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Machado de

Assis: urbano,
cosmopolita
e carioca

Cilene Rohr
Diego Flores
(Organizadores)
Machado de Assis: urbano,
cosmopolita e carioca
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

Renato Martins e Silva (Editor-Chefe)


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Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e
até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares
em que sou brindado.

Machado de Assis
(Crônica em A Semana, 22 de setembro de 1892)
Machado de Assis: urbano,
cosmopolita e carioca

1ª Edição

Cilene Rohr
Diego Flores
(Organizadores)

Cabo Frio
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa e Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Machado de Assis: urbano, cosmopolita e carioca/ Cilene


Trindade Rohr; Diego do Nascimento Rodrigues Flores
(Organizadores). – Cabo Frio: Mares, 2016.
167 p.
ISBN 978-85-5927-001-3
1. Escritores brasileiros. 2. Literatura brasileira. I. Título.

CDD. B869.092
CDU 82-3/49

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
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CEP 28927-000. Cabo Frio, RJ.
E-mail: mareseditores@gmail.com
Uma Excursão Milagrosa por O País das
Quimeras: o texto fantástico de Machado de
Assis

Jhony Adelio Skeika26

Considerações iniciais
Joaquim Maria Machado de Assis, notório autor da Literatura
Brasileira, começou a escrever muito cedo. Aos quinze anos teve seu
primeiro texto impresso, mas antes disso o jovem já havia se arriscado
pelas peripécias da escrita (cf. MASSA, 2009b, p. 83) 27. Longo foi o
caminho até que Machadinho, como era chamado, se tornasse o célebre
e respeitado Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas
(1881) e de Dom Casmurro (1899). Antes de se fixar como notório
escritor do realismo brasileiro, destacando-se na prosa, o jovem autor
se aventurou em outros gêneros literários, como o teatro e a poesia.
Porém, mesmo na prosa, Machado de Assis testou caminhos inusitados,
como é o caso da escrita e publicação de um conto declaradamente
fantástico intitulado O País das Quimeras.

26
Doutorando em Estudos Literários, UEL. Orientadora: Sonia Aparecida Vido
Pascolati.
27
Segundo Jean-Michel Massa (2009, p. 83), A palmeira foi talvez o primeiro texto
público de Machado de Assis, com cerca de doze ou treze anos (não há especificação
da data), o qual foi publicado na Marmota Fluminense, revista dirigida por Paula
Brito. No entanto, foi em 6 de janeiro de 1855 que o jovem Machado, com cerca de
quinze anos e meio, iniciava oficialmente sua carreira precoce de escritor.

- 111 -
Publicado no Jornal O Futuro, na edição n. 5 de 1 de fevereiro
de 186228, tal conto é singular na produção machadiana, já que explora
elementos fantásticos de forma explícita29. O texto narra uma aventura
vivida por Tito, um poeta que, oprimido pelas necessidades de
sobrevivência capitalistas, precisa prostituir a sua musa, vendendo suas
produções literárias para “um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta”
(ASSIS, 1994, p. 3). Em meio ao processo de criação e atormentado por
uma decepção amorosa, Tito é visitado insolitamente por uma sílfide, a
qual o convida para fazer uma viagem; o personagem aceita a proposta
e voa com a fada para além da atmosfera da terra, até chegarem a um
estranho lugar chamado o País das Quimeras.
Esta mesma narrativa foi publicada novamente quatro anos mais
tarde, no caderno de turismo do Jornal das Famílias, mas com algumas
modificações. O conto foi retomado com outro título – Uma Excursão
Milagrosa – e teve duas edições, uma em abril e outra em maio de 1866;
além disso, outros elementos foram modificados como a adoção de um
outro foco narrativo e a inclusão de uma introdução, sem contar com a
reformulação do desfecho do texto e a retirada da nota “(Conto
fantástico)”.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é analisar as duas versões
deste conto, levando em consideração a pertinência das modificações
feitas pelo autor, justamente no que se refere às intenções do texto, pois
se O País das Quimeras foi escrito para ser claramente um conto

28
Cf. MASSA, 2009, p. 305.
29
Após o título, o conto traz a nota “(Conto fantástico)”, deixando clara a intenção
do texto.

- 112 -
fantástico, Uma Excursão Milagrosa parece ser uma a reedição com
outra pretensão. Como esta é uma narrativa declaradamente fantástica
na obra machadiana30, para uma apreciação teórica será feito o exercício
de identificar algumas características do gênero31 e suas possibilidades
de leitura. Para tanto, como motor de leitura, serão utilizados alguns
princípios teóricos de Tzvetan Todorov a respeito do texto fantástico.

As duas versões
Kátia Rodrigues Mello, em sua dissertação de mestrado32,
discute como e por que Machado de Assis reescreveu alguns de seus
contos. Segundo ela, como o autor “exercia de forma intensa a atividade
de colaboração em periódicos, trabalhando em vários deles ao mesmo
tempo, é perfeitamente compreensível que o escritor tenha
reaproveitado alguns de seus textos devido à falta de tempo hábil para
produções totalmente inéditas” (MELLO, 2007, p. 14). É o caso do
conto Uma Excursão Milagrosa, publicado em 1866 no Jornal das
Famílias, o qual é segunda versão do conto O País das Quimeras, de
1862.
Machado de Assis neste período ainda não é o célebre escritor
que conhecemos hoje, por isso é possível identificarmos na pluralidade

30
Outro conto de Machado de Assis também segue a mesma linha do fantástico: Como
se inventaram os almanaques (1890)
31
Todorov defende a existência de um Gênero Fantástico, posicionamento este que
não é mantido por todos os autores que discutem o assunto. Dessa forma, convém
deixar claro que não se ignora este enrosco terminológico/conceitual, mesmo quando,
por ventura, o termo “gênero” for utilizado para se referir ao texto fantástico.
32 Título: MACHADO DE ASSIS LEITOR DE SI MESMO: um estudo a respeito da
reescritura de alguns contos machadianos. UNESP (Assis – SP), 2007.

- 113 -
de textos que o autor estava produzindo – como poemas, peças de
teatro, contos fantásticos, de suspense, terror, etc. – uma tentativa de
encontrar o melhor caminho literário a se trilhar. O País das Quimeras
(Conto Fantástico) foi, talvez, uma experiência do jovem escritor que
estava buscando veredas; no entanto, em Uma Excursão Milagrosa já é
possível identificar outra intenção autoral, uma vez que o conto foi
publicado em um caderno de turismo e parece estar de acordo com o
contexto no qual foi veiculado. Não reconhecendo ingenuidade nos
gêneros textuais, é possível lermos a segunda versão do conto como
uma propagando de viagens, uma vez que a introdução do texto nos
permite tal associação.

Viajar é multiplicar-se. Mas, devo dizê-lo com toda


a franqueza, quando ouço dizer a alguém que já
atravessou por gosto doze, quinze vezes o Oceano,
não sei que sinto em mim que me leva a adorar o
referido alguém. (...) Se em vez do Oceano me
falam nas florestas e contam-me mil episódios de
uma viagem através do templo dos cedros e dos
jequitibás, ouvindo o silêncio e a sombra,
respirando os faustos daqueles palácios da natureza,
gozando, vivendo, apesar dos tigres, das serpes,
então o gozo pode mudar de aspecto, mas é o
mesmo gozo elevado, puro, grandioso. (ASSIS,
1994, p. 1).

Esta parte inicial de Uma Excursão Milagrosa, que não aparece


em O País das Quimeras, busca apontar os benefícios de se viajar, já
que quem se aventura por mar ou por terra, segundo o narrador, tem
muito a contar. Nesta apresentação do conto, o autor também cita

- 114 -
narrativas do capitão Cook33, As viagens de Gulliver34, as histórias de
Mil e Uma noites e os contos de Edgar Allan Poe, tudo para ambientar
o leitor que vai acompanhar a experiência de Tito, já que este
personagem parece não ter sido o único a viver algo estranho. Segundo
Mello (2007, p. 104), a inserção introdutória de um comentário deste
narrador na reescritura do conto “(...) pode ser vista também como uma
espécie de recurso para convencer o leitor da verossimilhança da
história, que, no entanto, é fantástica”.
O fato é que este trecho introdutório parece funcionar de acordo
com o gênero textual no qual o texto foi publicado – o caderno de
turismo de O Jornal das Famílias – e a própria escolha do novo título
Uma Excursão Milagrosa parece atender a essa demanda. Interessante
é pensar em Machado de Assis fazendo propagandas de viagens, já que,
segundo Massa (2009a, p. 264)35, ele “nunca atravessou o Atlântico,
nem viajou ou viveu na França. Nunca deixou o Brasil, tampouco saiu
do Rio. Passou algum tempo em Petrópolis, mas devido a um problema
de saúde”. Intrigante, então, é refletir como um escritor que não gostava
de viajar fez propaganda de viagens, o que o aproxima do jovem poeta
Tito que, mesmo sem concordar plenamente com este “desvio de
conduta”, precisou vender sua produção literária para sobreviver.

33
James Cook (1728 – 1779) foi um explorador, navegador e cartógrafo inglês,
considerado o “pai da Oceania”.
34
Romance de Jonathan Swift.
35
Texto de Jean-Michel Massa intitulado A França que nos legou Machado de Assis;
trabalho apresentado no Simpósio Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela crítica
internacional, em 2008; publicado no livro Machado de Assis e a crítica
internacional, organizado por Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta (Ed. UNESP,
2009).

- 115 -
Assim, se O País das Quimeras parece ser uma experiência de
Machado no gênero fantástico, é possível perceber que Uma Excursão
Milagrosa já não pretende continuar com essa ideia, por isso o texto
aparenta ser “reciclado” a partir das intenções do caderno de turismo do
jornal no qual o autor foi colaborador. No entanto, deve-se considerar
uma melhoria na arquitetura do texto, o que reflete, talvez, o
amadurecimento de Machadinho na escrita literária.
As duas versões do conto narram o mesmo acontecimento – a
viagem de Tito para o País das Quimeras –, salvo algumas, mas
importantes, modificações que conferem à segunda publicação algumas
peculiaridades. Talvez a maior diferença presente na reescritura do
conto esteja na adoção de um outro foco narrativo: em O País das
Quimeras o narrador é em terceira pessoa durante todo o texto; em Uma
Excursão Milagrosa, no meio do conto, o narrador em terceira pessoa
abre espaço para que o próprio Tito narre suas aventuras. Dar ao
personagem o direito de contar sua própria experiência pode ser visto
como uma estratégia autoral para promover aderência do leitor e gerar
verossimilhança na narrativa fantástica.
Quando o protagonista está absorto nos pensamentos sobre a
viagem que estava prestes a empreitar, o narrador nos conta que alguém
bateu à porta com “três pancadinhas” (ASSIS, 1994, p. 5). Logo em
seguida há uma nota autoral que justifica a mudança do foco narrativo:
“Aqui deixa de falar o autor para falar o protagonista. Não quero tirar o
encanto natural que há de ter a narrativa do poeta reproduzindo as suas

- 116 -
próprias impressões. O poeta foi, como disse, abrir a porta. Diz ele:”
(op. cit.).
Em seguida, há a inserção de três asteriscos, marcando o fim da
fala do narrador em terceira pessoa e o início da fala de Tito; a mesma
marca gráfica se repetirá ao final da história quando o protagonista diz
que se atirou sobre a cama e adormeceu refletindo sobre o que acabava
de lhe acontecer. Então, o narrador em terceira pessoa retoma as rédeas
do texto fazendo um desfecho também diferente do final da primeira
versão do conto. Comparemos:

Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à


primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos
ou massa quimérica. Devo declarar que poucos
encontram que não façam provisão desta última
espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu
entro no número das pouquíssimas exceções. Em
que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar
a minha confiança de um homem que acaba de fazer
tão pasmosa viagem, e que pôde olhar de face o
trono cintilante do rei das Bagatelas. (O país das
Quimeras. ASSIS, 1862, p. 8).

Tal é a narrativa de Tito. Esta pasmosa viagem


serviu-lhe de muito. Desde então adquiriu um olhar
de lince capaz de descobrir, à primeira vista, se um
homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica.
Não há vaidade que possa com ele. Mal a vê lembra-
se logo do que presenciou no reino das Bagatelas, e
desfia sem preâmbulo a história da viagem. Daqui
vem que se era pobre e infeliz, mais infeliz e mais
pobre ficou depois disto. É a sorte de todos quantos
entendem dever dizer o que sabem; nem se compra
por outro preço a liberdade de desmascarar a
humanidade. Declarar guerra à humanidade é
declará-la a toda a gente, atendendo-se a que
ninguém há que mais ou menos deixe de ter no

- 117 -
fundo do coração esse áspide venenoso. Isto pode
servir de exemplo aos futuros viajantes e poetas, a
quem acontecer a viagem milagrosa que aconteceu
ao meu poeta. Aprendam os outros no espelho deste.
Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem
dizer o menos que possam as suas descobertas e as
suas opiniões. (Uma Excursão Milagrosa. ASSIS,
1994, p. 15).

Segundo Jean-Michel Massa (2009b, p. 466), “a comparação de


duas conclusões permite sentir que em quatro anos o talento do escritor
amadureceu”. Salvo a informação de que Tito adquiriu um olhar de
lince capaz de identificar se um homem tem na cabeça miolos ou massa
quimérica, os dois desfechos são muito distintos. Ainda de acordo com
Massa (ibid., p. 467), “a moralidade do segundo conto é mais densa.
Machado de Assis tirou ensinamentos dos elementos irreais de sua
história fantástica”. Assim, nas entrelinhas do desfecho de Uma
Excursão Milagrosa percebemos o reconhecimento de uma certa
falência da profissão de escritor, já que ser conhecedor do conteúdo que
preenche a cabeça das pessoas, ou seja, saber o que se passa no interior
do ser humano – tarefa árdua de poeta – não parece ser um caminho de
flores: “Daqui vem que se era pobre e infeliz, mais infeliz e mais pobre
ficou depois disto (...); nem se compra por outro preço a liberdade de
desmascarar a humanidade” (ASSIS, 1994, p. 15).
A massa quimérica, elemento central nos dois contos, também
pode ser vista, de acordo com a interpretação de Mello (2007, p. 111-
112), como uma alusão às ideias românticas presentes na cabeça dos
escritores, o que os faria viver no mundo da fantasia, de idealizações,
fabulações.

- 118 -
(...) estes homens estão ocupados em preparar massa
cerebral para um certo número de homens de todas
as classes, estadistas, poetas, namorados, etc.; serve
também a mulheres. Esta massa é especialmente
para aqueles que no seu planeta vivem com
verdadeiras disposições do nosso país, aos quais
fazemos presentes deste elemento constitutivo.
(ASSIS, 1994, p. 11).

É possível fazermos a leitura de uma crítica do autor aos


diversos poetas do seu tempo, como é o caso de Tito, que viviam de
fabulações românticas. Contextualmente é importante lembrar que o
período de escrita e reescrita deste conto condiz com a transição do
Romantismo brasileiro para outras propostas estéticas como o Realismo
e Naturalismo. Assim, o mergulho no País das Quimeras permitiu que
Tito adquirisse a consciência dos tipos de “inspiração” que moviam os
homens do seu tempo: ou viviam de fantasias românticas (a massa
quimérica) ou usam a razão (os miolos).
Na reedição do conto em 1866 houve a inclusão de uma cena
que trata do discurso de um filósofo, provavelmente alimentado pelas
aspirações da massa quimérica. Esse episódio pode ser lido como uma
crítica do autor ao mercado editorial, uma vez que o discurso filosófico
caminha para essa interpretação:

— Meus caros filhos, o universo é um composto de


maldade e invejas. Não há talento, por mais
prodigioso, que não seja ferido pela seta da calúnia
e do desdém dos egoístas. Como fugir a esta triste
situação? De um modo único. Que cada um
começando a viver deve logo compenetrar-se de que
nada há acima de si, e desta convicção própria

- 119 -
nascerá a convicção alheia. Quem há de contestar o
talento a um homem que começa por senti-lo em si
e diz que o tem? (ASSIS, 1994, p. 12).

Como fugir da triste situação de um poeta não valorizado em


seu tempo justamente porque não coaduna com as ideias quiméricas que
movem o Romantismo? Seria o filósofo a voz do autor trazendo para o
texto seu posicionamento enquanto escritor que se pauta pela
racionalidade dos miolos?36 Veremos adiante que, segundo Todorov, se
acatarmos a interpretação de que esse filósofo seria uma alegoria de
Machado de Assis anularemos o elemento fantástico do texto; o mesmo
vale para outras interpretações alegóricas e racionais, as quais foram
sucintamente esboçadas nesta primeira parte. No entanto, como
podemos perceber, a intenção de Uma Excursão Milagrosa parece não
ser mais a de manter os laços fantásticos como tencionava O País das
Quimeras, o que pode nos autorizar outras interpretações menos
fantasiosas, mas que, infelizmente, neste momento não dizem respeito
ao foco central deste trabalho. Por sua vez, veremos a seguir como se
estabelecem os elementos fantásticos na história de O País das
Quimeras a partir da teoria de Tzvetan Todorov.

O fantástico conto de Machado de Assis


O País das Quimeras e também a sua segunda versão, Uma
Excursão Milagrosa, contam a história de Tito, um jovem poeta que

36
Sabe-se que Machado de Assis chegou ao ápice de sua carreira com Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881).

- 120 -
vende suas poesias e que sofre por um amor não correspondido. Ao
hesitar sobre uma provável atitude futura para dar fim aos seus
problemas, que seria ou a morte ou uma viagem, recebe uma visita nada
convencional de uma sílfide, uma criatura bela e enigmática que lhe faz
um convite para viajar até um lugar desconhecido e revelador: o país
das quimeras. Tal lugar, habitado por musas utópicas, cicerones
submissos e nobres convencidos, revela ao viajante, dentre outras
fantasias, a matéria prima da qual se constitui a maior parte das mentes
humanas: a massa quimérica. Retornando aos seus aposentos de forma
miraculosa, ele se sente capaz de reconhecer em qualquer ser humano
o conteúdo essencial do seu cérebro, “se um homem traz na cabeça
miolos ou massa quimérica” (ASSIS, 1862, p. 8).
A experiência vivida por Tito foi completamente singular e
insólita justamente por romper com a “normalidade”, fugir do ordinário,
daquilo que estamos comumente acostumados a experienciar – isso
talvez explique o título da segunda versão do conto: Uma Excursão
Milagrosa; a respeito da escolha do termo que aponta para o
extraordinário, o narrador do conto defende: “Se a chamo milagrosa é
porque as circunstâncias em que foi feita são tão singulares, que a todos
há de parecer que não podia ser senão um milagre” (ASSIS, 1994, p. 1).
Segundo a Tzvetan Todorov,

Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um


mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos,
sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento
impossível de explicar pelas leis desse mesmo
mundo familiar. Quem percebe o acontecimento
deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou

- 121 -
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto
de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o
que são, ou o acontecimento se produziu realmente,
é parte integrante da realidade, e então esta
realidade está regida por leis que desconhecemos.
(...) O fantástico ocupa o tempo desta incerteza.
Assim que se escolhe uma das duas respostas,
deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um
gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a vacilação experimentada por um ser
que não conhece mais que as leis naturais, frente a
um acontecimento aparentemente sobrenatural. O
conceito de fantástico se define pois com relação ao
real e imaginário, e estes últimos merecem algo
mais que uma simples menção. (TODOROV, 1981,
p. 15).

De acordo com o autor, o fantástico é criado justamente pelo não


reconhecimento das leis naturais estáveis que sustentam a lógica dos
sentidos neste mundo; ambiguidade, hesitação, dúvida em relação a um
acontecimento que se mostra extraordinário, estas são as palavras-chave
propulsoras do fantástico. Dessa forma, a tomada de decisão por uma
interpretação que explique o fato anula o fantástico e conecta a
experiência a dois gêneros vizinhos, dependendo do caminho pelo qual
se pretende entender o ocorrido: se o acontecimento é explicado
recorrendo-se a uma explicação lógica, que muitas vezes é inverossímil,
adentramos no campo do estranho; por sua vez, se o caminho escolhido
é por aceitar as leis sobrenaturais, então opta-se pelo gênero
maravilhoso.
Assim, sempre partindo de um aporte real, o fantástico se
configura na hesitação entre o que é natural e a possibilidade de
reconhecimento de algo sobrenatural. Na história de O País das

- 122 -
Quimeras e Uma Excursão Milagrosa podemos identificar duas
possibilidades de interpretação daquilo que aconteceu com Tito:
conceber a fabulação proposta pelo conto a partir de uma
verossimilhança interna à narrativa, aceitando o extraordinário como
ordinário e possível – o que alocaria o texto no gênero maravilhoso –
ou procurar uma explicação lógica para o ocorrido, a qual poderia ser a
possibilidade do protagonista estar sonhando. Assim, vejamos o
desmembramento desta última ideia.
Momentos antes de a sílfide chegar, Tito estava em casa
buscando inspirações para escrever a encomenda do dia seguinte e
pensando na possibilidade de fazer uma viagem para esquecer da filha
do militar, sua decepção amorosa. É importante notar a forma com que
o protagonista põe-se a refletir: “À hora em que Tito se engolfava em
reflexões e fantasias era noite alta. (...) Tito nada via, porque estava com
a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que
não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem
os diferentes modos de viajar” (ASSIS, 1994, p. 4). É após uma série
de pensamentos de Tito, os quais nos são apresentados pelo narrador
em terceira pessoa, que o ser fantástico chega, ou seja, há a
possibilidade de induzirmos que o personagem pegou no sono, já que
se encontrava debruçado sobre a mesa de trabalho. Ao final da
narrativa, após cair miraculosamente do espaço e aterrissar calmamente
sobre a praia a dois passos de sua casa, Tito “atirou-se sobre a cama,
onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer” (ASSIS,
1862, p. 8).

- 123 -
Há outros indícios para o leitor inferir que o protagonista estava
dormindo, como o fato de a sílfide saber que o jovem poeta estava
desejando viajar para fugir da decepção amorosa e das injustiças da vida
capitalista37. “— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?” (ASSIS,
1994, p. 7). Seria apenas coincidência a fada adivinhar todos os anseios
de Tito? Assim, é possível interpretar que o misterioso ser alado seria
conhecedor dos planos do rapaz porque ela justamente não passa de
uma ilusão da sua mente, sonho, imaginação, etc.
Outro indicativo de que tudo não passava de uma ilusão estaria
na cena em que o protagonista está conversando com a sílfide (a
Fantasia) Utopia, procurando saber “como é que o conheciam aquelas
assanhadas raparigas” (ASSIS, 1862, p. 7):

— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos


conheces? (...) Não te lembras? À noite, cansado das
lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo
velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno
e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas
raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as
Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava
a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os
seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que
tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia
que me distrai de todas as misérias e pesares. É no
seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas.
Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e
embaixo de forma palpável.

37
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça
dos homens? (ASSIS, 1994, p. 6).

- 124 -
Devido ao fato de as musas afirmarem que são elas que sempre
acompanham o jovem escritor nas viagens do pensamento, esta cena
poderia ser lida como uma espécie de alegoria para inspiração do poeta,
já que um dos possíveis significados para as palavras quimera e utopia
remete-se à ideia de fabulação, imaginação, ilusão, etc. Este seria outro
indício de que tudo não passa de uma fantasia criada pelo próprio
personagem, talvez, enquanto dorme debruçado sobre sua escrivaninha.
Outra possibilidade de fazer uma leitura racional referente à
experiência de Tito diz respeito à moça que partira o coração do poeta:
filha de um militar, tal rapariga “recebera a educação austera de seu pai,
antigo capitão de milícias, homem de incrível boa fé” (ASSIS, 1994, p.
5). Assim, não esquecendo que momentos antes de a sílfide chegar Tito
estava absorto em pensamentos sobre como lidar com sua decepção
amorosa, a vivência no País das Quimeras pode refletir essa frustração
pela qual passou o personagem, como se Tito transportasse para seu –
possível – sonho as suas preocupações últimas.
Uma das coisas que mais nos chama a atenção na descrição no
país fantasioso é sua organização: soldados uniformizados, continência
militar, exageros e cerimônias de cumprimentos e despedidas, tudo isso
caracterizando um ambiente despótico governado pelo gênio das
bagatelas. “Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala
em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração
daquele congresso seria considerada uma calamidade pública.” (ASSIS,
1994, p. 12. Grifo meu). Esta rigidez de tratamento pode ser relacionada
à forma com que a filha do militar negou terminantemente o amor que

- 125 -
o poeta tinha por oferecer; o País das Quimeras possuía uma
organização putada pela lógica militar, o que poderia ser reflexo dos
próprios pensamentos nos quais abarcava o poeta debruçado sobre sua
mesa de trabalho: sobre como a educação austera que recebeu a moça
fez com que ela tivesse o coração tão rígido e indiferente a Tito – “(...)
ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que
era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para cuidar do
alinho da própria pessoa” (Ibid., p. 5); ou seja, o alinhamento, a boa
ordem da pessoa é mais importante que a instabilidade proveniente do
amor, a qual é capaz de, pela menor distração, levar à calamidade
pública.
A partir desses exemplos de leitura pautada em uma lógica
verossímil ao mundo natural, se optarmos pela ideia de que o
personagem esteve o tempo todo dormindo, concebendo os
acontecimentos insólitos que lhe aconteceram pela lógica do sonho,
acabamos por anular o fantástico e, assim, adentramos ao campo do
estranho; da mesma forma, se aceitarmos os acontecimentos
sobrenaturais do conto como algo possível dentro de uma lógica de
sentidos, abolimos o fantástico em favor do maravilhoso. “Tanto a
incredulidade total como a fé absoluta nos levariam fora do fantástico:
o que lhe dá vida é a vacilação” (TODOROV, 1981, p. 18).
Dessa forma, pode-se perceber que é justamente para a hesitação
entre a explicação fantástica e a racional que o conto machadiano leva
o leitor, para essa dualidade de interpretações sem tender a nenhuma
das duas possibilidades, mantendo sua característica de narrativa

- 126 -
fantástica. Tito não se questiona sobre o ocorrido, se aquilo foi real ou
não, por isso fica a cargo do leitor esse trabalho. Um exemplo disso é
quando a forte tempestade cessa: o leitor se perguntará se isso foi
devido a uma causa natural ou se houve alguma influência da sílfide.
“A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo,
transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas
fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os
telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos” (ASSIS, 1994,
p. 7. Grifo meu). Mesmo o narrador tendo dito que a chuva parou como
por encanto, todos sabem que seria possível, embora estranho, uma
tempestade cessar repentinamente. Assim, se acreditarmos que foi a
fada, por sua magia, a causa daquele céu límpido e luminoso, então
adentramos ao maravilhoso; por sua vez, se aceitarmos a possibilidade
de uma mudança meteorológica drástica, de tempestade para um céu
estrelado, então optamos pelo gênero estranho.

O fantástico implica pois uma integração do leitor


com o mundo dos personagens; define-se pela
percepção ambígua que o próprio leitor tem dos
acontecimentos relatados. Terá que advertir
imediatamente que, com isso, temos presente não tal
ou qual leitor particular, real, a não ser uma
“função” de leitor, implícita ao texto (assim como
também está implícita a função do narrador). A
percepção desse leitor implícito se inscreve no texto
com a mesma precisão com que o estão os
movimentos dos personagens. A vacilação do leitor
é pois a primeira condição do fantástico.
(TODOROV, 1981, p. 19)

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Todorov destaca a importância do leitor para a criação do
fantástico, sendo a vacilação entre duas possíveis interpretações a
principal necessidade. O autor também aponta mais duas condições: a
segunda seria a possível, mas facultativa, identificação do leitor com o
personagem que também está em dúvida sobre os insólitos
acontecimentos; a terceira condição é tão importante quanto a primeira
e diz respeito à negação da leitura alegórica e poética, sob a pena de
falência do elemento fantástico. Assim, qualquer leitura alegórica
possível deste conto – interpretar, por exemplo, o País das Quimeras,
com sua ordem e progresso, como uma imagem alegórica do Brasil em
transição de monarquia (Rei das Bagatelas) para república ou até
mesmo as leituras sugeridas racionais logo anteriormente – anularia o
elemento fantástico38.
“Quando o leitor sai do mundo dos personagens e volta para sua
própria prática (a de um leitor), um novo perigo ameaça o fantástico.
Este perigo se situa no nível da interpretação do texto” (TODOROV,
1981, p. 19). Assim, pudemos perceber que dependendo do nível da
leitura, o fantástico enquanto elemento norteador do gênero pode ser
dissipado. Já que interpretar um texto é também atribuí-lo, ao leitor cabe
a importante tarefa de preencher as lacunas deixadas pelo autor a fim
de, conforme a bonita metáfora de Umberto Eco (1994, p. 9), fazer a
máquina preguiçosa funcionar.

38
O artigo A fábula de um cronista liberal: política e literatura em um conto fantástico
machadiano, de Rodrigo Camargo de Godoi, é um exemplo de leitura que analisa O
País das Quimeras não como um conto fantástico, mas como uma alegoria para se
abordar as questões políticas com as quais Machado de Assis estava envolvido.

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Considerações finais
Segundo Marcelo Fernandes, à primeira vista não é fácil
perceber o traço fantástico na vasta produção de contos de Machado de
Assis, justamente pelo fato de o autor tê-lo diluído em sua obra. Assim,
buscando uma espécie de tipologia do conto fantástico machadiano,
Fernandes afirma que o elemento onírico é, com algumas exceções, o
traço comum presente nessas narrativas. O fantástico em Machado “[...]
opera no plano inconsciente, exatamente na fresta crepuscular entre a
vigília e o sono”; acontece consequentemente, na “fusão entre a parte
real e a parte sonhada” (FERNANDES apud GODOI, 2008, p. 6).
Essa característica dialoga com a teoria de Todorov para o
funcionamento do conto fantástico, uma vez que é justamente na fresta
entre o natural e o sobrenatural que a fantasia se estabelece. Assim, na
história dos contos aqui analisados pudemos perceber a dualidade de
interpretação acerca da possível experiência extraordinária do jovem
poeta Tito, dando ao leitor a possibilidade de ler o fato como se o rapaz
tivesse dormido enquanto refletia debruçado sobre a mesa ou de aceitar
o elemento maravilhoso, concebendo a viagem ao País das Quimeras a
partir de uma verossimilhança cabível para um mundo maravilhoso. É
importante lembrar que, segundo Todorov, esse impasse não pode se
resolver, sob a pena de anular o fantástico.
Os contos O País das Quimeras e sua segunda versão intitulada
Uma Viagem Milagrosa podem ser destacados na produção machadiana
justamente pelo fato de explorarem o elemento fantástico de forma
explícita. Podemos pensar que a primeira narrativa, datada de 1862,

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revela uma experimentação do jovem Machado no campo do gênero
fantástico, ao passo que a reedição do texto, de 1866, já demonstra
outras intenções referentes ao contexto específico no qual Machadinho
escrevia. No entanto, independente das intenções autorais/textuais, é
possível perceber o amadurecimento de um jovem escritor no começo
da sua carreira, uma vez que tais textos já são capazes de revelar uma
potencialidade e um prenúncio daquilo que Machado de Assis viria a
ser.

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Referências Bibliográficas:

ASSIS, M. O País das Quimeras. In: Contos Completos de Machado


de Assis. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000117pdf.pdf
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Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000192. pdf>.
Acesso em 10 jan. 2015.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard


Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GODOI, Rodrigo Camargo de. A fábula de um cronista liberal: política


e literatura em um conto fantástico machadiano. Revista eletrônica
Letras. v.48. n.2. São Paulo, jul/dez de 2008, p. 49-69. Disponível: <
http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/1189/969 >. Acesso em 5
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MASSA, J. M. A França que nos legou Machado de Assis. In:


ANTUNES, B.; Motta, S. V. (orgs.) Machado de Assis e a crítica
internacional. São Paulo: Editora UNESP, 2009a, p. 231 – 266.

______. A juventude de Machado de Assis, 1839 – 1870: ensaio de


biografia intelectual. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. 2
ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2009b.

MELLO, Kátia Rodrigues. Machado de Assis leitor de si mesmo: um


estudo a respeito da reescritura de alguns contos machadianos. 2007.
412f. Dissertação de Mestrado em Letras – Faculdade de Ciências e
Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, ASSIS.

TODOROV, T. A narrativa fantástica. In: CASTELLO, M. C. C.


(Trad.). Introdução à narrativa fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975, p. 147-166.

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