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Durkheím As Formas Elementares da Vida

Religiosa, publicada em 1912,


pertence ao conjunto dos gran-

orm.as Elementarê
, " o;l-
des textos fundadores da antro-
pologia religiosa. Nessa obra

da Vida Religiosa Durkheim se revela um analista


rigoroso das formas de religiosi-
dade que se manifestam através
dos rituais e sistemas de crenças
arcarcas, mas sobretudo um filó-
sofo inspirado cujas afirmações
demonstram uma grande acui-
dade intelectual e mantêm uma
impressionante atualidade.
Rompendo com a tradição da
época que considerava os fenô-
menOSI' ' ....aosos como um teci-
do de tições, das quais os
homei ibertavam desenvol-
vend~ •..éus conhecimentos,
Durkheim mostra que o fato reli-
gioso, ao contrário, é uma das
bases essenciais da socialidade.

Michel Maffesoli

91D863f.Pn
Autor: DUl'kholm, 8mll ..., -
I BIBLIOTECAS DA PUCMINAS
BELO HORIZONTE

INTRODUÇÃO
WS FORMES
'/'I/II/ti til'//iIIlCl/: ÉLÉMENTAIRES DE LA V/E RELIG/EUSE
'opyrlghl ~ Livraria Martins Fontes Editora Ltda., OBJETO Dif\PESQOIS~(' "':0 2
I
SOa Paulo, 1996, para a presente edição Sociologia religiosa e teoria do conhecimento
l' edição
julho de /996
Tradução
Paulo Neves
Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisão gráfica
Sandra Rodrigues Garcia
Elvira da Rocha Kurata
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Propomo-nos estudar neste livro a religião mais pri-


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) mitiva e mais simples atualmente conhecida, fazer sua
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
análise e tentar sua explicação. Dizemos de tlm sistema
Durkheim, Émile, 1858-1917. religioso que ele é o mais primitivo que nos~a..9-o.2P-
As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico
na Austrália / Émile Durkheim ; tradução Paulo Neves. - São
rvar, quando preenche as duas condições seguintes: em
Paulo: Martins Fontes, 1996. - (Coleção Tópicos). primeiro lugar, que se encontre em.socíedades cuj.íLorga-
nízação não éultrapassada por nenhuma....QJJ.tr.a.-em-.s.i.mpli-
Título original: Les formes élémentaires de Ia vie religieuse.
ISBN 85-336-0515-3
Idade'; (; preciso, além disso, CUJeseja possível explicá-Ia
m fazer intervir nenhum elemento tomado de uma reli-
I. Religião e sociologia 2. Religião primitiva 3. Totemismo gião anterior.
- Austrália I. Título. n. Série.
Faremos o esforço de descrever a economia desse
96-2404 CDD-306.6 sistema com a exatidão' e a fidelidade de um etnógrafo
ou de um historiador. Mas nossa tarefa não se limitará a
Índices para catálogo sistemático:
I. Totemismo : Religião: Sociologia 306.6 isso. A sociologia coloca-se problemas diferentes daque-
les da história ou da etnografia. Ela não busca conhecer
as formas extintas da civilização com o único objetivo de
Todos os direitos para a língua portuguesa conhecê-Ias e reconstitui-las, Como toda ciência positiva,-
reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000
tem por objeto, acima de tudo,. explicar l!!!lli-galidªde~
São Paulo SP Brasil Telefone 239-3677 atual, próxima de- nós, capaz -portãiíiü de afetar nossas
VI AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA
t OBJETO DA PESQUISA VII

idéias e nossos atos: essa realidade é o homem e, mais de durar. Se não estivesse fundada na natureza das coisas,
especialmente, o homem de hoje, pois não há outro que ela teria encontrado nas coisas resistência';' insuperáveis.
estejamos mais, interessados em conhecer bem. Assim, Assim, quando abordamos o estudo das religiões primiti-
não estudaremos a religião arcaica que iremos abordar, vas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o
pelo simples prazer de contar suas extravagâncias e sin- . I exprimem; veremos esse princípio retomar a todo mo-
gularidades. Se a 'tomamos cornoobjeto de nossa pesqui- ~J mento ao longo das análises e das discussões a seguir, e o
sa é que nos pareceu mais apta que outra qualquer para que censuraremos nas escolas das quais nos separamos é
fazer entender a natureza religiosa do homem, isto é, i)ã- precisamente havê-Ia desconhecido. Certamente, quando
ra nos revelar um aspecto essencial e permanente da hu- se considera apenas a letra das fórrnulas.vessas crenças e
manidade, práticas religiosas parecem, às vezes, desconcertantes, e
Mas essa proposição não deixa de provocar fortes podemos ser tentados a atribuí-Ias a uma espécie de aber-
objeções. Considera-se estranho que, para chegar a co- ração intrínseca. Mas, debaixo do símbolo, é preciso sa-
nhecer a humanidade presente, seja preciso começar por ber atingir a realidade que ele figura e lhe dá sua signifi-
afastar-se dela e transportar-se aos começos da hístóriax cação verdadeira. Os ritos mais bárbaros ou os mais extra-
Essa maneira de proceder afigura-se como particularmen- vagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma ne-
te paradoxal na questão que nos ocupa, De fato, costu- essídade humana, algum aspecto da vida, seja individual
mam-se atribuir às religiões um valor e uma dignidade \.1 social. As razões que o fiel concede a si próprio para
desiguais; diz-se, geralmente, qu,e nem todas contêm a justificá-Ias podem ser - e muitas vezes, de fato, são - er-
mesma parte de verdade. Parece, pois, que não se pode rôneas; mas as razões verdadeiras não deixam de existir;
comparar as formas mais elevadas do pensamento reli- compete à ciência descobri-Ias.
gioso com as mais inferiores sem rebaixar as primeiras ao No fundo, portanto, não há religiões falsas. Todas
nível das segundas, Admitir que os cultos grosseiros das são 'verdadeiras a seu modo: todas correspondem, ainda
tribos australianas podem ajudar-nos a compreender o que de maneiras diferentes, a condições dadas da existên-
cris.!.0:njsmo, por exemplo, não é supor que este procede cia humana. Certamente não é Impossível díspô-las se-
da mesma mentalidade, ou seja, que é feito das mesmas gundo uma ordem hierárquica. Umas podem ser superio-
superstições e repousa sobre os mesmos erros? Eis aí Co- Jes a outras, no sentido de empregarem funções mentais
mo a importância teórica algumas vezes atribuída às reli- mais elevadas, de serem mais ricas em idéias e em senti-
giões primitivas pôde passar por índice de uma irreligio- mentos, de nelas haver mais conceitos, menos sensações
sidade sistemática que, ao prejulgar os resultados da pes- e imagens, e de sua sistematização ser mais elaborada.
quisa, os viciava de antemão. Mas, por reais que sejam essa complexidade maior e essa
Não cabe examinar aqui se houve realmente estudio- mais alta idealidade, elas não são suficientes para classifí-
sos que mereceram essa crítica e que fizeram da história e ar as religiões correspondentes em gêneros separados.
da etnografia religiosa. uma máquína de guerra contra a Todas são igualmente religiões, como todos os seres vivos
religião. Em todo caso, esse não poderia ser o ponto de são igualmente vívos] dos mais humildes plastídios ao ho-
vista de um sociólogo\Com efeito, é um postulado essen- mem, Portanto, se nos dirigimos às religiões primitivas,
cial da sociologia que uma instituição humana não pode não é com a idéia de depreciar a religião de urna maneira
repousar sobre o erro e a mentira, caso contrário não po- geral; pois essas religiões não são menos respeitáveis que
VIII AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA IX

as outras. Elas correspondem às mesmas necessidades, rada à maneira cartesiana, isto é, um conceito lógico, um
desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas puro possível, construido pelas forças do espírito. O que
causas; portanto, podem servir muito bem para manifestar devemos encontrar é uma realidade concreta que só a obser-
a natureza da vida religiosa e, conseqüentemente, para re- vação histórica e etnográfíca é capaz de nos revelar. Mas,
solver o problema que desejamos tratar.' " embora essa concepção fundamental deva serobtida por
procedimentos diferentes, continua .sendo verdadeiro que
Mas por que conceder-lhes uma espécie de prerroga- Ia é chamada a ter uma influência considerável sobre to-
tiva? Por que escolhê-Ias de preferência a todas as demais' . da a série de proposições. que a ciência estabelece. A evo-
como objeto de nosso estudo? Isso se· deve unicamente a' lução biológica foi concebida de forma completamente di-
razões de método'.. ' \.. ferente a partir do momento em que se soube da existên-
it
Em primeiro lugar, não podemos chegar a compreen- . cia de seres monocelulares. Assim também, o detalhe dos
der as religiões mais recentes a não ser acompanhando na 'fatos religiosos é explicado diferentemente, conforme se
história a maneira como elas progressivamente se compu- . ponha na origem da evolução o naturismo..o animísmo ou
seram. A história, com efeito, é o único método de análise alguma outra forma religiosa. Mesmo os estudiosos mais
explicativa que é possível aplícar-lhes. Só ela nos permite '\ pecializados, se não pretendem limitar-se a unia tarefa
decompor uma instituição em seus 'elementos constituti- de pura erudição, se desejam explicar os fatos que anali-
vos, uma vez que nos mostra esses elementos nascendo am, são obrigados a escolher uma dessashípóteses e nela
no tempo uns após os outros. Por outro lado, ao situar ca- . inspirar. Queiram ou não, as questões que eles Se colo- .
da um deles rio conjunto de. circunstâncias em que se ori- . cam adquirem necessariamente a seguinte forma: de que
ginou, ela nos proporciona o único meio capaz de deter- ) l) maneira o naturismo ou o animismo foram determinados a
minar.~usas que õsuscitaram. Toda vez, portanto, que adotar, aqui ou acolá, tal aspecto particular, a enriquecer-
. empreendemos explicar uma coisa humana, tomada num se ou a empobrecer-se deste ou daquele modo: Uma vez
momento determinado do tempo -'quer se trate de uma que não se pode 'evitar tomar um partido sobre esse pro-
crença religiosa, de uma regra moral, de um preceito jurí- blema inicial, e uma vez que a solução que lhe é dada está;
dico, de uma técnica estética ou de um regime econômi- ,gestinada a afetar o conjunto da ciência, convém abordá-
co -, é preciso começar por remontar à sua forma mais 10 frontalmente ..É o que nos propomos fazer.
simples e primitiva, procurar explicar os caracteres através Aliás, inclusive sem considerar essas repercussões in-
dos quais ela se define nesse período de sua existência, fa- diretas, o estudo das religiões primitivas tem, por si mes-,
zendo ver, depois, de que maneira ela gradativamente se , mo, um interesse imediato que é de primeira importância.
o

desenvolveu e complicou, de que maneira tornou-se o -r Se, de fato, é útil saber em que consiste esta ou aque-
que é no momento considerado. Ora, concebe-se sem difi-
culdade a importância, para essa série de explicações pro-
gressivas, da determinação do ponto de partida do qual
'r la religião particular, importa ainda mais examinar o que
é a religião de uma maneira geral. É o problema que, em
todas as épocas, tentou a curiosidade dos filósofos, e não
., ,
elas dependem. Era um princípio cartesiano que, no enca- sem razão, pois ele interessa à humanidade inteira. Infe-
deamento das verdades científicas, o primeiro elo desem- lizmente, o método que eles costumam empregar para re-
- penha um papel preponderante. Claro que não se trata de olvê-lo é puramente dialético: limitam-se a analisar a
colocar na base da ciência das religiões uma noção elabo- idéia que fazem da religião, quando muito ilustrando os
x AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA Xl

resultados dessa análise com exemplos tomados das reli- dos fiéis; conforme os homens, os meios, as circunstâncias,
giões querealizam melhor seu ideal. Mas, se esse método tanto as crenças como os ritos são experimentados de for-
deve ser abandonado, o problema permanece de pé e o mas diferentes. Aqui, são sacerdotes, ali, monges, alhures,
grande serviço que a filosofia prestou foi impedir que ele leigos; há místicos e racíonalístas, teólogos e profetas, ete.
fosse prescrito pelo desdém dos eruditos. Ora, tal proble- Em tais condições, é difícil perceber o que é comum a to-
,ma pode ser retomado por outras vias. Como todas as re- '1; dos. Claro que se pode encontrar o meio de estudar pro-
ligiões são comparáveis, e como todas são espécies de veitosamente, através de um ou outro desses sistemas, es-
um mesmo gênero, há necessariamente elementos essen- te ou aquele fato particular que neles se acha especial-
ciais que lhes são comuns. Com isso, não nos referimos mente desenvolvido, como o sacrifício ou o profetismo, a
simplesmente aos caracteres exteriores e visíveis que to- . vida monástica ou os mistérios; mas como descobrir O
das apresentam igualmente e que lhes permitem dar, des- fundo comum da vida religiosa sob a luxuriante vegeta-
de o início da pesquisa, uma definição provisória; a des- ção que a recobrerComo, sob o choque das teologias,
coberta desses signos aparentes é relativamente fácil, pois das variações dos rituais, ela multiplicidade dos grupos, da
a observação que exige não precisa ir além da superfície diversidade dos indivíduos, encontrar os estados funda-
das coisas. Mas' as' semelhanças exteriores supõem outras, mentais característicos da rncntalldade religiosa em geral?
que são profundas. Na base de todos os sistemasde cren-' Algo bem dtfcrcruc ocorre nas sociedades inferiores. ! 4',.
çase de todos às cultos, deve necessariamente hayer um mcnor.dcscnvolvírnento das individualidades, a menor
certo número de representações fundamentais e de atitu- ixtcnsão do grupo, a homogeneidade das circunstâncias ex-
des rituais que, apesar da diversidade de formas que tanto teriores, tudo contribui para reduzir as diferenças e as va-
umas como outras puderam revestir, têm sempre a mes- riações ao mínimo. O grúpo realiza, de manéiráregulãr, "
ma significação objetiva e desempenham por toda parte uma uniformidade intelectual e moral cujo exemplo só rà-
as mesmas funções. São esses elementos permanentes ramente se encontra nas sociedades mais avançadas. Tu- ()( u.
que constituem o.que há de eterno c: de humano na reli- do é comum a todos, Os movimentos são estereotipados;(:ú:"", ~';ji-
gião; eles são o conteúdo objetivo da idéia que se expri- todos executam os mesmos nas mesmas circunstâncias, e~
me quando se fala da religião em geral. De que maneira, 01/
esse conformismo da conduta nâo faz senão traduzir odo
portanto, é possível atingi-los? ' pensamento. Sendo todas as consciências arrastadas nos
" Não, certamente, observando as religiões complexas mesmos turbilhões, o tipo individualpraticarnente se 'con-.
que aparecem na seqüência da história. Cada uma é for- :- funde com O t~po genériroAo mesmo tempo em que tu-
mada de tal variedade de elementos, que é muito difícil õé urilforme, tudo é simples. Nada mais tosco que esses
distinguir nelas o secundário do principal e o essencial do mitos compostos de um mesmo e único tema que se re-
acessório'. Que se pense em religiões como as do. Egito, pete sem cessar, que esses ritos feitos de um: pequeno nú-
da Índia 'ou da Antiguidade dássica! É uma trama espessa mero ele gestos recomeçados interminavelmente. A, imagi- ,
de cultos múltiplos,' variáveis com as localidades, com os popularou sacerdotal não teve ainda tempo nem
templos, com as gerações; as dinastias, as invasões, ele. de refinar e transformar a matéria-prima das idéias
I:,
Nelas, as superstições populares estão mesdadas aos dog- . ticas religiosas; esta se mostra, portanto, nua e se
mas mais refinados. Nem o pensamento, nem a atividade spontanearnente à observação, que não precisa
religiosa encontram-se igualmente distribuídos na massa um pequeno esforço para descobri-lai O acessó-
XII AS FORMAS ELEMENTARES DA \l7DA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA XIII

rio, o secundário, os desenvolvimentos de luxo não vie- mesma razão que a descoberta dos seres monocelulares,
ram ainda ocultar o principaJ2. Tudo é reduzido ao indis- de que falávamos há pouco, transformou a idéia que se
pensável, àquilo sem o que não poderia haver religião. fazia correntemente da vida. Como nos seres muito sim-
Mas o indispensável é também o essencial,' ou seja, o que ples a vida se reduz a seus traços essenciais, estes dificil-
acima de tudo nos importa conhecer. mente podem ser ignorados.
As civilizações primitivas constituem, portanto, casos ..Masas religiões primitivas não permitem apenas des-
privilegiados, por serem casos simples. Eis por que, em tacar os elementos constitutívos da religião; têm também
todas as ordens de fatos, as observações dos etnógrafos a 'grande vantagem de facilitar sua explica-ção. Posto que /'
foram com freqüência verdadeiras revelações que renova- nelas os fatos são mais simples, as relações' entre os fãtoSt?'
p!!p-E.tJ 'f($'
ram o estudo das instituições humanas. Por exemplo, an- são também mais eVidentes.~ razões pelas quais os ho-
tes da metade do século XIX, todos estavam convencidos .i. mens explicam seus atos nao foram ainda elaboradas e
de que o pai era o elemento essencial da família; não se desnaturadas por uma reflexão erudita; estão mais próxi-
concebia sequer que pudesse haver uma organização fa- mas, mais chegadas às motivações que realmente deter-
miliar cuja pedra angular não fosse o poder paterno. A minaram esses at~. Para compreender bem um delírio e
descoberta de Bachofen veio derrubar essa velha concep- poder aplicar-lhe o tratamento mais apropriado, o médico
ção. Até tempos bem recentes, considerava-se evidente tem necessidade de saber qual foi seu ponto de partida.
que as relações morais e jurídicas que constituem o pa- Ora, esse acontecimento é tanto mais f~cil de discernir
rentesco fossem apenas um outro aspecto das relações fi- quanto mais se puder observar tal delírio num período
siológicas que resultam da comunidade de descendência; próximo de seu começo. Ao contrário, quanto mais a doen-
Bachofen e seus sucessores, Mac Lennan, Morgan e mui- ça se desenvolve no tempo, mais ela se furta à observa-
tos outros, estavam ainda sob a influência desse precon- ção: é que, pelo caminho, uma série de interpretações in-
ceito. Desde que conhecemos a natureza do clã primitivo, tervieram, tendendo a recalcar no inconsciente o estado
sabemos, ao contrário, que o parentesco não poderia ser original e a substituí-lo por outros, através dos quais é di-
definido .pela consangüinidade. Para voltarmos às reli- fícil às vezes reencontrar o primeiro. -Entre um delírio sis-
giões, a simples consideração das formas religiosas que tematizado e as impressões primeiras que lhe deram ori-
nos são mais familiares fez acreditar durante muito tempo gem, a distância é geralmente considerável. O mesmo va-
que a noção de d~J~s'era característica de tudo o que é re- le para o pensamento religioso. À medida que ele ~. ._~
[ígíosó. Ora, a relígíãoque estudaremos mais à&inte- é, ãêllãfilstõría, as causas que o chamaram à eXistência,
em grande parte, estranha a toda idéia de divindade; as "--embora sempre permanecendo ativas, não-SãOmais per-
forças às quais se dirigem seus ritos são muito diferentes ~ senão através aeum vasto sistem- e ioterpreta-
daquelas que ocupam o primeiro lugar em nossas reli- çS)es que as deformaffiJ As mito ogias populares e as sutis
giões modernas; não obstante, elas nos ajudarão a melhor teOJ.~fizeram sua obra: sobrepuseram aos sentimentos
compreender estas últimas. Assim, nada mais injusto que primitivos sentimentos muito diferentes que, embora liga-
o desdém que muitos historiadores conservam ainda pe- dos aos primeiros, dos quais são a forma elaborada, só
los trabalhos dos etnógrafos. É certo, ao contrário, que a imperfeitamente deixam transparecer sua natureza verda-
etnografia determinou muitas vezes, nos diferentes ramos deira. A distância psicológica entre a causa e o efeito, en-
da sociologia, as mais fecundas revoluções. Aliás, é pela tre a causa aparente e a causa efetiva, tornou-se mais con-
XIV AS FORMAS ELEMENTARES DA V7DA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA xv

siderável e mais difícil de percorrer para o espírito. O de- ções, a natureza faz espontaneamente simplificações do
senvolvimento desta obra será uma ilustração e uma veri- mesmo tipo no início da história. Queremos apenas tirar
ficação dessa observação metodológica. Veremos de que ";' proveito delas. E claro que só 12oder~~?~ ~~gt...P,or_e~~~_
aneira, nas religiões primitivas, o fato religioso traz ain- étodo, fatos muito elementares. Quando, na medida do

U
da visível a marca de suas origens: bem mais difícil nos
teria sido inferi-Ias com base na simples consideração das
religiões mais desenvolvidas.
O estudo que empreendemos é, portanto, uma ma-
neira e retomar, mas em con i - ~ltrc>fõ-
põ'SSíVe1,-os tivermos átingidô,'"ainda assim não estarão
explicadas as novidades de todo tipo que se produziram
na seqüência da evolução. Mas, se não pensamos em ne-
gar a importância dos problemas que elas colocam, julga-
mos que tais problemas ganham em ser tratados na sua
ble~das rerrgi~- e, por origem, entende-se devida hora, e que há interesse em abordá-I os somente
m primeírõ co a , por certo a questão nada depois daqueles cujo estudo iremos empreender.
e ientífica e deve ser resolutamente descartada/
Não há um ms ante radical em que a re 1 íã:t)rerr~e-
~
çado a existir, e não se trata de encontrar um expediente II
que nos permita transportar-nos a ele em pensamento.
Como toda instituição humana, a religião não começa em. Mas nossa pesquisa não interessa apenas à ciência 1,).!...E
parte alg1una-:Assim, todas as "'êSp'eêiilações desse gênero das religiões. Toda religião, com efeito, tem um lado peloj f'f.L
são justamente desacreditadas; 'só podem consistir em qual vai além do círculo das idéias propriamente religio- 1::'"
construções subjetivas e arbitrárias que não comportam sas e, sendo assim, o estudo dos fenômenos religiosOs'l V'

controle de espécie alguma. Bem diferente é o problema fornece um meio de renovar problemas gue até agora só
que colocamos. Gostaríamos de encontrar um meio de ." foram debatidos entre filósofos. .
discernir as causas, sempre presentes, de que dependem Há muito se sabe que ~t?rimei!:ps sistema~~e repre-
as formas mais essenciais do pensamento e da prática reli- sentações que o homem produziu do mundo e desí pró-
giosa. Ora, pelas razões que acabam de ser expostas, es- 12riosão deongerriTeTígiosa:'"'N[o hi reITgiãoque não seja-
sas causas são mais facilmente observáveis quando as so- j.'uma cosmologia ao meSriiõrempo que uma especulação,
ciedades em que as observamos são menos complicadas. , -fN.·vI sobre o divino) Se a filosoha e as ciencias nasceram da re-
Eis por que buscamos nos aproximar das origens>. ~ ~~o"~t ,Iligião, é.~u~ a própr~a rel~gião começ<,:lUpor fazer as ve~
gue pretendamos atribuir às religiÔ.es inferiores virtud9 ~\''', ~ ....vLzes de ciencias e de filosofias Mas o que foimenos notado
particular~s. Pelo contrário, elas são rudimentares e gros- ,/\ O U é que ela não se limitou a enriquecer com um certo nú:-
seiras; ~o é à cáSo, portanto, de fazer delas modelos que ~\\J]'\\)~o ,~ esp-írito hum~o p~eviamente for~-
as religiões posteriores apenas teriam reproduzido. Mas. . \' \ ~; t;ttmbém ~ntribuiu ~~s ho-
seu próprio aspecto grosseiro as torna instrutivas, pois, mens não lhe devem apenas;ep:iItenotável, a maféria
deste modo, elas constituem.experiências
q~s
cômodas em
fª-!Qs-Wt!is relaçQ.e~ s_:1offiãi§ fáceis de~
C " .5le seus co.,ghecimentos, Illi!S-Í.g)Jalmente~formaSegUndo
v~essgs...c.onlli:.dm~
O físico, para descobrir as leis dos fenômenos que estuda, . Na raiz de nossos julgamentos, há um certo número
procura simplificar esses últimos, desembaraçá-los de de noçS'>esessenciais que dominam toda a nossa vida in-
seus caracteres secundários. No que concerne às institui- telectual; são aquelas que os filósofos, desde Aristóteles,
XVI AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA XVII

chamam de categorias do entendimento: noções de tem- mos através de marcas objetivas, um tempo que não seria
po, de espaços, de gênero.Ide número, de-causa, de subs- uma sucessão de anos, meses, semanas, dias e horas! Se-
-tância, de personalidade, etc. Elas correspondem às pro- ria algo mais ou menos impensável. S~ pOdaros c0}cebe
priedades mais universais das coisas. São como quadros o tempo se nele distinguirmos momentos i erentes, Ora,
sólidos que encerram o pensamento; este não parece po- qual é a origem dessa diferenciação? Certamente os esta-
der libertar-se deles sem se destruir, pois tudo indica que dos de consciência que já experimentamos podem repro-
não podemos pensar objetos que não estejam no tempo duzir-se em nós, na mesma ordem em que se desenrola-
ou no espaço, que não sejam numeráveis, etc. As outras ram prlmítívamente: e, assim, porções de nossopassado
noções são contingentes e móveis; toncebemos que pos- voltam a nos ser presentes, embora distinguindo-se espon-
sam faltar a um homem, a uma sociedade, a uma época, taneamente do presente. Mas, por importante que seja es-_
enquanto aquelas nos parecem quase inseparáveis do sa distinção para nossa experiência privada, ela está longe
funcionamento normal do espírito. São como a ossatura de bastar para constituir a noção ou categoria de {empà -
da inteligência. Ora, quando analisamos metodicamente Esta não consiste simplesmente numa comemoraç~-
as crenças religiosas primitivas, encontramos naturalmen- cial ou integral, de nossa vida transcorrida. É um. quadro
--_._~
te em nosso caminho as principais dessas categorias. Elas ~ºstrato e impessoal que envolve não aRenas"1l~is-
nasceram na religião e da religião, são um produto do tencia indiviOüãI, ~ a da humanidade. É corno um pai-
pensamento religioso. É uma constatação que haveremos hei ilimitadã, em que toda a duração se mostra sob o olhar
de fazer várias vezes 'ao longo desta obra. do espírito e em que todos os acontecimentos possíveis
Essa observação possui já um interesse por si pró- podem ser situados em relação a pontos de referência fi-
pria; mas eis o que lhe confere seu verdadeiro alcanc . xos e determinados. Não é o meu tempo que está assim
t""
A conclusão geral do livro ue se . " li- ( \ organizado; é o tempo tal como é objetivamente pensado
gião é uma cOisa eminentemente social. As representaçõ.es \ror todos os homens de uma mesma civilização. Apenas

>
Jtt\I(E:1 religiosas são representações. c,?letivas Que exprimem rea- ISSOjá é suficiente para fazer entrever que uma tal ))fgani-
lidades côlêtivasj os ritos são maneiras d~g!.u;IJle só sur- zação deve ser çQletiv3fE, de fato, ~ observação estàb~-
gem no interior de grupos coordenados e se destinam a ~ S:,.e~le esses pontos de referênciaJndJ_s~sáv~, em rela-
i!scitar. manter ou refazer alguns eÚâdQs ;;;;;;:n:taiS2êsses 'Í ~~~ ção aos quals .t'º-,-Ias. as Ç,qJs~,s
\se la~s~f,i~emBoralmer.t
{
gOmos. Ma§, entãQ, se as categ~rjas são d~o...tig~m r~ligio- Y ,/ r te,-mro-tomados da vJela social. :Asdivisões em dias, sema-
a, elas devem articipar da natureza comum a todo os' ~as, meses, anos, ctc., eorrespondem à periodicidade dos
fatos rel.i~ tam em e as devem ser coisas sociais, ritos, das festas, das cerimônias póblícas>. Um calendário
p.r.odutos do pensamento cole.tiyo. Como, "no estado atual
de nossos conhecimentos desses assuntos, devemos evitar
)~r\ exprime o ritmo da: atividade coletiv;a, a.? mesmstep2.Q
que tem por função assegurar sua regularidade6J
todã tese radical e exclusiva, pelo menos é legítimo supor I O mesmo acontece-com o ~ço. Como demonstrou
que sejam ricas em elementos sociais .. Hamelin", o espaço não é esse meio vago e indetermina-
Aliás, é o que se pode, desde já, entrever para algu- do que Kant havia imaginado: puramente e absolutamen-
mas delas. Que se tente, por exemplo, imaginar o que se- t te homogêneo, ele não serviria para nada e sequer daria
ria a noção de tempo, se puséssemos de lado os procedi- nsejo ao pensamento. A representação espacial consiste
mentos 'pelos quais o dividimos, o medimos, o exprimi- ssencíalmente nurna primeira coordenação introduzida
XVIII AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA XIX

entre os dados da experiência sensível. Mas essa coorde- te quarteirões do mundo está em íntima relação com Um
nação seria impossível se as partes do espaço se equiva- quarteirão do pueblo, isto ( com 'um grupo de clãstv. "As-
lessem qualitativamente, se fossem .realmente intercam1::5iá- sim; diz Cushing, uma divisão deve estar em relação com
. weís umas pelas outras. Para poder dispor espacialmente o norte; uma outra representa o oeste, uma terceira o
as coisas, é preciso poder situá-Ias diferentemente: colo- sulll, etc." Cada quarteirão do puebio tem sua cor caracte-
( car umas à direita, outras à esquerda, estas em' cima, rística que o simboliza; cada região do espaço tem a sua,
aquelas embaixo, ao norte ou ao sul, a leste ou a oeste, que é exatamente a do quarteirão correspondente. Ao lon-
etc., do mesmo modo que, para dispor temporalmente os o da história, o número de clãs fundamentais variou; o
estados da consciência, cumpre poder localizá-los em da- número de regiões variou da mesma maneira. Assim, a or-
tas determinadas. Vale dizer que o espaço não poderia ser ganização social foi o modelo da organização espacial,
ele próprio se, assim como o tem o não fosse dividido e que é uma espécie de decalque da primeira. Até mesmo a
çiífurenciado. as essas diviÇ ue lhe sã essencials distinção de direita e esquerda, longe de estar implicada
de õna rovê? Para o espaço mesmo, não há direita na natureza do homem em geral; é muito provavelmente o
nem esquerda, nem alto nem baixo, nem norte nem sul. produto de representações religiosas, portanto coletivasv.
Todas essas distinções rovêm, evidentemente, de terem Mais adiante serão encontradas provas análogas rela-
sido atribuídos valores a etivos i erentes às re _iões. E, tivas .ãs noções de gênero, de força, de personalidade, de
como to os os omens de uma mesma civilização repre- eficácia. Pode-se mesmo perguntar se a noção de contra-
sentam-se o espaço da mesma maneira, é preciso, eviden- dição não depende, também ela, de condições sociais. O
temente, que esses valores afetivos e as distinções que que leva a pensar assim é que a influência que ela exer-
deles dependem lhes sejam igualmente comuns; o que ce~U.9ºre5U2e!J...§.alJlentº~ariQu .s~glJnslQ aJ?éRocas e as
implic~quase necessariamente quertais val'õí"és-e·di~t1l'trbe'S' sociedades. O princípio de identidade domina hoje o
lSãOd~Orige~ ~ pensamento científico; mas há vastos sistemas de repre-
Por sinaC á casos em que esse .carâter social tornou- sentações que desempenharam na história das idéias um
se manifesto. Existem sociedades na Austrália ou na Amé- papel considerável e nos quais ele é freqüentemente igno-
rica do Norte em que o espaço é concebido sob a forma l\i~'~.~J rado: são as mitologias, desde as mais grosseiras até as
de um círculo imenso, porque o próprio acampamento W ur mais elaboradas». Elas tratam sem parar de seres que têm
o
tem uma forma circulara, e círculo espacial é exatamen- ~rJD \~ simultaneamente os atributos mais contraditórios, que sào
te dividido como o círculo tribal e à imagem deste último. O ao mesmo tempo unos e múltiplos, materiais e espirituais,
Distinguem-se tantas regiões quantos são os clãs da tribo, cr.f'J\ \ \~\j\ que podem subdividir-se indefinidamente sem nada per-
e é o lugar ocupado pelos clãs no interior do acampa-
~,~' der daquilo que os constitui; e,m.JJ),JtoJQgia,~é...lJm..axioma
mento que determina a orientaçào das regiões. Cada re- rXl~O'\~ .LRarte eglJiv~o. Essas variações a que se sub-
gião define-se pelo totem do clã ao qual ela é destinada. meteu na história a regra que parece governar nossa lógi-
Entre os zuni, por exemplo, o pueblo compreende sete .,;\\~ot\" ca atual provam que, longe de estar inscrita desde toda a
quarteirões; cada um deles' é um grupo de.cl,ãs que teve eternidade na constituição mental do homem, essa regra
sua unidade: com toda a certeza, havia primitivamente depende, pelo menos em parte, de fatores históricos, e
um único clã que depois ?e subdividiu. Ora, o espaço portanto sociais. Não sabemos exatamente que fatores
compreende igualmente sete regiões e 'cada um desses se-' '" • são esses, mas podemos presumir que existern-+,
"
xx AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA XXI

Uma vez admitida essa hipótese, o problema do co- diferente do que são, de representá-Ias como se transcor-
nhecimento coloca-se em novos termos. ressem numa ordem distinta daquela na qual se produzi-
I ~ai) Até o presente, quas doutrinas apenas haviam se de- ram. Diante delas, nada nos prende, enquanto considera-
I ~\J, !ro~o. Para uns, ~s categorias nã<2.]!.odemser derivadas ções de um outro gênero não intervierem. Eis,~p'ortantõ-L)
GoA~ . tyJ- sIa experiência: s,ãcLlQgicamente anteriores a ela e a eoU::... 1-J
r ,écionam.:j São representadas como dados simples, irredl.J-
t:
dois tipos de conhecimentos que se encontram como que
nOsdois ôlos contrãrIOsããlmeTígência. Nessas condíções.,
(f. tíveis, ima~elLª,º-e~I.2TritQ.Jllimàno em virtude de sua r~ meter a razão a experiência é azê-la desaparecer, pois
constituição natural. Por isso se diz dessãScãtegQrl.a.SJ1ue. jQr ~-"
:) ,,/(l a~ . é reduzir a universalidade e a necessidade que a caracteri-
§as são ª-12rio1;i. para outros, ao contrário, elas seriam '/. ".~ zam a serem apenas~as apar~~ ilusões que, na Pli- .
construídas, feitas de peças e pedaços, e o indivíduo '
que seria o operário dessa construção».
PC) rt or«<0fJ tica, podem ser cõmo as, mas que a naaa correspondem \
..
'\
} r JU ,Üfo~as coisas;)conseqüentemente,\é recusar toda realidade'
Mas ambas as soluções levantam graves dificuldades. ,o' 61íl~ pbjetiva ~ida lógica ue as categoriãsfêm por função re- }
Adotaremos a tese empirista? Então, cumpre retirar
'~.
'1
1 .;:0 / v \ .gu..ler e=0rg9Jllzar. 9 empirism c aSS1 onduz ao irracio-
das categorias todas as suas propriedades características. (,./V t'íalismo; talvez até seja por esse último nome que conve-
Com efeito, elas se distinguem de todos os outros conhe- J \ nha designá-lo.
cimentos por sua universalidade e sua necessidade. Elas Os aprioristas, apesar do sentido ordinariamente as-
são os conceitos mais gerais que existem, já que se apli- sociado às denominações, são mais respeitosos com os fa-
cam a todo o real e, mesmo não estando ligadas a algum tos. Já que não admitem como verdade evidente que as
objeto particular, são independentes de todo sujeito indi- categorias são feitas dos mesmos elementos que nossas
vidual: são o lugar-comum em que se encontram todos os representações sensíveis, eles não são obrigados a empo-
eSI?íritos. !'1ais: est~s ~e encont~am ne~essaria~ente aí~ 'li:. brecê-Ias sistematicamente, a esvaziá-Ias de todo conteú-
pOIS a razao, que nao e outra coisa senao o conjunto das '<.: ,") do real, a reduzi-Ias a ser apenas artifícios verbais. Ao
categorias fundamentais, é investida de uma autoridade ã .~ contrário, conservam todas as características específicas
qual não podemos nos furtar à vontade. Quando tenta- I delas. Os aprions as sao raClOna 1Sas; rêem ue o mun-
mos insurgir-nos contra ela, libertar-nos de algumas des- I do tem.J!D1~pecto lógLcn....quea razao expnme eminente-
sas noções essenciais, deparamo-nos com fortes resistên- , mente. Mas, para isso, p~sam atribuir ao espírito um
I:, \cias. Portanto, elas não apenas não dependem de nós, co-\
\mo t~~bém se 1IDpõém a-riQi ofã;' os dados empíriCõs
, certo poder de ultrapassar a experiência).. de acrescentar
~ gue lhe é2mediatamente dado; ora, desse poder
apresentam características diametralmente opostas. Uma singular, eles não dão explicação nem justificação. Pois
sensação, uma imagem se relacionam sempre a um objeto não é explicar dizer apenas que esse poder é inerente à
determinado ou a uma coleção de objetos desse gênero e natureza da inteligência humana. Seria preciso fazer en-
exprimem o estado momentâneo de uma consciência par- tender de onde tiramos essa surpreendente prerrogativa e
ticular: elas são essencialmente individuais e subjetivas. de que maneira podemos ver, nas coisas, relações que o
Assim, podemos dispor, com relativa liberdade, das repre- espetáculo das coisas não poderia nos revelar. Dizer que
sentações que têm essa origem. É claro que, quando nos- a própria experiência só é possível com essa condição, é
sas sensações são atuais, elas se impõem a nós Vie fato. talvez deslocar o problema, não é resolvê-lo. Pois se trata
Mas, de direito, temos o poder de concebê-Ias de maneira precisamente de saber por que a experiência não se bas-
XXII AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA REllGIOSA OBJETO DA PESQUISA

ta, mas supõe condições que lhe são exteriores e anteriO-) ,,)c ~
res, e de que maneira essas condições são realizadas 'fl')'
quando e como convém. ~ responder a essas guestõ~ ~,;P
~ginou-se às vezes, por~_das ~es i!:ldivi9uais,,,,.~1
uma razão superior e perfeita da qual as primeiras emana,~ ~ )
riam e na qual conservariam, por uma espécie de partici- \ CJ!~ ,1'<1_
pação mística, sua maravilhosãfãCuICIãae:ê a razaoãlvi- . Vv
na. Mas essa hipótese tem, no mínímo, (} gwe inconve- ~
ruente de subtrair-se a todo controle experimental; não \\;'1\
satisfaz portanto às condições requeridas de uma hipótese '\
científica. Além disso, as categorias do pensamento huma-,
no jamais são fixadas de uma forma definida; elas se fa-·
zem, se desfazem, se refazem permanentemente; mudam-l(
conforme os lu ares e as éPocas~zào ~vina, ao con- I
trário é imutável. De que modo Ssalmutâ lhdade oade::
~plicar essa íncessante variabilidade?
Tais são as duas concepções que há séculos se cho-
cam uma contra a outra; e, se o debate se eterniza, é que
na verdade os argumentos trocados se equivalem sensi-
velmente. Se a razão é apenas uma forma da experiência
individual, não existe mais razão. Por outro lado, se reco-
nhecemos os poderes que ela se atribui, mas sem justifi-
cá-Ias, parece que a colocamos fora da natureza e da ciên-
cia. Em presença dessas objeções opostas, o espírito per)
;manece incerto. Mas, se admitirmos a origem social das
categorias, uma nova atitude torna-se possível, atitude

'l
,(que perm!t~ria, acreditamos nós, escapar a essas dificulda-
des contranas.
Ayr.opo~São fY.n9~mental ~~~o é ue o co
Á.

I· blo
. ~J\f'J\
nhecímento é formado d~_d~pécies d~~lementos i~~ \~
redutíveis um ao ou!r~ e.-S0mo g~ d~ duas camadas diS-~ ~ ,
e_suy <:::postas 1,6. Nossa hipótese rr:antér:: ~W~ 1 ~,
tintas __
~nte esse princípio. De fato, os conhecimentos que dia- \\\ ~
ma mos empíricoS;õs únicos que os teóricos do empiris- \
mo utilizaram para construir a razão, são aqueles que a
ação direta dos objetos suscita em nossos espíritos. São,
portanto, e~dós individuais, que se explicam inteiramen-
">

(1)
XXIV AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA 08JETO DA PESQUISA :xxv
da de de nossa natureza, tem por conseqüência, na ordem mesmo em nosso foro interior, libertar-nos dessas noções
, ~\I\ prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móbil utilitá- fundamentais, sentimos que não somos completamente li-
~~ rio, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da ra- vres, que algo resiste a nOs;âen:trOe fora de-nós. Fora de
oJv \\~ zão à eXperiênci.a...in~iv.idual.:J:ivneºiºa ~que particiP3.. "nQs, há a opinião que nos j~; mas, além disso, ~
\1\' <;tasocle~~e,,_Q..llljlytcl!dO n~tllJ:à,!1nente ultrapassa a st.... SO:a.e.dade é tam~J;tr~seºtada em nós, ela se opõe
meSlllQ.,.:se.)a.qu~))dopensa.jseja quando age._ ' 'desde dentro de nós a essas veleidades revolucionárias;
Esse mesmo caráter social permite compreender de t~mos a impressi'õ""de não· podermos nos entregar a -elas
onde vem a necessidade das categorias. Diz-se de uma sem que -nosso pensamento deixe de ser um pensamento
idéia que ela é necessária quando, por uma espécie de v~rdadeiramente humano. Tal parece ser a origem- ciããu-
virtude interna, impõe-se ao espírito sem ser acompanha- toridade muito especial inerente à razão e que nos faz
da de nenhuma prova. Há, portanto, nela, algo que obri- aceitar com confiança suas sugestões. É a autoridade da
ga a inteligência, que conquista a adesão, sem exame pré- sociedade mesmaiv, comunicando-se a certas maneiras de
vio. Essa eficácia singular, o apriorismo a postula, mas pensar que são como as condições indispensáveis de toda
sem se dar conta díssô.rpoís dizer que as categorias são ação comum. A necessidade cOJOque as categorias ~
necessárias por serem indispensáveis aÕ1'üi1cíõnaIí1eíí:tõ ~. nQs não é, Qortanto, o, efeito de simples hábitos
ao pensamento, é simplesmente repetir que são necessá- de cujo domínio poderíamos nos desvencilhan com um.
rias. Mas se elas têm a origem que lhes atribuímos, não há pouco de esforço;' não -é tambêm -uma necessidade física
nada mais que surpreenda em sua autoridade. Com efei- ~u metafísica, já que aS'·c.a-t@.gQfias
~,€l.atn-GG1:J,kH:'ffie:.!
to, elas exprimem as rela~es mais g~~Ql!..e e~ tagaF€S-<Las-épocas: é ~spéC1e particular de ne~
ire as coisas; ultrapassan o em extensão todas as nossas jacte moral que está para a víéIãin{e-lecfuãl assim como a_
õUtrãs nõções, dominam todo detalhe de nossa vida inte- obrigação moral está para a vontade-v.
lectual. Se, portanto, a cada momento do tempo, os ho-
mens não se entendessem acerca dessas idéias essenciais, ,{) { Mas, se as categorias não traduzem originalmente se-
se não tivessem uma concepção homogênea do tempo, \, NV <"não estados sociais, não se segue daí que elas só podem'
do espaço, da causa, do número, etc., toda concordância .\W ~ aplicar-se ao resto da natureza a título de metáforas? Se
se - --
~~tornaria impossível entre as inteligências e, por conse-
guinte, toda vida em comum. Assim, UQfiedade não po:
- ~I ~ l' elas são feitas unicamente para exprimir coisas sociais,
~(~ '(1'C· parece que não poderiam ser estendidas aos outros reinos
de abandonar as ca~ao livre arbítrio dos particula- 01 ,,r.:I \ a não ser por convenção. Assim, na medida em que nos
'feSSeiTISêa5ãOdOnar ela p~ra poder viv~ ela O~I ~ servem para pensar o mundo físico ou biológico, só po-
não necessita apenas de um suficiente conformismo mo- ti ~ deriam ter o valor de símbolos artificiais, talvez úteis na
ral: há um mínimo de conformismo lógico sem o qual ela O\~ç /prática, mas sem relação com a realidade. Portanto re,tor-
também não pode passar. Por essa razão, ela pesa com 1,#1\ naríamos,por outra via, ao nominalismo e ao empirismo. !

toda a sua autoridade sobre seus membros a fim de pre- Mas interpretar dessa maneira uma teoria sociológica'
venir as dissidências. Se um espírito infringe ostensiva- f do conhecimento é esquecer que, se a'5ociedadg é uma
mente essas normas do pensamento, ela não o corisidera I realidade específica, eJa~orém, ~mpério dentro
mais um espírito humano no sentido pleno da palavra, e ôe um impêriQ: <ia faz'Qarte _. natureza, ésua 11laniLeslª-=.
trata-o em conformidade. Por isso, quando tentamos, cão mais elevada. D reino SQcttl é um reino natural que
-o
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~ ()
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~O cc-
I': ,Iv
;/,1\ ,'j 'A'Ó G'I' 1,-;",,;' ,,"-- v"AJ"
'7 f\/"?J>()Yl f I ·vY.tf
XXVI AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OBJETO DA PESQUISA XXVII

nãQ.9ifere dos~~, ~!lão ser por sua maior complexi- empirismo não poderiam vencer. Pois elas aparecem, en-
dade, Ora, é impossível que a natureza, no que tem de tão, não mais como noções muito simples que qualquer
mais essencial, seja radicalmente diferente de si mesma um é capaz de extrair de suas observações pessoais e que
aqui e ali, A§...Lclaçº-.esÜmdamentais que existem entre as a-imaginação popular desastradamente teria complicado,
.c.f?:is.<iS.
- justatnente aquelas que as categorias tem por. mas, ao contrário, como hábeis instrumentos de pensa-
função exprimir - nã9p0deriam;-I20rtanto,_ s%..,es?,enci'!:.L mento, que os grupos humanos laboriosamente forjaram
me~~&~m lhantes c;;&,r offein()s~ Se, por razões ao longo dos séculos e ,nos quais acumularam o melhor
que teremos e investiga 2 , elas sobressaem de forma de seu capital intelectua'!:9L0da uma part~da história da
mais evidente- , "mundo social, é impossível que não se, humanidaQ.~nelas 1ie__en.cQntra SQmo q~esumfda,-Vflle -
encontrem alh res, ainda que sob formas mais encober- dizer que, para chegar a compreendê-Ias e julgá-Ias, cum-
tas, A soci'edade as torna mais manifestas, mas ela não pre recorrer a outros procedimentos que não aqueles uti-
tem esse privilégio. Eis aí como noções que foram elabo- lizados até o presente. P~~aber-de...que-são_feitas essas
radas com base no modelo das coisas sociais podem aju- conce12.ções gue não foram criadas por nós mesmos, não
dar-nos a pensar coisas de outra natureza, se essas noções, poderia ser suficiente interrogar 'nossa consciência: é para
quando assim desviadas de sua significação primeira, de- fora de nós que devemos olhar, é a história que devemos
sempenham num certo sentido o papel de símbolos, são observar, é toda uma ciência que é preciso instituir, ciên-
Símbolos bem-fundados, Se, pelo simples fato de serem cia complexa, que só pode avançar lentamente, por um
conceitos construídos, há aí um artifício, ~ um.artifício trabalho coletivo,' e para a qual a presente obra traz, a tí-
que segue de perto a natu~a~ gM~SJ9J:lip~r apro- tulo de ensaio, algumas contribuições fragmentárias, Sem
\ximar-se dela cada vez ma~ortanto, CioI>'tãt~ as idéigs fazer dessas questões o objeto direto de nosso estudo,
aproveitaremos toda ocasião que se oferecer para captar
de tempo, de espaço, <!e gênero, de causa, 1e per~o.n~li-
da de serem construí das 20m eIeme'iitOssõciais, não se de- em seu nascimento pelo menos algumas dessas noções, I
1
~ncluir 9lfe sejam desprovidas de todo valor objetiv~, as quais, embora religiosas por suas origens, haveriam de
Pelá contrário, ~Qtig~social faz ant su or ue te: permanecer na base da mentalidade humana,
",,\1\ npam fundamento na natureza das coisas 3 ~ ~i'N~ W\r'
~It' Assim renovaâa, a teoria do conhecimento parece
I ~rt",\ ~'destinada a reunir as vantagens contrárias das duas teorias
G~ rivais, sem seus inconvenientes, Ela conserva todos os
\Iil~\~ princípios essenciais do apriorismo; mas, ao mesmo tem-
'~'\ ~ po, inspira-se nesse espírito de positividade que o empi-
rismo procurava satisfazer. Conserva o poder específico
da razão, mas justifica-o, e sem sair do mundo observável.
Afirma como real a dualidade de nossa vida intelectual,
mas explica-a, e mediante causas naturais. As categorias
dciXãm çie ser COOsrderadas fatos primeiros' e não analisá-
veis, no entanto, permanecem de uma' complexidade que
análises simplístas como aquelas com que se contentava o
(:/\ P1TULO I .
DEFINIÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO
r'; DA RELIGIÃO!

Para saber qual a religião mais primitiva e mais sim-


ples que a observação nos permite conhecer, é preciso
primeiro definir o que convém entender por religião, caso
contrário correríamos o risco de chamar de religião um
sistema de idéias e de práticas que nada teria de religioso,
)ll de deixar de lado fatos religiosos sem perceber sua
verdadeira natureza. O que mostra bem que o perigo na-
Ia tem de imaginário e que de modo nenhum se trata de
li m vão forrnalísmo metodológico é que, por não haver
tornado essa precaução, um estudioso, a quem não obs- 1<"":"
tn nte a ciência comparada das religiões deve muito, o sr. ,(N)Y-"~fJ'
l'razer, não soube&econhecer o caráter profundament<; jtl(lrl
religioso das crenças e dQs....ri.to ue serão estudados mais
tldlanteê que, para nós, constituem o _erme inicial da vi
Ia religiosa da huma 'dad . Há aí, ortanto, uma questão
que P~<:.~~ ..-º-J1!!gª-mento_e q~e deve ser tratada antes de)
llJal~utra! Não que possamos pensar em atingir des-
I<.; já as características profundas e verdadeiramente expli-
çnl ivas da religião: elas só podem ser determinadas ao tér-
mlno da pesquisa. Mas o que é necessário e possível é in-
,11(";1 r um certo número de sinais exteriores, facilmente
4 AS FORMAS ELEMENTARES DA WDA REliGIOSA )UESTÕES PRELIMINARES
5

perceptíveis, que permitem reconhecer os fenômenos re- falta para que a melhor forma de estudar a religião seja
ligiosos onde quer que se encontrem, e que impedem nsiderá-la de preferência sob a forma que apresenta
que os confundamos com outros. É a essa operação preli- nos povos mais civilizadosa,
minar que iremos proceder. Mas, para ajudar o espírito a libertar-se dessas con-
Mas para que ela dê os resultados esperados, deve- 'cpções usuais que, por seu prestígio, podem impedi-Io
mos começar por libertar nosso espírito de toda idéia pre- le ver as coisas tais como são, convém, antes de abordar
concebida. Os homens foram obrigados a criar para si I questão por nossa conta, examinar algumas das defini-
uma noção do que é a religião, bem antes que a ciência s mais correntes nas quais esses preconceitos vieram
das religiões pudesse instituir suas comparações metódi- xprimir.
cas. As necessidades da existência nos obrigam a todos,
crentes e incrédulos, a representar de alguma maneira as
coisas no meio das quais vivemos, sobre as quais a todo
momento emitimos juízos e que precisamos levar em con-
ta em nossa conduta: Mas como essas pré-noções se for- Uma noção tida geral~nt. orno característica de
maram sem método, segundo os acasos e as circunstâncias tudo o que é religioso é a de-.SDb..rgrultura.Entende-se por
da vida, elas não têm direito a crédito e devem ser manti- sso toda ordem de coisas que ultrapassa o alcance de
das rigorosamente à distância do exame que iremos' em- nosso entendimento; o sobrenatural é o mundo do místé-
preender. Não é a nossos preconceitos, a nossas paixões, rio, do incognoscível, dO-iricompreen~ívei. A religião se-
a nossos hábitos que devem ser solicitados os elementos rln, portanto, uma esp&ie de especulação sobre tudo o
da definição que necessitamos; é a realidade mesma que rue escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensa-
se trata de definir. mento claro. "As religiões, dizILSQencei) diametralmente
~~mo-nos, pois7-diª-nte=dessa~alidade. Dei- tas por seus dogmas, concordam em reconhecer taci-
xando de ladoioda concepção da religião em geral, con- tnmente que o mundo, com tudo que contém e tudo que
siderernos as re'y'giões em sua r~alidade concreta e procu- () ccrca,~-dPistério qye pede uma explicação"; portan-
remos destaca~ue elas poaem ~r _em c.9murril pois a 10, ele as faz conSIStir essencialmente na "crença na oni-
religião só pode ser definida em função das características pl·csen~d~.Eguma coiSa que vai além da inteligência"3.
que se encontram por toda parte onde houver religião. I)C:) mesmo modõ:-Max Müller ~ toda religião "um
Introduziremos portanto nessa comparação todes os siste- •.sforço para conceber o inconcebível, para exprimir o
mas religiosos que podemos conhecer, os do presente e ücxprimível, uma aspiração ao infíníto'<,
os do passado, os mais simples e primitivos assim como É certo que o sentimento do mistério não deixou de
os mais recentes e refinados, pois não temos nenhum di- Ilu/lcmpenhar um papel importante em certas religiões,
reito e nenhum meio lógico de excluir uns para só reter pccialmente no cristianismo. Mas é preciso acrescentar
os outros. Para aquele que vê na religião uma manifesta- 11I<.! a importância desse papel variou singularmente nos
ção natural da atividade humana, todas as religiões são dll'erentes momentos da história cristã. Há períodos em
instrutivas, sem exceção, pois todas exprimem o homem fllI\.! essa noção passa ao segundo plano e se apaga. Para
à sua maneira e podem assim ajudar a compreender me- I).~ homens do século XVII, por exemplo, o dogma nada
lhor esse aspecto de nossa natureza. Aliás, vimos o quan- 111111:1 de perturbador para a razão; a fé conciliava-se sem
AS FORMAS ELEMENTARES DA VTDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 7

Hflculdade com a ciência e a filosofia, e pensadores co- Ios mesmos procedimentos; mas, para aquele que crê ne-
1110 Pascal, que sentiam com intensidade o que há de pro- las, não são mais ininteligíveis do que o são a gravidade
fundamente obscuro nas coisas, estavam em tão pouca u a eletricidade para o físico de hoje. Veremos aliás, ao
harmonia com sua época que permaneceram incompreen- longo <!ç:.sKl-Qhl:a,_q~ª-o de forç-ª5~nat1J.fais...derivou
dídos por seus contemporâneos>. Portanto, poderia ser uito provavel~nte da..noçãc.de-forças •.religiosas.zassím,
precipitado fazer, de uma idéia sujeita a tais eclipses, o não poderia haver entre estas e aquelas o abismo que se-
lemento essencial ainda que apenas da religião cristã. para o racional do irracional. Mesmo o fato de as forças
Em todo caso, o que é certo é que essa noção só religiosas serem geralmente pensadas sob a forma de en-
aparece muito tarde na história das religiões; ela é total- tidades espirituais, de vontades conscientes, de maneira
mente estranha não somente aos povos chamados primiti- nenhuma é uma prova de sua irracionalidade. À razão
vos, mas também a todos os que não atingiram um certo não repugna a priori admitir que os corpos ditos inanima-
grau de cultura intelectual. É verdade que, quando os ve- dos sejam, como os corpos humanos, movidos por inteli-
mos atribuir a objetos-insigmficantes .virtu?es extraordi.ná- gências, ainda que a ciência contemporânea dificilmente
rias, povoar o universo com pnncipros singulares, feitos se acomode a essa hipótese. Quando Leibniz propôs con-
dos elementos mais díspares, reconhecemos de bom gra- ceber o mundo exterior como uma imensa sociedade de
do nessas concepções um ar de mistério. Acreditamo~ESiIC espíri~s entre os quais não havia e não podia haver se-
que os homens só puderam se resignar a idéias tão per- ' não relações espirituais, ele entendia agir como racionalis-
turbadoras para nossa razão moderna por incapacidade ta e não via nesse animismo universal nada capaz de
te encontrar outras que fossem mais racionais. Em reali ofender o entendiment _.~_- _
dade, porém, essas explicações que nos surpreendem afi- Aliás, a idéia de sobrenaturaDtal como a entende-
uram-se ao primitivo as mais simples do mundo. Ele não mos, data de OnteTIl:~sue2.e, com efeito, a idéia contrá- ~c.-i()l\lP\\" _
vê nelas uma espécie de ultima ratio a que a ínteíígêncía ria, da qual é a negaçao e gue nada tem de primitiva,! Para ""I" cP·{f~ ,I
s6 se resigna em desespero de causa, mas sim a maneira que s~.pud~Qize'i=Cie cer'tãSfatoL,que J,ão sobreiíãtll- 1>1-~\::~Óqil
mais imediata de representar e compreender o que obser- rais, era precisof~ ~r Q sentimento de 9~e .~xiste_1!!D.fl or- SOOIl
va a seu redor. Para ele, não há nada de estranho em po- dem natural das coisas, ou .s~ja, gue os fenômen
ler-se, com a voz. ou o gesto, comandar os elementos, ~o estã~ ITgãdos 'entre si,seg!!.!l<:Erelações ne~s~-
deter ou precipitar o curso dos astros, provocar a chuva !~l1ai'i'iãctas leis U& v:eudguirido esse p!incíp!o,Jp.-
li pará-Ia, etc. Os ritos que emprega para assegurar a fer- fÕÕCiüêTri~essas leis devia necessariarneflte apare-
tJlldade do solo ou a fecundidade das espécies animais de cer como extenor a natureza e, por consegüência, à ra7
ue se alimenta não são, a seus olhos, mais irracionais do iãà: pois 2,.9ue é ,?atural ness~_s_elltLd.Q:iDa~
são, aos nossos, os procedimentos técnicos que os llíf ta.i.§relações necessi!rias não fazendQ..S..eFlãe-€.x'j!)J.im.1r.
a~l'é'l)omOS utilizam para' a mesma finalidade. As potências a mane.ira J;l.f1L qual as coisas se encadeiam IQgicamen~.
I~I(,)ele põe em jogo por esses diversos meios nada lhe Mas essa noção ao aeterminismo universal é de origem
1)[\ rocem ter de especialmente misterioso. São forças que recente; mesmo os maiores pensadores da Antiguidade
IIFcl'I..!lIl,
certamente, daquelas que o conhecedor moder- clássica não chegaram a tomar plenamente consciência
110 ('OI1C'(.'bee cujo uso nos ensina; elas têm uma outra dela. É uma conquista das ciências positivas; é o postula-
de comportar-se e não se deixam disciplinar pe-
11lll'IWll':l do sobre o qual repousam e que elas demonstraram por
AS FORMAS ELEMENTARES DA VTDA RELIGIOSA )IJIJ~S'7'é)ESPRELIMINARES 9
8

seus progressos. Ora, enquanto ele inexistia ou ainda não -em a coisa mais clara do mundo; é que não percebem
se estabelecera solidamente, os acontecimentos mais mara- lia obscuridade real; é que. não reconheceram ainda a
vilhosos nada possuíam que não parecesse perfeitamente nccessídade de recorrer aos procedimentos laboriosos das
concebível. Enquanto não se sabia o que a ordem das coi- :lGncias naturais para dissipar progressivamente essas tre-
sas tem de imutável e de inflexível, enquanto nela vas, O mesmo estado de espírito encontra-se na raiz de
, ~ se via a- muitas êrenças religiosas que nos surpreendem por seu
obra de vontades contin _entes, devia-se achar natural que
essas vonta es ou outras udessem modificá-Ia arbitraria- strnplísmo. Foi a ciência, e não a religião, qge ensinou
~te. É.s por ..9.ueas intervenções rníracu osas que os an- nos homens que as coisas são complexas_e_difí.ceis_Qê-
tigos atribUlam a seUsãeuses não efã~seu entender, mpreenaw '
~dêffiãC1a palavra. Para eles, eram Mas, responde jevonss, o espírito humano não tem
~Jlos belo;: saro~r~eis,!35jerc5s de surprêsãe necessidade de uma cultura propriamente científica para
de maravilhamento/(8aú/+a'ta, mirabilia, miracula); mas notar que existem entre os fatos seqüências determinadas,
~m nisso u~~cie dêã~o aurn una ordem constante de sucessão, e para observar, por
mundo misterioso gue a razão não pode penetrar. I . utro lado, que essa ordem é freqüentemente perturbada,
Odemos c~preender tamo meIfior essa mentalida- Acontece que o sol se eclipse bruscamente, que a chuva
de na medida em que ela não desapareceu completamen- falte na época em que é esperada, que a lua demore a res-
te do meio de nós. Se o princípio do determinismo está surgir após seu desaparecimento periódico, etc.Como es-
hoje solidamente estabelecido nas ciências físicas e natu- tão fora do curso ordinário das coisas, esses acontecimen-
rais, faz somente um século que ele começou a introdu- tos são atribuídos a causas extraordinárias, excepcionais,
zir-se nas ciências sociais, e sua autoridade é ainda con- ou seja, em suma, extrariaturais. É sob essa forma que a
testada. Apenas um pequeno número de espíritos está idéia de sobrenatural teria nascido desde o início da histó-
convencido da idéia de que as sociedades estão submeti- ria, e foi assim que, a partir desse momento, o pensamen-
das a leis necessárias e constituem um reino natural. Daí a to religioso se viu munido de seu objeto próprio.
crença de que nelas sejam possíveis verdadeiros .mílagres. Mas, em primeiro lugar, o sobrenatural não se reduz
Admite-se, por exemplo, 'que o legislador pode criar uma de modo algum ao imprevistQ.. O novõfu,? parte ~
instituição do nada por uma simples injunção de sua von- Te~a.,~~m_comG-setl-Gontrágg; Se constatamos que, em
tade, transformar um sistema social em outro, assim como geral, os fenômenos se sucedem numa ordem determina-
l os crentes de tantas religiões admitem que a vontade divi- da, observamos igualmente que essa ordem é sempre
na criou o mundo do nada ou pode arbitrariamente trans- aproximada, que não é idêntica duas vezes seguidas, que
mutar os seres uns nos outros, No que concerne aos fatos comporta todo tipo de exceções, Por menor que seja nos-
\1 sa experiência, estamos habituados à frustração freqüente
I sociais, temos ainda uma mentalidade de primitivos, No
entanto, se, em matéria de sociologia, tantos contemporâ- de nossas expectativas e essas decepções retomam muito
neos apegam-se ainda a essa concepção antiquada, não é seguidamente para que as vejamos como extraordinárias,
que a vida das sociedades lhes pareça obscura e misterio- Uma certa contingência é um dado da experiência, assim
sa; pelo contrário, se se contentam tão facilmente com tais como uma certa uniformidade; portanto, não há razão pa-
explicações, se se obstinam nessas ilusões que a experiên- ra relacionar uma a causas e forças inteiramente diferen-
cia desmente sem cessar, é que os fatos sociais lhes pare- tes daquelas de que depende a outra, Assim, para que te-
10 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA REliGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 11

.nhamos a idéia do sobrenatural, não é suficiente que seja- idéia contrária. Por isso, ela só ocorre num pequeno nú-
, v mos testemunhas de acontecimentos inesperados; é preci- mero de religiões avançadas. Não se pode, portanto, fazer
fi
\'; (}so, além disso, que estes sejam concebidos como impossí- dela a característica dos fenômenos religiosos sem excluir
II 1\ veis, isto é, como inconciliáveis com uma ordem que, cer- da definição a maioria dos fatos a definir.
ta ou errada, nos parece necessariamente implicada na,
.' natureza das coisas. Ora, essa noção de uma ordem ne-
0 V;'fi' cessária, foram as ciências positivas ~pouco
c~uírãm,
aPOuco
portanto a noção contrária não poder~s
~\ Jadt II .

i ser anteaor,
r=------- Além disso, seja como for que os homens tenham se
, , ,j y1 Uma outra idéia pela qual se tentou com freqüência
definir a religião é a da divindade. "A reli~é-
representado as novidades e as contingências que a expe- vílle, é a_Qe.terminação da vida humana Re~Umento
\\ ()" riência revela, não há nada nessas representações que cl.e..umvínculÇl que une o espírito humanO ao ~sp1rito mis-
"Y;' I, possa servir para caracterizar a religião. Pois as concepções r§rioso no qual reconhece a dominação sobre o mundo e
_ .) .111 religiosas têm por objeto, acima de tudo, expnmir e expU- so~r~o, é ao qiíal êle quer sentir-se unido:"9 É
U'\ , (~r c1ff, não-o-que irá de excepcional e anoriiIãÍnas coisas, verdade que, se entendemos a palavra divindade num.
,i ( sentido preciso e estrito, a definição deixa de fora grande
rr' ;(
,n'Â{ mas, ao contrári~
,\A ~ monstruosidades,
que elas têm de constante e regular:
@ase semIlLe_,OLde.uses_ser-y_em menos para explicar
extravagâncias, anomalias, do que a I
In') quantidade de fatos manifestamente religiosos, As ~~
dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda ordem,
Qj\I'\ 1 marcha habitual do universo, do movimento dos astros, cÕllLqlle_a~~~eligio§a d_etantos povos diversos.
l f,}" A. do ritmo das estações, do crescimento anual da vegeta- povoou a natureza, são sempre objeto de ~, às vezes,
i (<J ção, da perpetuidade das espécies, ete. Por~to, a n<?Ç-ª-º. ruko
até de um regular; no entanto nao se trata de deuses
~(l do religioso está longe de coincidir com aão extraordinâ- no sentido próprio da palavra.' Mas, para que a definição
rio e do imprevisto. ]evons responde que essa concepção os compreenda, basta substituir a, palavra deus pela de ser
. das forças religiosas não é primitiva. No começo, estas te- espiritual, mais abrangente. Foi "0 que fez Tylor: "O pri-
riam sido imaginadas para justificar desordens 'e aciden- /(Jf meiro ponto essencial quando se trata de estuaar sistema-
tes, e só depois utilizadas para explicar as uniformidades II. -li ticamente as religiões das raças inferiores, é, ~e, ~
da natureza", Mas não se percebe o que teria levado os nir e precisar o que se entende por religião. Se se conti-
homens a atribuir sucessivamente a elas funções tão mani- -iruàrTazenao entenderess-a-pãlavra como a crença numa
festamente contrárias. Além disso, a hipótese segundo a divindade suprema ... um certo número de tribos estará
qual os seres sagrados teriam sido confinados de início excluído do mundo religioso. Mas essa definição demasia-
num papel negativo de perturbadores, é inteiramente arbi- do estreita temo defeito de identificar a religião com al-
trária. Veremos, com efeito, que; desde as religiões mais guns de seus desenvolvimentos particulares ... Parece p~e~
simples que conhecemos, eles tiveram por tarefa essencial ferível colocar simplesmente como definição mínima da
manter, de uma maneira positiva, o curso normal da vida", religião a crença em seres espirituais."1O Pos-seres ~~J2iri-
Assim, a idéia do mistério nada tem de original. Ela tuais, devemos entender sujeitos conscientes, dotadosdc;
não foi dada ao homem: foi o homem que a forjou com poderes superiores aos que possui o comum dos homens;
suas próprias mãos, ao mesmo tempo que concebia a essa qualificação convém, portanto, às almas dos mortos,
dI'
/11
\
12 AS FORMAS ELEMENTARES DA VlDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 13

aos gênios, aos demônio , tanta quanta às divindades pas pelas quais é precisa passar para chegar a essa su-
propriamente ditas. É im artante notar, de imediata, a pressão: a retidão, a meditação. e, enfim, a sabedoria, a
concepção particular da r ígião que está implicada nessa plena passe da doutrina. Atravessadas essas três etapas,
definição. O única comé cio. que podemos manter com chega-se ao. término. da caminha, à Iíbertação, à salvação.
seres dessa espécie se acha determinada pela natureza pela Nirvana.
que lhes é atribuída. São. seres conscientes, não. podemos, Ora, em nenhum desses princípios está envolvida a
portanto, agir sobre eles, senão. cama agimos sobre as divindade. O budista não. se preocupa em saber de ande
consciências em geral, isto. é, por procedimentos psicoló- vem esse mundo. da devir em que ele vive e sofre, torna-o
gicas, tratando. de convencê-los ou de comovê-Ios, seja cama um fator? e todo a seu esforço está em evadir-se
por meia de palavras (invocações, preces), seja par ofe- dele. Par outro lado, para essa abra de salvação, ele só
rendas e sacrifícios.cE já-Q1Lea ~igiãa!eria por ab~ pode cantar consigo mesma: "não. tem nenhum deus para
gulaLnassas_t:cla~ões com esses seres especiais, só pode- agradecer, assim cama, na combate, não. chama nenhum
.ria.lMtver religião. ;rurehá-pr~ces, sacrifícios, ritos p~ia- deus em seu auxília"ls. Em vez de rezar, na sentida usual
tórios, ete. Teríamos, assim, um critério muitõSTríiples que da palavra, em vez de voltar-se para um ser superior e im-
'permiTIRa distinguir a que é religioso da que não. é. É a plorar sua assistência, concentra-se em si mesma e medi-
esse critério. que se referem sistematicamente Prazer!' e, ta. Isso. não. significa "que negue frontalmente a existência
com ele, várias etnógrafosi-. de seres chamadas Indra, Agni, Varunaw, mas julga que
Contudo, par mais evidente que passa parecer essa não. lhes deve nada e que não. precisa deles", pais a po-
definição, em conseqüência de hábitos de espírita que der desses seres sópode estender-se sobre as bens deste
devemos à nossa educação. religiosa, há muitas fatos aos mundo, as quais, para a budista, são. sem valor. EQI.t<mta,...
q~J1àD_éJ-pMvel e g~,_lli2..entan~~i-· ~Ie e at"k0]na sentidOaeaesinteressar-seãa questão. de
to.ao damínin..dª,-r~!i_giã.a. - saber se existem ou não. deuses. Aliás, mesma se existis-
Em primeiro lugar, existem grandes religiões em que sem e estivessem investidos de algum poder, a santa, a li-
\ \'" a idéia de deuses e espíritas está ausente, nas quais, pela bertada, julga-se superior a eles; pais a que faz a dignida-
(J~
'I,j\ menos, el~ desempenha tão-só um papel secundária e de dos seres não. é a extensão. da ação. ~e..
'dI ~ apagado,..-E-G-Gas.Q.Q9budismo.. O budismo, diz Burnauf, -ªs,S9isa?, é exclusivamente a grau de seu avans;:a na ca-
\ \ "apresenta-se, em oposição ao. bramanismo, cama uma Tinh$ ..gvÚíh~iç;[~<y -- .
~~ moral sem deus e um ateísmo. sem Natureza'<s. "Ele não. E verdade que a Buda, pela menos em certas divisões
recanhece um deus da qual a hamem dependa, diz da Igreja budista, acabou par ser considerado uma espé-
Barth; sua doutrina é absolutamente atéia"14, e Oldenberg, cie de deus. Tem seus templos; tornou-se abjeta de um
por sua vez, chama-a "uma religião. sem deus">. De fato, culta que, par sinal, é muita simples, pais se reduz essen-
a essencial da budismo. cansis,te em quatro proposições cialmente à oferenda de algumas flores e à adoração de \
que as fiéis chamam as quatro nobres verdades-c. relíquias ou imagens consagradas. Não. é muita mais da
A primeira coloca a existência da dor cama ligada ao. que um culta da lembrança. Mas essa dívínízação da Bu-
perpétua fluxo. das coisas; a segunda mostra na deseja a da, supondo-se que a expressão. seja exata, primeiramen-
causa da dor; a terceira faz da supressão. da deseja a úni- te é particular ao. chamada budismo. setentrional. "Os bu-
ca meia de supr~mir a dar; a quarta enumera as três eta- distas da Sul, diz Kern, e as menos avançadas entre as
"

14 I)
AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 15

budistas do Norte, podemos afirmar com base nos dados


hoje conhecidos, falam do fundador de sua doutrina co-
mo se fosse um homem."21 Certamente, eles atribuem ao
t nheça e pratique a boa doutrina. Claro que ela não pode-
ria ter sido conhecida se o Buda não tivesse vindo revelá-
~\ Ia; mas, uma vez feita essa revelação, a obra do Buda es-
Buda poderes extraordinários, superiores aos que possui ,~ tava cumprida. A partir desse momento, ele deixou de ser
o comum dos mortais; mas era uma crença muito antiga .,~ um fator necessário da vi.da religiosa. A prá.tica das quatro
na Índia, e aliás muito comum numa série de religiões di- ~" verdades sagradas seria possível ainda que a lembrança
versas, que um grande santo é dotado de virtudes excep- ~ ",-.daquele que as fez 'conhecer se apagasse das memóríasw,
cíonaís-e, não obstante, um santo não é um deus, como Algo bem. diferente Ocorre com o cristianismo, que, sem a __ ~
tampouco um sacerdote ou um mágico, a despeito das fa- idéia sempre presente e o culto sempre praticado de tris-
culdades sobre-humanas que geralmente lhes são atribuí- to, é inconcebível; pois é por Cristo sempre vivo e a cada
das. Por outro lado, segundo os estudiosos mais autoriza- dia imolado que a comunidade dos fiéis continua a comu-
dos, essa espécie de teísmo e a mitologia complexa que nicar-se com a-fonte suprema da vida espírítualo.
costuma acompanhá-l o não seriam senão uma forma deri- Tudo o que precede aplica-se igualmente a uma ou-
vada e desviada do budismo. A princípio, Buda teria sido tra grande religião da Índia, o jainismo. Aliás, as duas
considerado apenas como "o mais sábio dos homens">. doutrinas .têm sensivelmente a mesma concepção do
"A concepção de um Buda que não seria um homem que mundo e da vida. "Como os budistas, diz Barth, os jainis-
alcançou o.rnais alto grau de santidade, diz Burnouf, não tas são ateus. Não admitem criador; para eles, o mundo é
pertence ao círculo das idéias que constituem o fundo eterno, e negam explicitamente que possa haver um ser
mesmo dos Sutras símples'<s, e,' acrescenta o mesmo au- perfeito para toda a eternidade. ]aina tornou-se perfeito,
tor, "sua humanidade permaneceu um fato tão incontesta- mas não o era o tempo todo+Assim como os budistas do
velmente reconhecido de todos que os autores de lendas, Norte, os jainistas, ou pelo menos alguns deles, se volta-
aos quais custavam tão pouco os milagres, não tiveram ram porém a uma espécie de deísmo; nas inscrições do
sequer a idéia de fazer dele um deus após sua morte'<>. Decão, fala-sede um ]inapati, espécie de ]aina supremo,
Assim, cabe perguntar se alguma vez ele chegou a despo- que é chamado o primeiro criador; mas tal linguagem, diz
jar-se completamente desse caráter humano, e se ternos.o o mesmo autor, "esta em contradição com as declarações
direito de assimilâ-Io completamente a' um deus>. Em to- mais explícitas de seus escritores mais autorizados'w.
do caso, seria um deus de uma natureza muito particular Aliás, se essa indiferença pelo divino desenvolveu-se
e cujo papel de modo nenhum se assemelha ab das ou- ~ a tal 'ponto no budismo e no jainismo, é que ela já estava
tras personalidades divinas. Pois um deus é, antes de tu- em germe no bramanismo, do qual derivaram ambas as re-
do, um ser vivo com o qual o homem deve e pode con- ligiões. Ao menos em algumas de suas formas, a especula-
tar; ora, o Buda morreu, entrou no Nirvana, nada mais ção bramânica culminava em "uma explicação francamen- .
pode sobre a marcha dos acontecimentos humanos-". te materialista e atéia do uníverso?». Com o tempo, as
xiT1ClNtl. Enfim, e não importa o que se pense da diVindade\ múltiplas divindades que os povos da Índia haviam de iní-
u.Di'STA do Buda, o fato é que essa é uma concepção inteiramente cio aprendido a adorar acabaram como que se fundindo
"''<-lsTA exterior ao que há de realmente essencial. no budismo .. numa espécie de princípio uno, impessoal e abstrato, es-
Com efeito, o budismo consiste, antes de tudo, na noção sência de tudo o que existe. Essa realidade suprema, que
de salvação, e a salvação supõe unicamente que se co- nada mais possui de uma personalidade divina, o homem
16 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA L QUESTÕES PRELIMINARES 17

contém em si, ou melhor, identifica-se com ela, uma vez É verdade que esses ritos são puramente negativos;
que nada existe fora dela. :ear.a-êfl{;Gntrá,.,,--1a--e-:u~a, ~ ?eix~ desef religiosos. Arem disso, há outros
e).e...nãe-)31'eei-s-a..,...-peFta-&tG.,--buscar
fora de si mesmo ne- que reclamam do fiel prestações ativas e positivas, e que,
p~m apoio exterior; basr.a concentrar-se e1E-si e medJ!..ar. no entanto, são da mesma natureza. Eles atuam por si
"Quando, diz Oldenberg, o budismo lança-se nesse gran- mesmos, sem que sua eficácia dependa de algum poder
de empreendimento de imaginar um mundo de salvação divino; suscitam mecanicamente os efeitos que são sua ra-
em que o homem salva-se a si mesmo e de criar uma reli- zão de ser. Não consistem em preces, nem em oferendas
gião sem deus, a especulação bramânica já havia prepara" dirigidas a um ser a cuja boa vontade o resultado espera-
do à terreno para essa tentativa ..A noção de divindade re- do se subordina; esse resultado é obtido pela execução
cuou gradativamente; as figuras dos antigos deuses pouco automática da operação ritual. Tal é o caso, em particular,
a pouco se apagam; o Brama pontifica em sua eterna quie- do sacrifício na \religião vêdica. "O sacrifício; diz Bergaig-
tude, muito acima do mundo terrestre, e resta apenas uma ne, exerce uma Influência direta sobre os fenÔmenos ce-
única pessoa a tomar parte ativa na grande obra da liberta- lestes"36; ele é onipotente por si mesmo e sem nenhuma
ção: o homem."32 Eis, portanto, uma porção considerável influência divina. Foi ele, por exemplo, que rompeu as
'1;
da evolução religiosa que consistiu, em suma, num recuo . portas da caverna onde estavam encerradas as auroras e
progressivo da idéia de ser espiritual e de divindade. Eis aí fez brotar a luz do dia37. Do mesmo modo, foram hinos
grandes religiões em que as invocações, as propiciações, apropriados que, por uma ação direta, fizeram cair sobre
os sacrifícios, as preces propriamente ditas, estão muito a terra as águas do céu, e isto apesar dos deuses». A práti-
longe de ter uma posição preponderante e que, portanto, -, ca de certas austeridades tem a mesma eficácia. E mais:
não apresentam o sinal distintivo no qual se pretende re- "O sacrifício é de tal forma o princípio por excelência,
conhecer as manifestações propriamente religiosas. T:l:e ~ ele é relacionada não somente a origem dos ho-
Mas, mesmo no interior das religiões deístas, encon- mens, mas também a dos deuses. Tal concepção pode,
tramos um grande número de ritos que são completamen- com razão, parecer estranha. No entanto, ela se explica
te independentes de toda idéia de deus ou de seres espi- como uma das últimas conseqüências da idéia da onipo-
rituais. Antes de mais nada, há uma série de interdições. A tência do sacrifício. "39Assim, em toda a primeira parte do
Bíblia, por exemplo, ordena à mulher viver isolada todo trabalho de Bergaigne, só são abordados sacrifícios em
mês durante um período determinadoõe; obriga-a a um que as divindades não desempenham nenhum papel.
isolamento análogo durante o partoõ+; proíbe atrelar jun- Esse fato não é particular à religião védica, sendo, ao
tos o jumento e o cavalo, usar um vestuário em que o câ- contrário, de grande generalidade. Em todo culto há práti-
nhamo se misture com o linho», sem que seja possível cas que atuam por si mesmas, por uma virtude que lhes é
perceber que papel a crença em jeová pode ter desempe- própria e sem que nenhum deus se intercale entre o indi-
nhado nessas interdições; PO\S ele está ausente de todas víduo que executa o rito e o objetivo buscado. Quando,
as relações assim proibidas e não poderia estar interessa- ria festa dos Tabernáculos, o judeu movimentava o ar agi-
do por elas. O mesmo se pode dizer da maior parte das tando ramos de salgueiro _segundo um certo rítmó.Iefà pa-
interdições alimentares. E essas proibições não são parti- :çafazero vento levantar-se e a chuva cair; e il,Çr~~ht.aYa-se
culares aos hebreus, mas as encontramos, sob formas di- o
que_ fenômeno desejado resultasse automaticamente do ~
versas e com o mesmo caráter, em numerosas religiões. ri~~ contanio que este fosse executadõõ"élorma correta".
~-
BIBUOTECA DA PUC· M~
I 18 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA I, QUESTÕES PRELIMINARES 19

Aliás, é isso o que explica a importância primordial dada esforçou-se por absorvê-l os e assimilá-los; imprimiu-lhes
por quase todos os cultos à parte material das cerimônias. uma cor cristã. Todavia, muitos deles persistiram até uma
Esse formalismo religioso, muito provavelmente a forma data recente ou persistem ainda com uma relativa autono-
primária do formalismo jurídico, advém de que a fórmula mia: festas da árvore de maio, do solstício de verão, do car-
a pronunciar, os movimentos a executar, tendo em si mes- naval, crenças diversas relativas a gênios, a demônios lo-
mos a fonte de sua eficácia, a perderiam, se não se confor- cais, ete. Embora o caráter religioso desses fatos vá se apa-
massem exatamente ao tipo consagrado pelo sucesso. gando, sua importância religiosa, não obstante, é tal que
Assim há ritos sem deuses e, inclusive, há ritos dos permitiu a Mannhardt e sua escola renovarem a ciência das
quais deri;am os- deuses. Nem todas as virtudes religiosas religiões. Uma definição que não levasse isso em conta não
emáiiamde personalidades divinas, e há relações cultu- compreenderia, portanto, tudo o que é religioso.
rais que visam outra coisa que não unir, o homem a uma ,
d1vinaade. Portanto, a religião vai além da idéia de deuses
ou de espíritos, logo não pode se definir exclusivamente
Os fenômenos religiosos classificam-se naturalmente
em duas categõri-ª~ fUrldameritai~: as crenças e os ritos, As
primeiras são estados da opinião, consistem em represen-
-*
em ~nção desta última. ~, tações; os segundos são modos de ação determinados.
Entre -esses dois tipos de fatos há exatamente a diferença
que separa o pensamento do movimento.
III Os ritos só podem ser definidos e distinguidos das
outras práticas humanas, notadamente das práticas mo-
Descartadas essas definições, é nossa vez de nos co- rais, pela natureza especial de seu objeto. Com efeito,
locarmos diante do problema. uma regra moral, assim como um rito, nos prescreve ma-
Em primeiro lugar observemos que, em todas essas neiras de agir, mas que se dirigem a objetos de um gêne-
fórmulas, é a natureza da religião em seu conjunto que se ro diferente. Portanto, t-o objeto do rito que precisaría-
tenta exprimir diretamente. Procede-se como se a religião mos caracterizar para odermos caracteriz~-
formasse uma espécie de entidade indivisível, quando ela to. Ora, é na crença ~e a natureza especia aesse objeto-
~ um todo formado de-.partes; tt
um sistema mais ou me- rse exprim~ssim, só se Eode definir ~o após se ter-
nosçomplexo.de mitQs,_de dogmas,-º~rit0s., de e.e.timQ- definido a crenças/ ~
~s-Ora, u~ não pode ~er definido senão em rela- - Todas as cref!.Ç!;lsreligiosas conhecidas, sejam sim-
ção às artes que o formam. mais metódico, portanto, ples óil complexas, a~m um~o caráter CG.::..
procurar caracterizar os enomenos elementares dos quais mum: supõem uma classi icação das coisas, reais ou id~ais
toda religião resulta, antes do sistema produzido por sua ~ os homens cõí1êeDem-lem auãsClasses, ·em aois gê-
união. Esse método impõe-se sobretudo pelo fato de exis- peros opostos~gnados eralment~ oi- dOiS termos •~
tirem fenômenos religiosos que não dizem respeito a ne- distintos que as palavras_~tanQ-e~sa·rada aduzem bas-
nhuma religião determinada. _É-O.s_asodos que constituem tãiiteõt:ur-ktliVíSãõ do mundo em dois dómíni~e
amatêría do.folclere. Em geral, são restos de rellgiões de- compreendem, !lm, tudo o qlle é s~grad~, outro, !2:;do~.
sapareci~vências inorganizadas; mas há outros que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento reli-
também que se formaram espontaneamente sob a influên- giOso: as crenças, os mitos, os gnomos., as lendas, são re-
cia de causas locais. Nos países europeus, o cristianismo .E..resent-ações ou sist~m~~ d~entações que exE!l:
20 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 21

~tureza das coisas sagradasJ as virtudes e os po- segunda seja sagrada em relação à primeira. Os escravos
deres que lhes são atribuídos, suãl'i:lstória suas relações dependem de seus senhores, os súditos deseu rei, os sol-
IllúJuas e com as coisas profanas. Mas, pOr coisas sagra- dados de seus comandantes, as classes inferiores das clas-
9, convém não entender simplesmente esses s ee-pes- ses dirigentes, assim como o avarento depende de seu
soais que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, ouro e o ambicioso, do poder e das mãos que o detêm;
~~QYma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, ora, se dizemos às vezes de um homem que ele tem a re-

P ~ ~agrada.
(J,~~
V!
~,rJ) uma casa em a palavra, uma coisa qualquer pode ser
rito pode ter esse caráter; inclusive, não exis-
te rito qu nã o tenha em algum grau. Há palavras, fra-
ligião dos seres ou das coisas aos quais atribui, assim, um
valor eminente e uma espécie de superioridade em rela-
ção a si próprio, é claro que, em todos esses casos, a pa-
S ses, fórmulas que só podem ser I?ronunciadas p~la boca lavra é tomada num sentido metafórico e que não há na-
de personagens consagrados; ha gestos e movimentos da, nessas relações, que seja propriamente religioso-ê.
que não podem ser executados por todo o mundo. Se o Por outro lado, convém não perder de vista que há
sacrifício védíco teve tal eficácia, se inclusive, segundo a coisas sagradas de todo tipo e que há aquelas diante das
mitologia, foi gerador de deuses, ao invés de ser apenas quais o homem se sente relativamente à vontade. Um
um meio de conquistar seus favores, é que ele possuía amuleto tem um caráter sagrado, no entanto o respeito
uma virtude comparável à dos seres mais sagrados. O cír- que inspira nada tem de excepcional. Mesmo diante de
culo dos objetos sagrados não pode, portanto, ser deter- seus deuses, o homem nem sempre se encontra numa po-
minado de uma vez por todas; sua extensão é infinita- sição de acentuada inferioridade" pois muitas vezes exer-
mente variável conforme as religiões. E~que_m~ ce sobre eles uma verdadeira coerção física para obter o
o budisrnQ.....é_umaJ...elig~..Q.ue.,....1la.lalta...cLe deu.s.e~ que deseja. Bate-se no fetiche com o qual não se está
admite a existência de coisas sagradas, que são as guatro contente, reconciliando-se com ele caso venha a se mos-
verdades sàntas e ãSprática§..QlIe delas derivam", trar mais dócil aos desejos de seu adoradoré. Para obter a
Mas limitamo-nos até aqui a enumeraf;à título de chuva, lançam-se pedras na fonte ou no lago sagrado on-
exemplos, um certo número de coisas sagradas; cumpre de se supõe residir o deus da chuva; acredita-se, deste
agora indicar através de que características gerais elas se modo, obrigá-I o a sair e a se mostrar+. Aliás, se é verdade
distinguem das coisas profanas. que o homem depende de seus deuses, a dependência ~
Poderíamos ser tentados a defini-Ias, de início, pelo rêéípra-ca. TaITlbém os deuses têm necessidadedo ho-
'"
~ -:----......-. - ;;;.,~' ---.., ' . i

lugar que geralmente lhes é atribuído na hierarquia dos mem: sem as oferendas e os sacrifícios, eles morreriam.
seres. Elas costumam ser consideradas como superiores Teremos ocasião de mostrar que essa dependência dós
em dignidade e em poderes às coisas profanas e, em par- deuses em relação a seus fiéis mantém-se inclusive nas re-
ticular, ao homem, quando este é apenas um homem e ligiões mais idealistas.
nada possui, por si próprio, de sagrado. Com efeito, o ho- Mas, se uma distinção puramente hierárquica é um
memé representado ocupando, em relação a elas, uma si- critério ao mesmo tempo muito geral e muito impreciso,
tuação inferior e dependente; e essa representação por não nos resta outra coisa para defin~grª-dº- em ~- ~
certo não deixa de ser verdadeira. Só que nisto não há na- ~çào ap~~,-ª-.E;~o ~er sua heteroge~~ida_d~ E ~ que
da-que seja realmente característico do sagrado. Não basta torna.essa-heterogeneídade sufíeíente.para caracterísar.se-
que uma coisa seja subordinada a uma outra para que a ~elhante classificação das coisas e distingui-Ia de qual-
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AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES '1. If' 23
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uer outra é justamente o fato de ela ser muito particl!Lar: re, que a pessoa determinada que ele era cessa de existir ,,.;'c,p.«;.c;,\
--"* .ela é absoluta. Não existe na história do pensamento hu-
~-
~tra~stantaneamente,
1
substitui a preceaert- PJ' I\.~.?-~h~
-' '-- ~Cl""''-
mano um outro exemplo de duas categorias de coisas tão e. Ele renasce SOID uma nova forma.rGenstdera-se que ce- I" tv.flft..tO
profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas rlmônias apropriadas realizam essa morte e esse renasci- 1'~.
uma à outra. A oposição tradicional entre o bem e o mal mento, entendiqbs não num sentido simplesmente simbó-
não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas es- lico, mas toma~s ao pé da lerra=. tl!o é isso uma prova (,
pécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim co- d~ q1!o~. l).'ª.501 ão de çs,:mtinuidade entre o-ser-pftrãi1õ SJVI [,
mo a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferen-
tes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o
sagrado e o profano foram sempre e em toda parte conce-
lte_ele~;;...e,o ser religioso ém que se: torna?
Essa heter geneidade inclusive é tal.que-rrãõráro
genera num verdadeiro@!ili[gonis]0.
_ .~OI

Os dois mun.dos
j:)
de-t ~
bidos' pelo espírito humano como gêneros' separados, co- não são apen~ncebidos como separados, mas como_
mo dois mundos entre os quais nada existe em comum. As hoSl'iSêfivãIS um do outro. Como só pode pertencer ple-
energias que se manifestam num não são simplesmente as namente a um se tiver sãido inteiramente do outro, o ho-
que se encontram no outro, com alguns graus a mais; são mem é exortado a retirar-se totalmente do profano, para
de outra natureza. Conforme as religiões, essa oposição foi levar uma vida exClusiVamente rel@osa. Daí a vida mo-
concebida de maneiras diferentes. Numa, para separar es- nástica que, ao lado e fora do meio natural onde viveo
ses dois tipos de coisas, pareceu suficiente localizá-Ias em. homerneomüm, organiza artíflclalmente um o~eio,
regiões distintas do universo físico; noutra, algumas delas fechadó -ao' primeiro e que uase sempre tende ~ ser o
são lançadas num meio ideal e transcendente, enquanto o seu opostoj Daí ascetismo rriístico cujo objeto é extirpar
mundo material é entregue às outras em plena proprieda- dõl10mem tudo o que nele pode permanecer aeapeg
de. Mas, se as formas do contraste são variâveis+>, o fato ao mundo prõfaiío" Daí, enfim, todas as formas de suicí-
mesmo do contraste é universal. dio religtoso, coroamento lógico desse ascetismo, pois a
Isso não significa; porém, que um ser jamais possa única maneira de escapartotalI!J.ent~ à vida profana é
passar de um desses mundos para o outro; mas a maneira última instância, evadír-se totalmente da VIda
como essa passagem se produz, quando ocorre, põe em A oposição desses dois gêneros trá, aliás, traduzir-se
evidência a dualidade essencial dos dois reinos. A passa- exteriormente por um signo visível que permita reconhe-
gem implica, com efeito, uma verdadeira metamorfose. É cer com facilidade essa classificação muito especial, onde
o que demonstram particularmente os ritos de iniciação, quer que ela exista. Como a noção de sagrado está, no
tais como são praticados por uma quantidade de povos. A pensamento dos homens, sempre e em toda parte separa-
iniciação é uma longa série de cerimônias que têm por da da noção de profano, como concebemos entre elas
objeto introduzir o jovem na vida religiosa: ele sai pela uma espécie de vazio lógico, ao espírito repugna invenci-
primeira vez do mundo puramente profano onde trans- veílnente que as coisas côrrespondentes sejam confundi-
correu sua primeira infância para entrar no círculo das das ou simplesmente postas em contato, pois tal promis-
coisas sagradas. Or~ssa mudança d.::.-e~~.Ç.onceb!::. cuidade ou mesmo uma contigüidade demasiado direta
da, não como <2...§iQ!.pl"êS"efegularaesenv.Q!Yim..ent2 de contradizem violentamente o estado de dissociação em
germes preexistentes, mas como uma transformação totius
- . ~.-----
substantiae. Diz-se que, naquele momento, o jovem mor-
-- - --
9ue se achª-Dl tais idéias nas Collscrê~claS)AcOísasagra~
e, por excelência, aguela <Lueo profano não deve e não po-
_.- -. - - -- '-
24 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 25

de impunemente tocar. Claro que essa interdição não po- me as circunstâncias em que se aplica, seria, no fundo,
deria chegar ao ponto de tornar impossível toda comuni- por toda parte, idêntico a si mesmo: <trªta-se de um todco
cação entre os dois mundos, pois, se o profano não pu- Ifõ'rmado de partes distintas e relativamente indívidualizg-
desse de maneira nenhuma entrar em relação com o sa- dasJCada grupo homogêneo de coisas sagradas, ou mes-
grado, este de nada serviria. Mas esse relacionamento, mo cada coisa sagrada de alguma importância, constitui
além de ser sempre, por si mesmo, uma operação delica- um centro organizador em torno do qual gravita um gru-
da, que requer precauções e uma iniciação mais ou me- po de crenças e de ritos, um culto particular; e não há re-
nos complicada+, de modo nenhum é possível sem que o ligião, por mais unitária que seja, que não reconheça uma
profano perca suas características específicas, sem que se pluralidade de coisas sagradas. Mesmo o cristianismo, pe-
torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa lo menos em sua forma católica, admite, além da persona-
medida. Os dois gêneros não podem se aproximar e con- lidade divina - aliás, tripla ao mesmo tempo que una -, a
servar ao mesmo tempo sua natureza própria. Virgem, os anjos, os santos, as almas dos mortos, ete.
Temos, desta vez, um primeiro critério das crenças Assim, uma religião não se reduz geralmente a um
religiosas. Claro que, no interior desses dois gêneros fun- culto único,mas consiste em um sistema de cultos dota-
damentais, há espécies secundárias que, por sua vez, são dos de certa autonomia. Essa autonomia, por sinal, é variá-
mais ou menos incompatíveis umas com as outrasw. Mas vel. Às vezes, os cultos são hierarquizados e subordinados
o característico do fenõmeno religioso é que ele supõe a um culto predominante, no qual acabam inclusive por
sempre uma divisão bipartida do universo conhecido e ser absorvidos; mas ocorre também estarem simplesmente
conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o justapostos e confederados. A religião que iremos estudar
que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas nosfornecerá justamente um exemplo desta última orga-
sagradas são aquelas que as proibiçõesprotegem e iso- nização.
lam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas Ao mesmo tempo, explica-se que possa haver grupos
proibições e que devem permanecer à distância das pri- de fenômenos religiosos que não pertencem a nenhuma
meiras. As(crenças religíosãs-são representações que ex- religião constituída: é que eles não estão ou não mais' es-
primem a natureza das coisas sagradas e as relações que tão integrados num sistema religioso. Se um dos cultos
elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas. em questão conseguir manter-se por razões especiais
Enfim, os ritos são regras de conduta que prescrevem co- quando o conjunto do qual fazia parte desaparece, ele irá
mo o homem deve comportar-se com as coisas sagradas. sobreviver apenas no estado desintegrado. Foi o que
Quando um certo número de coisas sagradas man- aconteceu a tantos cultos agrários que sobreviveram a si
tém entre si relações de coordenação e de subordinação, próprios no folclore. Em certos casos, não é sequer um
de maneira a formar um sistema dotado de uma certa uni- culto, mas uma simples cerimônia, um rito particular que
dade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro persiste sob essa forma-s. .
sistema do mesmo gênero, o conjunto das crenças e dos . Embora essa definição seja apenas preliminar, ela já
ritos correspondentes constitui uma relígíão. Vê-se, por permite entrever em que termos se deve colocar o proble-
_ essa definição, que uma religião não corresponde neces- ma que domina necessariamente a ciência das religiões.
sariamente a uma única e mesma idéia, não se reduz a Quando se acredita que os seres sagrados só se distin-
um princípio único que, embora diversificando-se confor- guem dos demais pela maior intensidade dos poderes que
26 AS FORMAS ELEMENTARES DA WDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 27

lhes são atribuídos, 51 guestão de~r de gue maneira os


homens ~eram ter a idéia desses seres) é bastantesIffi-
ples: basta examinar quais são as forç~s que, .eor sua ex-
c_epcio~l ~gg, foram capazes de imQressionar tãQ.Yi-
vamente ~ espírito humano parg ins.eirar sentimento~li-

r
giO' Mas se, como tentamos estabelecer, as coisas sa-
~\h.1 gra as diferem em natureza das coisas profanas, se são de
)\\ _MO- /~ ?utra essência, o proble:,na é muito mais complexo.
J ~(1' ~ e preCiso Qerguntar entao o que levou o homem a
)~ ,ver no mundo dois J;llundos heterogéiiêos e incompará-
\\ ~~ veis, quando nada na expedencI.a sensível parecia dever
lje,h-Ihe a idéia de uma d.!!J!.liãâdetão rndica1.J

IV

Entretanto, essa definição nã~é ainda completa, pois


~ualmente_a duas ordens de-fatos que, embora
ª,p~~dos e~t~: si, p~s: !rª-ta.:se d
agIa e aa rehgIa!J~-- ------..:c.
'" \ I I
Tãmoe-'a ma ia é feita de cren as e de ritos Assim ,I) 1'0[(
como a religiao, ~e.us mitQ.L~s-dQ§fl1as) eles são fIV" " ,
apenas mais rudimentares, certamente porque, buscando ri
I\ r'
fins técnicos e utilitários a agia não perde seu tempo 'uJ{
Y li
com especulações. Ela tem i. ualmente suas cerimõnias,
s~us sacrifícios, suas puri icações; suas preces, ~-
'to~~ças.
'Çãsq~ãO
Os seres que o -mágIco invoca, as for-
são apenas da mesma natureza 9.,ue
.'
~ forças e os seres aos quai.§ se dIrí~ a relIgião; com mui-
ta.freqüêncía, são exatamente os me~Ãssim, desde
as sociedades mais inferiores, as almas dos mortos são
coisas essencialmente sagradas e são objeto de ritos reli-
~. Ao mesmo tempo, porém, elasjesempenharam
na magia }lm papel consid~ Tanto na Austrália50 co-
-, 'fi1õl1ãMêíai1esIa51, tanto na Grécia como nos povos cris-
~!, a?aImas dos mortos,SU;;;s ossadas, seus cabelos,
estão entrêOSmtefii.1e'éIITrios muitas vezes utilizados pelo
-
-, --'--~-
29
\t,---
Si ,
r
28
AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES

I, I~
X'' "r
~~nçasll2!Q,P...riamente
'11' religi~!.o sempre co- uma mesma vida, Não existe igrei!!:.mágica. Entre o mági-
,',f UII};l SO etividade determinada, que declara aderir co e os indivíduos que o consUltam, como também entr
,\\~
\I
l ,;'
I" ~

a elas e 12.r~icar os ritos que lhes são soIIaários. Tais cren:


ças não são apenas admitidas, a título individual, por to-
J.~
esses indivíduos, não há víns:.!!.losduráveis que façam de-
les os membros de um mesmoçorpo moral, comparável
,1 \1 \ dos os membros dessa coletividade, mas são próprias do àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus," pelos pra-
1
" 1\ grupo e fazem sua unidade. O~indiyídl,l.Q2..9.ue compõem ticantes de um mesmo culto. O mágico t~m uma clientela,
,\t .~ cole'i.vid~de seI!!:,em-=s~ligados uns aQi-QWjQs P"?1"0 '011 não uma ígreja, ,e seus clientéspodem perfeitamente não
,\\ simflk'}s.fatQ~de...te.[eULumª fé comum. Uma sociedade cujos> J \O~ manter entre'sh1ephum rélâclôiiâmento, ao .ponto dê sé .:
membros estão unidos por se representarem da mesma OQ Iv J ignorarem Ul}S aos outros.imesiiio as relações que estabe~
maneira o mundo sagrado e por traduzirem essa repre- r~ &Q ./ lecem com o mágico são,~rri..:geral,acidentais e passagei-
sentação comum em práticas idênticas, é isso a que cha-)I'
~mamos uma~Ora, não encontramos,~ história, ~- r:
\ff ]:a.§isão em tuao semelfiantes às de urrl"CIõente com seu
~. O caráter oficial e público com que às vezes ele é
Jigi~9sem igreja. As vezes a igreja é estritamente nacional,) investido não modifica em nada a situação; o fato de
\~ outras vezes estende-se para além das fronteiras; ora exercer sua função abertamente não o une dê maneIra
abrange um povo inteiro (Roma, Atenas, o povo hebreu), E1áis ;!.gylar ~ durável aos...sL';!,e
recorrem- a seus serviç;s;
ora compreende apenas uma de suas frações (as socieda- E verdade que, ~m c~rtos caso~ QS mágicos f~
des cristãs desde o advento do protestantismo); ora é diri- entre si sociedades: acontece de se reunirem mais ou me-
\ gida por um corpo de sacerdotes, ora f= mais ou menos -fios períoaicamente para celebrarem em comum certos rio.
'- ) desprovida de qualquer órgão dirigente ofícialv. Mas, on- !Q§; conhecemos o lugar que ocupam as reuniões (fêreiti~
t de quer qpe o~~rvemQs uma vida relig!Q§a, ela tem por ceiras no folclore europeu.-Mas, antes de mais nada, no-
''I
s~~ru o definid0Mesmo os cultos ditos priva- tar-se-á que tais ,+ssociaçõ~s'de modo nenhum são indis-
dos, como o culto doméstico ou o culto corporativo, satis- ensª,veis ao funcionamento d~agía; são incluSIVe raras
fazem essa condição, pois são sempre celebrados por e bastante excepcionaís.j O mágico não tem ã meriOr ile:
uma coletividade - a família ou a corporação. Aliás, assim cessicIade, para praticar sua arte, de unir-se a seus confra-
como essas religiões particulares são, na maioria das ve- des. Ele é sobretudo um isolaçlo; em geral, longe de bus-
zes, apenas formas especiais de uma religião mais geral _car asociédade, a evit~Mes~o em relação-a seus cole- OU dl~~j'
que abarca a totalidade da vida59, essas igrejas restritas, na gas, conserva sempre uma atitude re!')ervada."61Ao contriq 1),.v!1...,
realidade, não são mais que capelas de uma igreja mais rio, a religião é ínse arável da idéia de i re·. 05 esse Lj"/J\çj)':>
vasta, a qual,_p.o.r~mesma, merece primeIro aspecto, já existe entreâ~mágia e religião uma
â

ainda mai[ser chamada por ..esse nome60. diferença essencíal.iálém do mais, e sobretudo, essas so-
Algo bem diferente se dá com a magia. Claro que as ciedades mágicas, quando se formam,' jamais compreen-
crenças mágicas jamais deixa~ de ter alguma generalida- dem, muito pelo contrário; todos os adeptos da ~,
de; com freqüência estão dífusas em largas camadas de mas apenas os mágicos; os leigos, se é possível chamá-l os
população e há inclusive muitos povos em que seu nú- assim, ou seja, a..Qudes em pro~ito dos g.Qais os ritos são
mero de praticantes não é menor que o da religião pro- celebrados, aqueles, em suma, g~~resentam os fiéis
priamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos ~egulare~, são excluídos desses encontros. Ora,
outros seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo <? mágico está 12ara.JLITl.flgiaassim como o sacerdote para
30 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 31

a religião, e um colégio de sacerdotes não é uma igreja, ro de religiões americanas, assim como da religião rorna-
como tampouco o seria uma congregação religiosa que na CPafa citar apenas dois exemplõsT;- pois ela é, co.!!2Q..
prestasse a algum santo, na sombra do claustro, um culto veremos mais adiante, estreitamente solidária à idéia de
particular. Uma igreja não é simplesmente uma confraria ~e ajd~ia- de alma não é.si.JlSque posSãm ser inteira-
sacerdotal.ê a comunidª-de moral formada por todos os mente abandonadas ~_arQillio dos 12articulares) Em uma
crentes de uma mesma fé" tanto os fiéis como os sacerdo- palavra, é a igreja da qual ete é membro Que ensina ao in-
tes. Uma sOClJdaçe desse gênero normalmente não se ve- divíduo oque São_e.s5_esde1Js~ pessoais, qual é seu pa-
rifica na magfê ~ d~q~aneira deve entrar ~to com eles) de
Mas, se introduzimos a noção de igreja na definição que maneira deve hon@-los~Quando analisamos metodi-
de religião, não estaremos excluindo dela, ao mesmo tem- camente as doutrinas dessa igrelã. seja ual for, sur e um
po, as religiões individuais que o indivíduo institui parasi momento em Clue é11fontr_amos~oJ~illeto ague -ª,s_queA.iJ
mesmo' e celebra por conta própria? Ora, há poucas socie- ~respefto aos c(flros especiãiS) Portanto, não temos aí
dades em que estas não ocorram~da Ojib~, como V;=- 'tias religiões de tipos dITeieOtes e voltadas em sentidos
remos mais adiante, tem seu rnanitú pessoa que ele pró- opostos, mas sim, de ambos os lados, as mesmas idéias e
prio escolhe e ao qual presta deveres religiosos particula- os mesmosJ2rincípiosJ aplicados aqui às circunstâncias
res; o melanésio nas ilhas Banks tem seu tamantu/s, o ro- ue interessam à ccletividaq~ em seu conjunto, ali, vida
à

mano tem seu geniusr-; o cristão, seu santo padroeiro e do indivíduo. .á.QlidariedageJé inclusive tão estreita gge,
seu anjo da guarda, etc. Todos esses cultos parecem, por em alguns povos66, as cerimônias através das quais o fiel
definição, independentes da id~ia de grup_o. E essas reli- entra pela primeira vez em comunicação com seu gênio
giões individuais não apenas são muito freqüentes na his- protetor se misturam a ritos de caráter público incontestá-
tória: alguns se perguntam hoje se elas não estão destina- vel, a saber, 9s ritos de iniciação67.
das a se tomar a forma eminente da vida religiosa e se não Restam as aspirações contemporâneas a uma religião
chegará o dia em que não haverá outro culto senão' aquele que consistiria inteiramente em estados interiores e subje-
que cada um celebrará livremente em seu foro interior=. tivos, e que seria livremente construída por cada um de
Mas, deixando provisoriamente de lado essas especula- nós. Mas, por mais reais que sejam, elas não poderiam
ções sobre o futuro, se nos limitarmos a considerar as reli- afetar nossa-definição, pois esta só pode aplicar-se a fatos
iões tais como são no presente e tais como foram no' conhecidos e 'realizados, não a virtualidades incertas. Po-
p.as.s~ aparece com evidência que~ cultos indivi- demos definir as religiões tais como são ou tais como fo-
duais constituem, não sistemas religiosos distintos e autô- ram, não tais como tendem mais ou menos vagamente a
'2Q!!!9s, mas simples aspectos da religião comum a toda ser. É possível que esse individualismo religioso seja des-
igreja da qual os indivíduos fazem parte.{o santo padroei-
ro dos crtsfãos e escolhido na lista oficia dos santos reco-
nhecidos pela igreja católica, e são igualmente regras ca-
que """'-_
tinado a traduzu-se nos fa~mas,

que elementos é
para poder dizer em .
~ medida, s.etla )2reciso já saber o que é a rel~gião,~_
feita, de quecausãSTeSü:lta, que função>
nônicas que prescrevem de que maneira cada fiel deve -reenche; questões todas essas cuja soluçãô" não se pode
cumprir esse culto particular. Do mesmo modo, a idéia de prejulgar enquanto não se tiver ultrapassado 'o limiar da
que cada homem tem necessariamente um ênià rotetor pesquisa. É somente ao cabo desse estudo que podere-
mos tratar de antecipar o futuro.
--
está, sob formas 1 erentes, na base de um grande núme-
-,
32 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA

Chegamos, pois, à seguinte definição: uma ..!§.ligião§. CAPÍTULO II


.-J:!:!!! sistema solidáriQ de crerJ:.~ !,de J2I{tticas rela~ AS PRINCIPAIS CONCEPÇÕES
co~radas,_istoé, s_epafadas, proibidas, crenças e
p~q11e reúnem numa mesma comjtnLd~l,
DA RELIGIÃO ELEMENTAR
chamada-.ig!$..a, todos aq,ueles ÇJ.uea elas Çlderem)0 se-
gundo elemento que participa assim de nossa Clefinição
não é menos essencial que o primeiro, pois, ao mostrar
que a idéia 'üe;:t~1igiil0-€",!fis@j9ará:velda idéia de ig~j<!:zele
faz pressentir que a religião dev~-~~r_uma coísa-emínente-
:m€H'ltacoletíva6_8.

I- O animismo

Munidos dessa definição, podemos sair em busca da


religião elementar que nos propomos alcançar.
As religiões, mesmo as mais grosseiras que a história
e a etnografia nos fazem conhecer, já são de uma comple-
xidade que se ajusta mal à idéia que algumas vezes se faz
da mentalidade primitiva. Nelas encontramos não apenas
um sistema cerrado de crenças e de ritos, mas inclusive
tal pluralidade de princípios diferentes, tal riqueza de no-
ções essenciais, que pareceu impossível perceber nelas
outra coisa que o produto tardio de uma evolução bastan-
te longa. Donde se concluiu que, para descobrir a forma
realmente original da vida religiosa, era necessário descer,
através da análise, mais abaixo dessas religiões observá-
veis, decompô-Ias em seus elementos comuns e funda-
mentais, para descobrir se, entre estes últimos, haveria al-
gum do qual os outros derivaram.
Ao problema assim colocado, duas soluções contrárias
foram propostas.

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