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Ar tigos

Bioética e o desafio do transumanismo:


ideologia ou utopia, ameaça ou esperança?

Leo Pessini

Resumo: Este artigo discorre sobre um dos maiores desafios para a bioética neste início de século
XXI, batizado como o ‘século da biotecnologia’: a chegada da era do pós-humanismo ou
transumanismo. Reflete sobre o significado do melhoramento biotecnológico das capacidades
humanas biológicas, tais como os relacionados ao prolongamento do tempo de vida, à possibilidade
de alteração do tipo de personalidade e inteligência e à reprogramação da mente humana,
mostrando que tais processos podem estar propiciando a emergência de um "transumanismo".
Aponta que a genética, a nanotecnologia, a clonagem, a criogenia, a cibernética e as tecnologias de
computador, bem como a biogerontologia e a medicina antienvelhecimento, são parte dessa visão
pós-humana, que inclui até a idéia de formar uma mente computadorizada, livre da carne mortal e,
portanto, imortalizada. Nesse contexto, apresenta os impasses inerentes a essa nova concepção,
considerando que se para os pós-humanistas a biologia, a natureza humana tal como a conhecemos
hoje, não é um destino, mas antes algo que deve ser superado e modificado, para outro grupo de
pensadores, os chamados bioconservadores, tais aportes não passam de mero cientificismo a ser
combatido. Frente a tal debate, este artigo aponta a importância de, no momento atual, oscilante
entre ameaças e esperanças, ideologia e utopia, adotar referenciais éticos para discernir quais dessas
transformações são salutares e quais são destrutivas – as que se precisa evitar.

Palavras-chave: Natureza humana. Transumanismo. Melhoramento biotecnológico. Pós-humanistas.


Bioconservadores.

Um dos maiores desafios para a bioética neste início de século


XXI, batizado como o ‘século da biotecnologia’, refere-se aos
primeiros sinais que inauguram a chamada era do pós-humanis-
mo ou transumanismo. Tratar-se-ia de uma versão contem-
porânea de Prometeu, o titã grego que roubou o fogo sagrado dos
deuses? Ou seria mero cientificismo a ser combatido, que pre-
Leo Pessini tende uma reengenharia da natureza humana e até criar bioló-
Professor doutor no mestrado
Bioética 2006 14 (2): 125-142

stricto sensu em Bioética do gica e tecnologicamente seres humanos superiores? Para outros,
Centro Universitário São Camilo todos esses esforços são vistos como um progresso no desenvolvi-
mento de forças tecnológicas para o “melhoramento humano”.
Trava-se uma batalha entre duas grandes visões de militantes, os
chamados “pós-humanistas” e os “bioconservadores”.

Ao completar 125 anos de existência, em 2005, uma das


mais prestigiosas revistas científicas da atualidade, a Science,

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de forma bastante criativa e original listou 125 tam a incerteza quântica e a não-localidade?;
perguntas sem respostas sobre o universo, a vida da Química: até onde podemos conduzir uma
e o homem: os mistérios não solucionados ali- auto-organização química?; e da Computação:
mentam a ciência com motivação e direção, diz quais são os limites da computação conven-
Tom Siegfried, jornalista estadunidense1. Entre cional?
os 25 mistérios de diversas áreas do conheci-
mento humano mais detalhados pela Science, É importante destacar que dos 25 mistérios, se
destacam-se os relacionados ao assunto desta levarmos em conta somente três das oito áreas
reflexão ética sobre a chegada da “era do pós- do conhecimento apontadas, ou seja, genética,
humanismo”: Astronomia: do que o Universo corpo e biologia, temos apenas aí 15 dos 25 mis-
é feito? Estamos sozinhos no Universo?; térios maiores. Este criativo ensaio da Science
Genética: por que os humanos têm tão poucos mostra que, embora a humanidade, por meio
genes? Cerca de 25 mil genes estruturais – do conhecimento científico, tenha decifrado
metade do genoma do arroz. Em que medida a muitas dúvidas relacionadas ao universo e à
variação genética e a saúde pessoal são interli- vida do ser humano, ainda há grandes desafios,
gadas? Que mudanças genéticas nos fazem especialmente os relativos ao trabalho das ciên-
humanos?; Corpo: qual é a base biológica da cias da vida.
consciência e até quando a vida humana pode
ser estendida? O que controla a regeneração? Essas questões são tão importantes, instigantes
Como uma célula da pele vira uma célula ner- e complexas que recentemente a Comissão de
vosa? Como a memória é armazenada e recu- Bioética estadunidense que assessora o governo,
perada? Podemos desligar a resposta imunoló- com a presidência de Leon Kass, produziu um
gica de forma seletiva? A vacina contra o HIV documento com duras críticas ao desenvolvi-
é possível?; Biologia: como uma célula somáti- mento da biotecnologia. Este estudo, também
ca se torna uma planta? O que determina a publicado em livro, tem um título sugestivo:
diversidade de espécies? Como e onde surgiu a Para além da terapia: biotecnologia e a busca da
vida? Como evoluiu o comportamento de felicidade (Beyond therapy: biotechnology and
cooperação? Como os grandes quadros surgirão the pursuit of happiness)2.
de um mar de dados biológicos?; Terra: como
funciona o centro do planeta? Quão quente Duas geniais obras de ficção científica mar-
será o mundo sob o efeito estufa? Malthus con- caram o século XX em termos de pensar o
tinuará a se mostrar errado? O que pode subs- futuro humano: o romance 1984, de George
tituir o petróleo, barato, e quando? Orwell (1949), e a novela Admirável mundo
novo, de Aldous Huxley (1932). Essas obras
Completam a lista dos 25 mistérios à espera de centravam-se em duas diferentes tecnologias
uma explicação científica questões relacionadas que iriam, de fato, surgir e moldar o mundo ao
à área da Física: as leis da física podem ser longo das gerações seguintes. 1984 tratava do
unificadas? Princípios mais profundos susten- que hoje chamamos de tecnologia da infor-

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mação: crucial para o vasto império totalitário mento pós-humanista (IV); as questões éticas
erigido sobre a Oceania era um aparelho inevitáveis (V); o embate entre os chamados
chamado teletela, que podia enviar e receber transumanistas e bioconservadores (VI); e dis-
imagens, simultaneamente, entre cada residên- cutir o sentido do conceito de dignidade
cia de um flutuante Grande Irmão. A teletela humana nesse contexto (VII). Por fim, conclui
permitia a vasta centralização da vida social sob apontando como tarefa precípua da bioética
o Ministério da Verdade e o Ministério do levantar as questões não formuladas nessas dis-
Amor, pois possibilitaria ao governo abolir a cussões, bem como aprofundar as questões já
privacidade mediante a monitoração de cada discutidas para além da embalagem ideológica
palavra e ato numa imensa rede de informação. ou fundamentalista nas quais permanecem,
Admirável mundo novo, por sua vez, tratava de muitas vezes, envoltas.
outra grande revolução tecnológica prestes a
ocorrer, a da biotecnologia. Publicado em Biotecnologia: conceituação e usos
1932, precede em duas décadas a chamada
descoberta do século, a identificação do DNA, Em termos amplos a biotecnologia é definida
ocorrida em 1953. Esse romance descreve a como sendo os processos e produtos (usual-
bokanovskização, ou seja, a incubação de pes- mente em escala industrial) que oferecem o
soas não em úteros, mas, como hoje falamos, potencial de alterar e, até certo grau, controlar o
in vitro; o uso da droga soma, que dava felici- fenômeno da vida – em plantas, em animais
dade instantânea às pessoas; o cinema sensível, não-humanos, e crescentemente, nos seres
em que a sensação era simulada por eletrodos humanos. Para além dos processos e produtos
implantados; e a modificação do comporta- que fabrica, a biotecnologia é também um esque-
mento por intermédio da repetição subliminar ma conceitual e ético, com aspirações progressi-
constante e, quando isso não funcionava, da vas. Neste sentido, ele surge como a mais recente
administração de vários hormônios artificiais e vibrante expressão do espírito tecnológico, um
são alguns processos deste cenário de ficção desejo e disposição racional de compreender,
simplesmente assustador, também discutido em ordenar, predizer e finalmente controlar os even-
análises da história contemporânea3. tos e trabalhos da natureza, perseguido para be-
neficiar o homem 4.
Esses cenários são simples e profundamente
provocativos em termos da reflexão bioética. Entendida desta forma, a biotecnologia signifi-
Como uma introdução para a discussão, o pre- ca muito mais que seus processos e produtos:
sente texto busca entender o que significa trata-se de uma forma de empoderamento
biotecnologia e seus usos (I); apontar para o humano. Por meio de suas técnicas (por exem-
entusiasmo e inquietações da idade de ouro das plo, na recombinação de genes), instrumentos
descobertas biotecnológicas (II); discutir os (como os seqüenciadores de DNA) e produtos
conceitos de terapia e melhoramento (III); (novos medicamentos e vacinas), a biotecnolo-
apresentar as origens e fundamentos do movi- gia dá aos seres humanos poder para controlar

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suas vidas de maneira mais efetiva, diminuindo biotecnologia desenvolvida com determinado
a sujeição à doença e minimizando a influência objetivo freqüentemente serve a múltiplos
aleatória da biologia. As técnicas, instrumentos propósitos, incluindo alguns inimagináveis
e produtos da biotecnologia aumentam as àqueles que a criaram.
capacidades dos seres humanos de agir e “fun-
cionar” efetivamente, direcionando-as para Existem várias questões em relação ao objetivo
muitos objetivos diferentes. geral da biotecnologia, que parece ser o de apri-
morar a humanidade, que dizem respeito ao
Essa capacidade de a biotecnologia ampliar as quê, exatamente, se deve ou precisa aprimorar.
potencialidades humanas pode ser comparada Deveríamos pensar somente em doenças
ao incremento que a mecanização trouxe a ou- específicas, sem cura neste momento histórico,
tras habilidades naturalmente desenvolvidas tais como diabetes juvenil, câncer ou
pelos seres humanos. Grosso modo, exemplifi- Alzheimer? Nessa lista não deveríamos tam-
ca tal relação o automóvel, que aumenta a bém incluir as doenças mentais e enfermidades,
mobilidade e amplia a capacidade natural de desde o retardamento à depressão, da perda de
locomoção, podendo ser usado para inúmeros memória à melancolia, entre outras? Além do
objetivos, não definidos pela máquina em si. mais, não deveríamos também considerar aque-
Da mesma forma se pode pensar no seqüencia- las “limitações” constitutivas da natureza
mento do DNA, técnica que dá poder para humana, sejam corporais ou mentais, incluin-
realizar a seleção genética e que pode ser uti- do a realidade implacável do declínio e morte?
lizada para vários propósitos, não determinados Trata-se somente de suprimir a doença e o
pelos procedimentos técnicos. Também serve sofrimento ou poder-se-ia incluir nesse rol tam-
como exemplo o desenvolvimento do hormônio bém predisposições a sensações, estados da per-
sintético de crescimento, produto que permite cepção ou temperamento, especialmente aque-
aumentar a altura das pessoas sujeitas a les geralmente nefastos, que levam ao mau
raquitismo ou aumentar a força muscular do humor, falta de entendimento e desespero? O
idoso. A ausência de uma relação de causali- aperfeiçoamento deve ser limitado à eliminação
dade intrínseca é evidente, mostrando, portan- desses e outros males ou deve estar voltado tam-
to, que para entender para que serve a biotec- bém ao aprimoramento daquela parte das
nologia, precisamos prestar atenção nas novas potencialidades humanas consideradas positi-
habilidades que ela provê mais que sobre os vas, tais como beleza, força, memória, inte-
instrumentos técnicos e produtos que tornam ligência, longevidade e felicidade?
tais habilidades disponíveis para nós 5. Assim,
na biotecnologia, como em qualquer outra tec- Se, por si só, cada uma dessas questões já é
nologia, os objetivos não são dados pelas técni- suficientemente vasta para gerar polêmicas pro-
cas em si mesmas, muito menos pelos poderes fundas e complexas, deve-se considerar que
que disponibilizam, mas pelos usuários huma- todas se desdobram ainda em múltiplas consi-
nos. Como em outros meios, uma determinada derações: se, gradualmente, têm-se aprendido

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como controlar os processos biológicos do cegueira e surdez, bem como de aprimoramen-
envelhecimento deve-se buscar somente to das naturais capacidades humanas de cons-
diminuir as doenças físicas e mentais do perío- ciência e ação. Pesquisas na área da biologia do
do idoso ou também ‘engenheirar’ o envelhecimento e senescência sugerem a possi-
patrimônio genético dos seres humanos, bilidade de diminuir o processo de declínio dos
aumentando ao máximo seu tempo de vida? corpos e mentes e, talvez, até mesmo aumentar
Se novas técnicas para alterar a vida mental, ao máximo o tempo da vida humana. De
incluindo memória e humor, estão disponíveis inúmeras maneiras, as descobertas dos biólogos
deve-se usá-las somente para prevenir ou tratar e as invenções dos biotecnologistas estão
a doença mental ou também para apagar aumentando o poder de intervir no funciona-
memórias desagradáveis ou comportamento mento de nossos corpos e mentes e alterá-los
vergonhoso, transformar um temperamento por um plano racional.
melancólico ou aliviar a tristeza do luto? Serão
sempre estas mesmas perguntas que teremos Existem muitas pessoas que manifestam
que enfrentar como conseqüência de novos grande entusiasmo em relação a tais desen-
poderes biotecnológicos adquiridos que hoje volvimentos. Antes mesmo que tragam benefí-
estão brevemente à nossa disposição: para que cios práticos, suas perspectivas voltam-se ao
serve ou deveria servir a biotecnologia? Ela de- aprofundamento do conhecimento sobre como
veria servir para quê? 6. funcionam a mente e o corpo humanos. Mas as
promessas em torno dos benefícios médicos de
Entusiasmo e inquietudes na idade de tais descobertas são o que alimentam, especial-
ouro das descobertas biotecnológicas mente, essa admiração. Portadores de inúmeras
patologias e suas famílias esperam ardente-
A biologia, medicina e biotecnologia entraram mente a cura para suas doenças devastadoras e
em sua idade de ouro. Com o término da fase ansiosamente antecipam alívio de tanta miséria
do seqüenciamento do DNA do projeto Geno- humana. Como já se fez no passado, certa-
ma Humano no ano 2000 e a emergência da mente se acolherão as novas descobertas tec-
pesquisa com células-tronco, se pode, sem dúvi- nológicas que podem ajudar a conquistar corpos
da, esperar por mais descobertas sobre o desen- mais saudáveis, experimentar menos dor e
volvimento humano, normal e anormal, bem sofrimento, bem como alcançar paz de mente e
como tratamentos novos e mais focados, pre- vida mais longa.
cisamente, nas doenças humanas. Avanços na
neurociência trazem a promessa de poderosas e Ao mesmo tempo, contudo, para muitas pes-
novas compreensões dos processos mentais e soas o advento desses novos poderes biotec-
comportamento, bem como da cura de doenças nológicos é causa de inquietação e preocupação.
mentais devastadoras. Instrumentos nanotec- Primeiro porque as descobertas científicas, em
nológicos geniais, implantáveis no corpo e cére- si mesmas, levantam desafios para a autocom-
bro humano, trazem esperança de superação da preensão humana: as pessoas se questionam,

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por exemplo, sobre o que um novo conheci- disponíveis, que podem alavancar o bioterroris-
mento das funções cerebrais e do comporta- mo, assim como as orientadas ao aperfeiçoa-
mento implicará a respeito das noções de von- mento de corpos e mentes – como se percebe,
tade livre e responsabilidade moral pessoal, for- por exemplo, no uso de esteróides e estimu-
madas antes do aporte de tais tecnologias. lantes corporais.
Segundo, porque a prospectiva da engenharia
genética, mesmo quando conotada de forma Esse cenário gera preocupações. Diante dele, há
positiva no tratamento de doenças genéticas os que consideram que a humanidade pode ser
hereditárias, levanta para muitos o medo da prejudicada e que as maiores e melhores oportu-
eugenia ou preocupação com bebês desenhados. nidades para a reprodução mesma da vida
Também os medicamentos psicotrópicos, bem- podem diminuir e minar. Mas nem todos estão
vindos para o tratamento de depressão ou preocupados com essa perspectiva. Pelo con-
esquizofrenia, criam o medo do controle de com- trário, muitos celebram a direção tomada, con-
portamento, preocupações com a diminuição da siderando favorável a busca da perfeição a que
autonomia ou o surgimento de identidades pes- leva a biotecnologia. De fato, alguns cientistas e
soais confusas. Precisamente por causa do novo biotecnólogos não se intimidaram em ser profe-
conhecimento e dos novos poderes que direta- tas de um mundo muito melhor que o presente,
mente trazem à pessoa humana, e na forma que está por chegar, graças a ajuda da enge-
como podem afetar a própria noção de nharia genética, nanotecnologias, e drogas psi-
humanidade, certo sentimento de desconfiança cotrópicas. Como afirma recente documento da
paira sobre o empreendimento como um todo. Fundação Nacional de Ciências estadunidense:
neste momento único na história do progresso
Tal percepção se fortalece porque enquanto os técnico em que o aperfeiçoamento da perfor-
benefícios são rapidamente identificados, as mance humana torna-se possível, e tal apri-
preocupações éticas e sociais que a marcha da moramento é buscado com vigor, poderia atin-
biotecnologia levanta não são facilmente arti- gir a idade de ouro que seria o ponto de virada
culadas. Elas vão além das questões familiares para a produtividade e qualidade de vida 7.
discutidas pela bioética e estão mais direta-
mente ligadas com os fins em si mesmos, com Fazem coro a tal visão trabalhos de cientistas
os usos dos poderes biotecnológicos. Em ter- conceituados como James Watson, co-descobri-
mos gerais, essas preocupações maiores são li- dor da estrutura do DNA, que citado por
gadas especialmente aos usos da biotecnologia Wheeler coloca a questão de forma muito sim-
que vão além da terapia, transpondo o domínio ples: se podemos construir seres humanos me-
usual da medicina e o objetivo da cura. Os usos lhores ao sabermos como acrescentar genes, por
que despertam temor trafegam entre aqueles que não deveríamos fazê-lo? 8 Também o tra-
que podem ser classificados como vantajosos e balho de Stock, apresentado no livro Redesign-
os que venham a se revelar perniciosos. Mate- ing humans: our invevitable genetic future, traz
rializam tais temores as biotecnologias já considerações sobre o impasse hodierno.

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Observando as tendências atuais nas discussões vam ir além da terapia. Nesta visão, terapia é o
sobre o assunto, afirma: os humanos do futuro uso do poder biotecnológico para tratar as pes-
olharão para nossa era como desafiante, difícil soas com doenças conhecidas, deficiências ou
e um momento traumático... Eles verão como danos, tentando restaurá-los para o estado nor-
um tempo estranho e primitivo a nossa época, mal de saúde e funcionamento. Por contraste,
em que as pessoas viviam somente setenta ou aperfeiçoamento (enhancement) é uso do poder
oitenta anos, morriam de doenças horrorosas e biotecnológico direcionado a alterar, por inter-
concebiam seus filhos fora do laboratório, fru- médio de intervenção direta, não processos de
tos do acaso e imprevisível encontro de um doenças, mas o funcionamento “normal” do
espermatozóide e um óvulo 9. corpo e psique humanas, visando aumentar
suas capacidades e performances naturais 10.
Claro que essas predições em relação ao futuro
pós-humano são problemáticas. Nem todos Em biomedicina, melhoramentos são definidos
gostam da idéia de recriar o Éden ou do como intervenção que tem como objetivo apri-
homem brincando de Deus. Nem todos acre- morar a forma ou funcionamento humano,
ditam que este mundo profetizado seja melhor para além do que é necessário para manter ou
que o que se vive atualmente. Nasce aqui a restaurar a boa saúde11. Em outras palavras,
necessidade da discussão ética, que permeie esse melhoramentos são intervenções que aper-
cenário claramente polarizado, em termos de feiçoam a forma e o funcionamento humano
ser a favor de uma nova realidade pós-humana sem responder a genuínas necessidades médi-
ou contrário a ela. Se a inquietação em relação cas. Esse conceito identifica melhoramento
ao uso da biotecnologia e o temor quanto ao pelo objetivo de aprimoramento, na ausência de
mau uso da manipulação genética estão mani- necessidade médica. O conceito mais comum
festos, há que se refletir sobre o assunto para contrasta com o entendimento do que sejam
que qualquer decisão sobre ele manifeste, senão melhoramentos com os tratamentos ou tera-
um consenso, ao menos uma perspectiva larga- pias, que são intervenções que respondem a
mente ponderada. uma genuína necessidade médica.

Os conceitos de terapia e melhoramento Os que introduziram essa distinção tinham em


humano: é possível distinguir? mente distinguir entre usos aceitáveis, duvi-
dosos ou inaceitáveis da tecnologia médica:
A questão da busca biotecnológica do melhora- terapia é sempre eticamente aceitável, aper-
mento humano ainda não entrou na agenda da feiçoamento é, pelo menos prima facie, etica-
bioética pública. Nos círculos acadêmicos rece- mente suspeito. Terapia gênica para fibrose cís-
beu atenção sob a rubrica de aperfeiçoamento, tica ou prozac para depressão são ótimos, mas
entendida em contraposição à terapia. Essa dis- inserir genes para melhorar a inteligência ou
tinção fornece bom ponto de partida para esteróides para atletas olímpicos são procedi-
entrar na discussão das atividades que objeti- mentos, no mínimo, questionáveis.

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À primeira vista e para o senso comum essa dis- Assim, por esses motivos, entre outros, o
tinção entre terapia e melhoramento faz sentido. relatório aponta que para fazer um julgamento
A experiência ordinária reconhece a diferença moral essa distinção entre terapia e melhora-
entre restaurar para alcançar o normal e intervir mento é problemática. Além disso, argumentos
para além do normal. A distinção parece ser útil, sobre se algo é ou não um “melhoramento”
pois permite discernir entre a obrigação fun- podem com freqüência encontrar o caminho das
cional e obrigatória da medicina (curar os questões éticas apropriadas: o que seria um
doentes) e suas práticas “extracurriculares”, “bom” e “mau” uso do poder biotecnológico? O
como, por exemplo, administrar injeções de que determina que um uso seja “bom” ou sim-
botox e outros procedimentos cirúrgicos com plesmente “aceitável”? O fato de uma droga
finalidade meramente cosmética. Porém, embo- estar sendo utilizada somente para satisfazer
ra tal distinção pareça interessante para dar iní- desejos individuais de superação da condição de
cio a uma discussão sobre o tema, foi considera- normalidade, como, por exemplo, para aumentar
da inadequada para estabelecer parâmetros para a concentração ou melhorar a performance se-
uma análise moral, segundo o já citado relatório xual, tornaria sua utilização questionável? Por
da Comissão de Bioética estadunidense, que uti- outro lado, certas intervenções para restaurar o
liza a expressão, mas classifica-a como altamente funcionamento corporal, como possibilitar que
problemática, abstrata e imprecisa 4. uma mulher após a menopausa venha a gerar fi-
lhos ou que um homem aos 65 anos possa jogar
Os critérios analíticos para produzir tal classifi- profissionalmente hockey no gelo, podem muito
cação baseiam-se em diversos argumentos. O bem evidenciar o uso dúbio do poder biotec-
primeiro considera que terapia e melhoramento nológico: o significado humano e avaliação
são categorias que se entrecruzam: todas as te- moral deve ser enfrentada diretamente. Seria
rapias bem sucedidas são terapias de aperfeiçoa- improvável que seriam considerados pelo termo
mento. Além disso, esses conceitos estão liga- ‘melhoramento’, nada mais do que eles são pela
dos à idéia de saúde e ao sempre controverso natureza da intervenção tecnológica em si 12.
ideal de normalidade, cujo conceito se altera
temporal e culturalmente. As diferenças entre Origens e fundamentos do
saudável e doente nem sempre são tão evi- movimento transumanista
dentes. Seria terapia dar o hormônio de cresci-
mento para um anão genético, mas não para Embora os termos transumanismo e pós-
uma pessoa anã que se sente infeliz justamente humanismo sejam criação recente, as idéias que
porque tem baixa estatura? Haja vista que cada representam não são novas. O ideal filosófico
vez mais cientistas acreditam que todos os subjacente remete ao Século das Luzes, recon-
traços da personalidade possuem base biológica, figurado sob saudável dose de relativismo pós-
como distinguir “defeito” biológico, que permite moderno. Do Iluminismo surge uma visão
a “doença”, da condição biológica que permite completamente reducionista da vida humana,
a timidez, melancolia ou irascibilidade? característica daquele movimento materialista

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empiricista. Na obra L´homme machine, pu- Em seu livro Como nos tornamos pós-
blicada em 1748, o médico e filósofo francês humanos, Katherine Hayles apresenta quatro
Julien Offray de La Mettrie afirma que os características fundamentais do pós-humanis-
humanos são, fundamentalmente, somente mo: 1) Modelos de informação são mais impor-
animais e máquinas. O marquês de Condorcet, tantes ou essenciais à natureza do ser que qual-
outro filósofo do Iluminismo francês, escreveu quer material, de modo que o estar encapsulado
em 1794 que não foram fixados limites para o num substrato biológico é visto como um aci-
aperfeiçoamento das faculdades... o aperfeiçoa- dente da história antes que uma inevitabilidade
mento do homem é ilimitado. Muitos também da vida; 2) A consciência é um epifenômeno.
vêem raízes do pensamento transumanista no Não existe uma alma imaterial; 3) O corpo é
pensamento de Nietzsche, particularmente na simplesmente uma prótese, embora a primeira
obra Assim falava Zaratustra, na qual afirmava que aprendemos a usar e manipular. Conse-
que o homem é algo para ser superado. qüentemente, substituir ou aprimorar a função
humana com outra prótese é apenas uma exten-
O movimento transumanista teve início nos são natural de nossa relação fundamental com
anos 1980 com os escritos de um futurista co- os corpos criados; 4) A visão pós-humana
nhecido como FM-2030. Foi definido como encara o ser humano como capaz de conectar-se
um movimento cultural e intelectual que afirma perfeitamente com máquinas inteligentes. No
a possibilidade e o desejo de fundamentalmente mundo pós-humano não existem diferenças
aprimorar a condição humana através da razão essenciais ou demarcações absolutas entre
aplicada, especialmente usando tecnologia para existência corpórea e simulação computacional,
eliminar o envelhecimento e aprimorar as mecanismo cibernético e organismo biológico,
capacidades intelectuais, físicas e psicológicas13. tecnologia robótica e objetivos humanos15.

O termo transumano vem sendo usado desde As características que definem o transumanis-
então como sinonímia de homem transitório. mo, elencadas por Hayles, permitem estabele-
Os transumanos seriam as primeiras manifes- cer uma comparação com a perspectiva atual-
tações de novos seres evolutivos, em sua jorna- mente adotada em relação à biotecnologia.
da para se tornarem pós-humanos 14. Subja- Ainda que com as restrições anteriormente dis-
cente a esta visão está a crença de que a espécie cutidas, as sociedades ocidentais parecem ter
humana, na sua condição atual, não representa começado a considerar seriamente as possibili-
o final do desenvolvimento da espécie, mas, dades abrangidas pela idéia de “transumano”,
antes, o início. A primeira certeza do pensa- especialmente os melhoramentos biotecnológi-
mento transumanista é a rejeição da hipótese cos das capacidades humanas biológicas tais
de que a natureza humana seja uma constante. como tempo de vida, tipo de personalidade e
Assim, não existiria nada de sacrossanto na inteligência, entre outras. A genética, a nano-
natureza em geral ou sobre a natureza humana tecnologia, a clonagem, a criogenia, a cibernéti-
em particular. ca e as tecnologias de computação fazem parte

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de uma visão pós-humana que inclui até a idéia tanto para aperfeiçoar a espécie como para
de formar uma mente computadorizada, livre aliviar ou curar doenças 3.
da carne mortal e, portanto, imortalizada. Os
pós-humanistas não acreditam que a biologia Fukuyama, professor de economia política
seja um destino, mas antes algo que deve ser internacional da Universidade Johns Hopkins
superado, porque, segundo eles, não existe ‘lei (EUA) e atual membro da Comissão de Bioéti-
natural’, mas somente maleabilidade humana e ca do governo Bush, afirma que os transuma-
liberdade morfológica. nistas pretendem nada menos do que libertar a
raça humana de seus limites biológicos: para os
Para uma mente pós-humanista a natureza transumanistas, os seres humanos precisam
humana, tal como a conhecemos, é mero assumir o controle de seu destino biológico,
obstáculo a ser superado. Os que contestam tal desvinculá-lo do cego processo evolutivo de
idéia advogam que esta é uma atitude arro- variação aleatória e adaptação, e assim inaugu-
gante, que desconsidera a apreciação pela dig- rar uma nova era como espécie.
nidade humana natural. Essa questão vem
sendo explorada na atualidade por Fukuyama, As ferramentas que os transumanistas usa-
que gerou polêmica mundial há duas décadas riam para atingir seus fins incluiriam a
com a obra O fim da história e o último manipulação genética, nanotecnologia, ci-
homem. Sua mais recente (e não menos bernética, aprimoramento farmacológico e
polêmica) publicação – intitulada Nosso futuro simulação de computador. A mais ambiciosa
pós-humano: conseqüências da revolução da – e controversa – visão transumanista
biotecnologia – trata justamente dessa temáti- envolve o conceito de mente reprogramável
ca. Segundo ele, este projeto visa inaugurar (mind uploading). Segundo seus propo-
uma nova era como espécie. Todavia, o princí- nentes, avanços na área da informática e das
pio básico do transumanismo – o de que um dia neurotecnologias capacitarão as pessoas,
usaremos a biotecnologia para nos tornar mais dentro de poucas décadas, a ler completa-
fortes, mais inteligentes, menos violentos, mente as conexões sinápticas do cérebro
assim como para ampliar nossa vida – será de humano, capacitando uma réplica exata do
fato tão bizarro? Uma espécie de transumanis- cérebro para existir e funcionar dentro de
mo já está implícita em grande parte do pro- um computador. Esta simulação poderia
grama de pesquisas da biomedicina contem- então “viver” em qualquer forma de corpo
porânea. Novos procedimentos e tecnologias mecânico que se queira. Dessa forma, final-
que estão surgindo em laboratórios de pesquisa mente, o cérebro humano seria libertado da
e hospitais – como medicamentos que alteram fraqueza da carne mortal, em controle de
o humor, substâncias que aumentam a massa seu próprio destino e não mais limitado no
muscular ou apagam seletivamente as me- tempo de anos, alcançando, assim, a imor-
mórias, exames genéticos pré-natais, terapia talidade, já que tal vida pode continuar para
genética – podem ser facilmente empregados sempre.

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Algumas questões éticas inevitáveis incorporados como partes do corpo humano.
Permanecem como ferramentas, antes que
Uma das primeiras questões éticas relacionadas atributos humanos. Em oposição, para muitos
às concepções do movimento do pós-humanis- ultrapassa os limites que não devem ser viola-
mo refere-se ao aperfeiçoamento16. Os seres dos, por exemplo, o uso permanente de um
humanos devem se aprimorar e projetar essa computador capaz de aprimorar as funções
expectativa nas gerações futuras? Embora os cerebrais por meio de conexões cibernéticas ou
humanos venham buscando ao longo da história implantes cerebrais, mesmo que esse instru-
seu próprio aprimoramento, esta não é questão mento esteja fisicamente separado do usuário.
que possa ser respondida com simplicidade. Por que é assim?
Tomado em sua dimensão mais abrangente, o
aprimoramento é o objetivo explícito do desen- Existem duas críticas principais a tal aperfeiçoa-
volvimento de toda e qualquer ferramenta, cons- mento permanente: a) que eles são não naturais
tituindo também a natureza essencial do proces- e engajam as pessoas em atividades reservadas
so de educação. somente para Deus, isto é, brinca-se de Deus.
Os transumanistas desclassificam a crítica de
Se considerarmos, por exemplo, a correção da não ser natural, porque quase tudo que os seres
visão pelo uso de óculos ou lentes de contato humanos fazem com qualquer tecnologia é algo
constataremos que são exemplos de aperfeiçoa- não natural, e estes usos são aceitos como bene-
mento comumente aceito e utilizado na maio- fícios – conseqüentemente não são danos. Em
ria das sociedades. Essa intervenção visa relação ao segundo argumento, muitos, se não a
somente a corrigir uma deficiência, possibili- maioria dos transumanistas, são agnósticos ou
tando que as pessoas passem a enxergar no nível ateus e, portanto, consideram que engajar-se
tido como normal para a espécie humana. Por- numa suposta rebelião prometéica contra os
tanto, trata-se de intervenção de cura, antes deuses não é para eles preocupação legítima. A
que de melhoramento. O que se torna pro- questão é grande preocupação para os teístas,
blemático para muitos é quando o aperfeiçoa- isto é, os que crêem. Pode Deus ser tão facil-
mento em questão vai, potencialmente, além mente destronado?
da função terapêutica. Tal questionamento
repousa também no fato do aprimoramento ser A preocupação maior dos que questionam os
ou não incorporado. A aceitação e uso de algu- objetivos transumanistas é que os seres
mas tecnologias de aprimoramento, como o humanos se engajem em atividades que podem
telescópio ou o microscópio, demonstram isso. ter profundo impacto nas pessoas envolvidas,
A aceitação sem restrições de tais instrumentos bem como no ambiente circundante, sem
remete-se ao fato de que podem ser usados em forças de equilíbrio ou sabedoria divina que
determinado momento, e para finalidade poderiam minimizar possíveis conseqüências
específica, mas não podem se tornar uma carac- negativas de tais atividades. Para a perspectiva
terística permanente do ser humano ou serem teísta, essas mudanças ocorrem sem entendi-

135
mento adequado e respeito ao plano inicial de biológico tornarem isso possível. Quando são
Deus, portanto, sem a sabedoria divina. Ao oferecidos às pessoas meios técnicos para o apri-
final, ambos os argumentos expressam preocu- moramento de si próprios e de seus filhos, não
pações com grandes danos que tais intervenções importa o que significa para eles o aperfeiçoa-
poderiam potencialmente induzir, introduzindo mento, a oferta será aceita... A tecnologia de
atividades que pressupõem significativo grau de aperfeiçoamento pode ser dificultada ou atrasa-
conhecimento, previsão e sabedoria que pode, e da pela regulamentação, mas não pode ser per-
muito provavelmente está, faltando. A arrogân- manentemente supressa... será vista por mi-
cia, e não a ingenuidade ou a paixão para lhares de cidadãos como libertação de limites e
mudar as coisas, é o que parece ser o problema injustiças passadas. A sua liberdade de escolha
fundamental. não pode ser permanentemente negada17.

Nos Estados Unidos da América (EUA), onde Seja como for, tais pontos de vista abrem espaço
é particularmente forte o argumento do tran- para que se considere uma das fraquezas funda-
sumanista Anders Sandberg, é relativamente mentais do pensamento transumanista, ou de
comum considerar-se que a liberdade de buscar qualquer outro pensamento utópico, que é a
tecnologias de aperfeiçoamento seja questão falha em compreender a escuridão, os medos e a
fundamental de direito à vida. Para outros, imprevisibilidade de cada coração humano. As
contudo, mesmo se tais aperfeiçoamentos não lições do século XX, que ainda precisam ser
fossem testados até que tivéssemos cuidadosa assimiladas, como a experiência da eugenia, do
avaliação prospectiva (e proteções contra as con- fascismo e do comunismo, advertem para que se
seqüências indesejáveis) qualquer intervenção tenha cuidado com os sonhos utópicos, que
potencialmente além no nível normal da espécie podem escravizar, destruir e diminuir, antes de
deveria ser rejeitada. A discussão em torno proporcionar a justiça prometida, a liberdade e o
dessas posições contraditórias acaba por revelar novo florescer humano.
uma preocupação subjacente, que diz respeito às
conseqüências sociais do transumanismo. Os O duelo entre transumanistas
que defendem posições mais bioconservadoras versus bioconservadores
referem-se à possibilidade de discriminação
entre seres aprimorados e não aprimorados, com Segundo Bostrom, que juntamente com Pierce
cada um desses grupos sentindo-se ameaçado fundou, em 1998, nos EUA, a Associação
pelo outro. Protestos de competição injusta, Transumanista Mundial, as posições éticas a
provável e potencialmente, intentariam criar respeito das tecnologias para o aperfeiçoamento
legislações restritivas. Porém, segundo Freeman humano podem ser caracterizadas, de maneira
Dyson, educador e médico britânico, o aper- geral, como indo do transumanismo ao biocon-
feiçoamento artificial dos seres humanos de servadorismo15. Os transumanistas acreditam
uma forma ou de outra virá, gostemos ou não, que as tecnologias de aperfeiçoamento humano
assim que os progressos do entendimento devem estar amplamente disponíveis, que as

136
pessoas devem ter poder para dirimir sobre qual comprometerão a dignidade humana e podem
dessas tecnologias gostariam de aplicar em si potencializar fatores desumanizantes. Para
próprias e que os pais devem normalmente ter o interromper essa tendência em direção a um
direito de escolher autonomamente o aper- estado pós-humano, os partidários dessa visão
feiçoamento ideal para seus filhos18. freqüentemente argumentam que se deveria
implementar amplas resistências, em termos de
Os transumanistas acreditam que enquanto proibição dessas tecnologias.
existem perigos à sobrevivência da espécie, que
precisam ser identificados e evitados, as biotec- Dignidade humana é incompatível
nologias para o aprimoramento humano ofere- com dignidade pós-humana?
cerão potencial valioso, com usos benéficos
para a humanidade. Consideram ser possível Os bioconservadores tendem a negar a dig-
que tais aprimoramentos possam tornar pós- nidade pós-humana e vêem a pós-humanidade
humanos os seres humanos contemporâneos como ameaça à dignidade dos seres humanos.
ou seus descendentes diretos. Tais seres pós- Conseqüentemente, buscam maneiras de desle-
humanos podem vir a ter um tempo de saúde gitimar intervenções radicais de futuras modifi-
indefinido e faculdades intelectuais muito cações que podem levar para a emergência de
maiores que qualquer ser humano de hoje e, seres considerados pós-humanos. Os tran-
talvez, também novas sensibilidades e habili- sumanistas, em contraste, vêem dignidade
dades inteiramente novas, tal como a capaci- humana e pós-humana como compatíveis e
dade de controlar as próprias emoções. Assim, complementares. Insistem que a dignidade, em
segundo o transumanismo, a abordagem mais seu sentido moderno, consiste no que somos e
sábia seria abraçar o progresso tecnológico, no que temos potencial para nos transformar.
defendendo os direitos humanos e as escolhas O que somos não é somente função de nosso
individuais e agindo contra ameaças concretas, DNA, mas depende também do contexto tec-
tais como o uso militar ou terrorista de armas nológico e social. Nesse sentido amplo, a
biológicas, bem como os efeitos ambientais e natureza humana é dinâmica e parcialmente
sociais indesejados das biotecnologias. Segundo modelada pelo homem. O fenótipo atual dos
Bostrum, que se proclama pós-humanista, seres humanos é marcadamente diferente
entre proeminentes expoentes dessa perspectiva daquele do de nossos ancestrais. Lemos e
destacam-se personalidades como Leon Kass, escrevemos, sabemos que a terra é redonda,
Francis Fukuyama, George Annas, Wesley usamos roupa, vivemos em cidades e a espe-
Smith, Jeremy Rifkin e Bill McBibben. rança de vida é três vezes maior que a do perío-
do Pleistoceno. Aos olhos de um ancestral
Em contrapartida, os bioconservadores, geral- humano, nós, na atualidade, aparecemos como
mente, se opõem ao uso de biotecnologias para pós-humanos. Essas extensões radicais de
modificar a natureza humana. A idéia central é capacidades humanas – algumas delas biológi-
que as tecnologias de aperfeiçoamento humano cas, outras externas – não nos desviariam do

137
status moral ou nos desumanizariam no senti- uma visão maior de re-engenheirar a natureza
do de nos tornar sem valor: a partir de uma pers- humana e, portanto, criar biológica e tecno-
pectiva transumanista, não existe necessidade logicamente seres humanos superiores, que nós
de se comportar como se existisse uma profun- seres humanos de hoje desenharemos para o
da diferença moral entre meios tecnológicos e amanhã. Como tal, os pós-humanos não serão
outros meios de aperfeiçoamento de vidas mais humanos19.
humanas. Ao defender dignidade pós-humana
promovemos uma ética mais inclusiva e Para uma mente pós-humanista, a natureza
humana, que engloba pessoas tecnologica- humana, tal como a conhecemos, é mero
mente modificadas no futuro, bem como obstáculo a ser superado. Para alguns, a
humanos do tipo contemporâneo. Também ambição dos pós-humanistas em criar um novo
removemos um distorcido duplo standard de pós-humano, que não é mais humano, é ati-
visão moral a partir de nosso campo, permitin- tude arrogante, pretensiosa e que desconsidera
do-nos assim perceber mais claramente as opor- a apreciação pela dignidade humana natural.
tunidades que existem para mais progresso Para outros, todos esses esforços são vistos
humano16. como potencial para um progresso no desen-
volvimento dessas forças tecnológicas. Enfim,
Importante destacar que a terceira e mais como questiona Post: a nossa época está
recente edição da Enciclopédia de bioética, começando a considerar seriamente possibili-
publicada em 2004, traz novos verbetes sobre a dades de ‘transumanos’ através de melhora-
questão do pós-humanismo. Dentre esses, mentos biotecnológicos das capacidades
salientam-se: cibernética, clonagem, dignidade humanas biológicas, tais como tempo de vida,
humana, embrião e feto; pesquisa com células- tipo de personalidade e inteligência. Qual será
tronco embrionárias, tecnologia médica e o status da generatividade altruística que Erik
melhoramento humano, nanotecnologia, o Erikson associou com a velhice à medida que os
envelhecer e o idoso; intervenções antienve- seres humanos aventureiramente envidam
lhecimento e questões ético-sociais. Em con- esforços para alterar o tempo de vida? Será a
junto, todos esses novos verbetes levantam a compaixão deixada de lado em favor da busca
questão de fundo: o que significa ser humano? biotecnológica de músculos mais fortes, maior
Stephen G. Post, editor-chefe da mais recente longevidade, disposições de felicidade e beleza
edição da Enciclopédia de bioética, enfatiza: o permanentes? Ou seriam o cuidado e a com-
pós-humanismo é um puro cientificismo que paixão que estão em nós o último aperfeiçoa-
propõe alterações fundamentais na natureza mento humano? 20.
humana, superando os limites biológicos e
transcendendo o humano pela tecnologia. O Considerações conclusivas
pós-humanista tem como objetivo desacelerar
ou até mesmo parar o processo de envelheci- Sem dúvida, a questão de um futuro pós-
mento, mas somente como pequena parte de humano é um dos grandes temas da contempo-

138
raneidade: como devemos olhar o futuro da a pesquisa científica para encontrar a cura da
humanidade e se devemos utilizar tecnologia malária – que continua a matar milhares de
para nos tornar mais que humanos. Embora esse pessoas mundo afora.
assunto ainda não tenha espaço na discussão
pública e esteja muito ligado ao mundo da ficção Faz-se grande investimento nas pesquisas em
é, no entanto, importante abrir a discussão. O neurociência e em abordagens biológicas em
pós-humanismo levanta seriíssimas questões franca expansão, relacionadas com desordens
para a bioética relacionadas ao debate sobre os psiquiátricas. Parece claro que as tão esperadas
fins e os objetivos a serem atingidos pela novas descobertas a respeito do funcionamento
aquisição de poder biotecnológico, não se da psique e as bases biológicas do comporta-
restringindo apenas a questões de segurança, mento seguramente aumentarão nossa habili-
eficácia ou moralidade dos meios. Tais conside- dade e desejo de alterá-las e aprimorá-las. Mas
rações remetem também à natureza e significado existiria algum limite? Ou o limite seria o
da liberdade humana e do florescimento quanto de conhecimento disponível foi amea-
humano. Colocam-se frente ao tão propalado lhado neste momento histórico?
debate sobre a ameaça de desumanização, bem
como a promessa de super-humanização. A biotecnologia, em si mesma, não é má e, de
Chamam atenção, enfim, para o que significa ser fato, tem sido fonte de bem-estar, embora não
um ser humano e ser ativo como ser humano. se possa duvidar que também provoque dano.
É uma ferramenta e como tal deve ser cuida-
A emergência paulatina de tais discussões dosamente examinada e utilizada à luz de
mostra que tais questões não configuram, sim- valores humanos. Embora seja difícil obter
plesmente, cenário futurista. Tendências atuais consenso em termos de tecnologias de aper-
deixam claro que o caminho para além da tera- feiçoamento, a humanidade deve dialogar a
pia e em direção à perfeição e felicidade já é respeito dessas tecnologias que visam não ape-
realidade, cotidianamente evidenciada. Exem- nas dominar a natureza física e biofísica, mas o
plos abundantes, como o uso de cirurgias cos- próprio corpo humano, ou melhor, a condição
méticas, de drogas para aprimorar a perfor- humana, sem cair ingenuamente prisioneira de
mance corporal e alterar o humor, de métodos utopias científicas escravizantes que entregam
de seleção do sexo dos filhos, de cirurgias para o futuro às forças cegas do mercado. Imaginar
remoção de peso e rugas, tratamento de calvície que o ser humano pode ser transformado em
etc. demonstram a crescente aceitação das tec- ferramenta, na esperança de conquistar imor-
nologias para o aprimoramento dos potenciais talidade, é pura ilusão.
humanos. Essas práticas já se transformaram
em grande negócio. Em 2002, os estaduniden- Diferentemente do ocorrido com outras trans-
ses gastaram um bilhão de dólares em medica- formações técnicas e científicas do passado,
mentos para tratamento da calvície, algo em hoje as expectativas ante as inovações tec-
torno de dez vezes mais que o total gasto com nológicas já não são necessariamente mar-

139
cadas por atitudes de acolhida e sentimentos existem outras para as quais não emerge ne-
otimistas; cultiva-se considerável grau de ceti- nhuma resolução. Tolerância, civilidade, res-
cismo saudável! A humanidade aprendeu peito e a vontade sincera de engajamento sério
muito com as grandes tragédias coletivas do com a visão dos outros, que têm diferentes
século XX, em grande parte alimentadas por tradições, sejam estas seculares ou religiosas, são
utopias tecnocientíficas. Estamos vivendo, virtudes e hábitos de mente, necessários. A
atualmente, numa sociedade de risco, em que bioética é inevitavelmente sujeita à crítica
cada novo passo no domínio da técnica impli- daqueles que crêem que as respostas para
ca não apenas prudência, mas também pre- inúmeras questões novas trazidas pelas re-
caução. Dia-a-dia se fazem mais necessários o voluções, biológica e dos cuidados de saúde, são
monitoramento e a vigilância entre pares, imediata e simplesmente fáceis. Mas, afinal, o
bem como o escrutínio público e o acompa- que é um bom profissional da ética, seja este
nhamento político21. secular ou religioso, senão aquele que levanta
uma nova questão que ninguém tinha antes for-
É urgente cultivar, junto com a ousadia cientí- mulado e que propicia um debate aprofundado
fica, a prudência ética, para identificar quais como uma alternativa à superficialidade? 22
seriam as chamadas qualidades humanas fun-
damentais, que não devem ser alteradas. Além Trata-se, na essência, de um convite a fugirmos
disso, faz-se preciso ter em conta a questão da superficialidade das aprovações ou conde-
ambiental, que traz como legado o aprendizado nações fáceis, superando aspectos ideológicos,
da humildade e o respeito frente à natureza, utópicos e fundamentalistas, e avançarmos
que também deve ser aqui aplicado. Pergunta- num diálogo respeitoso em relação às dife-
mo-nos se no futuro a compaixão, solidarieda- renças. Isto, sem dúvida, pode ser fator de
de e cuidado não serão definitivamente preteri- superação de utopias que sugerem e semeiam o
dos em favor da busca biotecnológica por mús- medo e o terror em termos de futuro da
culos mais fortes, maior longevidade, dis- humanidade, ao invés de promover a serenidade
posições de felicidade e beleza permanentes, ou e a construção identificada pela esperança. Há
seriam essas virtudes o último aperfeiçoamento que se exercer saudável ceticismo em relação
humano desejável? Concluímos essa reflexão aos que se proclamam detentores da verdade
citando novamente Post, que aponta a missão suprema em relação ao futuro do ser humano.
da bioética neste contexto: pelo fato de a É fato que, em relação à verdade, sempre sere-
bioética lidar com questões que são profunda- mos eternos aprendizes. Tal afirmação, facil-
mente relevantes para o futuro da natureza, mente constatável em qualquer período da
natureza humana, e para a área da saúde, estas história humana, se torna evidência à medida
questões são freqüentemente contenciosas. que a biotecnologia avança tão rápida que torna
Contudo, na dialética entre objetivismo moral imprescindível o agir com sabedoria. É a
e relativismo moral, enquanto muitas destas sabedoria, que nasce do diálogo respeitoso e
questões permitem uma resolução plausível, profícuo entre as diferenças, que permite dis-

140
cernir entre as intervenções e transformações irremediavelmente a dignidade do ser humano
salutares e as destrutivas, que comprometem e o futuro da vida no planeta.

Resumen

Bioética y el desafío del transhumanismo: ideología o utopía, amenaza o esperanza?


Este artículo discurre sobre uno de los mayores desafíos para la bioética al inicio de éste siglo XXI,
bautizado como el siglo de la biotecnología, que representa la llegada de la da era del pos-
humanismo o transhumanismo. Reflexiona sobre el significado del mejoramiento biotecnológico de
las capacidades humanas biológicas, tales como, las relacionadas al prolongamiento del tiempo de
vida; a la posibilidad de la alteración del tipo de personalidad e inteligencia; y a la reprogramación
de la mente humana, demostrando que tales procesos pueden estar propiciando el surgimiento de
un "transhumanismo". Muestra que la genética, la nanotecnología, el clonage, la criogénica, la
cibernética y las tecnologías de computación, la biogerontología y la medicina antienvejecimiento,
son parte de esa visión post-humana, que incluye hasta la idea de formar una mente
computadorizada, libre de la carne mortal, y por lo tanto, inmortalizada. En este contexto, presenta
los percances inherentes a esa nueva concepción, considerando que, si para los post-humanistas, la
biología, la naturaleza humana tal como la conocemos hoy, no es un destino, más si, algo que debe
ser superado y modificado, para otro grupo de pensadores, los llamados Bioconcervadores, tales
aportes no pasan de un mero cientificismo, a ser combatido. Ante tal debate, este artículo destaca
la importancia de, en el momento en que se está oscilando entre amenazas y esperanzas, ideología
y utopía, adoptar referenciales éticos para discernir cuales de esas transformaciones son saludables
y cuales destructivas, qué es necesario evitar.
Palabras-clave: Naturaleza humana. Transhumanismo. Mejoramiento biotecnológico. Post-huma-
nistas. Bioconcervadores.

Abstract

Bioethics and the challenge of transhumanism: ideology or utopia, threat or hope?


This article discusses about one of the greatest challenges for bioethics in the beginning of the 21st
century, marked for being the biotechnological century which made way for the post-humanism or
transhumanism era. It reflects the significance on improving biotechnology within the human biological
capacity, such as, cases related to prolonging life; to alter the personality and type of intelligence; and
the reprogramming of the human mind, pointing out that such processes could motivate an
emergency for "trans-humanism". It shows that genetics, nanotechnology, cloning, cryogenic,
cybernetics, computer technologies, biogerontology and anti-aging medicine are part of this post-
human vision, which even includes the idea of the creation of a computerized mind, free from the
mortal body and therefore immortalized. This context presents the inherent impasse to this new
concept, considering that if for the post-humanists biology, the human nature as we know it today is
not a destiny but something that must be overcome and modified for another group of thinkers, the
so called bioconservator whose contribution is mere scientifisim, which must be combated. In face of
this debate, this article points out the importance of how at this very moment there is an oscillation
between threats and hopes, ideology and utopia, to adopt ethical references to differentiate from
which of these transformations are constructive and which are destructive so it may be avoided.
Key words: Human Nature. Transhumanism. Biotechnological. Improvement. Post-Humanist. Bio-
conservators.

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Referências

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20. Post SG. Op.cit. p. XIV.
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Neves MC, Lima M. Bioética ou bioéticas na evolução das sociedades. Coimbra/São Paulo: Edição
Luso-brasileira Gráfica de Coimbra/Centro Universitário São Camilo, 2005. p. 99.
22. Post SG. Op.cit. p. XV.

Contato

Leo Pessini - pessini@scamilo.edu.br

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