfico da direita da Figura 1, no qual distâncias entre hexágonos repre-
sentam distâncias entre neurônios do mapa. Este resultado é consistente
com estudos anteriores, nos quais espaços espectrais construídos a par-
tir de Analise de Componente Principais (PCA) da distribuição espectral
foram utilizados para representar o timbre (Loureiro, de Paula et alii,
2004a; Loureiro, de Paula et alii, 2004b).

Figura 1: Mapeamento das amostras em neurônios do SOM (à esquer-


da); porcentagem de amostras presentes em cada neurônio (no meio);
matriz de distâncias entre os neurônios, onde quanto maior a célula,
menor a distância entre suas vizinhas (à direita).
No entanto, a influencia da altura da nota neste tipo de representação
a torna inadequada para as finalidades deste estudo, que buscou carac-
terizar as variações sutis do timbre, tais como aquelas que ocorrem ao
longo de uma mesma nota durante uma performance musical. Vários
sons de uma mesma altura foram então classificados em mapas SOM
individuais para cada altura. O mapa da Figura 2 mostra 4 sons da nota
Fá # 3 , amostradas fora do contexto de uma performance musical, nas 4
intensidades, π, P, F, ƒ. Nota-se que houve uma boa discriminação
das intensidades, cada uma ocupando um dos 4 cantos do mapa.
Com a finalidade de caracterizar a variação de timbre durante uma per-
formance musical, adicionou-se ao mapa anterior 3 notas de mesma
altura, extraídas da Abertura do 1º movimento do Quintetto op. 115

em Si menor para clarineta e quarteto de cordas de Brahms, dos com-
passos 15, 16 e 17. Uma comparação auditiva entre estas 3 notas reve-
la que a nota do compasso 15 é a que exibe maior variação timbrísti-
ca, enquanto que a nota do compasso 17 corresponde a um final de
frase em pianíssimo ( ∏ ), com pouca variação de timbre. Podemos
observar a mesma tendência de mapear os níveis de intensidade ao
longo do eixo vertical e de distribuir sons de maior intensidade ao
longo de regiões mais extensas do mapa.
Além disso, é interessante notar que os sons musicais foram mapeados
no lado esquerdo do mapa, enquanto que os sons não musicais foram
deslocados para o lado direito. Isto pode estar relacionado com o fato
de que os sons musicais foram tocados por um músico distinto em um
instrumento também distinto, mesmo que gravados em condições
idênticas.

Figura 2. Trajetórias de amostras do Fá # na oitava 3 em 4 níveis de inten-


sidade (à esquerda); sons não musicais acrescidos de três
amostras extraídas do Quintetto de Brahms (à direita; tocadas
por instrumentista e clarineta distintos.

Conclusão
Esta representação gráfica do timbre e de sua evolução temporal ofere-
ce caminhos para a compreensão do controle dinâmico e instantâneo
que o instrumentista detém sobre o som dos instrumentos acústicos e
de como este controle é percebido pelo ouvinte. Entretanto, a interação
entre a não linearidade dos modelos auditivos e a topologia não uni-
forme dos mapas auto-organizáveis de Kohonen ainda precisam ser
melhor entendida para que esta representação reflita mecanismos de
produção intencional e percepção do timbre.

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

5. Artes Musicais e Cognição Social




Mídia, gosto musical e a construção social


da noção de infância
Maria José Dozza Subtil
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Universo midiático e produção de sentidos

texto apresenta reflexões teóricas decorrentes de uma pesquisa

O realizada de 2000 a 2005, com crianças de 9 a 12 anos de


escolas públicas e particulares da cidade de Ponta Grossa/PR,
objetivando compreender como se processa a apropriação e fruição da
música midiática. A investigação revelou que embora não se possa
superestimar a importância da televisão, uma vez que existem outras
agências atuando na socialização dos menores – grupo familiar, grupos
de amigos, comunidade de entorno, igreja e a própria escola – é
impossível negar que pela intensiva e extensiva exposição diária ela
constitui-se, juntamente com o rádio, numa das principais fontes de
informações, significações e conceitos sobre relações sociais em geral,
mas particularmente sobre sociedade/escola, infância/adultos e
relações de gênero.
Estudar a apropriação da música midiática, e nesse processo entender
a produção do gosto musical e sua expressão, supõe considerar as for-
mas e objetos de consumo postos pelo amplo universo mídiático e que
são colhidos pelas crianças tanto no contexto doméstico quanto no
escolar, buscando apreender espaços de subjetivação e de autonomia
na produção de significados, apesar da massiva imposição da indústria
cultural. Martí (1999: 31), afirma que “…a música não reflete tão
somente o espírito de uma época, mas também intervém dialética-
mente na configuração deste espírito…”. Fruição, expressão e signifi-
cação das músicas midiáticas pelas crianças são práticas simbólicas
que envolvem determinantes estruturais e subjetivos.
Se os textos midiáticos produzem uma polissemia de interpretações e
significados que têm relação com determinantes individuais e cole-
tivos, isso traz para a recepção, não mais o caráter de reprodução das
relações de força da sociedade mas a capacidade de produzir sentidos
e o desvelamento de um lugar onde aparece uma determinada com-
petência cultural: “Os ‘usos’ (…) são inalienáveis da situação sociocul-
tural dos receptores, que reelaboram, ressignificam, ressemantizam os

conteúdos massivos conforme sua experiência cultural, a qual dá
suporte para esta apropriação” (Jacks, 1999: 51).
O entendimento das mensagens midiáticas, a incorporação desse mate-
rial simbólico ao repertório de conhecimentos e sentidos no decorrer
da existência concreta dos indivíduos, é um processo condicionado por
múltiplas mediações. Cabe destacar a idéia de mediação
… como um conjunto de elementos que intervêm na estruturação,
organização e reorganização da percepção da realidade em que está
inserido o receptor. (…) As mediações produzem e reproduzem os sig-
nificados sociais, sendo o ‘espaço’ que possibilita compreender as
interações entre a produção e a recepção. (ibid: 49).
A mesma autora define o sentido de mediação em diferentes
dimensões: individuais, situacionais e institucionais. As individuais são
centradas no indivíduo, envolvem aspectos cognitivos – fatores que
influenciam na percepção, apropriação e aquisição do conhecimento,
e estruturais – elementos identitários referenciais como sexo, religião,
escolaridade, etnia e estrato socioeconômico. As mediações
situacionais envolvem, além dos aspectos individuais, o contexto onde
acontecem as práticas cotidianas, particularmente o lar. As mediações
institucionais inscrevem o sujeito num cenário mais amplo, numa dada
comunidade, ligando-o a instâncias de níveis e caráter diferenciados:
família, escola, religião e partido político. (ibid: 52-55).
O que isso significa em termos de produção do gosto musical das crian-
ças a partir das emissões midiáticas (rádio e TV)? A análise empírica
demonstrou que assistir a / ouvir programas musicais, cantar/decorar
músicas e comprar CDs são atividades que, mesmo individuais, contam
com a parceria da família, dos amigos e dos colegas e são comparti-
lhadas. Há uma cadeia de percepções, significados e conhecimentos
construídos nos diferentes espaços e situações como sala de aula,
recreio, entrada e saída da escola, festinhas, quarto, sala de tv, reunião
de amigos e igreja, que são determinantes nas práticas musicais e na
expressão de valores e juízos de valor.
Esse processo evidencia uma outra forma de apreensão da cultura
decorrente dos novos sentidos produzidos pela mídia.
O audiovisual, graças aos recursos da eletrônica, trabalha com
som/imagem/palavra numa dimensão ampliada, mixada e multiplicada,
ou seja, como “experiência global unificada” (Babin, Kouloumdjian,
1982: 41). Particularmente no que tange à música, isso significa que o
‘homem audiovisual’ é uma combinação da vista e do ouvido” (ibid:

84). Mas a percepção auditiva tem um papel preponderante nas vivên-
cias sensoriais pois, “… na imagem há projeção de um sentimento
provocado pela sucessão de esquemas de tensão e movimento
induzido pela forma musical” (ibid: 87).
Há um “sentido pressentido” é inconsciente e precede à lógica num
primeiro momento mas, na seqüência, regula e condiciona o pensa-
mento. Assim se explicaria o hábito formado nas crianças e adoles-
centes de ler os livros em rápidas olhadelas, que substituem a imersão
e a reflexão mais aprofundada do texto escrito. A TV estaria criando
uma forma de processamento da informação de fora para dentro
(Kerkhove, 1999: 50). Em particular, no caso da música, o aumento da
velocidade da duração rítmica conforma modos de audição, dança e
movimento mais do que a apreciação somente auditiva da melodia e
da letra. O clip é a forma melhor acabada dessa “visualização” sonora
que apela ao movimento e à dança
Esse apelo icônico e cinético proposto pelas emissões televisivas é o
responsável por expressões que explicam mais do que aparentemente
querem dizer como “eu vi a música da Carla Peres”’ “eu gosto de ver a
música do Daniel”, ou ainda a fixação pelos ídolos, com suas
performances e caracterizações e não tanto nas letras e melodias
criando expressões metonímicas, tais como, “eu gosto da Vanessa
Camargo” (não “eu gosto da música da Vanessa Camargo!”).1 1 Prova disso
Também é necessário acrescentar que a música midiática encarna-se éque o fato de
apesar
nas imagens/objetos/fetiches evocados pelas veiculações de gêneros e de o Cantor
astros, ou seja, criações míticas que atendem demandas simbólicas por Daniel ser
ilusão, sublimação e satisfação de desejos secretos e também citado como
o preferido
produzem demandas de consumo objetivo e de posse. em 5 anos
de investi-
As crianças de 9 a 12 anos revelaram-se consumidoras costumazes de gação, por
gêneros, artistas, programas, CDs e outros objetos decorrentes das aproximada-
veiculações midiático/musicais. Esse processo não fica apenas na mente 40%
das crianças,
superfície, mas molda formas de ver, sentir, representar e entender o nenhuma de
mundo, a sociedade em que vivem e as relações humanas que neles suas músicas
habitam. Cabe investigar mais a fundo de que crianças estamos falan- é referida
nessa mesma
do e que noção de infância está sendo moldada por esses objetos dimensão. O
culturais, particularmente musicais, no princípio do novo milênio. mesmo
aconteceu
em menor
Mídia, gosto musical e construção social escala com a
da noção de infância. cantora
Vanessa
Algumas afirmações das crianças tomadas em momentos de apreciação Camargo.

e discussão sobre música midiática trazem elementos reveladores:
“Não tem que tê música na escola porque a escola não é pra se diver-
ti é só estudá” (Tam, 10 anos); “música de dentro da escola é aquelas
que ensina, assim… educativa, cultural não as da televisão” (Juliano, 9
anos); “tem música de criança e de adulto… só que nós somo criança
mas gostamo das música de adulto … a gente é assim meio adulto,
meio criança” (Edu, 10 anos); “o funk é música de prostituta… é muito
besterenta… fala muito palavrão… nós gostamos de dança o funk”
(Marina, 11 anos); “as meninas gostam mais de música assim de amor,
melosa, os menino gostam mais de funk, música country, sertaneja…
elas gostam mais de dança… nós de olhá” (Edimilson, 12 anos)
É possível perceber o caráter pedagógico na mídia que “ ensina” os
diferentes papéis sociais - ser homem, mulher, criança, adulto, legitima
alguns conhecimentos em detrimento de outros, impõe um arbitrário
cultural e até fortalece formas sensório-motoras de apreensão de
conhecimentos, que vão interferir na aprendizagem formal vivenciada
na escola. Nessa esteira uma outra noção de infância está sendo
construída.
Estudos revelam que as mídias, através da veiculação dos diferentes
objetos culturais entre os quais a música, tem se configurado como um
fator cada vez mais importante no processo de socialização.
Buckingham (2000: 9) afirma mesmo que “o próprio significado de
infância nas sociedades atuais se cria e se define através das interações
das crianças com os meios eletrônicos”. O advento das tecnologias
para consumo doméstico, particularmente a televisão, vai provocar
outras discussões sobre o “ser criança” na esteira das críticas aos
processos e produtos postos à disposição pela indústria cultural e que
afetam decisivamente essa categoria social.
O “sentimento de infância”, um modo de encarar as crianças, e a
“infância” como fase da vida independente das outras (adolescência,
juventude e idade adulta ) é bastante recente e contemporâneo ao
surgimento da família e da própria escola que “retiraram juntos a crian-
ça da sociedade dos adultos” (Ariès, 1981: 277). Postmam (1999: 111)
credita a construção e a desconstrução da noção de infância na
contemporaneidade aos eventos tecnológicos que ampliaram e
publicizaram informações e conhecimentos restritos ao público adulto.
A acessibilidade da informação proposta pela mídia televisiva, que
destrói as diferenças entre conhecimentos privados e públicos e cuja
revelação é gradativa, faz com que as crianças saibam tudo e as torna

semelhantes aos adultos: “Significa (…) que ao ter acesso ao fruto, antes
escondido da informação adulta, são expulsas do jardim da infância”.
Na contramão desse argumento, Meyrowitz, citado por Buckingham,
considera positivo o desvelamento do mundo dos adultos proposto pela
televisão, como forma de romper com um círculo de segredos e
hipocrisias:
O uso generalizado da televisão equivale a uma ampla decisão social
de permitir aos pequenos que estejam presentes nas guerras, nos enter-
ros (…) na sedução e nas tramas criminosas (…) Assim pois não só
ocorre que a televisão descobre “ segredos”: revela também o segredo
das coisas secretas, e por conseguinte deixa os adultos inermes ante a
possibilidade de acusação de hipocrisia” (2000: 41).
A verdade é que a mídia desencadeia a expressão de juízos de valor
como demonstrado acima, revelando o desenvolvimento do juízo
moral, lugar do encontro ou do confronto entre afetividade e razão e
que fundamenta os significados atribuídos às práticas musicais. Se
“Toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda
moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por
estas regras” (Piaget, apud La Taille, 1992: 49), as crianças de 9 a 12
anos situam-se na fase da heteronomia, possuem interesse em partici-
par de atividades coletivas regradas, mas não se pode dizer que são os
sujeitos da produção dessas normas. Para elas, as regras são “algo 2 O conflito
sagrado e imutável pois imposto pela tradição” (ibid: 50). revelado
pelas
Assim os julgamentos dos sujeitos desta pesquisa - estão impregnados crianças em
gostar,
dos valores impostos pela sociedade e, por ser essa uma fase de tran- dançar e
sição entre heteronomia e autonomia quando discorrem sobre músicas comprar as
e cantores, apresentam uma face contraditória: criticam, julgam com músicas do
funk, mas ao
severidade letras, movimentos e significações do funk, em particular, mesmo to
associando a estereótipos de gênero, mas afirmam sua preferência por julgar negati-
esse gênero, mais ou menos na linha do “façam o que eu digo mas não vamente as
palavras, os
façam o que eu faço”.2 trejeitos, os
gestos e a
Ao evidenciar gosto e significação musical, as crianças revelam a significação
dimensão afetiva da sua relação com os objetos da cultura e, aqui, é das letras
pertinente afirmar como o autor acima citado, que só é possível mostra bem
esses senti-
compreender o pensamento humano a partir dos interesses, afetos, mentos
impulsos e emoção. decorrentes
da hipocrisia
com que a
Considerações finais sociedade
trata tais
Os sujeitos desta pesquisa revelaram modos de ser criança na relação objetos cul-
turais.

com a música midiática. A extensividade e intensividade do contato
com os produtos musicais que essas crianças mantêm cotidianamente
produzem visões de mundo desveladas nas representações muitas
vezes antagônicas sobre criança x adulto, escola x sociedade, meninos
x meninas, por exemplo, que ancoram os preconceitos e a valoração
que a própria sociedade estabelece quanto a esses pares e, particular-
mente, sobre a infância.
No entanto, se é possível afirmar que o processo de constituição da
infância hoje decorre das imposições estruturais da sociedade massiva
de consumo, não se pode desconsiderar os aspectos ativos da recepção
musical dos sujeitos pesquisados. Pela característica própria da música,
por seu caráter gregário e performático, ela aciona diferentes media-
ções: individuais, contextuais e institucionais, que vão, de certa forma’
interferir nas escolhas, nas preferências, nos juízos de valor e nas
práticas musicais individuais ou compartilhadas.
Cabe ressaltar também o fato concreto de que a educação musical hoje
está por conta das crianças. As instituições socializadoras, entre elas a
escola, não interferem qualitativamente nessa formação. A prática
comum é a audição apenas como evasão, motoricamente, aleatória e
centrada na imagem, na repetição e no re-conhecimento como afirma
3 As dubla- Adorno (1991).3
gens – quan-
do as cri- Não se deve desconsiderar o potencial pedagógico da mídia que ensi-
anças na também sobre música (materiais sonoros diversos, instrumentos,
repetem os
movimentos formas, estruturas’ história e desenvolvimento musical) pelo aporte da
e as letras mixagem som/imagem. Aproveitar essa dimensão significa desenvolver
dos cantores a percepção e a comparação, por exemplo no funk, no rap, no pagode,
ao som de
CDs – acon- na axé music do que é inovação e do que é mera repetição. Se a escola
tecem fre- quiser cumprir seu papel na educação musical deve ampliar os
quentemente repertórios, inserindo no espaço escolar, outras formas musicais que
nas escolas.
estão ausentes do entorno sonoro das crianças.
Vale a pena também trazer para o interior da escola a discussão sobre
o contexto de origem das formas musicais veiculadas massivamente,
como elas se instalaram de empréstimo nas culturas atuais, como afe-
tam hoje nosso gosto e nossas práticas, no local e no espaço que ocu-
pamos. Isso necessariamente irá desencadear uma reflexão sobre o
papel da Indústria Cultural como sistema integrado produzindo e
reproduzindo valores, tendo por base as injunções econômicas da
sociedade capitalista contemporânea.

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Relações estéticas, programação e «Do belo na música hoje»


Isaac Felix Chueke
Observatoire Musical Français – Université de Paris-Sorbonne

Relações estéticas

e modo indubitável observa-se nos dias atuais uma impor-

D tante transformação no tocante à recepção da obra de arte.


O público por certo adota atitude menos passiva, exigindo
uma interação maior entre emissor e receptor. O artista consciente não
se imobiliza e também age, buscando a interface entre seu exercício
profissional e a sociedade à qual pertence.

No caso específico da música contemporânea este novo comporta-
mento de ambas as partes provou-se como essencial em têrmos de
divulgação. Terá chegado o momento em que a produção de nosso
tempo poderá ser mais amplamente reconhecida pela sua qualidade e
diversidade? Este processo de transformação, aliás pouquíssimo docu-
mentado pelos historiadores, está longe de estar terminado. Aberto
porém o caminho para novas relações estéticas, analisemos algumas
das mudanças responsáveis por este fenômeno bem como suas princi-
pais conseqüências. Considerando os vários acontecimentos ocorridos
entre o fim do século 19 e o primeiro decênio do 20 liderados por
Wagner, Mahler e Scriabin de um lado, Debussy, Schoenberg e
Stravinsky do outro, uma nova gramática estava disponível e nos
cinqüenta anos que se seguiram compositores como Boulez e
Stockhausen encarregaram-se de estender estes limites à base de novos
conceitos. Paralelamente, a obra de arte nas suas variadas manifes-
tações ia progressivamente sendo entendida como não catalogável,
adquirindo um significado plural e a obra aberta tornara-se por assim
dizer o avesso do objeto pronto, acabado, definido, instância na qual a
última palavra continuava sendo a do criador, aquela figura que mal
suportava a «intromissão» do público. A nova música, que nos anos 70
encontrava-se completamente afastada do diálogo com o mundo das
outras artes contemporâneas, decide finalmente aliar-se ao movimento.
Até aquele momento as contribuições da música erudita sendo fre-
qüentemente ignoradas pelos mundos da dança moderna e do teatro
experimental, preteridas por outros gêneros musicais como o rock e o
jazz, uma boa dose de competência e esforço passaram a ser requeri-
dos tanto de parte do emissor quanto do receptor, uma vez que tornara-
se imprescindível comunicar. À tomada de consciência inicial, seguira-
se o portanto o desejo de apropriadamente direcionar as novas platéias.
Um passo importante tinha igualmente sido alcançado com o reco-
nhecimento da existência de culturas estrangeiras perfeitamente legíti-
mas, originando a partir daquele momento intercâmbios entre artistas
originários da Ásia, Europa e das Américas. A indústria fonográfica
chegara atrasada, custando a liberar-se de seus entraves, recuperando-
se mais tarde ainda que com a criação de ‘labels’ ou sêlos por demais
simplistas, numa simples etiquetagem de gêneros, criando a chamada
«world music». Hoje assistimos ao surgimento de uma nova corrente na
música, aquela que deseja não necessáriamente eliminar as outras
manifestações estéticas mas apenas inserir-se como nova via de
expressão. Particularmente, no que se refere aos novos compositores,
tudo indica que terão sido eles os primeiros beneficiados. Afinal, era

chegado o tempo de uma nova escrita englobando influências as mais
diversas e estas poderiam-somar-se ao aprendizado acadêmico já con-
quistado nos conservatórios, eliminando uma série de tabus. Na área
da interpretação musical, atingia-se maior liberdade, com novas
instruções sendo repassadas aos executantes, suas capacidades de
improvisar sendo inclusive colocadas à prova. As fronteiras abolidas,
seria a música nesta nova démarche passível de novamente surpreen-
der o público? Os artistas haviam na realidade acrescentado algo mais
à sua proposta: desejavam um enfoque diferente de nossa percepção
musical. Obedecendo a uma concepção diferente do ritmo, o silêncio
tornara-se de ouro. O timbre proclamara sua independência firmando-
se como parâmetro autônomo. Por outro lado, procedimentos com-
posicionais por alguns tachados de obsoletos sofriam de revisão: uma
vez que os criadores estavam libertos da pressão de terem que escrever
segundo esta ou aquela tendência convencionada como de vanguarda,
ficava mais fácil a apropriação de elementos tradicionalmente consi-
derados como pertencentes ao passado. Sendo assim, que tal um
retorno ao contraponto ou à formulação de estruturas representando o
novo e o antigo aos que assim o desejassem? Todas estas conquistas
uma vez assimiladas não poderiam correr o risco de serem esquecidas,
muito menos subestimadas, e neste sentido outro fator primordial era
de que o material musical, se manejado com a dose certa de talento,
estaria explicitamente validando-as. Também a tecnologia deixaria sua
marca, veículo de uma música electroacústica pura ou parceira em
tempo real de execuções ao vivo. Respondendo presente através a
notação, gravação e publicação de uma obra, ela penetrara em mais de
um campo. Logo para novas percepções, novas relações estéticas.

Programação e “Do belo na música hoje”


O ouvinte na qualidade de receptor ativo. O conceito do «belo», hoje
revitalizado por uma nova apreciação estética, a importância do recep-
tor neste enlace é fácilmente observável. Integrante de uma nova ge-
ração exigente de formas originais de expressão artística em ligação
direta com nossa contemporaneidade, ele reivindica uma participação
integral no processo global da criação. Deveríamos ainda estar espan-
tados da recepção outorgada hoje à música tão criticada da primeira
metade do século XX? “Recusando à música qualquer outro conteúdo
[que não a forma], conservamos seu valor.” (Hanslick, 1854: 167).
Nosso sentimento do belo, confrontado à conclusão de Hanslick não é
com toda certeza imutável. Se admitimos que as emoções suscitadas
pela música junto ao ouvinte constituem um fenômeno à parte,

simultâneamente não poderia falar-se hoje de uma apreciação estética
menos engajada? Propositadamente neutra, nos desobrigaria daquela
posição unilateral que automáticamente rejeita outras possibilidades.
Novamente, este mérito deveria ser creditado ao público que, inversa-
mente à idéia geralmente difundida e aceita, não é necessáriamente
ingênuo. Nada impediu-o por exemplo de saborear plenamente uma
música dita «acessível», aquela produzida a partir dos anos 80, corte-
jando-a sem complexos com formas de arte completamente outras.
Logo, segundo nossa opinião, ultrapassados seriam aqueles que con-
tinuassem insistindo, como dantes, a dividir a música em domínios
diferentes, julgando uma séria, a outra informal, tornando-as nova-
mente incomunicáveis entre si. De uma mensagem autêntica lembran-
do-nos o século no qual vivemos, de uma música que não se contente
em trabalhar com fórmulas mais do que gastas, é disto que necessita e
pede o público. Observemos o repertório «inabitual», cada vez mais
presente na programação de concertos: os grandes ciclos Stravinsky,
Schoenberg, etc. A coqueluche de festivais contemporâneos saídos dos
guetos de especialistas, eventos anteriormente reservados quase que
exclusivamente aos «iniciados». O público de forma geral sentia-se
práticamente excluído. O despertar para todos, crianças e adultos,
parece ter sido o do acoplamento de ateliês e ações educacionais diver-
sas, ao que parece, condição sine qua. Na França, um concerto, melhor
dizendo um «happening» com a música de Iannis Xenakis, foi realiza-
do na praça do Louvre. Contando com a presença de milhares de
espectadores, ali sentados defronte à moderna pirâmide envidraçada, o
público atento e receptivo à músicas entretanto consideradas de ordem
bastante complexa, haveria nesta situação forçosamente uma ambiguï-
dade? O belo na música hoje? Já observamos a influência e os resulta-
dos quando da adição da música de outras culturas à nossa. A cons-
ciência aguda quanto às questões tratando principalmente da restitui-
ção da individualidade, da espontaneidade, da interação das múltiplas
propostas criativas num mundo tecnológicamente avançado, não pode
deixar de se perguntar sobre o lugar ocupado pela arte na sociedade.
Transferência automática – do belo na música hoje passando por uma
outra apreciação da música de ontem – o repertório de cinco séculos
pode até soar como novo. Bastante fascinante aliás é o que representa
para nós a configuração de dispositivos modernos para a redescoberta
de uma arte construída com outros meios. Como podemos observar,
todas estas novas relações não deturpam, pelo contrário elas enrique-
cem! As mudanças sociais tendo nos ajudado a reformar muitos de nos-
sos valores e conclusões há muito arraigados, a música provou sua

capacidade de resistir às intempéries, e sua recepção idem. Quando
Hanslick comenta a respeito da instabilidade da relação semântica, esta
instabilidade deve-se ao ouvinte. Se concordamos que existe um fator
variável no que toca à recepção bem como de uma abordagem trans-
cendental, questionamos também: há necessidade de uma educação
específica para a arte? Abordemos este aspecto sob outro ângulo, o da
música e de sua representação. A luta de Hanslick em «a obra por ela
mesma» é a luta por uma música «pura», que negaria as vantagens
destas múltiplas associações extramusicais. Perguntamos: o imaginário
a serviço de uma apreensão global ao alcance de todos, por que não?
Nossa opinião é de que a música sendo dotada de caráter tão distinto,
jamais correria o risco de perder seu status de arte verdadeiramente
independente. Como ilustração, segue a seguinte descrição de um
ensaio do maestro Wilhelm Furtwängler. Palavras de Otto Strasser
(Jacquard, 1991: 11-14), durante anos um dos principais violonistas da
Orquestra Filarmônica de Viena, igualmente um de seus adminis-
tradores: «Ocorreu quando ensaiávamos a Eroïca (...) no transcorrer do
segundo movimento, a Marcha Fúnebre, Furtwängler disse repentina-
mente aos primeiros violinos: ‘Vocês estão tocando esta passagem de
modo por demais sentimental. Trata-se de um velório sem lágrimas’. Na
Sinfonia Pastoral, no momento da «tempestade», ele falava de um
«dilúvio, de raios amarelos que flamejavam». Interpretando a Quarta
Sinfonia de Bruckner, os acordes das cordas que preparam no segundo
movimento o tema maravilhoso das violas, deviam soar como «gotas
que caem». Strasser conclui: «Hoje em dia seria muito comum taxar-
mos tais expressões como românticas, entretanto para nós músicos,
estas palavras tão esclarecedoras significam mil vezes mais que as
observações recriminatórias de muitos regentes que, à parte controlar
as indicações de dinâmica e agógica, não têm práticamente nada a
declarar sobre a essência da música.» Sublinhamos esta última
expressão, essência da música, para demonstrar como sumidades musi-
cais, orquestra e regente situados no mais alto patamar artístico, julga-
ram indispensáveis recorrer à imagem para a realização de seu objeti-
vo maior, qual seja o da interpretação da mensagem musical. Outras
analogias podem revelar-se igualmente muito reveladoras. Por exem-
plo, Alfred Brendel (Brendel, 1990) na sua interpretação da Sonata em
lá menor K 310 de Mozart afirma ter o sentimento de um primeiro
movimento escrito primordialmente para orquestra sinfônica, de um
segundo lembrando uma cena vocal com sua seção intermediária car-
regada de dramaticidade, de um finale como transcrito para instrumen-
tos de sopro interpretando um divertimento de grande ligeireza. Visto

seu contexto histórico compreendemos a posição de Hanslick, princi-
palmente se considerarmos uma questão tão delicada como a das
relações entre a música dramática e o drama musical, problema de
ordem estética que foi motivo de preocupação para os compositores
românticos alemães. Em contrapartida, concernente a idéia de uma
abordagem científica da música, sempre situada vis-a-vis a substância
musical conforme o desejo daquele autor, a consideramos como de
grande atualidade. Porque com certeza, se a obra é imutável na sua
objetividade musical, levando-se em conta uma notação de todos os
modos bastante precisa, sua forma nos ajuda a descobrir o que ela não
é. Para concluir, quanto à sua famosa frase definindo a música como
contendo «formas sonoras em movimento» (Hanslick, 1854: 94) acres-
centaríamos que se a validade artística permanece independente de sua
percepção estética, esta última se desenvolve de maneira contínua.
Com o passar do tempo, de modo inconsciente ou não, formalismo e
subjetivismo trabalhando em conjunto, estas transformações paulatina-
mente operando na nossa percepção, são elas que virão nos anunciar
as boas novas de uma relação estética revigorada. “Mesmo se todos os
seres humanos, desde sempre, de todas as idades e oriundos dos mais
diversos países apreciassem de modo similar (mas como ter certeza?)
um mesmo objeto, isto não impediria esta apreciação unânime de ser
coletiva e individualmente, subjetiva, o fato não qualificando este obje-
to como ‘objetivamente belo’” (Genette, 1997). A diversidade na unan-
imidade e do belo musical para o todo sempre.

Referências bibliográficas
HANSLICK, Edouard (1854). Vom Musicalisch-Schönen, Leipzig (trad. franc. C.
Bannelier, Paris: Christian Bourgois, 1986).
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GENETTE, Gérard (1997). L’oeuvre de l’art 2: la relation esthétique. Paris: Édi-
tions du Seuil.


O ouvido popular:
notas sobre o relativismo da musicalidade.
Acácio Tadeu de Camargo Piedade
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

partir de observações, intuições e experiências na prática

A musical e no ensino, pretendo aqui refletir sobre algumas


características do pensamento musical entre os músicos que
se dedicam ao repertório popular, em especial à música instrumental
brasileira e ao jazz. Partindo de aspectos do debate antropológico sobre
a questão do relativismo cultural, procurarei pensar o universo das
músicas populares, tentando assim contribuir para a discussão sobre
diferentes formas de se fazer e ouvir música, ou seja, diferentes
musicalidades.
Trato a musicalidade não como uma capacidade ou aptidão para a
música, mas sim como um conjunto de elementos musicais e
simbólicos, profundamente imbricados, que é compartilhado e que
dirige tanto a atuação quanto a audição musical de uma comunidade
de pessoas1. No fundo deste processo está a matriz cultural, 1 Venho
determinante maior na constituição da musicalidade, a partir de onde pensando a
idéia de
é legítimo afirmar a diversidade de formas de se ouvir e fazer música e, musicalidade
para além de uma tolerância estética, a necessidade de desenvolver a partir do
diferentes ferramentas analíticas para se compreender as músicas. A jazz
brasileiro e
premissa intelectual do relativismo cultural implica aqui, portanto, em da idéia de
um relativismo da musicalidade. fricção
(Piedade,
Gostaria de começar pensando o relativismo em sua forma filosófica 2003, 2005).
mais genérica possível: trata-se da idéia de que quando um sujeito pos-
tula que uma coisa é esta coisa, ela o é a princípio tão somente para o
sujeito do postulado. Ou seja, uma constatação resulta de uma possi-
bilidade, e não de uma verdade universal. Este relativismo genérico
apresenta-se, assim, como o contrário do universalmente válido e ver-
dadeiro, e por causa deste seu caráter crítico, que insiste sempre que o
que é não o é sob qualquer perspectiva, ele tem o atributo ao mesmo
tempo subversivo e liberal. Subversivo, de fato, pois o relativismo é
uma expressão do ceticismo, talvez a forma mais poderosa e pertur-
badora de ceticismo, pois representa uma visão de que “o conheci-
mento e a verdade são relativos a um ponto de vista, um tempo, um
lugar, uma disposição cultural ou cognitiva: e conhecimento e verdade

assim entendidos não são Conhecimento e Verdade” (Grayling,
1996:58)2. Liberal, pois possibilita a fundação da legitimidade da diver-
sidade de visões de mundo e de critérios de verdade. Neste último sen-
tido, o relativismo encontra um apoio sólido na filosofia pragmatista,
principalmente em William James. Para este autor, não há um modo
como as coisas realmente são e, portanto, o dualismo realidade/aparên-
cia (e todos os dualismos conseqüentes) deve ser abandonado, pois só
o que podemos produzir são descrições do mundo e de nós mesmos
que são mais ou menos úteis aos nossos interesses3. Nesta filosofia, o
pensamento tem por objeto não a reprodução de um dado da reali-
dade, mas a construção de uma realidade futura, daí que o valor das
idéias não pode ser apreciado em relação ao objeto, mas em relação
ao seu grau de utilidade. A forma extrema de relativismo está na base
do empirismo extremo – cujo expoente clássico pode ser o Locke da
tabula rasa–, que defende que as idéias derivam unicamente da
experiência, que nenhuma idéia ou proposição pode ser conhecida
sem recurso ao mundo empírico – e que, portanto, não há
conhecimento a priori4.
A origem do conceito de relativismo cultural na antropologia envolve
um pouco do ideal preservacionista-salvacionista em relação aos povos
ditos “primitivos”, expressando “o desejo de proteger as populações
subordinadas da discriminação e pilhagem do povo dominante”
(Goldschmidt, 1960: 563). Desde o início, portanto, uma questão de
ordem moral envolve o conceito. Vamos agora comentar brevemente as
divergentes concepções de relativismo conforme Herskovits, Spiro e
Gellner, procurando levar ao que se pode chamar de “relativismo
radical”. Tido como um histórico relativista “radical”, Herskovits afirma
que o relativismo nega os valores absolutos, mas não a moralidade: ao
contrário, valoriza a dignidade inerente a cada corpo de costumes e
insiste na necessidade de tolerância (Herskovits, 1963). Para outros
autores, o relativismo é uma posição que deve ser superável, pois
mantê-la torna impossível a comparação, acabando com o
empreendimento antropológico, pois sem o método comparativo não
haveria antropologia (ver Kaplan & Manners, 1981:18-23). Spiro (1992)
procura mostrar que não há um relativismo, mas três: o relativismo
2 Sobre o ceticismo como fundamento filosófico para a antropologia, ver Leaf (1981:43-71).
3 Ver o texto “Verdade sem correspondência com a realidade”, de Rorty (2000:17-52).
4 Este pensamento, por sua vez, está profundamente ligado à escola interpretativa/hermenêutica de
antropologia, particularmente aos estudos de performance e à antropologia da experiência (Turner,
1987; Turner & Bruner, 1986), fundados no preceito de que o conhecimento -aqui, os símbolos-
emergem na ação, e não que a ação emerge do conhecimento a priori.

descritivo, que é o julgamento a um fato da diversidade cultural; o
relativismo normativo, onde o julgamento é sobre o sistema cultural; e
o relativismo epistemológico, que vai além dos dois primeiros e declara
que tudo é inscrito pela cultura, cada cultura sendo um mundo único
e incomparável. Spiro, antagonista do radicalismo, busca combater este
último tipo, bem como a antropologia hermenêutica, pois crê também
que ambos representam a impossibilidade de existir uma disciplina
científica tratando da alteridade (a antropologia!). Outra perspectiva
anti-relativista é a de Gellner (1995), que se mostra defensor de um
racionalismo crítico, em favor do universalismo. Para este autor, o
relativismo levaria, em suas manifestações na esfera política, ao
populismo e ao nacionalismo, daí sua recusa em aceitar o que entende
por uma obsessão dos antropólogos por mundos fechados de cultura
compartilhada.
Em favor de um relativismo radical, pode-se colocar ao lado de
Herskovits o filósofo Nelson Goodman (1985), que afirma a existência
de um único mundo mas de uma multiplicidade de versões-de-mundo,
mutuamente intraduzíveis. A aborgadem fenomenológica, da mesma
forma, possibilita pensar que múltiplas realidades emergem em função
da variedade de necessidades da consciência (Schutz, 1967), e assim
tornam-se possíveis os diferentes mundos do sonho, da arte, da
experiência religiosa, da contemplação científica, diferentes províncias
finitas de sentido (Langer, 1971). Tomando a perspectiva destes autores,
quer podemos chamar de relativistas radicais, estamos nos acercando
de uma possibilidade: aquela que afirma diferentes apreensões da
realidade sonora, já que postula diferentes mundos sonoro-musicais. 5 Trata-se de
uma dis-
Neste caso, ao se falar em musicalidade, entra-se também no território cussão muito
da cognição, da epistemologia da música, do alcance da cultura na tangencial.
construção do mundo sonoro. Para maior
aprofunda-
Após esta breve exposição do conceito de relativismo cultural5, e retor- mento, ver
nando agora ao universo do jazz e música instrumental brasileira, trago Hollis &
Lukes
abaixo algumas observações que se referem ao discurso dos músicos, (1982).
que muitas vezes estão engajados profissionalmente em outras esferas 6 Por exem-
da música brasileira6, mas que carregam uma musicalidade própria7. plo, acom-
panhando
Um primeiro ponto a comentar é que a dimensão harmônica é tratada cantores e
no discurso dos músicos como a dimensão mais fundamental da músi- cantoras de
ca. De fato, quando se trata de “tirar música”, conforme se diz, o caso M.P.B.
é a descoberta da estrutura harmônica em todos seus detalhes: tensões 7 Ver
Piedade
adicionadas, baixos alterados, ritmo harmônico, etc. Muitas vezes o (2003,
aspecto melódico parece estar em segundo plano, sendo compreendi- 2005).

do como uma atualização linear de notas de acorde, notas auxiliares
ou tensões. Em uma camada mais superficial há, de fato, um pensa-
mento homofônico saliente, já que se compreende que as músicas têm,
fundamentalmente, uma harmonia e uma melodia (“tema”). Tal forma
se traduz na notação musical: as partituras são grafadas no formato
lead-sheet, ou seja, tema com cifras de acordes. Este modelo de
notação prescritiva (Seeger) é prevalente no jazz e nos songbooks de
grande parte das músicas populares do mundo8. No Brasil, este modelo
está consagrado pelo setor editorial.
O pensamento harmônico nesta musicalidade coloca em primeiro nível
as relações verticais, sendo que o encadeamento de acordes é com-
preendido enquanto sucessão de blocos. A idéia da condução de vozes
não é prestigiada, a não ser quando há a necessidade de transcrever
acordes em arranjos9. Pode-se dizer que as relações lineares
simultâneas se encontram, a princípio, em segundo plano, e que
prevalece um caráter secundário do pensamento contrapontístico. Ao
mesmo tempo, há uma dedicação à prática de um tipo de improvisação
altamente coerente com este pensamento harmônico, ou seja, baseada
na sucessão de blocos harmônicos. Improvisar, no contexto do jazz e
da música instrumental brasileira, significa pôr em ação o domínio de
certos padrões harmônicos convencionais, o conhecimento de escalas
sobre estes blocos verticais e a destreza na execução de modelos
melódicos pré-estabelecidos (riffs, grooves e outros clichês).
Na performance encontram-se outros elementos-chave para a com-
preensão desta musicalidade. Destaco dois exemplos que revelam a
centralidade do pensamento harmônico: a citação melódica e a re-har-
monização. Na citação em contexto, trata-se de concatenar ou “fazer
caber” em um esquema harmônico uma melodia que lhe é estranha
mas que deve ser reconhecida pela audiência. Para além de fertilizar
processos de referência e criação de significado (Piedade, 2005), a
citação em contexto afirma o caráter basilar dos blocos harmônicos,
como que relembrando sua perfeição para vários tipos de melodias. No
caso da re-harmonização, refiro-me a certos momentos nas impro-
visações, quando os instrumentistas da base harmônica fazem re-har-
monizações espontâneas (alteração ou substituição de acordes, acordes
emprestados de outros modos, modulações contínuas, uso de acordes

8 O formato songbook muitas vezes se apresenta em três pentagramas, um para a


melodia e um pentagrama duplo para a escrita do acompanhamento para piano.
Em geral, mesmo quando a parte de piano é escrita, há a colocação de cifras.
9 Isto se pode verificar em manuais de arranjo, como Guest (1996).

errantes10, harmonia quartal, etc.) e os improvisadores instantanea- 10 Ver
mente compreendem e reagem a estas transformações através do uso Schoenberg
(1969).
de padrões adequados (escalas alteradas, modulações na pentatônica,
acentuação de tensões novas, escalas “outside”, etc.). A improvisação,
portanto, guia-se pelo pensamento harmônico, sua gestalt é o chorus,
ou seja, a estrutura harmônica da música.
A partir destas observações, que destacam que a centralidade do
pensamento harmônico é uma característica da musicalidade no
universo do jazz e da música instrumental brasileira, gostaria de refletir
sobre a questão do relativismo da musicalidade. Será que, neste
aspecto da prevalência harmônica, o jazz não conseguiu se desvenci-
lhar do pensamento musical erudito europeu? Sim, pois é nesta
tradição que o desenvolvimento harmônico, como uma prerrogativa
congênita e evolutiva, atingiu o máximo grau de importância histórica,
tanto no nível musicológico quanto no discurso musical. Na verdade,
não me proponho a responder tal questão, mas apenas a incitar uma
discussão sobre o impacto do relativismo cultural no estudo das
músicas populares.
Tomando o que acima está definido como relativismo radical, gostaria
de pensar a validade da idéia de diferentes mundos sonoros, que leva
à multiplicidade da musicalidade. Ao se postular diferentes mundos
possíveis, pode-se afirmar que a construção da realidade sonoro-musi-
cal passa por uma ação relativa ao mundo da cultura e da sociedade,
onde se aprende a construir seu mundo em comunidade, de forma
compartilhada. Culturas diferentes o fazem a seu modo, desenvolven-
do diferentes formas de nomear coisas. E diferentes línguas sugerem
diferentes conformações do aparelho cognitivo, e por sua vez diferentes
mundos percebidos11. 11 Para o
caso de uma
Neste início do terceiro milênio, uma significativa parte da população musicalidade
dos países desenvolvidos e em desenvolvimento tem acesso a vários indígena, ver
Mello e
mundos musicais do presente e do passado, de perto e de longe. O Piedade
advento da fonografia, que transformou a humanidade enormemente, (2005).
já está naturalizado. Esquece-se do impacto da gravação, que desloca
a fonte sonora de sua base espacial, temporal e cultural12. Com isto, 12 A este
uma avalanche de diversidade musical chega aos ouvidos dos ouvintes, respeito, ver
Feld (1994).
exigindo que sua musicalidade se expanda para que possa dar conta de
compreender, para além do seu território musical, mundos como o hip
hop, “axé music”, música brega, sertaneja, eletrônica, experimental, e
também mundos do passado. O pensamento harmônico da musicali-
dade no jazz e na música instrumental não pode ser posto em ação no

caso destas músicas, as quais requerem um deslocamento em direção
a uma outra perspectiva para o mundo sonoro, que é por excelência
uma outra musicalidade, carregada de nexos sócio-culturais. O desafio
é pensar que, à luz de um relativismo radical, tal deslocamento se des-
dobra também em suas bases cognitivas. Ou seja, ouvir um rap da
forma como um nativo da musicalidade hip hop exige um aprendizado
de um mundo possível, com todas as suas implicações estéticas, musi-
cais, sociais, políticas e morais. Um caminho, uma abertura, não para
o gosto, mas para a tolerância.

Referências bibliográficas
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Música para consumir


Irídio Magaldi Johansen de Moura
Pontifêcia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR

música existe para ser consumida. Não que seja obri-

A gatório ou inevitável estabelecer-lhe um preço ou concluir


que não há mais futuro para ela fora da Indústria Cultural
(Adorno, 2002); nem tão pouco desqualificá-la por ser um produto – já
que ela é um resultado, muitas vezes do esforço e disciplina, do
conhecimento adquirido, da criatividade, da sensibilidade. O ato de
consumir tem também um sentido de aproveitar ao máximo, ciente de
que sempre há algo mais a descobrir ou constatar. Então consumir a
música não a desvaloriza, pelo contrário. É preciso extrair dela sua
essência, sem medo de gastá-la. Mesmo porque, sendo arte, ela não se
esgota, mas renova-se.
Partindo deste princípio, uma das manifestações dessa relação música-
consumo a ser observada aqui, difere consideravelmente da que

Umberto Eco trabalha em Apocalípticos e Integrados, enquanto
distingue “canção de consumo” da “canção ‘diferente’”. Não que
discorde das definições e levantamentos ali expressos, mas os conceitos
de consumir são distintos em cada um dos textos, no que apontam a
música como um fim ao consumo. Aqui, o consumo da música não se
prende ao caráter mercadológico. Contudo, ambas as análises
convergem num mesmo ponto, na questão do uso da música, o qual
está intimamente ligado ao meio empregado. O problema (se é que
chega a tanto) nem sempre está na música, mas em quem a usa e,
especialmente, em como se dá esse uso. De acordo com Eco:
O rádio – nisso ajudado pelo disco – pondo à disposição de todos uma
enorme quantidade de música já “confeccionada” e pronta para o con-
sumo imediato – desencorajou aquelas práticas de execução autôno-
ma que caracterizavam os aficionados, os diletantes musicalmente
sensíveis dos séculos passados; inflacionou a audição musical, habi-
tuando o público a aceitar a música como complemento sonoro das
suas atividades caseiras, com total prejuízo de uma audição atenta e
criticamente sensível, levando, enfim, a um hábito da música como
coluna sonora da jornada, material de uso, que atua mais sobre os
reflexos, sobre o sistema nervoso, do que sobre a imaginação e a
inteligência. (Eco, 1993: 317)
No entanto, antes de se ater ao quesito uso da música, é preciso
prosseguir nas formas de relação música-consumo. A outra faceta dessa
ligação indica a música como um meio, um caminho ao invés de um
fim. Além de ser consumida, em algumas situações a música também
serve para induzir ao consumo de outros produtos e/ou serviços; e aí
sim, aplicam-se necessariamente concepções de Marketing. É o caso
do uso publicitário da música. A música publicitária, apesar de também
poder ser curtida, desfrutada, aproveitada ao extremo, tem como fina-
lidade conduzir à venda. E como toda música fora de seu estado puro,
a utilizada na propaganda ganha características particulares. Não
responde mais necessariamente aos parâmetros (por vezes um tanto
polêmicos e relativos) que decidem o que é uma boa música ou uma
música ruim. Para a publicidade, bem como no cinema, no teatro, nos
jogos de videogame, … importa mais o que separa o bom do mau uso
da música.
Outra propriedade singular da música publicitária baseia-se num
processo comum na propaganda, intitulado AIDA ou AIDCA. Sobre
esse sistema, Vestergaard e Schrøder discorrem em A Linguagem da
Propaganda:
A primeira tarefa do publicitário, portanto, é conseguir que o anúncio

seja notado. Uma vez captada a atenção do leitor, o anúncio deve
mantê-la e convencê-lo de que o tema daquele anúncio específico é
do interesse dele. Além disso, o anúncio tem de convencer o leitor de
que o produto vai satisfazer alguma necessidade – ou criar uma neces-
sidade que até então não fora sentida. Por fim, não basta que o cliente
em potencial chegue a sentir necessidade do produto: o anúncio deve
convencê-lo de que aquela marca anunciada tem certas qualidades
que a tornam superior às similares. (1994: 47)
O anúncio ideal deve chamar a atenção, despertar interesse, estimular
o desejo, criar convicção e induzir à ação. E a música publicitária, para
obter sucesso em seus préstimos, deve cumprir todas essas funções
dentro dos limites que lhe são apresentados, articulando-se através das
possibilidades da linguagem e do meio. Seu grande e principal desafio
é ser auto-suficiente enquanto discurso de propaganda – em geral com
uma duração de 30 segundos, raramente ultrapassando um minuto.
Apesar de ter sua elaboração e aplicações realizadas por teóricos da
Comunicação, essa estrutura não se restringe a discursos da mesma
área. Cabe perfeitamente em qualquer texto verbal ou não-verbal
(entenda-se assim, qualquer coisa) que objetive persuadir alguém.
Desta forma, qualquer música pode seguir consciente ou inconsciente-
mente esse método. Mas não se exige isso de nenhuma delas, tal qual
o caso de uma trilha publicitária ou principalmente de um jingle para
rádio, em que não terá a contribuição de outros recursos como a
imagem.
Nem sempre o que chama atenção ou desperta o interesse para uma
música está na própria música. Existem outros artifícios que favorecem
bastante. É o caso dos recursos visuais que auxiliam na compreensão
da mensagem e até na decisão de consumir (no sentido mais amplo,
sem restringir-se tanto na idéia de compra e venda). Mesmo porque a
visualidade só se desligou parcialmente da música com os adventos do
disco e do rádio. Se o “corpo fala”, ele em sua totalidade canta e toca
também, junto com voz, boca, mãos e pés. Ver a música ser interpreta-
da gera sensações e percepções diferentes de somente ouvi-la. Uma
boa postura, bons figurinos, cenografias, iluminações, projeções e
efeitos especiais interessantes também somam. Uma arte original e bem
acabada, na capa dos discos, CDs e DVDs ajuda bastante na escolha.
Atualmente, o videoclipe tem sido uma das linguagens mais fortes por
conseguir unir o sonoro, o verbal e o visual de maneira coerente e rica
em significados. Resenhas, críticas especializadas (ou não) e a própria
publicidade estimulam e ampliam o desejo, convencem e influenciam
diretamente na decisão de consumir uma música, uma canção.

Já a música publicitária, enquanto meio e não um fim, exceto em algu-
mas ocasiões em que integra uma campanha maior com outras peças
de diferentes veículos e meios de comunicação, deve completar-se em
si mesma e concluir na “venda” efetiva da idéia que propaga. Dela é
cobrada a habilidade de conduzir o receptor, seu público-alvo, da
atenção até a ação – passando por todas as etapas da transmissão da
propaganda sem recorrer a outros fatores, independente de assistência.
Não basta ser uma boa música. Precisa ser articulada e utilizada de
maneira inteligente.
Para especificar com maior clareza esse uso todo peculiar da música na
publicidade, melhor do que exemplificar com uma canção original-
mente composta já para essa finalidade, é interessante analisar uma
música dita “pesquisada” – isso é, aquela que foi criada para outros
fins, mas é tomada por empréstimo, convocada para cooperar no
intuito de vender. Todo valor agregado a essa música e até mesmo ao
seu intérprete (o atual, o primeiro ou ainda aquele que com ela ganhou
mais destaque e fez mais sucesso); juntamente ao momento ou
movimento que ela representa, sua relevância social, cultural, históri-
ca; é transportado para o novo texto que se constitui: a mensagem
publicitária. E se não todos conscientemente, ao menos os valores que
mais interessam e melhor se associam com o produto, o serviço, a idéia
a ser divulgada.
Todavia, isso não ocorre sem que antes a música sofra modificações,
mesmo que sutis, devido à nova intenção que lhe é imposta. Essa
imposição rende à música uma série de novas expectativas e respon-
sabilidades. E isso acaba por lhe transformar, tornando-a praticamente
numa nova música, permitindo-lhe novas interpretações, leituras,
novos significados; tamanha é a força dessa nova intenção aplicada.
Um exemplo pertinente é o uso da música Vâmo Pulá! (de Sandy e
Júnior) num comercial da Chevrolet. Na propaganda, quando é canta-
do “vâmo pulá num Chevrolet”, esse novo trecho “num Chevrolet” –
que não pertence à versão original da letra – não é um mero acrésci-
mo, mas também uma alteração na mensagem da música tal qual é
conhecida. Porque não gera apenas um ganho de informação, mas uma
mudança – ainda que nesse caso de modo bastante tênue – no valor de
algo que já se comunicava. A ação pular (representada em uma licença
poética pelo termo coloquial “pulá”) implica em sair de uma situação,
um estado; conseqüentemente, mover-se para um outro lugar. Então o
pulo, por ser uma atitude breve e de impacto, traz consigo conceitos
bem explícitos de antes e depois, diferente de outras ações em que o

durante ganha tanto destaque que aquilo que lhe antecede ou o que
vem logo em seguida ficam apenas subentendidos.
Na canção original, a transição da estrofe para o famoso refrão ocorre
da seguinte forma: “Prepare-se, você fará uma viagem incrível /
Quando eu terminar de contar / Atenção para a contagem regressiva…
5, 4, 3, 2, 1 / Vâmo pulá, vâmo pulá, vâmo pulá, vâmo pulá”. Sendo
assim, o enfoque dado ao ato de pular é mais na partida para essa
“viagem” citada e prometida. Bem de acordo com uma antiga moda do
axé, aquela do “tira o pé do chão” entoado por praticamente todos os
cantores e conjuntos baianos na época – e que possivelmente tenha
influenciado a composição desse hit de Sandy e Júnior, lançado poste-
riormente, porém num período bastante próximo. A convocação em
ambos os casos é semelhante: simplesmente sair de uma postura e ir
para outra insuficientemente especificada.
Contudo, na campanha publicitária da montadora de automóveis
(enquanto a canção serve como jingle) o foco nesse pulo é, mais do
que diferente, o oposto. Ele recebe um ponto de chegada bem claro e
objetivo. Nisso, a importância não está mais tanto no antes ou durante
do processo e sim na satisfação com os benefícios adquiridos após
“pulá num Chevrolet”, o que realmente importa à empresa anunciante
transmitir. Esse convite, quase ordem, é bastante persuasivo e coerente
ao discurso publicitário, contribuindo para o sucesso da recepção,
compreensão e aceitação da mensagem pelo público-alvo. Pretende
conseguir a atenção e o interesse do ouvinte ao unir numa mensagem
personalidades como Sandy e Júnior a uma marca igualmente conheci-
da. Atiça, procurando ou moldando o desejo e tenta convencer através
da credibilidade e simpatia que as vozes e o carro transmitem e pela
própria argumentação na letra, que busca uma atitude positiva por
parte do receptor.
Porém, a ação que os jingles e trilhas publicitárias pretendem está sujei-
ta também às informações e sentidos que os elementos puramente
musicais têm a comunicar. Pois “toda música tem o seu poder expres-
sivo, algumas mais e outras menos, mas todas têm um certo significado
escondido por trás das notas, e esse significado constitui, afinal, o que
uma determinada peça está dizendo, ou o que ela pretende dizer”
(Copland, 1974: 23). Ainda a respeito desse poder comunicativo da
música, Maria de L. Sekeff associa a estrutura do discurso musical à
tríade semiótica de Pierce:
Os seus diferentes parâmetros – duração, altura, intensidade, timbre –
e seus diferentes elementos constitutivos – ritmo, melodia, harmonia,

vetor tonal –, uma vez relacionados (e tudo em música é relação),
adquirem uma lógica intelectual e um significado psicológico tal que
determinam um efeito direto sobre o ouvinte. […] Desse modo a músi-
ca linguagem de natureza sensorial (primeiridade), afetiva (secundi-
dade) e mental (terceiridade) fala diretamente ao nosso corpo, nossa
mente, nossas emoções, e contra isso somos relativamente indefesos.
(1998: 37 e 46)
Essa definição se assemelha muito aos três modos de ouvir levantados
por Copland, os planos: “sensível”, “expressivo” e “puramente musical”
(1974: 22). Enfim, a publicidade almeja atingir o ouvinte nesses planos,
sobretudo no emocional. Sensibilizando e estabelecendo laços afe-
tivos. Não apenas conquistar mas, despender suas forças e estratégias
para manter a fidelidade do cliente. Por serem músicas muito breves e
necessariamente sucintas, convém aos jingles e trilhas publicitárias
serem constituídos por elementos que se complementem sonora, verbal
e visualmente – de acordo com Santaella (2001) o sonoro, o verbal e o
visual coexistem, havendo visualidade nos sons e idéias de sonoridade
nas imagens. Com o intuito de suprir as fraquezas e impotências uns
dos outros, reforçar aspectos positivos e interessantes, nunca se anu-
lando ou repetindo-se de maneira vã, sem propósito. Evitar redundân-
cias e faltas de sentido. Encarar todos os seus elementos como signos e
procurar levá-los ao mais próximo do extremo ao que diz respeito às
possibilidades de significação. Construindo assim ricas paisagens sono-
ras.

Referências bibliográficas
ADORNO, T.W. (2002). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra.
COPLAND, A. (1974). Como ouvir (e entender) música. Rio de Janeiro:
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SANTAELLA, L. (2001). Matrizes da linguagem e pensamento – sorora visual
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– música, mídia e contemporaneidade (pp. 33 – 58). São Paulo: EDUC.
VESTERGAARD, T., SCHRØDER, K. (1994). A linguagem da propaganda. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes.


6. O Desenvolvimento Paralelo
da Mente e das Artes Musicais


Construção inacabada, aberta e em constante movimento:


Sobre a constituição do sujeito - Analogia
com a obra musical “Canon em Ré” de Pachelbel
Patrícia Wazlawick
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (doutoranda)
Kátia Maheirie
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Glauber Benetti Carvalho
Instituto ConSer; Allegro Escola de Música

Sobre Pachelbel e o “Canon em Ré”

compositor da música que faz agora uma “metáfora para o

O processo de constituição do sujeito” é Johann Pachelbel.


Nasceu em Nuremberg no ano de 1653 e faleceu em 1706.1 Foi
compositor e organista genial na improvisação e na técnica do
contraponto2. Grande solista de órgão e cravo, tornou-se o músico mais
importante da escola de órgão no sul da Alemanha, antes de Johann
Sebastian Bach. Tinha preferência por um estilo lúcido e simples, com
equilíbrio e clareza musical. Entre suas contribuições à música de
câmara, inclui-se Cânon em Ré, que se tornou sua obra mais conhecida
(Sadie, 1994), sob a qual teceremos uma analogia com o processo de
constituição do sujeito.
A forma musical “cânone”3 é uma forma de composição muito difun-
dida pelos compositores do século XVI, e cujo tema, iniciado por uma
voz – o antecedente – é continuamente imitado por outra(s) voz(es) –
o(s) conseqüente –, à distância de um ou mais compassos, até o fim.
Pode ser em uníssono, quando as vozes repetem exatamente as mesmas
notas; à oitava, quando o(s) conseqüente(s) são transpostos à oitava; e

1 Integrante do Primeiro Barroco na música ocidental. Para conhecer sobre a biografia e obra de
Pachelbel, ver Cande (1964), Sadie (1994), Franco (2005).
2 Soube combinar o tecnicismo dos compositores alemães, com o virtuosimo dos mestres italianos,
criando um estilo que foi atingir seu apogeu com Johann Sebastian Bach (Franco, 2005).
3 De acordo com Horta (1985: 64), o cânone constitui uma “técnica ou peça em que uma melodia
imita exatamente uma outra (normalmente à pequena distância), como se a estivesse perseguindo,
mas sem nunca alcançá-la…”. Ver também definição de cânone no Dicionário Grove de Música
(Sadie, 1994: 163), e polifonia em Horta (1985), Sadie (1994).

circular ou rota, quando as imitações percorrem todos os tons (Ferreira,
1977).
O Cânon em Ré foi composto para um baixo e três violinos. É de cará-
ter simples e espirituoso. Começa com notas longas, que gradualmente
se tornam rápidas, enquanto o baixo retorna à velocidade inicial.
Isto pode ser afirmado a partir de uma análise musical. Dentre vários
aspectos desta música percebe-se que estruturalmente ela é de uma
simplicidade que causa admiração. De acordo com Cande (1964: 237),
a originalidade de Johann Pachelbel “…reside na pureza e na grandiosa
simplicidade do seu estilo que contrasta com o estilo virtuosístico dos
organistas do Norte da Alemanha”.
Está na tonalidade de Ré Maior; apresenta três vozes, e um cravo que
faz os acordes da progressão harmônica. Uma das vozes é a do baixo,
que não “participa” do “efeito” cânone, tocando apenas as tônicas. As
outras duas vozes são executadas por violinos. Existe uma estrutura
básica que se apresenta em oito compassos, acontecendo quinze vezes
ao longo da música toda. Seu compasso é quaternário (c).
Cada compasso da estrutura básica tem uma função: 1º- tônica, 2º-
dominante, 3º- tônica, 4º- dominante, 5º- subdominante, 6º- tônica, 7º-
subdominante, 8º- dominante. Em termos musicais esta progressão har-
mônica seria representada da seguinte forma: I V VIm IIIm IV I IV V,
sendo os acordes, nesta tonalidade, respectivamente: | D A Bm F#m G
D G A |. Isto também foi evidenciado na análise harmônica de Summer
(1995: 36).
De acordo com a movimentação melódica e harmônica da música, na
primeira vez que a estrutura básica é tocada apresenta-se o baixo e o
cravo. Na segunda vez, a primeira voz inicia-se na nota de fá sustenido
(fá#) e vai, em um movimento descendente na escala de Ré Maior, pas-
sando pelos acordes, com os quais cria os seguintes intervalos, em
relação à nota tônica destes acordes: 3ªM, 5ªJ, 3ªm, 5ªJ, 3ªM, 5ªJ, 3ªM
e 3ªM (sensível). Na terceira vez da estrutura básica entra a segunda voz
fazendo um contraponto, porém em um movimento paralelo com a
primeira voz, sendo que o cânone só se inicia, efetivamente, na sexta
vez em que acontece a estrutura básica. Na quarta e quinta vez as
vozes passam a se movimentar de modo independente.
Os cânones iniciados na sexta vez que se reapresenta a estrutura bási-
ca não são uma simples repetição. Existe um cânone “diferente”. Parece
que é um cânone levado ao limite, ou seja, à fronteira daquilo que

depois, não seria mais um cânone, que só é possível por meio de
alguém que domina completamente esta técnica. Pode-se dizer que é
um cânone em nível de Terceiridade, segundo a compreensão
4 Terceirida- Semiótica de Peirce4, onde a máxima resultante lógica e complexa se
de: “corres- volta ao simples, ou seja, à Primeiridade. As repetições não acontecem
ponde à
nossa esfera de maneira que se possa “sentir” que algo está repetindo, mas há
cognitiva, ao cânone de idéias melódicas, rítmicas e até de timbres e tessituras.
movimento
do pensa- Aqui se pode iniciar a analogia da música apresentada com a questão
mento em do processo de constituição do sujeito.
signos, à
captação da Para fazer um “resumo da ópera”, ou melhor, do cânone, destaca-se
estrutura
musical, à
que sua construção musical se inicia no baixo contínuo. Uma base que
síntese sustenta desde o começo. A partir dele, entra a movimentação musical
intelectual do cravo, uma linha melódica é construída, e ainda uma segunda.
por meio da
qual repre-
Melodias que se entrecruzam, caminham em paralelo, se contrapõe,
sentamos e geram intervalos entre notas, que se identificam em alguns momentos,
interpreta- em outros não, são independentes, e que por caminharem juntas – o
mos o
mundo...”
que não significa estarem em concordância – vão constituindo o todo
(Sefekk, da peça musical. É o movimento da polifonia, simultaneidade de várias
1998: 42). melodias que se desenvolvem independentes, dentro de uma mesma
Ver também
Santaella
tonalidade. Melodias que se identificam na trajetória deste percurso,
(1983: 51). identificações em curso. Melodias que se cruzam, se tecem, aconte-
cem, se contrapõe no contexto musical. Um grande e diverso movi-
mento, onde há diálogo, escolhas que levam a outros lugares, contra-
posições. Contra ponto. Nota contra nota. Poli fonia. Independentes,
mas ocorrendo juntos em uma trajetória. Um movimento não de
repetição, mas inovação dentro de um já conhecido. Um desconheci-
do que entra sonoramente e participa junto, permitindo conhecer o que
existe e criar algo novo a partir da interface. Um baixo contínuo que
mantém um existente, e que se inova a cada momento com a presença
e construção da música, de sons outros que se fazem audíveis e cons-
tituem o todo. Porque primeiro há uma voz afirmada, depois é negada
pela presença de outra, que não a repete integralmente, mas que no
embate com a primeira cria um outro som, outro todo de sonoridades
possíveis, e tecem algo novo pelo seu entrecruzamento, um movimen-
to dialético, assim como o processo de constituição do sujeito.
Contradição, ambigüidade. Uma síntese inacabada e aberta (Maheirie,
2002), porque não se fecha na permanência e aceita outras possibili-
dades, ou movimentos que a ela não apenas se somam, mas que
acontecem ora na contradição, ora na unicidade, produzindo sempre
um devir, um vir-a-ser.

Sobre a “constituição do sujeito” e a analogia com o cânone
O projeto, “a práxis, com efeito, é uma passagem do objetivo ao obje-
tivo pela interiorização”, pela subjetividade (Sartre, 1984: 154). Esta
frase de Sartre se configura como uma nova “voz” a ser desenvolvida
nesta “composição”. Entendendo, a partir daí, que nenhuma objetivi-
dade no mundo humano pode ser desprovida de subjetividade, e, ao
mesmo tempo, que não há subjetividade que não se objetive. Com esta
idéia é que se pretende, agora, tecer um novo “cânone”, que tal como
no “Cânon em Ré”, não irá fazer única e estritamente uma repetição da
“voz seguidora” sobre a “voz líder”, mas buscar articular os elementos
aproximando-se da compreensão deste que pode ser o movimento de
constituição do sujeito, um movimento, diga-se de passagem, também
polifônico.
Falar de constituição do sujeito na perspectiva histórico-cultural da
Psicologia, é falar do movimento dialético que existe entre objetividade
e subjetividade. Essas duas dimensões que se fazem constituintes do
sujeito. Pela contínua movimentação entre objetividade e subjetividade
é que o sujeito vai se constituindo, de modo que poderia ser definido
como produto aberto e inacabado da relação entre subjetividade e
objetividade (Maheirie, 2002). Estas dimensões estão permeadas uma
pela outra, uma construção em mão dupla, um movimento que se
desenvolve em espiral… um movimento tal como a composição de um
“cânone” - onde as vozes5 não são uma simples repetição uma da 5 Aqui se
outra, mas um cânone tecido por estas duas vozes e levado ao limite, entendam
“as vozes”
à fronteira daquilo que depois, não mais seria um cânone. Ou que até como as
seria, justamente por conter ainda, mas de modo transformado, estas dimensões
mesmas duas vozes, que também não seriam mais as mesmas, visto que objetiva e
subjetiva do
já estariam, por sua vez, transformadas. sujeito.
Este movimento dialético não acontece no vazio, pois “o sujeito é cons-
tituído e constituinte do contexto social no qual está inserido”
(Maheirie, 2003: 147). Ou ainda: “…inserido neste cenário de múlti-
plas singularidades que se entrecruzam ele realiza a sua história e a dos
outros, na mesma medida em que é realizado por ela, sendo, por isso,
produto e produtor, simultaneamente…” (Maheirie, 2002: 36). Neste
ponto, a contextualização do espaço, tempo e momento histórico se
faz imprescindível, uma vez que existem determinações e limites colo-
cados pelo sistema político-social-econômico no qual se está inserido.
No entanto, além das determinações, o homem tem a possibilidade de
escolha, ou seja, de atuar no mundo (Sartre, 1984). Isto sempre em
volta à compreensão de que o sujeito é constituído a partir da objetivi-

dade, mediada pela subjetividade, e estabelecendo vínculos de
relações as mais diversas possíveis.
Sartre (1984) fala do “projeto” como o motivo pelo qual a realidade
humana seja sempre “desejo de ser”. De acordo com Maheirie (2002),
o desejo de ser é “…aquilo que movimenta o sujeito no mundo e seu
movimento é o impulso ao não existente, aquilo que não se é” (ibid.).
Então, o que é este projeto senão o desejo de ser “alguém”? O projeto
é um sujeito. O desejo de se fazer aquele alguém que ele deseja ser.
É o projeto da existência de um sujeito. Não é algo que se espera do
futuro, em termos de expectativa, muito embora o futuro faça parte
deste projeto, assim como o já vivido e os momentos presentes. É um
articular, um constituir-se sob a trama destas três dimensões. É o mover-
se da subjetividade em relação àquilo que ela ainda não é. A subjetivi-
dade enquanto ainda não “sendo”, enquanto ausência de realidade físi-
ca, que, na dialética com a objetividade, com o existente – aquilo que
já é –, poderá se constituir em realidade física, em objetividade.
Subjetividade objetivada. O processo de constituir-se sujeito passando
do objetivo ao objetivo pela subjetividade (Sartre, 1984).
Um processo que transforma e mantém. Transforma porque parte de
algo que se mantém, e se supera. Mantém porque, ao se transformar,
carrega junto o momento primeiro de que existe para poder depois se
transformar. E isto se pode ver na movimentação musical do “Cânon em
Ré”. É com este olhar que se pode entender, seja no “Cânon” seja na
constituição do sujeito, que “segundo a concepção dialética, a passa-
gem do “ser” ao “não-ser” não é aniquilamento, destruição ou morte
pura e simples, mas movimento para outra realidade. A contradição faz
com que o ser suprimido se transforme” (Aranha & Martins, 1993: 89).
É na trama das relações sociais que este processo ocorre. Zanella
baseia-se no psicólogo russo Vygotsky para que se possa compreender
o processo de constituição do sujeito. Segundo a autora, “a dimensão
do outro, ou mais adequadamente falando, da relação com um outro é,
6 Nota por sua vez, uma constante: as explicações do autor [Vygotsky]6 sobre
acrescida a constituição do psiquismo humano fundam-se no pressuposto de que
pelos esta se origina no contexto das relações sociais” (2005: 8).
autores.
Compreende-se aqui o sujeito como um ser que se constitui dialetica-
mente, por meio das relações que vivencia no mundo, produzindo sua
história, a dos outros e por elas produzido. Constitui-se, portanto, a par-
tir de determinações econômicas e sociais, mas o faz orientado por um

futuro, mediado semioticamente7 no contexto específico no qual se 7 Esta
mediação
encontra. semiótica se
dá principal-
Isto demonstra, remetendo-se ao “Cânon em Ré”, de Pachelbel, que mente por
sem a relação entre as vozes - que constituem a polifonia, ou sem a meio da
relação entre as linhas rítmicas e melódicas do baixo, do cravo e a poli- ação do
signo lingüís-
fonia tecida entre violinos e violas, o cânone não poderia existir. Uma tico e das
voz precisa da outra para existir, e indo um pouco mais adiante ou mais funções da
“a fundo”, cada nota musical em si é afirmada e integra-se aos movi- linguagem,
segundo
mentos melódicos e harmônicos devido as outras notas musicais, que compreendi-
junto ou contrariamente a ela tecem o próprio fato do existir enquanto do em
nota, enquanto som, integrando, no contexto total da composição, a Vygotsky, ao
serem uti-
forma do cânone, que depois se constituiu no “Cânon em Ré”, pela lizados pelos
atividade e pelo significado que atribuía, pelo fazer musical de Johann sujeitos em
Pachelbel. Que por sua vez, enquanto homem, músico, organista, relação, o
que configu-
professor, compositor, tem também a sua própria história, inserido num raria a
determinado contexto histórico-social, cultural, musical, que o natureza
permitiu constituir-se enquanto tal, e objetivar, neste contexto todo, social e cul-
tural das
suas músicas. funções
mentais
Ao compor este dueto entre as vozes da psicologia histórico-cultural e superiores,
da música, com o “Cânone em Ré”, para se fazer audível o processo de permitindo
constituição do sujeito, finalizamo-lo com aquilo que se pode chamar ao sujeito
produzir sig-
de “coda”, fazendo ouvir a voz de Zanella: “…o encontro permanente nificações
e incessante com um outro possibilita reconhecer a pluralidade do que em suas
se é e do que se pode vir a ser” (2005:15). Esta voz contrasta e tece tam- ações e
vivências
bém um cânone com outra voz, quando diz que “constituir-se como concretas no
sujeito é, nesta perspectiva, realizar a dialética do objetivo e do subje- cotidiano, e
tivo, já que o sujeito existe como subjetividade objetivada, que pela uma dimen-
são simbóli-
subjetividade (…), se objetiva novamente (…), e assim infinitamente… ca da vida
(Maheirie, 2002: 37). (Pino, 2005).
“… A existência é o lançar-se contínuo às possibilidades sempre reno-
vadas”. (Sartre, 1984: 304).

Referências bibliográficas
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Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna.
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
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HORTA, L. P. (editor). (1985). Dicionário de música Zahar. Rio de Janeiro:
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SARTRE, J-P. (1984). Questão de método. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril
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SEKEFF, M. de L. (1998). Música e semiótica. In Tomás, L. (org.). De sons e sig-
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SUMMER, L. (1995). Melding musical and psychological processes: the thera-
peutic musical space. Journal of the Association for Music and Imagery. 4,
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ZANELLA, A. V. (2005). Sujeito e alteridade: considerações a partir da psi-
cologia histórico-cultural. Artigo encaminhado para publicação.


Tabus, Mitos e Preconceitos:


o talento sob diferentes perspectivas
Graziela Bortz
Instituto de Artes - UNESP

H
á alguns anos, em minha ansiedade em me realizar como
trompista e entediada pela rotina dos ensaios na Orquestra
Municipal de São Paulo, cometi alguns erros que resultaram
no colapso de minha técnica. Como muitos músicos, iniciei-me no
instrumento de maneira “natural”, sem grandes impedimentos técnicos,
e o que parecia uma dificuldade momentânea resultou num problema
quase intransponível, estendo-se por anos a fio. Procurei ajuda de
profissionais e textos, passei por questionamentos diversos, inclusive o
de haver me enganado a respeito de meu talento, até descobrir o peso
dessa palavra que usamos com muita freqüência, indiscriminadamente,
sem nos darmos conta do julgamento que ela implica.
O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda traz no segundo sentido
– figurado – da palavra talento, a seguinte descrição: aptidão natural ou
habilidade adquirida. Infelizmente, a cultura brasileira valoriza a
“aptidão natural” em detrimento da “habilidade adquirida”. De acordo
com Sérgio Buarque de Holanda (2003: 82-3), “o prestígio universal do
‘talento’, com o timbre particular que recebe essa palavra … provém
sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo
o simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades que
requerem algum esforço físico”, ou, nas palavras de Leppert (1993:
27): “nenhum poder é tão absoluto como o de aparentar não fazer nada
enquanto os outros fazem por você”. O ideal de poder está sutilmente
afinado ao de “facilidade” e “naturalidade”.
Deixando os ideais de poder à parte, sabe-se que a cognição musical
de estudantes e profissionais não se explica somente com base em suas
capacidades “naturais”. Kemp (Hargreaves & North, 1997: 25-6) afirma
que o desenvolvimento das habilidades musicais de um indivíduo
depende, entre outros fatores, da “existência ou aquisição de uma com-
binação incomum de fatores de personalidade”. Argumenta que o
“desenvolvimento musical reflete o tipo de pessoa que os músicos ten-
dem a ser, assim como o ambiente em que tendem a se nutrir”. Fatores
individuais como: introversão/extroversão, independência, sensibili-
dade e ansiedade, assim como fatores externos como: estereótipos de
gênero e ambiente educacional interagem com habilidades físico-

motoras, de memória e percepção. Tendemos a resumir os vários fatores
que levam ao desenvolvimento musical ao termo genérico: talento.
Tanto a concepção de talento musical como seu oposto, a inabilidade,
parecem não ter significado na tribo Anang Ibibo da Nigéria. Davidson
et al. (Hargreaves & North, 1997: 188-89) mencionam a pesquisa do
etnomusicologista J. Messenger que, ao estudar o comportamento em
relação à música e à dança daquela tribo, diz não haver encontrado
nenhuma pessoa com problemas de cognição de alturas, nem tam-
pouco o termo “anti-musical”. Ao contrário do que ocorre no Ocidente,
esse conceito era inexistente numa tribo onde a dança e a música
fazem parte do cotidiano comum a todos os integrantes. Davidson
afirma que a prática e o conhecimento das habilidades musicais são,
no Ocidente, reservados apenas a uma minoria seleta, qualificada
como detentora de alguma “dádiva ou talento especial” herdado
biologicamente.
Exemplo da idéia de herança genética ou atributo dos deuses encontra-
se na reportagem de Teixeira (2006: 65) na Revista Veja sobre a influên-
cia da corrupção na atitude ética do cidadão brasileiro. Num exemplo
fictício, aconselha um professor de tênis que detecta a “falta de poten-
cial” de um aluno a “ser claro a respeito de seu julgamento” para que
ele não alente sonhos impossíveis de serem realizados. Sempre fui
adepta da idéia de que não existe professor, por melhor profissional que
seja, capaz de identificar o potencial que um aluno tem de superar suas
dificuldades e muito menos julgar seu grau de “talento”. Jamais levaria
um aluno a desistir de tocar um instrumento por julgá-lo inapto, por
uma simples razão: eu poderia estar errada.
O’Neill (Hargreaves & North, 1997: 48-9) afirma “não haver um acor-
do geral entre pesquisadores sobre qual deveria ser a definição precisa
de ‘habilidade’ musical”, muito embora testes de aptidão sejam aplica-
dos em escolas na Grã-Bretanha, que utilizam a relação causal entre
“habilidade musical e achievement”. Por essa razão, acredito que
somente o praticante pode definir, ainda que somente tenha condições
de fazê-lo ao adquirir maturidade, o rumo que dará ao seu estudo musi-
cal. Parece-me demasiado prepotente a atitude de certos professores (e
dirigentes de orquestras) em escolher o destino que um músico vai dar
a sua carreira. Em outras palavras, definir com exatidão o significado da
palavra talento, se é que isso será possível, requerá a coordenação de
diversos aspectos da prática musical, incluindo: fatores ambientais,
cognitivos, de gênero, motivação, psicológicos, educacionais e, não
menos importantes, considerações a respeito das relações de poder na
sociedade.

Música: Gênero Feminino, Propriedade Masculina,
Perda para Todos – Relações de Poder entre os Sexos Opostos
Comentando uma pintura feita num virginal no século XVII na
Inglaterra, Leppert diz:
A magnitude da dominação masculina é tal que as próprias artes lhe
são inteiramente incorporadas; à mulher que toca o virginal, resta
realizar o que o homem lhe prescreveu. … A relação entre notação
musical e vigilância é mais estreita do que a história da estética tem
preferido considerar. Para expressar o assunto ainda mais escandalosa-
mente, [a notação] foi desenvolvida para dar às pessoas ordens a
seguir. O fato de [a existência de] grande música ser indiscutivelmente
ligada à longa história da notação não diminui o preço social dessa
conquista, que não é desconsiderável (1993: 133).
Leppert (1993: 72) afirma que a música é estreitamente relacionada a
tudo o que é feminino, incluindo aí o sentido de inferioridade.
Historicamente, o homem recebeu pouco estímulo para estudar músi-
ca como intérprete,1 enquanto, ao contrário, foi encorajado a abordá- 1 Analisando
la como “‘ciência’, concatenando filosofia e matemática” (p. 64). Ele um panfleto
do último
ainda sugere que a evidente “agressividade, imposição e insistência em quarto do
muito da música instrumental do século XIX” soa como um grito de século XVI,
“súplica” masculina pelo direito de exercer a atividade musical e uma Leppert
deduz que o
recusa à idéia embutida pela cultura de que a atividade artística autor consi-
pertence exclusivamente ao universo feminino (p. 187). dera música
como “uma
O trabalho de O’Neill (Hargreaves & North, 1997) aborda a mesma entidade
questão sob outro ponto de vista: tanto meninas como meninos vêem feminina…,
cuja missão
a música como uma atividade feminina. Ao crescerem, no entanto, as é desmas-
mulheres têm que lidar com o fato de que profissionalmente são con- culinizar o
sideradas “inferiores”. Como intérpretes, meninos optam por instru- homem”
(1993: 89).
mentos culturalmente relacionados à masculinidade, como percussão e
trombone, ou preferem embrenhar-se em tecnologia musical, evitando
“uma espécie de transexualismo musical”.
Esses fatores sociais e culturais em torno do gênero seguramente
contribuem para a motivação e conseqüente assimilação no decorrer
do desenvolvimento musical do indivíduo. Para O’Neill, somente os
meninos com maior motivação intrínseca seguirão no estudo da
música, enquanto as meninas mais motivadas irão certamente se
deparar com dificuldades no desenvolvimento da carreira, ainda que
tenham alcançado maior grau de assimilação no estudo. Suas
dificuldades, talvez maiores em países cuja tradição em manter
estereótipos de gênero como o Brasil, já começam na própria

formação, justamente por iniciar seus estudos freqüentemente com
profissionais do sexo oposto, especialmente nos instrumentos
categorizados como “masculinos”.
Tive uma aluna de compleição pequena que já estudava trompa havia
dois anos e mostrava alguma dificuldade para projetar o som e manter
as notas constantes e afinadas. Percebi que era necessário mudar a
posição do bocal para a tradicional proporção de 2/3 do bocal apoia-
dos no lábio superior para 1/3 no lábio inferior. Passadas as primeiras
semanas, a menina passou a produzir um belíssimo som e a se expres-
2 Com
sar em frases contínuas, num exemplo de como a simples observação
exceção da
menção à destituída de julgamento pôde mudar o resultado final.
preparação
técnica ade- Profissionais, muitas vezes competentes, tornam-se automaticamente
quada antes excelentes professores quando ensinam alunos e alunas que não de-
da apresen- monstram dificuldades, mas quando estes apresentam problemas, são
tação e da
consideração responsabilizados por sua falta de talento. A isso dou o nome de exer-
da terapia de cício do poder. Acredito que o papel do professor é o de observar o
indivíduos aluno com isenção de julgamento e, como é seu papel, procurar
que apresen-
tam sintomas identificar e oferecer soluções possíveis para seus problemas.
de fobia
social, Poder e Humilhação
tratando
estes como Segundo Wilson (Hargreaves & North, 1997: 230), o “orgulho humano
casos indi-
viduais – o é um motivo tão poderoso que o medo da humilhação pública produz,
que outra com freqüência, o mesmo grau de pânico emocional” do homem que
pesquisa no deve fugir de um “tigre de dentes de sabre”. O artigo discute os vários
mesmo livro
demonstra o fatores que levam o músico a sentir pânico ao tocar em público e
contrário: “É propõe algumas formas de tratamento. Deixa de considerar, porém, as
bem docu- causas da ansiedade.2
mentado que
músicos ten- Pergunto: é fundamental que o músico toque em público? O músico é
dem a ser
introver- artista porque se apresenta? Minha resposta é: não. Concordo com
tidos” Rilke (1992: 22) quando aconselha seu correspondente a deixar de
(Hargreaves pedir a opinião alheia a respeito da qualidade de seus versos: “O
e North,
1997: 27) — senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria
o autor deixa fazer neste momento. … Não há senão um caminho. Procure entrar em
de consider- si mesmo”.
ar, para mim
um fator cru- Jung (1971: 79) diz que “a principal de todas as ilusões consiste em
cial, a
origem do admitir que alguma coisa pode satisfazer alguém. Esta ilusão está por
medo da trás de tudo o que é intolerável e na frente de todo e qualquer progres-
humilhação: so”. Julga a idéia de poder que persegue o homem ocidental uma
o ideal de
poder. ilusão, e se pergunta o que poderia ser feito “para que renunciasse a

seu terrível poder” (p. 57).
A opinião do outro tem o poder de conduzir o músico à humilhação ou
à exaltação. Qualquer das opções é ilusória porque corresponde a uma
idéia passageira e parcial. Se eliminarmos as ilusões criadas pelas
relações de poder, a apropriação da verdade perderá a importância.
Nenhum dos lados envolvidos será mais forte, nenhum mais fraco.
Talvez então poderemos nós, do Ocidente, eliminar a idéia de que
alguém pode ser “não-musical” e passar a respeitar o talento adquirido,
suado e conquistado, tanto quanto o natural ou herdado.

Fluxo: Uma Alternativa


Nakamura explica o conceito de “fluxo” desenvolvido por
Csikszentmihalyi (Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi, 1988: 320)
como um estado de concentração e prazer onde os desafios e habili-
dades se equilibram. Csikszentmihalyi (1988: 11-2) afirma que esse
conceito é particularmente importante na área de educação, onde uma
pesquisa demonstra que o rendimento de alunos de ensino médio que
sentiram prazer nos cursos foi superior ao previsto por avaliações de
habilidades e conhecimentos.
Larson (Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi, 1988: 164) observou o
processo de trabalho de alunos do curso de inglês de ensino médio nos
EUA com o mesmo grau de conhecimento, experiência e habilidade.
Eles produziram textos qualitativamente distintos de acordo com a
maneira com que reagiram emocionalmente às tarefas. Aqueles que se
sentiram sobrecarregados, produziram trabalhos fragmentados, aqueles
que se sentiram entediados, produziram textos tediosos. Ao contrário,
aqueles que se sentiram à altura da tarefa e se envolveram com ela com
equilíbrio entre razão e emoção, comunicaram-se com clareza através
do texto. “Muito freqüentemente pensamos a cognição como separada
da emoção, como se os processos cognitivos pudessem ser entendidos
independentemente do afeto e vice-versa”.
Comparando o “fluxo” ao ideal zen, onde o ego não deve estar
presente no processo artístico, e criticando a execução musical que
privilegia o resultado sobre o processo, Agrell (2003: 36) propõe uma
revisão do sistema de valores na interpretação. Diz que “a mente que
responsabiliza o ego por imprecisões tenta assumir o processo, forçá-
lo. Isso resulta em tensão, estresse e aumento da imprecisão”.
Exercer uma atividade artística com prazer exige maturidade emocional
e despreocupação com o ambiente ao redor, o que não significa

isolamento, mas sim parceria, onde todos os lados (incluindo público)
estão interessados em um único fim: o de produzir música com alegria.
Acredito serem anacrônicos tanto o estímulo externo que se procura
através da competição entre os músicos como a hierarquia estabeleci-
da na música clássica, e que ambos produzem distorções nas
atividades artísticas. Embora Csikszentmihalyi (1990: 50) admita que
“os desafios da competição podem ser estimulantes e prazerosos”,
afirma que “a competição é prazerosa apenas quando é um meio de
aperfeiçoar as próprias habilidades, quando se torna um fim em si
mesma, deixa de ser divertida”.
O que todos queremos é o constante aperfeiçoamento de nossas
habilidades e isso se constrói com cumplicidade, curiosidade e
determinação, e não com o domínio da verdade e o exercício do poder
de acordo com hierarquias determinadas e inflexíveis. O professor, o
maestro, o crítico e o público que for capaz de reconhecer que não é
uma divindade por si mesmo, saberá fazer a sua parte, que nada mais
é que reconhecer seu grau de humanidade e participação neste mundo
em que “estamos todos no mesmo barco”.

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

Musicoterapia na educação musical do portador de atraso


do desenvovimento: Período crítico e plasticidade cerebral
Cybelle Maria Veiga Loureiro
Leonor Bezerra Guerra
Maria Cecília Cavalieri França
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

sse estudo resulta de uma dissertação de mestrado que, através de

E extensa revisão bibliográfica, deduziu estratégias e adaptações


metodológicas de exercícios da prática da educação musical
dirigida para o desenvolvimento da atenção, memória, comunicação,
habilidades motoras, amadurecimento emocional e socialização dos
portadores de atraso do desenvolvimento, podendo assim auxiliar essa
população de forma diferenciada. São abordadas as várias concepções
sobre desenvolvimento humano, predominantes entre os séculos XVIII
e XX por considerarmos fundamental a conjugação de teorias para
construção da fundamentação para a prática da educação musical
voltada para o desenvolvimento das potencialidades musicais dessas
crianças. A teoria dos “preformacionistas” perdurou até o início do
século XVIII, considerando que hereditariedade e o meio ambiente
eram os determinantes fundamentais do desenvolvimento humano.
Para eles, biologicamente, todas as características corporais, talentos,
interesses e competências eram selados no momento da concepção do
ser humano. Um atraso em seu desenvolvimento era considerado como
“defeito de estoque” onde pouco ou nada poderia ser feito, pois era um
estado nato e estático. Com Rousseau, Pestalozzie e Frobel, teve início
o “predeterminismo”, que introduziu, no século XIX, a idéia da existên-
cia de uma progressão universal para todas as crianças nos diferentes
estágios do seu desenvolvimento. Uma importante contribuição desses
autores é que enfatizavam a necessidade e importância da música para
o desenvolvimento completo das capacidades intelectuais e expressivas
da criança. Quanto à deficiência, no entanto, acreditavam que o poten-
cial de um deficiente poderia se tornar menos comprometido, mas não
melhor do que geneticamente já estava determinado. Os conceitos de
inteligência e de desenvolvimento passam, naquela época, a ser bas-
tante pesquisados. Consequentemente, surgiram novas idéias na edu-
cação que contribuíram para o que passou a ser denominado como
desenvolvimento global – educacional, psicológico, e social – dessas

crianças, transformando radicalmente suas vidas (Lima e Fonseca,
2004). A música desempenhou um papel importante nos programas
educacionais que passaram a ser desenvolvidos voltados para essas
novas idéias. A identificação da sua função em prol da educação dessas
pessoas pode ser encontrada nos registros de estudos históricos da
musicoterapia na educação especial, onde Seguin e Montessori são
citados como os defensores do uso da música nesses programas (Alvin,
1975: 48; Peters, 1987; Davis, 1999; Gfeller, 1999; Adamek, 2005).
Ambos são considerados pioneiros na adoção do posicionamento de
que, mesmo os casos clínicos mais difíceis, poderiam ser retificados
através de um ensino voltado para a estimulação sensorial, o que deu
origem à abordagem “ambientalista” dos desvios mentais. No final do
século XIX e início do século XX, essas idéias foram desenvolvidas por
Howe. Este defendia que o desenvolvimento da criança é o produto
acumulativo de uma contínua interação entre hereditariedade e meio
ambiente, dando origem à abordagem “interacionista”. Howe foi o pre-
cursor da idéia de que o caminho certo para o desenvolvimento edu-
cacional dessas crianças seria dentro das escolas comuns, junto aos
colegas comuns e em todas as áreas possíveis de obtenção de conhec-
imentos, facilitando o desenvolvimento máximo de seu potencial. No
início do século XX, fez-se necessária a criação de critérios de avalia-
ção desses alunos, o que levou o ministro da educação do governo
francês a incumbir Binet e Simon, no ano de 1904, da elaboração de
um teste de inteligência para auxílio à colocação de crianças com
déficit mental em salas de aula apropriadas.
Sabemos, hoje, que testar inteligência não se resume em (ou a?) medir
uma capacidade fixa, mas sim apresentar uma variabilidade do poten-
cial cognitivo de acordo com o grau de adaptação do indivíduo ao
meio-ambiente e aprendizagem. O nosso desenvolvimento cognitivo e
a nossa capacidade adaptativa às mudanças que ocorrem no nosso dia-
a-dia, são altamente dependentes das acomodações do sistema nervoso
(SN) a elas. Processos cognitivos englobam uma variedade de habili-
dades que se somam e interagem no auxílio ao processo adaptativo de
desenvolvimento de estratégias que implicam em adquirir, interpretar,
organizar, armazenar, recuperar e, por fim, utilizar nossos conheci-
mentos (Lent, 2002: 2-14). O comportamento adaptativo é definido
como maturação, aprendizagem e ajustamento social. O termo “matu-
ração” é utilizado para explicar o processo de funcionamento rudi-
mentar do sistema nervoso quando do nascimento do bebê e as
mudanças rápidas que ocorrem principalmente dos dois aos quatro
anos de idade. Durante a primeira infância e a fase pré-escolar, a crian-

ça busca dominar habilidades básicas da vida cotidiana, cuja natureza
é sensório-motora (comer, sentar, andar, falar, usar o banheiro e vestir-
se). A “aprendizagem” manifesta-se na aquisição de habilidades
acadêmicas como ler, escrever e contar. O ajustamento social se reflete
no grau de relacionamento interpessoal atingido pela criança em
relação às normas culturais e na observância de normas e leis de acor-
do com o exigido pelo ambiente. Durante o processo de aprendizagem
ocorrem modificações estruturais e funcionais das células neurais e de
suas conexões, ou seja, o aprendizado promove “modificações plásti-
cas” no cérebro. Todas as diferentes células do SN são dotadas de “plas-
ticidade” que é definida como o processo pelo qual neurônios podem
transformar, de modo permanente ou pelo menos prolongado, a sua
função e a sua forma, em resposta à ação do ambiente externo. Estudos
de patologias resultantes de lesões no SN, contribuíram para o conceito
de “neuroplasticidade”. A plasticidade, após lesão neural ou dano cere-
bral, ocorre simultaneamente no local onde ocorreu a lesão e também
distante dela. O sistema nervoso central (SNC) se organiza após uma
lesão, mediante intervenções medicamentosas, terapêuticas ou educa-
cionais que podem resultar em reorganização neurológica, inclusive
através da proliferação de uma população de neurônios em resposta a
estimulações do mundo externo fornecidas pelas estratégias men-
cionadas. Foi demonstrado que a neuroplasticidade não ocorre
somente nos casos patológicos, mas também tem importância nos
períodos de desenvolvimento pré e pós-natal, bem como nos processos
de aprendizagem e de memorização de todas as crianças, além de se
estender, embora com menor intensidade, ao longo de toda a vida de
um indivíduo. A esses períodos de maior plasticidade, dá-se o nome de
“período crítico” ou “receptivo” do desenvolvimento do SN. O período
crítico refere-se ao grau de plasticidade que varia com a idade do indi-
víduo. A plasticidade é maior durante os primeiros anos de vida, quan-
do o SN é mais suscetível às transformações produzidas pelos estímu-
los ambientais. Alguns aspectos do desenvolvimento do SN no período
crítico do portador de atraso do desenvolvimento são considerados
ainda mais relevantes, pois é quando o processo de aprendizagem
causa modificações estruturais e funcionais mais significativas nos
neurônios e suas conexões. Essas modificações propiciam a aquisição
de habilidades, o quê, consequentemente, aumenta a necessidade de
intervenção terapêutica e educacional precoce. Intervenção precoce é
definida como uma estimulação adequada e contínua, que considera
todas as modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, tátil, gusta-
tiva, cinestésica, proprioceptiva – e a integração entre elas no auxílio à

maturação do SN. A estimulação no período crítico é determinada pelo
seu caráter sistemático e seqüencial, isto é, ininterruptamente e de
acordo com os diferentes estágios ou seqüência do desenvolvimento da
criança. A plasticidade neural fundamenta e justifica a necessidade da
intervenção precoce, pois é considerada um processo que deve acon-
tecer desde os primeiros dias de vida da criança portadora de deficiên-
cia, não somente pelos seus benefícios, mas para se evitar déficits cog-
nitivos e comportamentais ainda maiores devido à privação sócio-edu-
cacional (Loureiro, 2002). Depois que o organismo humano ultrapassa
esse período e atinge a maturidade, sua capacidade plástica diminui e
se modifica, mas não se extingue na vida adulta. A inserção de fatores
ambientais adequados, como a estimulação através da música, influen-
cia a interação das regiões cerebrais e promove alterações estruturais
das células nervosas, o que permite o desenvolvimento de habilidades
perceptuais, motoras, cognitivas e sociais durante toda a nossa vida. A
cada dia, técnicas estatisticamente mais confiáveis nos estudos sobre a
neuroplasticidade cerebral estão sendo desenvolvidas e, além dos
dados referentes ao período crítico do desenvolvimento do SN, levan-
tam hipóteses como as “Leis de Aprendizagem Horizontal”, que especi-
ficam que qualquer coisa pode ser apreendida em qualquer idade,
desde que seja de uma forma útil ao indivíduo (Gardner, 2002: 29-30).
Pesquisas em música e em musicoterapia vêm sendo realizadas com
esse objetivo e demonstram estar beneficiando muitas pessoas com os
resultados obtidos, como nos casos de lesões no SNC e em doenças na
terceira idade (Unkefer, 1990).
Estudos utilizando neuro-imagem demonstram que áreas do córtex
cerebral têm sua morfologia modificada mediante experiências auditi-
vas envolvendo processamento de sons complexos e a música. A apren-
dizagem é altamente dependente da prática e da experiência, sendo
que ambas promovem modificações na representação do mapa corti-
cal. Quando adquirimos uma nova habilidade, como aprender a tocar
piano, aumentamos a área somato-sensorial primária do córtex cere-
bral, relacionada com os movimentos motores dos dedos (Altenmüller,
2001; Rauschecker, 2001). Imagens do cérebro podem ser obtidas
quando o indivíduo está ouvindo música, imaginado música, tocando
um instrumento. Até mesmo diferenças funcionais súbitas podem ser
encontradas após treino musical (Pascual-Leone, Dang et alli, 1995;
Schlaug, 1995; Altenmüller, 2001; Pascual-Leone, 2001). Esses estudos
demonstraram a existência de múltiplas representações sensoriais da
música no córtex cerebral. Essas representações parecem ser adaptati-
vas e intercambiáveis devido à plasticidade cerebral. Envolvem habili-

dades de percepção, cognição e motoras específicas que podem ser
transferidas para respostas comportamentais, bem como caracterizar
uma reorganização cortical resultante do treinamento musical. Outros
esforços vêm sendo dirigidos para o estudo do desenvolvimento de
habilidades não-musicais, tais como linguagem, matemática e
raciocínio visio-espacial, que demonstram ser aumentadas nas crianças
que estudam música. Durante o processo de aprendizagem ocorrem
essas modificações plásticas, estruturais e funcionais dos neurônios e
suas conexões, promovendo reorganização da estrutura cerebral.
Algumas estratégias vêm sendo estudadas em musicoterapia com o
objetivo de reduzir, ou até mesmo minimizar, as diferenças entre os
portadores de deficiências e as demais crianças dentro do sistema regu-
lar de ensino. Levanta-se a hipótese de que, através da música, o tempo
de reação mais lento desses indivíduos pode ser modificado, se inter-
venções perceptuais e motoras forem utilizadas na abordagem do
déficit. Sabe-se que é possível minimizar alguns dos efeitos da defi-
ciência através de atividades específicas que incluam estimulação neu-
rológica e que permitam a formação de estratégias de processamento
através da música (Dockrell e McShane, 2000). O programa educa-
cional que consiste meramente na rotina de ensinar habilidades ou no
uso acrítico de métodos e materiais, sem considerar informações sobre
as habilidades e problemas específicos de cada aluno, talvez não seja
apenas perda de tempo e esforço, mas talvez provem ser também pre-
judiciais ao indivíduo. Podemos concluir que, embora uma criança
apresente atraso no seu desenvolvimento, isso não significa que ela per-
manecerá estática, numa classificação atribuída a ela desde a sua
primeira infância, desde que lhe seja oferecida uma educação adequa-
da, mediante a qual possa aprender habilidades novas desde os
primeiros anos de vida, que contribuirão para sua melhor interação
com o mundo.

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

Discutindo o talento musical


a partir da visão de estudantes de música
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo
Universidade do Estado de Santa Catarina
Luciana Machado Schmidt
Universidade Federal de Santa Catarina

talento musical é uma questão que vem sendo tratada pela

O sociedade, em geral, e também por músicos, como sendo algo


inexplicável, inerente a algumas pessoas que se destacam ao
realizarem certas atividades. Para a sociedade, de uma forma geral,
existem pessoas com capacidades ou habilidades inatas que indepen-
dem de treinamento ou estudo, e isto as torna talentosas. A idéia de que
algumas pessoas são mais dotadas que outras prevalece em diversas
situações, sendo que parece ser ‘natura’ ter ou não talento para a mú-
sica. Entre os músicos também é bastante comum a referência a
indivíduos talentosos, e isto pode estar ligado à capacidade de
execução virtuosística, por exemplo, ou à sensibilidade interpretativa,
ou ainda à genialidade criativa. Em todos os casos, também parece ser
‘natural’ que algumas pessoas serão melhores musicistas porque
possuem mais talento. Este trabalho se propõe a discutir brevemente
questões relacionadas ao talento musical na perspectiva de estudantes
universitários de cursos de Licenciatura e Bacharelado em música, com
o intuito de verificar de que forma estes estudantes compreendem a
questão do talento ao longo de sua formação.

Uma breve revisão de literatura sobre talento musical


O talento musical tem sido discutido pela literatura de forma diversifi-
cada. Não há um consenso entre os pesquisadores sobre o que seria
talento, se ele é inato ou adquirido, de que forma se mede a presença
de capacidades e predisposições nos indivíduos, ou se há uma relação
direta entre talento e desenvolvimento de habilidades. Howe et alii
(1998) apresentam resultados de diversas pesquisas com relação ao
talento musical que enfocaram:
a) talento inato – parece existir em alguns indivíduos que possuem
facilidades especiais para a realização de certas tarefas;
b) talento adquirido – através de oportunidades, treinamento e

incentivo, os indivíduos podem desenvolver habilidades que não
eram evidentes anteriormente.
Essas pesquisas não são conclusivas devido fundamentalmente a dois
aspectos. O primeiro diz respeito à existência de diferenças inatas entre
as pessoas, embora essas habilidades não podem ser previsíveis.
Quanto ao segundo aspecto, alguns autores afirmam que o talento “é
uma elaboração exagerada ou super simplificada de um conjunto de
elementos” (Howe et alii, 1998: 30).
Do ponto de vista educacional, o conceito de talento é determinante
para o desenvolvimento de projetos pedagógicos. Autores reforçam que
a educação musical tem se preocupado demasiadamente com os
alunos ‘talentosos’ (Fowler, 1991; Hentschke, 1995; Plummeridge,
2001), ignorando a possibilidade de desenvolvimento musical para
todos os indivíduos. Bellochio et al. (2001) alertam para o perigo de se
privilegiar apenas alunos ‘talentosos’, uma vez que esta atitude tem
contribuído para que se perpetue a discussão sobre a necessidade ou
não da música estar inserida na educação escolar e para que se
promova uma educação musical voltada a poucos. Campbell considera
que na visão eurocêntrica de talento “educação e trabalho ocupam
pouco espaço, e o meio não conta para nada” (1998: 169). Este modo
de pensar traz sérias implicações para o ensino de música. “O perigo
aparece quando as pessoas entendem o talento como um dom raro e
genético e então questionam o uso da educação para as massas ‘não
talentosas’” (Campbell, 1998: 170).
Pesquisadores apontam para a importância do meio como constitutivo
das habilidades em geral para todos os indivíduos. As habilidades
musicais, portanto, também são construídas pela pessoa na relação
com seu meio. Davidson et alii (1997) enfatizam que é inegável que o
meio afete o desenvolvimento de habilidades musicais. Vygotski (1997)
demonstra que como o ser humano é um ser predominantemente
cultural, no sentido de que é constituído histórica e culturalmente, é
uma falácia considerarmos que exista algo ‘natural’, como dons
independentes de educação e desenvolvimento numa cultura.
Autores diversos refletem sobre a musicalidade humana considerando
que todos os indivíduos estão aptos a se desenvolverem musicalmente
(Elliot, 1995; Figueiredo, 2003; Figueiredo & Schmidt, 2005; Glover &
Ward, 1993; Mills, 2005). Este desenvolvimento depende de fatores
como motivação, estímulo, orientação, prática, oportunidades, dentre
outros. Hodges (2000) destaca que todos as pessoas têm capacidade
para responder e participar da música de seu meio, enfatizando a idéia
de música para todos.

Metodologia
Para o desenvolvimento desta investigação foi elaborado um
questionário com seis questões abertas sobre: talento; a necessidade ou
não de talento para se fazer música; a possibilidade de desenvolvi-
mento musical; o conceito de talento para as pessoas em geral; e as
características de pessoas talentosas. O questionário também abriu
espaço para comentários que os participantes quisessem fazer, além
das perguntas formuladas.
Foram convidados 20 estudantes da mesma universidade: 10 de um
curso de Licenciatura em Música e 10 de um curso de Bacharelado em
Piano. Os estudantes convidados estavam matriculados em diferentes
semestres dos cursos, e o objetivo desta variedade era saber se haveria
alguma mudança conceitual com relação ao talento à medida que os
estudantes progridem para períodos posteriores. Participaram da
pesquisa 10 estudantes do sexo masculino e 10 do feminino, com idade
variando entre 17 e 47 anos.
Aplicados os questionários procedeu-se à tabulação e organização dos
dados coletados. A análise dos dados foi realizada com ênfase nos
aspectos qualitativos representativos da compreensão que aqueles
estudantes tinham sobre o talento musical.

Apresentação dos dados


A primeira questão era: o que é talento? As respostas foram variadas. Os
termos utilizados pelos participantes indicaram aspectos heterogêneos
não excludentes, podendo a mesma resposta conter diversos atributos.
O termo mais freqüente foi facilidade, seguido de habilidade, aptidão,
dom, predisposição e capacidade. A utilização de muitos termos para
explicar o que é talento também está presente na literatura específica e
demonstra que este é um conceito complexo e subjetivo. A terminolo-
gia empregada pelos participantes inclui itens que apontam para o
talento inato e outros que associam o talento à força de vontade, ao
desejo de aprender algo e à oportunidade.
A segunda questão do questionário tratava da necessidade ou não do
talento para lidar com música. Dentre os participantes, treze (6
Licenciatura, 7 Bacharelado) responderam que sim; quatro (2
Licenciatura, 2 Bacharelado) responderam que é relativo; e três (2
Licenciatura, 1 Bacharelado) disseram que o talento não é necessário
para lidar com música. Os comentários dos participantes neste tópico
incluíram, também, que a necessidade de talento depende do que se

pretende realizar musicalmente. ‘Para ser um profissional da música’,
afirmaram alguns participantes, ‘é necessário talento, mas não para a
música na educação básica’. Sete participantes (4 Licenciatura, 3
Bacharelado) consideraram que ‘o talento não é determinante para o
desenvolvimento de atividades musicais, mas ajuda’; ‘é importante mas
não indispensável’; ‘para se realizar música é preciso de estudo, tra-
balho e vontade de aprender’. Dois participantes (1 Licenciatura, 1
Bacharelado) incluíram a afirmação de que o talento é necessário não
apenas para a música, mas para qualquer atividade que se realize.
A terceira questão era: todos os indivíduos podem se desenvolver
musicalmente? Os dez participantes da Licenciatura foram unânimes
ao afirmar que todos os indivíduos podem se desenvolver musical-
mente. Dos estudantes de Bacharelado, oito também fizeram a mesma
afirmação. As respostas destes 18 participantes de alguma forma
incluem que o desenvolvimento musical está diretamente ligado à
prática, ao treino, a oportunidades e à orientação. Dois respondentes
consideraram que nem todos podem se desenvolver musicalmente. Um
deles indica que o motivo para isso seria alguma incapacidade física. E
um único participante afirmou que não pode se desenvolver musical-
mente quem não possui uma “alma artística”.
Na resposta à quarta questão, o que as pessoas, em geral, pensam a
respeito do talento, os participantes responderam em síntese que: é um
dom inato; uma dádiva divina; algo de natureza subjetiva; e destinado
aos gênios e iluminados. A maioria das respostas incluiu de alguma
forma a idéia do inatismo relacionada ao talento como sendo a forma
de pensar das pessoas em geral.
A quinta questão solicitou aos participantes que indicassem o nome de
uma pessoa talentosa, justificando sua escolha. As respostas foram
variadas, assim como as justificativas. A maioria dos estudantes indicou
cantores, instrumentistas e compositores famosos. Além disso, alguns
participantes mencionaram seus próprios professores como sendo
pessoas talentosas. Dois alunos mencionaram seus colegas de curso
como sendo talentosos, e um deles citou a si próprio como sendo um
exemplo de talento musical.
A sexta questão abriu espaço para comentários adicionais. Nem todos
apresentaram respostas a esta questão, e os que a responderam enfati-
zaram pontos já apresentados anteriormente, tais como: ‘certas pessoas
têm facilidade para fazer certas coisas e isso ajuda, mas quem não tem
também é capaz de grandes realizações’; ‘a discussão sobre talento é

uma questão antiga e mesmo assim repleta de superstições. Pessoas
realmente não são iguais e cada um terá tendência a desenvolver deter-
minadas tarefas com mais ou menos facilidade’; ‘o verdadeiro edu-
cador musical deve saber que para o bom desenvolvimento basta 1%
de talento e 99% de vontade. Cabe ao educador desencadear uma série
de dispositivos para que se inicie a capacidade de vir a desenvolver as
potencialidades que todos os indivíduos naturalmente possuem’.

Considerações finais
Não há diferenças significativas nas respostas dos participantes, sejam
eles estudantes de Licenciatura ou Bacharelado matriculados em
diferentes semestres dos cursos, sejam eles homens ou mulheres, ou
tenham idades diferentes. No entanto, podem ser destacados alguns
pontos para reflexão:
a) A diversidade de definições sobre o que é o talento, encontrada
nas respostas dos participantes e na literatura, aponta para a
complexidade desta questão, evidenciando a necessidade de se
aprofundar este tema.
b) O fato da maioria dos participantes acreditar que é preciso
talento para se lidar com música, agrega a esta temática novos
questionamentos e remete à necessidade de se conceituar melhor o
que é ‘talento’. Como as definições de talento apresentadas pelos
participantes eram bastante diversificadas, ao considerarem a
necessidade de talento para lidar com música os estudantes podem
estar pensando em diferentes atributos que estariam evidenciados
nos indivíduos. Mas isto ainda não é suficiente para identificar com
clareza o que é talento e, conseqüentemente, afirmar com
segurança que é preciso talento para lidar com música.
c) Apesar das diferentes definições de talento e da presença da
concepção inatista nas respostas dos estudantes, parece haver uma
concordância muito grande sobre o fato de que todos os indivíduos
podem se desenvolver musicalmente. Em diversas respostas está
enfatizada a questão da educação musical, sendo este um fator
determinante para o desenvolvimento musical. Isto quer dizer que
mesmo aqueles que anteriormente haviam considerado o talento
como uma característica inata, assumem que todos podem se
desenvolver, mesmo aqueles que não têm tal característica inata ou
não apresentem facilidade para a realização musical.
d) Os resultados apontam para a necessidade de aprofundamento
de questões fundamentais na formação de estudantes de música em
seus cursos universitários. Tais estudantes serão multiplicadores de

conceitos, e por esta razão deveriam estar preparados para discutir
uma questão tão complexa quanto o talento de maneira
consistente.

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VYGOTSKI, L.S. (1997). Obras escogidas (2ª ed.). Madrid: Visor.


Sessões de Demonstração


Interação e cognição
no processo de interpretação mediada da marimba
Cesar Traldi
Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

pesar dos instrumentos de percussão serem, possivelmente, os


A primeiros a surgir na História da Música, foram explorados
amplamente somente no século XX, no contexto da música ocidental.
O desenvolvimento dos processos de construção dos instrumentos, o
amadurecimento técnico dos instrumentistas, a grande variedade de
timbres e a presença marcante do gesto do intérprete na interpretação
engendraram o surgimento de estratégias composicionais e recursos
técnicos inovadores. Este processo gerou grande atenção por parte de
muitos compositores e fez com que a percussão assumisse a posição de
uma das principais fontes de novos paradigmas instrumentais na músi-
ca contemporânea. O percussionista, ao interagir com este complexo
de ineditismo, tem que buscar novas fontes de conhecimento musical.
O percussionista Kumor (2003) comenta que a performance de obras
contemporâneas exige do intérprete conhecimentos que vão além do
padrão curricular.
A possibilidade de interagir com meios sonoros e computacionais surge
no final do século passado e, rapidamente, torna-se uma das principais
linhas de composição e interpretação do início deste século. Rowe
(1993) comenta que o desenvolvimento dos meios eletrônicos possibil-
itaram a execução de composições algorítmicas em tempo real, assim
os sistemas musicais computacionais são capazes de modificarem seu
comportamento sonoro em função de estímulos gerados por músicos
no momento da própria interpretação da obra.
A interação do gesto musical com dispositivos eletrônicos tem seu pre-
cursor quando, em 1919, Leon Theremin cria o seu instrumento
1 http://there denominado, posteriormente, de Theremin.1 Este instrumento foi o
minworld.co primeiro a produzir som sem necessitar do contato físico do instru-
m/ mentista. Apenas a movimentação da mão realizada em torno de uma
antena controlava a emissão sonora, o que fazia com que fosse
necessária uma grande precisão gestual por parte do intérprete.
Segundo Rowe (1993), historicamente, esta é a primeira referência de
eventos sonoros realizados a partir do gesto sem contato direto com um
meio físico.

Figura 1 - Um concerto para dois
Teheremins, com a participação
de outros músicos. Leon
Theremin, à esquerda, executa um
dos instrumentos e, simultanea-
mente, atua como dirigente da
performance.
A interação de músicos com eletrônicos foi amplamente preconizada
por Boulez (1977) no seu texto em que comenta que tais dispositivos
não foram inventados para aplicações musicais, mas que a utilização
dos mesmos levaria a mutações ou soluções inovadoras. Este ponto de
vista é reforçado em Boulez & Gerzso (1988), onde o artigo concentra-
se na interação com o computador.
Na última década, um novo campo de pesquisa está se desenvolvendo
com o objetivo de estudar e criar novos dispositivos eletrônicos e
instrumentos musicais para interação em tempo real. Em 2001, teve
início uma série de conferências anuais denominadas de NIME (New
Interfaces for Musical Expression), onde intérpretes e pesquisadores
apresentam os últimos avanços na construção de novas interfaces
musicais.
O trabalho que apresentamos teve sua mola propulsora com o desen-
volvimento do laboratório de Interfaces Gestuais no Núcleo
Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) apresentado em
Manzolli (1996). Neste sentido, a pesquisa aqui apresentada tem o
objetivo de ampliar as possibilidades interpretativas da marimba através
da construção de novas interfaces. Em particular, nas próximas seções
descreveremos a criação e o desenvolvimento de baquetas interativas
como nova interface entre intérprete e eletrônicos. Este trabalho estuda,
também, a posição interpretativa do percussionista frente a essa nova
interface e apresenta outros dispositivos que têm o objetivo de ampliar
a interação preconizada: a) sensores piezoeléctricos utilizados nas
teclas da marimba, b) microfones e c) sensores de movimento.
Este artigo discute brevemente na seção Interpretação Mediada, duas
obras para marimba e eletrônicos em tempo real, com o objetivo de
exemplificar a utilização de diferentes dispositivos de interação, o que
causa a necessidade de uma postura interpretativa diferente em cada
uma das obras. Na seção seguinte descreve-se o processo de desen-
volvimento da baqueta interativa. Posteriormente, discutimos que esta
pesquisa tem sua metodologia focada no processo de interação entre a
prática instrumental e a construção de novos meios e dispositivos para

interpretação mediada da marimba. Finalmente, apresentamos os
resultados preliminares que apontam para a necessidade de uma nova
visão interpretativa.

Interpretação Mediada
Uma das primeiras obras que encontramos no repertório para Marimba
e eletrônicos ao vivo é Daydreams, composta em 1991 pelo composi-
tor norte-americano Philippe Boesmans. O percussionista Robert Esler
comenta as dificuldades de execução dessa peça naquela época e até
mesmo nos dias atuais no que tange a complexidade da tecnologia uti-
lizada através de inúmeros dispositivos eletrônicos aplicados à inter-
ação entre o intérprete e o computador. A interface utilizada foi sen-
sores piezoeléctricos nas teclas da marimba, a informação recebida era
enviada a um conversor MIDI e o computador gerava informação
musical em resposta ao estímulo gerado pelas teclas através de eventos
programadas numa das primeiras versões do programa Max.
Obras mais atuais utilizam dispositivos mais atualizados para realizar a
interação intérprete/computador. Um exemplo é a composição A
Gravidade Liberta (2003) para marimba e eletrônicos ao vivo do com-
positor espanhol Ricardo Climent. Nessa obra o computador reage em
tempo real aos estímulos produzidos pelo intérprete através de micro-
fones e o computador processa o material sonoro produzindo efeitos
como duplicação, repetição, distorção e alteração do timbre.
Apesar dos diferentes meios de interação utilizados em Daydrems e em
A Gravidade Liberta, podemos notar que, em ambos os casos, é exigido
do intérprete um conhecimento e familiarização com a tecnologia
utilizada que não faz parte da grade curricular convencional. Essas
duas peças demonstram algumas das inúmeras possibilidades de
interpretação com eletrônicos ao vivo, o que nos leva a projetar a
necessidade de uma nova visão interpretativa.
Nosso objetivo é estudar essa nova postura interpretativa em obras para
marimba e eletrônicos ao vivo sob a ótica da capacitação perceptiva
derivada da mediação tecnológica. A interação em tempo real com
diferentes dispositivos como microfones, sensores piezoeléctricos,
baquetas interativas, sensores de movimento, entre outros, leva o músi-
co a buscar uma nova dimensão interpretativa para cada obra ou até
mesmo para diferentes trechos da mesma, postura que é diferente da
utilizada no repertório tradicional.
Na interpretação mediada há outro nível de cognição musical, pois o

músico responde a estímulos gerados pelo computador com novas pos-
sibilidades de execução. Como exemplo do que preconizamos neste
estudo pode-se generalizar o processo de interação reativa aplicado em
Daydreams. Além de interagir percutindo cada uma das teclas da
marimba, o intérprete poderia interagir com o computador e moldar os
sons através de gestos de suas mãos onde sensores fixados numa luva
captariam esses movimentos e provocariam novos estímulos fazendo
com que ocorressem alterações em tempo real. Desta forma, a pesquisa
que apresentamos busca fomentar uma nova postura interpretativa, ou
seja, o que chamamos de técnicas interpretativas mediadas. Neste
artigo apresentamos um dos dispositivos já desenvolvidos.

Baqueta interativa
As baquetas têm grande importância na performance dos instrumentos
de percussão e, em especial, na marimba. Elas são a interface entre o
instrumentista e o seu instrumento, portanto pareceu-nos natural explo-
rar, como primeiro passo de pesquisa, tal dispositivo. Pois, apesar de
elementar, no que tange à eletrônica envolvida, o estudo das baquetas
interativas poderá nos levar a conclusões mais avançadas sobre as
implicações dos processos interativos envolvidos e da metodologia de
pesquisa adotada.
Desenvolvemos baquetas do tipo mallets que, normalmente, são uti-
lizadas nos instrumentos de percussão de teclado e que também podem
ser utilizadas em outros instrumentos de percussão como tambores,
tímpanos, caixas, pratos, etc. Uma preocupação na construção das
baquetas foi que as mesmas obtivessem a maior semelhança possível
com as baquetas tradicionais. Esse cuidado foi tomado para não atra-
palhar o instrumentista em performance. Assim, buscamos com que
parâmetros como peso, tamanho, material e formato fossem preserva-
dos e, desta forma, estaríamos tornando invariantes uma série de técni-
cas tradicionais as quais poderíamos aplicar novos modos gestuais.
O dispositivo eletrônico utilizado foi o sensor piezoeléctrico que, após
ser soldado a dois fios de conexão de 2,5 m de comprimento, foram
envolvidos com um pequeno pedaço de espuma para evitar a produção
de ruídos metálicos causados pelo contato direto do sensor com as
esferas de borracha utilizadas para envolvê-los.
As primeiras baquetas foram desenvolvidas com tubos de alumínio com
40 centímetros de comprimento e 4,0 mm de diâmetro. As mallets são
normalmente construídas com cabos de madeira mas, devido a sua

fragilidade quando perfurados, optamos por cabos de alumínio. Após
vários testes, a nova baqueta ainda produzia ruído causado pelo cabo
de alumínio. Desenvolvemos, então, um segundo modelo de baqueta,
com a utilização de cabo de madeira e com os fios passando pelo seu
exterior.
O fio da baqueta foi conectado a um dispositivo para fazer a conversão
de cada pulso elétrico em um evento MIDI. Assim, o sinal produzido
pelo percussionista poderia ser processado pelo computador ou
produzir som diretamente através de um módulo de percussão digital.

Figura 2 – Marimba, Baquetas Interativas e Módulo de Percussão


Digital.

Metodologia & resultados

1. Atelier de Interpretação

A metodologia utilizada na pesquisa apoia-se em três elementos


fundamentais: a) construção de novos dispositivos com sensores
diversos; b) mediação através de processo computacional e c) oficinas
de performance onde são realizadas a validação do processo bem
como as medidas de desempenho do sistema e avaliada a reação do
músico. Através da realização de oficinas de performance como meio
de integração entre a prática instrumental e os dispositivos estudados,

o intérprete-pesquisador vincula o conteúdo teórico e tecnológico
desenvolvido na construção de interfaces com sua prática instrumental.
A baqueta aqui apresentada trata-se do primeiro estudo de caso
aplicado à interpretação da marimba, no qual avaliamos a interação do
intérprete com o computador através das baquetas interativas
desenvolvidas com sensores piezoeléctricos.

2. Primeiros Resultados
Com os resultados obtidos na análise das oficinas já realizadas, obser-
vamos que a necessidade de conhecimento dos dispositivos utilizados
em performance somado à forte presença da improvisação em obras
colocam o intérprete na posição de co-criador. O intérprete deixa a
postura de apenas ser meio de execução para assumir a posição de
elemento de coesão da obra. O instrumentista deixa de ter a postura de
especialista para ter uma visão interacionista na qual, através da
adaptação, molda-se a cada obra.

Projeções & conclusão


O grande número e a diversidade de dispositivos eletrônicos de inter-
ação tornam inviável o estudo de todos eles, mas temos como objetivo
pesquisar alguns que demonstram grande potencial na criação de inter-
faces para a marimba como sensores de movimento e fotoelétricos.
A utilização de dispositivos eletrônicos de interação em tempo real
vinculados à marimba e, em particular, as baquetas interativas,
apontam para o desenvolvimento de uma nova visão interpretativa do
instrumento, pois possibilitam ao intérprete a interação com inúmeros
dispositivos.
Os resultados preliminares que obtivemos demonstram que a utilização
de técnicas interpretativas mediadas como aqui estudadas fomentam
no intérprete a ampliação de sua capacidade de controle de estruturas
sonoras e desenvolve sua habilidade de correlacionar eventos e
sonoridades da marimba.
Esta pesquisa tem o apoio da CAPES através de uma bolsa de mestra-
do do programa do Instituto de Artes da Unicamp. O orientador tem
também apoio do CNPq através de uma bolsa de produtividade em
pesquisa.

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
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ROWE, R. (1993). Interactive Music System. Cambridge: The MIT Press,
Massachusetts.

Preparação para a performance de Now Here is Nowhere


para contrabaixo e suporte fixo: considerações sobre per-
cepção timbrística e rítmica
Sonia Ray
Universidade Federal de Goiás – UFG

s aspectos idiomáticos na performance musical tem sido objeto de


O pesquisas brasileiras, particularmente naquelas voltadas para
edições críticas, as quais já representavam 11,5% de todas as disser-
tações e teses na área em 2001 (Borém, 2005). Apesar da percepção
timbrística e rítmica ter recebido considerável atenção de
pesquisadores no Brasil e exterior a exemplo de Clarke (1999),
Williamon e Davidson (2002), Andrade (2003), Ray (2005) e Borém
(1997), aspectos da preparação de obras envolvendo instrumentos
acústicos e suporte-fixo ainda são raros.
No que tange o contrabaixo, sua constante expansão de recursos físi-
cos proporcionada por avanços tecnológicos recentes, tem chamado a
atenção de muitos compositores. Estes avanços estão relacionados à
confecção de cordas (são dezenas de tipos disponíveis), técnicas de
lutheria, disponibilização de tipos variados de espigão (como os “egg-
pins” que facilitam o acesso a região aguda quando se toca em pé). Eles

têm permitido o uso da extensa aguda extrema do instrumento com
excelente qualidade sonora, maior velocidade na execução de pas-
sagens da região grave com maior definição do som e, sobretudo, mais
volume e qualidade timbrística. Com isso, compositores como Peter
Askim, Hans Sturm, Teppo Hauta, Anderson Vianna, Ernst Mahle e
Estércio Cunha, entre outros, têm ousado em suas composições para
contrabaixo, criando obras desafiadoras e estimuladoras para o
performer.
Obras para contrabaixo e suporte fixo ainda são raras na produção dos
compositores brasileiros, porém, as possibilidades singulares do instru-
mento têm sido exploradas em atividades artísticas e de pesquisas
integradas, a exemplo de trabalhos como os de Borém (2005) e Ray
(2001 e 2001a), que resultaram em obras brasileiras publicadas para
contrabaixo. Apesar da demanda anunciada do crescimento de
repertório para contrabaixo e suporte fixo, o performer tem dificuldade
na preparação deste tipo de peça em função do procedimento
tradicionalmente adotado na preparação do instrumentista não ser
compatível com alguns desafios apresentados com a presença dos
elementos não acústicos.
Assim, com o objetivo de refletir sobre formas de otimizar a preparação
para a performance de obras para contrabaixo e suporte fixo, este texto
apresenta um experimento quer traçou considerações sobre percepção
timbrística e rítmica no processo de preparação da obra Now here is
Nowhere (1997) de Mathew Hallaren.

Método
Os aspectos da percepção timbrística e rítmica foram levantados a par-
tir de um experimento desenvolvido em duas etapas: preparação do
material de leitura musical para os sujeitos, dos termos de consenti-
mento livre e esclarecido, do equipamento de gravação e dos aspectos
a serem observados. A principal hipótese levantada foi que o performer
busca aspectos familiares para interagir com elementos não acústicos
na preparação de uma obra que envolve suporte-fixo (sons digitaliza-
dos). As referências principais na preparação de obras envolvendo
suporte-fixo são aquelas advindas do estudo tradicional: altura,
duração precisa, intensidade limitada ao extremo do instrumento (sem
amplificação) e presença de outro executante (e não de equipamentos
eletrônicos). A frase abaixo (exemplo 1) foi entregue aos dois sujeitos
que tiveram 24 horas antes da gravação. O espaço de tempo foi con-
siderado viável face à experiência dos sujeitos, ambos contrabaixistas

graduados em Música-Habilitação em Contrabaixo. As gravações foram
feitas em vídeo digital em uma única sessão que demorou cerca de 2
horas. A observação foi feita por mim e por um convidado, pianista e
pesquisador.

Exemplo 1: Trecho iniciado aos 92 segundos de Now Here is Nowhere


de M. Hallaren

Sobre a obra e o compositor


Now Here is Nowhere (1997) de Matt Hallaren (n.1970) para contra-
baixo e suporte fixo foi composta para o Midle West Composition
Symposium realizado, no conservatório de Orberlin, em Ohio. A peça
tem cerca de 6 minutos de duração e foi composta em colaboração
minha com o compositor e estreada por mim no referido simpósio.
Hallaron é um jovem compositor norte-americano que trabalha essen-
cialmente com composições eletroacústicas. Era membro do grupo de
compositores da pós-graduação que se dedicava à música contem-
porânea naquele ano na Universidade de Iowa, EUA onde eu cursava
doutorado.

Considerações sobre percepção rítmica


Os sujeitos fora convidados a tocar a frase estudada 4 vezes sendo a
primeira sem acompanhamento, a segunda com o suporte-fixo e a par-
titura com o desenho das ondas sonoras acima da frase que eles já
conheciam (exemplo 2). a terceira com o suporte-fixo e a partitura com
o desenho das alterações de dinâmica feitas pelo suporte-fixo (exemplo
3) e a quarta com o suporte-fixo e a partitura apenas com indicações de
entradas de pontos fortes de dinâmica do suporte-fixo as quais foram
simultaneamente percutidas por mim ao contrabaixo para evidenciar o
ponto das entradas a partir de uma fonte percussiva (exemplo 4).

Exemplo 2: Trecho de Now Here is Nowhere de M. Hallaren com


suporte-fixo.


Exemplo 3: Trecho de Now Here is Nowhere de M. Hallaren com


dinâmicas

Exemplo 4: Trecho final de Now Here is Nowhere de M. Hallaren com


entradas
Os dois sujeitos se mostraram mais desconfortáveis com o exemplo 2 e
mais confortáveis com os exemplos 1 e 4. Os observadores atribuíram
esta reação à falta de familiaridade dos sujeitos com sons sintetizados,
que os deixou inseguros no exempo n.2. Já a percepção timbrística
familiar da percussão e meu movimento de corpo no exemplo 4
ajudaram a prever entradas e a marcar o pulso, facilitando a execução.

Exemplo 5: Trecho final de Now Here is Nowhere de M. Hallaren



Considerações sobre percepção timbrística
Para traçar considerações sobre o timbre, escolhi um trecho que exige
afinação exata com o suporte fixo (exemplo n.5), no qual os sujeitos
podiam improvisar em torno da nota si, tocada simultaneamente pelo
suporte.
Antes de gravar, os sujeitos tocaram as notas si, si b, do e fá por uns 5
minutos. A seguir o trecho foi gravado duas vezes. Na primeira com o
suporte fixo e na segunda comigo tocando a parte do suporte-fixo. Os
observadores concluíram que a afinação não mudou muito da primeira
pra a segunda vez, entretanto, a melhora da qualidade sonora dos
sujeitos quando interagindo com outro instrumento acústico foi notáv-
el, bem como a tranqüilidade dos músicos. Um dos sujeitos declarou
ao final da gravação que perceber o movimento de corpo (principal-
mente do braço direito) do outro instrumentista, ainda que na parte
livre para improvisação rítmica, ajudava a relaxar e a prestar mais
atenção no som.

Resultados
Os contrabaixistas sujeitos deste experimento mostraram-se mais cal-
mos e seguros quanto lhes foi apontada alguma possibilidade de uti-
lizar seu conhecimento prévio de música para interagir com elementos
não acústicos na preparação do trecho da obra em questão. À medida
que os sujeitos conseguiram associar o som digitalizado a um
parâmetro tradicional, a estratégia de preparação se tornou mais
palpável e a performance passou a ser viabilizada. Os parâmetros mais
utilizados como referência foram pulso e metro, porém alterações na
dinâmica e timbre provocaram alterações na percepção rítmica e na
afinação.

Conclusões
A conclusão mais importante é que quanto maior a referência de altura
e timbre entre o suporte fixo e o instrumento acústico, maior o acerto
rítmico e mais apurada é a afinação. Estudos mais detalhados ainda
precisam ser desenvolvidos sobre este tema, porém, o presente trabalho
deve inspirar novos questionamentos neste sentido. O presente trabalho
não é conclusivo, pelo contrário, deve propor caminhos para outras
visões sobre o tema e para abordagens semelhantes sobre outros
aspectos tais como intensidade, textura, forma, etc.

Referências bibliográficas
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O conceito de modulação métrica e sua aplicabilidade em


exercícios da Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado
Sara Cohen
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Salomea Gandelman
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Cartilha rítmica para piano articula, com muita propriedade,


A competências que Almeida Prado exerceu e tem exercido ao
longo de sua vida: as de compositor, pianista e professor. A obra, escrita
nos anos de 1992, 1999, 2003 e 2005, pode ser vista como um passeio
por muitas das estratégias rítmicas exploradas pelos compositores na
música do século XX em suas investigações sobre as inúmeras possibi-
lidades de flexibilização e ampliação da métrica característica da
música tonal dos dois séculos anteriores.
Com roupagem harmônica moderna e variada, Almeida Prado cria 103
pequenos exercícios, distribuídos em quatro volumes. Dialoga não só

com os livros Treinamento elementar para músicos de Paul Hindemith,
Rítmica de José Eduardo Gramani, Twentieth century harmony de
Vincent Persichetti, os VI volumes do Mikrokosmos de Bela Bartók,
Maracatus de Recife, de César Guerra-Peixe, Música Popular Brasileira
de Oneyda Alvarenga e Ensaio sobre a Música Brasileira de Mário de
Andrade, mas também com suas anotações sobre rítmica grega e har-
monia tradicional, nas aulas de Messiaen e Nadia Boulanger, durante
os anos em que viveu em Paris. A convivência com alunos de com-
posição, descrita por Almeida Prado como criativa, estimulante e reno-
vadora, e sobretudo os anos de aprendizagem com Camargo Guarnieri,
engrossam as referências por ele apontadas como estimulantes para o
processo de criação dos exercícios da Cartilha, conforme a “Pequena
explicação” que apresenta a obra (Gandelman & Cohen, 2006: 59-60).
De uma maneira geral, os exercícios são curtos (alguns muito curtos,
com trinta segundos de duração), focalizando, cada um deles, um
determinado aspecto rítmico. Além disso, a inexistência de obras com
esse perfil na musicografia brasileira confere à Cartilha um potencial
pedagógico a ser explorado não só pelos professores de piano, mas,
também, pelos de teoria da música, percepção e composição.
Entretanto, os predicados musicais de muitos dos exercícios catapultam
a obra para além do eixo pedagógico, qualificando-os como pequenas
peças a serem incorporadas ao repertório das salas de concerto.
Propomos-nos, neste trabalho, a apresentar e analisar um dos aspectos
rítmicos presentes na Cartilha, identificado na literatura como
modulação métrica. Iniciamos pela conceituação da estratégia,
procurando evidenciar as operações mentais envolvidas no processo da
modulação. Em seguida apresentamos a análise do exercício
modulação rítmica: aceleração progressiva por meio de quiálteras de 3
sobre 2, problematizando o título. São ainda feitas considerações sobre
andamento e estudo do exercício.

Modulação métrica/time modulation


Tanto para o compositor quanto para o intérprete, a habilidade para
medir o tempo e fazer relações temporais na música é fundamental. No
século XX, alguns compositores se interessaram por investigar proces-
sos de composição e de notação musical que lhes permitissem opera-
cionalizar acelerações e desacelerações controladas. Um desses
processos é conhecido por modulação métrica, freqüentemente
associada ao compositor Elliott Carter (1908).
Segundo Weisberg, a técnica, em sua forma básica, foi utilizada muito

antes de ser chamada modulação métrica, nas passagens entre intro-
duções em andamento lento seguidas por seção em andamento allegro,
especialmente no período Barroco. A prática da performance da época
consolidou a realização do allegro em um andamento duas vezes mais
rápido que o da introdução, mesmo não havendo nenhuma indicação
para tal. Mais tarde, os compositores italianos passariam a utilizar as
expressões doppio piu mosso ou doppio piu lento, explicitando a pro-
porção temporal entre os andamentos (Weisberg, 1993: 52).
Para entender porque também é utilizada a palavra modulação no
processo rítmico, vamos nos remeter à harmonia tonal. Modular quer
dizer, nesse campo da música, mudar de uma tonalidade para outra. O
processo, em sua forma mais suave, utiliza um acorde comum entre as
tonalidades envolvidas, que, entretanto, desempenha na tonalidade de
chegada uma função distinta daquela da tonalidade de partida. Agindo
como um elo entre as duas tonalidades, ele garante uma transição lóg-
ica, mesmo quando surpreende o ouvinte. Por extensão do sentido
tonal, modulação métrica é uma técnica para modificar andamentos
através de uma duração comum.
Formulada de modo bem simples, a modulação métrica é uma estraté-
gia rítmica para operacionalizar mudanças de andamentos (tempi), da
mesma forma como se muda a marcha de um automóvel para possibil-
itar o aumento e a diminuição da velocidade. Para evitar instruções
vagas tais como meno tempo, acelerando e ritardando, ou indicações
metronômicas difíceis de serem seguidas com precisão durante a per-
formance, as acelerações e desacelerações são manobradas através de
proporções entre os próprios eventos rítmicos, provocando mudanças
de andamento com mais exatidão.
No Exemplo 1,1 cada compasso tem a unidade de tempo dividida dife-
rentemente, mas as pequenas figuras que aparecem acima das barras
de compasso informam que a duração da divisão do tempo em um
compasso deve ser igual à da divisão do tempo do compasso seguinte.
O aumento do número de divisões da unidade de tempo a cada com-
passo, faz com que as unidades de tempo tornem-se mais longas, resul-
tando na desaceleração do andamento a cada novo compasso. O
exemplo ilustra um meio de passar suavemente, mas com precisão, de
uma velocidade metronômica absoluta para outra.

1 Os exemplos de 1 a 4 foram escritos para ilustrar sinteticamente as situações de performance


descritas. Situações semelhantes podem ser encontradas na obra de Elliott Carter, dentre as quais
citamos a Sonata para violoncelo (1948) e o Primeiro quarteto de cordas (1951).


Exemplo 1: Desaceleração controlada do andamento


A indicação do valor metronômico, entretanto, resulta em uma infor-
mação redundante no segundo e terceiro compassos, já que a correta
realização das modulações conduz automaticamente às modificações
dos andamentos. Ela nem sempre é explicitada na partitura, mas pode
ser útil ao intérprete como meio para confirmar a correta realização das
relações temporais solicitadas. Logicamente, todo esse processo pode
ser operacionalizado com o objetivo inverso: o de provocar a acelera-
ção do andamento.
O compositor pode manipular a equação característica dos processos
de modulação métrica das mais variadas formas, implicando também
em uma variedade de situações colocadas para a performance
(Weisberg, 1993: 52). A articulação de uma mesma duração, como as
do Exemplo 1, agrupadas diferentemente de cada lado da modulação,
exige a habilidade na realização dos reagrupamentos, muitas vezes
dificultada pela rápida freqüência das articulações. Algumas modu-
lações podem ser consideradas mais difíceis do que outras. É o caso do
Exemplo 2 que, apesar de análogo ao anterior no que diz respeito à
natureza da modulação, indica uma modulação menos suave e ainda
envolve grupos rítmicos com 7 unidades:

Exemplo 2
Situações mais complexas do que as ilustradas nos exemplos 1 e 2
podem acontecer quando as figuras rítmicas da equação da modulação
não aparecem explicitamente no texto musical. O Exemplo 3 ilustra a
situação na qual o intérprete precisa reagrupar a duração que vinha efe-
tivamente realizando, mas, desta feita, o reagrupamento necessário
para a realização da semínima é feito mentalmente.


Exemplo 3

Já o Exemplo 4 ilustra a situação na qual o intérprete tem que imaginar


a duração de uma figura que efetivamente não estava sendo realizada
para operacionalizar a modulação.

Exemplo 4

Enfim, a modulação métrica é um meio para efetuar mudanças de


andamento e, freqüentemente de compasso, através da equivalência
entre durações, regulares ou irregulares, presente explicita ou implici-
tamente, nos eventos rítmicos. O termo tem recebido críticas de alguns
autores. Bernard (1988: 199-200) argumenta que o termo modulação
métrica sugere que o processo consiste nas mudanças de métrica ou de
fórmulas de compasso, quando, na verdade, elas são um dos agentes
da modulação. Simms (1986: 103) informa que o próprio Carter tem
utilizado a expressão tempo modulation, que expressa melhor o obje-
tivo do compositor ao desenvolver o sistema: ampliar a extensão de sua
música e manter um maior controle sobre mudanças de compasso e de
andamento.

Análise do exercício
Dentre os vários procedimentos rítmicos explorados na Cartilha, o da
modulação métrica chamou-nos a atenção pela forma extremamente
simples como Almeida Prado apresenta a idéia, levando-nos a uma per-
feita compreensão do princípio envolvido. São três os exercícios nos
quais aplica o procedimento: aceleração progressiva por meio de quiál-
tera de 3 sobre 2, aceleração progressiva por meio de quiáltera de 5
sobre 4, rallentando progressivo por meio de quiáltera de 3 sobre 4.
Eles são um bom exemplo da impropriedade do termo a que nos refe-
rimos anteriormente, porque operacionalizam alterações controladas
do andamento sem modificação da fórmula de compasso. Talvez por
isso, o compositor os agrupe sob o título ‘modulação rítmica’.

Entretanto, cabe observar que não encontramos esta expressão para
identificar o procedimento que aqui estamos abordando na literatura
voltada para o ritmo na música do século XX.
O primeiro dos três exercícios, composto em š, consiste em um mode-
lo, apresentado do compasso 1 ao 4.1, sucessivamente transposto aos
doze graus da escala cromática (Exemplo 5). A cada transposição, o
compositor indica a modulação temporal a ser aplicada – a duração da
colcheia da tercina determina a duração da colcheia do compasso
seguinte. O c.1 é constituído por colcheias na mão esquerda. Estas
colcheias são duas vezes mais rápidas do que a semínima que lhes cor-
responde. A estas colcheias se superpõem tercinas na mão direita no
c.2. As colcheias da tercina são três vezes mais rápidas que a semínima
que lhes corresponde, e conseqüentemente são uma vez e meia (3:2)
mais rápidas que as colcheias do primeiro compasso. O c.3 é a
repetição do c.2 com o acréscimo de acentuações nas colcheias das
tercinas, de duas em duas. Esse reagrupamento faz com que o conjun-
to de duas colcheias seja mais rápido que o conjunto de duas colcheias
do c.1. É a politemporalidade resultante da polirritmia. Tem-se aí a
ponte para a nova velocidade da unidade de tempo do c.4. O
compositor ‘facilita’ a modulação através dos acentos das tercinas que
a antecipam.

Exemplo 5: aceleração progressiva por meio de quiálteras de 3 sobre 2,


Cartilha Rítmica para piano de Almeida Prado, c. 1-7
A estruturação harmônica do exercício, bastante simples, em tríades,
permite que toda a atenção do intérprete esteja voltada para a realiza-

ção rítmica. São duas as dificuldades, uma vez dominada a polirritmia.
Uma está na habilidade para realizar a acentuação no interior das ter-
cinas, visto que apenas a primeira delas coincide com o apoio métrico.
Outra, na habilidade para transformar o reagrupamento provocado
pelos acentos, em uma nova unidade de tempo.
À medida que o andamento aumenta nas sucessivas modulações, a
execução dos acordes repetidos vai se tornando cada vez mais difícil.
Na 6ª modulação (compasso 19), a colcheia atinge uma velocidade
metronômica infactível – 499 – obrigando o intérprete a interromper o
ciclo das transposições. De maneira geral, os intérpretes desejam atin-
gir, em suas performances, andamentos que correspondam às determi-
nações dos compositores. Porém, algumas vezes, elas podem não ser
apropriadas. Esse é o caso dos três exercícios de modulação rítmica
apresentados na Cartilha. Entretanto, o que importa aqui, bem como
para a Cartilha como um todo, é a compreensão e a realização do
princípio envolvido.
Que experiências anteriores podem ser propostas pelos professores
para preparar o caminho que leve à performance do exercício propos-
to por Almeida? Levando em consideração que as duas questões tem-
porais fundamentais no exercício são a aceleração controlada e a
politemporalidade provocada pela polirritmia, sugerimos que os pro-
fessores proponham a seus alunos: 1) experiências de aceleração e
desaceleração espontâneas, não controladas; 2) controle intuitivo no
estudo, por exemplo, de escalas, como: começar em determinado
andamento, acelerar e desacelerar, voltando ao andamento inicial; 3)
ainda no estudo das escalas, pensada como um sucessão de pulsos
isócronos, propor a desaceleração e aceleração controladas através da
variação de acentos (de duas em duas notas, três em três etc., e o inver-
so); se a escala for estruturada a partir de uma unidade de tempo já sub-
dividida, propor a aceleração e desaceleração controladas através do
aumento e diminuição do número de divisões da unidade estabelecida;
4) o estudo da polirritmia alternando as mãos; um percurso interes-
sante, utilizando o próprio exercício é: m.e. (c.1), m.d. (c.2), várias
vezes, e, em seguida, m.e. (c.1) e m.d. (c.2 e c.3), também diversas
vezes. Várias fases intermediárias e combinações entre as mãos podem
ser necessárias para a realização da polirritmia.
Por fim, cabe a cada professor, munido de toda a sua experiência, ser
sensível às necessidades de cada aluno.

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WEISBERG, A. (1993). Performing twentieth century music: a handbook
for conductors and instrumentists. New Haven: Yale University Press.

Considerações sobre aspectos neurológicos na


preparação para uma performance musical
Sonia Ray
Universidade Federal de Goiás – UFG

Introdução e Fundamentação teórica

abemos que o cérebro está no comando do corpo, entretanto,


S pouco nos damos conta de como este comando é exercido
(Houzel, 2003), particularmente na preparação para uma
performance musical. Questões sobre o funcionamento deste órgão
vital para a vida é objeto constante de pesquisas tanto institutos de
ciências biológicas quanto de centros de pesquisas ligados ao fazer
artístico.
Tradicionalmente os estudos relacionando performance musical e cog-
nição são desenvolvidos por pesquisadores da área de saúde. Uma
breve revisão da literatura apresentada pelas pesquisadoras Cristina
Gerling e Jusamara Souza no I Seminário de Pesquisa em Performance
Musical (Gerling, Souza, 2000) relata desde estudos pioneiros com o
psicólogo Carl Seashore na Universidade de Iowa (EUA) na década de
1930 até estudos mais recentes como os do atuante pianista e psicólo-
go Eric Clarke na Universidade de Sheffield (Inglaterra). Entretanto, de

objeto de pesquisa de psicólogos e neurocientistas, a performance
musical e os processos cognitivos relacionados à esta atividade artísti-
ca passou gradativamente a ter envolvimento expressivo de
pesquisadores da área de música nos últimos anos (Gerling, 2005).
Trabalhos de equipes multidisciplinares envolvendo performance e
cognição tem se multiplicado, como podemos observar nos trabalhos
de Cardassi (2000), Gruzelier (2002), Gannett (2003), Ray, Vieira, Dias
(2002), Pederiva (2004) e Ray, Cazarim (2005). Recentemente propus
um caminho para o desenvolvimento de pesquisas sobre performance
musical baseado no conceito EPM – Elementos da Performance Musical
(Ray, 2005). O conceito parte do princípio de que a performance musi-
cal envolve seis aspectos que interagem no processo de preparação,
execução e avaliação da performance musical. Os EPM são:
“...organizados em seis: 1) Conhecimento do Conteúdo, 2) Aspectos
Técnicos; 3) Aspectos Anato-Fisiológicos; 4) Aspectos Psicológicos; 5)
Aspectos Neurológicos e 6) Musicalidade e Expressividade. Cabe
ressaltar que, apesar de estarem sendo aqui abordados individual-
mente, não se pode perder a noção de que os EPM ocorrem simul-
taneamente durante a performance musical, e que a divisão e catego-
rização na presente proposta têm apenas a função de facilitar a dis-
cussão.” (Ray, 2005: 42)
O presente texto traz uma aplicação do conceito de EPM no que diz
respeito ao fazer musical (e sua preparação) quanto aos aspectos
neurológicos, e tem por objetivo levantar e ilustrar alguns aspectos do
funcionamento do cérebro que podem auxiliar na preparação e
execução da performance musical.

Discussão
Apesar do aumento da literatura disponível sobre performance musical
e o funcionamento do cérebro, pesquisadores não se cansam de afir-
mar que ainda há muito a ser desvendado (Critchley, 1977;
Sloboda,1989; Radocy, Boyle, 1997). Na prática do ensino e apren-
dizado da performance musical as experiências continuam a ser trans-
mitidas como resultados de pesquisas informais. Um exemplo recente
é trabalhos da contrabaixista Diana Gannett (1997) registrado em suas
disputadas apostilas de exercícios diários de técnica, trabalho que
envolve aspectos neurológicos, mas que não se apresenta de forma a
demonstrar “como” os comandos cérebro foram utilizados. Partindo de
conceitos apresentados em relatos de pesquisa da neurocientista
Suzana Houzel (2003), discutirei aspectos neurológicos implícitos na
proposta de Gannett.

Memória e Aprendizado
Da forma proposta por Gannett, a preparação técnica, sobretudo de
determinadas passagens de alta dificuldade, pode passar por um
processo de verbalização simultâneo a ação. Segundo ela o instrumen-
tista de cordas deve
“falar o nome das notas e dos acordes enquanto toca... pois o cérebro
adora etiquetas com nomes. [É como se fosse] uma síntese de entrada
de diversas informações ajudando a solidificar uma ação neurológica."
(Gannett apud Ray, 2005: 79)
Houzel (2000) relata uma pesquisa desenvolvida em 2000 por Maguire
et al. sobre a capacidade de memorização impressionante que os taxis-
tas londrinos desenvolveram, provavelmente relacionada ao fato de
terem como condição para tirar sua licença de trabalho, que decorar
cerca de 2000 ruas e avenidas da capital inglesa. Pesquisas anteriores,
diz Houzel, “nos últimos dez anos vêm mostrando que de fato há uma
reorganização de regiões do cérebro muito requisitadas. O exemplo
mais conhecido é o aumento da área [no cérebro] que representa as
sensações dos dedos da mão esquerda de violinistas profissionais…”
(p.133). Neste sentido, a sugestão de Gannett de “etiquetar” o cérebro,
encontra fundamento na pesquisa relatada por Houzel. A necessidade
de se memorizar grandes quantidades de notas comprovadamente já
levou músicos a desenvolverem alta da capacidade de memorização.
Entretanto, a síntese da qual nos fala Gannett, parece implicar em uma
combinação de teorias behaviorista e cognitivista para fazer sentido no
contexto do aprendizado musical e merece um olhar mais detalhado.
Da forma como colocado por Gannett pode-se pensar que fala e ação
sejam “sintetizados” antes que informados ao cérebro, ou ainda, que a
fala e o processo motor relacionados ao tocar música são informados
ao cérebro em uma única via. Pensar assim, na verdade, facilita nossa
compreensão do exercício técnico, mas não esclarece o que realmente
acontece no processo de memorização e assimilação do conhecimen-
to em questão, qual seja: tocar.
A combinação ou síntese da fala e da ação motora da mão esquerda
são informações combinadas dentro do cérebro. Entretanto, isto acon-
tece numa velocidade incrivelmente rápida de forma que, se o proces-
so for repetido, como é na prática diária dos instrumentistas, esta “sín-
tese” será registrada e memorizada pelo cérebro. Como este não é um
estudo formal sobre a questão, fica aqui registrado como uma reflexão
e sugestão para equipes com estrutura laboratorial pra tal empreitada.

Vale a pena destacar que o diferencial neste processo de memorização
e aprendizado em uma atividade artístico-criativa é a qualidade da
informação que é “sintetizada”. Por isso, na utilização desta vai cogni-
tiva para assimilação da técnica de preparação para a performance, o
instrumentista deve manter constante atenção com a afinação apurada
do som que é assimilado à determinado movimento da mão esquerda
(num processo de condicionamento físico), pois este é o “rótulo” que o
cérebro vai “ler” e memorizar.
Soma-se às questões de aprendizado as formas diferentes de memo-
rização. Segundo Houzel (apud Ray, 2005), o cérebro tem um limite de
funcionamento “válido”, isto é, um limite daquilo que ele realmente
assimilará e este limite também difere de pessoa para pessoa. Para falar
de uma maneira simplificada, pode-se dizer que existem três tipos de
memória: de curta, média e longa duração. É necessário que você saiba
qual o seu objetivo com a memorização de um determinado trecho ou
uma peça. A memorização de longa duração é construída com etapas
curtas e com alto nível de concentração na qualidade do que é memo-
rizado. É aquela que nos tem maior utilidade como músicos. As
memórias de média e curta duração têm pouca utilidade na atividade
musical. É aquela que usamos para lembrar um número de telefone
quando não encontramos um papel pra anotar. Se você não anotar
assim que desligar telefone você esquece! Parece viável que se veri-
fique num experimento futuro se o músico popular (da noite!) faz uso
significativo da memória de curta duração, mas esta seria uma outra
pesquisa.
Na minha experiência pedagógica com os aspectos da preparação para
a performance musical, esta reflexão tem possibilitado sugestões para
mapeamento de estudo de peças, preparação pra performances públi-
cas e esquemas de memorização de peças que têm otimizado o rendi-
mento de meus alunos e o meu próprio À medida em que question-
amos nossas habilidades e capacidades, podemos nos planejar melhor
para a construção de uma performance sólida. É preciso cada vez mais
considerar os recursos oferecidos pelos avanços da ciência e combiná-
los com nossas imperfeições humanas, tornando a arte de preparar e
tocar uma obra musical um trabalho não só complexo mas gratificante.

Contribuições
A maior contribuição deste trabalho está em ampliar as discussões
sobre a preparação da performance a partir de aspectos cognitivos e
suas aplicações diretas na otimização dos procedimentos pedagógicos
atualmente utilizados na pedagogia da performance musical.

Implicações:
Discutir aspectos da literatura disponível sobre performance musical
envolvendo neurociência e propor estudos que inspirem investimento
em pesquisas interdisciplinares envolvendo performance musical e
cognição.

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

Simpósio de Alunos de Graduação

Técnicas de ensaios gerais para a performance musical


em grupos de câmara
Thiago Cazarim
Sonia Ray
Universidade Federal de Goiás – UFG
A performance musical envolve uma formação complexa do indivíduo
que se propõe a se especializar nesta atividade. A formação deste
profissional envolve, além dos conhecimentos inerentes à área de músi-
ca, aspectos de diversas outras áreas. Por isso, a performance musical
tem sido objeto de pesquisas integradas em vários centros de pesquisa
em música, a exemplo do CSMP (Centre for the Study in Music
Performance – Londres), da SRPMME (Society for Research in
Psychology of Music and Music Education – Sheffield), do GEPM
(Grupo de Estudos em Performance Musical – UnB), e GEPEM (Grupo
de Estudos em Perfomance Musical – UFG).
Ao se preparar para uma prova prática, testes de seleção e apresen-
tações, o performer musical fica sujeito a situações que exigem grande
esforço físico e mental. Particularmente nos momentos finais da
preparação para atuar em público, os limites de tensão são levados ao
extremo e pouco se sabe sobre como proceder nesta etapa de
preparação. Estudos sobre o aumento do nível de interferências negati-
vas na performance musical apontam a falta de preparação e planeja-
mento de ensaios como um dos responsáveis pelo mau desempenho do
músico no palco.
O processo de preparação para a performance, entretanto, tem rece-
bido pouca atenção dos pesquisadores, apesar de há muito ser aponta-
do como tema extremamente relevante (Sloboda, 1989). Parte da
escassez de literatura sobre o tema se dá por seu caráter indisciplinar,
o qual exige grupos integrados de pesquisadores, o que ainda é raro no
Brasil. Outra razão seria a falta de recursos para experimentos com per-
formers em atividade.
Apesar disso, trabalhos pioneiros têm sido desenvolvidos no Brasil,

particularmente pelo GEPEM-UFG. É com base em publicações de
resultados parciais destes trabalhos, pretende-se lançar um olhar mais
aprofundado nas formas de preparação da performance musical.

Objetivos
Este trabalho apresenta resultados e discussões da pesquisa desenvolvi-
da pelos autores entre agosto de 2004 até o presente, cujo objetivo é
detectar como grupos camerísticos planejam e realizam seus ensaios.
Pretende-se, com isso, determinar as estratégias e técnicas utilizadas
por esses grupos, a fim de entender como ocorrem as etapas com-
preendidas entre os ensaios preparatórios e a performance em público.
Os resultados e discussões abaixo são referentes à primeira etapa da
pesquisa (concluída em julho de 2005) na qual buscou-se identificar a
possível existência de uma técnica-padrão usada em ensaios gerais. De
agosto de 2005 até julho de 2006, a investigação (ainda em andamen-
to) sobre as técnicas e planejamento dos ensaios se estende também
aos ensaios preparatórios.

Método
Entre agosto e dezembro de 2004, foi feita uma revisão de literatura
disponível sobre o tema (em português e inglês), organizada, posterior-
mente, em fichamentos.
No mesmo período, realizou-se um experimento envolvendo grupos de
câmara que consistiu numa série de 10 gravações (8 ensaios
preparatórios, ensaio geral e performance pública). O objetivo do
experimento foi acompanhar o desenvolvimento dos ensaios de cada
grupo para detectar se os grupos camerísticos utilizavam uma técnica-
padrão para a realização de seus ensaios. Também observou-se a eficá-
cia das estratégias utilizadas durante os ensaios tendo em vista seu
impacto sobre a performance pública (resultado final). Após o término
das filmagens, estas foram repassadas para fitas de vídeo e analisadas
sob forma de protocolos.

Resultados
A análise das gravações mostrou a existência de tendências comuns aos
grupos, ainda que não haja uma técnica-padrão para os ensaios. Um
exemplo disso é que o ensaio geral preservou, em geral, a mesma
ordem de apresentação das peças da performance pública, o que indi-

ca que ele é encarado como uma prévia da performance. Também
notou-se que a impossibilidade de se ensaiar no local da performance
com antecedência e apenas imediatamente antes da apresentação pode
ter limitado outras formas de se estruturar o ensaio geral.
Verificou-se o uso de diversas estratégias utilizadas durante os ensaios.
Foram elas: 1) interrupção para correção de problemas do grupo; 2)
interrupção para estudo individual; 3) uso de repetições (da peça toda
e de trechos); 4) ensaio de passagens entre trechos; 5) ensaio em anda-
mento reduzido; 6) discussão para definir melhores estratégias de
ensaio; 7) uso de sinais para marcar as entradas (por contagem verbal e
gesto ou outro sinal corporal); 8) anotações na partitura; 9) uso de
metrônomo; 10) uso de piano para conferir afinação; 11) discussão da
interpretação da peça (articulações, fraseado, dinâmicas); 12) liderança
dos ensaios exercida majoritariamente por 1 dos integrantes do grupo.
No entanto, na maior parte dos grupos, verificou-se a total ausência de
planejamento dos ensaios e da performance, o que indica falta de
consciência sobre a maneira como estes estão estruturados. Elementos
psicológicos – como a ansiedade e falta de concentração na perfor-
mance – levaram muitos músicos a cometerem erros em passagens
onde não houve problemas durante os ensaios preparatórios, o que
denota a falta de preparo psicológico como um elemento complicador
na performance pública.
Um fato interessante foi que os músicos usam seus corpos como meio
de interação e expressão. Isso se deu de três formas:
1) associação de determinados gestos à produção de sons específi-
cos;
2) movimentação corporal e alterações no ritmo da respiração e nas
expressões faciais de acordo com a intensidade e caráter das idéias
musicais;
3) uso de gestos (movimentos com a cabeça, os braços, as mãos,
troca de olhares, respirações e expressões faciais) para sincronizar
entradas (no início, final e sessões dentro de uma mesma peça).
Resta ainda saber até que ponto os performers têm consciência de
como seus corpos atuam durante os ensaios e a performance.
Determinando-se a importância que o corpo tem na performance, é
possível alertar os músicos e proporcionar um melhor aproveitamento
do tempo de ensaio. O mesmo pode ser afirmado em relação às técni-
cas utilizadas pelos grupos durante os ensaios.
A partir dos dados obtidos do experimento, é possível afirmar que os

performers empregam determinadas técnicas para resolução de proble-
mas de execução. Contudo, a discussão para decidir pelo emprego
dessas estratégias praticamente inexistiu. Este fato indica a falta de
consciência por parte dos músicos sobre como o ensaio ocorre e ausên-
cia de reflexão sobre melhores formas de se estruturarem os ensaios.
Foram levantados quatro principais problemas de execução encontra-
dos durante os ensaios. Apresentamos abaixo estes problemas junta-
mente com as técnicas mais utilizadas pelos grupos e sugestões de out-
ras possíveis estratégias para solucioná-los.
1) Má afinação: O uso do piano mostrou-se eficiente para corrigir
problemas de afinação e entoação. Aliados ao uso do piano,
repetições do trecho com problemas de afinação e estudo indivi-
dual durante os ensaios e em andamento reduzido mostraram-se
importantes para adequar a afinação entre os performers.
2) Dificuldades de comunicação visual: A maior dificuldade encon-
trada em relação à comunicação entre os performers foi o fato de
piano não se encontrar em posição que favorecesse a interação
visual. Para isso, bastaria ter mudado o piano de posição em vez de
tentar achar a posição que ficasse menos desconfortável – o que
não ocorreu. Porém, em alguns casos, o local onde o ensaio se real-
izou não permitia uma boa comunicação visual entre os músicos.
Nestes casos, sugere-se o uso de metrônomo, contagem verbal ou
respirações (sinais auditivos) para compensar as eventuais dificul-
dades visuais.
3) Problemas individuais de execução: Principalmente nos ensaios
iniciais, ocorreram maiores dificuldades individuais na execução
das peças. O recurso utilizado pelos grupos foi a interrupção do
ensaio para estudo individual de trechos (em diversos andamentos).
Ainda se poderia sugerir o uso de solfejo e metrônomo como
estratégias que podem minimizar o tempo necessário para a
correção dessas dificuldades.
4) Equilíbrio de sonoridade: De modo geral, os grupos apresen-
taram bom equilíbrio sonoro. Quando surgiu algum problema desta
natureza, o ensaio foi interrompido 0para discutir possibilidades de
fraseado. Uma possível estratégia, que não ocorreu no experimen-
to, seria a realização de discussões prévias sobre a estruturação da
peça, o que poderia reduzir o tempo utilizado nos ensaios.

Conclusão
A partir da revisão bibliográfica, notou-se que a importância das
pesquisas em performance musical tem aumentado consideravelmente

nos últimos anos (Gerling e Souza, 2000). Os rumos que estas
pesquisas tomaram foram os mais diversos, constituindo-se como um
campo de pesquisas interdisciplinares. Portanto, deve-se buscar a inte-
gração das diversas ferramentas disponíveis para a melhora da quali-
dade da performance. Gabrielsson (1999), a exemplo, aborda questões
referentes às pesquisas em performance musical, tratando de assuntos
variados como ansiedade, improvisação e dos modelos propostos por
pesquisadores para definir a performance musical. Entretanto, outros
trabalhos se mostram mais específicos ao enfocar apenas um aspecto
da performance, como evidenciado em Green (1986), em que o autor
discute os processos que levam ao surgimento das interferências na
performance.
Pelo experimento utilizado constatou-se que, apesar de não haver téc-
nica-padrão de ensaio, é possível detectar algumas tendências comuns.
Os grupos adotam várias estratégias combinadas, dependendo do prob-
lema ocorrido. No entanto, mesmo nos grupos em que o uso de um
maior número dessas técnicas ocorreu, a discussão sobre a escolha do
emprego de determinada técnica específica inexistiu. Isso aponta para
a ausência de reflexão sobre como os problemas surgidos nos ensaios
estão sendo resolvidos e como se poderia resolvê-los de outras
maneiras.
Entretanto, alguns grupos solicitaram cópias das gravações para que
pudessem ver como se deu o andamento de seus ensaios. Esta pode ser
apontada como uma outra estratégia importante, já que, ao assistir as
gravações, os músicos podem atentar para detalhes não percebidos no
momento do ensaio.
Finalmente, espera-se que o presente trabalho possa contribuir para
com as pesquisas em performance musical, à medida que disponibiliza
material de referência para músicos em geral. Espera-se também que
este trabalho estimule a criação de novos materiais que estudem o
processo de preparação para a performance musical.

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Etnomusicologia Aplicada: metodologias de pesquisa e ação


em contextos musicais tradicionais
Júlia Zanlorenzi Tygel
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
A Etnomusicologia Aplicada, também denominada Etnomusicologia
Participativa, pode ser definida como a área da Etnomusicologia que
estabelece uma ponte entre pesquisa e ação, e que direciona seus resul-
tados principalmente às comunidades estudadas. O papel do etnomu-
sicólogo aplicado, acadêmico ou não, é sempre o de catalisador e
mediador de tais comunidades, oferecendo sua capacitação para
ajudá-las superar problemas específicos. Sua responsabilidade se refere
à preservação de culturas tradicionais, respeitando seu dinamismo,
através da documentação e, principalmente, do estímulo à sua con-
tinuidade – através, por exemplo, da conscientização sobre a importân-
cia dessas práticas, o auxílio à busca de patrocínio, o oferecimento de
cursos técnicos em pesquisa etnomusicológica (Davis, 1992; Sheehy,

1992, Titon, 1992). Para esses autores, em todos os casos a premissa é
que haja colaboração entre o pesquisador e os pesquisados, que, efeti-
vamente, devem ser os construtores dos objetivos e do direcionamento
da pesquisa. Essa premissa é também aquela das pesquisas chamadas
participativas, sugeridas no Brasil por diversos autores especialmente
nas décadas de 1970 e 1980, a exemplo de Thiollent (2002), Fals Borda
(1990) e Brandão (1990), que têm a obra de Paulo Freire (1985, 1990)
como referência fundamental.
Em nossa pesquisa, que tem sido realizada através de levantamento
documental, entrevistas e pesquisa de campo, estudamos como efeti-
vamente se dão essas práticas em dois projetos distintos. O primeiro
deles – coordenado e realizado pela compositora, antropóloga e etno-
musicóloga Dra. Kilza Setti – desenvolve-se junto às comunidades indí-
genas Timbira do Maranhão1, através de duas frentes de atuação, que,
não obstante, estão relacionadas: as oficinas de música, que integram
o programa de educação indígena do Centro de Trabalho Indigenista
(CTI)2; e o Projeto Arquivo Musical Timbira. As oficinas de música tive-
ram início em 1995 no campus da Universidade de São Paulo e a par-
tir de 1999 passaram a ser realizadas no Centro de Ensino e Pesquisa
Pëmxwyj Hëmpejxà, ou Escola Timbira, em Carolina/Maranhão, com
periodicidade regular. O principal objetivo dessas oficinas é estimular
a conscientização dos Timbira sobre o valor de seu próprio repertório
musical. Segundo Setti (2002),
“A proximidade com pequenas vilas e cidades mais próximas das
aldeias começa a atrair jovens e mesmo mulheres para o fascínio dos
bens de consumo. Um dos pontos observados durante pesquisas com
essas populações é que acabam envolvidas por repertórios musicais de
qualidade duvidosa, que circulam no comércio, e que tornam-se a
única opção de escuta para as populações sertanejas e indígenas.”
As aulas visam ampliar nos alunos a consciência musical de seu valioso
universo sonoro, intimamente relacionado à natureza. Por isso, o mate-
rial musical utilizado é composto, principalmente, por músicas desse
repertório. Entretanto, Setti argumenta que todos devem ter o direito de
acesso ao conhecimento, e por isso também seleciona, para apreciação
nas aulas, músicas do repertório mundial, provenientes de outros povos

1 Os grupos Timbira contemplados são: Canela-Apãniekrá, Krikati, Canela-


Ramkokamekrá, Gavião-Pykopjê, Apinajé e Krahô.
2 Organização Não-Governamental constituída juridicamente como associação sem
fins lucrativos que desenvolve atividades que visam contribuir para que os Povos
Indígenas assumam o controle efetivo de toda e qualquer intervenção em seus
territórios. Mais informações no site: <http://www.trabalhoindigenista.org.br/>

indígenas, de outras culturas tradicionais, da tradição erudita ocidental.
Todavia, os conhecimentos musicais são aplicados sobretudo nas
análises do repertório Timbira, enfatizando que a tradição musical oci-
dental possui apenas algumas possibilidades de se fazer e pensar músi-
ca, dentre tantas que merecem ser valorizadas. O conteúdo das aulas
abrangeu, até agora, história da escrita musical, percepção musical,
apreciação musical e noções elementares de escrita musical. Os alunos
são levados a reconhecer unidades de conhecimento musical em vários
tipos de repertórios, percebendo, inclusive, as diferentes formas de
distintas culturas fazerem partituras. Setti preocupa-se com a dinâmica
das oficinas, que têm, também, um caráter de entretenimento, gerando
bastante curiosidade e interesse dos alunos Timbira.
Das oficinas de música derivou a criação, em 1996, do Arquivo
Musical Timbira, que está sob guarda do Centro de Ensino e Pesquisa
Pëmxwyj Hëmpejxà, tendo obtido patrocínio do Programa Petrobrás
Música entre 2002 e 2004. Neste período, realizou-se o 1º Encontro de
Cantadores Timbira, durante o qual foi gravado o CD AMJËKIN –
Música dos Povos Timbira (iniciativa do CTI e da Associação Wy´ty Catë
3 Associação dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins3). Segundo Setti (2002),
independen-
te do CTI
“A formação de um Acervo Musical Timbira iniciou-se e prossegue
formada e com a participação da totalidade dos grupos Timbira, numa política de
coordenada ‘provocar’ os grupos em estado de ‘dormência ritual’, incentivando-os
unicamente a atualizar suas diferenças em relação aos outros grupos. Com esse
por índios estímulo, pretende-se incrementar a vida ritual, preservar e fortalecer
Timbira, os repertórios musicais.”
desenvolve
atividades Os pesquisadores Timbira recebem treinamento e capacitação em ofici-
variadas
voltadas aos nas de música, complementados pelos cursos da Escola Timbira, para
seus que estejam aptos a realizar o registro e o arquivamento de documen-
interesses. tos sonoros. O acervo musical reúne mais de quarenta horas de
gravações, catalogadas e coletadas por pesquisadores Timbira, auxilia-
dos por agentes da CTI. Segundo Setti, as oficinas de música têm
estimulado a conscientização sobre a importância do próprio
patrimônio musical, presente em grande parte de suas manifestações
tradicionais. As análises de músicas do repertório Timbira associadas às
de outros repertórios têm levado os alunos a reconhecerem a importân-
cia cultural e o valor musical de seu próprio repertório, o que, con-
forme Setti, tem desencadeado uma escuta mais crítica em relação às
músicas das cidades ao entorno das aldeias. A partir de uma abor-
dagem musical, os alunos têm se conscientizado sobre a importância
da continuidade de suas práticas tradicionais.

Essa conscientização é ampliada nas atividades do Arquivo Musical
Timbira, já que, nas práticas de recolha e catalogação de materiais
musicais, os pesquisadores Timbira são estimulados a refletir sobre
quais são as ocasiões de interesse para gravação e a sistematizar algu-
mas de suas características. O intercâmbio de gravações do Arquivo
Musical entre aldeias tem proporcionado o fortalecimento de suas
próprias práticas. Conforme Azanha (1984), essas diferenças entre as
manifestações dos diversos grupos Timbira delineiam uma forma
Timbira, que está, a partir desse intercâmbio – acentuado na realização
do 1º Encontro de Cantadores Timbira – sendo colocada em evidência.
O segundo projeto estudado em nossa pesquisa é realizado na cidade
Cachoeira, localizada no Recôncavo Baiano, através da ONG
Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do
Recôncavo (APCM/Recôncavo), fundada e presidida pela doutoranda
em Antropologia (USP) e radialista Francisca Marques. Ainda que sua
fundação date de 2003, desde 2001 a equipe desta ONG realiza diver-
sas atividades relacionadas à educação comunitária, à educação patri-
monial e ao registro dos bens culturais de Cachoeira e São Félix (cidade
vizinha), oferecendo gratuitamente a jovens da comunidade cursos e a
possibilidade de participar de diversos projetos.
A metodologia de atuação da ONG baseia-se na articulação entre ensi-
no e pesquisa, introduzindo jovens e adolescentes na prática de docu-
mentação etnográfica e investindo na formação de pesquisadores
juniores e profissionalização técnica de nativos da comunidade. Esses
sujeitos são responsáveis por recolher, organizar e disponibilizar
pesquisas e documentos audiovisuais, formando continuamente acer-
vos sonoros e visuais; possibilitando e atuando na difusão desses
conhecimentos, inclusive na formação de parcerias com emissoras de
rádio, televisão e meios eletrônicos para produções conjuntas. Os
pesquisadores juniores vêm se aprimorando para divulgar suas
pesquisas em encontros, congressos, colóquios e simpósios.
Futuramente, esse acervo deverá ser aberto à visitação. À exceção de
Marques, todos os membros da Diretoria e do Conselho Fiscal da ONG
são moradores nativos de Cachoeira/BA, que estão sendo capacitados
para, futuramente, autogerir a instituição.
Cachoeira possui muitas tradições afro-descendentes, manifestas em
vários grupos de samba-de-roda, candomblés, grupos de reggae, festas
tradicionais, somados a duas filarmônicas. A prática da pesquisa em
Etnomusicologia tem não apenas despertado o interesse dos jovens
envolvidos nos projetos para a importância de seu patrimônio, como

também fornecido a grupos tradicionais a primeira documentação de
suas manifestações: todos os registros coletados são copiados, sendo
uma cópia doada ao grupo documentado. Para Marques (2003), esse
processo é de fundamental importância já que em Cachoeira tem ocor-
rido uma grande evasão de jovens dos grupos tradicionais para for-
mação de grupos de pagode e outros gêneros, pela falta de interesse e
consciência sobre o valor de seu próprio patrimônio cultural.
O principal objetivo dos cursos é introduzir e capacitar jovens na área
de pesquisa em Etnomusicologia, tornando-os responsáveis pela con-
tinuidade e preservação de seu patrimônio imaterial. Segundo
Marques, os alunos desses cursos já conheciam a música como per-
formance – muitos deles são integrantes de grupos musicais – mas não
como pesquisa. O fato de serem moradores nativos de Cachoeira facili-
ta o processo, uma vez que conhecem os grupos tradicionais e estão
familiarizados com as festas da cidade. Todos os alunos receberam cer-
tificados do Laboratório de Etnomusicologia, Antropologia e Áudio da
APCM/Recôncavo, alguns deles vinculados à UFRJ, e outros à USP, o
que contribui significativamente para sua profissionalização.
A APCM/Recôncavo já realizou parcerias com o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por meio do projeto piloto
Rotas da Alforria e com a UNESCO, através de participações no pro-
grama Young Digital Creators. O inventário de bens imateriais realiza-
do pela APCM/Recôncavo, em parceria com o IPHAN, foi o primeiro
trabalho recebido por este órgão que teve elaboração participativa com
os membros da comunidade, incluindo jovens ainda não formados
como pesquisadores graduados.
Parcerias com a UNESCO estabeleceram-se através da participação de
alunos da APCM/Recôncavo em dois projetos: a) o de conscientização
sobre a importância da água “O Som da Nossa Água”, que consistiu na
captação dos sons de dois rios de Cachoeira, e na composição musical
através da utilização dessas captações e de músicas tradicionais de
Cachoeira e São Félix, realizado em parceria com o Grupo de
Radioarte (Salvador), a Escola de Música Didá e o Centro de
Desenvolvimento Social da Orla de Camaçari (CEDESC); b) o projeto
de educação patrimonial “Scenes and Sounds of my City”, que
abrangeu som e fotografia4. Essas parcerias permitiram aos jovens

4 Os samples e as imagens dos dois projetos podem ser acessadas através do sites:
<http://unesco.uiah.fi/water/pieces/results?get_regions
=Latin%20America%20and%20the%20Caribbean> para o projeto “O Som da Nossa
Água”, e <http://unesco-mycity.paris4.sorbonne.fr/ gallery/050324/dia/LEAA/> para o
projeto “Scenes and Sounds of my City”.

envolvidos ter os resultados de suas pesquisas incluídos nos anexos dos
inventários dos bens culturais de Cachoeira e São Félix, constituintes do
acervo do Museu do Folclore no Rio de Janeiro; e, no segundo caso,
através da interação com jovens de outros países, também participantes
dos programas da Young Digital Creators. Essa valorização externa tem
contribuído, também, para a auto-valorização desses jovens, tanto de
suas primeiras pesquisas etnomusicológicas e criações musicais con-
juntas, quanto das práticas tradicionais de sua cultura – especialmente
as musicais.
A APCM/Recôncavo oferece também assessoria de comunicação e pro-
jetos a grupos de cultura popular do Recôncavo, zelando, inclusive,
pelo cumprimento da lei do direito autoral, por meio da orientação a
grupos de cultura popular e música tradicional, para que tenham asses-
soria jurídica especializada. As atividades destinam-se também a auxi-
liar esses grupos na realização de práticas organizacionais e formais,
como encaminhamento de reuniões, elaboração de documentos, etc.
Derivou dessa frente de trabalho a formação da ONG Associação
Cultural do Samba-de-Roda Dalva Daiana de Freitas, irmã da
APCM/Recôncavo.

Considerações Finais
Podemos notar que, em todas as atividades descritas – dos projetos de
Cachoeira e entre os Timbira –, o foco está no estímulo à conscientiza-
ção das comunidades sobre a importância e o valor de seu patrimônio
cultural – principalmente o musical. Nos dois casos, essa conscientiza-
ção tem levado os participantes “nativos” a um retorno para a prática
dessas tradições, anteriormente por eles não notada, ou mesmo desva-
lorizada. Esse processo contribui significativamente para a con-
tinuidade dessas tradições musicais frente a um contexto mundial que
estimula seu abandono. Nos dois projetos, existe uma grande preocu-
pação com a participação e autonomia das comunidades na definição
dos rumos das atividades, o que lhes confere um caráter emancipatório.
Entre os Timbira, a conscientização sobre o valor de seu repertório
musical é estimulada principalmente através de práticas estritamente
musicais (nas oficinas de música) e da introdução à prática de pesquisa
em Etnomusicologia (no Arquivo Musical Timbira). Nos projetos da
APCM/Recôncavo, a ênfase está na introdução à pesquisa e à profis-
sionalização em Etnomusicologia, complementados pela participação
em criações musicais e audiovisuais. Embora o foco das práticas dos
dois projetos seja diferente, ambos estão alcançando um objetivo

semelhante, a saber, o fortalecimento de práticas musicais tradicionais,
com participação ativa de jovens, através de metodologias que, sob
diferentes práticas, estimulam a conscientização sobre seu valor.
Este artigo apresenta alguns resultados preliminares de pesquisa de Iniciação
Científica (FAPESP) em andamento, intitulada “Etnomusicologia Aplicada: uma
reflexão crítica sobre as metodologias de dois projetos de pesquisa e ação”,
desenvolvida no Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Profa. Dra. Lenita W. M.
Nogueira. Nele discutimos as metodologias adotadas por dois projetos em
Etnomusicologia Aplicada para estimular, em diferentes comunidades, a cons-
cientização sobre a importância e o valor de práticas musicais tradicionais e
contribuir, assim, para a o processo de sua continuidade.
Esperamos que a divulgação e breve discussão sobre as metodologias desses
projetos possa contribuir, nos parâmetros de uma Iniciação Científica, para a
ampliação do debate sobre a Etnomusicologia Aplicada ou Participativa no
Brasil e, também, para a implementação, criação e execução de outros proje-
tos nessa área.

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O papel dos efeitos sonoros na significação


em jogos eletrônicos
Felipe Hickmann
A natureza das relações estabelecidas entre efeitos sonoros em jogos
eletrônicos e seus efeitos sobre os jogadores pode ser estudada de pon-
tos de vista muito diversos. O jogo eletrônico se utiliza dos eventos
sonoros, assim como de todo tipo de informação visual, como veículos
para comunicar ao jogador modificações em seu contexto. Essa infor-
mação sonora precisará ser apreendida pelo jogador, e essa apreensão
pode se dar de maneiras muito diferentes, dependendo por exemplo da
familiaridade do jogador com aquele estímulo específico ou com suas
propriedades físicas, dos significados que o estímulo suscita naquela
cultura específica, ou mesmo do próprio nível de atenção que o
jogador tem condições de dispensar àquele evento em dado momento
do contexto de jogo.
Uma ferramenta que se mostra muito útil à compreensão do processo
de apreensão do material sonoro é o Behaviorismo, por se tratar de um
escola psicológica que procura compreender a aprendizagem de um
ponto de vista extremamente sintético, a fim de que os dados possam
ser sempre verificados cientificamente. Partindo de um exemplo sim-
ples, procuraremos determinar de que forma a análise do comporta-
mento explica a maneira como um estímulo sonoro é convertido em
comportamento, em um jogo eletrônico. O exemplo a ser analisado foi
extraído do jogo River Raid, lançado pela Activision em 1982 para o
console Atari 2600. Nesse jogo, o jogador detém o controle de um
avião, que se desloca em meio a obstáculos (móveis ou não) que
podem destruídos através de disparos ou dos quais se pode desviar. O
avião possui um tanque de combustível. À medida que o avião voa esse
combustível é consumido, e precisa ser reposto (através do sobrevôo de
postos de abastecimento) antes que se esgote, já que disso resultaria em

sua queda. Existe, na parte inferior da tela, um mostrador indicando o
nível do combustível. No entanto, diante da necessidade de contornar
ou destruir os obstáculos à sua frente, nem sempre é possível ao
jogador desviar o olhar para baixo a fim de verificar se o combustível
está próximo do fim. Então, a partir de um determinado nível crítico de
falta de combustível, passa a soar um alarme indicativo dessa situação.
Nesse caso, verifica-se um dos usos mais difundidos dos efeitos sonoros
em jogos eletrônicos: comunicar ao jogador uma modificação de con-
texto. Esse papel pode ser atribuído ao som, à imagem, ou a alguma
combinação dos dois (como na situação descrita). A partir de então, o
jogador dispõe do estímulo necessário ao comportamento de reabaste-
cer imediatamente o avião.
No exemplo, ocorre o que do ponto de vista do Behaviorismo se con-
vencionou chamar de “condicionamento operante”. Segundo Baum
(1999), o condicionamento operante é uma modificação de comporta-
mento reforçada pela sua própria conseqüência, e motivada por um
contexto específico. No contexto sonoro de alarme de falta de com-
bustível, o jogador comporta-se de forma a reabastecer. Ele o faz devi-
do às conseqüências: se não reabastecer, o avião cairá. Trata-se de um
caso de “reforço negativo”: o comportamento de reabastecer evita a
conseqüência, e portanto é reforçado. Assim, a história de reforço do
jogador o levará a procurar reabastecer sempre que ouvir aquele
alarme específico.
É possível, no entanto, analisar a mesma situação sob outro ponto de
vista. Ocorre que, no momento em que o jogador reabastece, soa um
aviso correspondente ao preenchimento do tanque de combustível
(também assinalado visualmente). Pode-se constatar nessa relação
comportamento-conseqüência um reforço positivo: o comportamento
de reabastecer causa o preenchimento do tanque (assinalado sonora e
visualmente), e portanto é reforçado. Em todo o caso descrito, o con-
texto (som e imagem indicando o final do combustível) que motiva o
comportamento (reabastecer) é chamado “estímulo discriminativo”
(reabasteço porque me foi informado que é necessário; caso contrário,
não me sentiria compelido a essa ação), e portanto diz-se que a ação
de reabastecer está sob “controle de estímulo”. Os estímulos discrimi-
nativos em contextos complexos como jogos são normalmente com-
postos: não basta ao jogador ser informado de que é necessário
reabastecer. Também é fundamental, por exemplo, que não haja nen-
hum obstáculo em frente ao posto de abastecimento (cujo contato
causaria a explosão do avião). Há, portanto, dois elementos que com-

põe esse estímulo discriminativo: 1) a necessidade de reabastecimento;
e 2) a ausência de obstáculos sobre o posto de reabastecimento.
A análise da situação descrita sob esses dois pontos de vista demonstra
a necessidade de um sentido de interpretação mais amplo. O jogador
reabastece para preencher o tanque (reforço positivo); e preenche o
tanque para evitar que o avião caia (reforço negativo). Levando o
raciocínio adiante, é possível entender que o jogador evita que o avião
caia para que possa continuar jogando (assim, o som indicativo de
reabastecimento é um estímulo discriminativo para que continue
pilotando); e quer continuar jogando para que possa vencer a partida,
ou acumular mais pontos. Talvez o sucesso no jogo lhe traga uma con-
trapartida social positiva. Toda essa rede de comportamentos e conse-
qüências possíveis forma uma cadeia. Quando um elo da cadeia
reforça o anterior e funciona como estímulo discriminativo para o
seguinte, temos a chamada “cadeia comportamental” (Baum, 1999).
O conjunto de contextos, comportamentos e conseqüências de um
jogo específico é o que determina suas regras (ou seja, diz-se que um
jogador “conhece” um jogo, do ponto de vista do Behaviorismo, quan-
do reage a ele adequadamente, a partir de sua história de reforços).
Regras mais complexas, evidentemente, levarão a um processo de
aprendizado mais longo. Se o jogo não for capaz de sustentar, por suas
qualidades de entretenimento, o interesse do jogador até que as regras
tenham sido suficientemente compreendidas, corre o risco de ser aban-
donado prematuramente. Nesse primeiro momento, o som (assim como
todos os elementos estéticos) cumpre um papel muito específico: as
primeiras oportunidades em que o jogador toma contato com as regras
também são as primeiras oportunidades em que se depara com o uni-
verso sonoro daquele jogo. Os valores estéticos do som recebem então
maior destaque, já que precisam causar no jogador interesse suficiente
por si próprios para que a primeira etapa de familiarização com as
regras seja concluída com sucesso.
Cabe levantar até que ponto a discussão relativa a comportamento é
válida em um contexto não-natural, como o aqui descrito. Seria o com-
portamento de um jogador nesse tipo de contexto ao menos semel-
hante àquele que encontraria lugar na realidade? Huizinga (1971) afir-
ma que, para o jogador, a distinção entre o jogo e a realidade não é
absolutamente clara:
“Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o
jogador. Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade,
sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de

sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo.”
Trata-se de um “círculo mágico” isolado do mundo real, mas dotado de
suas próprias regras. Nesse sentido, dentro daquele universo restrito, há
uma existência “virtual” a ser defendida. As regras de comportamento
demonstram-se então válidas internamente àquele contexto.
O Behaviorismo, embora bastante viável para a compreensão de um
exemplo simples como o até agora descrito, mostra-se menos conve-
niente que outras análises possíveis no momento em que se passa ao
estudo da formação dos significados dos estímulos sonoros em um jogo
eletrônico. Os significados, para o Behaviorismo, também são resulta-
do de histórias de reforço (portanto, variáveis de acordo com o contex-
to). A semiótica, por outro lado, estabelece uma extensa terminologia
justamente para determinar sua natureza. A base dessa terminologia é
o conceito de signo, “algo que intenta representar um objeto que é sua
causa ou determinante, e que afeta uma mente de tal modo que deter-
mina nela algo que é mediatamente devido ao objeto (determinação
essa chamada ‘interpretante.’)” (Santaella, 2001) A partir dessa
definição, é fácil concluir que todo e qualquer evento sonoro constante
de um jogo eletrônico pode ser interpretado como um signo. Partindo
da definição triádica proposta por Santaella (2001), podemos dizer que,
no exemplo citado anteriormente, o som de alarme propriamente dito
seria o fundamento do signo, a falta de combustível seria seu objeto
(aquilo que o signo busca representar), e o interpretante seria o efeito
causado sobre o jogador (a compreensão de que o combustível se
encontra próximo do final, ou mesmo a simples admiração das quali-
dades do som em si). Todo e qualquer signo é necessariamente com-
posto por esses três elementos. Para uma melhor compreensão do
processo de aprendizado do significado de um signo sonoro dentro do
contexto específico de um jogo eletrônico qualquer, analisaremos mais
profundamente o interpretante, por se tratar do efeito propriamente dito
causado sobre o jogador. Diz-se que todo interpretante possui três
níveis: o interpretante imediato (o potencial de interpretação inerente a
qualquer signo, independente de que ele venha a ser de fato interpre-
tado); o interpretante dinâmico (o efeito que o interpretante efetiva-
mente produz na mente do intérprete); e o interpretante final (um ideal
interpretativo, baseado na suposição de que fosse possível que um
signo pudesse produzir todos os interpretantes dinâmicos de modo
exaustivo e final) (Santaella, 2001).
Para efeito de estudo do processo de aprendizado do significado de um
evento sonoro qualquer por parte de um jogador, o interpretante

dinâmico é o que desperta maior interesse. O interpretante dinâmico é
sempre composto por três níveis de interpretação: o interpretante emo-
cional, o interpretante energético e o interpretante lógico. Trata-se de
perspectivas de interpretação de um mesmo signo qualquer. No entan-
to, alguma das três sempre encontrará dominância sobre as demais, e
essa diferença se deve ao nível diferenciado de experiência de cada
intérprete em relação ao objeto do signo. O interpretante emocional
atenta unicamente a qualidades de sentimento. Ou seja, o intérprete
não busca significação no signo, somente absorve seus valores estéticos
e se permite influenciar emocionalmente por eles. Essa é a primeira
experiência vivida por um jogador quando se depara com um evento
sonoro nunca ouvido: a atenção às qualidades do som em si, indepen-
dente do que ele venha a significar. A seguir, entra em ação o interpre-
tante energético: trata-se da busca do intérprete por um significado que
justifique o surgimento daquele som naquele contexto. No exemplo
citado, em algum momento do processo de aprendizado o jogador se
dará conta que aquele som determinado ocorre simultaneamente à
indicação visual de baixo nível de combustível (que, evidentemente,
também se constitui em um signo), e portanto compreenderá que este
é o significado daquele signo sonoro. Essa conclusão é efetivada pelo
interpretante lógico. A partir do momento em que o significado do
signo sonoro já foi corretamente apreendido, o ponto de vista do intér-
prete se modifica. Ele passa a saber de antemão o significado do signo,
e portanto, ao se deparar com ele, o interpretante lógico tende a se
apresentar com antecedência.
Meyer (1956) introduz conceitos muito importantes para a compreen-
são do processo de significação. Segundo ele, há uma espécie de con-
senso cultural entre determinados estímulos sonoros e seus significa-
dos. Isso significa que esses estímulos despertarão em ouvintes do
mesmo grupo cultural interpretações muito semelhantes. Essas inter-
pretações são chamadas “conotações”. A pesquisa de Meyer se aplica
mais diretamente à interpretação de signos contidos em material pro-
priamente musical (no caso em estudo, a trilha sonora de um jogo
eletrônico). Caso a trilha sonora venha a ser aproveitada como ele-
mento narrativo, terá a oportunidade de utilizar-se das conotações
como forma rápida e eficiente de despertar no jogador determinadas
respostas emocionais.
Toda a discussão estabelecida a respeito da estimulação de um jogador
por eventos sonoros, incluindo a atribuição de significados, possui cer-
tamente o potencial de incitar a produção de trabalhos capazes de

preencher lacunas que não puderam ser discutidas neste trabalho. Uma
delas diz respeito à necessidade, freqüente em jogos eletrônicos, de
que o som não induza a associação com qualquer significado, externo
ou interno ao contexto de jogo, ou o faça em um nível mais primário
(ou subliminar, do ponto de vista de prioridade de percepção) do que
o aqui discutido. Essa necessidade existe porque, em muitos casos, não
interessa à estrutura narrativa do jogo que o som acrescente infor-
mações a seu conteúdo. Em um caso como esse, a atuação de um estí-
mulo sonoro como signo capaz de despertar um interpretante energéti-
co ou lógico pode induzir uma associação equivocada, o que se con-
stituiria em uma regra incorreta no universo de jogo, além de desviar o
foco de atenção do jogador de outros elementos que poderiam ser mais
importantes para seu desempenho. Assim, seria útil o estabelecimento
de um “limiar de estimulação”, ou seja, um limite no qual os efeitos
sonoros deixam de ser apreendidos de forma subliminar (como uma
música de fundo sem conteúdo narrativo) e passam a estar disponíveis
para associação com eventos contidos na narrativa.

Referências bibliográficas
BAUM, W. (1999). Compreender o Behaviorismo. Porto Alegre: Artes
Médicas.
HUIZINGA, J. (1971). Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva.
Meyer, L. (1956). Emotion and Meaning in Music. Chicago: The University
of Chicago Press.
SANTAELLA, L. (2001). Matrizes da Linguagem e Pensamento. São Paulo:
Iluminuras.

Construção da performance por um aluno de graduação


em piano: um estudo de caso
Estevam Brito Meireles Dantas
Universidade Federal da Bahia (PIBIC/FAPESB)
Estudos sobre a elaboração de planos de performance musical são
ainda escassos no Brasil. Um caminho para a pesquisa em performance
musical é a utilização das metodologias de pesquisa em psicologia e
esporte (Ericson, 1997). Dentre suas habilidades físicas, a prática musi-
cal apresenta movimento complexo e habilidades de determinar o

tempo; dentre as mentais, leitura de notação, memorização e represen-
tação mental. Sloboda (1982) faz um questionamento central a seu
estudo: Como caracterizamos o que alguém sabe quando é capaz de
executar uma peça musical? Como essa pessoa adquire tal conheci-
mento? Que uso o músico faz de feedback perceptivo ao controlar sua
execução? Como a performance musical é afetada por fatores sociais e
situacionais?
Os objetivos deste trabalho são observar, registrar e analisar sessões de
prática de um aluno da graduação em piano durante o aprendizado de
peça musical designada ao mesmo. Para isso, entrevistou-se o sujeito
por meio de questionário elaborado para tal fim, filmou-se sessões de
sua prática e acompanhou-se a escrita de um diário sobre a mesma.
Pretendeu-se, com isso, esclarecer aspectos da construção da sua per-
formance musical e comparar os dados com achados da literatura na
área. O trabalho de Nielsen (1997), um estudo de caso sobre a prática
de um organista de igreja, norteia esta pesquisa. Até o momento, con-
cluímos a coleta de dados e estamos dando seguimento às análises dos
mesmos.


Posters

. A mente e a percepção das artes musicais

A análise da utilização da música funcional


em supermercados na cidade de Curitiba
Eduardo F. Frigatti, Mariane N. Oselame, Thomas R. Brenner – FAP
PALAVRAS-CHAVE: MUZAK, MÚSICA FUNCIONAL, MÚSICA DE TRABALHO

Desde os primórdios a música era utilizada pelo homem como facilitadora de


suas tarefas cotidianas, através de ritmos determinados que organizavam os
tempos dos trabalhos, melodias que reconfortavam ou instigavam e o próprio
ato de fazer musical, que, tornando-se o foco da atenção do indivíduo,
amenizava a percepção do desgaste físico causado por uma tarefa repetitiva. As
worksongs dos escravos estadunidenses, as canções das lavadeiras, e os cantos
‘vissungos’ dos escravos das minas de diamantes do interior de Minas Gerais
são alguns dos vários exemplos da utilização da música durante o trabalho.
Atualmente, a utilização da música no ambiente de trabalho se enquadra den-
tro do que se denomina música funcional, ou seja, toda música que possui
objetivos ou aplicações extramusicais, como trilhas sonoras para filmes, jingles
ou música ambiente apresentada em restaurantes, supermercados, consultórios
médicos e fábricas etc. Essa utilização baseia-se nos efeitos psico-fisiológicos
causados no ser humano pelo fenômeno musical. Segundo Benenzon (1981)
alguns desses efeitos são: o aumento do metabolismo; alteração da atividade
muscular, freqüência respiratória, fluxo sanguíneo e pressão arterial; redução
do impacto dos estímulos sensoriais; podendo retardar a fadiga, estimular a
concentração e modificar a condutibilidade elétrica do corpo. Comple-
mentando o que diz Benenzon, Leinig (1977) afirma que a música influência a
conduta e o estado de espírito do homem. “Quer nas horas de lazer como nas
de trabalho, o homem deve ouvir música, para se sentir integrado ao ritmo e à
harmonia da vida”. Ou seja, a música tem efeitos tanto físicos quanto
psíquicos.
Num primeiro momento, o emprego da música funcional em empresas estava
voltado para o aumento da produtividade dos funcionários, obedecendo a uma
série de preceitos que regiam sua aplicação. Dentre esses, destaca-se que a
música em ambiente de trabalho deve ser variada e não contínua, pois “la
musica en su forma continua crea su propria monotonia” (Benezon, 1981:
152). Além disso, deve-se evitar recursos que chamem a atenção, tais como
modulações, variações, arpejos e trinados. “La característica primordial que se
quiere dar, es que nunca se emponga a la percepción consciente (…) se dice

que la musica funcional se oye pero no se escucha” (Ibid: 154). Jourdain diz
que “quando experimentamos música ambiente, ouvimos passivamente em vez
de escutar, ativamente” (1998: 314). Isso porque “(…) o som em entrada é
extensivamente processado no tronco do cérebro” (1998: 314). Deste modo, o
processo sonoro dar-se-ia de maneira inconsciente causando efeitos psicofisio-
lógicos que não estariam no foco de atenção do indivíduo.
Nesse início de pesquisa, indo a campo, constatou-se, através de entrevistas
com funcionários de alguns supermercados da cidade de Curitiba, que a músi-
ca ambiente desses locais eram de execução contínua ao longo do dia e sua
programação era pouco variada, segundo os próprios funcionários tal situação
é fatigante. Isso leva a crer que essas músicas não eram destinadas ao bem-estar
do funcionário, mas sim ao consumidor. Assim, constituem-se como objetivos
dessa pesquisa, averiguar qual a influência da música funcional no consumidor
e se a utilização dessa forma de aplicação da música nos supermercados de
Curitiba tem a intenção de facilitar o consumo do cliente por meio da criação
de um ambiente agradável que promova uma sensação de bem-estar que, por
não estar conscientemente ligado à música, pode ser associado ao ato da
compra.

Ponteio 36 de Guarnieri: Linguagem Nacional e Abstrações


Ester Bencke
Bacharel em Música – UDESC

PALAVRAS-CHAVE: GUARNIERI, PONTEIO, LINGUAGEM NACIONAL

Mário de Andrade defendia o nacionalismo em música, que apresentava carac-


terísticas de exotismo, como citações étnicas, como uma fase em busca de uma
música inconscientemente nacional, que seria conseguida através de um amplo
conhecimento das músicas populares nacionais (étnicas, folclóricas e regiona-
listas).
Este foi um desafio aos compositores da época que encontraram dificuldades
tanto para traçar a fronteira entre o exotismo e a incorporação profunda da
música popular quanto para expressar-se subjetivamente através da música
nacional. Guarnieri parece encontrar-se no momento em que isto tornou-se
possível, criando peças com uma brasilidade sutil, expressivamente brasileira,
o que foi chamado por Mário de Andrade de linguagem nacional. Nesta lin-
guagem, o material étnico e folclórico não mais é utilizado diretamente sob
forma de citações, mas transformado pelo compositor,que imprime um trata-
mento próprio a este material. Este tratamento pode ser compreendido com o
abstração, por meio da separação mental dos elementos musicais populares
presentes em sua música através de análise musical. Esta pesquisa trata de
aspectos da linguagem nacional presentes na série de Ponteios para piano solo
de Camargo Guarnieri e de seu contexto histórico-musical. A série é constituí-

da de 50 Ponteios compostos entre 1931 e 1959, sendo que no início de cada
um deles há uma indicação expressiva. Por meio de leitura, apreciação, análise
e interpretação musical, realizou-se um levantamento de elementos recorrentes
da linguagem guarneriana na coleção de Ponteios e, na análise do Ponteio 36,
foram destacadas abstrações, ou seja, transformações do material étnico e fol-
clórico no âmbito musical, em suas relações com o tratamento de elementos
musicais e a indicação de caráter. O trabalho tem como objetivo acrescentar
dados relevantes aos estudantes de piano e intérpretes de música brasileira por
meio de uma compreensão analítica e contextual do Ponteio 36 e da reflexão
a respeito de música nacional. Com isto, levar a um entendimento racional dos
elementos populares transformados nos Ponteios de Guarnieri, que podem ser
ouvidos como brasileiros, todavia não visualizados numa primeira leitura da
partitura, por estarem “diluídos” e só poderem ser compreendidos claramente
no âmbito mental. Em pesquisas subseqüentes, poderão ser levantadas relações
entre o tratamento de elementos musicais com as indicações expressivas de
outros Ponteios, e verificada a maior ou menor incidência de recorrências
destes elementos em Ponteios com indicações de caráter semelhantes.

Beethoven e Brahms na Sonata Op.9 de Alberto Nepomuceno


Igor Correia - UFPR
PALAVRAS-CHAVE: NEPOMUCENO, ANÁLISE MUSICAL

Este trabalho visa mostrar como Alberto Nepomuceno (1864-1920) entendeu,


utilizou e adaptou alguns aspectos da música de Beethoven e de Brahms nas
obras compostas durante seu período acadêmico (1889-1905) (Dudeque,
2005). A música germânica do século XIX foi influente no pensamento de
vários compositores brasileiros, entre eles podemos citar Leopoldo Miguez,
Henrique Oswald e Alberto Nepomuceno (Vermes, 2004). No caso de Alberto
Nepomuceno, quem estudou em Berlim entre 1890 e 1894, a música de
Beethoven pode ter servido como modelo a ser seguido juntamente com uma
influência da música de Brahms através dos estudos realizados com H.
Herzogenberg. Ainda pertinente a este trabalho é o grande interesse que
Nepomuceno demonstrou em seus estudos acadêmicos e nos tratados por ele
estudados. Alguns foram traduzidos para o português na sua quase integrali-
dade pelo próprio Nepomuceno (Dudeque, 2005; Correa, 1986). O presente
trabalho ilustra tais suposições através de uma análise do primeiro movimento
da Sonata para piano Op. 9, composta em 1894, onde se observa semelhanças
e adaptações de estruturas e procedimentos composicionais inspirados na
música de Beethoven e Brahms.

2. A mente e a produção das artes musicais

Intencionalidade e criação em música


Caio M. Nocko
PALAVRAS-CHAVE: CRIAÇÃO, INTENCIONALIDADE

Em música, costuma-se muito analisar a forma, a harmonia, a melodia, a instru-


mentação, etc, enfim, aspectos, de certa forma, técnicos. O campo subjetivo
acaba, muitas vezes, sendo esquecido ou, simplesmente, deixado de lado. Mas
existe sempre, quando o compositor vai criar uma obra musical, um aspecto
subjetivo que podemos – e é o que pretendemos aqui – ressaltar: a inten-
cionalidade. Segundo o filósofo John R. Searle, no sentido em que queremos
distinguir, a intencionalidade é:
“…aquela característica da mente graças à qual os estados mentais são
dirigidos a, ou falam de, ou se referem a, ou apontam para estados de
coisas no mundo. É uma característica peculiar, uma vez que, na verdade,
o objeto não precisa existir para ser representado por nosso estado inten-
cional” (2000, p.67).
Dessa forma, toda vez que um artista pretende compor uma música, ele proje-
ta suas idéias intencionalmente. Apesar de parecer ser algo óbvio, esse entendi-
mento acarreta, por exemplo, o fato de a obra de arte musical estar repleta dos
significados que o compositor quis imprimir musicalmente ou, no caso de uma
canção, na letra mesmo. Nesse caso, já vê-se que é graças à intenção do autor
que certos traços melódicos, harmônicos, etc, são apresentados da forma que
são e não de uma outra maneira qualquer que poderiam ser. Ou seja, tudo o
que foi produzido intencionalmente tem uma razão para estar da maneira que
está e não é acaso, como, pela falta de análise, costuma-se pensar. A forma, a
instrumentação, o caráter, por exemplo, são aspectos que são determinados,
escolhidos de acordo com a intenção pretendida.
Seguindo esse pensamento, e fazendo algumas associações com os escritos da
Biologia do Conhecer de Humberto Maturana, distinguimos três ‘finalidades’
para a intencionalidade musical. A primeira diz respeito ao compositor em sim
mesmo. São as obras produzidas com a intencionalidade de lembranças, prin-
cipalmente, para o próprio compositor. São composições criadas por ele para
ele mesmo. Dizem respeito às sensações, aos sentimentos e pensamentos e
recordações dele mesmo e, embora possa ser comunicada a outros, é com essa
intencionalidade que realiza a obra. Aliás, devemos esclarecer desde já: as três
espécies aqui separadas de intencionalidade estão presentes em todas as obras,
mas sempre há uma que se distingue, se sobrepõe às demais e é isso o que
queremos destacar. Portanto, na primeira diferenciação, a intencionalidade do
compositor é voltada para o contexto: ele mesmo. Ele pretende gerar algo (lem-
brança, desejo, etc) em si próprio e assim tudo o que for pensado intencional-

mente na obra será pensado com essa finalidade. Na segunda separação que
fazemos, a intencionalidade do compositor se volta para os outros. É aqui onde
se encaixam a maioria das obras, dedicadas e pensadas para o público em geral
ou em particular. Toda a etapa de criação do compositor é tomada, então, por
esse sentido: comunicar a outros, provocar algo em outros que não ele mesmo.
Ele trabalha, assim, com uma dimensão intersubjetiva ou, como ainda querem
alguns, objetiva. Os maiores exemplos desse segundo aspecto são as obras
encomendadas e, principalmente, as obras com fundo comercial, como jingles,
trilhas sonoras, etc, onde a intencionalidade está voltada para a comunicação
daquele que compõe – mediado pela música, pelo filme – com os especta-
dores. Antes de explicar a terceira diferenciação de intencionalidade que faze-
mos, precisamos tratar dos aspectos que dissemos fazer relação com a teoria de
Humberto Maturana : os acoplamentos estruturais e a autopoiese. Acoplamento
estrutural é a denominação que Maturana dá para a constante relação que
existe entre um ser com os demais seres e, no caso especial de nós, seres
humanos, dentro de um domínio lingüístico. De acordo com o biólogo, há uma
troca contínua de transformações entre o ser e o meio (que inclui os outros
seres). Algo feito pelo ser resulta em alguma no meio que, por sua vez, criará
outra transformação no ser, que produzirá outra mudança no meio e assim por
diante. Ou seja, uma seqüência de transformações relacionadas e encadeadas
umas com as outras. Associamos os acoplamentos estruturais dentro do
domínio lingüístico, com a segunda relação de intencionalidade, já citada: a
criação voltada para a comunicação com o outro ser, a obra produzida com o
intuito de provocar algo no outro. No caso do termo autopoiese, Maturana quer
designar a autoprodução do ser, senhor de suas próprias conseqüências, de seu
futuro. Associamos a autopoiese com a primeira diferenciação que já expli-
camos: a composição com a intenção de comunicar-algo-a-si-mesmo ou
provocar algum efeito no próprio autor; e também relacionamos com a terceira
e última questão diferencial que destacaremos: a autopoiese da linguagem.
Nessa terceira partição, a intencionalidade do compositor, durante o processo
de criação da obra, está direcionada para a transformação do código, da lin-
guagem artística. É aqui que se encaixam obras como 4’33” de John Cage, a 9ª
Sinfonia de Beethoven e as primeiras obras concretas de Pierre Schaeffer e
Pierre Henry. Todas essas obras tem em comum o fato de terem quebrado regras
anteriores, mudado padrões e transformado o código musical até então pre-
dominante em pelo menos um aspecto. E é essa a intenção dos compositores
dentro da terceira divisão que revelamos. Mas essa terceira relação, por dizer
respeito ao código, tem muita conexão com os acoplamentos estruturais tam-
bém, porque altera a linguagem (musical ou, além dela, a natural) que é o meio
pelo qual conhecemos e denominamos tudo e, a partir daí, agimos. Ou seja,
uma alteração na linguagem é uma alteração na maneira como conhecemos,
denominamos, etc, e assim essa alteração não é uma mera transformação do
código, como normalmente se pensa, mas é algo que trará mudança, em curto
ou longo prazo, na vida do ser humano (que só existe enquanto ser humano na
linguagem).

Dessa forma, demonstramos três possibilidades de direcionamento da
intencionalidade do compositor durante o processo de criação: a primeira diz
respeito à comunicação-dele-com-ele-mesmo; a segunda presume a comuni-
cação do ser criador da música com outro (ou outros) ser ao qual esta é desti-
nada, querendo simplesmente comunicar algo ou provocar alguma ação ou
sensação; e, por fim, a terceira possibilidade acontece quando a obra é pro-
duzida com a pretensão de renovar ao menos um aspecto da linguagem ou o
código musical até então existente. É importante ressaltar novamente, por fim,
que as três possibilidade de direcionamento existem na produção de uma obra,
de uma forma ou de outra, mas o que analisamos aqui foi a intencionalidade
que se sobrepõe as demais em certa obra de música.
Enfim, pretendemos mostrar que a intencionalidade é algo muito importante
durante o processo de criação por gerar efeitos na obra em si, como aspectos
técnico-lingüísticos e semânticos que são os que normalmente estudamos. Por
outro lado, lembramos que, apesar de preceder esses aspectos, a intencionali-
dade é precedida pela história.

3. Artes musicais, linguística e cognição

Pesquisas no campo das neurociências cognitivas


e na Psicologia da Música
Patrícia Lima Martins Pederiva
Faculdade Dulcina de Moraes, Brasília

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, NEUROCIÊNCIAS

Este artigo traça um panorama de alguns estudos que vêem sendo realizados
nas últimas décadas e que buscam compreender os processos pelo qual o cére-
bro processa armazena e produz música, e ainda, uma breve comparação entre
música e fala. Tais estudos têm como base, principalmente, os avanços na neu-
rociência cognitiva, que podem auxiliar no esclarecimento sobre a relação
música-cognição. O artigo apresenta possibilidades de estudos disciplinares
entre Música e neurociências cognitivas, tanto para compreender melhor o fun-
cionamento geral do cérebro e dos processos mentais, quanto para entender as
questões pertinentes a área de Música.

Música, cognição e educação: um estudo comparativo
sobre as diferenças cognitivas entre músicos e leigos
Melody Lynn Falco Raby
Mestre em Psicologia – Universidade Tuiuti do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, EDUCAÇÃO

A presente pesquisa teve por objetivo verificar possíveis diferenças cognitivas


entre músicos e leigos, tendo como referência a idéia de que a música, e prin-
cipalmente, o estudo dela pode apresentar efeitos sobre o desenvolvimento de
habilidades cognitivas, contribuindo para a melhora ou facilitação das mesmas.
A amostra foi composta por 47 participantes, dentre os quais 29 músicos e 18
estudantes de Nível Superior que nunca estudaram música. Para a análise
estatística dos dados foi utilizado o teste não paramétrico U de Mann-Whitney,
com o objetivo de comparar especificamente as funções raciocínio verbal,
numérico, espacial, abstrato e atenção, contempladas através dos testes de
raciocínio do BPR-5 e do teste Atenção Concentrada (AC), respectivamente. Os
resultados coincidem com os de outras pesquisas, apontando para uma van-
tagem dos músicos sobre os leigos, principalmente em orientação espacial e
raciocínio abstrato. Implicações da pesquisa são discutidas, no sentido de veri-
ficar se a música pode representar fator de benefício para o desenvolvimento
cognitivo e na defesa da inserção da música na educação.

Música como ferramenta nos processos clínicos em fonoaudiologia


Lênia Luz Nogueira
Fonoaudióloga

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, LINGUAGEM

Este trabalho tem por objetivo demonstrar que a música pode ser usada como
ferramenta terapêutica e social dentro da busca de resultados de uma solução
para a as dificuldades de linguagem, sejam elas na escrita ou na fala. A popu-
lação em questão era composta por 4 crianças entre 9 e 11 anos de idade, per-
tencentes a uma faixa econômica de renda baixa, com um perfil de carência
afetiva e educacional. Uma das crianças tinham uma deficiência mental leve,
apresentando dificuldades maiores que as demais.
Em um primeiro momento a música foi usada como forma de recreação. A
palavra recreação provém do latim (recreatio, recreationem) e significa vulgar-
mente o mesmo que recreio (divertimento, entretenimento). Bruscia, definindo
Recreação Musical, complementa a afirmação acima acrescentando a expe-
riência musical vivida pelo individuo para realizar a recreação: “(…) o ter-
apeuta utiliza música, jogos e brincadeiras espontâneas e as artes como parte

de um processo sistêmico que visa a ajudar crianças ou grupos de crianças a
explorar e trabalhar questões terapêuticas” (Bruscia, 2000: 235)
Fazendo uso da música como recreação as diferenças dentro do grupo desa-
pareceram e os primeiros movimentos em relação ao outro apareceram de
forma acolhedora. As dificuldades do grupo estavam centradas em déficits de
atenção auditiva apresentando estes trocas fonológicas nos processos de escri-
ta espontânea. Bruscia diz que: “Quando um cliente que tem déficits de
atenção apreende a se concentrar no contexto musical, essa capacidade ou
habilidade potencialmente pode ser aplicada a muitos outros aspectos da vida
do cliente.” Utilizando o CD da Casa de Brinquedos, trilha sonora de um pro-
jeto musical criado por Toquinho, iniciamos então o atendimento propriamente
dito. Todas as músicas foram apresentadas no decorrer das sessões e após a
apresentação das mesmas eles enquanto grupo, escolheram uma delas para tra-
balharmos a escrita. A música escolhida foi o Caderno, que foi apresentada em
forma de jogo de adivinhação, já que a música descreve o objeto sem citar o
seu nome. A música foi trabalhada dentro dos aspectos auditivos (escuta),
visuais (leitura da letra) cinestésico (sensações que esta música trazia ao ser
escutada) e motor (dança).
A melhora dos participantes aconteceu em conformidade destes irem vencendo
níveis cada vez maiores de dificuldades, e como conseqüência do processo,
chegando mais perto dos seus objetivos de mudança. Mesmo que os objetivos
não fossem aulas de música, as possibilidades a exploração asseguravam a
mudança. Como afirma Gainza:
“A educação musical deverá tender a desenvolver, mediante diversas ativi-
dades e processos musicais, a mais ampla gama de possibilidades
humanas, e não apenas a tendência dominante” (Gainza, 1988: 38).
Neste processo terapêutico a evolução dos participantes foi avaliada como
tendo bom resultado, sendo que do grupo dois tiveram alta e os demais foram
remanejados para atendimento individual em fonoaudiologia e psicopeda-
gogia. Concluimos com isso a importância da utilização da música nas ativi-
dades terapêuticas em fonoaudiologia, na busca de soluções para os aspectos
de déficit em fala e linguagem.

4. Tecnologia, artes musicais e mente

Quinteto de Metais: aspectos acústicos como ferramenta de composição


Felipe de Almeida Ribeiro
PALAVRAS-CHAVE: ACÚSTICA; COMPOSIÇÃO; ORQUESTRAÇÃO

A escrita para quinteto de metais, mesmo que ainda sem uma formação clássi-
ca, tem suas origens desde o período renascentista. Bill Jones, no New Grove

Dictionary of Music, nos afirma que compositores europeus do séc.XVI e XVII
escreviam quintetos de metais (sem formação específica). Outros, da mesma
época, escreviam para duas cornetas e três sacabuchas. Entretanto, somente a
partir do séc.XIX é que essa formação se consolida: dois trompetes, uma
trompa, um trombone tenor e uma tuba ou trombone baixo. Assim sendo, o
repertório desta formação começa a receber sérias contribuições (preocu-
pações específicas com relação à instrumentação e orquestração).
A presente comunicação propõe um estudo acústico-analítico dos instrumen-
tos que compõem esta formação visando contribuir e auxiliar na prática com-
posicional. A metodologia adotada consiste na participação dos ensaios de um
quinteto de metais de Curitiba (trompetes, trompa e trombones). Os ensaios
foram gravados utilizando microfones condensadores e dinâmicos, mixer e um
sistema de armazenamento multipistas com 24bits/96kHz. Como softwares,
gravador multipistas, editor de áudio e analisadores de espectro. Na gravação,
cada instrumento foi registrado individualmente e em grupo, gerando assim
uma análise sob diversos aspectos: tessitura, dinâmica e ângulos de medida. Os
instrumentos foram captados numa distância aproximada de 1.5m, sob diver-
sos ângulos em um auditório de Curitiba. Todo este procedimento resultou em
uma análise do comportamento dos instrumentos sob vários aspectos.
Os resultados e conclusões deste trabalho foram focados exclusivamente para
o profissional da área de composição musical. Muitos tratados de orquestração
analisam os instrumentos sob um aspecto instrumental (características de cada
instrumento).
Pouca literatura do assunto concentra na questão orquestral, ou seja, aspectos
da combinação instrumental. Este trabalho visa contribuir de uma maneira
científica para demonstrar diversas combinações e seus diferentes efeitos,
sejam eles tradicionais ou não.

Complexidade e Controle: projetando interações musicais em rede


Fábio Furlanete
Universidade Estadual de Londrina

PALAVRAS-CHAVE: AUTO-ORGANIZAÇÃO, INTERAÇÃO, CONTROLE

Este artigo discute o possível papel do compositor na música colaborativa em


rede. Considera possibilidade da emergência de processos auto-organizados
nas interações nesse tipo de música e como o compositor pode favorecer o seu
surgimento e interferir em seu desenvolvimento sem destruir a auto organiza-
ção. São avaliadas as semelhanças desses problemas com os problemas
enfrentados pela indústria de jogos e apontados alguns dos caminhos tomados
por ela para resolvê-los. Sugerimos o Controle Situacional e Redes Semiônicas
como quadro conceitual para tratar problemas com esse grau de complexidade
e, por fim descrevemos a implementação (em andamento) de um sistema que

procura aplicar os conceitos do Controle Situacional e das Redes Semiônicas
no gerenciamento de processos auto-organizados no contexto da interação
musical em rede.

A Física-Matemática e a Neurociência na Música


Washington Roberto Lerias
Secretaria de Estado da Educação do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, FÍSICA-MATEMÁTICA, NEUROCIÊNCIA

Esta sessão está dividida em 3 partes: Na 1ª é demonstrado como a música se


dá em nosso cérebro e as suas relações com outras funções cerebrais; Depois
é desenvolvida a Física-matemática da música, paralelamente à teoria musical;
E a 3ª parte fica para treinamento, execução e apresentação musical pelos par-
ticipantes.
Fundamentação teórica O método utilizado será o Auto-conhecimento das
Funções Cerebrais para o Aprendizado, levando-se em conta os avanços da
neurociência e a lógica matemática de formação da linguagem musical, seus
princípios e sua interação com outras funções cerebrais, o qual será explanado
no primeiro momento, no intuito de demonstrar como a música se dá em nosso
cérebro. Os conteúdos de física e matemática a serem desenvolvidos serão:
(Ondas Sonoras, Fenômenos Periódicos, Período, Freqüência e unidades,
velocidades do som, comprimento de onda, limites da audição e da fala
humana, freqüências das notas musicais, proporções matemáticas entre os
intervalos musicais, série harmônica e proporção áurea, infra-som, ultra-som,
ondas de rádio e cores (luz), velocidade da luz, noções básicas de física quân-
tica (fóton&cores dos elementos químicos), a relação entre as freqüências das
notas musicais e as das cores e os fônons), distribuídos dentro das subdivisões
a seguir, numa seqüência lógica, relacinando a teoria com a prática: – Estudo
da Vibração/Da Acústica à Óptica; Limites da Audição, Fala, Visão humana e
dos instrumentos musicais e suas curiosidades. – A Harmonia das notas musi-
cais e das cores, suas relações e equivalência/O elo entre as artes e a ciência.
– Afinando os Sentidos/Afinação instrumento-voz/Escrita e leitura musical (real
e virtual) – Lógica matemática p/ formação das escalas (proporções dos inter-
valos) – Execução nos instrumentos e voz (solfejo) – Estudo e treinamento dos
tempos de execução das notas. – A História da Evolução da Música segundo
uma visão científico-cultural (do tribal ao atual) – Lógica de formação dos
acordes a partir dos maiores /Técnicas e treinamento. – Estudo e ensaios da
música que será apresentada pelos participantes. – Produção visual. –
Formação de Coral e Conjunto Musical.
Objetivos: a) Desmistificar a música através do seu estudo científico, baseado
em leis e princípios lógicos da física, da matemática e das funções cerebrais. b)
Demonstrar a importância do estudo e da prática musical, para o desenvolvi-

mento cognitivo, psicomotor e social. c) Valorizar o trabalho sincronizado em
conjunto, bem como buscar compreender, respeitar e trabalhar as diferenças e
limites individuais.
Contribuições e Implicações: Uma das contribuições deste trabalho se encon-
tra na apresentação dos valores das freqüências das cores correspondentes ás
notas musicais, fazendo um paralelismo entre a acústica e a óptica, bem como
a música e as representações artísticas visuais. Uma outra contribuição está no
estudo dos fônos e fótons da física quântica e a utilização destas corre-
spondências para a formação da música dos elementos químicos e suas com-
binações. E ainda se conta com o uso dos avanços tecnológicos e neurocientí-
ficos no auto-conhecimento das funções cerebrais para o aprendizado.

Interação e Cognição
no Processo de Interpretação Mediada da Marimba
Cesar Adriano Traldi – UNICAMP
PALAVRAS-CHAVE: INTERAÇÃO, INTERFACE, MARIMBA

A pesquisa aqui descrita vincula a interpretação musical e a interação do músi-


co em processos de mediação tecnológica com o objetivo de ampliar a sua
percepção sonora e a sua capacidade de interagir com a diversidade de gestos
e sonoridades vinculados à música contemporânea. Neste sentido Rowe (1993)
comenta que a execução de processos computacionais em tempo real propicia
o desenvolvimento de sistemas musicais com a capacidade de modificar seu
comportamento sonoro em função de estímulos gerados por músicos durante a
performance.
No nosso estudo vinculamos estes avanços da computação musical com a
interpretação de instrumentos de percussão que apesar de serem os primeiros
a surgirem na história da música, só foram amplamente explorados pela músi-
ca ocidental no século XX. O desenvolvimento dos processos de construção
dos instrumentos, o amadurecimento técnico dos instrumentistas, a sua grande
variedade timbrística e a presença marcante do gesto do intérprete na perfor-
mance, possibilitaram o surgimento de recursos composicionais e técnicos ino-
vadores. Este processo gerou grande atenção por parte de muitos compositores
e fez com que a percussão assumisse a posição de um dos principais recursos
instrumentais da música contemporânea. O percussionista Frank Kumor (2003),
comenta que a performance de obras contemporâneas exige do intérprete
conhecimentos que vão além do padrão curricular.
A partir deste panorama o objetivo é observar essa nova postura interpretativa
em obras para marimba e eletrônicos ao vivo sob a ótica da capacitação per-
ceptiva derivada da mediação tecnológica. A interação em tempo real com
diferentes dispositivos como: microfones, sensores de piezo elétrico, baquetas
interativas, sensores de movimento, entre outros, leva o músico a dar nova

dimensão interpretativa para cada composição ou até mesmo para diferentes
trechos de uma mesma obra, postura que, muitas vezes, é diferente da utiliza-
da no repertório tradicional. A necessidade do conhecimento dos dispositivos
utilizados em performance somada a forte presença da improvisação nessas
obras colocam o intérprete na posição de co-criador das obras que executa.
O interprete deixa a postura de apenas ser meio de execução, para assumir a
posição de elemento de coesão da obra. Na interpretação mediada há outro
nível de cognição musical onde o músico responde a estímulos gerados pelo
computador com novas possibilidades de execução. O instrumentista deixa de
ter a postura de especialista para ter uma visão interaticionista onde, através da
adaptação, molda-se a cada obra.
A metodologia utilizada na pesquisa apóia em três elementos fundamentais: a)
construção de novos dispositivos com sensores diversos, b) mediação através
de processo computacional e c) oficinas de performance onde é realizada a
validação do processo bem como as medidas de desempenho do sistema e
avaliada a reação do músico.
Como estudo de caso aplicado à interpretação da marimba, apresentamos a
interação do interprete com o computador através de baquetas interativas, por
nós desenvolvidas, nas quais utilizamos sensores piezo-elétricos. Finalmente, a
análise que fazemos é que a utilização de técnicas interpretativas mediada
fomenta no interprete o aumento da sua capacidade de controle de estruturas
sonoras e amplia sua habilidade de co-relacionar eventos e sonoridades da
marimba.

5. Artes musicais e cognição social

A Música o Sagrado e o Imaginário


Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira – PUC-PR
PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, SAGRADO, IMAGINÁRIO

O imaginário que habita na mente dos que escrevem, executam e ouvem a


música, será ressaltado pelas observações de Santos (2000) e outros autores,
que servirão de referência para este olhar sobre a música, o sagrado e o
imaginário.
A diversidade do universo melódico permite que este possa ser multiplicado
aos turbilhões tendo como ponto de partida um número restrito de notas
musicais, que podem produzir combinações infindáveis.
As produções rítmicas e sonoras dão espaço para os vôos da imaginação
daquele que produz a obra de arte e daquele que dela usufrui pela observação,
pelos sentidos, que envolve todo o ser, num exercício cósmico que é infinito.
A estrutura musical é constituída de espaços e tempos. Sua construção é o con-

junto de relações de imagens sonoras constituídas por esse tempo e espaço, e
possui características comuns às da fenomenologia do sagrado (Santos, 2000).
São partes da experiência do imaginário comuns à música e ao sagrado, entre
outros, a sedução provocada pelos ritmos, as construções melódicas, as bases
musicais das danças, e a própria estrutura musical que abrange o folclore, as
formas clássicas ocidentais, as melodias e ritmos orientais e as práticas musi-
cais religiosas que muitas vezes levam ao êxtase.
A abordagem deste estudo se direciona à umareflexão sobre os elementos que
englobam o imaginário assim como para as experiências na vivência da arte
musical que contribueme interferem na formação cognitiva individual e coleti-
va, causam sedução, e têm uma relação com o concreto e com a afetividade.
Dentro desse raciocínio, é possível perceber ainda as interferências do ima-
ginário que nos leva a sair do tempo, reorganizar o espaço, saindo do nosso
espaço cotidiano quando nos envolvemos pelos ritmos e melodias. “A flauta
seduz o ouvido. O tambor percute a pulsação uterina. Martelo, bigorna, tím-
pano servem agora a um outro ferreiro alquímico sonoro. Martelam imagens de
uma outra dimensão.” (Durand,1927: 61).
As implicações principais da observação desse estudo, são: procurar perceber
a importância da imaginação, sua reabilitação na priorização da sensibilidade;
induzira uma compreensãoda relação do imaginário com as músicas utilizadas
nas práticas religiosas e mostrar a importância da imagem e imaginação no
contexto da obra musical, para os que a compõem, as interpreta e as ouvem.
Quando aprofundados os conceitos sobre o fato de que a obra musical ao ser
experenciada, é recriada e ampliada pelos órgãos da sensibilidade, pode-se
entender e perceber a força do imaginário na obra musical, que acontecena
sensação causada pela sua ressonância.
Tendo como ponto de partida a música e o imaginário, foi desenvolvido no
Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP, um
estudo para a compreensão da experiência e vivência do Sagrado em contato
com as formas de expressão artísticas e o imaginário.
O grupo procurou se fundamentar no sentido literário e musical, segundo o
mitólogo romeno Mircea Eliade, que evidencia que é a partir do profano que
surge o Sagrado.
O que é o imaginário? Segundo Durand (1997: 14) o imaginário é o “conjunto
das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do
homo sapiens”, o grande e fundamental denominador onde se encaixam todos
os procedimentos do pensamento humano”.
“O imaginário não só se manifestou como atividae que transforma o
mundo, como imaginação criadora, mas sobretudo, como transformação
eufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como ordenança do ser às
ordens do melhor” (Durand & Gilbert ,1997: 43).
O texto se refere a Kant, que já demonstra a importância da imagem e

imaginação, sendo o primeiro, segundo Durand a iniciar a reabilitação da
imaginação, priorizando a sensibilidade, para o universo da realidade.
Sendo assim o que seria a realidade? Segundo Ribeiro (1921), a realidade é a
somatória da diversidade dos pontos de tudo que podemos vere sentir no
Universo, com suas aparências diversas, parciais, que vemos e sentimos através
de fragmentos em que a unidade nem sempre pode ser captada.
As notas musicais sendo sete, apenas, podem produzir, segundo Ribeiro, um
universo melódico infinito, assim como as cores e as palavras podem produzir
combinações infindáveis, onde a realidade dá espaço para os vôos da imagi-
nação daquele que produz a obra de arte e daquele que dela usufrui pela
observação, pelos sentidos e tudo que envolve o ser.
Ainda na concepção de Ribeiro, o ritmo é capaz de nos mostrar a grandeza da
unidade. O ritmo é mesurável, mas também leva ao prazer, ao desprazer,
comove, promove sensações no corpo, na mente e na alma, alterando muitas
vezes os sentidos.
O ritmo é o princípio da vida, da expressão do movimento. É o metro dos ver-
sos, é a condição que define os passos da dança, é a batida do coração que
leva à cadência da alma.
“A experiência musical não ocorre senão durante sua execução. Sua efemeri-
dade, paradoxalmente, garante sua permanência” (Santos, 2000: 58). Isso nos
leva a verificar a questão do tempo, do espaço e a da expressão do imaginário
intrínseca à arte musical.
As imagens musicais possuem sentidos e significados que se sucedem num tur-
bilhão de imagens, sentimentos e sensações que transitam pelo tempo e
espaço, “remete-nos ao seu tempo próprio, retirando-nos do tempo cotidiano e
cronológico” (p. 58).
A transcendência é uma conseqüência da realização da obra de arte, que não
é uma aspiração de atingir algo abstrato, superior, ou seja, o homem dividido
que atinge o sobrenatural, desvinculado de sua humanidade, e de seu meio
social, mas sim “o caráter recíproco da constituição do humano e do sagrado”
(Santos, 2000: 60).

Narrativa musical de história de vida: a música na velhice


Rosemyriam Cunha
mestre pela Universidade Federal do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, NARRATIVA, HISTÓRIA DE VIDA

O estudo das relações que o ser humano estabelece com a música tem adquiri-
do dimensões multidisciplinares. A musicoterapia, como um campo novo de
estudos, se dedicada à aplicação e compreensão de uma prática interativa, na

qual predomina a linguagem musical, também buscando o entendimento dessa
relação comunicativa.
A expressão da emoção e das intencionalidades humanas, desde o nascimento
e por todo o desenrolar existencial, se concretizam por meio do choro, do bal-
bucio, da voz falada e cantada. Nesse sentido os parâmetros musicais como
ritmo, intensidade, duração, altura e timbre, fazem parte das trocas sociais que
a pessoa realiza ao longo da sua vida.
A música coloca-se como uma ferramenta que possibilita a efetivação de tro-
cas sociais significativas nos diferentes períodos da vida humana: desde as
canções de ninar, as brincadeiras de roda, as parlendas e rimas, as sonoridades
intensas da juventude, até o repertório da idade adulta e a reminiscência
melódica da velhice. Como forma musical presente em nossa cultura, a canção
tem acompanhado as manifestações da vida cotidiana das pessoas, expressan-
do sentimentos e intenções, traduzindo motivações, narrando histórias. A
canção torna-se, nessa perspectiva, um ato de comunicação participativa, uma
narrativa na qual alguém diz algo a alguém (Tatit, 1996).
Nesse trabalho a canção passa a ser considerada como uma narrativa cantada
por meio da qual as pessoas interagem e compartilham fatos e emoções que
lhes são significativos (Ruud, 90). Essa narrativa emerge de uma cultura que,
por fornecer descrições do pensamento e da maneira de viver do ser humano,
constitui-se num elemento interpretativo possibilitado às pessoas a organização
de seu mundo social e de suas experiências (Bruner, 1997).
O envelhecimento populacional é uma realidade social. Os idosos de hoje par-
ticiparam da popularização do rádio e da televisão, vivenciando um período
histórico de intensa musicalidade. Talvez por isso, as canções emergem, no rol
de suas ações coletivas ou individuais, como uma linguagem expressiva que
potencializa suas trocas sociais. Qual o significado das canções que formam o
repertório musical construído pelos idosos? Esse trabalho teve por objetivo
analisar o repertório musical expressado por um grupo de 23 pessoas cuja
idade variava entre 60 a 80 anos, no decorrer de um processo musicoterapêu-
tico, na tentativa de entender o significado da música para essa faixa etária.
Para tanto foi utilizado o método proposto por Vygotsky (1999) que parte da
análise funcional dos elementos e da estrutura da obra musical, para a recons-
trução da resposta estética e o estabelecimento das leis gerais.
Os dados analisados revelaram que a interação musical proporcionou a cons-
trução de um espaço de comunicação e aproximação no qual os participantes
foram reconhecidos e respeitados nas suas opções e preferências, reafirmando
suas individualidades. O repertório expressado se constituiu, dessa forma, na
narrativa musical de suas histórias de vida.

A música como ferramenta de inserção social do deficiente mental
Carmen Lígia Barboza Gruner
APAE, União da Vitória

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, INCLUSÃO SOCIAL, DEFICIENTE MENTAL

A música é um trunfo no que se refere à sociedade e a tentativa de inclusão


social de alunos com deficiência mental que, por meio desta, tem a oportu-
nidade de mostrar que são capazes de produzir arte, e uma arte muitas vezes
tão bela quanto à de qualquer outro artista/ músico, sem exaltar deficiência
alguma.
Para evidenciar o enriquecimento no desempenho social do deficiente mental
quando participa de produções musicais e incentivar a formação de grupos
musicais nesse meio faz-se necessária uma pesquisa mais ampla, qualitativa de
cunho exploratório, que estabelece um diálogo crítico e aberto entre o proble-
ma pesquisado e a fundamentação teórica referente ao tema proposto. A
pesquisa bibliográfica fornece a teoria sobre o assunto pesquisado com base
nas leituras realizadas pelo pesquisador e lhe oportunizara reflexões.
Utilizando a abordagem dialética, a pesquisa deve fazer a construção da
relação do sujeito e suas incursões sociais, essencialmente oposição e comple-
mento, num ciclo que não se fecha, mas atenta para novos questionamentos
para aprofundamento futuro, fazendo-se importantes e complementares para a
continuidade do trabalho. A busca por conceitos científicos faz com que os
musicoterapeutas despertem para a necessidade de embasamento, para o com-
prometimento por meio de publicação de seus achados ou descobertas, trazen-
do novos conteúdos sobre a prática terapêutica, fortalecendo assim a profissão
perante a comunidade e os profissionais das demais áreas da educação, da
saúde, da área social e também da cultura, já que falamos em arte, e o objeto
desse estudo é a música. Com isso, essa investigação abrange um largo públi-
co, tanto de pessoas consideradas leigas, bem como profissionais de diversas
áreas, em suas especificidades, incluindo os próprios musicoterapeutas, evi-
denciando dados de uma nova opção sensibilizadora em âmbito social, dimi-
nuindo estigmas e mostrando que a ciência avança em todas as áreas, ainda
que alguns relutem em enxergar.

O ensino de piano nas escolas de Curitiba.


Carolina Melo das Chagas Lima – estudante, UFPR
PALAVRAS-CHAVE: PIANO, ESCOLAS, ENSINO

Observando-se a pouca oferta de ensino de instrumentos nas escolas de


Curitiba, que leva a uma elitização e afastamento das crianças com a música
instrumental, a pesquisa visa descobrir qual é a real oferta e como esse ensino
é procedido.

O ensino que se pretende encontrar não é aquele com a intenção de formar
concertistas, mas sim educar musicalmente, ampliar o universo e também
como um passatempo aos alunos.
O instrumento a ser focado nesta pesquisa será o piano. Esta, ainda em anda-
mento, terá contido a relação das escolas públicas, tanto estaduais como
municipais, e escolas particulares que oferecem de alguma forma ensino de
piano aos seus alunos, citando se é como contra turno, educação permanente,
para toda a comunidade ou ainda como parte da disciplina de Artes. Terá tam-
bém dois questionários no qual os alunos responderão, um feito em abril e
outro em junho, onde os alunos falarão sobre as suas expectativas iniciais e as
alcançadas, sobre o que idealizaram e o que se concretizou nas aulas e suges-
tões. Também será feito um questionário aos professores de música com as mes-
mas questões e outro com os demais professores das instituições sobre como
eles vêem o ensino de piano na escola. E descreverá o espaço em que as aulas
são realizadas. Espera-se uma conclusão ao final da pesquisa sobre a quanti-
dade de ofertas do ensino de piano e realização das mesmas.

6. O desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais

Musicalizando bebês
Celina Maydana & Maria de Fátima Machado Brasil
PALAVRAS-CHAVE: MUSICALIZAÇÃO, BEBÊS

Quando iniciamos o programa Musicalizando bebês nossa proposta foi dar


continuidade ao processo iniciado no período da gestação – Programa Música
e Gestação; realizado com as mães destes bebês. O Programa Música e
Gestação – Projeto Música-Mulher – faz o pré-natal semanal, e foi criado com
o objetivo de proporcionar um suporte técnico/físico/ psicológico às gestantes,
visando o fortalecimento do vínculo mãe-filho. Convém salientar que este
suporte está baseado na música, pela importância que ela tem no desenvolvi-
mento do ser humano como um todo. Esta constatação nos desafiou a incluí-la
neste processo, desde o momento em que a mãe recebe a notícia da gravidez.
Estamos trabalhando desde abril de 2004 com bebês a partir de três meses. Este
trabalho, além do processo de musicalização, visa a pesquisa referente a tudo
quanto foi realizado no período anterior (gestação): relaxamento, exercícios,
encontro com o bebê pela música, pela meditação, pelas conversas a dois, pela
preocupação em oferecer o melhor, pelo fato de entender o que é ser e não
simplesmente estar grávida, pela segurança encontrada, o tempo dedicado, a
importância do pai e da família em todo este processo, a tranqüilidade para o
parto, a amamentação e para os cuidados com o bebê. A resposta que cada
bebê tem com as músicas ouvidas e trabalhadas desde a gestação até o presente

vem nos surpreendendo: eles ouvem as músicas e é como se o mundo parasse
e só aquele som; reconhecido – importasse A atenção e o olhar se dirigem em
direção ao som, e enquanto não cessa, ficam como que hipnotizados. O
mesmo acontece quando as mães cantam. Também, temos relatos de calma e
tranqüilidade na hora do banho, no sono, sucesso na amamentação, especial-
mente quando estes são acompanhados por música. Para os bebês maiores de
oito meses, temos verificado respostas relacionadas a ritmo, fala, memória,
coordenação motora. Todas elas. Os resultados vão de encontro ao nosso prin-
cipal objetivo com o bebê: proporcionar a música como parte integrante de seu
desenvolvimento intra-uterino, de seu nascimento, do encontro com o mundo,
de suas alegrias, de seu lazer, de seu aprendizado, de sua vida. A música é uma
facilitadora na descoberta de um processo estético, e, o fará buscar mais e mais
sobre outras belezas, inclusive a sua própria beleza interior.

Autismo Infantil: como a Educação Musical


pode ajudar na integração social dessas crianças?
Giovana Moreira Di Bernardo – estudante, UFPR
PALAVRAS-CHAVE: AUTISMO, CRIANÇAS, MÚSICA

O autismo é um distúrbio do desenvolvimento humano que há seis décadas


vem sendo estudado pela ciência, mas ainda há muitas duvidas e perguntas
sem respostas dentro dessa síndrome. Existem muitos estudiosos que estão ten-
tando desvendar certos mitos sobre o autismo, mas por enquanto nada foi
aprovado para se ter certeza qual é o verdadeiro motivo que ocasiona essa
doença. Essa síndrome pode variar quanto à severidade com que afeta os
pacientes. Podem existir autistas com retardo mental, e autistas muito
inteligentes, por exemplo.
As principais características dessa síndrome é o isolamento social e a profunda
solidão. Crianças autistas têm uma dificuldade muito grande em se relacionar
com as outras pessoas, tendem a não desenvolver amizades. Há muita dificul-
dade em crianças autistas conectar-se ao mundo que as rodeia. Acredita-se que
essa doença começa no nascimento, mas só é reconhecido mais tarde. O
reconhecimento dos sintomas ocorre antes da criança completar 30 meses. O
autismo vai manifestando gradualmente, à medida que as seqüelas do isola-
mento tornam-se cada vez mais visíveis. Atualmente, existem muitos estudos
sobre como a musicoterapia ajuda a melhorar a vida de crianças que tem
autismo. Os musicoterapeutas usam a música como um meio para a qualidade
de vida dessas crianças. Nesses estudos foi comprovado o interesse dessas cri-
anças para com a música.
Esse trabalho ainda está em andamento e visa pesquisar e conhecer se a edu-
cação musical pode ajudar na integração social de crianças com o autismo, já
que a integração social é a maior dificuldade para quem tem essa síndrome.

Coleta de Ferramentas Musicais Avaliativas para a Cognição
Leonardo da Silveira Borne – UFRGS/ISM-São Leopoldo
Patrícia Danieli Schulz – ISM-São Leopoldo
Esther Sulzacher Wondracek Beyer – UFRGS

PALAVRAS-CHAVE: FERRAMENTAS AVALIATIVAS, MÚSICA E COGNIÇÃO,


DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

Estudos recentes (Bigand & Poulin-Charronnat, 2006; Hargreaves, 1996;


Kebach, 2002; Kebach, 2003) têm mostrado que o desenvolvimento musical de
um sujeito está intrinsecamente ligado ao seu desenvolvimento geral.
Entretanto, estes estudos praticamente não abordam profundamente um aspec-
to importante para educadores, pesquisadores e terapeutas: que ferramentas –
jogos, atividades, métodos – são utilizados nas avaliações dos processos men-
tais na música? Como elas devem ser empregadas e interpretadas?
É neste sentido que este projeto tem como objetivo geral, a partir da teoria do
desenvolvimento de Piaget e da sua pesquisa sobre percepção, coletar e criar
(quando se fizer necessário) jogos, atividades e/ou métodos musicais que sejam
efetivos como ferramentas avaliativas do desenvolvimento cognitivo geral de
um indivíduo e, tratando mais especificamente na área das artes, de seu desen-
volvimento musical.
O desenvolvimento musical de um sujeito não é apenas alcançado através de
orientação específica, permitindo, assim, que “pessoas sem formação musical
(formal) possam fazer apreciações sobre a estrutura musical de modo semel-
hante às de pessoas com formação específica” (Davidson, Howe and Sloboda,
1997, apud Maffioletti, 2000: 4). Beyer (1988) já afirmava há quase vinte anos
que uma abordagem cognitiva se fazia extremamente necessária para a edu-
cação musical, e, por extensão, a toda e qualquer prática musical (seja ela de
cunho pedagógico, social e, entre tantos outros, o terapêutico). Ressalta-se que
“música é construção, aprendizagem, vivência, elaboração” (Lino, 2005: 172).
Escassas são as pesquisas nessa área. Estudos (Beyer, 1988; Beyer et alii, 2005;
Kebach, 2003; Lino, 2005) demonstraram que ainda existem poucos materiais
disponíveis; o que se tem mais presente em medição de nível de desenvolvi-
mento são avaliações feitas a partir da representação gráfica derivada de uma
intervenção musical ou aquelas que avaliam outros aspectos que não o cogni-
tivo. Como exemplos menciono avaliações do emotivo, da interação social, dos
níveis de ansiedade e estresse, etc. Como implicações, ter-se-ia, e.g., a inclusão
de ferramentas musicais em avaliações cognitivas feitas em pesquisas, levanta-
mentos, testes, etc, lembrando-se do dito popular, muitas vezes a música
“chega a lugares onde a fala e o visual não alcançam”.
Ainda neste estudo, é bastante importante desenvolver uma reflexão quanto às
investigações de Piaget sobre a percepção. Estas pesquisas de Piaget tomam
como base os estímulos visuais, sendo que há indivíduos que possuem o canal

auditivo como principal fonte de interação com o mundo. Seria, portanto,
muito importante levantar ferramentas que estudem o processo perceptivo
auditivo no indivíduo, segundo a teoria de Piaget.
No caso de outros campos e áreas, como a musicoterapia, tem-se que as ferra-
mentas musicais avaliativas ocasionariam possibilidade de constante avaliação
e auxiliariam na chamada “testificação musical”, prática que faz um levanta-
mento do histórico pessoal, das capacidades e dos conhecimentos em música
(Barcellos, 1999; Baranow, 1999; Davis et alii, 1999); já nas pesquisas feitas no
campo da psicologia da música, tal abordagem torna-se de fundamental valor
(Sloboda 1996), uma vez que todas serão testadas em diversas populações e
meios, dentro da medida do possível, construindo uma credibilidade em torno
de tais atividades/jogos/métodos.
Quanto aos procedimentos metodológicos, será realizado levantamento biblio-
gráfico, além de observações e de práticas de jogos, atividades e/ou métodos
musicais. Paralelamente, será feita uma análise verificando a viabilidade destes
virem a ser ferramentas avaliadoras do nível de desenvolvimento de um sujeito.
Ao término desta primeira etapa, serão organizadas estas ferramentas de modo
a averiguar se alguma área da avaliação cognitiva ficou com “lacunas” ou com
poucas alternativas de atividades. Tal etapa é essencial, pois poderá implicar
posteriormente em iniciar o processo de criação de novas ferramentas.

Atenção visual em músicos e não-músicos: um estudo comparativo


Ana Carolina Rodrigues, Leonor Bezerra Guerra
e Maurício Alves Loureiro – UFMG
PALAVRAS-CHAVE: NEUROPLASTICIDADE, ATENÇÃO VISUAL, TREINAMENTO MUSICAL

A influência da música sobre a função cerebral tem sido alvo da curiosidade de


neurocientistas e músicos desde a década de 1990. Existem várias evidências
que apontam para a existência dos processos de neuroplasticidade cerebral,
tanto funcional quanto anatômica, decorrentes do treinamento musical, os
quais podem produzir diferenças comportamentais entre músicos e não-músi-
cos.
Pesquisas sugerem uma influência do treinamento musical em capacidades
cognitivas não-musicais em crianças, mas poucos estudos têm sido realizados
para investigar tal influência em adultos. Destes, alguns trabalhos têm relatado,
direta ou indiretamente, a existência de capacidades visuais aumentadas em
músicos. Entretanto, deve-se ressaltar que os estudos ainda não são conclu-
sivos, considerando tratar-se de um campo de pesquisa recente. O objetivo
geral deste trabalho é a investigação da capacidade de atenção visual em
músicos e não-músicos adultos.
Dentre os objetivos específicos inclui-se verificar se há relação entre a capaci-
dade cognitiva e dois fatores relacionados à experiência musical: idade de iní-

cio dos estudos musicais e tempo de prática musical. O grupo dos músicos será
composto por integrantes da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da
UFMG e o dos não-músicos, por estudantes de graduação ou pós-graduação da
mesma universidade. Para a avaliação da capacidade de atenção visual, após
revisão de literatura e discussão com diferentes profissionais, desenvolvemos a
metodologia que será utilizada na pesquisa, a qual consistirá de questionário e
testes neuropsicológicos. O questionário de identificação fornecerá, além de
dados básicos, informações que permitam excluir a possibilidade de
transtornos de atenção. Serão aplicados os testes neuropsicológicos “Trail
Making” e subteste do “WAIS III”, capazes de verificar a capacidade de atenção
visual, principalmente para que sensibilidade dos mesmos seja avaliada. O
principal teste a ser aplicado será o “Multiple choice reaction time”, que se
encontra disponível no aparelho “Multipsy 821”, um microprocessador que faz
o registro e a análise de diferentes parâmetros psicológicos e psicofisiológicos.
Neste teste, o indivíduo deve responder, por meio de ações motoras específi-
cas, a vários estímulos luminosos que são apresentados.
Concomitantemente à apresentação dos estímulos luminosos, será projetado
um vídeo, em monitor posicionado em frente ao sujeito, o qual apresentará
uma figura geométrica em diferentes intervalos de tempo, para que o indivíduo
informe verbalmente a ocorrência da mudança no momento em que a perce-
ber. Portanto, como esta tarefa envolve a capacidade de atenção visual dividi-
da, ao contrário dos testes anteriormente citados, será possível comparar o
desempenho dos indivíduos em tarefas mais e menos complexas. Testes infor-
mais já realizados nos permitiram maior precisão na especificação dos dados a
serem coletados, além de padronização da metodologia em relação às
instruções que precedem os testes e às condições do ambiente experimental
(posição
do equipamento, isolamento acústico). A investigação da capacidade de
atenção visual em músicos e não-músicos poderá contribuir para aumentar o
conhecimento das diferenças entre os dois grupos e ressaltar a existência de
benefícios do treinamento musical em capacidades cognitivas não-musicais.
Evidências que apontem para um maior desenvolvimento de tais capacidades
em músicos poderão ser consideradas mais um argumento para a educação
musical em diferentes faixas etárias.

Significados e Sentidos da Música: “Re-criando” e “compondo” entre a


Psicologia Histórico-Cultural, Música e Musicoterapia
Patrícia Wazlawick – UFSC
PALAVRAS-CHAVE: SIGNIFICADOS E SENTIDOS, MÚSICA,
PSICOLOGIA SOCIAL DA MÚSICA

O presente trabalho é um recorte teórico interdisciplinar que tece uma inter-


face entre temáticas da perspectiva da Psicologia histórico-cultural, da Estética

musical e da Musicoterapia. Tem como objetivo discutir a construção da sig-
nificação musical em termos dos significados e sentidos da música, produzidos
por sujeitos em relação, ao contemplar a discussão interdisciplinar entre as
áreas acima descritas. A fundamentação teórica para tal lança mão dos con-
ceitos de significados e sentidos, sob a perspectiva da Psicologia Histórico-
Cultural, principalmente com a contribuição de L. S. Vygotsky, e estende estes
conceitos para a compreensão da significação musical (tendo em vista ampliar
esta compreensão ao situá-la no contexto sócio-histórico e cultural), ou seja,
significados e sentidos da música com as idéias dos musicoterapeutas
noruegueses Even Ruud e Brynjulf Stige, em base à filosofia de Ludwig
Wittgenstein.
A música é sempre um fazer com os outros. É relação. Ela é construída pela
ação do sujeito em relação no contexto histórico-cultural, por meio da utiliza-
ção cultural e pessoal dos sons. A música age sobre a cultura que lhe dá forma
e de onde ela deriva, ao mesmo tempo em que se insere na estrutura dinâmica
onde ela própria se formou. Está inserida nas várias atividades sociais, donde
decorrem múltiplos significados. A cultura dá os referenciais, bem como os
instrumentos materiais e simbólicos que cada sujeito se apropria para criar,
tecer e orientar suas construções, neste caso, as atividades criadoras e musicais.
Portanto, quando se vivencia a música se relaciona com a matéria musical em
si (resultado da relação de seus elementos) e com toda uma rede de significa-
dos construídos no mundo social, seja nos contextos coletivos, seja nos con-
textos singulares, enfim, junto dos contextos histórico-culturais de sujeitos.
São nas vivências em situações concretas permeadas pela dimensão afetiva que
o sujeito encontra a “utilização viva” da música. Estas situações dão margem
para a construção dos sentidos da mesma, em toda esta trama, os quais são,
principalmente, constituídos por emoções, sentimentos, desejos, vontades,
interesses, motivações dos sujeitos. Os significados e sentidos demonstram a
utilização viva da música e a constante movimentação de sujeitos implicados
com a atividade musical, que constituem esta atividade enquanto ela também
se faz constituinte deles. A partir da contribuição deste olhar, pode-se com-
preender, em termos de implicações que esta discussão produz, que a música
terá o seu significado, assim como a linguagem, a partir de seu uso, a partir do
contexto, do jogo e dos jogadores particulares que produzem nestes contextos
de jogos de sons, de vibrações, de ondas sonoras, de canções e músicas a sua
utilização, os seus significados e sentidos. A música teria o seu significado local
em nada descolado do seu contexto.
O significado como uso, encontrado na utilização polissêmica da música, é um
significado social e também singular. Um significado construído e criado nas
relações e ações pessoais e sociais condizentes com o que é vivido, experen-
ciado e condizente com os sentidos singulares produzidos pelos sujeitos em
relação e em atividade, em meio ao contexto sócio-histórico e cultural de vida.

O Canto Coral no Contexto Escolar
Jucélia Cristina Ribeiro – Escola de Música e Belas Artes do Paraná
PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA NA ESCOLA, BUSCA DE PRÁTICAS COM O CANTO
CORAL, DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES

Neste trabalho de caráter qualitativo e interpretativo, foram problematizadas


questões referentes ao trabalho do Canto Coral no contexto escolar no proces-
so ensino aprendizagem e desenvolvimento de habilidades e competências do
aluno enquanto sujeito de sua aprendizagem. Nossa primordial intenção é de
criar o espaço reflexivo sobre o Canto Coral, pois percebemos que o sujeito
aprende e adquire competências participando e que como sujeito ativo do con-
texto escolar é envolvido em uma experiência educativa em que o processo de
conhecimento está integrado às práticas. Sendo assim, diante de tais argumen-
tos estabelecemos algumas questões que nortearam nossa reflexão bibliográfi-
ca interpretativa. a) É possível desenvolver a prática do Canto Coral com os
alunos de diferentes níveis sociais e culturais no contexto escolar? b) O ser
humano é capaz de desenvolver habilidades e adquirir competências através
do ato de ensinar e aprender na prática do Canto Coral de forma concomitante
a construção de sua historicidade? O trabalho monográfico no ambito lato
sensu remeteu–se à metodologia interpretativa de caráter bibliográfico-qualita-
tivo, sendo realizada a análise de realidades do Canto Coral em um coro infan-
til que nos deu abertura a múltiplas reflexões. Assim, analisamos como viven-
ciamos a música no nosso dia-a-dia e como é tratada no contexto escolar. Além
disso, trabalhamos o canto coral como prática social e mediação do desen-
volvimento humano, considerando a música como atrativo potencial para a
atividade humana e tratando a criação musical como prática social cultural-
mente produzida e sua intervenção no desenvolvimento humano. Indicamos,
desta forma, a reflexão sobre a prática no canto coral na escola como pressu-
posto para novas possibilidades de aprendizagem para seus participes. Para
pautar este trabalho apresentamos o relato de experiências, dando significado
ao canto coral no contexto escolar, com posterior análise e reflexão de expe-
riências vivenciadas em um coro infantil. Trabalhamos em cima de pressupos-
tos que revelam o sentido atribuído para a musicalidade na escola, bem como
suas relações socio-educacionais. Assim, a partir das análises e reflexões reali-
zadas, concluimos o trabalho abordando a importância dentro do contexto
escolar da prática do Canto Coral destacando aspectos relevantes em todo o
percurso.
Ao concluir este trabalho investigativo e respectivas reflexões teórico-práticas,
ressaltamos que a escola no contexto atual está voltando seus olhos a si mesma
e percebendo a necessidade de uma adequada metodologia de trabalho para
que seu educando desenvolva-se com maior segurança, segundo parâmetros de
qualidade, dando abertura a outras metodologias.
A escola, enquanto espaço do saber por excelência, deve repensar sua prática
pedagógica, bem como seu planejamento, sua metodologia de trabalho e ações

desenvolvidas no contexto escolar. Desta forma o Canto Coral poderá tornar-se
uma ferramenta eficaz e com rico significado, exercendo uma cumplicidade na
aprendizagem dos alunos.
Esperamos, enfim, que este trabalho venha ao encontro de grandes incertezas
e que contribua de alguma maneira para mudanças de atitudes no contexto
escolar formal ou informal, promovendo a prática do Canto Coral e levando
alternativas de desenvolvimento e de compreensão do mundo em que vivemos
e atuamos.

O desenvolvimento vocal de crianças de 2 a 6 anos de idade


Vivian Dell'Agnolo Barbosa – estudante, UFPR
PALAVRAS-CHAVE: DESENVOLVIMENTO VOCAL, CANTO, MODELOS TEÓRICOS

Este trabalho tem a finalidade de mapear o desenvolvimento do canto em cri-


anças de dois a seis anos de idade, para verificar a validade de alguns modelos
de desenvolvimento vocal propostos por pesquisadores estrangeiros, como
Swanwick e Tillman; McDonal e Simons e também avaliar se estes são válidos
no caso das canções imitativas e espontâneas. A presente pesquisa, ainda em
andamento, visa verificar se alguns fatores, como por exemplo, a televisão, o
gosto musical dos pais, o tempo de permanência na escola e a escuta musical
exercem quaisquer influências sobre o desenvolvimento vocal e a escolha de
repertório das crianças. As vozes das crianças também estão sendo gravadas,
para fins de análise.
Para isso, pedimos e elas que cantem três canções: 1) Parabéns a você (canção
obrigatória para todas as crianças); 2) Canção de livre escolha; 3) Canção imi-
tativa, com melodia e ritmo simples. Algumas gravações já foram coletadas e
estão sendo analisadas. Além disso, também foi elaborado um questionário
para obtermos informações musicais sobre as crianças, suas famílias, sua vida
escolar e experiências musicais cotidianas. Três pessoas da área da música
serão convidadas para ouvirem os trechos gravados e atribuírem a eles notas de
0 (zero) a 10 (dez), para dar fidedignidade à pesquisa e avaliar o modelo escol-
hido pelas pesquisadoras. Os dados estão sendo analisados e os resultados pre-
liminares serão apresentados durante o encontro, com implicações para a edu-
cação musical.

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