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LULISMO

Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão


da Nova Classe Média Brasileira
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Fabrício Maciel Michel Zaidan
Rudá Ricci

LULISMO
Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão
da Nova Classe Média Brasileira

De como o discurso anti-institucionalista


dos anos 80 deu lugar ao líder da conclusão da modernização
conservadora em nosso país

2a Edição
Ampliada

Brasília, 2013
© by Fundação Astrojildo Pereira e Contraponto, 2013

Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro,


por quaisquer meios, sem a autorização da editora.

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Projeto gráfico, produção e edição final: Editorial Abaré


Capa: Estúdio L&L (Cláudio de Oliveira)

FICHA CATALOGRÁFICA

R583l Ricci, Rudá.

Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova


Classe Média Brasileira / Rudá Ricci – Brasília : Fundação Astrojildo
Pereira / Rio : Contraponto, 2013.

314p. 22cm / 2a edição ampliada

ISBN: 978-85-89216-45-6

1. Partidos Políticos; política e governo. 2. Movimentos sociais.


3. Classes sociais. 4. Sindicalismo. I. Título. II. Autor.

CDU 305.5
324
331.88
Moreira César freia o cavalo e passa um olhar pelas
habitações de barro, cujo interior avista através de portas
abertas ou arrancadas. De uma delas emerge uma mulher
desdentada, com uma túnica esburacada que deixa ver a pele
escura. Duas crianças raquíticas, olhos vidrados, uma delas
nua, a barriga inchada, agarram-se ao seu corpo.
Olham espantadas os soldados. Moreira César,
do alto do cavalo, continua observando-as: parecem a
encarnação do desamparo. Seu rosto se contrai em uma
expressão em que se misturam a tristeza, a cólera, o rancor.
Sem tirar os olhos delas, ordena a uma das escoltas:
– Deem-lhes de comer.
Vira-se para seus lugares-tenentes:
– Estão vendo em que estado mantêm o povo de seu país?
Há vibração em sua voz e seus olhos fuzilam.

A Guerra do Fim do Mundo, Mario Vargas Llosa


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO . . . . . . . . . . . . . . 9


APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO. . . . . . . . . . . . . . 25

PARTE I: O LULISMO
Capítulo 1. O lulismo em seu esboço . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Capítulo 2. O lulismo em sua forma acabada. . . . . . . . . . . . . 93
Capítulo 3. A gestão Lula: inventário da literatura
especializada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Capítulo 4. Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio. . . 189

PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS


À NOVA CLASSE MÉDIA
Capítulo 1. Os limites do anti-institucionalismo. . . . . . . . . . . 225
Capítulo 2. Da gestão participativa à estatalização. . . . . . . . . 263
Capítulo 3. Desafios recentes da educação popular no Brasil. . . 287
APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Em junho de 2013, o Brasil ingressou no século XXI no que tange


às práticas sociais e políticas. Já havíamos presenciado mobilizações
de massa em toda Primavera Árabe, em algumas ações do Occupy e
eventos na Europa (em especial, na Espanha, inicialmente batizado
como Movimento dos Indignados ou Movimento do 15-M, nome dado
em função do dia em que começaram os protestos que avançaram
massivamente a cada dia mais nesta semana). Talvez tenhamos tido
algo do gênero na Argentina, com o movimento dos piqueteros e
as Assembleias Populares, ainda nos anos 1990 e que avançam nos
primeiros anos do novo século.
No Brasil, contudo, somente em junho soubemos o que são as
mobilizações convocadas pelas redes sociais. Ainda que nomear as
mobilizações de junho como oriundas das redes sociais possa resvalar
num reducionismo impressionista, a relação parece promissora. Como
as redes sociais, as relações políticas que se forjaram nas manifesta-
ções de junho, envolvendo no seu ápice 1,2 milhão no dia 20,1 foram
marcadas pela relação quase individualizada entre quem convocava e
quem aderia às manifestações. Sem líderes, estruturas organizacionais
sólidas ou palpáveis, ou convocatória unificada, cada um aderia a
partir de sua bandeira ou reivindicação, numa autorrepresentação que
transformou as ruas em um carnaval político, com tantas personas e

9
LULISMO | Rudá Ricci

demandas fossem necessárias, todos acolhidos porque se tratava não


apenas de um espaço público, mas de um espaço aberto, uma Ágora
pós-moderna. Não havia, evidentemente, espaço de destaque para as
organizações políticas do mundo moderno, aquelas dos séculos XIX e
XX. Alguns identificaram sinais de fascismo que colocavam em risco
a Ordem. Outros acreditaram num primeiro momento que se tratava
de um sonho de uma noite juvenil, mas que poderia render bons fru-
tos políticos na medida em que colocasse em xeque o governante de
plantão. Alguns dias mais e todos perceberam que se tratava de uma
ácida crítica que corroía todo sistema de representação política do país.
O mês de junho foi sucedido por um Dia Nacional de Luta con-
vocado pelas centrais sindicais. Nada mais revelador. E nada mais
distinto que o nosso Junho de 2013. Uniformizados, munidos com
carros de som, bandeiras e banners, bottons e bonés, os manifestan-
tes do dia 11 de julho começaram o dia bloqueando rodovias. O país
parecia quase indiferente. Tratava-se do dia das organizações de re-
presentação do século XX. Eram as centrais sindicais e seus partidos
que comandavam aquele dia. Há anos, deixaram as ruas para negociar
suas agendas diretamente nos palácios dos governos. Comandavam
toda estrutura de poder vigente, do controle dos recursos do Fundo de
Amparo ao Trabalhador aos fundos de pensão, passando pelo assento
nos conselhos de gestão de empresas estatais e câmaras setoriais.

Nada mais distinto que junho e julho


Junho tinha criticado duramente toda institucionalidade política,
todo sistema de representação formal do país. Todos governos tiveram
seus índices de aprovação em queda livre. As pesquisas realizadas
no interior das manifestações de junho revelavam uma situação
ainda mais aguda: votos brancos e nulos apareciam com destaque
ao lado de nomes que sequer eram candidatos às eleições de 2014.
Juntos, totalizavam mais de 50% das intenções de voto. Não por ou-
tro motivo, dirigentes partidários, governantes, parlamentares e até

10 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

militares revelaram muita tensão e indecisão naquelas três semanas


de rebeldia juvenil.
Já o dia 11 de julho se revelou um ato político em plena norma-
lidade da vida social, previsível do início ao fim do dia.
Se todo sistema de representação formal e estrutura institucio-
nal política tinham sido colocados em xeque, evidentemente que o
sistema de poder dos últimos dez anos, que denominei de lulismo,
também revelou sua fraqueza. Pela primeira vez, desde 2005, o núcleo
de poder demonstrava descompasso com valores e desejos das ruas.
O abalo, contudo, poderia ser previsto pela sua própria natureza.
O lulismo se revelou um fordismo tardio que sempre dependeu da
figura da liderança carismática, mas com forte capacidade de lideran-
ça de toda estrutura de representação formal do país (de partidos a
estruturas sindicais, além de organizações da sociedade civil). Por ser
tardio, o fordismo enredado neste período não tinha o lastro econô-
mico e financeiro quando da origem do fordismo norte-americano ou
mesmo o fordismo europeu. O fordismo forjado pelo lulismo balan-
çou ao sabor das crises cíclicas da economia internacional, primeiro,
sentidas com maior impacto em 2008; mais tarde, já na gestão Dilma
Rousseff, com a desaceleração das importações europeias e chinesas.
O comércio bilateral Brasil-China entre 2000 a 2007 aumentou
dez vezes, passando de US$ 2,31 bilhões para US$ 23,37 bilhões.
A China se tornou o terceiro maior parceiro comercial do Brasil em
2005. Este é justamente o período de bonança que se inaugura na
gestão. A China se tornou o terceiro comprador de produtos brasileiros
e o segundo fornecedor do país. Em 2011, a China já figurava como
principal importador de produtos brasileiros (ver figura a seguir).
Contudo, a qualidade das exportações do Brasil para este importante
parceiro foi sempre limitada às commodities que, sabidamente são
de baixo valor agregado.

Apresentação 11
LULISMO | Rudá Ricci

Participação % dos principais países de destino


das exportações brasileiras
Valor Part. % dos principais países de Var. %
Países
(US$/milhões) destino das exportações brasileiras 11/10

China 44.315 17,3% 43,9%

Estados Unidos 25.805 10,1% 33,7%

Argentina 22.709 8,9% 22,6%

Países Baixos 13.640 5,3% 33,4%

Japão 9.473 3,7% 32,7%

Alemanha 9.039 3,5% 11,1%

Itália 5.441 2,1% 28,5%

Chile 5.418 2,1% 27,2%

Reino Unido 5.230 2,0% 12,8%

Espanha 4.706 1,8% 20,9%

Fonte: Secex/MDIO
Análises: Instituto Ilos

12 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

Segundo análise do governo federal2


Entre 2000 e 2003, a elevação das exportações ocorreu em ritmo
mais acelerado do que nas importações, com expansão média anual
de 61% e de 20,7% respectivamente, o que permitiu gerar saldos
comerciais crescentes. Entre 2003 e 2007, observa-se, no entanto,
queda na taxa média anual de expansão das exportações para 24,1%,
enquanto as aquisições de bens chineses ampliaram-se em 55,7% e
ocasionaram a redução de superávits, que culminou em déficit de US$
1,9 bilhão em 2007, após seis anos consecutivos de saldos comerciais
positivos. Esta tendência se confirma também para o ano de 2008;
de janeiro a abril a relação comercial bilateral já registrou déficit de
US$ 2,2 bilhões.
Vários estudiosos chegaram a sugerir que o ciclo das commodities
iniciado em 2008 teria chegado ao fim. Esta é a análise do coordena-
dor do Centro de Economia Internacinal da Fundação Getúlio Vargas,
impactando sobremaneira o crescimento do PIB brasileiro. Com efei-
to, no primeiro trimestre de 2013 já se pronunciava que o ciclo de in-
vestimentos iniciado no final da primeira gestão Lula revelava fadiga.
A Associação de Comércio Exterior do Brasil sugeria déficit da ba-
lança comercial brasileira com a desaceleração da economia mundial
e, principalmente, da China, em especial, no segundo semestre. Em
2012, o saldo já tinha sido o pior registrado nos dez anos anteriores,
cravando US$ 19,4 bilhões.
Sem o líder carismático e sem a locomotiva chinesa, o modelo lu-
lista se tornou errático, instável e, em muitos momentos, ingovernável.
A crise política, contudo, não parece momentânea e nem mesmo
atinge apenas um governo, mas todo sistema político. O que sugere
que nos próximos anos, sem alteração profunda do sistema de repre-
sentação brasileiro, novas manifestações de rua se sucederão.
A reedição deste livro bebe nesta torrente. O lulismo como
reinvenção do estatal-desenvolvimentismo terá que se reinventar

Apresentação 13
LULISMO | Rudá Ricci

e de maneira mais radical e sustentável que da primeira vez. Caso


contrário, será vítima do aprofundamento da crise de legitimidade
política que inaugurou este século.
Mas é preciso citar outras motivações que levaram à esta se-
gunda edição.
Desde a publicação da primeira edição deste livro, em 2010, os
estudos sobre as gestões de Luís Inácio Lula da Silva proliferaram.
Numa das vertentes, talvez a mais fecunda no período, o termo
lulismo se consolidou como conceito. Inicialmente, o termo nascia
das comparações com o getulismo varguista dos anos 1930 e 1950.
Alguns autores, como Luiz Werneck Vianna, insistiram neste para-
lelo, em especial, naquilo que tinham de transformismo, revolução
passiva ou mesmo práticas de tipo populista. Outra corrente analítica
passou a identificar na base social do lulismo – majoritariamente
constituída por segmentos sociais menos abastados da classe traba-
lhadora que se localizavam na fronteira entre o lumpesinato e traba-
lhadores estáveis e com emprego formal – a base de sustentação do
que seria a lógica do lulismo. Este é o caso dos estudos produzidos
por André Singer (USP), que foram se dirigindo para a hipótese deste
fenômeno ter contornos bonapartistas. Tal proposição estimulou um
profícuo debate acadêmico. Marcos Nobre (Unicamp) sugeriu que o
lulismo não se constitui em um conceito crítico (dado que se limita
ao personagem central deste fenômeno e não incorporar contradi-
ções e contrapesos que definem sua dinâmica interna e externa) e
que seria, antes de mais nada, um subproduto do que denomina
de peemedebização ou “condomínio peemedebista” da política na-
cional. Trata-se, sugere o autor, de uma lógica política que procura
administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade,
compondo e articulando interesses aparentemente opostos, formando
um bloco político que sustentaria um governo de união nacional.
Tal lógica teria se formatado ao longo dos anos 1980. Nobre sugere
uma lógica política privatista, não pública, “construída com base

14 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

em um discurso inteiramente anódino e abstrato, sem inimigos, cujo


sentido mais importante é garantir o sistema de ingresso universal
e de vetos seletivos [afirmando-se a partir da] visão realista de que
a democracia não passa do exercício da capacidade de bloquear o
oponente, não de enfrentá-lo abertamente no espaço público”.3
Outro ensaio que dialoga com a proposição de André Singer foi o
de Rui Braga (USP, editor da revista Outubro, do Instituto de Estudos
Socialistas). O autor dialoga com o conceito de subproletariado, su-
gerido por Singer como base social e eleitoral do lulismo, oferecendo
outra conceituação, o de precariado.
Há, portanto, uma gama significativa de estudos e ensaios que
gravitam ao redor da compreensão do fenômeno lulismo.
O debate aberto propicia uma visada mais rigorosa sobre o
conceito central deste livro, do lulismo como engenharia política
estatal fundada na inserção social, pelo consumo, de amplas massas
marginalizadas até então da vida social, política e econômica do país.
Uma primeira questão que emerge dos estudos recentes sobre
o fenômeno é o conceito de “nova classe média”, tal como utilizado
pelos estudos de Marcelo Neri e replicado neste livro. Com efeito,
o conceito de classe empregado nos estudos de Neri se limitou à
renda familiar analisada o que seria, portanto, mais adequado ser
identificado como estrato de renda. Marcio Pochmann produziu
a crítica mais contundente ao emprego do conceito de classe que
sugeriram a emergência de uma nova classe média brasileira. 4 O
autor denominou esta classificação como “abordagem rudimentar e
tendenciosa a respeito da existência de uma nova classe média” que
busca “estabelecer para determinado estrato da sociedade – agrupado
quase exclusivamente pelo nível de rendimento e consumo – o foco
das atenções sobre o movimento geral da estrutura social do país”.5
A tese do autor é que a partir de 2004 alterou-se a trajetória de queda
da participação dos salários na renda nacional ocorrida na década
anterior, aumentando o número de trabalhadores ocupados na base

Apresentação 15
LULISMO | Rudá Ricci

da pirâmide social, reforçando o contingente da classe trabalhadora


e não o surgimento de uma nova classe média. Pochmann admite
que este segmento emergente das classes populares apresente-se
despolitizado, individualista e aparentemente racional.6 Em suma,
tratar-se-ia da ampliação da base da pirâmide social brasileira que se
renova neste período inaugurado em 2004.
À esta primeira provocação sobre o uso do conceito de classe
média, surgiram outros estudos que renomearam a base social do
lulismo. Dentre outros, destaco as produções de André Singer e Ruy
Braga.7
Singer sugere que, a partir de 2006, o eleitorado petista se des-
locou para os estratos de mais baixa renda, motivados pelas políticas
de transferência de renda e aumento real do salário mínimo desenca-
deados pela gestão Lula, naquilo que denominou de “realinhamento
eleitoral” do PT, provocado pela agenda contraditória, mas inclinada
ao conservadorismo dos governos lulistas.8 Em suas palavras, à
página 16:
O pivô do lulismo foi uma parte a relação estabelecida por Lula
com os mais pobres, os quais, beneficiados por um conjunto de
políticas voltadas para melhorar as suas condições de vida, retri-
buíram na forma de apoio maciço e, em algumas regiões, fervo-
roso da eleição de 2006 em diante. Paralelamente, o “mensalão”
catalisou o afastamento da classe média, invertendo a fórmula de
1989, quando Lula foi derrotado exatamente pelos mais pobres,
que tinham votado em Collor.

O autor, a partir de então, evolui para identificar esta base social


como subproletariado, ou seja, uma fração da classe trabalhadora que
não constrói, desde si, suas próprias formas de organização em virtude
de sua precária condição de vida e inserção no mercado de trabalho.
Estariam aqui incluídas as ocupações urbanas não qualificadas, semi-
qualificadas e subalternas do trabalho, concentradas na construção
civil e setor de serviços pessoais. Singer destaca se tratar de segmento

16 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

social marcado pela “baixíssima renda”, localizando-a no estrato de


renda familiar mensal abaixo de dois salários mínimos. A intervenção do
Estado em seu benefício teria reforçado seu ideário refratário à qualquer
mobilização social ou conflito com a ordem. Tratar-se-ia, portanto, de
uma base social conservadora. Esta leitura é interpretada pelo autor
como caldo de cultura que teria sustentado um caráter bonapartista
ao lulismo. A despeito do uso arbitrário do conceito de bonapartismo,9
Singer sustenta que não se trata de uma nova classe média que daria
sustentação ao lulismo, mas das frações mais empobrecidas, desorga-
nizadas e conservadoras da população nacional.
Ruy Braga, por seu turno, questionou o conceito de subprole-
tariado como base de sustentação do lulismo. Para tanto, constrói o
conceito de precariado, ou seja, o proletariado precarizado, fração da
classe trabalhadora que excluiria tanto o lumpensinato, quanto a po-
pulação pauperizada, esta última, formada pela população indigente,
acidentada, de doentes e incapacitados ao trabalho.10 O precariado
incluiria a população flutuante (trabalhadores ora atraídos ora exclu-
ídos pelas empresas), a população latente (jovens trabalhadores não
industriais à espera de oportunidade para deixar setores tradicionais,
em especial, de natureza rural) e a população estagnada (trabalhadores
que ocupam funções deterioradas e mal pagas, marcados por condição
de vida subnormais de existência). O autor, portanto, elimina desta
conceituação os segmentos mais fragmentados e excluídos da classe
trabalhadora, mas também os setores mais profissionalizados desta
classe. Em seguida, Braga propõe a seguinte periodização do que seria
a construção do desenvolvimento fordista periférico do Brasil: a) regu-
lação autoritária, no final dos anos 1970; b) regulação neopopulista,
no período seguinte à redemocratização do país (fundado na proposta
de pacto social com o novo sindicalismo); c) regulação neoliberal,
do período Collor (na verdade, pós-fordista) e; d) transformismo sob
hegemonia do lulismo. Trata-se do itinerário do que o autor sugere
ser nosso “fordismo periférico”.

Apresentação 17
LULISMO | Rudá Ricci

No balanço que o autor faz da análise deste último período, sua


crítica se concentra à limitação da expressão política do proletariado
à sua participação eleitoral (que despejaria parte significativa de seus
votos em Lula, em especial na sua reeleição), sugerindo uma relação
passiva desta classe social à liderança carismática.11 A consequência
desta crítica leva o autor a uma leitura prudente em relação à capa-
cidade de liderança popular do lulismo. Sustenta o autor:
A transformação do “classismo prático” em um reformismo
plebeu sindicalmente refratário à colaboração com as empresas
e construído na luta pela efetivação e ampliação dos direitos
trabalhistas por meio da crença no poder de decisão das bases
é o objeto deste livro. E, a despeito da relativa “satisfação”
manifestada nas últimas eleições presidenciais, a reconstrução
sociológica da formação e da trajetória dessa fração de classe
mostrará que, apesar da atual estabilidade do modo de regulação
proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista
encontra-se assentada em um terreno historicamente movediço.

Os estudos antes citados descortinaram um novo campo de


análise que nos obrigaram a incluir algumas advertências, cautelas e
complementos nesta segunda edição.12
A primeira advertência é o uso do conceito de nova classe mé-
dia que, quando da primeira edição, foi empregado como substrato
para a análise da mobilidade de renda que se apresentava no período
de conformação do lulismo. A despeito da crítica sobre a confusão
entre conceito de classe social com estratos de renda, a série histó-
rica disponível que registrava a evolução de renda era a trabalhada
por Marcelo Neri, principal autor que sustentava o conceito de nova
classe média. Não era objetivo da primeira edição entrar no mérito
do conceito, mas observar a mudança de comportamento de amplos
segmentos sociais, cujas famílias tinham sido historicamente margi-
nalizadas do mercado e socialmente e que, naquele período, haviam
sido incluídos e valorizados pelo consumo. A inclusão pelo consumo
se constituía, portanto, na senha para compreensão do deslocamento

18 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

social e político que o lulismo gestava a partir de um novo projeto


estatal-desenvolvimentista.
Faz-se necessário, contudo, admitir que não houve no período
analisado a configuração de uma nova classe média, e sim a renda
percebida por amplos segmentos da classe trabalhadora, ainda deter-
minada pelas relações sociais de produção que conformam os limites
de sua mobilidade e poder, assim como as contradições inerentes às
relações entre esta e as demais classes sociais.
Por uma questão de honestidade intelectual e por não alterar
as teses sustentadas ao longo deste livro, preferimos manter o corpo
do texto, sem alterações, tal como apresentado na primeira edição.
No entanto, um segundo campo analítico aberto nos últimos
dois anos nos obrigou a incluir um novo capítulo. Trata-se da ten-
tativa de superação de apresentar o conceito de lulismo de maneira
acrítica, fincado nas características do personagem político que li-
derou o fenômeno em tela. O lulismo não se conformou como uma
ideologia, mas como uma engenharia política que engendrou uma
versão peculiar do estatal-desenvolvimentismo brasileiro. Por ser
uma engenharia política de natureza gerencial, não forjou uma ide-
ologia mobilizadora ou que definisse uma identidade política nítida.
Ao contrário, a lógica gerencial e a intervenção estatal formatada fo-
ram desmobilizadoras da sociedade civil. O pacto desenvolvimentista
que se insinuou, em especial, a partir de meados da primeira gestão
Lula, “estatalizou” a dinâmica social brasileira, conceito empregado
por Claus Offe para denominar a dependência social em relação à
regulação estatal, diminuindo os graus de autonomia, controle social
sobre políticas públicas e criatividade da sociedade civil.
Na tentativa de solução do impasse conceitual causado entre a
análise do personagem criador com o fenômeno criado, incluímos o
capítulo dedicado à apresentação do “fordismo tardio” construído
ao longo do segundo mandato de Lula e que conformou os limites e
tensões da gestão Dilma Rousseff.

Apresentação 19
LULISMO | Rudá Ricci

O fordismo lulista, por ser tardio, não se constituiu sobre as mes-


mas bases históricas e produtivas do modelo rooseveltiano, muito me-
nos do fordismo europeu. Ao contrário, o fordismo enquanto modelo de
regulação socioeconômica estatal, entrou em colapso no final dos anos
1970. O ciclo de desenvolvimento mundial em que o fordismo lulista se
assentou era exatamente oposto ao da implementação original, o que
o arremessou num panorama de grande instabilidade internacional.
O momento emblemático da natureza instável do fordismo tardio
brasileiro foi aquele aberto pela “crise do subprime” norte-americano,
iniciado em 2006, a partir da quebra de instituições de crédito dos
Estados Unidos, e que tiveram em 2008 seu momento mais agudo em
virtude da irracionalidade dos empréstimos hipotecários de alto risco
concedidos no período, gerando um efeito dominó de insolvência
de muitos bancos dos EUA. Naquele momento mais agudo, a figura
de Lula, como líder carismático, foi central no estímulo ao consumo
doméstico. Em outras palavras, o fordismo tardio lulista necessita da
figura carismática para administrar a percepção de crise de sua base
social, situação que se repete constantemente.
A gestão Dilma Rousseff, neste sentido, se ressente desta capa-
cidade hegemônica da liderança carismática. As políticas anticíclicas
que se sucedem não geram um grau de confiança necessário para
garantir um ambiente de estabilidade por onde se consolida o pacto
desenvolvimentista. As fissuras passam a exigir mudanças de rumo
e inovações na lógica de administração da economia pelo Estado,
alterando o humor e a identidade da base social lulista.
A natureza do fordismo tardio, portanto, não se limita às estru-
turas gerenciais e nem mesmo aos instrumentos e dinâmica política.
Ressurge, portanto, a figura do líder catalisador.
Esta peculiaridade necessitava ser melhor analisada e fundamen-
tada. Daí a introdução, nesta segunda edição, do capítulo dedicado
ao fordismo tardio brasileiro.
No mais, mantivemos a mesma estrutura original deste livro.

20 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

O lulismo, como o tempo parece reafirmar, não parece ser um


fenômeno passageiro e alterou profundamente a dinâmica social
brasileira, assim como estabeleceu fortes laços de dependência de
estruturas de representação e organizações da sociedade civil para
com agências estatais e todo sistema de regulação econômica por
ele articulada.
Define, portanto, um novo patamar societal do Brasil. O que não
lhe garante estabilidade e segurança. Ao contrário, embora seja uma
estrutura estatal, depende fortemente da capacidade hegemônica da
direção política desta estrutura institucional. Esta é a tese central
deste livro.
Trata-se, portanto, de uma ousadia do autor, que foi compartilha-
da e estimulada pela Fundação Astrojildo Pereira desde a sua primeira
linha. À Fundação, e em especial, ao seu presidente, Caetano Pereira
de Araujo, e ao seu diretor, Francisco Inácio de Almeida, minha gra-
tidão. A relação que estabeleceram desde a edição de 2010 sempre se
pautou para dar sentido à noção de companheirismo.
Rudá Ricci
Belo Horizonte, 16 de junho de 2013

Apresentação 21
LULISMO | Rudá Ricci

Notas:
1 Pesquisa DataFolha revelou o perfil dos manifestantes daquele dia: jovens (até 25
anos de idade), de classe média, sem qualquer experiência política anterior. 84%
revelaram que não tinham preferência partidária e 71% nunca haviam participado
de nenhuma manifestação de rua.
2 �������������������������������������������������������������������������
Cf. <http://desenvolvimento.gov.br/agendachina/arquivos/agenda_China_Par-
te_II.pdf>, p. 16.
3 Cf. NOBRE, Marcos. O fim da polarização, Piauí, n. 51, dez./2010. Disponível
em: 22/05/2013 no endereço eletrônico <http://revistapiaui.estadao.com.br/
edicao-51/ensaio/o-fim-da-polarizacao>.
4 Cf. POCHMANN, Marcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide
social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
5 Ibidem, p. 7.
6 Ibidem, p. 10.
7 Singer (2012); Braga (2012).
8 Singer, op. cit., p. 9, 13 e 51.
9 O conceito de bonapartismo se refere ao clássico ensaio de Marx sobre a ascensão
e queda de Luís Bonaparte, tendo como palco a conturbada França dos anos 1848 e
1851. Marx sugere que a crise de representação e projeto da classe dominante num
cenário de crise nacional, propiciou a emergência de uma liderança oportunista e
carismática (Napoleão III) que se apoia nas condições precárias e desorganização
social do lumpensinato para conquistar o poder. O lumpensinato, contudo, atraído
por políticas de baixa sustentabilidade formatadas pelo governo central, se revela
instável e incapaz de consolidar uma real base de apoio político ao governo de
Luís Bonaparte. O conceito de bonapartismo foi objeto de algumas sugestões de
análise sobre a ascensão de Fernando Collor, refutadas por Florestan Fernandes que
destacaria o bonapartismo como fenômeno datado. No caso do lulismo o conceito
é ainda menos evidente e adequado. Com exceção do papel desempenhado pelo
eleitorado pobre como base eleitoral do lulismo, não existiu qualquer sinal de crise
de representação ou projeto de classe no período, nem mesmo oportunismo político
de Lula e seus aliados, muito menos qualquer traço populista que desconsideras-
se as organizações de representação social tradicionais do país. Ao contrário, o
lulismo rearticulou as expressões políticas tradicionais, reformatando a estrutura
institucional pública do país. Daí seu caráter conservador, não meramente como
reflexo da sua base popular de apoio, mas como pacto estatal-desenvolvimentista.
10 Braga, op. cit., p. 17.
11 Ibidem, p. 28.
12 No intervalo da publicação da primeira edição deste livro, em 2010, e 2013,
muitos outros títulos foram publicados tendo o lulismo como tema de fundo.

22 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

É possível citar, dentre eles, Ab´Sáber, 2011; Dirceu, 2011; Pereira, 2010; Sader,
2013; Secco, 2011. Estes livros, contudo, não procuraram conceituar o lulismo,
com exceção do livro de Ab´Sáber, se constituindo em narrativas ou opiniões
não sistemáticas sobre as gestões inauguradas pela primeira eleição de Lula, em
2002. Ab´Sáber sugere uma análise distinta da proposta aqui e os livros com os
quais se dialoga sobre o fenômeno. A tese central deste autor é que Lula emergiu
como político da cultura pop, fincada no consumo fácil e imediato. Um carisma
midiático, portanto. Lula, enquanto líder carismático, teria perseguido (ou se
subordinado) o interesse geral, se distanciando do papel de formador político.
A análise evolui para a compreensão da personalidade carismática de Lula, como
uma contradição em si, com um pé na mudança e outro no patrimonialismo.
Lula teria fundido traços messiânicos com a tradição revolucionária de esquerda,
“um bom selvagem civilizado e civilizador, antiburguês, que brotava do conheci-
mento prático, (...) mas que Lula sempre se colocou no espaço público de modo
relativamente soft, agregador, mediador, cordial, (...) herói das classes médias
críticas que tinham resistência ao processo de negociação franco e cínico de uma
outra fração de sua própria classe”. Como o leitor percebe, embora instigante, esta
obra – assim como grande parte da literatura publicada no período e não citada
neste livro – na figura de Lula e não necessariamente no fenômeno político que
tem no personagem um de seus componentes.

Referências
AB´SÁBER, Tales. Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica. São Paulo:
Hedra, 2011.
BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista.
São Paulo: Boitempo, 2012.
DIRCEU, José. Tempos de planície. São Paulo: Alameda, 2011.
PEREIRA, Merval. O lulismo no poder. Rio de Janeiro: Record, 2010.
POCHMANN, Marcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide
social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
SADER, Emir. Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil.
São Paulo: Boitempo, 2013.
SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê, 2011.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto
conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Apresentação 23
APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Este livro nasceu aos poucos, a partir de artigos que foram publi-
cados em revistas de ciências sociais e web sites dedicados às práticas
políticas ou à ciência política. Os artigos foram revisados e desenvol-
vidos com maior profundidade neste livro, procurando trabalhar dois
temas que se entrecruzam: a configuração do que denomino de lulismo
e sua emergência no mesmo instante em que os movimentos sociais
surgidos nos anos 1980 (que grande parte da literatura especializada
denominou de novos movimentos sociais) caminhava para sua insti-
tucionalização, alterando, na prática, o ideário anti-institucionalista
que os caracterizava. Um capítulo inédito dedica-se à análise do que
se publicou até então sobre o governo Lula.
Ambas as situações – o surgimento do lulismo e a mutação
dos movimentos sociais brasileiros – nascem sob o mesmo signo e
motivação. O esforço aqui contido é o da tentativa de mergulhar no
mérito desta transformação política do Brasil, que cruzou ousadia
e inovações, configurando uma página da história política de nosso
país sem paralelo.
Entretanto, embora os dois fenômenos se cruzem, os percursos
não foram exatamente os mesmos. Os movimentos sociais tiveram na
década de 1990 um imenso desafio de construir uma nova institucio-
nalidade pública que haviam conseguido lograr no processo consti-

25
LULISMO | Rudá Ricci

tuinte de 1987. O que não era um esforço dos mais simples, já que os
movimentos sociais dos anos 80 eram declaradamente refratários em
relação a toda institucionalidade pública que consideravam viciada e
excludente. Contudo, muitos artigos da última Constituição Federal,
a começar pelo art. 1º, seguido pelos 14 e 204, entre tantos, criaram
o arcabouço jurídico que alguns cunharam de participacionismo ou
cidadania ativa. Nasceram de articulações e iniciativas de lideranças
sociais no interior do Congresso Nacional. A gestão participativa, em
que o cidadão governa com o eleito, se insinuando nos escaninhos da
burocracia pública, criando estruturas híbridas (governamentais e de
sociedade civil), nasceu como novidade, desde o início. Superou uma
leitura vigente em uma parte da esquerda brasileira (notadamente os
trotskistas, muitos deles, fundadores do Partido dos Trabalhadores),
que alimentava a expectativa da criação de um poder dual, originário
da sociedade civil organizada, que conflitaria com o Estado burguês.
Mas o caminho consolidado na Constituição Federal de 1988 foi
outro. Assim como a sucessão de outros institutos legais: o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a Lei Orgânica da Saúde, a Lei Orgânica da
Assistência Social, o Estatuto da Cidade, para citar os mais conhecidos.
No percurso, as lideranças de muitos movimentos sociais (prin-
cipalmente urbanos), alteraram sua prática e agenda política. Passa-
ram a assumir parte das tarefas de formulação dos gestores. Come-
çaram a compreender os caminhos e descaminhos da administração
pública, tiveram que se formar tecnicamente. Nenhuma mudança
se faz sem pesar sobre a história inicial de qualquer mobilização
social. E o peso se fez sentir. A rua, principal cenário dos novos
movimentos sociais dos anos 80, foi trocada pelas conferências e
reuniões em gabinetes governamentais. Sinal de democracia. Porém,
esta intimidade com a lógica pública não foi suficiente para alterar
o verticalismo e fragmentação da burocracia estatal. Ao contrário,
em alguns casos, a lógica dos movimentos sociais (assembleística,
por natureza) digladiava com a lógica da burocracia pública (espe-

26 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

cializada e fragmentada, por natureza). Em outros casos, a lógica


dos movimentos sociais foi se limitando ao discurso e jargão dos
representantes da sociedade civil nesses fóruns e arenas de gestão
pública. Algo que Claus Offe denominou de estatalização, ou seja,
a dependência das ações sociais e coletivas em relação à proteção,
anuência ou controle do Estado.
O lulismo, contudo, forja-se a partir da vitória de Lula à Presidên-
cia da República. Já havia sinais de parte de seus elementos na mu-
dança de paradigma dos programas de governo que Lula apresentou
nos pleitos de 1994 e 1998. Esboçou-se com maior nitidez na primeira
gestão de Lula, amparada inicialmente pela Carta ao Povo Brasileiro
(2002) e pelo gerenciamento político sob a guarda do então ministro
da Casa Civil, José Dirceu de Oliveira. Mas foi na campanha de 2006
(que reelegeu Lula) e do primeiro ano da sua segunda gestão que
o lulismo ganhou sua roupagem final. Constituiu-se num demiurgo
da finalização da modernização do país iniciada por Getúlio Vargas.
O que os gramscianos denominariam de “revolução passiva”, pelo alto,
conservadora porque pautada pela hipertrofia do Estado, que admi-
nistra a vida social, impregna todos os poros da sociedade brasileira
e estabelece um pacto social pelo desenvolvimentismo caracterizado
pela conciliação de interesses. Os operadores do lulismo cunharam
este expediente de “desenvolvimentismo social”.
O fato relevante é que o lulismo gerou e se alimenta da emergên-
cia da nova classe média brasileira. Mais da metade dos 190 milhões
de brasileiros é, hoje, classe média, sendo 49% classe C. Programas
de transferência de renda associados ao aumento do valor do salário
mínimo geraram este novo “milagre brasileiro”. E alimentaram o lu-
lismo porque deram sentido ao estilo discursivo e ao projeto estatal-
-desenvolvimentista.
Lula fala para esta nova classe média, estes milhões de brasilei-
ros que rompem com histórias familiares de exclusão do consumo de
massas. Por este motivo, são brasileiros pragmáticos como o lulismo.

Apresentação 27
LULISMO | Rudá Ricci

Não são afetos a teorias ou ideologias. São descrentes da política.


Seus vínculos sociais são comunitários, muitas vezes familiares, o
que dá vida ao conceito de “ideologia da intimidade” elaborado nos
anos 1970 por Richard Sennett.
Lulismo e movimentos sociais se encontram no mesmo novo
ciclo estatal-desenvolvimentista do Brasil. Certamente, a provisorie-
dade da política nacional não garante que este ciclo seja sustentável
ou se desdobre nas próximas décadas. No entanto, o lulismo, apenas
pelos fenômenos descritos acima (a ruptura com gerações de famílias
pobres, a emergência de uma nova classe média, a institucionalização
dos movimentos sociais), já se impõe como um paradigma de geren-
ciamento estatal e governabilidade. Governabilidade sustentada por
uma coalizão presidencialista sem igual na história recente. A insta-
bilidade – econômica e política – que marcou governos democráticos
após o fim do regime militar parece distante com a emergência desta
nova lógica política.
Daí o interesse sociológico. O lulismo é um fenômeno ímpar da
política brasileira.
A marca deste fenômeno é a conclusão da modernização con-
servadora1 iniciada por Getúlio Vargas. O conceito de modernização
conservadora foi desenvolvido por Barrington Moore Jr. e causa, até
hoje, grande controvérsia sobre sua aplicabilidade ao Brasil. Moore
definiu-o como uma peculiar transição à modernização de países onde
não teria ocorrido ruptura com estruturas sociais tradicionais. Néstor
Canclini produziria um paralelo com a modernização latino-americana
que caracteriza como hibridismo cultural. No caso alemão, analisado
em profundidade por Moore, o autor destacou o papel dos Junkers que
mantiveram controle em todo processo de modernização de seu país.
Reinhard Bendix acrescentou que a Alemanha se forjou como nação
a partir da organização militar, na defesa de seu território contra a
ambição de países vizinhos, o que aproxima em muito da noção de
“via prussiana” desenvolvida por Lênin.

28 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

Tal conceito foi aplicado, no Brasil, por Reis (1982) e Vianna


(1976) para analisar a persistência do controle das oligarquias rurais
e regionais na República Velha e no período pós-30.
Segundo José Maurício Domingues (2004, p. 188), as caracterís-
ticas principais da modernização conservadora seriam:
1) Recusa a mudanças fundamentais na propriedade da terra;
2) F
 ormação de burguesia local relutante e avessa aos processos
de democratização a um compromisso;
3) A
 mpliação das fronteiras agrícolas com subordinação das
massas rurais;
4) C
 ontrole sobre representação sindical a partir da estruturação
de corporativismo de tipo estatal.
A literatura especializada sugere a modernização conservadora
como mudanças sem ruptura com padrão de desigualdade, ou seja,
sem emergência de sujeitos autônomos, portadores de direitos, con-
figurando uma cidadania, na melhor das hipóteses, inacabada.
Recentemente, Luiz Werneck Vianna retomou o conceito para
caracterizar o governo Lula, sugerindo que estaria completando a obra
iniciada por Getúlio Vargas. O questionamento de vários historiadores,
como Ângela Maria de Castro Gomes,2 sobre a aplicabilidade deste
conceito é que:
O passado e as tradições comuns de um grupo social se ma-
terializam em instituições, em valores, em comportamentos.
Justamente por isso, esse passado faz parte do presente, faz
parte das formas de se lidar com o presente e de se projetar o
futuro. Isso não significa que há uma continuação simplista, uma
permanência em linha direta entre passado e presente. O que
há são formas de se transformar que precisam sempre dialogar
com o que existe em termos materiais e de crenças; é muito mais
isso que ocorre na história e na história do Brasil. Então, essa
ideia de que é possível fazer transformações, modernizações

Apresentação 29
LULISMO | Rudá Ricci

sem vínculos com o passado, sem conservar sempre alguns as-


pectos, é insustentável teórica e empiricamente. Muitos estudos
mostram que não se pode romper diretamente com tudo. Por
isso, esse conceito de modernização conservadora não é ruim,
mas também não traduz um processo incomum, não é algo que
ocorre só no Brasil (visto muitas vezes como indicando uma in-
suficiência/falta), muito ao contrário. A historiografia dos anos
90 e da primeira década do século XXI entende que processos
de modernização são quase sempre “conservadores”. Mesmo
aqueles que não são considerados classicamente “conserva-
dores”, não são tão radicais assim e também dialogam com o
“passado”. Até a França revolucionária prestou seus tributos à
força das tradições do Antigo Regime. Então, devemos olhar esse
conceito, entendendo o momento em que ele foi conformado,
suas grandes contribuições e também sua trajetória, em função
das mudanças da historiografia das últimas décadas.

Contudo, não se trata de uma transposição, mas de uma tipolo-


gia, algo que distingue as tradições de historiadores e sociólogos. Os
tipos ideais, tal como sugeriu Weber, são recursos analíticos e não
descritivos, justamente porque não são encontrados em estado puro,
criando mesclas em situações históricas determinadas.
Por este veio analítico, faz-se necessário detalhar a peculiaridade
do lulismo enquanto processo de conclusão da modernização conser-
vadora brasileira. Citando Chico de Oliveira e Werneck Vianna, pes-
quisadores do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat)
com sede em Curitiba, PR, sugeriram no início de 2009:
Vargas alterou o modelo, Collor também, mas não Lula. Lula optou
pela continuidade do modelo anterior com algumas variações. Trata-
-se daquilo que muitas vezes denominamos de modelo do Pós-Con-
senso de Washington, ou seja, a possibilidade de se juntar o social
com a ortodoxia econômica. Uma das evidências da não ruptura é
o entusiasmo de Luiz Carlos Mendonça de Barros – ex-ministro das
Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvi-

30 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

mento Econômico e Social (BNDES) no governo Fernando Henrique


Cardoso –, com as potencialidades do país na crise. Segundo ele, o
Brasil “se descolou” da maioria dos demais mercados emergentes e
já aparece aos olhos do mercado internacional como alternativa de
investimento e como um país que será bem menos afetado do que
a média dos seus pares. (...) O governo Lula tem sido isso. Por um
lado, a aplicação dos fundamentos da disciplina fiscal e monetária
e, por outro, políticas sociais de caráter compensatório. Lula oscila
entre o resgate do social e do Estado, e os interesses do mercado.
Não foi colocada em marcha nenhuma grande reforma estrutural
na sociedade brasileira, embora se reconheça a adoção de políticas
na direção da correção das distorções das desigualdades sociais:
aumento permanente do salário mínimo, a ampliação da oferta de
crédito, os programas de mitigamento da miséria, como o Bolsa
Família, e de inclusão, como o Pró-Uni. O governo Lula não tem um
projeto de nação. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
é um programa e não um projeto. Nesse sentido pode-se afirmar
que já houve projetos bem mais ousados, como o plano de metas
do período JK, e até mesmo o Plano de Desenvolvimento Nacional
(PND), de Geisel. A retomada de um possível nacional-desenvol-
vimentismo, que muitos atribuem ao governo Lula, é distinto do
praticado na Era Vargas. No período varguista, os investimentos
realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produ-
tivo sob controle do próprio Estado. (...) Agora, no governo Lula, o
Estado presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado.
O papel do Estado – com o programa do PAC – é o de, sobretudo,
responder às demandas de infraestrutura, de energia e logística para
atender aos interesses do capital privado nacional e transnacional.3

Werneck sugere que Lula, assim como Getúlio Vargas, adota


como pedra de toque a conciliação de interesses.
Há, portanto, peculiaridades do lulismo em relação ao conceito
original de modernização conservadora. Principalmente porque a
questão agrária parece muito mais distante da pauta nacional que
em grande parte do século XX. E esta não é uma distinção menor.

Apresentação 31
LULISMO | Rudá Ricci

Com efeito, a modernização conservadora iniciada por Getúlio


Vargas gerou um aparato estatal de tutela da sociedade civil e das
relações entre classes sociais. Criou, deliberadamente, um jogo de
espelhos entre sua imagem pública e a do próprio Estado Providên-
cia que arquitetou. E desconsiderou todo sistema de representação
autônomo ao Estado-Executivo. Desconsiderou as bases constitu-
cionais com o Estado Novo. Manipulou o sistema partidário. Criou
o sindicalismo de Estado. Dirigiu e orientou o desenvolvimento da
indústria nacional. Muitos autores, como Edgard De Decca e Sérgio
Silva, sugerem que não houve propriamente uma ruptura entre o
capital agrário, comercial e industrial a partir de 1930. Tratava-se de
conciliação para a modernização, algo já tentado por Rui Barbosa
no desastre do encilhamento. Num esforço de síntese, Vargas teria
assumido uma postura próxima do bonapartismo, criando um projeto
hegemônico de modernização que articulava interesses de frações do
empresariado urbano e oligarquias rurais a partir de uma poderosa
máquina burocrática pública federal, sedimentada na normatização
das relações de trabalho. Quando possível, procurou convencer.
Quando se tornou mais difícil cimentar interesses conflitantes, não
teve dúvidas em lançar mão da força. Mas mesmo assim, nunca se
descuidou da tentativa de construção de um discurso hegemônico,
conferindo grande importância às narrativas midiáticas de sua época.
O lulismo se aproxima, mas não opera sobre a mesma lógica.
Parece desconsiderar – ou tratar marginalmente – os resquícios de
um mundo rural não vinculado diretamente ao mundo industria-
lizado. Seu foco é o mundo urbano e industrial. Em texto recente,
André Singer (2009) sugere que o vínculo de classe seria ainda mais
específico: o lulismo seria caudatário do “conservadorismo popu-
lar” do subproletariado brasileiro, aquele que recebe menos de dois
salários mínimos mensais. Mas, como Vargas, trabalha no sentido
de construir um bloco no poder,4 uma trama de desenvolvimento
estratégico do país a partir do Estado. Dialoga abertamente com
organizações, sindicatos, mas os incorpora ao Estado a partir de

32 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

políticas específicas, fundadas em convênios e parcerias, algo que se


aproxima de tutela, já que não incorpora efetivamente esses atores
sociais na formulação de políticas públicas e processo de tomada de
decisão, o que difere da lógica neocorporativa. A intenção de criar
uma relação direta com o varguismo surge com a recente proposta
de criação da Consolidação das Leis Sociais, um nítido diálogo com
a Consolidação das Leis do Trabalho.5
O lulismo completa a modernização conservadora iniciada por
Vargas porque reafirma o Estado como demiurgo da sociedade civil
e das relações de estabilidade das relações sociais no Brasil.6 Não
inova em termos de processo decisório na gestão pública. Ao con-
trário, reedita o que Weffort (1992) identificou como sistema dual
da política nacional que limita a competição entre forças políticas
(ou as controla). Na versão original, o autor indicava uma nítida
separação entre os integrados e marginalizados do sistema político
partidário, mesmo havendo garantias formais e constitucionais de
participação. Referia-se aos segmentos sociais que orbitavam ao
redor das práticas clientelistas. O lulismo não rompe objetivamente
com este sistema. Ao contrário, apoia-se no presidencialismo de
coalizão que reafirma a dualidade política. E incorpora as massas
até então marginalizadas socialmente (a mais significativa mudança
ao longo de sua gestão) pelas mãos do Estado, eliminando qualquer
controle social ou sistema integrado de participação dos beneficiados
na gestão das ações estatais.7
O lulismo opera a partir da integração – pela tutela do Estado –
das massas urbanas e rurais ao mercado de consumo de classe média,
que historicamente formaram linhagens de pobres e marginalizados,
formando uma árvore genealógica do ressentimento, cinismo e des-
confiança em relação à política e à institucionalidade pública vigente.
O que constitui um apelo à empatia entre as políticas de transferência
de renda, a população que ascende ao mercado de consumo mais
sofisticado e o próprio lulismo. A relação atávica do lulismo com

Apresentação 33
LULISMO | Rudá Ricci

o sindicalismo de massas e de ruptura com a ordem ditatorial e o


partidarismo originalmente filiado à esquerda democrática, constitui
um diferencial em relação ao varguismo. Mesmo assim, o respeito ao
pluralismo formal não elimina, paradoxalmente, o controle político
centralizado. Algo que já estava expresso, como uma linha da estrutura
de pensamento, no Lula dirigente sindical de 1978. Em entrevista que
concedeu em março daquele ano, ele afirmou:
Sou favorável inclusive ao pluralismo sindical; se a estrutura fosse
outra poderíamos ter até sindicatos por empresa. (...) Como no
México ou na Alemanha. Agora, tem que ter um órgão central para
coordenar a coisa. Você conheceu o sindicato ontem. Imagine se
tivéssemos 16 sindicatos naquele prédio, pois representamos 16
categorias econômicas. Imagine isso sabendo que cada sindicato
tem 24 diretores. Só de diretores a gente teria mais de 300 pessoas
trocando ideias sobre os problemas dos trabalhadores (GUIZZO,
1980, p. 18).

Lula é um personagem do lulismo. Mas como seu principal


personagem, merece atenção porque seu discurso é emblemático da
construção deste modelo gerencial do Estado brasileiro.8

34 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

Notas:
1 Não é objetivo deste livro discorrer sobre o conceito de modernização. Sonia
Fleury realizou, recentemente, um breve balanço sobre o conceito, da noção
vinculada à urbanização e industrialização dos anos 1950 e 1960, passando pelas
críticas dos anos 1979 (que relacionaram modernização à democracia), chegando
ao conceito de sustentabilidade e ampliação das liberdades individuais (tendo
como referência os ensaios de Amartya Sen), a partir da noção de modernização
social. Ver Fleury, 2006, p. 23 a 38.
2 Cf. entrevista disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes&idnot=175
7&idedit=7>. Acessado em: 19/11/2009.
3 Publicado pelo IHU On-line, 20/02/2009 [Instituto Humanitas Unisinos (IHU),
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, RS].
4 O conceito de bloco no poder, construído por Poulantzas, sugere a unidade his-
tórica de classes e frações politicamente dominantes, sob a batuta de uma fração
hegemônica. A fração hegemônica lidera e “puxa as restantes frações para debaixo
da sua égide”, constituindo uma unidade política a partir do poder estatal. Um
conceito muito aproximado do conceito gramsciano de hegemonia, inclusive
citado pelo autor no início do capítulo 4 (POULANTZAS, 1977, p. 224).
5 A edição do Le Monde Diplomatique Brasil, n. 28, de novembro de 2009, foi
dedicada ao projeto de Consolidação das Leis Sociais. Logo no editorial, Silvio
Caccia Bava, uma ex-liderança e dirigente petista de destaque, escreve que “os
7 anos de governo Lula não operaram reformas estruturais redistributivas. As
alianças para a governabilidade e a composição do Congresso não permitiram.
Mas conseguiram construir programas que, no seu conjunto, transferem cerca de
0,5% do PIB para os mais pobres. É nada se comparado com a transferência de
renda que as taxas de juros operam em favor dos mais ricos, algo em torno de
6%, 8% do PIB ao ano.” Em artigo interno, o presidente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann destaca que existem 110 progra-
mas dispersos em diversos ministérios na esfera federal, somente no âmbito das
ações para crianças e adolescentes. O CDES iniciou, desde 2009, a produção da
matriz técnica da proposta de Consolidação das Leis Sociais, assumindo, ini-
cialmente, duas vertentes: a) a elaboração de sistema de proteção e promoção
social (incorporando várias iniciativas governamentais); b) a produção de lei de
responsabilidade social. Paralelamente, o Ministério do Desenvolvimento Social,
Ipea e a Secretaria de Assuntos Estratégicos debruçaram-se na mesma tarefa.
6 Há motivações e possibilidades abertas neste momento histórico, que conformam
o cenário da modernização conservadora. Conceição Tavares e José Luís Fiori que
a partir dos anos 1990, o Brasil ingressou no período de “ajuste global liberal”
com forte resistência. Uma resistência desorganizada. Luiz Gonzaga Beluzzo,

Apresentação 35
LULISMO | Rudá Ricci

no prefácio do livro desses dois autores, sugere que “as oligarquias nacionais
preferem repousar a inteligência em esquemas simplificadores e em analogias
insustentáveis com a experiência de outros países. Têm a preocupação de transitar
para o Primeiro Mundo, mas ignoram a realidade que pretendem alcançar”. Assim,
nossa trajetória recente, sob o manto do Consenso de Washington, foi peculiar,
ambivalente, um caldo de cultura que criou a passagem, sem solavancos, para o
lulismo (Cf. TAVARES; FIORI, 1996).
7 O caso específico do Bolsa Família, nascido do programa Fome Zero, é o mais
emblemático das intenções não participacionistas do lulismo. Houve, contudo,
outras sinalizações, como o abandono das audiências públicas para controle do
Plano Plurianual do governo federal. Ver, sobre a desmontagem do sistema de
participação e controle social do Fome Zero, Polleto (2005) e Betto (2006).
8 Não é tarefa fácil definir programaticamente o lulismo, justamente porque possui
contornos mais nítidos como modelo gerencial, como engenharia política. Mas, num
esforço de aproximação, o programa que foi se esboçando, em especial no segundo
mandato, enquadra-se no modelo social-liberal. O social-liberalismo articula a heran-
ça liberal clássica e a proposta programática socialista (mais declaradamente social-
-democrata). Invoca a regulação estatal (ao contrário dos neoliberais) e até sugere a
superação do liberalismo de tipo individualista e competitivo, chegando a confrontar
com interesses das grandes corporações empresariais (daí a regulação do mercado,
procurando coibir qualquer ação predatória). Alguns autores, como John Atkinson
Hobson e Leonard Hobhouse, sugerem simbiose entre liberdade e igualdade, supe-
rando a dicotomia sustentada por Bobbio entre as características contemporâneas
que diferenciam esquerda e direita (Bobbio foi um dos autores a reeditar o programa
social-liberal). John Maynard Keynes é outro autor citado com frequência pelos
ideólogos do social-liberalismo. Tal aproximação, contudo, não é absolutamente fiel
ao lulismo, dada a peculiaridade de matrizes políticas que o forjou. De Atkinson,
ver The Evolution of Modern Capitalism (1894), The Economics of Distribution
(1900) e The Economics of Unemployment (1922). De Hobhouse, ver Democracy and
Reaction (1904), The Elements of Social Justice (1922) e Social Development (1924).

Referências
BENDIX, Reinhard. Construção nacional e cidadania – estudos de nossa
ordem social em mudança. São Paulo: Edusp, 1996.
BETTO, Frei. A mosca azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
DECCA, Edgard De. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1997.
DOMINGUES, José Maurício. Ensaios de Sociologia. Belo Horizonte:
UFMG, 2004.

36 Apresentação
Rudá Ricci | LULISMO

FLEURY, Sonia. Democracia, descentralização e desenvolvimento. In:


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Apresentação 37
parte i

O LULISMO
Capítulo 1
LULISMO EM SEU ESBOÇO1

O
lulismo, em sua origem, não é um movimento político. Esboçou-se
a partir de um governo. Nasceu como tentativa de gerenciamento
do Estado e da governabilidade política. Referia-se, portanto, ao
campo estrito da engenharia política, não se constituindo num projeto
de desenvolvimento.
Enquanto modelo gerencial, o lulismo possuía natureza sistêmi-
ca, voltada para sua própria existência, ressentindo-se de impasses
exógenos, não previstos, revelando alguma fragilidade. Em outras
palavras, possuía uma ação marcada pelo pragmatismo que objeti-
vava sua manutenção e reprodução enquanto força política. Tentava
fixar-se no cenário político brasileiro.
Teve início na campanha de 1994, mas atingiu sua configuração
como engenharia política em 2002, quando se arquitetou a campa-
nha presidencial, cristalizando-se com a divulgação da Carta ao Povo
Brasileiro, em junho daquele ano.
Alterou profundamente o projeto inicial petista, que se orientava
por um discurso estratégico afiliado à lógica dos movimentos sociais
que emergiram nos anos 1980 que, por sua vez, sustentavam-se na
declarada autonomia política e na organização horizontalizada (com
prevalência dos mecanismos de democracia direta), cujo discurso

41
LULISMO | Rudá Ricci

assentava-se no anti-institucionalismo e anticapitalismo. O discurso


de então era popular, objetivava a inclusão social e política de amplas
massas que se sentiam desalentadas. Embora esta matriz discursiva
tenha sido traduzida no manifesto de lançamento do Partido dos
Trabalhadores como socialista, antissoviético e antiburocrático, de
massas e democrático, o discurso petista sempre foi mais difuso e
sensibilizou muitas organizações e lideranças populares. Sensibilizou
camadas sociais mais pobres e marginalizadas das estruturas políticas
hegemônicas do país porque não nasceu a partir de um referencial
teórico muito nítido, revelando a forte presença do discurso católico
progressista (mais especificamente, aquele que constituiu a Teologia
da Libertação), fundado num sentimento solidário, de natureza comu-
nitária. O comunitarismo sempre teve grande apelo nas comunidades
de origem rural, empobrecidas, místicas, dos rincões do país. E esteve
presente nas periferias dos grandes centros urbanos, povoados por
exilados do campo, migrantes rurais, estrangeiros em seu próprio
país, desassistidos. Não por outro motivo, o discurso original petista
foi sempre moralista, mais crítico que propositivo. Moralista porque
fundado no sentimento de profunda injustiça social, que quebrava
todos códigos de conduta rural, o espólio mais significativo da traje-
tória dos migrantes e populações pobres do país. Era um discurso de
massas,2 fundado numa significativa cultura política difusa, que en-
volvia um amplo segmento social do país, acolhido pelas organizações
progressistas da Igreja (principalmente católica). Daí seu forte apelo,
crítico, irônico, muitas vezes cínico, autônomo e, outras tantas vezes,
aproximando-se do messianismo e do discurso mágico carismático.
No PT, esta concepção materializou-se numa prática assembleísta,
na estrutura em rede, constituída na multiplicidade de organismos
de base (núcleos territoriais ou de segmentos sociais). A tomada de
decisão interna percorria, então, um invariável processo de debates
cumulativos que, em determinado momento, foi denominado por
alguns dirigentes do partido como “consenso progressivo”, no qual
as divergências eram provisoriamente postas em suspensão até que

42 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

o consenso fosse atingido. Algo que denotava a baixa experiência de


governo das lideranças partidárias.
Contudo, por incapacidade política desta matriz discursiva ori-
ginal superar o comunitarismo e forjar uma nova institucionalidade
política, outras correntes internas que fundaram o PT e que, até
meados dos anos 1980, apareciam como marginais na constituição
da identidade petista, passaram a ocupar espaços estratégicos e, pau-
latinamente, reconstruir o projeto partidário.
Esta inflexão que ocorreu nas sombras teve início no interior
da estrutura burocrática da seção paulista do PT. Ali, pela primeira
vez, uma estrutura burocrática do partido se consolidou, criando um
primeiro sistema de controle político interno, a começar pela mobi-
lidade dos funcionários da Secretaria de Organização e, mais tarde,
da Secretaria Geral da Executiva Estadual.3
Na segunda metade dos anos oitenta, esta estrutura de contro-
le já havia gerado um núcleo dirigente, com nítida função política
sobre o conjunto dos diretórios municipais paulistas. Tal estrutura
de controle teve na Executiva Estadual da seção paulista do PT seu
núcleo duro de direção. Este núcleo de controle instalado no coração
da burocracia partidária era composto por dirigentes de antigas or-
ganizações de esquerda, o que alterava significativamente o escopo
teórico-conceitual original do PT.4
O primeiro sinal de avanço desta nova força política sobre a prá-
tica partidária foi o controle das campanhas eleitorais majoritárias do
PT, no início dos anos 1990. A partir de então, o discurso de campa-
nha e seu programa, a agenda dos candidatos e o perfil de marketing
passaram a ser mais e mais controlados pela burocracia partidária.
O passo seguinte foi a conquista, pela burocracia partidária paulista,
da Executiva Nacional do PT, passo que se revelou mais complexo.
Algumas figuras públicas deste rearranjo tiveram uma carreira
no interior da direção partidária peculiar, distinta do que ocorria com

Lulismo em seu esboço 43


LULISMO | Rudá Ricci

líderes sindicais e de movimentos sociais ou até assessores dessas


organizações sociais. A direção partidária, que até então se forjava e
se legitimava nas frentes de lutas sociais, passava a assumir um novo
papel, em que o conhecimento sobre a distribuição das diversas for-
ças políticas partidárias e a capacidade de negociação ou controle da
política interna suplantava a capacidade de mobilização de massas.
O saber partidário, enfim, se alterava.
As campanhas eleitorais presidenciais de 1994 e 1998 incorpora-
ram outro elemento que se associou ao poder político da burocracia
partidária: o saber técnico na construção do programa partidário.
Até então, o programa partidário e plano de campanhas eleitorais
eram construídos a partir de um complexo mecanismo de consulta
e formulação gradativa dos consensos. Este método era uma clara
herança da matriz discursiva original do PT, no qual o consenso era
construído a partir de mecanismos de participação direta dos filia-
dos do partido. A partir de 1994, esta metodologia foi se alterando
rapidamente e os profissionais de cada área, articulados pelo corpo
técnico de economistas e, mais tarde, pela direção de campanha e de
marketing, assumiram um papel decisivo na elaboração das propostas
partidárias. Um deslocamento contínuo que retirou dos intelectuais do
partido a proeminência que tinham até então. Os que permaneceram
em destaque vincularam-se individualmente às estruturas internas de
poder e não mais como contribuição coletiva, organizados em núcleos
temáticos ou profissionais (como o núcleo de professores do PT, que
chegou a editar um livro com discursos e entrevistas de Lula).5
A partir da segunda metade dos anos 1990, o saber técnico (in-
cluindo a profissionalização das lideranças políticas e burocráticas)
passou a substituir os mecanismos de consulta de base.
A fusão do poder da burocracia partidária com o poder do saber
técnico (de especialistas em marketing e temas específicos em políticas
públicas) gerou uma nova estrutura partidária, mais centralizada, mais
profissional, mais técnica e menos dinâmica e participativa que deu

44 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

vazão, a que denominamos de lulismo. O lulismo, em outros termos,


tornou-se mais personalista e centralizador e buscou sua legitimação
pela precisão técnica, pela negociação, pelo controle político e pela
sedução do discurso afetivo da liderança partidária. É, efetivamente, o
oposto do processo de legitimação do primeiro período do PT, no qual
o consenso construído num longo processo de debates internos, com
ampla participação e poder da base partidária é que definia a confiança
interna e legitimava a direção partidária. Em outras palavras, tratava-
-se de uma mudança significativa do sistema de legitimação interna.
O lulismo forjou-se em meio à inflexão antes descrita. Bebeu
nessas águas. Assim, é possível sugerir que é uma faceta da organi-
zação partidária dos anos 1990, mais pragmático e flexível para com
as forças políticas externas na tentativa da montagem de um projeto
hegemônico que sustentasse sua reprodução política. Por outro lado,
o lulismo também se nutriu das posturas mais inflexíveis da direção
hegemônica para com as forças internas do partido, porque mais con-
troladora e mais centralizadora e, portanto, mais avessa ao pluralismo.
Emir Sader destaca as mudanças evidentes ocorridas no conteúdo
programático da campanha de 1994 em relação à de 1989, período
em que tal inflexão se fez pública e desconcertou grande parte da
militância partidária:
Para exemplificar as transformações operadas no seio do PT,
basta recordar alguns itens do programa da campanha presi-
dencial de 1994:
“Estará colocado para o PT e para as forças democráticas e po-
pulares a possibilidade de iniciar um acelerado e radical processo
de reformas econômicas, de lutas políticas e sociais. Tudo isso
criará condições para a conquista da hegemonia política e de
transformações socialistas.” (‘Diretrizes para a elaboração do
Programa de Governo’, documento aprovado pelo 6º Encontro
Nacional, 16 a 18 de junho de 1989, São Paulo, in: Resoluções de
Encontros e Congressos – 1979-1998, p. 397, São Paulo: Ed. da

Lulismo em seu esboço 45


LULISMO | Rudá Ricci

Fundação Perseu Abramo, 1999.) Mais adiante fala-se na “criação


de poder local”, na disputa “anticapitalista e socialista”, bem
como se define “a quem serve o governo democrático e popular
do PT”: “O objetivo permanente de um governo democrático
e popular é a construção de um poder alternativo, fundado
no compromisso de promover a igualdade social e orientado
pela busca radical da liberdade” (Idem, ibidem). “Um governo
como esse forçosamente terá de enfrentar-se com os interesses
dominantes na sociedade brasileira, que se expressam, hoje, na
dívida externa, no monopólio da terra, no papel do Estado e no
domínio do capital financeiro, industrial, monopolista, sobre
a economia” (Ibidem, p. 398). Menciona-se que um governo
neoliberal propiciaria “um saque dos próprios fundos sociais, a
continuidade do desmonte dos serviços públicos, concentrando
ainda mais renda e, sem dúvida, ampliaria a internacionalização
dependente da economia brasileira” (Ibidem).

O lulismo, contudo, é mais complexo do que o controle burocrá-


tico partidário, embora tenha ganho musculatura a partir deste jogo e
inflexão internos do PT. Forjou-se a partir de três matrizes discursivas
que sustentam um equilíbrio dinâmico, assumindo um movimento
pendular que privilegia, circunstancialmente, uma ou outra concep-
ção. Foram elas: o pragmatismo sindical, o vanguardismo e burocra-
tismo partidário e o discurso técnico de gerenciamento do mercado.

O primeiro discurso: o pragmatismo sindical


A primeira matriz discursiva que compôs o lulismo em seus
primeiros passos é originária da prática sindical desfechada pelo que
em determinado momento a literatura especializada denominou de
“novo sindicalismo”. O novo sindicalismo, contudo, não chegou a
forjar um bloco muito unitário de dirigentes. Relatos de dirigentes
sindicais rurais revelam uma primeira divisão, ainda no período an-
terior à fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), sob a
condução de sindicalistas urbanos em relação à incipiente organização

46 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

sindical rural. Concentrados no Sul do país e, principalmente, na re-


gião da denominada Amazônia Legal, esses dirigentes rurais haviam
passado pelo trabalho organizativo das Comunidades Eclesiais de
Base (CEB), pelos encontros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
pelas oposições sindicais.
O trabalho de organização de base, a formação contínua desta
base, a luta de massas, as bandeiras de mobilização que superavam
o marco legal vigente e a estrutura organizativa horizontalizada
marcavam o ideário e a prática desses dirigentes rurais, alguns agen-
tes pastorais chegavam a afirmar que o lugar da política não era o
Estado, mas a sociedade. Para os agentes da CPT, o cargo sindical
deveria estar a serviço das comunidades rurais. Algo que não ganhou
repercussão entre os sindicalistas urbanos, em especial, paulistas,
que comandariam a construção da Central Única dos Trabalhadores.
Com efeito, quando se iniciou a articulação nacional de dirigentes
que mais tarde criariam a CUT, as diferenças entre dirigentes rurais
e urbanos começaram a aparecer.
Avelino Ganzer, que mais tarde seria o vice-presidente da CUT,
afirma que no Encontro Nacional dos Trabalhadores em Oposição à
Estrutura Sindical (Entoes), realizado no Rio de Janeiro, em setembro
de 1980, as novas lideranças rurais do país se encontraram, pela pri-
meira vez, representando todo o território brasileiro. Contudo, neste
encontro, os dirigentes rurais perceberam o pouco espaço que as lide-
ranças metalúrgicas e bancárias, em especial, conferiam para os temas
relacionados ao campo. Por este motivo, foi rapidamente articulada
uma reunião paralela no próprio Entoes, em que dirigentes rurais
exigiam respeito. Segundo seu relato, foi necessária a intervenção
conciliadora de Frei Betto para que uma rebelião não tomasse corpo
naquela sala de dirigentes rurais frustrados e ofendidos. Esta diferença
política se manteve ao longo dos anos, demonstrando a hegemonia e
grande dificuldade dos dirigentes urbanos em se articular, para além
do mero apoio logístico ou político, às lutas rurais.

Lulismo em seu esboço 47


LULISMO | Rudá Ricci

Uma segunda divisão interna entre os dirigentes do “novo sindi-


calismo” parece ainda mais reveladora do que ocorreria mais adiante.
O grande impasse que gerou a divisão entre dirigentes sindicais bra-
sileiros no interior da Conferência Nacional da Classe Trabalhadora
(Conclat) e na Comissão Nacional Pró-Central Única dos Trabalha-
dores, que teve seu ápice em 1983, quando da criação da CUT, foi o
art. 8º do Regimento Interno que normatizava o congresso nacional
de criação da central sindical.
O art. 8º garantia, no caso de algumas direções sindicais se
negarem a participar deste congresso nacional, a representação atra-
vés das intersindicais estaduais. Abria-se, assim, a possibilidade de
movimentos ou oposições sindicais representarem categorias sociais
cujos sindicatos decidissem boicotar o evento. Dirigentes sindicais
vinculados à Unidade Sindical (mais tarde, Conclat e CGT) defen-
diam a representação exclusiva das estruturas sindicais vigentes, ou
seja, limitada às diretorias de sindicatos, federações ou confedera-
ções sindicais. Vários dirigentes da Unidade Sindical assinaram um
documento refutando a tese da organização da central sindical pela
base, excluindo entidades sindicais por considerá-las reformistas. Esta
divergência foi constitutiva da criação da CUT.
Contudo, nos anos 1990, esta tese basilar, que diferenciou a CUT
das outras centrais sindicais criadas após sua fundação, foi gradual-
mente esquecida. As oposições sindicais, desde então, tiveram seu
estatuto político reduzido e uma ampla estrutura organizacional foi
construída pela central sindical, tendo à frente quatro a cinco cate-
gorias hegemônicas, com destaque para os metalúrgicos e bancários.
Estas duas categorias constituíram, por seu turno, uma força hege-
mônica no interior da CUT, objetivando-se num ideário profissional
e pragmático de organização e negociação política. Esta objetivação
pode ser ilustrada em iniciativas da direção da central sindical, to-
das articuladas no início dos anos 1990. Destacam-se, dentre elas,
o enquadramento das escolas sindicais, numa retomada do que nos

48 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

anos 1950 e 1960 foi denominado de “correia de transmissão”; e a


participação em câmaras setoriais que objetivaram estabelecer um
pacto entre empresários e trabalhadores para manutenção do emprego.
Com efeito, até meados dos anos noventa, a rede de escolas
sindicaisda CUT, que contavam com uma importante autonomia pe-
dagógica e uma relativa autonomia política, passaram a ser dirigidas
e a seguir um programa determinado exclusivamente pela direção
da central sindical. Um longo e doloroso processo de alteração da
composição da direção dessas escolas,7 de sua programação e redefi-
nição da fonte de financiamento teve início com um corte drástico de
financiamento externo. Era o início de um processo de conformação
da centralização política da central e otimização de sua estrutura
administrativo-burocrática.
A centralização política das escolas sindicais não foi um episódio
fortuito. Paulo Sérgio Tumolo (2002) sugere que a CUT alterou seu
paradigma a partir de 1991 (quando da realização do quarto congresso
da central sindical), quando as greves começam a rarear e ela inicia
sua participação nas câmaras setoriais.8 Segundo o autor, a mudança
se relaciona à hegemonia da corrente Articulação Sindical, que defen-
deria o que denomina de “sindicalismo propositivo dentro da ordem”.
No que tange à formação sindical, a CUT teria se dirigido à edu-
cação de tipo instrumental, em detrimento da formação crítica (que
apreendesse a realidade contraditória). Destaca, ainda, 1995 (ano
da realização da 7ª Plenária Nacional da CUT) como o ano em que
a central teria abraçado definitivamente a formação profissional, a
partir do uso dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Muitos dirigentes sindicais afirmam que tudo se alterou a partir
do 6º Concut, realizado em 1997, quando a central sindical adota a
linha de “resistência propositiva” ou “disputa de hegemonia”. Mas
a mudança já ocorria bem antes e por motivos menos intelectuali-
zados. O grande divisor de águas foi a filiação da CUT à CIOSL, a
Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres. Em

Lulismo em seu esboço 49


LULISMO | Rudá Ricci

1991, o debate sobre sua filiação já era tenso no interior da CUT. Em


1990, o Instituto Cajamar sediou o seminário “Perspectivas Interna-
cionais e o Movimento Sindical” que abriu o debate. O representante
da Organização Regional Interamericana do Trabalho (Orit, seção da
CIOSL), Luís Anderson, sugeriu, na oportunidade, a substituição da
greve geral como instrumento de luta pela concertação social. Em
1992, a CUT se filiou à CIOSL.9
A partir de então, o triunvirato que dirigia a central sindical (De-
lúbio Soares, Gilmar Carneiro e Jorge Lorenzetti) decidiu jogar todas
suas fichas para transformar a CUT em membro ativo da direção da
confederação internacional. E, para tanto, desfechou um ambicioso
programa de filiação em massa de entidades sindicais brasileiras. Ser
membro ativo da CIOSL abria portas internacionais aos dirigentes
sindicais. E a CUT disputava palmo a palmo a liderança com a Força
Sindical, que havia se filiado à CIOSL pouco antes.
Tinha início, naquele momento, um conflito interno dos mais rele-
vantes, que redundou no fim das estruturas departamentais (paralelas
à estrutura sindical oficial do país, como era o caso do Departamento
Nacional de Trabalhadores Rurais – DNTR) da CUT. Afinal, a central
sindical necessitava filiar federações e confederações sindicais oficiais
para revelar seu poder de representação. Havia, naquele momento,
uma leitura alarmista sobre a crise da representação sindical, frente
aos novos modelos de gestão fabril (toyotismo, por exemplo) e implan-
tação de automação e robótica nas plantas industriais, substituindo
postos de trabalho. Concentrar forças e representação e alterar os
instrumentos de luta eram conteúdos de grande parte dos documentos
internos da Articulação Sindical da CUT.
A centralização política (muitas vezes denominada de unidade,
silogismo muito empregado pela Unidade Sindical, corrente sindical pré-
-CUT vinculada ao PCB) alcançou imediatamente as escolas sindicais.
Não por outro motivo, programas de formação sindical criados
desde 1984 (como Concepção, Estrutura e Prática Sindical)10 foram

50 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

caindo no ostracismo. A partir de 1992-1993, discussões ideológicas


(não pragmáticas) eram contraproducentes para as intenções políticas
da executiva nacional da CUT.
Obviamente que a autonomia das escolas sindicais também apa-
recia como perigosa. E foi então que todas foram convidadas a alterar
seu status político, subordinando-se, a partir de então, às direções
sindicais, que passariam a ser seu corpo dirigente.
As equipes educacionais das escolas 7 de Outubro e Equip resisti-
ram fortemente a esta orientação. Recife manteve-se na mesma linha.
Mas a escola mineira foi asfixiada financeiramente. As articulações in-
ternacionais da Secretaria Nacional de Formação da CUT funcionaram.
O recado foi dado. E uma das equipes educacionais mais importantes
do mundo sindical brasileiro foi desfeita. Intelectuais do porte de Mi-
chel Le Ven e Magda Neves, que faziam parte do corpo docente desta
escola, se afastaram pouco a pouco, como tantos outros.
As câmaras setoriais surgiram no final dos anos 80 (Decreto
96.056, de maio de 1988 e Resolução SDI no 13, de julho de 1989)
com o objetivo de estabelecer diagnósticos de competitividade setorial.
No governo Collor tornaram-se instâncias de resolução de conflitos
de preços. Em 1992 passaram à condição de fóruns de temas relacio-
nados ao desempenho setorial da indústria, envolvendo redução de
alíquotas de impostos, geração de emprego e inserção no mercado
externo. O acordo do setor automobilístico foi o que causou maior
impacto público no período, embora funcionassem outras câmaras
setoriais (tratores e máquinas, brinquedos e indústria naval). Em
1995, as câmaras foram desativadas, sendo timidamente retomadas
na gestão Lula.11
A participação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista
nas negociações da Câmara Setorial do Complexo Automobilístico
significou mais uma importante inflexão do sindicalismo cutista. Até
então, havia uma expressa proibição do congresso nacional da CUT
realizado pouco antes da decisão do Sindicato dos Metalúrgicos. Sua

Lulismo em seu esboço 51


LULISMO | Rudá Ricci

participação teve início em dezembro de 1991.12 A participação do


setor metalúrgico da CUT, rompendo com resolução do congresso
da central, inaugurou uma mudança de paradigma da ação sindical
cutista. Ao participar de um fórum paritário de formulação de polí-
tica industrial, este segmento adota claramente um referencial que
na literatura especializada ficou cunhada de neocorporativismo, ou
a participação efetiva de representação sindical em arenas de decisão
em que são gestadas ou reguladas várias políticas públicas, criando
um arranjo de interesses privados e Estado.
Outras iniciativas aumentaram o grau de profissionalismo e
controle da máquina sindical cutista. A implantação da metodologia
de planejamento estratégico situacional (PES), de fundamentação
nitidamente funcionalista, reduziu em muito a leitura política da
CUT, focando na sustentabilidade organizacional. O Sindicato dos
Bancários de São Paulo, através de sua maior liderança no período
(Gilmar Carneiro), foi o maior motivador da adoção desta metodo-
logia em todas as instâncias da central sindical. Gilmar Carneiro,
como secretário-geral da CUT, implantou sistemas de controle de
informações sobre a composição e desempenho de grande parte das
direções de sindicatos filiados à central.

O segundo discurso: vanguardismo e burocratismo de esquerda


A segunda matriz discursiva do lulismo funda-se na prática
organizacional e no movimento político oriundo de um segmento
partidário que se articulou internamente com graus diferenciados de
estruturação e identidade, e cuja liderança ou força política nunca
esteve diretamente vinculada à sua capacidade de representar ou mo-
bilizar a base militante do partido. Este segmento político, cuja força
reside em sua capacidade organizativa e administrativa, iniciou sua
projeção nacional em meados dos anos 1980, a partir de um acordo
político realizado no interior da Comissão Executiva da seção paulista
do PT. Em outras palavras, é possível perceber que lideranças petistas

52 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

carismáticas ou forjadas nas lutas sociais tiveram pouca influência em


relação à estrutura organizacional e burocrática do partido, cedendo
espaço político para este segmento político petista. A consequência
imediata desta ação específica foi a construção da unidade de ação
e controle da burocracia partidária, envolvendo especialmente as
Comissões Executivas nacional e paulista do partido. Claude Lefort
sugeriu que as burocracias, ao contrário das proposições de Max
Weber, possuem ideologia e sustentam forças políticas hegemônicas.
Citou, em diversos ensaios (LEFORT, 1979), o papel desempenhado
pela burocracia soviética na orientação dos rumos políticos do bloco
internacional sob seu controle. Este tipo específico de burocracia
não se expõe publicamente, espraia-se por todos os escaninhos ad-
ministrativos e de controle partidário, forja normas e rotinas e, em
especial, sustenta a posição política das suas correntes. Este é um
aspecto fundante do vanguardismo marxista: o controle burocrático
do partido, a atrofia dos fóruns públicos de debate e a centralização
do processo decisório partidário. Mantém uma relação direta com
a desconfiança a respeito da capacidade política da base operária,
despossuída de conhecimento científico sistematizado e subsumida
no processo de alienação. A teoria reveladora das causas de sua
exploração viria, portanto, dos quadros partidários formados, quase
sempre oriundos de classes médias e meios intelectualizados. Este
esquema de organização política é conhecido, mas não fazia parte do
saber organizativo do PT em sua origem. Ao contrário, os conceitos
de educação popular, lastreados nas teorias fenomenológicas, na va-
lorização da percepção e saber populares, tendo as formulações de
Paulo Freire como guia, confrontavam com a proposição leninista de
partido de quadros. Assim, até então, a luta anticapitalista era, por
vezes, identificada com a luta contra o burocratismo, assim como
a construção do poder popular era identificada como oposição ao
vanguardismo. Burocratismo e vanguardismo, enfim, alinhavam-se
numa formulação crítica das mais originais na história das lutas sociais
no Brasil. Daí forte desconfiança em relação às teorias clássicas de

Lulismo em seu esboço 53


LULISMO | Rudá Ricci

organização partidária da esquerda marxista. Por este motivo, dificil-


mente tais teorias ganhariam força a partir dos núcleos de base e do
convencimento da militância petista. Seu caminho para constituir-se
no eixo de organização só poderia se dar pela burocracia interna, num
movimento de ocupação de espaços e fundação de mecanismos de
controle político no interior do partido.
Enfim, a constituição da burocracia como elemento de controle
político partidário – elemento central do lulismo – se opôs, desde o
início, ao participacionismo, mecanismos de tomada de decisão que
valorizava a democracia direta à estrutura organizativa em rede, a
partir de núcleos de base. Eram duas opções organizativas que se
conflitavam até meados dos anos 1990. O lulismo fez sua opção pela
proposta de organização clássica.

O terceiro discurso: a conquista do mercado


Esta vertente, à semelhança das outras duas matrizes, rompe
com uma tradição petista fundada desde os primórdios do partido
e ganha importância no seu interior em meados dos anos 1990. Até
então, a economia sempre esteve, nas resoluções do PT, subordinada
à construção da hegemonia política e raramente aparecia como uma
dimensão autóctone, determinada por uma operacionalidade especí-
fica. Na campanha de 2002, contudo, dois documentos passaram a
balizar um novo referencial de governança inaugurada pelo lulismo:
a Carta ao Povo Brasileiro e a Agenda Perdida. O primeiro documento
foi elaborado pela coordenação de campanha e fazia um anúncio ao
mercado. Já a Agenda Perdida consolidou uma referência para um
programa de governo que articulava e aprofundava algumas das pro-
messas contidas na Carta ao Povo Brasileiro. O rol de políticas nele
apresentado acabou por fundamentar vários documentos produzidos
pela Secretaria Nacional de Política Econômica do Ministério da Fa-
zenda, na gestão Lula.

54 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

A Carta ao Povo Brasileiro é assinada por Lula em 22 de junho


de 2002. Possui uma estrutura conceitual subdividida nos seguintes
compromissos:
a) A redução da vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado
de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de
consumo de massas;
b) Combinação do incremento da atividade econômica com po-
líticas sociais consistentes e criativas;
c) Conjunto de reformas estruturais (reforma tributária, que
desonere a produção; reforma agrária, que assegure a paz no
campo; reforma previdenciária; reforma trabalhista);
d) Políticas estruturais que combatam o déficit habitacional,
combatam a fome e a insegurança pública.
e) Governabilidade: o documento revela uma preocupação nítida
com a construção da governabilidade, denotando uma vocação
a compreender a gestão Lula como pautada por uma tendência
à coalizão nacional;
f) Respeito aos contratos e obrigações do país: este é o ponto mais
significativo e original do documento se comparado à tradição
petista, revelando uma forte inflexão na história petista. O docu-
mento afirma que a premissa com a transição será naturalmente
o respeito aos contratos e obrigações do país, a segurança dos
investidores não especulativos e o equilíbrio fiscal.

Do que trata este documento, afinal?


De uma declarada mudança de perspectiva política e estratégica
do PT. Se compararmos com o eixo programático de 1989 e início dos
anos 1990, é facilmente percebida a ruptura com a identidade partidá-
ria que se assentava na moratória e auditoria da dívida pública, com
uma política de reforma agrária pautada pela mudança da estrutura
fundiária do país, com a redução dos lucros abusivos dos bancos

Lulismo em seu esboço 55


LULISMO | Rudá Ricci

privados. Trata-se de um discurso pragmático que procura declarar


compromissos com a estabilidade da ordem econômica e política,
aumentando a competitividade internacional do país.
Três meses depois, um grupo de economistas cariocas e paulistas
(entre eles, Marcos Lisboa, da FGV-RJ, futuro secretário nacional de
Política Econômica do Ministério da Fazenda na primeira gestão Lula),
divulga um documento intitulado “A Agenda Perdida: diagnóstico e
propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social”,
no qual se propõe a analisar as causas estruturais da estagnação
econômica e da desigualdade de renda no Brasil e discutir reformas
microeconômicas. As bases da pauta sugerida pela Agenda Perdida
aprofundam e criam uma coerência conceitual à “Carta”.
Vejamos seus principais tópicos:
A. D
 ependência de poupança externa e instabilidade: a evidência
empírica de diversos países em desenvolvimento indica que,
para uma taxa de crescimento da renda nacional de 5% ao
ano, seria necessário que a taxa de investimento brasileira
passasse de 20% para cerca de 25% da renda nacional.
B. N
 ecessidade de recuperação da poupança pública: o aumento
do custo real do investimento e a dificuldade em manter os
atuais níveis de poupança externa indicam a necessidade de
recuperar a poupança.
C. Aumento do crédito privado: o alto spread bancário é um
dos responsáveis pelo reduzido nível de investimento na
economia brasileira. Seus determinantes são de ordem micro-
econômica e seus principais componentes são os seguintes: a
cunha fiscal (impostos e tributos sobre operações financeiras),
o custo administrativo, a provisão para cobrir a inadimplência
e o lucro da intermediação financeira.
D. A
 ausência de efetividade das políticas sociais: não advém da
falta de recursos, nem da ausência de programas modernos

56 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

e inovadores. A maior parte dos recursos, entretanto, não


beneficia os mais pobres, que recebem menos de ¼ do total.
E. Fraco desempenho educacional.
F. Justiça do Trabalho e Previdência: a universalização da se-
guridade social implementada pela Constituição de 1988 não
distingue aqueles que contribuem para a Previdência daqueles
que são atendidos sem ter contribuído para seus serviços. O
fato de que os contribuintes que ganham em torno de um
salário mínimo mudam muitas vezes de emprego e, em geral,
demoram muito ou não conseguem obter a aposentadoria por
tempo de contribuição.
G. Reforma
 Tributária e aumento de oferta de bons empregos:
a eliminação do imposto e do monopólio sindical [criaria]
concorrência entre diferentes sindicatos da mesma categoria,
valorizaria a filiação e tornaria a organização sindical mais
responsável perante sua clientela. (...) Por fim, para evitar
que toda negociação acabe na Justiça do Trabalho de dirimir
conflitos entre as partes (...) devem ser resolvidos por meio
de negociações diretas entre sindicatos e empresas (...). Em
seu lugar [poder normativo da Justiça do Trabalho] deveriam
ser criados sistemas de mediação e arbitragem, tanto públicos
quanto privados.
H. Integração com comércio mundial e política industrial: a
baixa taxa de comércio do Brasil decorre parcialmente do
protecionismo das economias avançadas (...).
I. P
 olíticas que aumentem simultaneamente importações e
exportações reduzem a dependência em relação aos fluxos
de capital externos. Políticas de Expansão de Crédito: alguns
custos fiscais, como a CPMF, incidem sobre o montante da
operação realizada, e não sobre o valor do serviço gerado,
tendo consequências importantes sobre o spread bancário que

Lulismo em seu esboço 57


LULISMO | Rudá Ricci

depende dos prazos do crédito concedido ou obtido. Os deve-


dores não veem a cobrança judicial como uma forma crível de
recuperação do crédito [e] (...) usam a Justiça como forma de
postergar seus pagamentos. (...) Por fim (...) o longo processo
de falência implica, na melhor das hipóteses, o recebimento
dos créditos concedidos em valores depreciados.
J. P
 revidência e Gestão do Estado: não há uma análise sistemática
dos programas [sociais], em particular, da proporção de recur-
sos gastos com atividades-meio em relação às atividades-fim
da ação pública. Um dos fatores responsáveis pelo aumento
do gasto público nas últimas décadas é a Previdência Social.
(...) Se o sistema em vigor permanecer, por volta de 2020,
teremos de escolher entre aumentar a idade de aposentadoria,
cortar benefícios, elevar as contribuições ou financiar ainda
mais o programa com impostos cobrados de toda a sociedade.
Os dez itens destacados acima revelam uma agenda de ação
governamental, buscando interpretar e garantir as expectativas dos
agentes econômicos. Há um eixo de argumentação ou diagnóstico
inicial que organiza as análises e proposições subsequentes. Este
eixo articulador parte de uma tríplice constatação: a) é necessário
reverter a baixa taxa de investimento nacional; b) para tanto, faz-se
necessário recuperar a poupança pública e; c) estimular e garantir o
aumento do crédito privado.
É deste diagnóstico que nasce uma agenda de reformas, que
objetiva criar um ambiente de confiança e segurança nos investi-
mentos diretos.
Reformas da Justiça do Trabalho, Previdência, Política Tribu-
tária somam-se ao equilíbrio e estímulo simultâneo às exportações
e importações.
Paralelamente, sustentando um cenário de coesão social e crença
no desenvolvimento, sugere-se maior efetividade das políticas sociais,

58 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

destacando-se melhoria do desempenho educacional. As políticas


sociais compõem um ambiente econômico propício para reverter a
dependência do fluxo de capital externo. Daí a persistência em de-
nunciar a falta de efetividade da política social brasileira não como
ausência de recursos, mas como “má focalização dos gastos sociais”
(p. 45 do referido documento). O documento afirma que existiria uma
estimativa que menos de 25% do gasto social beneficiaria efetivamente
a população pobre.
A focalização é apresentada como ordenamento do gasto social,
acompanhada de um rigoroso sistema de avaliação de resultados.
Em termos práticos, a sugestão em relação à política social é assim
apresentada:
1. A
 gir diretamente sobre a desigualdade: o crescimento eco-
nômico é impotente para reduzir a pobreza em situações de
profunda desigualdade social, como o caso brasileiro;
2. P
 olíticas estruturais e compensatórias: expansão da capacidade
de geração de renda dos pobres (aumento de produtividade
ou garantia de valorização do que produzem), aumentando o
acesso à educação, crédito produtivo popular e terra (reforma
agrária); além de programas de transferência de renda sem
transformação de capacidade de geração de renda (como é o
caso da aposentadoria rural). Educação e aumento da quali-
ficação de trabalhadores pobres é destacado como eixo desta
intervenção estatal;
3. P
 olíticas sociais e crescimento econômico: o documento sugere
a preparação da população mais pobre para que aproveite o
futuro processo de crescimento (com possível entrada de ca-
pital produtivo no país, investimentos domésticos e avanços
tecnológicos). Sugere apoio à produção popular, garantindo
condições de comercialização e acesso a mercados, incluindo
o de crédito;

Lulismo em seu esboço 59


LULISMO | Rudá Ricci

4. S
 etor privado e provisão de serviços: o documento questiona
se a produção de serviços públicos deve ser realizada exclu-
sivamente pelo setor público ou em conjunto com o setor
privado, “trazendo maior eficiência à produção” (p. 49);
5. D
 escentralização: estímulo à participação local como forma de
aumentar tanto a eficiência quanto a flexibilidade no desenho
das políticas sociais;
6. U
 nificação do orçamento social da União e coordenação
de políticas.

Há uma combinação de ações que dialoga com várias escolas


de pensamento em políticas públicas: focalização, políticas com-
pensatórias, crédito popular e preparação para ingresso no mercado
em expansão, de um lado; e reforma agrária, descentralização das
políticas, coordenação central das políticas sociais e críticas à vincu-
lação do crescimento econômico como possibilidade de diminuição
da desigualdade social, de outro. Um arranjo programático da área
social que procura não transparecer certa ambiguidade ou discurso
heterodoxo em excesso. A ambiguidade aparece justamente porque
as políticas sociais se subordinam à criação de um ambiente seguro
para os investimentos econômicos e oferta de crédito privado e não
necessariamente como justiça ou promoção social (até então, mote
das formulações de agendas de governo das forças políticas de es-
querda do país).
Os documentos disponibilizados pelo Ministério da Fazenda a
partir da posse da gestão Lula adotam esta perspectiva na sua tota-
lidade. Um exemplo é a Agenda do Crescimento e o Roteiro para a
nova agenda de Desenvolvimento Econômico, de 17 de junho de 2003.
Na Agenda do Crescimento, em seu capítulo “objetivos da política
econômica de 2003”, são destacados os seis itens que caracterizaram
a ação governamental no período: reverter a aceleração inflacionária;

60 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

reduzir as taxas reais de juros de mercado; assegurar a solvência


externa; alongar a dívida pública; garantir a sustentabilidade das
contas públicas; assentar as bases do crescimento em 2004-2007. Já
no caso do Roteiro para a nova agenda de Desenvolvimento Econômi-
co, seus objetivos centrais são: promoção do crescimento econômico
sustentável com melhoria do bem estar social e aumento do volume
de comércio exterior. Redução do custo Brasil (com investimento em
infraestrutura, comércio externo e investimento tecnológico industrial)
é definida como ação prioritária. Daí desponta a possibilidade das
Parcerias Público-Privadas no investimento em energia, transporte e
saneamento básico. A relação entre setor público e setor privado é
destacada ao longo de todo o documento.
É perceptível a ausência de identidade com o discurso desenvol-
vimentista clássico, restringindo-se à tímida tentativa de cimentar as
bases para o crescimento nos próximos quatro anos. Antes da divul-
gação desses dois documentos, alguns economistas petistas, como
Maria Conceição Tavares, sustentaram uma dura crítica nos jornais
da grande imprensa, em especial, no que tange à proposta de foca-
lização das políticas sociais que, aos poucos, passou a figurar como
elemento central das propostas formuladas pelo Ministério da Fazenda.
Na mesma trilha, Márcio Pochman, outro economista petista e então
secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade
de São Paulo, denominou a focalização de “inversão dos termos do
debate”, porque atribui aos gastos sociais a responsabilidade única
pela redução da desigualdade social brasileira. Para Pochman, naque-
la altura, as causas da desigualdade residiam na financeirização da
economia e na estrutura tributária regressiva. Outros economistas se
seguiram criticando a focalização por excluir famílias que estariam
acima da linha de pobreza, mas que vivem situação de precariedade
e instabilidade, em especial, em países com frágil estrutura de mer-
cado de trabalho, como afirma Laura Tavares Soares (ver, adiante, no
capítulo 3 deste livro).

Lulismo em seu esboço 61


LULISMO | Rudá Ricci

Não há, a partir desta nova agenda, qualquer sugestão de al-


teração profunda da estrutura produtiva, o que inclui a estrutura
fundiária do país, a adoção de impostos progressivos, discriminação
dos investimentos públicos a partir de critérios sociais. Seria uma
incongruência porque estabeleceria o conflito de interesses a partir da
política econômica. E esta é a crítica velada que os documentos aqui
analisados sustentaram em relação à pauta tradicional da esquerda
brasileira. Em suma, teria nascido um novo paradigma econômico
petista (ou lulista) a partir de então.

O estilo: a premência em ser popular


Desde o início da gestão Lula, vários cientistas sociais travaram
um debate acadêmico a respeito do seu estilo de governar. Uma das
polêmicas iniciais foi a característica carismática explorada por Lula
desde a campanha eleitoral. Em entrevista concedida ao jornal Folha
de S. Paulo, em novembro de 2002, o sociólogo José de Souza Martins
analisou o discurso de Lula como sedutor, porque a aparência do líder
carismático é de alguém igual a todos, mas que carrega um dever
social. É igual e diferente, ao mesmo tempo, sugeria. E é diferente
porque foi escolhido, quase em sacrifício. Sustentou que este estilo
foi elaborado por padres progressistas do ABC paulista, mas que se
espraiou pelo país através das Comunidades Eclesiais de Base.
Esta proposição analítica, instigante, não desvela a complexidade
do lulismo, embora revele um traço marcante do personagem Lula.
Relação, por sinal, que não foi objeto da análise de Martins.13 Lula
possui traços carismáticos desenvolvidos desde sua época de líder
sindical. Nunca houve ingenuidade em relação à produção simbólica
da liderança de Lula. Contudo, o governo Lula (e, consequentemente,
o lulismo) não se resume a este estilo pessoal. A composição básica
do governo Lula atualiza alguns elementos centrais do ideário da
esquerda latino-americana (que, aliás, lança mão, de tempos em
tempos, do discurso carismático). O profissionalismo e o etapismo

62 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

político constituem a pauta que orientou a ação do PCB, em especial,


ao longo de seus primeiros cinquenta anos de existência. Também
compõe este ideário o projeto nacional-desenvolvimentista. No caso
do lulismo, o projeto desenvolvimentista se subordinou à lógica de
alianças, embora mantenha a articulação pluriclassista que geraria a
governabilidade necessária para que o Estado promova as reformas
historicamente necessárias. O Estado, assim, permanece no lulismo
como protagonista da ação pública. O carisma de Lula, portanto,
compõe uma estratégia racional de gestão e não meramente emocional
e afetiva como se dá na dominação carismática.
Não possui os elementos clássicos do messianismo, a oposição
aos limites impostos pela tradição ou legalidade. Ao contrário, os
traços carismáticos são empregados como mediação e não como
fim. O arco de alianças é forjado a partir da capacidade de Lula
em atrair e seduzir amplas massas sociais e, de outro lado, pela
segurança que pode garantir aos agentes econômicos. Esta dupla
face possibilita uma avaliação, por parte das forças políticas que
integram o arco de alianças governistas, sobre os riscos e vantagens
da composição. O carisma é um recurso utilizado à exaustão como
um diferencial do lulismo, um ganho para a estabilidade do país.
Não deixa de potencializar o vanguardismo de esquerda, na medida
em que personaliza esta capacidade de governo ou é veladamente
trabalhada como instrumento essencial para a estabilidade do país,
até que a pauta reformista se complete. Assim, fica evidente que as
reformas que garantirão a segurança para o mercado geram um cus-
to social e político que outro líder não teria condições de conduzir.
O apelo carismático possui este lugar e papel. Este ingrediente es-
pecial do lulismo, fundado na oratória carismática cristã, somado
à prática organizativa clássica da esquerda e projeto econômico de
caráter liberal, cria um poderoso repertório político, embora insu-
ficiente para desenhar um programa estratégico. Aliás, justamente
porque é insuficiente, o carisma é empregado à exaustão. Trata-se
de um instrumento racional de condução política, ao contrário do

Lulismo em seu esboço 63


LULISMO | Rudá Ricci

irracionalismo da dominação carismática clássica. É um estilo que


dialoga com a cultura política ambivalente do país. A ambivalência
da cultura política brasileira sugere resquícios de uma organização
social de tipo estamental. Assim, o estilo pessoal de Lula compõe a
engenharia política operada pelo lulismo.
O lulismo reporta-se à leitura específica da esquerda brasileira,
caudatária da crença do papel protagonista do Estado como ator pri-
vilegiado das transformações sociais e políticas do país. Uma leitura
peculiar que se relaciona com o conceito de capitalismo tardio.
O Estado assumiria o papel de demiurgo de nosso desenvolvimen-
to e ordenamento social. Daí decorreria uma profunda desconfiança à
participação efetiva da sociedade no processo decisório das políticas
públicas, redundando na “estatalização da sociedade”, ou controle
exacerbado das ações sociais pelas agências estatais.
Os traços de nossa cultura política ambivalente reforçariam ainda
mais a crença no protagonismo do Estado. O lulismo dá continuidade
a esta leitura tradicional da esquerda brasileira e rompe com o que
havia de mais inovador no petismo. Neste sentido, reaproxima a
prática das esquerdas às práticas das elites políticas do país. Assume,
assim, contornos conservadores em relação à prática política. E torna-
-se refém da busca permanente de popularidade, justamente porque
os canais de contato direto do governo com a base social do país são
obstruídos pela gestão altamente centralizada.
O ciclo vicioso se completa e explica esta convergência peculiar
entre discurso carismático, pragmatismo sindical e vanguardismo
esquerdista.
O lulismo revela-se, assim, uma importante novidade sociológica
e política para o Brasil. E é ainda uma novidade mais significativa
para a trajetória do Partido dos Trabalhadores e a construção de um
ideário democrático-popular em nosso país. E, como prática de es-
querda, é uma volta para o futuro. Entretanto, o lulismo entra numa

64 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

fase de interregno com a crise aberta ao longo da primeira gestão de


Lula, sendo retomado em cores mais vivas, e com mais consistência,
durante o segundo mandato.
Para compreendermos este hiato em sua formulação, lembremos
os momentos de tensão inicial da gestão, desaguando nas denúncias
de corrupção que ficaram cunhados na grande imprensa nacional de
“mensalão”. A crise instalada gerou rupturas mais profundas que o
mérito das ações governamentais. A frustração de parte significativa
das lideranças sociais intermediárias espraiadas pelo país e que apoia-
vam incondicionalmente o governo federal gestou um sofrido ritual
de passagem. O lulismo, desde então, deslocou-se para uma relação
direta com as populações marginalizadas do país, sem o esforço de
mediação política desses quadros intermediários (agentes pastorais,
operadores de organizações não governamentais, padres, lideranças
de entidades de representação social).
Comecemos pelo início da ruptura, com a adoção da agenda
das reformas tributária e previdenciária, nos primeiros meses da
primeira gestão.14

Os primeiros embates: 2003


A proposta de reforma previdenciária enviada pelo governo
federal ao Congresso foi bem recebida pela população. Pesquisa
CNT/Sensus de 03 de junho de 2003 indicava que 66% apoiavam
o projeto e 51% apoiavam a taxação sobre inativos. Contudo,
duas semanas depois, vários dirigentes do PT começaram a ser
hostilizados por funcionários públicos. O líder do PT na Câmara
Federal foi chamado de pelego e traidor. Começava aí uma lenta
debandada de parte dos sindicalistas cutistas do funcionalismo
público para centrais sindicais mais à esquerda. Em julho, a
Comissão Especial da Câmara que analisava a reforma foi pal-
co de tumulto, tapas, parlamentares cercados por funcionários.

Lulismo em seu esboço 65


LULISMO | Rudá Ricci

O deputado petista João Paulo (que mais tarde estaria no centro


do maior escândalo envolvendo o governo Lula) acionou a polícia,
que ingressou no parlamento, investida do poder simbólico de uma
tropa de choque. A votação foi obstruída e a bancada governista
substituiu sete de seus membros nesta comissão. Mas o relatório
governista foi aprovado.
Na outra ponta, iniciava a pressão pela reforma tributária. No
final de junho, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) organizou
uma marcha em Brasília, composta pelo público inusitado de quinhen-
tos empresários, para entregar a sua proposta de reforma tributária
ao Congresso Nacional. A proposta adotava o eixo de uma militância
que praticamente se transformara em cantilena empresarial: conter o
aumento da tributação que, segundo comunicados dos empresários,
poderia ultrapassar os 40% do PIB com as propostas em discussão.
Também demandavam mudanças – ou extinção – da CPMF. O governo
federal, por seu turno, concentrou seus esforços na prorrogação da
CPMF, o repasse de 25% do Cide (imposto sobre combustíveis) para
os estados e a prorrogação da DRU (Desvinculação de Receitas da
União), que possibilitava manejo de 20% do orçamento da União.
No final de agosto e início de setembro já havia sinais de descon-
fiança, por parte da grande imprensa, a respeito da montagem dos car-
gos de livre provimento e ações políticas da cúpula do governo federal.
A seleção de currículos para preenchimento de cargos nos ministérios,
que se iniciava com envio pelos diretórios municipais do PT para um
sistema centralizado de análise na Casa Civil, começava a chamar a
atenção de muitos jornalistas. Em setembro, o ministro do Supremo
Tribunal Federal, Maurício Corrêa, afirmou que o presidente Lula
revelava-se deslumbrado com ternos, gravatas, helicópteros, jatinhos
e criadagem.
Mas o governo federal continuava na dianteira e no início de
setembro anunciava o esboço da terceira reforma: a trabalhista. Em
outubro, mais outra proposta de reforma entra na pauta do governo:

66 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

a sindical. Em novembro, em viagem à África, o presidente Lula


anuncia seu interesse em emplacar uma quinta reforma: a política,
sublinhando a necessidade de adoção da obrigatoriedade da fidelidade
partidária e financiamento público de campanha.
O que se vislumbrava era uma tensão constante. De um lado,
um fôlego ao estilo do governo Collor de gerar mudanças e reformas,
por parte do governo. De outro, uma desconfiança em curso dos for-
madores de opinião, a respeito da ocupação de espaços e intenções
políticas do partido do presidente da República. A grande imprensa
se valia da acusação de que o governo federal desprezava a classe
média. Um argumento que, pelo avesso, prenunciava uma reviravolta
na força da grande imprensa como formadora de opinião do país.
Já havia sinais de certa independência de setores menos abastados
da sociedade em relação às opiniões políticas e culturais dos setores
médios. Mais adiante, a emergência da nova classe média romperia de
vez a equação política apoiada no “círculo concêntrico da formação de
opinião” em que bastava convencer as classes médias e instruídas do
país que, pouco a pouco, as outras camadas sociais seriam atingidas
e convencidas.
Pela esquerda também havia rupturas. Mas, neste caso, rupturas
que alimentavam a formatação do lulismo, porque diminuía uma
das pontas ideológicas do petismo, possibilitando um “caminho
ao centro”. Em dezembro Francisco de Oliveira, Leandro Konder e
Carlos Nelson Coutinho anunciavam a desfiliação do PT, logo após
a expulsão de quatro parlamentares do partido que formariam, mais
adiante, o PSol.15
Em relação às políticas sociais, o terreno também estava minado.
Num primeiro momento, a política social ficou limitada ao programa
Fome Zero, dirigido por José Graziano da Silva. Graziano, formulador
das políticas agrárias em todas as candidaturas de Lula (desde a cam-
panha para governador paulista, em 1982), notabilizou-se no PT por
questionar a necessidade econômica da reforma agrária, reduzindo-a

Lulismo em seu esboço 67


LULISMO | Rudá Ricci

à política de caráter social, voltada para a incorporação ao mercado


de segmentos sociais rurais descapitalizados (posição defendida em
artigos técnicos desde 1985).
Aos poucos, críticas públicas passaram da ausência de um foco
ou estratégia definida do governo para a impossibilidade de investi-
mentos na área em virtude do aperto fiscal e elevação crescente da
taxa de juros básica (Selic). Até mesmo Joaquim Levy, o comedido
dirigente do Tesouro Nacional, publicizou suas críticas em relação
aos efeitos corrosivos da taxa Selic.
A focalização das políticas sociais tomou lugar neste debate público
a partir dos documentos Agenda Perdida e Política Econômica e Refor-
mas Estruturais, ambos produzidos pouco antes da posse do presidente
Lula. Os dois documentos destacavam a dispersão de recursos públicos
investidos na área social, gerando o paradoxo de os programas de
combate a pobreza serem apropriados por segmentos de classe media.
A focalização, concluíam, seria mais precisa e justa. A formulação
original desta proposição tem origem liberal, mais precisamente, nas
produções acadêmicas da Universidade de Princeton. O fato é que
a polêmica não foi equalizada pelo governo federal neste primeiro
mandato, constituindo-se em área de atrito e tensão com movimentos
sociais, intelectuais de esquerda e pastorais sociais do país.

2004: caso Waldomiro como primeiro embate


contra o núcleo duro do lulismo
Procurando superar as tensões, Lula nomeou Patrus Ananias
como ministro da área social. Uma nomeação que, verificou-se,
não foi tranquila. Muitos analistas sugeriam que o presidente tinha
dificuldades para alterar o perfil de seu ministério, preso a acordos
e afetividades pessoais (HIPPOLITO, 2005, p. 94-95). O ministro mi-
neiro, com amplo trânsito no interior da Igreja Católica, desgastou-
-se, contudo, ao longo de 2004, imobilizado pela disputa do controle

68 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

político dos cadastros sociais com sua assessora direta, Ana Fonseca
(ex-coordenadora dos programas sociais do governo paulistano de
Marta Suplicy e que acabaria demissionária do governo federal). Com
o volume crescente de denúncias de desvios de verbas e corrupção
envolvendo correligionários de prefeitos de cidades interioranas, além
de disputas políticas com o segmento do programa Fome Zero que
tinha por objetivo constituir uma rede de controle social desta iniciati-
va, a manobra do presidente da República se deparou com obstáculos
iniciais não previstos. Este último conflito desaguou no afastamento
de Frei Betto e Ivo Poletto (formulador histórico da Comissão Pastoral
da Terra e da Cáritas Brasileira).
O montante dos gastos sociais do governo federal, em 2003, equi-
valeu a menos da metade das quantias efetivamente pagas no serviço
da dívida pública. Em 2004, reflexo desta performance, havia forte
incômodo entre entidades populares e agentes pastorais. Mas ainda
havia tolerância, de certa maneira atrelada a um raciocínio etapista
disseminado por Frei Betto, que escrevia artigos afirmando que eram
governo, mas não poder.
Além das críticas em relação à ausência de projeto estratégico e
contradição entre a política monetária e fiscal e investimentos sociais
necessários, generalizava-se a acusação de excessiva morosidade com
que o orçamento da área era executado. Levantamento do Instituto
de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em que avaliava a execução dos
programas de defesa dos direitos da criança e adolescente, revelava
que, até setembro de 2004, apenas 52,6% do orçamento de 187 mi-
lhões de reais do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil haviam
sido executados. Em relação ao Programa de Combate a Exploração
Sexual Infantil e ao Programa Brasil Escolarizado, foram executados,
respectivamente, 50% e 36% do orçamento. Finalmente, no mesmo
período, o Programa Primeiro Emprego teve seu orçamento executado
em 0,5%.

Lulismo em seu esboço 69


LULISMO | Rudá Ricci

Até o final de julho o governo havia investido pouco mais de


metade do total do dinheiro do orçamento previsto. Dos 21 programas
sociais com orçamento de R$ 34,1 bilhões, foram investidos R$ 17,03
bilhões (50,73%). Nos programas da Rede de Proteção Social, o índice
de investimento chegou a 56,25%.
Também contribuía para o clima de tensão política entre aliados
históricos a política de contenção do salário mínimo, cuja promessa
eleitoral tinha sido de dobrá-lo em quatro anos de gestão Lula.16
Contudo, a primeira adversidade politicamente sentida pelo
governo federal foi a partir do caso Waldomiro Diniz, cuja denún-
cia demoliu o monopólio do discurso ético do petismo, atingindo o
governo federal, e imobilizou seu principal articulador político: José
Dirceu.17 A acusação envolvia um dos principais homens de confiança
do ministro José Dirceu, que teria negociado com bicheiros o favo-
recimento em concorrências, em troca de propinas e contribuições
para campanhas eleitorais.
Finalmente, o aumento dos gastos não financeiros ao longo de
2004, na casa de 10% acima da inflação e, em complementação, o
aumento da carga tributária, criavam ambiente de tensão política
crescente. Estes fatos possibilitaram o aumento do tom do discurso
oposicionista que procurou explorar a ausência de gerenciamento
eficiente do governo federal.
A partir de setembro de 2004, o Banco Central elevou mensal-
mente a taxa de juros básica da economia, quase sempre meio ponto
percentual a cada vez. Razão fundamental: a inflação estaria dando
mostras de aumentar a ponto de comprometer a meta anual (5,1%
em 2005). O Banco Central entendia que a inflação brasileira era
provocada por aumento de demanda e procurava diminuir a liquidez
da economia. Desde o primeiro semestre de 2004, quando já eram
claros os sinais de que a economia estava em rota de crescimento,
após mais de 20 anos estagnada, também já era possível vislumbrar
qual seria o principal obstáculo à continuidade desse crescimento:

70 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

baixo investimento privado em ampliação da capacidade de pro-


dução das empresas, especialmente na indústria.18 Dessa forma, a
retomada do crescimento encontrava como resposta das empresas
a ampliação do uso da capacidade já instalada e não, ou em inex-
pressiva medida, o investimento em expansão dessa capacidade.
Duas razões se combinavam para gerar esse procedimento: a falta
de confiança na sustentabilidade do crescimento e a aversão dos
capitalistas e grandes empresários brasileiros a correr os riscos pró-
prios da dinâmica capitalista. Na medida em que cresce a ocupação
da capacidade instalada, ultrapassando em muitos casos os 80% as
empresas passam a encontrar cenário favorável para aumentar os
preços, em primeiro lugar nas vendas entre as próprias empresas e
a seguir repassando esses custos aumentados para os consumidores.
Não era difícil prever que a resposta governamental a esse quadro só
poderia ser a ditada pelas teses ortodoxas: manter a inflação dentro
da meta acordada com o FMI, o que só é concebido como possível
através da contenção do crescimento, reduzindo as atividades das
empresas e as compras dos consumidores, com a consequente re-
dução da queda do desemprego e o aprofundamento da queda da
renda dos trabalhadores.
Contudo, havia uma hipótese de interpretação sobre a política
governamental muito distinta do discurso oficial: entre os países
comumente classificados como “emergentes”, os latino-america-
nos (e especialmente o Brasil) eram, naquele momento, os mais
dependentes do afluxo de capitais especulativos para manter em
ordem suas contas externas e em funcionamento suas economias
domésticas. No Brasil, que retomou a liderança mundial absoluta
nas taxas reais de juros e alcançou a até então líder Turquia em
termos de taxas nominais, era essencial que não houvesse crise
internacional nem uma elevação significativa, abrupta ou em
poucos anos, da taxa de juros básica norte-americana, para que a
economia nacional não caísse em estagnação ou recessão. Com a
ausência de crises e a manutenção das taxas de juros internacionais

Lulismo em seu esboço 71


LULISMO | Rudá Ricci

em níveis relativamente baixos há alguns anos, chegou-se a uma


nova fase de alta liquidez internacional (abundância de capitais
para empréstimo, investimento e aplicações, a juros comparativa-
mente baixos). O Brasil era um dos principais beneficiários desses
recursos, mas, sobretudo sob a forma de capitais especulativos.
A moeda forte, ao entrar no país, era retida no Banco Central sob
a forma de divisas, transformando-se em reais que penetravam na
economia, pressionando a inflação. Assim, um dos componentes
fundamentais do modelo econômico brasileiro era diretamente
contraditório com uma das peças-chaves desse mesmo modelo, o
controle da inflação. As altas taxas de juros, consideradas essenciais
para a política anti-inflacionária, desempenharam igualmente um
papel contraditório, pois eram causa direta do crescimento explosivo
da dívida pública, ao obrigarem o governo a vender seus títulos a
uma taxa mais elevada.19 Nem os governos FHC, nem o governo
Lula, em seu ano e meio inicial, concentraram esforços, dentro de
um planejamento voltado estrategicamente para o crescimento, para
induzir a expansão da capacidade instalada das empresas e para en-
frentar os pontos de estrangulamento estratégicos na infraestrutura.
Pelo contrário, a política econômica concentrada exclusivamente em
torno da política monetária, fulcro da política anti-inflacionária, não
teria como disponibilizar recursos nem sinalizar ao empresariado de
modo a influenciá-lo no sentido de investir com base em prognós-
ticos de crescimento; nem teria como canalizar recursos, que pelo
contrário estavam sendo drasticamente cortados, para investimen-
tos em infraestrutura. Somente anos depois, com a formatação do
Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) este erro de rota seria
relativamente corrigido. Dessa forma, só restou ao governo um único
instrumento de política econômica voltada para o crescimento, o
programa de Parcerias Público-Privadas, a lei das PPPs. Um instru-
mento apresentado como pró-crescimento. O que revelava o quanto
o lulismo se forjou entre tentativas e erros.

72 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

O PIB deixou de cair no terceiro trimestre de 2003, quando subiu


2,4%, percentual que atingiu 7,3% no trimestre seguinte e se repetiu
no primeiro de 2004. Daí para a frente, o ritmo de crescimento foi
declinando: 6,0% no segundo semestre, 4,4% no terceiro e apenas
1,7% no último trimestre de 2004.
A dependência do fluxo de capital e do equilíbrio da economia
norte-americana era motivo de debates acadêmicos intensos, em es-
pecial, devido aos gigantescos déficits externo e interno dos Estados
Unidos e a progressiva perda de poder do dólar frente ao euro. Até
então, os setores exportadores garantiam a retomada do crescimento.
Com alta capacidade ociosa, com altos índices de desemprego entre
trabalhadores qualificados, disponibilidade de capitais, após um
prolongado período de estagnação, a própria dinâmica da retomada
do ciclo econômico tenderia a se dar pela liderança dos segmentos
exportadores para, a partir daí, se alastrar pelo restante da economia.
Mas, a seguir, a alta dos juros e a valorização do real fatalmente aca-
bariam por abater o ritmo de crescimento e, no que diz respeito ao
câmbio, esse efeito se voltaria especialmente sobre as exportações.
Como se pode perceber, o debate econômico, com raras exceções,
encontrava-se preso à armadilha do “pensamento único” liberal. As
grandes questões, nesse debate, eram: o comportamento da taxa de
juros, do câmbio, do déficit público, das despesas governamentais, das
contas externas, da taxa de inadimplência, do crédito ao consumidor.
Apesar das adversidades, as eleições de outubro de 2004 fortale-
ceram a polarização entre PT e PSDB. Um amplo debate acadêmico,
que envolveu analistas políticos, teve início sobre a pertinência da
consolidação de um sistema partidário com polaridade dominante
entre esses dois partidos. O PMDB parecia demonstrar desgaste cres-
cente, tendência que seria alterada nas eleições seguintes.
Outro debate que se iniciava era sobre o deslocamento do dis-
curso e do programa político do PT das classes trabalhadoras (menos

Lulismo em seu esboço 73


LULISMO | Rudá Ricci

abastadas e nitidamente operárias) para as classes médias (ANTUNES,


2006, p. 43).

Instabilidade: 2005
Foi um ano marcado pela instabilidade. A proximidade das elei-
ções para governos estaduais e governo federal aumentou o grau de
disputa institucional, em razão de interesses políticos. Um ingrediente
a mais criava uma situação de baixa previsibilidade para o governo
federal: a eleição de Severino Cavalcanti para a Presidência da Câ-
mara Federal, já que exigiria deslocamento do Executivo federal em
suas negociações com o parlamento, buscando atender a demanda
pulverizada das lideranças parlamentares de pouca expressão pública
que gravitavam ao redor da figura de Cavalcanti, considerado líder do
chamado “baixo clero” do Congresso Nacional. O termo foi cunha-
do por Uliysses Guimarães para nomear deputados de pouca ex-
pressão e poder movidos principalmente por interesses pessoais.
O baixo clero do Congresso Nacional se movimenta em pêndu-
los. Ora, numa reação em cadeia, como ocorreu nesta eleição de
Severino Cavalcanti. Ora, como ameaça surda, que se esquiva
aqui e acolá, mas se remete a acordos personalizados, troca de
pequenos favores e conquista espaços relevantes na República.
O baixo clero, desde então, se aglutinou em partidos governistas
(PMDB, PR e PTB) e passou a somar 230 votos na Câmara Federal,
quase metade da Câmara Baixa.20
Previa-se que o cenário instável alimentaria a agressividade da
oposição, em especial, aquela liderada pelo PSDB paulista, tendo à
frente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Também era visível
a inflexão do MST e alguns movimentos sociais e de agentes pastorais
na direção de uma tímida oposição ao governo federal.
Desde o início do governo Lula, o caráter e natureza das políticas
sociais geraram embates internos no partido do presidente da Repú-

74 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

blica, contagiando vários ministérios e dirigentes governamentais.


O Ministério da Fazenda saiu à frente dos outros ministérios, elabo-
rando estratégias articuladas para a área o que gerou conflitos internos
no governo. O fato em si revelava que não havia, até então, uma ins-
tância governamental dedicada a tal formulação. Algumas lideranças
petistas revelaram toda sua discordância e perplexidade, como foi o
caso de Maria Conceição Tavares que criticou duramente a adoção da
focalização das políticas sociais elaboradas pela Secretaria Nacional
de Política Econômica do Ministério da Fazenda. O que demonstra
uma fase inacabada do lulismo.
No início de 2005, as políticas sociais do governo permanece-
ram como alvos preferenciais de denúncias e críticas quanto a sua
eficiência e eficácia. Várias reportagens demonstravam um quadro
desconcertante: 1.107 servidores públicos municipais de Teresina
recebiam Bolsa Família. Tal quadro expôs a frágil estrutura montada
pelo programa e as dificuldades operacionais e políticas que o ministro
Patrus Ananias vinha sofrendo. O argumento de técnicos do Ministé-
rio centrava-se no modelo de cadastro de famílias beneficiadas e até
dificuldades de acesso a este cadastro, ainda controlado pelas forças
políticas que antecederam o ministro Patrus.
Num esforço de construção de um cenário ou visão panorâmica
da ação errática do governo federal na área social, é possível indicar
os momentos mais significativos de sua ação e formulação, durante
os dois primeiros anos do lulismo:
a) R
 eforma Previdenciária: primeiro projeto legislativo enviado ao
Congresso pelo governo federal (aprovado no final de 2003),
a reforma atingiu o sistema previdenciário dos servidores
públicos, estabelecendo teto para as aposentadorias dos se-
tores público e privado e criava a previdência complementar.
A proposta mantinha os mesmos princípios de reestruturação
dos gastos públicos iniciada no governo FHC;

Lulismo em seu esboço 75


LULISMO | Rudá Ricci

b) P
 rograma Fome Zero: composto pelo cartão-alimentação, dis-
tribuição de cestas básicas, criação de restaurantes populares
e bancos de alimentos, compra direta de alimentos, constru-
ção de poços artesianos, distribuição de leite, alfabetização,
habitação popular, além de ações denominadas estruturais
(como a reforma agrária, política progressivamente descon-
siderada pelo lulismo), o programa revelou, desde o início,
dificuldades agudas de coordenação e articulação interna.
O projeto inicial contemplava três conjuntos de iniciativas:
políticas estruturais (geração de emprego e renda, previdên-
cia social, agricultura familiar, reforma agrária, bolsa-escola
e renda mínima); políticas específicas (cupom-alimentação,
doações de cestas básicas e combate à desnutrição, entre
outros) e políticas para áreas rurais, pequenas e médias cida-
des e metrópoles. Entretanto, não houve articulação dessas
frentes. O Ministério de Segurança Alimentar, criado como
coordenador do programa, acabou sendo fundido, no final
de 2003, ao Ministério da Assistência Social. Outra medida
foi a fusão do Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e Auxílio-Gás
num único cartão e programa, o Bolsa Família;
c) P
 rograma Primeiro Emprego: divulgado como uma ambiciosa
iniciativa governamental, inspirada nas políticas coordenadas
por Márcio Pochmann na Prefeitura de São Paulo, o progra-
ma procurava atender o segmento social mais vulnerável ao
desemprego, aquele que atinge até os 25 anos de idade (50%
de taxa de desemprego nas capitais brasileiras). Contudo, a
grande imprensa revelou que até meados de 2004, apenas
um candidato havia conseguido seu emprego através deste
programa, em todo o território nacional;
d) R
 eforma Agrária: programa-símbolo do PT, as metas de assen-
tamento também não foram cumpridas. Em 2003, dos sessenta
mil assentados previstos, o governo federal conseguiu efetivar

76 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

apenas 36,8 mil, índice muito próximo das médias alcançadas


pelo governo FHC nesta área. A meta para o primeiro semes-
tre de 2004 era de 47 mil, mas apenas 21,7 mil trabalhadores
rurais foram assentados. Segundo levantamento realizado
pelo Incra 200 mil famílias encontravam-se acampadas em
beira de rodovias à espera de terra. Um assentamento de uma
família custava, em média, R$ 25 mil reais (R$ 3 mil no Piauí
e R$ 90 mil em São Paulo). É possível perceber, na análise
do orçamento federal, limites reais para efetivação das metas
governamentais. No final de fevereiro, o ministro Miguel Ros-
setto divulgou seu descontentamento com o congelamento
orçamentário de R$ 2 bilhões, reduzindo os recursos para
reforma agrária em 2005 em 25% do disponível em 2004.21
Ademais, o embate político ganhou espaço a partir da derrota do
PT nas eleições de São Paulo (cidade e estado) e a derrota governa-
mental na Câmara Federal. Com efeito, a oposição mais robusta ao
governo Lula sempre partiu do PSDB paulista, que saiu fortalecida das
eleições. Já a eleição das Mesas do Congresso Nacional foi um dos
eventos mais relevantes para a política do início de 2005, assinalando
uma derrota histórica do governo petista. Os cenários de Câmara e
Senado mostraram-se opostos: o descarte da emenda que possibili-
tava a reeleição nas Mesas de cada uma das Casas significou, para o
Senado, a ratificação do nome de Renan Calheiros (PMDB-AL) para
a Presidência; na Câmara, a impossibilidade de recondução de João
Paulo Cunha (PT-SP) abriu uma disputa interna delicada na bancada
do PT. Pelo menos sete petistas disputavam a indicação oficial para a
Presidência da Câmara: Virgilio Guimarães (MG), Professor Luizinho
(SP), Arlindo Chinaglia (SP), Luiz Eduardo Greenhalg (SP), Walter
Pinheiro (BA), Paulo Delgado (MG) e Paulo Rocha (PA).
Os quatro primeiros deputados iriam disputar a indicação do
partido, mas acabaram renunciando em favor do nome de Greenhalg.
Virgilio Guimarães, entretanto, voltou atrás, sustentando uma candi-

Lulismo em seu esboço 77


LULISMO | Rudá Ricci

datura avulsa contra o paulista. A divisão no PT acabou por oferecer


condições a outras candidaturas, em especial de José Carlos Aleluia
(PFL-BA) e Severino Cavalcanti (PP-PE).
A campanha para a Presidência da Câmara adquiriu dimensões
inéditas, levando a uma disputa belicosa para os demais cargos da
Mesa (com exceção da Segunda e Terceira-Secretarias, indicadas
respectivamente pelo PTB e pelo PSDB, que contaram com candi-
dato único, todos os outros cargos foram disputados por dois ou
mais deputados).
Com cinco candidatos no páreo, o PT e o governo procuravam
evitar a todo custo um segundo turno.
Virgilio Guimarães perdeu a segunda colocação em primeiro
turno para Severino por sete votos apenas, ficando de fora da disputa.
Conseguiu, entretanto, transferir todo seu apoio para o pepebista.
Greenhalg teve, em segundo turno, 12 votos a menos do que havia
conseguido no primeiro turno. Severino venceu por uma margem
folgada, mais de 100 votos.
A eleição da Mesa da Câmara para a terceira Sessão Legislativa
dessa Legislatura (período de quatro anos, iniciado em 15 de fevereiro
de 2003) pareceu trazer consigo um desenho da geopolítica da relação
entre Legislativo e Executivo. Ao passo em que a influência do Sudeste
era marcante no governo (ministérios como Fazenda, Justiça, Desen-
volvimento Social, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior, dentre outros, encontram-se nas mãos de políticos
dessa região), a nova Mesa da Câmara contava com representantes
do Norte e do Nordeste brasileiro. A Mesa do Senado, por sua vez,
não possuía nenhum representante do Sul ou Sudeste.
A composição da Mesa da Câmara representou, portanto, uma
derrota do governo do PT, sinalizando a necessidade de reorga-
nização das forças políticas que o apoiavam. Após o fracasso de
Greenhalg, ganhou força o discurso de um “governo de coalizão”,

78 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

uma das marcas do lulismo em sua fase madura. Essa proposta in-
dicava redução da participação do PT no governo, principalmente
em ministérios estratégicos, como Saúde e Cidades. A já tradicional
divisão interna do PMDB instava o governo a aumentar os postos
governamentais a ser dirigidos por peemedebistas. Para garantir
a reeleição do presidente Lula, era necessário, ainda, aumentar
os espaços de PTB, PSB e PL, envolvendo comando de estatais e
agências reguladoras. E, paralelamente, tinha início a queda de
aliados históricos, atingindo duramente a liderança do então mi-
nistro Aldo Rebelo.
Mas ainda havia Roberto Jefferson no meio do caminho. Numa
entrevista típica da Era do Espetáculo, o deputado petebista discorreu
por várias linhas do jornal Folha de S. Paulo, de 07 de junho, o maior
dos pesadelos petistas. Principalmente para os petistas de base, aquela
base militante que defendia pela paixão, que carregava bandeiras e
distribuía panfletos aos desconhecidos transeuntes sem nada levar,
nem poder, nem cargo. Com a publicação da entrevista, começava a
morrer a militância afetiva do petismo. Por vários meses, lideranças
de base (sindicais, de movimentos sociais e entidades populares, além
de pastorais sociais e entidades confessionais de organização social)
se reuniram para tentar curar as feridas. O MST convocou reuniões
abertas, em várias capitais do país, para definir a postura correta a
seguir. Jefferson desfiava o que seria um imenso esquema de desvio
de recursos para pagamento mensal de deputados da base aliada.
O pragmatismo havia chegado ao que parecia o limite para a nova
esquerda que se forjou nos anos 1980. Um esquema conhecido e que
viria à tona em várias outras denúncias envolvendo os partidos mais
conservadores e tradicionais do sistema partidário brasileiro.
O que importa analisar sociologicamente deste episódio são as mu-
danças políticas que decorreram na relação do governo Lula com a sua
base social preferencial, os movimentos sociais e entidades populares:

Lulismo em seu esboço 79


LULISMO | Rudá Ricci

1. A
 profunda frustração que atingiu as lideranças intermediá-
rias não foi até então analisada com apuro. Mas as inúmeras
reuniões entre militantes sociais que procuravam entender o
que teria ocorrido terminaram, sem exceções, em um pacto
surdo, de não alimentação da reação das forças partidárias
mais à direita e, também, de afastamento em relação ao apoio
incondicional ao governo federal;
2. N
 este processo de afastamento político, vários interlocutores
importantes do governo Lula passaram a ser desdenhados
pelas lideranças sociais intermediárias;22
3. A
 s cúpulas das organizações populares e eclesiais foram mais
pragmáticas que as lideranças intermediárias e continuaram
mantendo relações protocolares com o governo federal;
4. A
 mudança mais significativa ocorreu na gestão política do
próprio governo. De um lado, após tentar, sem sucesso, a rea-
proximação com lideranças sociais, os discursos do presidente
reforçaram a relação direta com a base social do país, abusan-
do de termos populares e analogias de forte cunho didático,
adotando um tom professoral mesclado com ironia. De outro
lado, passou a negociar ministérios e direção de empresas
estatais diretamente com a cúpula partidária da base aliada;
5. F
 inalmente, o pragmatismo absolutamente racional passou
a atingir os auxiliares diretos do presidente que pudessem
criar qualquer embaraço ou contaminar a imagem pública
do lulismo, num típico movimento inspirado em Maquiavel.23
O afastamento em relação às lideranças sociais que constituíam
a base social do petismo foi gradativo, atingindo seu ápice em 2005.
Ivo Poletto, referência nos anos 1980 para muitos movimentos sociais
e Pastoral da Terra, assessor de Frei Betto no início do Fome Zero,
traduziu, a partir de sua experiência pessoal, o percurso que levaria
tantas outras lideranças intermediárias dos movimentos sociais que

80 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

sustentaram a criação do PT à frustração com o lulismo. O título do


livro que publica ao se retirar do governo Lula (POLETTO, 2005)
indica o sentimento reinante entre seus pares: o Brasil estava per-
dendo uma oportunidade histórica. Em tom de depoimento pessoal,
logo no início se questiona: “e a gente não pode esquecer da Carta
ao Povo Brasileiro, publicada por Lula na campanha. Resta saber,
agora, se o governo terá duas etapas: os compromissos da Carta no
começo, no primeiro ano talvez, e um programa novo, de mudanças
verdadeiras, em seguida.” (Ibidem, p. 21). Expressava, assim, um
sentimento que era comum ao longo do país, entre aqueles que não
eram dirigentes do partido, mas que tinham visibilidade junto à base
social organizada que liderou lutas por direitos sociais e construiu
o PT ao longo dos grotões do país: a busca do convencimento que
se tratava de um recuo tático do lulismo, cujos sinais custavam a
gerar segurança.
Poletto não foi coadjuvante. Compôs a equipe de Frei Betto,
assessor especial do Presidente da República, com a tarefa de criar
estruturas de controle social e educação popular junto às populações
que seriam atendidas pelo Fome Zero. Algo que se aproximava do
ideário original do “modo petista de governar”: o controle social sobre
políticas públicas.24 O diálogo que se seguiu ao convite de Frei Betto
para incorporar sua equipe, no governo, é esclarecedor da leitura que
lideranças intermediárias de várias lutas por direitos faziam sobre a
ambiguidade do governo Lula em seu início:
– O que espero de você e dos demais membros desta equipe é
que organizem um trabalho de educação popular junto às famílias
que serão atingidas pelo Fome Zero. São 11 milhões. Temos que
aproveitar tudo o que aprendemos com a Educação Popular, com
as Comunidades Eclesiais de Base, com o Movimento dos Sem
Terra (MST), com todas as frentes de trabalho popular e criar uma
proposta de trabalho educativo a ser realizada, agora, como parte
da política do governo federal. (...)
– Estou de acordo, Betto, e é essa possibilidade meio louca que me

Lulismo em seu esboço 81


LULISMO | Rudá Ricci

anima, em princípio, a aceitar o convite – respondi. – Agora, tenho


um porém: se, por trabalhar em espaço governamental, tiver de
assumir compromisso de aceitar e justificar a política econômica
que o governo está assumindo, conservadora e parecida demais
com a do governo anterior, em nome de tudo o que tenho feito
não tenho condições de aceitar a empreitada.
– Eu também não estou de acordo com a opção de política econô-
mica – retrucou Frei Betto. – O núcleo duro do governo diz que
não haveria condições para outra escolha, tal é a instabilidade
econômica e política em que se encontra o país.

O tom didático e épico do relato apenas confere dramaticidade à


tensão e dúvidas já instaladas a respeito do futuro do governo. Esta
desconfiança permaneceu quando da construção da rede de controle
social do Fome Zero. Lideranças articuladas ao redor da ação polí-
tica da igreja católica da Teologia da Libertação (Cáritas, regionais
da CNBB, Articulação do Semiárido/ASA), constituíram os núcleos
iniciais de reuniões de trabalho no Maranhão, ponto inicial de toda
estrutura que foi sendo criada a partir de equipes de educação po-
pular (denominadas por Frei Betto de “talheres”). Poletto relata todo
trabalho sem recursos orçamentários. Até mesmo a produção de uma
cartilha inicial não tinha como ser impressa (Ibidem, p. 57). Como o
próprio autor testemunha:
Era mais ou menos geral a sensação de que o Ministério Extra-
ordinário de Segurança Alimentar e Nutricional (Mesa) não dava
conta de sua responsabilidade: pouco ou nada coordenava as
ações de governo e era tímido em suas ações diretas. Vieram à
tona tensões existentes, desde o começo, no governo: até que
ponto é correta a existência de um Ministério para o Fome Zero?
Não seria melhor unificar as políticas sociais, de modo particular
as de transferência de renda? (Ibidem, p. 59)

O relato avança num depoimento que revela uma crise perma-


nente, como se esta equipe de governo, desde sempre, fora um anexo
do governo real, uma memória do que poderia ter sido. Ao apresen-

82 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

tarem a proposta de orçamento de dez milhões de reais para 2004,


toda equipe sentia que as garantias deste orçamento ser incluído na
proposta governamental eram mínimas. Em novembro de 2003, em
Belo Horizonte, cem pessoas envolvidas com o Fome Zero encon-
traram-se para avaliar o trabalho desenvolvido. Projetaram atingir
todos os municípios brasileiros no ano seguinte, através da rede das
equipes dos talheres e a formação de comitês gestores do programa,
com participação da sociedade civil no controle social. Contudo, o
anúncio do Bolsa Família foi compreendido como abandono, pelo
governo federal, do projeto original que os envolvia (Ibidem, p. 69).
No final de 2003, os comitês gestores do Fome Zero já haviam sido
destituídos. Em seu lugar, entravam instâncias dos governos estaduais
e municipais, criando uma rede de entes federativos que desmontava
todo o sistema e princípio do controle social sobre o programa. Um
testemunho de um militante social reconhecido nacionalmente que
ingressou no governo Lula para desenvolver o que pregara ao longo
dos anos 1980. E que indica o afastamento progressivo desde o pri-
meiro ano da gestão Lula, em 2003.
O lulismo se conformou e se consolidou nas adversidades e a
partir de uma nítida opção pela construção de consensos entre as
forças políticas tradicionais do país. Em especial, não houve intenção
de alterar a lógica da gestão de políticas públicas. O gerenciamento
político se sobrepôs, desde o início, ao ímpeto de ruptura com a lógica
política do país. Mais tarde, agregaria a esta opção o de ampliar o
mercado consumidor interno e criar um amplo sistema assistencial e
de fomento ao crescimento econômico. Um aggiornamento que o Brasil
já vivenciara em outros períodos de forte regulação e controle estatal.
Enfim, às vésperas do processo de reeleição do presidente Lula,
a pesquisa CNT/Sensus apresentava o pior nível de aprovação da
população do governo federal desde o início da sua gestão. O índice
de popularidade de Lula havia caído de 59,9% em julho para 50%
em setembro. Já a reprovação subiu de 30,2% para 39,4% no mesmo

Lulismo em seu esboço 83


LULISMO | Rudá Ricci

período. No mesmo sentido, a avaliação positiva do governo passou de


40,3% para 35,8%. A avaliação só não era pior do que a do primeiro
semestre de 2004 (29,4%), ocasião em que estouraram as denúncias
envolvendo o ex-assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz, flagrado
em vídeo negociando propina com um empresário do ramo de jogos.
De acordo com a pesquisa, a avaliação negativa do governo subiu
de 20% para 24%, praticamente o mesmo índice de junho de 2004,
que foi de 24,1%.
A pesquisa também apontava que, pela primeira vez, o governo
Lula era considerado mais corrupto que o governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). Em maio de 2004, 26,7% dos entrevistados
consideravam que a corrupção do Lula era maior que a do governo
FHC. Naquele momento, esse número subia para 48,9%, embora a
rejeição fosse muito superior nas classes mais abastadas, tema que
será retomado no próximo capítulo deste livro.
A trajetória da gestão Lula, em sua primeira versão, sofreu
adversidades desde o primeiro ano. Mas também fez opções que ob-
jetivavam eliminar arestas políticas e diminuir o campo da oposição
mais à direita. O lulismo foi se forjando a partir das adversidades:
optou por alterar sua política econômica limitada ao manejo dos
instrumentos monetários; optou por organizar e redefinir sua polí-
tica social; optou por consolidar o presidencialismo de coalizão. A
conjuntura forjou o lulismo ao longo do primeiro governo. Forçou
o governo a optar, o que acabou levando-o ao encontro do pragma-
tismo, do social-liberalismo e da ação política focada no controle
burocrático intenso e ininterruptos.

Notas:
1 Versão do texto produzido originalmente para o evento “Movimentos Sociais
e Governo Lula”, organizado pela Cáritas Nordeste II, realizado em Recife, em
04/11/2004 e publicado na revista Lutas Sociais 15-16, PUC-SP, com o título
Lulismo: três discursos e um estilo.

84 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

2 Este apelo esteve, desde a origem, nos documentos oficiais do Partido dos Tra-
balhadores, no momento em que o petismo vivia uma quase simbiose com os
novos movimentos sociais. Na Declaração Política de 13 de outubro de 1979,
destacava-se como uma das três grandes necessidades para a construção do
novo partido: “conquistar a política como uma atividade própria das massas
populares, que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as esferas
de poder na sociedade, não apenas nos momentos de disputas eleitorais, mas
também e principalmente nos momentos que permitem, a partir de sua prática
no dia a dia a construção de uma nova concepção de democracia com raízes nas
bases das sociedade e sustentada pelas decisões das maiorias.” (cf. Resoluções
de Encontros e Congressos (1979-1998), 1998).
3 Logo após a crise aberta pelo fracasso eleitoral de 1982, surgiram várias ten-
tativas de reorganização da agremiação, sendo a mais famosa a que gerou o
Manifesto dos 113, origem da corrente interna denominada Articulação, hoje
denominada Construindo um Novo Brasil (CNB). Ocorre que a Articulação sur-
giu como mecanismo de defesa partidária, como um núcleo de recomposição,
que desde a origem procurou diminuir os espaços e a influência de várias cor-
rentes originárias de organizações de esquerda, até pouco tempo clandestinas
e grande parte trotskistas. Em outras palavras, tratava-se de uma federação de
subcorrentes, autodenominadas internamente como “famílias”, quase sempre
vinculadas a lideranças pessoais por segmentos sociais ou grupos de interesse,
numa estrutura próxima da representação delegada. Justamente neste período
de 1982 a 1986, os embates internos na seção paulista foram se avolumando,
surgindo as primeiras tentativas de expulsão de correntes mais resistentes aos
novos rumos. E é justamente neste momento que se consolida uma burocracia
interna de controle político. A Secretaria de Organização foi, neste período, um
importante instrumento neste sentido, articulando antigas lideranças estudantis
residentes em regiões com baixa tradição de luta social, para criar diretórios
municipais. Foi a partir desta recomposição que alguns dirigentes não oriundos
de movimentos sociais (regiões de forte organização sindical ou influência da
Teologia da Libertação) conseguiram destaque na organização partidária. O ápice
deste processo foi a tentativa de expulsão de correntes internas não vinculadas
à Articulação, durante o processo de preparação do encontro petista da seção
paulista de 1986, envolvendo a Convergência Socialista (hoje, PSTU) e o PRC
(Partido Revolucionário Comunista, liderado por José Genoíno Neto, num processo
de ruptura com o PCdoB da Guerrilha do Araguaia).
4 Neste período, a direção executiva da seção paulista era composta por uma
paradoxal comunhão entre forças políticas da área de influência de ex-mili-
tantes da ALN (Ação Libertadora Nacional, defecção do Partido Comunista
Brasileiro, mas que no caso do PT configuravam uma segunda dissidência que
mantinham relações informais entre si, tendo em José Dirceu sua principal
liderança), ex-dirigentes da Libelu (Liberdade e Luta, trotskista, vinculada à
Organização Socialista Internacionalista, da qual fizeram parte Antonio Palocci,

Lulismo em seu esboço 85


LULISMO | Rudá Ricci

Clara Ant e Glauco Arbix) e representantes de Lula (na época, com destaque
para Paulo Okamoto). O período era de tal inflexão interna que Emir Sader
publica, em 1987, um livro organizado por ele cujo título era E Agora PT?
O livro adotava como mote uma série de questões, estampadas na sua contracapa,
onde figuravam: “o Partido dos Trabalhadores é um partido de vanguarda? Ou um
partido de massas? É grevista? Pacifista? Revolucionário ou social-democrata?”
(SADER, 1987). O ano de 1987 é, ainda, definido por muitas organizações de
esquerda que mais tarde saíram do PT como o momento mais à esquerda do
partido. Neste ano foi aprovado o Programa Democrático Popular, no 5º Encontro
do PT, que definiu as bases da linha de campanha de 1989. A Resolução Política
deste encontro identifica o crescimento da influência do partido junto aos setores
médios da sociedade, mais pelo insucesso do governo federal. Mas define o PT
como “força política socialista, independente e de massas”. O programa demo-
crático popular ficou, assim, concebido como acúmulo de forças.
5 Além dos núcleos profissionais e temáticos, o Partido dos Trabalhadores ex-
perimentou outras formas de vincular organicamente os intelectuais filiados
ao partido. Em 1990, foi formado o Governo Paralelo, logo após a vitória de
Fernando Collor de Mello, um arremedo do shadow cabinet inglês. Em seguida,
adotando uma estrutura mais estável e profissional, organizando alguns intelec-
tuais petistas em áreas específicas, foi criado o Instituto da Cidadania, com foco
na formulação de programa de governo para as campanhas eleitorais de Lula à
Presidência da República. Com a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, o Instituto
da Cidadania perde visibilidade pública. Emir Sader sugere: “É certo que desde
1989 Lula foi se distanciando das estruturas partidárias, construindo o que acabou
se tornando o Instituto de Cidadania que, de governo paralelo, se transformou
em um uma estrutura dirigida por Lula e assessores diretos, tendo como função
elaborar políticas alternativas. Até que passou a ocupar formalmente o lugar de
espaço de elaboração da plataforma da candidatura de Lula para as eleições de
2002. Quando o documento foi divulgado na sua primeira versão, dirigentes do
PT se apressaram a dizer que aquele projeto ainda teria que passar pelas estru-
turas oficiais do partido, mas se consolidava ali uma separação que foi se dando
ao longo do tempo entre Lula e as estruturas oficiais do PT. Não que estas não
aprovassem o programa de Lula e seus pronunciamentos, mas Lula tinha auto-
nomia para colocar em prática definições programáticas que só posteriormente
chegariam ao partido” (Cf. SADER, 2004).
6 Cf. Sader, Ibidem.
7 Destacavam-se, no período, as escolas 7 de Outubro (Belo Horizonte), Cajamar
(São Paulo), Equip (Recife) e Sul (Florianópolis). A CUT possui, hoje, sete escolas
sindicais: Escola Sul (Florianópolis), Escola São Paulo, Escola 7 de Outubro (Belo
Horizonte), Escola Amazônia (Belém), Escola Chico Mendes (Porto Velho), Escola
Centro-Oeste (Goiânia) e Escola Marise Paiva de Moraes (Recife). A Escola São
Paulo foi fundada em 1993, ano decisivo para a mudança da história das escolas

86 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

sindicais da CUT, e se oficializou em 1995, ano de formalização da rede sindical


própria da CUT. Dois anos depois se dedicava exclusivamente à formação para
sindicalistas. Esta é a informação oficial desta escola. Antes, toda estrutura da
escola constituía o Instituto Cajamar, cuja sede ficava na rodovia Anhanguera.
O Cajamar foi criado a partir de uma generosa proposta de formação política de
sindicalistas e militantes do Partido dos Trabalhadores. A ideia vinha na esteira
das discussões da Secretaria Nacional de Formação do PT, em 1985, data em que
se formalizou um conjunto de programas permanentes (seminários e cursos) de
formação militante e que desaguaria na 1ª Plenária Nacional de Formação Política
(1986). O Instituto Cajamar foi criado em julho daquele ano, como organização
educacional autônoma. A primeira atividade desta instituição foi um seminário
sobre participação popular na Assembleia Nacional Constituinte, realizado em
dezembro de 1986. O Cajamar já havia formado quase 3 mil militantes quando
se inicia a discussão para criação de uma rede de formação própria da CUT. A
Escola Sul foi criada em 1990. Foi se constituindo em referência no Sul do país e,
aos poucos, apadrinhada pelo secretário nacional de Formação Sindical da CUT
na época, Jorge Lorenzetti, foi ganhando projeção nacional. Foi, desde o início,
marcada por este signo ideológico de disputa interna no interior da central sindical.
A Escola Sindical 7 de Outubro foi fundada em 1987. Foi uma iniciativa ímpar
porque nasceu de um programa de cooperação com a Federação Italiana Metalúr-
gica, vinculada à Central Italiana de Sindicatos de Trabalhadores. Desde seu início
mantinha uma grande autonomia pedagógica frente à direção da CUT. O mesmo
ocorria em relação à Equip, escola de formação e pesquisa sediada ainda hoje em
Recife. O princípio político-pedagógico era claro: as escolas sindicais poderiam
colaborar, mas não se alinhar (ou subordinar) às direções sindicais, sob pena de
se transformarem em correias de transmissão das correntes majoritárias naquele
momento, perdendo seu espírito crítico. As outras escolas sindicais cutistas ainda
hoje existentes foram criadas posteriormente à deliberação de criação da rede
orgânica de escolas da central sindical.
8 O 4º Congresso da CUT revelou muitos conflitos internos e mudanças de rumo
em relação à concepção original da central sindical. Apenas 31% dos delegados
presentes afirmaram que devolviam o dinheiro do imposto sindical, ao invés de
utilizá-lo, numa mudança significativa em relação ao ideário cutista original. No
interior do congresso, a tensão foi crescente, desde o credenciamento, que teve
como disputa a delegação do Pará, Bahia e Minas Gerais (incluindo a aplicação de
um redutor para as delegações baianas e mineiras, com minoria pró-Articulação,
em virtude de débito de sindicatos com a central e inchaço da delegação para-
ense, pró-Articulação). Outro ponto de extrema tensão foi a deliberação sobre
adoção do critério da proporcionalidade qualificada para eleição da direção. A
Articulação defendia a proporcionalidade direta, ao contrário dos delegados de
oposição à Articulação. A votação empatou. Uma nova contagem deu a vitória para
a oposição: 742 a 741 votos, anulada no dia seguinte. Delegados da Articulação
gritavam “racha, racha”. Na época, eu e toda assessoria da CUT nacional não

Lulismo em seu esboço 87


LULISMO | Rudá Ricci

acreditávamos no que presenciávamos tal o grau de animosidade, que acabou


em pancadaria entre delegados. Sintomaticamente, as delegações rurais também
ficaram perplexas, mesmo havendo racha entre as duas correntes. Não por acaso.
Segundo O Globo (09/09/91): “A pancadaria (...) começou quando o ex-presidente
do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, Cyro Garcia, invadiu o palco onde
estava a mesa diretora dos debates e tentou arrancar à força o microfone (...)
Logo, outros sindicalistas invadiram o palco e houve troca de chutes e tapas,
puxão de cabelo e muito choro”.
9 A CIOSL foi fundada em 1949 para se contrapor ao sindicalismo de tipo comu-
nista ou soviético. Nas Américas, a organização sindical que esteve à frente da
CIOSL foi a famosa AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho/Congresso das
Organizações da Indústria), que pregou por muito tempo o anticomunismo. Com
a queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, a posição da CIOSL
foi se alterando. O sindicalismo moderado do Norte abriu-se a alianças com o
sindicalismo mais à esquerda na Europa e no Terceiro Mundo. Este é o período
de filiação da CUT, da Cosatu – Congresso dos Sindicatos da África do Sul – e a
Confederação de Sindicatos da Coreia do Sul, além de centrais sindicais europeias
como as Comisiones Obreras de España e a CGIL (Confederação Geral Italiana
do Trabalho).
10 Este programa criava uma perspectiva histórica para a criação da CUT, aprofundava
as lutas ideológicas no interior do movimento sindical nacional e a organização
autônoma de muitas categorias. Muitas vezes, articulava estudos sobre a mudança
cultural e econômica do país com as lutas sociais e as novas formas de organizar
e pensar do “novo sindicalismo”. As diferenças profundas com o sindicalismo
comunista ficavam evidentes. Os próprios sindicalistas eram convidados a dar
depoimentos, a construir a “linha do tempo” a partir de sua experiência pessoal,
de engajamento na luta sindical.
11 Cf. Anderson, 1999.
12 Alguns autores, filiados a correntes teóricas estruturalistas, denominam o que
aqui é cunhado de pragmatismo sindical, de sindicalismo populista. Este é o
caso de Boito Jr., para quem existiria, no interior do sindicalismo brasileiro,
uma cultura política populista. O sindicalismo populista teria, como traços fun-
damentais, o economicismo, centralidade da organização sindical em torno das
lutas sindicais (o que denotaria pouco esforço para promover a organização de
base, no local de trabalho, das categorias) e o fetiche do Estado protetor que,
na prática, redundaria na interlocução constante e privilegiada dos organismos
sindicais com agências estatais. No caso da CUT, haveria uma forte pressão
política para que a central se limitasse a um grupo de pressão antigoverno.
Na prática, algumas bandeiras centrais da CUT, como fim do imposto sindical
teriam sido, aos poucos, preteridas. Esta tese, embora polêmica e sofrendo de
um forte viés escatológico, sugere o quanto o pragmatismo sindical das forças

88 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

hegemônicas no interior da CUT alteraram gradativamente a estratégia política


desta central. Ver Boito Jr., 1991.
13 Em esclarecimento à sua leitura sobre o perfil carismático de Lula, Martins, em
mensagem recebida pelo autor em 14 de dezembro de 2009, destacava: “não
analisava o governo Lula, que ainda não existia. (...) Acompanhei de perto a ação
de Dom Jorge Marcos de Oliveira, com quem me encontrei várias vezes, e sei
perfeitamente o que foi sua ação anticomunista, inspirada na Ação Católica e na
Doutrina Social da Igreja, especialmente no sentido de criar lideranças operárias
católicas. Ele era cunhado do general Eurico Gaspar Dutra (de cuja primeira mulher
era irmão) e estava muito por dentro da grande herança do getulismo, muito forte
no ABC, como menciono na entrevista. Dom Jorge era muito próximo de Jango e
o convidou a ir ao ABC, oferecendo-lhe uma grandiosa recepção pública, na praça
da catedral de Santo André (estive lá nessa ocasião). Nessa época eu já trabalhava
em jornal e o comentário forte era o de que se articulava a candidatura de Dom
Jorge à Presidência, com apoio regional do homem politicamente mais poderoso do
ABC, que era Lauro Gomes. Ao mesmo tempo, Dom Jorge estimulava a formação
de uma grande liderança operária na região. Fala-se que a figura de Paulo Vidal,
líder sindical católico, que o filme biográfico e propagandístico que começa a ser
exibido (“Lula, o filho do Brasil”) define como pelego, como vejo em notícia do
Estadão de hoje (01/12/2009) sobre o protesto de Vidal, que ainda vive no ABC.
Foi Vidal quem levou Lula para a diretoria do sindicato, quando Lula era tido e
havido como desinteressado da questão operária. (...) Sem a circunstância social
e histórica (e também regional) que transformou o alienado Lula na figura sindical
que se tornou e na figura política que veio a ser, ele não seria ninguém. Lula foi o
produto do jogo das circunstâncias, que ele conseguiu interpretar melhor e mais
apropriadamente do que os intelectuais que o subestimaram e dos intelectuais que
dele se aproveitaram, aí incluída boa parte do PT que pensa”.
14 Valho-me, em especial, do roteiro apresentado por Lucia Hippolito em seu livro
Por dentro do governo Lula, coletânea de artigos que a autora publicou na grande
imprensa nacional, e do livro de Ricardo Antunes, Uma esquerda fora do lugar: o
governo Lula e os descaminhos do PT, coletânea de artigos publicados no Jornal
do Brasil. Também lanço mão das análises de conjuntura mensais elaboradas
pela equipe técnica do Instituto Cultiva.
15 Os índices de popularidade oscilaram profundamente ao longo dos dois primei-
ros anos. Iniciou o mandato com 75% de popularidade. Em junho de 2004, este
índice caía para 29%, um pouco superior ao de Fernando Henrique Cardoso nas
eleições de 2002. A recuperação do crescimento econômico permitiu a elevação
para 41%, às vésperas das eleições municipais de 2004.
16 O governo federal fixou, em maio de 2004, o valor do salário mínimo em 260 reais,
um dos mais baixos da América Latina naquele momento. O Dieese apresentava,
no mesmo período, um valor 5,3 vezes maior como garantia de reprodução social
(ANTUNES, 2006, p. 9-11).

Lulismo em seu esboço 89


LULISMO | Rudá Ricci

17 Waldomiro Diniz era subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência da Re-


pública (2002-2004) e homem de confiança do ministro da Casa Civil José Dirceu.
Tinha sido presidente da Loterj, autarquia do governo do Rio responsável pela
administração, gerenciamento e fiscalização do jogo no estado. O caso Waldomiro
teve início, em 2004, quando da divulgação de uma fita gravada pelo empresário
e bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Na gravação, Waldo-
miro Diniz aparece extorquindo Augusto Ramos para arrecadar fundos para a
campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores e do Partido Socialista Brasileiro
no Rio de Janeiro. Em troca, Waldomiro prometia ajudar Augusto Ramos numa
concorrência pública. Após a divulgação da fita, Waldomiro deixou o governo.
Havia, ainda, contra Waldomiro a acusação de que teria influenciado na renovação
de contratos entre a Caixa Econômica Federal e a empresa que gerencia loterias
federais GTech.
18 Os investimentos das empresas dos segmentos de saneamento, telefonia, energia
elétrica e transporte caíram nos quatro anos anteriores. Em 2004, atingiram o nível
mais baixo da década. A relação entre ativo imobilizado (bens das empresas) e
faturamento líquido (recebimento pela venda, menos os impostos) caiu, de 7,3%
(2003) para 6% (2004). Em 1994, esta relação era de 23%.
19 De fato, em dezembro de 2003, a dívida pública mobiliária (em títulos) era de R$
810 bilhões. O próprio governo previa para 2005 um aumento para R$ 940 bilhões a
R$ 1 trilhão, fruto de recuperação das reservas em divisas (moedas fortes) e da
política de juros. Além dessa dimensão financeira, de natureza a um só tempo
estrutural e conjuntural, não houve qualquer preparação da economia para a
retomada do crescimento. É fato, contudo, que se abriu uma combinação inédita
de atração de capital externo especulativo, investimentos produtivos (como o caso
dos espanhóis no segmento bancário e hoteleiro e o errático investimento chinês
no segmento siderúrgico), com aumento expressivo das exportações nacionais.
Esta combinação foi um diferencial importante do cenário econômico em relação
ao período FHC, muito mais vulnerável que o atual.
20 Em 2007, o baixo clero fez Osmar Serraglio (PMDB-PR) o primeiro-secretário da
Câmara Federal, numa demonstração de unidade, refutando a indicação dos líderes
(Wilson Santiago era o indicado oficial do PMDB). Em março de 2009, Fernando
Collor derrotou a senadora petista Ideli Salvatti (SC) para presidir a Comissão
de Infraestrutura do Senado, que fiscaliza as obras do PAC. A partir daí, várias
comissões da Câmara Federal passaram a ser ocupadas por parlamentares deste
bloco de baixa visibilidade. Caso da Comissão de Minas e Energia da Câmara
Federal (que delibera sobre temas como o modelo de exploração do pré-sal, Furnas
e Petrobrás), que passou a ser presidida por Bernardo Ariston.
21 O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional para 2005 previa R$ 3,7 bilhões
para o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O corte orçamentário anunciado

90 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

em 25 de janeiro pelo Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento, re-


sultou num orçamento de apenas R$ 1,6 bilhão. A meta de assentamento de 115
mil familias reduziu-se para apenas 40 mil famílias. O contingenciamento geral
do orçamento foi de R$ 15,9 bilhões, objetivando cumprir o superávit primário de
4,25% do PIB, e atingiu mais fortemente o Ministério do Desenvolvimento Social
(corte de R$ 1,2 bilhão). Observadores políticos avaliavam que este orçamento
seria objeto de negociação com o MST, tendo em vista a chegada da marcha dos
sem-terra a Brasília.
22 A base social de massas sempre foi mais pragmática que as lideranças inter-
mediárias das organizações populares do país. As oscilações nos índices de
popularidade, que acabariam por desaguar na reeleição de Lula, demonstram o
quanto a ação assistencial e a origem proletária do presidente calaram fundo na
aritmética política desses eleitores. Em enquete realizada em janeiro de 2006,
soube-se que o tema da corrupção não aflige a grande maioria dos brasileiros. O
estudo, denominado “Corrupção na Política: Eleitor Vítima e Cúmplice”, sugere
que a corrupção está instalada na cultura política nacional. A cientista social que
coordenou a enquete, Silvia Cervellini, concluiu que o brasileiro tolera a corrupção
política porque também comete seus deslizes éticos. Segundo a pesquisa, 69%
dos eleitores brasileiros transgrediram alguma lei ou descumpriram alguma regra
contratual para obter benefícios materiais, de forma consciente e intencional. 75%
acreditam que cometeriam pelo menos um dos 13 atos de corrupção avaliados
pelo estudo, caso tivessem oportunidade. Entre as práticas ilegais citadas no
questionário. 55% afirmam comprar produtos piratas e 14% dariam caixinha ou
gorjeta para se livrar de uma multa. Começava a ser desvelado o divórcio entre os
meios de comunicação (os clássicos formadores de opinião) e os valores da base
da sociedade brasileira que estava formando a “nova classe média” nacional.
23 A título de ilustração, reproduzo o capítulo XVII d´O Príncipe: César Bórgia era
considerado cruel; entretanto, essa sua crueldade tinha recuperado a Romanha,
logrando uní-la e pô-la em paz e em lealdade. O que, se bem considerado for,
mostrará ter sido ele muito mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para
fugir à pecha de cruel, deixou que Pistoia fosse destruída. Um príncipe não deve,
pois, temer a má fama de cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos
e leais, pois que, com mui poucos exemplos, ele será mais piedoso do que aqueles
que, por excessiva piedade, deixam acontecer as desordens das quais resultam
assassínios ou rapinagens: porque estes costumam prejudicar a comunidade
inteira, enquanto aquelas execuções que emanam do príncipe atingem apenas
um indivíduo.
24 Selvino Heck, assessor de mobilização social do Gabinete da Presidência da Re-
pública destaca que o trabalho desenvolvido por Frei Betto manteve-se mesmo
após sua saída do governo (mensagem recebida pelo autor em 17 de dezembro de

Lulismo em seu esboço 91


LULISMO | Rudá Ricci

2009). A rede Talher de Educação Cidadã e as Escolas-Irmãs (ver <http://www.


recid.org.br> e <http://www.brasil.gov.br/escolasirmas>) foram consolidadas,
segundo seu relato. Também teria progredido a articulação entre ministérios e
secretarias nacionais da área social. O fato é que os depoimentos de Ivo Poletto
e Frei Betto, publicados em livros, desnudam o alijamento desta temática da
agenda governamental.

Referências
ANDERSON, P. Câmaras Setoriais: histórico e acordos firmados (1991-
1995). Ipea Texto para Discussão, n. 667, 1999.
ANTUNES, Ricardo. Uma esquerda fora do lugar: o governo Lula e os
descaminhos do PT. Campinas: Autores Associados, 2006.
BOITO JR., A. (1991). O sindicalismo de Estado no Brasil. Campinas:
Unicamp.
CLAUDE, Lefort. O que é burocracia, in: CARDOSO, F. H.; MARTINS, C. E.
(Org.) Política & Sociedade. São Paulo: Na­cional, 1979.
HIPPOLITO, Lucia. Por dentro do governo Lula. São Paulo: Futura, 2005.
POLETTO, Ivo. Brasil. Oportunidades perdidas: meus dois anos no governo
Lula. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
RICCI, Rudá. Terra de ninguém. Campinas: Unicamp, 1999.
______. Lulismo: três discursos e um estilo. Lutas Sociais n. 15/16, 2º
semestre de 2005 e 1º semestre de 2006. São Paulo: Núcleo de Estudos de
Ideologias e Lutas Sociais, PUC-SP.
SADER, Emir (Org.). E agora, PT? São Paulo: Brasiliense, 1987.
SOARES, L. T. Políticas e movimentos sociais, In: SADER, E. (Org.)
Governo Lula: decifrando o enigma. São Paulo: Viramundo, 2004.
TUMOLO, Paulo Sérgio. Da contestação à conformação: a formação
sindical da CUT e a reestruturação capitalista. Campinas: Unicamp, 2002.

92 PARTE I: O LULISMO
Capítulo 2
LULISMO EM SUA FORMA ACABADA

1 O discurso voltado para a classe média


Francisco Weffort (1980), ao analisar o populismo brasileiro,
procurou caracterizar este fenômeno como uma antecipação das eli-
tes econômicas e políticas, numa espécie de transformismo, em vir-
tude da emergência das massas urbanas como “parceiros-fantasma”
do jogo político (Ibidem, 1980, p. 15). Em muitos momentos, afirma
o autor, a intervenção real das massas urbanas foi utilizada pelas
lideranças populistas como um blefe, porque o interesse popular
passou a contar no jogo de poder oficial.
As massas populares urbanas ganham visibilidade ou importân-
cia em virtude da ampliação do mercado interno no período entre os
anos 1950 e 1960, que atrai o interesse da indústria (Ibidem, p. 19).
Para a liderança populista, ainda segundo Weffort, organizações
de representação popular, como foi o caso dos sindicatos, eram con-
cebidas como canais de comunicação, que representavam a classe
operária junto ao poder (Ibidem, 1980, p. 20), consolidando e dando
visibilidade a um Estado protetor e assistencial, a quem se podia
recorrer em casos de dificuldade (Ibidem, 1980, p. 31).
Por este motivo, a liderança populista evita pensar as massas
urbanas emergentes a partir do conceito de classe social, porque ad-

93
LULISMO | Rudá Ricci

mitiria um interesse político próprio. Antes, seu interesse é concebê-las


como comunidade, sem clivagens de classe (Ibidem, 1980, p. 38).
Embora o conceito de populismo seja um dos mais fluidos e
polêmicos da sociologia, o livro de Weffort analisa um fenômeno
político datado. Sua referência é a emergência de massas urbanas
fincada na estrutura de um Estado moderno, altamente burocratizado.
Uma situação que caracterizava uma cidadania inacabada, já que as
classes populares não tinham organização e nem direitos sociais que
não fossem concedidos pelo Estado. As organizações partidárias, neste
período, aproximavam-se da estrutura de “partidos de notáveis”, pre-
âmbulo do que seriam os partidos modernos, nascidos no século XIX.
Este não é o caso do lulismo. O modo de gerenciar a política
nacional e a tentativa de construção de um compromisso histórico
para o país apoia-se numa liderança popular, que se projetou a partir
do movimento sindical e de um partido moderno, de massas, nas-
cido do ressentimento, do sentimento de injustiça social e de uma
agressiva recusa da marginalização social e política. O lulismo nasce,
assim, de um código moral que reconstrói o ideário político nacional.
Moralismo que exige inclusão social e não necessariamente rupturas
políticas, embora o grau de agressividade tenha construído arestas
discursivas. Mas se tratava de um discurso. Discurso de confrontação,
típico dos movimentos sociais que exigiam direitos, no período de
redemocratização do país. Com efeito, a ação coletiva de confronto
é destacada por vários autores como principal ou único recurso que
“pessoas comuns têm contra opositores mais bem equipados ou Es-
tados poderosos” (TARROW, 2009, p. 19). Lula, ao longo dos anos
1980 e 1990, construiu uma imagem pública de representante deste
discurso de inclusão.
Ao assumir o governo do país, foi vetor de um novo processo
de modernização, capaz de gerar a inserção de amplas massas des-
possuídas (muitas delas abaixo da linha de pobreza) ao mercado
de consumo de classe média. Este é o fenômeno sociológico mais

94 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

significativo por que passou o país na primeira década do século


XXI e que formatou o lulismo como programa de modernização e
gerenciamento político. Mas a inserção se deu pelo consumo e não
pelas práticas políticas ou sociais. Uma inclusão a partir do Estado
burocrático nacional. Em outras palavras, não houve a inclusão po-
lítica desejada pelos movimentos sociais que emergiram nos anos
de redemocratização do Brasil. Ao contrário, aqueles movimentos
sociais se transformaram em organizações, alguns submergiram nas
estruturas estatais (cf. Parte II, deste livro).
A hipótese aqui sugerida é que a nova classe média, assim como a
emergência de massas urbanas explicou o varguismo, pode ser a chave
explicativa para o lulismo. Não como a volta do populismo clássico,
mas como um novo processo de inclusão social a partir do Estado.
O Estado como tradutor dos interesses sociais desorganizados.
Marcelo Neri e Luisa Carvalhaes Coutinho de Melo lideraram
estudos recentes que retratam a emergência da nova classe média
(NERI; MELO, 2008). Em 2008, quase metade da população brasileira
já se classificava como classe C.

Figura 01

Classes Sociais no Brasil, 2001-2008


60 Classe E
49,2
40 38,1 Classe D
27,5 24,4
20 26,1 16 Classe C
8,3 10,4
0 Classe AB
2001 2008

Lulismo em sua forma acabada 95


LULISMO | Rudá Ricci

A Classe C é composta, hoje, por 91,8 milhões de brasileiros.


Para a FGV, uma família é considerada de classe média (classe C)
quando tem renda mensal entre R$ 1.064 e R$ 4.591. A elite econô-
mica (classes A e B) tem renda superior a R$ 4.591, enquanto a classe
D (classificada como remediados) ganha entre R$ 768 e R$ 1.064.
A classe E (pobres), por sua vez, reúne famílias com rendimentos
abaixo de R$ 768.
Desde 2002, a probabilidade de ascender da classe C para a classe
A nunca foi tão alta, e a de cair para a classe E nunca foi tão baixa.
A título de comparação, segundo o Pew Institute, 53% dos norte-
-americanos se consideram classe média. O novo Critério Brasil clas-
sificava como classe C, em 2005, 43% dos brasileiros. A classe média
continuou em expansão, desde então, nas seis principais metrópoles
do país e passou a representar 53,8% da população em dezembro de
2008. Em outras palavras, o Brasil se tornou um país de classe média,
similar aos EUA. A FGV constatou ainda a expansão constante das
classes de renda mais elevada, as A e B.
A nova classe média é muito distinta, em imaginário e represen-
tação social, da classe média tradicional de nosso país. É composta
por quem não tem hábito de leitura e é absolutamente pragmático.
Assim, valores universais e regras gerais são colocados sob suspeição
com facilidade, a não ser que vinculadas aos valores religiosos.
Porque leem pouco, não são facilmente convencidos pelas
manchetes de jornais. A grande imprensa ainda não descobriu
este filão e continua empregando editores oriundos – ou com ide-
ário – da classe média tradicional, que hoje transita entre certo
liberalismo comportamental e conservadorismo político. O inverso,
obviamente, dos valores dos emergentes. Porque os emergentes
são pragmáticos e religiosos, não necessariamente nesta ordem e
nem mesmo mantendo coerência entre discurso e prática. O fato
é que os formadores de opinião são outros.

96 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

No final de 2008, 39% dos brasileiros da classe C já eram inter-


nautas, segundo dados da TGI Brasil. A projeção do IAB, bureau de
publicidade interativa, é que até dezembro deste ano chegaria a 45%.
Assim, quase uma de cada duas pessoas emergentes surfava na web
até o final daquele ano. É verdade que nas classes A e B o índice de
acesso é de 76%. Mas não podemos esquecer que estamos tratando
de um total de quase 92 milhões de pessoas na classe C. Somente
em 2009, 6,2 milhões de brasileiros se tornaram internautas. Em 2010
seremos 68,5 milhões de brasileiros na internet. Somos 27,3 milhões
de visitantes brasileiros do Orkut (somente em julho) e 32,1 milhões
de usuários tupiniquins no MSN (segundo Ibope Nielsen Online).
Wright Mills, em A nova classe média (a coincidência do título
deste estudo dos anos 1950 e da pesquisa da FGV sugere o alinha-
mento das hipóteses e impactos desta emergência social) sustenta que
se no passado a expansão econômica de uma sociedade fundada na
descentralização da propriedade e expansão física dos mercados (com
industrialização) garantia a mobilidade ascendente, foi a estabilidade
social do operariado dos EUA, entre 1890 e 1935, que possibilitou tal
mudança. Segundo Eldridge Sibley, entre 1870 e 1930, uma média
de 150.000 operários e agricultores ascendia anualmente para a cate-
goria de colarinhos brancos. A nova classe média de empregados foi
recrutada, ao mesmo tempo, da antiga classe média e do operariado.
O importante, no caso, é perceber que as classes superiores foram
substituídas pelas inferiores e redefiniram os padrões de comporta-
mento da sociedade como um todo. E este fenômeno parece se repetir
no Brasil. Um espírito de investimento na ascensão e consumo que
interfere na redução da taxa de fecundidade, em queda vertiginosa
no nosso país. A média de filhos por mulher chegou a 1,8. Também,
assim como nos EUA, os membros da nova classe média tendem a
casar mais tarde.
Além de todos estes fenômenos de comportamento, temos
toda possibilidade de aquecimento do mercado imobiliário, da

Lulismo em sua forma acabada 97


LULISMO | Rudá Ricci

linha branca de consumo durável, de aumento da esperança de


vida em nosso país. E uma evidente queda de prestígio de qual-
quer trabalho manual, embora com valorização mediana dos
estudos, o que pode gerar uma contradição em relação às ex-
pectativas futuras da nova classe média. Nos EUA, para ilustrar,
os filhos de operários pararam de estudar porque terminaram o
curso secundário ou a escola técnica, ou simplesmente porque
“detestavam o colégio”. Provavelmente a metade deles não tem
qualquer projeto ou ambição profissional específica, e as aspira-
ções de muitos pais não vão além de um desejo vago de ver os
filhos “progredirem” ou receberem o máximo de instrução possível.
Certamente conseguem o primeiro emprego candidatando-se ao
acaso em agências, ou por intermédio de conhecidos ou parentes.
A única informação que têm sobre o emprego antes de começarem
a trabalhar é o salário inicial, e a maioria das colocações, talvez
dois terços, são becos sem saída.1
Algo que parece ser uma fatalidade que atingirá nossa nova classe
média, já que os índices de analfabetismo estacionaram (são os piores
índices sociais da Era Lula) e a queda de matrículas do Ensino Médio
e Educação para Jovens e Adultos (EJA) despencaram.

Gráfico 1

98 PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

O gráfico acima, contudo, é alentador. Os dados apresentados


pela FGV-RJ indicam que não foi o Bolsa Família o principal responsá-
vel pela recente mobilidade social positiva. Foi o aumento do salário
mínimo. O que diminui a fácil projeção de uma idolatria ao governo
federal, tal como ocorreu no caso de Getúlio Vargas. Mas, não há
dúvidas, que tal ascensão em breve espaço de tempo alimenta tal
risco de geração de uma espécie de neopopulismo, em bases muito
distintas dos anos 1950 e 1960.
Porque o populismo daquele período ocorreu a partir da emergên-
cia das classes urbanas, das multidões urbanas. Mas agora, temos a
emergência de uma classe média ávida pelo consumo mais qualificado.
E, neste sentido, poderíamos ter em Lula a objetivação da garantia
deste novo consumo, da esperança de segurança e mobilidade social.
Estudo de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier (2010) jogou
luz sobre valores e projetos da classe média emergente. Trata-se de
segmento social que possui fortes traços do que Richard Sennett deno-
minou de “ideologia da intimidade”. Segundo os autores, o índice de
participação em organizações sociais decai na medida em que a renda
familiar é menor: 43% da classe A/B não participam de nenhuma
organização; subindo para 56% no caso da classe C; 62% no caso da
classe D e 63% no caso da classe E. As organizações religiosas são
as mais citadas, de acordo com o demonstrado na tabela apresentada
a seguir (em %):

Lulismo em sua forma acabada 99


LULISMO | Rudá Ricci

Tabela 1. Pesquisa sobre classe média 2008


ORGANIZAÇÕES CLASSE A/B CLASSE C CLASSE D CLASSE E

Religiosa 24 31 44 52

Esportiva 9 15 13 11

Profissional 26 10 5 5

Voluntária 11 10 7 7

Estudantil 5 8 10 8

Internet 7 9 4 2

Bairro 2 5 7 8

Cultural 2 5 4 4

Ecológica 7 4 4 0

Política 7 3 4 3
Fonte: Amaury; Lamounier, op. cit., p. 113

Percebe-se a relevância da agregação religiosa para a nova classe


C. A participação em igrejas aumenta na razão inversa da faixa de ren-
da familiar. Os autores se perguntam se a participação em uma única
organização indicaria aumento do capital social, o grau de confiança
na ação coletiva para alteração da realidade. Estudos já realizados
anteriormente enveredaram por esta trilha analítica e demonstraram
que a preocupação é relevante no que tange ao ideário democrático,
embora não tenham como foco a nova classe média. Entretanto,
revelam o impacto das práticas religiosas sobre a concepção de par-
ticipação na vida política e social do país.
A pesquisa sobre associativismo paulistano desenvolvida pelo
Projeto Democracia Participativa (UFMG) e Instituto Criterium, em
2003, revela com nitidez as ambiguidades e a complexidade das
práticas sociais (AVRITZER, 2004). É importante ressaltar a impor-
tância e presença, assim como no estudo de Amaury & Lamounier,
dos grupos religiosos nas experiências associativas paulistanas.

100 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Dentre os que afirmaram “já ter participado de associações”, mas


que não participam mais, as associações mais citadas em relação a
esta experiência foram: as organizações de tipo sindical, grupos de
jovens e grupos religiosos. Dos que participam de associações, as
mais citadas foram: grupo religioso (envolvendo 49% das respostas),
associação comunitária ou de bairro (9%), organização sindical
(8%), movimento por habitação ou moradia (6%), entidade da área
de esportes e lazer (8%).
Os associados de entidades de natureza religiosa parecem adotar
um padrão de exclusividade mais acentuado, atuando com maior
fidelidade e restringindo sua participação em eventos da própria
organização confessional.
Assim, os principais objetivos da prática associativa apresentados
pelos entrevistados revelaram o padrão de exclusividade dos partici-
pantes de associações de tipo religioso. Para estes, “levar a palavra e
ensinamentos de Deus” (48% das respostas) é o seu principal objetivo
nas práticas associativas, seguido por “arrecadação e distribuição de
alimentos” (28%) e “ajuda emocional” (10%). Vale registrar que os
dois últimos objetivos são componentes do ideário cristão e de suas
práticas sociais, desenvolvidas ao longo do século passado.
No caso daqueles que desenvolvem práticas associativas em
organismos não religiosos, os objetivos mais citados foram: “arreca-
dação e distribuição de alimentos” (14%), “movimento de moradia”
(14%), “defesa dos direitos dos trabalhadores” (11%), “promoção de
atividades esportivas e de lazer” (10%), “ajudar pessoas a encontrarem
emprego” (8%) e “apoio à escola” (7%). Percebe-se, neste último caso,
uma lógica participativa mais vinculada à racionalidade das políticas
públicas (educação, esporte e lazer, direitos dos trabalhadores, em-
prego, moradia), embora também figurem ações de tipo caritativo.
O padrão de exclusividade dos participantes de associações de
natureza religiosa fica mais nítido quando analisada sua trajetória e
seu próprio ideário associativo. As associações destacadas como mais

Lulismo em sua forma acabada 101


LULISMO | Rudá Ricci

importantes por esses entrevistados foram as próprias organizações


religiosas, seguidas por poucas citações de associações esportivas e/
ou lazer, associação de bairro e associação luta por moradia. Por sua
vez, o perfil do público atendido por suas entidades é composto pre-
dominantemente por mulheres (43%), jovens (44%) e crianças (44%),
seguidos por adolescentes (33%), favelados (14%) e famílias carentes
(16%). Uma das consequências desta prática mais exclusivista, fincada
na propagação dos valores e afirmação de sua religião, é o menor nú-
mero de associados de entidades de tipo religioso que compreenderam
o funcionamento dos órgãos públicos que os associados de entidades
não religiosas: 56% disseram que passaram a compreender a partir
de seu envolvimento com associações sociais e comunitárias, contra
67% dos associados de entidades não religiosas. No mesmo sentido,
os associados de entidades de tipo religioso parecem envolvidos com
um ideário mais refratário às relações com instâncias mais institu-
cionalizadas e formais da política. Este segmento mantém menor
contato com órgãos públicos (80% disseram que nunca mantiveram
contato), que o outro segmento de associados (65% dos associados
de entidades não religiosas).
O mesmo ocorre em relação ao contato com vereadores: 81%
associados de entidades de tipo religioso afirmaram que nunca man-
têm contato, contra 66% dos associados de entidades não religiosas.
A cultura anti-institucionalista, ressaltada em diversos estudos sobre
práticas de movimentos sociais vinculados à Igreja nos anos 1980,
parece emergir neste conjunto de dados. Com efeito, parece haver uma
lógica em relação aos valores, objetivos e impacto do associativismo
sobre este segmento social que estaria associada ao ideário comuni-
tário, focalizado em espaços mais íntimos e localizados. Esta hipótese
possibilita compreendermos a dificuldade maior deste segmento para
se inserir e compreender a lógica pública institucionalizada, justa-
mente porque ela se apresenta mais impessoal, formalizada e racional
que a lógica comunitária.

102 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Se compararmos com os dados levantados pela pesquisa “Proje-


to Metrópoles, Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana”
(SANTOS, 2004), que analisou o perfil dos conselheiros em algumas
metrópoles brasileiras, percebemos os seguintes traços:

Tabela 2. Comparação perfil dos conselheiros


de capitais brasileiras e perfil dos participantes
de práticas associativas paulistanas
Nível de Renda familiar Participação
PESQUISA escolaridade acima de 5 organizações
universitário salários mínimos político-populares
Perfil conselheiros
60% 86% 56,0%
de São Paulo
Perfil participantes
associativismo 28% 35% 26,3%
paulistano
Fonte: Pesquisa Projeto Metrópoles, Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana, 2004/
Projeto Democracia Participativa-Criterium, 2003

A hipótese que emerge a partir da tabela é que quanto maior o


nível de participação na hierarquia do processo decisório da política
municipal, menor a correspondência entre o perfil do participante e
o perfil médio da população. Em outras palavras, parece ocorrer um
processo de seletividade que faz com que os conselheiros possuam
renda, nível de escolaridade e grau de engajamento político muito
superior à média dos participantes das inúmeras modalidades de
associativismo paulistano. Com efeito, o perfil dos dirigentes das as-
sociações paulistanas pesquisados revela um nível de renda superior
ao perfil dos associados, mas inferior ao dos conselheiros do muni-
cípio: 45% possuem renda familiar superior a 5 salários mínimos.
O nível de escolaridade dos dirigentes de entidades/associações,
contudo, é ligeiramente inferior ao perfil dos associados: apenas
21% possuem formação universitária. Assim, a lógica seletiva da
política formal brasileira parece contaminar vários mecanismos de

Lulismo em sua forma acabada 103


LULISMO | Rudá Ricci

participação popular à gestão pública, sendo que a renda aparece


como fator de seleção ou exclusão política.
Quando questionados se gostariam de participar de forma mais
ativa, 63% responderam que não e apenas 26% afirmaram que gosta-
riam. O mais significativo é que, dos que demonstraram interesse em
participar mais ativamente, o principal motivo foi “benefício ou satisfa-
ção pessoal”. Entretanto, no caso dos que já participaram no passado,
deixaram de participar e afirmaram que gostariam de voltar a partici-
par de atividades associativas, a principal causa é a conquista de “be-
nefícios para a comunidade” (79% dos entrevistados nesta condição).
A motivação inicial parece mais egocêntrica que a daqueles que já
participaram em período anterior.
Ao serem questionados sobre o grau de confiança em relação
a diversas instituições, os pesquisados parecem revelar uma hipó-
tese explicativa sobre a não participação ou as peculiaridades da
participação em atividades associativas. As seis instituições que
apresentaram maior grau de confiança foram, em ordem decrescen-
te: família, seus outros parentes, seus companheiros de trabalho,
padres católicos, seus vizinhos e pastores evangélicos. Como é pos-
sível perceber, as instituições mais legitimadas foram justamente as
apontadas na pesquisa recente de Amaury e Lamounier.
Daí a relevância dos estudos de Richard Sennett, no seu livro
O Declínio do Homem Público (SENNETT, 1988), escrito na década de
1970, que alertava para um sentimento privatista, reativo ao aumento
da competitividade social, que se configurava num ideário hegemônico
que denominou de “ideologia da intimidade”.2 Em síntese, o cidadão
comum sentia-se gradativamente mais ressentido com autoridades e
espaços públicos, mais excludentes, seletivos e competitivos. O es-
forço pessoal e individual passa a ser percebido como desvalorizado
e pouco reconhecido nas arenas públicas. Ao contrário, os que são
alçados ao sucesso e reconhecimento público apresentam-se como
estranhos ao cotidiano comum. Daí nasceria, a partir do ressenti-

104 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

mento, a valorização do homem comum a tudo o que lhe é íntimo


(familiares mais próximos, vizinhos, amigos e colegas de trabalho),
comum e desvalorizado publicamente, assim como ele. Sennett sugere
que a outra face do ressentimento era a presença do homem comum
nos processos de escolha de representantes com declarado cinismo:
votam, sem qualquer compromisso estável com o eleito.
Este, talvez, seja o principal mote para compreendermos a com-
plexidade das práticas associativas e participacionistas na cidade
de São Paulo. Há avanços significativos nas práticas e instituições
democráticas do país nas últimas duas décadas. Entretanto, grande
parte das experiências mais significativas é local e localizada, não
conseguindo se espraiar significativamente pelo país, nem envolver
instâncias superiores do sistema de gestão pública.
Embora os dados aqui apresentados refiram-se, em sua maioria,
à realidade paulistana, é possível aventar a hipótese da cultura polí-
tica da participação referir-se, em especial, à lógica particularista dos
anseios familiares e comunitários. Se correta, tal hipótese reafirma a
relevância do comunitarismo cristão como catalisador das motivações
à participação social, reafirmando-as num círculo vicioso.
No caso das lideranças sociais e populares, maiores interessados
na instalação de sistemas de governança social de tipo participacio-
nista, parece persistir ou prevalecer (ou mesmo se transmutar) os
referenciais teórico-políticos de uma cultura marxista-cristã (comu-
nitarista, anti-institucionalista, mobilizadora) que cimentou vários
movimentos sociais forjados naqueles anos 1980. Esta fusão entre
um marxista estigmatizado e escatológico com traços de cristianismo
voluntarista, contribui para uma forte empatia popular nas campanhas
de massa, mas diminui as referências para elaboração de estratégias
e estruturas de poder inovadores. O ressentimento político é, assim,
alimentado permanentemente e passa a ser acompanhado de perto
pelo sentimento de impotência que, por sua vez, realimenta o anti-

Lulismo em sua forma acabada 105


LULISMO | Rudá Ricci

-institucionalismo e o voluntarismo político. O círculo vicioso gravita


ao redor da mobilização social permanente.
A relação entre a emergência da nova classe média, fortemente
referenciada no ideário comunitário e religioso, cuja participação
vincula-se à defesa da família e/ou na valorização de sua religião,
parece indicar um possível padrão de participação social pouco afeto
à conquista de direitos universais e amplos. Ao contrário, a cultura
política intimista e particularista parece prevalecer, o que dá contor-
nos objetivos ao pragmatismo nas relações políticas que porventura
forem estabelecidos por este segmento social.

2 O lulismo em sua versão acabada


O lulismo se esboçou inicialmente como método de gerencia-
mento político que unia, paradoxalmente, o pragmatismo sindical
metalúrgico, o burocratismo partidário e o liberalismo econômico(cf.
capítulo anterior). No final de seu sétimo ano de governo, o lulismo
já se configura mais nitidamente, alterando sutilmente algumas de
suas características iniciais.
A primeira gestão foi marcada por aprendizagens importantes e
embates políticos imensos. Uma volta à agenda dos primeiros quatro
anos do governo Lula revela grande tensão, interna e externa. No
campo externo, os embates pelas reformas previdenciária e tributá-
ria foram muito desgastantes, logo de início. Havia certa urgência,
típica de governos que carregam o signo da mudança, para marcar
posição em vários temas do que se considerava agenda nacional.
No campo interno, houve uma lenta e sofrida depuração de asses-
sores e quadros de segundo escalão do governo, que traduziam a
matriz discursiva e programática original do PT, a agenda petista
da década de 1980. Casos como de Frei Betto e Ivo Poletto foram
emblemáticos. Mas também envolveu José Graziano da Silva e Jorge
Mattoso, chegando a atingir duramente a liderança de José Dirceu e

106 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Antonio Palocci. Estes últimos, representando a geração hegemônica


do petismo da década de 1990.
O pragmatismo sindical3 e não ideológico parece evidente e ca-
sou completamente com o modelo de coalizão presidencialista, que
envolve uma gama imensa de partidos. Algo que, na prática, formata
uma espécie de gestão de tipo parlamentarista. Também se aproxima
da federação de partidos, proposta natimorta da reforma política
inscrita no PL no 2.679/2003, que procurava superar as coligações
eleitorais naquilo que tinham de efêmero, exigindo que se mantives-
sem no período pós-eleitoral. O pragmatismo foi além e desnorteou
grande parte das organizações populares do país, porque não possui
uma agenda de esquerda. O foco está na consolidação de direitos já
garantidos em lei o que, na prática, amplia o espectro social daqueles
brasileiros que podem ser considerados efetivamente cidadãos.
Uma versão governamental do “business union”, o sindicalismo
de negócios dos EUA que no Brasil recebeu a alcunha de sindicalismo
de resultados. Lembremos que esta concepção foi introduzida no Brasil
por Luiz Antonio Medeiros, em 1987, quando concedeu entrevista ao
jornal O Estado de S. Paulo. Nesta entrevista afirmou: “Desde que
saia um acordo bom para os trabalhadores, não interessa se ele foi
conseguido por abraços com Mário Amato ou por uma greve de 40
dias”. Medeiros é, hoje, secretário de Relações do Trabalho, no Minis-
tério do Trabalho. Luiz Werneck Vianna, se apropriando das teorias
gramscianas, sugere que este movimento se aproxima do conceito de
“revolução passiva” ou “modernização conservadora” (Cf. Capítulo
3 deste livro).
Em diversos discursos realizados de improviso, Lula expressou
o fundamento do pragmatismo político, associando-o ao seu passado
sindical. Em entrevista que concedeu em Pretória, na África do Sul,
em 08 de novembro de 2003, admitiu:
Eu aprendi na minha vida de negociador, quando era presidente
do Sindicato de Metalúrgicos do ABC, que o bom acordo é aquele

Lulismo em sua forma acabada 107


LULISMO | Rudá Ricci

em que os dois saem pensando que ganharam e saem satisfeitos


com o resultado.

Uma declaração que não seguia o paradigma da esquerda brasilei-


ra (incluindo o petismo) até então. E que faz a ponte com as práticas
governamentais assumidas pelo lulismo. No mesmo ano, em 06 de
junho, Lula ao inaugurar o terminal ferroviário da Ferronorte, em Alto
Araguaia, desvenda o que seria seu modus operandi:
Nós vamos fazer um pacote para a agricultura familiar, um pacote
para os assentamentos deste país. Queremos fazer um acordo. Nada
será feito na marra, nem contra os grandes nem contra os pequenos.
Tudo será feito em torno de uma mesa de negociação, para que a
gente possa determinar direitos e deveres para cada um de nós.

O pragmatismo fica ainda mais nítido quando comenta as alian-


ças políticas. Alianças, para o lulismo, é discurso hegemônico, não
necessariamente a construção deste discurso mas, muitas vezes, um
processo de acomodação (ou adaptação) da sua proposta original. Na
abertura do Congresso dos Metalúrgicos do ABC, em 03 de outubro de
2005, Lula afirma:
Na política, as coisas acontecem assim. Tem uma coisa chamada
“correlação de forças” e nós temos que aprender o significado
disso. Cada atitude que nós vamos tomar, nós temos que saber
o tamanho dos adversários. Quando a gente manda uma lei, se
a gente vai conseguir aprovar, qual o número de votos que nós
temos, quantos nós elegemos, quantos a gente pode compor. Por-
que aí, as pessoas falam: ‘é, mas você não pode fazer aliança com
qualquer um’, Ora, meu Deus do céu, se eu tivesse a totalidade
das pessoas que eu gostaria de ter, não precisaria fazer aliança.

Apesar da linha de argumentação lógica, Lula sabe que houve


mudança de perspectiva em relação ao seu passado. Tanto que, du-
rante a abertura do 32º Congresso Brasileiro de Agências de Viagem,
em 21 de outubro de 2004, destaca a mudança de sua percepção
sobre o tema:

108 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Mas eu precisava ampliar a minha base de alianças no Congresso


Nacional. Eu percebi, rapidamente, a diferença entre “eu acho”
e “eu faço”. Quando a gente está teorizando, a gente pode achar
tudo, quando a gente está governando, a gente tem que fazer,
então precisa deixar de “achar”.

Luciana Panke, em sua tese de doutorado (2005) já havia cons-


tatado o percurso discursivo de Lula, decompondo-o em três etapas,
assim classificadas pela autora: a extrema-esquerda (anos 70 e 80),
transição (meados da década de 90) e centro-esquerda (século XXI).
A primeira fase centrava-se em dois pontos: a organização das massas
populares e a superação da economia de mercado. Este último ponto
a autora ilustra com o discurso de 1981, em que Lula afirma:
Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos
que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos
frutos de seu trabalho. E isso só se consegue com a política. (...)
sentimos na própria carne, e queremos, com todas as forças, uma
sociedade que, como diz o nosso programa, terá que ser uma
sociedade sem explorados e sem exploradores. Que sociedade é
esta senão uma sociedade socialista?

Para Panke, a mudança teve início entre as eleições de 1994 e


1998, quando começaram a ser forjadas alianças com outros partidos
de esquerda. Neste periodo, o conteúdo iniciou o pêndulo da orga-
nização das bases sociais para a adoção de política econômica que
sustentasse o desenvolvimento do país. A autora sugere que tem início
a inflexão discursiva de Lula, procurando relatar ponderação e cautela.
O legado da burocracia partidária sofreu algumas mutações em
relação à primeira gestão. Havia, no início do lulismo, uma nítida
influência do “habitus” das organizações clandestinas do período
do regime militar. As negociações para montagem da coalizão pre-
sidencialista assumiam um viés castrista, de controle progressivo
sobre a base aliada. Por aí, toda lógica participacionista do petismo
e da Constituição de 1988 foi abandonada porque não dialogava com

Lulismo em sua forma acabada 109


LULISMO | Rudá Ricci

o centralismo da lógica burocrática. Mas com o ostracismo de José


Dirceu, o burocratismo se transmutou. O participacionismo foi expur-
gado de vez da prática do lulismo. O que era antes uma espécie de
neoleninismo, uma simbiose entre Estado, governo e partido(s) – que
o próprio Lênin admitiu e condenou em seu último texto, intitulado
“Vale quanto Pesa” – foi redesenhado para uma lógica de governo. Os
partidos aliados, na prática, perderam sua energia crítica e inovadora.
São governistas. Basta uma rápida análise sobre a propaganda partidá-
ria da base aliada: é a agenda do governo. O lulismo tentou construir
uma agenda de Estado. Mas PAC, Bolsa Família (e outros programas
de transferência de renda) e aumento de salário mínimo não chegam
a constituir uma agenda de longo prazo, tratando-se mais de uma
plataforma inicial para o desenvolvimento, um start. Com efeito, o
lulismo não conseguiu alinhar-se ao conceito de sustentabilidade. Não
conseguiu elaborar uma agenda educacional, que ficou restrita ao au-
mento do acesso e controle da qualidade do ensino universitário. Não
relacionou projeto educacional à formulação do papel de liderança no
continente. Nem mesmo inovou na formulação de currículos focados
na consolidação de cultura cidadã, mesmo tendo à sua disposição
várias experiências de Estado, como a Política Nacional de Educação
Fiscal (PNEF). Não avançou porque para o lulismo o participacio-
nismo organiza e multiplica demandas sociais, gera instabilidade no
planejamento centralizado. Por este mesmo motivo abandonou as
audiências públicas para definir o Plano Plurianual (PPA) ou con-
trolar o orçamento. Aumentou o número de conferências de direitos
(sessenta conferências nacionais em suas duas gestões, contra vinte
nas gestões de FHC, num total de 100 conferências realizadas desde
a década de 1940), mas fragmentou as pautas em temas específicos
e raramente incluiu as deliberações deste ritual assembleístico em
orçamentos e programas. As deliberações das conferências nunca
foram prioridade da agenda lulista.4
A mudança mais significativa, contudo, foi o liberalismo econô-
mico – traduzido na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002 – para o de-

110 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

senvolvimentismo economicista (embora assessores de Lula procurem


emplacar um meio aforismo: desenvolvimentismo social). O foco é
a ampliação do mercado interno e da produção nacional. Uma pla-
taforma já empregada pelo fordismo norte-americano, que o lulismo
pega emprestado, reproduz e dá sua contribuição a partir dos itens
destacados anteriormente. O Brasil cresce para a América Latina a
partir do mercado interno. Recentemente, aumentou sua atuação e
demonstração de força na região, assumindo parte do papel de ga-
rantidor de certa Ordem Democrática que era prerrogativa dos EUA.
O Mercosul, neste sentido, perdeu predominância na política
externa brasileira, mesmo com a campanha pelo ingresso da Vene-
zuela no nosso mercado comum. O PAC é o carro-chefe do lulismo
nesta dimensão econômica. Deverá ser prorrogado em diversas no-
vas versões, pela lógica lulista, assim como já ocorre com o Bolsa
Família (que gerou o Bolsa Cultura e deverá se desdobrar em outras
políticas de fomento na construção do fordismo tupiniquim).
E o estilo continua o do flerte com a dominação carismática, a
melhor tradução do socialismo moreno, sonho de Leonel Brizola.
Lula parece ter plena consciência sobre o papel político de seu estilo
discursivo. Ali Kamel (2009) destaca dois discursos em que Lula inicia
expondo os motivos que o levam a adotar um tom coloquial:
Eu sei que, muitas vezes, parece que não faz parte da liturgia
presidencial contar determinados casos. Mas, quando eu comecei
a trabalhar na Villares, não tinha refeitório, não tinha restaurante,
a gente levava marmita. (...) (em 20/10/05)
Como, às vezes, nem todo mundo entende palavras difíceis, eu
prefiro utilizar coisas do dia a dia, que nós dizemos. E é por isso
que sempre trato a arte de governar como a arte de criar uma
família. Parece fácil criar uma família, mas o mundo está cheio
de irresponsáveis, homens ou mulheres que não conseguem criar
uma família. (...) (em 26/06/2003, durante o 4º Congresso de
Metalúrgicos do ABC)

Lulismo em sua forma acabada 111


LULISMO | Rudá Ricci

É por aí que alguns fóruns e autores procuram comparar o var-


guismo ao lulismo. Seriam, lulismo e varguismo, início e fim de um
mesmo projeto:5 o de administrar o atraso e promover uma agenda
reformista que provoque a superação de uma sociedade arcaica (ou
híbrida) na direção da sua modernização. Modernização tardia (por-
que originada de um capitalismo peculiar, híbrido) liderada por um
partido de origem operário-popular (Gramsci chegou a destacar que o
centro nunca daria lugar a um partido “histórico”, mas poderia servir
a um partido deste tipo, mais uma coincidência com a prática lulista).
Gramsci, ao criar o conceito de revolução passiva pensava, ob-
viamente, na sua Itália, um país que, como afirmava, possuía uma
sociedade “gelatinosa”, onde as clivagens sociais não se expressavam
nitidamente, onde tradição e laços feudais se misturavam ao mundo
fabril e racional. Luiz Werneck Vianna, em Revolução passiva e ame-
ricanismo em Gramsci (Cf. <http://www.lainsignia.org/2007/marzo/
cul_006.htm>), ao explicar a origem do conceito gramsciano, recorda
que a peculiar modernização tardia da Itália criaria uma:
(...) forma do Estado derivada de uma solução de compromisso
entre as elites industriais e agrárias, cada uma ocupando uma
base territorial própria – as industriais, o norte; as agrárias, o
sul. O domínio burguês não estaria dotado de capacidade de
universalização, fusão de particularismos, faltando-lhe um “ca-
ráter unitário e uma função unitária” (...) Tal particularidade
deixaria a periferia europeia do capitalismo sob uma dupla lógica:
“russa”, pela perspectiva do “elo mais fraco” e da “vantagem
do atraso”; e especificamente europeia, uma vez que os setores
subalternos, principalmente no campo, por meio da mediação
de estratos intermediários, mantinham vínculos político-sociais
com as classes dominantes, estando sob a sua influência, in-
terditando ao proletariado um acesso direto ao campesinato.
(...) O caminho de afirmação do capitalismo europeu ter-se-ia
dado em um ambiente “demográfico não racional”, expresso
na existência de “classes numerosas sem uma função essencial
no mundo da produção, isto é, classes totalmente parasitárias”

112 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

(a nobiliarquia agrária e os estratos superiores da burocracia,


nas elites dominantes, e o campesinato e a população urbana
marginal) seriam incluídas nos sistemas da ordem por vias ex-
traeconômicas, supraestruturais, quando a sua posição relativa
quanto ao Estado seria determinante da forma de apropriação
dos recursos sociais e do tipo de controle social a que estariam
sujeitas: a hegemonia das classes dominantes seria obra funda-
mentalmente da política.

Vianna sugere que enquanto a sociedade americana desenvolvia-


-se a partir de uma estrutura racional, nitidamente capitalista, em que
a fábrica era o locus do desenvolvimento de toda a nação, nos países
europeus com capitalismo tardio (Itália, Rússia e Alemanha, em
especial) não havia tal associação entre estrutura social, dominação
fabril-capitalista e Estado-política. O conservadorismo europeu se
explicaria, em relação aos EUA, a partir daí, em que a cultura e a
política “desde cima” dominariam o mundo social e econômico,
bloqueando a livre expressão das classes produtivas “no sistema das
agências privadas de hegemonia”. Daí a modernização capitalista
ter que ocorrer “pelo alto”, gerando o que Gramsci denominaria de
Estatolatria (em Claus Offe, adota-se o conceito de estatalização),
um Estado sobreposto à sociedade civil.
Num voo livre, o lulismo cumpriria tal papel? A resposta afir-
mativa explicaria a falta de identidade com o participacionismo
porque assume declaradamente o papel de demiurgo da moderni-
zação. Também explicaria sua base discursiva que exerce este papel
de “ponte” entre culturas e hábitos sociais. Discurso que procura
pôr fim à ideologização da disputa partidária do período anterior,
quando o lulismo nem mesmo se esboçava, encoberto pelo petismo,
um amálgama entre teologia da libertação, marxismo revisado e
teorias libertárias (como de Guatarri e outros autores citados pelos
intelectuais filiados ao PT que, na origem do partido, mantinham
grande destaque nas formulações programáticas).

Lulismo em sua forma acabada 113


LULISMO | Rudá Ricci

O lulismo é um amálgama por natureza. O lulismo, por aí, é


operacionalmente mais estruturado para fazer a transição do Brasil
Profundo para o aggiornamento do nosso capitalismo tardio, capaz de
construir um discurso hegemônico, que convença a todos ou à grande
maioria do mosaico social e cultural brasileiro, este hibridismo cultu-
ral que adotou o mundo moderno sem superar efetivamente valores
morais e estruturas tradicionais, tal como sugeriu Néstor Canclini. O
problema é que nenhum dos possíveis sucessores de Lula tem, hoje,
predicados que mantenham a lógica e a consistência discursiva do
lulismo. O que pode sugerir o lulismo como obra inacabada. Assim
como ocorreu com o getulismo. O velho problema da criatura se
confundir com o criador.

3 Cronograma da consolidação do lulismo ou como se forja


uma liderança acima do bem e do mal

2007: a política na mão de profissionais
Logo no início de 2007, o presidente Lula declara sua intenção
de apoiar Aécio Neves para sua sucessão. No final da primeira se-
mana de maio, o jornalista Josias de Souza desenhava a manchete
em seu blog: Lula arquiteta transferência de Aécio para o PMDB.
A matéria afirmava que Lula teria desencadeado negociações com
lideranças peemedebistas para que convencessem o governador de
Minas Gerais a trocar o PSDB pelo PMDB. Teria tratado do tema em
três oportunidades. Por precaução, o presidente da República citava
outros possíveis candidatos à sua sucessão: a ministra Dilma Rous-
seff, o governador baiano Jaques Wagner e o deputado Ciro Gomes.
Aécio Neves surgia como carta de um baralho que procurava isolar
politicamente a oposição ao lulismo. Até então, um processo de
desidratação constante do DEM havia obtido sucesso, transferindo
parlamentares e prefeitos para partidos da base aliada do governo
federal, em especial, para o PMDB e PTB. Agora, as tentativas de

114 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

bastidor que procuravam dividir o PSDB, ao menos confinando seu


poder a São Paulo, passava a ganhar as páginas de jornal. O lulismo
avançava na sua trilha de consolidação da coalizão presidencialista
que foi formatando a cada ano.
Mas havia, ainda, uma mensagem clara para o PT. Desde a ree-
leição, Lula havia ampliado sua independência política. Armou um
segundo ministério emplacando um claro desgaste político a vários
expoentes petistas, tendo Marta Suplicy como a primeira desta fila.
Em seguida, cravou em diversos discursos públicos o conceito de
governo de coalizão.
Em termos teóricos, Lula alargava o conceito de presidencia-
lismo de coalizão logo no início de seu segundo governo, tema em-
pregado por Sérgio Abranches e Fernando Limongi. Para Abranches,
a natureza desta coalizão seria a instabilidade, em que somente os
aspectos programáticos passíveis de acordo com apoiadores são
validados ou efetivados durante o governo. Já Limongi sustenta
que os parlamentares não teriam outra alternativa à adesão ao go-
verno, dada a força do Executivo. Com efeito, desde a Constituição
de 1988, temos uma situação de hibridismo presidencial, já que
os poderes do parlamento aumentaram significativamente. Por ser
presidencialista, o governo continua tendo poderes no manejo de
cargos e recursos orçamentários, mas a relação com o Congresso
demonstra chantagem mútua. Assim, a possibilidade de produção
de um projeto nacional é praticamente nula, dado que as adesões
e acordos são sempre movediços, quase que estabelecidos sobre a
batuta dos processos eleitorais bienais.
Lula foi o primeiro presidente pós-Constituição de 1988 a tra-
balhar sobre o terreno do hibridismo presidencialista brasileiro, sem
travas e dissimulações. Entregou cargos e os negociou à luz do dia.
Expôs-se, aproveitando a onda da popularidade alta de início de man-
dato.6 Não se trata de uma coalizão clássica, em que o acordo básico
se faz a partir de um programa nacional. O arremedo de programa é

Lulismo em sua forma acabada 115


LULISMO | Rudá Ricci

o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) que foi elaborado por


técnicos dos ministérios e principalmente pelo núcleo duro do governo
federal. Não se trata de um acordo, mas de uma imposição básica, de
pouca legitimidade junto às lideranças da coalizão forjada por Lula.
Uma coalizão, diga-se de passagem, que não se apoia efetiva-
mente em estruturas partidárias, mas em lideranças e correntes par-
tidárias. Treze governadores eleitos na mesma eleição que reelegeu
Lula lideravam diretamente entre 50% e 75% das bancadas federais
eleitas em seus estados. Os partidos brasileiros, mais que nunca,
gravitavam a partir de interesses regionais. São federações de regiões,
algumas com mais peso. São Paulo, Minas Gerais, Bahia se destacam
neste jogo imbricado, seguidos por Mato Grosso, Acre, Pernambuco,
Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, uma verdadeira neoRe-
pública Velha, cujos principais lances eleitorais são declaradamente
medidos pelos movimentos e adesões regionais. É por este desenho
que o lulismo se movimenta.
Cruzamento de dados das últimas eleições presidenciais realiza-
do pela Folha de S. Paulo indicou o fato decisivo que gerou a Opção
Lula: a exclusão social. A partir do leque de 16 fatores, o Índice de
Exclusão Social (IES) teria sido o que mais se associou à variação de
votos em Lula e Geraldo Alckmin. Este índice integra escolaridade,
renda, pobreza, alfabetização, desigualdade, emprego e violência.
Nem mesmo a variação positiva de vendas no comércio varejista indica
a superioridade de Lula nas eleições passadas. Assim, os eleitores de
municípios com deficiências sociais múltiplas e significativas votaram
em peso no atual presidente da República.
Com tal popularidade e desenvoltura, o governo federal avan-
çava sobre a condução do orçamento, jogando todas suas fichas
na execução do PAC. O governo retirou da proposta de LDO 2008 o
parágrafo que permitia que entidades representativas da sociedade
civil tivessem acesso aos sistemas de execução orçamentária, tema
em negociação desde o início do primeiro mandato de Lula. A reação

116 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

ao rolo compressor do governo federal não recebeu reação apenas


do parlamento. Ocorreu também no interior do governo, vindo das
esferas mais vinculadas à pauta dos movimentos sociais. O caso que
ganhou maior visibilidade foi o que envolveu o Ibama. Lula pressionou
para que o instituto concedesse o licenciamento para construção das
hidrelétricas do rio Madeira, um dos projetos inseridos no PAC. Dada
a resistência interna dos técnicos, este órgão foi cindido, criando-se
um instituto específico para cuidar das áreas de proteção ambiental.
Naquele início de segundo mandato presidencial, o MST liderava
a articulação de movimentos sociais nacionais ideologicamente mais à
esquerda dos demais movimentos sociais do país tendo como objetivo
a divulgação de um novo manifesto contra a política econômica do
governo e contra ataques aos direitos trabalhistas. O documento, que
também critica o agronegócio e exige reforma agrária, moradia, ensi-
no e saúde pública de qualidade, conclamou a classe trabalhadora a
participar de uma jornada nacional de lutas no dia 23 de maio. Entre
os signatários aparecem a Via Campesina, Intersindical, Conlutas,
Coordenação dos Movimentos Sociais, Assembleia Popular e Pasto-
ral Operária. O que chamou a atenção em relação a este documento
é a própria articulação política liderada pelo MST, que o aproxima
(assim como PCdoB) da oposição “à esquerda” ao governo federal,
com destaque para o PSTU e PSol, através dos movimentos sindicais
Conlutas e Intersindical, a eles ligados.
Outro campo de tensão entre governo federal e movimentos so-
ciais no início de sua gestão foi a transposição do rio São Francisco.
No início de maio, se aceleraram as audiências públicas organizadas
pela Câmara Federal. As lideranças sociais contrárias à transposição
organizaram manifestações públicas aproveitando as comemorações
do 1º de Maio. Em Belo Horizonte foi organizada uma passeata
que culminou com um protesto na sede da Cemig (concessionária
energética de Minas Gerais). Peixes podres foram jogados no prédio
da estatal. Simultaneamente, a sede do Ibama foi invadida e um ato

Lulismo em sua forma acabada 117


LULISMO | Rudá Ricci

público foi realizado na Assembleia Legislativa. Em Petrolina, três mil


famílias ocuparam área de irrigação do Pontal. Em Lapa (Bahia) foi
ocupada a sede da Codevasf. Esta ocupação provocou uma audiência
das lideranças com o ministro da Integração Nacional, o peemedebista
baiano Geddel Vieira Lima. A discussão entre as partes foi acirrada e
muito tensa. Organizações indígenas e movimentos sociais rurais se
organizaram, tendo como foco a Codevasf.
Contudo, o país já vivia o que alguns economistas denominavam
de sua segunda onda de investimentos diretos, desde o processo de
privatizações, ocorrido na década de 90.
O clima de euforia encobria os problemas crônicos de corrupção
pública, o que revela a superação da crise que havia alcançado o go-
verno federal no final da primeira gestão. Este foi o caso da Operação
Navalha, desfechada pela Polícia Federal em 17 de maio, que provocaria
a queda do ministro peemedebista Silas Rondeau. Entre fatos, boatos
e bravatas, o certo é que a Operação Navalha tinha como foco fraudes
em licitações de obras públicas federais, incluindo as vinculadas ao
Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e Luz para Todos (programa
que teve seu comandante degolado politicamente, nos últimos dias de
maio, seguindo o destino do ex-ministro das Minas e Energia). O caso,
embora de grande gravidade política, foi minguando e cedendo lugar
às notícias de crescimento econômico. Ao contrário do que ocorreu
durante as denúncias sobre o mensalão, os novos fatos não envolveram
a imagem do governo Lula, mas a de políticos que, relacionados ou não
ao governo federal, apareceram como jogadores solitários e até mesmo
ingênuos, sendo alimentados por uma poderosa e hiperativa empresa, a
Gautama. É verdade que, após o início da Operação Navalha, uma lista
de doadores à campanha de reeleição do presidente Lula foi divulgada
pela grande imprensa, tendo grandes empreiteiras no topo deste rol
(como Andrade Gutierrez), as quais repassaram 12,7 milhões de reais
em 2006, seguidas pelos bancos (como Santander), que teriam repas-
sado 8,8 milhões de reais. Percebe-se, assim, um movimento politizado

118 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

de grandes empresas, sinalizando aproximação consistente na direção


do PT. Em outras palavras, a imagem é de um governo apartado de um
Estado corrompido, de difícil controle.
O início da liberação de recursos para movimentar o PAC e o au-
mento dos desembolsos do BNDES (alta de 40% na comparação entre
o primeiro quadrimestre deste ano com o do ano anterior) marcavam
o primeiro ano do segundo mandato: somente as operações de crédito,
tendo como base os indicadores de junho de 2000, aumentaram de
307 bilhões de reais para 747 bilhões de reais (em fevereiro de 2007),
numa evolução contínua, sem apresentar nenhuma queda ao longo
desses anos.

Tabela 3. Fase de crescimento: expansão de vendas por setor


VARIAÇÃO (%)
SETOR
MARÇO 2006 A MARÇO 2007
Combustíveis e lubrificantes 6,9
Supermercados, produção de
10,4
alimentos, bebidas e fumo
Tecidos, vestuário e calçados 14,7
Móveis e eletrodomésticos 17,9
Veículos, motos e peças 25,4
Fonte: Consultoria Tendências, a partir de dados do BC e IBGE

Por seu turno, o emprego formal cresceu, em abril, 31,4%, regis-


trando novo recorde, o maior resultado da série histórica do Minis-
tério do Trabalho, iniciada em 1982 (Cadastro Geral de Empregados
e Desempregados).
A oposição provou desta onda de otimismo. Na virada do pri-
meiro para o segundo semestre, alguns poucos setores empresariais,
a seção paulista da OAB e alguns militantes do PSDB desenharam
uma reação e lançaram um manifesto intitulado Cansei. As entidades

Lulismo em sua forma acabada 119


LULISMO | Rudá Ricci

que assinaram o manifesto receberam um ataque frontal do governo


federal e, em seguida, da CUT e até mesmo de órgãos da imprensa.
As redes Globo e Bandeirantes se recusaram a assinar o manifesto por
considerá-lo partidarizado. A reação do presidente da República foi
rápida e objetiva, afirmando que se era para brincar de democracia,
eles sabem que eu coloco mais gente nas ruas. Estava lançada a ameaça
de radicalização e confronto de manifestações de rua. A reação foi
de tal monta que o presidente da Philips no Brasil, Paulo Zottolo, um
dos signatários do manifesto Cansei, foi obrigado a se manifestar em
uma quase desculpa pública, afirmando que não precisaria se sentir
culpado por ser rico. Sindicatos de trabalhadores criaram uma con-
traofensiva com o manifesto Cansamos. Ficava patente que os líderes
perceberam, rapidamente, que a pecha de movimento das elites estava
se alastrando. E, como era previsível, este início de reação caiu no
esquecimento. O lulismo ganhava ainda mais robustez.
A transposição do rio São Francisco, neste período, figurava como
a ponta de lança da tensão entre governo federal e movimentos sociais.
O Banco Mundial divulga carta na qual sustenta que a obra era invi-
ável economicamente e sugere aplicação dos recursos em pequenas
e médias adutoras, sistemas de distribuição de água e melhoria da
eficiência das companhias de saneamento básico do Nordeste. No
cenário apresentado por Gobind Nankani (do Banco Mundial) a trans-
posição teria baixo impacto na redução da pobreza. Numa passagem,
a carta afirma que o projeto possui um grande objetivo tecnológico e
comercial. Experiências internacionais sugerem que a ligação com os
pobres pode ser fraca. O equilíbrio financeiro da irrigação, segundo o
banco, ocorreria somente 15 anos após a obra estar finalizada, o que
exigiria subsídios governamentais para sustentação de novos projetos
de irrigação no território.
Não por outro motivo, a relação do governo federal com a tradicio-
nal base social do PT começava a ser objeto de reflexão por setores que
lideravam o lulismo. Fontes do alto escalão do governo federal faziam

120 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

diagnóstico do que entendiam ser sua relação com os movimentos


sociais e organizações populares do Brasil. Classificavam este campo
político em movimento sindical, movimentos feministas, movimento
negro, movimento estudantil e “campo das ONGs” (incluindo neste
último bloco várias organizações confessionais, como pastorais so-
ciais). Tais fontes acreditavam que o único segmento não contemplado
por uma pauta específica e recursos financeiros seria o “campo das
ONGs”. Citavam alguns setores, como a CPT, como profundamente
radicalizados ou vinculados aos partidos da extrema esquerda do país.
Este é tema de um segmento específico do chamado núcleo-duro do
governo federal, composto, naquele momento, por Dilma Rousseff,
Paulo Bernardo, Walfrido Mares Guia, Gilberto Carvalho e Luiz Dulci.
Os dois últimos sempre estiveram mais próximos das relações com
movimentos sociais e organizações populares.
A cautela no trato com cada segmento político da base governista
era, desde então, uma evidente preocupação deste núcleo central do
lulismo. Possivelmente para conter qualquer tensão política na base
aliada, os líderes da base governista decidiram encerrar a reforma
política que vinha sendo trabalhada desde o primeiro mandato. Se-
gundo Luiz Sérgio (RJ), líder do PT, todas as tentativas resultaram em
fracasso e não acreditava que esta pauta seria retomada.

A crise internacional em meio à


retomada do crescimento brasileiro
A estabilidade da economia brasileira sofreu um repique com o
anúncio da crise do setor imobiliário dos EUA. Paul Krugman, que
mais adiante receberia o Prêmio Nobel da área, comentou que além de
previsível a crise era uma acomodação normal do setor superaquecido,
associada à estabilidade dos preços do barril do petróleo, acima da
média histórica, o que também considerava previsível. Sustentava,
ainda, que a liquidez mundial secou, provocando um leve susto ou,
na pior das hipóteses, uma cadeia de inadimplência. O ex-ministro

Lulismo em sua forma acabada 121


LULISMO | Rudá Ricci

Luiz Carlos Bresser-Pereira sugeriu que a turbulência era reflexo de


desregulação dos mercados. O que poderia ser uma péssima notícia
para o governo federal, teve justamente o reflexo inverso: o projeto de
regulação estatal voltava à tona e o Brasil firmava-se como o emergente
mais promissor, logo atrás da China.7 A economia brasileira manteve
crescimento estável e abrangente até novembro, quando começou a
sentir impacto sobre a arrecadação fiscal. Setores da indústria nacio-
nal, como papelão, siderurgia e petroquímica, revelavam expectativa
de aceleração do ritmo de crescimento no segundo semestre. Para o
Ciesp, o mercado interno deveria promover tal crescimento. Segundo
a entidade empresarial, para 67% dos empresários consultados em
julho, as perspectivas para o segundo semestre são otimistas ou muito
otimistas. A demanda por aço, a título de ilustração, é muito superior
à expectativa do início deste ano, provocada pelo consumo das indús-
trias automobilística, da construção civil e das máquinas agrícolas.
Demonstrando abertamente o quanto o pragmatismo era o tom
do lulismo, no final de julho o governo federal liberou recursos das
emendas individuais dos parlamentares aliados. Previa-se a liberação
de 2 bilhões de reais até outubro desse ano, mas a proximidade da data
limite da votação para que a CPMF fosse prorrogada até 2011 acelerou
a liberação dos recursos (além da prorrogação da Desvinculação das
Receitas da União, DRU). Sem a CPMF, o governo deixaria (como
acabou ocorrendo parcialmente) de arrecadar 38 bilhões de reais em
2008. Nos primeiros seis dias de agosto, o governo federal (tendo o
então ministro Walfrido Mares Guia como maestro das negociações)
se comprometeu a pagar 67 milhões de reais às emendas parlamen-
tares, três vezes superior ao previsto para este período. Também foi
acelerada a nomeação de cargos do segundo escalão.
Por seu turno, o arrocho fiscal para pagamento de juros aumentou
no primeiro semestre desse ano, atingindo um superávit primário de
43 bilhões de reais. O valor é 13,5% superior ao do mesmo período
do ano anterior.

122 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Superada momentaneamente a crise aérea (com a indicação de


Nelson Jobim para o Ministério da Defesa e o isolamento completo da
diretoria da Anac), com o enfraquecimento do movimento Cansei e a
volta ao otimismo no mercado financeiro (após a “bolha” causada pela
crise imobiliária norte-americana), o governo federal parecia entrar
num céu de brigadeiro. Parecia. Isto porque o caso Renan Calheiros
trouxe sequelas no relacionamento do PMDB com o governo federal.
A agenda política do governo federal já estava nitidamente concen-
trada na esfera institucional, desconsiderando até mesmo o avanço
do discurso oposicionista do MST.
O processo de cassação de Renan Calheiros foi desgastante.
E o governo federal parece ter saboreado de longe o desgaste do
presidente do Senado (que mais tarde retornaria com poder ao lado
de Fernando Collor, sob a batuta de José Sarney como presidente do
Senado, configurando mais uma nítida prova de maleabilidade do
lulismo), procurando tê-lo como aliado enfraquecido. Após semanas
de intensa exposição e aumento da visibilidade das lideranças opo-
sicionistas no Congresso, o relatório sobre o caso Renan foi votado
na Comissão de Ética e rapidamente chegou ao plenário do Senado.
Numa votação secreta e em sessão secreta, Renan e aliados confir-
maram sua força. Eram necessários 41 votos para Renan perder seu
mandato. Mas apenas 35 senadores votaram neste sentido, contra
40 que rejeitaram a punição ao presidente da Casa. O mais intrigan-
te foi que seis senadores se abstiveram, sendo um deles o senador
petista Aloísio Mercadante. Um outro senador, do PTB, anunciou
publicamente sua abstenção. O voto do senador petista foi o mais
comentado. Ao declará-lo, Mercadante afirmou que não tinha opi-
nião formada, o que estimulou uma pesada reação da oposição e da
grande imprensa. O que contou na absolvição de Renan em plenário
foram tanto as ameaças de denúncias de casos privados e pouco
éticos de vários senadores quanto a demonstração, orquestrada pelo
Palácio do Planalto (mais concretamente pelo ministro Mares Guia)
de relativo apoio do governo federal à absolvição do senador aliado.

Lulismo em sua forma acabada 123


LULISMO | Rudá Ricci

A primeira votação que chegou ao Senado (enquanto transcorriam os


acordos para liberação de verbas às bancadas aliadas para aprovarem
a prorrogação da CPMF) foi a de criação da secretaria comandada
por Mangabeira Unger, aliado de primeira hora de Ciro Gomes. Foi o
momento esperado por Renan Calheiros: em reunião com a bancada
peemedebista, Renan comandou a rebelião de seu partido e a cria-
ção da secretaria especial para o aliado de Ciro Gomes foi rejeitada,
abrindo uma ferida em outra frente governista. A reação de Lula foi
discursiva, mas na prática foi obrigado a renegociar, mais uma vez,
benesses ao PMDB. Renan havia dado o troco.
De algoz, o governo federal se viu imediatamente como vítima.
Além da reação de Renan, o governo Lula percebeu-se enredado em
um caso mais sensível: o envolvimento do superministro Walfrido
Mares Guia no gerenciamento de Caixa 2 na campanha eleitoral do
tucano mineiro Eduardo Azeredo ao governo estadual, em 1998. O caso
era tão delicado que acabou provocando a queda do ministro mineiro.
Como principal articulador do lulismo em Minas Gerais, o ministro
das Relações Institucionais, Walfrido Mares Guia, transformou-se em
alvo de vários segmentos da base aliada de Lula, incluindo vários
petistas do baixo clero. Naquela altura, grande parte do bloco dos
descontentes petistas era formada pelo baixo clero parlamentar e por
fortes dirigentes da máquina partidária regional do PT.
Lula ficaria com o governo e este bloco com a máquina política.
Obviamente que o núcleo duro do governo Lula não aceitou nem mes-
mo negociar esta possibilidade. Havia, entretanto, uma parcela deste
bloco não governamental que, por tradição (caso daqueles próximos
das organizações pastorais ou de movimentos de base) não aceita-
vam facilmente métodos centralizadores de gestão política, sugerindo
maior transparência e o retorno às consultas de base partidária como
eram correntes na origem do PT. Este pequeno núcleo de lideranças
e parlamentares (é possível citar o deputado pernambucano Paulo
Rubem como integrante deste grupo, que pelos motivos expostos, se

124 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

transferiu para o PDT) fazia uma oposição programática ao governo


federal, mas seu peso político era muito reduzido.
O governo federal vivia o momento de prosperidade econômica
por que passava o país e os resultados significativos de queda dos
índices de pobreza em função do Bolsa Família. Este mesmo motivo,
alimentava aumento de demandas em sua base aliada, visando as
eleições municipais de 2008.
Passado o primeiro momento da crise do setor imobiliário dos
EUA (e aumento do preço do petróleo), o mercado financeiro voltou
a adotar o Brasil como base preferencial de seus investimentos. A
ânsia foi tamanha que a entrada de capital externo fez a Bovespa
bater quatro recordes seguidos e acumular valorização de 11,7% em
setembro. Pela primeira vez na sua história, a Bolsa de Valores de
São Paulo registrou 61.052 pontos marcados no pregão do dia 27. Foi
o 36º recorde registrado em 2007. O dólar despencou para 1,84 reais,
situação que se repetiria pelos meses subsequentes. Esta euforia foi
resultado do anúncio pelo Banco Central dos EUA (FED) em reduzir
os juros básicos do país (de 5,2% para 4,7%) que diminuiu a ren-
tabilidade dos títulos do Tesouro daquele país. Em outras palavras,
investir no Brasil era um negócio mais lucrativo.

Gráfico 02. Trajetória de alta da Bovespa em 2007

80.000 55.371 61.052


45.382 45.597 50.218

40.000
44.815 48.015

0
02 de 01 de 02 de abril 03 de 02 de julho 02 de 28 de
janeiro fevereiro maio agosto setembro

Fonte: Folha de S. Paulo

Lulismo em sua forma acabada 125


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 03. Dólar, em R$


2,15
2,09
2,1
2,05
2
1,95
1,87
1,9
1,86
1,85
1,84
1,8
1,75
1,7
24 de julho 16 de agosto 18 de setembro 28 de setembro

Fonte: Folha de S. Paulo

Num breve balanço do que foi 2007, seria possível destacar:


a) D
 esde o segundo turno das eleições que reelegeria o presidente
Lula, houve uma acentuada postura sua para atrair o PMDB,
dando maior consistência ao Presidencialismo de Coalizão;
b) O
 PSDB oscilava na relação com o DEM. O caso da votação da
prorrogação do CPMF pareceu emblemático. O DEM fechou
questão e o PSDB, sob as mãos do senador tucano Arthur
Virgílio e à sombra do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, correu atrás para não ser engolido pelo vendaval
político que se avizinhava. Aparentemente, mais senadores
do DEM votaram em virtude de crenças ideológicas que os
senadores tucanos;
c) S
 em o ministro Walfrido Mares Guia, um não petista de ori-
gem social distinta ao núcleo duro do Planalto, o governo
federal perdeu consistência e credibilidade nas negociações
com parlamentares e partidos no Congresso Nacional. Atuou
de maneira caótica e tímida junto à imprensa e se perdeu em
micronegociações. PSDB e DEM foram muito mais hábeis e
jogaram todas suas fichas num jogo de cena agressivo e apoca-
líptico junto à grande imprensa. Na semana anterior à votação
em segundo turno da prorrogação da CPMF, o governo federal

126 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

anunciava 47 a 48 votos favoráveis (bastando mais um ou dois


para ser vitorioso), quando todos sabiam que dia a dia a derrota
se desenhava. Enfim, fez apenas 45 votos. E perdeu parte da
base aliada, sendo vários casos (cito o do peemedebista per-
nambucano Jarbas Vasconcelos) previsíveis, já que disputam
abertamente as eleições de 2008 com petistas locais;
d) O ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a balançar
em seu cargo durante as últimas semanas do ano. Havia uma
forte disputa entre petistas do alto clero, envolvendo, entre
outros, o senador e economista Aloísio Mercadante;
e) Frei Cappio, então em greve de fome contra a transposição
do rio São Francisco, maculou a relação do lulismo com parte
dos agentes pastorais do país mas, na sequência, ficou isolado
a algumas poucas localidades da região semiárida;
f) 2
 007 foi, também, o ano de apresentação e aprovação do
Plano Plurianual (PPA) do segundo mandato de Lula, com
vigência de 2008 a 2011. O PPA define as metas e diretrizes
governamentais para este período. A primeira surpresa foi o
abandono de audiências públicas, pelo governo federal, para
discussão de sua proposta de PPA, tal como havia realizado
em 2003. O PPA elaborado pelo governo Lula destacou três
eixos: crescimento econômico, educação de qualidade e
agenda social. Na prática, foram traduzidos pelo PAC, pelo
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE, que substituiu
o plano decenal, elaborado com participação das entidades de
representação do segmento) e os programas de transferência
de renda. Ao todo, foram listados 306 programas orçamen-
tários e 4.300 ações, envolvendo 3,5 trilhões de reais. O PPA
é uma foto do ideário do governo federal: um grande plano
de obras e pouca participação social na sua gestão;
g) No campo popular, 2007 indicou uma leve guinada para a
oposição ao governo Lula. Começando pelo MST, que se

Lulismo em sua forma acabada 127


LULISMO | Rudá Ricci

aproximou do PSTU e PSOL e articulou algumas ofensivas,


como o abril vermelho mais apimentado e chegando à ne-
gociação do Plano Safra com mais pressão social. A segunda
movimentação vem da CPT (o mundo rural em destaque,
como se percebe) e dos agentes vinculados à Teologia da
Libertação, tendo a transposição do São Francisco como
mote. O governo federal jogou errado, como ocorreu na
votação da CPMF: muita bravata e pouca negociação efetiva.
O fim da greve de fome de Frei Cappio, 24 dias após seu
início, foi providencial para conter um movimento social
que começava a ganhar asas, com entrada de atores globais
(como Letícia Sabatella) em cena, vigílias em escadarias de
igrejas, manifestos e abaixo-assinados em apoio ao bispo
baiano. Resta saber em que medida a ferida aberta vai se
cicatrizar em ano eleitoral;
h) Os dados econômicos amplamente favoráveis ao governo
federal diminuíram o impacto da derrota no Senado (CPMF)
e os arranhões da ofensiva contra a transposição do São Fran-
cisco. O crescimento fantástico, de 5,7% do PIB; o mar calmo
(ainda que momentâneo) internacional; a subida do país para
o 6º posto dos países mais ricos do mundo (segundo nova
metodologia do Bird8) e a taxa de desemprego menor (desde
20029) faziam deste governo um dos mais bem sucedidos
desde a redemocratização, nos anos 80.
O mundo parecia sorrir para o lulismo. Mas os primeiros sinais
do embate das eleições de outubro de 2008 já apareceriam. A não
prorrogação da CPMF foi um claro sinal do temor da base lulista se
efetivar como potencial vencedora antes mesmo das convenções
partidárias. Era realmente possível, com a injeção de 40 bilhões de
dólares que poderiam se concretizar em obras e serviços por todo o
território nacional, prioritariamente nos territórios onde a base go-
vernista é carente de votos.

128 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

A Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou, na última semana


de 2007, que o Índice de Confiança do Consumidor (ICC) apresentou
alta de 5,2% em dezembro com relação ao mês de outubro. Com o
aumento, o indicador atingiu sua maior pontuação (120,3) desde o
início da série histórica, em setembro de 2005. No acumulado dos
últimos 12 meses, o ICC apresenta alta de 7,7%. No cálculo do ín-
dice, a FGV utiliza cinco quesitos da Sondagem de Expectativas do
Consumidor. Segundo a instituição, o aumento de dezembro aconte-
ceu, principalmente, por conta das melhores avaliações do Índice de
Situação Atual (ISA), que avançou 9,3% em relação a novembro, e o
Índice de Expectativas (IE), que subiu 3,3%.
Com relação aos próximos meses, segundo a FGV, o quesito que
teve maior influência no ICC foi a expectativa de compra de bens
duráveis. A fatia de consumidores que pretendem gastar mais subiu
de 20,5% para 25,1%. Já a parte dos que pretendem gastar menos
caiu de 23,7% para 18,1%.
No campo das contas governamentais, a arrecadação federal
somou R$ 537,161 bilhões de janeiro a novembro, 11% a mais do que
em 2006. Somente em novembro, a arrecadação de impostos e contri-
buições federais foi de R$ 52,414 bilhões. O valor foi 4,68% menor do
que o verificado em outubro, mas 19,82% superior ao registrado em
novembro de 2006. O resultado era recorde para meses de novembro,
segundo dados divulgados no dia 21 de dezembro pela Receita Federal.
Ainda segundo a Receita, o resultado foi impulsionado pela abertura
de capital da Bovespa, que resultou em uma arrecadação adicional
de cerca de R$ 2 bilhões. O aumento em relação a novembro de 2006
também era explicado pela elevação de 232% no Imposto de Renda da
Pessoa Física e de 67,78% no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.
Além do caixa cheio, a aprovação no Senado da prorrogação, até
2011, da DRU (Desvinculação das Receitas da União) por 65 votos
favoráveis e seis contrários, garantiu ao governo federal o direito de
gastar livremente 20% da arrecadação dos principais tributos. O mon-

Lulismo em sua forma acabada 129


LULISMO | Rudá Ricci

tante do orçamento para 2008 era de R$ 84 bilhões. Para conseguir a


aprovação, o governo se comprometeu a retomar as discussões acerca
da reforma tributária, além de votar a regulamentação da emenda 29,
que distribui recursos para a saúde. Também foi aceita a autorização
de empréstimos no valor de US$ 537,4 milhões para dez prefeituras
e estados.
Os gráficos apresentados a seguir (dólar e Índice Bovespa) ao longo
de 2007, muito citados para sugerir mudança de humor dos grandes
investidores no país, revelam os motivos que aproximaram ainda mais
o mercado financeiro do lulismo, criando uma importante blindagem
após a crise moral que o envolveu no final da primeira gestão:

Gráfico 04. Variação do dólar em 2007

Fonte: Valor Econômico

130 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Gráfico 05. Índice Bovespa em 2007

Fonte: Valor Econômico

Finalmente, no que tange a reação dos movimentos sociais ao


longo de 2007, destacaram-se algumas características que foram se
consolidando ao longo dos cinco anos de gestão Lula:
a) F
 ragmentação generalizada: de pautas e de posicionamento
político. Uma tímida sinalização de parte dos movimentos
sociais brasileiros em unificar suas críticas contra o Plano de
Aceleração do Crescimento (PAC);
b) Elaboração política concentrada nas ONGs: com exceção do
MST, elas passaram a liderar a formulação de agenda e pauta
estratégica que mobilizaram este campo político-social. Este
é o caso da reforma política e tantos outros eixos de luta
democrática nacional;
c) As organizações sociais rurais passaram a ser visivelmente
mais pujantes que as urbanas. Mais contestadoras e com
maior capacidade de mobilização e visibilidade (caso da luta

Lulismo em sua forma acabada 131


LULISMO | Rudá Ricci

pela terra, da luta contra a transposição do São Francisco e


luta contra produtos transgênicos);
d) O
 sindicalismo brasileiro, que nos anos 80 assumiu a lideran-
ça quase paternal das lutas sociais do país, mergulhava no
oficialismo e em certo burocratismo interno (transfigurado de
inúmeras lutas intestinas por cargos ou espaços de controle
político-financeiro da máquina sindical), reduzindo drastica-
mente sua capacidade inovadora e crítica.

2008: a crise internacional e a consolidação da Era Lula


O ano começou com prenúncio de crise mundial. Pesquisa Gallup
informava que 70% dos norte-americanos avaliavam que já viviam
em cenário recessivo. A crise dos EUA foi tomando corpo ao longo do
primeiro trimestre. Mas afetou relativamente menos as economias da
China e Brasil, dois dos Brics (os quatro grandes emergentes: Brasil,
Rússia, Índia e China).
O orçamento federal de 2008 foi aprovado apenas no mês de março,
num jogo político, no interior do Congresso Nacional, que se arrastou
por todo o primeiro trimestre. A extinção da CPMF gerou uma reação
discursiva por parte do governo que ensaiou uma retaliação política.
No início de janeiro, o governo federal anunciava o aumento de tribu-
tação sobre o sistema financeiro (em 10 bilhões de reais), através de
aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) em 0,38%.
O IOF incide em todas operações de seguros e câmbio, assim como
empréstimos para pessoas físicas e jurídicas. O governo anunciou, tam-
bém, aumento (de 9% para 15%) da Contribuição sobre Lucro Líquido
de instituições financeiras (CSLL). E ainda prometeu cortar gastos em
20 bilhões de reais, além de rever reajuste de servidores. Nas semanas
que se seguiram, nem tudo o que foi anunciado na primeira semana
do ano foi cumprido. Parecia, na verdade, que o governo federal pres-
sionava a opinião pública contra aqueles que votaram pela extinção
da CPMF e, ainda, se preocupava com o aumento das importações em

132 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

virtude da valorização progressiva do real. Com efeito, no início do ano


anunciava-se uma queda do superávit da balança comercial (diferença
entre exportações e importações) de 40 bilhões em 2007, em relação a
2006. Em meados de janeiro, o governo lançou um “balão de ensaio”
sobre uma possível recriação da CPMF com alíquota de 0,20%, vincu-
lada exclusivamente à saúde. Ficou na sinalização.
Na outra ponta do cenário político, o governo federal anunciou
ampliação do Bolsa Família, através de medida provisória: um bônus
de 30 reais para famílias com filhos de 16 e 17 anos de idade.
Finalmente, embora o discurso governamental fosse de corte, no
final da primeira semana de janeiro, o Ministério do Planejamento
anunciava 41 bilhões de orçamento reservado em 2007 (mesmo sem
o orçamento de 2008 aprovado) para tocar as obras do Plano de Ace-
leração do Crescimento (PAC). Este recurso havia sido empenhado10
em 2007, o que gerou grande embate entre forças parlamentares
oposicionistas e governistas. O aperto fiscal (superávit primário) em
2007 havia superado a meta governamental: União, estados e muni-
cípios (além das estatais) pouparam 101 bilhões de reais (a meta era
90 bilhões de reais) para pagamento de juros de suas dívidas. Vale
destacar que no final de fevereiro a arrecadação federal havia batido
novo recorde (crescimento de 20% em janeiro ou 62 bilhões de reais),
demonstrando a perda relativa dos recursos do CPMF.
No início do ano houve muita pressão em razão da falta de
chuvas e a queda dos reservatórios, estimulando o risco de mais um
apagão. Daí o anúncio da preservação do PAC, além da contratação de
energia termelétrica produzida a partir do bagaço de cana e redução
do consumo de gás da Petrobras, medidas adotadas ainda em janeiro.
Este é o cenário e a ossatura montados pelo governo federal, logo
nos primeiros dias do ano, para consolidar a Era Lula. Não se trata
de uma mera figura de linguagem. Lula consolidava a maior coalizão
de gestão federal realizada em toda a história republicana do Brasil.
Ficavam de fora PSTU e PSOL, com baixa representação política, e

Lulismo em sua forma acabada 133


LULISMO | Rudá Ricci

DEM, PPS, PV e PSDB. O governo Lula atacou duramente a base do


DEM, estimulando transferência de parlamentares e prefeitos para
partidos da base aliada, obtendo muito sucesso e esvaziando a força
político-eleitoral do ex-PFL. No caso do PSDB, a ação governamental
foi distinta, já que procurou dividir ou isolar o PSDB paulista, apoian-
do abertamente a liderança de Aécio Neves. A anunciada aliança
eleitoral PT-PSDB para as eleições de outubro na capital mineira foi
o movimento mais nítido para consolidação deste objetivo. No final
de março, em Alagoas, o presidente Lula afirmou que o “DEM destila
ódio, mas o PSDB é amigo”.
A política orçamentária (tanto os recursos em infraestrutura,
negociados com a base da coalizão, quanto os recursos de programas
de transferência de renda) estava diretamente vinculada ao desenho
de gestão e de construção de um poder político governamental pere-
ne e sustentável. Levantamento realizado pelo IBGE (divulgado pela
grande imprensa em 29 de março) indicava que os programas sociais
chegavam a 10 milhões de domicílios brasileiros (18,3% do total).
A renda subiu e o consumo de eletrodomésticos também. A aquisi-
ção de telefones, para aqueles que recebiam recursos dos programas
de transferência de renda federais, subiu de 34,9% (em 2004) para
50,9% (2006). Geladeira subiu de 72,1% para 76,6%, no mesmo
período (1,8 milhão a mais). Máquina de lavar roupa saltou de 7,6%
para 10,2%. Microcomputador de 1,4% para 3,1% (199 mil a mais).
É verdade que entre a população com renda per capita de ¼ de salá-
rio mínimo, considerada indigente, 1,8 milhão de famílias ainda não
recebe os recursos federais. Há ainda grande déficit de infraestrutura
para as mesmas famílias que recebem recursos federais: pouco menos
de 30% que recebem recursos não possuem abastecimento de água,
54% não são atendidos por esgotamento sanitário adequado e 30%
não são atendidos por coleta de lixo.
Sobre o círculo vicioso que os programas de transferência
eram acusados de estimular, os dados do IBGE confirmavam a

134 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

dependência de segmentos sociais menos abastados em relação


às benesses estatais. Em 2004, 52% dos que eram atendidos pelo
programa disseram ter ocupação funcional. Em 2006 o índice
continuou o mesmo. Ocorre que para aquelas famílias que não
receberam benefícios de transferência de renda federal, o índice
de ocupação subiu de 57,7% para 58,6%. A acomodação das famílias
e o caráter clientelista do Bolsa Família foi, desde sempre, um tabu
para o governo federal, tendo como fantasma o dado que apenas 75
mil famílias conseguiram sair deste programa desde seu início.
Como era de se esperar, os domicílios beneficiados possuíam
mais jovens (população até 17 anos representa 46% dos moradores,
sendo que a população nacional total nesta faixa etária é de 31%). Em
termos políticos, significava que esta população crescia sob a égide
dos programas de transferência de renda coordenados pelo lulismo.
O crédito consignado também fomentou o consumo.11 Ainda em
janeiro o governo anunciou mudança nesta modalidade de crédito,
limitando para 20% da renda mensal do aposentado que poderia ser
empenhado no pagamento das prestações (mas aumentou o prazo
dos empréstimos, para 60 meses).
O emprego formal avançou para além de 1,6 milhões, em 2007 e
projetava-se, no início do ano, a criação de 2,8 milhões de empregos
em 2008. O primeiro semestre registrou, segundo o Caged, 554 mil
novos empregos com carteira assinada (o crescimento do emprego
informal cresceu, em 2007, mais de 9%), o maior crescimento de
toda a série histórica deste órgão. Estudo realizado pelo Ministério
do Trabalho, contudo, revelava que a ocupação que mais rendeu em-
pregos foi o de vendedor do comércio varejista (325 mil empregos,
entre 2003 e 2006), trabalhadores de linhas de produção (307 mil, no
mesmo período) e auxiliar de escritório (287 mil), todas consideradas
de baixa remuneração. De fato, não só no Brasil, mas também nos
EUA, desde os anos 90, os empregos do setor de comércio varejista são
campeões na oferta de novos postos de trabalho, com o adendo que

Lulismo em sua forma acabada 135


LULISMO | Rudá Ricci

são empregos de alta rotatividade (sazonais) e gerados em pequenas


unidades comerciais (abaixo de 50 empregados).
O Banco Mundial, que possui um programa de comparação in-
ternacional (PCI), envolvendo 146 países, informou que o Brasil, pela
comparação do poder de compra, passou de 7º para 6º no ranking
mundial e era responsável por metade da economia da América do
Sul e por quase dois terços dos gastos governamentais da região. O
Brasil aparecia em sexto lugar, com o equivalente a 3% do Produto
Interno Bruto (PIB) mundial, junto à Grã-Bretanha, França, Rússia e
Itália. Na medida convencional, o Brasil é a sétima economia, com
2% do PIB, junto a Índia, Rússia e México. Sobre “paridade do poder
de compra”: ao invés de converter o PIB do país em dólares, foi usada
a paridade, que expressa os valores das moedas locais. Dessa forma,
segundo a entidade, “os números refletem o valor real de cada eco-
nomia, com as diferenças sendo corrigidas em níveis de preços sem
que sejam afetadas por movimentos transitórios de taxas cambiais”.
Ainda segundo o Banco Mundial, pelo critério da paridade, a China,
em vez do quarto lugar na economia mundial, fica no segundo pos-
to. A economia mundial produziu US$ 55 trilhões em mercadorias e
serviços em 2005, sendo quase 40% deste valor oriundos de países
em desenvolvimento. Pouco mais de 20% vêm de China, Índia, Rús-
sia, Brasil e México. Os EUA seguem no topo do ranking, mas com
uma economia menor. Enquanto pelo sistema cambial o país tem o
equivalente a 28% do PIB mundial, pela paridade, tida como mais
realista, tem 23%.
Na esteira do clima geral de otimismo com a economia, surgiu o
escândalo dos gastos com cartões corporativos que desaguou na for-
mação de uma CPI,12 sob a Presidência do PSDB, dividindo o comando
com o PT. Também teve como consequência a queda da ministra da
Igualdade Racial, Matilde Ribeiro. Contudo, o tema da corrupção já
não atingia corações. E atingia poucas mentes de brasileiros.

136 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Houve, ainda, acusações do ministro do Trabalho favorecer


militantes do PDT, ao qual está filiado. Uma das acusações é que o
ministro Carlos Lupi teria repassado 50 milhões de reais para entida-
des vinculadas ao seu partido. O ministro negou influência política
no repasse de verbas públicas, cancelou contratos sob suspeição
(em 27 de fevereiro)13 e conseguiu um expressivo apoio das centrais
sindicais quando conseguiu vetar que as contas das centrais fossem
fiscalizadas pelo Tribunal de Contas.
Como se percebe, as denúncias foram se acumulando na mesma
dimensão em que caíram no esquecimento e perderam força junto
à opinião pública. Contra-ataques governamentais, apoio a aliados
poderosos, vazamento de informações sobre erros similares cometidos
pelos governos liderados pela oposição, controle sobre o parlamento:
estes foram os expedientes mais empregados no período que resul-
taram no total abafamento das denúncias contra o governo federal.
As incertezas do cenário internacional intensificaram, na primeira
quinzena de janeiro, a venda de ações em países emergentes. Neste
período, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) registrou saldo
negativo de 1,88 bilhão de reais.
Em 18 de março, os EUA cortam, pela sexta vez consecutiva
desde setembro de 2007, os juros básicos, chegando a 2,25%. Os
juros reais (descontando a inflação) passaram a ser negativos. O FED
totalizou 400 bilhões de dólares em empréstimos a bancos (metade
das reservas do país). Paralelamente, embora pouco destacada na
grande imprensa, o FMI chegou a propor que os EUA passassem a ser
escrutinados pelo Fundo, revertendo uma situação histórica em que
o fundo tinha em seu maior sócio (os EUA) o timoneiro para impor
regras às economias em desenvolvimento.
No início de fevereiro, os mercados haviam perdido 5,2 trilhões de
dólares, segundo cálculo da Standard & Poor’s. O Brasil teria perdido
100 bilhões de dólares, ficando em 22º lugar no ranking de perdas
calculado pela agência, num total de 52 países analisados.

Lulismo em sua forma acabada 137


LULISMO | Rudá Ricci

Até então, a crise internacional não afetava as empresas bra-


sileiras (o setor produtivo nacional) significativamente. O mercado
interno passou a ser a locomotiva da economia nacional. Esta foi,
inclusive, a opinião de 36 grandes empresas consultadas pela Fede-
ração das Indústrias do Estados de São Paulo (Fiesp) para avaliar os
investimentos previstos.
No final de fevereiro, o Banco Central já havia anunciado que o
Brasil havia encerrado sua dívida externa, anúncio que foi questio-
nado tecnicamente por organizações não governamentais e partidos
oposicionistas, que também indicavam o problema da dívida interna,
alta em virtude da taxa Selic. O Brasil teria passado de devedor a
credor externo, em função dos ativos (governamentais e de empresas
privadas) adquiridos no exterior, que totalizavam 4 bilhões de dólares.
As reservas internacionais do país chegaram a 187 bilhões de dólares
no final de 2007 (em 2002, as reservas eram de 16 bilhões de dólares,
para efeito de comparação).
Apesar de todo o cenário otimista, o Comitê de Política Mone-
tária (Copom), do Banco Central, decidiu por unanimidade elevar a
Selic (taxa básica de juros) em 0,5 ponto percentual, para 11,75%
ao ano.14 O Brasil assumia o posto de país com a maior taxa real de
juros do mundo.

Tabela 4. Taxa de juros reais no mundo

País Taxa de Juros Básica (%)


Brasil 7,1
Turquia 5,6
Austrália 4,6
México 3,4
Fonte: UPTrend

138 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

A elevação da taxa de juros básica teria sido uma reação à alta


inflacionária, tendo o preço das commodities como locomotiva. Ocorre
que as commodities agrícolas, em especial, estavam diretamente re-
lacionadas com o crescimento de China e Índia e, principalmente, ao
reflexo da Lei de Bioenergia dos EUA (e de alguns países europeus)
que impactou no preço do milho nos últimos anos (principal produto
de extração do biodiesel dos EUA), com repercussão em vários grãos,
no mundo todo.
Especialistas divulgaram previsões que convergiam para a esti-
mativa do Brasil obter receita recorde de 100 bilhões de dólares com
exportações de commodities em 2008, uma alta de 33,3% em rela-
ção ao ano anterior. Há uma conta de chegada entre as commodities
importadas pelo Brasil (trigo, por exemplo) e as exportadas (soja e
minério de ferro, por exemplo) que geraram grande divergência de
interpretação em relação à decisão do Copom.
O Copom parecia andar no sentido contrário. No dia 30 de abril,
a agência de classificação de risco Standard and Poor’s concedeu ao
Brasil o grau de investimento, o que melhorava a recomendação de
investimento seguro para estrangeiros. De acordo com a agência, a
nota para os títulos brasileiros em moeda nacional passou a ser BBB+,
e os emitidos em moeda estrangeira passaram a ser considerados
BBB-. As notícias continuaram positivas ao longo do mês, chegando
a maio com uma matéria de destaque no New York Times (NYT).
O jornal publicou reportagem intitulada “Boom Times for Brazil’s
Consumers”, que tratou do crescimento da classe média brasileira,
procurando fazer um paralelo com a vida da classe média dos EUA.
Concluía que a América Latina encontrava-se “menos acorrentada
às fortunas dos Estados Unidos”. Logo no primeiro parágrafo desta
matéria, afirmava-se: “Enquanto os consumidores americanos estão
apertando os cintos, os brasileiros estão gastando como se a palavra
recessão não existisse no Português”. O jornal apontava os seguin-
tes fatores que contribuiam para esta situação: a) a valorização das

Lulismo em sua forma acabada 139


LULISMO | Rudá Ricci

commodities, impulsionada pela demanda da China; b) investimento


externo; c) controle da inflação, estimulando o acesso ao crédito,
atingindo 20 milhões de brasileiros.
A ofensiva política do Palácio do Planalto colhia frutos constan-
tes. PSDB, DEM e PPS deixaram de controlar 50% das prefeituras de
grandes cidades conquistadas em 2004. Tendo por base as 100 maiores
cidades do país, a base governista dirigia, em 2004, 54 cidades e, em
2008, governava 76. O maior beneficiado foi o PMDB (de 12 para 18),
seguido pelo PSB (de 8 para 11) e PP (de 2 para 4). PSDB perdeu 3
das 21 prefeituras que comandava; DEM perdeu uma prefeitura e PPS
perdeu 7, sendo o maior prejudicado até então.
Nem mesmo a demissão da ministra Marina Silva revelou-se
desastrosa para o lulismo. Não gerou qualquer reação programada
dos movimentos ambientalistas. A demissão reafirmou a ausência
de intenção do governo federal na direção da adoção de uma política
ambiental firme. Sua política na área sempre foi subordinada à criação
de um ambiente econômico favorável a investimentos produtivos.
Também indicou divergências internas de estilo e não apenas pro-
gramáticas. Setores progressistas e petistas do governo federal suge-
riram que a equipe de Marina Silva era lenta na tomada de decisões
e excessivamente performática. Um governo de coalizão, enfim, não
tem como fugir dessas diferenças internas.
Contudo, os bons ventos da economia encobriam todas as más
notícias no campo político. O comércio exterior brasileiro cresceu no
primeiro bimestre do ano, em virtude da alta de preço das matérias-
-primas, acima das exportações, no período, dos EUA, China, Alema-
nha e Japão. Em 2007, o Brasil chegou ao 23º lugar no ranking dos
países exportadores, embora abaixo dos outros Brics (Rússia, Índia
e China).
Houve reação de parte dos economistas e empresários em relação
à volta da inflação, embora o Brasil mantivesse as menores taxas entre
os países emergentes. Segundo dados do FMI, a inflação oficial do Brasil

140 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

nos últimos 12 meses (encerrada em março de 2008) foi de 4,7%; maior


apenas que México (4,2%), Polônia (4,3%) e Coreia do Sul (3,9%).
A título de comparação, a inflação chinesa, no período, foi de 8,3%,
a da Rússia de 12,7% e a da Índia de 5,4%.
O IPCA divulgado pelo IBGE revelou aumento do preço de alimen-
tos, de janeiro a março, com destaque para feijão (46% de aumento no
período), tomate (56%) e óleo de soja (25%). Massas e pães subiram
pouco mais de 6%. Já o Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna
(IGP-DI) avançou 1,12% em abril, acumulando 10,2% em doze meses
(a maior taxa desde março de 2005). A expectativa era de 0,55%.
A pressão veio do arroz, minério de ferro, adubos e fertilizantes.
Vários analistas sugeriram que se tratava de um fenômeno mundial.
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, anunciou em 20 de abril a
criação de força-tarefa para enfrentar a crise alimentar mundial e pediu
doação urgente de 2,5 bilhões de dólares, em função da escalada dos
preços dos alimentos. Segundo sua declaração “o preço de alimentos
evoluiu para um desafio sem precedentes de proporções globais”.
Apesar dessas sinalizações, o volume de empréstimos bancários
do país continuava crescendo. Em março, a expansão atingiu o maior
nível de nossa história, chegando a 992 bilhões de reais (o equivalente
a 35,9% do PIB nacional).
Na onda do crescimento nacional, o ministro Guido Mantega
passou a defender a criação de um fundo soberano brasileiro. Seria
formado a partir do dinheiro arrecadado com impostos pelo governo
e de compras de dólares no mercado externo feitas pelo Tesouro. De
acordo com o ministro, o dinheiro do fundo serviria como recurso
mais barato para o BNDES, que financia a expansão das empresas.
Surfando nesta onda de otimismo econômico, o governo federal
obteve novo recorde de popularidade, segundo pesquisa CNI/Ibope
divulgada no final de 2008. De acordo com o levantamento, 73%
avaliaram o governo como ótimo ou bom em dezembro, contra 20%
como regular. Outros 6% como ruim ou péssimo. A avaliação pessoal

Lulismo em sua forma acabada 141


LULISMO | Rudá Ricci

do presidente Lula também obteve novo recorde e chegou a 84% em


dezembro contra 14% de desaprovação. Outros 2% não responderam
ou não opinaram. A oposição DEM/PSDB ficou perplexa e não sabia
como explicar os motivos desta opinião, muitas vezes adotando um
nítido discurso elitista, desconsiderando a opinião popular como afeta
ao populismo. Mas a explicação parecia clara: poucos presidentes da
República ampliaram a classe média brasileira como o governo Lula
fez. Para quem sempre viveu à margem da sociedade de consumo (com
um mínimo de qualidade), isto não é pouco. A dublagem de filmes
estrangeiros por TV a Cabo e algumas redes de cinemas é um sintoma
de como o mercado vem percebendo esta mudança fundamental da
sociedade brasileira: os emergentes de classe média.
Por este motivo, a oposição nacional cristalizada no PSDB/DEM15
decidiu se antecipar. Decidiu promover seminários pelo país afora
para articular as chapas aos governos estaduais. Mas a crise já estava
instalada no PSDB, cujos governadores mineiro e paulista aumenta-
vam o grau de tensão e disputa, até dezembro de 2009, quando Aécio
Neves divulgou sua desistência à sucessão presidencial.
Do lado governamental, a pré-candidatura da ministra Dilma
Rousseff (lançada pelo presidente Lula) permanecia como incógnita.
Eliane Cantanhêde, na Folha de S. Paulo sugeria que Lula criava uma
“candidatura tampão”, brecando a fila de candidatos petistas. Seria
o “Estilo Lula de governar”, que estimula disputas e solicita que os
candidatos mostrem sua força. Um exemplo foi o anúncio, no final
do ano, durante visita a Belo Horizonte, que vai nomear Fernando Pi-
mentel como ministro do Turismo. Depois, plantou notas na imprensa
desfazendo a promessa. Pimentel já estava com um pé no PSB. Lula,
então, segurou Pimentel no seu partido e, ainda, estimulou a disputa
interna que, no fundo, fortalece a sua própria liderança.16

142 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Eleições Municipais de 2008


Tomando-se por base os dez maiores partidos brasileiros
(DEM, PP, PR, PTB, PSDB, PMDB, PPS, PDT, PSB e PT), Figueire-
do & Dantas (Cf. <http://www.itn.org.br/revista/materias_view.
asp?id=%7B387163F3-30A9-4840-A152-2ABEDAC17801%7D>)
analisaram os resultados das eleições municipais de 2008. Esses
partidos responderam, de 1996 a 2008, por 95% das administrações
municipais brasileiras, no período.
Em 2008, quatro partidos destacaram-se após o pleito municipal:
PMDB, DEM, PSDB e PT. DEM, o antigo PFL, perdeu espaço para o
PT. Enquanto os Democratas atingiam cerca de 30% das prefeituras
do grupo de dez partidos mais relevantes, o PT multiplicou por seis a
sua representatividade nesse conjunto, passando de 3% em 1996 para
18% em 2008. Num outro polo, PMDB em termos absolutos, registra
nas quatro eleições um volume superior a mil prefeituras conquistadas,
e se firma como o mais representativo partido em termos municipais
no país. Com efeito, PMDB, com sua diversidade regional, amolda-
-se como nenhum outro partido às diferenças de relevo ideológico e
cultural pelos rincões do país, embora por ser mosaico, dificilmente
consiga se sobressair como partido que lidere uma eleição nacional.
Numa coalizão presidencialista, sua presença é absolutamente essen-
cial, mas estará figurando como esteio de um partido-líder.
No caso do PSDB, houve perda de espaço em termos absolutos,
sendo que durante sua estada no Palácio do Planalto o partido con-
quistou cerca de 900 prefeituras entre 1996 e 2000, tendo esse número
diminuído para 870 e pouco mais de 780 nos anos em que esteve fora
do governo – 2004 e 2008, respectivamente.
Figueiredo e Dantas apresentam a mudança de prefeituras con-
quistadas pelos quatro partidos predominantes do sistema partidário
nacional, nas eleições de 2004 e 2008:

Lulismo em sua forma acabada 143


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 6 – Cidades conquistadas (x10) em 2008


por partido e percentual sobre as eleições de 2004

Fonte: Figueiredo e Dantas

Como é possível perceber, a base lulista obteve avanços (exce-


ções feitas ao PTB e ao PP com recuos que tendem à estabilidade)
em relação aos partidos oposicionistas. No caso das ampliações no
total de prefeituras, os principais destaques foram o PSB (78%) e o
próprio PT (36%). O PMDB e o PDT cresceram em índices superiores
a 10% neste quesito. Na oposição ao governo federal, o PPS (57%)
minguou de forma expressiva, assim como os Democratas (37%)
também sofreram redução no número de prefeituras.
Os autores registraram, ainda, a influência direta dos gover-
nadores nas eleições municipais. Em apenas seis, dos 26 estados
brasileiros, o partido que governa conquistou menos de 10%
das prefeituras em 2008: Sergipe, Rio Grande do Sul, Rondônia,
Piauí, Alagoas e Ceará. Em contrapartida, em metade dos esta-
dos brasileiros o partido do governador conquistou 25% ou mais
das prefeituras, chegando a mais de 50% em Roraima e no Acre,

144 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

onde o total de municípios é pequeno em relação a outros estados.


No primeiro turno das eleições, o partido que mais obteve votos foi
o PMDB (18,5%), que também conquistou um número maior de
prefeituras (21,6%). O segundo colocado nesse quesito de votação é
o Partido dos Trabalhadores, legenda considerada como detentora de
um eleitorado mais fiel, e presente de forma significativa em grandes
centros e capitais mais populosas.
Segue a análise dos autores:
No gráfico 7, é possível notar a apresentação dos dados para três
eleições – 2000, 2004 e 2008. As informações reforçam a tese
de que PMDB, DEM, PSDB e PT acumulam percentuais expres-
sivos do eleitorado. Salienta-se, nesse caso, que o DEM (antigo
PFL) sofre seguidas diminuições em seus volumes de votos, e a
dupla formada por PMDB e PT avança de forma representativa.
O PSDB oscila, e as demais legendas não atingem em nenhuma
eleição volume superior a 7 milhões de votos – cerca de 5% do
eleitorado brasileiro e 7% do total de votos válidos para o Poder
Executivo em 2008.

Lulismo em sua forma acabada 145


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 7. Quantidade de votos obtida nas


eleições municipais – 1º turno

Fonte: Figueiredo e Dantas

Gráfico 8. Votos conquistados nominais e de legenda


conquistados nas eleições proporcionais de 2008

Fonte: Figueiredo e Dantas

146 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

No que tange ao resultado das eleições para Câmaras de


Vereadores:
É possível notar a superioridade significativa do PMDB, que apre-
senta 44% mais legisladores locais que o segundo colocado – o
PSDB. Nesse caso, é importante destacar a presença do PP, que
demonstra uma relevância expressiva em pequenos municípios,
absorvendo número de cadeiras significativo, sobretudo quando
comparado à sua votação. A observação do total de vereadores que
os partidos conquistaram pode levar a decisões estratégicas. Legen-
das preocupadas com os pleitos de 2010 já iniciaram movimentação
no sentido de afinar discursos com esses políticos, buscando uma
adesão às causas federais e estaduais no próximo pleito. (...) Em
relação à possível explicação acerca da desproporção entre votação
e número de vagas para vereador, partidos como o PMDB e o PP
tiveram seus vereadores eleitos no Brasil com uma média de 1.400
votos, enquanto o PT – que tem sucesso em cidades maiores – tem
uma média de 2.500 votos por vereador eleito. Superam a casa
dos dois mil votos: o PSB e o PPS, e se aproxima de tal marca o
PDT. Assim, os partidos de esquerda precisam de mais votos para
eleger um vereador, ficando nítida sua participação mais efetiva
em colégios eleitorais maiores – grandes centros. Tal realidade tem
diminuído com o tempo, atestando a chegada dessas legendas ao
que poderíamos chamar de “Brasil mais profundo”. Os valores do
PDSB, DEM, PTB e PR variam entre 1.500 e 1.800.

A polarização PT-PSDB manteve-se nas eleições municipais, tendo


o PMDB como fiel desta balança. O que denota o acerto das opções de
alianças promovidas pelo lulismo desde o início da segunda gestão,
procurando isolar o PSDB paulista à aliança com o DEM, partido em
declínio eleitoral segundo as análises aqui apresentadas.

Lulismo em sua forma acabada 147


148
Tabela 5. Balança Comercial 2008-2009
CORR.
  EXPORTAÇÃO IMPORTAÇÃO SALDO
COMÉRCIO
Período
LULISMO | Rudá Ricci

Média p/ Média p/ Média p/ Média p/


Dias Úteis Valor Valor Valor Valor
dia útil dia útil dia útil dia útil

JANEIRO 6 2.958 493,0 2.970 495,0 5.928 988 -12 -2,0

1a semana (01 a 04) 1 403 403,0 273 273,0 676 676 130 130,0

a
2 semana (05 a 11) 5 2.555 511,0 2.697 539,4 5.252 1.050 -142 -28,4

Acumulado no ano 6 2.958 493,0 2.970 495,0 5.928 988 -12 -2,0

Janeiro 6 2.958 493,0 2.970 495,0 5.928 988 -12 -2,0

Janeiro/2008  22 13.277 603,5 12.355 561,6 25.632 1.165 922 41,9

Dezembro/2008  22 13.818 628,1 11.517 523,5 25.335 1.152 2.301 104,6

Var. % Janeiro-2009/Janeiro-2008 -18,3 -11,9 -15,2

Var. % Janeiro-2008/Dezembro-2008 -21,5 -5,4 -14,2

Fonte: Secex/MDIC.

PARTE I: O LULISMO
Rudá Ricci | LULISMO

2009: o país acorda com a crise batendo à sua porta


Tudo teve início com a projeção da ONU sobre o crescimento do
PIB brasileiro, prevendo um reduzido 0,5% para 2009, muito abaixo
da previsão governamental (ao redor de 3,5%) e dos mais pessimistas
analistas do mercado tupiniquim (ao redor de 2%).
Dentre as consultorias de mercado mais citadas por investidores,
grandes agentes econômicos e grande imprensa nacional, a Consultoria
JP Morgan previu crescimento de apenas 1,5% do PIB brasileiro em
2009. Em seu relatório indicava:
Another bank has cut the 2009 economic growth forecast for Brazil:
this time, JPMorgan Chase & Co. lowered Latin America’s largest
economy expansion estimate for this year from 2% to 1.5%, as
global recession takes its toll on industrial production and business
confidence.

A Morgan Stanley seguia a previsão da ONU e sugeria crescimen-


to zero da economia brasileira em 2009. A nota divulgada afirmava:
Brazil’s growth downturn will prove sharper than most observers
are ready for. We have recently cut our 2009 Brazil growth forecast
to zero, Sharp as it may seem, the coming growth downturn is not
unprecedented in Brazil’s recent history. In fact, the global backdrop
suggests that Brazil’s growth downturn might prove worse than
ever seen in Brazil’s quarterly data.

A MB Associados elaborou o gráfico a seguir projetando o cresci-


mento do PIB brasileiro antes e depois da crise (a partir de outubro):

Lulismo em sua forma acabada 149


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico I.1.1. PIB (%) antes e depois da crise


Gráfico 9. PIB (%) – antes e depois da crise
7.0
Com Crise 5.8
6.0 5.3
Sem Crise
5.0
4.0 3.7
4.0 3.5
2.8
3.0
2.0
1.0
0.0
2008 2009 2010
Fonte: IBGE. Elaboração: MB Associados.
Fonte: IBGE. Elaboração e projeção MB Associados

O orçamento federal para 2009 foi sendo revisto desde outubro


de 2008. O Congresso Nacional aprovou orçamento com cortes da
ordem de R$ 10,3 bilhões, em custeio, pessoal, despesas com juros
e inversão financeira. O corte na previsão de arrecadação ficou em
R$ 6 bilhões e a perda bruta chegou a R$ 15 bilhões. Deste total,
mais de R$ 3 bilhões seriam cortados na transferência para estados
e municípios. Os cortes em despesas de custeio da máquina pública
foram priorizados e superaram os R$ 8 bilhões. Sobre despesas de
pessoal e encargos, o corte foi superior a R$ 400 milhões. Ao contrá-
rio da expectativa inicial do relator, também foram feitos cortes em
investimentos, da ordem de R$ 1,2 bilhão. Os cortes foram tão brutais
na área educacional que o ministro Fernando Haddad ameaçou pedir
demissão (Cf. O Globo, 13/01/09, Panorama Político, p. 2) devido à
perda de 1 bilhão de reais de seu orçamento.

150 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

A economista Maria Conceição Tavares dava o termômetro do


pensamento reinante:
Fortalecer o emprego e o poder aquisitivo do povo; em torno disso
acontecerá a batalha decisiva para vencermos ou não a travessia
de 2009. Portanto, meu Deus, os que falam em cortar gasto de
custeio que me perdoem, não sabem do que estão falando. Polí-
tica social também é custeio. E se não é tudo, talvez seja o único
grande trunfo que o governo controla, a partir do qual poderá agir
com eficácia e rapidez diante da crise.

Como já era previsto no final de 2008, o impacto da crise mun-


dial foi maior no primeiro trimestre de 2009. Os dois estados mais
afetados, devido à sua pauta de exportações, foram Minas Gerais e
Espírito Santo. Em Minas Gerais, a indústria já sofria retração de quase
2% em outubro de 2008 (a terceira queda consecutiva naquele ano).
Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automo-
tores (Anfavea) as vendas de automóveis registraram em novembro
queda de 25% em comparação com o mês anterior.
A crise se fez sentir nos municípios brasileiros: queda de 25%
dos royalties para municípios que sediam bases de prospecção de
petróleo; corte de mais de R$ 4,5 bilhões de transferência de recur-
sos federais para os municípios; queda de arrecadação nas regiões
afetadas pelas chuvas do final e início de ano. A estimativa da Asso-
ciação Mineira de Municípios (AMM) é que os cortes no Orçamento
da União provocariam uma perda de aproximadamente R$ 300 milhões
nos cofres dos municípios mineiros.
E, na crise, fortaleceu-se ainda mais o lulismo. Porque se concen-
trou ainda mais o manejo do orçamento público no governo federal.
Como reflexo, no final de março, a candidata lulista à sucessão pre-
sidencial de 2010 empatava com um dos expoentes tucanos, o gover-
nador Aécio Neves, na pesquisa de intenção de votos da Sensus/CNT.
O governo mineiro, premido pela crise internacional, foi obrigado a
cortar 430 milhões de reais de seu orçamento original para o ano.

Lulismo em sua forma acabada 151


LULISMO | Rudá Ricci

O custeio da máquina estadual foi projetado para fechar o ano no


vermelho. O ICMS mineiro havia registrado queda de 750 milhões
de reais entre outubro de 2008 e março de 2009. As eleições de ou-
tubro, em que apoiadores de Aécio Neves perderam na maioria das
cidades-polo do estado, associadas à crise fiscal, já prenunciavam o
enfraquecimento da candidatura de Aécio Neves ao Palácio do Pla-
nalto, algo que se consolidaria no final do ano.
Os municípios brasileiros foram, possivelmente, os que mais rapi-
damente sentiram os efeitos da queda de arrecadação de impostos, em
virtude da redução vertiginosa do repasse de recursos federais para o
Fundo de Participação dos Municípios (FPM) o que, paradoxalmente,
parece ter fortalecido ainda mais o lulismo, tendo o governo federal
como garantidor de parco equilíbrio das economias locais. O FPM
é a principal fonte de receita de 81% das prefeituras brasileiras. No
Nordeste, há casos de cidades em que o fundo corresponde a 95% do
orçamento local. A origem deste Fundo é 23,5% do total arrecadado
pelo governo federal com o Imposto de Renda e o IPI (Imposto sobre
Produtos Industrializados). O FPM é repassado a cada dez dias. Em
março, no primeiro decênio de 2009, os municípios receberam 9,1%
a menos que no mesmo período de 2008, incluindo a parcela do
Fundeb, e com valores corrigidos; no segundo decênio, foram 75%
a menos, mas recuperaram-se no terceiro decênio (85% a mais, na
comparação com o ano anterior), totalizando uma queda mensal de
14,7%. Dos recursos do FPM, as prefeituras são obrigadas a investir
25% na Educação e 15% na Saúde, além de repassar um percentual
equivalente a 8% do orçamento anual para as Câmaras Municipais.
Com a crise que assolou o setor automobilístico, o governo federal
decidiu isentar do IPI as montadoras, o que impactou o FPM. Mas a
questão de fundo é a inversão, que ocorreu desde o governo FHC (e
se acelerou no governo Lula), da lógica municipalista da Constituição
Federal, que descentralizava programas e execução orçamentária. Um
dos exemplos de centralização progressiva é o Programa Saúde da
Família (PSF). O PSF custa R$ 23 mil mensais às prefeituras, sendo

152 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

que o governo federal arca com R$ 5,5 mil e o estado com R$ 1,5
mil. O restante é arcado pelas prefeituras. Trata-se de aprofundar a
centralização crescente da execução orçamentária brasileira, em que
o governo federal assume uma postura imperial que diminui pro-
fundamente a autonomia financeira dos municípios. Sem recursos,
os prefeitos sem grandes paixões pela participação dos cidadãos na
sua gestão ganharam forte argumento para reduzir o processo de
implementação e fortalecimento de conselhos de gestão pública e
mecanismos de descentralização administrativa, o que fortaleceu o
ideário lulista. Até então, vínhamos numa toada lenta, mas progres-
siva. Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros já haviam
adotado algum mecanismo de participação cidadã em suas gestões.
O governo federal, atento ao aumento de mobilização de prefeitos
(que chegou a provocar a paralisação dos serviços de prefeituras no
Paraná, Tocantins, São Paulo, entre outros estados), decidiu anun-
ciar um pacote de ajuda da ordem de 1 bilhão de reais para todas as
prefeituras, indiscriminadamente, que se revelou insuficiente, mas
conteve o ímpeto de muitos prefeitos.
Assim como na crise orçamentária das prefeituras, o governo fe-
deral assumiu postura ágil em respostas conjunturais aos sintomas da
crise. Diminuiu a taxa Selic, alterou a direção do Banco do Brasil com
o claro e público objetivo de reduzir o spread bancário (a diferença
entre os juros que os bancos pagam na captação de recursos e o que
cobram dos seus clientes), e anunciou um pacote habitacional (setor
muito afetado pelo desemprego no início de 2009). O pacote habita-
cional, inclusive, se refletiu rapidamente nas vendas das construtoras
que atuam na baixa renda. O primeiro fim de semana pós-pacote foi
o melhor da história para construtoras como MRV, Goldfarb, Tenda e
Rodobens. Em alguns casos, as vendas triplicaram.
A crise foi sentida mais duramente nas classes A, B e C. De acordo
com levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre setembro
e dezembro de 2008 a chance de decadência de integrantes dessas

Lulismo em sua forma acabada 153


LULISMO | Rudá Ricci

classes para as D e E era de 2%, risco que saltou para 12% entre
janeiro e fevereiro de 2009. A probabilidade de migração para baixo
foi ainda maior para os indivíduos das classes A, B e C ocupados no
setor financeiro. De acordo com a pesquisa – que usou como base
os dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE – entre
setembro e dezembro de 2008 a chance era de 9% de queda. Já no
primeiro bimestre de 2009, o risco atingia 13,5%. Movimento similar
foi observado para os empregados da indústria, que viram suas chan-
ces de decadência aumentar de 2,7% para 4,1% em iguais períodos.
A crise, como reafirmada na última pesquisa sobre desemprego em
regiões metropolitanas realizada pelo IBGE, atingiu os indivíduos mais
qualificados. O que sugere que o público cativo do lulismo, sua base
social desde as eleições de 2006, foi pouco atingido.
Em março de 2009, a economia brasileira começou a dar sinais
de recuperação. Muitos indicadores revelavam que o impacto maior
ocorreu entre dezembro e fevereiro, com forte retração da indústria
e um ajuste que foi excessivo. Em maio, o crescimento do PIB na-
cional foi de 2,3% em relação ao mês anterior. Em abril, ainda havia
registro de queda (0,7%). No primeiro trimestre, o PIB cresceu 1,7%.
Grande parte dos economistas e analistas econômicos avaliava que-
da de 0,5% do PIB em 2009. A agência de crédito Moody’s previa
crescimento inferior a 1% (e superior a 4% em 2010). As projeções
indicavam que o país precisaria crescer 3% para evitar aumento da
taxa de desemprego.
A indústria foi o setor mais atingido, principalmente os setores
exportadores. Minas Gerais e Espírito Santo sentiram um forte abalo
e ainda não conseguiram recuperar seu equilíbrio orçamentário. Mas
a crise não se espraiou genericamente, o que gerou um sentimento
de ela ter alcançado menos fortemente o Brasil.
Com a queda da taxa Selic, a expansão de crédito no Brasil se
ampliou. Em dezembro de 2005, o total de créditos no sistema finan-
ceiro correspondeu a 28,5% do PIB. Em maio último, chegou a 32% do

154 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

PIB. O governo projetou o percentual de 50% do PIB em médio prazo.


O crédito que mais aumentou no Brasil foi o voltado para habitação
(36%, desde 2005) e pessoas físicas (40%, no mesmo período). O
crédito para indústria e comércio cresceu, no período, 25%.
Enfim, o segundo mandato de Lula passou pelo teste de uma
crise internacional e surpreendentemente não sofreu qualquer abalo
significativo em sua popularidade. Fortaleceu-se na mesma medida
em que sua oposição apresentava dificuldades até mesmo em sua
composição e acordos internos.
O lulismo se firmou. E consolidou seu modo de gerenciamento
do Estado brasileiro.

Notas:
1 Corre, em paralelo a esta análise comportamental, a emergência da Geração Y,
identificada como composta por jovens que não conseguem se adaptar às hie-
rarquias funcionais das empresas e que são profundamente hedonistas.
2 Sennett, 1988.
3 Para uma análise do pragmatismo como teoria política, ver Pogrebinschi, 2005.
4 A exceção paradigmática foi a elaboração do 3º Programa Nacional de Direitos
Humanos, que assumiu as deliberações da conferência nacional ocorrida no
mesmo ano e que acabou por gerar grande repercussão e resistência de forças
oposicionistas e grande imprensa nacional.
5 Tal comparação é rejeitada por Ricardo Antunes em obra já citada. O autor
compreende, ao contrário, que a gestão Lula desmontou o legado varguista,
caminhando para a desregulamentação e precarização das relações de trabalho.
6 Pesquisa CNT-Sensus, divulgada na segunda semana de abril, revelava que apesar
de 25% dos entrevistados considerarem o governo federal como responsável pelo
caos aéreo e 90% acreditarem que a violência tenha aumentado no país, a popu-
laridade de Lula aumentou em 5,9% na avaliação positiva em relação à pesquisa
de agosto de 2006. A avaliação regular e negativa do governo caiu 5% e 1%,
respectivamente. É a sua terceira melhor marca, desde o seu primeiro mandato,
perdendo apenas para as avaliações de janeiro e março de 2003. A projeção
é o carro-chefe da avaliação positiva: 54,8% dos entrevistados acreditam que
o segundo mandato será melhor que o primeiro. Apenas 11,3% afirmaram
acompanhar e compreender o que é o PAC. Os entrevistados indicaram que

Lulismo em sua forma acabada 155


LULISMO | Rudá Ricci

sentem piora nos serviços públicos sociais (emprego, renda, saúde, educação
e segurança), sendo que 59% declararam que o aumento do valor do salário
mínimo foi baixo e inadequado. O carisma pessoal de Lula continua sendo o
principal fiel de sua popularidade.
7 No último dia de julho, a American Home Mortgage Investment, especializada
em concessão de crédito imobiliário, informou que está enfrentando problemas
de liquidez. Suas dificuldades foram creditadas à instabilidade do mercado de
hipotecas. O Índice Dow Jones caiu em consequência do anúncio, 1,1% e a Bolsa
de Valores de São Paulo recuou 0,7%. Pouco antes, o anúncio da crise imobi-
liária já havia afetado as bolsas de valores de todo o mundo, reflexo do pavor
dos investidores financeiros, que migraram seus recursos dos países emergentes
para papéis mais seguros. No Brasil, na última semana de julho, a o Índice da
Bolsa de Valores de São Paulo (Ibovespa) havia despencado 3,86%; em Nova
York, o Índice Dow Jones recuou 1,62% e a bolsa eletrônica Nasdaq caiu 1,89%.
Na Europa, a Bolsa de Londres teve baixa de 1,90% e a de Frankfurt, de 1,73%.
O mercado de câmbio também foi afetado: o dólar subiu mais de 1% ante o real,
para R$ 1,861, e o euro renovou o recorde alta em relação à moeda americana, a
US$ 1,3854 na máxima do dia. O risco Brasil avançou 5,33%, para 178 pontos.
Dez dias depois, o risco Brasil atingia 190 pontos (em 10 de agosto). No final da
segunda semana de agosto, EUA, União Europeia e Japão injetaram mais de US$
250 bilhões nos mercados, procurando evitar nova queda nas bolsas de valores
do planeta. Mesmo assim, no dia 10 (uma sexta-feira) a Bolsa de Londres acusou
queda de 3,7%, Paris recuou 3,1% e Frankfurt 1,4%. O Dow Jones caiu 0,2% e a
Bovespa sofreu queda de 1,4%. A safra de grãos 2006/2007, por seu turno, bateu
novo recorde, atingindo 131,15 milhões de toneladas, volume 7% maior que a
produção registrada no ano agrícola anterior. A agroindústria, em consequência,
acelerou seu ritmo produtivo: cresceu 4,6% no primeiro semestre, tendo nos
segmentos defensivos agrícolas (9,9 de alta) e pecuária (4,9%) seus carros-chefe.
8 O Banco Mundial (Bird) divulgou os dados do Programa de Comparação Inter-
nacional (PCI), com 146 países. Pela paridade do poder de compra, Brasil passa
de 7º a 6º lugar no ranking mundial e é responsável por metade da economia da
América do Sul e por quase 2/3 dos gastos governamentais da região. O Brasil
aparece em sexto lugar, com o equivalente a 3% do PIB mundial, junto à Grã-
-Bretanha, França, Rússia e Itália. Na medida convencional, o Brasil é a sétima
economia, com 2% do PIB, junto a Índia, Rússia e México.
9 Em novembro a taxa de desocupação foi de 8,2%. Trata-se da menor taxa de
toda a nova série da PME, iniciada em março de 2002. A população ocupada
nas seis regiões metropolitanas investigadas não teve variação significativa
frente a outubro, mas cresceu 3,5% em relação a novembro de 2006. A popu-
lação desocupada reduziu-se em 5% frente a outubro e em 12,0% em relação
a novembro de 2006.

156 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

10 O art. 58 da Lei no 4.320 define empenho da seguinte forma: “O empenho da des-


pesa é o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação
de pagamento pendente ou não de implemento de condição”. É uma reserva que
se faz, ou garantia que se dá ao fornecedor ou prestador de serviços, com base
em autorização e dedução da dotação respectiva, de que o fornecimento ou o
serviço contratado será pago, desde que observadas as cláusulas contratuais e
de editais. Para complementar o conceito repetimos também outros dois artigos
da Lei no 4.320: Art. 59 – “O empenho da despesa não poderá exceder o limite
dos créditos concedidos”. Ou seja, os valores empenhados não poderão exceder
o valor total da respectiva dotação. Art. 60 – “É vedada a realização de despesa
sem prévio empenho”. Após o empenho, ocorre a liquidação, ou seja, se efetiva
o pagamento pelo órgão governamental.
11 Desde a sua criação, em 25 de abril de 2005, até o início de 2008, o Programa
Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado realizou 2,42 milhões de ope-
rações, com a liberação de R$ 2,53 bilhões. Somente em 2007, foram feitas
963.459 operações (52,42% mais do que em 2005), com uma liberação efetiva
de recursos de R$ 1,1 bilhão, o que representa um acréscimo de 82,68% quando
comparado a 2005.
12 A CPI dos Cartões Corporativos começou a morrer logo no início de sua implanta-
ção. A bancada governista desejava ampliar a investigação a partir de 1998, o que
incluiria a gestão FHC, e a oposição defendia a apuração a partir de 2001. O fato
mais duro para a oposição, contudo, foi o vazamento de gastos e saques com cartões
no governo de José Serra, obrigando-o a suspender tal expediente em sua gestão.
O governo paulista gastou, em 2007, R$ 108 milhões com Cartão Corporativo,
sendo 44% através de saque em dinheiro. No final de março, dados produzidos
por um dossiê organizado pela Casa Civil da Presidência da República foram
vazados para a imprensa, revelando gastos efetuados nos anos de 1998, 2000
e 2001 pelo então presidente FHC, sua esposa e assessores nas contas tipo B e
cartões corporativos, usadas para saque em dinheiro em conta administrada
pelo servidor. Mais uma vez, o contra-ataque (já utilizado como expediente em
outras vezes, como na CPI que investigava financiamento da CUT) funcionou e
embaralhou o jogo, esvaziando o discurso oposicionista. Houve, ainda, acusação
do Ministério Público de a empresa Gold Stone (uma empresa de fachada) ter
emitido notas frias para o PSDB.
13 No ápice das denúncias, foi divulgado que o ministro teria firmado convênio de
10 milhões de reais com a ONG Avepema, que teve projetos ambientais recusados
pelo Ministério do Meio Ambiente. Em São Gonçalo (RJ), as inscrições para um
programa da prefeitura financiado pelo Ministério do Trabalho seriam feitas no
centro social de um militante do PDT, partido do ministro.
14 O Ministério da Fazenda anunciou, em 2 de abril, que faria corte nos gastos fe-
derais da ordem de R$ 30 bilhões. O anúncio foi interpretado por especialistas e
grande imprensa como medida para conter o aumento da taxa Selic, pelo Copom,

Lulismo em sua forma acabada 157


LULISMO | Rudá Ricci

o que se revelou inócua. Em 9 de abril, o IPCA acumulava alta (em 12 meses) de


4,73%, acima da meta inflacionária do BC (4,5%) para o ano.
15 Não são citados outros partidos de oposição em virtude de seu resultado eleitoral
insignificante nas eleições de outubro de 2008, o que denota, ao menos neste
momento, baixa capacidade de influenciar a agenda nacional ou criar alguma
mobilização social relevante.
16 O percurso adotado pelo ex-prefeito Fernando Pimentel foi revelador da inse-
gurança instalada como instrumento do lulismo. Além de cogitar se desfiliar
do PT, chegou a aventar a possibilidade de assumir a direção da Agência de
Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Segundo parlamen-
tares, a Agência ficaria subordinada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento,
que poderia tê-lo como titular, caso não fosse convocado pelo presidente Lula
para participar do seu ministério. Esta possibilidade gerou grande negociação
para se incluir um artigo que criasse impedimento da Agência ser dirigida por
Pimentel. Vários deputados afirmavam que o projeto (de autoria do governador
Aécio Neves) esvaziaria a política, ou seja, o fluxo tradicional de demandas das
prefeituras, passando pelo parlamento. O convite e negociações abertas pelo
presidente Lula mantiveram o ex-prefeito petista no seu partido e diminuíram a
visibilidade pública que Pimentel vinha angariando naquele momento.

Referências
AVRITZER, Leonardo (Org.). A participação em São Paulo. São Paulo:
Unesp, 2004.
BETTO, Frei. A mosca azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
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modernidade. São Paulo: Edusp, 2003.
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NERI, Marcelo; MELO, Luisa Carvalhaes Coutinho de (Org.) Miséria e a
Nova Classe Média na década da igualdade. Rio de Janeiro: CPS/FGV,
2008.

158 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

PANKE, Luciana. As mudanças nos discursos de Lula, sob o prisma da


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USP, 2005.
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Janeiro: Relume Dumará, 2005.
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Rio de Janeiro: Revan/Observatório das Metrópoles, 2004.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia
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VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva. Iberismo e americanismo no
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WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1980.

Lulismo em sua forma acabada 159


Capítulo 3
A GESTÃO LULA: INVENTÁRIO
DA LITERATURA ESPECIALIZADA

A literatura sobre as duas gestões do lulismo está ainda em for-


mação. Mas é possível compreendê-la, num balanço da produção
analítica até 2009, entre dois polos que se cristalizam em duas obras:
a caracterização do governo como de transição e a caracterização
como continuísmo da agenda neoliberal ou liberal. No primeiro polo,
destaca-se a obra de Juarez Guimarães, 2004; no outro extremo, a
coletânea organizada por João Antônio de Paula, 2005.
Entre os dois extremos, há obras de testemunho (BETTO, 2006;
2007; POLETTO, 2005; KOTSCHO, 2006), de narração (ANTUNES,
2006; HIPPOLITO, 2005); de balanço e análise (ARAÚJO, 2006; FIL-
GUEIRAS, GONÇALVES, 2007; GALL, 2005), além de tentativas de
teorização, ainda que num preâmbulo ensaístico, como os de José de
Souza Martins, André Singer e Franciscode Oliveira.1
O livro de Juarez Guimarães (2004, p. 13), uma coletânea de
artigos publicados originalmente no boletim eletrônico Periscópio,
possui um prefácio elaborado por Marilena Chauí que sintetiza as
observações do autor, que passo a reproduzir:
(...) [o autor] examina, sobretudo, cinco tradições políticas
brasileiras que apontam na direção do republicanismo: o comu-
nitarismo cristão, o nacional-desenvolvimentismo, o liberalismo

161
LULISMO | Rudá Ricci

ético, o socialismo democrático e a tradição popular, apontando


em cada uma delas as contribuições e limites a serem superados.
O comunitarismo cristão (de origem ibérica) afirma o primado
do bem comum e o senso concreto da justiça, traz para o repu-
blicanismo a ideia e a prática da solidariedade, mas falta-lhe a
experiência do pluralismo democrático. O nacional-desenvolvi-
mentismo afirma uma perspectiva antioligárquica (mesmo que
não chegue a ser democrático), traz as ideias de autonomia e
soberania da nação e as de cidadania e inclusão social, mas seu
limite encontra-se no privilégio conferido ao Estado e não ao
público, e à unidade nacional e não aos conflitos. O liberalismo
ético, cuja dimensão dramática e, por vezes, trágica se exprime
na obra de seu expoente, Raymundo Faoro (e por isso, para Ju-
arez Guimarães, o liberalismo não é uma “ideia fora do lugar”,
seja no sentido de Oliveira Vianna, seja no de Roberto Schwarz)
traz as ideias dos direitos civis e do pluralismo político, mas seu
limite é dado pela incapacidade para formular uma resposta à
questão nacional e oferecer uma concepção forte de justiça social.
O socialismo democrático traz a promessa laica de um novo
princípio civilizatório, alternativo ao capitalismo, afirmando o
abandono da ordem mercantil por uma lógica assentada na expres-
são do público e numa visão épica da democracia participativa.
A tradição popular traz a vida associativa e participativa, sedi-
mentada no sentimento de solidariedade e no senso da justiça.

Chauí ressalta a hipótese de Guimarães a partir desta peculiar


contribuição de matrizes políticas ao republicanismo brasileiro: ao
governo Lula restaria apenas três atitudes. A primeira, o socialismo
imediatamente implantado, que isolaria a esquerda, segundo o autor.
A segunda, do liberalismo de tipo economicista, que colocaria como
aliadas as forças conservadoras e patrimonialistas do país. E a terceira,
a do republicanismo, ampliando o espaço público, fundando a noção
sistêmica de nação, do ideal cívico da cidadania ativa. Ocorre que,
segundo se sugere, o republicanismo bebe nas águas cujas origens
são fontes muito distintas.

162 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

O esforço de Guimarães tem início pela tentativa de demonstrar


que o Partido dos Trabalhadores é o partido talhado para implementar
a plataforma republicana.O autor sustenta que a este partido conver-
giram a força orgânica ligada às classes trabalhadoras com a ordem
política, em torno da construção da nação (referindo-se a Caio Prado),
a superação do subdesenvolvimento em uma dinâmica que combina
mercado interno e distribuição de renda (referindo-se a Celso Furta-
do), a delimitação entre público e privado (referindo-se a Raimundo
Faoro) e a ética da compaixão (referindo-se ao comunitarismo cristão).
Em seguida, procura traçar um programa de transição, inicia-
do pela redução do poder dos mercados, em especial, o financeiro,
num aberto confronto com a plataforma neoliberal. Passo seguinte:
a diminuição da vulnerabilidade externa da economia nacional. E,
finalmente, a emergência do Estado regulador, que adote políticas
keynesianas anticíclicas ou estimuladoras do desenvolvimento. De-
senha etapas concretas a serem seguidas em cinco atos:
a) A consolidação da governabilidade, em que a força política
eleita toma posse do manejo dos instrumentos do Estado;
b) A transição dos paradigmas, estabelecendo políticas de regu-
lação do mercado;
c) Novo paradigma consolidado;
d) Crescimento sustentado, com distribuição de renda e inclusão
social;
e) A implantação do que o autor denomina de economia do se-
tor público, marcada pela regulação estatal, pela negociação
permanente dos agentes públicos com agentes privados e
retomada do planejamento estatal (“choque de regulação”).
O programa Fome Zero é, assim, compreendido como parte
integrante desta perspectiva republicana, inclusiva, de ampliação da
cidadania. Guimarães sugere que vai além do nacional-desenvolvi-

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 163


LULISMO | Rudá Ricci

mentismo, porque se sustenta na dimensão pública e não meramente


não estatal, embora não procure fundamentar esta proposição.
A trajetória analítica do autor deságua, finalmente, na construção
do que seria um contrato social republicano, a partir do lulismo: um
pacto social que firmasse as bases de um novo desenvolvimento.
A Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, e a criação do Conselho de Desen-
volvimento Econômico e Social (CDES) seriam os dois pilares visíveis
da tentativa de formalização deste pacto. Contudo, ainda na primeira
gestão, o autor admite que a nova contratação social havia se implan-
tado apenas parcialmente. Segundo o autor, em virtude da assimetria
da presença dos interesses privatistas na ordem estatal brasileira e,
ainda, pela falta de lugar do capital financeiro nesta nova lógica, pela
sua própria natureza autóctone e desregulamentada, até então. Os
casos de corrupção que se avolumam a partir de 2004 seriam, nesta
ótica, a face da republicanização incompleta, em que o privatismo faz
da corrupção um sistema endógeno das práticas políticas nacionais.
O livro de Guimarães é a tentativa mais elaborada de compre-
ensão dos limites do lulismo. Tratar-se-ia de uma transição a partir
de uma nova concertação social.2 E, como toda concertação, estaria
fadada a instabilidades e múltiplas tentativas de inclusão do maior
número possível de atores sociais. Daí não se tratar de um pacto
social, formal e definido a partir do Estado, mas de um processo
de negociação, acionado por um governo que vai formalizando
acordos gradativamente.
O lulismo, contudo, não se forjou nitidamente desde o início
da primeira gestão, como pode parecer ao leitor incauto. Como se
procurou demonstrar nos capítulos anteriores, foi se formatando e
ganhou seus contornos mais nítidos após a crise aberta em 2004.
Neste sentido, a análise de Guimarães apresenta com clareza seus
limites e não necessariamente suas virtudes e intenções. O autor faz
uma digressão pos factum que lhe confere sentido e acabamento, mas
não um estudo criterioso de sua trajetória.

164 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

No outro extremo, encontra-se a obra organizada por João An-


tonio de Paula, Adeus ao Desenvolvimento: a opção do governo Lula.
Trata-se de uma coletânea de artigos extremamente críticos que tem
como pedra de toque a permanência do capitalismo dependente e da
agenda neoliberal, no que seria uma evidente capitulação do governo
petista. A caracterização do governo Lula para o autor da coletânea
é assim sintetizada:
(...) não é injusto ou inexato caracterizar o governo Lula como
social-liberal, isto é, um governo que promovendo algumas po-
líticas com conteúdo social, não assistencialistas, se caracteriza,
essencialmente, por sua submissão ao neoliberalismo e suas
nefastas consequências, sobretudo, sobre o emprego, a renda,
a infraestrutura, sobre as condições de vida de grande parte da
população brasileira (PAULA, 2005, p. 33).

Na mesma coletânea, João Machado Borges Neto reforça a


caracterização:
(...) já não cabem dúvidas quanto à natureza do governo Lula.
Sua orientação geral está perfeitamente clara: adotou uma polí-
tica macro-econômica explicitamente neoliberal, enquanto pôde,
encaminhou reformas (de fato, contrarreformas) cujo conteúdo
neoliberal é indiscutível (a reforma da Previdência, a Lei de Falên-
cias, o projeto das Parcerias Público-Privadas). Além disso, foram
anunciados projetos, já com contornos básicos definidos, que têm
o mesmo caráter (os projetos das reformas sindical e trabalhista)
(Ibidem, p. 69).

Mas João Machado, logo adiante, admite que existiriam atenu-


antes a esta tipologia, citando a gestão de Carlos Lessa (à frente do
BNDES) como foco de resistência à orientação neoliberal, assim como
a Secretaria de Economia Solidária (do Ministério do Trabalho, dirigida
por Paul Singer) e a política externa. Também cita os ministérios do
Desenvolvimento Agrário e das Cidades (na gestão Olívio Dutra) que
teriam mantido “diálogo importante com setores dos movimentos
sociais brasileiros” (Ibidem, p. 70). A análise se desloca, a partir daí,

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 165


LULISMO | Rudá Ricci

para a compreensão do governo como tendo vínculos preferenciais


com o grande capital, o que manteria o país em rota de dependência
neocolonial, retomando conceitos que se reportam ao debate clássico
do marxismo.
Num terceiro artigo, Fernando Cardim de Carvalho destaca o di-
visor de águas que a crise aberta em 2004 e 2005 teria significado no
interior do PT. Sugere que, de um lado, estariam alinhados os realistas
que lançariam mão da correlação de forças ainda desfavorável para
uma ação efetivamente transformadora, além do governo Lula ainda
estar aprendendo a governar e negociar interesses. Na outra ponta,
estariam perfilados os petistas que o autor denomina de moralistas,
os quais teriam se desapontado com o governo Lula (PAULA, 2005,
p. 93). O autor, contudo, sugere que ambos os segmentos estariam
limitados à redistribuição de renda via política fiscal e ampliação do
acesso à propriedade e não efetivamente à ruptura com o padrão so-
cietário do país, o que significaria uma derrota política e moral para
a esquerda nacional.
As ações e políticas adotadas pelo governo Lula na sua segunda
gestão atenuam o vaticínio deste conjunto de análises mais críticas.
Possivelmente porque esta coletânea organizada pelo professor de
economia da Universidade Federal de Minas Gerais tenha adotado
esquemas analíticos clássicos do marxismo e, em especial, do trotskis-
mo, limitando o foco sobre a realidade errática e em permanente em
construção da gestão Lula. Daí certa dificuldade em enquadrar esta
gestão como neoliberal, obrigando alguns autores a deslocar a aná-
lise para aproximações gradativas que geram um rol significativo de
exceções. Não por outro motivo, a análise sobre a política econômica
aparece mais segura que a realizada sobre a movimentação política
do governo e os impactos das políticas sociais sobre a mobilidade
social em curso. Este livro, entretanto, emerge como a tentativa mais
organizada de crítica, pela esquerda, ao governo Lula, configurando
um esforço interpretativo importante. Suas fragilidades analíticas

166 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

revelam justamente as dificuldades deste campo ideológico e polí-


tico (ou mesmo acadêmico) em estabelecer referenciais concretos e
inovadores de teorização sobre um governo que rompe com a lógica
histórica do sistema partidário do país.
Reinaldo Gonçalves e Luiz Filgueiras elaboram uma investigação
mais apurada em A economia política do governo Lula. Uma análise
cuidadosa e tecnicamente fundamentada que parecia limitada ao curso
da primeira gestão, quando o lulismo ainda se formatava, mas logo
reafirmada em um novo paper de Reinaldo Gonçalves, que amplia o
período estudado até 2009.
Gonçalves e Filgueiras identificam a gestão Lula como a quarta
pior da história republicana em desempenho da economia, mas com
performance positiva em relação ao controle da inflação e redução
do endividamento externo. O juízo dos autores baseou-se em dados
oficiais, a saber:
a) N
 o conjunto dos trinta mandatos republicanos, o governo Lula
localiza-se na nona pior posição em relação ao desempenho
do crescimento da renda real;
b) O
 hiato médio de crescimento da economia brasileira na pri-
meira gestão Lula teria sido negativo (-1,5%), a menor taxa
de crescimento mundial (3,3% contra 4,9% de crescimento
mundial). Este indicador é o diferencial entre a taxa média
anual de crescimento econômico do país e a taxa média anual
de crescimento econômico mundial. Somente Floriano Pei-
xoto, Collor e Castelo Branco tiveram desempenho inferior
ao primeiro mandato do governo Lula;
c) N
 o que se refere à acumulação de capital, a taxa média de
crescimento real de formação bruta de capital fixo no Brasil
é de 4,2% no período 1890-2006. Durante o governo Lula, a
taxa média anual de variação foi de 3,5%. A primeira gestão
Lula localizou-se no 11º lugar entre os presidentes brasileiros;

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 167


LULISMO | Rudá Ricci

d) J á a taxa média de inflação foi de 15,7% na história repu-


blicana, sendo que na primeira gestão Lula a taxa média foi
de 8,7%;
e) A
 relação média dívida privada/pública interna com o PIB é de
7,5% na nossa história republicana. No período 2003-2006 este
índice chegou a 45%, a mais alta dívida da história do país;
f) Q
 uanto à vulnerabilidade externa, adotando-se a relação dívida
externa/exportação de bens, a média no período republicano
é de 203%. No governo Lula atingiu 181%, extremamente
favorável à sua primeira gestão, que se posiciona no 9º lugar
entre governos republicanos brasileiros.
Os autores, com base neste conjunto de indicadores, criaram um
índice, o IDP (Índice de Desempenho Presidencial). A primeira gestão
Lula, adotando-se este índice, figura na quarta pior colocação (com
43,8 pontos) entre todos os presidentes republicanos de nossa história,
ficando atrás dos governos Sarney, FHC (segundo mandato) e Collor.
Sintetizando, sugerem (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007, p. 59):
1) Que a conjuntura internacional foi extraordinariamente po-
sitiva desde 2003;
2) E
 ntretanto, embora os indicadores de vulnerabilidade externa
dos países em desenvolvimento tivessem melhorado, a situ-
ação do Brasil não apresentava tendências firmes de avanço
significativo durante a primeira gestão Lula, se comparados
com o período anterior;
3) O
 governo Lula seria responsável pela perda de oportunidade
aberta no contexto internacional pós 2002.
Quanto à política social do governo Lula (em sua primeira gestão),
os autores reforçam o caráter focalizado das ações. Sustentam que esta
concepção foi criada e difundida pelo Banco Mundial, o que definiria
uma linha de continuidade com as políticas adotadas no continente.

168 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Mereceu atenção especial de Filgueiras & Gonçalves o deslocamento


do tema da desigualdade social do âmbito da relação trabalho-capital
para o âmbito exclusivo das características e insuficiências na com-
petência da classe trabalhadora nacional, desconsiderando razões
estruturais, como o padrão de desenvolvimento e mesmo a política
econômica vigente. Neste sentido, a preocupação com a formação
técnica e programas de requalificação profissional ganham relevância.
Assim, reformas estruturais (os autores citam explicitamente a reforma
fundiária) seriam descartadas como resolução desta temática.3
No paper mais recente, Gonçalves reafirma que a taxa média
de crescimento real do PIB brasileiro foi de 4,5% e a taxa dos dois
mandatos do governo Lula teria sido de 3,6%, o que o colocaria,
num ranking geral de 29 governos, no 21º lugar neste quesito. Já a
participação média do PIB brasileiro no PIB mundial teria decaído
de 2,93% (no início da primeira gestão Lula) para 2,74% (em 2009).
A participação do PIB nacional no conjunto mundial vem recuando a
partir dos anos 1980, contrastando com o período anterior.
Segundo o autor, “No período de praticamente meio século
que vai de 1930 até 1979, a economia brasileira apresenta taxas de
crescimento econômico de longo prazo significativamente elevadas”.
Com efeito, o autor demonstra que entre 1950 e 1959, a média
de crescimento foi de 7,15%; de 1960 a 1969, a média foi de 6,12%; e
de 1970 a 1979, de 8,78%. O maior crescimento do PIB foi de 13,97%
em 1973, no auge do “milagre econômico”.
Embora o governo Lula tenha, na análise de Gonçalves (2010, p.
3), se beneficiado da conjuntura internacional favorável no período
2003-2008, o desempenho da economia nacional sob as suas duas
gestões teria sido “medíocre”.
Em seguida, reproduzo a tabela produzida pelo autor, que dá a
dimensão da análise comparada:

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 169


LULISMO | Rudá Ricci

decrescente
em ordem

em ordem
crescente
Ordem

Var. %

Var. %
Presidente Var. % Presidente Presidente

1 Deodoro da Fonseca 10,14 Floriano Peixoto -7,47 Garrastazu Médici 11,90

2 Floriano Peixoto -7,47 Fernando Collor -1,31 Deodoro da Fonseca 10,14

3 Prudente de Morais 4,52 Venceslau Brás 2,06 Jânio Quadros 8,60

4 Campos Sales 3,08 Fernando Henrique 2,29 Café Filho 8,30

5 Rodrigues Alves 4,73 João Figueiredo 2,38 Juscelino Kubitschek 8,08

6 Afonso Pena 2,48 Afonso Pena 2,48 Costa e Silva 7,80

7 Nilo Peçanha 6,38 Campos Sales 3,08 Eurico Dutra 7,59

8 Hermes da Fonseca 5,53 Hermes da Fonseca 3,53 Epitácio Pessoa 7,46

9 Venceslau Brás 2,06 Lula (2003-2009) 3,55 Ernesto Geisel 6,67

10 Epitácio Pessoa 7,46 João Goulart 3,56 Nilo Peçanha 6,38

11 Artur Bernardes 3,75 Artur Bernardes 3,75 Getúlio Vargas II 6,17

12 Washington Luís 5,16 Castello Branco 4,15 Itamar Franco 5,38

13 Getúlio Vargas I 4,32 Getúlio Vargas I 4,32 Washington Luís 5,16

14 Eurico Dutra 7,59 José Sarney 4,35 Rodrigues Alves 4,73

15 Getúlio Vargas II 6,17 Prudente de Morais 4,52 Prudente de Morais 4,52

16 Café Filho 8,30 Rodrigues Alves 4,73 José Sarney 4,35

17 Juscelino Kubitschek 8,08 Washington Luís 5,16 Getúlio Vargas I 4,32

18 Jânio Quadros 8,60 Itamar Franco 5,38 Castello Branco 4,15

19 João Goulart 3,56 Getúlio Vargas II 6,17 Artur Bernardes 3,75

20 Castello Branco 4,15 Nilo Peçanha 6,38 João Goulart 3,56

21 Costa e Silva 7,80 Ernesto Geisel 6,67 Lula (2003-2009) 3,55

22 Garrastazu Médici 11,90 Epitácio Pessoa 7,46 Hermes da Fonseca 3,53

23 Ernesto Geisel 6,67 Eurico Dutra 7,59 Campos Sales 3,08

24 João Figueiredo 2,38 Costa e Silva 7,80 Afonso Pena 2,48

25 José Sarney 4.35 Juscelino Kubitschek 8,08 João Figueiredo 2,38

26 Fernando Collor -1,31 Café Filho 8,30 Fernando Henrique 2,29

27 Itamar Franco 5,38 Jânio Quadros 8,60 Venceslau Brás 2,06

28 Fernando Henrique 2,29 Deodoro da Fonseca 10,14 Fernando Collor -1,31

29 Lula (2003-2009) 3,55 Garrastazu Médici 11,90 Floriano Peixoto -7,47

Média 4,45 Média 4,45 Média 4,45

Fonte: IBGE. Elaboração e projeção MB Associados

170 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Numa análise similar à empreendida por Filgueiras & Gonçalvez,


também datada e prejudicada pelo movimento errático do governo
Lula entre sua primeira e segunda gestões, o Laboratório de Políticas
Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicou
um balanço das ações governamentais desenvolvidas entre setembro
de 2003 e março de 2004 (SADER et al., 2004). Na análise sobre políti-
cas e movimentos sociais, Laura Tavares Soares destaca o foco inicial
do governo na implementação das reformas previdenciária e tributária
e a baixa centralidade de políticas fundamentais da agenda petista,
como a reforma agrária (no primeiro ano da gestão, a autora destaca
que os recursos disponíveis no Ministério do Desenvolvimento Agrário
não possibilitavam superar 22% das metas de 2003 para a reforma
agrária). Destaca, como outros estudos, que o gasto social pautou-se
pela focalização e pelo “economicismo” da leitura do Ministério da
Fazenda, que no início da gestão procurou monopolizar a orientação
governamental das ações na área. Sugere a autora:
O grande problema da focalização a partir das “linhas de pobreza”
exclusivamente baseadas na renda familiar é que ela deixa de fora
inúmeras famílias que estão “acima” da linha, mas que continuam
em situação de precariedade, dada a enorme “rotatividade” para
cima e para baixo dessa linha, em razão de algum fator como
perda do trabalho, doença e velhice. Os programas focalizados
desse modo são a “antipolítica” social, na medida em que exigem
comprovação de pobreza – o que permite a “inclusão” não por
direito de cidadania, mas por ser mais “pobre” do que o vizinho
– não garantindo, portanto, a base de igualdade necessária a uma
verdadeira política social (SADER, idem, p. 41)

Por seu turno, Emir Sader sugere numa das seções desta co-
letânea, que havia uma crise no consenso lulista em virtude da
mudança na composição da base política e dos ministérios. Sader
diagnosticava que, no plano interno, o governo teria somado alia-
dos de peso (destacando PMDB e grande mídia), assim como no
plano externo (destaca FMI e Banco Mundial), estranhos ao ideário

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 171


LULISMO | Rudá Ricci

petista. Contudo, as críticas se avolumaram em virtude do ajuste


fiscal ortodoxo:
Essa primeira conjuntura se esgotou e o vazio deixado pela per-
da de iniciativa do governo foi preenchido pelos problemas, que
se multiplicaram como nunca até este mês de outubro [2003],
refletido na maior baixa de popularidade do governo conforme
pesquisas CNA/Sensus e Folha de S. Paulo. (...) outubro se reve-
lou o pior mês até agora para o governo, com uma série de crises
setoriais que contribuíram para desgastar sua imagem: com os
setores ecológicos, pela aprovação do plantio de soja transgênica;
com a saída de Fernando Gabeira do PT, alegando o problema dos
transgênicos e vários outros da área, como a importação de pneus
usados; com a ideia de estender a utilização de usinas de energia
nuclear, entre outras questões; com os setores de saúde, pela trans-
ferência de recursos constitucionais para a área de saneamento
básico; com problemas de mau uso dos recursos públicos, no
caso de Benedita da Silva, de Luís Eduardo Soares – que levaram
à demissão deste – e do ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz
(SADER, idem, p. 80-81).

O tempo revelaria que o apontado por Sader como motivo de crise


era, na verdade, uma inflexão na agenda petista adotada pelo lulismo.
Não se tratava efetivamente de crise, mas de defecção de expoentes
e temas de agenda do petismo. Possivelmente, nesse momento, sem
a intenção plena que vai se forjando no final desta primeira gestão.
Sader, neste artigo, intuía a mudança em curso quando sustenta que
a principal vítima do ingresso do PMDB na base aliada do lulismo
seria o PT. Mas a intuição aparece logo sobrepujada por critérios de
avaliação do desempenho do governo externos à nova realidade. No
balanço que realiza sobre o primeiro ano da gestão, adota como cri-
tério de análise a superação do modelo neoliberal. Como sustenta em
seguida (SADER, idem, p. 86) que o governo aprofundou a política
desenvolvida pela gestão anterior e abandonara a prioridade do social,
seu vaticínio foi contaminado pela agenda petista.

172 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Este parece ser o problema de parte dos analistas que avaliam a


primeira gestão Lula: adotam critérios que haviam sido declaradamen-
te abandonados com a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, seguido por
documentos oficiais empunhados pelo Ministério da Fazenda. Uma
declaração que nunca se alimentou de qualquer intenção casuística,
tanto que, em janeiro de 2004, o ministro Tarso Genro destacava
que a aliança PT-PMDB representava um eixo estratégico de centro-
-esquerda, declaração citada no artigo “A segunda cara do governo
Lula”, de Sader, no livro em tela (Ibidem, p. 94).
As dificuldades de teorização do mundo acadêmico sobre o
governo Lula, como veremos, não se limitam aos esforços destas
correntes acadêmicas. Perseguiu expoentes de várias linhagens, como
Francisco de Oliveira. Em sua carta de desfiliação ao PT, Oliveira cri-
ticou o governo Lula que teria adotado um programa que não havia
sido apresentado aos eleitores. Sua carta é ácida:
Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios
nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e
para o Senado da República pediram meu voto para conduzir
uma política econômica desastrosa, uma reforma da Previ-
dência antitrabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma
tributária mofina e oligarquizada, uma campanha de descrédito
e desmoralização do funcionalismo público, uma inversão de
valores republicanos em benefício do ideal liberal do êxito a
qualquer preço – o “triunfo da razão cínica”, no dizer de César
Benjamin –, uma política de alianças descaracterizadora, uma
“caça às bruxas” anacrônica e ressuscitadora das piores práti-
cas stalinistas, um conjunto de políticas que fingem ser sociais
quando são apenas funcionalização da pobreza – enfim, para
não me alongar mais, um governo que é o terceiro mandato de
FHC (OLIVEIRA, 2003).

O autor vincula o programa do governo à mudança de percurso


do partido do presidente da República. E se alinha à sugestão de Luis
Werneck Vianna, indicando que o PT no governo seria o prolonga-

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 173


LULISMO | Rudá Ricci

mento da longa “via passiva” brasileira, a “expansão do capitalismo


da exclusão, a repetição do mesmo, desde o aliancismo desembestado
até as políticas dos tíquetes de leite”, que teria deslocado este partido
para o centro do sistema partidário.
No início de 2006, Oliveira concede entrevista em que reafir-
ma que o governo Lula negou a possibilidade de transformação
social do Brasil a partir do “sequestro dos movimentos sociais”,
configurando o “quarto mandato neoliberal”. Caracteriza o governo
Lula como:
Um governo conservador, com uma inclinação de centro-direita,
com ausência de participação popular e uma presença e atuação
muito fortes de lideranças empresariais burguesas liberais, que
são a marca do governo (OLIVEIRA, 2006a).

Acrescentou, desta feita, um ingrediente à carta de desfiliação:


o sequestro da sociedade civil pelo governo, desmobilizando movi-
mentos sociais, cooptando o movimento sindical através, inclusive, da
indicação do presidente da CUT como ministro. Também aprofunda
sua crítica à mudança no perfil do PT, em que o grupo dirigente teria
constituído uma nova classe social, ocupando conselhos de admi-
nistração das principais fontes de recursos para investimentos no
país, entre elas o Banco de Desenvolvimento Econômico e Social e
os fundos de pensão. Denominando-os de “novos gestores”, Oliveira
sugere um paralelo com a nomenklatura soviética.
Em meados do mesmo ano, em entrevista concedida ao jornal
Folha de S. Paulo ensaia, pela primeira vez, comparação entre Lula e
Getúlio, afirmando que seriam antípodas. Lula não seria, para Oliveira,
populista justamente porque não inclui o proletariado na política, mas
o inverso. E reafirma que “o papel transformador do PT se esgotou”
(Idem, 2006b). O partido teria ficado dependente da figura do presi-
dente da República, sugerindo que poderia ter o mesmo destino que
o peronismo, em que grupos disputariam o espólio de seu governo,
numa luta interna constante.

174 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Surpreendentemente, Oliveira opera uma guinada brusca em


2009, logo após a crise econômica iniciada nos EUA e Europa que
denomina de “primeira grande crise da globalização capitalista”. Dada
a gravidade da crise, o autor não concebe espaço para um reordena-
mento elitista como ocorreu em 1930, mas “induzida pelas forças da
base da sociedade brasileira”. Mais surpreendente é a nova ossatura
assumida pelo PT em seu discurso:
O PT tem a força sindical, a estrutura sindical tem todos os fun-
dos de pensão sob seu controle. Então tem recursos para serem
remanejados e repactuados com a base trabalhadora; dentro dela
o PT desfruta igualmente de massa e representatividade (OLI-
VEIRA, 2009).

No desenho montado por Oliveira, o PT sofreria um aggiornamen-


to frente aos desafios mundiais, assumindo ousadia ainda superior ao
de JK e Vargas, fazendo “por baixo o que eles tentaram e fizeram por
cima; um arranque do desenvolvimento induzido pela base social”.
Deparamo-nos, portanto, com um movimento analítico pendu-
lar e inconsistente. Justamente porque Oliveira confunde por algum
tempo o governo com a trajetória do partido. Em seguida, percebe
que o governo supera o partido para, então, retomar o papel do par-
tido como liderança de um novo ciclo de desenvolvimento do país,
desde os de baixo. Percebe-se a tentativa de encontrar o demiurgo
que incitaria a massa dos brasileiros marginalizados da política a
provocar a “modernização completa” de nosso país, rompendo com
a tentação – como já havia citado em sua carta de desfiliação – do
governo Lula completar a “revolução passiva” brasileira. A busca do
demiurgo parece vinculada à urgência de uma crise internacional de
grandes proporções, criando condições concretas para a mudança e
quebra de paradigmas da ordem política nacional (ao qual o PT e o
governo Lula, segundo Oliveira, teriam se enredado). Uma liderança
que provocasse a mudança cultural, subjetiva. Enfim, um modelo de
transformação dos mais conhecidos da tradição das esquerdas brasi-

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 175


LULISMO | Rudá Ricci

leiras, o que revelaria grandes dificuldades do autor em aprofundar


o mérito e aoriginalidade deste governo mutante.
José de Souza Martins também procurou decifrar o governo Lula.
Mas adotou um viés muito distinto dos outros autores, oscilando entre
compreender a figura pública de Lula como fenômeno meramente
conjuntural ou sociológico. Seu artigo mais acabado foi publicado no
Caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, em setembro de 2006.
O texto revela certa perplexidade por Lula ser o “o mais abençoado
político brasileiro pela hierarquia católica. E é também abençoado
por setores até importantes das igrejas evangélicas. No âmbito das
religiões mais reúne do que espalha. Isso é um milagre”.
Martins não cita esta relação de preferência arbitrariamente.
Procura, ao contrário, destacar que a imagem de Lula se confunde
com a lógica contraditória de nossa cultura e povo:
Ele é um poço de imperfeições, que são as imperfeições de todos
nós. Vence-as rindo, fazendo pouco caso da perfeição dos outros.
Seu partido e seus aliados envolveram-se até a boca nas águas
podres da corrupção para o projeto de permanecerem no poder,
na cara nova e insustentável da ditadura do proletariado. Nem
uma gota de lama espessa parece tê-lo atingido (MARTINS, 2006).

Sua análise situa-se no plano da legitimação política. Algo que os


outros autores aqui citados pareciam relegar ao mundo das aparências
(e que, enfim, não seria a essência deste governo). Mas é justamente
neste ponto que parece estar localizado o enigma lulismo: sua racio-
nalidade se constrói a partir da consolidação de sua legitimidade e
não a despeito dela. O lulismo é justamente uma construção política
popular, vocacionado para se relacionar com as massas urbanas,
amorfas e sedentas pela inclusão social.
Martins procura cavar esta trincheira. Sustenta, neste artigo, que
Lula permanece porque não deixou o PT se realizar no governo. Lula
teria navegado sobre águas seguras porque leu os sinais de sua eleição,
que não teria abraçado seu partido. E, assim, colocou-se a serviço das

176 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

mediações e negociações entre forças contraditórias. Trata-se de uma


maneira mais profunda de analisar o pragmatismo, marca do lulis-
mo. Por ser pragmático mantém-se como mediador, o que resulta no
pragmatismo como projeto. Porque, segundo Martins, a alma do povo
brasileiro, que Lula parece compreender como ninguém, é dividida.
O lulismo seria, assim, um projeto real ou uma permanente e
instável relação com as massas urbanas emergentes? Teria um proje-
to racionalmente armado – como sugerem todos os autores até aqui
analisados – ou sua arquitetura de gestão seria forjada a partir da
prática de mediação entre interesses contraditórios que formam a
alma brasileira?
Este parece ser o cerne do enigma. Algo próximo do que Boaven-
tura Santos denominou de carnavalização da nossa cultura política: a
transgressão sem ruptura com a ordem. A técnica discursiva de Lula
é o exercício permanente deste jogo de cena com suas permanentes
quebras de protocolo. O lulismo ensaiaria, assim, a pedagogia polí-
tica da mediação de uma alma nacional desde sempre dividida. Não
apartada, mas contraditória e dividida em cada cidadão brasileiro que
construiu sua identidade pelo reflexo que os abastados ou margina-
lizados fazem em sua vida.
Artigo de André Singer (2009, p. 82-83) publicado na revista
Novos Estudos Cebrap sustenta tese similar. Para o autor, o lulismo:
(...) expressa um fenômeno de representação de uma fração de
classe que, embora majoritária, não consegue construir desde bai-
xo as suas próprias formas de organização. Por isso, aos esforços
despendidos até aqui para analisar a natureza do lulismo, achamos
conveniente acrescentar a combinação de ideias que, a nosso ver,
caracteriza a fração de classe que por ele seria representada: a
expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a
desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida.

O argumento desenvolvido por Singer se sustenta na análi-


se do deslocamento da base social de apoio de Lula, de 1989 a

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 177


LULISMO | Rudá Ricci

2006, das classes mais instruídas e de renda média-alta para as


classes com menor poder aquisitivo e instrução. O fenômeno teria
atingido seu ápice em 2006, quando as denúncias de corrupção
contra o governo federal aumentaram a rejeição à reeleição de
Lula nos segmentos mais ricos (segundo pesquisa Datafolha citada
no referido artigo, a rejeição a Lula nos estratos de maior renda
do país atingia 40% em outubro de 2005, mas a partir do final
daquele ano, já se percebia inflexão pró-Lula nos segmentos me-
nos abastados). Ao longo de 2006, a divergência entre os estratos
de renda cresceu, segundo apurou o Ibope. Na faixa entre dois e
cinco salários mínimos, Lula empatava na intenção de votos com
seu opositor; mas entre os de mais baixa renda, Lula aparecia à
frente, com 26% de vantagem.
Singer, a partir desta base de dados, procura operar sua análise em
dois sentidos. O primeiro, buscando interpretar o que teria atraído as
faixas mais pobres para apoiar Lula. O segundo movimento do autor
foi procurar compreender a configuração política desta inflexão que
daria lugar ao lulismo.
Quanto à primeira interpretação, o autor sustenta que os
eleitores de baixíssima renda são conservadores e migraram seus
votos para Lula quando perceberam que este poderia reduzir a de-
sigualdade social com intervenção do Estado, sem desestabilizar a
ordem. O argumento central é que este estrato social protagoniza
um declarado conservadorismo popular. Os dados mais consisten-
tes que fundamentam este argumento surgem do Estudo Eleitoral
Brasileiro (Eseb), de 2002 e 2006. Em dezembro de 2006 o Eseb
teria captado forte declínio do apoio à esquerda se comparado com
2002 (de 25,7% para 9%), aumentando o percentual daqueles que
não conseguem se localizar no espectro ideológico: 41,8% em 2006.
A partir daí, a votação de Lula se descolou da votação do seu partido.
O lulismo ingressou fortemente nos grotões do país, no Nordeste e
Norte e o petismo continuou forte no Sudeste e Sul do país.

178 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

No segundo campo de análise, Singer caminha para compreender


o papel desenvolvido pelos programas de transferência de renda e
aumento de salário mínimo e pagamentos previdenciários, ladeados
por posturas mais conservadoras na condução da economia. O au-
tor, citando Cláudio Shikida, sugere que o controle de preços foi um
atrativo eleitoral muito mais poderoso que os programas de transfe-
rência de renda. Entre 2003 e 2006, a cesta básica teria subido nas
capitais das regiões Sul e Sudeste, mas caído nas capitais nordestinas,
correspondendo à performance eleitoral de Lula. Cita, ainda, que o
aumento real do salário mínimo (24,25%) no primeiro mandato foi
mais abrangente que o impacto do Programa Bolsa Família. Singer
recorda que o primeiro aumento real do salário mínimo ocorreu em
2005, pouco depois da criação do crédito consignado. Não obstante,
o tripé formado pelo Bolsa Família, aumento do salário mínimo e
crédito consignado, independentemente do peso eleitoral de cada uma
dessas políticas, teria criado o que Marcelo Neri (FGV-RJ) denominou
de “o Real de Lula”.
A ponderação de Singer corresponde à análise do economista da
Universidade Federal de Alagoas, Cícero Péricles. Péricles revela que
nos últimos seis anos mais de 400 mil nordestinos retornaram à sua
cidade de origem. Em parte, segundo o autor, reflexo do Bolsa Família
e da Previdência, mas não só. Muitos retornam com seu sonho de su-
cesso frustrado. Segundo o Pnad, o trabalhador nordestino conseguiu
contribuir para a diminuição das desigualdades de renda entre as regi-
ões em 2008, mas ainda segue com o menor salário das cinco regiões
brasileiras. A renda média mensal do trabalhador no Nordeste chegou a
R$ 685 – pouco mais da metade da média nacional no ano, que ficou
em R$ 1.036. No Piauí, que apresenta o pior índice entre os estados,
essa renda foi de apenas R$ 586. Em 2008, o trabalhador da região
obteve o maior ganho de rendimentos, de 5,4%, enquanto no país esse
aumento foi de 1,7%. Segundo o IBGE, a melhora na renda aconteceu
em todos estratos sociais e pode ser explicada, entre outros motivos,
pelo maior grau de estudo da população. Em 2008, a região Nordeste

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 179


LULISMO | Rudá Ricci

foi a que apresentou a maior redução no grupo de um a três anos de


estudo dos trabalhadores (-12,9%) e segundo maior ingresso de pes-
soas no mercado de trabalho com mais de 11 anos de estudo (11,2%),
só perdendo para a região Norte (11,9%). No país, esse crescimento
foi menor (8,5%). Mas a concentração de rendimentos entre os que
ganham mais cresceu entre 2007 e 2008 no Nordeste, ao contrário do
que ocorreu no Sul, Sudeste, Norte e no Centro-Oeste. Péricles avalia
que o baixo nível salarial do Nordeste é reflexo da pouca qualificação
profissional. Embora confirme o aumento da escolaridade nos últimos
anos, sustenta que a maioria dos empregos gerados na região paga
salário mínimo. Segundo Péricles:
Esse aumento na renda dos trabalhadores teve impacto maior no
segmento dos 10% mais remunerados, que, apesar de pequeno,
recebe um volume maior de recursos. Mas, como o crescimento
foi geral, o índice de Gini, que mede a concentração de renda, caiu
suavemente. O impacto das transferências diretas de renda [Bolsa
Família] e previdência social sobre a economia nordestina é muito
grande. Juntas, elas cobrem mais de dois terços das famílias da
região. A Previdência Social pagou em julho deste ano R$ 4 bi-
lhões a 7,2 milhões de nordestinos. Desses, 3,8 milhões segurados
formam a clientela rural. Já o Bolsa Família pagou em julho R$
524 milhões a 5,8 milhões de famílias nordestinas. Todos esses
recursos melhoram a renda familiar e, claro, vão diretamente para
o consumo, gerando impactos na dinâmica regional. No Nordeste,
nenhum setor produtivo isoladamente [seja indústria, serviços ou
agricultura] engloba um conjunto tão numeroso de pessoas ou
produz um volume de recursos tão alto de renda.

Assim, o lulismo teria se formado a partir deste encontro com


as classes menos abastadas do país, que rejeita ideologias. O lulismo
seria, assim, fruto da desideologização. O que faz Singer sugerir que
o lulismo assumiria características bonapartistas, de tutela do subpro-
letariado (o lumpensinato na literatura original marxista), justamente
porque esta classe social sofre de ampla mobilidade e instabilidade

180 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

econômica (devido à rotatividade e insegurança que sua baixa instru-


ção e qualificação implicam) e forte pragmatismo (aproximando-se,
muitas vezes, do cinismo político).
A transposição do conceito (bonapartismo) para o lulismo parece
o ponto frágil do ensaio de André Singer justamente porque há forte
mobilidade social nos anos de governo Lula, ao contrário do que
ocorreu em casos clássicos de bonapartismo, a começar pelo estudo
original de Marx sobre o 18 Brumário de Luis Bonaparte. Há, nesta
distinção do caso brasileiro, um enigma a ser analisado nos próximos
anos sobre a manutenção da tutela das classes emergentes pelo lulismo
ou sua autonomização relativa, ingressando no mundo do consumo
e da instrução formal.
No conceito original, o líder de tipo patriarcal do lumpensinato
vive déficit de legitimidade constante em virtude da própria natureza
fluida e desorganizada deste segmento social. Luis Bonaparte teria
ocupado, sem aval de classes organizadas, um vácuo de liderança
existente naquele momento na França. Não é este o caso do lulismo.
Ao contrário, o lulismo provoca a crise de representação de classe.
Não se fez a partir da crise de representação, mas procura construir
uma nova organização no sistema de representação formal. Não rompe
com a ordem, mas a transgride.
Em outras palavras, o bonapartismo parece inadequado para
interpretar o lulismo. Mas possui um elemento a ser considerado:
a tutela política de segmentos sociais desorganizados. O que dá os
contornos de sua originalidade e casa com as tentativas analíticas de
José de Souza Martins.
Se o petismo se apoiou nas classes trabalhadoras organizadas
em estruturas tradicionais, o lulismo se apoia nas classes trabalha-
doras desorganizadas, desideologizadas e pragmáticas. E este apoio
define o arcabouço programático que vem construindo desde o final
do primeiro mandato. Como feeling ou como intenção inconfessável.

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 181


LULISMO | Rudá Ricci

A contribuição mais ousada, contudo, veio da pena de Luiz


Werneck Vianna. Neste balanço são destacados dois ensaios, pu-
blicados em 2007 e 2008 na revista Política Democrática. Em seu
ensaio de 2007, Vianna sustenta a tese ousada do traço conservador
da gestão Lula:
A crer nos indicadores dos dois períodos presidenciais de Fer-
nando Henrique, mas, sobretudo a partir do mandato de Lula, o
capitalismo brasileiro encontrou um caminho de expansão e de
intensificação da sua experiência. Contudo, tem sido agora que
se vê conduzido por um projeto pluriclassista e com a definida
intenção de favorecer uma reconciliação política com a história do
país, contrariamente à administração anterior, mais homogênea em
sua composição de interesses e decididamente refratária ao que
entendia ser o legado patrimonial da nossa herança republicana
(VIANNA, 2007, p. 45).

O autor vai mais longe e destaca que vários ministros e ex-


poentes do governo Lula reeditam temas do nacional-desenvolvi-
mentismo e se pautam menos pela ruptura e mais pela negociação.
Trata-se, segundo Vianna, de uma composição pluriclassista, um
Estado de compromisso, “abrigando forças sociais contraditórias
entre si – em boa parte estranhas ou independentes dos partidos
políticos –, cujas pretensões são arbitradas no seu interior, e decidi-
das, em última instância, pelo chefe do poder Executivo” (Ibidem,
46). O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) é
destacado como agência de negociação entre interesses contraditó-
rios, que passou a ter papel mais relevante no segundo mandato.
O autor sugere, assim, que o CDES configura uma arena de negociação
de tipo neocorporativo, um “parlamento paralelo”. Isto porque os par-
tidos agregados ao governo federal tornam-se “partidos de Estado”, o
que diminui consideravelmente seus laços orgânicos com a sociedade.
Daí o CDES constituir-se na representação institucional, um canal
institucional de participação de interesses corporativos plasmados
por representação personalizada, já que sua composição ocorre por

182 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

escolha e convite pessoal e personalizado do presidente da República


para que uma personalidade se torne conselheiro.
A formulação de Vianna possibilita – embora não seja citado
pelo autor – traçar um paralelo ao conceito de anéis burocráticos que
Fernando Henrique Cardoso propôs para compreender a lógica do
processo de construção de políticas e negociações do regime militar
(CARDOSO, 1973).
Em Cardoso, o Estado regulador estaria constituído a partir de uma
burocracia específica, que formaria um estamento planejador e promo-
tor de interesses econômicos sob o manto da racionalidade do Estado.
O estamento burocrático, por seu turno, organizaria, assim, os interes-
ses das classes dirigentes no interior do Estado, constituindo-se num
agente político sem expressão e visibilidade pública. Não se tratava
de acordo, mas de um processo seletivo de pautas que a tecnocracia
estatal reorganizava como agenda de Estado. As relações clientelistas
antes mediadas pelos partidos políticos passaram a ocorrer no interior
dos ministérios e autarquias, com “função moderadora” (CARDOSO,
1975, p. 207).
O paralelo da engenharia lulista em relação ao conceito de anéis
burocráticos estaria na constituição de arenas formais de negociação
de interesses corporativos a partir de temas nacionais (tipicamente do
âmbito do Estado), paralelas à representação partidária. Os operado-
res desta engenharia seriam gestores políticos e menos a tecnocracia
estatal, como estabelecido durante o regime militar. Mas apartaria,
assim como naquele momento político, os partidos em fóruns e arenas
específicas de negociação com o governo federal na elaboração da
agenda de Estado. Em outras palavras, forma-se uma multiplicidade de
arenas de negociação de interesses, fragmentadas em pautas e temas
específicos (conferências e conselhos temáticos, câmaras setoriais),
quase todos com caráter consultivo, de aconselhamento do gover-
nante, permanecendo a escolha e a seleção por parte da composição
política que constitui a estrutura gerencial do lulismo.

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 183


LULISMO | Rudá Ricci

Vianna, no ensaio em tela, embora não se aprofunde na natu-


reza do sistema seletivo de elaboração da agenda lulista,4 destaca a
peculiaridade da centralização política em curso aliada à crescente
democratização social e racionalização da administração, ao contrário
de períodos anteriores. O “condomínio entre contrários” (VIANNA,
2007, p. 50) formatado pelo lulismo desarticulou a mobilização social
e a participação da sociedade civil de maneira mais ampla e universal.
O que estimula o autor a sustentar que:
Os setores subalternos não são mobilizados, e se fazem objetos
passivos das políticas públicas, que, em muitos casos, incorpo-
ram à malha governamental lideranças de movimentos sociais,
apartando-as de suas bases. Os partidos de esquerda e os mo-
vimentos sociais institucionalizados, quase todos presentes no
governo, retidos nessas suas posições, aderem ao andamento
passivo e se deixam estatalizar, abdicando de apresentarem
rumos alternativos para o desenvolvimento, demonstrando,
nessa dimensão, anuência tácita com a herança recebida dos
neoliberais da administração econômica do governo FHC.
O ator definha, e os protagonistas são, por assim dizer, os fatos
(Ibidem, p. 52).

No ensaio de 2008, Vianna reconstrói com maiores detalhes a


mediação de interesses operada pelo lulismo. Para o autor, coman-
dos políticos com viés oposto tensionam no interior do Estado e se
fazem representar nas arenas de negociação, valorizando o Estado
como condutor da vida econômica e social. Paradoxalmente, regu-
lação estatal e modelo de livre mercado convivem nessas arenas
intitucionalizadas sob a arbitragem do lulismo. Vianna ressalta que
não se trata de sociedade apática, mas que converge suas disputas
e negociações de interesses para o interior do Estado, conformando
um Estado de Compromisso.
A mediação dos contrários e a formatação da agenda estatal por
políticos profissionais que compõem a coalizão presidencialista (em
detrimento da valorização da capacidade formuladora da burocracia

184 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

estatal) são traços constitutivos do lulismo, acentuando o método


como essência deste modelo de gerenciamento do Estado brasileiro.

Notas:
1 Excluí deste rol toda produção de natureza oficial – por sua baixa capacidade
crítica –, assim como aquela dedicada ao embate político, ideológico ou parti-
dário – por ser um campo demarcado por interesses nem sempre explícitos do
jogo de poder, que dificultaria a localização do leitor. Há publicações que se
situam na franja entre um libelo político-partidário e uma tentativa de análise
da gestão Lula. Este é o caso, entre outros, do livro de José Prata Araújo (2006).
Em virtude do autor deste livro procurar estabelecer uma constante comparação
do governo Lula com o governo FHC, declaradamente negativa para o segundo,
decidi excluí-lo deste capítulo por sua baixa capacidade crítica, aproximando-se
de uma defesa incondicional.
2 A doutrina jurídica distingue pacto de concertação social, sendo o primeiro um
acordo formal e o segundo o resultado de uma negociação política. Para José
Augusto Rodrigues, o pacto teria uma relevância jurídica maior, pois representa
“a instrumentação formal de um processo de negociação coletiva deliberadamen-
te instalada para alcançá-la”, enquanto a concertação social é “apenas a troca
informal de pontos de vista que possam dar lastro à normatização estatal ou
profissional” (PINTO, 1998, p. 199). Para Cassio Mesquita de Barros “a doutrina
considera, hoje, a concertação social um processo enquanto que os Pactos Sociais,
acordos básicos resultado de discussões e contratos que podem ou não resultar de
um sistema de concertação social. O foro onde o sistema de concertação social se
desenvolve é muito informal e até pode não existir” (Pacto social e a construção
de uma sociedade democrática. Rev. LTr., v. 52, n. 03, p. 283).
3 Os autores recuam à 1947 como origem desta elaboração conceitual, durante a
reunião de Mont Pèlerin, onde o social passa a ser renegado como tema a ser
regulado pela ação estatal (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007, p. 154).
4 O conceito de seletividade foi construído por Claus Offe (OFFE, 1994). As estru-
turas formais das agências estatais organizariam agendas que nem sempre teriam
correspondência direta com demandas de classe, demarcando autonomia relativa
do aparato estatal na formatação de políticas públicas. Organizaria e se oporia
aos interesses particulares de cada capitalista individual e de suas organizações
políticas, sob a forma de um poder controlador e tutelar. Forma-se, assim, um
sistema de regulamentação seletivo, uma configuração de regras de exclusão (de
demandas) institucionalizadas. Ver também, Erni Seibel, disponível em: <http://
www.revistaoes.ufba.br/include/getdoc.php?id=132&article=52&mode=pdf>.

A gestão Lula: inventário da literatura especializada 185


LULISMO | Rudá Ricci

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A gestão Lula: inventário da literatura especializada 187


Capítulo 4
UMA HIPÓTESE INTERPRETATIVA:
O FORDISMO TARDIO
Este capítulo procura aprofundar o impacto político e social do
lulismo no Brasil, em especial, após 2006, quando se estrutura um
modelo de gestão e de organização social que aqui é compreendido
como uma modalidade da regulação fordista. O fordismo, como
organização social a partir do Estado central como vértice do pacto
de desenvolvimento, foi formulado originalmente pela Escola da
Regulação francesa.
Vários autores demonstraram que esta formulação original, inau-
gurada pelo New Deal rooseveltiano, sofreu adaptações na Europa e
até mesmo no Japão. O fordismo brasileiro lulista é tardio e, como
tal, articula várias formas de organização social e política que aparen-
temente são contraditórias entre si, atualizando práticas e estruturas
patrimonialistas e clientelistas, mas também se insinuando sobre a
cultura política cínica e intimista que emerge com a consolidação de
um potente mercado consumidor de massas, baseado nas frações
menos abastadas da classe trabalhadora. Nestor Canclini já havia
sugerido esta cultura cíclica em que as tradições permanecem ao
lado de um acelerado processo de modernização da América Latina,
processo eternamente inacabado.1
O peculiar é que o fordismo tardio brasileiro forjou-se sob a
liderança política emergente dos anos 1980, que sustentava um vi-

189
LULISMO | Rudá Ricci

goroso discurso inovador, confrontando com as práticas clientelistas.


Os anos 1980, com efeito, são hoje, a partir do olhar em perspectiva
das últimas três décadas, um interregno na lógica política e social
do país. Movimentos sociais, sindicatos e organizações não gover-
namentais foram paulatinamente convergindo e se submetendo ao
estatal-desenvolvimentismo da lógica fordista.
Por ser tardio, o fordismo brasileiro é incompleto e inacabado.
Não se assenta em bases sólidas de industrialização acelerada, como
ocorreu nas vertentes norte-americana e europeia (ou mesmo na
vertente japonesa), o que, na prática, resultou numa tutela estatal
mais grave, assim como na formação de consensos a partir da troca
de benefícios políticos e manejo de recursos públicos para agregar
interesses de vários segmentos da elite econômica e política do país.2
Constrói, assim, uma ponte entre o velho clientelismo e um arranjo
de elites que moderniza de maneira muito particular o Estado, agora
altamente centralizado, na contramão do desejado federalismo que
inspirou nossa última Constituição Federal.
Nasce daí uma sociedade política dual, conceito que diz respeito
ao sistema de funcionamento de legitimação ou sobrevivência das
lideranças políticas e não necessariamente à logica societal. Utilizo
aqui esta muleta conceitual inspirado nas análises gramscianas que
distinguem esferas de organização da sociedade moderna. A socie-
dade civil brasileira é, hoje, nesta perspectiva, fragmentada em múl-
tiplos interesses cujo centro articulador é a família. Já a sociedade
política brasileira se divide entre estruturas superiores, altamente
centralizadas, que participam dos arranjos e arenas de formulação
de políticas públicas estatais; e estruturas regionais e/ou locais, onde
os parlamentares se sobressaem no atendimento de tipo cartorial às
localidades, comunidades e arranjos familiares. Nesta segunda esfera,
o atendimento pulverizado adota contornos nitidamente clientelistas.
Contudo, a intersecção entre as duas esferas se dá nos gabinetes
dos deputados federais e, em alguns casos, deputados estaduais.

190 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Nesses gabinetes ocorrem as filtragens de demandas locais, ou pro-


cesso seletivo de adensamento de demandas que são remetidas aos
ministérios ou secretarias estaduais de governo, traduzindo-as em
programas previamente confeccionados. Como as demandas locais
nem sempre são plenamente ajustadas aos programas intermediados
pelos deputados, os vereadores passam a assumir um importante
papel de acabamento: atendem famílias e entidades cuja jurisdição é
circunscrita a pequenos territórios, se inserindo numa sociabilidade
territorial muitas vezes envolvida com troca de favores nem sempre
legítimos. O neoclientelismo que emerge desta trama tem na relação
entre vereadores e deputados seu centro nevrálgico, criando uma
poderosa rede de lealdades.
O fordismo tardio brasileiro é, portanto, uma formulação (ou
formatação) original, assentada numa sociedade civil pulverizada em
múltiplos interesses comunitários e familiares que tomam consciên-
cia política a partir das políticas de transferência de renda e crédito
popular. A “nova classe C”, que efetivamente não é uma classe,
mas a melhoria de renda das classes trabalhadoras3 é resultado da
“inclusão pelo consumo”, o reflexo invertido da propalada “inclusão
pelos direitos” que se tornou base do discurso das lideranças sociais
dos anos 1980.
Se a inclusão pelos direitos vinha acompanhada da noção de
ação coletiva autônoma, a inclusão pelo consumo alimentou um
ideário justamente oposto: a crença no esforço pessoal, no consumo
de produtos sofisticados como demonstração de sucesso, na gratidão
à família e núcleo de relacionamento íntimo (por estarem juntos nos
momentos de penúria que marcaram toda sua trajetória familiar), no
pragmatismo e cinismo político, na desconfiança da política como
espaço de profissionais da artimanha e não da representação social.
Os emergentes do consumo de massas são conservadores. Dentre
tantas demonstrações do ideário conservador que se consolida no país
a partir do fordismo tardio brasileiro, reproduzo nesta apresentação

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 191


LULISMO | Rudá Ricci

a pesquisa recente elaborada pelo DataFolha que indica a leitura au-


toindulgente da maioria dos brasileiros nesta quadra da vida nacional.
A maioria dos brasileiros (a FGV-RJ sustenta que 54% da população
brasileira é, hoje, classe C) sugere que a pobreza é fruto da falta de
oportunidades iguais. A partir daí, a agenda de direitos civis é clara-
mente abandonada: punição severa aos adolescentes que cometem
crimes, proibição do uso de drogas, ensino religioso para tornar “as
pessoas melhores”. Quase metade dos entrevistados (46%) sugere
que os sindicatos fazem mais política que defender trabalhadores.

192 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Trata-se de ideário conservador4 que se articula com o discurso


hegemônico das igrejas evangélicas. Pesquisa encomendada pela
Confederação Nacional das Indústrias5 revela, significativamente,
que a igreja é a principal instituição confiável para os brasileiros
(66% das respostas), muito superior à televisão (26%), empresários
(16%) e partidos políticos (8%). 57% dos brasileiros afirmaram não
participar de qualquer organização social, sendo que este índice
aumenta quando menor a renda, chegando a 63% no caso da classe
E. Nas classes menos abastadas, as organizações religiosas são as
mais citadas (52%), dentre a exceção que afirmou que participa de
organizações sociais, seguida por entidades estudantis (apenas 8%)
e de bairro (outros 8%).
O fordismo tardio sedimenta uma ponte entre os dois mundos
da estrutura de poder – arranjo de elites na estrutura superior e um
sistema de atendimento de demandas pulverizadas administradas
por deputados e vereadores - que se encontram no atendimento desta
ampla base social popular, voraz por consumir produtos de alta tec-
nologia. Neste sentido, fugiria da dicotomia proposta por Ana Paula
Paes de Paula, entre o Estado Gerencial e o que denomina de Estado
Societal6, pois não se trata de uma reforma da estrutura estatal que
aumenta o controle da sociedade sobre a formatação ou gerenciamento
de políticas públicas.
Estamos analisando, portanto, um sistema político que altera
profundamente nosso sempre débil federalismo, aumentando sobre-
maneira o poder do governo central do país que sustenta um corpo
de lealdades administrada por parlamentares. A independência entre
executivos e legislativos torna-se uma ficção jurídica, assim como a au-
tonomia dos municípios. Atualiza o estatal patrimonialismo de sempre,
acrescentando uma engenharia estatal que remete a um Estado Prove-
dor ou, ainda, uma derivação do projeto estatal-desenvolvimentista.

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 193


LULISMO | Rudá Ricci

A tese do pacto fordista


O pacto fordista, ou fordista-keynesiano, foi sustentado como
hipótese explicativa pela Escola da Regulação a partir da tese de Mi-
chel Aglietta defendida em 1974, intitulada “Régulation et crises du
capitalisme”. Logo adiante, formou-se um núcleo de pesquisadores
que concentraram suas preocupações acadêmicas a partir do marco
teórico sugerido por Aglietta, envolvendo Robert Boyer, Alain Lipietz,
Jacques Mistral, J. P. Benassy, J. Muñoz e C. Ominami. Era o período
da crise capitalista do período 1973/1974, para alguns, desencadeada
pelo aumento do preço do barril de petróleo forçada pelas deliberações
políticas da OPEP, mas que para outros já estaria instalada no seio da
estrutura lógica do Estado de Bem-Estar.7 Há, contudo, uma linha
convergente que se aproxima das teses centrais de Keynes e Kalecki.8
Sinteticamente, todos teóricos desta linhagem sugerem uma
periodização dos movimentos cíclicos do capitalismo a partir das
transformações do trabalho assalariado, das tecnologias de produção
e da emergência do consumo de massas. Os anos 1930 marcariam a
emergência do fordismo nos EUA, fundado no consumo de massas
a partir da indústria automobilística e da construção civil, pedra de
toque do modelo rooseveltiano.9 Com o custo reduzido de bens de
consumo os trabalhadores passaram a participar de um pacto pro-
dutivo, fundado na intervenção do Estado regulador. Para tanto, os
custos da cesta básica de consumo dos trabalhadores passaram a ser
administrados e até subvencionados pelo Estado-demiurgo que, na
outra ponta, regulava o crédito para a indústria de maneira seletiva e
setorial. Um ingrediente fundamental foi a domesticação do trabalho
a partir do ritmo de produção definido pela esteira elétrica e pela dis-
seminação de princípios da poupança e consumo familiar (lembremos
que Ford foi o primeiro empresário de ponta que investe em ações
programadas de orientação das famílias operárias a partir de visitas
programadas de um exército de assistentes sociais que, mais tarde,
dará origem aos princípios da psicologia industrial), aumentando

194 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

significativamente a produtividade e aumento do lucro observado


nos segmentos produtivos com alto valor agregado.
O ciclo mais vigoroso do fordismo teria ocorrido entre os anos
1930 e 1950, a partir do qual se espraiou para os países da Europa
Ocidental e o Japão, entrando em crise ao final dos anos 1970.
David Harvey10 propõe uma síntese do pacto fordista que pode
ser graficamente sugerida a partir do seguinte diagrama:

O diagrama indica que o modelo fordista se apoia num Estado


centralizador e orientador, que implanta um aparato regulatório que
tem por finalidade garantir um ambiente estável de investimentos e
consumo. Assim, as políticas anticíclicas adotadas promovem, na prá-
tica, um pacto desenvolvimentista, envolvendo agentes econômicos e
políticos. Os instrumentos principais do aparato regulatório, por seu
turno, são: subsídio da cesta básica de consumo dos trabalhadores e

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 195


LULISMO | Rudá Ricci

crédito controlado e seletivo para segmentos produtivos, buscando


regular o grau de endividamento setorial.
Harvey sugere que a data simbólica de surgimento do fordismo
é 1914, com a introdução do dia de oito horas e cinco dólares como
recompensa aos trabalhadores da linha automática de produção de
automóveis. Tais inovações propiciaram controle absoluto sobre a pro-
dutividade do setor e possibilidade de transformar o custo dos salários
em investimento para a emergência do mercado consumidor de massas
nos EUA. O geógrafo norte-americano retoma Gramsci para afirmar que
os novos métodos de trabalho são inseparáveis de um modo específico
de viver e de pensar e sentir a vida, envolvendo formas de sexualidade,
família, coerção moral, consumo e ação de Estado.
A inovação fordista gerou, para Harvey, forte disciplina operária,
não apenas na produção, mas na organização dos hábitos de consu-
mo. Com efeito, o segundo foco passou a ser, já em 1916, educar o
consumo das famílias operárias. Neste ano, Ford enviou um exército
de assistentes sociais aos lares dos trabalhadores para compreender
a dinâmica familiar e sua capacidade de consumo.
O sistema fordista foi se engendrando ao longo de meio século,
ganhando seu formato definitivo com os programas anticíclicos do
New Deal.11 A partir de então, segundo Harvey, forjou-se um siste-
ma social e produtivo, que começará a ruir a partir de 1973/1974,
com a crise aberta pela Opep com aumento do preço do barril de
petróleo. Um período de consolidação do que o autor denomina de
indústrias portadoras de tecnologias amadurecidas do pós-Guerra:
carros, construção de navios e equipamentos de transporte, aço, pro-
dutos petroquímicos, borracha, eletrodomésticos e construção civil.
Afirma o autor:
O Estado assumiu novos papéis e construir novos (keynesianos)
poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as
velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha
da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir

196 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados


de trabalho e nos processo de produção. (...) A derrota dos movi-
mentos operários radicais que ressurgiram no período pós-guerra
imediato, por exemplo, preparou o terreno político para os tipos
de controle do trabalho e de compromisso que possibilitaram
o fordismo.12

O Estado passou a patrocinar a produção de massa, as condições


de demanda relativamente estáveis e controlar os ciclos econômicos.
Em outras palavras, o centro político desta lógica é a construção da
paz social e pacto desenvolvimentista.
Este desenho sistêmico motivou André Singer a aventar a pos-
sibilidade do lulismo ter se apoiado num “sonho rooseveltiano”.13
Para o autor, o ambiente rooseveltiano se alimentou do ciclo de
aceleração do crescimento brasileiro iniciado em 2007. Singer é
enfático ao assinalar que:
(...) o lulismo introduziu o New Deal no imaginário nacional,
funcionando como sintoma ideológico. A título de exemplo, vamos
lembrar três menções, oriundos de campos suficientemente dis-
tantes para indicar a existência de fenômeno geral. Wendy Hunter
e Timoty Power compararam o Bolsa Família (BF), lançado em
setembro de 2003, ao Social Security Act, com o qual, em 1935,
Roosevelt instituiu o sistema de previdência pública. (...) Uma
segunda referência encontra-se no fecho de balanço do governo
Lula feito por dois economistas ligados ao Ministério da Fazenda.
Segundo Nelson Barbosa e José Antonio Pereira Souza, “a superação
de dogmas recentes encontra paralelos em momentos nos quais os
Estados das economias capitalistas centrais optaram pela ruptura de
seus modelos de atuação (...). Assim foi, por exemplo, com a G.I Bill
(1944) e com a Employment Act (1946) (...). A G.I. Bill, assinada
por Roosevelt em junho de 1944, dava direito aos militares veteranos
dos EUA que retornavam da Segunda Guerra Mundial a ingressar
nas universidades. O Employment Act, promulgado pelo presidente
Harry Truman em fevereiro de 1946, ainda no contexto do New

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 197


LULISMO | Rudá Ricci

Deal, atribuía ao governo federal norte-americano a incumbência


de promover oportunidades de emprego. (...) Por fim, em julho de
2010, citando Paul Krugman, o jornalista Fernando de Barros e Silva
escrevia na Folha de S. Paulo: “os Estados Unidos do pós-guerra
eram, sobretudo, uma sociedade de classe média. O grande boom
dos salários que começou com a Segunda Guerra levou dezenas
de milhões de americanos – entre os quais meus pais – de bairros
miseráveis nas regiões urbanas ou pobreza rural à casa própria e a
uma vida de conforto sem precedentes”. (...) Continua o jornalista:
“tudo isso nos fala à imaginação – tão longe, tão perto”.14

A longa citação se justifica pela clareza da proposição analítica.


O autor sustenta que a redução, entre 2003 e 2008, daqueles brasi-
leiros que percebiam um rendimento inferior ao valor de uma cesta
básica de alimentos recomendada pela FAO, de 36% para 23%, cria
um paralelo imediato com a história norte-americano e sugere um
New Deal brasileiro. Uma redução de pobreza mais acentuada que a
redução da desigualdade, é certo.
Singer não aprofunda a lógica fordista, se concentrando nas
políticas rooseveltianas. Assim, resvala na observação de uma nova
agenda estatal-desenvolvimentista adotada pelo país, com contornos
tão profundos como o ciclo aberto pelo getulismo.15
O desenho do fordismo lulista mantém identidade com a estru-
tura sistêmica rooseveltiana, no que tange o papel do Estado como
financiador e orientador do capital e sustentação do mercado interno
ampliado, fundado na elevação da renda média do trabalhador e
diminuição acentuada da pobreza via transferência de renda. Mas
acrescenta duas novidades em relação ao fordismo original, de âm-
bito político. O lulismo introduz o financiamento de organizações
populares e de representação de massas, como organizações não
governamentais, articulações por direitos civis e sociais e centrais
sindicais.16 Também consolida uma antiga pretensão de governantes
anteriores: a coalizão presidencialista, que cria uma forte intimidade
governista e governamental entre Executivo e Legislativo.

198 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

A estrutura estatal-desenvolvimentista apresentada reduz os espa-


ços de oposição e cria um ambiente de estabilidade para investimentos
empresariais e familiares. As políticas anticíclicas se alimentam, então,
deste ambiente marcado pelo pacto desenvolvimentista. O que remete
ao controle das mobilizações e resistências sociais, assim como das
articulações sociais para ampliar direitos.

As arenas e espaços que na Constituição Federal ganharam o


status de participação direta de representações da sociedade civil
na tomada de decisões relativas às políticas públicas, em especial,
as sociais, são limitados ao papel de pacificação social. O novo pa-
pel se apoia numa gradual domesticação das organizações sociais e
populares que, nos anos 1980 e 1990, se notabilizaram pela defesa

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 199


LULISMO | Rudá Ricci

dos mecanismos de democracia direta, pelas estruturas organizativas


horizontalizadas e pela crítica à prevalência de interesses de mercado
na ação do Estado. O fordismo lulista, contudo, é um arranjo, uma
composição de interesses. Os fóruns e arenas de participação social
tiveram, portanto, que se enquadrar à lógica da gestão pactuada. Este
rearranjo institucional da participação social se revelou mais simples
e viável do que se apresentava teoricamente.
No início da primeira gestão Lula, o participacionismo teve lugar
certo. O programa Fome Zero foi entregue a lideranças católicas, expo-
entes da Teologia da Libertação nos anos 1980. A estrutura de gerencia-
mento do programa adotou a lógica da cogestão e foi compreendida como
escola de formação de cidadãos para o controle de políticas públicas.
O conceito de empoderamento foi fartamente utilizado neste período,
numa tradução livre de empowerment. Nesta versão, significava ação
coletiva ou participação coletiva em espaços privilegiados de decisões,
ampliando o conceito de direito político. Assim, se orientaria pela
superação de qualquer dependência social e dominação política. Era,
obviamente, um discurso que confrontava o Estado patrimonialista.
Outra iniciativa foi a instalação do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES), um amplo conselho consultivo, compos-
to por empresários e representação da sociedade civil para análise e
proposição da agenda nacional.
Finalmente, esboçou-se um frágil mecanismo de participação
no controle do orçamento federal e políticas sociais com a criação de
Comitês Estaduais de elaboração do Plano Plurianual (PPA) federal
e apoio para realização de conferências nacionais envolvendo uma
ampla agenda temática.
Todos estes instrumentos foram reduzindo paulatinamente sua
autonomia e campo de atuação. Os primeiros a compreender a es-
tratégia governamental fundado no pacto desenvolvimentista foram
os gestores do Fome Zero. Frei Betto e sua equipe inicial pediram
demissão das funções criticando a política econômica adotada pelo

200 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Ministério da Fazenda e a transferência do controle político do pro-


grama das estruturas participativas para Prefeituras.
O CDES, por seu turno, manteve uma agenda de reuniões e for-
mulações conjuntas de propostas, mas não logrou se constituir num
mecanismo de aproximação do empresariado e sociedade civil aos
mecanismos de tomada de decisão governamental.
Finalmente, a profusão de conferências nacionais de direitos civis
e sociais, que chegaram a ultrapassar em duas gestões Lula a marca
de 70, raramente redundaram em leis ou mudanças orçamentárias.17
Ao contrário, o fordismo lulista reforçou os escaninhos tradicio-
nais de tomada de decisão governamental. A coalizão presidencialista
tomou o lugar de todos mecanismos de ampliação da participação
da sociedade civil no interior do Estado. Os partidos coligados, os
ministérios e agências estatais partilhadas com estas forças, Congresso
Nacional e governadores constituíram os interlocutores privilegiados
do lulismo. Quanto ao empresariado, Ministério da Fazenda, BNDES
e uma rede informal de consultores econômicos passaram a se re-
velar mais eficientes como lócus de negociações e estabelecimento
de agendas desenvolvimentistas que câmaras setoriais e conselhos
consultivos amplos.

Sociedade fragmentada
O fordismo brasileiro formulado pelo lulismo é tardio. Não
ocorre, como já afirmado no início deste capítulo, nas condições de
consolidação da sociedade de massas dos EUA (no período 1930-1950)
e muito menos da Europa do pós-guerra. Esta diferenciação merece
atenção porque redefine as bases da legitimação do lulismo.
Vejamos, portanto, as diferenças entre as estruturas societais
sobre as quais o fordismo europeu norte-americano e europeu se
constituíram e os paralelos com a organização social brasileira.

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 201


LULISMO | Rudá Ricci

O modelo societário imposto pelo fordismo europeu foi forte-


mente influenciado pelos partidos modernos, de massa e operários,
que se inscrevem na lógica política do século XIX e que desaguam,
já na segunda metade do século XX, no modelo neocorporativo.
Trata-se da inclusão das estruturas sindicais superiores (centrais
sindicais, federações e sindicatos nacionais) em arenas de negociação
e elaboração da agenda nacional, forjando mecanismos institucio-
nalizados de participação na tomada de decisões governamentais. O
neocorporativismo foi além desta mera participação na tomada de
decisões e avançou sobre um modelo peculiar de cogestão pública,
uma coalizão governista de alta complexidade. Em outras palavras,
o fordismo europeu incorporou interesses organizados ao processo
político-estatal. Na definição original de Philippe Schmitter,18 o
neocorporativismo forja um sistema de representação de interesses
estruturada em um número limitado de categorias não competitivas,
reconhecidas pelo Estado, conferindo o monopólio da representação.
Constitui-se, assim, uma elite política nacional que estrutura o cor-
porativismo estatal.19 Algo que supera as negociações de interesses
setoriais. Um modelo tipicamente socialdemocrata, bem sucedido
nos países escandinavos e na Alemanha, dirigido pela hegemonia
conquistada nos parlamentos, mas também envolvendo a Áustria,
Holanda e Bélgica num modelo similar, mas que não dependeu da
hegemonia parlamentar socialdemocrata.20 Com a precarização dos
direitos trabalhistas e a desestruturação do Estado de Bem-Estar
Social europeu no final do século passado, Cawson21 sustenta que o
neocorporativismo clássico fundado na cooperação entre interesses
a partir da tutela do Estado (também denominado pelo autor de
“macrocorporativismo” por tratar da agenda nacional), foi substi-
tuído pelo mesocorporativismo, fundindo processos intermediários
de interesses (agenda restrita).
Ocorre que no Brasil, a ascensão do fordismo lulista é arquitetada
justamente num período de superação da agenda minimalista (neoli-
beral ou gerencial, onde os objetivos e lógica de gestão empresarial são

202 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

absorvidos pelos gestores estatais) e reintrodução da cartilha keynesia-


na de ações anticíclicas. O que interessa a este ensaio é observar que a
forte influência do sindicalismo europeu sobre o ideário lulista acaba
por recriar o neocorporativismo europeu sob uma roupagem inusitada,
criando uma sociedade política dual,22 onde a representação sindical
e corporativa de maneira geral não se articula necessariamente com a
cultura fragmentada da sociedade civil do período.23 Neste sentido, o
fordismo tardio brasileiro acomoda a estrutura política neocorporativa
à fragmentação societária hipermoderna ou individualista, um cenário
teoricamente instável e movediço.
O fordismo norte-americano, por seu turno, assentou-se a partir
da lógica societária que, sugiro, se aproxima mais da dinâmica fun-
dada pelo fordismo tardio brasileiro. Trata-se de uma dinâmica social
marcada pelo individualismo, pelo pragmatismo e pelo antiestatis-
mo. Com exceção do antiestatismo, os demais elementos do ideário
social se assemelham ao verificado na base social lulista. Muitos
autores clássicos destacaram este ideário societal norte-americano,
de Tocqueville a Max Weber, passando por Karl Marx e Leon Trotsky.
A ausência de resíduos feudais, o individualismo representado na am-
pla classe média, o nível salarial acima do europeu e o papel da ética
do trabalho (e consumo) como resultado do protestantismo se aliaram
à desconfiança em relação ao poder central dos fundadores da nação
e formuladores da Constituição Federal. Com efeito, o federalismo
estadunidense funda-se em contrapesos que procuram diluir o poder
central como lócus da regulação social. Um ideário que se espraiou
sobre organizações da sociedade civil, partidos políticos e sindicatos.
Os partidos de trabalhadores norte-americanos apoiaram-se
numa agenda que reivindicava mais o igualitarismo fundado num
sistema universal de educação de massas que na luta de classes ou
conflito por interesses de classe.24 Não se tratava de igualitarismo em
função da renda, mas da “garantia de barganha competitiva dentro
do capitalismo”.25

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 203


LULISMO | Rudá Ricci

As organizações sindicais mais combativas eram anarquistas


– portanto, antiestatistas – e se apoiavam em forte preservação do
indivíduo e total estranhamento em relação às instituições públicas.
Lideranças sociais também desconfiavam do ideário da esquerda eu-
ropeu, cultura que se impôs sobre a identidade dos trabalhadores.26
Vale registrar a persistência desses valores políticos, nem sempre
percebidos nas análises sobre movimentos sociais que emergiram
naquele país. Nos anos 1960, o movimento libertário liderado por jo-
vens (e suas organizações, como a Students for a Democratic Society)
criticava acidamente tanto a socialdemocracia (estruturada a partir
da hipertrofia da burocracia estatal) quanto o stalinismo. O ideário
libertário transitava entre o anarquismo, o pacifismo e o radicalismo
democrático que, no caso, significava a garantia da liberdade indivi-
dual e a limitação do controle das instituições de representação (e até
das comunidades) sobre a autonomia dos indivíduos.
Há variantes desta cultura política. Alguns autores sustentam que
haveria uma forte dicotonomia entre individualistas antiestatistas e
liberais.27 Dicotomia que se distingue pela tolerância ao socialmente
diferente e que aceita parcialmente a ação estatal para a promoção
social. Mas, mesmo aqui, a ação estatal se justificaria para garantir
uma situação de equidade na competição entre indivíduos.
Em virtude desta característica cultural e da própria ação repres-
siva do Estado no período da Guerra Fria (que desencadeou o “Red
Scare”),28 os sindicatos norte-americanos sempre foram mais fracos
que a de outros países fortemente industrializados. A partir dos anos
1950, a base de trabalhadores sindicalizados foi estreitando até chegar
a 14% da população economicamente ativa. No final da década de
1980, enquanto a média de sindicalização mundial gravitava ao redor
de 28%, a dos EUA atingia 18% (a média europeia era de 38%).29
Mesmo assim, as lideranças sindicais norte-americanas tenderam a
reprovar a intervenção estatal. A principal organização sindical que
assumia uma postura ideológica mais radical, a Industrial Workers

204 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

of the World (IWW) adotava o ideário anarquista.30 Desde o século


XIX, o sistema judiciário norte-americano procurou desarticular a
ação sindical e condicioná-la ao que indicavam como bem comum.
Durante o New Deal e, em especial, a partir da lei Taft-Hartley,31
foram impostas limitações à ação sindical, reforçando um movimen-
to das instituições daquele país na contenção, ou conformação, da
ação sindical à estabilidade econômica e política do país. Segundo
Flávio Limoncic:32
O Estado americano, por meio de diferentes agências, sempre e
sistematicamente esteve presente no centro da vida associativa dos
trabalhadores, para desarticulá-la, estimulá-la ou impor limites à
sua atuação a partir do que seus agentes definiam, em diferentes
momentos, como o bem comum. (...) Roosevelt sugeriu uma exce-
lente agenda de estudos da história comparada entre New Deal e a
Era Vargas. Temas não faltam: os poderes normativos da National
Labor Relations Board e da Justiça do Trabalho, uma reavaliação
das gramáticas pluralistas e corporativistas de representação dos
interesses, o papel do Estado como provedor social, a publicização
dos grupos de interesses e submissão destes aos interesses públicos
conforme definidos pelo Estado, a visão dos sindicatos como agentes
do bem comum, o papel das lideranças carismáticas...

Uma derivação da cultura antiestatista emergiu a partir do


pragmatismo norte-americano que confluiu na lógica do sistema
partidário dos EUA. A despeito da miríade de partidos políticos
existentes – desde 1824 foram criados mais de 1.100 partidos nos
EUA, sendo 28 autodefinidos como socialistas –, desde a Guerra
Civil, apenas nove candidatos à Presidência obtiveram mais de 5%
dos votos. Partidos não programáticos e o forte federalismo, além
do processo seletivo de candidatos a partir de eleições primárias e
da crença no papel das elites – e não das massas – na condução
das políticas públicas diminuíram a participação do cidadão no pro-
cesso decisório, permanecendo fragmentada toda pressão popular
por interesses específicos, além de orientada para um sistema de

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 205


LULISMO | Rudá Ricci

alerta ou contrapeso ao poder central. O sistema eleitoral de maio-


ria simples, tal como sustentam Lipset & Marks, prejudicaram os
pequenos partidos que pulverizam seus votos ao longo de muitos
distritos eleitorais.
Enfim, trata-se de estrutura organizacional que alia cultura po-
lítica reticente ao papel do Estado, pragmatismo e formação de elites
políticas que apartam o processo decisório em relação à condução de
políticas públicas dos cidadãos comuns.

Há algo em comum com o Brasil contemporâneo


A partir da conformação do fordismo tardio brasileiro, a acelerada
ascensão do consumo das classes trabalhadoras gestou um ideário
individualista e intimista que criou um caldo de cultura muito pró-
ximo ao pragmatismo e individualismo norte-americano forjado, em
especial, a partir dos anos 1950. Há, evidentemente, um diferencial
em relação à exigência de políticas estatais de natureza equitativa,
mas, paradoxalmente, a demanda por proteção estatal dialoga com
grande desconfiança em relação à prática política coletiva, criando
uma combinação improvável entre paternalismo e cinismo político,
focado na ascensão social da família pobre.
Os sinais desta cultura pragmática, conservadora em relação ao
comportamento, individualista, cínica e desconfiada em relação às
instituições de representação social são fartos e já são identificados
em muitos estudos recentes.

Desconfiança, conservadorismo e pragmatismo


como cultura popular brasileira
A pesquisa mais recente sobre confiança e credibilidade nas insti-
tuições realizada no Brasil foi organizada pela Edelman, a Trust Barome-
ter – Estudo de Confiança Edelman.33 A principal conclusão da pesquisa

206 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

realizada em 2013 foi uma profunda crise de confiança e de credibilida-


de nas lideranças atuais de governos e empresas: menos de 30% não
creem que os líderes nacionais falam a verdade em momento de crise.
A confiança nas empresas é maior do que a confiança nos empresários
em 32%; e, nos governos, 28% maior do que nos governantes. Mas o
mais importante é que, uma das hipóteses aventadas pelos analistas
desta pesquisa é que aumentou a confiança em pessoas comuns.
Funcionários e funcionários públicos receberam o dobro do índice
de confiança que dirigentes empresariais, ministros ou funcionários
de alto escalão de Estado.34
A percepção que pessoas comuns são mais confiáveis que lideran-
ças indica uma possível tendência do que Richard Sennet denominou
de “ideologia da intimidade”, ou seja, uma desconfiança generalizada
em relação aos personagens públicos da vida social e recolhimento
aos grupos de referência mais íntimos,35 formados por pessoas que
partilharam momentos de penúria ou sacrifício. Esta parece ser a chave
para se compreender o momento por que passam mais de 30 milhões
de brasileiros que teriam sido alçados à condição de consumidores de
produtos de alto valor agregado nos últimos oito anos no Brasil. Reflexo
do fordismo tardio implantado em nosso país, de 2001 a 2011 a renda
dos 10% mais pobres no Brasil cresceu 550% a mais que a dos 10%
mais ricos, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Apli-
cadas (Ipea). Em pouco mais de uma década, 31 milhões de pessoas
passaram a perceber uma renda familiar entre R$ 1.000 e R$ 4.000,
segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da Repú-
blica (SAE). Destes, 19 milhões saíram da condição de pobreza. Ainda
segundo a SAE, este segmento de renda familiar é o que concentra a
maior quantidade de jovens entre 20 e 24 anos (9,3%). Em termos
raciais, os negros representam 48% deste segmento de consumidores
emergentes. Em sua grande maioria, romperam com o histórico familiar
de pobreza e consumo reprimido. Portanto, a trajetória de sofrimento
familiar e o temor de retornarem à condição de privação se projetam
como preocupações centrais das famílias que compõem este segmento.

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 207


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 1. Proporção da opinião dos entrevistados sobre


igualdade de gênero, segundo faixas de escolaridade (em %)

O impacto da inserção pelo consumo sobre o ideário da maioria


dos brasileiros (em especial, deste segmento social emergente que
representa a maioria da população do país) foi objeto de investigação
recente do Ipea.36 Os dados obtidos reforçam a tese de formação de
valores e opiniões conservadoras em termos de comportamento social,
no Brasil, em especial, a partir dos estratos de renda e instrução me-
nos favorecidos. Com efeito, segundo a pesquisa, 1/3 dos brasileiros
possui valores e opiniões claramente conservadoras em relação ao
comportamento e ampliação dos direitos civis. O tema, relacionado
aos direitos da mulher, que gera maior reação conservadora é o direito
ao aborto (60% são contra). Todos os outros temas (desigualdade
salarial, violência, comando masculino) apresentam posições mais
liberais chegando a 80% das respostas, tal como indica o gráfico
apresentado em seguida:

208 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Gráfico 2. Proporção da opinião dos entrevistados na questão


sobre o homem ter a “última palavra” nas decisões de um casal,
segundo faixas de escolaridade (em %)

O dado fundamental, em relação à igualdade de gênero, é que


quando menor o nível de instrução, maior o ranço conservador (ver
o gráfico que ilustra esta nota, sendo que quanto mais próximo de 2,
mais conservador, e quanto mais próximo de -2, mais progressista).
O próximo gráfico reforça esta constatação: quando questionados se
o pesquisado concorda que o homem dá a última palavra, há relação
direta entre concordância e grau de instrução do respondente:

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 209


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 3. Proporção da opinião dos entrevistados sobre


o direito ao aborto, segundo faixas de renda (em %)

7% dos que possuem nível superior de instrução concordam que


os homens possuem maior capacidade de liderança que as mulheres,
ao passo que entre os analfabetos, 25% apresentaram esta opinião. A
renda também é um divisor de águas quando o tema é aborto, acom-
panhando quase que de maneira espelhada as posições em relação
ao nível de instrução (maior instrução e renda sendo mais liberal;
menor instrução e renda sendo mais conservador):

210 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Gráfico 4. Proporção da opinião dos entrevistados


quanto à capacidade de o cidadão influenciar o governo,
por faixas de escolaridade (em %)

Quanto menos instruído, mais cético é o pesquisado em relação


à capacidade de influenciar os governos:
6% dos brasileiros acreditam que é pelo voto que se influencia os
governos; 39% afirmam que é através de contato direto e apenas 6%
indicam os protestos como principal meio de influenciar politicamente.
Quanto maior o nível de instrução, menor é o destaque em relação ao
voto (47% para os que possuem nível superior de instrução e 67%
para analfabetos) e maior é a crença no contato direto com políticos
(48% e 31%, respectivamente). Protestos, independente do nível de
instrução, não são citados por mais de 7% dos pesquisados como meio
de influenciar os governos.

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 211


LULISMO | Rudá Ricci

Gráfico 5. Proporção da opinião dos entrevistados


sobre as razões da desigualdade entre pobres e ricos,
por faixas de escolaridade (em %)

O gráfico apresentado é ainda mais dramático e elucidativo:


quanto maior a escolarização do brasileiro, maior é o índice dos que
atribuem ao esforço dos pobres com fator de superação da desigualda-
de. Contudo, os menos instruídos são os que avaliam que a superação
da desigualdade só virá com a ação distributiva do Estado. Destaca-
-se, ainda, que entre 22% e 25% dos brasileiros (em todos estratos
de instrução) acreditam que a desigualdade é natural.
A pesquisa realizada pelo Ipea não corrobora a relação entre
renda familiar e posição conservadora, mas destaca a relação grau
de instrução/conservadorismo.
Ocorre que pesquisa realizada pela Confederação Nacional da
Agricultura (CNA), em outubro de 2011 indicou que 1/3 dos membros
da denominada classe C (critérios utilizados pela FGV-RJ) só tinham
cursado os quatro primeiros anos do ensino fundamental. Já o In-
dicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) elaborado pelo Instituto
Paulo Montenegro (IPM) revelava que em 2005, 33% do total de bra-

212 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

sileiros com nível rudimentar de alfabetização (lendo apenas frases e


títulos curtos) eram oriundos da classe C. No relatório do Inaf 2011, à
página 16, sustenta-se que “há correlação entre a renda familiar e o
nível de alfabetismo”.37 Ainda segundo o relatório de 2011, “daquelas
pessoas cuja renda familiar oscila entre 2 e 5 salários mínimos, só
33% atingem o nível pleno, ficando a metade no nível básico, 14%
no rudimentar e um percentual muito pequeno (3%) na condição de
analfabeto”. Metade dos brasileiros que se encontra neste estrato de
renda familiar foi avaliada pelo Inaf 2011 com nível de alfabetização
básico. Assim, existe relação direta entre renda familiar e grau de
instrução e de alfabetização (ou letramento) no Brasil e, pelo exposto
anteriormente, visão de mundo.
Tais indícios – as pesquisas neste campo são recentes e pouco
mais que exploratórias – sugerem que a formação de valores conser-
vadores em relação ao comportamento social, ou cético em relação à
capacidade do cidadão em alterar a situação de desigualdade social
brasileira, relaciona-se com motivações construídas com a inclusão
de massas pelo consumo (ocorrida na última década).
É possível ir além a respeito desta sugestão sobre a cultura po-
lítica conservadora em formação. Se no período de redemocratiza-
ção recente do país emergiram movimentos de massa pelos direitos
coletivos que foram acompanhados de um forte discurso libertário e
participacionista (vide as conquistas inscritas na Constituição Federal
de 1988), neste início de século XXI, as demandas se pulverizaram,
não apenas em múltiplos grupos de interesse, mas em interesses
atomizados de natureza comunitária ou familiar. Uma microfísica
social fundada nas relações de intimidade e familiares que, sustento,
estaria associada à inclusão pelo consumo que não consegue se plas-
mar no mundo do direito ou da política. Ao contrário, forja uma base
de legitimação frágil, altamente utilitarista, da ação governamental
que, por seu turno, sustenta o fordismo tardio, ele próprio frágil, em
virtude da crise internacional da economia. Há algo de incompleto

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 213


LULISMO | Rudá Ricci

no fordismo brasileiro que o faz peculiar pelo grau de despolitização


das populações beneficiadas pelas políticas centrais e pelo movimento
pendular de investimentos produtivos. Mas é, ainda, peculiar porque
o fordismo tardio brasileiro aparenta progressismo em seu discurso
(progresso econômico e social), mas é profundamente conservador
nos laços políticos que constrói para se sustentar.
Descrentes e inseguros, os consumidores populares emergentes
exigem a manutenção do sistema que os assegura o novo status no
mercado, mas são céticos e até mesmo cínicos em relação à política,
pragmáticos e utilitaristas que são. Na outra ponta, o arco de alian-
ças políticas e o alto centralismo estatal deslocam o núcleo gestor
deste fordismo incompleto para acordos instáveis que se rearranjam
periodicamente porque atraem quase todo espectro programático e
de interesses das elites econômicas e políticas do país.
Em poucas palavras, trata-se de um fordismo tardio que se apre-
senta como projeto estratégico para o país, mas que, pelas debilidades
estruturais que o conformam, se revela um eterno rearranjo tático.

214 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Notas:
1 Ver Canclini, 1997.
2 Em sua fase inicial, o fordismo tardio brasileiro se valeu da liderança carismática
de Lula como elemento de construção de sua legitimação.
3 Ver Pochmann (2012). O autor critica o conceito de classe C a partir do argu-
mento que se confunde o conceito de classe social com o de estrato de renda.
No caso, teria havido melhoria de renda da classe trabalhadora e não emergên-
cia de uma nova classe média. Pochmann sustenta que as ocupações formais
cresceram fortemente durante a primeira década de 2000, especialmente nos
setores que têm uma remuneração muito próxima ao salário mínimo: 94% das
vagas criadas entre 2004 e 2010 foram de até 1,5 salário mínimo. Juntamente
com as políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como
elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de
renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho.
“O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente
da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe
média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da
disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas
atuais”. O mercado consumidor de massas, apoiado nas classes trabalhadoras,
estimula a aquisição de planos privados de saúde, educação, assistência e pre-
vidência, entre outros, como consequência de uma reorientação das políticas
públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil.
4 Há outros estudos que indicam o que Richard Sennett denominou de “ideologia
da intimidade”, ou seja, a crença nos círculos íntimos de relacionamento e total
desconfiança em todas ações públicas e órgãos de representação de interesses
coletivos. Lamounier e Souza publicaram uma interessante análise que revela
que 85% dos brasileiros confiam em sua família como principal organismo social
e apenas 43% confiam em amigos, descartando instituições de representação
social ampla (Ver LAMOUNIER; SOUZA, 2010, p. 106 a 108).
5 Lamounier; Souza, op. cit.
6 Ana Paula (2005) sugere que em meados dos anos 1990, forja-se uma dicotomia
entre modelos de administração pública no Brasil. De um lado, o modelo de
Estado Gerencial, ou vertente gerencial, que se alimentou da articulação da
agenda neoliberal, da teoria da escolha racional, fundadas no domínio da ad-
ministração de empresas, buscando aumentar a eficiência estatal. Esta vertente
definiu o que seriam atividades exclusivas de Estado (legislação, regulamenta-
ção, fiscalização, fomento e formulação de políticas públicas) e atividades não
exclusivas (atividades auxiliares e de apoio, serviços de natureza competitiva),
muitas vezes identificando o cidadão como cliente dos serviços estatais. De
outro, a vertente societal, cujas experiências no âmbito do poder local não

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 215


LULISMO | Rudá Ricci

chegaram a atingir esferas superiores da administração pública, e que estaria


filiada ao ideário movimentalista dos anos 1970 e 1980, tendo no orçamento
participativo e na instalação de conselhos de gestão pública seus instrumentos
de maior visibilidade.
7 Não há consenso sobre a unidade conceitual que envolveria os vários autores
que se valeram das teses centrais da Escola da Regulação. Alguns autores sus-
tentam uma corrente liderada por Grenoble, uma segunda corrente de Amsterdã,
uma terceira dos alemães “derivacionistas”, uma quarta norte-americana. Ver
Jessop (1988); Aglietta (1974) e Boyer (1990).
8 Michel Kalecki estudou as flutuações cíclicas das economias capitalistas desenvol-
vidas, tendo o estudo de 1933, intitulado “Esboço de uma Teoria do Ciclo Econô-
mico”, como o mais completo por ele produzido. Neste e em estudos posteriores,
sustenta que as economias capitalistas se desenvolvem dentro de um padrão
cíclico, se expandindo, mas formando um movimento ondulatório, flutuante, ao
longo do tempo, relacionado ao nível de investimento e consumo. Num segundo
momento, entre 1950 e 1960, estudou as economias denominadas naquele período
de subdesenvolvidas, tendo em seu estudo “O Problema do Financiamento do
Desenvolvimento Econômico” um marco em suas análises (publicado no México
em 1954). Comumente se afirma que Kalecki era um autor keynesiano, embora
o correto seja o contrário: várias de suas teses foram incorporadas aos estudos
e plataformas de tipo keynesiano.
9 José Eli da Veiga (1994, p. 45-46) sustenta que o New Deal foi muito mais
que uma ação para estabilização macroeconômica dos EUA, mas aponta di-
vergências analíticas sobre o impacto real da redução da desigualdade social,
embora o aumento de renda dos mais pobres tenha sido significativa. O autor
conclui que o programa rooseveltiano montou mecanismos de alavancagem
do poder de compra por meio de políticas de bem estar, trabalhistas e fiscais,
no que se configurou num “contrato social”.
10 Ver Harvey, 1993.
11 O debate acadêmico sobre as origens do New Deal permanece até hoje. Nos seus
primeiros cem dias, o New Deal implantou o Emergency Banking Act, transferindo
recursos federais para bancos privados; o Federal Deposit Insurance Corporation,
que garantia depósitos bancários; o Securities Act, que regulava o mercado de
ações para combater especulações; o Home Owners Refinincing Act, que regula-
va os pagamentos de hipotecas. Uma gama de leis regulatórias. Também foram
normatizadas a produção industrial e agrícola, ale de ser montada uma ampla
rede de assitência social, como a Civilian Conservation Corps. No final de 1933,
criou a Civil Works Administration para alicerçar obras públicas. O diagnóstico
governamental se pautava pelo desequilíbrio entre produção e capacidade de
consumo. Ver Limoncic, 2009.
12 Harvey, op. cit., p. 125.

216 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

13 Este é o título do terceiro capítulo de seu último livro. Ver Singer, op. cit.
14 Singer, op. cit., p. 126 a 128.
15 Alguns analistas sugerem se tratar de agenda do novo-desenvolvimentismo.
Tal agenda criticaria o laissez-faire da pauta liberal e o autoritarismo da
pauta socialista. O neodesenvolvimentismo (ou neoestruturalismo) sugere o
desenvolvimento endógeno, sem romper com o livre comércio para alcançar
a competitividade internacional. Bresser-Pereira lista cinco elementos desta
agenda: a) abertura comercial; b) planejamento estratégico estatal; c) estabi-
lidade econômica incluindo preços, pleno emprego e equilíbrio da balança de
pagamentos; d) inversão da equação juros elevados e câmbio apreciado; e)
financiamento do desenvolvimento com recursos próprios (evitando atração
da poupança externa para financiar o crescimento). Em suma: mercado livre
pressupõe, nesta perspectiva, Estado forte. Ver Sicsú, Paula e Michel (2005).
16 Em 2012, as centrais sindicais receberam repasses federais da ordem de 160
milhões de reais referentes ao imposto sindical, o dobro das transferências ocor-
ridas em 2008, quando iniciaram os repasses. A maior parte dos recursos fica
com as duas maiores centrais do País, a Central Única dos Trabalhadores (CUT)
e a Força Sindical. Neste ano, a CUT recebeu R$ 44,5 milhões até outubro, e a
Força ficou com R$ 40 milhões. Os recursos representam entre 60% e 80% do
orçamento total das centrais. Destaca-se, ainda, a regulamentação recente da
participação de dirigentes sindicais nos conselhos de empresas estatais federais.
O jeton pago a cada conselheiro chega a 8 mil reais, caso da Petrobras. Há regis-
tros de jetons que variam de 3 mil reais (suplente do conselho da Breasilprev)
a 15 mil reais (conselho da Funpresp).
17 Estudo elaborado por Ana Claudia Chaves Teixeira, Clóvis Henrique Leite de
Souza e Paula Pompeu Fiuza de Lima, em 2012, sobre conferências nacionais
e papel dos conselhos de gestão revela que entre 2003 e 2010 foram realizadas
74 conferências nacionais. Deste total, 21 ocorreram uma única vez, nove
contaram com duas edições, cinco com três edições e outras cinco com qua-
tro edições. Não tivemos 74 conferências com 74 temas diferentes. No total,
foram 40 tipos (temas) de conferências, sendo 28 inéditos, ou seja, tiveram
sua primeira edição realizada nesse período. Foram identificados 59 conselhos
vinculados a diferentes órgãos do Governo Federal, a maioria deles na área
social e ambiental (38 conselhos) e número muito menor (15 conselhos) ligado
a temas de infraestrutura e economia; 39 conselhos de políticas setoriais como
foco a definição de políticas públicas e outros 11 conselhos são de direitos,
ou seja, tratam dos direitos de uma população específica, em geral, grupos
marginalizados. A maior parte dos conselhos é deliberativa, mas quase metade
deles (43%) é apenas consultiva. O levantamento sustenta que como poucas
conferências estão instituídas em lei, a vinculação delas com conselhos ou com
processos de planejamento como o Plano Plurianual (PPA) é quase inexistente.
O que se observa é a realização dos processos desconectada dos calendários

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 217


LULISMO | Rudá Ricci

de formulação e revisão do PPA, dificultando a possibilidade de influência das


propostas nos planos de ação estatal. Entre 2003 e 2010 foram aprovadas mais
de 15 mil propostas e 2 mil moções em 74 conferências nacionais. Os conselhos
não possuem nenhuma vinculação de representação que vai do local para o
nacional. Somente em 21% dos conselhos mapeados há eleições para a escolha
de representantes. Os conselhos são compostos por 2.800 vagas disponíveis para
a sociedade civil e 2.700 vagas disponíveis para pessoas dos governos (federal,
estaduais ou municipais). São mais de 5 mil e quinhentos participantes no total.
Nas conferências nacionais estima-se que participaram entre 2003 e 2010 cerca
de 5 milhões de pessoas. Trata-se de inovação na gestão pública que mantém
inúmeras descontinuidades e baixa capacidade de influência sobre processos
de tomada de decisão estatal.
18 O autor desenvolveu o conceito ao longo dos anos 1970. Ver Schmitter, 1971
e 1979.
19 Segundo Schmitter, ao contrário do corporativismo societal, cujas demandas
endereçadas ao Estado não afetam a autonomia e independência dos atores
sociais, o corporativismo estatal tem no Estado seu protagonista, absorvendo,
arbitrando e domesticando os atores envolvidos no processo de construção e
gestão de políticas públicas. O arbítrio e domesticação como ação estatal apare-
cem como formulação teórica nos estudos de Lehmbruch, como intermediação,
que se aproxima mais do projeto lulista. Ver Lembruch, 1988.
20 Ver Keller, 1995, p. 73 a 76.
21 Ver Cawson, 1986.
22 Conceito já explicitado na introdução deste capítulo.
23 São muitos os estudos recentes que procuram aprofundar a análise das carac-
terísticas societais contemporâneos. Todos confluem para a confirmação da
fragmentação de interesses e utilitarismo, associado ao efêmero, que corroem
a legitimação de instituições modernas. Ver Bauman, 2008 e 2007; Lipovetsky,
2004; Turcke, 2010.
24 Ver Lipset; Marks, 2000, p. 20 e seguintes.
25 Lipset; Marks, op. cit., p. 21.
26 Ideário que se agravou ao longo dos anos e que fez despencar, na virada do
século XX para XXI, o índice de sindicalização naquele país. O Bureau of Labor
Statistics informou que a taxa de sindicalização (público e privado) nos EUA
em 2012 sofreu queda de 400.000 membros apesar de a força de trabalho em-
pregada aumentar em 2 milhões e 400 mil. Com isso, a taxa de sindicalização
do país chegou ao índice de 11,3%, nível mais baixo em 97 anos. Pior, a taxa de
sindicalização no setor privado caiu para apenas 6,6 por cento no ano passado.
Vale lembrar que há meio século, 35% do setor privado era sindicalizado.

218 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

27 Num livro-reportagem recente, o jornalista Rodrigo Alvareza comenta a “América


Profunda” em tempos de governos Obama, sugerindo esta dicotomia, que se
entrelaçam em várias situações, como ocorrem em quase todas as tipologias
sociais. Um país dividido entre “libertários” e “liberais”. Liberal como progres-
sistas e tolerantes em relação às diferenças de comportamento e origem social
e libertário como corrente de pensamento que rejeita governos e Estado e prega
a liberdade individual (todos citam a necessária responsabilidade, assumida
individualmente) que garantiria o uso de armas, a pena de morte, o ataque
ao aborto. Às páginas 114 e 115, Alvarez sugere que “mesmo ao dizer que os
republicanos (...) são muito parecidos com os libertários, a favor de um gover-
no reduzido e o máximo de liberdades individuais, [os republicanos acabam]
ressaltando o lado mais religioso do partido”. Alvarez ilustra, em contrapartida,
o ideário liberal a partir da definição de um democrata solitário que entrevista à
beira de uma rodovia norte-americana (página 116): “alguém que não é cristão,
que pensa por si próprio e questiona o que está acontecendo com o país; são
pessoas que estão conscientes dos problemas com o meio ambiente e que não
estão satisfeitas com essa guerra em que estamos metidos”. Ver Alvarez, 2009.
28 O termo sugere o medo – ou susto – em relação à ameaça comunista ou movi-
mento de esquerda radical, tal como definido pelo governo dos EUA inicialmente,
logo após a revolução russa de 1917 e, posteriormente, logo após a Segunda
Guerra Mundial, em virtude da ação de comunistas nativos que acusados de
se infiltrarem em agências de Estado e aparelhos culturais..
29 Ver Rodrigues, 1998. Ao longo da década de 1990, em virtude das transformações
na base tecnológica de produção e gestão e da ação estatal, houve acentuada queda
de sindicalização mundial. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT),
em 1995, a taxa de sindicalização da Irlanda era de 52%. Contudo, ao longo dessa
década, houve retração em quase 10% dos sindicalizados neste país.
30 Até hoje, a IWW se apresenta como orientada por princípios sindicais revolu-
cionários, centrada na defesa da autogestão operária. Além dos Estados Unidos,
está presente no Canadá, Austrália, Irlanda e Reino Unido e já se articulou no
Japão e Chile. Foi influente no início do século XX e posteriormente reprimida
pelos “Palmer Raids” dos anos 1920, quando o Departamento de Justiça depor-
tou lideranças de esquerda – entre novembro de 1919 e janeiro de 1920 – sob
a liderança do Procurador-Geral Mitchell Palmer (500 cidadãos estrangeiros
foram deportados no período). Nos anos 1960, a IWW retomou suas ações.
31 Lei assim popularizada em virtude da sua defesa pública realizada pelo senador
Robert Taft e pelo deputado Fred Hartley Jr. Foi uma lei de caráter antisindical e
antigreve aprovada em 23 de junho de 1947 pelo Congresso dos Estados Unidos.
O título oficial desta norma é Lei entre Administração e mão de obra e impediu
os sindicatos de trabalhadores a se recusarem a negociar, coagir trabalhadores
a se sindicalizar, impor contribuições excessivas, forçar contratação de sindi-
calizados, greves de solidariedade, entre outras regras de conduta sindical.

Uma hipótese interpretativa: o fordismo tardio 219


LULISMO | Rudá Ricci

32 Limonic, 2009, p. 251 e 252.


33 Desenvolvida desde 2001, envolvendo empresas, governo, ONGS e mídia em
pesquisas anuais aplicadas em 26 países.
34 A pesquisa Edelman revela outra situação que merece atenção, embora fuja
do escopo deste ensaio. No Brasil, a mídia foi considerada a instituição mais
confiável em 2013. Entre 2007 e 2012, o primeiro lugar foi das empresas. Elas
estão em segundo lugar, no levantamento deste ano. Em terceiro vêm as ONGs
(que aparecem em primeiro lugar na pesquisa global, mundial, desde 2007) e,
em último, o governo. Corrupção, falta de transparência e incompetência foram
os motivos alegados pelos participantes da pesquisa para explicar a queda de
confiança nas instituições. No caso das ONGs, a divulgação de casos de envol-
vimento de algumas organizações com desvio de recursos públicos criou uma
percepção negativa, que se generalizou. Também há dificuldade em identificar
o trabalho realizado com as entidades, não raro se confundindo a paternidade
com a figura do patrocinador (público ou privado) da ONG
35 Ver Sennett, 1988.
36 A pesquisa de opinião “Valores e Estrutura Social no Brasil”, realizada em 2012,
está inserida no âmbito do Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips/
Ipea), adotando como foco três temas centrais: democracia e participação polí-
tica; relações de gênero e relações raciais. A investigação contou com amostra
de 3.772 domicílios, com margem de erro de 5%.
37 Relatório disponível em: <http://www.ipm.org.br/download/inf_resulta-
dos_inaf2011_ver_final_diagramado_2.pdf>.

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222 PARTE I: O LULISMO


parte ii

DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS


À NOVA CLASSE MÉDIA
Capítulo 1
OS LIMITES DO
ANTI-INSTITUCIONALISMO

Preâmbulo: a transgressão
que não rompeu com a ordem
O conceito de movimento social surgiu a partir de uma leitura
conservadora e perplexa da emergência do mundo urbano-industrial,
pela pena de Lorenz Von Stein, em 1840. Este autor defendia a ne-
cessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo
dos movimentos sociais, em especial, ao estudo do movimento ope-
rário francês e do socialismo. O tema surge no bojo de um processo
de estranhamento das instituições públicas e de alguns segmentos
urbanos frente ao acelerado processo de industrialização da Europa,
principalmente na França e Rússia. Perplexidade que acabou por
definir um olhar sobre os movimentos sociais: movimentos que re-
agiam ao sentimento de marginalização (Barrington Moore Júnior
chegou a elaborar o livro Injustiça que procurou definir motivações
populares para várias revoluções a partir deste sentimento de mar-
ginalização e injustiça) ou mesmo práticas corporativas, muitas
vezes fundadas no clientelismo. Desta última vertente, alguns au-
tores denominaram vários movimentos sociais contemporâneos de
metacorporativistas. Philippe Schmitter distinguiu corporativismo de
Estado (cujas associações de interesse são dependentes do Estado e
por ele penetradas) de corporativismo societário (cujas associações

225
LULISMO | Rudá Ricci

são autônomas e penetram no Estado). Maria Hermínia Tavares de


Almeida sugeriu que tais organizações corporativas seriam instru-
mentos de intermediação de interesses em lugar de representações,
na medida em que expressam interesses próprios e desempenham
papel ativo na definição dos interesses de seus membros, assumin-
do o que a autora denomina de governo privado. Todo este debate
é para entendermos que, aos poucos, as práticas dos movimentos
sociais, principalmente os brasileiros, foram se alterando dos anos
1980 para cá. Nasceram dentro da descrição clássica da sociologia,
como mobilizações não institucionalizadas de segmentos sociais que
buscavam direitos. Mas foram se institucionalizando, tornando-se
organizações hierarquizadas, com fontes de financiamento susten-
táveis, com corpo diretivo e administrativo estáveis, participantes
(indiretos ou não) de esferas de elaboração de políticas públicas,
no interior do Estado.
Maria da Glória Gohn escreveu o que foi possivelmente o estudo
mais exaustivo publicado no Brasil sobre as várias teorias de movimen-
tos sociais, o livro Teoria dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos
e Contemporâneos. Neste livro, cuja primeira edição data de 1997
(e sua 7ª edição foi publicada em 2007), a autora distinguiu as teo-
rias europeias das norte-americanas. Desde o início, sugeriu que a
produção brasileira sobre o tema foi mais empírica-descritiva que
analítica, em virtude da importação estandartizada dos conceitos
produzidos no exterior. Os norte-americanos, fortemente influencia-
dos pelo funcionalismo de Talcott Parsons, focariam as análises nas
escolhas racionais e mobilização de recursos, nos ciclos de protestos.
A Escola de Chicago dobraria sua atenção sobre a disfunção da ordem,
retomando o conceito de anomia, elaborado por Émile Durkheim.
Os europeus focariam, segundo a autora, na identidade coletiva, no
projeto e cultura política. Estariam mais vinculados às abordagens
neomarxistas ou vinculados aos conceitos de novos atores e direitos
sociais (que daria emergência ao conceito de “novos movimentos
sociais”, muito empregado no Brasil nos anos 90).

226 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Mas destaca, em todas vertentes, um consenso: movimentos


sociais são fluídos, formados a partir de espaços não consolidados
das estruturas e organizações sociais.
Ocorre que nos anos 1990 este conceito entrou em declínio nos
estudos acadêmicos. Mas permaneceu como nomenclatura de muitas
forças sociais, em especial, as vinculadas aos movimentos sociais dos
anos 1980. O conceito de sociedade civil vai substituindo a centrali-
dade em vários estudos e investigações sociais. No Brasil a mudança
parece fazer ainda mais sentido porque muitos movimentos sociais
se institucionalizaram. Basta uma breve olhada sobre as coletâneas
que foram publicadas recentemente. Leonardo Avritzer organizou uma
coletânea sobre A participação em São Paulo, procurando analisar
vários aspectos da cultura associativa da maior cidade do país. Muitos
autores (onde me incluo) publicaram nesta coletânea estudos que
revelam uma forte institucionalização e segmentação política e social
nas experiências associativas. Evelina Dagnino, em outra coletânea
(Democracia, sociedade civil e participação) dedica parte significativa
dos estudos para avaliar justamente o processo de institucionaliza-
ção da participação da sociedade civil nas experiências de gestão
participativa (como orçamento participativo). Mesmo na América
Latina, vários estudos (como o de Christian Adel Mirza, Movimientos
sociales y sistemas políticos en América Latina, publicado pela Clac-
so), relacionam nitidamente o antes conceito de movimentos sociais
(não institucionalizado) a partir do Estado e instituições políticas dos
países do continente.
Daí emerge a dúvida: a fragmentação social em curso e a amplia-
ção (ao menos formal) da participação da sociedade civil em esferas
públicas (no interior do aparelho de Estado, em especial no Brasil) te-
riam reformatado o que antes denominávamos de movimentos sociais?
Segundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros adotam algu-
ma modalidade de participação institucional da sociedade civil na
determinação de prioridades orçamentárias na área social. Motivados
ou premidos pelas exigências constitucionais, pelos convênios com

Os limites do anti-institucionalismo 227


LULISMO | Rudá Ricci

órgãos federais (dados importantes fornecidos pelo IBGE revelam que


governadores e ministérios lideram a criação de conselhos de gestão
pública paritários, muito acima das ações de prefeitos brasileiros) e
do Ministério Público, os prefeitos de todo o país institucionalizam
(e, muitas vezes, as traduzem ou interpretam a partir de seu ideário
peculiar) vários mecanismos de gestão participativa na deliberação
de suas políticas locais. Se localidades rurais, conselhos de desen-
volvimento rural sustentável ou de meio ambiente ou de bacias
hidrográficas pululam. Se localidades urbanas, conselhos de saúde,
assistência social e direitos da criança e adolescente proliferam.
E onde estariam os movimentos sociais, que antes exigiam inclusão
social e fim da marginalização política? Estão todos nesses conselhos
e novas estruturas de gestão pública.
Ao ingressarem no mundo e lógica do Estado, poderiam construir
uma nova institucionalidade pública. Já existiam experiências nesse
sentido, como a gestão de reassentamentos rurais em casos de cons-
trução de hidrelétricas, gestão autônoma desses empreendimentos a
partir do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Mas parece
que tais experiências se diluíram. Movimentos sociais foram engolidos
pela agenda de Estado. E por sua lógica burocratizada.
A multiplicação das conferências municipais, estaduais e federais
que ocorreram sob a gestão Lula não alteraram o processo de elabora-
ção das políticas públicas do país e nem mesmo foram incorporadas às
peças orçamentárias da maioria dos entes federativos. Não alteramos
a lógica de funcionamento e de execução orçamentária efetivamente.
O aumento da participação da sociedade civil na gestão pública
também não ensejou qualquer mudança na estrutura burocrática al-
tamente verticalizada e especializada do Estado brasileiro, em todas
suas três esferas executivas.
Enfim, o ideário anti-institucionalista dos movimentos sociais
brasileiros dos anos 80 converteu-se rapidamente em ação priorita-
riamente focada no Estado que atacavam. Talvez, por inconsistência
teórica e programática, pautados pela mera negação ou sentimento

228 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

de injustiça. Mas, talvez, por excesso de partidarização de todos


os movimentos sociais. Nos anos 1980, não por coincidência, Frei
Betto sugeria que sindicatos, partidos e organizações de base eram
ferramentas de um todo, que denominava de movimento popular.
Tal concepção fomentou a criação da Articulação Nacional de Movi-
mentos Populares e Sindicais (Anampos), articulação nacional que
congregava sindicatos de oposição à estrutura oficial do sindicalismo
nacional e movimentos sociais. Com a criação da CUT, em 1983, a
Anampos foi minguando. E com a conversão da CUT à conquista
da estrutura sindical oficial que criticava (confederações nacionais
e federações estaduais), em meados dos anos 1990, a Anampos se
tornou anacrônica. O mundo sindical achou seu caminho alterna-
tivo ao ideário dos movimentos sociais. E os movimentos sociais
articularam fóruns e redes e se atiraram na tarefa de formalizar as
estruturas de gestão pública participativa conquistadas na Constitui-
ção de 1988. Mas, a partir das estruturas criadas pelo lulismo suas
lideranças subsumiram à lógica do Estado. E não conseguiram mais
se livrar dela. Basta analisarmos as pautas das conferências nacionais
de direitos. São, com raríssimas exceções, a agenda definida pelo
governo federal. Fenômeno sociológico da maior importância já que
a literatura especializada caracterizou os movimentos sociais brasi-
leiros dos anos 1980 como anti-institucionalistas. Recusaram relações
políticas perenes com qualquer instituição política, de governos a
parlamentos. Marcados pela “legitimação pela mobilização social” ou
“mobilismo”, tais movimentos adotaram e aprofundaram o ideário
das comunidades eclesiais de base, do seu horizontalismo organi-
zativo (em oposição às estruturas verticalizadas das organizações
populares dos anos 1960) aos mecanismos de democracia direta (o
assembleísmo) para tomada de decisão. Nos anos 1980, as organi-
zações não governamentais (ONGs) caminharam, até determinado
momento, como apoio técnico aos movimentos sociais emergentes.
Recebiam financiamento externo, de organizações vinculadas à
social-democracia ou igrejas progressistas, que apoiavam o processo
de redemocratização do Brasil.

Os limites do anti-institucionalismo 229


LULISMO | Rudá Ricci

Contudo, a queda do Muro de Berlim gerou uma nova leitura


da geopolítica de investimentos externos. O Leste Europeu passou a
demandar ajuda para consolidação de sua tênue democratização, tema
similar ao Brasil do início dos anos 1980. Com o fortalecimento de
toda uma nova institucionalidade pública, do novo papel do Ministério
Público aos conselhos de gestão pública, do fortalecimento das centrais
sindicais à municipalização de inúmeras políticas sociais, a África
despontou como continente mais necessitado de apoios financeiros.
ONGs e movimentos sociais ingressaram, pouco a pouco, no
mundo das técnicas e tecnicalidades da administração pública. Sa-
beres específicos, como acompanhamento e execução orçamentária,
elaboração de projetos assim como de indicadores de monitoramento
de execução de políticas públicas, produção de leis de iniciativa
popular foram alguns dos novos temas da pauta das organizações
populares do país. Obviamente que o impacto sobre as lideranças
sociais foi imenso. Passaram a adotar um discurso mais técnico, a se
debruçar sobre a lógica errática do orçamento público e da execução
de ações governamentais.
Tudo ficou ainda mais complexo com o monitoramento pro-
gressivo das agências de financiamento externo. A palavra de ordem
passou a ser a observação de resultados concretos, de mudança da
qualidade de vida da base social atingida por ações de ONGs finan-
ciadas por entidades europeias, em especial, da Alemanha, França e
Holanda, mas também do Japão, EUA, Canadá, entre tantas. Ações
de natureza simbólica, que reafirmavam identidades e crenças, sem
resultado concreto correspondente, passaram a ser questionadas.
Este é o caso das romarias de agricultores familiares que, em muitas
situações, foram questionadas por agências financiadoras externas,
identificadas como ações de baixa efetividade na mudança social.
Agendas até então tipicamente europeias, como as agendas ambien-
talistas e direitos da mulher, passaram a fazer parte obrigatória dos
projetos de entidades brasileiras.

230 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Tais mudanças de rumo geraram alterações importantes. Uma


delas foi a aproximação organizacional de ONGs e movimentos sociais.
Muitos movimentos sociais se estruturaram, criaram um corpo técnico
permanente, adotaram a figura do porta-voz oficial, aparelharam-se
de uma parafernália tecnológica. Ficaram mais ONGs.
As ONGs, por sua vez, esboçaram teorizar sobre as novas formas
de representação social, num mundo cada vez mais fragmentado.
Silvia Maria Roesch, num artigo intitulado “Gestão de ONGs”, sugere:
A gestão das organizações não governamentais passou a desper-
tar interesse nos meios acadêmicos nos últimos anos, tendo em
vista o crescimento e a diversificação do setor e as mudanças
organizacionais observadas nestas instituições. Por um lado, a
descentralização na gestão de políticas sociais pelo Estado abriu
espaço para a expansão do setor. Por outro lado, a redução dos
financiamentos de agências internacionais provocou a busca de
alternativas de autossustentação destas organizações, ora por
meio de atividades comerciais, ora parcerias com o setor privado,
ou com o Estado. (...) Marçom & Escrivão Filho (2001) referem
tendências diversas apontadas na literatura: por exemplo, Mendes
(1997) constata em pesquisa junto a ONGs que seus modelos or-
ganizacionais não estão ajustados nem para o presente, nem para
o futuro, enquanto Diniz (2000) relata a transposição de técnicas
gerenciais empresariais, via a atuação de ex-executivos da área
privada, consultores e empresas financiadoras. Ainda, vários
outros (citados em Marçom & Escrivão Filho, 2001) mencionam
a relutância destas organizações em adotar modelos gerenciais,
havendo como que uma aversão ao modelo burocrático. (...)
O papel das ONGs está em transformação no Brasil. Elas nasceram
nos anos 1970, como movimentos sociais relativos a direitos civis
e combate à pobreza, operando fora do establishment, com uma
atitude altamente crítica em relação ao Estado e ao setor privado
(BAILEY, 1999, p. 110). Hoje, sofrem pressões para buscar novas
formas de sustentação financeira e reduzir sua dependência
das agências financiadoras internacionais (cujos recursos estão

Os limites do anti-institucionalismo 231


LULISMO | Rudá Ricci

sendo redirecionados para outros contextos), e, para tanto, têm


necessidade de fortalecer relações com outros organismos pri-
vados ou estatais. Por outro lado, há, agora, mais espaço para
a sua expansão, dada a tendência de descentralização na gestão
das políticas sociais, (desde a Constituição de 1988) pelo Esta-
do, sendo a proposta mais recente, a parceria com o Estado no
tratamento de questões sociais, formalizada pela Lei no 9.790, de
23 de março de 1999, que define as Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público (Oscips). Comenta-se sobre o risco das
parcerias virem a desvirtuar os papéis originais de representação
e defesa de interesses, perda de independência política, além de
causar excessiva burocratização. O desafio, portanto, é encon-
trar formas de gestão que se adequem às particularidades destas
organizações, sua história, seu papel na sociedade, e que “lhes
permitam fazer o seu trabalho, mantendo seus próprios valores e
prioridades” (LEWIS, p. 138).

Outro artigo apresenta as contradições relacionadas à repre-


sentatividade social das ONGs (Movimentos Sociais, as ONGs e a
militância que pensa, logo existe, de Adilson Cabral, Universidade
Estácio de Sá/RJ):
O fato é que, ao mesmo tempo em que se autonomizam, criando
seu discurso próprio de identidade e sustentação, as ONGs tam-
bém afirmam uma estrutura que se assemelha à de uma espécie
de “pequenas empresas que funcionam no contraponto do mer-
cado”, onde a cooperação para o desenvolvimento se transforma
em mercadoria. Seus trabalhadores, por sua vez, aqueles que
sustentam os projetos, a cooperação para o desenvolvimento, e em
consequência, a própria continuidade das ONGs, estabelecem com
elas uma relação de troca de dinheiro pela força de seu trabalho,
que exige, além de um conhecimento específico, uma dedicação
quantificada em horas de atuação e resultados. (...) Como disse-
mos anteriormente, as ONGs não substituem politicamente, nem
mesmo falam em nome dos movimentos sociais, mas sim incor-
poram a representação do social para a opinião pública através da
mídia e institucionalmente em alguns espaços multilaterais, tais

232 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

como fóruns e conselhos em níveis estadual e nacional. Passam


a ser vistas pelos governos e órgãos multilaterais como interlo-
cutores privilegiados para a implementação de projetos sociais.
Desta forma, cooperar num projeto oriundo das diretrizes de um
determinado governo resulta na cumplicidade com este, prática
que não é conveniente para um setor que se pretende autônomo
no interior da sociedade civil.

Enfim, as ONGs se profissionalizaram e iniciaram uma importante


disputa pelo mercado, mesmo se opondo ideologicamente a esta pos-
sível sina. E o mercado de captação de recursos foi se oligopolizando.
As ONGs também se fragmentaram.
A aproximação organizativa das estruturas de ONGs e movimen-
tos sociais, transformando aos poucos muitos movimentos sociais
em organizações, afastaram a possibilidade das ONGs se vincularem
aos movimentos sociais como meras assessorias (já que os próprios
movimentos sociais possuem as suas assessorias permanentes). Por
seu turno, o ideário de engajamento social vem se rompendo com a
busca de sobrevivência financeira. Finalmente, em virtude da acele-
rada fragmentação social dos últimos vinte anos, agendas por grupos
de interesses que dificultam mais e mais a elaboração de uma agenda
nacional, surgem contradições abertas em relação à realidade social
e às possibilidades abertas pelos fóruns nacionais e redes temáticas.
Uma encruzilhada política e existencial. ONGs e movimentos sociais
têm, hoje, mais a compartilhar que antes. Mas, paradoxalmente,
enfrentam dificuldades de aproximação por conta de um “mercado”
político e de financiamento cada vez mais complexo e impessoal.
Este é o pano de fundo dos caminhos e descaminhos que afastam
e aproximam o lulismo de movimentos sociais que o alimentaram.
Uma relação de identidade e desconfiança. Comecemos por entender
o que foram em sua origem.

Os limites do anti-institucionalismo 233


LULISMO | Rudá Ricci

Do comunitarismo rural à institucionalidade pública


Em um texto de 1999, Telles parece fazer um ajuste de contas
com as análises que permearam os estudos sociológicos sobre os
denominados novos movimentos sociais dos anos 1980. Ao comentar
seus estudos daquele período, recorda a identidade teórico-política
que envolveu parte significativa dos cientistas sociais do período:
Quando então, como tantos outros na época, me via imbuída do
que parecia ser a novidade dos movimentos sociais que surgiram
e se multiplicaram no começo dos anos 80. (...) As primeiras
articulações populares e operárias que então surgiam, tímida
e fragmentariamente, e que depois desaguaram nas grandes e
multifacetadas mobilizações na virada da década, me pareciam
os registros tangíveis da construção (ou invenção) de espaços
públicos nos quais a ação aparecia ou podia aparecer, por entre
a trama que construía a sua visibilidade, na sua capacidade de
“interromper o ciclo da natureza” e “dar início a um novo começo”
(TELLES, 1999, p. 2 ).

Logo depois, neste mesmo texto, a autora redefine suas hipó-


teses de análise sobre os movimentos sociais, reafirmando, agora, o
legado da tradição autoritária por onde transita a luta pela cidadania
brasileira. Um balanço que, aos poucos, parece envolver mais autores
que se empolgaram com “o raio em dia de céu claro”.
A trajetória da sociologia brasileira sobre movimentos sociais
perfaz um caminho tortuoso, de tentativa de compreensão de um
mundo estranho e comovente, das comunidades rurais e urbanas,
palco de uma persistente e aguda exclusão econômica e cultural,
justamente porque procurou, naquele momento, superar o tema
central das teorias formuladas ao longo dos anos 1930 e que chegou
incólume aos anos 1960. Autores que se tornaram emblemáticos
do olhar sociológico (da primeira metade do século passado) sobre
a nação apoiaram sua agenda de pesquisas a partir da constatação
de nossa herança agrarista, marcada pelo patrimonialismo. Dessa

234 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

vertente afloraram ao menos três linhas de interpretação: o da invia-


bilidade de constituição de qualquer consciência cidadã, de natureza
participacionista (em Oliveira Vianna e Gilberto Freire); o da neces-
sária ruptura política com essa ordem social para que pudéssemos
construir um projeto de desenvolvimento nacional (em Caio Prado
Júnior) e; aquela que propunha a constituição de um bloco nacional-
-industrializante, como fator exógeno à modernização do mundo rural
(em Juarez Brandão e Fernando Henrique Cardoso). Em quase todas
análises do período, as comunidades rurais não se apresentavam
como portadoras de projeto social próprio e nem mesmo o operaria-
do em formação. Vinculavam-se atavicamente à grande propriedade
fundiária ou libertavam-se desta dominação política através de atores
sociais exógenos ao seu imaginário.
Contudo, no final dos anos 1970 e início dos 1980, as profundas
alterações na paisagem rural brasileira, provocadas por grandes in-
vestimentos públicos na conformação de uma rede de abastecimento,
em uma extensa malha viária e, principalmente, na promoção de um
padrão tecnológico que se apoiava na conformação de complexos
agroindustriais desarticularam a trama social analisada na primeira
metade do século passado. A sociabilidade tradicional foi estilhaçada,
fragmentando as comunidades rurais em inúmeras categorias sociais:
assalariados temporários, assalariados permanentes, agricultura fami-
liar vinculada à agroindústria, além das categorias tradicionais, todos
sofrendo ainda outras clivagens definidas pelo tipo de produto a que
estavam vinculados, estruturados em função do grau de especialização
e complexidade da cadeia produtiva.
A pauperização e a expropriação de uma ampla camada da popu-
lação brasileira foram a senha pela qual se articulou uma quantidade
expressiva de movimentos sociais e a resistência daqueles que se
sentiam desfiliados sociais (Cf. conceito em CASTEL, 1999).
Apressadamente, vários autores perceberam nesses movimentos
sociais uma novidade que rompia com a lógica anterior.2 Expropriados
dos laços de dominação tradicional, entrincheirados em mobilizações

Os limites do anti-institucionalismo 235


LULISMO | Rudá Ricci

autônomas, novas práticas e discursos forjavam uma identidade pró-


pria, um novo mundo rural. Nessas análises, o conceito de autonomia
aparecia como elemento articulador.3
A nova lógica social e política que era revelada nesses estudos
sugeriam uma ruptura não apenas com o agrarismo, mas com toda
institucionalidade pública. Eram movimentos, em si, anti-institucio-
nalizantes, marcados por um forte sentimento de autonomia, pela
coesão comunitária e pelo discurso místico-libertário. Vários autores
perceberam o papel das linhas pastorais vinculadas à Teologia da
Libertação como elemento estruturante do discurso das novas lide-
ranças que emergiam nos grotões do território nacional (RICCI, 1999).
A orientação teórica dos autores que forjaram o conceito de novos
movimentos sociais como denominador comum das ações políticas,
muitas vezes, reivindicatórias das classes trabalhadoras no final dos
anos 70, adotava como pano de fundo o processo de redemocratiza-
ção do país.4 Era um período em que a agenda estatal recebia forte
demanda popular, coincidente com o momento em que o país ingressa
numa profunda crise fiscal.
Em virtude dessa explosão de demandas, alguns autores brasilei-
ros denominaram esse período de a Era da Participação (GOHN, 1997).
A sociedade civil brasileira ganhou contornos mais nítidos, distan-
ciando-se da situação de extrema subordinação aos aparelhos estatais
e à lógica patrimonialista, marca da cultura política nacional. Em
outras palavras, no bojo do processo de redemocratização do país,
surgiram novos movimentos sociais, baseados e fundamentados, em
sua maioria, na Teologia da Libertação.5
No meio acadêmico, esses movimentos passaram a ser tema
central de estudos sociológicos e uma corrente teórica foi se esbo-
çando. A novidade, no caso, residiria no fato de eles romperem com
o projeto desenvolvimentista das organizações sindicais e partidárias
de esquerda dos anos 1950 e 1960 que tinha como um dos eixos
articuladores a subordinação de temas locais à pauta nacional de

236 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

reformas. Assim, os movimentos sociais do período anterior teriam


se tornado, para esta corrente analítica, uma espécie de correia de
transmissão das orientações gerais de partidos políticos e órgãos de
representação nacional. Os novos movimentos sociais, dos anos 80,
teriam rompido esta tradição, inaugurando a valorização política do
local de trabalho e de moradia, rompendo com a subordinação aos
macroorganismos gerais, questionando as formas burocráticas de re-
presentação. A elaboração acadêmica apoiou-se em estudos e teorias
que valorizavam a microfísica do poder, tendo Cornelius Castoriadis –
ao lado de Michel Foucault – como um dos autores mais citados. Por
outro lado, muitos movimentos sociais apoiaram-se em formulações
teóricas originárias de setores da Igreja Católica que se amparavam
nos conceitos da Teologia da Libertação.
Do ponto de vista teórico, descortinava-se uma nova possibilidade
analítica que se constituía também numa novidade social e que tinha
como projeto superar os conceitos explicativos da cultura política
nacional que tinham no agrarismo sua expressão mais acabada. Em
outras palavras, as novas teorias sociológicas que pretendiam explicar
os novos movimentos sociais constituíam, per si, um novo movimento
teórico, fundado num olhar eminentemente urbano.
Contudo, os movimentos sociais que emergiram nos anos 1980
não superaram tão radicalmente a cultura política anterior, tal como
advogavam os seus teóricos e ideólogos. Por caminhos os mais tor-
tuosos, muitos desses movimentos negaram as agências estatais,
em virtude de sustentarem que esta institucionalização os levaria a
cooptação e implantaram mecanismos de democracia direta nos pro-
cessos de tomada de decisão. Mas, pouco a pouco, reaproximaram-se
do Estado, elegendo-o como principal interlocutor de suas demandas.
Em suma, a crítica verbal nem sempre era acompanhada por uma
formulação que rompia com a lógica corporativa e clientelista im-
posta pela lógica política dos atores estatais. Pelo contrário, a lógica
tradicional permanecia, atualizada por novas estratégias adotadas
pelos movimentos sociais ou sofrendo uma ação transformista por

Os limites do anti-institucionalismo 237


LULISMO | Rudá Ricci

parte das ações estatais. Mas, no essencial, permaneciam. Grande


parte dos autores acadêmicos que sustentavam a novidade dos movi-
mentos sociais adotou como conceito articulador e de análise teórica
as matrizes discursivas de suas lideranças. Não por acaso, a análise
restrita ao discurso formulado induziu muitos estudos de caso a con-
fundir o objeto de desejo com o desejo do objeto estudado. Em suma,
o discurso teria sido mais inovador que as práticas concretas.
Comecemos por entender qual a base empírica para os autores
em questão destacarem o anti-institucionalismo como elemento ino-
vador dos movimentos sociais analisados.
Ilse Sherer-Warren, ao estudar a emergência dos novos movi-
mentos sociais no final dos anos 1970, apreende alguns elementos
básicos em seu discurso que constituem a base de sua identidade e
sua organização: democracia de base, livre organização, autogestão,
direito à diversidade, respeito à individualidade, identidade local
e regional, liberdade individual associada à liberdade coletiva. 6
A nova identidade social sustenta a autora, teria se alimentado do
sentimento de exclusão e de injustiça, estando diretamente relacionada
com a geração de novos direitos, de categorias sociais em processo
de conformação. A identidade política em formação, por seu turno,
se alimentaria daqueles elementos que constituíam a sociabilidade
comunitária, base da Teologia da Libertação: ausência de autoridade
discriminada e de hierarquia de funções, relações afetivas e contra-
prestação de serviços na comunidade.
Esses elementos aparecem nas manifestações e nas novas formas
de mobilização social a partir da segunda metade da década de 1970.
Movimentos que, segundo Ilse Sheren Warren, eram portadores de um
discurso que valorizava a participação ampliada da base, via instala-
ção de mecanismos de democracia direta. Um contraponto possível
a essa hipótese explicativa seria a interpretação que os movimentos
sociais procuravam reconstruir a sociabilidade comunitária, muitas
vezes apoiada na sua experiência anterior no meio rural. Assim, ao

238 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

contrário de apontar para mecanismos de democracia direta (cuja


motivação é a racionalidade fundada em objetivos acordados entre os
indivíduos), poderíamos aventar a possibilidade de reconstrução de
laços comunitários (cuja motivação é afetiva, fundada em elementos
morais, tradicionais). Outra possibilidade analítica seria identificarmos
certo hibridismo entre a tradição e o discurso racional. Mas, por aí,
não se sustentaria o conceito de novos movimentos sociais.
A autora identifica a origem desse discurso nas elaborações
que a Igreja Católica então realizava, em especial nas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), que unificavam a multiplicidade de movi-
mentos surgidos no país, a partir da categoria pobre. Essa categoria
sedimentou a unidade entre os excluídos do desenvolvimento, e foi a
base para se pensar um projeto de sociedade fundado numa proposta
democrática que mantinha distância e desconfiança em relação aos
mecanismos de representação e, por conseguinte, à institucionalidade
pública vigente. Daí a emergência de mecanismos de democracia direta
– quando muito, formas de representação delegada, que limitavam a
autonomia dos representantes7 – que se multiplicaram em inúmeras
assembleias e plenárias.
Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano e um dos principais formu-
ladores da Teologia da Libertação, sugere uma articulação peculiar
para a ação política, que será adotada pelas CEBs no Brasil. Seria
ela: 1. o ataque à violência institucionalizada contra o povo pobre
latino-americano; 2. a prática educacional libertadora, que permita
ao povo tornar-se sujeito do próprio destino; 3. a adoção do rumo ao
socialismo, para promoção da propriedade social. Em suas palavras:
A partir da verificação da aspiração, geralmente frustrada, das
classes populares a participarem das decisões que afetam a socie-
dade global, chega-se a compreender que aos pobres é que toca
o papel de protagonista em sua própria libertação: primeiro aos
povos pobres e aos pobres do povo é que compete realizar sua
própria promoção. Repelindo todo tipo de paternalismo, afirma-se
que a transformação social não é mera revolução para o povo,

Os limites do anti-institucionalismo 239


LULISMO | Rudá Ricci

mas o próprio povo – mormente os setores camponeses e operá-


rios, explorados e injustamente marginalizados – é que deve ser
agente de sua própria libertação. Essa participação exige tomada
de consciência, por parte dos oprimidos, da situação de injustiça
(GUTIÉRREZ, 1976, p. 105-106).

Percebe-se, portanto, uma concepção que é quase um programa


de ação política, tendo o povo marginalizado como protagonista da
transformação social iniciando-se por uma programação educacional
articulada a partir dos agentes pastorais, engajados na libertação po-
pular, rumo ao socialismo. Não por acaso, grande parte desses agentes
pastorais mergulham nos estudos de Gramsci, dado que fica evidente
que, em países marcados pelo transformismo e pela ausência de ruptura
com as tradições agrárias, caberia às classes populares – tal como ad-
voga Gutiérrez – o papel de protagonista das transformações políticas,
muitas vezes liderando uma agenda de defesa dos direitos individuais
e sociais que teriam sido bandeira das revoluções burguesas clássicas.
Tal conceituação fundia diversos agrupamentos sociais sob essa
identidade política difusa de pobres marginalizados da sociedade. Daí
nasce, pela negação desse sistema de exclusão política, uma forma
organizativa – que podemos denominar de anti-institucionalista, por
se autodefinir como exclusivista – própria das comunidades pobres,
baseada na participação direta das bases em reflexões, decisão e
execução, diminuindo a distância entre elas e a direção. Trata-se
de um modelo fundado na radical distribuição de poder no grupo e
autonomia frente ao Estado e partidos políticos.
Alguns estudos que não adotavam a mesma filiação teórica da
escola dos novos movimentos sociais revelavam nuances mais com-
plexas da organização social em curso. Cândido Procópio Camargo,
Beatriz de Souza e Antonio Flávio Pierucci ressaltaram em determi-
nado momento que:
Muitos participantes das CEBs falam delas como se elas represen-
tassem o desejado retorno a um estilo de relacionamento rural

240 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

(...) persistindo entre os integrantes a memória dos liames de


solidariedade vividos por aqueles que não têm recursos.(...) Após
leitura e discussão do evangelho discutem problemas, família.
Se alguém fica sem emprego ou doente, os membros das CEBs
ajudam com dinheiro, assistem, dão banho, renovam o telhado
(SINGER; BRANDT, 1980, p. 70).

O que representaria esse ambiente para os segmentos sociais


desfiliados socialmente, senão a oportunidade de reconstruírem sua
identidade, dilacerada pelo recente desenvolvimento industrial do
país? Uma oportunidade única de sociabilidade. Sendo assim, os ele-
mentos do tradicionalismo rural, ainda que reconstruídos, ressurgiam
pelas mãos da Igreja Católica. Não poderia ser diferente, ao menos
conceitualmente, já que o discurso institucional religioso funda-se em
elementos de tradição moral.
Em 1978, após a realização do III Encontro Nacional de CEBs, em
João Pessoa, esse segmento social define quatro orientações básicas
de ação, que constituiriam o roteiro da reconstrução da identidade
social do povo excluído. A partir delas, desenhou-se o seguinte projeto
político, segundo a nomenclatura adotada originalmente:
1. o
 grande pecado é o capitalismo. Deve-se partir dos nossos
interesses e não dos interesses de quem está no poder;
2. procurar sempre estar unidos e organizados;
3. participar
 de todas as ferramentas que nos ajudarão na
libertação;
4. assumir a condição de classe oprimida.
As orientações sugerem um receituário de enfrentamento da si-
tuação em que amplos segmentos sociais se encontravam. Em outras
palavras, cristalizava-se um lugar para se praticar a antiga solidarie-
dade comunitária e uma utopia que alargava os direitos; era possível
identificar a causa da marginalização e inserir-se numa classe oprimi-
da e pobre que deveria se organizar e enfrentar o sistema capitalista

Os limites do anti-institucionalismo 241


LULISMO | Rudá Ricci

utilizando-se, para tanto, de todas as ferramentas – incluindo-se aí o


sindicato – para a sua libertação.
As análises teóricas que procuram analisar essa matriz discursiva
encontram um terreno fértil para supor a emergência de um sentimento
de autonomia. Veremos, mais adiante, que o conceito de autonomia
era articulador de uma escola de pensamento que orientou muitos
estudos sociológicos do período.
Esse foi o caso de ensaios produzidos por Maria da Glória Gohn,
em que propunha que a Teologia da Libertação consolidava um senti-
mento de autonomia, com matizes que transitavam entre o socialismo
libertário e o anarquismo, adotando elementos marxistas.
Eder Sader, em outro estudo clássico, propôs um referencial teó-
rico mais amplo. Segundo o autor, a partir de 1974 teria sido aberto,
com o esfacelamento das organizações clandestinas de esquerda, uma
recomposição das mobilizações populares de natureza reivindicató-
ria e contestatória. Inicialmente, tais movimentos articularam-se ao
redor da Igreja Católica, que disseminou um discurso comunitário,
anti-institucionalista. Posteriormente, segmentos da esquerda realinha-
ram-se a partir das associações locais. Dessa fusão, nasceriam vários
movimentos sociais no final da década de 1970: oposições sindicais,
movimentos contra a carestia, movimentos pela posse da terra, entre
outros. Todos, segundo o autor, valorizariam – ao contrário do discurso
básico das organizações de esquerda pré-74 – as demandas surgidas
no cotidiano das fábricas e dos bairros mais carentes. O espaço ins-
titucionalizado como o da prática política – partidos, Legislativo e
Executivo, organizações gerais de representação social – daria lugar
às formas mais difusas, anteriormente concebidas como locais dos
interesses e relações privadas: o local de moradia, o local de trabalho,
a comunidade rural.
Em síntese, os movimentos sociais dos anos 1980, para essa
corrente teórica, tinham como características cinco elementos consti-
tutivos em seu ideário: 1. autonomia; 2. adoção de democracia direta;

242 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

3. sentimento anticapitalista; 4. relações de poder e processo decisório


horizontalizados; 5. sentimento anti-institucionalista.
O conceito de autonomia ganhou destaque nos estudos desenvol-
vidos por essa escola de pensamento, em especial, pela referência que
tiveram nos ensaios de Cornelius Castoriadis8 seu principal ideólogo.
É fato que esse autor foi objeto de inúmeros cadernos de transcrição
de textos e ensaios que se reproduziram entre estudantes e intelectuais
descontentes com a burocratização do projeto soviético, intitulado
nesses meios de socialismo real existente (sorex). Seus estudos, mui-
tas vezes, foram alinhados aos de Claude Lefort e E. P. Thompson,
pois contribuíam para uma profunda revisão das formulações teóricas
acerca da constituição das organizações das classes trabalhadoras e
encetavam uma crítica articulada à plataforma leninista de relação
dos partidos com as iniciativas populares. Esses autores, embora
distintos em suas formulações e origem, alimentavam uma revisão
ao marxismo sem, contudo, enveredar para uma proposição liberal
ou social-democrata. Daí seu grande atrativo. Parte significativa dos
teóricos filiados a essa corrente de interpretação chegou a constituir
um núcleo de autores ao redor da revista Desvios.9 Tais formulações
teóricas consolidariam o conceito de novos movimentos sociais, con-
ferindo uma ruptura cultural e política aos movimentos que emergem
na década de 1980 em relação às décadas anteriores.
O que sobressai dessa vertente analítica é certo desdém em rela-
ção ao diálogo cultural entre tradições e inovações sociais, o diálogo
histórico entre estruturas que permanecem e as mudanças instituídas,
a tensão entre interesses e desejos individuais e as orientações institu-
cionalizadas (que, aliás, se alteram mutuamente). O movimento social
que constituiria esse movimento radicalmente inovador seria portador
da negação absoluta do passado. Somente assim a memória simbólica
seria passível de uma reinterpretação totalmente consciente. Outro
elemento central dessa análise é a interpretação do mundo como textos
discursivos, em que o imaginário define o lugar dos sujeitos no mundo.

Os limites do anti-institucionalismo 243


LULISMO | Rudá Ricci

O estatuto do conceito de autonomia ganha, assim, contornos de


um ideário político, superando a sua mera realização como elemento
de análise social. Os ensaios que se alimentaram dessa formulação
teórica para analisar os movimentos sociais dos anos 80 demandavam
a mesma intenção. Daí o insuspeito conceito de novos para designar os
movimentos sociais que emergem no período, pois seriam portadores
da ruptura com as instituições tradicionais brasileiras, apoiadas na
cultura agrarista, assim como da novidade organizativa, fragmentada
por definição, mas que se unificava na intenção de instituir estruturas
autônomas e democráticas nas relações políticas nacionais.10
Com efeito, estes pressupostos forjaram a chave de leitura crí-
tica sobre o que seria o embate dos movimentos sociais brasileiros
dos anos 1980 com a institucionalidade pública. O que parece im-
portante problematizar é o mecanismo pelo qual os participantes
dos movimentos sociais estariam assegurando sua identidade, em
oposição aos clássicos mecanismos de representação: um misto de
representação delegada e democracia direta. A democracia direta
era percebida como crítica aguda aos mecanismos de representação,
porque levaria à institucionalização das demandas. Por conseguinte,
a cidadania confundia-se com a noção rousseauniana de cidadão
total, que deliberaria em praça pública sobre as vontades coletivas.
Povo, nesse caso, teria um estatuto político, na medida em que seria
o ator coletivo em ação, o conjunto de cidadãos em negociação per-
manente. O risco de se articular todo um processo decisório sobre os
interesses públicos a partir desse expediente é que possibilita que os
atores sociais distantes da praça pública ou que não comparecem às
assembleias sejam excluídos do exercício concreto da cidadania. A
dimensão privada, enfim, é desdenhada, tal como sugeriu Norberto
Bobbio. Por sua vez, a representação delegada seria aquela em que
o representante limita-se a reproduzir os interesses expressamente
anunciados pelos representados no ato de sua eleição. Forja-se, assim,
um mecanismo corporativo de representação. Como se percebe, os
dois mecanismos de ação democrática, por si mesmos, são portadores
de um significativo obstáculo à universalização dos interesses que os

244 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

constituem. Em outras palavras, são inadequados para superarem o


interesse grupal para atingirem a universalização dos direitos.
Os discursos que gravitaram ao redor do autonomismo e da
noção de inovação do ideário dos movimentos sociais resvalaram na
apologia da microfísica da política, da ação dos grupos de interesse,
dos laços de sociabilidade primária. Esses elementos forjaram, no
ideário teórico e na prática social dos movimentos estudados, um
embate permanente com o aparelho do Estado. Contudo, ao longo
dos anos 1990, as práticas políticas distanciaram-se do desejo teórico.
Lideranças de alguns dos movimentos sociais estudados foram alçadas
à condição de representantes institucionalizados, na medida em que
suas candidaturas ao legislativo (o que nem mesmo foi assinalado
como paradoxo) tornavam-se vencedoras. Esse movimento, que não
significou a institucionalização dos movimentos sociais, gerou uma
novidade na relação entre Estado e populações organizadas no Bra-
sil: as lideranças procuraram construir mecanismos institucionais de
participação popular.
Aos poucos, a crítica à orientação de pesquisa social que iden-
tificava, nos movimentos sociais do final do século, a negação das
instituições públicas vigentes, foi tomando corpo. O ideário apresen-
tado pelos movimentos sociais, denominados até então de novos por
sua capacidade de ruptura com o passado agrarista, foi ressaltado em
muitos estudos como elemento que favoreceria práticas corporativas,
justamente porque teria como referência o local, o imediato, o parti-
cular. A virtude apontada por alguns era identificada como vício por
outros. Para esses últimos, os movimentos sociais do final do século
XX dificilmente conseguiriam transformar as demandas específicas,
das quais eram portadores, em direitos universais. Doimo (1995)
foi uma das autoras que ressaltou a ambiguidade dos movimentos
sociais do período:
(...) temos tão logo de abandonar qualquer “otimismo teóri-
co” apriorístico, mesmo porque, se pensados em alto grau de

Os limites do anti-institucionalismo 245


LULISMO | Rudá Ricci

abstração, tais conflitos revelam uma natureza profundamente


ambígua. Primeiramente, porque, longe de inscreverem-se na
órbita das relações de produção ou de trabalho, emergem em
inusitados lugares entre o Estado, o mercado e a cultura, con-
tando com uma base social de natureza dispersa e volátil. Em
segundo lugar, porque, não obstante definam-se, via de regra,
em referência ao fundo público, reivindicando bens de consu-
mo coletivo, constituem-se por fora dos formatos tradicionais
de representação política e realizam-se numa espécie de “vá-
cuo regimental”, à base de critérios ad hoc de interlocução.
E, finalmente, porque, ao regerem-se pela lógica consensual-
-solidarística, própria das ações diretas, tornam-se vulneráveis
ao agenciamento de grupos e de instituições que não têm a
política como fundamento institucional. Como corolário, tais
conflitos apresentam um caráter altamente cambiante, podendo
tanto adquirir um perfil pendular entre a defesa do estatismo e
a reivindicação das vantagens do mercado, quanto oscilar entre
condutas expressivo-disruptivas de negação do Estado e atitudes
integrativo-corporativas de afirmação de sua face provedora
(DOIMO, 1995, p. 52).

Carlos Estevam Martins (1994), por seu turno, chega a definir


algumas dessas práticas sociais como filiadas a uma terceira corrente
do pensamento contemporâneo (ao lado do marxismo e do libera-
lismo): o panpoliticismo ou basismo. O autor encontra referências
teóricas mais amplas a esses novos processos sociais. Sugere que
estariam compondo uma visão de mundo específica, que encontra
guarida em teorias sociais, como as elaboradas por Michel Foucault
e Deleuze.11 Cita Deleuze, como ilustração, “frente à política global
do poder faremos revides locais, contra-ataques, defesas ativas e, às
vezes, preventivas. Nós não temos que totalizar restaurando formas
representativas de centralismo e hierarquia. (...) Não existe mais
representação, só existe ação” (MARTINS, 1994, p. 300).
A própria década de 1980 incumbiu-se de relativizar a crença
política subjacente nos estudos apoiados na noção de autonomia.

246 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

A pujança editorial minguou e os estudos sobre movimentos sociais,


em especial os de origem rural, foram rareando nas prateleiras das
livrarias. Era a esse ajuste com os estudos dos anos 1980 que se referia
Vera Telles, na passagem destacada no início deste texto. No final dos
anos 1980 e início dos 1990, uma nova safra de estudos parecia se
dar conta da trajetória pendular dos movimentos sociais.12
Mas, possivelmente, a situação inusitada e desconcertante dos
anos 1990 para os estudiosos dos novos movimentos sociais foi a
relação que se estabeleceu com as instituições públicas.
A eleição de lideranças de movimentos sociais ao parlamento e
governos locais e regionais fez emergir um dilema singular, que foi
exacerbado com as conquistas de natureza participacionista inscritas
na Constituição Brasileira de 1988.13 O dilema poderia ser resumido
como uma contradição entre o discurso anti-institucionalista no qual
se formaram as lideranças dos anos 1980 e a necessária capacidade de
formulação e gestão de políticas públicas dessas mesmas lideranças
na década seguinte.
Tal politização ocorreu, contudo, em meio a fortes sentimento de
perplexidade e injustiça que motivaram o surgimento dos movimentos
sociais no período anterior. O processo de institucionalização não
ocorreu em tempo hábil para uma elaboração gradativa de projeto
de desenvolvimento econômico e institucional alternativo (como es-
peravam os estudiosos dos movimentos sociais de então) ao vigente.
O inusitado dessa situação estabeleceu um vazio de formulação no
que tange à institucionalidade pública, fruto de crítica ao presente
sem projeção de sua superação. Como se segmentos das populações
marginalizadas construíssem um ritual de passagem entre o passado
e o futuro incerto, numa fuga para a frente. Nesse ritual, as formas
corporativas de organização são superadas rapidamente, mas as re-
lações de poder moldadas no seu interior repõem antigas práticas.
O dilema parece ainda mais complexo se relembramos o papel do
personalismo na política local e a tradição das intervenções estatais

Os limites do anti-institucionalismo 247


LULISMO | Rudá Ricci

no Brasil Profundo, na forma de um demiurgo que procura civilizar


áreas inóspitas. Sociedade civil e instituições públicas encontram-
-se filiadas à mesma tradição política que sustenta a legitimação de
práticas sociais fundadas no personalismo e, paradoxalmente, num
racionalismo institucional que burocratiza as relações sociais. Os
movimentos sociais contestatórios dessa realidade projetam-se num
futuro incerto e redefinem práticas que se pretendem instituciona-
lizadas que se constroem de maneira errática e se sustentam numa
cultura híbrida.
Canclini (1997), ao analisar o processo de modernização das
sociedades latino-americanas, propôs uma compreensão diferenciada
da nossa cultura. Para o autor mexicano, a cultura latino-americana
teria como característica o hibridismo. Para o autor:
Na América Latina, onde as tradições ainda não se foram e a
modernidade não terminou de chegar, não estamos convictos de
que modernizar-nos deva ser o principal objetivo. (...) A incerte-
za em relação ao sentido e ao valor da modernidade deriva não
apenas do que separa nações, etnias e classes, mas também dos
cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno
se misturam. (...) Tanto as camadas populares quanto as elites
combinam a democracia moderna com relações arcaicas de poder.
Encontramos no estudo da heterogeneidade cultural uma das
vias para explicar os poderes oblíquos que misturam instituições
liberais e hábitos autoritários, movimentos sociais democráti-
cos e regimes paternalistas, e as transações de uns com outros.
(...) Carecemos de uma coesão social e de uma cultura política
modernas suficientemente firmadas para que nossas sociedades
sejam governáveis. Os caudilhos continuam guiando as decisões
políticas com base em alianças informais e relações rústicas de
força (CANCLINI, 1997, p. 17-25).
A modernidade latino-americana, nesse sentido, não seria um
projeto inacabado, mas uma simbiose entre a tradição e a racionaliza-
ção da vida social. Na vida política, muitos dos gestos e intenções mo-

248 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

dernizadores, que objetivam a participação dos cidadãos na vida públi-


ca, acabam por não se efetivar e são, paradoxalmente, transformados
em rituais políticos. O ritual da eleição é um dos exemplos possíveis.
E a própria participação em espaços públicos é outro: reproduz-se
uma série de rituais de ingresso que definem quem participa e os
limites aceitáveis de participação. A participação política passa a ser
performática, porque não é realmente integradora: somente alguns
iniciados – mesmo aqueles participantes de organizações populares –
compreendem o cerimonial e os códigos de conduta e comunicação.
Apesar do elitismo político, os promotores da modernidade sentem
uma atração por referências do passado, como forma de legitimar
a sua hegemonia mediante o prestígio do patrimônio histórico. Na
política, reafirmam-se os mecanismos clientelistas – tanto nas estru-
turas partidárias quanto nas sindicais – ou a reconstrução de imagens
místicas – como motivadores de movimentos sociais com alto grau de
conflito e, portanto, ciosos da construção de laços de solidariedade
mecânica, como no caso dos movimentos de luta pela terra ou por
moradia – ou ainda as expressões de legitimação carismáticas.
Castells (1999) sugeriu, por seu turno, uma tipologia das
identidades que forjam os movimentos sociais no final do século
passado: 1. identidades legitimadoras, que são introduzidas pelas
instituições dominantes no intuito de expandir sua dominação
(caso das teorias nacionalistas); 2. identidades de resistência, de
natureza defensiva, como seria o zapatismo; 3. identidades de
projeto, que redefiniriam sua posição na sociedade e teriam como
proposição a transformação da estrutura de organização social.
O autor, contudo, avalia que essa tipologia se encontra, nas práticas
concretas, emaranhadas, articuladas a partir de uma disjunção entre
as estruturas de poder (vinculadas à dinâmica globalizante) e os
espaços locais (marcados pelas regras morais).
Como se percebe, a perplexidade frente às mudanças drásticas
e sucessivas do último período atinge atores e pesquisadores sociais
e demanda prudência na análise dos movimentos sociais que se arti-

Os limites do anti-institucionalismo 249


LULISMO | Rudá Ricci

culam no início do século passado. Refugiando-se na tradição comu-


nitária, conseguem afirmar a energia moral necessária para garantir
a identidade social das populações atingidas por esse turbilhão de
mudanças, mas não confere a possibilidade de sobrevivência.
Ao realizarmos um balanço da interpretação sociológica clássica
brasileira a respeito da herança agrária e da emergência de uma orga-
nização civil, percebe-se um limite original – não necessariamente um
obstáculo – à ação pública e emergência de organizações da sociedade
civil: a dificuldade social de formulação de projetos públicos.
Nos estudos recentes sobre sociedade civil, percebe-se um com-
ponente básico dessa instância: ela seria o substrato da energia moral
da sociedade, local em que se forjam os rituais sociais, os valores
éticos, as relações de solidariedade. Para alguns autores, seria o antí-
doto ao estatismo ou burocratização das relações sociais (ou avanço
da normatização imposta pelo Estado e organizações corporativas);
para outros, meras associações independentes do Estado. A ambigui-
dade original definida pelos interesses individuais e a construção de
direitos sociais mantêm-se ao longo dos teóricos, tanto os de vocação
institucionalista/racional (que enfatizam o caráter instrumental e
egoísta das organizações civis),14 quanto os que procuram revitalizar
(ou atualizar) as práticas comunitárias e cotidianas.
Recorrendo a Norbert Elias e Pierre Bourdieu, haveria um ha-
bitus ou saber social incorporado, que transfiguraria nosso legado
patrimonialista.15
A institucionalidade pública brasileira teria sido fundada sob
o signo da imposição e da impostura. Daí não apresentar natureza
representativa e daí fundar-se o caráter estamental-patrimonialista da
cultura política nacional, para citarmos a conceituação inaugurada
por Raimundo Faoro. A origem das instituições públicas nacionais,
por excluírem a representação de interesses da sua natureza, des-
truiu a possibilidade de constituição de um espaço público, espaço
de negociações, confinando (e reafirmando) o jogo de interesses

250 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

privados e coletivos aos espaços domésticos, à política miúda do


cotidiano, revestindo as tensões sociais de um caráter aparentemente
particular, privado. Em outras palavras, as tensões nunca se resolvem
nacionalmente, nunca se expressam publicamente, porque não há
propriamente espaço público legitimado historicamente. Num esforço
de abstração, poderíamos aludir, a partir desse legado institucional,
do por que de os movimentos sociais em território nacional sofrerem
dificuldades para transformar seu ideário em projetos nacionais.
O que não significa incapacidade de mobilização e resistência. Mas
a resistência, como já destacado anteriormente, mantém um lastro
com o passado, muitas vezes, o passado da experiência comunitária.
Assim, a projeção pública, ao contrário, ocorre quase que exclusiva-
mente por força do tratamento jornalístico que recebe (tratamento
mercadológico e sensacionalista). Tal fenômeno, que se assemelha
a um labirinto político, geraria um contínuo isolamento ou aparente
corporativismo dos movimentos sociais. Aparente, porque não nascem
com a vocação única de atender interesses privados, mas porque não
reverberam em espaços públicos (inexistentes, ou vazios de represen-
tatividade). O problema político, assim, não se resume aos princípios
formulados por seus autores, mas à ausência de institutos jurídicos
que garantam a igualdade formal entre cidadãos (do ponto de vista
liberal) e à inexistência da noção de espaços públicos.
Em outros termos, retomamos a tese desenvolvida por Gramsci
sobre a revolução passiva, ou processos históricos que consolidaram
uma ordem burguesa sem uma ruptura com as tradições rurais.16�
Por fim, o legado agrário persistirá nas instituições públicas
republicanas como relação política predominante, o que significa
afirmar que a urbanização nacional acabará por constituir-se num
pastiche do agrarismo.
Os estudos sobre o agrarismo, portanto, contribuem para com-
preendermos a permanência de relações domésticas e personalistas
no interior dos movimentos sociais. Permanecem de maneira híbrida,
porque se atualizam a partir de um cenário muito distinto do que lhe

Os limites do anti-institucionalismo 251


LULISMO | Rudá Ricci

deu origem. O habitus permanece e se reinventa como ingrediente


do comportamento político híbrido das populações menos abasta-
das, como um legado de práticas sociais tradicionais, conferindo um
movimento errático aos movimentos sociais que procuram construir
novos significados à vida social. O elemento central da fuga para o
futuro que empreendem.
Finalmente, uma palavra a respeito da trajetória do comunitaris-
mo cristão que influenciou grande parte dos movimentos sociais que
emergiram nos anos 1980.
O comunitarismo foi centro das fundamentações das teorias prag-
máticas, em especial, em John Dewey (cf. POGREBINSCHI, 2005, p. 125
e seguintes). Para este autor, na comunidade os indivíduos confirmam
suas ideias, cotejam as suas crenças com a de seus pares e verificam o
que é real do irreal. Em seu livro The Public and its Problems, Dewey
demonstrava preocupação com a ruptura que a sociedade industrial teria
causado nas comunidades pequenas, sem gerar uma “grande comuni-
dade”. Há, aqui, um pensamento que vincula a ação social à moral, à
noção de bem e ação cooperativa. A comunidade seria sustentada por
uma “vida comunal moral”, articulando emoção, ração e consciência.
E por este motivo, Dewey rejeita as teorias contratualistas, de-
masiadamente racionais e que colocariam no Estado a autoria causal
da solidariedade entre os indivíduos. A solidariedade, ao contrário,
derivaria da percepção comum dos indivíduos acerca das consequ-
ências das atividades que eles empreendem conjuntamente. Seguem
uma “concepção idealizada” fundada na vida comunal. Para tanto,
a relação ideal é a pautada pela face-a-face entre indivíduos, da co-
municação próxima e direta. É da relação comunicação de boca em
boca que se formaria a inteligência social e a formação de opinião.
Ora, a teoria aqui expressa dá conteúdo sistêmico às crenças
fundadas no comunitarismo cristão dos anos 1980, a partir das CEBs,
que se espraiam por várias organizações pastorais e que se inscrevem
no ideário de tantos movimentos sociais.

252 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Mas, no caso do comunitarismo brasileiro, o diferencial em re-


lação à elaboração liberal de Dewey estava no anticapitalismo e na
unidade dos pobres. E é justamente aqui que reside o impasse vivido
por esta concepção nesta primeira década do século XXI.
Nos anos 1990, a partir da Constituição Federal (CF), forjou-se
uma nova institucionalidade pública. Parte dela fundou-se no que
juristas denominaram de “participacionismo”, ou seja, a cidadania
ativa, em que o eleitor possui o direito de governar com o eleito. Este
princípio está expresso em vários artigos da CF, mas destaco quatro
deles: o parágrafo único do art. 1º, o art. 14, o inciso III do art. 198
e o inciso II do art. 204.
O art. 1º da CF inaugura o participacionismo em seu parágrafo
único ao garantir o poder indissociável do cidadão, mesmo após a
delegação expressa em voto. Diz o artigo:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indis-
solúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito (...). Parágrafo único. Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (destaque
de minha autoria, em itálico).

Dentre os termos que a participação do cidadão se faz direta-


mente para expressar seu poder está o art. 14, que trata das decisões
via plebiscito, referendo e iniciativa popular:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal
e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos
termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – inicia-
tiva popular.

O art. 198, que trata da saúde pública é ainda mais objetivo em


relação à promoção da cidadania ativa:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,

Os limites do anti-institucionalismo 253


LULISMO | Rudá Ricci

organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) III – par-


ticipação da comunidade.

Para concluir esta ilustração, finalizo com o arti. 204, que trata
das ações governamentais de natureza assistencial:
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social
serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social,
previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com
base nas seguintes diretrizes: (...) II – participação da população,
por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações em todos os níveis.
A filosofia participacionista vai se desdobrando ao longo da CF e
o art. 204 parece ser o ápice desta elaboração, inspirando um conjun-
to de leis federais, incluindo as leis orgânicas da saúde e assistência
social e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Aqui começa o calvário do comunitarismo que fundava experiências
de resistência e luta social dos anos 80. Justamente porque o comu-
nitarismo carrega a lógica do particularismo, valoriza a peculiaridade
e se reveste de forte traço antropológico. O participacionismo é, por
natureza, seu inverso, porque universal, público. O conceito de cida-
dania ativa é parte integrante de um projeto que altera a lógica das
instâncias públicas. Ao promover mudanças na institucionalidade
pública, sugere a organização de canais institucionais de participação
social e, portanto, a disputa e a negociação de interesses. Contudo, o
comunitarismo cristão dos anos 80 revestia-se da lógica do confronto
com a institucionalidade vigente. O que significa que a cidadania ativa
inscrita em alguns artigos da CF exigiria a conversão do comunitarismo
à disputa do poder institucionalizado. Para tanto, seria necessário entrar
no jogo político, na disputa da cultura e da direção da institucionalidade
pública. Exigiria a capacidade de superar o particularismo local pelo
direito universal. Esta operação teórico-política sugere a abstração das
diversas lógicas comunitárias em meso-espaços (territórios e controle
de regiões) e no macroespaço da política nacional.
E é justamente neste ponto que o comunitarismo cristão dos anos
1980 claudicou. Porque não conseguiu dar o salto para a construção

254 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

de uma nova institucionalidade pública, reafirmando constantemente


o espaço público como mera assembleia onde o mosaico de interesses
grupais e comunitários se encontrava sob a chancela de excluídos
e pobres.
Excluídos e pobres formaram o vértice deste ideário que refutou
a disputa política como convencimento e conquista porque parte da
identidade pela negação, pela oposição. Não se trata de um conceito
que incorpora contradições e hibridismo. O pobre é o não rico. Neste
sentido, a institucionalidade pública, ao não incorporar os direitos dos
não ricos constituía-se em instrumento de oposição aos interesses dos
pobres e excluídos. E assim, numa formatação teórica que se aproxima
de um estruturalismo vulgar, toda institucionalidade pública seria um
espaço fechado, pré-determinado, conformando um ideário político
fatalista onde a política não seria uma arte, mas um conflito latente
que terá que se expressar em confronto se desejar ocupar algum espaço
e visibilidade. O conceito de hegemonia implícito nesta proposição
estaria mais afeto às sugestões leninistas e não às gramscianas, a
despeito dos formuladores das CEBs citarem Gramsci em muitas de
suas elaborações. Porque a construção da hegemonia em Lênin se dá
pela força e não pela astúcia.
O comunitarismo recusa o jogo político e procura somar os iguais,
no caso, os pobres. Mas as projeções da Fundação Getúlio Vargas do Rio
de Janeiro indicam que os pobres serão pouco mais de 7% da população
em 2015. O que fará das populações pobres marginais numericamente e
não apenas econômica e politicamente. A realidade é ainda mais com-
plexa na medida em que a forte ascensão social ocorrida na última dé-
cada em nosso país criou uma forte lógica consumista e individualista.
O estudo de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, citado na primeira
parte deste livro, indica a emergência da “ideologia da intimidade”
entre os emergentes da classe média nesta primeira década do século
XXI. Como apresentado anteriormente, 85% confiam na sua família.
O índice cai para 43% no caso do segundo segmento mais citado como
de confiança dos brasileiros: os amigos, índice que decai quanto menor

Os limites do anti-institucionalismo 255


LULISMO | Rudá Ricci

a renda familiar. O índice de participação em organizações sociais


também decai na medida em que a renda familiar é menor: 43% da
classe A/B não participa de nenhuma organização; subindo para 56%
no caso da classe C; 62% no caso da classe D e 63% no caso da classe
E. Até mesmo ações de tomada de espaços públicos não aparecem
com destaque (incluindo os territórios de vizinhança). Embora não
seja tema desta análise, uma hipótese explicativa é a emergência de
uma “religiosidade privada” nos últimos anos, ou seja, a busca da
religião como conforto pessoal ou segurança familiar.
Assim, pela natureza do comunitarismo cristão dosanos 1980,
percebe-se a dificuldade dos interessesfocalizados plasmarem uma
cultura de direitos. O comu­nitarismo não deitou raízes no imaginário
social ou mesmo nos elementos constitutivos da representação social
dos brasileiros. Nem mesmo dos brasileiros mais pobres. Limitou-se
a reforçar a solidariedade mecânica das comunidades e organizações
sociais que assistiu. A resistência como pedra de toque. A gratuidade
das ações políticas nascidas nesta vertente destacada como nobreza de
espírito, ganhando estatuto épico. Mas não rompeu com o certo dos
laços de afetividade que conformaram as comunidades organizadas
a partir desta lógica. Não logrou romper a lógica implacável da ação
estatal e de todos os atores que disputam a política a partir da ins-
titucionalidade pública. Não necessariamente porque a única forma
de ação política se dê a partir da ordem social vigente. Mas porque
o comunitarismo foi incapaz de elaborar um projeto público, uma
nova configuração institucional. Foi reativo e recusou compreender
a política como jogo.

Notas:
1 Versão de capítulo de minha tese de doutorado intitulada “Fuga para o futuro:
novos movimentos sociais rurais e a concepção de gestão pública”, defendida
no Departamento de Ciências Políticas da Unicamp, em 2002.
2 A tese que orienta essa observação é o caráter militante dos autores aqui citados.
Em muitos casos, pesquisadores sociais brasileiros desenvolveram teorias que se

256 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

relacionavam diretamente com seu engajamento ao processo de redemocratização


do país, no início dos anos 80. Assim, o aparato estatal, ainda marcado pela sua
militarização recente, aparecia como elemento constitutivo das estruturas de ex-
clusão política, para alguns. Para outros, seu engajamento na construção de novas
práticas políticas mergulhava-os na lógica de organizações não governamentais
(ONGs). Muitos pesquisadores, inclusive, tinham sobrevivido intelectualmente
a partir do surgimento de ONGs dedicadas à pesquisa social, tendo em vista a
forte repressão e controle sobre as atividades universitárias.
3 Os autores destacados representam uma diminuta mostra das produções sociológi-
cas pautadas pela interpretação da novidade dos movimentos sociais. Constituem,
entretanto, matizes muito distintos. Alguns autores apoiaram-se nos estudos de
Pierre Bordieu e Cornelius Castoriadis, outros em Alexander Chayanov. Havia,
ainda, um forte intercâmbio entre os estudos sobre movimentos de trabalhadores
urbanos e rurais. Neste caso, os estudos de Maroni (1982) e De Decca (1981)
tiveram forte influência nesta vertente de estudos sobre os movimentos operários.
Na outra ponta, os ensaios de José de Souza Martins tornaram-se referência nos
estudos sobre movimentos sociais rurais.
4 Alguns autores, como Leonel Itaussu, propõem que a passagem do regime militar
para o regime democrático em nosso país não chegou a ser uma redemocratização,
mas uma liberalização, na medida em que o processo de abertura política se deu
através de algumas concessões entre o setor brando do regime militar e o setor
moderado (eleito pelos primeiros como interlocutores) da oposição formal. Outro
elemento destacado é a definição de uma agenda política de transição, limitada
pelos próprios militares.
5 Como já citado anteriormente, uma série de estudos sociológicos procuraram
conceituar o que ficou cunhado como novos movimentos sociais. Destacamos
aqueles mais citados pela bibliografia especializada: Maroni (1982); Sader (1988);
Abramo (1985); Sherer-Warren, Krischke (1987); Rodrigues (1990); Antunes
(1991); Moisés (1982); Almeida (1975). Mais recentemente, alguns estudos pro-
curaram atualizar esse debate. Podemos citar, entre eles: Sola e Paulani (1995);
Landim (1998); Dagnino (1994); Ricci (1999).
6 As análises da autora aqui citadas foram originalmente publicadas em dois estudos:
“O caráter dos novos movimentos sociais” in: Sherer-Waren e Krische (1987).
7 A representação delegada, ao contrário da fiduciária, é aquela em que o represen-
tante reproduz, integralmente, o desejo expresso daqueles que estavam presentes
na assembleia que o elegeu para tal fim. O representante fiduciário, ao contrário,
é escolhido em virtude da identidade que seus representados têm em relação às
suas formulações gerais, sem que se limite a uma pauta específica.
8 Cornelius Castoriadis, filósofo grego naturalizado francês, foi militante comunista
mas rompeu com essa corrente teórico-política, em especial, a sua versão soviéti-
ca. Entre 1946 e 1966, editou a revista Socialismo ou Barbárie. Em sua obra mais

Os limites do anti-institucionalismo 257


LULISMO | Rudá Ricci

citada, A instituição imaginária da sociedade, propõe que o pensamento marxista


soviético teria gerado dogmas que instituiriam, por sua vez, hábitos que anulariam
qualquer potencial revolucionário dos movimentos políticos. Outros estudos desse
autor foram objeto de grande interesse entre estudiosos de movimentos sociais no
Brasil. Destacamos Diante da Guerra (1982) e La Sociedad Burocratica (1976). Neste
último ensaio, o autor analisa as relações de produção na Rússia Soviética, suge-
rindo que o centro do processo revolucionário seria o desenvolvimento de órgãos
autônomos das massas (comunas, sovietes, comitês de fábrica ou conselhos). A
centralização burocrática e a ideia de organização teriam sido equívocos históricos
do programa revolucionário soviético, já que a existência de órgãos autônomos das
massas não seria uma forma, mas a própria revolução.
9 Esta revista foi editada entre 1982 e 1985. Ao todo, foram editados quatro números.
Os dois primeiros números (novembro de 1982 e agosto de 1983) foram editados
artesanalmente. Os dois últimos números (dez./1984 e jul./1985) foram editados
pela Paz e Terra. Colaboravam, com artigos, Marilena Chauí, Eder Sader, Herbert
Daniel, Amneris Maroni, Maria Celia Paoli, Marco Aurélio Garcia, Sílvio Caccia
Bava, entre outros.
10 Alguns autores, inclusive, definiram uma periodização original da história dos
movimentos sociais brasileiros, a partir dessa matriz analítica. É o caso de Eder
Sader. Em seu livro, já citado anteriormente, Quando novos personagens entram
em cena, sugere um corte temporal que apresenta uma nítida ruptura em 1974,
quando as organizações de esquerda são destruídas pelo regime militar e uma nova
forma organizativa, tendo a autonomia política e a eleição do local de trabalho e
moradia como eixos inovadores de sua articulação. Os movimentos sociais que
emergem nesse período seriam portadores de uma profunda novidade política
na história brasileira. Alguns estudos recentes ponderam que tal periodização
revela um grande grau de arbitrariedade. Organizações autônomas, de base, já
eram realidade política na história sindical brasileira desde os anos 40. Estudos
historiográficos recentes revelam que um viés de análise documental propiciou a
disseminação de uma leitura equivocada sobre o que seria uma prática populista
do movimento sindical pré-64, justamente porque foram priorizadas as análises
de documentos oficiais das instâncias sindicais, em detrimento da análise das
organizações de base. Ver Fortes (1999), para uma análise mais abrangente desses
estudos recentes.
11 O que a análise de Martins (1994) sugere é que o caldo de cultura que fomenta
o ideário dos novos movimentos sociais dos anos 80 seria o mesmo que estaria
sustentando um novo pensamento social contemporâneo.
12 A guisa de ilustração, destacamos dois estudos que tratam de populações rurais
distintas. Moura (1988) ao estudar o processo de expropriação de microproprietá-
rios residentes no Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais) na entrada das empresas
de papel e celulose na região, percebe os conflitos de discurso e imaginário das
lideranças sindicais e comunidades rurais. Os sindicatos procuravam articular

258 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

ações judiciais para reaver direitos negados pelas empresas. Por sua vez, as
comunidades expropriadas sentiam que, ao se inscreverem como assalariados
(mote das ações judiciais), perderiam a trama das relações rurais regionais, mar-
cadas pela troca de favor, pela interdependência dos atores sociais, cristalizadas
no compadrio e no coronelismo. A autora sustenta tratar-se de uma estratégia
de sobrevivência e não de ausência de consciência do sistema de dominação a
que estariam submetidos. Em outro estudo, D’Incao e Roy (1995), ao estudarem
as relações políticas que se estabelecem num assentamento rural paulista, fruto
da luta do movimento de trabalhadores sem-terra, reconstroem a trama social
marcada por fortes traços tradicionais: o poder velado do padre local, o discurso
militante que intimida os desejos familiares, a discriminação de famílias com-
postas por mães solteiras, as lideranças comunitárias que distribuem pequenas
benesses para se sustentarem nos postos de direção.
13 Estamos nos referindo aos conselhos de gestão pública, órgãos paritários de
gestão das políticas sociais, organizados em todas as instâncias do sistema fe-
derativo. Ao lado dessa conquista constitucional, vários municípios adotaram,
nos anos 80 e 90, métodos participativos de elaboração do orçamento municipal
que, rapidamente, tornou-se bandeira de lideranças populares e de agremiações
de esquerda.
14 Inscrevem-se, neste bloco, os estudos de Dahrendorf, Heins e Arato.
15 No prefácio da edição inglesa de Os alemães, Eric Mennell ressalta que Norbert
Elias teria lançado mão do conceito de habitus num esforço de superação da
noção de caráter nacional. Habitus implicaria um equilíbrio entre continuidade
e mudança. Assim, o autor buscaria no domínio das classes guerreiras e valores
bélicos das sociedades agrárias a ligação entre industrialização e ascensão do na-
cionalismo alemão. O processo de formação do Estado Alemão estaria influenciado
pela situação intermédia do país (pressionado pelos povos latinos e eslavos) e
pela formação nacional sustentada pelo caráter beligerante, militar e burocrático
da unidade territorial, no que se aproxima das análises de Bendix. Norbert Elias
sustenta que o equilíbrio de forças inclinou-se, historicamente, a favor dos prínci-
pes regionais. O processo de guerra teria, assim, deixado marcas permanentes no
habitus alemão, originando a crescente brutalidade entre as pessoas. Para ilustrar,
o autor reconstrói o papel do duelo como cimento da consciência e identidade
coletivas na Alemanha. Para nossos propósitos, vale registrar a compreensão do
legado histórico-cultural como constitutivo das instituições públicas de um povo,
constantemente reconstruído e atualizado.
16 Um outro autor clássico, que interpretará a sociedade brasileira como marcada
pelo personalismo, tipicamente ibérico, foi Sérgio Buarque de Holanda. Em Raízes
do Brasil, denuncia a falta de organização e o paroxismo entre o personalismo
e a renúncia à personalidade por meio da cega obediência, traços da cultura
portuguesa. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes
igualmente peculiares, vaticina ao comentar a alma ibérica. O patriarcalismo e

Os limites do anti-institucionalismo 259


LULISMO | Rudá Ricci

o personalismo estarão amalgamados à vida rural, dificultando a incorporação


normal do brasileiro aos agrupamentos sociais que superassem o espaço dominado
pela estrutura familiar. O autor, entretanto, parece prender-se ao que Antônio
Cândido denominou tipologia dos contrários, procurando relatar a ausência de
um tipo ideal racional, que organizasse o território nacional. Por esse caminho,
estaríamos nos afastando da linha de raciocínio até aqui comentada, em que os
elementos históricos do processo de colonização parecem constituir um cenário
que vai sendo recriado constantemente, num processo social legitimado, e não
em função da ausência de uma elite social revolucionária, como parece sugerir
Sérgio Buarque. O brasileiro não seria propriamente um homem cordial, mas um
sujeito de ações políticas restritas aos círculos privados (HOLANDA, 1997).

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262 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Capítulo 2
DA GESTÃO PARTICIPATIVA
À ESTATALIZAÇÃO

Os movimentos sociais ingressam


na rede de gestão pública
Os conselhos de gestão pública municipal multiplicaram-se ao
longo do país nos anos 1990. O período não era favorável ao atendi-
mento de demandas sociais, justamente porque o país vivia uma crise
fiscal aguda. Fernando Collor de Mello havia sequestrado recursos
privados aplicados em poupanças e, logo depois, criou-se uma re-
ferência de mercado desindexada que mais tarde se tornaria a nova
moeda nacional, o real. Havia pouca liquidez no mercado nacional.
Os conselhos, portanto, se constituíram num período de penúria or-
çamentária, o que pode ter contribuído para as autoridades públicas
reconhecerem neles uma câmara de negociação política que poderia
fomentar ainda mais demandas sociais.
Mas a novidade política já estava instalada.
Definidos na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, na Lei Orgânica da Saúde e da Assistência Social, en-
fim, em inúmeros dispositivos legais elaborados ao longo da última
década do século passado, os conselhos se tornaram uma nova figura
estrutural da gestão pública brasileira. Contudo, permaneceram mer-
gulhados numa profunda confusão conceitual, envolvendo gestores

263
LULISMO | Rudá Ricci

e lideranças da sociedade civil, a respeito da sua função e estrutura.


Grande parte da população brasileira desconhece sua existência e
ainda é comum procurarem as agências governamentais e não os
conselhos para apresentarem suas demandas ou queixas em relação
aos serviços públicos.
O conceito de gestão pública através de conselhos foi estabelecido
legalmente com a promulgação da última Constituição Federal, que
introduz elementos e diretrizes de democracia participativa, incorpo-
rando a participação da comunidade na gestão de políticas públicas.
Alguns artigos da Constituição são orientadores desta filosofia:
Art. 1º: o poder do cidadão, além de se expressar através de seus
representantes, é assegurado pela via direta, abrindo caminho para
várias inovações que são arroladas a seguir.
Seguridade Social: O art. 194 da Constituição Federal (CF) in-
dica, no seu inciso VII, o caráter democrático e descentralizado da
administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos
trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo
nos órgãos colegiados (redação dada pela Emenda Constitucional
nº 20, de 1998).
Saúde: o art. 198 da CF, em seu inciso III, indica a participação
da comunidade nas ações e serviços públicos de saúde que integram
a rede regionalizada e hierarquizada.
Política de Assistência Social: no art. 204 da CF, em seu inciso
II, estabelece a participação da população, por meio de organizações
representativas, na formulação das políticas e no controle das ações
em todos os níveis.
Há, ainda, outras orientações constitucionais no que diz respeito
à educação (art. 206, inciso VI), direitos da criança, adolescente e
idoso (art. 227, parágrafo 7).

264 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Dados divulgados pelo IBGE apontavam que, em 1999, os conse-


lhos municipais já totalizavam 27 mil no país, numa média de quase
cinco por município. Apenas 20 municípios não possuíam qualquer
tipo de conselho no final do século passado.
O Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) publi-
cou em maio de 2001 a análise “Os Conselhos Municipais Existentes
no Brasil”. Série Estudos Especiais nº 23, elaborada por François E. J.
Bremaeker, com base na Pesquisa de Informações Básicas Municipais
do IBGE. A análise sugere que os conselhos de gestão pública consti-
tuem um fenômeno dos grandes centros urbanos, o que corrobora a
tese da permanência da cultura patrimonialista nos rincões do país.
Com efeito, o número médio de conselhos por município é de 4,88,
mas à medida que aumenta o número de habitantes do município
também aumenta o número de conselhos neles encontrado. Os muni-
cípios com população até 10 mil habitantes possuem, em média, 4,42
conselhos, chegando a 7,92 conselhos para aqueles com população
superior a 500 mil habitantes.
Quanto à distribuição dos conselhos municipais segundo as
grandes regiões a menor média é encontrada na região Norte (4,12)
e a maior delas na região Sul (5,94). As duas regiões que apresentam
número médio de conselhos abaixo da média nacional são a Centro-
-Oeste e a Nordeste.

Da gestão participativa à estatalização 265


LULISMO | Rudá Ricci

Tabela: Distribuição do total de conselhos


municipais segundo as faixas de população
Número médio
Faixas da Total de
Número total Conselhos
população Conselhos
de municípios Municipais por
(por mil) Municipais
Município
TOTAL 5.506 26.859 4,88
Até 10 2.727 12.040 4,42
10 I – 20 1.392 6.839 4,91
20 I – 50 908 4.799 5,29
50 I – 100 279 1.745 6,25
100 I – 500 174 1.230 7,07
500 e mais 26 206 7,92
FONTE: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Departamento de População e Indicadores Sociais. Pesquisa
de Informações Básicas Municipais 1999. O Distrito Federal não foi incluído nos resultados

Tabela: Total de conselhos municipais,


por grandes regiões
Número médio
Número total Total de conselhos
Grandes regiões de conselhos por
de municípios municipais
municípios
BRASIL 5.506 26.859 4,88
Norte 449 1.851 4,12
Nordeste 1.787 7.674 4,29
Sudeste 1.666 8.229 4,94
Sul 1.159 6.883 5,94
Centro-Oeste 445 2.222 4,99
FONTE: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Departamento de População e Indicadores Sociais. Pesquisa
de Informações Básicas Municipais 1999. O Distrito Federal não foi incluído nos resultados

Pouco mais de uma quarta parte dos municípios (25,4%) possui


quatro conselhos, enquanto 24,2% dos municípios possuem cinco
conselhos. Em 16,4% dos municípios existem seis conselhos e em
13,3% deles existem apenas três conselhos.

266 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Os conselhos de saúde, assistência social, educação e direitos da


criança e adolescente são os que apresentam maior inserção no país,
tal como demonstra a tabela a seguir.

Tabela: Percentual de conselhos,


por tema nos municípios brasileiros
Tema % de municípios
Saúde 98,5
Assistência social 91,5
Educação 91,0
Direitos da criança e adolescente 71,7
Emprego e trabalho 30,3
FONTE: IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais 1999. O Distrito Federal não foi
incluído nos resultados

Esta realidade parece manter correspondência com as lutas


sociais ocorridas nas últimas duas décadas. Nos grandes municípios
brasileiros, a organização de lideranças de bairro que lutaram pela
melhoria dos serviços de saúde, forjadas a partir de uma aliança entre
médicos sanitaristas (em grande parte, oriundos do PCB) e organiza-
ções confessionais. A organização social que redundou na Loas (lei
orgânica da assistência social) e mais tarde no Suas (sistema único
da assistência social), criou uma rede nacional que seguiu os passos
do que já tinha ocorrido na área da saúde pública. E, finalmente, toda
organização política, capitaneada pela Pastoral do Menor e juristas
progressistas do país, que acabou gerando o Estatuto da Criança e do
Adolescente, também redundou numa articulação política de peso,
que ainda se propaga através dos fóruns de direitos e até conferências
nacionais pró-conselhos.
O caso da educação é mais específico. O primeiro conselho
nacional de educação superior data de 1892 e a Reforma Rivadávia,
de 1911, instituiu o Conselho Nacional de Educação. A Constituição
de 1946 possibilitou a criação dos conselhos estaduais de educação.

Da gestão participativa à estatalização 267


LULISMO | Rudá Ricci

Em 1964, os conselhos da área perdem muito de seu caráter norma-


tivo e se tecnificam, mantendo muito de suas características atuais.
Enfim, ao contrário da história recente dos outros conselhos, os de
educação possuem legado de oficialismo em sua existência, perdendo
o vínculo com o processo de radicalização democrática e participa-
ção da sociedade civil na gestão da política pública que caracteriza
os outros três casos (saúde, assistência social e direitos da criança e
adolescente) citados.
Mas há outros conselhos temáticos que merecem destaque.
Em pouco mais de uma quinta parte dos municípios (21,4%)
são encontrados conselhos do meio ambiente, seguindo-se em impor-
tância aqueles sobre turismo (15,6%), habitação (8,0%), transportes
(4,1%) e política urbana (3,4%). Há também uma expressiva parcela
de Municípios (52,3% do total) onde existem outros conselhos não
identificados. Na distribuição dos conselhos segundo as faixas de
população, verifica-se que tanto no caso dos conselhos de saúde,
quanto naqueles de assistência e ação social e de educação, que
apresentam percentuais de ocorrência bem elevados, eles são mais
intensos à medida que cresce o tamanho da população dos municípios.
No caso dos conselhos de direitos das crianças e dos adolescentes,
o percentual de ocorrência é relativamente bem baixo na faixa de
população inferior a dez mil habitantes (59,7%), situando-se pouco
acima da média para os municípios com população entre 10 mil e 20
mil habitantes (76,4%). Nos municípios com população entre 50 mil e
100 mil habitantes verifica-se a expressiva marca de 97,1%; enquanto
que alcança a 98,9% naqueles com população entre 100 mil e 500
mil habitantes. Para os municípios com população superior a 500 mil
habitantes, os conselhos de direitos da criança e dos adolescente são
encontrados em todos eles.
Os municípios com conselhos do meio ambiente apresentam
uma escalada notável: são encontrados em 13,9% das localidades
com população inferior a 10 mil habitantes e em 20,6% daqueles

268 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

com população entre 10 mil e 20 mil habitantes; mas alcançam a


marca de 76,9% dos municípios com população superior a 500 mil
habitantes. Escalada semelhante ocorre com os municípios que
possuem conselhos de política urbana, que registram um percen-
tual de 0,9% para os municípios com população inferior a 10 mil
habitantes e chega a 61,5% naqueles com população superior a 500
mil habitantes.
Em termos regionais, verifica-se que os conselhos de saúde,
assim como aqueles de assistência e ação social e os de educação
estão presentes em todas as regiões, com grande intensidade.
Os municípios com conselhos de emprego e trabalho somente
apresentam notoriedade na região Sul, onde chegam a atingir o índice
de 66,8%, seguidos pelas regiões Sudeste (27,0%) e Centro-Oeste
(24,3%). A distribuição dos municípios com conselhos do meio
ambiente apresenta maior frequência na região Sudeste (32,5%),
seguindo-se em importância as regiões Sul (29,1%) e Centro-Oeste
(19,1%). Para os demais conselhos o que se verifica é uma maior
frequência nos municípios da região Sul.

A experiência do orçamento participativo


Até o ano 2000, o Fórum Nacional de Participação Popular regis-
trava 103 municípios brasileiros que tinham instituído o orçamento
participativo (OP), concentrados nas regiões Sul e Sudeste e em
localidades que tinham entre 50 mil e 500 mil habitantes. Recente-
mente (2006), uma pesquisa organizada por Leonardo Avritzer listou
pouco mais de 170 municípios que contavam com experiências de
orçamento participativo. Em sete anos, um crescimento superior a
60%, mas mesmo assim, muito inferior à capilaridade dos conselhos
de gestão municipal. Esta pesquisa reforça a predominância da expe-
riência participativa na região Centro-Sul do país, como demonstra
o gráfico abaixo:

Da gestão participativa à estatalização 269


LULISMO | Rudá Ricci
% de casos de OP (2001-2004) por Região
Gráfico 1. % de casos de OP (2001-2004) por região

6% 12%
34% Norte
2%
Nordeste
Centro-Oeste
Sudeste
46% Sul

Fonte: Projeto Democracia Participativa, UFMG

A pesquisa revela, ainda, que é uma experiência majoritariamente petista:

Gráfico 2. % de casos de OP entre partidos – gestão 2001-2004

Fonte: Projeto Democracia Participativa, UFMG

A continuidade desta experiência, ao mudar o gestor na eleição


seguinte, não ultrapassou o teto de 40%. É um índice elevado, mas
que revela dificuldades para se constituir como crença de good go-
vernance em nosso país, ao contrário do que se imagina no exterior,
em especial, na Europa, Índia e América Latina. Talvez, por ainda
ser muito identificada com o PT. Em 60% das administrações petistas
que se reelegeram, o OP teve continuidade. Um índice que já revela
algum problema de convicção. Mas nas administrações de outros
partidos que haviam implantado o OP e que se reelegeram, o OP não
foi mantido em mais de 10% dos casos.

270 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Gráfico 3. % de OPs com continuidade da


% de Op s com continuidade da gestão
gestão 1997-2000 para a gestão 2001-2004
1997-2000 para a gestão 2001-2004

61,30 %

70,00 %
60,00 %
38,70 %
50,00 %
Sim
40,00 %
Não
30,00 %
20,00 %
10,00 %
0,00 %
Continuidade

Fonte: Projeto Democracia Participativa, UFMG

A continuidade da experiência, significativamente, é maior em


cidades pequenas, com até 100 mil habitantes (50,6% dos casos; sendo
que em municípios com mais de 500 mil habitantes, a continuidade
do OP não ultrapassa 10%).
Enfim, não se superou o teto de 5% dos municípios brasileiros
que adotaram o OP. A cultura da participação na elaboração do orça-
mento não se espraiou. Não se consolidou em nosso país. Num esforço
de balanço inicial, é possível apontar alguns motivos recorrentes:
Primeiro, porque ficou restrito ao Executivo. Poderia ter se
ampliado para a esfera do Legislativo, onde se aprova efetivamente
o orçamento. Não foram criados conselhos temáticos ou de direitos
nas Câmaras Municipais, algo que já se experimentou na Europa
com parlamentos juvenis, para citar um exemplo. Não foram ge-
neralizadas leis municipais que obrigassem o Legislativo a realizar
audiências públicas ou plenárias territoriais para definir prioridades
orçamentárias. O orçamento participativo é rejeitado por parte dos
parlamentares locais por considerarem que deslegitimam sua própria
representação territorial.

Da gestão participativa à estatalização 271


LULISMO | Rudá Ricci

Segundo, porque o OP não delibera sobre o orçamento de custeio.


E, mesmo o de investimento, não supera 10%, ficando na média de
4% do total. Mais, ainda, mesmo este diminuto recurso que é delibe-
rado raramente é executado efetivamente. Os relatos de prefeitos que
adotaram o OP são muito enfáticos: sobram obras não realizadas e
deliberadas nas plenárias, perpassando anos a fio. Tal situação gera
grande rotatividade de público participante dos ciclos de elaboração
do orçamento e muita frustração. Em municípios menores, a cobrança
é mais rotineira e, muitas vezes, menos agressiva, justamente por-
que as autoridades públicas são encontradas diariamente por uma
grande parcela de seus eleitores. E também porque em grande parte,
o Estado é o grande empregador em municípios menores. Enfim, os
cidadãos não podem discutir a folha de pagamento, os custos de car-
gos de confiança, a manutenção da máquina pública, o que sugere a
permanência da lógica de tutela da sociedade civil.
Terceiro, porque não foram equalizadas outras modalidades de
participação na gestão pública com o mecanismo de orçamento par-
ticipativo. Este é o caso dos conselhos de direitos e gestão pública.
Em muitos municípios, as duas experiências competem entre si, na
penumbra da política local. Em cidades grandes, a descentralização
das plenárias do orçamento participativo engole as deliberações dos
conselhos de direitos e gestão pública. Uma possível superação seria
a descentralização dos conselhos de direitos e gestão pública. Mas
permaneceria outro impasse: a escolha de conselheiros de direitos e
temáticos raramente se faz por eleição direta, como no caso dos con-
selhos do OP. Assim, temos um conflito de legitimidade e abrangência
da representação social dos conselheiros. Alguns municípios adotaram
um ciclo temático para incorporar temas e direitos específicos. Outros
incluíram os conselhos de direitos e gestão pública no conselho do
OP. Mas a contradição permanece. Afinal, o conselheiro do OP não
teria um mandato mais representativo que o conselheiro da política
cultural do município?
Quarto, porque se trata de uma experiência que envolve poucos
órgãos da administração pública, não alterando efetivamente a cultura

272 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

e a lógica de tomada de decisões no âmbito da estrutura estatal. Em


grandes municípios, como a cidade de São Paulo, não mais que três
secretarias participavam, ativamente e com frequência, das plenárias
do OP. A maioria das secretarias possui mecanismos e rotinas próprias
para definir sua proposta orçamentária e até para executá-las. Há
uma gama imensa de verbas vinculadas e mesmo fundos especiais
que não são discutidos em plenárias do OP, o que poderia obrigar os
executivos municipais a investir em fundos sociais (direitos da criança
e do adolescente, por exemplo).
Quinto, porque as lideranças e representantes da sociedade
civil não sabem governar. Não estudaram nos bairros ou escolas.
Não sabem o que é um ciclo orçamentário. Não sabem elaborar
indicadores de monitoramento de ações e programas públicos. E
não existe qualquer iniciativa nacional permanente (ou mesmo
estadual ou local) para superação deste déficit formativo. As lide-
ranças sociais de hoje não são meros líderes de mobilização. São
formuladores e gestores públicos, porque conquistamos este direito
na Constituição de 1988.
Sexto, porque o OP deixou de promover sua vocação: a reforma
democrática do Estado. A sociedade civil até tentou avançar nesta
direção. Elaborou proposta de lei, como é o caso da Lei de Respon-
sabilidade Social, formulada pelo Fórum Brasil do Orçamento e que
responsabilizaria a autoridade pública que não melhorar os indica-
dores sociais (denominados de “mínimos sociais”), sendo fiscalizado
pelos conselhos de direitos já existentes em cada localidade. Mas, o
que seria esta vocação? A vocação de substituir estruturas de ges-
tão verticalizadas pelas estruturas horizontalizadas. E este é o tema
mais complexo e delicado desta proposição que, justamente por este
motivo, foi sendo deixada para uma outra encarnação. Os conselhos
(de OP ou não) são estruturas de cogestão pública. E, neste caso, se
confrontam com o processo decisório das estruturas de tipo “impe-
rial”, vertical. Em outras palavras, a decisão solitária do gabinete de
um determinado secretário de assistência social pode desautorizar as

Da gestão participativa à estatalização 273


LULISMO | Rudá Ricci

deliberações de um conselho de assistência social, porque estaria em


dois espaços de gestão distintos.
O nó crítico, portanto, não reside no número de municípios que
adotam experiência participacionista, mas num conflito nem sempre
latente entre representações sociais.
O mais grave é o formalismo da representação e ingerência das
forças de governo sobre a autonomia dessas instâncias de gestão par-
ticipativa. No caso dos conselhos municipais, grande parte (caso dos
quatro tipos de conselhos com maior frequência no território nacional)
é instituída por lei federal e têm poder decisório, deliberando sobre
políticas locais afetas ao seu tema central. Os conselhos são instâncias
de Estado e não de governo e confirmam esta característica quando
são deliberativos. Em outras palavras, como são paritários (com
representação governamental e não governamental) e deliberativos,
supõe-se que esta instância supere a deliberação de governo, pois o
próprio governo participa, vota e se submete à decisão da maioria
dos conselheiros. Portanto, não se trata de órgão de governo, mas de
Estado. A ingerência de governo é perniciosa e conflita com a lei, o
que deveria ser punida com rigor, pois subverte a intenção política
de ampliar o direito político do cidadão.
Pesquisas recentes revelam o legado da cultura elitista e ex-
cludente no interior de algumas experiências de participação da
sociedade civil na gestão territorial. Pesquisa sobre associativis-
mo paulistano desenvolvido pelo instituto de pesquisas Criterium
(Cf. AVRITZER, 2004) revela a predominância de práticas asso-
ciativas originariamente religiosas na maior metrópole brasileira,
com presença marcante de demandas articuladas ao redor da
moradia, saúde e defesa dos trabalhadores. Seus membros são,
em sua maioria, mulheres de baixa renda e desfiliados sociais.
A forma de atuação é predominantemente informal (94% dos parti-
cipantes são voluntários). Contudo, quanto menor a escolaridade do
participante, menos ele se sente participante da tomada de decisões.

274 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Quando questionados se a participação trouxe alguma mudança nas


suas práticas e valores cotidianos, a maioria das respostas indicou a
melhora da relação com o outro, a solidariedade e o amor ao próxi-
mo, além de benefícios espirituais. O aprendizado político não supera
5% das respostas (sendo mais destacado pelos homens com ensino
superior). O mais significativo, contudo, é que quanto mais se sobe
na hierarquia das organizações sociais, maior a renda e nível de ins-
trução, chegando ao ápice quando se assume papel de conselheiro
de gestão pública.
Outra pesquisa, intitulada “Projeto Metrópoles, Desigualdades
Socioespaciais e Governança Urbana”, coordenada pela PUC-Minas,
Ipardes, UFRGS, PUC-SP, Fase e UFRJ e que envolveu 1.540 conse-
lheiros de Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Belém, São
Paulo e Rio de Janeiro, corrobora tal constatação. Revela que as dife-
renças de grau e forma de incorporação dos atores sociais em arenas
de gestão participativa estão diretamente relacionadas às diferenças
na proporção de pessoas habilitadas a participar do controle das po-
líticas sociais, bem como pelas diferenças entre as culturas cívicas e a
instituição e mobilização das esferas públicas.1
Com efeito, o perfil dos representantes da sociedade civil que
participam dos conselhos municipais pesquisados sugere a predomi-
nância de cidadãos com maior grau de instrução e renda:
a) 5
 1% possuíam educação universitária e 33% ensino médio
(Belo Horizonte apresenta indicadores próximos aos do Nor-
deste: 43% com ensino universitário, contra 60% no RJ e SP);
b) 6
 5% recebíam rendimentos superiores a 5 salários mínimos
e 38% acima de 10 salários mínimos (em BH, 58% recebem
mais de 5 salários mínimos, contra 86% em SP e 66% no RJ);
c) 5
 6% possuíam alto engajamento sociopolítico (associado ou
filiado a associação ou organização social), sendo que BH
está abaixo da média (47%), somente acima da situação de
Recife (42%);

Da gestão participativa à estatalização 275


LULISMO | Rudá Ricci

d) 6
 0% participavam de reuniões partidárias (BH está acima do
índice do Sudeste, com 52%, sendo o segundo maior índice
entre as capitais).
Um conjunto de ensaios e investigações preliminares e localiza-
das desvelou ainda mais as práticas contraditórias das experiências
participacionistas do Brasil. Apresentadas originalmente no III Con-
gresso da Associação Latino-Americana de Ciência Política, realizado
no final de 2006, estes estudos deram origem ao livro Democracia,
Sociedade Civil e Participação (DAGNINO; TATAGIBA, 2007, p. 9).
Na introdução, os organizadores do livro dão o tom das observações
que vêm a seguir:

O conjunto destes trabalhos se caracteriza, em primeiro lugar,


pelo abandono do registro celebratório e otimista que marcou a
primeira leva de estudos sobre o potencial democratizador tanto
da sociedade civil como dos espaços participativos que a abrigam.

Sobre a experiência do OP, Eleonora Cunha, ao analisar as expe-


riências de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo (2000 a 2003),
contrapondo-as à experiência dos conselhos de gestão pública, sugere:

Os orçamentos participativos de Porto Alegre, Belo Horizonte e São


Paulo mobilizaram mais de 350 mil pessoas no período estudado
com um perfil dos participantes que se aproximava da média da
população dessas cidades. Os conselhos estudados apresentaram
um número muito mais reduzido de participantes do que os OPs,
num total de 126 conselheiros, mas no conjunto do país seu número
supera o de vereadores. Ainda que não tenha sido realizado um
perfil específico destes conselheiros, estudos anteriores (PERFIL,
2001; CUNHA et al., 2003; FUKS, 2003) mostram que, de modo
geral, os dados de renda, escolaridade e associativismo apontam
para um segmento que se encontra acima da média da população
brasileira (DAGNINO; TATAGIBA, 2007, p. 33).

A autora sustenta que existe, ainda, uma importante assimetria


entre a participação de membros do governo e da sociedade civil no

276 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

interior dos conselhos de gestão pública, quanto ao acesso à infor-


mação, à influência nas deliberações, à manutenção da autonomia,
embora se revelem instrumentos de democratização das relações de
poder. Esta observação será retomada por outros estudos publicados
nesta coletânea.
O caráter mobilizador do OP (e nem tanto organizador, ou de
transformação dos processos de tomada de decisão efetiva das bu-
rocracias públicas) já havia sido identificado em avaliação do OP de
São Paulo na gestão Marta Suplicy, realizada pelo Instituto Cultiva.
No relatório de avaliação (p. 90-93), encontra-se:

Uma análise geral a respeito dos dados coletados revela que


o OP não conseguiu instalar uma dinâmica alternativa à ló-
gica burocrática e/ou tradicional da gestão municipal. São
raras as subprefeituras e secretarias que concorrem para
a promoção, organização e aprofundamento das plenárias
ou, ainda, que adotam o processo decisório sugerido pelo
OP como sua própria metodologia de tomada de decisões.
A eficiência administrativa e a eficácia na produção de resulta-
dos específicos por instância governamental parecem superar a
intenção pedagógica de promoção do empoderamento social nos
territórios. (...) Quase metade das subprefeituras que sediaram
as plenárias do ciclo temático apresentaram fortes restrições à
sua execução ou permaneceram ausentes em toda sua imple-
mentação (48,27% das subprefeituras). Pouco mais de um terço
das subprefeituras apresentaram uma relativa participação ou
integração das coordenadorias e outras instâncias governamen-
tais (34,48%). (...) O baixo índice de engajamento dos órgãos
governamentais pode ser creditado a dois fatores principais:
a) a resistência ou inércia da lógica burocrática fragmentária e
fragmentada da administração pública; b) receio político sobre a
capacidade de controle do governo sobre o aumento de demandas
que emergem nas plenárias.

Da gestão participativa à estatalização 277


LULISMO | Rudá Ricci

O levantamento indica aumento significativo da participação de


segmentos sociais não organizados nas plenárias do OP. Portanto,
a metodologia de mobilização social demonstrava acerto e sucesso.
O déficit residia no salto em relação às relações de poder e tomada de
decisão no interior do governo e da máquina administrativa pública.
Aqui reside um dos problemas graves destes processos institucionais
de participação do país: mobilizam, mas não conseguem alterar a
lógica tradicional da burocracia.
Retornando ao livro organizado por Dagnino e Tatagiba, o estudo
sobre conselhos de gestão pública de Curitiba, desenvolvido por Re-
nato Perissinotto e Mario Fucks (realizado entre 2002 e 2004) destaca,
como no caso do conselho de saúde, que “na maioria dos casos, o
debate não teve sequência, ou seja, mais da metade dos assuntos da
agenda do Conselho não geraram discussão” (DAGNINO; TATAGIBA,
2007, p. 49). Os autores sugerem que a ação de técnicos estatais inibe
o debate e a contestação no interior dos conselhos. No caso específico
do conselho de assistência social, afirmam:
No que diz respeito ao CMAS, pouquíssimas vezes as iniciativas
para discussão de um dado assunto dentro do Conselho foram
seguidas por uma reação de algum outro ator. (...) Isso não quer
dizer que o CMAS não delibera, quer, sim, dizer que ele delibera
sem debate ou contestação. (...) O Conselho é bastante atuante,
isto é, não se perde em questões voltadas exclusivamente para pro-
cedimentos internos. No entanto, como vimos anteriormente, não
há debate dentro do CMAS, o que faz do Conselho uma instância
estritamente decisória e não uma arena pública de discussão em
torno do que deve ser uma política pública de assistência social
(DAGNINO; TATAGIBA, 2007, p. 52 e 53).

Ressalte-se que a análise se debruça sobre uma capital do sul


do país, região que apresenta volume considerável de conselhos de
gestão pública. Se relacionarmos as observações dos autores com a
escala elaborada por Arnstein, é possível compreender que as experi-
ências em tela não chegam a constituir algo próximo do controle dos

278 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

cidadãos sobre políticas públicas, localizando-se, ainda, num meio


termo, o que as aproxima de um perigoso ritual de legitimação de
formulações geradas no interior da tecnocracia pública.
Uma terceira análise, sobre conselhos dos Comitês de Gestão de
Recursos Hídricos e o Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvol-
vimento Local do Vale do Ribeira paulista, realizada por Vera Coelho
e Arilson Favaretto, reafirma a tendência de uma participação seletiva
e elitista nesses fóruns de participação social. Para os autores:
No que diz respeito às forças sociais que participam dos foros,
essas regras têm contribuído para reforçar a exclusão dos seg-
mentos mais pobres da população local – como, por exemplo, os
que vivem da agricultura de subsistência em regiões distantes e
isoladas –, e os setores mais dinâmicos – como aqueles ligados,
por exemplo, ao setor de serviços. Isso porque, como foi apontado
anteriormente, tanto uns quanto outros não estão organizados em
associações, o que inviabiliza sua representação. (...) No que diz
respeito à comparação com o perfil da população, em ambos os
casos a média destoa das características principais da sociedade
local (DAGNINO; TATAGIBA, 2007, p. 113).

Os autores reafirmam o caráter técnico e excludente dos discursos


e regras existentes nesses fóruns de participação. Destacam o aspecto
excessivamente formal empregado pela Secretaria Executiva do Comitê
de Gestão dos Recursos Hídricos, o que dificulta a compreensão de
grande parte dos participantes sobre temas apresentados de manei-
ra hermética. O que retoma o distanciamento das metodologias de
educação popular das práticas institucionalizadas de participação
social em curso.
Finalmente, o ensaio de Adalmir Marquetti publicada nesta cole-
tânea, destaca-se por procurar classificar as experiências de orçamento
participativo no Brasil. A partir de um gradiente de participação (de
mera consulta pública ao OP de alta intensidade) o autor chega à
uma conclusão pessimista:

Da gestão participativa à estatalização 279


LULISMO | Rudá Ricci

As experiências de OP possuem um papel reduzido na definição


da receita orçamentária. A legislação brasileira sobre a compe-
tência das cidades para tributar é determinada em nível federal.
(...) Outro problema importante é a relação entre OP e planeja-
mento. Enquanto o planejamento é relacionado a médio e longo
prazo, a elaboração do orçamento é uma tarefa de curto prazo.
O OP tende a enfatizar questões locais, ligadas às regiões. (...)
Na dimensão da tomada de decisões, um problema importante
está na questão básica de quem provê o conhecimento técnico.
Esse pode ser utilizado para alterar as decisões das preferências
dos participantes. Os funcionários públicos que possuem o saber
técnico podem utilizar seus conhecimentos para evitar decisões
que contrariem seus ou os interesses do governo local. Em várias
experiências de OP, existem os chamados critérios técnicos para
a elaboração de uma demanda. (...) Na dimensão de controle, as
maiores dificuldades estão no poder político dos cidadãos sobre
o processo. Há uma série de questões organizacionais que são
inter-relacionadas e deveriam ser resolvidas para reduzir a de-
pendência do OP da vontade política da administração municipal.
Essas questões se vinculam com a institucionalização do processo,
a relação entre OP e o Poder Legislativo e os recursos financeiros
e pessoais alocados para a organização do OP (DAGNINO; TATA-
GIBA, 2007, p. 92 e 93).

O caráter de exclusão político que compõe a tradição brasileira


parece, assim, se reproduzir em várias experiências que pretendiam
superá-la. O que pode reafirmar o ressentimento político das popula-
ções historicamente marginalizadas ou mesmo sua eterna busca da
figura protetora. O ressentimento, assim, poderia ser a chave para
compreender a revolta latente que envolve grandes mobilizações polí-
ticas da história recente do país, mas que não deságuam num processo
organizativo mais perene. Estaríamos sempre à beira de uma revolta
contra uma política privatizada, construída em causa própria, mas que
não se configura em alternativa ao sistema político que alimenta tal
desvio do código moral aceito popularmente. Um código moral tortu-
oso, por sinal, que muitas vezes advoga em causa própria, ao menos

280 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

a favor de seu círculo familiar e de vizinhança, não ultrapassando o


limite dos interesses grupais. O ato corrupto, em si (como demonstram
pesquisas recentes sobre o tema, como a pesquisa “Corrupção na po-
lítica. Eleitor: vítima ou cúmplice?”, Ibope, 2006), não é o problema
central, ao contrário da exclusão ou mesmo da corrupção que beneficia
apenas uma minoria.
Por este caminho analítico, seria possível dialogar com a tese de
Sérgio Buarque, sobre o particularismo das relações políticas em nos-
so país. A possibilidade de emergir, por esta desilusão, a insinuação
sobre detentores do poder político, na qual pobres e marginalizados
procuram se inserir pelas frestas do poder político oficial, institucio-
nalizado, não estaria descartada, a despeito das inúmeras inovações
estabelecidas nos últimos vinte anos na gestão pública. Este habitus,
reafirmado no cotidiano não oficial da política, não se baseia no inte-
resse em participar do poder (motivação das inovações institucionais
participacionistas), mas apenas na tentativa de se fazer ouvir e ser
atendido nas demandas e necessidades domésticas, o que faz de todas
propostas participacionistas uma sugestão de elite e mediadores da
ação social, por mais paradoxal que possa parecer.
Os conselhos, inseridos nesta errática prática social e política,
que oscila entre o cinismo político, a revolta latente e a inserção
na lógica política oficial pelos escaninhos do favor e da compaixão
tortuosa, teriam uma difícil missão pedagógica. Na verdade, ou se
inserem nesta lógica social errática, o que legitimaria o que alguns
pesquisadores sugerem como mera ingerência do Executivo sobre
essas instâncias colegiadas de gestão pública, ou assumem uma
tarefa pedagógica, de diálogo aberto com tais práticas tacitamente
construídas em nosso país.
Seria a ação pedagógica no sentido proposto pela tradição da
educação popular, tal como sugerida por Paulo Freire.
A estrutura do Estado brasileiro é filiada à burocracia personalista
da Coroa Portuguesa. O estudo de Raimundo Faoro (1975), até hoje, é
a melhor referência sobre este legado. Ainda no século XVI, a Coroa

Da gestão participativa à estatalização 281


LULISMO | Rudá Ricci

Portuguesa iniciou a instalação de vários mecanismos e instrumentos


de controle sobre os próprios delegados que a monarquia lusitana
instalou para comandar o amplo território anexado como colônia de
exploração. Toda estrutura burocrática, apoiada no governador geral,
no ouvidor-mor e nas câmaras municipais, frequentemente se chocava
entre competências não muito bem definidas. As câmaras municipais
(ou Senados da Câmara, como eram denominadas) eram compostas
pelos proprietários e burocratas que dominavam a terra, assim como
seus descendentes, incorporados à Coroa por meio do que Faoro
denomina de aristocracia por semelhança, definida principalmente
pelo estilo de vida. Forma-se, assim, um estamento burocrático, que
procura dirigir a vida econômica, criando um legado cultural que
persiste na história do país. Obviamente que a soberania popular é
absolutamente abolida neste sistema e nos remete à característica
da burocracia estatal de tipo estamental (portanto, absolutamente
personalista) que se instaurou no Brasil a partir do século XVI e que
se desenvolveu no século seguinte. Uma burocracia de controle, com
competências conflitantes em seus diversos escaninhos, que procura
cooptar lideranças locais, mas que ao mesmo tempo se choca com a
dinâmica econômica por onde os agentes econômicos garantem seu
poder social e político. Uma estrutura contraditória, que se mantém
pela força e cooptação, mas que carece permanentemente de legiti-
midade e enraizamento concreto na sociedade nacional. Um Estado,
em outras palavras, apensado à organização social brasileira.
Os conselhos de gestão pública, por seu turno, diferem sobrema-
neira deste legado. São colegiados, nascem da representação direta
da sociedade civil, são muitas vezes transversais aos escaninhos da
burocracia estatal. Na medida em que se instalam nos territórios e
distritos de um município, sugerem a possibilidade de uma nova
institucionalidade de gestão pública, adversa à burocracia de tipo es-
tamental instalada em todo o território nacional. Mas, ao que parece,
a sugestão não se confirma. Tenderia a avançar sobre uma estrutura
colegiada de gestão sobre um território, não mais adotando a estru-

282 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

tura vertical – de inspiração estamental – mas em rede. A concepção


de gestão territorial em rede é recente e nasce da reorganização de
atores econômicos territoriais que procuram se estabelecer na nova
ordem competitiva oriunda do processo de globalização econômica
e tecnológica dos últimos vinte anos.2
O problema central do desenvolvimento territorial e da formação
de redes de controle territorial é a formação de protagonistas coletivos,
que imprimam a pluralidade de arranjos econômicos, sociais, políticos
e culturais e imponham uma nova forma de regulação local, a partir
de novos mecanismos de formulação de normas de convivência. Os
conselhos de gestão pública figuram como um possível protagonismo
nesta direção. Mas, para tanto, teriam que alterar profundamente seu
perfil e estrutura. Teriam que se constituir como estruturas normativas,
enraizados no território e articulados em interedes que acompanhem
as cadeias produtivas e desenvolvimento de territórios, com dotação
orçamentária e estrutura administrativa adequada às funções de mo-
nitoramento, orientação e planejamento do desenvolvimento. Porém,
mais importante, vinculados a uma rede educacional voltada para a
cidadania ativa.3
Estes são dois aspectos a ser aprofundados: o território como
espaço da organização política dos conselhos e a organização,4 a
partir de sua liderança, de uma rede educacional voltada para a ci-
dadania ativa.
Mas o território foi tomado como campo de resistência, do
ponto de vista dos movimentos sociais que se articularam no final
do século passado (e que, hoje, se configuram em boa medida como
organizações), mais vinculado à promoção de sua identidade cultural
que à luta pela inovação da institucionalidade pública. O território
apresentar-se-ia como elemento visível e marcado historicamente
pela ação das comunidades, ainda que a partir de uma grande dose
de misticismo e crença em códigos morais em desuso. O território,
contudo, é visível, percebido e compreendido popularmente.

Da gestão participativa à estatalização 283


LULISMO | Rudá Ricci

A hipótese aberta é a da necessidade de populações desfiliadas


socialmente em redefinir sua identidade social e reconstruir um aparato
institucional que regule as relações sociais e fomente o desenvolvimen-
to das regiões em que estão inseridas. Indicaria uma nova engenharia
política e necessariamente a reforma do Estado. Uma ousadia. Na
verdade, mais uma dentre tantas que os movimentos sociais brasilei-
ros gestaram ao longo dos últimos trinta anos e que continuam como
promessa não cumprida.

Notas:
1 Cf. SANTOS JR., Orlando Alves et al. Governança Democrática e Poder Local. Rio
de Janeiro: REVAN/Observatório das Metrópoles, 2004.
2 Em termos teóricos, Dallabrida, Siedenberg & Fernandez propõem um inventário
a respeito do desenvolvimento territorial e das estruturas em rede. Os autores
sugerem duas vertentes teóricas do que denominam novo regionalismo: a) a ver-
tente globalista; e b) a vertente regionalista. A vertente globalista se subdividiria
em outras quatro abordagens: Escola da Nova Política Urbana (NUP, em que os
governos locais não têm outra possibilidade que a de oferecer concessões às empre-
sas); City Marketing (competição entre cidades e regiões no âmbito do processo de
unificação do mercado europeu); Fluxo de Informações (redes de cidades e regiões
conectadas a partir do fluxo de informações); e literatura gerencial e administrativa
(perspectiva de uma ordem internacional sem fronteiras). A vertente regionalista
ressalta a perspectiva da territorialização do desenvolvimento. As cidades e regiões
passam a atuar como estruturantes e organizadores da inserção de suas economias
na organização globalizada, garantindo as peculiaridades locais. Ao contrário da
vertente globalista, a inserção se dá a partir da afirmação das localidades e não
através de sua submissão. Cf. Dallabrida, Siedenberg, Fernandez, 2004.
3 O conceito de cidadania ativa é desenvolvido por Maria Victória Benevides.
Em entrevista publicada na revista Teoria e Debate, 39, 1998, a autora sustenta:
“defendo, desde antes da Constituinte de 1987/88, o desenvolvimento de uma
democracia que agrega formas de democracia direta à representação (o que os
europeus chamam de democracia semidireta) e fui me aprofundando no tema.
Nossa Constituição acolheu, já no preâmbulo, a ideia da democracia direta, quan-
do o artigo primeiro diz que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente
ou através de representantes. O promissor advérbio ‘diretamente’ abriu a porta
para o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular legislativa, além de outros
mecanismos ligados à área do Judiciário. Eles estão esperando regulamentação,
como muitas coisas na Carta de 1988. Mas a porta foi aberta”.

284 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

4 Há uma longa bibliografia a respeito do tema da territorialização. Castel (1998) é


um dos autores que destaca a fluidez do conceito. Sugere que a territorialização
pode gerar nova fragmentação política. Por seu turno, Abramovay sugere o inver-
so: a territorialização fundaria uma nova cultura cívica, apoiando-se nos estudos
de Robert Putnam. Bandeira, por seu turno, procurou sistematizar o Estado da
Arte das teorias e experiências de construção de novos mecanismos de regulação
do desenvolvimento territorial esboçadas ao longo dos anos 1990. Propõe uma
mudança de paradigma no planejamento de ações públicas, substituindo a refe-
rência em grandes regiões por iniciativas de abrangência sub-regional ou local,
mais calibradas com base em diagnósticos mais precisos da situação e que têm
um elenco de problemas mais homogêneo. Sua proposição apoia-se em teses
adotadas pelas agências internacionais de fomento ao desenvolvimento.

Referências
ABRAMOVAY, Ricardo. O capital social dos territórios: repensando o
desenvolvimento rural. Comunicação apresentada no ENCONTRO DA
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA, 4. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1° a 4 de junho de 1999.
BENEVIDES, Maria Victoria. A cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1991.
BANDEIRA, Pedro. Participação, articulação de atores sociais e desenvolvimento
regional. Brasília: Ipea, 1999 (Texto para discussão n. 630).
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do
salário. Petrópolis: Vozes, 1998
DALLABRIDA, Valdir Roque; SIEDENBERG, Dieter Rugard; FERNÁNDEZ,
Victor Ramiro. Desenvolvimento territorial: uma revisão teórica na
perspectiva da territorialização do desenvolvimento. In: WITTMANN,
Milton; RAMOS, Marília P. (Org.). Desenvolvimento Regional – Capital
social, redes e planejamento. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 101-133.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1975, 2 v.
INSTITUTO CULTIVA. Avaliação do Orçamento Participativo de São
Paulo, 2004. Disponível em: <http://www.cultiva.org.br/texto_publi/
OP_SP.pdf>.

Da gestão participativa à estatalização 285


Capítulo 3
DESAFIOS RECENTES DA EDUCAÇÃO
POPULAR NO BRASIL

Os impasses do participacionismo que se tornaram mais nítidos


durante a gestão Lula tiveram, como se pretendeu demonstrar, como
seu maior obstáculo a permanência de traços de práticas tradicionais
e patrimonialistas mesmo no interior das organizações populares que
pretendiam enfrentá-los. Contudo, grande parte dos militantes sociais
que lideraram o movimento participacionista que convergiu para a
legislação inovadora iniciada pela Constituição de 1988 e na rede
gestão pública participativa da década seguinte passou por muitos
programas de formação lastreados na educação popular. Este último
capítulo procura lastrear as bases conceituais e metodológicas da
educação popular brasileira e seus déficits ou mudanças de percurso
que poderiam lançar luz às dificuldades em se superar uma cultura
política que foi rejeitada desde as primeiras articulações do que seriam
os novos movimentos sociais.
Comecemos por compreender os princípios norteadores da edu-
cação popular que forjou uma rede de lideranças sociais Brasil afora.
Carlos Rodrigues Brandão, num livro que organizou em 1982,
conseguiu capturar, na fala de um agricultor do sul de Minas Gerais,
o conceito mais acabado de educação popular desenvolvido no Brasil
a partir da segunda metade dos anos 1970 e que atingiu seu ápice na
década seguinte. Antônio Cícero de Sousa, o agricultor entrevistado,

287
LULISMO | Rudá Ricci

residia numa propriedade que ficava entre os municípios de Andradas


e Caldas. Ciço, como é conhecido, descreveu, assim, sua concepção
do que seria educação:
Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que
pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas
não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto da roça,
a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da
regra de pobre. Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi
nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi
pra mim. Então, “educação”. É por isso que eu lhe digo que a
sua é a sua e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha?
Que a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É
ali mesmo: um filho com o pai, a filha com a mãe, com a avó.
Os meninos vendo os mais velhos trabalhando. Se um tipo desse
duma educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos
conversando, com adultos, os velhos, até mulheres, conforme foi
dito, assim num acordo, num outro tipo de união, com o povo
todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa
que é nossa também, que então juntasse ideia de todos, nós, num
assim, assim, então, havia de ver que o povo daqui tem mais de
muita coisa do que a gente pensa.

Ciço não era integrante de nenhum movimento social, nem havia


se envolvido em qualquer projeto educacional. Se fosse militante de
movimento social dos anos 1980, teria destacado, em sua fala, alguns
conceitos caros à luta social do período. Teria falado em autonomia
política (talvez, nomeando-a de independência ou liberdade), não se
vinculando a qualquer instituição, partido e muito menos às inten-
ções de governos. Nos anos 80 era assim. Militantes de movimentos
sociais expressavam-se a partir de um ideário construído ao longo da
segunda metade dos anos 1970 que articulava conceitos marxistas e
cristãos. Daí surgia um poderoso discurso, que se fundava na valori-
zação da dignidade do homem pobre, da postura anti-institucional,
da luta social pela libertação política e econômica e pela organização
autônoma dos pobres em pequenas estruturas de base, locais.

288 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

Ciço teria sublinhado, ainda, que qualquer projeto educacional


deveria ser libertador, valorizando a cultura do homem simples,
constituindo-se num instrumento de politização.
Mas Ciço não era um militante. Mesmo assim, articulou enxada
com educação, confirmando que a enxada foi, para ele, uma escola.
Mas, logo em seguida, diz que a educação do “doutor” era, também,
a educação que a escola formal lhe oferecia. E completa, destacando
o erro metodológico dos processos educacionais formais que ignoram
os códigos populares de comunicação, o ritmo natural do processo de
aprendizagem, a educação como diálogo, troca de intenções.
Este foi o mote dos projetos de educação popular daqueles anos
70 e 80. De todos os educadores que inspiraram (e se inspiraram
em) tais elaborações, Paulo Freire foi o que se aproximou mais desta
motivação e intenção efetivamente popular. Não por outro motivo,
foi e ainda é uma declarada referência para as iniciativas de educação
popular. E que tinha o homem marginalizado social e politicamente
como seu alvo. Não foi coincidência, portanto, que o livro de Bran-
dão tem início com uma fala de um pobre agricultor, dos rincões
esquecidos do país.
O tema da cultura do homem simples, que na época se denomi-
nava de “cultura popular” era central nesta elaboração. Existiria uma
concretude na vida e no cotidiano do homem simples que era, por si,
educativa, porque formava o homem forte, autônomo, marcado pela
sua identidade cultural. Era a educação do Brasil Profundo. Neste co-
tidiano, por sua vez, não se encontram momentos épicos, porque fala
aos sussurros, diariamente, repetidamente. E, assim, vai ensinando a
lição moral do dia a dia, aprendendo a ser forte.
Paulo Freire compreendia, do ponto de vista educacional, esta
perspectiva do homem simples.1 Compreendia a perspectiva de Ciço
a partir de um sincretismo original: a fenomenologia, o marxismo
não ortodoxo de Gramsci e referências do cristianismo engajado. Um
sincretismo que, convenhamos, se aproxima em muito do ideário ex-

Desafios recentes da educação popular no Brasil 289


LULISMO | Rudá Ricci

presso por Ciço. Entendamos, portanto, o projeto popular educacional


do período a partir das proposições de Paulo Freire.
No final dos anos 1980 e início dos 1990, Paulo Freire organi-
zou uma longa conversa com o também educador e militante norte-
-americano, Myles Horton. Em diversas passagens deste encontro,
Freire discorreu sobre a relação entre o saber cotidiano e a formação
para a cidadania, a articulação original das concepções brasileiras de
educação popular. Vejamos algumas dessas passagens:2
É interessante pensar constantemente sobre o clima político, o
clima social, o clima cultural nos quais estamos trabalhando
como educadores. Eu não creio em programas de alfabetização
de adultos que sejam simplesmente organizados por alguns edu-
cadores em algum lugar e depois oferecidos para analfabetos em
todo o país. Isso não funciona. Lembro que em 1975 houve uma
reunião internacional, em Persépolis, patrocinada pela Unesco,
com o objetivo de analisar alguns relatórios preparados pela pró-
pria Unesco, avaliações de programas de alfabetização de adultos
no mundo inteiro. (...) Uma das conclusões que foi colocada no
relatório final foi que os programas de alfabetização de adultos
tinham sido eficientes nas sociedades em que o sofrimento e a
mudança tinham criado motivação especial nas pessoas para ler
e escrever. (...) As pessoas queriam e precisavam ler e escrever,
justamente a fim de ter mais possibilidade de serem elas mesmas.

O que Paulo Freire tenta, nesta passagem, revelar é a íntima


relação entre a politização (ou “instrumentalização política”) do ato
de ler e escrever. Em segundo lugar, sugere que esta motivação, no
caso de programas de alfabetização em massa, surge a partir de uma
dada conjuntura política de mobilização e transformação social. Esta
é a senha precisa, na teoria freireana, do processo de fusão da di-
mensão educacional com a política. São instâncias que se entrelaçam
numa dinâmica social única. O educando necessita politicamente do
aprendizado para se apropriar de um instrumento político. É um mo-
vimento inverso de muitos processos de alfabetização oficial no qual o

290 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

educando era objeto das intenções políticas, sendo capturado e apro-


priado pelo mundo letrado. A alfabetização deixa de ser um favor dos
privilegiados, uma política de inserção no mundo que os excluiu, para
se constituir num sentimento de libertação. Tom Zé, músico baiano, re-
lata que quando leu pela primeira vez um texto, ainda pequeno, ficou
quatro ou cinco dias sentado na soleira de sua casa, pensativo. Nada
tinha sido tão fantástico na sua vida, até então. Ele se perguntava se
todos que leram aquelas letrinhas tinham entendido o mesmo que ele.
E, então, percebeu que tudo o que ele achava do mundo estava
errado, porque as letrinhas tinham um poder que ele nunca havia
imaginado. Tinha o poder de comunicar sentimentos, de unir os
homens de lugares tão distantes. Tom Zé descobriu uma arma de
integração, comunicação e poder. Sentiu, ao ler o texto, o mesmo
que hoje sentimos ao navegar na internet. Estamos soltos no mundo,
envolvidos num poder não visível, mas compreendido. É sobre este
poder da alfabetização, esta compreensão política do seu poder, que
Paulo Freire se referia.
Mas esta “politização” necessária do alfabetizando possui uma
peculiaridade. A alfabetização e o ensino não podem adotar como
função a organização, mas ser um meio para este fim, segundo
Paulo Freire:
Como é possível para nós trabalhar em uma comunidade sem
sentir o espírito da cultura que está lá há muitos anos, sem tentar
entender a alma da cultura? Não podemos interferir nessa cultura.
Sem entender a alma da cultura, apenas invadimos essa cultura.
Meu respeito pela alma da cultura não me impede de tentar,
com as pessoas, a mudar algumas condições que, a meu ver, são
obviamente contra a beleza de ser humano. Deixe-me dar um
exemplo concreto. Tomemos uma tradição cultural importante na
América Latina que impede que homens cozinhem. Em última
análise, os homens criaram essa tradição e a premissa nas mentes
das mulheres é que, se os homens cozinharem, dão a impressão
de não serem mais homens. (...) Tomemos uma segunda comu-
nidade na qual os homens não fazem nada relacionado com o

Desafios recentes da educação popular no Brasil 291


LULISMO | Rudá Ricci

trabalho doméstico. As mulheres fazem tudo na casa e também


no campo, e os homens voltam do campo só para comer, mas
as mulheres também estiveram lá trabalhando. Ora bem, eu sou
um educador e estou falando em oficinas com essa comunidade.
Minha pergunta é a seguinte: é possível que eu, com relação à
minha compreensão de mundo – porque respeito a tradição cul-
tural dessa comunidade – é possível que eu passe toda a minha
vida sem nunca tocar nesse assunto? Sem nunca criticá-los só
porque eu respeito sua cultura tradicional? Não, eu não faço isso.
Mas eu não estou invadindo ao não fazer isso – isso é, fazendo
o oposto, criticando, questionando os homens e mulheres dessa
cultura para que entendam como aquilo está errado de um ponto
de vista humano. (...) Eu insisto: uma coisa é respeitar; a outra é
manter e encorajar alguma coisa que não tem nada a ver com a
visão do educador. Prefiro ser mais claro e assumir minha obri-
gação de questionar, mas é claro, eu sei que tenho a obrigação de
questionar aquela cultura e aquelas pessoas. Não posso começar
no dia em que chego. Não posso fazer isso. Então, a questão não
é estratégica, é tática. Estrategicamente eu sou contra ela. Estou a
favor da luta das mulheres. Taticamente posso ficar quieto sobre o
assunto seis meses, mas na primeira ocasião que tiver, devo colocar
a questão na mesa, embora nos deixe a todos desconfortáveis. (...)
O educador ou educadora, como um intelectual, tem que intervir.
Não pode ser um mero facilitador. (...) O que o educador deve
fazer quando ensina é possibilitar os alunos a se tornarem eles
mesmos. E ao fazer isso, ele ou ela vive a experiência de relacionar
democraticamente como autoridade com a liberdade dos alunos.
Esta longa passagem da fala de Paulo Freire publicada no livro
em que dialoga com Myles Horton expressa o papel político do edu-
cador que se posiciona numa relação entre cidadãos (no caso, edu-
cador e educando). Percebe-se a tensão permanente que esta relação
provoca, mesmo na fala de Freire. O educador entende a cultura da
comunidade e a respeita, mesmo não aceitando seus valores e práti-
cas, porque se posiciona como igual e não como possuidor de cultura
superior. Mas, como cidadão, posiciona-se assim que ganhar o respeito

292 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

e a confiança da comunidade em que atua. Por que se silencia até


ganhar a confiança da comunidade? Por uma questão tática, como
diz Freire. Aqui se explicita com nitidez a tensão política/educação
libertadora que nem sempre foi observada nos cursos de formação de
lideranças sociais, mesmo que tenham se inspirado declaradamente
nos princípio freireanos. O educador encontra-se no fio da navalha
justamente porque a sua sensibilidade e leitura da realidade e das
relações que estabelece com a comunidade orientam os passos que,
como educador, define para expressar sua crítica às práticas sociais
que o incomodam. O cuidado tático não é um mero subterfúgio para
convencer. Na concepção freireana, se impõe para estabelecer um
diálogo entre cidadãos iguais. Não é a crítica de um superior, mas o
contraponto à realidade e valores da comunidade. Daí porque Paulo
Freire afirma, em dado momento, que o papel do educador é possi-
bilitar os alunos a serem eles mesmos. Ao questionar como igual, o
educador exige um posicionamento do educando, revela possíveis
contradições, exige posicionamento frente à tradição. Em termos
psicanalíticos, seria a tarefa de provocar a análise e a construir a au-
tonomia possível do sujeito. Ao “se ver de fora”, o educando passa
a se apropriar de suas motivações, ações e valores. Torna-se sujeito.
Por este motivo, Paulo Freire escreveu tantos textos destacando o ato
de ad-mirar, ver-se de fora.
Esta leitura peculiar do papel da educação popular se espraiou
por organizações populares, de assessoria a comunidades pobres,
por organizações confessionais mais progressistas (entre elas, a Igre-
ja Católica e a Metodista), por segmentos do movimento sindical e
alguns movimentos sociais. Esta tensão educacional foi constitutiva,
inclusive, de certa crise de identidade de diversas pastorais sociais e
organizações de apoio e assessorias a movimentos sociais quando,
em meados dos anos 1980, vários movimentos consolidaram suas
próprias organizações. A tensão provocada pelos educadores críticos
havia gerado sujeitos políticos institucionalizados. E, então, qual
passaria a ser o papel da educação popular no Brasil?

Desafios recentes da educação popular no Brasil 293


LULISMO | Rudá Ricci

Os casos mais evidentes ocorreram no campo sindical e no mo-


vimento de luta pela terra. Centrais Sindicais e Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra (MST) constituíram, ao longo dos anos
1980, sólidas estruturas educacionais, com concepções e estruturas
curriculares próprias. A CUT chegou a criar um sofisticado sistema
educacional, o Sistema Nacional de Formação, constituído de escolas
sindicais com corpo técnico fixo, programas de formação permanen-
tes, um conjunto de monitores e assessores educacionais (sociólogos,
pedagogos, historiadores, filósofos), secretarias estaduais de formação,
coletivos de formação por categoria. Cursos permanentes (história
do movimento sindical, técnicas de negociação coletiva, matemática
sindical, técnicas de comunicação, política industrial, organização no
local de trabalho, entre outros) se espalharam pelo país afora. Uma
revista específica (Forma & Conteúdo) foi editada para estimular e
unificar as metodologias e currículos de formação sindical.
No caso do MST, o arrojo de sua estrutura educacional foi, tam-
bém, impressionante.
Um Manifesto de Educadores e Educadores da Reforma Agrária
publicado em 1997 num jornal do MST, sintetiza os objetivos do seu
projeto educacional:
Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso
tempo e que ajude no fortalecimento das lutas sociais, e na solução
dos problemas concretos de cada comunidade. (...) Acreditamos
numa escola que desperte os sonhos de nossa mocidade, que cul-
tive a solidariedade, a esperança e o desejo de aprender sempre
e de transformar o mundo. Entendemos que para participar da
construção desta escola nós, educadoras e educadores, precisamos
construir coletivos pedagógicos com clareza política, competência
técnica, valores humanistas e unidade de ação. Lutamos por
escolas públicas em todos os acampamentos e assentamentos de
reforma agrária do país e defendemos que a gestão pedagógica
destas escolas tenha a participação da comunidade sem terra e de
sua organização.

294 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

O professor de um assentamento ou acampamento rural é orien-


tado para criar condições para que alunos tomem decisões e sejam
responsáveis por elas. Seu plano de trabalho deve conter: a) situações
de estímulo para que os alunos se organizem e trabalhem em grupos;
b) situações de aprendizagem para que tomem decisões por conta
própria; c) situações em que planejem e avaliem as ações no coletivo
dos alunos; d) situações em que controlem o trabalho e a produti-
vidade; e) situações em que superem os oportunismos dos colegas.
Neste aspecto há uma clara inspiração dos processos de formação
de lideranças de movimentos sociais. O MST possui, ainda, material
didático específico, como Boletins de Educação, Cadernos de Educação
e Fazendo a História. Como se percebe, esta organização possui uma
estrutura articulada de um sistema educacional que se aproxima em
muito da estrutura educacional formal brasileira.
Assim, a crise de identidade de tantas organizações que se
dedicaram exclusivamente, da segunda metade dos anos 1970 até o
final dos anos 1980, à educação popular, exigiu um aggiornamento
significativo na última década do século XX. Esta atualização, como
afirmamos, foi ainda mais complexa em virtude da transformação
dos movimentos sociais. Uma transformação gerada por sua institu-
cionalização. Dos movimentos sociais às organizações, a mobilização
social e a explosão de reivindicações populares passaram a sustentar
a estruturação e à manutenção da própria organização. A organização
teria se tornado um fim, portanto.
Se tal fenômeno se consolidou efetivamente, poderíamos aven-
tar a hipótese, como consequência, de uma profunda mudança nos
conceitos do que se denominava educação popular. Sua identidade
fundacional, libertária, marcada pela tensão entre educador e edu-
cando, teria, então, se alterado?
Para responder tal questão, comecemos recapitulando os prin-
cipais elementos constitutivos da educação popular brasileira até
meados dos anos 1980.

Desafios recentes da educação popular no Brasil 295


LULISMO | Rudá Ricci

Eram seus elementos centrais:


a) Processo educacional de caráter emancipatório. Enquanto
metodologia educacional respeita o educando como cida-
dão, possuidor de saberes e valores legítimos. Do ponto de
vista político, o projeto educacional objetiva estabelecer um
processo de constituição de sujeitos coletivos autônomos. A
função educacional libertadora é organizativa, pautando-se
pelo respeito e promoção à cultura e valores locais da co-
munidade envolvida no processo educacional, mas criando
situações-problema e dilemas. Por dialogar com a fenomeno-
logia, partia da percepção individual sobre a realidade, cote-
java com a percepção de outros educandos e criava questões
comuns a serem aprofundadas. Somente a partir daí surgia
uma segunda leitura, a teoria;
b) Processo educacional como meio. Toda estrutura educacional
(currículo e educadores, inclusive) estaria voltada para a
constituição de sujeitos coletivos. Seriam estruturas media-
doras, motivadoras da organização popular, voltadas para
o fomento da leitura crítica da realidade dos educandos.
Assim, as estruturas da educação popular não eram autor-
referentes (porque mediadoras e dinâmicas, acompanhando
o movimento imprevisível dos educandos), se aproximando
das características de movimento social e se distanciando
da lógica das organizações. A única possível exceção era a
formulação metodológica. Este tema motivava encontros e
seminários constantes, de troca de experiências e aprofunda-
mento conceitual. A tensão educador/educando era um tema
recorrente. Alguns textos de apoio que circulavam à época
destacavam o necessário desprendimento do educador em
relação à sua residência. Afirmava-se que o educador deveria
saber que seu destino era a organização popular constante.
Quando a organização social florescia em determinada região,
era chegada a hora do educador partir para outras regiões,

296 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

semeando a auto-organização popular, numa declarada ati-


tude missionária;
c) Cultura anti-institucional. A educação popular possuía uma
natureza comunitária. O ideário confessional, que orientava
grande parte das experiências que se disseminaram pelo país
na época, contribuiu sobremaneira para o fortalecimento desta
característica. Assim, na medida em que algumas estruturas
educacionais se institucionalizavam (escolas paroquiais ou
comunitárias, escolas sindicais e outras), passavam a ser diri-
gidas por instâncias gerenciais comunitárias. Criava-se, assim,
ainda que instintivamente, sistemas educacionais paralelos
aos formais, oficiais. Obviamente que esta situação ganhava
contornos políticos a partir do conceito de autonomia política,
francamente difundido nessas experiências à época;
d) Pedagogia do Oprimido. Tanto os conceitos articuladores,
quanto a metodologia educacional empregada orientavam-
-se por uma peculiar leitura dos conflitos entre as classes
sociais e se posicionavam a favor das classes oprimidas. Daí
o respeito à cultura das comunidades oprimidas e a postura
gradativamente crítica do educador que deveria questionar os
elementos “não humanistas ou opressivos” desta cultura. A
tensão educador-educando era similar à tensão sujeito-objeto
que as metodologias de pesquisa participante ou pesquisa-
-ação provocavam no mesmo período. Aqui, grande parte
das formulações metodológicas foi caudatária das teorias de
Paulo Freire. Tomaz Tadeu da Silva sugere que o marxismo
humanista (apoiado em Erich Fromm), a fenomenologia
existencialista cristã e a leitura dos críticos do processo de
dominação colonial (Memmi e Fanon) de Paulo Freire teriam
colocado ênfase metodológica nos processos de dominação,
em especial, na primeira fase de suas formulações (SILVA,
2003, p. 58). O humanismo cristão de Freire enfatizará
a postura “humilde” e a “fé nos homens”, sustentando o

Desafios recentes da educação popular no Brasil 297


LULISMO | Rudá Ricci

necessário vínculo dos currículos à situação existencial dos


educandos. A problematização empreendida pelo educador,
já destacada anteriormente, possui lastros fenomenológicos:
o ato de conhecer possuiria uma intencionalidade por parte
do educando. O conhecimento não viria de fora da existência
do educando, mas se construiria a partir da forma como a
realidade se apresentaria na sua consciência. E é a partir do
diálogo entre os homens que este “mundo para a consciência”
se materializa, é apreendido. Daí todo processo educacional
adotar como ponto de partida a realidade percebida pelos
educandos (temas e palavras geradoras);
e) T
 iming do processo educacional orientado pelo ritmo comuni-
tário. O processo educacional orientou-se pela lógica comu-
nitária, seu ritmo de aprendizagem cotidiano, marcado pela
oralidade, pelas tradições, pela relação com a natureza e/ou
pelas relações intersubjetivas. Não raro, o educador popular
estabelecia laços de amizade e confiança mútua com a co-
munidade, tornava-se seu defensor e frequentava os rituais
coletivos. O tempo das trocas comunitárias não chegou a ser
um objeto de análise no período, mas sempre foi comentado
nos encontros técnicos. Havia duas motivações em relação ao
tema para os educadores. Uma delas, de natureza metodoló-
gica, de respeito ao movimento de tomada de consciência e
à cultura local. A outra, fundada na clara intenção de forma-
ção moral, de valorização do que se denominava “formação
integral do sujeito” e não apenas a formação “instrumental”,
voltada para a técnica. Embora não fosse citado em nenhum
documento de referência à época, um texto de Bertrand Rus-
sell parece plasmar esta intenção dos educadores populares
(RUSSEL, 2002). Segundo este autor, os momentos de despre-
ocupação seriam importantes no processo educativo porque
permitem ao educando avaliar com maior profundidade sua
experiência. Sem tais momentos, o processo educacional ali-

298 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

menta a apatia. Critica-se indiretamente o “culto à eficiência”


na educação. Segundo Russell:
(...) o divórcio entre os fins individuais e os fins sociais da
produção é que torna tão difícil pensarmos com clareza num
mundo em que a busca do lucro constitui o único incentivo ao
trabalho. (...) Os prazeres das populações urbanas se tornaram
fundamentalmente passivos: ver filmes, assistir a partidas de
futebol, ouvir rádio e assim por diante. (...) A vantagem mais
importante do conhecimento “inútil” é, talvez, a de incentivar
a atitude mental contemplativa. O mundo tem revelado uma
exagerada tendência para a ação. (...) O que se necessita não
é de tal ou qual informação específica, mas do conhecimento
que inspire uma concepção da finalidade da vida humana
com um todo.

Não poderia haver expressão mais fiel ao sentido do timing do


processo educacional defendida pelas práticas da educação popular
dos anos 1970 e 1980.
O sujeito coletivo eleito como interlocutor privilegiado das prá-
ticas do que estamos denominando de educação popular foram os
movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1970. Os mo-
vimentos sociais fortalecem-se e alimentam-se do mesmo caldo de
cultura que fundamentava as práticas da educação popular brasileira.
Um era instrumento da estruturação e conformação do outro. Beatriz
Costa sugere uma genealogia que se inicia no final da década de 1950
(COSTA, 2000). Para a autora, os primeiros anos desta perspectiva
educacional são marcados pelas reformas de base e pela revolução
cubana, que lhes conferem as características que se mantêm até hoje:
referência à justiça social e à democracia e perspectiva de transfor-
mação social profunda:

Em geral, era vista como compromisso com as camadas populares


e com a sua participação constante nos movimentos e iniciativas.
A educação já não vem com aquele sentido assistencial que
tinha nas décadas anteriores, quase que de se preocupar ape-

Desafios recentes da educação popular no Brasil 299


LULISMO | Rudá Ricci

nas em evitar que os meninos se tornassem delinquentes. (...)


Havia referências teóricas propostas por Paulo Freire, pelo
Movimento Popular de Cultura, pelos CPCs da UNE (União
Nacional dos Estudantes), pelo MEB (Movimento de Educação
de Base), por um sem número de iniciativas educacionais vol-
tadas para a valorização e fortalecimento da cultura popular.
O personalismo, o solidarismo e o marxismo tiveram grande in-
fluência nesse primeiro tempo (COSTA, 2000, p. 15 e 16).

O conceito de educação popular nasce sob o signo da educação


informal, para além (muitas vezes, em oposição) ao formalismo e de-
terminismo escolar. Costa sugere ser “todas aquelas intervenções junto
aos grupos populares, no sentido do trabalho educativo”. O conceito,
ainda vago, vincula educação ao movimento de formação cidadã que
ocorre nos movimentos sociais. Daí uma tensão permanente entre
educar e politizar, porque a tensão original, fundante, é aquela entre
o conceito de educar da militância leninista – muitas vezes adotando
um caráter populista em que o saber só é possível emergir quando
ausente do mundo da alienação e da dominação – e o conceito de
educar de origem cristã-fenomenológica, presente na obra de Paulo
Freire e nas proposições iniciais do MEB (Movimento de Educação
de Base) e do trabalho de organização de base da juventude católica
que, mais tarde, dará origem a diversas articulações políticas, como
foi o caso da Ação Popular (AP). Neste último caso, o saber sentido,
a consciência do real que brota do percebido e traduzido pelo homem
que o vivencia gera um novo estatuto político-educativo ao mundo
cotidiano, desprezado até então pela leitura das organizações leni-
nistas. Assim, a sabedoria popular ganha estatuto político, como um
aprendizado cotidiano. O papel da educação popular seria tensionar
esta sabedoria que brota do cotidiano pensado com o conhecimento
nascido da racionalidade científica. Os anos 1970 cruzaram as duas
perspectivas formativas, criando um projeto educacional paralelo ao
oficial, não necessariamente informal (embora desejasse a informali-
dade por mergulhar no movimento diário da construção do saber do

300 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

homem simples), mas que continha uma tensão original entre ser uma
alternativa ao modelo educacional vigente e permanecer focalizado
nas práticas comunitárias, locais. Uma vocação, enfim, que nunca se
define, entre ser universal ou permanecer a serviço da comunidade.
O final dos anos 1980 gerou uma profunda inflexão na trajetória
dos movimentos sociais e, consequentemente, na proposição das
práticas de educação popular. Na medida em que aumentaram seu
poder político e, em alguns casos, chegaram a se profissionalizar
(gestando um corpo administrativo permanente, fluxo estável de
recursos financeiros, planejamento de ações unificado e orientações
e regras de conduta formalizados no seu interior, assessoria técnica
específica), os valores universais e mesmo o ideário humanista-cristão
que cimentava a quase totalidade dos movimentos sociais que se
espraiavam pelo território nacional passaram a ser apropriados ou
reformulados por cada uma das organizações que se consolidavam.
A unidade do ideário original foi, lentamente, se cindindo num
mosaico de movimentos e organizações. Esta tendência parece se
fortalecer no final dos anos 80, quando muitas lideranças de movi-
mentos sociais são lançadas ao parlamento e executivos municipais.
O caráter anti-institucionalista e a radical autonomia política dos
movimentos sociais sofrem contradições evidentes a partir desta nova
realidade. Pode-se afirmar que se forja, a partir de então, uma espécie
de “blocos de representações e interesses” no interior dos parlamentos
e até mesmo na captação de recursos financeiros para manutenção
das organizações populares.
Ora, se adotamos como premissa que as práticas políticas consti-
tuem a natureza dos agentes sociais,3 o processo de transformação dos
movimentos sociais em organizações teria provocado uma alteração na
natureza, inclusive, das práticas educativas (ou formativas) dos mes-
mos. Com efeito, as demandas difusas de tantos movimentos sociais
(saúde, educação, terra, moradia, e assim por diante) se unificavam,
até então, exclusivamente em função de um discurso humanista-

Desafios recentes da educação popular no Brasil 301


LULISMO | Rudá Ricci

-cristão de lideranças populares. Esta engenharia discursiva adotou


como estratégia o apelo emocional que se aproximou, muitas vezes,
de uma proposição populista. O discurso emocional e muitas vezes
populista, por sua vez, questionava a capacidade do sistema institu-
cional absorver as demandas concretas difusas. Em suma, é a emoção
e o sentimento de exclusão ou marginalidade frente à ação pública
institucional que alimentou a legitimidade do discurso do líder. Daí a
passagem de inúmeros líderes ao parlamento e executivo municipais
criar um curto-circuito na coesão dos diversos movimentos sociais.
Esta nova realidade política gerou, de imediato, três possibilida-
des no rearranjo do sistema de representação dos movimentos sociais.
A primeira, orientada pelo afastamento das lideranças em rela-
ção aos movimentos sociais dos quais eram oriundos e subsumindo
à lógica das burocracias públicas, aproximando-se de uma situação
de cooptação institucional.
A segunda, marcada pela separação da prática política dos líderes
no interior do sistema institucional em relação ao seu discurso de
legitimação, este último voltado inteiramente para os movimentos
sociais. Neste caso, a liderança aumenta o teor emocional, o chiste,
e a ironia em seus discursos, numa clara manutenção da identidade
com sua base social, capacitando-se como interlocutor nas negocia-
ções no interior do sistema institucional. Um movimento complexo
e delicado, exigindo grande habilidade discursiva e um estoque de
legitimidade da liderança.
Uma terceira possibilidade foi a limitação da pauta da liderança,
aproximando-se do que na teoria política denomina-se representa-
ção delegada, ou seja, uma representação restrita aos interesses de
um movimento social específico. Neste caso, o discurso genérico e
universal da liderança se dissipa, torna-se menos emocional e mais
técnico e propositivo. Ele deixava de ser representante de um ideário
genérico, humanista, e passava a ser defensor de uma pauta e de um
público específico.

302 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

As três possibilidades4 que se descortinaram para as lideranças


sociais na década de 90 do século passado, aquelas que foram alçadas
ao poder institucional, desarticularam, portanto, a lógica política e o
ideário original desses movimentos, afetando diretamente o projeto
de educação popular até então implementado.
Em síntese, no caso da liderança ter se tornado um representante
delegado no parlamento (ou mesmo, em alguns casos, a partir dos
projetos que desenvolve no Executivo), o projeto educacional de um
determinado movimento tendia a se tornar uma base de sustentação
de formação de novas lideranças ou até mesmo de coesão das pautas
e práticas da estrutura organizativa que vai se expandindo. Em ou-
tras palavras, a representação direta no sistema político institucional
transforma o movimento social, através de seu líder, num canal de
negociação direta de demandas. Criou-se, em muitas localidades,
uma espécie de neocorporativismo na gestão de políticas públicas
específicas, como no caso de deputados e prefeitos vinculados ao MST
ou qualquer outro movimento social que transitou na última década
para um modelo de organização gerencial mais profissionalizado.
A despeito da constante mobilização e pressão social que mantém
uma organização popular como o MST, é comum acompanharmos
pela imprensa as inúmeras câmaras setoriais em que a participação
permanente de suas lideranças é certa. Obviamente que o projeto
educacional de uma organização desta natureza tem como principal
objetivo o fortalecimento e a coesão da própria organização.
O segundo tipo de prática da liderança, a que cria um discurso
divorciado da prática do líder no interior do sistema político institu-
cional, tende a esgotar a capacidade de mobilização dos movimentos
sociais. Uma prática dicotômica desta natureza coloca em permanente
risco a legitimidade da liderança e diminui consideravelmente a capa-
cidade de efetivação e conquista da mobilização de sua base social.
Os militantes dos movimentos sociais não participam diretamente
dos fóruns de negociação das demandas, restrito aos seus líderes –

Desafios recentes da educação popular no Brasil 303


LULISMO | Rudá Ricci

agora, deputados, vereadores, secretários ou prefeitos – dificultando


a compreensão das diferenças entre a pauta inicial demandada e a
agenda definida nos acordos.
A terceira possibilidade, marcada pela cooptação institucional
do líder, é a mais ofensiva à unidade dos movimentos sociais, desar-
ticulando seu projeto educacional.
Como se percebe, todas as possibilidades de relação liderança/
movimentos sociais de novo tipo, que emergiram na última década
do século passado, afetaram diretamente os projetos de educação
popular do período anterior�.
Retomemos as cinco características básicas daquele projeto e
vejamos as alterações mais significativas.
1. D
 o processo educacional de caráter emancipatório para a
aquisição de competências técnicas. Muitas vezes, o caráter
emancipatório foi substituído pelas competências a serem
adquiridas nas negociações. São instituídos níveis de for-
mação, distanciando a militância da liderança. Em diversos
casos, organizações de menor porte contrataram entidades
especializadas para desenvolverem programas de formação
específicos. A referência na competência técnica substituiu o
foco na autonomia política da comunidade;
2. D
 o processo educacional como meio para programas formativos
como um fim. No caso de diversas organizações, o processo
educacional ou formativo transformou-se em fim, gerando
recursos na venda de cursos e programas de formação e qua-
lificação. Os educadores se profissionalizaram e deixaram de
adotar o perfil errante de missionário;
3. D
 a cultura anti-institucional para a institucionalização das
ações formativas. Todos projetos educacionais que seguiram
esta vertente se institucionalizaram, criando história e lógica
próprias, nem sempre vinculadas à trajetória do público que

304 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

atendem. São criadas estruturas permanentes, específicas de


cada organização, com materiais de apoio, recursos didáticos,
escritórios e auditórios adaptados aos programas e currículo
determinado. Não se torna raro o estabelecimento de convê-
nios desses projetos ou programas educacionais (denomina-
dos de “programas de formação”) com órgãos públicos ou
instituições internacionais de fomento ao desenvolvimento
de comunidades;
4. Da pedagogia do oprimido para a pedagogia do planejamento.
São inúmeras as concepções educacionais que passaram a vi-
gorar neste campo temático. Em grande parte das organizações,
são fundidos conceitos pedagógicos com conceitos e práticas
de planejamento estratégico. O discurso originalmente classista
se transfigurou em capacidade de elaborar e executar projetos
sociais, constituindo um mercado de atuação social e redefinindo
o marco teórico (da referência marxista à teoria funcionalista).
Muitas organizações, e principalmente fóruns temáticos ou
setoriais, sustentam, contudo, referências com a pedagogia do
oprimido. Esta situação, contudo, não é mais a regra;
5. D
 o ‘timing’ do processo educacional orientado pelo ritmo co-
munitário para a busca de eficácia. O ritmo e a velocidade dos
processos educacionais passaram a ser definidos, em muitos
casos, pela eficácia da execução de políticas públicas, o que
lhes confere similaridade com os processos de treinamento e
aquisição de competências técnicas.
Como se percebe, o projeto original de educação popular bra-
sileira encontrou-se, nos anos 90 e início do século 21, numa encru-
zilhada. Encruzilhada que redefine o caráter popular de seu projeto
original. As mudanças esboçadas não ocorreram de maneira única em
relação a todas as organizações populares. Com efeito, são várias as
nuanças verificadas ao longo do país, revelando maior ou menor grau
de radicalidade no distanciamento do ideário original dos projetos de

Desafios recentes da educação popular no Brasil 305


LULISMO | Rudá Ricci

educação popular. Foram salientadas as mudanças mais significativas


em relação ao projeto de formação de lideranças hegemônico na sua
origem, procurando traçar um paralelo com a transição dos movi-
mentos sociais e a inflexão do petismo (oriundos do mesmo ideário),
dando lugar ao lulismo.
Nesses casos, os objetivos educacionais passaram a ser a unidade
do discurso, a socialização de regras e normas de conduta, a propaga-
ção do ideário fundante (ou original) da organização, as competências
necessárias para a prática das diversas instâncias ou segmentos sociais
da organização (militância, corpo administrativo e direção política).
Os projetos educacionais dessas organizações populares passaram a
ser autorreferentes e embora mantenham, muitas vezes, o propósito
da transformação social, aproximam-se rapidamente de um progra-
ma de formação profissional, que garante o orgulho corporativo que
caracteriza as organizações.
Há casos, ainda, de formação de lideranças populares para as-
sumirem tarefas de Estado, dentro da lógica de parcerias assumidas
por parte do que se denominou Terceiro Setor, ao longo da década de
1990. Um exemplo desta proposição é o texto elaborado por Augusto
de Franco, intitulado “Três Gerações de Políticas Sociais” (FRANCO,
2003). Partindo do princípio que o Estado se revelaria insuficiente
para a promoção ou indução do desenvolvimento, sugere uma divisão
de tarefas, no campo das políticas sociais, entre Estado, mercado e
sociedade civil. A partir deste princípio, analisa o que denomina de
três gerações de políticas sociais.
A primeira geração seria marcada pelas políticas de intervenção
centralizada no Estado, articuladas a quatro premissas:

a) O Estado se bastava na execução das políticas sociais;


b) Os benefícios eram apresentados como uma espécie de con-
cessão do poder;
c) Seus serviços não são percebidos como direitos;

306 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

d) A gestão governamental não era transparente.


A segunda geração de políticas sociais é denominada pelo autor
como “políticas públicas de oferta governamental descentralizada”.
Segundo Franco, esta geração de políticas sociais recebeu a guarida
da Constituição de 1988. As características básicas desta geração de
políticas públicas seriam:
a) O Estado já não é percebido como suficiente, mas ainda
cumpre um papel quase exclusivo na execução das políticas;
b) Procura-se despartidarizar e despersonalizar a oferta de re-
cursos públicos;
c) Atenção em relação à eficiência, eficácia e efetividade dos
programas e ações governamentais;
d) A
 concepção dos programas universais é concebida pelo centro
do poder e a oferta de programas é universal e indiscriminada.
A terceira geração, defendida pelo autor, seria a de políticas pú-
blicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no
desenvolvimento social. Suas características seriam:
a) O Estado é insubstituível, mas carece de parcerias com a
sociedade e o mercado;
b) Política pública não é sinônimo de política governamental;
c) I nvestir em desenvolvimento é compreendido como investir
em capacidades das comunidades.
O texto, a partir de então, sugere que nos anos 90 forjou-se um
novo paradigma de administração pública, redefinindo o papel do
Estado em função do processo de privatização e publicização de fun-
ções consideradas não exclusivas de Estado, da descentralização da
gestão e controle social de ações governamentais. Deste novo “padrão
de relacionamento entre sociedade e Estado” teriam surgido “novas
realidades emergentes”, a saber:

Desafios recentes da educação popular no Brasil 307


LULISMO | Rudá Ricci

a) Expansão da esfera pública não estatal;


b) Crescimento do terceiro setor;
c) Surgimento de práticas de responsabilidade social por parte
de empresas e instituições da sociedade civil;
d) Conformação de uma sociedade-rede;
e) Adoção de programas focalizados e flexíveis, baseados em
múltiplas parcerias, preocupados com o monitoramento e
avaliação e voltados para a sustentabilidade.
A leitura política contida nesta proposição distancia-se em muito
do paradigma original da educação popular e absorve pacificamente
a possibilidade de gerenciamento público a partir de um pacto de
gestão entre organizações da sociedade civil, mercado e agências es-
tatais, inspirado na elaboração do sociólogo alemão Claus Offe. Esta
elaboração, contudo, vem sendo objeto de debates internacionais
sobre a necessária reforma democrática do aparelho estatal moderno.
No que interessa ao tema deste capítulo, vale ressaltar que a
concepção pedagógica advinda deste dilema pode gerar posturas
profundamente distintas. No caso do hibridismo proposto por Offe,
e que é absorvido por muitas ONGs como se verifica na análise de
Augusto de Franco, a concepção educacional seria evidentemente
híbrida, entre a valorização da capacidade gestora das comunidades
locais (fomento ao capital social) e a transferência (ou difusão) de
tecnologias de gerenciamento de políticas públicas. No caso da pro-
posição de democratização do Estado (movimento inverso ao das
parcerias), parece haver um ponto de diálogo com os princípios da
educação popular brasileira, acentuando-se o caráter provocativo,
de desestabilização dos valores corporativos e localistas da cultura
comunitária. Porém, na medida em que sugere, como objetivo estraté-
gico, a construção de um novo Estado, advém daí uma possibilidade
metodológica inovadora. Situa o Estado no campo da conformação
social dos direitos e não na limitada noção de institucionalização

308 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

de regras e normas. O Estado passa a conformar-se como dinâmico,


porque poroso ao controle social. Por seu turno, a participação da
sociedade civil no Estado não se dá através de suas organizações,
mas da criação de uma nova institucionalidade pública, fundada no
controle social.
O controle social, tal como sugere Sherry Arnstein, distingue-se
da mera consulta, verificação ou feedback, tal como se apresenta no
diagrama construído pelo autor:

Controle social ou pelos cidadãos


Delegação de poder Nível 03: Poder da cidadania
Parceria

Apaziguamento
Consulta Nível 02: Participação
Informação

Terapia
Nível 01: Não participativo
Manipulação

A escala acima é das mais sugestivas. Arnstein a construiu em


1969 para distinguir níveis de envolvimento e manipulação dos cida-
dãos pelos gestores de efetivo empoderamento e controle da cidadania.
Sinteticamente, procurava sugerir que:
O nível 01, composto pelo que denomina de Manipulação e Te-
rapia não são participativos. O objetivo é moldar ou alterar a opinião
da comunidade em relação à iniciativa do gestor, cuja deliberação já
foi tomada anteriormente.
O nível seguinte é composto por Informação, que legitima pro-
cessos participativos, mas pode ser uma via de mão única no fluxo de
informações, sem canal de resposta. Este nível intermediário também
envolve a Consulta, que pode ocorrer via pesquisas de comportamen-
to, encontros comunitários e enquetes públicas. Finalmente, envolve

Desafios recentes da educação popular no Brasil 309


LULISMO | Rudá Ricci

o Apaziguamento (ou Pacificação), uma clara intenção de cooptação


de “notáveis” escolhidos para comitês.
O nível 03, superior, envolve Parceria, Delegação de Poder e
Controle Cidadão, propriamente dito.
A Parceria redistribui poder através de negociações entre os
cidadãos e os controladores do poder. As responsabilidades pelo pla-
nejamento e a tomada de decisões são compartilhadas. Já a Delegação
de Poder envolve maioria de representação civil nos comitês com
delegação de poderes para tomar decisões. Os cidadãos têm o poder
de garantir a responsabilidade pelos programas. Finalmente, no Con-
trole, ninguém detém a integral responsabilidade pelo planejamento,
definição das políticas e gerenciamento do programa.
Relembrando as orientações de Paulo Freire, Benjamin Fleming5
sustenta que a participação não acontece de forma espontânea,
alguém gerencia o processo por algum tempo e permite que outros
envolvidos exerçam certo controle sobre o que acontece. Mas este
líder ou monitor do processo deve assumir posturas coerentes. Não
pode induzir, nem se omitir. São as duas posturas mais frequentes,
por sinal. Na indução, o líder não cria envolvimento emocional para
a participação. Nem sempre intencional, acaba por criar uma relação
mais fria, descompromissada, em que os participantes ouvem mais que
falam, ou apenas alguns têm o poder da palavra. A sedução do líder e
sua competência técnica criam um aparente consenso e síntese das
exposições, sem que elas tenham sido efetivamente construídas cole-
tivamente. É da mão do líder que nasce a conclusão. Normalmente,
é o tempo que define e garante este encaminhamento. Aceleração
do tempo dos encontros, determinado burocraticamente, não pos-
sibilita processos de amadurecimento e reflexão dos participantes,
premidos pela necessidade de definição de sistematizações. De outro
lado, tempo muito elástico presta-se para exposições pessoais longas
e idiossincráticas, individualizando os relatos e personalizando as
intervenções em demasia. Nesta segunda situação, o líder parece

310 PARTE II: DA ERA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Á NOVA CLASSE MÉDIA
Rudá Ricci | LULISMO

se ausentar, numa postura aparentemente democrática, mas que


pode revelar uma soberba velada, um posicionamento metodológico
que o coloca acima do grupo (como avaliador constante) ou como
sujeito oculto, que não se posiciona e, portanto, não revela suas
posições efetivamente.
Esta rápida digressão sugere uma postura política e técnica
maduras dos educadores e líderes dos processos participativos. Os
capítulos anteriores desta parte dedicada à mutação recente dos novos
movimentos sociais (surgidos na década de 1980) indicam lacunas e
impasses de condução que se distanciam dessas premissas.
Enfim, o que se procurou sustentar é que a trajetória do petismo,
superado pelo lulismo, converge com a mutação dos movimentos
sociais ao longo da década de 1990. O olhar sobre a formação de mi-
litantes e líderes dos novos movimentos sociais revela que não houve
mera cooptação por parte do Estado, mas a adoção de uma consciente
mudança de rumo e ideário. O anti-institucionalismo deu lugar ao
ingresso na lógica da burocracia estatal. Um movimento paradoxal,
mas que explica o mesmo movimento que fez o expoente maior do
partido nascido nessas águas.
O anti-institucionalismo, assim, deu lugar ao lulismo.

Desafios recentes da educação popular no Brasil 311


LULISMO | Rudá Ricci

Notas:
1 O tema da cultura do homem simples é recorrente na literatura sociológica brasi-
leira. O estudo recente mais instigante é o de José de Souza Martins. Para o autor
o novo herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano. É que no pequeno
mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia das vontades
individuais (...). A partir deste ponto, Martins sugere que o senso comum não
seria banal, mas comum porque compartilhado nas relações sociais. E, por sua
vez, as relações sociais cotidianas estariam marcadas pela teatralização, de forma
que o sujeito, antes de emitir sua opinião, procura entender o que seu interlocutor
pensa e deseja. Daí o discurso alegórico de Ciço, que lança ilustrações e figuras
de linguagem que possuem a função de “pontes” entre discursos diferentes: o
cotidiano e o acadêmico ou, a partir da argumentação de Martins, entre o saber
negociado cotidianamente e o saber construído nos escritórios. Este saber coti-
diano é, portanto, refeito diariamente, a partir da prosa. Assim, a cultura oral e a
lenta temporalidade que marca o cotidiano do “homem simples” são constitutivas
da construção das crenças e verdades deste mundo concreto (MARTINS, 2000).
2 Este encontro foi registrado em livro (FREIRE; HORTON, 2003).
3 Esta observação foi elaborada por Ernesto Laclau. Para o autor “um grupo seria
apenas o resultado de uma articulação de práticas sociais”. As práticas definem
seus conteúdos e ideologias, e não o inverso. Cf. Laclau (2003).
4 Lorenzo Zanetti faz uma breve incursão sobre esta mudança de paradigma dos
projetos formativos elaborados pelas ONGs a partir dos anos 80. Sustenta que na
década de 80 surgem ONGs que não se colocavam na perspectiva de intervenção
direta no meio popular, procurando produzir novos tipos de conhecimentos e
socialização de informações (cita o Ibase como exemplo deste novo paradigma).
Destaca, ainda, um novo papel assumido por diversas ONGs, posicionando-se
como atores sociais, com papel próprio a desempenhar que supera a antiga função
de “suporte aos movimentos”. A primeira consequência teria sido a necessidade
de especialização, sem se verificar uma atualização das práticas educativas. Cf.
Zanetti, 2000, p. 54 e 55.
5 A participação é a chave para o empoderamento, disponível em: <http://www.
scn.org/mpfc/modules/par-benp.htm>. Acessado em: 15/01/10.

312 PARTE I: O LULISMO


Rudá Ricci | LULISMO

Referências
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FREIRE, Paulo; HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas
sobre educação e mudança social. Petrópolis: Vozes, 2003.
LACLAU, Ernesto. Populismo: o que existe num substantivo? In: Margens,
Revista de Cultura. Belo Horizonte/Mar del Plata/Buenos Aires: UFMG/
Universidad Nacional de Mar del Plata/UBA, n. 3, jul./2003.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo:
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Estado em transformação. São Paulo/Brasília: Unesp/Enap, 1999.
RUSSELL, Bertrand. O elogio ao ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A reinvenção solidária e participativa do
Estado. Brasília: Ministério da Administração e Reforma do Estado, 1998.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às
teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
WEID, Jean Marc. A trajetória das abordagens participativas para o
desenvolvimento na prática das ONGs no Brasil. Rio de Janeiro: Rede
AS-PTA, 1997.
ZANETTI, Lorenzo. A atuação do passado e os sinais do presente, in:
OLIVEIRA, Antonio Carlos et al. Educação Popular: prática plural. São
Paulo: Nova/Rede Mulher de Educação, 2000.

Lulismo em seu esboço 313


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