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AGRADECIMENTOS
A Deus em primeiro lugar, pela saúde, pela vida plena, pela força no
enfrentamento deste trabalho, pela minha família e pela descoberta
da Psicologia como profissão que me realiza.
Ao meu marido Álvaro, luz da minha vida, que com seu amor,
paciência e compreensão sempre esteve comigo nesta trajetória e
quero que esteja em todas as outras que ainda estão por vir.
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Isabel Kahn e Luciana Braga e a todos os professores que nos
incentivaram e acreditaram em nossas potencialidades.
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Luciana Fernandes Rocha: LUTO MATERNO PELO FILHO SUICIDA, 2007
Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime
Palavras-chave: Luto materno; suicídio; processo de elaboração.
RESUMO
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................p.7
CAPÍTULO I - SUICÍDIO............................................................................................p.13
CAPÍTULO II - LUTO.................................................................................................p.32
FASES DO LUTO...................................................................................................p.33
SINTOMATOLOGIA...............................................................................................p.37
LUTO NORMAL E LUTO COMPLICADO..............................................................p.38
CAPÍTULO V – METODOLOGIA...............................................................................p.50
PARTICIPANTES...................................................................................................p.52
INSTRUMENTOS...................................................................................................p.52
PROCEDIMENTO..................................................................................................p.53
PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DOS RESULTADOS...................................p.54
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CAPÍTULO VI – RESULTADOS................................................................................p.55
REFERÊNCIAS..........................................................................................................p.87
ANEXO 2 – ENTREVISTAS
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INTRODUÇÃO
Apesar de vivermos perdas sucessivas durante toda a nossa vida, a morte não
é vista como decorrência natural do viver, principalmente numa sociedade
como a nossa em que a vitalidade e a longevidade são cada vez mais
cobiçadas. A civilização ocidental tem dificuldade para aceitar a morte, e o
medo diante dela tornou-se parte dos principais conflitos psíquicos. No entanto,
a morte é uma das etapas da vida do ser humano, por isso, é de suma
importância que ela seja estudada e entendida como parte do processo da vida
pois, como afirma Morin (1970), só é possível conhecer o homem estudando
sua morte.
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Philippe Ariès (2003), um dos pioneiros a tratar sobre o tema da morte, afirma
que a morte é hoje tratada com distanciamento, como se não viesse a nos
atingir em momento algum. O autor enfatiza que a morte tornou-se um tabu e a
partir do século XX substituiu o sexo como principal interdito. O interdito da
morte, segundo Ariès, ocorreu após um período de vários séculos, em que era
um espetáculo público do qual ninguém pensaria em esquivar-se. Este interdito
atual nasceu numa cultura urbanizada na qual dominam a busca da felicidade
ligada ao lucro, e um crescimento econômico rápido. O recalque da dor, a
interdição de sua manifestação pública e a obrigação de sofrer só e escondido
agravam o traumatismo devido à perda de um ente querido.
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estabelecido um novo conjunto de concepções sobre o mundo. Segundo o
autor, a dor do luto é:
Em razão disto, existe uma grande dificuldade de se tratar o luto quando este
envolve a relação mãe-filho(a), uma vez que o amor materno “é o amor que
cuida, que nutre, que fertiliza. É o único amor que todos conhecemos. Se não o
conhecêssemos de alguma maneira, simplesmente nem vivos estaríamos”
(Galiás, 2004). O luto de um filho, segundo a autora é:
Rubem Alves (2007) afirma que “há dores que fazem sentido, como as dores
do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido
nenhum”, como a dor pela morte de um ente querido. Galiás (2004) concorda,
dizendo que:
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sociedade. Os serviços de emergência vêm registrando aumento considerável
das taxas de mortalidade por suicídio, bem como uma maior incidência de
casos de pessoas com comportamento suicida (Organização Mundial da
Saúde, 2000).
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expressar quanto à perda, quanto ao suicídio, quanto a tantas
e diversas emoções que afloram. (p.3).
Escolhi esse tema como (mais uma) forma de elaboração pessoal e pelo
profundo respeito pelo sofrimento materno durante o luto de um filho; além do
desejo de compreendê-lo melhor para levantar propostas que possam servir
para atenuar um luto tão doloroso quanto censurado. Proponho que o poder
pensar, poder falar sobre algo tão traumático seja uma forma de legitimar a dor,
de reconhecer a ambivalência de sentimentos suscitados e principalmente
autorizar a recuperação de uma mãe cujo filho tenha se suicidado. Por isso, a
relevância desse trabalho em analisar um tema difícil e ao mesmo tempo, tão
importante.
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Para a elaboração do trabalho serão utilizados autores como P. Áries, S.
Freud, D. Winnicott, Colin Parkes, Maria Helena Pereira Franco, Kübler-Ross,
Maria Júlia Kovács, Kalina e Kovadloff , entre outros, para que sejam
estudados temas como morte, suicídio, luto, amor materno e relação mãe-
filho(a).
No segundo capítulo pretendo fazer uma reflexão sobre o luto normal, o luto
complicado, a sintomatologia e fases do luto.
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CAP. I - SUICÍDIO
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos
do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte,
peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de
nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio. (Guimarães Rosa, A
terceira margem do rio )
O suicídio é...
"... uma violação ao dever de ser útil ao próprio homem e aos outros”
(ROUSSEAU).
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A prática do suicídio sempre existiu, porém apresentou, e ainda apresenta,
diversas formas de ser encarado, dependendo da cultura e da época. As
definições teóricas se alternam, se complementam e se contradizem. Não há
uma única explicação, pois o caminho do suicídio é o da ambigüidade. Mesmo
afirmativas que parecem inquestionáveis, como a de que o suicídio é resultado
de angústia e sofrimento, não valem para todos os casos, e se tornam
impertinentes quando se analisa, por exemplo, os casos de suicídio em países
orientais.
O suicídio poderá representar a luta pela honra, a libertação para aqueles que
são escravos ou que estão presos e também o aprisionamento da alma
daqueles que não seguiram as leis Divinas. O que determinará estas
concepções será a forma como este ato será visto pela sociedade.
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É possível observar, na história da humanidade, que o suicídio sempre
acompanhou o ser humano, estando presente em todas as civilizações, porém
o modo de encará-lo é que difere de cultura para cultura.
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De acordo com Cassorla (1984), o suicídio é um ato agressivo. “A percepção
da agressividade do suicida por parte da sociedade fez com que ela também
reagisse agressivamente, através dos tempos, castigando o suicida” (p. 34).
Segundo o autor, na Antigüidade, em Tebas e Chipre, o suicida era privado das
honras fúnebres.
No Egito, se o dono dos escravos ou o faraó morria, era enterrado com seus
bens e seus servos, os quais deixavam-se morrer junto ao cadáver do seu
amo. Também no Egito, desde o tempo de Cleópatra, o suicídio gozava de tal
favor que se fundou a Academia de Sinapotumenos que, em grego, significa
"matar juntos" (Silva, 1992).
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Ainda no Japão, de acordo com Silva (1992), existem diferentes
representações sociais do suicídio. As diferenças ficaram tão objetivadas que
se criaram diferentes palavras para designar os suicídios como, por exemplo:
Cassorla (1984), diz que os índios Tinklit quando se sentiam ofendidos e não
tinham possibilidade de se vingar, se suicidavam e, assim, os parentes e
amigos deveriam vingá-lo. Entre os chuvaches, na Rússia, as pessoas
enforcavam-se na porta do inimigo, pois acreditavam que sua alma perseguiria
o ofensor.
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com tolerância porque se o compreende, mas porque já não se
lhe atribui maior transcendência coletiva. (p. 54).
Nenhum suicídio podia ser considerado realizado por livre arbítrio, pois o
fenômeno do suicídio estaria obedecendo a leis sociológicas. Através das
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pesquisas realizadas, Durkheim concluiu que a taxa de suicídio variava em
razão inversa à integração do grupo social de que o indivíduo fazia parte.
- O suicídio altruísta, no qual o indivíduo sacrifica sua vida pelo bem do grupo.
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SUICÍDIO, MITOLOGIA E RELIGIÕES
Alguns suicídios famosos na mitologia e nas religiões são citados por Manhães
(1990), como é o caso do famoso suicídio na Mitologia tebana de Jocasta mãe
de Édipo. A autora lembra ainda de Crisipo que atentou contra a vida,
envergonhado de ter sido seduzido homossexualmente por Creonte. Da Bíblia,
Manhães (1990) menciona, no Antigo Testamento, o suicídio de Saul:
RELIGIÃO CATÓLICA
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Santo Tomás de Aquino baseou a proibição do suicídio em três justificativas: o
suicídio é contrário à inclinação natural do indivíduo de amar a si mesmo; é um
atentado à comunidade à qual pertence; a vida é um bem dado ao homem por
Deus e quem a tira viola o direito divino de determinar a duração de nossa
existência na Terra.
RELIGIÃO JUDAICA
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Ainda segundo o autor, o Rabino deve ser ouvido antes de serem aplicadas as
restrições, como a que determina seu sepultamento a uma distância mínima de
cinco metros dos demais túmulos e a não observância de luto.
DOUTRINA ESPÍRITA
ISLAMISMO
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Os islamitas condenam e proíbem o suicídio. Eles condenam os indivíduos
que praticam este ato “a uma vida de ‘suicídio eterno’, sempre ressuscitando e
compulsivamente se matando” (Manhães, 1990).
SUICÍDIO E FILOSOFIA
Pagenotto (2007) também comenta que John Locke, filósofo liberal do século
XVII adotou os argumentos de Santo Tomás de Aquino dizendo que “Deus nos
legou a liberdade pessoal, mas isto não inclui a liberdade de nos matarmos”.
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de Sísifo que o suicídio nos tenta com a promessa de uma liberdade ilusória do
absurdo de nossa existência. Para Jean-Paul Sartre o ato é uma oportunidade
de afirmar a compreensão de essência individual em um mundo sem Deus.
Assim, para os existencialistas, o suicídio não era uma escolha moldada por
considerações morais, mas por preocupações pelo indivíduo como a única
fonte de significado num mundo sem sentido.
A partir de estudos psicanalíticos, Alves (1991) conclui que o ato suicida tem
várias funções que vão depender de cada indivíduo e situação. De maneira
geral, o suicida estaria tentando fugir de uma situação de imenso sofrimento
somado a uma desesperança e uma tristeza incomensurável. E nesse caso, a
morte seria vista como uma solução, não porque a deseja, mas porque não
enxerga outra saída para a dor psíquica que enfrenta.
Alves (1991), diferencia a “morte vinda de fora” da “morte que cresce por
dentro” e que cada uma delas produz um sentimento diferente para quem as
acompanha. Na primeira, a morte seria vista como um acontecimento de dor,
pois a vida seria abruptamente interrompida. Na segunda não; o ato suicida
seria a vontade do indivíduo manifesta.
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Muitos suicidas não desejam certamente a morte, mas sim uma
nova vida, em que a pessoa se sinta querida, seja importante.
O final fantasiado, se fosse possível, é que aquela pessoa de
quem se imagina que veio o maltrato, se sinta culpada e com
remorso; então, o suicida como que ressuscitaria, todos se
desculpariam e a vida continuaria, num final feliz. (p. 33).
Para Cassorla (1984), isso não vai ocorrer; no entanto, poderia ser real nas
ameaças e tentativas de suicídio em que o indivíduo sobrevive. Porém, ele
afirma que as reações do ambiente são bem mais complexas e que raramente
a tentativa de suicídio modifica alguma coisa em relação ao ambiente. Pelo
contrário, o ambiente, não raramente, “reage também agressivamente ao ato
agressivo de seu membro” (p. 33-34).
Segundo Alves (1991), o suicida é um artista trágico que por lhe faltarem
recursos para contar a sua história, a única maneira que encontra é
manifestando-a em seu próprio corpo. E o silêncio que resta, seria o pedido
imposto a todos de escutar o final dessa história que é aquele mesmo: um
corpo sem vida.
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este é motivado ou não por doença mental. A literatura psiquiátrica atual tende
a classificar o suicídio como patológico.
SUICÍDIO NO BRASIL
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casos, para eliminar juntamente com a própria vida, o banzo,
isto é, aquela irreprimível saudade da pátria distante, para
sempre fisicamente perdida, à qual só tornaria a voltar graças
ao processo de ressurreição, como acreditava. (p. 123).
Como foi visto, o suicídio também pode ser considerado como questão de
honra. “Do ponto de vista ético, ao defrontar-se com situações morais tão
penosas e humilhantes, a pessoa prefere se evadir da vida” (Manhães, 1990, p.
26).
28
De acordo com Cassorla (1991) “não existe uma causa para o suicídio. Trata-
se de um evento que ocorre como culminância de uma série de fatores que vão
se acumulando na biografia do indivíduo, em que entram em jogo desde fatores
constitucionais até fatores ambientais, culturais, biológicos, psicológicos etc”
(p.20).
29
Portanto, falar de suicídio é falar de comunicação, cognição e atividade, onde
os sentimentos desempenham papel decisivo. "... o indivíduo ao morrer, passa
a viver. Ele aí, então, expressa muito de seu estado emocional e de sua
interioridade que não foi possível comunicar em vida" (Silva, 1992). Segundo a
autora, o processo de comunicação do suicídio é um questionamento de todas
as representações sociais existenciais que se tem.
30
Portanto, de acordo com Kalina e Kovadloff (1983), a reação suicida
propriamente dita, seria resultado de uma indução e não somente de uma
determinação individual; há a “macrossociedade” e as microexpressões desta,
ou seja, a família. O indivíduo suicida já é possuidor de um potencial, mas as
“microexpressões” da sociedade ensinariam de forma manifesta ou subliminar
os modelos que cada pessoa adota. Ou seja, a conduta suicida, considerada
como um gesto autônomo, seria decorrente de uma colaboração de muitos
outros fatores pertencentes ao meio social em que se vive, até mesmo da
família.
Para Kurtz (2007), mesmo um cego em termos de teoria social deve atentar
para os paralelos com os terroristas do 11 de setembro de 2001 e com os
terroristas suicidas da Intifada palestina. Segundo o autor, muitos ideólogos
31
ocidentais pretenderam atribuir esses atos incondicionalmente, com visível
apologia, ao "âmbito cultural alheio" do Islã. Ambos os fenômenos pertencem
ao contexto da globalização capitalista; são o resultado "pós-moderno" último
do próprio iluminismo burguês. A diferença das condições para o autor tem a
ver mais com a distinta força do capital do que com a diversidade das culturas.
32
CAPÍTULO II - LUTO
Freud (1974) definiu o luto como uma reação à perda de um ente querido ou de
algo significativo, investido de libido. A tarefa que o luto tenta resolver, segundo
o autor, se dá da seguinte maneira: o exame da realidade mostrou que o objeto
amado já não existe e exige que a libido abandone suas ligações com ele. A
inibição e a falta de interesse são explicadas pelo trabalho que o luto exige,
mas que quando “normal” supera a perda do objeto perdido e reinveste a libido
em outro objeto.
Contra esta demanda surge uma oposição natural, mas que pode se tornar tão
intensa a ponto do afastamento da realidade e conservação do objeto perdido
acarretar em luto patológico. Freud aponta como características do luto
patológico a auto-recriminação, a culpa pela perda, a depressão obsessiva e o
conflito devido à ambivalência da relação com o morto.
Tanto o luto como a melancolia são, segundo Freud (1974) reações à perda do
objeto amado. No entanto, na melancolia, o objeto perdido é mais emocional e
inconsciente que real, porque o indivíduo se identifica com o objeto perdido. O
ego, no melancólico, é descrito como indigno de estima, incapaz de produzir e
moralmente condenável pelo doente, que possui sentimentos de culpa e
espera o castigo e a repulsa. A perda do objeto amado constitui uma condição
favorável para surgir a ambivalência nas relações afetivas, que são
exteriorizadas por meio da culpa, por ter desejado ou ser culpado pela perda
do objeto amado.
33
Segundo Bowlby (2001) os vínculos são construídos a partir da familiaridade e
proximidade com as figuras parentais no início da vida. Eles surgem da
necessidade que se tem de se sentir seguro e protegido e acaba por ser um
movimento inato que permite manter os progenitores e descendentes unidos.
Para o autor, este sistema de vinculação contribui para a formação de atitudes
do sujeito nas relações amorosas. Quanto mais forte for o laço estabelecido
entre duas pessoas, maior será o impacto proveniente da ameaça ou ruptura
real desse laço.
Bromberg (2000) explica que existe uma diferença entre luto, enlutamento e
pesar: o luto é o conjunto de reações a uma perda significativa; enlutamento é
o processo de adaptação a essa perda e pesar é o significado interno dado à
experiência do luto.
FASES DO LUTO
Entorpecimento
34
Os sintomas somáticos mais freqüentes são, de acordo com o autor: respiração
suspirante, rigidez no pescoço e sensação de vazio no estômago.
Além disso, nesta fase o enlutado costuma ficar inquieto, tenso e em estado de
vigília constante. No entanto, sua procura de “alguma coisa para fazer” é, para
Parkes (1998), “fadada ao fracasso porque as coisas que pode fazer não são,
na verdade, aquelas que gostaria (...) o que ela (pessoa enlutada) quer fazer é
encontrar a pessoa perdida” (p.70). Também é comum que nesta fase:
Desespero
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depressão, afasta-se de pessoas e de atividades que costumava praticar e tem
dificuldade de se concentrar em tarefas rotineiras.
Recuperação e restituição
36
vários papéis que ela desempenhava. Kovács (2002) traz que quanto maior o
investimento afetivo no vínculo, maior a energia necessária para o
desligamento quando a perda acontece. A reorganização da vida torna-se
ainda mais difícil quando existia antes uma dependência física ou psíquica com
o morto.
37
- A educação para a morte recebida;
- Os acesso às informações sobre o ocorrido;
- O apoio recebido e a possibilidade de expressão dos sentimentos.
SINTOMATOLOGIA
38
LUTO NORMAL E LUTO COMPLICADO
Bromberg (2000) também traz que o luto normal tem curso e superação
previsíveis, enquanto o luto patológico foge do já descrito no que se refere à
sintomatologia e ao processo. Segundo a autora, o luto patológico implica uma
experiência de crise, “para o qual os recursos disponíveis são inadequados e
insuficientes” (p.19).
39
consegue planejar sua vida, que permanece desorganizada. Versão distorcida
e extensa das fases de procura e desespero.
40
O autor ressalta que o risco está intimamente ligado ao momento no ciclo de
vida multigeracional da família em que essa perda ocorre. E ainda nos chama
atenção para o fato de que a coincidência de uma perda com outros
acontecimentos que tragam uma renovação, alegria (um novo casamento,
nascimento de filho) podem criar tarefas e exigências incompatíveis, muitas
vezes um sentimento de ambivalência.
41
CAP. III – LUTO MATERNO
Vinculação mãe-filho
42
desejo de imortalidade; realização de ideais e de oportunidades perdidas;
desejo de renovar antigos relacionamentos; oportunidade de substituir e
separar-se da própria mãe.
Com o nascimento, a mãe, segundo Winnicott (2001, p.28), “por meio de certo
tipo de identificação, vai ao encontro do estado original de não diferenciação da
criança”. A identificação da mãe com seu bebê é importante para que se
envolva com ele, fornecendo-lhe apoio, cuidado, amor, significando e
satisfazendo assim as necessidades do filho. Segundo o autor, neste momento
inicial, não podemos pensar em um bebê como um ser separado. Tem-se uma
unidade mãe-bebê.
43
O bebê, partindo de uma não organização, vai-se organizando sob condições
altamente especializadas e, aos poucos, separando-se da matriz que propicia
tais condições (mãe). Simultaneamente a mãe vai se voltando a seus
interesses anteriores, não atendendo prontamente às necessidades do bebê, à
medida que vai podendo criar recursos para lidar com frustrações.
A perda de um filho
De acordo com Ariès (1981), no século XVII e XVIII a indiferença materna era
explicada pelo alto índice de mortalidade infantil. É possível perceber através
deste trecho que a idéia da infância era ligada à submissão e servidão, ou até
mesmo, a certa “insignificância” pois:
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Foi somente a partir do século XVIII que se começou a enfatizar a importância
da presença da mãe para a educação da criança. O conceito de infância e o
respeito por ela foram sendo construídos com o declínio da mortalidade infantil.
A realidade atual de nossa sociedade é bem diferente: a morte de um filho é
um dos acontecimentos mais difíceis de se aceitar. O investimento feito pelos
pais nos filhos também é de outra ordem e, sem dúvida, morrem menos
crianças.
De acordo com Casellato (2004), a perda de um filho implica num tipo especial
de luto, pois solicita adaptações tanto de aspectos individuais dos pais no
enfrentamento desta situação, como em adaptações na relação com o cônjuge,
no sistema familiar e na sociedade.
45
Ainda em Casellato (2004), é comum os pais atribuírem qualidades
santificadas ao filho morto, como "favorito", "melhor" ou "especial", o que pode
intensificar as experiências de luto familiar. Podem acontecer as comparações
entre os filhos vivos e o filho idealizado que morreu. Os pais também
costumam viver sentimentos ambivalentes em relação aos filhos que
"sobreviveram" pois sentem medo de investir afetivamente nestes, ou por outro
lado, passam a superproteger, com medo de perdê-los.
O luto por um filho é marcado por muita raiva, culpa e revolta, bem como pela
sensação de injustiça ou de auto-reprovação pela inabilidade de impedir sua
morte (Bromberg, 2000). As reações ligadas à perda de um filho dependem de
alguns fatores como: a relação prévia entre pais e filho, a idade do filho, as
circunstâncias da perda, entre outros. Segundo a autora, a perda de um(a)
filho(a) jovem provoca grande dificuldade entre os sobreviventes em aceitar a
morte prematura.
De acordo com Galiás (2004), no luto materno a mãe pensa e sente o filho
vinte e quatro horas ao dia, obsessivamente. A mãe é tomada pelo filho,
“exatamente como uma puérpera, quando o filho acabou de nascer.
Exatamente como os apaixonados, sem tirar nem pôr” (p.6).
46
CAP. IV - LUTO POR SUICÍDIO
A família do suicida é vítima de muitos preconceitos, seja por tê-los ela mesma,
seja por sofrer as conseqüências da discriminação social. Para a compreensão
do aspecto familiar, foram extraídos trechos da palestra “Suicídio – o Tema
Temido”, de Iraci Galiás (2004), psiquiatra, mãe de um suicida. Neste texto
foram encontrados pontos importantes, referentes à culpa, preconceito, raiva,
impotência, etc :
Vão desde “se eu tivesse escolhido outro pai para ele" até "se
eu estivesse lá naquele exato momento". No fim das contas "se
eu não o tivesse concebido" ele não existiria e, portanto não se
mataria (...) Se a mãe deu seu filho "à luz" como pode ela
aceitar que não tenha poder sobre sua volta "às trevas?"(...)
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São tão intensos e insuportáveis os sentimentos de culpa de
uma mãe que, com facilidade, tendemos a encontrar bodes
expiatórios. A questão de que e/ou quem levou o suicida a
cometer o ato trágico é uma constante em seus pensamentos.
Além de nos culparmos, sobra para todo lado (...) Ou seja, para
tentar separar no filho vítima e homicida e transferir ou deslocar
este para qualquer outro objeto, até para nós mesmos, desde
que não seja o filho morto ao mesmo tempo vítima e culpado
(...) Há essa particularidade no bode expiatório, ele não se
presta propriamente ou somente a levar embora ou expiar a
nossa culpa. Sua maior função é levar embora a culpa do
suicida, é expiar levando embora o homicida nele contido (p.8).
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possível entrar em contato com o alívio. É inclusive possível se
perceber que para o próprio paciente pode ter sido "melhor",
fala-se que finalmente ele "descansou", como que se percebe
que a morte ali era a única forma de um grande sofrimento
para o doente e para toda a família chegar a um fim. Não
temos esse tipo de compreensão no caso do suicídio. Vemos
às vezes pessoas que passam vários anos de sua vida
tentando se matar, como se fosse assim um "suicida crônico".
O alívio advindo natural é vivenciado como culposo, precisando
às vezes ser até negado (p.10).
49
com sua própria culpa, é freqüentemente alvo de suspeita da sociedade como
sendo o responsável pela morte do outro.
50
CAP. V - METODOLOGIA
51
daquilo que é explícito). Desta forma, a interpretação psicanalítica promoveria
uma ruptura do campo, ou seja, um abalo nessas significações pré-existentes.
Desta forma, analisei o discurso das mães enlutadas da forma mais complexa
e profunda possível, a fim de alcançar os elementos secundários, os
significados que estão além da observação, em nível inconsciente.
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A) PARTICIPANTES
B) INSTRUMENTOS
Entrevistas
Foi realizada uma entrevista semi-dirigida com cada participante. Alguns temas
para serem abordados na entrevista foram desenvolvidos a partir da literatura
pesquisada, mas serviram apenas como guia e não como roteiro diretivo.
-Nome
-Idade
-Estado civil
-Profissão
-Número de filhos
-Apresentação do filho que se suicidou: Nome, idade, há quanto tempo morreu,
posição entre os outros filhos.
-Como era a relação com o filho nos vários momentos de sua vida?
-Como estava a relação familiar na época em que ele morreu?
-Ele deu indícios de que estava pensando no suicídio?
-Como morreu? Como foi imediatamente quando aconteceu?
-Como se sentiu a respeito disso?
-Reações físicas, alterações emocionais?
-Como foram os rituais (enterro, velório, missa)?
-Possui alguma religião?
-Recebeu apoio familiar e de amigos?
-Com quem pôde contar nos diversos momentos?
-Como foi o primeiro ano após a perda?
53
-Procurou ajuda psicoterápica?
-Como é a vida hoje? Existem momentos em que lembra mais do filho?
-Como é a relação hoje com o filho que morreu?
-Como é a relação familiar e social?
-Como está se sentindo hoje? Tem alguma atividade de lazer?
C) PROCEDIMENTO
Seqüência
Foi apresentado às mães o tema da pesquisa, o motivo pelo qual foi
encaminhada, com o objetivo de delimitar o “setting”. Apresentei-lhes, em
seguida, o termo de consentimento informado e esclarecido (ANEXO 1) para
ser lido e assinado caso concordassem em participar da pesquisa.
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D) PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DOS RESULTADOS
Entrevistas semidirigidas
As entrevistas foram analisadas qualitativamente, utilizando-se o referencial da
Psicanálise para interpretação dos dados. Analisei o processo de elaboração
de luto de cada mãe a partir da interpretação do conjunto do material coletado
e da revisão da literatura realizada. Num primeiro momento tive a intenção de
ler e tomar contato com todo o material coletado de cada participante da
pesquisa a fim de delimitar categorias de análise, que nortearam a
investigação, direcionando meu olhar para aspectos que mais chamaram
minha atenção. Estas categorias ou temas foram qualitativamente analisados,
no sentido de compreender conteúdos latentes e processos inconscientes do
processo de luto pelo suicídio de um filho. Como afirma Bardin (1979, p.105) "o
tema é uma unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto"
ou "um feixe de reações (que) pode ser graficamente apresentado através de
uma palavra, uma frase, um resumo" (Minayo, 1998, p.208).
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CAP. VI - RESULTADOS
MARIA
Maria tem 51 anos e é casada há 15 anos com seu segundo marido. Ela é
enfermeira obstetra, mas atualmente está afastada do trabalho por orientação
médica.
Maria escolheu iniciar sua história de vida a partir de seu primeiro casamento,
aos 15 anos. Ela contou que teve quatro filhos (Sofia, Simone, Rodrigo e
Eduardo) e um aborto provocado por falta de condições financeiras. Separou-
se do marido e lutou para trabalhar, cuidar dos filhos, estudar e ingressar na
faculdade de enfermagem.
Conheceu seu segundo marido, com quem teve uma filha chamada Miriam.
Rodrigo e Eduardo, filhos do primeiro casamento, começaram a se envolver
com drogas aos 13 anos. Maria contou que tentou “tirar os filhos das drogas”,
mas não conseguiu (“O Rodrigo e o Eduardo logo na criancice deles foram
para as drogas ... Eu tentei tirar ele (Rodrigo) das drogas de todos as maneiras
... tentei, tentei, levei até para internar, mas ele não quis e ficou assim essa
luta, né? E aí ele foi para as drogas, ele se afundou nas drogas ... e o Eduardo
foi junto”).
Seu filho Rodrigo acabou sendo assassinado por traficantes há 10 anos,
quando tinha 20 anos, sem saber que sua namorada estava grávida. Segundo
Maria, Eduardo entrou em choque por não se conformar com a morte do irmão
e acabou se tornando morador de rua.
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Depois que Rafaela nasceu (filha de Rodrigo), a mãe da criança, que também
estava envolvida com drogas, acabou sendo assassinada.
Maria recebeu do juiz a tutela da neta, que hoje está com 9 anos (“A Rafaela tá
grande, tá bonita... e assim, a história de vida dela... eu conto tudo para ela,
não escondo nada. Ela me chama de mãe, meu esposo de pai...Ela é muito
apegada com a gente”).
Em 2005, Miriam, sua filha mais nova, se suicidou com veneno de rato,
grávida, aos 21 anos. Maria não sabe o motivo que fez a filha querer se matar.
Ela busca respostas, mas a ausência delas lhe proporciona tristeza e
desamparo (“E não sei o que perturbou muito ela...não sei se pode ter sido
esse namorado...E depois, no atestado de óbito dela estava escrito que ela
estava com abdome gravídico, tava grávida, né? E aí a causa-morte dela não
sei se foi dela ter decidido a vida dela ... agora eu me pergunto ... não sei se foi
a gravidez, não sei se foi a questão amorosa, não sei se foi a vida dela que
tava toda embaralhada, bagunçada, não sei se ela tinha depressão, né. Não
sei...”).
O discurso de Maria demonstra que apesar de ter aceitado a realidade de
tantas perdas, ainda não se ajustou completamente à vida sem os filhos.
Sente-se exposta aos olhares sociais, que revelam sua própria tristeza,
frustração e decepção diante dessas perdas.
Após receber a notícia da morte da filha, Maria continuou trabalhando como
enfermeira no hospital, mas depois de um ano procurou uma psiquiatra que
diagnosticou que Maria estava com depressão e achou melhor afastá-la
temporariamente de seu trabalho (“Eu trabalhei por quase um ano depois, né.
Mas, daí eu não agüentei porque eu me emocionava muito, trabalhava com
gente, via morte, via as pessoas morrer, e aquilo me machucava muito ... e eu
estou afastada até hoje. Mas agora que eu estou querendo pedir pra ela -
psiquiatra - pra mim voltar, né?”).
Gradativamente Maria está se organizando e encontrando forças para retomar
sua vida.
57
ELISA
Elisa tem 72 anos e começou a contar sua história de vida a partir do presente
e foi fazendo uma emocionante retrospectiva comparando sua juventude com a
juventude de hoje (“Hoje vocês já estudam cedo, já começam a vida com as
suas ocupações...no meu tempo não. No meu tempo realmente a moça era
educada pra casar. Veja, eu me casei com 17 anos, então eu não acabei nem o
colegial”).
Elisa contou que está “na idade das coisas mais agradáveis” (“Então, talvez um
pouco egoisticamente, mas eu acho que eu tenho direito, afinal, eu já estou
com os filhos casados, já estou com os netos moços”) Também contou que faz
exercícios físicos e aulas de pintura com um grupo que considera muito
agradável.
Casou-se duas vezes, com seu primeiro marido aos 17 anos, com quem teve
três filhos: Carlos, Marina e Rebeca. Ficou viúva e casou-se novamente.
Contou que com seu segundo marido ficou casada durante 14 anos e hoje,
após uma separação que durou 3 anos, estão juntos novamente.
Elisa diz que sua “história no tempo foi um pouco invertida”. Primeiro ela teve
que fazer o que era esperado na época: casar, ter filhos e esperar que eles
crescessem e não precisassem tanto dela, para então estudar, entrar na
faculdade (“Porque realmente eu fiquei fascinada, com os estudos, porque
estudar mais velha é muito gostoso, pega com um outro jeito. E tive contato
com juventude, que é da minha natureza, eu gosto, gostava de ver como a vida
da mulher estava muito diferente da que eu tive”).
Elisa contou sobre sua luta para conseguir estudar e trabalhar. Apesar de
gostar muito de atividades intelectuais, isso nunca foi muito incentivado pelos
pais nem pelo marido (“Eu sempre li muito, desde menina. E era tão engraçado
aquele tempo, porque, por exemplo, se eu estivesse lendo, tinha que ser meio
escondido, porque mamãe falava: Elisa, venha bordar! Vai andar de bicicleta,
fazer exercício!”).
O estudo tardio de Elisa possibilitou um contato com outras gerações, já que
suas colegas de faculdade tinham a idade de suas filhas. Afirma que esse
contato era fascinante: além do estudo fazer parte de sua vida, o que tanto
sonhara, Elisa podia acompanhar as mudanças, entre as gerações, que
58
aconteciam na vida da mulher. O estudo passou a ser tão importante em sua
vida que era recomendação médica continuar os estudos (“Eu consegui
sublimar minha vida através de estudo, através de faculdade, tanto que meu
médico dizia para eu não parar de estudar”).
Mesmo com muito preconceito e resistência de seus pais e seu marido, ela
seguiu seu sonho. Seus filhos, no entanto, sempre a apoiaram.
Elisa contou que tinha que vencer uma estrutura férrea que havia naquela
época porque era uma estrutura que veio de sua mãe, continuou com seu
marido (“porque mamãe era uma mulher maravilhosa, rica, uma personalidade,
mas carregava todas aquelas coisas... Então eu fui criada com uma coisa que
hoje a gente não faz com os filhos... Eu tinha um dever a cumprir. Havia esse
dever que se resumia ao casamento e aos filhos. Isso era tão forte que a gente
se esquecia mesmo da gente, do que a gente gostava, do que a gente queria”).
Quando entrou na faculdade: “Eu fui contar pra mamãe ‘mamãe olha que
bárbaro!’... Mamãe ficou assim: ‘mas minha filha, você pensou bem? Você está
descuidando da educação de seus filhos!’. Essa foi a frase dela! No íntimo ela
achava bárbaro, mas ela tinha medo da liberdade da mulher, como ela era
muito forte... quer dizer, ela mandava na casa, no papai, na gente, nos netos,
em tudo, mas ela tinha medo da mulher fora de casa, era uma coisa da
geração dela”.
Elisa também salientou que “o lado da mulher na vida é mais rico do que do
homem, mas também é mais difícil (...) Os homens têm razão em ter medo que
a gente estude, porque é como abrir a cortina de um teatro, e você vê o
mundo…”.
Elisa passou por muitos momentos marcantes durante sua vida. É uma mulher
que sempre lutou para conseguir o que queria, e foi feliz nas suas conquistas.
Por isso, sua vida é marcada por acontecimentos importantes, como sua luta
para estudar, trabalhar e ter autonomia. Mas o que mais marcou sua vida foi a
morte do filho Carlos, que se suicidou há cinco anos. Ela contou sobre a dor
dessa perda e como fez para superá-la (“Isso cortou a minha vida. E corta pra
sempre”).
Seu primeiro casamento foi marcado por muita dificuldade, segundo Elisa “ele
era um homem extremamente gentil e extremamente violento”. Por isso ela
tentava manter a harmonia familiar a todo custo, mesmo violentando a si
59
própria. Elisa contou que sofreu um desgaste emocional tão grande, que fez
com que ela passasse algum tempo em cadeiras de rodas. Dessa sua
experiência, Elisa dá um conselho: “sempre que você tiver que tomar uma
posição na sua vida deve impor os seus limites com calma. Quando você for
levada a ceder no que você é, no que você deseja, no que você acha certo,
nunca admita ser violentada na sua índole, nos seus sentimentos. Saiba impor
os seus limites!”
Elisa é uma senhora inteligente, culta e de muita vitalidade. Possui muitos
recursos e busca respostas diante dos obstáculos que lhe são apresentados.
Vivenciou o momento mais difícil de sua vida (o suicídio do filho) com
serenidade e embora a tristeza profunda, sente-se fortalecida por ter
conseguido um sentido mais amplo e duradouro de existência.
INÊS
A terceira entrevista foi mais curta que as anteriores e durou cerca de quarenta
minutos, pois a entrevistada (Inês, 64 anos, psiquiatra) tinha um compromisso.
Inês contou que a primeira perda que sofreu na vida foi aos 10 meses de idade
quando seu pai morreu (“Não é fácil para ninguém. Eu também perdi meu pai
muito cedo, com 10 meses...Embora perder os pais seja mais natural que
perder os filhos, não do jeito que foi para mim...”). Também contou que sua
mãe, que ainda estava na fase de “apaixonamento”, desenvolveu um luto
patológico, que segundo Inês, não foi nunca completamente elaborado.
Inês teve cinco filhos: dois do primeiro casamento (uma menina e um menino)
e três filhos do segundo casamento. Contou que seu segundo filho do primeiro
casamento se suicidou com um tiro há nove anos. Ele se chamava Fernando,
tinha 34 anos e morava em Florianópolis com a mulher e o filho de 3 anos.
Sobre a elaboração desse luto Inês comenta: “É como uma ferida na pele que
para cicatrizar não se pode ficar cutucando toda hora, mas também não se
pode deixar de mexer, olhar, cuidar. As pessoas têm diferentes forças para
reagir aos traumas...”.
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ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Negação e Choque
A princípio Elisa negou a morte do filho e não quis acreditar nas evidências dos
exames e na palavra do médico. Esta negação da morte pode ser entendida,
segundo Bromberg (2000), como uma forma de defesa contra um evento de
difícil aceitação. Ela descreveu o que sentiu quando o médico veio dar a ela a
notícia da morte cerebral do filho:
61
‘mas eu quero que o senhor saiba que eu não confio no senhor, eu não
acredito em nenhum desses exames!’ Porque era inacreditável, de um dia pro
outro, em horas, acreditar numa coisa dessas (...) E quando os médicos me
deixaram entrar e eu vi que ele estava corado, respirando forte, o corpo ali,
quente...Não dava para acreditar! É tão forte a ligação...foi uma experiência
muito triste (...) E eu falava: Carlos, luta, abra os alhos!” (Elisa).
“Eu não sei da onde que eu tirei tanta força pra ajudar os dois (filhos) no IML.
Eu cheguei a ver eles nus, mortos, inertes e eu consegui vesti-los, né? (...) Aí
quando foi enterrar ela, eu tive que dar uma força para ele (marido) agüentar.
Eu falava ‘calma, já foi mesmo, fazer o quê’. Eu tive que dar uma força de tão
mal que ele tava... ele gritava... Precisou a gente dar um socorro para ele, pela
reação que ele teve” (Maria).
Inês não contou na entrevista como foi essa primeira fase posterior ao suicídio
do filho.
Procura
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“Eu sonhei, sabe pontão de praia? Porque eu vivi na praia, com meu pai, minha
mãe e com Carlos, ele fazia surf. E eu sonhei que tinha uma competição de
surf e que o Carlos tinha ido. É uma espécie de barquinho que levava as
pranchas. E todos foram. E aí todo mundo começou a ficar preocupado porque
o Carlos não voltava. E o sonho era lindo, colorido, azul, praia, mar, geralmente
eu sonho colorido o mar. E eu comecei a ficar preocupada, porque realmente
ele estava demorando um pouco. Daí eu desci uma escadinha e tinha uma
prancha meio quebrada, parecia um barquinho, mas tava quebrada. E peguei o
barco e fui atrás, procurar. Quando eu já estava bem longe, no alto mar, eu vi
que ele já estava voltando, daí eu voltei rápido, subi e fiquei lá esperando...já
tava tranqüila, porque ele tava voltando. E quando ele chegou, subiu correndo
a escada e ria, e falava: ‘Mãe, você é louca mesmo! Como você se mete nesse
barco quebrado no fundo do mar!’. Sabe, eu sonho muito alegre com ele
porque foi tão brutal a perda que eu tive” (Elisa).
Maria também descreveu uma necessidade de procurar pela filha e pela causa
de sua morte nos depoimentos de amigas da faculdade e coordenador do
curso que Miriam fazia:
“E aí eu fui fazer um levantamento nas notas dela na faculdade, que tava fraco
(...) As meninas falaram que não era o perfil dela ter feito o suicídio, e que ela
era uma menina muito alegre(...) aí eu fui lá falar com o coordenador do curso
dela, porque eu não me conformava...não me conformava” (Maria).
Desespero
“Eu fui pra São Roque, eu tenho uma casa lá, no mato, e eu fiquei uns 6 meses
lá, sozinha. Eu não tinha condição de falar com as pessoas. Eu literalmente
acabei. Nem atendia telefone, só minhas filhas e meus netos... porque você
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tem uma caída física e emocional. Fiquei muito frágil, tão fraca que eu não
conseguia andar no jardim. Cai tudo!” (Elisa).
Maria contou que seu desespero foi tão grande depois do assassinato do filho
e do suicídio da filha que ela chegou a pensar em se matar, mas sua fé em
Deus e sua religião a impediram:
“Aí pronto, parece que o mundo caiu na minha cabeça, eu fiquei desesperada...
(...) eu passei muito, muito tempo...que assim, eu quase tirei minha vida
também...” (Maria).
De acordo com Parkes (1998) o suicídio pode ser considerado pelo enlutado
como um meio de reunir-se com o morto ou como uma maneira de pôr fim à
infelicidade no presente. Freitas (2000) descreve o comportamento suicida do
enlutado como uma forma de identificação com a pessoa que se matou.
Recuperação
“Às vezes vem o ânimo, mas depois eu desanimo... como se fosse uma onda
no mar: vem... volta... vem... e volta...” (Maria).
Elisa também contou que ficou completamente sem força, mas depois que
passou pelo trauma:
“Eu tive uma ajuda fantástica, tanto que consegui ser forte novamente e fui
devagarzinho me recuperando. Agora eu mudei, eu sei que mudei” (Elisa).
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Sobre a recuperação e elaboração do luto, Inês comentou:
“Não tem como ficar do jeito que você estava, andando no ritmo que você
andava, não é? Até para não cair você precisa dar uma corridinha, porque
mexe com a dinâmica... Com uma porrada o ego mergulha no self e ele pode
ficar preso, que é o luto patológico, que é o TEPT (transtorno de estresse pós-
traumático), como ele pode sair de lá, depois de ter sofrido muito, mas
fortificado. Igual ele não fica...” (Inês).
Reações físicas
“Eu tive um enfarte justamente por causa de todos estes desgastes, minha
pressão começou a subir... Mas a gente se recupera, até o meu coração eu
recuperei, não tem nem marcas!” (Elisa).
“Eu tenho uma manifestação nervosa, você sabe o que é psoríase? É uma
manifestação emocional que a pele fica... dá pra você ver aqui? Isso aqui fica
cheio de casquinha, eu comecei a coçar, e começou a subir, começou a
aparecer nas pernas, nas costas...” (Elisa).
O sonho
Tanto Maria como Elisa relataram sonhos de enlutamento com o(a) filho(a)
morto(a). Segundo Parkes (1998), é comum sonhar com o falecido. Eles são
importantes no diagnóstico do enlutado ao longo do processo do luto, pois
podem indicar sentimentos de culpa, ansiedade, auto-acusação, etc. O autor
comenta que o sonho pode ser feliz ou triste, mas haverá sempre um triste
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despertar. “Infelizmente, o luto e o resgate da pessoa amada não pode ser
resolvido, nem mesmo em sonhos” (p.86).
“Ele falou que tinha comprado o caixãozinho branco para ela que eu queria...
porque eu tinha sonhado com uma criança e no sonho eu vi um caixãozinho
branco...” (Maria).
Rituais de luto
“Mas assim... que nem eu te falei, quando eu me lembro que ela está lá
debaixo do chão se desfazendo, me dá uma angústia, me angustia muito. Eu tô
pensando como é que vai fazer para a exumação, como é que vai ser minha
reação... Do Rodrigo eu guardei uma vértebra, guardei um dente e guardei uma
mecha de cabelo. Dela também eu vou ver se eu guardo algum ossinho dela lá
em casa”. (Maria)
“Fiquei firme no velório, teve a missa e no dia seguinte eu fui para São Roque”
(Elisa).
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Reação de aniversário
“Sempre lembro... aniversário é difícil... Natal também é uma coisa difícil! Não
tem mais festa, com troca de presente. É forçar demais! É o tal limite. Eu agora
faço uma reunião simples de família. Pra que me violentar tanto?” (Elisa).
Contra-Natura
“Está suposto que os filhos enterrem os pais e não que os pais enterrem os
filhos. Então, aí eu acho que vai um movimento contra a natura, que já... além
do luto pela perda, tem um elemento altamente estressante que é o contra-
natura... algo trágico... não é natural... Acontece, mas não é esperado” (Inês).
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“Aí eu falei assim: Ai Meu Deus, não foi isso que o senhor me prometeu (...) O
médico me deu a notícia que tinham perdido ela mesmo, né? Ele chorou
também...ficou muito chateado... perder uma jovem, né? (...) Foi uma carga
muito pesada perder dois filhos ” (Maria).
Circunstância da perda
“Agora mais especificamente o luto materno por suicídio, você junta o luto, o
não natural, mais um tema tabu, que é o suicídio em si. Então, você me
pergunta sobre essa elaboração... é um processo muito trabalhoso, ainda mais
por suicídio do filho. Eu não estou querendo classificar intensidades ou graus
de trabalho que dão lutos maternos...” (Inês).
O estigma
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nossa não tem salvação’. Aquilo para uma mãe é a pior coisa, porque a mãe já
está sofrendo pela separação e ainda vêm falar que o espírito não tem
salvação (...) Então, eu faço o possível para não estar chorando para não sair
com o rosto vermelho por aí. Parece que as pessoas ficam comentando:
Nossa; tava chorando! O que que será que aconteceu com ela?” (Maria).
A culpa
“E não sei, às vezes a gente fica pensando que pode ter sido uma imprudência
minha, uma falha, da minha parte, talvez se eu tivesse ficado mais em cima,
poderia ter evitado...mas...não sei...” (Maria).
“Foi muito difícil... sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão
bem como parecia... quase desisti de tudo... mas, agora não...sinto muita
saudades...” (Elisa).
“Eu lembrei de um casal amigos de meus pais que tinha um filho único que foi
fazer faculdade na Inglaterra. Então eu e meu marido nos tornamos muito
amigos desse casal e eles acabaram adotando minha família e a gente adotou
eles. Era um senhor e uma senhora muito idosos...Eu aprendi muito com essa
senhora, e ela me mimava muito, talvez como forma de compensar o filho que
não estava perto para ela mimar...Ela era um encanto, muito delicada,
generosa. E ela sabia que eu gostava muito de fruta-do-conde e ela comprava
na feira na estação certa, porque naquela época não é como agora que tem
fruta o ano inteiro, e me dava só porque sabia que eu gostava...eu estava
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grávida, tinha criança pequena...e íamos bastante na casa dela...Ela sempre
guardava a fruta do conde para mim. Eu sabia que ela também gostava muito
de fruta do conde, e o filho que dela que estava na Inglaterra amava. Só que eu
vinha e ela dava para mim e eu via que ela não comia. Ela falava “leva para
você”, e eu dizia “mas a senhora gosta” e ela sempre insistia para eu levar. Até
que um dia eu falei “Não! A senhora vai me explicar por que não come; a
senhora gosta!” E ela me explicou que ao saber que na Inglaterra não tinha
fruta-do-conde e por isso seu filho não podia comer a fruta que tanto gostava,
“então eu não como” (risos). Então tem isso, né? Se ela comesse a fruta se
sentiria culpada, porque como é que ela se permitiria comer algo que gostava
muito, e que só dava uma vez por ano, se o filho estava privado? No luto
materno o filho também está privado de tanta coisa, no imaginário, e você vai
comer alguma coisa que seu filho gostava? É impossível não lembrar, não se
sentir culpada. Se você lembra de algo que um filho vivo gosta de comer, é só
mandar para casa dele. O meu neto uma vez me perguntou:”Vovó, será que
no céu tem purê de batata para o papai? Porque se não tiver e ele ver a gente
comendo, ele não vai ficar com vontade?” (Inês).
“Se a culpa no suicídio do filho é inevitável, a falsa culpa também é, porque até
de ficar bem você se sente culpada” (Inês).
Parkes (1998) comenta que a tentativa de encontrar alguém para culpar assim
como a tentativa de encontrar uma causa que pudesse evitar a morte de um
ente querido faz com que o enlutado retome o controle da situação. O
pensamento de que a morte da pessoa amada foi acidental é inaceitável, pois
revela a impotência diante da perda. Assim, segundo o autor, é mais fácil
creditar a culpa a alguém (mesmo que seja a si próprio) que acreditar na
impotência diante dos fatos.
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Experiência com luto anterior
“Foi uma carga muito pesada perder dois filhos... eu me lembro que quando o
Rodrigo morreu eu fui deixar de me emocionar, chorar, depois de uns 3
anos...e depois veio o suicídio...” (Maria).
Durante a entrevista Maria abriu uma carta escrita por ela na época em que
Rodrigo foi assassinado. O conteúdo da carta revela sua tristeza e luto pela
morte do filho:
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Elisa também descreveu perdas anteriores importantes, como a de sua mãe e
de seu primeiro marido, que podem ter dificultado ainda mais a elaboração do
luto pelo suicídio do filho:
“Quando a mamãe morreu (...) eu tive um estresse emocional que foi tratado
com análise, não tomava remédio nenhum! Tá vendo aqui uma deformação
óssea aqui na minha mão? Isso eu tive aos 40 anos, nos pés, na coluna, até no
maxilar!” (Elisa).
“Conspiração do silêncio”
Segundo Freitas (2000), quando uma mãe perde um filho por suicídio, há uma
tendência tanto da mãe quanto dos demais familiares em se manterem calados
sobre as circunstâncias da morte. A “conspiração do silêncio” dificulta a
elaboração do luto, porque a comunicação e expressão dos sentimentos são
“engavetadas”.
“Não é educado abrir espaço para o tema do suicídio...e isso de fato atrapalha
muito, porque há momentos em que a pessoa enlutada com um tema tão difícil
quer um interlocutor...e se já é difícil falar, para o interlocutor ouvir sem dar um
jeito de engavetar...Isso dificulta a elaboração...É como uma ferida na pele que
para cicatrizar não se pode ficar cutucando toda hora, mas também não se
pode deixar de mexer, olhar, cuidar” (Inês).
“Eu queria no início falar muito sobre ela, mas ele (marido) não queria tocar no
assunto; eu queria e ele não. Desde então pouco se toca, pouco se fala, mas
tem dias que eu percebo que ele está amargurado. Não sei porque, mas ele
não gosta... Eu penso que como era uma filha única que ele tinha, ele ficou
bastante magoado... Mas minha relação com ele é essa. Ele não gosta de tocar
no assunto e eu também respeito...pouco se fala...” (Maria).
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Segundo Freitas (2000), evitar lembranças sobre a pessoa falecida pode
representar uma solução a curto prazo se, ao longo desse processo de luto, o
enlutado consegue relembrar aos poucos da pessoa que morreu. A autora
ainda explica que a persistência em evitar esta lembrança pode indicar um
complicador do luto.
Aceitação da perda
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só
executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do
rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não
saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para
estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.
(Guimarães Rosa, A terceira margem do rio).
“E eu aceito a separação do meu filho, mas não o fato de ter perdido ele. E de
tal maneira eu trabalhei isso, li muito... Eu cheguei a um ponto em que eu não
tenho a presença, mas eu tenho ele vivo. E é tão forte que nesse sonho que eu
contei, às vezes eu até dou risada, eu precisava conservar alguma coisa, nem
que fosse essa ligação. No dia que eu passei o primeiro e-mail, eu imaginei o
Carlos rindo de mim!” (Elisa).
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de ser de cada um. Eu acredito que muitas pessoas renasçam por uma lógica,
por uma aceitação” (Elisa).
Aparentemente o registro dos fatos, seja pela escrita ou pela fala legitimam seu
sofrimento e são maneiras que Maria encontrou de processar o que lhe havia
acontecido.
Religião
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“Eu me apoio muito na força de Deus e tenho tido muito conforto, muito apoio...
Aconteceu porque foi chegada a hora, porque Deus quis. Para tudo tem um
tempo na nossa vida. E isso traz um grande conforto e...essa foi a vontade de
Deus. Então se é a vontade de Deus, a vontade de Deus é boa. Então isso traz
um conforto” (Maria).
Atividades
Elisa contou que procura fazer apenas atividades prazerosas já que agora com
os filhos casados e os netos crescidos se dá o direito de fazer apenas o que
lhe agrada. Ela realiza atividades físicas diariamente:
“ (...) porque ocupar me faz bem! Se eu não me ocupo, o Sol escurece” (Elisa).
“Então o meu dia: de manhã eu procuro mais atividades físicas, porque depois
de uma certa idade a gente guarda todas as heranças de família, aquelas que
não são muito boas: diabetes, sabe? E andando, saindo, a sua cabeça fica
aberta...” (Elisa).
“...E uma coisa que eu me ocupo muito, que me distrai muito é a pintura. Hoje à
tarde eu tenho aula...eu estou sempre ocupada com isso. Primeiro porque você
tem um contato com pessoas, o que é muito bom. É um grupo de senhoras,
algumas mais moças, outras com mais idade, mas por sorte é um grupo muito
agradável, então a prosa é muito gostosa ... De manhã eu sempre falo ‘hoje eu
vou fazer isso’ e faço. ...Sabe, agora eu estou aprendendo a usar a internet,
estou lutando, tem horas que dá vontade de jogar o computador no chão. Mas
estou fazendo aulas de computação, e sou aquelas alunas chatas, pois tudo eu
quero saber! Hoje eu tenho aula e vou saber o que é o tal do msn. Um dia eu
mandei um e-mail com um texto bonito para minha filha, e ela me respondeu
falando que gostou muito e que estava feliz das minhas novas aprendizagens!
Aí eu mandei um e-mail para ela falando que eu tinha gostado bastante e que
qualquer dúvida que ela tivesse, era só me perguntar (risos)!” (Elisa).
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Maria também falou sobre as atividades que gosta de praticar no dia-a-dia:
“Eu vou para a igreja, venho; às vezes eu vou na chácara ou viajo para o
interior. Hoje mesmo eu vou num salão de costura, e vão várias mulheres. Uma
faz crochê, uma faz tricô, a gente faz um serviço voluntário...eu gosto de ir”
(Maria).
Elisa relatou que se sente amparada por sua família e ressalta o quanto esse
apoio é fundamental. Após a morte do filho, passou a dar mais valor à relação
com a família e adora a companhia dos netos. Ela diz que sua família é o que a
impulsiona e alegra. A ligação com todos os seus familiares é muito forte e ela
tem a preocupação de manter essa união, reunindo as filhas e os netos sempre
que pode.
Maria sofreu uma ferida narcísica gerada pela perda dos filhos. Ainda assim,
sua função materna e seu senso de continuidade na vida parecem ter sido
resgatados, em parte, com o cuidado da neta.
Tratamento
“Eu comecei um tratamento com uma grande psiquiatra, e ela é uma cabeça
fantástica. Tanto que estou lendo um trabalho dela, ela esta escrevendo um
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trabalho, uma beleza! Tinha que ser uma pessoa assim pra me ajudar. Ela é
altamente qualificada e é uma pessoa maravilhosa... Esse texto dela é uma
beleza, posso até passar uma cópia pra você depois (...) Eu procurei minha
saída dentro de mim” (Elisa).
Casamento
“Mas, depois do suicídio, meu ex-marido, que nesses três anos não se
conformava com a separação, foi muito, muito dedicado e ele sofreu tanto com
a perda do Carlos que isso também me pegou muito; então nós voltamos e foi
bom... ele é uma pessoa inteligentíssima, muito companheiro, nós
conversamos muito, viajamos no fim de semana...” (Elisa).
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Também no caso de Maria, as diferenças existentes na forma com que ela e
seu marido lidaram com o suicídio da filha não prejudicaram, segundo ela, o
relacionamento. Maria relata que logo após a perda da filha ela tentou
conversar algumas vezes com o marido, que não quis tocar no assunto. Ela
conta que respeita a forma com que o marido reagiu à perda:
“Com meu marido graça a Deus sempre esteve tudo bem. Eu queria no início
falar muito sobre ela, mas ele não queria tocar no assunto (...) Ele não gosta de
tocar no assunto e eu também respeito... pouco se fala...” (Maria).
Inês foi a única das três mães entrevistadas que relatou uma experiência
anterior que a ajudou a elaborar o luto pela perda do filho que se suicidou:
“Minha mãe passou por um luto patológico, porque ela perdeu o marido na fase
de apaixonamento e não conseguiu se recuperar direito nunca. Eu tinha só 10
meses, mas cresci com esse pavor de ficar presa num luto de alguma
situação...Como tudo pode ter a sua serventia, para mim isso teve também,
sabe? Eu sou “luto-patológico-fóbica” (risos). Então eu já pensava muito sobre
esse tema da morte não natural, da morte precoce acontecer perto de
mim...rolou dessa forma na minha vida...”(Inês).
Tempo
O tempo foi descrito de maneira muito bonita nas entrevistas como sendo um
fator fundamental para a recuperação depois da morte de um filho:
“O tempo é como se fosse uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa,
aquela tristeza, aquela angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura
desbotando....assim acontece com a gente...” (Maria).
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“Eu acho que o lado psicológico, só com o tempo...o tempo cura muita coisa. É
claro que você vai lembrar, ter saudades, mas não com tanta dor...” (Maria).
“Por isso que o tempo pra mim é um eterno presente agora, o tempo mudou
pra mim” (Elisa).
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. (…) A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto
de representações que povoam nossa consciência atual. (Ecléa Bosi,
Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos).
Foram selecionados alguns trechos das entrevistas com Maria, Elisa e Inês que
mostram como novos significados foram dados à experiência vivida pela morte
do(a) filho(a):
“Não que você é forte, mas parece que você pega uma solidez, uma firmeza. O
que tiver que acontecer, vai acontecer...eu nunca achava que ia perder um filho
e perdi dois...E eu acho que a morte é sofrida porque é um segredo de Deus.
Do outro lado prá lá é segredo de Deus, não pertence mais a nós...a morte é
um desconhecido do homem...tem coisas para nós que não interessa a
resposta...” (Maria).
“Outro dia convidaram ela para dançar em um teatro e ela dançou uma música
lindíssima, clássica moderna, ela estava sofisticada com o cabelo comprido,
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maquiada, e vendo ela dançando no palco, eu passei por uma experiência
incrível. Eu via a minha neta dançar, eu via a minha filha e me via! Foi tão forte
isto que eu falei para minha filha ‘só isto já justifica toda a minha vida!’ E eu
disse, vendo minha neta dançar foi uma coisa tão forte porque ela virava e eu
me via, ela parece comigo, e via minha filha. E eu falei: Isso é o que é a vida!”
(Elisa).
“A vida tem várias primaveras, vários verões, vários outonos e vários invernos!”
(Elisa).
“Você já pensou que existe ex-marido, ex-namorado, mas não tem ex-filho, ex-
mãe. Eu não deixei de ter um filho porque ele morreu. Eu tive 5 filhos, e não é
que antes eu tinha 5 e agora eu tenho 4; eu tenho quatro vivos e um morto. Ele
continua ocupando um espaço na sua vida, falam dele...carne moída, purê de
batata, arroz, feijão e salada de tomate, todos em casa lembram dele...não só
eu. A empregada quando faz essa comida comenta: hoje é a comida do
Fernando” (Inês).
“Tem um filho que morre, mas tem uma outra forma de vida, a imagem dele
fica...” (Inês).
80
Próximos tempos…
Após a morte de seu filho, Elisa comentou que quase desistiu da vida e passou
um tempo completamente sem força; mas que agora a sua expectativa de vida
foi toda transferida para a família, em particular aos netos. Embora ela se
interesse em manter a vida ocupada, a família é realmente o que a preenche:
“Eu preciso pensar que tenho que continuar, que ainda tem muita coisa para
fazer! Nunca acaba... e eu acho que envelhecer é uma coisa tão natural da
vida, não pesa o envelhecer” (Elisa).
81
acontecer...porque depois eu penso: caramba, a gente não é uma ilha para
viver isolada, né? E também depois eu penso: Será que vale a pena fazer um
mestrado, ficar queimando meus neurônios depois de tudo isso?” (Maria).
A busca de um sentido
Elisa contou que leu um livro que a ajudou a elaborar a morte de seu filho:
“Eu acredito que muitas pessoas renasçam por uma lógica, por uma aceitação,
e tem um livro que você deveria ler que chama Em busca de Sentido (...) Esse
livro me ajudou muito, porque ele lida com a essência do amor”. (Pega o livro e
lê alguns trechos):
Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio - Você sabe, ele esteve
num campo de concentração - vadeando pela neve (...) nenhum de nós
pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só
pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo
as estrelas (...) converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a
sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e, tanto
faz se é real ou não a sua presença, seu olhar agora brilha com mais
intensidade que o sol que está nascendo (...) Continuo falando com ela, e ela
continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa
ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a
existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência
espiritual da pessoa amada, a seu “ser assim” que a sua “presença” e seu
“estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física em si e
independentemente de seu estar com vida (...) As circunstâncias externas não
conseguiam mais interferir no meu amor, nas minhas lembranças e na
contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela
ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este
conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação
amorosa - Não é maravilhoso isso?”
82
CAP. VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
(João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina. Diálogo de carpina e retirante)
Desta forma, não tive neste trabalho a pretensão de esgotar o tema, muito
menos fazer generalizações sobre um assunto tão delicado e tão importante.
Entretanto, o sofrimento trazido pelo suicídio de um filho é de tal ordem que
acredito na validade de pensarmos nos preconceitos e na ambivalência de
sentimentos que o cercam a fim de compreendê-lo melhor e tentar levantar
propostas que possam atenuá-lo.
83
O objetivo deste estudo foi identificar e analisar as manifestações de luto nas
mães entrevistadas, que perderam o filho por suicídio, com foco nos recursos
com que enfrentaram essa perda e no sentido que atribuíram a essa
experiência.
84
Outro fator relevante foi o de não ter aparecido nos discursos das participantes
nenhuma referência à raiva ligada ao filho que se suicidou. Como foi exposto,
no luto por suicídio há uma grande dificuldade na elaboração da perda que
pode gerar sentimentos agressivos em relação ao morto. Além disso,
Acredito que esses sentimentos não foram descritos pelas mães entrevistadas
devido a necessidade de reprimi-los, devido a grande culpa que a raiva por um
filho que se matou desperta. Como descreve Galiás (2004) é muito difícil para a
mãe de um suicida juntar sentimentos tão ambíguos como o amor e o ódio pelo
filho que se suicidou.
Se o sentimento de raiva não apareceu nas entrevistas, a culpa, por outro lado,
teve grande destaque. A vivência de culpa, tal como citada pela literatura, pode
ser pensada, a partir dos sentimentos experienciados por Maria, Elisa e Inês,
como uma tentativa de encontrar uma causa que pudesse evitar a morte do
filho e se sentir menos impotente diante da situação traumática.
85
Se em alguns casos a culpa pode dificultar o processo de elaboração do luto,
em outros, ela pode ajudar a mãe enlutada a se defender de uma
desestruturação maior logo após a morte do filho. Mas pode também complicar
o processo de luto quando é muito intensa e se estende por muito tempo, não
dando lugar a outros sentimentos mais adaptativos, como os descritos por Elisa
(“Sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão bem como
parecia... Mas, agora não...sinto muita saudades...”).
A partir das entrevistas percebi que Maria, Inês e Elisa não trouxeram apenas
sua dor, seu luto, sua angústia. Elas trouxeram a sua vida, a sua existência.
Falamos sobre culpa, mas também sobre casamento; falamos sobre o estigma
e também sobre o papel da mulher na sociedade, falamos sobre morte, e
principalmente sobre vida.
Maria falou sobre o tempo em uma linda metáfora (“O tempo é como se fosse
uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa, aquela tristeza, aquela
angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura desbotando... assim
acontece com a gente...”) o que me fez pensar que as experiências vividas não
podem ser concretamente modificadas, mas talvez seja possível criar uma
nova moldura, re-enquadrando e transformando a percepção do viver e
conseqüentemente adquirir outros comportamentos e atitudes perante a vida.
Trata-se, sem dúvida, de um processo longo e trabalhoso, em que a mais difícil
tarefa é a do perdão: o perdão ao filho, o perdão de si mesma (Freitas, 2000).
86
Conhecer a história e experiência de Maria, Inês e Elisa, e elaborar uma
discussão sobre seus relatos mais íntimos foi enriquecedor, um enorme
exercício de ética e de escuta. Por isso, gostaria de agradecer a contribuição
das participantes, destacando que pretendi realizar nesse trabalho uma
compreensão que primasse pela singularidade da vivência de cada uma.
Espero que a participação nesse trabalho tenha as aproximado, de alguma
maneira, de suas experiências subjetivas e que o poder pensar e falar tenha
ajudado a ressignificar alguns momentos de suas difíceis histórias de vida.
87
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março de 2007.
91
ANEXO 1 – TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO E INFORMADO
Eu, ___________________________________________________________,
RG nº:____________________, estou ciente de que minha participação na pesquisa
Luto Materno pelo filho suicida, desenvolvida pela aluna Luciana Fernandes Rocha do
5º ano da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como atividade acadêmica do Trabalho de Conclusão de Curso, não incorrerá em
violação de direitos humanos, e que minha participação, seja através de entrevista,
respondendo questionário ou participando de observação direta, pode ser usada em
meios acadêmicos e científicos . Autorizo a gravação em áudio de entrevista que
venha a dar e sua posterior transcrição pela pesquisadora responsável, para fins de
ensino e pesquisa. Autorizo a publicação deste material em meios acadêmicos -
científicos e estou ciente de que serão removidos ou modificados dados de
identificação pessoal, de modo a garantir minha privacidade.
__________________________________________
Assinatura do participante da pesquisa
__________________________________________
Aluna-pesquisadora: Luciana Fernandes Rocha
__________________________________________
Orientadora: Flavia Arantes Hime
92
ANEXO 2 - ENTREVISTAS
Desde a infância?
Bom...eu vou começar pelo meu segundo casamento, tá? Não, do meu
primeiro casamento. Eu casei muito jovem tinha 15 anos e com 16 anos eu tive
minha primeira filha. No meu primeiro casamento eu tive 4 filhos e um aborto.
Um aborto que eu mesma provoquei porque eu tava desesperada, já tinha 4
filhos e o casamento não ia bem. Aí, quando foi... os tempos se passaram, aí
eu me separei do meu marido, fiquei um tempo com as crianças, aí nesse
meio de tempo eu consegui trabalhar aqui na Unifesp como atendente de
enfermagem. Daí eu fui lutando, estudei, nessa época eu não tinha o ginásio
completo, aí terminei o colegial, primeiro eu fui fazer faculdade de enfermagem,
depois fiz pós-graduação e criando as crianças...e nesse meio de tempo eu
conheci esse meu segundo esposo, né? Eu falei para ele que eu tinha quatro
crianças e ele assumiu e nós vínhamos assim... tendo uma vida normal ...daí
nasceu essa minha filha, a Miriam, que foi a única filha que meu segundo
esposo teve comigo. Aí as crianças foram crescendo, e a gente trabalhando,
estudando...Do primeiro casamento eu tive a Sofia, a Simone, o Rodrigo e o
93
Eduardo. O Rodrigo e o Eduardo logo na criancice deles ...tipo com 13 anos
foram para as drogas. Aí o Rodrigo ficou...eu tentei tirar ele das drogas de
todos as maneiras..tentei, tentei, levei até para internar, não quis e ficou assim
essa luta, né? E aí ele foi para as drogas, ele se afundou nas drogas, não quis
sair das drogas, e o Eduardo foi junto. E aí lá nas drogas ele arranjou uma
moça que era muito drogada, pior que ele. E lá, essa moça teve uma gravidez
dele e ele nem sabia, passaram-se uns tempos e num domingo de páscoa, eu
tava na minha casa e vieram falar que o Eduardo estava em estado de choque
porque haviam matado o Rodrigo ... e ele nem sabia que a moça que ele vivia
junto tava grávida ... e aí passaram-se uns tempos, eu sofri muito...Passei uns
três anos sofrendo, mas não procurei profissional nenhum para me ajudar. O
Eduardo ficou um tempo afastado das drogas, mas depois ele voltou, voltou até
hoje...hoje ele é morador de rua, mora debaixo do pontilhão...tá com quase 30
anos de idade e depois mataram a companheira do Rodrigo, que também era
drogada, mas antes de matar ela, ela teve uma filha, né? Porque antes
mataram ele e ela ficou...e essa gravidez, eu tava sempre acompanhando,
levando lá alguma coisa, porque eu queria ver a filha do meu filho nascer. Aí a
menina nasceu, passaram-se 6 meses e eu fiquei naquele luta, trazia a menina
para casa, ela buscava, eu trazia, ela buscava...meu marido dizia que era filha
dela, deixa...mas eu ficava preocupada porque ela não tinha condições
psicológicas nem físicas para cuidar da criança...dar mama também, né? Aí fui
assumindo a menina da maneira que eu podia, até que um dia mataram ela
também. Eu soube da notícia que haviam matado ela, e aí eu fui com a mãe
dela no juiz e ela me deu a tutela da Rafaela. A Rafaela hoje tá com 9 anos...tá
grande, tá bonita... e assim, a história de vida dela... eu conto tudo para ela,
não escondo nada. Ela me chama de mãe, meu esposo de pai...Ela é muito
apegada com a gente. Meu esposo não é avô paterno dela
assim...geneticamente, era avô de consideração, e ficou pai adotivo. E ela nos
ama muito...E então voltando na Miriam, a Miriam cresceu, ficou mocinha e aí
eu fui trabalhar em 2 empregos para pagar uma faculdade para ela porque ela
queria...eu gostaria que ela seguisse o meu ramo porque hoje em dia é um
ramo para você escolher várias especialidades, vários caminhos, né? Não é só
ficar enfiado dentro do hospital. Tem gente que pensa que enfermeira só mexe
com sangue, não é isso, tem várias opções. Mas, ela falou “Mãe, meu perfil
94
não é ser enfermeira, meu perfil é ser veterinária. Mas é caro, né? É particular.
E eu falei “tá bom, eu trabalho em dois empregos. E aí eu saí, deixei meu
apartamento para as duas, porque as duas estavam estudando. Bioquímica
essas coisas...
95
julgamento, né? Eu vinha pensando o que que leva ... e aí quando foi mais
tarde, eu fui almoçar tarde, eu tava com bastante tarefa, bastante coisa para
resolver, problemas. Aí eu fui almoçar...fui eu a doutora D. e a doutora I. e aí a
gente tava até conversando de política, falando de governo, de hospital ...e aí
desceu o menino e falou “Olha tem um telefonema para você” e passaram a
linha lá para mim. Aí eu tive que dar uma força para ele agüentar. Eu falava
“calma, já foi mesmo, fazer o que” eu tive que dar uma força de tão mal que ele
tava...ele gritava...precisou a gente dar um socorro para ele, pela reação que
ele teve, mas não era assim, ela já estava morrendo. Antes a pequena falou
que ela já havia passado em algum lugar, só que a pequena não me falou, a
Rafaela, ela passou num petshop e perguntou para o moço se eles vendiam
venenos de rato, que é aquele chumbinho e aí o rapaz falou que não, que era
proibido por lei...eu não sei onde que ela conseguiu. E minha filha Simone
havia dito que ela assistiu uma despedida de solteiro de uns colegas dela
porque uns iam viajar para fora do Brasil, iam deixar o curso e estudar fora do
Brasil e ela voltou muito perturbada desse encontro, porque lá ela viu um ex-
namorado dela, chorou...tudo isso eu não sabia ... tudo isso eu não estava nem
sabendo que estava acontecendo...que nem eu te falei...ela ficou muito
perturbada. Aí, continuando...eu tava de plantão... se meu esposo tivesse
falado eu deixava tudo o que eu estava fazendo, porque era um pouco
longe...aí ele veio me buscar de carro com meu genro, o marido da Simone e
ao invés dele me avisar parar ir embora logo, ficaram lá esperando. E quando
eu cheguei no hospital, ela já estava entubada...já estava assim...o abdome
dela...eu pedi para a enfermeira chefe para entrar...o abdome dela já estava
muito rígido, a urina dela só tinha um pouquinho, tava muito oligúrica, aí eu
falei “Ai, meu Deus”, aí pronto, parece que o mundo caiu na minha cabeça, eu
fiquei desesperada...e assim, o que eu achei muito incrível foi dela ter tomado
esse chumbinho ao meio dia, quando meu marido chegou no apartamento, ela
estava preta, preta; ela era branquinha, tava preta, preta, e aí meu marido
disse que caiu de joelhos do lado dela e foi escorregando e pôs a mão no
coração dela e falou assim : “Ai Meu deus, não foi isso que o senhor me
prometeu”, e aí ele disse que o coração dela respondeu, deu uma batida forte -
puf - na mão dele, aí pegaram ela, levaram para o hospital...meu genro que
nunca saia do apartamento, desceu com as crianças e nesse meio de tempo
96
que deu para ela fazer tudo isso. Aí quando minha filha entrou no quarto disse
que tava terminando de tocar um CD da Shakira, que é um cd muito triste. E
ela já tinha vomitado muito...ela colocou um balde, deixou o quarto dela todo
arrumadinho, que sempre era uma bagunça o quarto dela, deixou tudo
arrumadinho, tudo dobradinho, os cds...tá lá até hoje, um monte de cds...ela
deixou tudo arrumadinho no quarto dela...e não sei...ela planejou tudo isso, né?
Ela queria morrer...e aí... levaram ela para o hospital, chegou lá tentaram
socorrer de todas as maneiras, mas já era tarde. Entubaram, tudo...ela passou
a madrugada e quando foi a madrugada ela começou a ter arritmia e aí foi a
hora...o médico me deu a notícia que tinham perdido ela mesmo, né? Ele
chorou também...ficou muito chateado..perder uma jovem, né?
97
D. e aí eu fui numa terapia em grupo também, que ajudou bastante também, a
gente vê os problemas das pessoas...e a gente vai tentando, mas é uma coisa
que nunca mais apaga...até hoje eu me lembro dela como se fosse eu falando
com ela...a fisionomia, a roupa que ela gostava de usar, e ela morreu com uma
roupinha que eu dei para ela. Quando eu tava já recuperando do
Rodrigo...porque o Rodrigo foi assassinado, a Miriam foi suicídio.
Ele tava com 20 anos e a Miriam foi em 2005, ela tinha 21 anos. Foi uma carga
muito pesada perder dois filhos...eu me lembro que quando o Rodrigo morreu
eu fui deixar de me emocionar, chorar, depois de uns 3 anos...e depois veio o
suicídio...
Como era a Miriam? Quais eram as coisas que ela gostava de fazer? A
senhora poderia me contar um pouco sobre ela?
Que rapaz?
98
O rapaz policial, escrivão. Eles pediram porque como não foi uma morte
natural, eles pedem para a gente abrir...tem que abrir um inquérito, né? E no
meio do inquérito eu pedi uma investigação porque eles falaram que talvez
possa ser um suicídio induzido por outra pessoa, né? Eles querem
saber...então eles fizeram um monte de perguntas...
A Miriam namorava?
Então, ela namorava e gostava muito desse rapaz e depois ela se separou dele
e tava namorando outro... e nessa festa ela viu o ex-namorado dela, segundo a
minha filha. Então, e ela conseguiu deixar um bilhete que falava assim: ‘me
perdoa por ser fraca, me perdoa por não ter conseguido, me perdoa por ser
assim. Eu amo todos vocês’. Ela falou 3 vezes pedindo perdão, né? E eu acho
que...tenho certeza de que ela estava decidida a morrer, mesmo.
Então, a relação dela com a Simone era muito boa, tanto é que a Simone falou:
“Olha, mãe, eu não perdi uma irmã, perdi uma filha”. A Miriam admirava muito a
Simone, ela falava que a Simone era uma heroína. Não sei se ela achava que
as atitudes dela eram fracas em relação à Simone. Eu percebi assim...ela tinha
uma personalidade forte, um gênio forte...teve uma vez que não sei o que que
foi que ela fez, que eu peguei ela assim, bati com a cabeça dela na parede do
banheiro, tava nervosa, aí ela pegou e me enfrentou...ela queria me socar...aí
ela saiu de casa, foi para casa de uma amiga, aí eu falei assim: “deixa ela,
quando ela quiser ela volta” e aí meu marido ficou desesperado, pediu para ela
voltar e ela voltou. Mas quando ela queria fazer alguma coisa, ela fazia,
ninguém segurava. Eu percebia que ela tinha um gênio muito forte, tanto é que
eu nem me impunha tanto nas coisas dela depois que eu fiquei muito nervosa,
quis socar, aí eu falei “Deixa ela, né, ela resolve do jeito que ela quer. E não
sei, às vezes a gente fica pensando que pode ter sido uma imprudência minha,
uma falha da minha parte, talvez se eu tivesse ficado mais em cima, poderia ter
evitado...mas...não sei...
99
E com seu marido, como ela se relacionava?
Ele pegava muito no pé dela também, assim..como pai, né. Uma vez ele não
queria que ela saísse de carro porque ela não tinha habilitação ainda, depois
que ela tirou habilitação. Daí ela pegou a chave escondido do meu marido,
desceu pegou o carro, deu umas voltas e deu umas batidinhas no carro.
Depois ela chegou, escondeu a chave e foi deitar...meu marido procurou essa
chave, procurou, procurou...perguntou quem tinha pegado a chave do carro e
ela não falou. Depois que ela falou, ele ficou muito bravo com ela. Uma vez
também, ela passou um monte de tinta no cabelo, tinham várias tintas no
cabelo, depois ela achou que não estava bom, descoloriu, porque ela era muito
vaidosa. Aí o cabelo dela começou a cair e ela foi na cabeleireira e passou a
máquina zero. Ai, mas quando meu marido viu aquilo, eu achei que ele ia
enfartar. Eu falei: “Mas calma, cabelo nasce outro” mas assim, não sei se era
porque era filha única dele e quando teve que enterrar ela...ele enfrentou o
velório, tudo...ele falou que tinha comprado o caixãozinho branco para ela que
eu queria...porque eu tinha sonhado com uma criança e no sonho eu vi um
caixãozinho branco...ele teve assim, uma reação normal, tudo, aí quando foi
enterrar ela, eu tive que dar uma força para ele agüentar. Eu falava “calma, já
foi mesmo, fazer o que” eu tive que dar uma força de tão mal que ele tava...ele
gritava...precisou a gente dar um socorro para ele, pela reação que ele teve. E
assim, às vezes ela tinha uns pensamentos meios bizarros...ela falava assim:
‘Ó, quando eu casar eu quero me casar vestida de vermelho’ (risos). Eu nunca
vi noiva vestida de vermelho...noiva veste branco, né? Para mim, aquilo era
normal, né? O quarto dela está lá até hoje...As coisas do jeito que ela deixou
ainda estão lá.
Maria, com quem a senhora pôde contar depois da morte da sua filha?
Assim, logo no início muitas pessoas me ligavam e eu também queria ligar para
todo mundo para falar para todo mundo...era uma maneira de eu me...e no
trabalho, meus colegas me ajudavam. Eu trabalhei por quase um ano depois,
né. Mas, daí eu não agüentei porque eu me emocionava muito, trabalhava com
100
gente, via morte, via as pessoas morrer, e aquilo me machucava muito. Daí eu
tinha uma amiga que me indicou a Dra. D. e ela me perguntou se eu não queria
passar com ela. Eu vim e a Dra. D. me afastou porque ela achou que eu estava
com depressão... “trauma pós transtorno de depressão grave” e eu estou
afastada até hoje. Mas agora que eu estou querendo pedir pra ela pra mim
voltar, né? Mas assim...que nem eu te falei, quando eu me lembro que ela está
lá debaixo do chão se desfazendo, me dá uma angústia, me angustia muito. Eu
tô pensando como é que vai fazer para a exumação, como é que vai ser minha
reação... Do Rodrigo eu guardei uma vértebra, guardei um dente e guardei uma
mecha de cabelo. Dela também eu vou ver se eu guardo algum ossinho dela lá
em casa.
(Mostrou algumas fotos de Miriam)
Essa aqui era quando ela era criança...essa aqui depois que ela ficou
moça...ela ficou muito bonita depois de moça...ela era criança de tudo, não se
cuidava direito...mas ela era uma moça muito amável. As meninas da medicina
veterinária foram no velório dela e falaram que não era o perfil dela ter feito o
suicídio, e que ela era uma menina muito alegre. Mas acho que no fundo, no
fundo ela não estava alegre, né? Aí eu fui lá falar com o coordenador do curso
dela, porque eu não me conformava...não me conformava. Eu tinha que buscar
alguma resposta, o porquê. Aí, eu fui lá e ele falou assim: ‘Olha, a sua filha...’
não sei se ela conversou com ele, eu não sei...ele falou ‘A sua filha estava
muito embananada, muito, muito...’. Assim, embaralhada, né.
Não, ele falou que não ia falar. Então aquilo que eu te falei no início: a vida dela
particular tava muito oculta. Tava assim uma coisa que nem eu sabia, nem a
irmã dela sabia e a gente tinha alguma suspeita de um caminho
assim...tortuoso que ela tomou na vida dela, como profissão, e isso daí eu
imagino que deve ter levado ela muito perturbada. Ela saia e voltava tarde da
noite. Nunca falava onde era o emprego dela. Não dava o endereço, não dava
o telefone, não falava nada. Eu até falava para meu marido: ‘Põe um detetive
atrás dela’...só que ele vacilou...
101
Quer ver, a carta que eu escrevi quando Rodrigo morreu, eu tenho até hoje
(pega uma carta na bolsa e começa a ler):
Domingo de Páscoa. Dia 30/03/97, numa madrugada de um domingo, mais ou
menos 2:40 horas da manhã, meu Rodrigo acabava de morrer, com 3 tiros, um
dos tiros no peito, num beco frio. Me deparei com meu filho morto. Foi grande
ali a minha aflição. Parece que o mundo desabou sobre minha cabeça. Que
hora dura! Após 8 meses nasceu uma linda menina, que pesou mais ou menos
3,5 kg, que é a Rafaela. Ele nem chegou a conhecer a Rafaela...
Escrevi num papel bem comprido, está em casa, mas agora eu não sei onde é
que eu coloquei. Escrevi tudo: a hora que eu recebi a notícia, a hora que eu
cheguei no hospital...eu escrevi e guardei, e é difícil eu pegar, só agora que eu
tô conseguindo pegar, porque eu estou mais calma...
Não...era assim para ter registrado os fatos...o que me ajudou mais foi a parte
espiritual, né? Foi uma base, um apoio...porque tem muita gente que fala
‘Morreu de suicídio, nossa não tem salvação’. Aquilo para uma mãe é a pior
coisa, porque a mãe já está sofrendo pela separação e ainda vêm falar que o
espírito não tem salvação...E na doutrina não, é diferente. Deus sabe o que faz.
Aconteceu porque foi chegada a hora, porque Deus quis. Para tudo tem um
tempo na nossa vida. E isso traz um grande conforto e...essa foi a vontade de
Deus. Então se é a vontade de Deus, a vontade de Deus é boa. Então isso traz
um conforto...e também o outro lado material foram as psicólogas que me
ajudaram bastante, a terapia em grupo, a médica psiquiátrica e os
medicamentos, né? Assim, eu tive vários apoios...e me ajudou bastante.
102
Com meu marido graça a Deus sempre esteve tudo bem. Eu queria no início
falar muito sobre ela, mas ele não queria tocar no assunto; eu queria e ele não.
Desde então pouco se toca, pouco se fala, mas tem dias que eu percebo que
ele está amargurado. Não sei porque, mas ele não gosta. Mas de vez em
quando a gente vai até o cemitério. Eu penso que como era uma filha única
que ele tinha, ele ficou bastante magoado. Assim...meus filhos ele sempre criou
tudo junto, ele sempre me ajudou, tudo, mas a gente tem que reconhecer que
tem uma coisa biológica, né? Filho biológico é uma coisa, filho adotivo...não
sei....eu acho que não é a mesma coisa, né? Tem gente que pega um amor e
cria como se fosse um filho biológico, né? Mas minha relação com ele é essa.
Ele não gosta de tocar no assunto e eu também respeito...pouco se fala...
Hoje para mim é um vazio, porque ninguém substitui o outro, né? As pessoas
falam: “Veio a Rafaela, Deus sabe porque, né?’ Mas é uma utopia, porque
ninguém substitui o outro. Nossa vida de cada um é exclusiva, é única. Você
tem dez filhos, cada filho é de um jeito, nunca é igual...
Sempre foi bem, né? Foi bem vinda, bem recebida na família. Ela era a única
de pai diferente, mas foi bem. Eu sempre trabalhei muito, sempre trabalhei fora,
mas meus outros filhos cuidavam dela, as maiorzinhas e meu marido também,
porque ele sempre teve problema de saúde e logo foi afastado. Assim, foi
normal....depois que eu tive a Rafaela... eu percebia que ela tinha um pouco de
ciúme da Rafaela, mas também não era nada exagerado não, era coisa pouca.
Ela levava a Rafaela para passear, no Mcdonald’s tomar lanche, porque teve
uma época que a Miriam trabalhava lá. Ela não era de arrumas as coisas, mas
às vezes dava a louca nela e ela arrumava toda a casa pra mim...que nem eu
te falei, né? Eu sempre tentei deixar ela à vontade, não ficar pegando muito no
pé, né? Porque na minha juventude a minha tia era muito...ela me sufocava,
103
né? No sentido de roupa, no sentido de usar o que eu queria. Na minha época
de juventude usava muito mini-saia; mini-saia é coisa antiga, né? E ela não
deixava nem calça comprida....hoje em dia eu não uso pela minha doutrina,
porque nós não usamos, né? Só saias longas...Então, eu falava: ‘deixa ela
como jovem, usar o que ela tem vontade’, às vezes só que ela exagerava,
usava uma saia muito curta e eu falava para ela: ‘Nossa Miriam, se as pessoas
te verem assim na rua vão falar ‘ó lá filha de crente’! Mas, era dela. Antes de
morrer que ela pintou o cabelo de preto, porque antes ela era morena do
cabelo loirinho. Eu via meu relacionamento com ela como normal, né?
Eu vou te falar: lazer, lazer eu não tenho. Mas minha rotina: eu vou para a
igreja, venho, às vezes eu vou na chácara ou viajo para o interior. Hoje mesmo
eu vou num salão de costura, e vão várias mulheres. Uma faz crochê, uma faz
tricô, a gente faz um serviço voluntário...eu gosto de ir. Sábado passado eu fui
na chácara da Simone. Minha vida é normal...eu tinha vontade de fazer
mestrado, eu gosto muito de dar aula de enfermagem, eu gosto muito de
estudo...mas depois disso tudo, às vezes eu tenho vontade de me isolar, ficar
sozinha, né. Mas, eu não deixo isso acontecer...porque depois eu penso
‘Caramba, a gente não é uma ilha para viver isolada, né? E também depois eu
penso: ‘Será que vale a pena fazer um mestrado, ficar queimando meus
neurônios depois de tudo isso?’ Às vezes vem o ânimo, mas depois eu
desânimo...como se fosse uma onda no mar...vem...volta...vem...e volta...eu
acho que o lado psicológico, só com o tempo...o tempo cura muita coisa. É
claro que você vai lembrar, ter saudades, mas não com tanta dor...Hoje em dia
eu uso uma saia que eu usei no velório do Rodrigo. Eu não sei da onde que eu
tirei tanta força pra ajudar os dois para o IML. Eu cheguei a ver eles nus,
mortos, inertes e eu consegui vesti-los, né? Hoje em dia eu consigo usar a
saia, mas antes eu não podia nem ver. Hoje em dia eu uso a saia, lembro de
um momento tão duro na minha vida, mas...o tempo, né? O tempo é como se
fosse uma pintura que vai desbotando. Aquela mágoa, aquela tristeza, aquela
angústia vão diminuindo, como se fosse uma pintura desbotando....assim
acontece com a gente...
104
Eu levei um cd dela de relaxamento que tem uns barulhos de golfinhos...e eu
não gosto muito de ouvir...porque mexe, né? É como se fosse uma ferida, ela
cicatriza por fora, mas por dentro ela tá aberta, então se você toca na pele vai
doer. E assim é nosso sentimento...ele tá lá calminho, mas se você toca dói.
Então, eu faço o possível para não estar chorando para não sair com o rosto
vermelho por aí. Parece que as pessoas ficam comentando: ‘Nossa, tava
chorando. O que que será que aconteceu com ela?’
Então, Luciana, a gente acha que não está preparada para as coisas, mas tá.
O que tiver que acontecer, vai acontecer...claro que a gente não quer...Mas, a
gente tem que falar: ‘Seja o que Deus quiser’, porque quando a gente fala:
‘nossa, eu não ia agüentar perder um filho’, aí que acontece...
Então eu já perdi aquele medo...eu sei que a qualquer hora eu posso receber a
notícia que mataram o Eduardo, porque os policiais matam os mendigos...mas
eu não posso ficar com medo, porque senão eu vou enlouquecer...Chega um
momento da sua vida que parece que você fica sólida, entendeu? Não que
você é forte, mas parece que você pega uma solidez, uma firmeza. O que tiver
que acontecer, vai acontecer...eu nunca achava que ia perder um filho e perdi
dois...E eu acho que a morte é sofrida porque é um segredo de Deus. Do outro
lado prá lá é segredo de Deus, não pertence mais a nós...a morte é um
desconhecido do homem...tem coisas para nós que não interessa a resposta...
O que eu poderia dizer é que na nossa vida tudo passa, é como uma onda:
passa. Parece impossível, mas o tempo vai fazer que essa dor passe...e muita
fé em Deus e confiança nos profissionais da área de saúde, os psicólogos,
psiquiatras também. Tem muita gente que acha que psiquiatra só trata de
louco, não é, eles também tratam de gente que precisa de um suporte
medicamentoso. Então eu diria que tudo passa, nada é por acaso, muita fé em
Deus que é um fundamento principal. E nunca blasfemar contra o que Deus
fez...é isso o que eu gostaria de falar para as mães...
105
Posso falar mais uma coisa?
E como mãe, sempre pensar que os nossos filhos, antes de ser nosso, já era
de Deus e que chegou o tempo Dele levar...
106
ENTREVISTA COM ELISA
Casada, 72 anos.
“Luciana, eu tenho 72 anos. Então, eu estou numa idade que é bastante idade,
mas graças a Deus estou firme ainda, e se tem uma coisa que eu procuro
é...nessa idade em que a gente já carrega uma série de coisas do passado,
que vêm com a gente...eu acho que estou na idade das coisas mais
agradáveis. Eu acho que alegra a vida, traz saúde, traz uma série de coisas
que fazem com que eu tenha uma qualidade de vida melhor. Então, talvez um
pouco egoisticamente, mas eu acho que eu tenho direito, afinal, eu já estou
com os filhos casados, já estou com os netos moços, e eu curto isso! Então o
meu dia...de manhã eu procuro mais atividades físicas, porque depois de uma
certa idade a gente guarda todas as heranças de família, aquelas que não são
muito boas: diabetes, sabe? E andando, saindo, a sua cabeça fica aberta...e
uma coisa que eu me ocupo muito, que me distrai muito é a pintura. Hoje à
tarde eu tenho aula...(mostrou vários objetos de louças pintados por ela). São
peças variadas...eu estou sempre ocupada com isso. Primeiro porque você tem
um contato com pessoas, o que é muito bom. É um grupo de senhoras,
algumas mais moças, outras com mais idade, mas por sorte é um grupo muito
agradável, então a prosa é muito gostosa... Eu acho que as responsabilidades
mudaram...Hoje vocês já estudam cedo, já começam a vida com as suas
ocupações...no meu tempo não. No meu tempo realmente a moça era educada
pra casar. Veja, eu me casei com 17 anos, então eu não acabei nem o colegial.
E nove meses depois nasceu Carlos, meu primeiro filho e logo depois nasceu a
Marina e depois a Rebeca. Então, você ficava muito ocupada e achava que
tudo bem. Ficava satisfeita com aquilo porque era o que a gente tinha naquele
momento. Acho que nenhuma das minhas colegas de classe fez faculdade;
elas chegavam no máximo no magistério. Eu morei em Santos, e no meu
colégio tinha uma moça que fez Direito. Eu achei o máximo aquilo! Era
107
completamente incomum...Agora, eu sempre tive uma inclinação, porque eu
sempre li muito, desde menina. E era tão engraçado aquele tempo, porque, por
exemplo, se eu estivesse lendo, tinha que ser meio escondido, porque minha
mãe falava: ‘Elisa, venha bordar! Vai andar de bicicleta, fazer exercício!’ A
ocupação intelectual não era muito alimentada pelos pais. Já a minha irmã que
era 5 anos mais moça que eu – nós somos só duas irmãs – ela já pegou uma
nova época, porque foi muito acelerada a diferença. Então, ela é formada em
Direito. Mas trabalhar foi difícil também, porque meus pais ficavam
preocupados. Era outro mundo!”
Era como se você aprendesse a ter uma família, a cuidar do seu marido,
dos filhos, da casa...
“Isso...e foi o que eu fiz durante muito tempo. No princípio, você fica muito
ocupada com criança e com filhos... E aquele tempo também não tinha outra
ocupação pra você...você podia aprender pintura, coisas assim, absolutamente
florais. Mas eu mudei pra Brasília, quando estava com 25 anos, e aí eu já tinha
os 3 filhos: meu filho já estava com 7 anos...e em Brasília eu acho que foi uma
verdadeira faculdade de vida, porque em Brasília você vivia em grupos mais ou
menos formados por pessoas da sua região, o grupo dos paulistas, o grupo
dos... era uma coisa natural, as pessoas se procuravam porque se conheciam.
Quando eu cheguei em Brasilia, não conhecia ninguém, mas logo tinha um
amigo do meu sogro...Então, lá eu tive uma convivência maravilhosa,
principalmente na idade que eu tava, que os filhos já estão começando a ir pro
colégio, já tinha um tempo livre; então o que eu fiz naquela época: fui estudar
francês, inglês, esse tipo de coisa. Mas, o convívio que eu tive em Brasília
mexeu muito com a minha cabeça, porque as minhas amigas tinham 70 anos,
ou era um casal de ministros do Supremo, um Deputado. Havia uma
diversificação muito grande de costumes. Em São Paulo geralmente você
freqüenta um grupo da sua idade, não é? E lá não...eu passei a verificar os
costumes, os hábitos de pessoas de todos os estados do Brasil, de pessoas de
vivências diferentes...Dois grandes amigos meus eram o Dr. Paulo e Dr. Mauro.
Os dois deviam beirar os 70 anos, e as senhoras também; mas eles eram de
São Paulo conheciam meus pais...Então havia de tudo! Eu acho que Brasília
108
mostrou como a gente vivia fechada em São Paulo, naquele núcleo. Quando
eu voltei de Brasília eu tinha 30 anos, e os meus filhos estavam
maiorzinhos....Eu estou dentro do assunto que você quer?”
“Eu voltei com 30 anos, e foi quando eu fiz minha primeira viagem para a
Europa. E coincidiu com a idade que meus filhos já não dependiam tanto de
mim como mãe, fisicamente. Então, comecei a ter um tempo pra mim. E
quando eu cheguei lá, baixou um ‘Meu Deus, eu não sei nada! Eu tenho uma
formação minha porque eu sempre procurei ler, me interessei, mas eu não...
Foi então que eu entrei no Indac, que era um cursinho... eu tive uma amiga de
Brasília que veio comigo, e ela foi casada com o P., que foi um dos exilados da
revolução da Redentora, e ela falou pra gente entrar no Indac. E além de tudo,
eu tinha que vencer uma estrutura férrea que havia naquela época, porque era
uma estrutura que veio da minha mãe, continuou com meu marido, porque
mamãe era uma mulher maravilhosa, rica, uma personalidade, mas carregava
todas aquelas coisas...então eu fui criada com uma coisa que hoje a gente não
faz com os filhos...eu tinha um dever a cumprir. Havia esse dever que se
resumia ao casamento e aos filhos. Isso era tão forte que a gente se esquecia
mesmo da gente, do que a gente gostava, do que a gente queria. E eu tinha 32
anos...é uma coisa que te deixa...dá uma insatisfação, principalmente
coincidindo com uma viagem linda que nós fizemos pra Europa, abriu meu
mundo e eu comecei a estudar. Fui pro Indac, fiz o Madureza, que a gente
chamava, porque em 1 ano você fazia os três colegiais. E quando eu saí do
Indac eu meio em surdina fiz vestibular pra faculdade e entrei. Além de tudo,
havia uma tremenda resistência do meu marido, porque naquele tempo mulher
que estudava era um perigo! Mulher que estudasse eles achavam que perdia a
autoridade, ia ficar fora de casa. E eu lembro que um amigo nosso chegou, eu
tive vontade de torcer o pescoço dele porque ele falou: ‘Geraldo, cuidado,
porque mulher que estuda desquita!’. Eu já estava lutando, com os três filhos
ajudando, mas era assim uma campanha absurda deles, porque eles sabiam
que eu gostava. E a minha filha, Marina fez vestibular junto comigo... ela
gostou do tipo de curso...era Letras, tradutor e intérprete. Nós entramos juntas!
109
Então nós combinamos um dia, na hora do jantar, que a gente ia falar com
ele...Imagina! Olha que dependência que a gente vivia...A gente conseguia as
coisas de outro jeito, mas era suado. E aí meu marido falou: ‘Quanto tempo
vocês ficaram combinando pra falar isso?’ E eu fiz a faculdade junto com ela...a
gente fazia algumas classes juntas, e como eu estudava inglês e francês e ela
alemão e francês, algumas aulas separadas. Mas eu era muito moça nesse
tempo...e me achava uma senhora, mas eu tinha 38 anos...Meu filho mais
velho me ajudou terrivelmente, me levou até para Goiás no lugar que a gente
fazia provas do vestibular, porque eu não tinha feito física e entrei na faculdade
sem acabar...Bom, acabei fazendo. Então eu diria que a minha história no
tempo é um pouco invertida, porque eu casei cedo, vim estudar depois, os
filhos vieram muito cedo, depois eu fui fazer faculdade. A luta era em casa,
porque eu estava quebrando um tabu. Pra você imaginar eu me lembro que
meu filho já tava na FEI, fazendo engenharia, Marina, que era a do meio,
entrou comigo na faculdade, e a Rebeca tava no ginásio. E eu fui contar pra
mamãe ‘mamãe olha que bárbaro’...Mamãe ficou assim: ‘mas minha filha, você
pensou bem? Você está descuidando da educação dos seus filhos!’. Essa foi a
frase dela; no íntimo ela achava bárbaro, mas ela tinha medo da liberdade da
mulher. Ela era muito forte...quer dizer, ela mandava na casa, no papai, na
gente, nos netos, em tudo, mas ela tinha medo da mulher fora de casa, era
uma coisa da geração dela. E em casa era a mesma coisa, eu nem tocava no
assunto faculdade...Domingo eu acordava cedinho pra fazer os trabalhos mais
complicados, mas aí eu não parei mais. Fiz faculdade, depois eu tava fazendo
Aliança Francesa e fiz a faculdade de francês, e os meus filhos casaram
cedo...Quer dizer, eles não casaram cedo, casaram na hora certa... eu é que
casei cedo. Imagina que com 40 e poucos anos eu já tinha neto! Porque a
Marina casou e já tinha se formado na faculdade, que era o que eu
queria...Sabe, quando minha neta começou a namorar ela tinha 17 anos, eu
entrei em parafuso, com medo que ela casasse cedo! Eu falava: ‘Carolina, você
não sabe o que é ir pra casa de uma amiga e rir, rir de bobagem! Eu não tive
isso, Carolina! Eu passei de menina pra mãe!’. E os meus filhos se formaram,
todos se casaram numa idade que eu não sei se vocês acham cedo hoje, que
era 24, 25 anos. Já formados...se dá certo ou não é uma coisa, ainda mais hoje
em dia que está tudo diferente. Mas, eles tiveram a mocidade, tiveram os 18
110
anos...com 18 anos eu estava com um bebê no colo. E aí eu estudei, me formei
nas duas faculdades, e aí veio uma coisa que...(risos)...os homens têm razão
de ter medo que a gente estude, porque é como abrir a cortina de um teatro, e
você vê um mundo...continuo nessa linha ou você quer perguntar alguma
coisa?”
111
muito dessa mudança, no tempo, da mulher. Sabe, aquelas coisas que eu tinha
de pedir para meus filhos deixarem os armários bem arrumados... ‘Rebeca,
você já arrumou não sei o quê?’... mas como que elas iam ficar arrumando
armário com coisas tão maravilhosas pra aprender na faculdade? E a Rebeca
falava ‘Ah, antes tinha bolo de chocolate todo dia na minha casa, agora, bem
de vez em quando...’. Mudou! Porque realmente eu fiquei fascinada, com os
estudos, porque estudar mais velha é muito gostoso, pega com um outro jeito.
E tive contato com juventude, que é da minha natureza, eu gosto, gostava de
ver como a vida da mulher estava muito diferente da que eu tive”.
“Você sabe que de uma certa maneira eu conservei tudo porque veja, quando
eu me casei eu nem tinha carta pra guiar, porque se tem uma coisa que eu
gosto é carro! O meu pai não tinha filho homem, então eu era companheira do
papai, andava de bicicleta, ia pra praia, jogava, tinha uma vida solta em Santos.
De repente eu caio em São Paulo, numa família clã, fechada, onde se eu
queria ir na Rua Augusta meu sogro mandava eu ir de chofer, pra mim aquilo
foi terrível. Então eu, com 18 anos, queria tirar carta. E aí? Nenhuma das
minhas cunhadas guiavam. Eram sete. Nem meu sogro guiava! Eu sou
daquelas que consegue o que quer! Às vezes não tão abertamente...uma vez
eu apostei uma coisa idiota com meu marido, eu já tava casada e já tinha dois
filhos. Eu falei ‘Olha, Geraldo, está passando tal filme’, uma bobagem qualquer,
e ele falou que não. Eu falei ‘Quer apostar?’E ele ‘Quero’. Então, eu falei que
se eu ganhasse eu ia começar a aprender a guiar. E ele concordou. No dia
seguinte a auto-escola já tava parada lá em casa. Mas pra você ter idéia, eu ia
com a pajem da minha filha na aula na auto-escola, porque como é que ia
sozinha com um homem? Que perigo! (risos) Eu ia, e fiz meu curso inteiro com
ela e tirei minha carta. E tudo o que eu consegui foi assim, difícil. Aí meus filhos
casaram, eu nem tinha 50 anos, já estavam todos casados, já tinha netos, aí eu
fui trabalhar com a L. e eu fiquei viúva. Eu continuei minha vida, trabalhei ainda
um pouco, mas me casei novamente. Eu fiquei 14 anos casada no meu
segundo casamento, e nessa época os netos eram menores, pra falar a
112
verdade eu curto mesmo neto e neta nessa idade que você está. Porque eu
sempre gostei muito de ler, você vê que aqui tem coisas que a Aline (neta)
estudava. Se as meninas têm qualquer dúvida sobre francês, umas coisas
assim, ou história, elas vêm aqui, a gente conversa, às vezes tem alguma
prova. Não tem nada melhor do que pegar minhas netas e ir pro shopping,
entende? Não tem nada melhor...tanto que eu viajei com elas há uns três anos,
nós fomos pro norte, e no ano seguinte nós fomos pra Argentina, esse ano que
passou eu fui com a minha filha que é a mais engraçada de todas, que é a
Rebeca, e minhas três netas adolescentes, nós fomos para a Europa! Pode
imaginar? E eu levantava uma hora antes delas, porque os banheiros eram
invadidos, e eu ficava zonza!! E eu dizia ‘agora vovó vai tomar banhinho, seu
cafezinho, se arrumar’ porque quando elas levantavam era um tufão! E foi uma
delícia. Adoro a companhia delas, adoro conversar com elas, só que como
você sabe, eu perdi um filho de 42 anos... E isso é uma coisa...você é adulta, e
eu vou falar de alma aberta pra você, porque não adianta eu....isso faz 5 anos.
Isso cortou a minha vida. E corta pra sempre. Foi uma brutalidade, pra
começar. Meu filho nunca tinha ido para o hospital. E você não sabe, você está
tão entregue aos filhos, que não sabe o quanto você ama eles. Olha, domingo
eu tava em Santos, eu fui criada em Santos, e eu tive um sonho que eu vou
contar pra você porque eu acho que ilustra bem. Eu sonhei, sabe pontão de
praia? Porque eu vivi na praia, com meu pai, minha mãe e com Carlos, ele
fazia surf. E eu sonhei que tinha uma competição de surf e que o Carlos tinha
ido. É uma espécie de barquinho que levava as pranchas. E todos foram. E aí
todo mundo começou a ficar preocupado porque o Carlos não voltava. E o
sonho era lindo, colorido, azul, praia, mar, geralmente eu sonho colorido o mar.
E eu comecei a ficar preocupada, porque realmente ele estava demorando um
pouco. Daí eu desci e tinha uma prancha meio quebrada, parecia um
barquinho, mas tava quebrada uma escadinha. E peguei o barco e fui atrás,
procurar. Quando eu já estava bem longe, no alto mar, eu vi que ele já estava
voltando, daí eu voltei rápido, subi e fiquei lá esperando...já tava tranqüila,
porque ele tava voltando. E quando ele chegou, subiu correndo a escada e ria,
e falava: ‘Mãe, você é louca mesmo! Como você se mete nesse barco
quebrado no fundo do mar!’. Sabe, eu sonho muito alegre com ele porque foi
tão brutal a perda que eu tive que... eu não me conformei, não é que eu não
113
me conformei, mas.... Ele tinha almoçado comigo na véspera, nós tínhamos
dado risada, brincado, o dia seguinte...E teve coisas terríveis...ele teve morte
cerebral, você sabia? Ele misturou algumas drogas ... (silêncio)... E eu me
lembro quando minha empregada me chamou, e ela teve uma presença de
espírito...ligaram do hospital e ela falou que...eu vou falar isso pra você porque
a maternidade é uma coisa muito séria. A gente só descobre quando cai nesse
sofrimento. Fazia pouco tempo que eu tinha tido um infarte; a diabetes às
vezes mexe com umas veinhas...eu tenho um coração perfeito, forte, mas .... E
ela disse: ‘Olha, eu não posso falar com a minha patroa porque ela tem
problema de coração, o que foi?’. Aí ela foi lá bater na porta e ela falou: ‘Dona
Elisa, parece que teve um problema e Carlos foi internado, mas está tudo
bem...’ e a minha filha já vinha me buscar. Quando nós chegamos lá no
hospital, ele tava na emergência. Aquilo é um horror! É uma época de
atordoamento...Veio um médico e explicou o que tinha acontecido...e tem um
nível de batimento, eu não sei exatamente o que é, nem estava em condições
de entender, só sei que nosso nível normal de vida é 14. Ele tava com 3, o que
significa morte cerebral. E o médico foi falando, ele foi devagarzinho, mas
falou: ‘A senhora tem que começar a pensar na doação de órgãos...’. então
você imagina o que é isto. Dois dias antes eu tinha feito um almoço
maravilhoso aqui e ele adorava comer, e se matou de comer! E ele quis comer,
nós rimos, brincamos, foi um almoço de despedida porque ele entrou no
elevador, me jogou um beijo, e nunca mais eu vi ele vivo”.
“Você tem tudo na cabeça, de um filho. Você não sabe como presta atenção
num filho. E isso foram as coisas que eu aprendi. E quando os médicos me
deixaram entrar...e eu vi que ele tava corado, respirando forte, o corpo ali,
quente. Não dava pra acreditar! É tão forte a ligação...foi uma experiência
muito triste... Quando eu entrei, o enfermeiro falou pra eu conversar com ele,
chamar, e eu falando: ‘Carlos, luta, abre os olhos!’. E quando eu saí, ele não ia
nem sair do pronto-socorro, o enfermeiro falou: ‘A senhora não quer voltar, por
favor? Ele teve uma melhora, depois que a senhora falou.’ Só que subiu de 3
pra 4, uma coisinha de nada, e o enfermeiro falou: ‘Eu já vi muita coisa
114
estranha acontecer nesse hospital...’. Mas realmente depois tornou a cair. Mas
com isso ele foi removido pra outro hospital porque já havia uma mínima
esperança de vida, subindo de 3 pra 4. Ele ficou mais um dia no outro
hospital....
O Carlos era desquitado, mas tinha 3 filhos, então tive eu que tomar as
decisões que são horríveis. E eu falei pro médico: ‘Se meu filho pudesse salvar
uma criança, salvar uma vida, se ele tem possibilidade disso, é o que ele iria
querer. Mas eu quero que o senhor saiba que eu não confio no senhor, eu não
acredito em nenhum desses exames!’. Porque era inacreditável, de um dia pro
outro, em horas, acreditar numa coisa dessas. E aí que eu agüentei, é do meu
feitio agüentar, eu fico firme e depois eu desabo. Fiquei firme no velório, teve a
missa e no dia seguinte da missa eu fui pra São Roque, eu tenho uma casa lá,
no mato, e eu fiquei uns 6 meses lá, sozinha. Eu não tinha condição de falar
com as pessoas. Eu literalmente acabei. Nem atendia telefone, só minhas
filhas e meus netos ...porque você tem uma caída física e emocional. Fiquei
muito frágil, tão fraca que eu não conseguia andar no jardim. Cai tudo!
“Eu comecei um tratamento com uma grande psiquiatra, e ela é uma cabeça
fantástica. Tanto que estou lendo um trabalho dela, ela esta escrevendo um
trabalho, uma beleza! Tinha que ser uma pessoa assim pra me ajudar. Ela é
altamente qualificada e é uma pessoa maravilhosa...Esse texto dela é uma
beleza, posso até passar uma cópia pra você depois”.
“Um mês, em São Roque mesmo. Ela tinha chácara lá. E eu ia com meu
caseiro e voltava. Foi minha filha que arrumou. Então, eu estava lendo o
trabalho dela e de repente comecei a encontrar o que tinha acontecido comigo.
Por isso que o tempo pra mim é um eterno presente agora, o tempo mudou pra
115
mim. Entendi que meu inconsciente e consciente estabeleceram portas de
comunicação, possibilitando transformações até então inviáveis. Ao modificar o
passado, o rito faz a criatura entrar na reversibilidade do tempo e recriar
simbolicamente o mundo. Isso acontecia comigo, então quando eu comecei a
ler, eu dizia pra ela... e nesse momento ou você morre de vez, o que acontece
com muitas, ou você renasce, e aqui fala ‘Quando nascemos num tempo novo,
precisamos morrer para certas realidades’. Esses ritos de passagem é que são
maravilhosos. Através deles está a aceitação de uma morte para entrar numa
nova vida. Mas é a minha morte. É uma coisa que eu pensei sempre que fosse
assim, e aí vai a maneira de ser de cada um. Eu acredito que muitas pessoas
renasçam por uma lógica, por uma aceitação, e tem um livro que você deveria
ler que chama “Em busca de um Sentido”...
“Esse livro me ajudou muito, porque ele lida com a essência do amor. (Pega o
livro e lê alguns trechos) :
Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio (Você sabe, ele ele
esteve num campo de concentração) vadeando pela neve (...) nenhum de nós
pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só
pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo
as estrelas (...) converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a
sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e- tanto
faz se é real ou não a sua presença- seu olhar agora brilha com mais
intensidade que o sol que está nascendo (...) Continuo falando com ela, e ela
continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa
ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a
existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência
espiritual da pessoa amada, a seu “ser assim” que a sua “presença” e seu
“estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física em si e
independentemente de seu estar com vida (...) As circunstâncias externas não
conseguiam mais interferir no meu amor, nas minhas lembranças e na
contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela
116
ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este
conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação
amorosa .
É lindo!
Dá até pra perceber isso pelo sonho que a senhora contou...A senhora
estava num barquinho quebrado e...
“Encontrei Carlos e ele caçoou da minha loucura... era uma relação nossa, nós
nos entendíamos muito bem! Brigávamos pra burro e nos entendíamos muito
bem. Minha psiquiatra ainda falou ‘Meu Deus, Elisa como você amava esse
filho!” Nunca passa pela sua cabeça perder um filho ... Eu emagreci uma
barbaridade... fiquei completamente sem força; mas depois que eu passei por
esse trauma , eu tive uma ajuda fantástica, tanto que consegui ser forte
novamente e fui devagarzinho me recuperando. Agora eu mudei... eu sei que
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mudei. Hoje, eu corto muita coisa que acho supérfluo! Tem uma porção de
coisas que você tolera a vida inteira e que não gosta, né? Agora, eu não tolero
mais! Imagina que se eu tenho um casamento e não estiver com vontade de ir,
eu não vou mesmo! Que besteira meu Deus do céu, entendeu? Tem tanta
coisa boa! Eu adoro mexer no computador, adoro pintar, meu grupo de pintura
é ótimo, elas são pessoas inteligentes; é uma verdadeira terapia o que eu faço
na pintura! O computador também é muito gostoso, eu estou me
comunicando... E eu conservo muito hoje minha família, porque eu acho que eu
sou o elo que... Então meus netos ligam, mandam e-mail...é só e-mail de neto,
neto, neto”...(risos)
“No momento em que ele faltou, apesar dele ser desquitado...o Carlos reunia
os filhos todas as semanas e, ele era boêmio, ele sempre foi boêmio...e
distraído! Em Brasília eu entrei no quarto, e o Carlos estava assim: com o lápis
no ar, de pijama, eram 8:30, estava na hora do colégio e eu falei, “Filho, você
ainda está desse jeito?” Ele falou: “Mamãe desculpa, puxou a coberta e deitou!
Ele achou que era hora de dormir, e era hora de tomar banho e ir para o
colégio”. Eu e ele juntos também era terrível, porque eu sou muito distraída.
Teve uma vez que eu fui no cinema e falei pra moça, ‘Por favor eu quero uma
entrada pra Senhora do Destino’, ela falou: ‘Será que a senhora não prefere A
Dona da História?’ (risos) eu troco o nome dos filmes”.
“E hoje o Carlos não tem essa possibilidade de ficar com os 3 filhos, né?
Então, vira e mexe eles vem aqui... eu tenho essa preocupação de ajudar . A
minha filha Rebeca também faz muito...assumiu o papel de tia mesmo, de
verdade, para ajudar o Carlos. Porque a gente sabe que ele queria essa união
118
dos filhos...Eu tenho uma manifestação nervosa, você sabe o que é psoríase?
É uma manifestação emocional que a pele fica... dá pra você ver aqui?...Isso
aqui, fica cheio de casquinha, eu comecei a coçar, e começou a subir,
começou a aparecer nas pernas, nas costas e a pressão começou a mexer.
Então, eu fui pra Lapinha, que é uma clínica naturalista, tratar uma semana e
acabei ficando 21 dias. Lá você esquece do mundo, faz tudo que tinha pra
fazer sem forçar, é uma beleza de desintoxicação da cabeça e do corpo! Meu
médico falou que eu sempre vou ter um motivo de desgaste emocional, que vai
exigir do meu corpo. Então, eu preciso cuidar muito do corpo para compensar
... por isso que eu ando, faço exercícios, no fim de semana eu viajo bastante...e
estou sempre em contato com a família... Realmente são só coisas agradáveis
que faço hoje em dia. É lógico que se alguém precisar de mim pra uma
doença...mas eu acho que todos me poupam um pouco, porque tudo está bem
agora, mas pra me abalar é fácil porque...
Eu sou feminista no sentido... eu acho que a mulher não deve procurar ser
igual o homem, porque a mulher é muito melhor que o homem (risos). O
homem pode ter grandes vantagens, mas a mulher é o caminho da vida, ela
tem inteligência, tem sensibilidade, tem delicadeza de sentimento maior. Lógico
que os homens têm suas qualidades mais fortes e que é preciso que
tenham...Nós não vamos ser mais fortes que eles em certas coisas. O
equilíbrio é o que eu acho que hoje abriu uma porta para as mulheres que era
negada...Havia 2 tipos de mulher, a puta e a pura, só não existia o meio termo.
Hoje a mulher tomou conta do seu lugar, da sua liberdade, estuda, trabalha.
Mas, a grande realização da mulher é o filho; eu acho que depois que o filho
cresce, que ele não precisa mais de você, aí você vai se realizar. Tem uma
frase da Cora Coralina, você conhece a Cora Coralina? “
Conheço...
“Ela diz que a mulher de 50 anos está na sua plenitude, porque... veja o que
ela colocou...ela está livre da menstruação (risos), normalmente tem filhos e
genros, já deverá ter netos...Ela está absolutamente completa, de maneira que
ela dispensa até o homem. Aí, ela escolhe: ou ela vai ser uma vovozinha,
119
fazendo tricô dentro de casa, ou ela vai curtir uma vida absolutamente livre com
uma bagagem de experiência total. É lindo isso...eu diria que foi justamente na
época que eu fui trabalhar com 49 anos. O que foi inesperado foi o baque da
perda do Carlos”.
120
deles e tudo. A vida que eu levo, as coisas que eu faço, estou sempre
procurando ver filmes bons, estou sempre procurando sair e me ocupar com
coisas que ocupem a minha cabeça porque eu tenho uma cabeça que pensa
muito e não pode ficar desocupada. Eu tenho uma vida cheia porque me
ocupar me faz bem. Se eu não me ocupo o Sol escurece...A minha expectativa
de vida foi transferida para minha família... é a minha vida hoje, porque eu
preciso encher a minha vida. Hoje eu estou bem, estou bem vestida e bem
cuidada. Minha família é o que me impulsiona, é o que me alegra, eu sinto que
eu substitui aquilo que você espera para si mesmo; eu espero para a minha
família. Eu vivo por eles, e isso é uma coisa muito boa...”
“Foi muito difícil... sentia culpa por não ter percebido que não estava tudo tão
bem como parecia...fiquei em São Roque...quase desisti de tudo... mas, agora
não...sinto muita saudades... A saudade é a dor da ausência da
presença...porque ele não está ausente, pelo contrário, acho que ele está mais
presente...”
“Nunca...”
“Eu fiquei em cadeira de rodas uma vez com quarenta e poucos anos devido
ao estresse que eu tive. E não era nada, não tomei nenhum remédio, era só
emocional ... O que eu acho que na minha vida faltou é que sempre que você
tem que tomar uma posição na sua vida deve impor os seus limites com calma.
Quando você for levada a ceder no que você é, no que você deseja, no que
121
você acha certo; nunca admita ser violentada na sua índole, nos seus
sentimentos. Saiba impor os seus limites! Não deixar que as pessoas, o marido
ou seja lá quem for avance no seu limite. E se você fizer isto sempre, irá
conseguir fazer isto com calma, sem se violentar ou violentar a sua natureza.
Eu acho que isto é básico em qualquer momento, seja no trabalho, no contato
com as pessoas, no casamento, até com os filhos. O respeito enfim é o mais
importante, pois no momento em que você cede irá se desgastar e
dependendo da violência que você sofre, violência não estou dizendo física,
estou dizendo violência contra sua natureza; o que você se força a fazer chega
num ponto em que ou você irá explodir ou irá ficar doente; porque isto é
também uma coisa que aconteceu comigo, com 45 anos. Apesar de eu ter
conseguido tanta coisa, para viver uma vida com uma homem de qualidades
maravilhosas mas que foi um homem muito autoritário, eu casei muito criança
sem saber impor os meus limites... eu passei da autoridade da mãe para a
autoridade do meu marido, isto não existe mais hoje, vocês casam em outras
situações, mas sempre existe. Eu acho que quando a pessoa se respeita ela
leva a vida com mais segurança, com paz, e isto até transparece para que a
outra pessoa não abuse de você. Por que senão, de alguma maneira se você
se violentar, de alguma maneira isto vai te prejudicar, ou fisicamente. Então,
quando você é muito violentada; e isso que eu acho que é o grande presente
que vocês tem hoje da vida, pois hoje vocês têm um direito de estudar, de
querer, de escolher; antigamente você era levada, pois os pais decidiam o que
era melhor para você, depois o marido. No momento em que você mantém
tranqüilamente aquilo que você é, aquilo que você deseja enfim, mantendo os
seus limites e vendo o do outro, é lógico, tem que haver uma troca nisto, aí
você vence qualquer coisa. Só na maneira de você falar o retorno já vem
equilibrado. Tem uma fala: ‘Meu Deus me ajude a lutar pelas coisas que devo
lutar, Meu Deus me ajude a não lutar pelas coisas que não devo lutar; e
principalmente saber distinguir uma da outra’. Isto é uma coisa sábia pois às
vezes você luta em vão ou cede em vão, e é preciso saber quando ceder mas
sempre dentro da sua dignidade”.
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A senhora falou da situação do estresse com 40 anos, a senhora ficou em
cadeira de rodas?
“Não, não meu bem! É que eu não sei se isso interessa para você! O meu
primeiro casamento foi muito difícil, meu marido era um homem de uma
inteligência brilhante, mas ele tinha traços neuróticos, eu não sei definir
exatamente. Tinha uma ótima postura, tanto que ele ocupou grandes cargos,
era brilhante! Mas como ele não tinha uma resistência nervosa, o que foi
piorando com a idade porque ele era um alcoólatra também, isso trouxe uma
vida pesada em casa, e foi aí que eu me desgastei muito. Por isso que eu falei
dos limites, houve um momento em que eu tinha uns 28 anos, que eu fui por
uma linha errada. Eu pensei ‘se eu conseguir ter um lar normal e tranqüilo,
como o que eu cresci, os meus filhos irão crescer com a cabeça boa! Se eles
crescerem dentro de um lar perturbado, pela minha vida com meu marido, eles
irão ficar todos perturbados!’. Mas ao fazer isto, eu renunciei às coisas que eu
gostava, eu virei aquela ‘panos-quentes’ que qualquer coisa eu ajeitava,
ninguém consegue viver assim, com o tempo seu organismo não agüenta!
Você tem as suas necessidades, seus desejos, suas vontades. Eu consegui
sublimar minha vida através de estudo, através de faculdade, tanto que meu
médico dizia para eu não parar de estudar, porque era uma fuga. E realmente,
quando a mamãe morreu, com 44 anos eu tive um estresse emocional que foi
tratado com análise, não tomava remédio nenhum! Tá vendo aqui uma
deformação óssea? Aqui na minha mão? Isso eu tive aos 40 anos, nos pés, na
coluna, até no maxilar! Fiz análise muito tempo, mas ainda brincava que eu era
como um vazinho que foi regado. Por isso eu acho importante saber dizer “não,
eu não gosto disso”, “não, agora eu não vou porque não estou com vontade!”.
É ruim ser criada só com a noção de dever, como eu fui; tanto que minha
analista fala que naquela época eu fiz uma coisa terrível, eu atentei contra
minha vida! A vida é a gente se satisfazer também, com a leitura de um livro,
123
com um filme, com um sorvete, com um pôr-do-sol, um banho de mar, e está
em condições saborear tudo isso. Mas a gente se recupera, até o meu coração
eu recuperei, não tem nem marcas! Eu tive um enfarte, justamente por causa
de todos estes desgastes, minha pressão começou a subir... Por isso é que eu
digo, não é só cuidar, a vida é um todo e você está dentro desse todo. E eu
falei em violência, não se deixe violentar, porque foi o diagnóstico médico que
eu obtive a primeira vez que eu fui ver o que estava acontecendo. O médico
falou ‘ainda bem que a senhora está com a cara ótima, está rindo e tudo mais,
mas a senhora está péssima! Está com estresse, dores... e a senhora não vai
tomar nenhum remédio, a senhora vai pra um analista!’ E realmente eu sarei,
mas isso porque eu tive consciência disso que vocês tem hoje, me ver, me
respeitar também. Eu não sei, houve um tempo em que eu pensava ‘nossa, eu
vivi tanto tempo’, estava sempre lutando, mas eu tinha a impressão que eu
tinha passado muito por cima das coisas; porque o meu primeiro marido tinha
um problema psicológico então ele era um homem extremamente gentil e
extremamente violento. Hoje eu acho que a personalidade dele mexeu muito
com Carlos... E como eu era muito criança no início, e naquela época as coisas
eram muito diferentes, eu achei que a minha função maior seria manter um
laço, um lar mais adequado para criar filhos saudáveis. Mas talvez eu tenha
desistido demais de mim e isso foi um erro...para mim e para meus filhos... No
momento em que você sacrifica você mesmo além do que deve por
determinadas coisas você está atentando sobre a coisa mais preciosa que
existe que é a vida! E você não pode destruir a vida que existe em você”.
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Tá certo... muito bom!
“Ajudou?”
“Eu preciso pensar que tenho que continuar, que ainda tem muita coisa para
fazer! Nunca acaba... e eu acho que envelhecer é uma coisa tão natural da
vida, não pesa o envelhecer. Outro dia na aula tinha uma moça que ia fazer
pesca submarina e eu falei ‘isto é uma limitação chata da idade da gente’ e
pensei que delícia que deve ser! Estas são as limitações da idade, mas tem
muita compensação também! Teve um livro que eu li quando eu tive esse
estresse quando tinha 40 e poucos anos, que chama “Passagens”, ele já está
ultrapassado, outro dia eu o peguei e não achei mais graça! Mas na época foi
ótimo! Inclusive dizia ‘o ardil dos 30’, hoje a mulher de 40 anos, parece ter 30, e
ele dizia uma coisa que eu nunca mais esqueci: que esta história de que a vida
tem verão, outono, inverno... não é assim; a vida tem várias primaveras, vários
verões, vários outonos e vários invernos! Se você me perguntasse hoje: ‘Elisa,
você gostaria de voltar a ser menina?’ Eu diria não. Não que lá não tivesse
coisas boas... Mas eu acho que o segredo da vida é procurar ter uma paz
interior para poder ver melhor o que está na sua frente...
Eu acho que...Eu tenho uma neta, que é magrinha, cabelos compridos, que
parece muito comigo e com a minha filha. Outro dia convidaram ela para
dançar em um teatro e ela dançou uma música lindíssima, clássica moderna,
ela estava sofisticada com o cabelo comprido, maquiada, e vendo ela
dançando no palco, eu passei por uma experiência incrível. Eu via a minha
neta dançar, eu via a minha filha e me via! Foi tão forte isto que eu falei para
minha filha ‘só isto já justifica toda a minha vida!’ E eu disse, vendo minha neta
dançar foi uma coisa tão forte porque ela virava e eu me via, ela parece
comigo, e via minha filha. E eu falei ‘isso é o que é a vida!’
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Que lindo, Dona Elisa! Muito obrigada pela entrevista... gostei muito de a
conhecer a senhora...
O que é isso, eu te adorei! Vou mandar um texto que recebi de minha analista
para você por e-mail, sabe, agora eu estou aprendendo a usar a internet, estou
lutando, tem horas que dá vontade de jogar o computador no chão. Mas estou
fazendo aulas de computação, e sou aquelas alunas chatas, pois tudo eu quero
saber! Hoje eu tenho aula e vou saber o que é o tal do msn. Um dia eu mandei
um e-mail com um texto bonito para minha filha, e ela me respondeu falando
que gostou muito e que estava feliz das minhas novas aprendizagens! Aí eu
mandei um e-mail para ela falando que eu tinha gostado bastante e que
qualquer dúvida que ela tivesse, era só me perguntar! (risos).
126
ENTREVISTA COM INÊS
Casada, 64 anos, psiquiatra.
Agora mais especificamente o luto materno por suicídio, você junta o luto, o
não natural, mais um tema tabu, que é o suicídio em si. Então, você me
pergunta sobre essa elaboração...é um processo muito trabalhoso, ainda mais
por suicídio do filho. Eu não estou querendo classificar intensidades ou graus
de trabalho que dão lutos maternos... Por um lado é claro, as pessoas têm
sensibilidade adequada para com o outro, afinal não é a qualquer momento
que a dona ou o dono de um luto quer falar sobre ele; há momentos em que
você está precisando da energia para fazer outra coisa. Mas, não se trata
desse cuidado com o enlutado para não invadir ou forçá-lo a falar quando não
quer, mas eu ressalto essa espécie de proibição...não é educado abrir espaço
para o tema do suicídio...e isso de fato atrapalha muito, porque há momentos
em que a pessoa enlutada com um tema tão difícil quer um interlocutor...e se já
é difícil falar, para o interlocutor ouvir sem dar um jeito de engavetar...Isso
dificulta a elaboração...É como uma ferida na pele que para cicatrizar não se
pode ficar cutucando toda hora, mas também não se pode deixar de mexer,
olhar, cuidar. A elaboração desse luto é uma transcendência desse fato, é uma
coisa que pode acontecer a qualquer um. É natural, acontece. Como a chuva,
como o trovão, como as marés ou a tempestade. Há que perceber, há que se
viver, sentir, se recolher, se molhar, nadar, boiar, mergulhar, cavar, contemplar,
é complexo, trabalhoso, por um lado tão "antinatura" e por outro tão natural.
A gente não é mais pintada que o outro, a gente não é especial porque isso
acontece, né? Não é fácil para ninguém. Eu também perdi meu pai muito cedo,
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com 10 meses...Embora perder os pais seja mais natural que perder os filhos,
não do jeito que foi para mim, que perdi meu pai muito cedo. Veja, eu não
quero tentar te interpretar, mas querendo responder sua pergunta, de que jeito
que é essa elaboração, e eu acho que é isso que você está fazendo: você está
usando seus recursos, a sua criatividade, aplicando num trabalho. Cada um vai
usar os recurso que tem, os meios que tem...Uma pessoa pode recorrer à
pintura, religião, rituais de ajuda, grupos para participar, partilhar, compartilhar
vivências de fortes lutos...É como um colo: poder falar, compartilhar.
As pessoas têm diferentes forças para reagir aos traumas...Minha mãe passou
por um luto patológico, porque ela perdeu o marido na fase de apaixonamento
e não conseguiu se recuperar direito nunca. Eu tinha só dez meses, mas cresci
com esse pavor de ficar presa num luto de alguma situação...Como tudo pode
ter a sua serventia, para mim isso teve também, sabe? Eu sou “luto-patológico-
fóbica” (risos). Então eu já pensava muito sobre esse tema da morte não
natural, da morte precoce acontecer perto de mim...rolou dessa forma na minha
vida...
Tem um trabalho sobre stress-pós-traumático que descreve um quadro que
chamam de crescimento-pós-traumático, o CEPT. Tem o TEPT, que é o
transtorno do estresse-pós-traumático e o CEPT, que é quando as pessoas
crescem depois do trauma. Então a finalidade da ajuda psicoterápica ou
qualquer outra forma de ajuda é transformar um TEPT num CEPT, porque o
trauma gera um desequilíbrio. Não tem como ficar do jeito que você estava,
andando no ritmo que você andava, não é? Até para não cair você precisa dar
uma corridinha, porque mexe com a dinâmica...Com uma porrada o ego
mergulha no self e ele pode ficar preso, que é o luto patológico, que é o TEPT,
como ele pode sair de lá, depois de ter sofrido muito, mas fortificado...igual ele
não fica...
Se a culpa no suicídio do filho é inevitável, a falsa culpa também é, porque até
de ficar bem você se sente culpada. Eu lembrei de um casal amigos de meus
pais que tinha um filho único que foi fazer faculdade na Inglaterra. Então eu e
meu marido nos tornamos muito amigos desse casal e eles acabaram
adotando minha família e a gente adotou eles. Era um senhor e uma senhora
muito idosos...Eu aprendi muito com essa senhora, e ela me mimava muito,
talvez como forma de compensar o filho que não estava perto para ela
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mimar...Ela era um encanto, muito delicada, generosa. E ela sabia que eu
gostava muito de fruta do conde e ela comprava na feira na estação certa,
porque naquela época não é como agora que tem fruta o ano inteiro, e me
dava só porque sabia que eu gostava...eu estava grávida, tinha criança
pequena...e íamos bastante na casa dela...Ela sempre guardava a fruta do
conde para mim. Eu sabia que ela também gostava muito de fruta do conde, e
o filho que dela que estava na Inglaterra amava. Só que eu vinha e ela dava
para mim e eu via que ela não comia. Ela falava “leva para você”, e eu dizia
“mas a senhora gosta” e ela sempre insistia para eu levar. Até que um dia eu
falei “Não! A senhora vai me explicar por que não come; a senhora gosta!” E
ela me explicou que ao saber que na Inglaterra não tinha fruta do conde e por
isso seu filho não podia comer a fruta que tanto gostava, “então eu não como”
(risos). Então tem isso, né? Se ela comesse a fruta se sentiria culpada, porque
como é que ela se permitiria comer algo que gostava muito, e que só dava uma
vez por ano, se o filho estava privado? No luto materno o filho também está
privado de tanta coisa, no imaginário, e você vai comer alguma coisa que seu
filho gostava? É impossível não lembrar, não se sentir culpada. Se você lembra
de algo que um filho vivo gosta de comer, é só mandar para casa dele. O meu
neto uma vez me perguntou: “Vovó, será que no céu tem purê de batata para o
papai? Porque se não tiver e ele ver a gente comendo, ele não vai ficar com
vontade?”
Você já pensou que existe ex-marido, ex-namorado, mas não tem ex-filho, ex-
mãe. Eu não deixei de ter um filho porque ele morreu. Eu tive 5 filhos, e não é
que antes eu tinha 5 e agora eu tenho 4; eu tenho quatro vivos e um morto. Ele
continua ocupando um espaço na sua vida, falam dele...carne moída, purê de
batata, arroz, feijão e salada de tomate, todos em casa lembram dele...não só
eu. A empregada quando faz essa comida comenta: “hoje é a comida do
Fernando”. Como ele morava em Floripa e lá ele não fazia esse tipo de comida
de casa de mãe, quando ele dizia: “Mãe, vou chegar, faz aquela?” Tem um
filho que morre, mas tem uma outra forma de vida, a imagem dele fica...como a
do seu pai...que apesar de ter morrido, continua presente...
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