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Monografia
Maciel, Isis de M.
Panorama brasileiro do processo transexualizador
no âmbito do SUS / Isis de Melo Maciel. -- Salvador,
2017.
65 f.
Monografia
Monografia de Conclusão do
Componente Curricular MED-
B60/2016.2, como pré-requisito
obrigatório e parcial à conclusão do
curso médico da Faculdade de Medicina
da Bahia da Universidade Federal da
Bahia, apresentada ao Colegiado do
Curso de Graduação em Medicina.
COMISSÃO REVISORA
Assinatura: ________________________________________________
Assinatura: ________________________________________________
Assinatura: ________________________________________________
Assinatura: ________________________________________________
Audre Lorde
vi
EQUIPE
INSTITUIÇÕES PARTICIPANTES
FONTES DE FINANCIAMENTO
Recursos Próprios
viii
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha família e meus amigos que me apoiaram firmemente durante o longo
percurso de desenvolvimento deste trabalho. Agradeço às pessoas trans que conheci, que me
tocaram e me instigaram e ao ativismo acirrado que fez possível o processo transexualizador
no Sistema Único de Saúde do Brasil e me inspirou a refletir sobre a causa. Agradeço ao meu
orientador pela continua compreensão e à banca orientadora pela disponibilidade. Agradeço
especialmente à Andressa, pelo amparo, pela paciência e pelo suporte irrestrito.
1
SUMARIO
PRT Portaria
PTS Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS)
MS Ministério da Saúde
3
I. RESUMO
II. OBJETIVOS
PRIMÁRIO
SECUNDÁRIOS
1
Princípios de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos
humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.
9
Politicas e praticas de saúde mudar para melhorar a saúde da população trans. Pessoas
transgêneras no mundo todo referem problemas no acesso à apropriada assistência à saúde
seja na atenção à necessidades específicas ou à questões gerais de saúde. Esforços em
garantir uma atenção apropriada são fundamentais para possibilitar que pessoas transgêneras
vivam em conformidade com sua identidade de gênero. Esses esforços incluem
desenvolvimento de políticas legais e sociais que impactem na vulnerabilidade e na eficiência
de programas de saúde; ampliar o conhecimento relativo à oferta de atendimento clínico
efetivo; bem como expandir o conhecimento epidemiológico acerca problemas de saúde que
afetam esta população.
12
2011, que orienta o Plano Operativo de Saúde Integral LGBT, a Política Nacional de Saúde
Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais foi guiada pelas diretrizes do
programa “Brasil sem Homofobia”, que compunha a Política Nacional de Direitos Humanos.
Os primórdios da atenção à saúde da população LGBT se deu na década de 80, quando houve
a epidemia de HIV/AIDS cujo público com maior risco, à época, era o desta população. No
decorrer do tempo, houve o reconhecimento da complexidade da saúde LGBT, o que exigiu
que os movimentos sociais demandassem diferentes políticas públicas focadas na
transversalidade, englobando desde atenção e cuidado à saúde, chegando até políticas
educacionais de produção de conhecimento e participação social. (20)
Universalidade, Integralidade, igualdade de acesso e preservação de autonomia estão
dentre os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (21) e, tendo em vista as
dificuldades sociais causadas pela discriminação à população LGBT, foi necessário criar essa
política pública específica. (20).
Os princípios de Yogyakarta, publicados em 2006, nortearam as peculiaridades
relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual na formação da política Nacional de
Saúde da População LGBT. Estes princípios tratam da aplicação da legislação internacional
de direitos humanos em relação à orientação sexual e de gênero. No princípio 17 de
Yogyakarta, é dito que toda pessoa tem o “direito ao padrão mais alto alcançável de saúde
física e mental, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero.
A saúde sexual e reprodutiva é um aspecto fundamental desse direito”. A partir daí obtém-se
as diretrizes internacionais que norteiam os cuidados de saúde inerentes à política afirmativa
de gênero. (11)
estado orientado para melhoria das condições de saúde da população e dos ambientes
natural, social e do trabalho. Ela organiza funções públicas a fim de proteger,
promover e recuperar a saúde de indivíduos ou da coletividade pertencentes ao público
ao qual é direcionada. (22)
Portaria: É um documento de ato administrativo que visa estabelecer normas e
instruções referentes à organização, à ordem disciplinar e ao funcionamento de serviço
ou procedimentos. É utilizado também como norteador para o cumprimento de
dispositivos legais e jamais admite contra legem (ir de encontro ao disposto em lei).
(23)
Resolução: É um ato administrativo que parte de autoridades superiores que não o
chefe do executivo, que disciplinam matérias de sua competência específica. Elas
servem como instrumento de esclarecimento a respeito dos regulamentos. (23)
Nota Técnica: É um documento que trata de política pública ou programa de governo
com propósito de avaliar sua aplicabilidade e funcionamento e também se necessário
elaborar novas propostas para a melhoria deste. (24)
15
V. METODOLOGIA
Esse trabalho consiste em uma revisão de literatura mista. A coleta de dados foi
realizada em três diferentes etapas: 1 – Legislação brasileira; 2 – Conselhos profissionais de
medicina e psicologia; 3 – Revisão de literatura. Cada uma delas seguirá sua específica
metodologia para coleta dos dados, ao que se segue:
1 – Legislação Brasileira.
A busca realizada no Portal de Legislação da Saúde – Saúde Legis – do Ministério da
Saúde do Brasil, além de busca manual.
3 – Revisão da literatura
Consiste em uma revisão bibliográfica sistematizada a fim de descrever a assistência à
saúde para pessoas travestis e transexuais no Brasil no Processo Transexualizador no SUS.
Foram considerados elegíveis para esta revisão estudos empíricos, de metodologias
qualitativas ou quantitativas, publicados do período de 2009 a 2016 (a primeira portaria do
processo transexualizador no SUS foi publicada em agosto de 2008), publicados em
português, inglês ou espanhol, que envolveram a população transgênero (travestis e
transexuais) e que apreciassem a atenção à saúde dessa população no Brasil. Destes foram
excluídos aqueles que abordassem apenas questões clinicas e/ou cirúrgicas e aqueles que não
abordassem saúde pública, saúde integral ou o processo transexualizador no SUS.
A busca de artigos científicos foi realizada nas bases de dados eletrônicos PubMed
(U.S. National Library of Medicine - National Institutes of Health), Scielo e Biblioteca
Virtual em Saúde (BVS).
A estratégia de busca em inglês utilizada em todas as bases previamente referidas foi:
(brasil OR brazil OR brazilian) AND (transgender OR (trans AND people) OR transsexual
OR transvestism OR Transvestite) AND (health OR care OR integrality OR healthcare) e a
estratégia em português utilizadas na BVS e no SciELO foi: (transexualismo OR
16
VI. RESULTADOS
Esta portaria nos traz avanços em relação à política pública anterior por garantir um
melhor acesso e acolhimento destas pessoas para além dos procedimentos cirúrgicos e
hormonais, de modo a atender as necessidades das e dos transexuais de forma mais
humanizada. Há ainda desafios tais como garantir o acesso livre de discriminação e demais
barreiras sociais de todos os que necessitam desses serviços.
ALTERAÇÕES POSTERIORES
21
Ainda obtivemos como resultados quatro portarias publicadas em 2014. Destas, duas
alteram a Portaria nº 2.803/GM/MS de 19 de novembro de 2013. A Portaria nº 2.736 de 10 de
Dezembro de 2014 altera o artigo 9º, incluindo dentre os estabelecimentos autorizados para
atenção especializada o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (UFRGS), o Hospital
Universitário Pedro Ernesto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o Hospital de
Clínicas da Faculdade de Medicina/FMUSP, Fundação Faculdade de Medicina, e o Hospital
das Clinicas - Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/Goiânia (GO). Já na
portaria nº 1.055, de 13 de outubro de 2014, fica para realização do Componente Atenção
Especializada no Processo Transexualizador, nas modalidades ambulatorial e hospitalar, o
Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco/Recife/PE. Há, ainda no ano de
2014, a portaria 629, que altera o parágrafo único do art. 9º da Portaria nº 2.803/GM/MS, de
19 de novembro de 2013, incluindo o Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina
FMUSP/Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS - São Paulo/S.
Para além da ampliação do número de hospitais universitários autorizados a
atuar no processo transexualizador, a Portaria 11 MS/SCTIE de 16 de maio de 2014 incorpora
no SUS os procedimentos de mastectomia simples bilateral, histerectomia com anexectomia
bilateral e colpectomia, além de cirurgias complementares de redesignação sexual e
administração hormonal de testosterona e acompanhamento de usuários no processo
transexualizador apenas para tratamento clínico.
VI.1.2.4 FINANCIAMENTO
Resolução 1955/2010 Integra Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.652/2002. (Publicada no Diário
Oficial da União; n. 232, 2 dez.2002. Seção 1, p.80/81)
Resolução 208/2009 Integra Dispõe sobre o atendimento médico integral à população de travestis, transexuais e pessoas que apresentam
dificuldade de integração ou dificuldade de adequação psíquica e social em relação ao sexo biológico.
Parecer 2/2007 Integra As cirurgias para adequação do corpo de uma pessoa à sua identidade psicossexual de gênero só podem ser
indicadas por uma equipe multiprofissional que observe, em conjunto, o candidato, regularmente, por dois
anos seguidos.
Parecer 8/2004 Integra A falta de um salto biológico que caracterize a idade do ser humano, não justifica que a medicina se oriente
pelo Código Civil para procedimentos da complexidade de cirurgias transexuais
Resolução 1652/2002 Revogado Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e REVOGA a Resolução CFM nº 1.482/97. (Diário Oficial da
União; Poder Executivo, Brasília, DF, n. 232, 2 dez. 2002. Seção 1, p. 80).
Resolução 1482/1997 Revogado Autoriza a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia,
neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários com o
tratamento dos casos de transexualismo. (D.O.U.; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1, p.
20.944). REVOGADA pela Resolução CFM nº 1652/2002.
Parecer 39/1997 Integra Cirurgia transgenital
Parecer 12/1991 Integra Cirurgia de conversão sexual
Parecer 11/1991 Integra Cirurgia de conversão sexual
Para além da Ementa e das conclusões de cada parecer, é importante relatarmos entre os resultados as principais características e
embasamentos para que possamos compreender com maior clareza o processo que neste trabalho é discutido.
28
Ressalta-se o disposto no artigo 5º, no qual é determinado que “as cirurgias para
adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais
universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa”, que posteriormente teve sua
matéria revogada, com exceção ao caráter experimental da neofaloplastia. Diferentemente,
para as mulheres trans, em que haveria a adequação dos caracteres masculinos para os
femininos, o artigo 6º permite esta prática tanto em hospitais públicos quanto privados, desde
que estejam respeitados os critérios expostos neste artigo quanto à equipe, conselho de ética,
entre outras exigências.
Deve-se ressaltar, porém, que a situação dos homens transexuais fora observada de
modo que a neofaloplasta foi mantida como experimental por conta das limitações funcionais
do órgão construído cirurgicamente.
Os subscritores desta resolução questionaram as razões médicas e éticas que
restringiam os procedimentos cirúrgicos para pessoas trans ao caráter experimental, visto que
histerectomias e mastectomias são realizadas comumente em mulheres por diversos motivos,
sendo, portanto, discriminativo o ato de não permitir o procedimento cirúrgico livremente
apenas pelo fato de ser para redesignação sexual. Permitir que o indivíduo trans manifeste sua
personalidade e sua identidade através de procedimentos estéticos foi visto como essencial
para um atendimento integral à sua saúde.
Em respeito à capacidade decisória dos pacientes, mas também atentando-se às
limitações técnicas, o conselho observou que a neofaloplastia deveria permanecer de caráter
experimental enquanto as intervenções sobre gônadas e caracteres sexuais secundários
deveriam ser autorizadas quando o paciente cumprisse as exigências de seleção e definição
exigidas.
DESPACHO Nº 100/2015
Tratando da alteração de fenótipo sem transgenitalização como parte do atendimento à
saúde da pessoa transexual, este despacho data do ano de 2015 e reflete avanços na
compreensão das diversas nuances da identidade de gênero e no respeito aos direitos
individuais das pessoas trans, que podem optar ou não por intervenções cirúrgicas e/ou
hormonais. Pautado primeiramente na Constituição Federal de 1988 (Preâmbulo, art 1º, art 3º
e art 5º), este despacho reafirma a não vedação da realização de alterações fenotípicas, visto
que, sendo esta feita por pessoa capaz, com volição livre e bem informada, é uma expressão
31
Diz respeito ao uso do nome social de médicos e médicas trans nos registros,
identificações e inscrições nos Conselhos Regionais de Medicina. Direciona os conselhos a
promover a alteração de documentos internos, como contracheques, crachás, identificações
nas folhas de ponto e nos cadastros internos dos médicos inscritos. Porém, não se procede à
alteração da carteira de identificação profissional.
Ademais, as alterações limitam-se apenas ao acréscimo do nome social, com o
acompanhamento do nome civil.
Uma das primeiras conquistas em relação aos direitos sociais dos LGBT foi a
resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, que determina que os psicólogos atuem
de forma ética e contribuam, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e
o desaparecimento de discriminações e estigmas diversos contra os que apresentassem
“comportamentos ou práticas homoeróticas”.
Anos depois, em nota técnica pautada na portaria 1.707 de 2008 do Ministério da
saúde, o Conselho Federal de Psicologia trata especificamente das pessoas trans, onde afirma
que a psicologia tem como desafio garantir a essa população o respeito à dignidade e o acesso
aos serviços públicos de saúde. Importante avanço na questão da despatologização da
transexualidade e da travestilidade, esta nota deixa claro também que o acompanhamento
psicoterapêutico deve ir além da tomada de decisão sobre as cirurgias do processo
transexualizador, bem como promover a autonomia da pessoa durante todo esse processo.
33
Com a estratégia de busca utilizada foram encontrados ao todo 361 artigos que, após
avaliação criteriosa, culminou na seleção de 13 artigos para esta revisão. A sequência da
seleção dos artigos é esquematizada na figura 3 que se segue. Destes artigos foram tabelados
objetivo, método e local do estudo, população estudada, número de participantes, linha de
Cuidado da Atenção, avaliação da assistência prestada e possíveis propostas.
Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
SILVA, D. C., et. Averiguar o impacto Estudo 47 mulheres Especializada - Significante melhora depois da Não se aplica
al., 2016(25) de intervenções prospective trans Hospitalar cirurgia de redesignação sexual nos
cirúrgicas na de coorte. domínios psicológicos e de relações
qualidade de vida de Todo o sociais do WHOQOL-100.
47 transexuais Brasil. - Em contraste, a saúde física e nível de
femininas brasileiras independência se mostraram
utilzado o World significativamente piores após a
Health cirurgia. Indivíduos que foram
OrganizationQuality submetidos a cirurgia adicional tiveram
of Life – 100. um decréscimo na qualidade de vida
refletidos nos domínios II e IV
(psicológico e relações sociais).
- Características demográficas não se
mostraram significativas quando
usadas para controlar a análise
estatística.
PETRY, Analidia Problematizar como História de 7 mulheres trans Especializada - Mulheres referem que processo Ampliar o debate a respeito de
Rodolpho., ocorrem os relatos vida. Rio Hospitalar ocorreu rapidamente e sem problemas gênero e sexualidade no
2011(26) de transexuais nos Grande do - Relato de prolongamento da fase pré- contexto da saúde pública.
processos de Sul. cirurgica, necessidade de mentir quanto
migração sexual e de ao bem estar.
gênero, considerando - Buscou-se delinear a flexibilidade, a
os antecedentes à multiplicidade e a provisoriedade de
intervenção identidades e de experiências que são
cirúrgica, bem como mobilizadas nesses processos
as mudanças de vida transexualizadores.
necessárias após a
transexualização.
Discutir algumas das
representações de
gênero, corpo e
sexualidade
mobilizadas nessas
narrativas.
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Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
ROCON, et al., Discutir as Entrevista 15 pessoas Especializada, - Desrespeito ao nome social, a Modificar o diagnóstico em
2016 (27) dificuldades de semiestrutur trans10 hospitalar e discriminação e o diagnóstico no sua função, já que a existência
pessoas trans ada. mulheres ambulatorial processo transexualizador como de uma patologia prévia não é
moradoras da região Vitória, ES transexuais, principais limitações no acesso ao requisito para acessar o SUS.
metropolitana da 1 homem trans, sistema de saúde. Aponta-se, também, a
Grande Vitória/ES 2 travestis, - Afirma-se que o diagnóstico contribui importância de elaborar
em acessarem os 1 gay (realizava para ocultar a responsabilidade da programas de educação e
serviços de saúde no uso de hormô- heteronormatividade e do binarismo de campanhas permanentes sobre
SUS. nios e adotava gênero pela marginalização social das o direito de acesso ao sistema
nome social pessoas trans. de saúde livre de
feminino) discriminação e com uso do
nome social.
SOUZA, M. H. Acompanhar os Pesquisa 49 travestis Atenção - Aponta o uso do silicone industrial Pensar o cuidado em saúde da
T., et al., 2014(28) itinerários etnográfica. básica não como primeira opção. população travesti, ampliando
terapêuticos, as Rio Grande especializados - Evitam serviços de saúde o olhar sobre o processo
complexas trajetórias do Sul : UPA e centro institucionalizados (não especializados: saúde-doença, incorporando
percorridas pelas de testagens) UPA e centro de testagens) devido elementos próprios desses
travestis, em busca discriminação sujeitos, como as
de cuidados com a - Desrespeito ao nome social no modificações corporais, a vida
saúde. atendimento não especializado em coletividade e a influência
As interlocutoras evitam os serviços das religiões afro-brasileiras
institucionalizados de saúde, optando em sua saúde, proteção e bem-
por outras formas de cuidado. estar.
- Destacou-se em relação a esse
aspecto que, das 49 travestis que
fizeram parte da pesquisa, 48
frequentavam o que denominavam de
“casas de religião afro” ou “batuque”.
As interlocutoras indicaram sua opção
em frequentar as “casas de religião
afro” por identificá-las como espaços
que, sem questionar as modificações
corporais e sua orientação sexual,
ofereciam formas de cuidado e
proteção.
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Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
BORBA, Rodrigo. Investigar as micro- Estudo de 1 mulher Assistência - Notou-se que a imposição do Compreender melhor a
2011(29) dinâmicas pelas caso. Rio de transexual e Psicológica / diagnóstico no processo história e os âmbitos macro-
quais sistemas de Janeiro. 1 psicóloga Psicoterapia transexualizador brasileiro ocasiona sociológico e macropolítico
conhecimento que deslegitimação da subjetividade que que produzem as
patologizam a pessoas transexuais trazem consigo interpretações dadas às
transexualidade para os programas de identidades das pessoas
como uma transgenitalização. transexuais.
enfermidade mental - A necessidade do diagnóstico é
sãoincorporados nas patologizante e impõe às interações
ações de entre profissionais de saúde e
profissionais de usuários/as trans estruturas que levam
saúde e usuários/as os profissionais a uma posição de
transexuais do juízes do gênero de outrem.
Sistema
Único de Saúde.
TAGLIAMENTO, Compreender o Estudoetno Entrevistados: Atenção As pessoas trans reportaram Buscar mudanças no discurso
Grazielle; acesso de pessoas gráfico / 5 mulheres especializada, dificuldades em suas trajetórias de técnico-científico em relação
PAIVA,Vera. transgêneras ao Entrevista. transexuais, hospitalar e vida, marcadas por discriminação e por às experiências transgêneras
2016.(30) sistema publico de Paraná. 2 travestis. ambulatorial padrões binários que dificultam o tendo em vista a
saúde brasileiro sob Informantes: reconhecimento de suas identidades. despatologização e o
a luz das novas 2 homens trans, Nos serviços especializados, as normas reconhecimento da fluidez da
políticas públicas 1 mulher trans, de gênero e os estereótipos foram identidade de gênero.
para este grupo 1 travesti, utilizados e impostos pelos prestadores
específico no Brasil. 1 mulher cis de serviço, demonstrando uma
predominância de um modelo que
patologiza a identidade de pessoas
trans.
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Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
MOSCHETA, M. Encorajar o Estudo 1 travesti, Atenção Os profissionas da saúde isolaram Criar um contexto em que os
S., SOUZA, L. V., desenvolvmento de etnográfico/ 2 mulheres básica (Centro travestis de forma que isso reforça os usuários dos serviços de saúde
SANTOS, M. A., recursos para discussões trans, de testagem e preconceitos já arraigados na possam expressar-se e definir
2016.(31) melhorar o acesso e públicas e 2 homens gays, atendimento) sociedade. como gostariam de ser
o cuidado à saúde da entrevistas. 2 enfermeiras - Profissionais de saúde precisam estar tratados pelos profissionais,
população LGBT. Maringá, cisgêneras mais atentos às necessidades da possibilitando uma atenção à
Paraná. população LGBT saúde mais humanizada e
- Desconhecimento da diversidade de alinhada com ideais políticos
gênero e sexual pelos profissionais de que fundamentam o SUS.
saúde
- Aponta necessidade de perguntar às
travestis sobre seu desejo quanto à suas
alocações nas unidades hospitalares
masculinas/femininas
PETRY, Analidia Compreender as Entrevista 7 mulheres Atenção - O processo transexualizador feminino Não se aplica
Rodolpho. experiências de narrativa, transexuais especializada, envolve adequação de comportamento,
2015.(32) mulheres transexuais com análise hospitalar e postura, empostação da voz, uso de
em relação à temática. ambulatorial hormônios, dilatação do canal vaginal e
hormonioterapia e à Rio Grande complicações cirúrgicas.
cirurgia de do Sul - Importância do acompanhamento
redesignaçãosexual com a fonoaudiologia
que constituem o
Processo
Transexualizador.
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Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
SAMPAIO, Investigar o processo História de 2 homens Assistência - A fila de espera no Sistema Único de Propõe-se que a história de
Liliana L. Pedral; transexualizador de vida e transexuais e especializada, Saúde (SUS), o protocolo pré- vida seja levada em
COELHO, Maria quatro pessoas, a entrevista 2 mulheres ambulatorial e operatório de dois anos, o custo das consideração no processo a
Thereza A. D., partir das suas semiestrutur transexuais hospitalar cirurgias nas clínicas particulares e a fim de promover melhor
2012(33) perspectivas. Com ada. falta de regulamentação jurídica para a acompanhamento psicológico,
ênfase nas Salvador, mudança de documentação são grandes cirúrgico e de outras
experiências que Bahia. dificuldades encontradas para a intervenções.
dizem respeito a concretização do processo
intervenções sobre o transexualizador.
corpo, tais como:
hormonioterapia,
cirurgias de
mastectomia,
histerectomia e
transgenitalização.
SOUZA, M. H. Apresentar os Pesquisa de 49 travestis Atenção - Desrespeito ao nome social. Pensar o cuidado em saúde
Teixeira; cuidados com a campo. básica e - Desconhecimento das trajetórias de desse grupo requer uma
PEREIRA, P. P. saúde de travestis do Santa atenção cuidados das travestis ampliação do olhar sobre o
Gomes; 2015.(34) município de Santa Maria, Rio especializada - Estranhamento com o cuidado com o processo saúde-doença,
Maria, Rio Grande Grande do ambulatorial silicone, com a utilização de hormônios incorporando elementos
do Sul, Brasil. Sul. e com desejo da feminilidade da próprios desses sujeitos, como
travesti. os determinantes sociais
envolvidos, as modificações
corporais, a vida em
coletividade e a influência das
religiões afro-brasileiras em
sua saúde, proteção e bem-
estar.
39
Quadro 7 - Caracterização da produção de conhecimento sobre assistência à saúde para pessoas travestis e transexuais no PTS
Autores, Ano de Objetivo Método e N e População Linha de Avaliação da assistência Propostas
Publicação Local estudada Cuidado da
Atenção
COSTA, A. B. et Avaliar as Medida de 626 Atenção - 95% das pessoas que participaram do Necessidade urgente de
al.; 2016.(35) especificidades da tendência e participantes, básica e estudo evitaram o sistema de saúde por adequação das políticas de
atenção à saúde na freqüência 382 mulheres atenção histórico de discriminação. saúde e de treinamento dos
população central. São transexuais, 188 especializada profissionais nas questões de
transgênera com Paulo e Rio homens ambulatorial e gênero.
acesso ao sistema Grande do transexuais e 56 hospitalar
público de saúde Sul. pessoas não-
brasileiro. binárias
BORBA, Rodrigo. Problematizar História de 2 mulheres Atenção - Profissionais de saúde são vistos Buscar a
2014.(36) obstáculos vida. Local transexuais especializada como empecilho; despatologizaçãodatransexuali
discursivos para o não ambulatorial e - A dificuldade no acesso imediato ao dade, salientando a
cuidado integral e especificad hospitalar processo transexualizador acaba por importância desta prática para
humanizado à saúde o. fazer a pessoa trans abdicar de sua uma humanização da saúde.
de pessoas identidade real para performar uma
transexuais no identidade que “convença” a equipe
Processo profissional.
Transexualizador
brasileiro.
ROGERS, João; Analisar as Entrevista 14 pessoas Atenção - Não reconhecimento do Nome Social Reconhecer a Atenção
TESSER- dinâmicas e semiestrutur trans, básica no tratamento a pessoas trans em todos Primária a Saúde como um
JUNIOR, Zeno C., obstáculos impostos ada. 9 mulheres trans os momentos do processo de espaço estratégico onde
MORETTI- ao acesso de pessoas Florianópoli e atendimento nas UBS e UPA. podemos travar esse embate
PIRES, Rodrigo trans à APS e como s, Santa 5 homens trans - Observou-se a falta de habilidade político, na perspectiva de
O., KOVALESKI, a experiência de um Catarina. técnica relacionados a corpos trans quebrar o paradigma de uma
Douglas F., serviço de APS submetidos a terapias redesignadoras sociedade que oprime, subjuga
2016.(37) específico para esse como a hormonioterapia e cirurgias de e extermina corpos,
que rompe com o readequação corporal. identidades e expressões das
paradigma da pessoas trans.
patologização da
transsexualidade é
percebida por essas
pessoas.
40
VII. DISCUSSÃO
O Estado Democrático de Direito nunca pode estar à parte das transformações sociais.
O diálogo entre as diversas instâncias que corroboram para determinadas demandas é
fundamental para que ciência, Estado e movimentos sociais estejam em sintonia em relação
aos direitos fundamentais individuais garantidos na constituição.
Analisando sob esse prisma, pode-se depreender, a partir dos resultados aqui
mostrados, que há mudanças no ordenamento jurídico em relação à saúde de pessoas
transexuais que buscam acompanhar os novos paradigmas sociais e que muitas dessas
mudanças surgiram de um diálogo com os Conselhos Federais de Medicina e Psicologia, por
exemplo. Por outro lado, posteriormente também vamos analisar de que forma essas medidas
do Estado são aplicadas no cotidiano das pessoas transexuais que usam serviços de saúde
através da revisão de literatura que trata das vivências dessas, com recolhimento de seus
depoimentos e um olhar mais pragmático e menos técnico.
Legislação é palavra e as palavras dão substância aos aspectos da vida em sociedade.
O modo como os termos utilizados nas normas voltadas para pessoas trans foram se
transformando no decorrer dos anos é ilustrativo de como a dinâmica social tem caminhado
para uma atenção à saúde mais universal e talvez até para novos modos de enxergar gênero. A
linguagem utilizada nos regramentos reflete o entendimento das organizações formuladoras
quanto àquele tema e transforma-se dinamicamente conforme engloba diferentes perpectivas e
acolhe as novas demandas apresentadas. O que é considerado, a certa época, a nomenclatura
mais adequada, pode sempre ser alvo de contestações e críticas. A perspectiva patologizante
(discutida adiante) ainda é a predominante, mas é inegável o avanço ocorrido desde que pela
primeira vez referiu-se a pessoas transexuais no ordenamento jurídico brasileiro e em
portarias do CFM. Por exemplo, inicialmente, no artigo 129 do código penal e no artigo 42 do
código de ética vigentes em 1990, a cirurgia de “conversão sexual” era tida como “grave
ofensa à integridade corporal”; destaca-se, aqui, o uso do termo conversão sexual, hoje
considerado extremamente ofensivo, visto que não é um fator de reversão, mas sim uma
questão de readequar, redesignar fisicamente algo que não está de acordo a com a identidade
de um indivíduo. Quando passamos à resolução Nº 1652/2002, temos o termo
transgenitalização, mais aceito na comunidade transexual mas ainda transpassando uma
41
muitas vezes são deixadas de lado durante o processo transexualizador, esperando mais tempo
e enfrentando mais dificuldades nas questões de hormonização bem como na atenção à saúde
como um todo(28,38). Mais adiante vamos entender as idiossincrasias das travestis e de como
se dá a participação (ou não) delas nos processos transexualizadores.
A hormonização é um processo importante quando a pessoa transexual pretende
alterar sua aparência a fim de adequar-se melhor ao seu desejo íntimo bem como ao que é
esperado dela pela sociedade. Nesse sentido, ressaltamos aqui a importância do parecer do
CFM de número 08 de 2013, que trata da assistência à saúde de adolescentes trans ou, como
ainda é definido pelo CFM e pelo CID 10, pessoas portadoras de transtorno de identidade de
gênero. Este parecer fala como o adolescente deve ter atendimento especializado e
multiprofissional e também direito ao bloqueio da puberdade do sexo com que nasceu à partir
dos 16 anos. Decisão polêmica do conselho, esta corrobora com diversas fontes que afirmam
que é preciso estar atento à saúde das crianças transexuais. Inclusive as pesquisas que estão
servindo de referência para a produção do CID 11 pela Organização Mundial da Saúde falam
sobre a incongruência de gênero na infância(17). Estabelecendo a cronologia dos regramentos
relativos à pessoas transexuais, pôde-se notar que normas do CFM precederam as portarias
ministeriais e algumas de suas alterações, entende-se assim a importância desse despacho –
publicado posteriormente à portaria de 2013 – para possíveis inclusões de pessoas mais
jovens no processo transexualizador.
Olhando numa outra direção e fazendo, talvez, dentre os outros conselhos
profissionais, um papel de vanguarda, o Conselho Federal de Psicologia se mostra incisivo
quando se trata de evitar discriminações e estigmas. Propõe, numa de suas notas técnicas, que
o acompanhamento psicoterapêutico ultrapasse o processo burocrático e estigmatizante de
decisão pela cirurgia. É um passo importante no contexto da atenção integral à saúde e
demonstra o quanto já ultrapassou-se barreiras convencionais a fim de promover qualidade de
vida e dignidade para pessoas trans.
O processo transexualizador geralmente foi aqui dividido em: Cobertura da atenção,
critérios necessários para participação, procedimentos oferecidos e financiamento. A
cobertura ainda é incipiente e concentra-se em apenas alguns estados. O atendimento
Especializado Ambulatorial tem se dado em Minas Gerais, Paraná, Paraíba, Pará e Sergipe. O
atendimento especializado Hospitalar, tem ocorrido em Pernambuco, Goiás, Rio de Janeiro,
São Paulo e Rio grande do Sul, que também realizam atendimento ambulatorial. Pelo fato de
43
o Brasil ser um país de dimensões continentais, isso dificulta bastante o acesso da população
transexual de outros estados que não são contemplados pela atenção especializada.
Observou-se que a cobertura geográfica do PTS é mais ampla na atenção especializada
ambulatorial que na hospitalar. O que é um fator importante na distribuição dos serviços, visto
que esse tipo de atenção envolve o acompanhamento no pré e no pós operatório, mas também
oferece cuidado independentemente da cirurgia e acompanhamento prolongado. Sendo
fundamental que esteja mais próximo dos(as) usuários(as) e possibilitando que mais pessoas
possam ter o acompanhamento multidisciplinar especializado. O atendimento ambulatorial
especializado, por suas características, oferece à população uma qualidade de atenção mais
digna, com enfoque na qualidade de vida da pessoa transexual usuária do SUS, para além das
intervenções cirúrgicas específicas.
Influenciando o alcance do atendimento no SUS, os critérios de “seleção” de pessoas
transexuais aptas a fazer parte do processo se baseiam em fatores muitas vezes arbitrários,
como por exemplo uma suposta obrigatoriedade de a pessoa trans viver de acordo com os
estereótipos de comportamento, vestimenta e relacionamento, do gênero que ela se identifica
(38). Ora, se é preciso performar o gênero para que ele seja verdadeiro aos olhos do Sistema
de Saúde, isso deslegitima a autonomia e a autodeterminação da identidade de gênero das
pessoas e fere direitos fundamentais. (39) Seria necessária uma homogeneização de todo o
espectro das pessoas trans para que as suas concepções de vida fossem respeitadas? A
existência de um “teste de vida real” para que as pessoas fossem consideradas “persistentes” o
suficiente na afirmação de sua identidade é uma forma de oprimir a diversidade das
identidades trans e limitar o acesso e a relação dos usuários e prestadores do sistema – como
discutido posteriormente.
A maioria da população que busca os serviços de saúde para se submeter ao Processo
Transexualizador no SUS já vive de acordo com o seu gênero e não com o que foi designada
ao nascer. Muitas vezes, por estarem na vida adulta, essas pessoas já fazem uso de hormônios
sem acompanhamento médico. No entanto, para fazer a cirurgia no PTS, a pessoa é
estimulada a refletir sobre o impacto que a cirurgia terá na sua vida e também sobre fatores
outros que não necessariamente correspondem a questões de saúde, mas de adequação social.
O prazo de dois anos é arbitrário e muitas vezes prolonga o sofrimento da pessoa trans, que já
vem de uma vida inteira de opressão (26). Seria importante, sim, avaliar a saúde mental e
física da pessoa que pretende passar pelo PTS, no entanto, é válido compreender a
necessidade de avaliação individual das necessidades e é esse processo e que pré-estabelecer
44
prazos para proporcionar atenção à saúde de um cidadão ou cidadã não é coerente com os
princípios básicos do SUS e do cuidado à saúde.
O acesso ao PTS também apresenta diferentes dificuldades a depender do
enquadramento ou não das pessoas nos diagnósticos previstos no CID. Este vínculo com o
CID é facilmente ilustrado pela situação das pessoas não binárias e transfemininas como as
travestis. Quando a pessoa é enquadrada no CID F64.0, de Transtorno de Identidade de
Gênero (TIG) - Transexualismo, ela possui acesso a todos os serviços especializados,
inclusive cirúrgicos e ambulatoriais, já o CID F64.9, que é de TIG não especificado, onde
estão inclusas as travestis, não tem acesso aos procedimentos cirúrgicos, mas apenas aos
ambulatoriais. Esse enquadramento, por mais que dependa da equipe multiprofissional do
SUS, é guiado pelas diretrizes do CID que incluem o desconforto com a genitália, caso este
que nem sempre ocorre com as travestis mas não exclui a possibilidade de estas desejarem
outras modificações corporais cirúrgicas, que serão discutidas posteriormente nesse trabalho
(5).
Outro aspecto que influencia no acesso ao PTS é mais burocrático e menos voltado a
paradigmas sociais de forma direta. O financiamento do PTS pelo SUS depende do Plano
Nacional de Saúde e dos “indicadores de desempenho e das iniciativas que serão
operacionalizadas pelas ações com a cobertura orçamentária determinada pela Lei
Orçamentária Anual correspondente a cada exercício do Plano Plurianual (PPA)”. A inter-
relação entre o planejamento estratégico do Ministério da Saúde e as diretrizes orçamentárias
contribui para que a realidade financeira do Sistema de Saúde não entre em desacordo com as
necessidades da população (40). Importante ressaltar que desde a inclusão do processo
transexualizador no SUS, em 2008, o número de procedimentos saltou mais de 3.000%,
partindo de 101 para 3.157 em 2014. A verba repassada pelo Ministério da Saúde para o
custeio desses procedimentos cresceu 832,5% no período, chegando a R$ 154,8 mil. Desde
2008 até 2015, foram 9.867 procedimentos realizados (41).
A despeito de iniciativas já tomadas pelo ministério da saúde na direção da defesa
dos direitos humanos na esfera do Sistema Único de Saúde como a Carta dos Direitos dos
Usuários do SUS lançada em 2006 (pelo menos três anos prévia à publicação das pesquisas
incluídas neste trabalho) - que em seu terceiro princípio assegura o atendimento humanizado,
acolhedor e livre de discriminação, restrição ou negação, inclusive quanto a identidade de
gênero, e garante que a(o) usuária(o) tenha um campo para registrar o nome pelo qual prefere
ser chamada(o), independentemente do registro civil – e da Portaria nº 1.820 que assegura o
45
uso do nome social no SUS (42). Percebe-se, na atenção básica em especial, mas também nos
serviços especializados, que o desrespeito ao nome social é algo marcante na atenção à
população transexual (27,28,34,37). Souza (2014) apresenta o relato de uma travesti, a cerca
da atenção básica, que demonstra a profundidade do desrespeito que pessoas trans podem
experenciar na busca por assistência no SUS: “Na saúde não é diferente do dia a dia. Tratam a
gente como não humanos, por isto eu não vou ao SUS, de jeito nenhum. Se preciso de
atendimento, vou onde posso pagar. Pagando sempre respeitam mais. SUS, nem pensar” (28).
Esse tipo de arbitrariedade integra a violência institucional; exercida pelos próprios
serviços públicos e cometida principalmente contra os grupos mais vulneráveis, ela favorece a
conservação e fortalecimento de uma ordem social injusta. Sendo possibilitada pelas
assimetrias nas relações de poder entre usuários e profissionais dentro das instituições. Esta
violência materializa-se não só através de atitudes de negligência e discriminação como os
maus-tratos dos profissionais para com os usuários, mas também através da banalização das
necessidades e direitos, da falta de escuta, rispidez, desqualificação do saber prático e da
peregrinação por diversos serviços até receber atendimento (43). Sendo, assim, inconciliável
com uma prática de saúde que vise à atenção integral e, sobretudo, com a consolidação de
uma sociedade que respeite plenamente a Dignidade da Pessoa Humana.
A saúde publica tem sido desafiada a acolher de forma humanizada a demanda da
população com dificuldades agravadas pela sua vulnerabilidade social. Mas as barreiras ainda
encontradas pelos(as) usuários(as) na assistência à saúde favorecem sua busca de cuidados
alternativos, como trazido por Souza “As travestis compreendem que saúde é algo que se
constrói nos espaços da moradia, nos pontos de prostituição, nos espaços públicos, nas ‘casas
de santo’”(SOUZA et al., 2014)
É importante pensar a questão das travestis e do seu acesso a serviços de saúde como
diferente da questão de mulheres e homens transexuais. Considerando a afirmação de Audre
Lorde, uma das mais influentes figuras do feminismo interseccional, de que não há hierarquia
entre as opressões e considerando também que estas opressões se interpenetram e se
relacionam de modo a formar algo para além da simples soma das partes, mas sim um produto
único e particular advindo e integrando essa interação. Pode-se entender a vulnerabilidade das
travestis não como algo superior à de outras pessoas trans, mas como algo de diferente
natureza e complexidade, produto da abjeção social a um corpo transgressor que integra
signos masculinos e femininos – a partir da ruptura com a concepção binária de gênero –,
46
juntamente com a condição de exclusão das classes populares e transpassada pela questão
racial.
A distinção entre mulheres transexuais e travestis interage de múltiplas formas com o
modelo médico-psiquiátrico, não apenas nas diferentes possibilidades de acesso e consumo a
este, mas também, possivelmente, na própria representatividade do estígma social destes
grupos de pessoas. Como levantado por Mario Carvalho(44):
Levanto a hipótese de uma distinção na origem da atribuição do estigma (ou do
desvio) entre travestis e transexuais. Enquanto as primeiras são pervertidas a partir
do olhar moral da sociedade, as segundas são incorporadas numa categoria
médicopsiquiátrica. É evidente que a incorporação dos diferentes rótulos na
construção da identidade tem suas repercussões e possivelmente constituirá
trajetórias distintas. Ser um desviante moral, como no caso de travestis, implicará no
manejo e na negociação constante com a oficialidade e a constituição de redes
sociais associadas à marginalidade. Enquanto ser um desviante “mental”, como no
caso de transexuais, implicará uma incorporação total ou parcial de uma experiência
de gênero medicalizada, que provavelmente passará por um processo de construção
identitária em interlocução com os saberes e práticas médicas.
são múltiplos os relatos de que pessoas trans abdicam de sua identidade real para performar
uma identidade que “convença” a equipe profissional (29,30,46,47). Assim, com os dados
coletados, permanece nublada a questão de como e em que extensão as travestis e outras
identidades trans têm conseguido acesso ao processo transexualizador. No entanto, está claro
que a patologização de suas identidades de gênero constitui-se em uma barreira para a atenção
integral.
A patologização da identidade de gênero é “útil” quando se trata do contexto atual de
atenção à saúde mas, por outro lado, ela tira o foco da identidade pessoal e o coloca na
adequação a padrões sociais como se o desvio da cis-heteronormatividade fosse um sintoma e
não uma questão pessoal. A questão da despatologização perpassa, portanto, a humanização
do atendimento e possibilitaria que as equipes multiprofissionais entendessem melhor os
processos envolvidos na vivência transexual, contribuindo para a integralidade do cuidado.
(48)
É preciso, portanto, romper com as barreiras criadas através de diagnósticos que
tratam questões identitárias como sintomatológicas. A literatura reitera que “a
despatologização da transexualidade é central para a construção de relações intersubjetivas
entre equipes médicas e usuários/as transexuais baseadas em confiança mútua” (48).
Despatologizar é compreender a saúde de uma forma menos rígida e menos centrada
simplesmente em curar doenças: É ultrapassar a necessidade de remediar para pensar a vida
das pessoas para além de um paradigma de reparos, de retorno à norma. É preciso
despatologizar para que não se deixe que os preconceitos sejam reproduzidos pela medicina,
para que o que é vivido seja mais importante do que o que é estabelecido em manuais.
49
VIII. CONCLUSÕES
IX. REFERÊNCIAS
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