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INTRODUÇÃO
Nesse sentido, podemos visualizar o avanço das fronteiras por meio da criação
dos trilhos de trem, ou ainda pela fundação das cidades. Isso criou uma denominação,
“Oeste Paulista”, que flutuou na medida do tempo e do espaço ora designado, isto é, no
século XVIII representava a região de Campinas, posteriormente, em meados do século
XIX, passou a compreender o atual norte do estado, conformado pelas cidades de
Ribeirão Preto, Araraquara, São José do Rio Preto, recebendo o nome de Novo Oeste
Paulista, finalmente, no início do século XX, o Oeste Paulista se deslocou para a região
que se iniciava com os trilhos da estrada Noroeste de Bauru.
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seus costumes, idioma, culinária e cultura de uma forma mais abrangente, tornaram-se
parte das características da região.
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Companhia das Letras, sendo que em 2011 foi editada a terceira edição, mesmo ano que
foi lançada uma adaptação do livro para as telas do cinema (Corações Sujos, 2011 – Dir.
Vicente Amorim).
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Em um artigo de Peter Burke publicado no Brasil pela Editora Unesp em 1992, o
historiador britânico discutia o “renascimento da narrativa”, colocando a questão que
polarizava, de um lado, aqueles que defendiam que a escrita da história deveria “considerar as
estruturas mais seriamente que os acontecimentos”, em oposição àqueles que diziam que “a
função do historiador é contar uma história”. (BURKE, 1992: 330) A proposta de Burke era “de
se investigar a possibilidade de encontrar um modo de escapar a este confronto entre
narradores e analistas.” (Idem: 333) Em suma, seria possível “fazer uma narrativa densa o
bastante, para lidar não apenas com a sequência dos acontecimentos e das intenções
conscientes dos atores nesses acontecimentos, mas também com as estruturas – instituições,
modos de pensar, etc. – e se elas atuam como freio ou um acelerador para os acontecimentos.
Como seria uma narrativa desse tipo?” (Idem: 339) E nessa tentativa, ele sugere: “Poder-se-ia
esperar que o chamado “romance de não-ficção” pudesse ter tido algo a oferecer aos
historiadores, ...” (Idem: 340)
Anos mais tarde, as historiadoras Raquel Glezer e Sara Albieri, no artigo O campo da
história e as “obras fronteiriças” (Revista IEB, nº 48, março de 2009, 15-30), define como “obras
fronteiriças” aquelas que o leitor comum considera de história, e que são “formas tradicionais
de primeiro contato do leitor com a história, fora do contexto escolar.” E elas acrescentam que:
E um dos jornalistas citados pelas autoras é Fernando Morais, que escreveu Olga (1985),
Chatô: o rei do Brasil (1994), e Corações sujos (2000 e que recebeu o Prêmio Jabuti – Livro do
ano de 2001). Estas obras fronteiriças, também chamadas pelas autoras de “quase história” se
aproximam de obras escritas por historiadores que adotaram a forma de narrativa literária,
“como o faz Mary del Priore, em O Príncipe Maldito.”
A questão colocada pelas autoras remete a uma discussão de como identificar as marcas
de uma obra histórica, não-ficcional, de uma obra literária, como a de um romance histórico,
uma vez que o que as define parece ser “a boa certificação histórica de parte de seus elementos
constitutivos – personagens, cenários ou episódios.” (GLEZER & ALBIERI, 2009: 25) No entanto,
o que mais chamam a atenção, trata-se das “convenções discursivas da história”, que balizam e
justificam o conhecimento confiável, em síntese, o conhecimento histórico científico,
demarcado por uma série de procedimentos e condutas diante das fontes, onde “a exatidão não
é uma qualidade do historiador, mas sua obrigação”, e mais, “por trás do discurso
historiográfico, há um sujeito que o produz”. (BORGES, 2006: 217, 220)
Talvez todas essas questões possam ser melhor pensadas à luz da diferença atribuída
por Walter Benjamin (1994: 209) entre o cronista e o historiador, quando diz para prestarmos
atenção entre “quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador
é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida...”
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II – O NARRADOR DE CORAÇÕES SUJOS
A narrativa pode ser caracterizada a partir de alguns elementos, tais como foco
narrativo, tempo, espaço, personagens e enredo. A análise de narrativas nos ajudará a traçar o
perfil de Corações Sujos, tendo em vista também seu diálogo com a história.
O foco narrativo pode ser de dois tipos, segundo Brait (2002), o narrador em primeira e
em terceira pessoa do singular. No caso de Corações Sujos, a forma inicial de sua história começa
dizendo assim:
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A voz rouca e arrastada parecia vir de outro mundo. Eram
pontualmente nove horas da manhã do dia 1º de janeiro de 1946
quando ela soou nos alto-falantes dos rádios de todo o Japão. A
pronúncia das primeiras sílabas foi suficiente para que 100 milhões de
pessoas identificassem quem falava. Era a mesma voz que quatro
meses antes se dirigia aos japoneses, pela primeira vez em 5 mil anos
de história do país, para anunciar que havia chegado o momento de
“suportar o insuportável”: a rendição do Japão às forças aliadas na
Segunda Guerra Mundial. (MORAIS, 2011: 9)
Como se percebe, o narrador aparece como uma voz onisciente, muito comum em
documentários que utilizam do artifício da “voz over”, para narrar determinados fatos ou
circunstâncias que ajudem o leitor/ouvinte a se situar no contexto histórico. Na visão de Brait
(2002:53) a visão desse tipo de narrador, isto é, o de terceira pessoa, corresponde ao papel de
“uma verdadeira câmera” que sabe de tudo que se passa dentro da história.
O ar de intimidade com que trata o narrador determinadas situações, indicam um
apurado grau de conhecimento das fontes, primárias e secundárias, que permitiram a
reconstrução de diálogos e situações, como se o narrador estivesse estado no local. Assim,
Franco & Souza (2012: 8) afirmam que a “onisciência deste narrador chega ao seu ápice quando
é oferecida voz ao personagem, “mostrando” o que ele poderia estar pensando, uma maneira
de demonstrar que o narrador realmente conhece seu personagem a fundo.”
Mas a palavra, quando dada aos personagens, ocorre de forma rara, isto porque foi
permitido ao narrador conhecer uma personagem de forma profunda, e por tratar-se de um
livro-reportagem, “estes recursos literários necessários são utilizados para estruturar a narrativa
e fazem parte do que Aristóteles chamou de verossimilhança, ou seja, aquilo que não é
necessariamente o verdadeiro, mas o que parece sê-lo, graças à coerência da representação-
apresentação fictícia”. (Franco & Souza, 2012: 8)
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Por sua vez, Cândida Gancho (2006: 25) define tempo psicológico como o tempo que
está ligado ao enredo não-linear, no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural e que
é determinado “pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou das personagens”.
No episódio que Morais narra a tentativa de matar o empresário Shibata Myakochi,
podemos ver o uso do tempo psicológico do personagem Hidaka:
Além das acelerações no tempo, são utilizados recursos como flashbacks, retardações e
elipses na narrativa. O primeiro capítulo do livro apresenta o “caso bandeira” e na sequencia os
“sete heróis” de Tupã, de forma sumária, sem aprofundamento da história e de seus
personagens, no entanto, no capítulo 7, quando Morais trata de Eiiti Sakane, um dos “heróis”
de Tupã, utiliza um flashback para fazer referência ao capítulo primeiro.
O terceiro elemento que iremos tratar é o espaço, que é entendido como o lugar onde
ocorrem as “cenas” narradas. Em Corações Sujos, encontramos o espaço urbano, representado
pela cidade de São Paulo, e o espaço rural, onde são descritas as atividades agrícolas realizadas
em cidades do interior paulista, como Bastos, Tupã, Marília, e outras. O espaço pode ser aberto
ou fechado, e nesse sentido, podemos notar a conjunção de dois elementos, no qual o espaço
rural normalmente é aberto, como na descrição que Morais faz da perseguição policial aos
tokkotai, dizendo:
Cândida Gancho (2006:19) conceitua ambiente como sendo a relação entre tempo e
espaço, e onde situações socioeconômicas, morais, religiosas e psicológicas podem determinar
o clima do espaço social. Em Corações Sujos, o ambiente é formado por um clima de terror,
advindo da Segunda Guerra mundial, das proibições e das leis que restringiram a mobilidade da
população japonesa no Brasil, e posteriormente pelos ataques que levaram a morte várias
pessoas da comunidade nos meses que seguiram após o fim da Guerra.
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O quarto elemento a ser tratado são as personagens, e uma vez que elas são as
responsáveis pelo desenvolvimento do enredo, podem ser protagonistas, antagonistas, ou ainda
personagem secundária. Corações Sujos apresenta diversas personagens, e a própria “Shindo
Renmei pode ser considerada protagonista na história, já que o livro gira em torno desta
organização japonesa.” (FRANCO & SOUZA, 2012: 5) Por sua vez, o coronel Junji Kikawa é
constantemente citado durante todo o enredo por comandar a Shindo Renmei, mas ele pode
ser categorizado, segundo definições de Gancho (2006), como secundário, visto que é um dos
“cabeças” do grupo, mas dentro do enredo ele não é o foco, assim como os “sete heróis” de
Tupã e muitos outros.
Uma pequena biografia de Osamu Toyama foi publicada no livro Cem anos de águas
corridas da comunidade japonesa. Ele nasceu em Hamamatsu, província de Shizuoka, em 1941.
Formou-se no Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de
Doshisha, em 1965. No ano seguinte veio ao Brasil como imigrante. Depois de trabalhar como
repórter no jornal de língua japonesa São Paulo Shimbun, em 1982, foi editor da Agro-Nascente,
a revista agrícola que fundou com alguns colegas. É jornalista autônomo desde 1987.
O livro Cem anos de águas corridas da comunidade japonesa foi publicado inicialmente
em 2006, em língua japonesa, e no ano seguinte recebeu da Sociedade Brasileira de Cultura
Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) o Prêmio Literário da Colônia. Em 2009, com apoio da
Fundação Japão, o “livro de não-ficção” recebeu a versão em português com 597 páginas,
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divididas por uma mensagem do Embaixador do Japão no Brasil Ken Shimanouchi, a
apresentação por Hachiro Nagayama, o Prefácio do autor, seguidos por 24 capítulos e a
Conclusão.
Na mensagem do embaixador nos é dito:
Diferente da forma adotada por Fernando Morais, o foco narrativo em Cem anos de
águas corridas da comunidade japonesa, Osamu Toyama, o narrador, se coloca na primeira
pessoa, em outras palavras, é o sujeito responsável pela ação, “é um ser que pertence à história
e que portanto, só existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age e fala.”
(GANCHO, 2006: 14) Essa opção é vista pelo leitor nos três primeiros parágrafos do capítulo 1,
em que o autor narrará sobre os pioneiros da imigração japonesa para o Brasil. Vejamos:
Como podemos notar, o narrador em primeira pessoa se coloca dentro do enredo, como
personagem, que inclusive se vale da memória para iniciar seu relato, sua história. Aliás, o
artifício utilizado pelo narrador é o de se valer das histórias contadas pelo personagem Nanju
para guia-lo ao passado, a esse tempo anterior aos anos de 1960, em que se iniciou a narrativa.
No entanto, o autor do livro, assegura no Prefácio que:
Assim, a partir dessas palavras, podemos notar como o autor escolhe, com cuidado o
foco narrativo a ser adotado, pois passados quase trinta anos de sua presença no Brasil, o autor,
como integrante dessa comunidade japonesa de imigrantes e como jornalista da comunidade,
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não acreditou no que aconteceu, e um sentimento de inconformidade com a ausência de
respostas o levaram a buscá-las, e nesse processo acabou retrocedendo no tempo do navio
Kasato-maru.
A Colônia Aliança recebeu até 1939, dez anos após sua instalação, 697
famílias, totalizando mais de 3.780 colonos.
O êxito da Colônia Aliança estimulou a participação de
províncias japonesas em empreendimentos coloniais no Brasil,
inaugurando uma nova fase da imigração.
Por que as províncias participaram?
A resposta a esta dúvida também será esclarecida no final deste
capítulo.
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Mas qual a razão dos subsídios às cooperativas? E da concessão
simultânea de crédito?
Permitam-me outra vez responder a essa questão adiante.
(...)
Por ora deixo de falar da Tozan para voltar aos investimentos
japoneses no Brasil.
(...)
Outra vez reservo esse assunto para falar adiante. Peço-lhes um
pouco de paciência.
(...)
Por quê? É a pergunta que faço pela sexta vez e prometo
responder adiante, quando falar dos bastidores da política.
Mas, antes, não posso deixar de mencionar um triste fato...
(TOYAMA, 2009: 129-141)
Essa forma de narrar é muito comum no texto de Toyama, ou seja, o uso de digressões,
e estas muitas vezes apresentam histórias no meio de outras histórias, para então voltar à
história anterior, chamada de alternância. (Cf. MAGALHÃES; SENTO SÉ; GUENA, 2013: 11)
Interessante notar que o próprio texto indica essas figuras de duração (pausa/alternância) com
um espaço maior entre os parágrafos. O longo trecho a seguir ilustra bem isso.
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“Ouço que foi malária maligna, agravada por
icterícia. Entretanto, eu duvido. Não teria sido
febre amarela florestal?”
Como se depreende do trecho citado acima, o autor tece uma combinação de tempo e
espaço, procurando criar um ambiente que permite perceber e informar ao leitor as confusões
psicológicas em que as personagens estão inseridas. (Cf. FRANCO & SOUZA, 2012: 7) Nesse caso,
o amor de um senhor de 50 anos, casado, mas que ainda alimentava sentimentos pelo seu
“primeiro amor”, Otatsu-san. O deslocamento de Nanju de São Paulo para a cidade de Tendo, e
desta para um hotel, revela a transição do espaço público para o privado, de um espaço social
amplo e aberto, para um microespaço. Aliás, essa é uma das únicas passagens que o narrador
quebra a sequência de relatos onde os protagonistas das ações são figuras masculinas.
Obviamente, o caráter da narrativa romântica aqui exposta está adaptado ao interesse do
narrador, que em nenhum momento deseja sugerir que houve algo entre o casal, até mesmo
porque ele afirma que “Nanju possuía também família em São Paulo. Queria apenas vê-la e
conversar com ela – era o que bastava. Coisas como essa ocorriam nessa época sem causar
surpresa a ninguém.” (TOYAMA, 2009: 157)
Essa história que revela segredos, contada para o leitor, como se fossem íntimos, é uma
forma de dialogar com o passado expresso no capítulo primeiro, quando ao descrever a origem
do velho Nanju, declara:
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Nanju nasceu na província de Yamagata em 1878. Usava o pseudônimo
literário Nanju para escrever versos apaixonados de tanka, dedicados
ao primeiro amor de sua vida. Passou a vida compondo versos sem
nenhum constrangimento:
Vale ainda dizer que a comunidade japonesa foi retratada como um pequeno rio que
em sua nascente se assemelha a pequenos ribeiros de água, que ao correrem rumo ao seu
destino vão recebendo águas de outros pequenos rios, e assim ele vai se tornando cada vez mais
caudaloso.
De qualquer forma, tanto no livro de Fernando Morais quanto no de Toyama, a presença
feminina é quase inexistente, muitas vezes sem nome, como a “irmã de Hirama” (TOYAMA,
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2009: 327), nesse sentido são personagens secundárias na trama, quase como uma sombra na
vida dos homens descritos em seus perfis e histórias.
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IV – A MEMÓRIA DE UM COLONO JAPONÊS
O Sr. Tukuiti Hidaka, uma das personagens do livro Corações Sujos foi entrevistado por
Morais, embora as condições não sejam do conhecimento do leitor, o fato é que isso permitiu a
ele criar uma imagem de Hidaka. A primeira aparição ocorre no episódio da bandeira, quando
ele é descrito como o menor e mais jovem do grupo, parecia um agricultor pacato que não falava
bem o português, e era budista. Além do mais, ele é mostrado como um verdadeiro samurai,
que saltou diante do cabo Edmundo com uma espada levantada pronto para lhe dar um golpe,
sendo necessário cinco soldados para o desarmarem. (MORAIS, 2011:13) Mais adiante, quando
está indo para São Paulo, é dito que ele tinha 20 anos de idade e era comerciário, que ainda vivia
com os pais. (MORAIS, 2011:79) A declaração pessoal de Hidaka, quando foi entrevistado por
Morais por volta de 1996, afirma que se parecia como um caipira a andar na cidade de São Paulo,
quando dos preparativos para o atentado terrorista. (MORAIS, 2011:82) Em suma, Hidaka é
referido como o “caçula dos tokkotai do “caso da bandeira”, em Tupã” (MORAIS, 2011:95) que
deu dois disparos no atentado a Wakiyama, embora apenas um tenha sido no peito (MORAIS,
2011:97). Sabemos que foi preso e um dos condenados a serem exilados para fora do Brasil, mas
durante o governo de JK todos foram anistiados. (MORAIS, 2011:164) A última menção a Hidaka
ocorre logo após a informação da anistia, e diz que em 2000 Tokuiti Hidaka era um dos três
tokkotai que ainda estava vivo, vivendo de uma loja de bicicleta na cidade de Quintana.
O uso de linguagem ficcional, beirando a dramaticidade em alguns momentos do texto,
bem como a fragmentação das identidades individuais, são elementos das obras de “quase
história” que permeiam episódios, ou melhor, fatos, que são mesclados de certo exotismo, e
que no caso de Corações Sujos, pode muito bem ser representado pelas imagens, inclusive de
capa, que desperta no leitor a curiosidade pela diferença.
Por essas e talvez outras questões que nos escapem ao entendimento, podemos dizer
que a afirmação do sr. Hidaka de que o que estava escrito no livro Corações Sujos é “mentira”,
se faz entender a partir desses elementos de análise. Por sua vez, porque ele atribui a “verdade”
ao texto de Toyama, sendo que este autor também é um jornalista e faz, como demonstramos,
também um livro de reportagem?
A resposta pode estar na forma de narrar os acontecimentos que envolveram Hidaka.
Osamu Toyama inicia seu relato sobre Tokuichi Hidaka falando de quando se encontrou
com ele pela primeira vez, em 2001. A descrição da personagem é intercalada por citações do
próprio Hidaka, certamente colhidas durante as entrevistas, de modo a construir uma imagem
positiva do “terrorista”. Veja a seguinte descrição:
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Kitamura, fazia parte do grupo que tinha ido à delegacia exigir
satisfações.
Regressava do curso noturno da escola e estava ainda com os
livros na mão. (Toyama, 2009: 292)
Muito diferente a forma como é apresentada e narrada aquela que talvez seja uma das
cenas de maior impacto dramático no leitor de Corações Sujos. E a pergunta é, por quê? Porque
Fernando Morais procurou desde o início trazer à tona a existência de uma “seita que sustentava
que o Japão havia vencido a Segunda Guerra Mundial” (MORAIS, 2011: 14), a qual possuía um
exército de tokkotai, dentre os quais alguns estavam entre os “sete samurais” de Tupã, e que a
Shindo Renmei era a organização que agregava a maior parte dos kachegumi, e que em última
instância foi a responsável pelos diversos atentados terroristas ocorridos entre a colônia
japonesa do Estado de São Paulo, e que tal movimento causou a denúncia de 381 japoneses
“suspeitos de ligações com a seita”. E mais, porque Morais intenta reforçar o caráter verídico de
sua reportagem no Epílogo, fazendo questão de listar cada um dos nomes dos condenados à
prisão, com destaque para os oitenta integrantes da Shindo Renmei que foram expulsos do Brasil
por meio de um decreto assinado pelo presidente Dutra, e que em 1956, por meio de outra ação
presidencial, foram todos colocados em liberdade. (MORAIS, 2011: 331-334)
A ação da narrativa em Cem anos de águas corridas difere radicalmente da escrita em
Corações sujos nesse ponto, uma vez que Toyama opta não por descrever as ações praticadas
pelos terroristas, mas sua preocupação é a de trazer uma explicação para os fatos, que não
podem ser negados, mas que precisam ser recontados de maneira a assegurar a unidade da
comunidade. E porque ele quer dar uma outra interpretação da história dos casos terroristas,
ele se volta para os sujeitos comuns, como o Sr. Hidaka, e procura revelar o japonês em sua
essência, o ser patriota, fiel ao seu Imperador, fiel aos ensinos recebidos na escola japonesa
(Associação para a Educação de Japoneses). Assim, diz o narrador/autor, as “entrevistas com os
envolvidos mostraram que muito do que se tem escrito sobre os incidentes é falso.” (TOYAMA,
2009: 301)
Finalmente, uma última diferença que se estabelece entre a narrativa de Corações Sujos
e Cem anos de águas corridas, a busca pela compreensão dos acontecimentos. No livro de
Fernando Morais, em diversos trechos, ele repete os julgamentos que pressupõe serem o de
sujeitos contemporâneos à Shindo Renmei mas não pertencentes à comunidade nipônica;
exemplo disso são qualificações como: “um bando de japoneses desequilibrados”. Na leitura de
Rafael Evangelista (2014), como
Em suma, Fernando Morais não está preocupado com a busca de um modelo explicativo
para as ações dos sujeitos envolvidos na trama de uma maneira densa, capaz de levar o leitor a
entender o que foi a Shindo Renmei, mas em lugar disso, a explicação simplista revela uma seita
de malucos. Assim, elementos como a diferença cultural, a desinformação, o desejo de voltar ao
Japão, e muitas outras questões poderiam ser empregadas de modo mais acurado para dar uma
interpretação ao seu trabalho.
Por sua vez, Osamu Toyama, como personagem dessa comunidade centenária, não
pôde deixar os relatos e as descrições sem explicações, sem uma razão para as mesmas, e assim
ele se aproximou do ofício do historiador, ao menos aquele apregoado por Peter Burke. (Cf.
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1992: 346) de que as “categorias de uma cultura particular determinam os modos pelos quais
seus membros percebem e interpretam seja o que for que aconteça em sua época.” Vejamos
uma das explicações dadas por Toyama ao terrorismo na Colônia:
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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ed. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 155-202.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, vol. 1)
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla B. (Org.). Fontes
históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 203-234.
GANCHO, Cândida V. Como analisar narrativas. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2006.
GLEZER, Raquel & ALBIERI, Sara. O campo da história e as “obras fronteiriças”: algumas
observações sobre a produção historiográfica brasileira e uma proposta de reconciliação.
Revista IEB, nº 48, março de 2009, 15-30.
MAGALHÃES, Juliana; SENTO SÉ, Lauana; GUENA, Márcia. Jornalismo literário: o tempo na
narrativa de Corações Sujos. ANAIS. XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Nordeste, Mossoró, RN, 12 a 14 de junho de 2013, pp. 1-14.
MORAIS, Fernando. Corações sujos: a história da Shindo Renmei. 3ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
SANTOS, Tamires de L. S.; PAIM, Larissa K.; SANTOS, Márcia G. dos. Espaço na narrativa de
Corações Sujos. ANAIS. XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, João
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TOYAMA, Osamu. Cem anos de águas corridas da Comunidade Japonesa: Por que os três
baluartes desmoronaram? Qual a verdade sobre os casso terroristas atribuídos à Shindo
Renmei? Qual o futuro da comunidade? São Paulo: AGWM, 2009.
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