Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
CAPITAL SOCIAL
Vários conceitos, um só problema
SÃO PAULO
2003
FABIO FRANKLIN STORINO DOS SANTOS
CAPITAL SOCIAL
Vários conceitos, um só problema
Campo de Conhecimento:
Transformação do Estado e Políticas Públicas
SÃO PAULO
2003
Santos, Fabio Franklin Storino dos.
Capital Social : Vários conceitos, um só problema / Fabio Franklin Storino dos
Santos. - 2003.
84 f.
CDU 316.42
Dedicatórias
Em memória a meu amigo Wander que, em sua curta passagem por este planeta,
certamente deixou-o muito melhor do que o encontrou, transformando as pessoas que com ele
tiveram o prazer de conviver, como eu tive.
Aos meus pais, por investirem em mim tempo, dinheiro, paciência e muito, muito
amor. Sinto dizer que o investimento é de longuíssimo prazo, mas com este trabalho espero
dar um pouco do retorno do que vocês já fizeram por mim.
À minha professora Marta Farah, agradeço pelo aprendizado dentro e fora da sala
de aula. Também agradeço por me ajudar a realizar um de meus sonhos, a criação de um
Centro de Estudos na FGV-EAESP para tratar do tema da Segurança Pública. Pelo seu alto
nível de “capital social”, colocou-me em contato com professores e alunos que juntos me
ajudaram neste mais novo projeto.
Aos meus professores Maria Rita Loureiro Durand, Maria Cecília Forjaz e George
Avelino, pelas contribuições para a minha dissertação. Ela certamente foi enriquecida pelos
comentários e críticas (sempre construtivas) que vocês fizeram a ela.
Ao meu orientador Fernando Abrucio, por toda a orientação que me foi dada, e
que superou (e muito) a mera orientação para a conclusão da dissertação: também pela
orientação profissional, permitindo que eu contribuísse, ainda que com uma pequena parte,
para a tão importante e urgente Reforma Administrativa dos estados brasileiros. Também
encontrei em você um amigo, o que tornou de certo modo prazeroso este naturalmente
doloroso processo de escrever uma dissertação de Mestrado.
Aos meus demais amigos e parentes e à minha irmã, que fazem minha vida feliz e
que me dão forças para continuar lutando e trabalhando por um mundo cada vez melhor.
Resumo
Esta dissertação discute capital social, um tema relativamente novo nas ciências
humanas, mas que está diretamente relacionado com um velho problema da vida social: os
dilemas da ação coletiva, isto é, como uma sociedade pode desenvolver-se por meio de
confiança mútua entre seus membros e cooperação em torno de objetivos comuns, evitando os
velhos problemas envolvendo bens públicos, quais sejam, os “caronas” e as atitudes
“caçadoras de renda”.
Por último, são apresentados casos de aplicação dos conceitos de capital social
baseados em trabalhos teórico-analíticos e de observações empíricas em diversos países,
mostrando-se as diferentes formas que ele pode assumir conforme o contexto em que é
analisado e, sobretudo, os efeitos que ele pode produzir numa comunidade, numa região ou
mesmo num país inteiro.
First of all, the discussion is situated focusing the problem of collective action
from a broader view: the dilemmas of cooperation, altruist behavior and its supposedly
conflict with a model of human being drove by self-interest, the presupposition of
neoclassical economy of the “homo economicus” and, ultimately, the logic of collective action
theory and its limitations.
Secondly, we point out the 4 main streams of thought which seek to define the
concept of social capital: the comunitarism by Tocqueville and Putnam, social capital in the
creation of human capital by Coleman, the social capital in the market of symbolic exchange
by Bourdieu and, at last, social capital as social infra-structure (institutions) by North.
At last, we present cases of the application of the concepts of social capital, based
on theoretical-analytical works and empirical observations in several countries, showing the
different forms that it can present itself, according to the context in which it is analyzed and,
above all, the effects that it can produce in a community, a region or even in a whole country.
Lista de figuras
Figura 1: Dimensões do Capital Social................................................................................. 17
Figura 2: Dilema do Prisioneiro. Fonte: PINDYCK & RUBINFELD, 1997, p.455...................... 28
Figura 3: Rede sem (a) e com (b) closure............................................................................. 56
Figura 4: Rede envolvendo pais (A, D) e filhos (B, C) sem (a) e com (b) closure
intergeracional ............................................................................................................. 58
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 9
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 77
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 80
Introdução
“Teu milho está maduro hoje; o meu estará amanhã. É vantajoso para nós dois que eu te ajude a
colhê-lo hoje e que tu me ajudes amanhã. Não tenho amizade por ti e sei que também não tens por
mim. Portanto não farei nenhum esforço em teu favor; e sei que se eu te ajudar, esperando alguma
retribuição, certamente me decepcionarei, pois não poderei contar com tua gratidão. Então, deixo
de ajudar-te, e tu me pagas na mesma moeda. As estações mudam; e nós dois perdemos nossas
colheitas por falta de confiança mútua.” David Hume1
1
HUME, David (1740, livro 3, parte 2, seção 5) apud PUTNAM (1996, p.173).
caracterizou como uma nova “onda” de reformas, batizada de Public Governance. Para Jann,
ela viria a superar a “onda” anterior, Public Management, aqui no Brasil chamada de
Administração Pública Gerencial ou Pós-Burocrática. Este novo fenômeno traria consigo
novos temas políticos, novas abordagens científicas, novos fundamentos normativos, novos
arranjos institucionais e, sobretudo, novas implicações práticas.
Na Alemanha, ele observou pelo menos quatro distintas fases recentes pelas quais
o Estado passou: no pós-guerra, o democratic state, ou o Estado democrático, que buscava
reconstruir as instituições democráticas do país; algumas décadas depois, o active state, ou o
Estado ativo / planejador, marcado por uma grande intervenção estatal na economia; o lean
state, uma reação aos problemas gerados pelo excesso de intervenção estatal, iniciado pelo
governo de Margaret Thatcher na Inglaterra na década de 1980, mas que ganhou força em
todo o mundo durante a década de 1990; num primeiro momento do lean state, houve um
forte movimento de redução do aparato estatal (“rolling-back the state”), cortando os excessos,
gerando uma “consciência de custos” e uma desregulamentação de normas; num momento
posterior, novas preocupações passaram a fazer parte da chamada Administração Pública Pós-
Burocrática, como o aumento da eficiência das políticas públicas, controle dos resultados,
qualidade do serviço público etc.
PPPs – Parcerias Público-Privadas). Segundo o modelo desenhado por Jann, o capital social
torna-se um dos elementos chaves deste novo modelo de Estado que surge (JANN, 2002).
“Em 1995, Evans relançou a polêmica da autonomia do Estado. Defendeu uma noção ampliada
dessa autonomia, que englobaria não somente a coesão burocrática, como também a extensão da
intervenção à própria provocação da ação coletiva. Isto é, a função do Estado passaria de ação
reguladora da interação social para um ativismo político mobilizador do capital social.” (ABU-EL-
HAJ, 1999, p.72)
Penso que pelo menos três etapas são essenciais para se incluir o capital social no
processo de formulação de políticas públicas, preocupação desta linha de pesquisa: (1) definir
o conceito; (2) observar e medir o fenômeno; e (3) analisar que tipo de políticas públicas é
capaz de gerar, aumentar e/ou manter o “estoque” de capital social de uma sociedade, e como
as políticas públicas podem fazer bom uso do capital social nela existente.
Objetivo
O presente projeto procura fazer um survey da literatura disponível sobre o tema
capital social. Este é um tema recente nas diversas áreas de conhecimento, que busca
elementos da Economia (teoria dos jogos, eficiência econômica, custos de transação,
contratos e outros 3 ), das Ciências Sociais (principalmente nas áreas da Ciência Política,
Sociologia, Antropologia e, mais recentemente, nas áreas da Administração – onde o
modismo empresarial já conhecido do “networking” chegou a ser rebatizado de “capital social
nas empresas” – e da Administração Pública, como descreveremos detalhadamente adiante) e
mesmo da Biologia (egoísmo, altruísmo, cooperação e outros tópicos que o filósofo Peter
Singer descreve como “a esquerda darwiniana”4). Antes do que simplesmente arriscar uma
visão integradora ou uma definição “definitiva” do que queremos dizer por “capital social”, é
importante conhecermos as principais definições do conceito, que tanto o enriquecem quanto
2
Por “menos” não quero dizer que eficiência deixou de ser importante, mas deixou de ser o foco principal.
3
Daniel Kahneman, um dos dois ganhadores do Prêmio Nobel de Economia de 2002 por seu trabalho “Maps of
Bounded Rationality”, questiona as premissas clássicas da Economia sobre o “homo economicus”. As
abordagens econômicas do capital social muitas vezes fazem referência a este mesmo raciocínio – uma delas
chega a reescrever a famosa expressão da “mão invisível” de Adam Smith, utilizando a expressão “invisible
handshake” (“aperto de mão invisível”).
4
SINGER (1999).
tornam sua análise mais complexa do que se possa parecer à primeira vista. Como colocam
Grootaert e Bastelaer:
“Political scientists, sociologists, and anthropologists tend to approach the concept of social
capital through analysis of norms, networks, and organizations. Economists, on the other hand,
tend to approach the concept through the analysis of contracts and institutions, and their impacts
on the incentives for rational actors to engage in investments and transactions. Each of these
views has merits and the challenge is to take advantage of the complementarities of the different
approaches.” (GROOTAERT & BASTELAER, 2001, p.8)5
5
“Cientistas políticos, sociólogos e antropólogos tendem a abordar o conceito de capital social por meio de
análise de normas, redes e organizações. Economistas, por outro lado, tendem a abordar o conceito por meio da
análise de contratos e instituições, e seu impacto nos incentivos aos atores racionais para se engajarem em
investimentos e transações. Cada uma destas visões tem méritos e o desafio é tirar proveito das
complementaridades das diferentes abordagens.” (tradução nossa)
Estrutura da Dissertação
Por se tratar de um survey da literatura sobre capital social, o capítulo seguinte,
Revisão da Literatura, é o coração deste trabalho. Em primeiro lugar, faço uma rápida
introdução onde procuro desenhar rapidamente um panorama das principais definições do
conceito, bem como apontar o problema da interdisciplinaridade do tema, que exige que se
busque em diversas áreas de conhecimento os elementos dos quais se constitui o que se
entende por capital social. Em seguida, procuro adentrar-me em tais áreas do conhecimento,
mostrando como e em que medida determinados elementos usualmente estudados por estas
áreas se aplicam no entendimento do conceito de capital social. Mais especificamente,
procuro analisar elementos da Biologia, da Economia e das Ciências Sociais.
“(…) social capital refers to connections among individuals – social networks and norms of
reciprocity and trustworthiness that arise from them.” (HANIFAN apud SMITH, 2001)
“(…) tangible substances that count for most in the lives of people: namely good will, fellowship,
sympathy, and social intercourse among individuals and families who make up a social unit (…).
The individual is helpless socially if left to himself (…). If he comes into contact with his neighbor,
and they with other neighbors, there will be an accumulation of social capital, which may bear a
social potentiality sufficient to the substantial improvement of living conditions in the whole
community.” (IDEM)
6
Ver HANIFAN, L. J., (1916). “The rural school community center”, In: Annals of the American Academy of
Political and Social Science 67: 130-138 apud SMITH (2001).
7
Ver JACOBS, J., (1961). The Death and Life of Great American Cities, New York: Random apud SMITH (2001).
Há, atualmente, pelo menos três definições de capital social adotadas por diversos
autores. O primeiro conceito foi desenvolvido a partir do trabalho de Robert Putnam, ao
estudar o caso da Itália moderna (entre o período de 1970 a 1989). Segundo este conceito,
capital social se refere a “características da organização social, como confiança, normas e
redes, que podem melhorar a eficiência da sociedade ao facilitar ações coordenadas”
(PUTNAM, 1993).
O segundo conceito foi colocado por James Coleman, que define capital social
como “uma variedade de diferentes [sic] entidades, com dois elementos em comum: todas
consistem em algum aspecto da estrutura social, e facilitam certas ações dos atores – atores
tanto individuais como corporativos – dentro da estrutura” (COLEMAN, 1988). Esta definição
abriga, além das associações horizontais consideradas por Putnam, também as associações
verticais, além da relação entre essas associações, e não só as relações entre seus membros
(WORLD BANK, 1998).
aspecto cultural da formação de capital social, North e Olson pecam por subestimar seu papel,
dando uma ênfase excessiva ao papel das instituições na criação de capital social, algo que
ainda não pôde ser confirmado nas pesquisas empíricas promovidas pelo Banco Mundial, isto
é, ainda é um campo vasto a ser estudado pelos pesquisadores desta área.
Longe de serem visões distintas de capital social, podemos diferenciar estas três
visões como diferenças de “escopo”: a visão de Putnam focaria sua preocupação no nível
“micro” da sociedade, isto e, nas associações horizontais que surgem em uma determinada
comunidade visando a resolver seus dilemas coletivos; a visão de Coleman situar-se-ia num
nível intermediário (“meso”), incorporando à primeira as associações verticais, e as relações
dentro e entre elas; por último, a visão “macro” de North e Olson, que se preocuparam com o
ambiente na qual estas associações horizontais e verticais estão inseridas, incluídos o regime
político, a regra da lei, o Estado de Direito (“rule of law”), o sistema judiciário e as liberdades
civis e políticas (GROOTAERT & BASTELAER, 2001).
Macro
Instituições do Estado,
Estrutural Cognitivo
Micro
exceções. Mas a visão integrada do capital social, que implicaria abordar conceitos de
diversas áreas do conhecimento, como economia, sociologia, antropologia e ciência política, é
fundamental para avançarmos no entendimento do fenômeno e de suas implicações para as
políticas públicas que visem ao aumento do bem-estar da sociedade (ver nota 5, p.11).
tentativa de se fazer um survey da literatura sobre o tema deve explorar essas diferentes
facetas.
Da competição à cooperação
Ainda que possa parecer estranha, em princípio, a mistura de conceitos da
Biologia e da Ciência Política, uma maneira interessante de começarmos a analisar a questão
do capital social do ponto de vista da Biologia é pensarmos sobre as crenças em relação ao
que se considera como “natureza humana” nos espectros políticos da direita e da esquerda. A
direita faz uma leitura estrita da fábula “do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro” de Adam
Smith8, mostrando a superioridade e a inevitabilidade do capitalismo como o melhor modelo
político-econômico, e uma das palavras-chave deste pensamento é “competição” (e a sua
relação com a idéia darwiniana de “seleção natural”). Já a esquerda, imbuída da teoria de Karl
Marx de que o processo histórico levaria naturalmente à adoção do socialismo como modelo
econômico e como regime de governo, em geral acredita que a teoria de Darwin da “seleção
natural” não é compatível com um ambiente de cooperação, o qual deveria prevalecer numa
sociedade socialista.
A Biologia, entretanto, desfaz tal dicotomia ou, ao menos, coloca-as no plano das
idéias e não dos fatos. Nem a teoria da Evolução é incompatível com a idéia de cooperação
nem esta é incompatível com a idéia de capitalismo e de um mercado eficiente (questão que
será retomada na análise do capital social a partir da Economia, o item seguinte deste
capítulo). Após a publicação do livro A Origem das Espécies, uma série de análises da obra de
Charles Darwin, notadamente aquelas escritas por autores mais à direita do espectro político,
8
Disse Adam Smith em Uma investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776): “Não é
da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter nosso jantar, e sim da atenção
mostrava que suas teorias, enfim, provavam a superioridade do pensamento da direita, dava
embasamento e justificativa científica ao “negociante desonesto” ou a qualquer outra tentativa
de se “vencer” no “vale-tudo” da vida. Peter Singer, professor de Bioética em Princeton,
refuta este tipo de tentativa de associação entre as descobertas científicas no campo do
comportamento humano e valores morais:
“(…) we cannot conclude that the direction of evolution is ‘good’. Evolution carries no moral
loading, it just happens. We are no more justified in helping it on its way than we are in doing our
best to slow it down or change its direction.” (SINGER, 1999, p.12) 9
Uma questão central para a Biologia neste respeito é diferenciar quais aspectos da
“natureza humana” são determinados por nossos genes e quais são produtos da nossa cultura –
um debate que ganhou o título “nature v. nurture”, uma referência a características intrínsecas
à raça humana (“nature” ou natureza) e às características que nos são passadas por meio do
convívio social, ou da nossa criação pelos nossos pais (“nurture” ou criação). A preocupação
da esquerda, em especial a da marxista, que muitas vezes enxerga o homem apenas como um
“produto do meio” ou, para usar a expressão cunhada por John Locke, como uma “folha em
branco”, é sobre como é possível mudar o sistema de produção e todo o sistema de incentivos
da sociedade de maneira a caminhar em direção a um ser humano melhor. O pensamento de
direita, por sua vez, conforta-se com a idéia de que a competição e a “sobrevivência do
melhor” são características intrínsecas a todos os seres vivos, aí incluídos os humanos, e que,
portanto, todas as políticas ou instituições públicas deveriam contribuir, senão para estimular
esse tal ‘instinto animal’ do homem, nas palavras de Keynes, ao menos para não inibi-lo ou
atrapalhá-lo – neste caso, quanto menos intervenção do Estado nos ‘assuntos privados’,
melhor. Singer resume o dilema nurture v. nature colocado pela direita e pela esquerda no que
se refere à natureza humana:
“If (…) the materialist theory of history is correct, and social existence determines consciousness,
then the greed, egoism, personal ambition and envy that a Darwinian might see as inevitable
aspects of our nature can instead be seen as the consequence of living in a society with private
property and private ownership of the means of production. Without these particular social
arrangements, people would no longer be so concerned about their private interests. Their nature
would change and they would find their happiness in working cooperatively with others for the
communal good. That is how communism would overcome the antagonism between man and man.
que cada qual dá ao próprio interesse. Apelamos não à sua humanidade mas ao seu amor-próprio, e nunca lhe
falamos das nossas necessidades, e sim de seus interesses”.
9
“(…) não podemos concluir que a direção da evolução seja ‘boa’. A evolução não carrega consigo nenhum
valor moral, apenas acontece. Não temos nenhuma justificativa a mais em ajudá-la em seu curso do que temos
em fazer nosso melhor para desacelerá-la ou mudar sua direção.” (tradução nossa)
The riddle of history can be solved only if this antagonism is a product of the economic basis of
our society, rather than an inherent aspect of our biological nature.” (SINGER, 1999, p.27)10
Como grande parte das dicotomias do mundo, a resposta está mais próxima de
uma combinação dos dois (e diversos outros) fatores do que de qualquer um deles
isoladamente. O homem possui certas predisposições, tendências, propensões e instintos que
variam muito pouco ou nada entre as diversas culturas espalhadas pelo mundo, ao mesmo
tempo em que elas (culturas) também produzem características singulares a seus membros.
Para sabermos quais dessas características são ‘moldáveis’, passíveis de intervenção por meio
de políticas públicas, por exemplo, seria necessário tentar classificar as características dos
seres humanos entre: (1) aquelas ‘culturais’, que adquirimos dentro de um ambiente
específico, e portanto varia bastante entre as diferentes culturas e os diferentes arranjos
institucionais (da sociedade, do Estado etc.) e são passíveis de intervenção e/ou de mudança;
(2) aquelas que variam pouco entre as culturas; e (3) aquelas que seriam ‘biológicas’, isto é,
com as quais todos nós nascemos e praticamente imutáveis entre as diferentes culturas e ao
longo da vida de cada indivíduo.
10
“Se a teoria materialista da história estiver correta, e a existência social determinar consciência, então avareza,
egoísmo, ambição pessoal e inveja que um darwiniano poderia enxergar como aspectos inevitáveis da nossa
natureza podem, ao contrário, ser vistos como uma conseqüência de viver em uma sociedade com propriedade
privada e controle privado dos meios de produção. Sem esses arranjos sociais especiais, as pessoas não mais se
preocupariam com seus interesses privados. Sua natureza mudaria e elas encontrariam sua felicidade trabalhando
cooperativamente com outras pessoas para o bem comum. É assim que o comunismo resolveria o antagonismo
entre os homens. A charada da história pode ser resolvida somente se esse antagonismo é um produto da base
econômica da nossa sociedade, em vez de um aspecto inerente da nossa natureza biológica.” (tradução nossa)
fato de que somos seres sociais – não de uma maneira particular de sociedade, mas o fato de
que, diferentemente dos, digamos orangotangos, não vivemos isoladamente das outras pessoas.
Igualmente invariante estaria nossa preocupação com laços familiares. Singer também
colocaria nesta terceira categoria nossa prontidão para formar relações cooperativas e
reconhecermos obrigações recíprocas. (SINGER, 1999, p.35-7)
“(…) we still have to ask what we mean by the term ‘self-interest’. We often assume that it is in our
interests to earn as much money as possible, but there is no reason to assume that earning more
than a modest amount of money will maximize the number of descendants we leave in future
generations. So from an evolutionary perspective, we cannot identify self-interest with wealth. Nor
can we do this from a more commonsense viewpoint. We often hear it said that money cannot buy
happiness. This may be trite, but it carries the implication that it is more in our interests to be
happy than to be rich. Properly understood, self-interest is broader than economic self-interest.
Most people want their lives to be happy, fulfilling, or meaningful in some way, and they recognize
that money is, at best, a means to achieving part of these ends. Public policy does not have to rely
on self-interest in this narrow economic sense. It can, instead, appeal to the widespread need to
feel wanted, or useful, or to belong to a community – all things that are more likely to come from
cooperating with others than from competing with them.” (SINGER, 1999, p.42)11
11
“(…) devemos perguntar o que se quer dizer com ‘auto-interesse’. Nós freqüentemente assumimos que é de
nosso interesse ganhar o máximo de dinheiro possível, mas não há razão para pressupor que ganhar mais do que
uma modesta quantia de dinheiro irá maximizar o número de descendentes que deixaremos para gerações futuras.
Portanto, sob uma perspectiva evolucionista, não podemos identificar auto-interesse com riqueza. Nem podemos
fazê-lo do ponto de vista do senso comum. Nós freqüentemente ouvimos dizer que dinheiro não pode comprar
felicidade. Isto pode ser banal, mas carrega a implicação de que é de nosso maior interesse ser feliz do que ser
rico. Apropriadamente entendido, auto-interesse é mais amplo do que auto-interesse econômico. A maioria das
pessoas quer que sua vida seja feliz, gratificante e significativa de alguma forma, e elas reconhecem que dinheiro
é, na melhor das hipóteses, uma maneira de atingir parte destes objetivos. As políticas públicas não precisam se
apoiar no auto-interesse neste senso econômico mais estrito. Elas podem, ao invés disso, apelar para o desejo
mais amplo de [as pessoas] se sentirem queridas, úteis ou pertencentes a uma comunidade – todas as coisas que
são mais prováveis de advir da cooperação com outros do que da competição com eles.” (tradução nossa)
12
Ver DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.
“Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando ao bem
público. Tais fantasias apenas existem nos romances. Cada homem somente por interesses
pessoais está ligado às diversas combinações políticas deste globo; e cada um desejaria, se possível,
não estar preso pelas convenções que obrigam os demais homens.” (BECCARIA, 2003, p.17)
si mesmo. Parte de nossa carga genética, em especial aquela que nos possibilitou o uso da fala
para nos comunicarmos, mostra-nos também que somos seres naturalmente “sociais”.
A primeira resposta a este aparente enigma é razoavelmente clara: aquele que doa
sangue também tem uma expectativa (ainda que negativa) de que um dia poderá precisar
também de sangue e, estando o banco de sangue “cheio”, é bem provável que ele se beneficie
de seu próprio ato (o sangue doado poderia, hipoteticamente, voltar para o corpo do próprio
doador, portanto a doação poderia ser encarada como uma “poupança de sangue”!). Mas esta
hipótese é razoavelmente remota, e portanto o ato de doar também pode ter outro efeito:
inspirar outros a também doarem, garantindo com isto que o banco de sangue esteja sempre
“cheio”, caso ele venha a precisar.
13
Ver DAWKINS, Richard. Op.cit.
14
Num episódio de um famoso seriado recente norte-americano (“Gilmore Girls”), uma garota que tentava ser
admitida em Harvard (que exige um determinado número de horas de trabalho voluntariado entre seus critérios
“The ‘tragedy of the commons,’ that is, the selfish exploitation of resources in the public domain,
is a reason for many of our everyday social conflicts. However, humans are often more helpful to
others than evolutionary theory would predict, unless indirect reciprocity takes place and is based
on image scoring (which reflects the way an individual is viewed by a group), as recently shown
by game theorists. We tested this idea under conditions that control for confounding factors.
Donations were more frequent to receivers who had been generous to others in earlier
interactions. This shows that image scoring promotes cooperative behavior in situations where
direct reciprocity is unlikely.” 15
de seleção), diante da ausência de vagas para voluntários em uma entidade, exclamou, furiosa, algo equivalente a
“Como é que pode haver pessoas tão egoístas a ponto de fazerem trabalho voluntário sem precisar, tirando a
oportunidade de pessoas como eu, que preciso deste trabalho voluntário!“
15
Ver MILINSKI, Manfred & WEDEKIND, Claus. "Cooperation through Image Scoring in Humans". In: Science
Magazine, n.288, 5/mai/2000. Washington: American Association for the Advancement of Science, 2000, p.850-
852. “A ‘tragédia dos comuns’, isto é, a exploração egoísta dos recursos no domínio público, é uma explicação
de muitos dos nossos conflitos diários. Entretanto, humanos são freqüentemente mais prestativos a outros do que
a teoria evolucionária teria previsto, ao menos que a reciprocidade indireta tivesse lugar e fosse baseada em
reputação [image scoring] (que reflete a maneira pela qual o indivíduo é visto pelo grupo), como recentemente
demonstrado por teóricos da teoria dos jogos. Nós testamos esta idéia sob condições que controlavam por fatores
misturados. Doações foram mais freqüentes aos receptores que haviam sido mais generosos nas interações
anteriores. Isto mostra que a reputação promove comportamento cooperativo em situações em que a
reciprocidade indireta é improvável.” (tradução nossa)
indireta”, o nível de contribuição para os bens públicos caía para praticamente zero, como a
própria teoria dos bens públicos prevê:
“The problem of sustaining a public resource that everybody is free to overuse—the 'tragedy of the
commons'—emerges in many social dilemmas, such as our inability to sustain the global climate.
Public goods experiments, which are used to study this type of problem, usually confirm that the
collective benefit will not be produced. Because individuals and countries often participate in
several social games simultaneously, the interaction of these games may provide a sophisticated
way by which to maintain the public resource. Indirect reciprocity, 'give and you shall receive', is
built on reputation and can sustain a high level of cooperation, as shown by game theorists. Here
we show, through alternating rounds of public goods and indirect reciprocity games, that the need
to maintain reputation for indirect reciprocity maintains contributions to the public good at an
unexpectedly high level. But if rounds of indirect reciprocation are not expected, then
contributions to the public good drop quickly to zero. Alternating the games leads to higher profits
for all players. As reputation may be a currency that is valid in many social games, our approach
could be used to test social dilemmas for their solubility.” 16
Um ambiente com alto nível de capital social, por meio de sua rede de relações
sociais, seria um “solo fértil” para o desenvolvimento da “reciprocidade indireta” e, portanto,
para a solução de dilemas como os da “tragédia dos comuns”, embora os autores do estudo
não tenham feito uso deste conceito.
É certo, ainda, que haja um outro motivador intrínseco das ações altruístas dos
seres humanos. Este tem origem muito mais cultural, com base nas crenças individuais, que
são construídas a partir da educação recebida pelos pais ou quaisquer outros que tenham
participado da criação e crescimento do indivíduo, e em valores morais, que podem ter origem
de ordem religiosa (uma sociedade predominantemente católica, como a brasileira, tem
enraizados em sua cultura alguns valores originalmente pertencentes à moral católica) e
diversas outras origens, das quais a Antropologia se ocupa estudar (padrão de colonização,
hábitos dos ancestrais e mesmo o desenrolar da história desta sociedade, que depende de uma
profusão tão grande de fatores e de pessoas que limita as possibilidades de simplificação).
havia renunciado a uma vida de conforto ou qualquer acumulação de bens materiais, e mesmo
títulos e reconhecimento público pouco pareciam lhe motivar (ao saber que havia recebido o
Prêmio Nobel da Paz, simplesmente juntou-se com outras religiosas que a cercavam e
convidou-as para um momento de oração). Mas nada disso implica que suas ações deixaram
de ser auto-interessadas. Suas ações altruístas e a dedicação de sua vida a ajudar os outros
estava fortemente calcada em sua fé, na doutrina religiosa dentro da qual foi educada, nos
valores que acreditava etc. Estava, portanto, maximizando seu bem-estar por meio da “paz de
espírito”, do conforto advindo de fazer aquilo em que acreditava, e seguramente ela se sentia
melhor assim do que de qualquer outra maneira.
16
Ver MILINSKI, Manfred, SEMMANN, Dirk & KRAMBECK, Hans-Jürgen. “Reputation helps solve the 'tragedy of
the commons'”. In: Nature, n.415, 24/jan/2002. p.424-26.
possíveis são negativas. Os prisioneiros enfrentam um dilema. Se eles pudessem ambos entrar
em um acordo de não confessar, então cada um deles iria para prisão por apenas dois anos.
Mas eles não podem conversar entre si, e mesmo que eles pudessem, eles poderiam confiar
um no outro? Se um deles não confessar, ele arriscará ser trapaceado por seu antigo comparsa.
Afinal, não importa o que o Prisioneiro A faça, o Prisioneiro B leva vantagem confessando, e
vice-versa. Portanto, ambos os prisioneiros provavelmente acabam confessando e vão para a
prisão por 5 anos cada. (PINDYCK & RUBINFELD, 1997, p.455-6)
Entretanto, na maioria dos casos (inclusive nos dois citados no parágrafo acima), é
possível mudar a “matriz de recompensas”. No caso dos ônibus × carros, é possível construir
corredores exclusivos para ônibus e, no caso da corrida armamentista, é possível contar com
inspeções de armas por um órgão supranacional (ONU) ou, num exemplo mais hipotético,
invadir o país e tentar desarmá-lo à força (caso as referidas armas sejam encontradas).
parece ser a da cooperação. Para testar esta hipótese, Axelrod17 simulou num computador
estratégias sugeridas por diversas pessoas para um jogo com situação similar ao do Dilema do
Prisioneiro, mas com 200 repetições – que variava dos extremos de sempre cooperar ou de
sempre desertar (não cooperar). A estratégia vencedora era uma estratégia na verdade muito
simples, chamada Tit for Tat. Esta estratégia consistia no seguinte: todo encontro com um
novo “prisioneiro” começava com a cooperação. Nas rodadas seguintes, fazia-se exatamente o
que o outro prisioneiro havia feito na rodada anterior, isto é, continuava cooperando enquanto
o outro prisioneiro cooperava, e passava a desertar assim que o outro prisioneiro desertasse da
cooperação. (SINGER, 1999, p.50)
Uma questão relevante, então, seria a de como uma estratégia do tipo Tit for Tat
poderia funcionar, na prática, em uma determinada sociedade. O capital social, como veremos,
tem um papel fundamental neste sentido. Comecemos com algumas considerações de Singer:
“(…) the only permanent solution is to change the pay-offs so that cheats do not prosper. (…) We
need to think about how to set up the conditions in which cooperation thrives. The first problem to
deal with is that of scale. Tit for Tat cannot work in a society of strangers who will never
encounter each other again. No wonder that people living in big cities do not always show the
consideration to each other that is the norm in a rural village in which people have known each
other all their lives. What structures can overcome the anonymity of the huge, highly mobile
societies that have come into existence in this century and show every sign of increasing in size
with the globalization of the world economy?” (SINGER, 1999, p.52)18
17
Ver AXELROD, Robert. The Evolution of Cooperation. Nova York: Basic Books, 1984.
18
“(…) a única solução definitiva é mudar os resultados [pay-offs] de maneira que os trapaceiros não prosperem.
(…) Precisamos pensar em como estabelecer as condições nas quais a cooperação prospera. O primeiro
problema a lidar é o de escala. Tit for Tat não funciona numa sociedade de estranhos que nunca irão se encontrar
uns com os outros novamente. Não é de se espantar que as pessoas que vivem em grandes cidades nem sempre
mostram consideração umas com as outras que é a norma numa vila rural na qual as pessoas se conhecem desde
que nasceram. Que estruturas podem superar o anonimato das imensas massas migrantes que surgiram neste
século e que parecem estar aumentando de tamanho com a globalização da economia mundial?” (tradução nossa)
Claus Offe rebate este raciocínio com dois argumentos. Em primeiro lugar, é
preciso considerar, além de elementos “cognitivos” do capital social, também os elementos
ditos “estruturais”, quais sejam, as instituições políticas e econômicas existentes naquela
sociedade, o conjunto de regras e de mecanismos institucionais-legais, a influência e o poder
dos outros dois fundamentos da arquitetura da ordem social (Estado e Mercado), além de
outros elementos que também influenciam, quando não em intensidade ainda maior, o
desenho da matriz de recompensas. Ou seja, tais fatores também contribuem para uma
“conduta esperada” e para a geração de “confiança” – além de intrínseca, isto é, “conheço a
reputação daquela pessoa e tenho certa segurança com relação a como ela tenderá a agir
comigo em tal situação”, a confiança também pode ter uma origem extrínseca, isto é, “aquela
pessoa deverá agir como a regra legal estabelece, e se não agir, tenho confiança nas
instituições existentes para coagi-la a agir daquela maneira em tal situação”.
“Community-based ethics, which enhances social solidarity or what is called ‘social capital,’ can
have dichotomous features, since a strong sense of group affiliation can have a cementing role
within that group, while encouraging rather harsh treatment of non-members, seen as ‘others’ who
do not ‘belong’.” (SEN, 2003, p.6)19
19
“A ética ‘comunitária’, que aumenta a solidariedade social ou o que é chamado de ‘capital social’, pode ter
características dicotômicas, já que um forte senso de afiliação de grupo pode ter um papel fortificador
internamento àquele grupo, ao mesmo tempo em que encoraja um tratamento um tanto rude aos não-membros,
vistos como ‘outros’ que não ‘pertencem‘.” (tradução nossa)
são criadas, tipicamente, como concessão recíproca firmemente estabelecida como segunda
opção preferida de todos aqueles que são fracos demais para impor sua opção preferida
respectiva (não-democrática).” (OFFE, 1999, p.122), como normalmente é o caso daquelas
sociedades onde a heterogeneidade e a diversidade de interesses leva a que não exista uma ou
poucas pessoas capazes de falar em nome de todos, e força esta sociedade a criar mecanismos
de representação desta mesma diversidade, de maneira a ter todos os interesses possíveis
representados de alguma forma (ver citação de Beccaria na página 24).
Nesse caso, o ganho para o indivíduo, pela obtenção do bem coletivo, supera o
custo. Este resultado conduz à proposição de que o bem coletivo, no ponto ótimo para
qualquer indivíduo no grupo, será ofertado quando o valor dos ganhos do grupo em relação
aos custos é proporcionalmente maior do que o valor dos ganhos do grupo em relação ao
valor dos ganhos do indivíduo (Vg/C > Vg/Vi). (OLSON, 1999, p.37)
própria definição de bem coletivo, um indivíduo, ao receber um bem coletivo, não pode
excluir outros indivíduos dos benefícios desse bem.
Para se proteger desses dilemas da ação coletiva, os grupos têm a sua disposição
algumas uma forte ferramenta: os “incentivos seletivos” (OLSON, 1999, p.73). Um sindicato,
por exemplo, pode lutar para que se a legislação limite os ganhos de uma negociação coletiva
de trabalho somente àqueles trabalhadores associados a ele e com o pagamento em dia (isto
tenderá a ser uma disputa dos sindicatos brasileiros nos próximos anos, caso a Reforma
Trabalhista realmente extinga o imposto sindical e a unicidade de representação sindical).
Qualquer organização também pode, além dos benefícios coletivos, disponibilizar a seus
membros benefícios exclusivos, de forma a aumentar o incentivo à afiliação (ex.: uma
associação de moradores do bairro pode construir, em sua sede, uma piscina, exclusiva para
uso de seus membros).
Apesar de não haver nenhuma referência direta ao termo capital social, Olson
também identifica seu papel para a provisão de um bem coletivo:
“A possibilidade de que, num caso em que não haja nenhum incentivo econômico para que um
indivíduo contribua para a realização de um interesse grupal, possa haver contudo um incentivo
social para que ele dê sua contribuição deve ser considerada. E é óbvio que é uma possibilidade
real. Se os membros de um pequeno grupo de pessoas que tivesse um interesse em um benefício
coletivo fossem também amigos pessoais, ou pertencessem ao mesmo clube social, e alguns
membros do grupo pusessem o ônus de prover esse benefício coletivo nas costas dos outros, eles
poderiam, mesmo que ganhassem algo economicamente com esse tipo de conduta, perder
socialmente com ela, e a perda social poderia pesar mais na balança do que o ganho econômico.
(…) Esses recursos podem ser eficientes, já que a observação cotidiana mostra que a maioria das
pessoas valoriza a companhia de seus amigos e colegas e zela pelo seu status social, prestígio
pessoal e auto-estima.” (OLSON, 1999, p.72-3, grifos do autor)
Apesar do sucesso da teoria formulada por Olson, que marcou para sempre a área
da Economia, assegurando que a política se tornasse uma parte integral do pensamento
econômico e a formulação de políticas econômicas, também não faltaram críticas ao modelo
de Olson, principalmente no que foi uma premissa básica de seu trabalho, a suposição de
agentes plenamente racionais e com informação perfeita (ou ao menos homogênea).
“Quase quarenta anos atrás, Herbert Simon propôs uma teoria heterodoxa sobre a Racionalidade
Limitada [Bounded Rationality]. As pessoas agem ‘racionalmente’ – mas sob fortes
condicionantes. ‘A capacidade de a mente humana formular e resolver problemas complexos é
muito pequena em comparação com o tamanho dos problemas cuja solução se requer do
comportamento racional objetivo no mundo real […].’ Outro dissidente, o economista de Cornell
Richard Thaler, provoca os adeptos de Chicago por excluírem os devaneios humanos do seu
modelo. Num debate com Robert Barro, um dos mais solenes advogados da teoria de que as
pessoas agem consistentemente de acordo com ‘expectativas racionais’, Thaler explicou que a
diferença entre seu próprio modelo e o de Barro é que ‘Ele supõe que os agentes em seu modelo
são tão espertos como ele, ao passo que eu imagino que as pessoas são tão bobas como eu’. Mais
tarde, Thaler escreveu que ‘Barro concordou com essa avaliação’”. (KUTTNER, p.74)
Isto mostra que seria improvável que um agente comum fosse capaz de decidir sua
participação ou não numa ação coletiva com base em cálculos de Fi, C, Vi ou Vg. Via de regra,
dificilmente alguns desses valores são perfeitamente conhecidos pelos agentes de um grupo.
Para Hirschman, o “homo economicus” da economia clássica é, na verdade, um “inepto
subumano”, uma não-pessoa. Segundo ele, a teoria de Olson não condiz com realidade, pois
coloca ênfase excessiva na “mecanização” do homem, sem levar em conta suas “decepções”
passadas, e sem levar em conta sua cultura cívica (HIRSCHMAN, 1982, p.76; p.85-9).
“Segue-se a isso mais uma conseqüência surpreendente: posto que resultado e objetivo da ação
coletiva são normalmente um bem público disponível a todos, o único meio através [sic] do qual
um indivíduo pode aumentar o benefício que lhe advirá da ação coletiva é o aumento do seu
próprio insumo, isto é, de seus esforços em prol do plano de ação pública que ele defende.”
(HIRSCHMAN, 1982, p.94, grifos do autor)
organizada, da mesma forma que outros fenômenos físicos, como por exemplo o peso, o
magnetismo ou a eletricidade são propriedades da matéria inerte.” (FONSECA, 2003, p.43-44)
“(…) o tratamento matemático da ação humana possibilitaria uma explicação e uma abordagem
mais exata do problema utilitarista: ‘a realização do somatório máximo da felicidade’, no qual
felicidade é definida como sendo equivalente às unidades de intensidade de prazer experimentadas
pelo agente durante uma unidade de tempo.” (IDEM, 2003, p.60)
“Cria-se, por meio desta operação conceitual, uma grande cisão separando, de um lado, a ação
moral e, de outro, a ação econômica, definida como sendo aquela que não é afetada por noções de
dever, beleza, solidariedade ou obrigação moral, na medida em que está exclusivamente sujeita a
cálculos de retorno das ações possíveis dentro do marco legal.” (IDEM, 2003, p.61, grifos do autor)
“A primeira é a seguinte: e economia deixa de ser uma ciência moral. (…) É somente mudando
algumas regras do jogo econômico e administrando os sinais de preço apropriados que é possível
alterar o comportamento dos agentes envolvidos e produzir os ajustes necessários. Não há lugar
para a persuasão moral quando o palco econômico é montado e os atores começam suas atividades.
“A segunda questão é: nada impede que o que originalmente foi elaborado como uma abstração
científica potencialmente útil venha a ser compreendido (ou mal compreendido) como sendo um
preceito moral ou um estado de coisas desejável.
“Se este é o caso, o ‘feriado moral’ desfrutado pelos agentes na província da ‘teoria econômica
pura’ (economia neoclássica tradicional) constitui efetivamente muito mais do que um possível
ponto de partida fértil para a análise. (…) Como recentemente se sugeriu, ‘a economia típica dos
manuais didáticos detém-se mais ou menos nesse ponto: a prescrição é o auto-interesse, limitado
pela lei’; a suposição, evidentemente, é que na esfera de ação econômica ‘só é necessário que cada
indivíduo aja de modo egoísta para que se atinja o bem de todos’ e que ‘os melhores resultados
sobrevirão se as pessoas não pensarem absolutamente em termos morais e simplesmente agirem
por egoísmo’. A ‘mão invisível’ em ação aqui transforma é em deve ser. E o mínimo legal
(cálculos de retorno segundo os limites da lei) é promovido ao status de um máximo moral (o bem
de todos).” (IDEM, 2003, p.61)
“Uma das constatações mais bem documentadas de uma longa série de experiências na teoria dos
jogos é que, surpreendentemente, a maioria das pessoas abriria mão de parte de rendimentos
fortuitos em favor do bem comum, mesmo em face da previsão da teoria econômica de que
indivíduos racionais aproveitariam a situação ao máximo e deixariam a outros a preocupação com
o bem-estar coletivo. A principal exceção ocorre quando a experiência é conduzida entre
estudantes de economia, que, evidentemente, foram condicionados por seu treinamento a valorizar
o comportamento egoísta. Numa experiência famosa20, apenas 20% dos estudantes de economia de
uma amostra escolheram contribuir para o bem coletivo, em contraste com uma maioria, observada
em outros grupos de estudantes.” (KUTTNER, 1998, p.93-94)
“John List, an economist at the University of Maryland, recently tested the existence of the
endowment effect in a new way. Instead of using callow students, he went to a real market with
traders of varying degrees of experience: a sports-card exchange, one of many such, where
20
Ver MARWELL, Gerald & AMES, Ruth. Economists Free Ride: Does Anyone Else? In: Journal of Public
Economics 15 (1981): 295-310.
Americans trade pictures of their favourite athletes. There, traders dealing in hundreds of cards
mix with browsers who might buy only one.
“In one experiment21, Mr List took aside a group of card fans and gave them an assortment of
other, less familiar, sporting memorabilia, such as autographs, badges and so forth. He then let
them trade. The less card-trading experience a subject had, the less likely he was to trade, even
when a good deal was on offer. More experienced traders were less prone to the endowment effect,
and traded as keenly as neoclassical theory predicts.” (TO HAVE, 2003)
“A felicidade sempre foi e continua sendo um grande fim, se não a finalidade suprema, em nome
do qual se justificam escolhas na vida pública e privada. Assim como a saúde está para a medicina,
o pursuit of happiness, o bonheur public, a felicitá pubblica seria o objetivo maior frente ao qual
toda a maquinaria do processo político, social e econômico constituiria tão-somente um meio
adequado e ao qual estaria subordinada. O economista Irving Fisher – amplamente reconhecido
como o maior cientista econômico americano de todos os tempos – é claríssimo sobre isso. Toda
atividade produtiva, ele argumentou, ‘e todas as transações monetárias que dela decorrem derivam
a importância que possuem somente na condição de preliminares úteis e necessárias da renda
psíquica – da satisfação humana [human enjoyment]’. De Petty a Turgot, no século XVIII, a
Keynes, Friedman e Samuelson, poucos economistas dignos de nota discordariam.” 22 (FONSECA,
2002, p.68-9, grifos do autor)
Se, no entanto, o homem for um ser fortemente influenciado por crenças e valores
morais, então o capital social pode ter um profundo impacto em seu comportamento esperado
e, portanto, influenciar na maneira como ele realiza as “trocas” (econômicas ou não) na
sociedade, levando a um maior ou menor crescimento econômico.
“Outras experiências dispõem carteiras ‘perdidas’ em lugares em que serão ‘achadas’. Grande
número de pessoas gasta tempo e se dedica a descobrir o dono para devolve-lhe a carteira, como
todo o dinheiro que continha, sem esperar gratificações. Por quê? Evidentemente, tal
21
Ver LIST, John. “Does Market Experience Eliminate Market Anomalies?” Quarterly Journal of Economics,
February 2003.
22
Grifos do autor. O livro “Felicidade”, de onde esta passagem foi extraída, foi escrito em forma de diálogo
entre quatro personagens. Ironicamente, a passagem em questão é atribuída ao personagem Otto, um economista
liberal bem-sucedido no mercado financeiro que, por sua vez, cita Irving Fisher, um economista neoclássico.
comportamento faz-nos sentir virtuosos, e gostamos da idéia de viver numa sociedade em que os
atos generosos e empáticos são disseminados. Pessoas que têm esses valores não estão sendo
meramente sentimentais; elas participam da manutenção de uma sociedade que apresenta um
equilíbrio sensato entre comportamentos egoístas e generosos – o que traz benefícios econômicos e
sociais. Ensinamentos de sala de aula que frisam a racionalidade do egoísmo puro distorcem esse
equilíbrio necessário“. (KUTTNER, 1998, p.94)
“(…) o conceito de capital social é equivocado. Por que usar o termo ‘capital’ para este conceito
que remete a noções que vão desde relações cooperativas horizontais, até se confundir o conceito
de infra-estrutura social? No meu entender, definir capital social como infra-estrutura social ou o
conjunto de leis, normas (e a eficácia das mesmas) talvez seja a forma mais interessante de se lidar
com esta intuição econômica que é, sem dúvida, interessante. Melhor ainda, sugiro, é definir algo
como tecnologia social ou tecnologia institucional para dar conta do fenômeno em questão.”
(SILVA, 2001, p.21)
Silva não quer, com isso, desprezar o conceito mais amplo de capital social, do
qual ele retirou o que convencionamos chamar de “dimensão cognitiva” do capital social. Ele
propõe apenas uma simplificação do conceito para facilitar sua quantificação e sua
incorporação nos modelos de crescimento econômico. Assim como a tecnologia em geral
pode aumentar a produtividade do capital e do trabalho, ele propõe o entendimento do capital
social, ou infra-estrutura social, como uma ‘tecnologia social’ por entender que ela produz o
mesmo efeito das demais tecnologias, qual seja, o aumento da produtividade dos demais
fatores de produção.
“(…) social capital has public good characteristics that have direct implications for the optimality
of its production level. Like other public goods, it will tend to be underproduced because of
incomplete collective internalization of the positive externalities inherent in its production.”
(GROOTAERT & BASTELAER, 2001, p.7)
Mas o atributo principal que permite que seja considerado um capital é descrito
por Stiglitz: “It is capital because it takes time and effort to produce (it has an opportunity
cost) and it is a means of production.” (STIGLITZ, 2000, p.60)
Tocqueville estava então abrindo uma nova porta das ciências sociais, ao
descrever o conceito de uma comunidade cívica. Este conceito seria resgatado então mais de
um século depois, a partir do trabalho de James Coleman, e posteriormente por Peter Evans,
Robert Putnam, Judith Tendler, entre outros.
Embora haja algumas breves citações anteriores por outros autores, a definição de
‘capital social’ é atribuída ao sociólogo James Coleman, a partir do trabalho “Social capital in
the creation of Human Capital”. Woolcock (1998) argumenta, entretanto, que foi Jane Jacobs,
em 1961, com a obra “The Life and Death of Great American Cities”, quem forneceu o
sentido contemporâneo de Capital Social:
"Podem ser apontados vários outros candidatos plausíveis a fundadores do conteúdo e do espírito
do capital social, mas no sentido contemporâneo no qual o termo é usado, a passagem seguinte de
Jacobs (1961:138) parece ser a que mais se aproxima: ‘As redes de relações são o capital social
insubstituível de uma cidade. Se este capital se perde, por quaisquer razões, sua ‘renda’
desaparece para não mais retornar, até que um capital novo tenha a chance de ser lentamente
acumulado’.” [grifos nossos] (WOOLCOCK, 1998)
23
“E eu, eu digo que para combater os maus que a igualdade pode produzir, só há um remédio eficaz: é a
liberdade política.” (tradução nossa)
O relatório da OCDE nos traz um conceito mais amplo de capital social do que
Coleman ou Jacobs, ao afirmar que há pelo menos quatro definições razoáveis do que seja
capital social, quais sejam:
“1) The anthropological literature is the source for the notion that humans have natural instincts for
association. For example, Fukuyama (1999) stresses the biological basis for social order and the
roots of social capital in human nature.
2) The sociological literature describes social norms and the sources of human motivation. It
emphasizes features of social organization such as trust, norms of reciprocity and networks of civic
engagement.
3) The economic literature draws on the assumption that people will maximize their personal
utility, deciding to interact with others and draw on social capital resources to conduct various
types of group activities (Glaeser, 2001). In this approach, the focus is on the investment strategies
of individuals faced with alternative uses of time.
4) A strand in the political science literature emphasizes the role of institutions, political and social
norms in shaping human behavior. Recent work at the World Bank on the role of social capital in
reducing poverty and promoting sustainable development has emphasized the role of institutions,
social arrangements, trust and networks.” (OCDE, 2001)
A outra corrente é a traçada por Robert Putnam. Entre 1970 e 1989, Putnam
realizou um abrangente estudo sobre uma mudança institucional importante ocorrida no início
dos anos 1970 na Itália: a implantação dos governos regionais. Putnam acompanhou, durante
este período, o desempenho destas instituições, que vieram a se agregar ao governo central de
Roma e ao poder municipal, nas diversas regiões italianas. E observou uma diferença
impressionante: os governos regionais do Norte da Itália tiveram um desempenho muito
superior aos do Sul, a despeito de terem sido constituídos sob as mesmas bases legalmente
determinadas.
Apesar de firmar sua obra como um “novo clássico” das ciências sociais, e
desencadear uma nova fase de pesquisas empíricas sobre comunidade cívica e democracia,
desenvolvimento econômico e desempenho institucional mundo afora, Putnam também criou
muitos desafetos, sobretudo na Itália. Como explica Fernandes: “Ao tratar da história
complexa e milenar da Itália de forma rápida (em apenas um capítulo) para explicar as
diferenças de civismo nas várias regiões do país, Putnam incorre em inferências imprecisas
que levantam o clamor e o protesto de historiadores italianos. De acordo com Tarrow (1996,
p.392), ‘sua imagem do norte medieval e das cidades estados como um protótipo de
republicanismo é telescópica, para dizer o mínimo’” (FERNANDES, 2000).
“(…) talvez mais urgentemente precisemos explorar com criatividade a maneira como as políticas
públicas se chocam (ou podem se chocar) com a formação social. Em algumas instâncias bem
conhecidas, as políticas públicas destruíram redes sociais e regras altamente efetivas.” (PUTNAM,
apud ABU-EL-HAJ, 1999, p.70-71)
A grande questão deixada em aberto por Putnam, e até o momento muito pouco
explorada, é se o Governo poderia também ter uma influência neste estoque de capital social.
EVANS (1997) argumenta que sim, analisando alguns casos de políticas públicas de sucesso
em diversos países, como Índia, China e Brasil. Ao analisar o Brasil, Evans se baseou na obra
da professora de Economia Política do MIT Judith Tendler, “O bom governo dos trópicos”,
que analisa quatro políticas públicas bem sucedidas, implementadas no Ceará sob condições
sociais adversas. Evans argumenta que não só um mínimo de capital social existente naquelas
comunidades foi fundamental para o sucesso destas políticas, como estes projetos
contribuíram para aumentar o estoque de capital social daquelas comunidades. Entretanto, é
importante destacar que falta à obra de Evans a análise contrafactual, isto é, casos de fracasso
de políticas públicas apesar do alto capital social.
“While it is always fun and often useful to expose the perfidies of public sector actors, this kind of
news is already in oversupply. What is needed is more research on positive cases. (…) Research
has an important role to play in diffusing the idea that synergy is a real possibility for Third World
countries trying to enhance the welfare of their citizens.” (EVANS, 1997)
Mais uma vez, cabe aos futuros pesquisadores continuar esta difícil batalha de
colocar o capital social definitivamente no “currículo” das ciências sociais. Mais estudos
empíricos são fundamentais para se comprovar (ou não) a relevância do capital social no
desenvolvimento econômico e social das comunidades.
Coleman ilustra alguns casos em que a presença de capital social tornou viável ou
economicamente mais eficiente (menores custos de transação):
24
“Como outras formas de capital, o capital social é produtivo, possibilitando o alcance de determinados fins que
em sua ausência não seria possível.” (tradução nossa)
Esta descrição da base da organização deste tipo de ativismo ilustra duas espécies
de capital social: a primeira é o ‘mesmo colégio, mesma cidade-natal ou mesma igreja’, que
provê as relações sociais dentro das quais esses ‘círculos de estudo’ são posteriormente
organizados. O segundo tipo são os próprios ‘círculos de estudo’ – uma forma celular de
organização que parece ser especialmente valiosa para facilitar movimentos de oposição em
qualquer regime político intolerante aos dissidentes. E mesmo onde os dissidentes políticos
são tolerados, certas atividades não o são, sejam elas terrorismo politicamente motivado ou
crimes simples. A organização que torna possível essas atividades é uma forma especialmente
potente de capital social.
25
O mercado de diamantes nova-iorquino e outros aspectos referentes aos laços familiares, étnicos e religiosos
da comunidade judaica ortodoxa daquela cidade é bem caracterizada pelo filme “Uma Estranha Entre Nós” (“A
Stranger Among Us”, Buena Vista, EUA/1992). O filme ilustrar, entre outras coisas, o ostracismo ao qual são
submetidos aqueles que violam gravemente as regras de conduta da comunidade.
(3) Uma mãe de seis filhos, que recentemente se mudou com seus maridos e filhos
do subúrbio de Detroit para Jerusalém, descreveu como uma das razões para tal uma maior
liberdade para seus filhos mais novos em Jerusalém. Lá eles podiam atravessar a cidade até a
escola no ônibus público e brincar sem supervisão dos pais num parque municipal, ambas
coisas que ela considerava não poder fazer em Detroit.
A razão para esta diferença pode ser explicada como uma diferença de capital
social disponível em Jerusalém e no subúrbio de Detroit. Em Jerusalém existe uma estrutura
de normas que assegura que crianças desacompanhadas serão ‘supervisionadas’ por outros
adultos na vizinhança, enquanto esta estrutura inexiste na maioria das regiões metropolitanas
dos Estados Unidos.26
(4) O mercado Khan El Khalili do Cairo (Egito), a divisa entre as lojas de cada
comerciante é muito difícil de perceber para alguém de fora. O proprietário de uma loja
especializada em couro pode, quando perguntado onde se pode comprar um determinado tipo
de jóia, passar a vendê-la também – ou, algo muito parecido com isso, ter um ‘associado’ que
a vende, para quem o primeiro comerciante levaria o cliente. Tal comerciante também poderia
repentinamente se transformar num agente de câmbio 27 , apoiando-se em seu colega de
algumas lojas abaixo. Para algumas dessas atividades, como levar um cliente à loja de um
‘associado’, há um sistema de comissões. Para outras, como as atividades de câmbio, há
simplesmente a criação de obrigações. As relações familiares são importantes neste mercado,
como o é a estabilidade do direito de propriedade. Este mercado é tão permeado por estes
tipos de relações que poderia ser descrita como um tipo de organização, ou mesmo de uma
‘loja de departamentos’. Alternativamente, poderíamos considerar o mercado como
consistindo em um conjunto de comerciantes individuais, cada um possuindo uma extensa
massa de capital social da qual pode usufruir. (COLEMAN, 1988, p.16-8)
26
Normas similares existem, por exemplo, em metrópoles como Quebec (Canadá), Estocolmo (Suécia) e
Copenhague (Dinamarca). Lá é relativamente comum ver os pais deixarem seus filhos pequenos no carrinho de
bebê do lado de fora de um restaurante enquanto comem lá dentro. Já houve pelo menos um caso de uma
dinamarquesa presa em Nova York por, inadvertidamente, fazer a mesma coisa em um restaurante em
Manhattam.
Coleman não buscou uma definição direta de capital social. Para ele, este conceito
seria mais bem entendido por sua função:
“It is not a single entity but a variety of different entities, with two elements in common: they all
consist of some aspect of social structures, and they facilitate certain actions of actors – whether
persons or corporate actors – within the structure.” (COLEMAN, 1988, p.16)28
Ele justifica esta definição por ‘função’ com uma analogia com uma cadeira:
“‘chair’ identifies certain physical objects by their function, despite differences in form,
appearance, and construction” (COLEMAN, 1988, p.19). Assim, no caso do capital social, a
ênfase estaria na função que esses aspectos da estrutura social podem ter para que os atores
possam atingir seus interesses.
“If A does something for B and trusts B to reciprocate in the future, this establishes an expectation
in A and an obligation on the part of B. This obligation can be conceived as a credit slip held by
A for performance by B. If A holds a large number of these credit slips, for a number of persons
with whom A has relations, then the analogy to financial capital is direct. These credit slips
constitute a large body of credit that A can call in if necessary – unless, of course, the placement
of trust has been unwise, and these are bad debts that will not be repaid.” (COLEMAN, 1988, p.20)
27
Foi usada a tradução ‘câmbio’ para money changing, que na verdade significa o ato de trocar uma nota ‘alta’
por notas e moedas menores, algo alheio à tradição brasileira, mas muito comum nos Estados Unidos ou em
países com grande incidência de turistas americanos, como é o caso do Cairo.
28
“Não é uma única entidade mas uma variedade de diferentes [sic] entidades, com dois elementos em comum:
todas consistem em algum aspecto da estrutura social, e facilitam certas ações dos atores – atores tanto
individuais como corporativos – dentro da estrutura” (tradução nossa)
também bastante citadas por Putnam no caso italiano, como veremos adiante, um ambiente
confiável é essencial para que este tipo de associação prospere. Nas associações de crédito
rotativo, cada um de seus membros contribui mensalmente com um determinado valor, e há
um sorteio que garante a um destes membros todo o montante arrecadado. Uma mesma
pessoa não pode ser sorteada mais de uma vez, de forma que, uma vez sorteada, ela tem a
certeza de que nos meses seguintes ela continuará contribuindo com a certeza de que não terá
mais nenhum ‘retorno’. Sem este ambiente de confiança entre os membros do grupo, uma
pessoa que recebe o pagamento logo nos primeiros sorteios poderia esquivar-se de continuar
pagando e deixar o resto do grupo no prejuízo. Seria difícil imaginar uma associação de
crédito rotativo funcionando com sucesso em áreas urbanas marcadas por um alto grau de
desorganização social – ou, em outras palavras, por um baixo nível de capital social.
(COLEMAN, 1988, p.20-1)
Quanto à segunda dimensão (extensão das obrigações), elas podem diferir entre
estruturas sociais ou dentro destas por uma série de razões. Em outras palavras, há diferenças
nas necessidades que as pessoas têm de recorrerem à ajuda dos outros membros da
comunidade:
“Information is important in providing basis for action. But acquisition of information is costly. At
a minimum, it requires attention, which is always in scarce supply. One means by which
information can be acquired is by use of social relations that are maintained for other purposes.”
(COLEMAN, 1988, p.22)
29
Ver LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
acompanhar os noticiários na TV etc. Para resolver seu problema, ela pode recorrer a pessoas
de seu círculo de amizades que o fazem e, assim, atualizar-se. O mesmo vale para uma pessoa
que quer vestir-se nos padrões de moda atuais, mas não tem tempo, paciência e/ou dinheiro
para investir em cursos ou publicações do gênero. Se ela tiver acesso a pessoas com tal
conhecimento, ela pode adquiri-lo a um preço muito menor e um prazo mais curto (com
relação à duração de um curso de moda). Pensando em termos econômicos, esta maneira
indireta de adquirir conhecimento pode ser considerada economicamente mais eficiente –
ainda que o mercado de cursos e de publicações de moda potencialmente sofresse perdas com
isso (embora o número de pessoas que se vestem ‘fora de moda’ indique que o não acesso a
esses canais de informação não necessariamente implique a aquisição direta destas
informações no mercado, seja por falta de tempo, de dinheiro ou mero desinteresse pelo
assunto).
Mas o uso dos canais de informação disponíveis numa estrutura social também
pode ter relevantes resultados econômicos. Um bom exemplo é o setor de pesquisa científica.
As diversas associações científicas, congressos, redes virtuais e outras formas de interação
entre cientistas de diversas partes do mundo tornam possíveis que descobertas feitas em um
determinado laboratório num pequeno país do sudeste asiático se transformem mais
rapidamente em produtos à disposição dos consumidores no mercado brasileiro, por exemplo.
Isto significa uma potencialização dos gastos com Pesquisa & Desenvolvimento. Porém, isto
também pode ter um downside: ao mesmo tempo em que barateia um produto ou acelera o
tempo entre a descoberta científica e sua disposição às pessoas, estas redes de informação
dificultam ou mesmo inviabilizam o monopólio das informações (elegantemente chamado de
‘direito de propriedade intelectual’, um dos temas mais quentes das atuais disputas comerciais
da OMC e no âmbito da discussão da implantação da ALCA nas Américas). Não podendo
garantir o monopólio sobre uma determinada descoberta científica, o que garantiria
exclusividade da exploração desta tecnologia (ainda que por um tempo determinado) ao
menos para cobrir os custos de investimento em P&D e garantir o retorno esperado por seus
acionistas, isto pode simplesmente inibir esta empresa de fazer tal investimento e, assim,
reduzir o nível agregado de investimento em P&D daquele mercado. Deparamo-nos, portanto,
com um problema clássico de ação coletiva (ver item A lógica da ação coletiva na página 33),
pois sendo tal conhecimento científico um ‘bem público’, haveria muitos incentivos para o
‘free-riding’ dos atores envolvidos mas poucos para assumir com sua parcela de contribuição
para produzir tal bem público.
As três formas de capital social apresentadas por Coleman acima poderiam ser
classificadas, usando a taxonomia proposta por GROOTAERT & BASTELAER (2001), como
dimensões cognitivas de capital social. Para ele, todas as relações e estruturas sociais facilitam
alguma forma de capital social (ao contrário do capital físico, o capital social aumenta com o
uso e se deteriora com o desuso). Mas ele também identifica as estruturas (dimensões
estruturais, portanto) que são especialmente importantes por facilitar algumas formas de
capital social.
A primeira estrutura que Coleman identifica é o que ele chama de closure30 das
redes sociais. Normas surgem como tentativas de se limitar o efeito externo negativo ou
encorajar efeitos positivos. Mas, em várias estruturas sociais, normas não conseguem ser
fixadas, ou não são efetivas. Para Coleman, isto se deve pela falta de closure em redes sociais.
A Figura 3: Rede sem (a) e com (b) closure ilustra duas redes: a rede (a), composta de 5
membros (de A a E), o ator A, tendo relações com os atores B e C, pode conduzir ações que
impõem externalidades negativas em B ou C, ou em ambos. Como eles não tem relações entre
si, mas apenas com outros (D e E), eles não podem combinar forças para sancionar A de
forma a constranger tais ações. Enquanto nenhum dos dois for prejudicado o suficiente nem
30
Não encontramos uma tradução direta para a expressão em inglês closure, que poderia ser entendida como um
adjetivo que caracteriza algo fechado, no contexto utilizado por este trabalho.
D E
B C
B C
A A
(a) (b)
“(…) an organization that was initiated for one purpose is available for appropriation for other
purposes, constituting important social capital for the individual members, who have available to
them the organizational resources necessary (…). These examples illustrate the general point, that
organization, once brought into existence for one set of purposes, can also aid others, thus
constituting social capital available for use.” (COLEMAN, 1988, p.26)
31
Ver item A Teoria dos Jogos e a possibilidade da cooperação na página 28.
human capital of the parents, at least as measured traditionally by years of schooling, is low,
but the social capital in the family available for the child’s education is extremely high”
(COLEMAN, 1988, p.27-8).
“The social capital of the family is the relations between children and parents (and, when families
include other members, relationships with them as well). That is, if the human capital possessed by
parents is not complemented by social capital embodied in family relations, it is irrelevant to the
child’s educational growth that the parent has a great deal, or a small amount, of human capital.”
(COLEMAN, 1988, p.28)
Mas o capital social que tem valor para o desenvolvimento de uma pessoa não é
apenas aquele presente dentro de uma família. Ele também pode ser encontrado na
comunidade, consistindo das relações sociais que existem entre os casais de pais, na relação
dos pais com as instituições da comunidade e, analogamente ao que mostramos na figura da
página Figura 3 acima (p.56), a existência de closure nesta estrutura de relações, como mostra
a Figura 4 abaixo:
Figura 4: Rede envolvendo pais (A, D) e filhos (B, C) sem (a) e com (b) closure intergeracional
E A D E A D
B C B C
(a) (b)
FGV-EAESP – DISSERTAÇÃO DE MESTRADO 58
CAPITAL SOCIAL: VÁRIOS CONCEITOS, UM SÓ PROBLEMA FABIO FRANKLIN STORINO
“The public goods quality of most social capital means that (…) because the benefits of actions
that bring social capital into being are largely experienced by persons other than the actor, it is
often not in his interest to bring it into being. (…) The obvious solution appears to be to attempt to
find ways of overcoming the problem of supply of these public goods.” (COLEMAN, 1988, p.35-6)
Bourdieu expande a noção de capital para além de sua concepção econômica, que
enfatiza as trocas materiais, para incluir formas "imateriais" e "não-econômicas" de capital,
especificamente capital cultural e social. Ele explica como os diferentes tipos de capital
podem ser adquiridos, trocados, e convertidos em outras formas. Porque a estrutura e a
distribuição de capital também representa a estrutura natural do mundo social, Bourdieu
argumenta que um entendimento das múltiplas formas de capital ajudará a elucidar a estrutura
e o funcionamento do mundo social.
“From the very beginning, a definition of human capital, despite its humanistic connotations, does
not move beyond economism and ignores, inter alia, the fact that the scholastic yield from
educational action depends on the cultural capital previously invested by the family. Moreover, the
economic and social yield of the educational qualification depends on the social capital, again
inherited, which can be used to back it up.” (BOURDIEU, 1986, p.244)
importante deste capital é que o esforço de tempo para a acumulação deste capital deve ser
feito pelo próprio ‘investidor’, não pode ser delegado a um terceiro. Da mesma forma, ele tem
um limite máximo de acumulação (a capacidade cognitiva do indivíduo), e é extinto com o
fim da existência dele (não pode ser herdado).
“(…) the initial accumulation of cultural capital, the precondition for the fast, easy accumulation
of every kind of useful cultural capital, starts at the outset, without delay, without wasted time,
only for the offspring of families endowed with strong cultural capital.” (BOURDIEU, 1986, p.246)
que elevam seu nível social ou aumentam seu capital cultural a partir do que herdaram? Se
tomado apenas no contexto das argumentações acima, o raciocínio de Bourdieu poderia
levaria a uma espécie de ‘determinismo cultural’, isto é, as gerações futuras estariam limitadas
pelo capital cultural inicial que lhes foi transmitido pelos seus pais. Restaria explicar como
surgiu esta diferença entre capital cultural nas primeiras famílias da humanidade.
“(…) the aggregate of the actual or potential resources which are linked to possession of a
durable network of more or less institutionalized relationships of mutual acquaintance and
recognition – or in other words, to membership in a group.” (BOURDIEU, 1986, p.248)
“In other words, the network of relationships is the product of investment strategies, individual, or
collective, consciously or unconsciously aimed at establishing or reproducing social relationships
that are directly usable in the short or long term, (…) implying durable obligations subjectively
felt (feelings of gratitude, respect, friendship etc.) or institutionally guaranteed (rights).”
(BOURDIEU, 1986, p.249-50)
Por fim, em sua discussão sobre conversões entre os diferentes tipos de capital,
Bourdieu reconhece que todos os tipos de capital podem ser obtidos do capital econômico por
meio de vários esforços de transformação. A transformação de capital econômico em social
requer um trabalho específico (uma dedicação de tempo, atenção, cuidado, interesse etc.); de
um ponto de vista meramente econômico, este esforço pode ser percebido como um
desperdício; mas em termos da lógica das trocas sociais, é um investimento sólido, e o ‘lucro’
aparece no longo prazo. Bourdieu entende que o capital social pode ser ‘herdado’
(simbolizado por um ‘nome de família’ nobre, por exemplo), fazendo com que relações
circunstanciais possam se transformar, com muito menor esforço, em conexões duráveis:
“They are sought after for their social capital and, because they are well known, are worthy of
being known (‘I know him well’); they do not need to ‘make the acquaintance’ of all their
‘acquaintances’; they are known to more people than they know, and their work of sociability,
when it is exerted, is highly productive.” (BOURDIEU, 1986, p.251)
“(…) the declared refusal of calculation and of guarantees which characterizes exchanges tending
to produce a social capital in the form of a capital of obligations that are usable in the more or
less long term (exchanges of gifts, services, visits, etc.) necessarily entails the risk of ingratitude,
the refusal of that recognition of non-guaranteed debts which such exchanges aim to produce.”
(BOURDIEU, 1986, p.254)
“Talvez uma das possíveis explicações esteja no fato de que as instituições, em determinadas
economias, não criam sistemas de incentivo adequados para a acumulação de capital físico e
humano. Variáveis como democracia, garantia de direitos em geral, corrupção, liberdade, por
exemplo, mostram ter, pelo menos empiricamente, alguma relação com diferenças em termos de
desempenho econômico entre nações.” (SILVA, 2001, p.7)
É preciso ter um certo cuidado ao tentar encontrar uma possível correlação entre
as variáveis acima com o crescimento econômico. Afinal, a explicação da correlação também
funciona no sentido inverso: (1) crescimento econômico negativo ou estagnação por um longo
tempo pode gerar instabilidade social e política e, com isso, minar a democracia (neste caso, a
população pode preferir eleger uma pessoa mais centralizadora e autoritária, que resolva seus
problemas ‘por canetada’, uma espécie de ‘Salvador da Pátria’); (2) a ausência de crescimento
econômico também aumenta os incentivos a atividades ‘caçadoras de renda’, e com isso a
corrupção que, por sua vez, dificulta ainda mais a retomada do crescimento.
A maioria dos estudos que tentam relacionar algum elemento do capital social
com crescimento econômico utiliza a variável ‘confiança’. Uma possível razão para isso é que
é uma das variáveis mais facilmente disponíveis em pesquisas cross-country (notadamente o
World Values Survey, organizado pelo sociólogo americano Ronald Inglehart desde 1981).
Mas não é a única. Sua utilização também está bem ancorada em pressupostos teóricos que
indicariam uma relação esperada entre confiança e crescimento: “High trust has economic
value because it increases economic efficiency by reducing transaction costs, costs in
negotiating contracts, and costs in enforcing the contract in the event of dispute and fraud”
(HJERPPE, 2003, p.16).
Algumas variáveis institucionais, entretanto, vêm ganhando cada vez mais espaço
neste tipo de pesquisa. Uma delas é o que se chama de capital social governamental (HJERPPE,
2003, p.14-6), constituído por vários indicadores, entre eles: liberdades civis, liberdade
política (incluindo repressão política, assassinatos políticos, número de tentativas de
revoluções ou golpes políticos), regra da lei, corrupção governamental, risco de confisco e até
mesmo qualidade da burocracia. Alguns pesquisadores criaram um índice de credibilidade
das regras a partir de algumas dessas variáveis, para medir o nível de expectativa de que uma
regra definida pelo governo seja cumprida (o que depende não só da população, mas de uma
estrutura de ‘enforcement’ destas regras) e de que o governo também cumpra as regras. Todos
esses estudos apontaram, em maior ou menor grau, para uma possível relação positiva entre
boas instituições e crescimento econômico. Para Silva:
“(…) é cada vez mais comum estudos (…) que observam uma relação empírica robusta entre
estabilidade institucional, instituições e crescimento econômico. Hall & Jones (1998) 32 e
Routledge & Amsberg (1996)33 (…) são os mais importantes na área, isto pois ambos lidam,
teórica e empiricamente, com (…) a relação entre capital social e performance econômica.” (SILVA,
2001, p.12)
Silva diz que especulações acerca da relação entre valores, ética, cooperação e
performance econômica devem ser estabelecidas com rigor teórico, a partir da construção de
modelos, “de tal forma a evitar ‘moralismos formais’ e análises que beiram a pseudociência,
como aparentemente é o caso de Fukuyama (1995)” (IDEM, 2001, p.13) Ele propõe, ao menos
para a construção de modelos para a análise do crescimento econômico, uma visão baseada na
tradição da economia constitucional e da public choice, como o estoque de regras e leis
(incluindo mecanismos de enforcement). Esta visão considera normas (leis informais) e regras
(incluindo leis, a Constituição etc.) como elementos cujo estoque define tal conceito de capital.
Para ele, definir o capital social desta forma permite não somente escapar das
armadilhas associadas ao primeiro conjunto de definições, bem como abre espaço para a
mensurabilidade da possível eficácia de um determinado estoque de normas e leis. “Isto pode
ser feito, por exemplo, construindo-se variáveis proxies de sanção da lei, tais como número de
rompimentos de contratos, velocidade de julgamento de processos etc.” (IBIDEM, 2001, p.19)
“No meu entender, definir capital social como infra-estrutura social ou o conjunto de leis, normas
(e a eficácia das mesmas) talvez seja a forma mais interessante de se lidar com esta intuição
econômica que é, sem dúvida, interessante. Melhor ainda, sugiro, é definir algo como tecnologia
social ou tecnologia institucional para dar conta do fenômeno em questão.
“Com isso não estou a afirmar que as visões alternativas sobre o que é capital social sejam
desprezíveis. Pelo contrário, talvez para estudo de caso aplicados às experiências locais de
desenvolvimento tal conceito seja realmente fundamental (e acredito que seja). No entanto, capital,
pelo menos em economia, é fator de produção e possui um sentido bem estrito e definido que não
32
Ver HALL, R. E. & JONES, C. I. “Why Do Some Countries Produce So Much Output per Worker than Others?”
NBER Working Papers, May, 1998.
33
Ver ROUTLEDGE, B. R. & AMSBERG, J. von. “Endogenous Social Capital”. Working Paper, Carnegies Mellon
University, Graduate School of Industrial Administration, 1996.
comporta as intuições e conceitos implícitos aos conceitos tradicionais de capital social.” (IBIDEM,
2001, p.21)
“Considerando uma quantidade de capital fixa, uma infra-estrutura institucional pode gerar na
economia menores custos de transação: com uma quantidade menor de capital pode-se produzir
uma mesma quantidade de produto per capta que numa outra economia qualquer, onde a infra-
estrutura social gera maior ineficiência. Esta é, no meu entender, a visão mais adequada no que se
refere à introdução da infra-estrutura social no modelo.” (IBIDEM, 2001, p.30)
“I had just gotten my PhD and was in Rome, with my one-year-old and three-year-old, trying to set
up interviews with members of the Italian parliament for another study I wanted to do. The
government was falling apart. The politicians had left the city, I couldn't arrange my interviews,
and in the midst of all this confusion, the government decided to go forward with a constitutional
reform to establish regional governments.”
Num estudo com bastante rigor metodológico (ele traçou diversas correlações
possíveis entre desempenho institucional do governo regional e uma série de outras variáveis),
Putnam descobriu que a principal variável que explicava a diferença de desempenho tinha
origem nas comunidades cívicas, muito mais presentes no Norte da Itália do que no Sul. O
que Putnam chamou de “comunidade cívica” deve ser entendido como uma comunidade com
um alto estoque de capital social. Putnam remonta a Tocqueville para tentar medir este
estoque entre as regiões, e descobre uma forte correlação entre o bom desempenho
institucional dos governos regionais do Norte e seu elevado estoque de capital social, e entre o
fraco desempenho institucional dos governos regionais do Sul e seu baixo estoque de capital
social.
pelo menos três maneiras, de acordo com uma pesquisa sobre capital social realizada entre
março e abril de 1998, a New Russia Barometer VII (ROSE, 2001, p.157-158):
· corrupção, propina: 56% dos russos acham que não precisam pagar impostos,
pois o governo nunca saberá, e outros 27%, se pegos, pagariam propina a um
funcionário do governo para evitar a multa.
Nuria discorre dos diversos mecanismos de controle social. Alguns dos controles
sociais sobre o governo podem ser exercidos de maneira individual, como o voto, mas mesmo
este ganha uma força muito maior quando exercido coletivamente, isto é, através de debate,
confronto de idéias, articulação política, mobilização para o desenho dos planos de governo
etc. Demais mecanismos de controle social, como os “Comités de Vigilancia” da Bolívia, a
“Contraloría Social” do México, “Veedurías Ciudadanas” da Colômbia ou a “Ouvidoria do
Município” em São Paulo, são permeados pela lógica da ação coletiva, isto é, quanto menores
os custos de mobilização coletiva e maior a informação entre os membros desta comunidade,
maior o poder de alcance destes instrumentos de controle social.
Neste sentido, mais uma vez o capital social entra como um ator importante.
Como destaca Putnam, “Essas redes facilitam a coordenação e a comunicação, amplificam
reputações e assim permitem a resolução de dilemas de ação coletiva” (PUTNAM, 1995).
sociedade civil, e como uma sociedade minimamente organizada pode levar a boas políticas
públicas, e como essas podem, por sua vez, aumentar a virtuosidade desta sociedade, gerando,
assim, capital social.
Peter Evans, ainda que por caminhos diferentes, também estuda a burocracia
estatal, e sua relação com o desempenho governamental, desta vez na área de
desenvolvimento econômico. Evans analisa dois tipos diferentes de Estado: o
desenvolvimentista, como o Japão e, em menor medida, Coréia e Taiwan, e o predatório,
tendo Zaire como caso extremo, e Brasil e Índia como intermediários.
Para Evans, o ponto chave que distingue os países que adotaram uma postura
desenvolvimentista, frente àqueles que adotaram um modelo predatório, é o que ele chamou
de autonomia inserida. Autonomia na medida em que as instituições estão protegidas das
“buscas de renda” de grupos poderosos, como a elite empresarial de um país, mantendo-a
responsiva à coletividade e não apenas a alguns. “O que está em questão é a construção de
uma organização auto dirigida que possa gerar incentivos suficientes a induzir seus membros
individuais a adotar metas coletivas e assimilar suficiente informação que lhes permita
escolher metas dignas de perseguir” (EVANS, 1993). Inserida porque as políticas devem
responder aos problemas detectados nos atores privados e dependem no final destes atores
para sua implementação.
“uma rede concreta de laços externos permite ao Estado avaliar, monitorar e modelar respostas
privadas a iniciativas políticas, de modo prospectivo e após o fato. Ela amplia a inteligência do
Estado e aumenta a expectativa de que as políticas serão implementadas (…). As conexões com a
sociedade civil se tornam parte da solução em vez de parte do problema“ (EVANS, 1993).
“Sistemas internos – particularmente o ‘gakubatsu’, que consiste em laços entre colegas de classe
nas universidades da elite de onde se recrutam os funcionários – são cruciais à coerência da
burocracia. Tais redes informais conferem à burocracia uma coerência interna e identidade
corporativa que por si só a meritocracia não poderia oferecer (…). O resultado geral é uma espécie
de ‘weberianismo reforçado’, no qual os ‘elementos não-burocráticos da burocracia’ reforçam a
estrutura organizacional formal, da mesma forma que os ‘elementos não-contratuais do contrato’
de Durkheim reforçam o mercado” (EVANS, 1993).
· Em áreas com grande capital social, espaços públicos são mais limpos, pessoas
são mais amigáveis, e as ruas mais seguras. Fatores de risco tradicionais em
uma determinada vizinhança, como alto índice de pobreza e de mobilidade
34
Ver PUTNAM, Robert D. Bowling Alone: The collapse and revival of American community. New York: Simon
and Schuster, 2000.
residencial, não são tão significativos como a maioria das pessoas pressupõe.
Alguns lugares têm alto índice de criminalidade em grande medida porque as
pessoas não participam em organizações comunitárias, não supervisionam os
jovens, e não são ligadas por redes de amizade (IDEM, 307-18);
· Parece haver uma forte relação entre a existência de capital social e melhor
nível de saúde:
o “As a rough rule of thumb, if you belong to no groups but decide to join one,
you cut your risk of dying over the next year in half. If you smoke and
belong to no groups, it’s a toss-up statistically whether you should stop
smoking or start joining” (IBIDEM, p.331);
Além destes, uma série de outros autores também relacionam o capital social a
outros contextos. Cabe destacar alguns dos mais relevantes:
Conclusão
Considerações Gerais
Neste trabalho foram apresentados ao menos 4 grandes correntes de pensamento
sobre o capital social. Na primeira, a visão comunitarista de Tocqueville e Putnam, a ênfase
se dava nas relações entre os habitantes da comunidade, as instituições locais e a cultura da
região; na segunda, a visão de James Coleman, o capital social aparece como um conceito
mais econômico, e com um papel importante na criação de capital humano; na terceira, do
sociólogo Pierre Bourdieu, o capital social aparece pela primeira vez como um bem individual,
e não coletivo, mas também tem um papel de potencializar os demais capitais detidos por
todos os “nós” desta teia de relação do indivíduo (capital econômico e cultural); por último,
na visão da economia institucional liderada por Douglass North, as instituições formais
(incluindo organizações e regras legais) têm um papel fundamental não só na criação de
capital social, como de promover o crescimento econômico do país (ênfase no ambiente
macro).
último trabalho, que os níveis de capital social nos Estados Unidos estão decaindo; um passo
importante é descobrirmos os porquês.
Referências
ABRUCIO, Fernando Luiz. Federação e Coordenação Intergovernamental. In: ABRUCIO,
Fernando Luiz. Os laços federativos brasileiros: avanços, obstáculos e dilemas no processo
de coordenação intergovernamental. 2000. 277 p. Tese de Doutorado em Ciência Política –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP). São Paulo, 2000. Capítulo 1.
ABU-EL-HAJ, Jawdat. “O debate em torno do capital social: uma revisão crítica”. In: BIB –
Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 47, p.65-79. São Paulo:
Anpocs/Vértice, 1999.
BANFIELD, Edward C. The Moral Basis of Backward Society. New York: Free Press, 1958.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Rideel, 2003.
COLEMAN, James C. “Social capital in the creation of human capital”. In: DASGUPTA, Partha
& SERAGELDIN, Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted Perspective. Washington D.C.:
The World Bank, 2000. p.13-39.
EDWARDS, Michael. Enthusiasts, Tacticians and Sceptics: The World Bank, Civil Society and
Social Capital. Paper in Progress. Washington, D.C.: World Bank PovertyNet Document
Library. Acesso em 30/5/2002, disponível na WWW: http://poverty.worldbank.org/library/-
view/4608/. 1999. Não publicado.
EVANS, Peter. "O Estado como problema e solução". In: Revista Lua Nova, nº 28-29. São
Paulo: CEDEC, 1993.
FONSECA, Eduardo Giannetti da. Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______________. O mercado das crenças: filosofia economica e mudança social. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
FUKUYAMA, Francis. Trust: The Social Values and the Creation of Prosperity. New York:
Free Press, 1995.
GROOTAERT, Christiaan. “Social Capital: The Missing Link?” in Expanding the Measure of
Wealth: Indicators of Environmentally Sustainable Development. Environmentally
Sustainable Development Studies and Monographs Series n. 7. Washington, D.C.: The World
Bank, 1997.
______________ & BASTELAER, Thierry van. Understanding and Measuring Social Capital:
A Synthesis of Findings and Recommendations from the Social Capital Initiative. Working
Paper n. 24. Washington, D.C.: World Bank PovertyNet Document Library. Acesso em
30/5/2002, disponível na WWW: http://www.inform.umd.edu/IRIS/IRIS/docs/SCI-WPS-
24.pdf. 2001.
______________ & SERAGELDIN, Ismail. “Defining Social Capital: An Integrating View”. In:
DASGUPTA, Partha & SERAGELDIN, Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted Perspective.
Washington D.C.: The World Bank, 2000. p. 40-58.
HJERPPE, Reino. (2003) Social Capital and Economic Growth Revisited. International Forum
on Social Capital for Economic Revival, Tóquio, 24-25 de março de 2003. Acesso em
12/12/2003, disponível na WWW: http://www.vatt.fi/julkaisut/k/k307.pdf.
JANN, Werner. Experiences with Public Sector Reform in Europe and Germany:
The Shift from Public Management to Public Governance. Experiências de reforma do setor
público na Europa e na Alemanha: da gestão para a governança, 25/9/2002, Brasília/DF.
Acesso em 19/10/2003, disponível na WWW: http://www.enap.gov.br/Pesquisa/seminario/-
ing.ppt. 2002.
KRISHNA, Anirudh. “Creating and Harnessing Social Capital”. In: DASGUPTA, Partha &
SERAGELDIN, Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted Perspective. Washington D.C.:
The World Bank, 2000. p. 71-93.
______________ & SHRADER, Elizabeth. Social Capital Assessment Tool. Washington, D.C.:
World Bank PovertyNet Document Library. Acesso em 30/5/2002, disponível na WWW:
http://poverty.worldbank.org/library/view/8151/. 1999.
LAZZARINI, Sérgio, MADALOZZO, Regina, ARTES, Rinaldo & SIQUEIRA, José O. Capital Social:
um problema do Brasil? Valor Econômico, São Paulo, 3/10/2003. Opinião, A10.
LIESKE, Joel et al., "Symposium: Tocqueville and Democracy in America". In: PS: Political
Science & Politics, vol. XXXII, nº 2, june 1999, p.195-224. Washington: APSA – American
Political Science Association, 1999.
MATOS, Aécio G. “Capital Social e Autonomia”. In: NEAD – Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural. Acesso em 8/12/2001, disponível na WWW:
http://www.nead.gov.br/artigodomes/anteriores/aecio/default.asp. 2001.
NORTH, Douglas. Institutions, Institutional Change, and Economic Performance. New York:
Cambridge University Press, 1990.
OECD. The Well Being of Nations: the role of human and social capital. Paris: Center for
Educational Research and Innovation, 2001.
OFFE, Claus. "A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da
sociedade". In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos, WILHEIM, Jorge & SOLA, Lourdes (orgs.).
Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: ENAP, 1999,
p.119-145.
OLSON, Jr., Mancur. A Lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos
grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.
OSTROM, Elinor. “Social Capital: A Fad or a Fundamental Concept?”. In: DASGUPTA, Partha
& SERAGELDIN, Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted Perspective. Washington D.C.:
The World Bank, 2000. p. 172-214.
PINDYCK, Robert S. & RUBINFELD, Daniel R.. Microeconomics. 4ª edição. New Jersey:
Prentice-Hall, 1997.
PUTNAM, Robert D. “The Prosperous Community — Social Capital and Public Life”.
American Prospect (13): 35-42, 1993.
______________. Capital Social e Democracia. In: Braudel Papers, n.10. São Paulo: Instituto
Fernand Braudel de Economia Mundial, 1995.
RIVZI, Andrea Ryan & COSTA, Alberto C. G. Can Community Driven Infrastructure Programs
Contribute to Social Capital? Findings from the Rural North East of Brazil. Medindo Capital
Social para o Desenvolvimento, Brasília/DF, 29/7/2003. Acesso em 20/10/2003, disponível
na WWW: http://www1.worldbank.org/gdln/Courses/Course132/1446/ApresentacaoWBI.ppt-
?163754.
ROSE, Richard. Getting things done in an antimodern society: Social capital networks in
Russia. In: DASGUPTA, Partha & SERAGELDIN, Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted
Perspective. Washington D.C.: The World Bank, 2000. p. 147-171.
SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
SINGER, Peter. A Darwinian Left: Politics, Evolution, and Cooperation. New Haven and
London: Yale University Press, 1999.
SMITH, Adam. Teoria dos Sentimentos Morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999, Seções I a
III.
SMITH, Mark K. “Social capital”. In: The Encyclopedia of Informal Education. Acesso em
8/12/2001, disponível na WWW: http://www.infed.org/biblio/social_capital.htm. 2001.
STIGLITZ, Joseph E. “Formal and Informal Institutions”. In: DASGUPTA, Partha & SERAGELDIN,
Ismail (orgs.). Social Capital: A Multifaceted Perspective. Washington D.C.: The World Bank,
2000. p. 59-70.
TENDLER, Judith. O bom governo nos Trópicos. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: ENAP, 1998.
WORLD BANK, The. “The Initiative on Defining, Monitoring and Measuring Social Capital:
Overview and Program Description”. Social Capital Initiative – Working Paper n. 1.
Washington, D.C.: World Bank PovertyNet Document Library. Acesso em 30/5/2002,
disponível na WWW: http://poverty.worldbank.org/library/view/4572/. 1998.