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“Uma história que, sem dúvida, mexe com as nossas emoções. Afinal, poderia
perfeitamente ser verídica…”
Leitora no blogue O paraíso é uma espécie de livraria
Depois da Luz
“Susan Lewis é uma autora que mexe connosco, com as nossas emoções e
sentimentos. Uma autora que expõe com clareza, com um texto muito direto ao
qual não se fica indiferente. Fala de assuntos atuais, situações que podem ser
vividas por cada um de nós, situações reais.”
Blogue Esmiúça o Livro
Escândalos em Família
Susan Lewis
Título original:
Lost Innocence
Copyright © Susan Lewis 2009
Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer
processo eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação ou outros, sem
prévia autorização escrita da Editora.
ZZZZ
– Craig! Já viste que horas são? – gritou Alicia. – Anda lá, senão vamos
chegar atrasados.
– Já vou – gritou Craig em resposta.
Alicia voltou rapidamente para a sua elegante e recém-instalada cozinha
de granito preto e carvalho branqueado, onde Darcie estava empoleirada num
banquinho na ilha do centro, engolindo Coco Pops enquanto via uma emissão
de GMTV no plasma, e a chaleira assobiava sobre o fogão Aga, pedindo
desesperadamente para a tirarem dali. Fazendo-lhe a vontade, Alicia escaldou
algumas folhas de hortelã fresca num copo para si e, em seguida, despejou a
água sobre um saquinho de chá de pequeno-almoço para Craig, enquanto
sacudia fatias de pão de cereais acabadas de sair da torradeira e girava sobre
si mesma para tirar uma compota do frigorífico. Não era frequente
adormecerem, mas naquela manhã acontecera, e agora era pouco provável que
conseguissem levar os filhos à escola a tempo.
– A que horas tem o pai de estar no tribunal, sabes? – perguntou Alicia a
Darcie.
Engolindo uma colher generosa dos seus cereais favoritos, Darcie abanou
a cabeça. Os seus grandes olhos castanho-chocolate permaneceram colados ao
ecrã. Aparentemente, o que Andrew Castle tinha a dizer naquela manhã era
ainda mais fascinante do que o exemplar mais recente da heat, que se
encontrava aberto ao lado da taça de cereais, mas entretanto abandonado.
Sabendo que Craig não ficaria bem impressionado com a revista, Alicia
agarrou-a e enfiou-a na sua grande mala. Discussões eram algo de que não
precisava naquela manhã.
– Ei! – protestou Darcie. – Isso é meu.
– Devolvo-ta logo à noite – respondeu Alicia –, mas já sabes o que o teu
pai pensa desta revista.
– Ele é tão antiquado – resmungou Darcie.
– Vai lá prender o teu cabelo – disse Alicia.
– Não podes fazer tu isso? Trouxe a escova para baixo.
– Acho que nessa frase falta um “por favor”… – disse Alicia, começando
a desembaraçar as espirais louras de Darcie, tão parecidas com as suas.
– Prende-o com uma trança em cima, por favor – disse Darcie, passando-
lhe a escova.
– Hoje tens aula de teatro a seguir à escola?
– Não, foi cancelada, mas a Sra. Jay vai dar-nos uma aula de dança de
substituição, por isso saio às cinco. Vais-me buscar?
– Não, esta semana é a mãe da Verity que faz a ronda da tarde. A
propósito, é melhor ligares à Verity para lhe dizeres que estás atrasada.
Quando Darcie foi desligar o telemóvel do carregador, Alicia
acompanhou-a, continuando a entrançar-lhe o cabelo. Finalmente, Craig e
Nathan começaram a descer, com os pés a trovejarem sobre as escadas e as
vozes sobrepondo-se mutuamente enquanto conversavam. Quando chegaram à
cozinha, Craig dizia:
–… por isso, a coisa não deu porque ela não tinha cerejas suficientes no
bolo dela.
Nat sorriu.
– Que quer isso dizer? – perguntou.
– Que ela não tinha fruta que chegasse – respondeu Craig, e Nat desatou a
rir.
– O Oliver disse isso? – exclamou, referindo-se ao parceiro de Craig na
sala de audiências, que era mais conhecido pelo seu conservadorismo que por
algum tipo de humor atrevido.
– Juro-te, foi o que ele disse – respondeu Craig, rindo também, enquanto
tirava o saquinho de chá da sua chávena.
Com o seu espesso cabelo negro-azeviche, olhos escuros intensos e
feições requintadamente moldadas, era um homem extraordinariamente
atraente, cujo metro e oitenta e sete fazia por vezes parecer ainda mais
intimidante que o seu ar de Queen’s Counsel1 extremamente bem sucedido.
Naquela manhã, com o seu fato Armani escuro, camisa branca reluzente e
gravata cinzenta escura solta à volta do colarinho, parecia tão charmoso e
devasso como um playboy que passou a noite inteira acordado, uma vez que
era evidente que ainda não tinha tido tempo de se barbear.
– É uma tirada brilhante… – disse Nat, uma cópia a papel químico do pai,
à exceção dos olhos, enquanto começava a comer os Weetabix que a mãe já
tinha preparado.
– Tenho de me lembrar disto. Não tem cerejas que chegue no bolo.
– Vocês os dois são tão sexistas – disse Darcie, enquanto Alicia acabava
de prender o seu cabelo entrançado. – Ainda está a chover? Se estiver, não há
educação física.
– Mas precisas na mesma de levar o saco – disse-lhe Alicia.
– Onde está?
– Na entrada, pronto para levares.
– Ótimo. Pai, não te esqueceste de que vais dar uma palestra ao décimo
segundo ano, pois não? – perguntou.
– É claro que não – assegurou o pai, desligando o telemóvel do
carregador. – Está marcado na minha agenda.
– Só não quero que me deixes ficar mal ao esqueceres-te, ou se de repente
cancelares porque te surgiu um grande caso.
– Não te vou desapontar – disse Craig, dando-lhe um beijo na testa. – Vais
lá estar?
– Daah, tenho doze anos, ainda ando no oitavo– recordou-o Darcie –, mas
toda a gente sabe que és meu pai, por isso não me compliques a vida e vê se
apareces. E também não digas demasiadas piadas, está bem?, porque, vais-me
desculpar, pai, mas não tens mesmo piada nenhuuuma.
Os lábios de Alicia expeliram uma gargalhada repentina, diante da cómica
expressão magoada de Craig e, depois de tirar a chávena da mão do marido,
substituiu-a pela sua pasta, dizendo:
– Tens de ir, ou o Nat chega atrasado. Barbeia-te no carro. A que horas
tens de estar no tribunal?
Craig olhou para o relógio de pulso.
– Dentro de pouco mais de uma hora – respondeu com uma careta. – Anda,
filho, vamos embora.
– Levem os casacos – avisou Alicia nas suas costas –, está um frio de
rachar lá fora, esta manhã. E tenham cuidado com o gelo nas estradas.
– Espera aí, pai – disse Nat, começando a subir as escadas –, tenho de ir
buscar o portátil.
Voltando atrás para beijar Alicia nos lábios, Craig disse:
– Devo chegar outra vez tarde, logo à noite, por isso não esperes por mim
acordada.
– Outra vez? – gemeu Alicia. – Já passava da uma quando vieste para a
cama.
– Hoje devo chegar mais cedo – assegurou Craig. – Depois ligo-te para
dizer a que horas venho.
Quando se preparava para virar as costas a Alicia, esta fê-lo voltar atrás e
olhou-o diretamente nos olhos. Não precisava de lhe dizer o que a
incomodava, Craig saberia sem que tivesse de verbalizar as suas suspeitas.
– Juro que não é o que estás a pensar – disse ele suavemente –, e tens de
parar de fazer estas coisas. Está tudo acabado, e não quero ter de te continuar
a dizer isso.
– Achas que sou parva? – murmurou Alicia.
– Alicia, para – resmungou Craig entre dentes. – Agora não temos tempo
para isto, e já sabes que estou a trabalhar num caso muito difícil…
– Está bem, desculpa. É só que… Não consigo…
– Eu sei, mas não tens razão – e, sentindo que os olhos de Darcie os
observavam, beijou Alicia de novo nos lábios, piscou o olho à filha e
desapareceu pelo átrio fora.
– Nat – gritou, enquanto agarrava na gabardina. – Tenho o carro parado à
frente de casa, por isso vê se te despachas.
– Já estou a ir – respondeu Nat. – Posso guiar eu?
– Nos teus sonhos.
– Na semana passada deixaste.
Craig já tinha saído, fechando a porta da frente atrás dele para conservar o
calor em casa, e o som dos seus passos no curto caminho da frente
pavimentado a azulejos teve um fim abrupto quando alcançou o seu Mercedes
Classe S.
Ele tinha razão, pensava Alicia, enquanto preparava o saco de Darcie para
a escola. Ela tinha de ultrapassar aquilo. Ele não era o único homem casado
no mundo que tivera um caso – tantos tinham feito o mesmo, e os seus
casamentos sobreviveram. O deles também podia, ou melhor, já tinha
sobrevivido, mas se ela continuava assim, nunca confiando nele, sempre a
questionar onde Craig estava e com quem estava, acabaria por tornar as suas
vidas insuportáveis , e então perdê-lo-ia realmente. O simples pensamento de
que isto pudesse acontecer cavou um medo tão profundo no seu coração, que
Alicia podia sentir-se a começar a cair, mergulhando cada vez mais fundo,
num lugar onde não conseguia ver qualquer luz e onde poderia nunca ser
encontrada. Iria mudar, disse a si mesma com firmeza. A partir daquele mesmo
dia. Não ia inspecionar mais o telemóvel dele, ou os seus e-mails, e nunca
mais ia voltar a falar na outra mulher. No sábado seguinte faziam dezanove
anos de casados, por isso ia tratar de que os miúdos não estivessem em casa e
ia preparar um jantar à luz das velas, como costumavam fazer… Também
colocaria velas por toda a casa de banho e no quarto. Craig gostava de
romance, ambos gostavam, e ultimamente tinha havido muito pouco entre eles.
– Hoje vais ao teu estúdio? – perguntou Darcie, pousando a taça de cereais
na banca.
– Se tiver tempo – respondeu Alicia, colocando a carteira e o telemóvel no
saco. – Sou capaz de ter uma nova encomenda, já te disse? Bolas, esqueci-me
de contar ao teu pai. Nat, estas chaves são tuas? – perguntou em voz alta,
quando Nat apareceu a descer as escadas aos saltos.
– Sim, acho que sim – respondeu e, correndo pelo átrio fora, segurando o
portátil e a mochila no mesmo braço, deu-lhe um ruidoso beijo na face,
agarrou as chaves e, depois de depositar outro beijo na testa de Darcie, disse:
– Até logo. Não se esqueçam de que logo à noite a Summer vem comigo.
– Quem me dera que ele estivesse a falar da estação do ano e não da
namorada2 – murmurou Darcie. – Detesto quando está tanto frio.
– Anda lá – disse Alicia –, temos de nos ir embora. Já ligaste à Verity?
– Mandei-lhe uma mensagem.
– Mãe, meteste aqueles CD vazios no meu saco? – gritou Nat da porta.
– Sim.
– OK. Obrigada. Fui.
Nathan abriu a porta e Alicia tinha acabado de pegar no comando para
desligar a televisão quando ouviu o grito. O tom daquela palavra única – Pai!
– gelou-lhe o sangue. De súbito, estava a correr, com Darcie colada aos seus
calcanhares. Quando abriu a porta de par em par, Nat estava junto ao carro,
dobrado sobre o pai, que tinha o corpo caído meio dentro, meio fora do lugar
do condutor.
– Craig – disse Alicia sem fôlego, e, correndo pelo caminho abaixo, caiu
no chão junto a eles. – Que foi? Que aconteceu? – gritou, tremendo tão
violentamente que lhe afetava o raciocínio.
– Não sei – respondeu Nat. – Pai – chamou ele ansiosamente, abanando
Craig pelo braço. O corpo de Craig estava inerte, o seu rosto acinzentado, a
boca tinha um tom azul arroxeado. – Que lhe aconteceu? – perguntou Nat numa
voz rouca, enquanto Alicia, quase sem saber o que fazia, encostou o ouvido ao
peito do marido.
– Chama uma ambulância – disse roucamente.
Lívido, Nat procurou desajeitadamente o telemóvel.
– Mãe! – gemeu Darcie, com as mãos tapando a boca.
– Craig. Oh, meu Deus, por favor, Craig – gritou Alicia, começando a
bater-lhe com as mãos no peito.
– Não, mãe, não! – berrou Darcie.
– Preciso de uma ambulância, por favor – disse Nat ao telefone.
– Vai ver se o Dr. Cramer está em casa – gritou Alicia para Darcie.
Darcie desatou a correr pela rua fora e entrou desarvorada pelos portões
da casa quatro números mais abaixo.
Nat olhava horrorizado para o pai enquanto comunicava ao operador o seu
endereço. No extremo da praça, os carros rugiam e assobiavam ao longo de
King’s Road. Uma sirene, demasiado rápida para ser para eles, carpia e
apitava como uma gaita de feira. Alicia agarrou Craig pelas lapelas e sacudiu-
o, como se a sua raiva e pânico pudessem injetar alguma vida no corpo do
marido. A cabeça de Craig pendia para um lado, os olhos estavam
semicerrados como se olhassem para ela de uma maneira algo cansada e
divertida.
– Vais chegar atrasado – disse Alicia furiosa, por entre soluços.
– Ele vem já – disse Darcie, correndo de volta para junto deles.
Minutos depois, o Dr. Cramer deixou-se cair ao lado de Alicia, de joelhos
no mesmo charco de água. Alicia afastou-se, permitindo-lhe chegar a Craig,
mas sabia, mesmo antes de o médico se virar e abanar a cabeça, que já era
tarde de mais. Apertou uma mão sobre a boca à medida que um soluço
histérico irrompia do seu coração.
– Craig! – gritou desesperadamente. – Craig, não!
E, atirando-se a Craig, agarrou-se a ele com força, e continuava agarrada
ao corpo do marido, dizendo o seu nome por entre soluços, quando a
ambulância chegou e gentilmente a desprendeu dele.
1 N. da T.: o termo não tem correspondente em português. O Queen’s Counsel (ou King’s Counsel
quando o monarca é homem) é um advogado escolhido para representar e aconselhar juridicamente a
rainha de Inglaterra. Normalmente, só recebem esta nomeação advogados de renome e méritos
reconhecidos.
2 N. da T.: jogo de palavras ocasionado pela coincidência entre o nome da personagem e summer, verão.
Capítulo Dois
Rachel estava à procura de copos e um saca-rolhas enquanto Alicia
descarregava as compras que tinha trazido no carro. O frigorífico já estava
ligado, assim como os outros eletrodomésticos, embora Alicia ainda não
tivesse verificado se estavam todos a trabalhar bem. A cozinha era grande e
maravilhosamente acolhedora, com um fogão quase novo num nicho em arco,
numa parede onde tachos e panelas de cobre pendiam de ganchos de aço e uma
coleção de bules em miniatura enfeitava uma grossa prateleira de madeira.
Havia armários de treliça branca com superfícies de madeira de faia reluzente,
num estilo rural muito típico da mãe, com uma grande pia quadrada em frente
de uma enorme janela saliente onde Monica costumava cultivar diversas ervas
aromáticas. Também havia um aparador de cozinha antigo, onde estavam em
exibição as melhores peças de porcelana Royal Doulton. Portas de sacada
conduziam ao pátio das traseiras e ao jardim. A mesa no centro era de pinho
velho, enquanto as seis cadeiras apresentavam uma mistura estranha de faia e
carvalho.
– Vamos lá para fora? – perguntou Rachel, enchendo dois copos com um
Pinot Grigio muito claro.
– Porque não? – respondeu Alicia. – Vou procurar algo para comermos e é
capaz de haver um guarda-sol no barraco.
Tinha tirado o boné e abanava agora os cabelos. O volume e a suavidade
da sua cabeleira faziam-na parecer mais nova, mais vulnerável. O telefonema
de quinze minutos antes fora de Mimi, a florista, que também era tia de Rachel.
Mimi queria exprimir as suas condolências a Alicia e dizer-lhe que, se
precisasse de alguma coisa, só tinha de lhe ligar.
– O Pete gostará muito de aparecer por aí e ajudar no que puder – lembrou
Mimi a Rachel, referindo-se ao seu marido de humor seco e sofrimentos de
longa data, cujos serviços eram regular e indiscriminadamente oferecidos
sempre que Mimi encontrava algo para lhe dar a fazer. Certa vez, tinha mesmo
avançado o seu nome para proferir o sermão, quando o cónego Jeffries ficara
doente com gripe, ignorando alegremente o facto de Pete não ser nem
ordenado, nem um bom orador, nem mesmo um cristão particularmente devoto.
E, assim, chegou ao fim o primeiro momento de pavor de cortar o fôlego.
Não fora Robert a telefonar, facto pelo qual Alicia estava bastante grata, pois
realmente não se sentia ainda pronta para enfrentar aquele problema particular.
Nos seus piores momentos, perguntava a si própria se teria energia para
enfrentar o que quer que fosse, uma vez que perder o marido e a mãe num
espaço de tempo tão curto a despedaçara por completo. Agora, nada lhe
parecia certo, não se sentia bem dentro da sua própria pele, nem lhe parecia
mesmo ser a pessoa que pensava os seus pensamentos. Às vezes, era como se
o mundo inteiro estivesse a fugir-lhe das mãos e ela estivesse presa a ele
apenas por um fio finíssimo. Bastaria inspirar profundamente para encontrar
de novo o equilíbrio, ou talvez o peso do ar fosse de mais para ela e Alicia
mergulhasse irremediavelmente no vazio.
Deixando Rachel a preparar as bebidas e um prato de aperitivos, foi abrir
a porta do barracão do jardim, e logo se viu transportada num turbilhão até à
sua própria infância e à dos seus filhos. A mistura acre de creosoto, aguarrás e
terra evocava tantas cenas do passado, que Alicia quase ergueu as mãos para
as impedir de se avolumarem. Não podia permitir que as suas memórias
sequestrassem o presente e tomassem conta dele. Tinha de as manter
sepultadas, cuidadosamente guardadas num local onde estavam a salvo e bem-
amadas, para as ir buscar uma de cada vez, não todas juntas de rompão, para a
varrerem como uma onda de saudade e desespero. Rapidamente começou a
vasculhar por entre os utensílios de jardinagem, brinquedos velhos,
espreguiçadeiras e latas de tinta em busca do guarda-sol que tinha a certeza de
estar lá em algum lugar. Acabou por encontrá-lo enfiado atrás de uma velha
máquina de costura a pedal que pertencera à avó; puxou por ele, sacudiu-lhe
as teias de aranha e levou-a até à mesa, onde Rachel já se estava a deleitar
com o maravilhoso dia de verão.
O jardim das traseiras, como o da frente, tinha um relvado verde
exuberante com uma banheira para pássaros em pedra no meio e, num dos
cantos, uma macieira cujos ramos carregados de frutos se inclinavam sobre os
arbustos coloridos. Muitas luas atrás, houvera um baloiço e um escorrega no
relvado, e nos dias quentes de verão Monica costumava encher uma piscina
infantil para as crianças chapinharem na água e se refrescarem. A maioria dos
contemporâneos de Alicia teria boas lembranças deste jardim, fosse de
brincarem a vestir-se com as roupas da loja de beneficência de Monica, ou
aos médicos e enfermeiros com uma bem abastecida caixa de primeiros
socorros e um velho estetoscópio do pai, ou a encenarem peças dirigidas por
Mimi e Monica. Alguns dos melhores jogos, no entanto, tinham sido criados
por Robert que, já naquela altura, era um ás para inventar dispositivos
estranhos e fascinantes capazes de voar, falar ou andar, ou qualquer outra
coisa que não fosse suposto fazerem. Não foi surpresa para ninguém que se
tivesse tornado cientista, dirigindo agora os laboratórios de pesquisa do
Ministério da Defesa em Wiltshire, com uma equipa de outras duas centenas
de cientistas trabalhando sob as suas ordens. Apesar de todos os seus projetos
serem top secret, mesmo que Robert fosse livre para os discutir, os detalhes
seriam certamente demasiado complicados para a cabeça da maioria deles.
Depois de enfiar o guarda-sol numa base de ferro fundido e de o abrir para
criar alguma sombra, Alicia puxou uma cadeira e sentou-se com um suspiro,
deixando que a sensação transmitida pelo jardim assentasse à sua volta. O céu
era de um azul perfeito e profundo, o ar estava quente e húmido, e somente o
trinado ocasional de um tentilhão e algumas borboletas esvoaçantes
quebravam o seu silêncio. Estar ali parecia certo a Alicia, reconfortante e
seguro, e no entanto, ao mesmo tempo, tinha a sensação de algo estar
completamente errado.
Apercebendo-se de que Rachel a observava, Alicia pegou na sua bebida
para lhe fazer um brinde.
– À tua – disse. – Obrigada por estares aqui. Provavelmente, tinha-me ido
abaixo se tivesse vindo até aqui sozinha.
Não duvidando disto nem por um segundo, Rachel disse:
– Fico contente por a Darcie ter tido o bom senso de me ligar.
– Ah, então foi ela que me delatou. Pensava que tinha sido o Nat. Quando
ela ligou disse-te que estava em França?
Rachel pareceu surpreendida.
– Não, que é que ela está lá a fazer?
– Os pais de uma das amigas dela têm uma casa na Bretanha e vai ficar
com eles até à segunda semana de agosto. Ela precisava de umas férias – e de
um tempo longe de mim, para dizer a verdade.
Rachel olhou para ela sem se alterar.
– Ela está preocupada contigo – disse suavemente.
Alicia assentiu com a cabeça.
– Estamos todos preocupados uns com os outros.
– É claro.
Ficaram em silêncio por uns momentos, bebendo pequenos goles das suas
bebidas e desfrutando do prazer fácil e familiar de simplesmente estarem
juntas.
– Devia cá ter vindo depois de a minha mãe morrer – disse Alicia por fim.
– Queria vir. Sempre detestei pensar neste sítio vazio e deixado ao abandono,
com as coisas todas dela… Mas não conseguia enfrentar isto. Na verdade,
enfrentá-la a ela – disse Alicia com uma risada áspera e sem humor. – O meu
marido e a minha cunhada. Que anedota. Que cliché tão triste, tão sórdido.
Rachel não disse nada em contrário, uma vez que também não nutria
qualquer apreciação por Sabrina.
– O Craig ofereceu-se para vir comigo mais de uma vez – prosseguiu
Alicia –, mas eu não o queria perto dela. Não parava de o imaginar aqui, neste
jardim ou dentro de casa, a pensar nela e no que ela estaria a fazer, se ela seria
capaz de pressentir que ele estava por perto. Talvez ele descobrisse uma
maneira de a informar de que vinha para cá, para que pudessem tentar
encontrar-se em segredo. Imaginei todos os tipos de comunicações telepáticas
entre ambos, que os podiam fazer encontrar-se na rua principal, ou no pub,
fazendo parecer que se tratava de uma coincidência, quando na verdade tinham
uma ligação entre eles que transmitia mensagens como um telefone, ou email,
ou carta. – O sorriso de Alicia ensombrava-se cada vez mais com uma tristeza
amarga. – Por isso, quando o Robert ligou a perguntar se devia começar a
limpar a casa, deixei-o fazer tudo sozinho. Ele disse que só ia dar as roupas da
nossa mãe e alguns livros, e que esperaria até eu me sentir pronta a lidar com
o assunto para tomar decisões em relação à mobília e à casa. Só peço a Deus
que a mulher dele não tenha posto um dedo nas coisas da minha mãe. Acho que
ele não a deixava, sabendo o que eu pensaria do assunto. Se deixou, prefiro
não saber. – Virou-se para olhar para Rachel e a sua expressão suavizou-se ao
imaginar o rosto amável e sério do irmão. – Estes dois últimos anos devem ter
sido realmente duros para ele – continuou –, com a mulher a ter um caso, a
morte da mãe, nós deixarmos de ter um relacionamento quando costumávamos
ser tão chegados. Gostava de tentar compensá-lo, mas é difícil ver como,
enquanto ele continuar casado com ela.
Rachel, que sempre achara notável que os dois casamentos tivessem
conseguido sobreviver à aventura, disse:
– Sabes como é que eles se estão a dar, atualmente?
Alicia abanou a cabeça.
– Nas poucas ocasiões em que falei com o Robert, ele nunca falou nela, e
eu nunca perguntei.
– Que disseste aos miúdos? Ele foi sempre um tio tão fantástico e eles
eram muito chegados à Annabelle, antes de tudo ir por água abaixo.
– Sempre fui bastante vaga sobre o assunto, dizendo somente que a Sabrina
e eu não nos dávamos bem e que tínhamos decidido que era melhor não nos
encontrarmos muito. Mas eles sentiram a falta de vir cá. Pelo menos a minha
mãe costumava ir a Londres com muita frequência, antes de o cancro a afetar
mesmo a sério – disse Alicia, suspirando e engolindo as lágrimas. – É uma
lista dos diabos, não é? – perguntou. – Primeiro, o meu marido tem um caso
que abre um fosso entre mim e o meu irmão, um ano mais tarde a minha mãe
morre e, seis meses depois disso, o meu marido cai fulminado por uma
embolia pulmonar; nem consigo imaginar o que virá a seguir.
– Seja o que for, as coisas não podem ficar piores do que estão –
assegurou Rachel de maneira expressiva.
Os olhos de Alicia dirigiram-lhe um aviso.
– Por favor, não tentes o destino – disse Alicia de maneira premente e
sóbria. – Costumava pensar assim, e acabei por estar sempre enganada, por
isso as minhas reservas de otimismo esgotaram-se. É melhor limitarmo-nos a
viver um dia de cada vez, e agradecer a Deus pela maneira maravilhosa como
os miúdos se têm portado e pelo apoio que me têm dado. Sobretudo o Nat –
disse, tentando sorrir. – Ele é tão estoico, capaz e adulto, e muito mais coisas
que me enchem de orgulho, mas continua sem querer falar do pai. Acho que
ainda nem sequer chorou a morte dele. – Ergueu o olhar e, apesar da coragem
que estava a tentar convocar, a sua desolação interior transpareceu quando
sussurrou numa voz trémula: – O Craig era o herói dele. Sabes como o Nat o
idolatrava. Nada que o Craig fizesse podia estar errado.
A expressão de Rachel mostrou a sua solidariedade.
– É óbvio que nunca lhe contaste sobre o caso.
– É claro que não, e agora que o Craig está morto não há necessidade
nenhuma de ele saber. De qualquer forma, já não havia. – Inspirou de maneira
profunda e incerta. – O Nat sempre acreditou que o pai nos era completamente
leal, o pilar da família, o que até era verdade, por isso não há motivo para
pensar de outra forma. – Alicia olhou para Rachel com um sorriso débil. –
Quem poderia imaginar que ele ia morrer tão novo? – disse sombriamente. –
Não parecia possível, pois não? Ainda não parece.
Já a par dos detalhes de como o dinâmico, charmoso e carismático Craig
Carlyle fora arrancado à família no auge da vida, Rachel colocou a mão no
braço de Alicia num gesto de conforto sem esperança. Craig e Alicia tinham
certamente tido as suas dificuldades nos últimos anos, mas Rachel nunca
duvidara do quanto Alicia o amava. Assim, perdê-lo daquele modo, logo após
a morte de Monica e sem qualquer aviso, quando as coisas estavam apenas a
começar a ficar bem de novo, fora totalmente devastador para Alicia e para os
filhos. Não era de admirar que, seis meses depois, os três ainda estivessem a
recuperar do choque.
– Onde está o Nat agora? – perguntou Rachel.
Alicia engoliu um gole de vinho.
– Continua em Londres. Está a trabalhar à experiência com o Henry
Taverston esta semana.
Reconhecendo o nome, Rachel pareceu surpreendida.
– E porque não com alguém do gabinete do Craig? – perguntou.
– O Nat e o pai decidiram que o Nat devia abrir as asas um pouco, e não
ficar demasiado debaixo da proteção dele; por isso o Craig fez preparativos
no sentido de ele passar esta semana com o Henry, e mais outra com o Jolyon
Crane em Bristol, no fim de agos…
Alicia baixou os olhos enquanto a sua voz era engolida por uma onda de
dor. Segurando-lhe na mão enquanto a amiga lutava com as emoções, Rachel
esperou pacientemente, desejando poder dizer ou fazer alguma coisa para lhe
atenuar a perda. Nos últimos meses tinham passado muitas horas ao telefone,
revivendo os tempos felizes, bem como a traição, os momentos finais da vida
de Craig e o pesadelo que se lhe seguira. Aceitar e lidar com a morte súbita de
um companheiro, e de um pai, era certamente uma das provas mais difíceis que
a vida poderia colocar no nosso caminho.
– Quanto tempo pensas ficar? – perguntou Rachel, enquanto Alicia
estendia a mão para o vinho.
Alicia manteve os olhos baixos ao responder.
– Esta agora é a minha casa. A casa de Londres foi vendida.
Rachel mal conseguiu evitar que o queixo lhe caísse.
– Nem sabia que a tinhas posto à venda – disse cautelosamente.
– Os carros também se foram – continuou Alicia. – Na verdade, o stand
ficou com os dois Mercedes, como pagamento das prestações em dívida.
O choque de Rachel aumentava.
– Mas aqueles carros valiam uma fortuna…
– Tal como a casa. Quase dois milhões, dá para acreditar? Vendi-a com o
recheio e tudo, e, depois de pagar a hipoteca, fiquei com a fantástica soma de
duas mil quinhentas e quarenta libras, mais o pouco dinheiro que ainda tenho
na minha conta pessoal.
Rachel parecia mais perplexa e alarmada que nunca.
– Não estou a entender – disse.
– O empréstimo não tinha seguro – explicou Alicia –, e da maneira que os
preços têm descido… Tive de vender a casa praticamente pelo que pagámos
por ela.
– Mas como pode alguém como o Craig não ter… Desculpa, não estou a
ajudar. Estou só admirada…
– É natural. Eu também fiquei. Há um ano contraímos uma nova hipoteca
para libertar algum capital e, aparentemente, o Craig ainda estava a negociar o
seguro do empréstimo quando morreu.
– Então, o seguro não estava ativado? – Rachel nem queria acreditar no
que ouvia.
Alicia abanou a cabeça. Rachel procurou algo que dizer, mas as palavras
não apareciam. No fim, perguntou:
– E que aconteceu a esse dinheiro que libertaram com a hipoteca?
O olhar de Alicia encontrou o dela e depois desceu de novo.
– O Craig deu-o – respondeu.
Rachel tinha a certeza que não ouvira bem.
– É uma longa história – começou Alicia –, mas há uma família… Há um
casal que perdeu ambos os filhos num incêndio e Craig achou que, se não
tivesse livrado o incendiário de uma acusação anterior, este teria ficado atrás
das grades e as crianças ainda estariam vivas. Queria tentar ajudar os pais,
fazer algo para tornar o seu futuro mais suportável, e então deu-lhes o
suficiente para comprarem outra casa. Era muito melhor do que aquela que
tinham perdido, e que – olha só a ironia – não tinha seguro, de modo que
haviam perdido a casa e os filhos. Craig fez o que pôde para preencher uma
das lacunas, e, a seguir, como que para continuar a compensar os erros, passou
a aceitar muitos mais casos pro bono, o que trazia algum conforto à sua
consciência, apesar de os nossos rendimentos terem começado a diminuir. Ele
dizia-me que ficaria tudo bem, que íamos ultrapassar aquilo, e tenho certeza de
que o teríamos feito, se tivéssemos a oportunidade, mas infelizmente não
tivemos.
Pensando que a amiga já tinha passado por muito, Rachel só conseguia
olhar para ela com piedade e frustração. Queria ajudar, precisava
desesperadamente de fazer este fardo adicional desaparecer, mas já era tarde
de mais. A casa tinha sido vendida, e Alicia estava ali.
– Não posso acreditar que não me contaste nada disto antes – disse por
fim.
Alicia abanou a cabeça, parecendo também não compreender a sua atitude.
– Suponho que desejava que nada disto fosse real, perder a nossa casa, ter
de mudar toda a nossa vida… Pensava sempre que os problemas iam
desaparecer, ou algo iria acontecer para solucionar tudo…
Rachel recostou-se para trás na cadeira, ainda demasiado atordoada pela
notícia para conseguir abarcá-la por completo. Virou-se para olhar para o
outro lado do jardim, como se em algum lugar além dele pudesse encontrar
uma explicação racional para este golpe suplementar que Alicia recebera.
– Não sei que dizer – murmurou, virando-se de novo para a amiga.
Alicia sorria debilmente. Olhava um casal de toutinegras a chapinhar na
banheira para pássaros, pensando em quanto prazer a mãe retirava de observar
aves. Não se permitiria sentir a falta, ansiar por que a mãe se viesse sentar
com elas; em vez disso, ia dizer a si mesma que Monica estava lá, na sua
própria dimensão, vendo-as, ouvindo, importando-se.
– Agora ainda deves dinheiro? – perguntou Rachel.
– Não, graças a Deus, mas foi por pouco. De qualquer maneira, mesmo que
tivéssemos seguro, continuaria a não ser capaz de manter a casa ou pagar o
colégio dos miúdos sem o rendimento do Craig, por isso acho que vender a
casa e deixar Londres era inevitável.
Rachel olhava-a com ternura, perguntando a si própria como conseguia
Alicia parecer tão calma e falar de maneira tão branda, quando por dentro
devia estar feita em pedaços.
– Não paro de pensar em como ele era, nos últimos meses – disse Alicia
com voz incerta. – Andava muito mais stressado do que nos deixava entender a
todos, tenho a certeza disso. Andava preocupado comigo, por eu estar tão
perturbada com a morte da minha mãe e ter tanto medo que ele ainda se
andasse a encontrar com ela. Ele jurou-me que não andava, mas nunca fui
suficientemente corajosa – ou estúpida – para acreditar. Ele trabalhava sempre
até tão tarde. Sei que isso não é invulgar para um advogado, mas…
– Não faças isso – interrompeu Rachel. – Tens de tirar esses pensamentos
da tua cabeça porque não te vão ajudar em nada.
Alicia bebeu outro gole de vinho e sentiu a sua acidez na língua, um
instante de distração da ferida muito mais amarga que queimava no seu
coração.
– Pelo menos, o Craig usou algum do capital que libertámos para liquidar
o imposto sucessório sobre esta casa – as palavras pareciam vir de uma parte
longínqua e desligada do seu ser –, ou agora eu e os miúdos seríamos sem-
abrigo. Pergunto-me se ele terá feito isso para ter a certeza de que tínhamos
um sítio para morar antes de nos abandonar para ir viver com ela.
Rachel engoliu em seco. Embora não pudesse acreditar que isto fosse
verdade, entendia perfeitamente os motivos para Alicia pensar assim.
– Tens alguma prova de que ele se andava a encontrar com ela outra vez? –
perguntou.
Sentindo a negação espetar as garras no seu coração, Alicia teve
dificuldade em manter a voz firme quando disse:
– Não descobri nada e, acredita em mim, fartei-me de procurar – disse,
olhando para Rachel e, depois, desviando o olhar novamente. – Ele sempre
disse que aquilo tinha sido um erro terrível e que nunca faria nada parecido de
novo. De acordo com as evidências, estava a dizer a verdade, mas tinha
havido tantas mentiras, e ele tinha sido tão bom a ocultar a verdade da
primeira vez… Isto é, partindo do princípio de que aquela foi a primeira vez.
Tanto quanto sei, podem ter havido outras antes e depois… Não sei. Partilhei a
minha vida com ele durante os últimos vinte anos e agora começo a pensar que
na verdade nunca o conheci.
Ouvindo a tensão quebrar a voz da amiga, Rachel pousou a sua mão sobre
a dela.
– Nunca conhecemos os outros tão bem como pensamos – disse
suavemente –, mas acima de tudo ele era um bom homem e um ótimo pai.
Alicia desviou o rosto, precisando de engolir em seco para conseguir
falar.
– O mais ridículo é que – disse zangada – ainda estou aqui a sofrer porque
o amava tanto que quase desejo ter morrido com ele. Não é estúpido? O tipo
tem um caso, mente-me e engana-me, e eu ainda… – respirou ansiosamente. –
Estou tão furiosa com ele por ter morrido – gritou. – Ainda mais furiosa do
que estou por causa da aventura, ou do seguro. Mas onde é que isso me está a
levar? A lado nenhum. E, de todas as maneiras, o importante agora não sou eu,
nem ele, não é? São os miúdos. A Darcie vai conseguir lidar com tudo, a
mudança de escola… Ainda é suficientemente nova para não lhe fazer uma
diferença de maior, mas para o Nat pode ser um desastre. Ele está a ponto de
começar o décimo segundo, e tem tido notas tão boas, apesar da morte do pai!
Ele queria muito que o Craig tivesse orgulho nele. Tem a entrevista marcada
para a admissão a Oxford em dezembro, e agora tem de… Agora tem de…
Ao ver Alicia ir-se abaixo, Rachel deu rapidamente a volta à mesa para a
abraçar.
– Chhh, vai ficar tudo bem – disse, tentando acalmá-la. – O Nat é um rapaz
inteligente, não vai deixar que isto interfira, porque entende que, por vezes, a
vida não é tão justa como gostávamos que fosse.
– Tens razão, ele é assim, e está a tentar convencer-me de que não se
importa de acabar o décimo segundo ano numa das escolas daqui. Insiste que
vai “dar uma dimensão maior à educação dele”. – Alicia soluçou de novo. –
Não é típico? A dizer o que pensa que eu quero ouvir, porque não quer que
fique ansiosa ou preocupada, quando a vida inteira dele se está a desfazer aos
bocados.
– Mas não está nada. O Nat tem a resistência da mãe dele, lembra-te disso,
e o intelecto do pai, aliado ao seu charme determinado, por isso vai sair-se tão
bem em Stanbrooks ou Bruton como teria feito em Westminster.
Alicia riu por entre as lágrimas.
– Não vai ser Bruton, não temos dinheiro para isso – respondeu –, e se não
te conhecesse diria que vocês os dois estão combinados, porque isso é
exatamente o que ele diz – disse Alicia, com um suspiro trémulo. – Sei que sou
mãe dele e é natural que diga isto, mas ele está-se mesmo a tornar num rapaz
extraordinário. É tão atencioso e solidário, e também inteligente, ambicioso…
Desculpa, eu…
– Também é bastante divertido quando quer – continuou Rachel –,
extremamente generoso, um grande irmão, o melhor filho do mundo e, já agora,
não vamos esquecer que é lindo de morrer.
Alicia rebentou a rir.
– Também é irritantemente teimoso, cheio daquela arrogância adolescente,
impaciente, ferve em pouca água e, agora, demasiado crescido para se sentir
minimamente intimidado pela mãe.
Rachel sorria.
– Se bem conheço o Nathan Carlyle, agora deve pensar que o papel dele é
tomar conta de ti – disse.
– E é disso que tenho medo. Ele é responsabilidade minha, não ao
contrário, mas tenho de me lembrar de que as coisas ainda são muito recentes.
Se tudo correr bem, quando ele estiver empenhado a preparar os exames finais
e a planear o seu ano sabático… Ainda não lhe disse que não vamos ter
dinheiro para isso…
– Que é que estás a dizer? – atalhou Rachel. – Hoje em dia, os miúdos
financiam essas viagens sozinhos e tenho a certeza de que isso não vai ser
problema para o Nat.
– Provavelmente não, mas o meu filho tem grandes planos para o futuro…
– E todos se vão realizar, por isso para de te massacrares por agora. Ele
vai ficar bem. Vão os dois ficar bem.
Alicia esforçou-se por sorrir.
– Sobretudo graças à minha mãe – disse. – Se não me tivesse deixado a
casa e a loja, não sei o que faríamos à nossa vida.
– Ela sempre teve o hábito de salvar as situações – disse Rachel, com os
olhos cheios de memórias queridas.
Alicia assentiu com a cabeça, perguntando a si própria se a mãe as estaria
a ouvir. Nesse caso, talvez também fosse capaz de ouvir os seus pensamentos,
as palavras não verbalizadas de amor e gratidão e de uma saudade que nada
poderia nunca preencher.
– O Robert alguma vez te falou da tua herança? – perguntou Rachel,
pegando num biscoito salgado.
Sentindo um acesso de culpa pela forma como o irmão tinha sido excluído
daquela parte do testamento da mãe, Alicia abanou a cabeça.
– Não, mas acho que ele sabe que a intenção da nossa mãe era compensar-
me pela forma como me afastou daqui.
– E atualmente ele está tão bem na vida, que o dinheiro nem lhe faria falta.
Mas, vendo bem, também tu estavas quando ela fez o testamento. Quando foi a
última vez que falaste com ele?
Alicia emitiu um suspiro apreensivo.
– No funeral do Craig – respondeu. – Não pensei mesmo que ele fosse,
mas fiquei contente por vê-lo.
– É claro que ele te iria apoiar – disse Rachel.
Alicia esboçou um sorriso ténue.
– Só agradeço a Deus por ele ter deixado aquela bruxa má da mulher dele
em casa. Se ela tivesse aparecido, juro que teria perdido a cabeça.
– Já somos duas, mas, felizmente, ou ela não teve coragem de aparecer ou
descobriu uma pontinha extraviada de decência que a persuadiu a fazer o mais
correto.
Alicia foi percorrida por um sobressalto.
– Tenho medo só de pensar em como ela vai reagir quando souber que
regressei.
– Dadas as circunstâncias, não acho que sejas tu quem se deva preocupar.
De qualquer maneira, pelo que ouvi, hoje em dia ela não tem mãos a medir
com a filha.
– A Annabelle? Ela sempre foi uma miúda tão querida, apesar de ter por
mãe a Sabrina.
– Mm – murmurou Rachel sombriamente –, acho que vais descobrir que
ela está bastante diferente do anjinho que costumavas conhecer. Não que a
veja muitas vezes, mas já sabes como as pessoas falam. Sempre me espantou
como nunca se soube do Craig e da Sabrina.
Odiando ouvir os dois nomes associados, Alicia obrigou-se a ultrapassar
o sentimento, dizendo:
– Gostaria de pensar que é um grande segredo, mas toda a gente sabe como
nós as duas somos chegadas, por isso, se sabem, provavelmente nunca
falariam disso contigo.
– És capaz de ter razão. Disseste ao Robert que vinhas hoje?
– Não, mas se ele estiver por aí, por esta altura já deve saber que estou cá.
– Não duvido – concordou Rachel –, o que quer dizer que ele deve
provavelmente estar fora numa das suas viagens, porque tenho a certeza de que
entraria em contacto contigo mal soubesse. Como poderia deixar de o fazer?
És irmã dele e, apesar da proximidade que vocês sempre tiveram poder estar
sepultada sob os efeitos daquela aventura ressentida, no fundo do meu coração
sei que continua lá e, se calhar, completamente intacta.
Capítulo Três
Passava pouco das nove da manhã quando Sam Ellery, o carteiro local,
entrou na aldeia de bicicleta para começar a sua ronda. Tendo pouco que
distribuir no saco para os residentes e comerciantes da rua principal, em breve
estava na Holly Way, a elegante rua ladeada de áceres que se afastava da rua
principal numa curva, como a pá de uma ventoinha, para terminar num
frondoso beco sem saída com uma pequena ilha no centro, onde quem estava
perdido podia dar a volta. Agora que as escolas tinham fechado para o verão,
apenas havia pássaros para o saudar nessa manhã, chilreando e voando sobre
os galhos ricamente densos, e um ou outro gato repousando languidamente
sobre o capô de um carro caro, ou esperando pacientemente frente a algum
portal onde o deixassem entrar para tomar o pequeno-almoço. O ar estava
quente e perfumado com uma mistura agradável de madressilva, jasmim e o
odor persistente da torrada que alguém queimara. O carteiro podia ouvir o rio
à distância, borbulhando sobre as pedras no seu caminho para o dique, e o som
da Radio Two vindo de uma janela aberta.
Depois de deixar um pequeno pacote no número oito, e um punhado de
postais de aniversário no número 10, Sam pedalou na bicicleta ao longo das
quatro casas seguintes que não tinham entregas nessa manhã até à magnífica
mansão Queen Anne do fim da rua. Era a única residência em Holly Way que
tinha na frente portões elétricos e uma câmara de vigilância que registava
todas as movimentações no exterior. Sam sabia que a segurança se devia ao
trabalho de Robert Paige, mas não saberia dizer exatamente o que Robert
fazia, exceto que era algo de científico. Havia uma grande quantidade de
entregas especiais para Robert e, caso ele não estivesse em casa para assinar
os recibos, Sam teria de levar as encomendas de volta e deixar um bilhete
para avisar Robert, quando regressasse, de que havia algo para ele.
Aparentemente, nem mesmo a Sra. Paige podia receber o seu correio, embora
Sam nunca tivesse perguntado porquê. Simplesmente cumpria com o sistema,
tal como lhe tinham dito para fazer, metendo-se na sua própria vida e sentindo-
se secretamente contente por, no seu trabalho, não estar sujeito ao mesmo tipo
de pressões que Robert Paige provavelmente tinha no dele.
Apoiando a bicicleta contra os loureiros impenetráveis, estava prestes a
tocar no intercomunicador quando ouviu um carro a entrar na rua. Voltando-se,
semicerrou os olhos contra o sol da manhã, tentando perceber quem era. Sam
conhecia toda a gente, e gostava de acenar aos seus clientes, mas ainda não
conseguia distinguir a quem o carro pertencia. Definitivamente não era um
veículo que reconhecesse, mas afinal isso era natural, porque agora podia ver
que se tratava de um táxi, e parecia estar a dirigir-se para o fim da rua.
Logo a seguir, os sólidos portões negros atrás de si começaram a deslizar,
abrindo-se. O táxi abrandou, esperando para entrar, e, quando o automóvel
parou por completo, o vidro da janela de trás desceu.
– Bom dia, Sam – disse Robert Paige. – Tens alguma coisa para mim?
Sam ergueu o grande envelope castanho que se preparava para entregar.
– Uma coisa da Florida – disse, levando-lhe o envelope. – Preciso que
assines, por isso, hoje, o nosso timing foi bom. Como tens passado?
Acordaste cedo, para um sábado.
Conhecia Robert Paige desde o dia em que Donald e Monica tinham
chegado do hospital de Yeovil com aquela trouxinha aos berros, o que ia para
quase quarenta e um anos, e logo desde aí tinha-se afeiçoado ao rapaz.
– Venho direto de Heathrow – disse Robert, decidindo sair do táxi ali, em
vez de esperar que o carro avançasse para lá dos portões. – Apanhei o avião
da noite de Washington.
– Outra vez a confraternizar na Casa Branca? – brincou Sam enquanto
passava a Robert o livro de recibos para este assinar.
Robert riu.
– Desta vez, estive ocupado de mais para os conseguir meter na agenda –
gracejou. – Da próxima vez que lá for, mando-lhes cumprimentos teus.
Era um homem bem-parecido, na opinião de Sam, talvez a ganhar um
pouco de barriga ultimamente, e começara a perder o cabelo louro nos últimos
anos, mas os seus olhos azuis possuíam uma genuína cordialidade que nunca
deixava de lembrar Sam Donald, o pai, e no seu sorriso havia uma alegria
contagiosa que tanto Robert como Alicia tinham herdado da sua bela e meiga
mãe. Pegando no livro de novo com um risinho discreto, Sam observou Robert
enquanto este retirava a pasta do táxi e pagava ao motorista.
– Bem, é melhor ir indo – disse, quando o táxi começou a fazer inversão
de marcha. – Oh, a propósito, que bom a Alicia estar de visita, não é? Ainda
não a vi, mas a minha patroa esteve a falar um bocadinho com ela ontem no
pub. É uma pena o que aconteceu ao marido dela, não? Deve ter sido um
choque terrível, assim tão de repente, e tudo. E os miúdos ainda tão novos.
Fez-me pensar em como perdeste o teu pai quando tinhas mais ou menos a
mesma idade.
Lembrando-se tarde de mais de como o seu velho companheiro de escola,
Donald Paige, encontrara a morte, Sam sentiu um calor desconfortável
irradiar-lhe do pescoço.
– Sim, bem, foi bom ver-te, como sempre, meu rapaz – murmurou, pegando
na bicicleta. – Para hoje dão sol, e bem jeito nos faz, com toda a chuva que
tivemos.
Robert ficou a ver Sam afastar-se na bicicleta, consciente de que não
chegara a tranquilizar o velho, dizendo-lhe que a sua observação sobre o pai
não o ofendera, mas ainda estava sob o efeito da surpresa de ouvir que Alicia
estava em Holly Wood. Devia sentir-se feliz e, em algum lugar distante, sabia
que o estava, mas antes disso havia a compreensão do que aquilo iria
significar para a mulher. Já conseguia sentir uma consternação horrível
cavando no seu interior, e, lutando contra um desejo quase irresistível de virar
costas e voltar direito para Washington de novo, esperou que os portões
fechassem e encaminhou-se para casa.
Balançando as pernas para fora da cama, como que para escapar do horror
daquele dia, Alicia empurrou o cabelo para trás e tentou impedir-se de pensar
nele. Mas a sua imagem insistia, aproximando-se dela em ondas sucessivas de
recordações torturantes, lembrando-a de como, nos dias e semanas que se
seguiram, Craig continuou a jurar que Sabrina não significava nada para ele.
Nada acontecera em Itália, disse-lhe. Sabrina mentira, ele não sabia por que
razão. Não, claro que não estava a planear vê-la novamente. Jurou pela vida
dos filhos que continuava a amar Alicia, e que nada no mundo era mais
importante para ele do que manter a família unida. Foi tão convincente como
caberia a um advogado experiente, e Alicia até acreditou nele durante algum
tempo, mas depois deu por si a fazer algo que nunca fizera, inspecionando lhe
o telemóvel e verificando os extratos dos seus cartões de crédito. Para seu
horror, depressa se tornou evidente não só que Craig mentira sobre a duração
da aventura, mas também que esta ainda estava longe de terminar.
– Não entendo – disse Alicia furiosa, quando o confrontou. – Que é que ela
tem? Tu ama-la? É isso que se passa? Queres deixar-nos, dar cabo desta
família e ir viver com ela?
– Não, é claro que não – gritou Craig. – Tu e os miúdos são tudo para mim,
já sabes disso…
– Então, porque estás a fazer isto? O problema não é propriamente não
termos vida sexual, ou sou só eu que me sinto satisfeita com ela? Devo ser,
porque tu és o único que anda à procura de satisfação fora de casa. Ela dá-te
mais prazer? Ela faz-te coisas que…
– Alicia, para – suplicou Craig, com o bonito rosto emaciado. – Não há
nada de mal no nosso relacionamento. Eu amo-te tanto como sempre amei, e
talvez mais.
– Então, porquê? – repetiu Alicia em desespero. – Explica-me, para eu
perceber porque estás a fazer isto.
Craig baixou a cabeça, abanando-a.
– Quem me dera poder – repetiu Craig, em voz rouca. – Não quero dizer
que a culpa é toda dela, ou fazer-me de inocente… Eu só… É uma coisa…
– É o quê? – gritou Alicia, com vontade de o esbofetear, de lhe bater para
o fazer sentir a dor dela.
Craig continuava a abanar a cabeça. Craig Carlyle, o grande orador, o
advogado brilhante que encontrara palavras para defender algumas das mais
baixas formas de vida humana – pedófilos, gângsters, assassinos em série –
não conseguia encontrar palavras para se defender a si próprio.
Alicia sabia que o devia ter obrigado a sair de casa nessa altura, ou ter
saído ela mesma, mas não tinha feito nenhuma destas coisas, principalmente
porque não conseguira arranjar coragem para contar aos filhos o que se estava
a passar. Eles adoravam o pai, Craig era tudo para eles, e a verdade patética
era que, por mais que Alicia o odiasse por aquilo que estava a fazer, também
não conseguia deixar de o amar. Ele não era apenas alguém que a traíra, era o
homem cujo amor pelos filhos lhe fazia saltar o coração, cujo sorriso ainda
era capaz de a derreter da cabeça aos pés, cuja presença mantinha de pé o
mundo que tinham construído juntos e fazia todos os dias valerem a pena. Vira-
o chorar por causa de um caso trágico em que estava a trabalhar, conhecia a
bondade que demonstrava para com as vítimas e as suas famílias. Craig era
muito mais do que aquela loucura com Sabrina, por isso ela não podia deitar
assim tudo a perder. Por fim, acordaram que, desde que ele terminasse
definitivamente tudo com Sabrina, Alicia lhe daria outra oportunidade.
Agora, nunca haveria maneira de saber de que forma Craig rompera com
Sabrina, mas, o que quer que lhe tivesse dito, depressa se tornou claro que a
cunhada não estava pronta a dar o assunto por encerrado. Não parava de ligar,
de manhã à noite, muitas vezes bêbada e transtornada de desgosto e de raiva,
ameaçando Alicia ou suplicando a Craig para se encontrar com ela. Jurou que
terminaria o seu casamento com Robert, se Craig cumprisse o prometido e
deixasse a esposa. Craig negou firmemente ter feito tal promessa.
– Nunca tive nenhuma intenção de te deixar por causa dela, nem de mais
ninguém – reiterou certa vez, depois de Sabrina os ter voltado a acordar, com
mais um dos seus telefonemas embriagados, a altas horas da madrugada.
– Então, porque é que ela diz isso?
– Não sei. Ela está a inventar coisas, a dizer o que ela própria quer ouvir,
mas é tudo um disparate. Dela, só quero que me deixe em paz.
Então, Alicia foi até Holly Wood para confrontar Sabrina. Por essa altura,
Robert já sabia do caso e estava tão arrasado quanto a irmã, mas não fazia
ideia de que Alicia ia até à aldeia, ignorando, assim, a louca ideia de a mãe
servir de mediadora entre as duas. Só descobriu quando a terrível zaragata que
irrompera entre ambas as mulheres já terminara, e Sabrina regressou a casa
com o nariz a sangrar e enormes punhados de cabelo arrancado da cabeça.
Robert dirigira-se imediatamente a casa da mãe, onde foi encontrar Alicia
num estado muito semelhante, mas a sua maior preocupação era Monica.
– Como foste capaz de fazer isto? – gritou para Alicia. – Olha para ela. É
tua mãe, por amor de Deus. Onde é que tinhas a cabeça, não sabes como ela
está doente?
– Desculpa – gritou Alicia. – Não queria que isto acontecesse…
– Robert, acalma-te – pediu Monica. – Eu estou bem, só um pouco pisada
de quando as tentei separar. Mas vai passar.
– Isso não me chega – rosnou Robert, ainda de olhos cravados em Alicia.
– Quero que te vás embora daqui agora mesmo…
– Robert, não – protestou Monica. – Ela está a sofrer tanto como tu e,
desculpa dizer-te isto, mas a Sabrina é muito mais culpada do que a tua irmã.
Tendo de admitir que era verdade, Robert voltou-lhes as costas com uma
expressão inflexível, mas não antes que Alicia pudesse ver como estava
despedaçado por dentro. Aproximou-se e pousou-lhe a mão no ombro e,
quando o irmão se voltou, olharam profundamente nos olhos um do outro. A
seguir, Robert envolveu-a nos seus braços e abraçaram-se com força. Se a mãe
não estivesse presente, Alicia tinha a certeza de que teriam começado ambos a
chorar e procurado conforto um junto do outro, mas Monica já passara por
emoções que chegassem para um dia. Estava cansada, precisava de se deitar, e
Robert tinha de voltar para junto de Sabrina.
Uma semana mais tarde, quando Alicia ligou à mãe para lhe dizer que ia
passar uns dias à aldeia, Monica pediu-lhe que não fosse. Provavelmente,
seria melhor que ficasse longe de Holly Wood uns tempos, disse Monica, da
melhor maneira que pôde, e, uma vez que a mãe parecia tão fraca e cansada,
Alicia não insistira. Em vez disso, permitira-se ser banida da casa onde
crescera, da aldeia onde sentia que pertencia, e da companhia da mãe que
adorava, tudo porque Sabrina não queria largar Craig.
Mais tarde, Alicia soube pela mãe que Robert ameaçara divorciar-se de
Sabrina se esta não se controlasse e deixasse de assediar Craig com
telefonemas e emails. Aparentemente, assustada com a perspetiva de acabar
sem nenhum dos dois, Sabrina desistira finalmente da perseguição, mas os
danos causados nos dois casamentos eram já incalculáveis e, no caso de
Alicia, pareciam mesmo irreparáveis. Apesar de continuarem juntos, e de se
empenharem a fundo em recuperar o que tinham perdido, as coisas nunca mais
voltaram a ser as mesmas entre o casal. Como uma jarra de grande valor que
cai ao chão, a confiança de Alicia estilhaçara-se e, por mais que se esforçasse
por colar os pedaços e reconstruí-la, as fendas notavam-se sempre.
Agora, era impossível saber se, na altura, Craig começara a aceitar mais
trabalho para preencher o vazio deixado por Sabrina. Alicia queria acreditar
que tudo fora motivado pela necessidade de equilibrar as finanças familiares,
pois, se achasse que o stress e o cansaço que tinham tomado conta do marido
eram culpa de Sabrina, isto significaria que Craig a devia ter amado de
verdade, para sentir tanto a sua perda. Alicia não podia de modo algum
admitir esta possibilidade, porque o ciúme e o ódio que sentia em relação a
Sabrina não seriam propriamente uma ajuda na vida nova que estava a tentar
construir para si e para os filhos. Só esperava que a cunhada tivesse decidido
manter-se afastada deles, pois não tinha o mínimo desejo de, alguma vez na
vida, voltar a ter qualquer tipo de relação com ela.
Há uma semana que estavam em Itália e o calor não lhes dava tréguas. As
oliveiras plantadas em socalcos, que cobriam as encostas em redor da casa de
campo que ocupavam, reluziam como prata sob o sol da tarde, o solo estava
rachado, seco e poeirento. Ali em cima, naquele monte onde a vivenda
repousava como uma pequena fortaleza vigiando as curvas e elevações do
vale, havia uma piscina perfeita e cristalina, onde se podiam refrescar, e
pérgulas cheias de sombra por onde podiam caminhar ou deitar-se a
descansar, densamente perfumadas por jasmins e rosas coloridas.
Uma hora antes, Alicia e Monica tinham partido para Siena, levando
consigo Annabelle e Darcie. Os homens não tinham mostrado qualquer
interesse em acompanhá-las e Sabrina desistira no último minuto, alegando
que estava demasiado calor para se irem meter entre multidões de turistas, e
que não conseguia suportar todas aquelas filas intermináveis para ver umas
igrejas a cair de velhas e um monte de santos torturados. Preferia ficar a
relaxar na piscina com um bom livro, disse, mas mais tarde, quando estivesse
menos calor, iria de carro à aldeia fazer compras para o jantar. Nessa noite era
a sua vez de cozinhar e estava a pensar servir uma série de entradas, que
pensava comprar no Luigi, junto com massa fresca e todos os outros deliciosos
ingredientes de que precisava para fazer o molho.
Agora, ao emergir das sombras da sala de estar, onde Nat e Robert
jogavam xadrez em frente da ampla lareira vazia, o súbito brilho do sol fê-la
franzir os olhos. Fez os óculos de sol descerem-lhe da cabeça para proteger os
olhos e, depois, atravessou o terraço num passo descontraído, desceu as
escadas, onde as flores de bela-emília caíam como empoeiradas estrelas azuis
sobre a velha pedra rugosa, e dirigiu-se à piscina.
Perguntou a si própria porque se sentia sempre tão excitada ao sol. Talvez
fosse o calor, que a forçava a tirar a roupa, ou a sensação do ar no corpo
quase nu. Ou talvez fossem os olhares que ela e Craig tinham andado a trocar
nos últimos dias. Sabia que ele a desejava tanto quanto ela o desejava a ele,
podia vê-lo nos seus olhos e senti-lo na tensão que faiscava entre eles como os
clarões dos relâmpagos que riscavam o céu noturno.
Ao caminhar agora na direção dele, sensações intensas e refinadas
começavam a dardejar entre as suas pernas. Faziam-na querer tocar-se, ou
arrancar as pequenas peças do reluzente biquíni que usava, para se abandonar
ao poder de um desejo exaltador.
Embora Craig tivesse os olhos fechados, deitado à sombra de um guarda-
sol, Sabrina adivinhou que só estava a dormitar, se é que dormia de todo.
Contemplou o seu corpo com avidez. Era longo e firme e ainda estava
molhado da água da piscina. Nos últimos dias, passara muitas horas a desejar
poder despir-lhe os calções para ter uma visão completa. Na sua mente, não
tinha problemas em visualizar imagens do seu pénis, inchado de desejo,
pulsando só para ela, ou dos seus dedos longos deslizando sobre os seus
seios. Na sua imaginação, já tinham ido para a cama cem vezes, de forma
selvagem, transpirada, insaciável – naquele dia, teve a certeza de que isso se
tornaria realidade.
– Olá – murmurou Craig, abrindo os olhos quando a sombra dela se
estendeu sobre ele.
Sabrina sorriu e espreguiçou-se com indolência, erguendo os braços acima
da cabeça. Gostava da firmeza do seu ventre e de sentir a reduzida parte de
baixo do biquíni deslizar para onde deveria haver pelos púbicos, mas não
havia.
– Devem estar quase quarenta graus – comentou Craig, olhando para o sol.
– Hmm – respondeu Sabrina e, soltando o cabelo, deitou-se na
espreguiçadeira ao lado da dele.
Durante muito tempo, mantiveram-se em silêncio, escutando apenas o
zumbido das cigarras e a vibração da bomba que filtrava a água da piscina.
Sabrina perguntou a si própria se Craig erguera o joelho para esconder uma
ereção, e sorriu secretamente. Desejava-o mais do que alguma vez quisera
algum homem na vida e intuía que ele sentia o mesmo. A única diferença entre
eles era que Craig ainda estava a tentar resistir ao sentimento.
Sentiu-o virar-se para olhar para ela e esperou que falasse, mas passaram
alguns instantes até que Craig disse, em voz rouca:
– Ficas incrível com esse biquíni.
Sabrina sorriu.
– Fico contente por gostares, porque comprei-o a pensar em ti.
A carga sexual entre ambos intensificou-se e subitamente queimava mais
que o sol.
Craig não disse nada.
Os olhos de Sabrina permaneceram fechados por trás dos óculos escuros,
o coração batia-lhe tranquilamente sob o mamilo endurecido.
– Ninguém vai saber – disse suavemente.
Como Craig não respondeu, voltou-se para ele e descobriu-o a olhar
fixamente para além dela, para a casa.
– Não podemos fazer isso – disse ele. – Há demasiado em risco.
– Só se eles descobrirem e, se tivermos cuidado, não há maneira de isso
acontecer.
Sabrina absteve-se de lhe dizer, nesta altura, que o risco a enlouquecia,
mas ele em breve teria oportunidade de o descobrir.
Craig desviou os olhos, parecia mais sem fôlego. Passaram-se alguns
minutos expectantes. No fim, aceitando que fazer algo pela primeira vez ali,
naquela casa, seria demasiado difícil para ele, Sabrina balançou as pernas
para fora da espreguiçadeira, pousou os pés no chão e disse:
– Vem comigo comprar qualquer coisa para o jantar.
Craig ergueu o olhar, encontrando o dela, e, quando Sabrina passou as
costas da mão sobre os seios, viu-o engolir em seco.
– Onde está o Nat? – perguntou ele.
– Continua a jogar xadrez com o Robert.
Craig acenou com a cabeça e disse, com uma nota de ironia na voz:
– Por uma vez na vida, não está a jogar às damas com a Annabelle.
Divertida, Sabrina respondeu:
– Achas que é isso que fazem, quando se fecham no quarto dela?
– Na idade deles, espero bem que sim.
Provocadora, Sabrina disse:
– Na idade deles, era isso que terias feito? Jogar às damas?
Craig riu.
– Duvido. – A seguir, pondo-se de pé, disse: – Vou ver se algum deles quer
vir connosco.
Escondendo o desapontamento, Sabrina viu-o agarrar na toalha e no livro e
disse-lhe, enquanto Craig se afastava:
– Vou ter contigo ao carro daqui a dez minutos.
Ele ergueu a mão para lhe dizer que ouvira e, presumivelmente, que estaria
lá. Se tudo corresse bem, sozinho.
Entrando na casa por uma porta lateral, Sabrina subiu até ao seu quarto,
amarrou uma saída de praia por cima do biquíni em jeito de vestido, apanhou
o cabelo atrás e agarrou na mala. Despiria a saída de praia ao chegar ao carro
– talvez também despisse o biquíni, desde que Robert e Nat não viessem.
Quando chegou à sala de estar, foi encontrar ambos ainda concentrados no
seu jogo. Não havia sinal de Craig.
– Algum de vocês quer ir à aldeia? – perguntou, reprimindo um bocejo.
Robert abanou a cabeça, dizendo:
– O Craig já nos veio perguntar e estou prestes a ser derrotado, por isso
vamos ficar cá.
Durante um instante, Sabrina fingiu interesse pelo tabuleiro e, depois,
sentindo os olhos de Nat fixá-la, olhou para ele e sorriu. Nat não devolveu o
sorriso e Sabrina pôde sentir a sua antipatia. Sabia há muito que o sobrinho
não gostava dela, sobretudo porque não era suficientemente sofisticado para o
esconder, e o sentimento era mútuo. Sabrina não tinha paciência para os
meninos que se achavam homens muito antes do tempo, e que a olhavam com
olhos que pareciam ver de mais. Nat não podia saber em relação ao pai e a ela
porque, de momento, não havia nada para saber, mas, como pequeno estupor
presunçoso que era, fazia-a sempre sentir que sabia que ela não era de
confiança.
Tornando o seu sorriso mais doce, beijou a cabeça de Robert e saiu em
direção ao carro. Este estava estacionado numa clareira no fim do caminho de
acesso, da vista da casa, virado para a estrada que serpenteava no exterior da
propriedade. Como de costume, não havia sinais de qualquer trânsito, apenas
um par de lagartixas atravessavam a estrada a correr para se esconderem à
sombra de um cato do outro lado.
Craig já estava no banco do condutor, com o motor a trabalhar. Desatando
a saída de praia, Sabrina sentou-se no banco do passageiro ao lado dele e,
quando os olhos de ambos se encontraram, teve a certeza de que, por fim,
tinham chegado a um ponto de não retorno.
– Ah, então decidiste vir para casa – disse Sabrina com vivacidade,
quando Annabelle entrou pela porta, coberta de contas tilintantes e com uma
minissaia esvoaçante que deixava quase completamente à mostra as suas
longas pernas nuas.
– Sim, apeteceu-me – respondeu Annabelle num tom alegre, escancarando
a porta do frigorífico. – Há Babybels? Estou esfomeada.
– Estão na segunda gaveta, com os outros queijos, mas não exageres,
vamos jantar ao pub.
– Fixe. A Georgie vem a caminho, também pode ir connosco?
– Não vejo porque não. Ela vai dormir cá?
– Espero que sim. Então, como correu a caminhada de beneficência?
Conseguiste chegar ao fim?
Uma onda de infelicidade invadiu o coração de Sabrina. Sim, conseguira
chegar ao fim, mas não experimentara qualquer sentimento de realização ao
atravessar a meta, apenas um regresso à forma de que o seu mundo se revestia
agora, triste e vazio, por um lado, e repleto de culpa e confusão, por outro.
– Olááá! Então, chegaste ao fim? – insistiu Annabelle.
Compondo rapidamente uma expressão animada, Sabrina disse:
– Se toda a gente der o dinheiro, acabei de angariar mil e quinhentas libras
para a Shelter. Não é bestial?
Annabelle parecia impressionada.
– É o máximo – concordou, retirando o invólucro vermelho de um dos
queijinhos e dando-lhe uma dentada. – Quem me dera que conseguisses
angariar esse dinheiro para mim. Então, onde está o Robert?
– No escritório dele, é claro. Por falar nisso, liga-lhe e diz-lhe que vou
servir uma bebida para os dois. Já é tempo de ele sair dali.
Servindo-se do intercomunicador que estava ligado ao escritório de
Robert, uma espécie de bunker extravagante situado na extremidade do jardim,
Annabelle disse:
– Terra chama Robert, Terra chama Robert, vem para casa tomar uma
vodka com água tónica, se faz favor – e, retirando o dedo do botão, sentou-se
pesadamente à mesa e abriu o exemplar da revista Style daquele dia.
– Trouxeste algum saco contigo? – perguntou Sabrina, colocando gelo em
dois copos altos.
– A mãe da Georgie traz-me o saco no carro dela.
– Então, como vieste para cá?
– Apanhei boleia.
– Hã? De quem?
Annabelle virou uma página.
– De uma pessoa amiga. Jesus, olha-me para estes sapatos. Ficavam
mesmo bem com o vestido púrpura que comprei quando fomos a Bath na
semana passada, e só custam quatrocentas e sessenta libras.
Sabrina olhou-a de lado, sem perceber bem se ela estava ou não a brincar.
– Então, quem te trouxe a casa? – repetiu.
– Acabei de te dizer, uma pessoa amiga.
Virou outra página e começou a comer um segundo queijinho.
– Essa pessoa amiga era rapaz ou rapariga?
– Hmm, deixa-me pensar. Sim, acho que devia ser um rapaz, mas, antes
que te comeces a passar, não, não fizemos nenhuma paragem para ter sexo no
banco de trás – disse Annabelle, metendo o resto do queijo na boca. – Fizemos
isso ontem à noite.
Com imagens das vezes em que Craig e ela tinham feito amor num carro a
passarem-lhe pela cabeça, Sabrina olhou de novo para Annabelle. A filha
estava a tentar provocá-la, por isso resolveu não entrar no jogo, e deitou duas
generosas doses de vodka por cima do gelo, antes de voltar a abrir o
frigorífico para ir buscar a água tónica.
– E como se chama ele? – perguntou, esforçando-se por manter um tom
casual.
– Quem?
– O rapaz que te trouxe a casa.
Annabelle encolheu os ombros.
– Não sei. Não perguntei.
Sabrina suspirou, exasperada. Estava a esforçar-se tanto por se relacionar
com a filha, mas não recebia nada em troca.
– Annabelle, porque tem tudo de ser tão difícil contigo? – perguntou,
tentando não parecer que a estava a criticar.
Annabelle ergueu as mãos.
– Tu perguntas, eu respondo, o que é que há de difícil nisso? – exclamou.
– Dantes, tínhamos ótimas conversas sobre todos os assuntos – lembrou-a
Sabrina. – Agora, mal consigo que me digas uma palavra que faça sentido.
Annabelle atirou a cabeça para trás.
– Humm, deixa-me ver, e isso deve ser porque… Ah, sim, sou estúpida,
não tenho cérebro e só ando aqui a ocupar espaço.
Sabrina olhou-a agastada.
– Mas porque…?
– Era uma piada! – atalhou Annabelle.
– Mas alguém aqui alguma vez te disse essas coisas? – perguntou Sabrina,
horrorizada com a hipótese de poder tê-lo feito.
– Daaa! Ainda agora te disse, era uma piada.
Annabelle voltou a mergulhar na leitura da revista, mas Sabrina ficou a
olhar fixamente para ela, desejando dizer algo mais, sem contudo conseguir
alinhavar as palavras, por medo do rumo que as coisas podiam tomar.
– Ah, querido, cá estás – disse, ao ver Robert entrar pela porta das
traseiras. – Pensei que era melhor arrancar-te do escritório agora, ou ias lá
ficar a noite inteira.
– Ainda bem que o fizeste – respondeu Robert, indo lavar as mãos na
banca. – Estava quase a adormecer. Acho que ainda devem ser os efeitos da
diferença de fuso horário. Olá, Annabelle. Como vai a vida?
– Tudo bem – respondeu ela, continuando a folhear a revista enquanto lhe
acenava.
– Recebi a tua mensagem – disse Robert a Sabrina. – Então, devo-te
quinhentas libras. Muitos parabéns. Quantos quilómetros foram mesmo?
– Trinta e dois – respondeu Sabrina, passando-lhe uma toalha. – Podes
passar me um cheque, sei que tens cobertura.
Robert sorriu e inclinou-se para a frente para a beijar levemente enquanto
secava as mãos.
– Pensei que podíamos ir jantar ao pub – disse Sabrina, voltando a
pendurar a toalha e passando-lhe uma bebida. – A Annabelle e a Georgie vêm
connosco.
De imediato, Robert exibiu uma expressão de desconforto.
– Humm, estava a pensar que podíamos fazer um churrasco – disse. – Está
uma tarde agradável e este ano ainda não usámos o grelhador.
Sabrina franziu a testa, dizendo:
– Já reservei uma mesa.
– Mas é fácil cancelar.
Sabrina olhou-o fixamente. Depois, compreendendo qual era o problema,
começou a empalidecer.
– Talvez não me apeteça cancelar – disse obstinadamente.
– Acho que talvez te apeteça – disse Robert, num tom agradável.
Apercebendo-se da tensão entre ambos, Annabelle ergueu os olhos.
– É só uma ida ao pub – disse. – Qual é o problema?
Ignorando-a, Sabrina disse a Robert:
– Posso dar-te uma palavrinha, por favor? Em privado?
– Oh, não se incomodem por minha causa – disse Annabelle, fechando a
revista –, também já ia para o meu quarto. Mandem a Georgie subir quando ela
chegar.
Depois de a porta se fechar atrás da filha, Sabrina esperou até ouvir o som
dos seus passos afastarem-se antes de se voltar para Robert.
– Presumo que a tua irmã vá ao pub esta noite – disse tensamente.
Robert acenou com a cabeça e bebeu um gole da sua bebida.
– Vai-se encontrar com a Rachel – confirmou – e, a não ser que me engane
muito, acho que preferias não estar sob o mesmo teto que ela – ou na mesma
esplanada, dado o bom tempo.
O rosto de Sabrina contraía-se mais a cada segundo que passava.
– Não vejo por que motivo tenhamos de mudar os nossos planos por causa
dela – disse asperamente.
– Então, vai – respondeu Robert –, mas, se não te importas, eu fico em
casa.
Sabrina pousou ruidosamente o copo sobre o tampo da bancada.
– Esta aldeia é a nossa casa – disse, furiosa –, é onde eu vivo e tenho todo
o direito a ir ao pub quando bem me apetecer.
– Não discuto isso, só estou a dizer que não vou passar a noite a ignorar a
minha própria irmã, que é o que vais querer que eu faça, nem me vou resignar
a ser testemunha de um confronto embaraçoso entre vocês as duas. Há outros
pubs…
– Então, ela que procure um. Nós vamos ao Traveller’s.
– Já te disse que vou ficar em casa.
Uma vez que Robert sabia perfeitamente que Sabrina não iria ao pub sem
ele, a frustração desta atingiu um ponto de ebulição.
– Que aconteceu quando foste visitá-la hoje? – perguntou Sabrina, fazendo
um esforço heroico para controlar a sua fúria.
– Não aconteceu nada. Bebemos um chá e conversámos um bocado.
Depois, vim-me embora.
– Descobriste quais são os planos dela?
– Sim. Vai ficar a viver em Holly Wood e pôr os filhos a estudar em
Stanbrooks.
Sabrina deixou cair o queixo de espanto, enquanto os seus olhos se
arregalavam, horrorizados.
– Mas ela não pode fazer isso – protestou. – O Nathan anda em
Westminster. O Craig nunca haveria de querer que ele saísse de lá.
– Correndo o risco de referir o óbvio, o Craig já não tem voto na matéria.
A casa de Londres foi vendida e os objetos pessoais deles devem chegar
amanhã.
Sabrina tinha a expressão de alguém que apanhou uma bofetada.
– Vamos antes ao Wheatsheaf – sugeriu Robert. – Está-me a apetecer um
bom bife e o deles não costuma desiludir.
– E que vai ela fazer aqui? – perguntou Sabrina. – Viver uma vida de
dondoca rica?
– Na verdade, vai reabrir a loja e pôr as esculturas dela à venda –
respondeu Robert, desagradado com a conversa, apesar do tom descontraído
que conseguia manter.
Sabrina olhava-o silenciosa e incrédula.
– Também espera poder promover alguns dos talentos locais – continuou,
decidindo contar-lhe tudo. – Nas palavras dela, será uma espécie de loja de
recordações artística.
Os olhos de Sabrina faiscaram.
– Em Holly Wood não há lojas de recordações – cuspiu Sabrina, num tom
mordaz.
Robert quase sorriu, mas conseguiu controlar-se.
– A seguir, vai tentar chamar turistas à aldeia, e este sítio não tem nada que
ver com isso. Não queremos estranhos por aqui a vadiarem pelas nossas ruas,
a olharem-nos especados pelas janelas, a roubarem-nos os nossos lugares de
estacionamento.
– Ela precisa de ganhar a vida – disse Robert serenamente.
Sabrina fixou-o, incapaz de acreditar no que ouvia.
– Estás-me mesmo a pedir que acredite que…
– Ela teve de vender a casa de Londres – interrompeu-a Robert –, mas não
vou entrar em mais detalhes acerca disso, porque não seria correto tendo em
conta os teus sentimentos em relação a ela.
O facto de Craig não ter deixado a família tão bem financeiramente como
Sabrina teria imaginado abalou-a de tal forma, que só passados alguns
instantes conseguiu dizer:
– É engraçado como nunca tens problemas em ser-lhe leal a ela, mas,
quando se trata de mim, pareces esquecer o que isso significa.
Robert olhou-a fixamente até que Sabrina se apercebeu de como o seu
comentário era incorreto, sobretudo considerando o modo como o marido
ficara ao lado dela durante a crise terrível que se seguiu à rutura forçada com
Craig.
– Desculpa – murmurou –, não devia ter dito aquilo.
– Porque não começas a pensar em pedir-lhe desculpas? – atreveu-se
Robert a sugerir. – Uma vez que vão morar na mesma aldeia, o natural é que
acabem por dar de caras uma com a outra…
– Não tenho nada por que pedir desculpas – atalhou Sabrina zangada. –
Não a ela.
– Como podes dizer isso, quando o Craig era casado com ela…
– Então, era a ele que lhe cabia pedir desculpas, como eu te pedi a ti.
Suspirando, Robert voltou a pegar no copo e bebeu outro gole.
– Não sei porque tens tanta má vontade contra ela – disse. – Desde o início
que não gostaste da Alicia…
– Desculpa lá! – interrompeu-o Sabrina ferozmente. – Ela é que sempre se
achou melhor do que toda a gente…
– Se te tivesses dado ao trabalho de a conhecer mesmo a sério, terias visto
como estás enganada.
– E que tal ela dar-se ao trabalho de me conhecer a mim? Mal falou
comigo da primeira vez que estivemos juntas.
– Não preciso de te lembrar como a Darcie estava doente, na altura.
– Há outras pessoas com filhos doentes que se dão ao trabalho de ser
educadas. Ela nem foi ao nosso casamento e, caso te tenhas esquecido, fui
sempre uma anfitriã muito generosa quando eles vinham para cá, o que é mais
do que posso dizer acerca dela quando fomos a Londres.
Robert pestanejou de espanto.
– É óbvio que tens uma ideia da hospitalidade muito diferente da minha –
disse –, mas esta discussão é inútil e não nos leva a lado nenhum. O problema
agora, tanto quanto posso ver, é que não consegues enfrentar as tuas próprias
culpas e, a não ser que o faças, o mais provável é que sejas tu quem vai sofrer
mais.
– A sério? – disse Sabrina num tom hostil. – Já vamos ver isso. Ela pode
ter nascido nesta aldeia, mas sou eu quem vive aqui há doze anos e sou eu que
estou na junta de freguesia. Estás a ver aquela lojinha pirosa que ela
imaginou? Vai abri-la por cima do meu cadáver!
Quando a porta se fechou silenciosamente atrás dele, Sabrina deixou-se
cair numa das cadeiras da cozinha e afundou o rosto entre as mãos. Tinha
vontade de chorar e de gritar e de arrancar os cabelos, sentia-se tão ignorada e
infeliz! Ninguém se preocupava, nem por um instante, com o modo como a
morte de Craig a poderia ter afetado, e a luta para manter a sua dor oculta
estava a tornar-se cada vez mais difícil. Agora, com Alicia a aparecer assim e
a planear ficar na aldeia, era como se alguém lá em cima a estivesse a tentar
castigar, fazendo-a parecer mais insignificante do que nunca. Meu Deus, como
odiava Alicia por ser a esposa por que toda a gente sentia compaixão, como se
tivesse sido a única mulher que importara para Craig. Se não fosse pelos
filhos, ele tê-la-ia deixado há dois anos, e Sabrina desejava desesperadamente
que o tivesse feito, pois, na sua cabeça, não tinha qualquer dúvida de que
Craig ainda hoje estaria vivo, se tivesse tido coragem de partir e recomeçar
uma vida nova com ela.
Capítulo Seis
Alicia estava nas traseiras da antiga loja da mãe, no espaço que tencionava
usar como estúdio. Para qualquer outra pessoa, este provavelmente não teria
parecido nada inspirador, mas, com o seu olhar artístico, Alicia era capaz de
ver para além de todas as teias de aranha e excremento de ratos, caixas e
livros apodrecidos, vidros partidos, pia suja, canos enferrujados e tinta a
descascar das paredes – perspetivando uma sala ampla e luminosa, com
portadas que davam para um pequeno pátio traseiro com enlameados vasos de
flores e a casa de banho exterior (todavia por explorar). Embora o espaço
fosse mais pequeno do que se lembrava, definitivamente tinha tamanho
suficiente para lá trabalhar, ao passo que na loja havia muito espaço para
prateleiras e expositores, e uma janela saliente onde as suas peças podiam ser
mostradas ao mundo que passava lá fora.
Como Holly Wood não atraía muitos visitantes, teria de ser imaginativa e
estar altamente motivada para vender o seu próprio trabalho, mas tinha amigos
em Londres, que tinha a certeza que a ajudariam com os seus conselhos e
talvez encaminhassem mesmo um cliente ou outro – ou mais – na sua direção.
A nível local, podia fazer publicidade nas revistas da freguesia e nos jornais
do West Country – quando pudesse pagar. Para começar, podia ser boa ideia
elaborar um folheto para colocar nos principais postos de turismo do condado,
bem como em vários edifícios de interesse público e pubs gastronómicos.
Entretanto, precisava de libertar espaço para que os homens das mudanças
pudessem entregar a sua mesa de trabalho, equipamento de soldadura e
esculturas acabadas. Como a única escova visível estava carcomida pelo
caruncho e não tinha cerdas, teria de voltar depressa à Coach House para
arranjar outra. Aproveitaria para trazer também alguns sacos de lixo, um
balde, esfregões, detergente e luvas de borracha.
Ao sair da loja, trancou a porta com a antiquada chave, recolheu um saco
abandonado cheio de sapatos velhos que alguém deixara sabe-se lá quando, e
virou na direção do pub. Continuava um pouco cansada por causa dos copos
da noite anterior, mas fora divertido sentar-se na esplanada do Traveller’s
com Nat e Summer, e Rachel e a família desta, conseguindo até relaxar durante
algumas horas antes de o verdadeiro desafio ter início naquele dia.
Afortunadamente, Sabrina e Robert não tinham aparecido. Maggie dissera-lhe
que o irmão e a cunhada tinham feito uma reserva, mas que esta fora cancelada
à última hora, o que não foi problemático para Maggie, uma vez que havia
muita gente à espera para ocupar o seu lugar. Alicia sentia que escapara
realmente por pouco, embora, como é óbvio, o temido encontro tivesse de
acontecer mais cedo ou mais tarde. Quando acontecesse, seria a primeira vez
que as duas estariam frente a frente desde o dia em que se tinham pegado à
frente de Monica – para além do funeral da mãe, onde se ignoraram
mutuamente de forma estudada – e, de momento, a única coisa que Alicia
conseguia sentir pela cunhada era uma enorme vontade de lhe bater outra vez.
Ao virar a esquina para The Close, animou-se ao ver o carro de Rachel
estacionado atrás da carrinha das mudanças.
– Que estás aqui a fazer? – exclamou, assim que Rachel saiu pela porta da
frente com Nat.
– Tinha uma consulta ao domicílio em Sheep Lane – respondeu Rachel,
aproximando-se para lhe dar um abraço –, e pensei em passar por aqui para
ver como as coisas estavam a correr. Como está a loja?
– Precisa de muito amor, carinho e braços que a limpem, mas não parece
haver fugas na canalização, por isso não deve demorar muito para a pôr em
condições. Aqui o meu ágil filho ofereceu-se para a pintar, não foi, meu
querido?
– Ofereci? – pestanejou Nat.
Alicia sorriu.
– Ofereci – confirmou ele.
Rachel riu.
– O meu consultório inteiro precisa de ser pintado – disse a Nat –, se
quiseres ganhar algum dinheiro.
– Assim está melhor – respondeu ele, esfregando as mãos. – Só há trabalho
escravo por aqui, e eu tenho uma namorada cara para sustentar.
– O que estás a dizer de mim? – perguntou Summer, saindo de casa num
passo saltitante, vestida com um minúsculo vestido justo e umas volumosas
sandálias de plataformas entrançadas.
– Sra. Carlyle? Está aí? – chamou um dos homens das mudanças do cimo
das escadas. – Quer que lhe montemos esta secretária? Temos tempo.
– O senhor é um anjo – respondeu Alicia. – Obrigada.
– A maioria das tuas coisas já está lá dentro – disse-lhe Nat. – Agora eles
estão no quarto da Darcie. No meu já terminaram, por isso não falta muito para
que possam ir para a loja.
– Nesse caso, preciso de voltar lá para arranjar espaço – respondeu
Alicia, entrando pela porta.
– Vais na direção errada – disse Nat.
– Escovas, vassouras, baldes – informou-o a mãe.
Olhando para o relógio, Rachel disse:
– Tenho meia hora antes de voltar para o consultório, vou-te dar uma
ajuda.
Dez minutos depois, Alicia e Rachel estavam a carregar e a varrer entulho
da sala dos fundos para a loja, onde Nat e Summer o estavam a enfiar em
sacos, para o levar para o depósito de lixo. Ainda não tinham conseguido abrir
nenhum caminho evidente até ao futuro estúdio, mas, ao ritmo que levavam,
conseguiriam criá-lo até os homens das mudanças chegarem.
– Precisam de mais um par de mãos? – perguntou uma voz da porta da
frente. Era a tia de Rachel, Mimi, que vinha da florista, na porta ao lado. – O
Pete está livre, se quiserem que faça alguma coisa.
– Penso que por agora damos conta do recado – riu Alicia, indo abraçá-la.
– A não ser que o Pete esteja com vontade de meter as mãos numa velha
casa de banho suja – gritou Rachel.
Os diabólicos olhos de Mimi cintilaram.
– Vou-lhe telefonar e mandá-lo vir para aqui agora mesmo – disse –, e
depois vou trazer café para todos.
– É uma querida – disse Alicia.
Mimi tinha acabado de sair quando Alicia ouviu mais vozes na frente da
loja e, erguendo os olhos, sentiu as entranhas darem uma guinada de
desconforto quando percebeu de quem se tratava.
– Oh, caramba – murmurou Rachel.
Annabelle, com um deslumbrante ar adulto, olhava Nat de maneira
provocadora, enquanto a sua amiga examinava Summer com descaramento. No
entanto, não era em vão que Summer era filha de um conde, e o olhar que
devolveu à rapariga foi tão fulminante e desdenhoso, que esta corou e desviou
os olhos.
– Annabelle – disse Alicia num tom caloroso, avançando rapidamente pela
loja. – Que bela surpresa!
– Olá – respondeu Annabelle, despregando os olhos de Nat.
– Ouvi dizer que estavam cá e viemos dizer olá. Há séculos que não nos
vemos. Pensei que se tivessem esquecido de nós. Ah, sim, os meus pêsames
pelo tio Craig. Foi terrível.
Alicia manteve o sorriso enquanto abraçava a enteada do irmão, que
provavelmente não tivera intenção de que as suas condolências soassem como
um grosseiro pensamento tardio.
– Obrigada – disse. – É bom ver-te. Tornaste-te numa bela jovem.
Annabelle exibiu uma expressão vaidosa e olhou para Nat.
– Então, quanto tempo cá ficam? – perguntou.
– Agora vivemos aqui – respondeu Alicia, ainda abalada pelo aspeto
adulto e aparentemente seguro de Annabelle. – Estamos a arranjar a loja, para
a transformar numa espécie de ateliê-galeria.
– Fixe – disse Annabelle, lançando outro olhar na direção de Nat, que
entretanto se virara para continuar a encher sacos.
– Olá, eu sou a Alicia – disse Alicia à outra rapariga.
– Oh, desculpa – disse Annabelle –, esta é a minha amiga Georgie.
– Olá – disse Georgie, acenando com os dedos.
Annabelle voltou a sua atenção para Summer.
– E tu és…? – perguntou, de forma rude.
– Esta é a Summer, a namorada do Nat – informou Alicia.
Annabelle olhou Summer de cima a baixo.
– Muito gosto em conhecer-te também, namorada do Nat – disse, numa voz
arrastada. – Vestido engraçado. D&G?
Summer assentiu. O seu rosto pálido e sardento refletia a confusão que lhe
causava aquele comportamento que não entendia.
– Mmm, bem me parecia – comentou Annabelle. Depois, voltando-se para
Nat, disse: – Temos de pôr os assuntos em dia. Talvez possamos jogar umas
damas.
Pela maneira como Nat corou e Georgie riu, Alicia calculou que o
comentário fosse um eufemismo sexual que, provavelmente, apenas os
adolescentes compreendiam.
– Temos de ir – murmurou Georgie. – Eles vão chegar a qualquer
momento.
Annabelle virou-se para Alicia.
– Fico muito contente por estares cá – disse. – Vais ter de ir lá a casa um
dia destes, sei que a minha mãe adoraria ver-te – e, com um sorrisinho doce,
começou a caminhar para a porta. – Ah, no caso de estares interessado – disse
a Nat –, vai haver uma rave no Copse dentro de duas semanas. Vai toda a
gente.
– Sim, o Simon Forsey disse-me – respondeu Nat.
Annabelle ergueu as sobrancelhas.
– Então, talvez venham os dois – murmurou e, pestanejando de forma
escandalosamente sugestiva, seguiu Georgie para a rua.
– Quem raio era aquela? – perguntou Summer, mal Annabelle ficou fora do
alcance da sua voz.
– Uma espécie de prima, mas não de verdade – respondeu Nat. – A mãe
dela casou com o irmão da minha mãe. De qualquer maneira, esquece-a, ela
não é ninguém.
Alicia pestanejou ao ouvi-lo falar assim de alguém de quem antes fora
bastante próximo, mas na verdade ficava contente, considerando o quanto seria
embaraçoso se ambos se tornassem amigos de novo. Regressando ao estúdio,
as suas sobrancelhas arquearam-se diante do olhar de Rachel.
– Por falar em miúdas desavergonhadas…
– É assustadora – concordou Alicia. Se a mãe não fosse a Sabrina, teria
pena da pobre mulher.
– Mas como é, não vamos perder tempo com isso. Que foi aquilo sobre
jogar às damas?
– Não faço ideia. Deve ser preciso ter a idade deles para perceber.
Rachael abanava a cabeça, enquanto observava um BMW descapotável
parar do outro lado da rua para Annabelle e Georgie entrarem.
– Não éramos assim quando tínhamos a idade delas, pois não? – disse. –
Sei que já nos interessávamos por rapazes na altura, mas não me lembro de
sermos tão descaradas.
– Estás a brincar comigo? Eu só com dezoito anos consegui olhar para um
rapaz na cara.
Rachel riu.
– Sim, foi mesmo isso. Tinhas mas é uns catorze, mas também não
passávamos disso, e de uns beijinhos. Quanto àquela rapariga, se ainda é
virgem, eu sou um cavalo falante.
Alicia riu, e depois deu um gritinho, quando Nat apareceu por trás dela e
lhe enfiou um dedo nas costelas.
– Os homens das mudanças acabaram de ligar, vêm a caminho – disse ele.
– Vou voltar para casa para continuar a separar as coisas. Liga-me se
precisares. – E, depois, aproximando-lhe a boca do ouvido, disse: – Quando
terminarmos, quero perguntar-te uma coisa.
– Então, o que é que ela queria dizer com aquilo das damas? – perguntou
Summer enquanto caminhava com Nat de volta para a Coach House.
A expressão de Nat contraiu-se ligeiramente.
– Oh, ela estava só a ser infantil – respondeu, irritado. – Não ligues. Não é
alguém com quem tenhamos de nos preocupar.
– Mas se é tua prima…
– Não é minha prima a sério, e, de qualquer forma, não faz diferença
nenhuma. Nunca estamos com eles. Quer dizer, a minha mãe ainda se dá com o
irmão, ou pelo menos ontem encontraram-se, mas foi a primeira vez desde há
uma eternidade. Tirando o funeral do meu pai.
– A sério? Tiveram alguma zanga ou algo do género?
– Eles, não. Quem não se fala são a minha mãe e a mulher dele, a Sabrina.
Houve qualquer coisa entre elas há dois anos, mas não me perguntes o quê,
nunca aprofundei o assunto.
Summer encolheu os ombros e desviou-se para o lado no portão de
entrada, para deixar passar dois dos homens das mudanças que iam a sair.
– A minha mãe tem tudo praticamente pronto lá – disse-lhes Nat. –
Basicamente, as esculturas são inquebráveis, mas pesam uma tonelada, e as
ferramentas de soldadura dela são mais preciosas que joias, por isso, boa
sorte!
– Aquele computador que tem no seu quarto é impressionante – comentou
um dos homens. – Não me importava de ter um assim para o meu rapaz.
Nat desviou o olhar para o lado.
– Era do meu pai – disse.
O homem das mudanças piscou o olho a Summer amigavelmente e
prosseguiu na direção do camião.
– Vais falar com a tua mãe sobre dormirmos no mesmo quarto? – disse
Summer baixinho, quando já estavam dentro de casa, envoltos nos braços um
do outro.
– Hmm, na altura certa. Mais logo vou-te mostrar o Copse, vaiser uma boa
oportunidade para estarmos um bocado sozinhos.
Ao beijar Summer, Nat deu consigo a pensar na primeira vez que beijara
Annabelle, no quarto desta em casa do tio. Na altura, ela tinha doze anos e ele
quatorze.
– Pensei que era suposto estarmos a jogar às damas – disse ela para o
provocar; estavam ambos sentados na borda da cama, de mãos dadas e com os
lábios a centímetros um do outro, a seguir ao seu primeiro e breve contacto.
– Não gostaste? – perguntou Nat, sentindo-se quente, inseguro e hirto de
pavor diante do pensamento de alguém poder entrar no quarto.
Annabelle baixou o olhar enquanto considerava a pergunta e, a seguir,
voltou a fixar os olhos em Nat com uma expressão de sedução infantil.
– Porque não repetimos? Depois já te posso dizer o que penso – disse.
Subjugado pela resposta dela, Nat encostou de novo a sua boca à de
Annabelle, sentindo os seus lábios tremerem ligeiramente enquanto os movia
um pouco, abrindo-os a seguir. Os lábios dela eram suaves e submissos e
separaram-se de uma forma que o fez sentir-se simultaneamente embriagado e
receoso – era tão bom! Olhou-a à socapa e viu que os olhos dela estavam
fechados. Esforçava-se por ignorar o que estava a suceder numa zona do seu
corpo mais abaixo, mas, a cada segundo, tornava-se mais volumoso e mais
urgente. Tocou-lhe no pescoço, acariciando-lhe a pele enquanto continuava a
beijá-la, pensando se se atreveria a usar a língua. Já tinha beijado assim outras
raparigas, mas tinham a idade dele, por isso não houve problema. Annabelle
ainda era muito nova e não a queria assustar. Nesse momento, sentiu a língua
dela tocar-lhe os lábios e, de súbito, sentiu uma ereção tão grande que o fez
sentir-se tonto de desejo e de embaraço, um embaraço torturante.
– Oh, meu Deus – riu Annabelle, quando se apercebeu do que estava a
suceder.
– Desculpa – murmurou Nat, tentando afastar-se dela.
– Não tens de pedir desculpa – disse ela. – É bom isso ter acontecido.
Significa que gostas mesmo de mim.
– É claro que gosto de ti – respondeu Nat, pensando que precisava de se
enfiar na casa de banho.
– Eu também gosto mesmo de ti – disse Annabelle. – Beijas muito melhor
do que qualquer outro rapaz que conheça.
Nat olhou para ela espantado.
– Não faças essa cara – riu ela. – Já tive montes de namorados. Bem,
houve dois, pelo menos, que beijei. Para dizer a verdade, estava a treinar com
eles para quando te beijasse a ti, porque sempre achei que isto ia acabar por
acontecer. Tu não?
Corando, Nat disse:
– Sim, suponho que sim. Olha, espera aqui, OK? Já volto.
– Abro o tabuleiro das damas, para o caso de alguém aparecer? –
perguntou Annabelle.
– Hã, sim, faz isso – respondeu Nat e, fechando a porta da casa de banho
atrás de si, encostou-se a ela, expirando profunda e tremulamente.
Ela excitava-o mesmo a sério, e mostrava-se tão disposta, que ele não
sabia o que fazer a seguir. Em alguma parte estranhamente insensata da sua
cabeça, queria ir perguntar ao pai, mas era um caminho absolutamente a não
seguir e, de qualquer maneira, não era propriamente como se nunca tivesse
apalpado uma rapariga. Ao pensar em acariciar Annabelle, os seus olhos
fecharam-se e quase gemeu ao sentir a renovada rigidez entre as suas virilhas.
A melhor coisa que podia fazer agora, decidiu, era voltar lá para baixo,
onde estava toda a gente a ver um DVD. Se ela quisesse fazer alguma coisa da
próxima vez que lá fosse, ou quando estivessem em casa dele, em Londres,
alinharia, mas já estavam ali em cima há tempo suficiente. A última coisa que
queria era despertar as suspeitas de alguém, pois esse simples pensamento
fazia-o arder por dentro e por fora com a mais completa, paralisante e
embaraçosa vergonha.
– Tenho de falar com ele – disse Sabrina numa voz engasgada, entornando
o vinho enquanto estendia a mão para o telefone. – Não posso continuar assim.
Preciso de lhe dizer aquilo que sinto.
– Ele já sabe o que sentes – disse June de maneira amável –, e já passa da
uma da manhã.
Estavam no quarto de Sabrina. Robert estava ao lado, no quarto de
hóspedes, onde dormia desde o dia em que Craig dissera a Sabrina que estava
tudo acabado. Três meses banido da sua própria cama era mais do que a
maioria dos homens conseguiria suportar, mas Robert escondia a sua própria
mágoa, esforçando-se por ser paciente e compreensivo e pedindo ajuda a June
sempre que necessário, pois quando Sabrina se embriagava, não o suportava
junto dela.
– Não importa a hora que é – mastigou Sabrina numa voz arrastada. – Sei
que ele deve estar acordado a pensar em mim. – A sua cara enrugou-se,
enquanto as lágrimas lhe voltavam a correr pelas faces já devastadas. – Não
consigo suportar pensar que ele também está a sofrer – lamentou-se. – Temos
de estar juntos. É errado estarmos assim separados um do outro. – Deitou mais
vinho no copo. – Sabes que ela fez chantagem para ele ficar com ela, não
sabes? – continuou, num tom inflamado. – Ameaçou contar aos miúdos tudo
sobre nós e virá-los contra ele, e o Craig não suportaria isso. O Nat e a Darcie
são tudo para ele. – Bebeu mais vinho e teve um soluço. – Costumávamos falar
de como seria maravilhoso se pudessem vir viver connosco – prosseguiu –,
como seríamos uma família, nós todos. A Annabelle dava-se tão bem com os
filhos dele. Já eram como irmãos, mas aquela cabra não o largou. –
Balançava-se com intensidade e, quando a sua cabeça pendeu para a frente,
começou novamente a chorar. – Ele nunca a amou de verdade – soluçou –, mas
foi só quando nos envolvemos que percebeu como o casamento deles era
superficial. O que existia entre nós… Eu nunca tinha sentido nada assim antes.
Nem ele. Não nos conseguíamos fartar um do outro.
Parecendo aperceber-se de novo de que tinha o telemóvel na mão, olhou-o
com os olhos turvos e, lembrando-se de repente do motivo por que pegara
nele, abriu a tampa. Marcou o número mal conseguindo ver o que fazia, devido
ao que já bebera e chorara, mas tudo o que June podia fazer era olhá-la
impotente, sabendo que teria uma reação violenta se tentasse detê-la.
– Sou eu – disse Sabrina numa voz empastada quando Craig atendeu. – Sei
que é tarde…
June ouviu-o dizer:
– Agora não posso falar contigo. Tens de parar de ligar para cá.
– Craig, por favor, ouve-me. Farei qualquer coisa…
– Não quero que faças qualquer coisa. Lamento…
– Por favor, vamos só falar – suplicou Sabrina. – É só isso que te peço.
– Já não há mais nada a dizer.
– Sei que ainda me amas. Só não podes dizer isso por ela estar aí.
– Tenho de desligar.
– Não! Não desligues. Craig, por favor. Pego no carro e vou até
Londres…
Então, ouviu-se a voz de Alicia ao telefone:
– Se voltares a ligar para cá, apresento queixa contra ti por assédio.
A seguir, a chamada desligou-se.
– Oh, meu Deus, não consigo suportar isto – disse Sabrina a ferver de
raiva, rolando pela cama com os joelhos contra o peito enquanto soluçava. –
Ela não o deixa falar comigo. Sabe o quanto significo para ele e tem medo que
ele a deixe. Se ele não a deixar, June, juro-te que me mato. Estou a falar a
sério, não posso continuar assim. Nada faz sentido sem ele.
Esperando que Robert não as estivesse a ouvir, June tentou confortá-la.
– Mãe? Que se passa?
Sobressaltada, June voltou-se e sentiu o coração doer-lhe de pena ao ver a
pobre Annabelle na ombreira da porta. Embora não fosse a primeira vez que
via a mãe em semelhante estado, era evidente que estava bastante assustada.
– Está tudo bem – disse June, aproximando-se dela. – Ela vai ficar bem.
– Não vou nada – disse Sabrina numa voz sufocada. – Nada vai ficar bem
até estarmos de novo juntos.
Annabelle olhou para June com uma expressão confundida.
– Ela está a falar de quem? – perguntou.
– De ninguém – respondeu June, tentando levá-la para fora do quarto.
– Estou a morrer – disse Sabrina arquejante, deitada na cama. – O meu
coração está a desfazer-se e ninguém nesta casa se importa.
– Sabrina – disse June bruscamente, na esperança de a fazer parar.
– Eu importo-me, mãe – disse Annabelle a tremer.
– Vai-te embora – gritou Sabrina. – Não te quero aqui.
– Ela bebeu de mais – sussurrou June para Annabelle, que começava a
chorar. – Anda, vou-te meter na cama.
– Ela é mesmo estúpida, a portar-se sempre assim – soluçou Annabelle,
enquanto June lhe aconchegava os lençóis. – Não devia beber álcool, porque
diz coisas horríveis e magoa as pessoas.
– Eu sei – disse June baixinho –, mas tens de perceber que ela não fala a
sério.
– Seja como for, não me importa, porque tenho os meus amigos e o resto
das pessoas.
– E o Robert – lembrou June.
– Sim, ele também.
Depois de lhe dar um beijo na testa, June voltou ao quarto de Sabrina e
encontrou-a de novo ao telefone com Craig.
– Se não te encontrares comigo, juro que me mato – exclamou Sabrina.
June não conseguiu ouvir a resposta dele, pelo que apenas podia imaginar
como Craig se sentia zangado, receoso ou culpado.
– Mato-me mesmo – gritou Sabrina. – Está bem, então diz que me amas. É
claro que podes. Não me interessa que ela esteja aí. Não! Não está nada
acabado, Craig. Nunca vai acabar e tu sabes bem, porque não é isso que
nenhum de nós quer.
Uma vez que June nunca falara sobre o relacionamento ou a rutura com
Craig, não fazia ideia do que este realmente sentia em relação a tudo. Tudo o
que sabia era que, até ao dia da sua morte, Sabrina nunca deixara de acreditar
que, de alguma maneira, voltariam a estar juntos.
– As últimas palavras que ele me disse – murmurou Sabrina, enquanto June
ia buscar café para ambas – foram “amo-te”. Nunca mais falei com ele depois
disso, mas ainda era como se fôssemos almas gémeas, duas metades da mesma
pessoa. Sei que, com ela, ele não tinha nada disso.
E, no entanto, foi com ela que ele ficou, pensava June, e se acreditas que
foi por causa dos filhos, desculpa, mas estás a enganar-te a ti mesma,
porque os filhos sobrevivem aos divórcios, e, se duas pessoas se amam tanto
como pareces pensar que tu e o Craig se amavam, nada os consegue
separar.
– Mas estás feliz com o Robert – disse em voz alta, no que era mais uma
declaração que uma pergunta.
Sabrina suspirou.
– Suponho que sim. Quer dizer, sim, é claro, mas não tem nada que ver
com aquilo que sentia pelo Craig. Nem chega lá perto.
– Talvez o tipo de relacionamento que tens com o Robert seja mais…
saudável?
Sabrina acenou afirmativamente com a cabeça, mas não parecia estar a
ouvir. A seguir, os seus olhos fixaram-se novamente em algo que escrevera
sobre a loja de Alicia.
– Tenho de a fazer sair de Holly Wood – disse com determinação. – Este
sítio não chega para nós as duas e, pela parte que me toca, ela tem de aprender
que não pode ter sempre tudo – disse, erguendo o olhar quando June lhe
passou uma chávena de café. – Pode ter conseguido tirar-me o Craig – disse,
numa voz frágil –, mas juro que a mato antes de a deixar fazer o mesmo com o
meu lar.
***
***
***
Quando acabou de contar a história, Alicia olhou Nat nos olhos e partiu-
lhe o coração ver como ficara abalado pela situação do pai. A consciência de
Nat tinha o mesmo nível de integridade – demasiado grande, diriam alguns,
para um advogado, mas eram cínicos que não tinham tido o privilégio de
conhecer Craig Carlyle.
– Então, era por isso que ele estava tão chateado comigo naquela noite –
disse Nat. – Ele estava a lidar com aquilo tudo?
E com muito mais, pensava Alicia.
– Mas a culpa não foi dele, pois não? – disse Nat.
Alicia abanou a cabeça
– A culpa era toda do incendiário, mas o teu pai sentiu-se responsável,
apesar de se ter limitado a fazer o seu trabalho.
Nat pensou uns instantes.
– Esse tipo agora está na cadeia? – perguntou.
– Sim. Apanhou prisão perpétua, mas o pai não teve nada a ver com o
julgamento. Limitou-se a dar todo o seu dinheiro à família das vítimas, e é
por isso que agora estamos aqui em apuros financeiros, pensou Alicia.
Contudo, pelo menos tinha os seus filhos, e dinheiro nenhum poderia
compensar a sua perda.
Nat acenou com a cabeça. Nos seus olhos, começou a brilhar uma pequena
luz, quando disse:
– Convenceste-o a mudar de ideias e a deixar-me ir ter com a Summer,
lembras-te?
Alicia sorriu.
– Mas tiveste na mesma de escrever aquele texto.
Nat revirou os olhos.
– Nem me fales. Demorei uma semana a redigir aquelas duas mil palavras
sobre o respeito. E ainda tive de lavar a camisa.
Alicia riu. Nat olhou para as mãos, que repousavam entre as da mãe.
– Ele era uma pessoa mesmo especial, não era? – disse baixinho.
Alicia pensou na traição, mas a seguir lembrou-se do seu olhar terno, do
orgulho e da alegria que sentia por causa dos filhos, e da sua integridade que
fora nele muito mais visível do que as fraquezas.
– Sim – sussurrou, ainda não habituada a falar do marido no passado –,
sim, era.
Capítulo Dez
– Aparentemente, as coisas mudaram desde o nosso tempo – comentou
Rachel secamente ao almoço, na terça-feira seguinte. – Isso parece-me mais
uma orgia do que uma festa. Aposto que a Jemima e o Bob McAllister não
sabiam nada do assunto.
– Tenho a certeza de que tens razão – concordou Alicia, partindo um
pedaço de pão. – Disseram-me que eles foram passar um mês à Grécia.
– Que sorte. Mas então, sabes se o Nat participou?
Alicia abanou a cabeça enquanto comia.
– Acho que se tivesse participado não me diria, mas, segundo ele, limitou-
se a beber uma cerveja e a conversar uns minutos com a Annabelle antes de se
vir embora. Parece que ela estava completamente pedrada.
– Mas porque é que isso não me surpreende?
– Segundo o Simon, aquele grupinho é conhecido por se meter neste tipo
de coisas, por isso, definitivamente, não quero a Annabelle nem perto da
Darcie. Penso que o Robert compreenderá, porque ele próprio já sugeriu que
poderia não ser boa ideia.
– Vais contar-lhe da festa?
Alicia suspirou.
– Não sei. Sinto que devia, mas o Nat não quer. Diz que toda a gente vai
saber que foi ele quem contou, e isso não será grande começo para ele aqui,
embora não esteja particularmente interessado em fazer parte daquele grupo.
– Hmm, é uma escolha difícil – murmurou Rachel, sorrindo para a
empregada que vinha trazer os seus pratos de gambas frescas.
Estavam na esplanada do Traveller’s, debaixo de um grande guarda-sol
azul, que protegia por completo a sua mesa do sol tórrido e espreitava para a
tranquila rua principal, do outro lado do muro.
– Estou contente por teres aparecido – disse Alicia, sacudindo o
guardanapo no ar para o desdobrar. – Estava a precisar de uma pausa – e, para
dizer a verdade, tenho uma novidade.
– Ah sim? – disse Rachel, toda ouvidos.
Alicia fez uma careta, enquanto sentia o coração apertar-se.
– Hoje de manhã recebi uma chamada do meu procurador em Londres. A
venda da casa está resolvida. Por isso – prosseguiu, erguendo o seu copo de
vinho –, vamos brindar à minha nova vida?
Deixando transparecer a preocupação que sentia enquanto estendia a mão
para a sua Coca-Cola, Rachel disse:
– Como estás a reagir?
Alicia pensou nas suas bonitas mobílias, nos quadros e nos tapetes que
Craig e ela tinham escolhido juntos, nas mesas, nos sofás, nas camas, nas
lindíssimas casas de banho e na cozinha de vanguarda, e sentiu que, nalgum
lugar profundo dentro dela, algo se despedaçava.
– Mal – admitiu –, mas grata por estar longe. Seria muito mais difícil se
ainda estivesse em Londres.
– É claro. Fizeste bem em partir antes de o acordo ser finalizado. Assim,
já te despediste de tudo. Como reagiu o Nat?
– Ainda não lhe disse. Sabe que o fecho do negócio está iminente, mas não
quero dar muita importância ao assunto. Se perguntar alguma coisa, digo-lhe,
caso contrário vou deixá-lo partir do princípio que se concretizou.
– Onde está ele hoje?
– Foi outra vez ao críquete. Não o posso obrigar a passar as férias inteiras
encafuado na loja, por isso estou eu a pintar o teto, como poderás notar pelo
meu cabelo.
Rachel sorriu diante das erráticas manchinhas brancas que salpicavam a
franja e o rabo de cavalo de Alicia.
– Continuando a falar da loja e da tua nova vida – disse, descascando uma
gamba –, o Dave tem feito umas pesquisas acerca das tuas licenças, etc., e
imprimiu o que encontrou até agora… – Limpando as mãos a um guardanapo
de papel, procurou dentro da sua mala e retirou um pequeno envelope. –
Basicamente, se queres fazer tudo dentro da legalidade, e não deves fazer as
coisas de outra forma, receio que não tenhas hipótese de abrir até daqui a,
pelo menos, seis semanas. E mesmo assim ainda podes ter de esperar até
poderes realmente trabalhar no teu estúdio.
À medida que o desespero se instalava, Alicia perdeu o apetite.
– Porque é que tem de ser sempre tudo difícil? – murmurou, frustrada.
– Pelo que pude perceber – continuou Rachel –, tens de começar por
submeter um pedido para alteração da finalidade do local, para o poderes
registar como uma loja de arte e artesanato. O pedido tem uma taxa de
trezentas e trinta e cinco libras, que tens de enviar juntamente com as
informações sobre quantos metros quadrados serão destinados ao espaço de
vendas e quantos ao ateliê. Tens de fazer uma lista do tipo de equipamento que
vais usar para fazer as esculturas, que é onde se podem verificar mais atrasos,
porque, como sabemos, fazes muito trabalho de soldadura, e para conseguir
autorização para isso tens de entrar em contacto com os organismos ligados à
proteção ambiental e à inspeção técnica de edifícios. O mais certo é que
precises também do OK dos bombeiros. Está tudo aí, e a maior parte das
coisas é uma ridícula perda de tempo, que é o normal ao lidar com as
autoridades a nível local.
O rosto de Alicia empalidecia progressivamente com a tensão.
– Contudo, a boa notícia é que – continuou Rachel num tom animado – o
Dave tem um contacto na secção de planeamento urbano, que vai tentar
acelerar as coisas, e o Dave logo vai passar por lá com os miúdos para te
ajudar a medir o espaço.
Alicia olhou para Rachel, mal ouvindo o que esta dizia.
– Como é que eu fui tão estúpida? – disse. – Porque não me apercebi de
que seria necessário passar por estes procedimentos todos? Sou como uma
imbecil cabeça de vento que pensa que pode fazer qualquer coisa só porque
lhe parece boa ideia.
– Nunca fizeste nada disto, como poderias saber? – disse Rachel, num tom
protetor. – Além disso, não se pode esperar que alguém pense em tudo quando
está a passar pelos problemas que tu enfrentas.
Alicia continuava a parecer irritada consigo mesma.
– Vai tudo correr bem, garanto-te – disse Rachel com determinação. – Só
vai demorar um bocadinho mais do que tinhas pensado.
– Mas o tempo não está a jogar a meu favor. Tenho de começar a ganhar
dinheiro muito em breve, ou só Deus sabe o que faremos…
– OK, o Dave e eu falámos sobre isso… Já sei que provavelmente vais
dizer que não, mas ouve-me só…
– Não vou aceitar que me emprestes dinheiro. É a maneira mais rápida de
perder amigos.
– Não te vou propor emprestar-te dinheiro. Vou propor-te comprar uma
parte do teu negócio. Posso ser uma sócia não ativa, ou acionista, se quiseres,
e, quando começares a ter lucro, fico com uma percentagem. Entretanto, tens
algum capital para te aguentares.
Alicia, contudo, abanava a cabeça.
– É uma ótima oferta, mas sei como o mercado imobiliário vai mal
ultimamente, por isso, com o Dave a ganhar menos dinheiro…
– Ele tem seis propriedades alugadas nos arredores de Frome – lembrou
Rachel. – Na verdade, as casas para alugar estão a ter mais procura do que
nunca, por isso estamos muito longe de ter de viver apenas do meu salário.
– Fico feliz por saber, mas, de qualquer maneira, não posso aceitar o teu
dinheiro.
– Que vais fazer, então? OK, há os bancos, mas atualmente não há
garantias de que te emprestem o dinheiro de que precisas, e ainda tens de
pensar nos juros que vais pagar e no tempo que vão demorar a processar o teu
pedido de empréstimo. Tu própria o disseste, tempo é algo que não tens.
– Hei de arranjar alguma solução – disse Alicia. – Arranjo um emprego
qualquer. Precisas de uma rececionista? Ou talvez a Maggie precise de ajuda
aqui, no pub.
– Devias começar a trabalhar para aumentar o stock da loja – lembrou
Rachel. – De momento, só tens seis esculturas e, mesmo com a melhor vontade
do mundo, sabes que não se vendem propriamente como caramelos.
– Baixo os preços.
– Mesmo que faças isso, continuas a precisar de ter mais artigos para
vender, e para isso precisas de ocupar o teu tempo a criar e a procurar outros
artistas para promover – disse Rachel, erguendo o olhar para alguém atrás de
Alicia que lhe chamou a atenção.
– Quem é? – perguntou Alicia, olhando por cima do ombro.
– Não tenho a certeza – disse Rachel, sorrindo e acenando educadamente
na direção de um homem de boa aparência que acabara de entrar na esplanada.
– Sei que já o vi… Oh, é isso, ele levou o cão à clínica na semana
passada, tinha a pata ferida. Provavelmente, não me consegue identificar fora
dali. De todas as maneiras – continuou Rachel, retomando a conversa –, há
mais uma alternativa.
Alicia engoliu em seco.
– Se estás a falar do Robert, ele já se ofereceu para me ajudar e eu também
já recusei.
– Mas porquê?
– Porque não quero pensar em como aquela pega reagiria se descobrisse
que ele me tinha emprestado dinheiro, em especial para uma loja que ela está a
tentar impedir que eu abra. Não que me importasse de a fazer subir pelas
paredes, tu percebes, mas não quero transformar a vida do meu irmão num
completo inferno.
Compreendendo o ponto de vista da amiga, Rachel pegou no copo e bebeu
um gole.
– Então, sou eu ou a Santa Casa da Misericórdia – disse.
Alicia continuava a não dar mostras de ceder.
– Já te disse, hei de pensar em qualquer coisa – disse. – Entretanto, ainda
tenho algum dinheiro no banco, e um plafond de cinco mil libras que o banco
ainda não viu razões para cancelar, graças a Deus. Deve dar para nos manter
durante algum tempo e para comprar as coisas que o Nat e a Darcie precisam
para a escola. Até pode dar para comprar alguns materiais para começar a
trabalhar em joalharia, porque não vou poder soldar no antigo quarto de jogos.
– Alicia suspirou pesadamente, abanou a cabeça e olhou para a sua bebida. –
Sabes, estava mesmo a pensar que ia conseguir cumprir o meu prazo de
abertura no início de agosto – disse, rindo de maneira amarga. – Sei que não é
a Sabrina que faz as regras, mas não posso deixar de a culpar por isto.
– É verdade que ela parece ter ganhado o primeiro round – admitiu Rachel
–, mas isto ainda só está a começar e eu conheço-te, Alicia Carlyle. Vai ser
preciso mais do que umas burocracias e uma cabra com mais veneno que
miolos para te derrubar.
Alicia ergueu os olhos.
– Mas não vai ser nada agradável – disse.
– Não, porque esse adjetivo nunca se usa quando a tua cunhada está
envolvida.
Alicia exibiu um ténue sorriso.
– Na verdade, vi-a a sair da loja da aldeia ontem de manhã. Caminhou
para Holly Way como se aquilo fosse um desfile triunfal de uma pessoa só.
Era tão óbvio que esperava que eu estivesse a ver que até podia ter sido
cómico, se não fosse tão patético.
– Vais ter de estar face a face com ela, mais cedo ou mais tarde – disse
Rachel. – Já pensaste em como vais lidar com a situação?
– Acho que depende de onde ocorrer e em que circunstâncias. Mas tenho
de admitir que, quanto mais tempo passa, mais ansiosa fico. Só espero que a
situação não descambe numa discussão feia ou pior, porque se isso
acontecer… – Inspirou e abanou a cabeça devagar. – Só rezo a Deus que não
aconteça – concluiu Alicia, sem querer alongar-se mais.
Depois de acompanhar Rachel ao carro, estacionado em frente à igreja,
Alicia caminhou de volta pela rua principal com o espírito ensombrado pelo
pequeno envelope castanho que levava consigo. Independentemente do quanto
o contacto de Dave pudesse acelerar a sua candidatura, o senso comum dizia-
lhe que tinha de desistir por completo da ideia de abrir a loja em agosto,
porque simplesmente tal não ia acontecer. Em vez disso, teria de gastar o seu
tempo a andar para trás e para diante entre os diversos gabinetes da
administração pública local, para lhes levar o último documento inútil que se
tinham esquecido de pedir da última vez que lá fora, adaptando a sua
candidatura de modo a satisfazer alguém que, provavelmente, não percebia
nada do seu trabalho; ou gastá-lo-ia a esperar horas e horas à porta do
santuário privado de algum funcionário do planeamento, enquanto ele ou ela se
deleitavam no pouco poder que tinham sobre os meros mortais.
Com estes pensamentos sombrios às voltas na cabeça, intensificados por
aquilo que tinha vontade de fazer a Sabrina, Alicia demorou algum tempo a
dar-se conta de que havia um homem diante da loja, a olhar pela janela. A
irritação agudizou a dor que sentia na cabeça. Seria possível que algum
funcionário da câmara já se tivesse lembrado de passar por lá, sem qualquer
marcação? Seria mesmo típico de Sabrina, com todos os seus contactos,
conseguir convencê-los a fazer aquilo, e, não estando com disposição para
lidar com o estranho educadamente, Alicia sentiu-se seriamente tentada a dar
meia-volta e a voltar para casa. No entanto, mais de perto, os calções caqui e
o polo branco de aspeto caro combinados com o cabelo prateado, que lhe
dava um ar definitivamente distinto, faziam o desconhecido destoar da imagem
que tinha dos abelhudos dos serviços municipais.
Protegendo os olhos do sol com a mão enquanto se aproximava, Alicia
disse:
– Posso ajudar?
Quando o homem se voltou para ela, Alicia reparou no notável contraste
entre as suas sobrancelhas negras e o cabelo de tom muito mais claro. A pele
do seu rosto estava bronzeada, o que fez os seus dentes parecerem mais
brancos quando sorriu de uma forma que transformou a sua expressão séria.
– Olá – disse o homem. – Estou à procura da Alicia Carlyle. Disseram-me
que a poderia encontrar aqui, mas parece que isto está fechado.
Apercebendo-se de súbito de que aquele era o homem que Rachel
reconhecera no pub, e experimentando uma sensação de estranheza, como se
também ela o conhecesse de algum lado, Alicia disse:
– Sou eu. Por favor, não me diga que tínhamos algo marcado e me esqueci.
O desconhecido sorriu de uma forma que lhe adensou as rugas em torno
dos olhos azuis-escuros, e Alicia perguntou a si própria se não estaria muito
mais próximo dos quarenta que dos cinquenta que inicialmente lhe atribuíra.
– Chamo-me Cameron Mitchell – disse, estendendo-lhe a mão.
Alicia engoliu em seco, esforçando-se por não parecer demasiado
desajeitada quando estendeu também a mão para o cumprimentar. Agora já não
tinha dificuldades em reconhecê-lo, pois qualquer pessoa do seu círculo sabia
exatamente quem ele era. Na sua qualidade de crítico e negociante de arte
altamente respeitado, Cameron Mitchell lançara vários talentos de renome.
Também deitara por terra a ascensão de outros artistas, sendo por isso olhado
com algum pavor por desconhecidos como ela, que ainda aspiravam a ser
descobertos. Mas que diabos fazia ele ali? Que garrafa esfregara ela para que
aquela espécie de génio se apresentasse na aldeia, no preciso dia em que, em
Londres, os seus sonhos eram vendidos por um agente imobiliário, ao passo
que no Somerset os via asfixiados pelos regulamentos municipais?
– Parece que temos uma amiga comum, a Antonia Bassingham – explicou o
homem. – A Antonia pediu-me para lhe vir dizer olá da parte dela, se
conseguisse dar consigo.
Alicia quase deixou cair o queixo. Perdera a conta das vezes em que
praticamente suplicara a Antonia que a apresentasse àquele homem, mas
Antonia, uma das anfitriãs mais famosas de Londres reconhecida pela sua
destreza em cultivar contactos sociais, nunca o fizera. Agora, de repente, ali
estava ele à porta dela – e logo em Holly Wood, de entre todos os lugares do
mundo!
– Então, olá – disse Cameron, como se Antonia ali estivesse, o que os fez
sorrir a ambos. – Prazer em conhecê-la.
– O prazer é meu – disse Alicia, fazendo um gesto desajeitado na direção
da loja. – A Antonia explicou-lhe…? Como pode ver, ainda não estamos
abertos…
– Não se preocupe – respondeu ele –, ela avisou-me de que,
provavelmente, a loja ainda não estaria em pleno funcionamento, mas, para
dizer a verdade, não estou aqui por motivos profissionais. Isto não quer dizer
que não gostasse de ver o seu trabalho – acrescentou atenciosamente –, mas é
que estou a pensar comprar uma casa algures nesta zona e a Antonia disse-me
que a Alicia era daqui e, assim sendo, talvez me pudesse dar algumas
indicações.
Apanhada de surpresa pelo carácter inesperado daquilo, mas
imediatamente grata pela oportunidade de ajudar alguém que, se quisesse,
poderia fazer muito por ela, Alicia disse:
– Por coincidência, acabei de saber que, nas próximas semanas, vou ter
mais tempo disponível do que imaginava, por isso terei todo o gosto em ajudá-
lo. Anda à procura de algum sítio em particular? Onde está alojado?
– Uns amigos simpáticos emprestaram-me uma casa durante o verão. Fica
em Wyke Champflower, conhece?
– Sim, é claro. É um sítio muito bonito.
Cameron acenou com a cabeça.
– Sim, pelo menos o que resta dele. Umas quantas casas desordenadas e
uma quinta de laticínios onde fazem queijo, tanto quanto pude ver… Mas é
disto que estou à procura – de um típico estilo rural à inglesa.
Alicia riu.
– É americano? – Não se lembrava de se ter apercebido que Cameron
falava com sotaque americano sempre que o ouvira na rádio ou na TV, mas
agora conseguia notar.
– Meio americano, por parte da mãe – respondeu ele. – O meu pai é
escocês e eu nasci em França, mas isso foi só porque estava cheio de pressa
de vir ao mundo. Por outras palavras, pus um fim brusco a umas férias idílicas
saltando cá para fora cinco semanas antes do tempo.
Alicia disse com ironia:
– E é por isso que agora tem o hábito de aparecer de surpresa?
Os olhos de Cameron brilharam divertidos.
– Parece que sim – confessou. – Desculpe, acho que devia ter ligado
primeiro, mas está um dia tão bonito que resolvi sair para explorar um pouco a
zona, e, quando dei comigo por estes lados, lembrei-me de que a Antonia me
tinha falado de si. Ela disse que acabou de se mudar para cá, não é verdade?
Alicia acenou afirmativamente, sentindo toda a alegria esfumar-se do seu
sorriso.
– O meu marido faleceu há alguns meses – disse – e não podíamos
continuar a… – Alicia deteve-se. O homem não precisava de saber a história
da vida dela. – Quer entrar? – sugeriu, agarrando nas chaves da carteira. –
Posso oferecer-lhe um chá, ou talvez ainda haja limonada fresca no frigorífico,
se preferir algo mais frio. É feita por alguém de cá, que a vende na loja da
aldeia. É muito boa.
– Então, vou experimentar – respondeu Cameron, seguindo-a para o
interior.
– Como pode ver, ainda estamos a terminar tudo – disse Alicia em jeito de
desculpa, enquanto o homem observava o espaço em seu redor. E quase
estremeceu ao recordar a sua moderna e brilhante galeria em Londres, onde
estivera há uns anos numa exposição; mas agora não se atrevia a mencionar o
facto, porque não conseguia recordar o nome do artista promovido por
Cameron nessa ocasião.
– Quando planeia abrir? – perguntou Cameron, enquanto Alicia caminhava
pelo estúdio ainda cheio de caixas, vassouras, produtos de limpeza e o seu
equipamento ali depositado sem cerimónias.
– Se me tivesse perguntado isso ontem – respondeu Alicia por cima do
ombro –, dar-lhe-ia uma resposta muito diferente. Como as coisas estão agora,
já me sentirei com sorte se conseguir abrir ainda nesta década.
Cameron caminhou até ao arco que separava os dois espaços, detendo-se
ali.
– O que a está a atrasar?
– Dizer que a culpa é dos regulamentos municipais não andará muito longe
da verdade – respondeu, lavando dois copos.
Cameron fez uma careta.
– Dantes, aqui era a loja solidária da minha mãe – explicou. – Agora quero
transformá-la numa coisa diferente e, como uma tonta, não pensei nos
regulamentos em termos de ambiente, saúde, segurança, nas condições do
edifício, nas licenças comerciais, enfim, nos quilómetros de papelada
necessários para abrir um negócio. Mas não veio até aqui para me ouvir
queixar-me da burocracia, o que é uma pena, porque neste momento está
mesmo a apetecer-me despejar o saco. Contudo, vou poupá-lo, se prometer vir
à inauguração, quando finalmente puder abrir. Se estiver pela zona, é claro –
acrescentou Alicia apressadamente, embaraçada pela ousadia do seu convite.
– Não estou à espera que venha de Londres…
– Londres não é assim tão longe, e não vejo razão para não vir – disse
Cameron. – Se na altura já tiver encontrado casa, pode ser uma maneira de
conhecer alguns dos vizinhos.
– Mas não conhece mesmo ninguém? – perguntou Alicia, passando-lhe um
copo de limonada de sabor não muito intenso.
Cameron sorriu e fez um brinde a Alicia antes de beber um gole.
– Hmm, é muito boa – concordou.
Alicia piscou os olhos de uma forma que o fez rir.
– OK, é altura de contar a verdade – disse Cameron. – Há cinco ou seis
anos que venho para esta zona, e, normalmente, fico na casa de uns amigos, do
outro lado de Bruton. Os Carmichaels, conhece?
Alicia abanou a cabeça
– Acho que não. Porquê, devia?
– Apenas porque a Antonia tem um parentesco qualquer com a Felicity
Carmichael, e como a Alicia e a Antonia são amigas… Mas adiante, devo
provavelmente conhecer um punhado de pessoas através deles, mas a maior
parte está a passar o verão fora e, além disso, são pessoas bastante
aficionadas aos cavalos, o que não é realmente o meu género. Desde já peço
desculpas se também gosta de equitação.
Alicia abanou a mão num gesto de rejeição.
– Tenho pavor de cavalos – garantiu. – A minha filha, ao contrário, diz que
é a única coisa boa de nos mudarmos para cá, poder aprender a montar e ter o
seu próprio cavalo. Ainda estou a tentar arranjar coragem para lhe dizer que
não é provável que isso aconteça. Mas quando arranjar, já vai saber, porque
vai ouvir a gritaria dela em Wyke.
Cameron parecia divertido.
– Que idade tem ela?
– Doze. Também tenho um filho com dezassete, que está a encarar a
mudança com muito estoicismo, pelo menos até agora.
– Mas, então, que pretende exatamente fazer com a loja? – perguntou
Cameron, olhando de novo à sua volta.
Perguntando a si mesma se ele estava genuinamente interessado, ou só a
tentar ser educado, Alicia resolveu-se pela primeira hipótese e lançou-se
numa visita guiada acerca das futuras utilizações do espaço, depois de todos
os expositores, prateleiras e pedestais estarem montados nos respetivos
lugares, e de como esperava promover, igualmente, o trabalho de outros
artistas.
– Mas provavelmente coisas diferentes da escultura – disse –, para evitar
conflitos com o meu trabalho.
– A não ser que os estilos sejam completamente diferentes.
– É claro, mas já não me dedico muito à pintura, por isso pensei que
algumas obras abstratas, de pintores com talento, seriam uma ótima maneira de
encher as paredes e dar alguma visibilidade a artistas promissores.
– Já viu alguma coisa que lhe agrade?
Alicia abanou a cabeça.
– Só chegámos há dez dias e, até agora, temos concentrado as nossas
energias em pôr este sítio em condições. Como pode ver, ainda temos muito
que fazer. Quando chegar o momento certo, vou-me dedicar à procura dos
talentos locais, e depois coloco alguns anúncios em bibliotecas e nas lojas da
zona. E nos jornais também, se puder pagar, para informar o mundo da nossa
existência.
Parecendo achar o plano razoável, Cameron disse:
– Seria demasiado presunçoso da minha parte sugerir que combinássemos
uma busca de talentos com a minha procura de casa?
Controlando a custo o seu entusiasmo, Alicia disse:
– Gostaria imenso. Afinal, não consigo pensar em ninguém mais
qualificado do que o Cameron para descobrir um talento em desenvolvimento,
e posso imaginar o impacto que terá, sobre os meus futuros protegidos, ver
Cameron Mitchell bater-lhes à porta.
Ele sorria e começava a protestar.
– Não, a sério – insistiu Alicia –, sei o que eles pensam, porque eu própria
fiquei pasmada quando o vi. Para dizer a verdade, ainda estou. Está mesmo
aqui, ou isto é tudo um sonho?
– Se quiser, posso dar-lhe um beliscão – sugeriu ele –, mas se calhar não é
um comportamento muito cavalheiresco.
Alicia riu, apercebendo-se, com uma estranha sensação de leveza, de que
se estava a divertir. Talvez o copo de vinho ao almoço lhe tivesse subido à
cabeça, mas, mesmo que fosse isso, Cameron não se parecia nada com os
outros críticos de arte que conhecera. Em geral, eram pessoas extremamente
pomposas, que se compraziam em enaltecer a sua própria importância, e
demasiado exclusivas para repararem em alguém exterior ao seu pequeno
mundo elitista, ou se darem ao trabalho de ser agradáveis.
– Bem, acho que já lhe tomei tempo de mais – disse Cameron, pousando o
copo em cima da bancada de trabalho, já cheia de coisas amontoadas. – Antes
de ir embora, seria possível…
– Oh, não – protestou Alicia –, por favor, não me peça para lhe mostrar
alguma coisa agora. Ainda está tudo embalado, como veio nas mudanças, e
tem de ser exposto de maneira adequada, para conseguir o melhor efeito.
Desculpe, espero que não se importe? De certeza que, quando as vir, vai
detestar à mesma, mas pelo menos saberei que… – Alicia deteve-se quando
viu Cameron erguer as mãos.
– Compreendo perfeitamente – disse ele – e, para dizer a verdade, só ia
pedir-lhe se podia ir à casa de banho antes de partir.
Alicia sentiu-se corar enquanto desatava a rir.
– É ao fundo do pátio – disse, apontando para fora, com vontade de dar um
abraço com força ao tio de Rachel, Pete, por ter arrancado a velha sanita suja,
substituindo-a por um vistoso modelo amarelo que arranjara no… bem, já
sabia que não devia perguntar onde. OK, as paredes ainda não tinham sido
pintadas e, até agora, Pete ainda não conseguira aparecer com um lavatório da
mesma cor – ou de outra qualquer – para substituir o que caíra da parede. No
entanto, o importante era que o autoclismo funcionava maravilhosamente e o
pequeno cubículo de tijolo vermelho registara melhorias tão grandes desde a
altura em que tivera de forçar a porta para a abrir pela primeira vez, que não
ia perder tempo a sentir vergonha. Enquanto Cameron ziguezagueava por entre
a velha banheira para pássaros e um banco de madeira que Alicia estava a
lixar, esta pressionou as mãos contras as faces, ainda mal conseguindo
acreditar que aquele homem estivesse ali. Tinha vontade de agarrar no telefone
e ligar a Rachel, ou melhor ainda, de telefonar a Antonia a agradecer, mas isto
teria de esperar até ele se ir embora.
– Alicia? Estás aí? – perguntou Mimi em voz alta, da porta. – Ah, cá estás
– disse Mimi com um sorriso radioso, quando Alicia apareceu no arco. –
Reparei que a porta estava aberta e queria ter a certeza de que eras mesmo tu,
porque há pouco vi um homem a cirandar lá fora. Não lhe pude perguntar o
que andava aqui a fazer, porque me chegou uma encomenda. Viste-o? Pensei
que pudesse ser um amigo teu, porque estava muito bem vestido e era muito
atraente – disse Mimi piscando o olho. A seguir, a sua boca desenhou um “O”,
quando viu Cameron entrar de novo no estúdio. Pela expressão deste, era
claro que a ouvira.
– Oh, estou para aqui a tagarelar e tu acompanhada – disse Mimi,
começando a dirigir-se para a porta.
– Cameron, esta é a Mimi – disse Alicia, agarrando na mão de Mimi e
puxando-a para trás. – É dona da florista ao lado e conheço-a desde bebé.
Mimi, este é o Cameron Mitchell.
Duvidava que o nome dissesse alguma coisa à velha senhora, mas mesmo
assim gostava de o dizer. Sorrindo ao aproximar-se, Cameron disse:
– Tenho muito gosto em conhecê-la, Mimi. Estive a admirar os seus
arranjos ao passar.
Mimi corou de orgulho.
– É muito amável – respondeu, apertando-lhe a mão timidamente. – Tento
sempre fazer o melhor, e é agradável quando as pessoas reconhecem o meu
trabalho. Mas não vou interrompê-los mais. Tenho muito que fazer aqui ao
lado. O Pete vai passar por cá mais tarde – disse a Alicia – para instalar
aqueles canos de que vocês falaram.
– Estupendo – disse Alicia sorrindo, mas Mimi já avançava em direção à
porta.
– Acho que é altura de eu também ir embora – disse Cameron, olhando
para o relógio. – O Jasper deve estar a pensar no que me terá acontecido,
nunca saí por tanto tempo.
Alicia dirigiu-lhe um olhar interrogador.
– O Jasper é um cão – explicou Cameron. – Costuma ir para todo o lado
comigo, mas cortou a pata numa pedra no fim de semana e a veterinária achou
que ele precisava de repouso… Ah, foi ela que vi no pub antes. A veterinária.
Bem pensei que a tinha reconhecido. E era você que estava com ela?
Desculpe, só a vi de costas, mas o cabelo…
– Era eu – confirmou Alicia.
– O mundo é tão pequeno – disse ele em tom de brincadeira. – Aqui
estamos nós, e já temos duas pessoas em comum, a Antonia e a veterinária.
Quem sabe onde isto irá terminar?
Rindo, Alicia disse:
– Realmente, quem sabe?
Só quando viu Cameron atravessar para a elevação onde tinha estacionado
o carro, Alicia percebeu que não tinha o seu número. O seu primeiro instinto
foi correr atrás dele, mas Cameron sabia como entrar em contacto com ela,
pelo que, em vez de dar uma imagem demasiado ansiosa, optou por voltar para
a loja, sorrindo calorosamente para si mesma. Este inesperado empurrão para
o seu ânimo viera tão a calhar que Alicia queria acreditar que era a forma de a
vida lhe dizer que a sorte podia mudar. A vida não tinha de ser só perda e luta,
maridos que morrem cedo de mais e cunhadas que deviam estar no inferno. Às
vezes, aconteciam coisas boas, e Alicia não conseguia deixar de pensar que a
súbita e imprevista aparição de Cameron Mitchell era uma coisa muito boa.
– Annabelle, quero que me ajudes com isto, por favor – chamou Sabrina
do interior do quarto da filha. Atirando os lençóis para trás, ajoelhou-se para
inspecionar debaixo da cama. – Meu Deus, há quanto tempo está isto aqui? –
perguntou, curvando os lábios numa expressão de repulsa enquanto arrastava
de debaixo da cama um prato de comida coberta de bolor, com um garfo e uma
faca espetados e tufos de cotão agarrados.
– Deixa isso – disse Annabelle bruscamente, de dentro da casa de banho.
– Este sítio é uma pocilga e quero-o limpo hoje, agora – disse Sabrina
numa voz dura. – A Rhoda recusa-se a vir limpar aqui, e não a posso culpar.
– Gosto de tudo como está, e é o meu quarto, por isso, aqui sou eu que
mando – retorquiu Annabelle.
Decidindo não se envolver numa discussão tão inútil, Sabrina continuou a
apanhar do chão roupas e sapatos, revistas velhas, lenços de papel usados,
artigos de maquilhagem, os comandos das infindáveis engenhocas eletrónicas
da filha e um sortido repugnante de sacos de doces e batatas fritas.
– Mas nunca deitas nada disto ao lixo? – perguntou. – Nem nunca pões
nada na máquina de lavar? – acrescentou, erguendo um par de jeans brancos
muito engelhados e sujos com marcas de batom e sabe-se lá que mais.
– Não. Quando preciso, compro outros – respondeu Annabelle,
aparecendo no quarto vestida com um fino robe de seda. Tinha uma toalha na
cabeça e bolinhas de algodão entre os dedos, enquanto esperava que o verniz
vermelho secasse.
– Não tens piada – disse Sabrina.
– Quem diz que estava a brincar?
Olhando para ela, tão jovem, bonita e insuportavelmente presumida,
Sabrina esteve prestes a lançar-se noutro sermão sobre a forma como
Annabelle a desafiara indo à festa no sábado, quando uma deprimente
sensação de cansaço a penetrou até aos ossos. Acabariam apenas a gritar uma
com a outra, e já tinham feito isto tantas vezes nos últimos dias que não o
conseguiria suportar novamente. Então, voltou-se, puxou a roupa da cama e
começou a fazer um monte com os lençóis.
– Tenho um bocado de medo do que possa encontrar aqui – comentou com
um ar sério.
– Mas agora já podes sair? – disse Annabelle, sentando-se em frente ao
espelho. – Preciso da minha privacidade… Oh não, espera, podes ajudar-me a
fazer a depilação? Sozinha não consigo, dói-me demasiado.
– Devias vir comigo ao salão de beleza em Babington e fazer isso como
deve ser – disse Sabrina. – Vou lá na sexta-feira. Posso marcar para ti, se
quiseres.
– Fixe. Vais fazer depilação brasileira?
Sabrina ergueu as sobrancelhas.
– É possível.
Annabelle sorriu para a mãe no espelho.
– Aposto que o Robert fica mesmo com tusa quando tu…
– Podes parar com isso imediatamente – interrompeu-a Sabrina. – Não vou
discutir a minha vida amorosa contigo, sobretudo com esse tipo de linguagem.
Annabelle encolheu os ombros.
– Como queiras – e, despindo a toalha, começou a escovar o cabelo.
– Podes emprestar-me o teu produto da Leonor Greyl? – perguntou. – Põe
o teu cabelo mesmo suave e brilhante.
– Se fosses a algum sítio especial, até diria que sim, mas é demasiado caro
para usar todos os dias, sobretudo com este calor, quando, de qualquer
maneira, vais usar o cabelo preso.
Revirando os olhos, Annabelle encheu a mão com uma grande bola de
musse capilar John Frieda e começou a aplicá-la nos cabelos.
– O telefone está a tocar – disse.
– Obrigada, estou a ouvir. Ora bem, vou levar este monte lá para baixo,
para a lavandaria – disse Sabrina, apanhando do chão a toalha que Annabelle
largara e arremessando-a para cima dos lençóis. – Quero este quarto limpo
como deve ser antes de saíres, ou não sais de todo.
Esperando até a porta se fechar, Annabelle mastigou entre dentes:
– Desanda – e começou à procura do seu telemóvel.
– Olá – disse quando Georgie atendeu. – Também estás a ter uma quarta-
feira deprimente?
– Um bocado – respondeu Georgie numa voz pesarosa. – E tu?
– O mesmo. Precisamos de mais ecstasy.
– Ou erva, ou qualquer outra coisa.
– Ainda te apetece ir ao Clark’s Village logo? Fazer compras costuma
animar-nos.
– OK. Na verdade, preciso de comprar qualquer coisa para a rave porque
não tenho mesmo nada para vestir.
– Eu também não. Mas como vamos até lá?
– Vou perguntar à minha mãe se nos leva, se a tua te puder trazer até cá.
Oh, a propósito, os meus pais vão estar fora durante todo o fim de semana da
rave, por isso podes ficar cá, se quiseres.
– Bestial. Conta comigo, mas não deixes a minha mãe perceber que a tua
não vai estar, ou ela vai-se começar a passar outra vez. Desde que voltei no
domingo que ela não para de me chatear por ter ido à festa no sábado à noite, a
horrorosa. Dava-lhe uma coisa se soubesse que vou à rave.
Os olhos de Annabelle fecharam-se à medida que se enchiam subitamente
de lágrimas. Porque é que toda a gente passava a vida a atacá-la? Não era
justo, não fazia nada que todas as suas amigas não fizessem, mas a sua mãe,
uma maldisposta obcecada pelo controlo e de espírito fechado, que na
realidade não se importava com nada, tinha de continuar a pregar-lhe
sermões como se estivesse a falar com alguma delinquente. Jesus, metia-lhe
nojo.
– Para falar a sério, estava a pensar – disse numa voz trémula – que podia
ligar ao Nat para lhe perguntar o que vai fazer logo à noite.
– Já arranjaste o número dele?
– Posso ligar-lhe para casa. Se for a Alicia a atender, desligo.
– Sei que não vais gostar de ouvir isto – disse, numa voz que indicava as
dúvidas que sentia –, mas não acho mesmo que ele esteja interessado. Quer
dizer, na festa ele teve uma oportunidade perfeita…
– Sim, e se tivéssemos estado sozinhos…
– Ele podia ter-te levado para algum lado…
– A casa não era dele, por isso…
– Aguenta aí um minuto – interrompeu-a Georgie e, tapando o bocal do
telefone, gritou: – Estou cá em cima. OK. Desço num instante. – Depois,
retomando a conversa com Annabelle, disse: – Que estavas a dizer?
– Estávamos a falar do Nat, e digo-te que ele está interessado. Caso
contrário porque teria vindo falar comigo na festa?
Com um suspiro, Georgie disse:
– Adiante. Depois diz-me o que aconteceu se lhe chegares a ligar, senão
encontramo-nos aqui às duas.
Depois de desligar, Annabelle atirou o telemóvel para cima da cama e saiu
para o patamar.
– Mãe! – gritou.
Não houve resposta.
– Mãe…
– Estou ao telefone – disse Sabrina, aparecendo no átrio.
– Desculpa. Podes dar-me boleia para casa da Georgie dentro de uma
hora?
– Espera – disse Sabrina para a pessoa com quem falava ao telefone. –
Dou, desde que o teu quarto esteja limpo – disse.
– Argh – disse Annabelle num tom sarcástico e, voltando-se, bateu a porta
com força e começou a enfiar tudo o que se encontrava no chão dentro de
armários, debaixo da cama ou atrás das cortinas. A seguir, abrindo uma gaveta,
agarrou em todos os seus perfumes e artigos de maquilhagem de cima do
penteador e enfiou-os lá dentro, no emaranhado de roupa interior, antes de
ligar o secador para varrer o pó e resíduos restantes para o chão, longe da
vista. Depois, secou o cabelo, com menos cuidado do que o habitual porque,
como a mãe fizera notar, ultimamente usava-o muitas vezes preso, delineou os
olhos de preto, em cima e em baixo, e puxou do fundo do roupeiro um vestido
azul curto que apertava com fitas atrás do pescoço. Por último, atou umas
sandálias romanas em redor dos tornozelos e parou em frente do grande
espelho para admirar o seu reflexo.
Não estava mal. Parecia ter pelo menos dezoito anos, e o seu bronzeado
começava realmente a notar-se. Para ver o contraste com as partes de pele não
bronzeada, levantou a bainha do vestido e sentiu uma forte pontada de malícia
ao contemplar a sua própria nudez. Adoraria sair sem calcinhas, ia dar-lhe um
gozo tão grande! Imaginem só, se o vento soprasse ao passar um camião, ou se
ela se inclinasse num café e houvesse algum tipo sentado atrás dela… Teria
uma visão e peras, e ela podia fingir que não fazia ideia de que a estavam a
observar.
Resolvendo enfiar uma tanga na mala, para o caso de mais tarde lhe
apetecer vestir roupa interior, caiu pesadamente sobre a cama e agarrou no
telemóvel. Enquanto percorria os números, a vontade de chorar dominou-a de
novo, tal como tinha acontecido durante toda a manhã e, enterrando a cabeça
na almofada, começou a soluçar. Desejava que Robert voltasse para casa e
fizesse algo para que ficasse tudo bem de novo. A sua vida era horrível, estava
tudo mal. Queria fugir com Nat, cujo pai morrera, injustamente. Nat não
merecia perder o pai, ninguém merecia, e, à medida que se sentia invadida por
ondas adicionais de um desespero angustiante, enterrou o rosto na almofada
com mais força. Detestava ser rejeitada. Era mesmo horrível, mas ela não
tinha a certeza de que fora isso que acontecera no sábado à noite, porque não
se conseguia lembrar corretamente. Sabia que tinha dito algo sobre o pai dele,
mas estava apenas a tentar ser agradável. De qualquer forma, sabia que Nat a
desejava a sério, estava apenas a fazer-se difícil ou a fingir ser fiel àquela
namorada estúpida. Logo que o apanhasse sozinho, sabia que tudo se ia passar
como desejava, porque os homens eram todos iguais – tudo o que queriam era
sexo e, uma vez que Nat estivera mortinho por ir para a cama com ela no
passado, não conseguia ver nenhuma razão para não o querer agora.
Finalmente, agarrando de novo no telemóvel, limpou as lágrimas com uma
mão e, depois de ter a certeza de que tinha varrido um pouco da tristeza de
dentro dela, marcou o número da casa de Nat.
Capítulo Onze
– Podes atender? – disse Alicia, quando o telefone fixo começou a tocar na
cozinha; estava a cortar fruta para fazer uma salada e tinha as mãos pegajosas
com sumo de laranja e morango.
Inclinando a cadeira para longe da mesa onde estava a mandar emails no
portátil de Alicia, Nat estendeu a mão para o telefone sem fios pousado sobre
a bancada atrás dele.
– Estou, fala o assistente pessoal de Alicia Carlyle – disse.
Quando Alicia se voltou, Nat piscou-lhe o olho, mas, a seguir, o seu bom
humor esmoreceu ao ouvir a voz da pessoa do outro lado da linha.
– Olá. É a Annabelle.
Nat não disse nada. Annabelle inspirou fundo.
– Estava a pensar se estarias livre logo à noite, pensei que talvez
pudéssemos…
– Não estou – interrompeu-a ele.
– … jogar às damas.
Nat permaneceu em silêncio.
– Então, não queres mudar de planos? – disse Annabelle numa voz rouca.
– Não – respondeu Nat. – Obrigada por ligares – e desligou.
– Quem era? – perguntou Alicia, indo lavar as mãos.
Nat encolheu os ombros.
– Era uma chamada de telemarketing. Ligaste ao Jolyon para perguntar a
hora do jantar, na sexta?
– Sim, vamo-nos encontrar às oito, por isso temos de sair daqui por volta
das seis e meia. Ainda é um bom bocado até Huntstrete.
– Posso guiar, se quiseres beber – ofereceu-se Nat.
Alicia sorriu e deu-lhe um beijo na cabeça. O filho não podia imaginar o
quanto precisaria de uma bebida para conseguir ultrapassar o facto de
poderem estar sentados na mesma mesa que o pai partilhara com Sabrina, ou a
olhar para jardins onde podiam ter passeado juntos. O mais provável, porém,
era que Craig e Sabrina tivessem passado o tempo todo numa das suites de
luxo, rebolando na cama, cobertos de suor, arquejantes de desejo, sem se
conseguirem fartar um do outro, nunca pensando em ninguém senão neles
mesmos.
– Mãe?
– Sim?
Alicia manteve as costas viradas para Nat enquanto limpava a superfície
da bancada.
– Estás bem?
– Sim, estou ótima.
Passaram-se alguns segundos.
– Queres dizer alguma coisa neste email para o avô?
– Está bem – disse –, diz-me quando acabares de escrever.
Uma vez que o pai de Craig estava agora inválido, incapaz de viajar para
longe, após a morte de Craig passou a ser da responsabilidade dela levar os
filhos a visitá-lo. Durante os primeiros dois meses tinham ido todas as
semanas, mas depois, por algum motivo, o velho pareceu começar a culpar
Alicia pela morte precoce do filho, tornando as suas visitas difíceis e
dolorosas. Assim, o contacto limitava-se agora aos emails e a alguns
telefonemas ocasionais, principalmente com Nat e Darcie, raramente com
Alicia, o que a perturbava mais do que queria admitir, pois era como perder
outra parte de Craig.
Quando o telefone tocou de novo, Nat disse:
– Podes atender desta vez? Detesto a insistência daquelas pessoas.
Secando as mãos, Alicia pegou no telefone sem fios.
– Estou? – disse, enquanto voltava a pendurar o pano de cozinha.
– Alicia, querida, é a Antonia. Recebi a tua mensagem. Fico muito contente
por o Cameron te ter ido visitar. Ele é o máximo, não é?
– Sim, hãã… – Alicia lançou a Nat um olhar ansioso e dirigiu-se para a
sala de estar. – Foi muito simpático da tua parte pô-lo em contacto comigo.
– Oh, não custou nada. Temos de ajudar os amigos nos tempos difíceis.
Como vão as coisas por aí, querida? É muito deprimente?
– Não diria isso. É apenas diferente.
Antonia foi percorrida por um arrepio audível.
– Receio que o campo não seja mesmo para mim – disse –, mas,
aparentemente, o Cameron adora. Espero mesmo que vocês os dois se deem
bem. Tenho a certeza absoluta de que vão dar.
– Estava aqui a pensar – disse Alicia, baixando a voz na esperança de que
Nat não a pudesse ouvir –, se ele seria, sabes, gay?
Antonia rebentou a rir.
– Oh, Alicia, és tão engraçada – exclamou. – É bom saber que não
perdeste o teu sentido de humor.
– Na verdade, estava…
– Oh, querida, desculpa, tenho de ir, acabou de entrar alguém, mas liga-me
quando quiseres. Gosto sempre de te ouvir. Beijinho, beijinho – e desligou,
deixando Alicia com um vago sentimento de ridículo e uma forte esperança de
que a sua pergunta não chegasse aos ouvidos de Cameron Mitchell que, na
verdade, não lhe parecera gay, mas considerando a profissão dele…
– Quem era? – perguntou Nat, quando a mãe voltou para a cozinha.
– Oh, só uma amiga de Londres. A Antonia. És capaz de te lembrar dela.
Nat encolheu os ombros.
– Ela foi a alguma das tuas exposições?
– Para dizer a verdade, foi a todas.
Houvera apenas três, todas realizadas numa pequena galeria em Fulham,
que costumava ser uma garagem até o negociante de arte a ter transformado
numa salle d’exposition, como gostava de lhe chamar, para começar o seu
negócio. Para Alicia, a melhor parte das exposições consistira,
invariavelmente, no envolvimento de Craig e dos miúdos na sua organização,
fotografando as esculturas, projetando cartazes, contribuindo com ideias para
publicidade, compilando listas de endereços e ajudando a transportar tudo do
estúdio para a galeria. Conseguira mesmo vender algumas peças durante a
primeira e segunda exposições, embora suspeitasse de que Craig poderia estar
por trás de, pelo menos, uma das aquisições, uma vez que a peça fora
comprada pelo seu colega Oliver Mendenhall. No entanto, após a última
exposição, recebera uma encomenda de uma amiga americana de Antonia, uma
cliente genuína, e a carta que a mulher lhe enviara quando a bailarina chegou
aos Estados Unidos estava tão repleta de agradecimentos e elogios que,
durante semanas, a sua confiança estivera nos píncaros.
– Então – disse Nat, sem parar de escrever os seus emails –, ele é gay?
Alicia virou-se para ele.
– Não estava à escuta – disse Nat –, mas também não sou surdo.
– Nem sequer sabes de quem eu estava a falar.
– Não, mas imagino que fosse do tipo que apareceu na loja ontem. A Mimi
disse-me.
Obrigadinha, Mimi. Provavelmente, dissera também a Nat como Cameron
era um homem atraente, coroando a informação com uma piscadela entendida.
Decidindo que a única forma de lidar com a situação era ser absolutamente
honesta, Alicia disse:
– É um negociante de arte que poderá ajudar bastante o nosso pequeno
empreendimento a levantar voo. Em troca, vou ajudá-lo a encontrar casa.
Nat moveu o rato sobre a almofada.
– Sim, vais mesmo – murmurou.
– Que significa isso?
– Nada.
– Nathan, se há algo que queres dizer…
– Não tenho nada a ver com o que tu fazes – replicou secamente –, mas o
pai só morreu há seis meses, por isso, não achas que é um bocado cedo de
mais para te envolveres com outra pessoa?
Fechando os olhos enquanto ela própria se encolhia diante da ideia, disse:
– Não foi por isso que ele veio aqui. Não, ouve – disse, interrompendo
Nat quando este começava a contestá-la –, tens razão, é demasiado cedo para
começar a pensar nessas coisas, e juro-te que não penso, por isso não tens
nada com que te preocupar.
Nat continuou a escrever no computador e Alicia podia sentir a sua
frustração acumulada. Sabia que o filho tinha vontade de gritar com ela por ter
sequer falado com outro homem, quando o seu pai era a pessoa mais
importante no mundo e ninguém, ninguém poderia alguma vez tomar o seu
lugar.
– Então, achas que algum dia te voltarás a casar? – perguntou Nat
abruptamente.
– Não – respondeu Alicia. – Quer dizer, não consigo ver isso a acontecer.
Na verdade, não me consigo ver a amar outra pessoa que não o teu pai.
Uma vez que era verdade, e era sem dúvida o que o filho queria ouvir,
Alicia não teve problema nenhum em dizer estas frases. Contudo, só Deus
sabia como, por vezes, desejava que a traição de Craig tivesse destruído não
só o amor como a confiança, pois, assim, ser-lhe-ia muito mais fácil lidar
tanto com a perda como com o receio angustiante da razão pela qual o marido
andara tão stressado nos últimos meses de vida.
A expressão de Nat permanecia tensa quando fechou o portátil.
– Nat, por favor, não vamos ficar zangados por algo que nem sequer existe
– implorou, quando o filho se começou a levantar da mesa.
– Não estou zangado – respondeu. – Aquilo que fazes é assunto teu.
– Onde vais?
– Buscar uma bebida ao frigorífico. Posso?
Sorrindo ao acenar com a cabeça, Alicia resolveu que era provavelmente
melhor não voltar a tocar no assunto de momento, e pegou numa panela para
pôr alguns ovos a cozer.
– Faço uma salada niçoise para o almoço? – perguntou.
– Fixe – respondeu Nat. Após uns instantes, acrescentou: – É a preferida
da Darcie.
Aquelas cinco palavrinhas soavam como um ramo de oliveira, e foi assim
que Alicia decidiu encará-las.
– Estou mesmo a começar a sentir a falta dela. Tu não? – perguntou.
– Isto está muito calmo, sem ela aqui a mandar em nós – concordou Nat. –
Falaste com ela esta manhã? Não ligou enquanto estavas a tomar duche?
– Sim, liguei-lhe de volta a caminho da loja. Ela tinha uns belos
comentários a fazer acerca das licenças de que preciso para abrir a loja.
Suponho que lhe contaste tudo.
Nat acenou afirmativamente.
– Acho que ela não percebe muito bem o que se está a passar e ficou
furiosa por eu perceber.
Alicia arqueou as sobrancelhas.
– Vamos arranjar as licenças – garantiu-lhe, – por isso não quero que te
preocupes com o assunto. Só vai demorar um bocado mais do que
pensávamos.
– E como vais arranjar dinheiro até lá?
Apanhada de surpresa, Alicia voltou-se para olhar para ele.
– Ainda não estamos falidos – disse. – OK, a nossa vida não vai ser como
dantes, mas vamos conseguir sobreviver.
– Não estou a ver como – contrapôs Nat. – Seja como for, não vendes
esculturas suficientes para nos poderes sustentar, e se não tiveres a loja para
as pores à venda…
– Há sempre o eBay e o nosso site, quando estiver a funcionar…
– Isso continua a não ser suficiente. De qualquer maneira, estive a pensar e
decidi que devia esquecer a escola e arranjar um emprego. Talvez estejam a
precisar de alguém numa das fábricas da zona, ou numa quinta. Podem não
pagar grande coisa, mas será melhor que passarmos fome.
Alicia olhava-o horrorizada.
– Não vamos passar fome – disse energicamente –, e tu vais acabar os teus
estudos da forma que sempre planeámos. Não, Nat, ouve-me – disse Alicia
quando o filho começava a protestar –, a tua única responsabilidade é para
contigo mesmo e a realização do sonho que começaste a perseguir nas pegadas
do teu pai. É o que ele desejaria, e garantidamente é o que eu quero. Por isso,
não quero ouvir falar mais desse disparate de saíres da escola para arranjares
um emprego. Vai tudo correr bem. Tenho dinheiro suficiente para nos manter
pelo menos até ao final do ano e, nessa altura, a loja já deve estar aberta.
– Mas, e se não venderes nada? Desculpa, não estou a dizer mal das tuas
esculturas, porque as acho ótimas, mas não tens lá muitas, e ao ritmo a que se
vendem… Bem, percebes o que estou a dizer.
– A loja não vai depender só das minhas esculturas. Já sabes isso, vamos
mudar de assunto.
Embora o filho claramente quisesse continuar a discussão, optou antes por
sair para o jardim e, conhecendo-o como conhecia, Alicia adivinhou que o
motivo por que desistira tão rapidamente fora o medo de dizer algo que
pudesse magoá-la ainda mais do que já magoara. Embora Alicia adorasse o
modo como Nat era sensível em relação aos seus sentimentos, odiava o facto
de o filho estar tão preocupado com as finanças da família, porque dizer a si
próprio que tinha de assumir as responsabilidades do pai não ia ajudá-lo a ter
boas notas nos exames. Nat precisava de ser como os outros rapazes da sua
idade, concentrando-se apenas no que tinham a fazer naquela fase de
preparação para a sua vida adulta.
– Onde para o Simon? – perguntou Alicia, num esforço para normalizar as
coisas mostrando vontade de conversar, quando Nat regressou trazendo alguns
copos que tinham ficado lá fora.
– Em casa, acho. Não sei.
– Hoje não se vão encontrar?
– Hoje à tarde vou começar a pintar o estúdio. Mas vou precisar de mais
tinta.
–Agora que já não podemos abrir tão cedo, não há pressa! Por isso,
porque não levas o carro e vais sair com o Simon?
– Não há problema. Gosto de pintar e será bom saber que está tudo pronto
antes de…
– Nat, são as férias de verão. Não é que não precise da tua ajuda ou não a
aprecie, mas quero que te divirtas.
– Estou-me a divertir.
– Como? A pintar paredes e a fazer-me companhia aqui? Devias estar com
pessoas da tua idade.
– Estive numa festa na semana passada, fui ao críquete com o Simon e vou
a uma rave no fim de semana. Estou a fazer coisas normais para alguém da
minha idade, OK?
– OK, desculpa. Quero ter a certeza de que não ficas em casa só para não
me deixares sozinha.
– Não é por isso que cá estou – disse. – Estou a responder a emails, a
fazer revisões e a projetar o teu site. – Nesse momento, o telefone tocou de
novo e Nat disse: – É a minha vez. Estou? Ah, olá, Sim. Tudo bem? Sim,
deixei o telemóvel lá em cima.
Enquanto o filho conversava ao telefone, Alicia começou a tirar os
caroços às azeitonas para a salada e a cortar tomates, mas foi-lhe impossível
não ouvir quando Nat começou a falar sobre a rave de sábado à noite, com
menções a hardcore – que ela sabia ser um tipo de música tecno –, meia dúzia
ou mais de DJ, a expectativa da presença de cerca de mil pessoas e a dúvida
sobre se a polícia apareceria ou não à meia-noite para tentar acabar com
aquilo. Quando Nat desligou, o almoço estava pronto e Alicia esperava por
ele na mesa do jardim.
– Então – disse Alicia enquanto Nat puxava uma cadeira –, esta rave não é
propriamente legal?
– Não faço ideia – respondeu Nat. – Algumas são, outras não.
– Não achas que devias descobrir se esta é?
– Mãe, é aqui ao lado, em Holly Copse, por isso não há de ser nada de
extraordinário, pois não?
– Não sei. Se houver drogas envolvidas…
– E quem disse que vai haver?
– Pensava que esse era o objetivo destas raves.
– Para alguns, é. Eu vou lá pela música e pelo ambiente. Só isso já dá
pedrada suficiente, não é preciso tomar nada.
– E álcool?
– Bem, vou beber alguma coisa, como é óbvio.
– E que tipo de coisa?
– Vamos levar vodka, por isso, na segunda, é provável que tenha uma
ligeira ressaca.
Alicia revirou os olhos.
– É coisa para durar toda a noite?
– Deve ser. São sempre. Dura pelo menos até às cinco, de qualquer
maneira.
Desejando poder convencê-lo a não ir, mas com medo de provocar uma
discussão se tentasse, Alicia disse:
– Desde que te mantenhas longe das drogas. A última coisa de que precisas
é de ter cadastro por uma coisa dessas, se a polícia chegar a aparecer.
– Por favor, para de te preocupar. Vai correr bem. Vai correr tudo bem,
vais ver.
Embora ainda estivesse longe de estar feliz por Nat ir à festa, Alicia
resolveu não insistir mais, e o seu olhar desceu quando aquelas palavras, vai
correr bem, vai correr tudo bem, vais ver, ecoaram do passado, ditas por
Craig, depois de mais um telefonema histérico de Sabrina.
***
– Sabrina, sou eu. Lamento o que aconteceu ontem à noite. A Alicia insistiu
em usar o meu telefone para te ligar. Estás bem?
– Agora estou – disse ela, soando congestionada e trémula pelo muito que
chorara. – Ela odeia-me tanto.
– Não penses nisso. Mas, por favor, diz-me que não vais fazer nada
estúpido.
– Não quero continuar sem ti…
– Vais conseguir ultrapassar isto, Sabrina, garanto-te. E pensa na tua
família.
– Não posso. Só consigo pensar em ti e em como tudo era maravilhoso
quando estávamos juntos. Todas as coisas que me disseste… Tu ainda me
amas, eu sei que é verdade, por isso não negues.
– Não vou negar, só quero que aceites que não nos podemos ver mais.
– Querido, eu percebo que te preocupes com os teus filhos, mas os miúdos
vão sobreviver, sobrevivem sempre.
– Sabrina, ouve-me. Não vou deixar a Alicia.
– Então, porque me disseste que o farias?
– Na altura… Eu… Eu não devia ter dito aquilo. Lamento que te tenha
deixado acreditar que podíamos ficar juntos.
– Ainda podemos. Eu sei que é isso que queres, no fundo do teu coração.
Diz-me que não pensas em mim.
– Claro que penso em ti.
Sabrina ficou muito quieta dentro do carro, sentindo as palavras dele a
envolvê-la tão terna e apaixonadamente como o seu abraço.
– Sabrina, por favor, não digas à Alicia que estou contigo quando não
estou – implorou Craig. – Isso não me vai fazer mudar de ideias em relação a
nós.
– Gostavas de fazer amor comigo outra vez? – disse Sabrina, soando triste
e desesperada.
Do outro lado houve apenas silêncio.
– Pode acontecer – continuou Sabrina –, só tu estás a impedir isso.
– Sabes porquê.
– Mas tu queres.
Craig ficou em silêncio de novo.
– Sabes, ainda estou no teu coração e, por mais que o tentes negar, estarei
sempre.
– Deixa-me ir – disse ele suavemente.
– Diz que me amas.
– Não.
– Diz, e não te voltarei a ligar mais.
– Prometes?
– Sim.
– Ok. Amo-te.
– Estou? Alicia, é o Cameron Mitchell. Espero que não seja má hora para
ligar.
Olhando rapidamente para a parte da frente da loja, onde Nat estava a
misturar tinta, Alicia saiu para o pátio das traseiras, dizendo:
– Claro que não. Como estás?
– A sobreviver ao calor – respondeu ele. – Dizem que no fim de semana
vão estar mais de 30 graus.
– A sério? Então tenho de encher a minha piscina insuflável.
Rindo, Cameron disse:
– Aqui há uma piscina e, se quiser cá vir, terei muito gosto em deixar a
Alicia usá-la. O único problema é que o Jasper é capaz de lhe fazer
companhia, ele adora nadar. E dá um bom banho a quem estiver próximo,
quando sai da piscina e se sacode.
Divertida com a imagem, Alicia disse:
– O Jasper é de que raça?
– É um golden retriever, com bastante personalidade. Mas não é por causa
dele que estou a ligar. Estive a ver os meus emails e, nem de propósito, o
clube de apreciadores de vinho a que pertenço vai realizar uma prova de
champanhe nos paços do concelho de Wells na próxima quinta à noite. Se não
achar demasiado presunçoso da minha parte, estava a pensar se não gostaria
de ir comigo…?
Imediatamente perturbada pelo que parecia assemelhar-se, de modo
preocupante, a um convite para um encontro romântico, Alicia avançou mais
para o fundo do pátio ao ouvir Nat trazer o escadote para o estúdio. Sentia-se
lisonjeada, claro, quem não se sentiria, mas ainda era muito, muito cedo para
sequer pensar numa coisa daquelas…
– Se tiver disponibilidade e lhe apetecer – prosseguiu Cameron –, estava a
pensar que a seguir podíamos ir comer qualquer coisa, e assim eu podia
mostrar-lhe alguns dos folhetos promocionais que recebi de propriedades.
Disseram-me que o Montague Inn, no Montague de Shepton, é um restaurante
muito bom.
– Sim, é verdade – concordou Alicia, que já lá estivera muitas vezes no
passado, geralmente com Craig, agarrando-se primeiro à parte da questão com
que era mais fácil lidar. A sua mente rodopiava, pensando em todas as
objeções possíveis: ainda não estava pronta para começar uma relação com
alguém; o filho não ia gostar; Darcie também não; não queria mentir à família;
mas, ao mesmo tempo, havia outra voz que lhe dizia para parar de exagerar,
Cameron estava só a ser simpático e, pensando em quem ele era e no quanto
podia ajudar o seu pequeno negócio – já para não falar na sua carreira
incipiente, se gostasse do seu trabalho… Por fim, quase com surpresa, ouviu-
se a si mesma dizer:
– Sim, seria ótimo.
– Excelente – disse ele. – A prova começa às seis e meia, por isso vou
buscá-la às seis e reservo uma mesa para as oito e meia. Está bem assim para
si?
– Sim – disse Alicia, perguntando a si mesma quem era a mulher que
assumira o comando das suas respostas. – Fico a aguardar.
Só depois de desligar se apercebeu de que, provavelmente, Cameron não
sabia onde ela morava, mas não havia problema. Agora tinha o número dele no
telemóvel e, assim, podia sempre telefonar-lhe e sugerir que se encontrassem
na loja, o que, de qualquer forma, seria mais sensato do que ele ir buscá-la a
casa. Ou, então, também podia cancelar o encontro, o que era o mais provável.
Regressando ao estúdio, pousou o telemóvel sobre o escorredor e estava
pronta para recomeçar a rebocar a parede, tarefa interrompida pelo
telefonema, quando parou para pensar. Não queria começar a esconder coisas
de Nat. O convite era inofensivo, mas não iria parecer assim se o filho
descobrisse mais tarde e percebesse que ela o escondera deliberadamente.
Então, assumindo um tom meio excitado, meio surpreendido, disse:
– Nem vais imaginar quem era.
Nat olhou para ela do cimo da escada.
– Suponho que não fosse a Darcie.
Alicia sorriu.
– Não. Era o crítico de arte, o Cameron Mitchell, que veio cá à loja há
dias.
A expressão de Nat ensombrou-se imediatamente.
– O que é que ele queria? – perguntou.
– Na verdade, queria convidar-me para uma prova de champanhe em Wells
na quinta-feira.
A expressão no rosto de Nat endureceu.
– Querido, não fiques assim – implorou Alicia. – Estás a dar demasiada
importância ao assunto.
Olhando para o teto, o filho continuou com a pintura.
– Ele vai ficar por cá durante o verão – prosseguiu Alicia – e não conhece
muita gente, por isso a Antonia deu-lhe o meu número. Não há mais nada para
além disso.
– A vida é tua – retorquiu ele. – Se quiseres sair com alguém, é lá contigo.
Respirando fundo, Alicia disse:
– Olha, eu juro que não é mesmo nada daquilo que estás a pensar. O
Cameron é muito influente no mundo da arte. Umas palavras elogiosas da parte
dele e os meus preços provavelmente iriam duplicar, até triplicar. Pensa só na
diferença que isso representaria para nós.
Nat voltou a meter o rolo no tabuleiro, revestiu-o de mais tinta e continuou
com o seu trabalho. Alicia observou-o, dividida entre a frustração e a
compreensão.
– Ele tem uma piscina e um golden retriever – arriscou, alguns minutos
mais tarde, tentando quebrar a hostilidade do filho com o seu tom de
brincadeira.
– Já não tenho seis anos – lembrou Nat. – E também não sou teu pai, por
isso podes fazer o que quiseres.
– Na verdade, se calhar também podias vir – sugeriu, sem ter a certeza se
aquilo era boa ideia ou não.
Nat deu uma gargalhada sem alegria.
– Muito obrigado, mas não estou para servir de pau de cabeleira. Tenho
coisas melhores para fazer, como ir ao Lord’s com o tio Robert, caso tenhas
esquecido.
– Ah, sim, é verdade – disse ela, com vontade de abraçar o irmão por ter
feito Nat ganhar o dia, a semana, quem sabe até se o verão inteiro, ao convidá-
lo para o encontro internacional de críquete.
Decidida a desistir de conquistar a aprovação do filho, Alicia voltou ao
trabalho, sentindo-se um pouco desanimada e ansiosa, e começou a perguntar a
si própria se Craig se importaria que ela fosse. Provavelmente, não ficaria
entusiasmado, tinha sido sempre muito possessivo em relação a ela; ou, então,
não se importaria nada, uma vez que o convite era, definitivamente, apenas
platónico – e, pensando no que o Craig fizera no passado, não percebia porque
se estava a atormentar com a questão.
Durante vários minutos, trabalharam ambos em silêncio até que, por fim,
Nat disse:
– Podias ter ido sair com ele e eu nunca teria sabido.
Surpreendida por o filho voltar ao assunto, Alicia manteve-se concentrada
no que estava a fazer e respondeu:
– Não preferes que eu seja honesta contigo em vez de andar a tentar
esconder as coisas?
Passaram uns momentos, mas, por fim, Nat acabou por responder, num tom
um pouco ressentido:
– Suponho que sim. – Uns instantes mais tarde, acrescentou: – Na
realidade, não tenho nenhum problema em que vás sair com ele, mas não quero
que te aproveites do facto de não estar aqui para voltares tarde para casa, OK?
Ou que fiques fora toda a noite e ganhes má reputação. Quero-te em casa e na
cama às onze e meia, ou vamos ter problemas.
Rindo de alívio, Alicia foi ao frigorífico buscar uma bebida para os dois.
Não acreditava que o filho já tivesse ultrapassado a sua resistência à ideia de
a mãe ter um amigo masculino, mas sabia que, tal como ela, Nat não ficaria
feliz se se mantivesse um mau clima entre ambos. A melhor coisa a fazer,
decidiu, enquanto lhe passava um sumo gelado de groselha negra, era
apresentá-lo a Cameron o mais cedo possível – e a Jasper, uma vez que os
seus dois filhos adoravam cães. Desta forma, tudo seria franco e Nat veria por
si próprio que não havia motivos para se preocupar; ninguém estava a tentar
tomar o lugar do pai.
– OK, é tempo de acabarmos por aqui – disse, uma hora depois, quando o
telemóvel de Nat apitou com uma mensagem. – Precisamos os dois de tomar
um duche e tirar a tinta do cabelo antes de irmos para Hunstrete.
Como Nat não respondia, Alicia ergueu o olhar e viu-o de olhos fixos na
mensagem.
– Está tudo bem? – perguntou.
– Sim, tudo – respondeu Nat, guardando o telemóvel.
– Tens a certeza? Pareces um pouco… aborrecido?
– Já disse que está tudo bem. É só o Simon, por causa de amanhã à noite.
Nada de importante.
Não insistindo mais, Alicia começou a arrumar as coisas o melhor que
podia, pronta para recomeçar na manhã seguinte, enquanto Nat dobrava o
escadote e o arrumava no pátio. Sabia que não o podia pressionar sobre o
verdadeiro conteúdo da mensagem. Guardar as coisas para ele era outro dos
traços que Nat herdara do pai – contudo, ao contrário de Craig, o filho
geralmente acabava por lhe contar as coisas. Só precisava de tempo para
chegar a esse ponto.
Duas horas mais tarde, o relógio da torre por cima da loja de Alicia dava
meio-dia. O sol brilhava ardentemente sobre a rua principal, recozendo as
velhas pedras da calçada e fazendo murchar as flores do memorial de guerra.
Depois de os sinos se calarem, a aldeia voltou a mergulhar numa calma
inquietante. O local parecia completamente deserto – não se via qualquer sinal
de vida em lado nenhum, nem mesmo no pub, que tinha as portas abertas e
exibia, frente à entrada, um convidativo letreiro que publicitava um almoço de
dois pratos por sete libras e cinquenta. Contudo, todas as mesas e cadeiras na
esplanada estavam vazias.
No extremo de The Close, uma multidão começava a reunir-se na margem
do rio, na tentativa de observar o que se passava no Copse para lá da ponte
pedonal. A zona pululava com polícias. Metros de fita azul e branca rodeavam
o desordenado aglomerado de árvores e havia pelo menos uma dúzia de carros
da polícia estacionados por todo o lado, alguns com as luzes ainda ligadas,
outros com os rádios a trabalhar.
Do local onde os aldeões se agrupavam, não se conseguia ver grande
coisa. A cena do crime propriamente dita não era visível dali, tal como a
maioria das atividades de busca que decorriam. Ainda ninguém sabia o que
acontecera, mas os boatos circulavam a grande velocidade. Alguém sofrera
uma overdose por causa de drogas. Uma rapariga fora atacada. Um rapaz
enforcara-se. Tinham descoberto um cadáver.
Sem vontade de continuar ali a ouvir aquilo, Alicia abriu passagem por
entre a multidão e encetou o caminho para casa. Dava-lhe uma sensação
estranha ver tanta atenção concentrada na periferia da sua pequena aldeia. Era
como se estivessem a ser invadidos – e, de certa forma, estavam, pois, fosse
qual fosse a razão que levara a polícia até ali naquele dia, quase de certeza
iria percorrer as casas de Holly Wood uma a uma para descobrir o que os
habitantes locais tinham visto ou ouvido.
A Coach House estava em silêncio quando Alicia entrou. Adivinhando que
Nat ainda devia estar deitado, resolveu deixá-lo dormir e foi para a cozinha
preparar o almoço. Apesar de o filho ter estado na rave no sábado à noite,
ouvira-o chegar a casa por volta da uma da manhã e, uma vez que no dia
anterior Nat não mencionara qualquer acontecimento invulgar na festa, Alicia
só podia presumir que, o que quer que tivesse levado a polícia ali, sucedera
depois de o filho se vir embora.
– Tens a certeza de que era aqui que devíamos vir? – disse Annabelle com
ar de dúvida, enquanto Sabrina virava de uma rua secundária ladeada de
árvores para uma rampa de acesso asfaltada.
Na sua frente, havia uma grande casa independente, cujas paredes creme e
grandes janelas de caixilhos pintados a azul a faziam parecer-se mais com uma
residência privada do que com qualquer esquadra de polícia que alguma vez
tinham visto.
– Foi este o endereço que me deram – respondeu Sabrina, estacionando o
seu Lexus dourado ao lado de um Citroën C4 negro. Havia outros carros no
pátio de entrada, mas nenhum tinha visíveis as insígnias da polícia. – Espera
aqui – disse a Annabelle –, vou ver.
Mal tinha saído do carro quando a porta da frente se abriu e uma mulher
jovem e atraente, com abundantes cabelos louros encaracolados e um sorriso
amistoso, avançou para a cumprimentar.
– Olá – disse a mulher, estendendo uma mão a Sabrina para a
cumprimentar. – Sou a agente Lisa Murray. É a Sra. Paige?
Sabrina acenou com a cabeça e estendeu a mão à mulher.
– Falámos ao telefone – esclareceu Lisa Murray.
– A Annabelle está no carro – disse Sabrina.
Curvando-se para poder espreitar para o carro, a agente sorriu
calorosamente e disse:
– Olá, Annabelle. Sou a Lisa. Queres entrar?
Saindo cautelosamente do carro, Annabelle olhou para a mãe e, a seguir,
contornou o veículo para lhe dar o braço, enquanto a agente Lisa Murray as
conduzia para o interior.
– Pensei que isto era a casa de alguém – disse Annabelle numa voz rouca.
– São as instalações especiais da EICS – explicou Lisa –, a Equipa de
Investigação de Crimes Sexuais. Achámos que é mais fácil as pessoas falarem
connosco se estiverem num ambiente algo mais acolhedor, mais parecido com
uma casa do que uma esquadra de polícia.
Annabelle acenou ligeiramente com a cabeça e encostou-se mais ainda à
mãe.
– Agora vou levá-las até à sala de espera – disse Lisa, que caminhou por
um corredor atapetado de azul, passando por duas portas fechadas e dirigindo-
se a uma sala no final.
Annabelle lançou um olhar a Sabrina. Não era propriamente um lugar
assustador, mas estava silencioso como uma morgue e cheirava como um
quarto de hospital cheio de mofo.
– É aqui – disse a agente, indicando-lhes que entrassem para uma espécie
de sala de estar com um grande sofá de aspeto confortável, dois cadeirões e
uma mesa de centro com revistas e uma caixa de Kleenex. Numa das paredes
alinhavam-se vários cacifos e via-se um televisor antiquado no espaço entre
as janelas de vidros foscos, cujos estores balouçavam suavemente com a
corrente produzida pela porta aberta.
– O sargento-detetive Bevan vem a caminho. É o agente encarregado da
investigação.
Annabelle recuou, encostando-se à mãe.
– Não quero falar com um homem – protestou.
Lisa sorriu com empatia.
– Está tudo bem, sou eu que vou falar contigo – assegurou-lhe. – Mas ele
vai estar a ouvir tudo. Agora, querem-se sentar? Ali atrás há uma cozinha,
posso fazer um café, se quiserem…
Annabelle abanou a cabeça.
– Eu não quero, obrigada.
– Eu também não – disse Sabrina, puxando Annabelle para que se sentasse
junto a ela no sofá.
Sentando-se na extremidade de um dos cadeirões, Lisa entrelaçou as mãos
e olhou-as com uma expressão amável.
– Agora, vou rever os procedimentos convosco – disse –, só para terem
uma ideia do que vai acontecer. O médico já está cá. Está na sala de exames
médicos, por onde passámos ao vir para aqui. Não te importas que te façamos
um exame? – perguntou a Annabelle.
Annabelle engoliu em seco e acenou com a cabeça.
– Acho que não – respondeu.
– Podes dizer-me se tomaste banho depois de aquilo acontecer?
Annabelle arregalou os olhos.
– É claro que tomei! – respondeu, indignada.
A expressão de Lisa permaneceu amigável.
– Não faz mal – disse –, só torna a busca de ADN um pouco mais difícil,
mas não impossível.
Annabelle acalmou-se.
– O médico vai-te examinar em busca de ferimentos – prosseguiu Lisa. –
Os que tens na cara e no pescoço são óbvios, mas pode haver outros, nas tuas
costas ou nos teus braços, por exemplo, que ainda nem sequer notaste. Ele vai
examinar o teu corpo todo e fazer esfregaços secos e húmidos, o que quer
dizer que em alguns vai usar água destilada e, noutros, não. Não te vai tirar
fotografias. Vai ser tudo assinalado num esquema que representa o teu corpo.
Para o exame interno, o médico vai usar um espéculo. Sabes o que é?
Annabelle abanou a cabeça.
– É um instrumento que facilitará a abertura da vagina, para ele poder
fazer vários esfregaços que poderão, ou não, resultar na recolha de ADN que
corresponda ao atacante.
Annabelle pareceu encolher-se por completo, enquanto, a seu lado, o
corpo de Sabrina parecia contrair-se numa gigantesca cãibra resultante da
tensão.
– Uma vez que a violação ocorreu na madrugada de domingo – continuou a
agente –, é possível que já não encontremos este tipo de vestígios, mas isso
não quer dizer que não avancemos com uma acusação. Só a tua idade já torna
qualquer tipo de relacionamento sexual ilegal. – Depois de observar uma troca
de olhares entre mãe e filha que não foi capaz de interpretar, Lisa Murray
prosseguiu: – Para além de sémen, o médico também vai procurar indícios de
traumas internos, nódoas negras ou lesões nos tecidos, esse tipo de coisas.
Também vai ter de te cortar as pontas das unhas e recolher vestígios de
debaixo das unhas e nos pelos púbicos. Tens…? – perguntou suavemente. –
Sei que, atualmente, a moda é as raparigas tirarem tudo.
– Ela fez depilação às virilhas na sexta-feira – respondeu Sabrina pela
filha.
– Na verdade, fiz depilação brasileira – disse Annabelle numa voz ténue.
Sabrina virou-se para ela, perplexa.
– Mas tu és demasiado nova para…
Interrompeu-se, apercebendo-se de que não era nem o local nem o
momento mais indicado para ter aquela discussão. A agente, cuja formação era
demasiado boa para lhe permitir exibir frustração pela ausência de pelos
púbicos, disse:
– Está tudo bem. Tenho a certeza de que não será um problema. Agora,
tenho de te perguntar se sangraste desde o incidente e se usaste um tampão ou
um penso higiénico?
Annabelle abanou a cabeça.
– Quer dizer, houve um pouco de sangue, mas não pus nada.
– Trouxeste tudo o que tinhas vestido naquela noite? – perguntou Lisa,
olhando para Sabrina.
– Está tudo num saco, no carro – respondeu Sabrina.
– OK. Talvez possa ir buscar as roupas enquanto registamos o depoimento
da Annabelle.
– Mas eu não vou estar com ela? – objetou Sabrina. – Acho que devia.
– Desculpe, mas temos de falar com ela a sós.
– Mas ela tem menos de dezasseis anos…
– É igual, temos na mesma de falar com ela a sós. – Voltando-se para
Annabelle, perguntou: – Não te importas?
Annabelle parecia insegura.
– Gostava que a minha mãe estivesse presente durante o exame médico –
disse.
– Com certeza. Agora, a última coisa que tenho de te dizer antes de o
médico te examinar é que ele vai recolher duas amostras de sangue. Sei que o
incidente se deu há mais de vinte e quatro horas, mas ainda temos de investigar
a presença no teu sangue de álcool ou drogas… Pela tua cara, posso ver que
há hipótese de encontrarmos alguma coisa, mas não te preocupes, mesmo que
tenhas consumido substâncias ilegais, isso não nos interessa. É só uma
formalidade que temos de levar a cabo e que nos poderá ajudar a determinar o
teu estado psicológico na altura.
As unhas de Annabelle enterravam-se-lhe nas palmas das mãos. Já não
sabia se queria ir para a frente com aquilo, estava tudo a ser diferente do que
esperava, com todos aqueles testes, procedimentos e tudo o resto. Parecendo
ler-lhe o pensamento, Lisa disse:
– Sei que, ao início, pode parecer tudo um pouco assustador, mas, depois
de conversarmos e de fazeres o exame, podes ir para casa e o sargento-
detetive Bevan depois trata de tudo.
Annabelle mal olhou para ela. A seguir, num tom de voz que surpreendeu
Lisa pela sua dureza, tendo em conta o quanto parecera frágil e insegura até
então, perguntou:
– Ele já foi preso?
– Não tenho a certeza – respondeu Lisa cuidadosamente. – O sargento-
detetive Bevan poderá dizer-nos quando chegar.
Bevan esperou que a porta da sala audiovisual se fechasse atrás dela antes
de perguntar:
– Acreditas nela porque a lei assim exige, uma vez que ela é menor de
idade, ou porque achas que está a dizer a verdade?
– Para ser honesta, é mais pelo segundo motivo – respondeu Lisa. – Não
está a tentar transmitir uma imagem inocente. Admitiu que teve um
comportamento oferecido e os ferimentos são visíveis.
– Há traumatismo na área genital?
– Sim.
– Lesões vaginais interiores?
– Algumas. E tu, o que achas do que ouviste até agora?
– Não tenho a impressão de que esteja a inventar a história, mas gostava
de saber mais sobre o que aconteceu quando ela foi até ao bosque com os
outros dois. Se teve relações sexuais com eles, isso pode explicar o
traumatismo vaginal.
– Mas não os ferimentos no rosto.
– Talvez não, mas ela pode tê-los arranjado de outra maneira. O tempo que
ela passou com a amiga, antes de voltar para casa, para junto da mãe, está a
incomodar-me – disse. – As raparigas desta idade podem ser uma grande
chatice, com as histórias que armam quando lhes dá na veneta.
– É claro que vais interrogar a amiga.
– Obviamente. Só pergunto a mim próprio se elas realmente
compreenderão como esta acusação é grave. Ela tem noção de que este rapaz
pode passar até dez anos na prisão se for considerado culpado?
– Não lhe perguntei, mas, se ele a violou, é bom que seja devidamente
castigado. Seja como for, ainda não sabemos o que ele tem a dizer sobre isto.
Talvez admita que teve relações com ela.
– Se admitir, quer o sexo tenha sido forçado quer não, é sempre passível
de acusação, por causa da idade dela.
– Se ele souber que ela só tem quinze anos.
– Eles são primos, bem, mais ou menos, portanto ele deve ter alguma ideia
da idade dela, e a ignorância não é uma boa defesa, como bem sabes. Seja
como for, já vamos ver. De momento, quero saber mais acerca do que
aconteceu com os outros dois rapazes e se ela se lembra de ver alguém por
perto quando o jovem Carlyle alegadamente a estava a violar.
Quando voltou à sala de registo de depoimentos, Lisa colocou a segunda
questão a Annabelle. Esta abanou a cabeça lentamente enquanto pensava.
– Não me consigo lembrar de ver ninguém – respondeu. – Quer dizer,
havia imensa gente ali à volta, mas acho que éramos os únicos no Declive.
Estava muito escuro e ele estava em cima de mim, por isso era difícil de ver.
– E quando foste atrás dele e disseste que o ias acusar de violação?
Lembras-te de ter visto alguém nessa altura?
– Não propriamente. Estava muito nervosa, por isso não estava a prestar
muita atenção a nada.
Lisa sorriu.
– É claro – disse. – Agora, voltando aos outros dois rapazes com quem te
afastaste primeiro, o Theo e o Neil… Dizes que não tiveste relações sexuais
com eles?
Annabelle começou de novo a corar.
– Não – respondeu num tom franco. – Só curtimos, você sabe, o normal.
– Explica-te melhor.
– Bem, com o Theo, beijámo-nos e ele apalpou-me e eu também o apalpei
a ele.
– Praticaram sexo oral?
– Não.
– E com o Neil? Que sucedeu com ele?
– Foi mais ou menos o mesmo, mas também houve algum sexo oral. Ah,
sim, e, como disse antes, ele meteu-me os dedos.
– Se eu for falar com esses rapazes, eles vão confirmar o que acabaste de
me dizer?
O rubor nas faces de Annabelle intensificou-se.
– Não sei. Quer dizer, deviam, mas estavam mesmo pedrados, por isso
podem não se lembrar de tudo tão bem quanto eu.
– Tens as moradas deles?
– Sei a do Theo, mas só conheci o Neil naquela noite – disse Annabelle. O
seu rosto começou a contorcer-se. – Agora acha que eu sou uma pega, não
acha? – disse, num queixume.
– É claro que não.
Era mentira, mas ser promíscua não tornava impossível a Annabelle ser
violada, que era tudo o que interessava a Lisa agora. Alguns minutos mais
tarde, de regresso à sala audiovisual, Lisa esperou que Bevan terminasse a sua
chamada para Morley, antes de dizer:
– Depreendo que o rapaz já está sob custódia policial?
– Na esquadra de Southmead – confirmou Bevan. – Então, acreditas que
ela não teve relações com os outros dois?
– E isso importa, uma vez que ela não os está a acusar de a terem violado?
– Importa – respondeu Bevan, pondo-se de pé. – Ouvi o suficiente por
agora. É altura de ir ver o que o jovem Nathan Carlyle tem a dizer em sua
defesa.
***
Passara mais de uma hora desde que Nat fora trazido para a área de
detenção da esquadra de Southmead, onde lhe tinham lido os direitos antes de
lhe tirarem as impressões digitais, o fotografarem para os registos e
recolherem algumas amostras de ADN. A seguir, pediram-lhe para retirar
todos os acessórios e peças de vestuário, que foram metidos em sacos e
levados dali, deixando o com um macacão descartável azul pálido, para se
tapar, e um par de chinelos de cartão.
Estava agora trancado numa cela com uma única janela, na parte superior
da parede traseira, demasiado alta para conseguir ver para o exterior, mesmo
que não estivesse tapada por tijolos de vidro opacos. Havia um beliche de
cimento a poucos centímetros acima do chão, coberto por um fino colchão de
plástico, uma sanita de aço inoxidável sem assento, com algumas folhas de
papel higiénico áspero ao lado, e um olho mágico na parede que permitia aos
agentes observarem o ocupante na sua privacidade.
A janela de postigo da porta da cela estava bem fechada e Nat esforçava-
se deliberadamente por não olhar para ela, porque, de cada vez que o fazia,
começava a sentir-se devorado por sentimentos de pânico e claustrofobia.
Estava sentado na beira da cama, que era tão baixa que os seus joelhos
ficavam quase à altura dos ombros.
– É a única disponível – dissera o agente de serviço à área de detenção. –
Costumamos usá-la para meter os bêbados, porque assim não têm muito
espaço para cair.
Nat não queria realmente pensar sobre os ocupantes anteriores da cela,
mas era melhor do que atormentar-se com o pesadelo que enfrentava. O
problema é que não conseguia pensar em mais nada. Tinha agora tanto medo
que era praticamente impossível impedir-se de chorar. Mas não iria chorar,
porque as lágrimas não fariam o problema desaparecer, da mesma forma que
não trariam o seu pai de volta. Eram inúteis, infantis e fracas.
Perguntou a si mesmo, com raiva, se o pai estaria lá em cima, em algum
lugar, a assistir ao desenrolar daquele horror. O pai queria que Nat visse o que
acontecia na antecâmara dos processos judiciais, aquilo por que uma pessoa
acusada tinha de passar antes de um advogado tomar conta do caso. Bem,
agora os seus desejos estavam certamente a ser concretizados. Teria o pai
visto o que sucedera na noite de sábado? O que teria ele a dizer sobre aquilo?
Iria negar que teve um caso com aquela cabra da Sabrina? Nat cerrou os
punhos com fúria. Como fora o pai capaz de fazer aquilo à mãe? Era um
mentiroso e um hipócrita e Nat estava contente por ele estar morto.
Engolindo outro acesso de emoção, encostou os nós dos dedos contra a
testa e pressionou com força. Não conseguia suportar a ideia de a mãe ser
magoada, muito menos pelo pai. Aquilo destruía por completo a imagem que
Nat tinha do pai, transformando a sua integridade numa farsa e fazendo uma
paródia da honra que tanto defendera. Agora, já não fazia sentido chorar a sua
perda, ele não valia a pena, e, contudo, a mãe, apesar de tudo o que deve ter
sofrido, ainda sentia a sua falta e ansiava por ele do fundo do coração. O que
fazia Nat odiá-lo ainda mais, porque o pai não merecia ser amado por alguém
tão bom e decente como a esposa que traíra. Como pudera fazer aquilo? E
porque não estava agora ali, para responder pelos seus erros? Escolhera o
caminho dos covardes, abandonando-os a todos à tristeza e à mágoa que
causara e não lhes deixando em herança senão mentiras e enganos.
Ouvindo o som de passos no exterior, Nat ergueu a cabeça e, ao ver a
janelinha abrir-se de repente, sentiu as entranhas desfazerem-se. Um rosto
brilhante de olhos esbugalhados espreitou para o interior.
– O teu advogado chegou – disse o sargento de serviço.
O coração de Nat subiu-lhe à garganta enquanto se erguia a custo. Viu a
porta abrir-se por completo e os joelhos quase lhe falharam quando viu o rosto
sólido e familiar de Jolyon. Durante um desconcertante momento, pensou que
se tratava do seu pai.
– Nat, meu rapaz – disse Jolyon, aproximando-se para o abraçar. – Não te
preocupes, filho, vai ficar tudo bem. Vamos tirar-te daqui num instante.
– Podem usar a sala de interrogatórios ao fundo – informou o agente.
Alguns minutos depois, Nat e Jolyon estavam sentados em lados opostos
de uma mesa de fórmica muito arranhada, numa sala insonorizada tão pequena
como a cela que Nat acabara de deixar, mas sem quaisquer janelas.
– Desculpa ter demorado algum tempo a chegar – disse Jolyon. – Vim logo
que pude. Estás bem? Precisas de alguma coisa?
Nat abanou a cabeça.
– Só preciso que isto acabe – disse, com os olhos a arder de emoção. –
Não a violei – disse ferozmente.
– É claro que não – reiterou Jolyon, parecendo tomar aquilo como uma
verdade incontestável. – Tive uma conversa com o agente de serviço e o
detetive Croft, que me puseram ao corrente dos factos. Disseram-me que quem
está responsável pela investigação é o sargento-detetive Bevan. Ele vem a
caminho e deve estar cá dentro de uns dez minutos, mas não precisas de te
preocupar com isso. Podemos demorar o tempo que for necessário a discutir o
assunto, e depois vamos preparar uma declaração para lhe entregar. Isto
significa que não tens de responder a nenhuma pergunta, a não ser que queiras.
Compreendes?
Nat acenou com a cabeça.
– Conhece-o? – perguntou. – Como é ele?
– Diria que é duro, mas sabe ouvir e, em geral, sempre o achei justo. –
Estendendo a mão para a pasta, Jolyon retirou um bloco e uma caneta. – Bem –
disse num tom profissional –, vamos direitos ao assunto. Diz-me o que
aconteceu, começando pelo princípio.
Nat inclinou-se para a frente na cadeira, pressionando os punhos fechados
contra a mesa e balançando-se para a frente e para trás enquanto se preparava
psicologicamente para iniciar o relato. Depois de uns quantos começos em
falso, conseguiu finalmente dizer a Jolyon a que horas chegara à rave, quem o
acompanhara e que quantidade de álcool tinha bebido quando se encontrou
com Annabelle. Seguidamente, contou-lhe como Annabelle se aproximara
dele, afastando a outra rapariga com quem estava.
– Ela estava totalmente passada – disse, observando a mão de Jolyon
moverse sobre a página.
– Fazes ideia do que tinha tomado?
– Havia muito ecstasy a circular, e também erva.
– Mas chegaste a vê-la consumir alguma coisa?
Nat abanou a cabeça.
– OK, continua.
– Pela maneira como ela me olhava, pude ver que ia começar a atirar-se a
mim, por isso virei costas e fui-me embora. Fosse como fosse, não tinha
mesmo vontade de estar ali, e pensei que o melhor era voltar para casa.
– Ela já se tinha atirado a ti antes?
– Mais ou menos, sim.
Jolyon acenou com a cabeça e fez uma nota na margem da folha.
– Já vamos voltar a isso – disse. – Que aconteceu quando te foste embora?
– Ela seguiu-me, mas só me apercebi disso quando parei no cimo de uma
encosta que há lá. Ela apareceu atrás de mim, agarrou-me pela mão e puxou-
me para o fundo. Quando chegámos lá abaixo, eu libertei a mão e tentei afastar
me, mas ela continuou a vir atrás de mim. Dizia “Vá lá, tu sabes que queres”.
Eu disse-lhe para me deixar em paz, mas ela não ligou. Começou a perguntar
se eu era virgem e se queria que ela me ensinasse. Nessa altura, eu já estava a
ficar mesmo chateado, porque não havia forma de ela aceitar um “não”.
Continuou a falar, a dizer coisas estúpidas… Disse uma data de disparates e,
no fim…
– Que tipo de disparates?
Nat baixou a cabeça.
– Não me lembro bem – mastigou. – Eram umas coisas malucas e eu não
conseguia fazer com que ela se calasse. Agarrei-a… Ela empurrou-me e
começou a correr dali para fora, mas tropeçou e caiu. Eu estava tão furioso
que mal sabia o que fazia. Queria que ela retirasse aquilo que tinha dito, mas
ela não quis, por isso atirei-me para cima dela e tentei obrigá-la. Ela estava…
– Que foi que ela disse que querias que retirasse?
– Agora não me lembro, mas na altura chateou-me a valer, como se ela me
estivesse a tentar provocar mesmo a sério.
Jolyon ergueu os olhos da página. Nat engoliu em seco e apertou os punhos
com mais força. Jolyon continuou a olhar para ele
– OK – disse o advogado finalmente. – Ela estava caída de frente ou de
costas, quando te atiraste para cima dela?
– De frente.
– E que fizeste, então?
– Deitei-lhe as mãos ao pescoço. Ela estava a sufocar e gritava para eu a
largar. Então, apercebi-me do que estava a fazer e tirei as mãos do pescoço
dela. Ela começou a rir e disse, “Vá lá, come-me. Sabes bem que queres.” – A
boca tremeu-lhe e Nat baixou o olhar para as mãos. – Ela não trazia roupa
interior e tinha a saia levantada até à cintura – disse, num tom abalado.
– Então, ela incitou-te a teres relações sexuais com ela?
Nat acenou afirmativamente.
– Eu não queria, mas, ao mesmo tempo, queria.
– Então, estavas sexualmente excitado?
– Sim, não, não me consigo lembrar bem. Só sei que me queria afastar
dela. Levantei-me e ela rolou no chão e deitou-se de costas. Pareceu-me que a
cara dela estava a sangrar, mas ela continuava a rir e a dizer-me para a comer.
Chamei-lhe puta e disse-lhe que não queria nada com putas. Depois, quis vir
embora de novo, mas ela veio atrás de mim outra vez. Tentou dar-me um soco,
mas eu impedi-a e afastei-a de mim. Acho que lhe bati na cara ao tentar afastá-
la, mas não tenho a certeza. Aconteceu tudo muito depressa. Ela caiu outra vez
e começou a gritar comigo, a dizer que ia contar a toda a gente que eu a tinha
violado. Eu já não a conseguia ouvir. Era tudo demasiado louco. Ela estava
bêbada e pedrada e dizia umas coisas… Só queria fugir dela, por isso corri
para casa e desliguei o telemóvel, para o caso de ela me tentar ligar.
– E tentou?
– Não tinha mensagens quando o liguei de manhã.
– E essa foi a última vez que a viste? Quando a deixaste ali no bosque,
meia nua?
– Sim.
Jolyon passou rapidamente os olhos pelas suas notas e recostou-se para
trás na cadeira.
– Não me parece que estejas metido num grande problema – declarou. –
Desde que não tenhas tido relações sexuais com a rapariga, não há aqui caso
nenhum.
– Robert, sou eu – disse Alicia, usando o auricular para falar com o irmão
enquanto conduzia. Sabia que estava a infringir o limite de velocidade,
representando um perigo para os outros condutores, mas tinha de ir ter com o
filho.
– Olá – respondeu Robert. – Ainda não consegui falar com a Sabrina…
– Então, não sabes que a Annabelle acusou o Nat de violação?
– O quê?
– Vieram prendê-lo há umas horas.
– Jesus Cristo…
– A tua maldita mulher está a usar a filha para tentar arruinar a vida ao meu
filho – gritou.
– Onde estás? – perguntou Robert.
– Vou a caminho da esquadra de Southmead, em Bristol. Foi para onde o
levaram.
– Mas isto só pode ser um engano… – disse Robert.
– Eu sei isso – gritou. – A Annabelle está a mentir e, se acreditarem nela,
vai arruinar a vida do meu filho para sempre. Diz à tua maldita mulher para
parar com o que está a fazer ou vai-se arrepender – e, incapaz de continuar a
falar com o irmão, arrancou o auricular do ouvido e arremessou-o para o
assento do passageiro.
– Foi uma coisa mesmo séria – disse Annabelle a Georgie, que a viera
visitar para saber como as coisas tinham corrido com a polícia. – Tivemos de
ir até Bristol, a uma unidade especial para vítimas de crimes sexuais. Para
dizer a verdade, era um sítio um bocado estranho, parecia a casa de alguém,
não que desse vontade de lá morar. De qualquer maneira, tive de fazer um
exame médico, porque eles tinham de recolher amostras, tirar sangue e coisas
do género, e depois levaram-me para uma sala onde havia câmaras para
poderem ver tudo o que eu dizia. Foi uma coisa mesmo fora, sabes, com um
monte de detetives e polícias especiais.
Com um ar vagamente horrorizado, Georgie perguntou:
– E que lhes contaste?
Annabelle encolheu os ombros.
– Tudo – respondeu. – Tinha de ser, não era, senão não fazia sentido
nenhum ir até lá.
Concordando, Georgie acendeu um cigarro e foi abrir a janela.
– Sabes o que lhe vão fazer? – perguntou, expelindo o fumo para o
exterior.
– Parece que o prenderam, mas há pouquinho a minha mãe disse-me que o
soltaram outra vez.
– Porquê, vão-no deixar safar-se assim?
– Ela acha que não. Ele deve ter saído sob caução ou algo assim.
Georgie acenou com a cabeça e inalou uma nova baforada.
– Toda a gente fala do assunto – disse. – Os polícias andam por aí a
recolher declarações…
– Oh, meu Deus! Lembrei-me agora. Dá-me o teu telemóvel. Tenho de ligar
ao Theo. Sabes se ele já falou com a polícia?
– Vai falar amanhã. Onde está o teu? – perguntou Georgie passando-lhe o
telefone.
– Ficaram com ele. Tens o número dele nos contactos?
A seguir, encontrando o número, Annabelle marcou-o e encostou o
telemóvel ao ouvido.
– Raios! Vai ter ao voicemail! – murmurou. – Vou ter de deixar mensagem.
Theo, sou eu, a Annabelle. A Georgie diz que a polícia vai falar contigo
amanhã, por isso, diz-lhes que só curtimos, OK? Não lhes digas nada sobre
irmos até ao fim. Eu não lhes contei isso, portanto as nossas histórias têm de
bater certo e, assim, não vais ter problemas por causa da porcaria da minha
idade. Ah, e podes enviar-me uma mensagem se conheceres um tipo chamado
Neil? Manda para o telemóvel da Georgie, OK? – Fechando a tampa do
telemóvel, tirou um cigarro do maço de Georgie e acendeu-o. – Devia ter-lhes
dado um nome falso, em vez de dizer que ele se chamava Neil – disse,
expelindo uma nuvem de fumo e irritada consigo mesma por aquilo só lhe
ocorrer agora.
– Se calhar, ele também não te disse o nome verdadeiro dele – disse
Georgie, optando pela visão mais otimista.
– É verdade. Espero que tenhas razão. E tu, quando vais falar com a
polícia?
– Vão a minha casa amanhã de manhã, pelas dez, para a minha mãe poder
lá estar. Mas tenho de te dizer: a minha mãe não está nada contente com isto.
Nem queria que eu viesse cá hoje, por isso disse-lhe que ia a casa da Cat e, a
caminho de Bruton, convenci o meu vizinho a dar-me boleia para cá.
– Qual é o problema dela? – perguntou Annabelle secamente. – Acha que
tenho alguma doença, ou algo do género?
– Não, só acha que me andas a desencaminhar, a levar-me para raves e
sítios assim, como se eu não soubesse pensar por mim.
O rosto de Annabelle empalidecia, a confusão que sentia transparecia nos
seus olhos.
– Esquece-a – disse Georgie, fazendo um gesto de rejeição com a mão. –
Isto há de passar-lhe.
Resolvendo seguir o conselho da amiga, Annabelle pegou num espelho de
mão para observar as suas nódoas negras.
– Ainda continua muito inchado – disse, tocando com o dedo na
protuberância por cima de um dos seus olhos. – Então, que vais dizer à polícia
quando falares com eles?
Georgie encolheu os ombros e sacudiu a cinza do cigarro para uma
chávena.
– O que quiseres que eu diga.
Annabelle pensou em como o depoimento de Georgie a poderia ajudar,
mas, depois de analisar diversos cenários possíveis, pensou nas suas próprias
declarações e disse:
– Acho que deves manter as coisas o mais simples possível, como falámos
ontem.
– Como queiras, desde que ele não se consiga safar.
Um pálido círculo formou-se em torno dos lábios de Annabelle, quando
esta os comprimiu com raiva.
– Não há hipótese – disse com desdém. – Ele violou-me e sabe o que fez,
portanto, pela parte que me toca, vai para a cadeia e, se tudo correr bem, fica
lá o resto da vidinha dele.
Nat estava deitado na cama, vestindo apenas os boxers, com os braços e as
pernas estendidos sobre os lençóis enrugados e o rosto virado para a parede.
Precisava de tomar um duche e de se barbear e o seu cabelo escuro estava
oleoso, mas não se importava com nada disto. Que lhe importava sentir-se
limpo, se tudo o que queria era estar morto? Uma parte dele queria perguntar à
mãe sobre a aventura do pai, mas outra preferia morrer a fazê-lo. Ela devia
ter-lhe contado. OK, de certa forma ele compreendia porque não o fizera, mas
se tivesse…
Ouvindo alguém bater à porta, Nat disse:
– Não quero pequeno-almoço, obrigado.
– Sou eu – disse Simon, espreitando com a cabeça pela abertura da porta.
– Posso entrar?
Fazendo um esforço para se sentar, Nat esfregou o rosto.
– É claro – disse.
Fechando a porta, Simon foi sentar-se num dos pufes junto à secretária de
Nat.
– Então, como estás? – perguntou.
Nat exibiu um sorriso amargo.
– Estou ótimo – respondeu. – Não há nada melhor do que isto, ser acusado
de um crime que não cometi.
Simon olhou-o com simpatia.
– Ontem, um polícia veio falar comigo – disse.
– Não perderam tempo.
Simon encolheu os ombros.
– Eu disse-lhes como ela é e como estava pedrada quando foi atrás de ti
para o bosque. Ah, sim, e também lhes contei como ela afastou aquela Melody
de ti para se poder aproximar.
Nat acenou com a cabeça e engoliu em seco, sentindo a garganta dar um
nó.
– O que é que as pessoas pensam? – perguntou. – Que sou culpado?
Simon fez uma careta.
– Algumas – respondeu com franqueza –, mas a maioria acha que ela está a
mentir e que, mesmo que não esteja, teve o que mereceu.
O rosto de Nat endureceu.
– Isso ajuda muito – comentou num tom cortante
Mortificado, Simon disse:
– Que aconteceu ao certo, quando ela te seguiu? Segundo parece, ela tem a
cara cheia de nódoas negras…
– Não quero falar mais disso – interrompeu-o Nat. – Ela está a mentir,
OK?
– Sim, bem, eu sei isso, mas que houve para ela apresentar queixa? Eles
não vão…
– Nós tivemos uma discussão, OK? Ela conseguiu chatear-me mesmo a
sério, acabou por cair ao chão e eu agarrei-a pelo pescoço. Foi uma coisa
mesmo estúpida e, quando percebi o que estava a fazer, larguei-a. Então, ela
começou outra vez a provocar-me para eu me enrolar com ela e eu disse que
não queria nada com putas e vim-me embora. Foi quando ela disse que ia dizer
a toda a gente que eu a tinha violado. É óbvio que não gosta que lhe chamem
puta. Voltaste a vê-la depois de eu me vir embora?
– Acho que sim, ao longe. Estava com aquela amiga dela, a Georgie.
– Que estavam a fazer?
– A beber, a dançar um bocado…
Nat franziu os olhos.
– Ela estava a dançar depois de, supostamente, eu a ter violado? – disse
num tom fulminante. – Não parece nada alguém que está em sofrimento, pois
não? Contaste isso à polícia?
– É claro. Achei que era algo que eles iam gostar de saber e que te ia
ajudar. – A seguir, Simon desviou ligeiramente o olhar. – Aqui entre nós, meu,
depois de tudo aquilo que tinha bebido e tomado, é um bocado difícil lembrar-
me exatamente de quando as coisas aconteceram. Quer dizer, sei que a vi, mas,
para ser honesto, pode ter sido antes de ela ter ido atrás de ti. Mas a polícia
não precisa de saber disso, pois não? O que importa é tirar-te desta confusão
toda.
***
Alicia ficou à porta, vendo o Focus afastar-se. Podia ver Nat no banco
traseiro com Croft, mas o filho não se voltou para olhar para trás. Mal o carro
desapareceu de vista, Alicia correu até à cozinha e agarrou no telefone. As
mãos tremiam-lhe tanto que mal conseguia marcar o número. Respirou fundo,
apertou as mãos uma contra a outra e tentou de novo.
– O Jolyon está? – disse, quando a telefonista atendeu. – Tenho de falar
com ele. É da parte da Alicia Carlyle.
– Vou passar a chamada.
– Alicia – disse Jolyon alguns segundos mais tarde.
– Jolyon, eles levaram-no – exclamou Alicia numa voz aguda e angustiada.
– O Nat foi acusado do crime…
– Aguenta aí. Repete-me exatamente aquilo que eles disseram.
– Disseram que o iam prender pela violação de…
– OK, já chega, ainda não é uma acusação formal. Vou descobrir o que se
passa. Sabes para onde o levaram?
– Não perguntei. Eu… aconteceu tudo tão depressa! Jolyon, estão a
cometer um erro terrível…
– Tenta ficar calma – aconselhou Jolyon num tom firme. – É óbvio que
surgiram novas provas.
– Eles já têm os resultados do ADN?
– Não sei. Deixa-me tratar disto.
– Não pode ser isso. Ele não a violou.
– Ligo-te mal saiba o que se passa.
Depois de desligar, Alicia fez um esforço para respirar profundamente,
mas tinha o peito demasiado apertado. Não parava de ver Nat no banco
traseiro do carro, só e com medo, vítima de uma injustiça demasiado terrível.
Não permitiria que fizessem aquilo ao filho dela. O desgosto por que Nat
estava a passar já não era suficiente? Que poderia sair de bom de lhe
destruírem a vida? Nada, a não ser que se fosse uma cabra traidora com
vontade de se vingar da mãe dele.
Alicia saiu de casa e atravessou a aldeia sem parar para pensar no que
estava a fazer. Os portões da casa de Robert estavam abertos. Alicia bateu três
vezes com a aldrava na porta com tanta força, que quase lascou a madeira.
Quando a porta se abriu, os olhos de Sabrina arregalaram-se com o choque.
– Mas que raio…
– Onde está ela? – disse Alicia com raiva. – Quero falar com ela.
– Como te atreves…?
– Ela está a mentir e tu sabes disso. Foste tu que a convenceste. Tu és…
– Ele violou-a – interrompeu-a Sabrina furiosamente.
– Estás a arruinar a vida de um rapaz inocente, porque não consegues
suportar o facto de o Craig não me ter deixado – gritou Alicia. – Ele é filho do
Craig, pelo amor de Deus. Porque lhe queres fazer mal?
– Devias perguntar-lhe a ele porque quis fazer mal à minha filha. Ele
atacou-a e depois violou-a como um animal selvagem.
– Quero falar com a Annabelle.
– Ela não está.
– És uma mentirosa. Tu…
– Não preciso disto – disse Sabrina, começando a fechar a porta.
Alicia impediu-a enfiando um pé pela abertura.
– Onde está ela? – gritou. – Tenho de…
– Mantém-te longe dela – silvou Sabrina. – A Annabelle já sofreu o
suficiente às mãos da tua família.
– Mas porque não pensas no mal que isto lhe está a fazer? Usares a tua
filha assim…
– Ninguém a está a usar. A Annabelle tem ferimentos que chegue para
provar o que ele lhe fez.
– Não foi o Nat quem os fez. Tu és doente, Sabrina, sabes disso? És
obcecada e doente. Isto devia ser entre nós as duas. Arrastares duas crianças
para o meio disto…
– O teu filho meteu-se em problemas sozinho, ninguém teve de o arrastar.
Agora sai daqui antes que chame a polícia.
– Não me vou embora sem falar com a Annabelle – disse Alicia. A seguir,
deu alguns passos para trás, erguendo os olhos para a fachada da casa. –
Annabelle! – gritou. – Por favor, preciso de falar contigo.
– Quantas vezes tenho de te dizer que ela não está? Agora vai para casa e
não te voltes a aproximar de nós.
Antes que Sabrina conseguisse fechar a porta, Alicia atirou-se contra ela.
– Se o meu filho for condenado por um crime que não cometeu, venho cá e
mato-te – cuspiu com cólera.
– Já chega. Vou apresentar queixa contra ti por me ameaçares de morte.
Meu Deus, não admira que o Craig estivesse morto por se ver livre de ti. Tu és
doida. Doida ou estúpida, era o que ele costumava dizer de ti.
– E sabes o que dizia de ti? Que só servias para uma coisa, e nem sequer
eras lá muito boa nisso. E agora parece que estás a ensinar a tua filha a ser
como tu, porque toda a gente sabe que ela é uma ordinária…
Alicia recuou quando Sabrina ergueu a mão.
– Nunca o devia ter deixado ficar contigo – rosnou Sabrina. – Foi só por
causa dos miúdos. O Craig estava mortinho que crescessem para se poder ver
livre de ti. Sabes quais foram as últimas palavras que ele me disse? Amo-te.
Era isso que ele sentia por mim. Quais foram as últimas palavras que ele te
disse a ti?
Alicia começou a responder aos gritos, mas Sabrina não se deteve.
– Tu foste a razão para o Craig andar tão stressado que o coração dele
explodiu. Mataste-o, sua cabra, e agora tens a ousadia de vir até aqui, acusar-
me de mentir e acusares a minha filha de… – Sabrina deteve-se quando um
carro subiu pelo acesso à casa.
– Que diabos se passa aqui? – exclamou Robert, saltando do carro.
– Porque não lhe perguntas a ela? – gritou Sabrina. – Ela veio até cá e
tentou entrar à força…
– Alicia? – disse Robert, virando-se para a irmã.
– Prenderam-no – disse Alicia numa voz trémula. – A polícia levou-o.
Meu Deus, Robert, não consigo suportar isto. Tens de a fazer parar. Ela já
arruinou a minha vida uma vez, por favor não a deixes fazer o mesmo de novo.
***
***
Não era todos os dias que um dos melhores advogados do país aparecia
para tratar da fiança de um detido. Quando o Queen’s Counsel Oliver
Mendenhall entrou na área de detenção com Jolyon Crane e Nathan Carlyle,
houve um momento de silêncio assombrado. Mendenhall tinha uma figura
intimidante, com o seu metro e noventa, olhos castanhos de coruja, imponente
nariz romano e uma boca fina e determinada, cujo aspeto melhorava bastante
quando sorria. Contudo, não se viam vestígios de qualquer sorriso enquanto
Mendenhall falava calmamente com o seu cliente, antes de o apresentar ao
agente encarregado da área de detenção para conhecer formalmente a
acusação.
– Devem estar preocupados, se já foram buscar os pesos pesados – disse
Bevan baixinho a Croft.
Quando Nat avançou, o seu rosto estava tão pálido que quase se podiam
ver os ossos sob a lividez da pele. Os seus olhos estavam brilhantes de medo
e dilatados de pânico. Aquilo era uma acusação oficial. Ia mesmo a
julgamento por violação.
Bevan começou pelas advertências oficiais. Inicialmente, as palavras
pareceram fazer ricochete no choque em que estava mergulhado, mas, depois,
como um rádio que sintonizava e perdia de novo a estação, começaram a
penetrar na sua consciência…
– … poderá prejudicar a sua defesa se, ao ser interrogado, não mencionar
factos que depois invoque em tribunal… – Depois disto, desapareceram de
novo e a próxima coisa que Nat ouviu foi: – Compreendes, rapaz?
Nat olhou para Bevan.
– Ele compreende – interveio Mendenhall.
Nat sentiu a mão do advogado pousar no seu ombro e, a seguir, sentiu-se
de novo completamente entorpecido. A área de detenção parecia-lhe um local
estranho e apinhado de gente, parte de um mundo em que entrara por engano e
do qual, estupidamente, não conseguia escapar. Era como se tivesse ficado
preso numa rede onde, a cada movimento que fazia para se libertar, só
conseguia enredar-se mais e mais. O pai estava ali, mas Nat não podia chegar
junto dele. A luta estava a transformar-se em pânico, o pai virava-lhe as
costas…
A mão de Oliver apertou-lhe o ombro novamente e Nat apercebeu-se de
que o agente encarregado da área de detenção e Croft estavam a olhar para
ele. Havia também uma mulher que nunca vira antes. Algures em segundo
plano, havia polícias a andar de um lado para o outro. Numa cela, um bêbado
chamava por Deus aos gritos.
– Nathan Douglas Carlyle – disse Bevan gravemente –, está acusado de, na
noite de vinte e nove de julho, na aldeia de Holly Wood, no Somerset, tendo
menos de dezoito anos de idade, designadamente dezassete, ter
intencionalmente penetrado com o seu pénis a vagina de Annabelle Preston, de
quinze anos de idade, sem o consentimento dela, não podendo razoavelmente
presumir que a vítima tinha dezasseis anos de idade ou mais. – Bevan deteve-
se e olhou para Nat. – Tem alguma coisa a dizer?
– Não – respondeu Mendenhall.
A resposta foi registada no computador e, seguidamente, o agente carregou
com o pé num botão por baixo da sua mesa.
– Faça o favor de assinar – disse, quando um pequeno visor eletrónico se
iluminou sobre o balcão, em frente de Nat.
Pegando na caneta que Mendenhall lhe colocou na mão, Nat olhou para o
aparelho. Mendenhall murmurou-lhe algo ao ouvido e Nat estendeu o braço,
inscrevendo uma trémula imitação do seu nome sobre o visor. Sentindo-se
prestes a vomitar, afastou-se do balcão outra vez e tentou ouvir enquanto o
agente de serviço e Mendenhall falavam entre si, mas as palavras eram como
flechas que não conseguiam furar a superfície do seu entendimento. Escutou
qualquer coisa sobre a não existência de condenações anteriores, seguida pela
fixação de medidas de coação e, depois, uma data: seis de agosto.
Enquanto Jolyon e Mendenhall o conduziam em direção à porta das
traseiras da esquadra, ouviu o sargento-detetive Bevan dizer a alguém:
– É um crime grave; por essa razão o processo vai direito para um
Tribunal da Coroa.
Mendenhall voltou-se, dirigiu a Bevan um olhar fulminante e depois, com
um aceno de cabeça para o agente que esperava para abrir a porta, saiu para o
exterior e consultou o relógio.
– Tenho de voltar para Londres – disse a Nat –, mas não quero que te
preocupes com nada. Vamos resolver isto tudo.
Nat olhou-o com uma expressão de sofrimento. Mendenhall brindou-o com
um dos seus raros sorrisos.
– Entendes o que vai acontecer a seguir? – disse. – Eu vim cá tratar da
fiança, para que pudesses ser libertado e ficar sob a custódia do Jolyon até
quarta-feira, que é quando tens de comparecer perante o Tribunal de Menores.
O Jolyon vai contigo nessa ocasião, porque é só uma formalidade. Ele vai-me
informar dos prazos para apresentação de intimações, coisa que faremos
juntos, a não ser que consiga fazer com que a Coroa veja a razão e arquive o
caso antes de as coisas chegarem tão longe.
Encontrando forças no tom confiante de Mendenhall, foi com uma voz
menos trémula que Nat disse:
– Obrigado.
Mendenhall acenou com a cabeça e, depois de uma breve troca de
palavras com Jolyon, despediu-se de ambos com um aperto de mão e entrou
para o carro. Enquanto saía do parque de estacionamento da esquadra,
Mendenhall ligou a Alicia.
– Ele está com o Jolyon – disse, quando ela atendeu. – Marcaram a
audiência no Tribunal de Menores de Wells para a próxima quarta-feira. Não
vai ser nada de mais, só vai servir para marcar datas, e há uma boa hipótese
de conseguir o arquivamento do processo pouco depois disso.
– Obrigada – sussurrou Alicia.
– Não te preocupes – disse Mendenhall –, ele está em boas mãos – e,
desligando, ligou ao seu assistente, pronto para lhe dar instruções sobre as
pessoas a contactar e os locais a visitar para conseguir o apoio de que poderia
vir a necessitar nas semanas que se avizinhavam.
Capítulo Dezoito
Alicia acordou sobressaltada. O seu coração batia descompassadamente e
tinha o corpo alagado de suor. Estava a sonhar e, no seu sonho, Nat violava
Annabelle com o rosto desfigurado de raiva, investindo contra ela com fúria
enquanto a rapariga gritava e lhe suplicava para parar. A seguir, já não era
Nat, mas um estranho, um monstro, e a menina que estava a ser atacada era
Darcie, enquanto Sabrina observava, procurando afastar Craig quando este
tentava salvar a filha.
Respirando fundo várias vezes, Alicia passou a mão pelo cabelo,
esperando que as imagens acabassem de se desvanecer. Então, ainda trémula e
desnorteada, balançou as pernas para fora da cama e desceu às apalpadelas
até à cozinha para preparar um chá. Eram cinco da manhã e o sol começava a
despontar, pelo que já não iria voltar para a cama, sobretudo porque a última
coisa que queria era mergulhar novamente naquele pesadelo horrível. Naquele
dia tinha muito que fazer. Assim, num esforço para varrer do cérebro tudo o
que a pudesse atrapalhar e assegurar a si mesma de que, realmente, não
acreditava que Nat pudesse ter feito aquilo, procurava lembrar-se
continuamente da calma e da assertividade com que Oliver Mendenhall falara,
quando lhe telefonara na noite anterior. Depois de conversar com ele, já não
lhe parecia que Nat e ela estavam presos numa linha férrea, diante de um
comboio que avançava a grande velocidade. Apesar de tudo, só Deus sabia
como o seu horror atingira um novo patamar quando Jolyon ligara para a
informar de que o filho seria formalmente acusado.
Agora, tinha de se preparar para enfrentar a próxima provação: ir buscar
Darcie ao comboio e decidir o que lhe contar, quando a filha perguntasse onde
estava o irmão. Sabendo como Darcie provavelmente reagiria mal, precisava
de lhe apresentar as coisas da maneira mais leve possível, ou talvez lhe
pudesse simplesmente dizer que Nat fora estagiar com Jolyon mais cedo do
que o previsto. Era capaz de se conseguir safar com a mentira, pois,
independentemente das provas que a polícia achasse que tinha, Oliver e Jolyon
conseguiriam certamente miná-las de tal forma, que os juízes não iriam sequer
conseguir perceber como o caso pôde chegar a tribunal, se, com efeito, lá
chegasse. O espetro da acusação de sexo ilícito com uma menor continuava a
pairar no horizonte, Alicia sabia-o bem, mas quando falara com Jolyon antes
de ir dormir, na noite anterior, este dera uma importância quase nula ao
assunto, dizendo-lhe para não pensar mais nisso, porque encontrariam uma
maneira de arquivar também essa acusação.
Decidindo não se atormentar com o que Sabrina poderia ter a dizer a este
respeito, Alicia foi até ao andar de cima para tomar um duche e se vestir.
Quando procurava uma blusa limpa no roupeiro, para usar com as calças de
ganga, pensou ter sentido um leve vestígio da água de colónia de Craig. Sabia
que, provavelmente, isto se devia ao facto de o odor ter ficado impregnado em
algum dos seus vestidos, mas deu por si a pensar no marido tão intensamente
que conseguiu sentir a sua presença e de uma maneira tão forte, que se voltou,
quase esperando vê-lo ali. O quarto estava vazio, mas, quando Alicia fechou
os olhos para conter as lágrimas, foi invadida pela memória de como ele a
costumava abraçar, com as coxas pressionadas contra as dela, com as ancas, o
peito, o corpo inteiro envolvendo-a de forma tão protetora e carinhosa, que
Alicia quase ergueu os braços para o abraçar.
– Se estás aí, se me consegues ouvir – sussurrou na sua mente –, por favor
diz-me o que fazer. Temos de o ajudar.
Não houve resposta, nem Alicia realmente esperara que houvesse, mas o
silêncio pareceu-lhe mais denso, estranhamente mais próximo e tão carregado
como o seu coração.
Depois de vestir a blusa, escovou o cabelo e foi até ao quarto de Darcie,
do outro lado do patamar. Durante um longo momento, limitou-se a contemplar
as coisas da filha, desejando não pensar em nada senão nela durante uns
momentos. Darcie estava fora há tanto tempo, e tinham acontecido tantas
coisas desde aquela última semana, que Alicia se sentia agora culpada por
achar que a filha lhe merecera menos atenção ultimamente. Felizmente, Darcie
ignorava a negligência por completo.
– Mãe, pai, tenho de escrever uma adivinha para a aula de Inglês, por isso,
aqui está – anunciou Darcie, entrando na salinha onde Alicia e Craig estavam
relaxadamente sentados no sofá, a ver TV. Tirando o som ao televisor, Craig
disse:
– OK, esquilinho, manda lá.
Darcie colocou-se no meio da divisão, segurando o caderno nas mãos e
balançando o corpinho magro de um lado para o outro enquanto lia em voz
alta.
– Qual é a coisa que não tem tempo nem espaço, pode fazer-nos rir e
chorar e está sempre connosco, mesmo que não a possamos ver nem tocar? Ah,
sim, e pode partilhar-se, mas se calhar vou deixar esta parte de fora.
Intrigado, Craig olhou para Alicia. Alicia esforçava-se por descortinar a
resposta, mas, no fim, teve de se dar por vencida.
– Querem que vos dê uma pista? – perguntou Darcie.
– Sim, por favor – respondeu Craig.
– Pode escrever-se um livro com este nome para contar coisas da nossa
vida…
– Hmm, um livro com o mesmo nome… – repetiu Craig.
Alicia sorriu, suspeitando que o marido já devia ter adivinhado a resposta.
No entanto, como Alicia bem sabia, Craig nunca iria responder, para não
estragar o momento de triunfo da filha. Darcie continuava com os olhos
colados no pai e o seu bonito rosto brilhava de excitação. Como sempre, era a
ele que ela queria impressionar.
– OK, desisto – disse Craig por fim.
– São as memórias – exclamou Darcie, comemorando a vitória aos saltos.
Craig pareceu totalmente espantado.
– É claro – disse. – As memórias. Inventaste a adivinha sozinha?
Darcie acenou com a cabeça orgulhosamente.
– E só tens nove anos?
Darcie acenou com a cabeça de novo.
– Então, acho que isto merece um abraço de pai muito especial – declarou
Craig e, pondo-se de pé de um salto, agarrou-a nos seus braços e rodopiou
com ela pela sala enquanto Darcie soltava gritinhos deliciada.
***
Quando Annabelle entrou na cozinha, usando uma blusa sem mangas por
cima de um comprido páreo azul, os seus olhos estavam cansados e injetados
de sangue e o rosto exibia manchas vermelhas irregulares.
– Onde vai a minha mãe? – perguntou a Robert, enquanto o carro de
Sabrina descia o acesso à casa.
– Buscar a Bethany Cottle – respondeu Robert, concentrado nos papéis
espalhados à sua frente na mesa.
– Para quê? – perguntou Annabelle com animosidade. – Não me dou com
ela e, seja como for, já disse que preferia ficar sozinha logo à noite.
Robert fez um gesto na direção do telefone.
– Podes sempre ligar à tua mãe e dizer-lhe para voltar para trás – disse,
virando uma página.
Ignorando a sugestão, Annabelle foi até ao frigorífico e tirou para fora um
grande bloco de queijo Cheddar. Depois de cortar uma grossa fatia, olhou para
Robert de relance. – Queres uma tosta de queijo? – perguntou, num tom que o
convidava a aceitar.
– Não, obrigada – respondeu Robert, escondendo a sua surpresa, uma vez
que, desde há algum tempo, a enteada raramente se preocupava com alguém
que não ela mesma.
Depois de encontrar um pãozinho, Annabelle abriu-o, colocou o queijo no
meio e enfiou o conjunto na torradeira.
– Não é assim que se faz – disse Robert num tom suave.
– Eu sei.
Robert fez algumas anotações numa página, voltando-a a seguir.
– Queres ajuda? – perguntou.
– Está tudo bem, sei fazer isto.
Um instante depois, Annabelle retirou a sanduíche da torradeira e colocou-
a no grelhador.
– Que estás a fazer? – perguntou a Robert, erguendo os olhos do exame que
fazia às unhas.
– Faço parte do júri de um prémio para jovens cientistas – respondeu
Robert –, por isso estou a analisar alguns dos trabalhos a concurso.
– Hmm – mastigou Annabelle. – E então, prestam para alguma coisa?
– Alguns, sim.
Com um suspiro, Annabelle afastou-se até à janela e ficou a olhar para o
jardim. Robert achava-a tensa e zangada, ou talvez estivesse apenas nervosa,
não conseguia perceber bem. Então, de súbito, Annabelle disse:
– Porque não a deixaste?
Sabendo exatamente o que Annabelle queria dizer, mas mantendo o ar de
quem continuava mergulhado nas suas leituras, Robert disse:
– As coisas não eram assim tão simples.
Annabelle permaneceu de costas voltadas para ele.
– Porque não? Oh, queres dizer que esta casa é tua, por isso terias de a
expulsar daqui para fora. Mas porque não o fizeste? Era isso que eu faria, se
estivesse no teu lugar.
– Não teve nada a ver com a casa – respondeu Robert –, mas com o laço
que a tua mãe e eu partilhamos, apesar de tudo o que se passou.
Depois de digerir a resposta, Annabelle voltou-se e encostou-se ao balcão
da cozinha.
– Mas não te incomodou vê-la perder a cabeça por causa de outro homem?
– perguntou, exasperada.
– É claro que sim.
– Então, não compreendo porque não lhe disseste para se ir embora.
Robert pousou a caneta, sentou-se para trás na cadeira e fixou-a. Embora
Annabelle tentasse fazer parecer que a conversa era sobre a mãe, Robert sabia
que, na verdade, o assunto era ela própria, e a forma como lidara com os
últimos dois anos.
– O que a tua mãe sentia pelo Craig – disse, decidindo ser o mais honesto
possível, apesar do quanto aquilo o estava a magoar – era como uma
obsessão. Consumia-a por completo, tornando-a quase incapaz de pensar em
qualquer outra coisa. Não há realmente explicação para estas coisas, mas elas
acontecem, é tudo. Podes chamar-lhe paixão assolapada, amor louco, fixação,
o que quiseres, mas, enquanto acontece, as pessoas envolvidas não conseguem
ver mais nada. É como se nada mais existisse. Quando a ligação da tua mãe
com Craig chegou ao fim, ela não conseguiu aguentar, foi de mais para ela.
Durante muito tempo, a Sabrina não esteve realmente no seu juízo perfeito, por
isso, de todas as vezes que ela te ignorou, ou te afastou, ou disse coisas que te
magoaram, nada disso foi a sério. Ela não conseguia evitar agir daquela forma,
estava a sofrer de um mal que demorava tempo a curar.
– Eu acho que ela estava só a ser egoísta, que só pensava nela própria sem
se importar a mínima com mais ninguém – afirmou Annabelle num tom
acalorado.
– O amor é muito egoísta – concordou Robert –, e essa foi, em parte, a
razão por que não lhe pedi para deixar esta casa. Isso também foi egoísta da
minha parte, porque não só a teria perdido a ela, o que não queria de modo
nenhum, como te teria perdido a ti, e para mim isso estava fora de questão. Eu
sei que não sou o teu pai biológico, mas penso em ti como minha filha e
antes… Bem, antes de as coisas começarem a descarrilar, não sei se te
lembras, mas, de vez em quando, costumavas chamar-me pai. Eu gostava
muito. Sentia-me mesmo muito orgulhoso ao pensar em ti como minha filha.
O rosto de Annabelle contraiu-se para ocultar a confusão que sentia.
– Acho que a devias ter expulsado daqui – disse agressivamente. – Ela não
merece uma pessoa como tu.
Robert sorriu.
– Estou a falar a sério – insistiu Annabelle. – Ela não se importa com mais
ninguém. A única coisa que lhe interessa é ela mesma.
– Ela gosta muito de ti.
Os lábios de Annabelle arquearam-se.
– Sim, está-se mesmo a ver – disse sarcasticamente. – Não a afetava
minimamente se eu me fosse embora e nunca mais voltasse.
– Na verdade, iria afetá-la muito. E a mim também, portanto, espero que
não estejas a pensar fazer isso.
Annabelle virou a cabeça para o lado. Quando parecia prestes a
acrescentar algo mais, Robert disse, num tom muito suave:
– Posso dar-te um conselho?
Annabelle ficou imediatamente tensa.
– O grelhador funciona melhor se o ligares – disse Robert.
Os olhos de Annabelle dispararam na direção do aparelho e, decidida a
não desatar a rir, disse num tom duro:
– Também já não tenho fome – e, atirando o cabelo para trás das costas,
foi-se embora para o quarto.
Alicia acreditara nele, até que Craig passou a noite fora de casa na quarta-
feira seguinte. Apesar de telefonar para o hotel junto ao Tribunal da Coroa de
Winchester e de lhe passarem a chamada para o quarto, onde o marido
atendera de imediato, não tinha maneira nenhuma de saber se Sabrina estava
ou não com ele.
– Desculpa, Alicia – disse Rachel num tom enérgico –, não vou discutir
mais isto. Vais deixar-me pagar o transporte dessas esculturas para Londres,
ponto final.
– Mas tu… – começou Alicia.
– Mãe! – protestou Darcie. – Não podes perder esta oportunidade só
porque não temos o dinheiro disponível. E se os teus trabalhos se vão vender
tão facilmente como o Cameron acha, podes sempre devolver o dinheiro à
Rachel.
– Sim, mas o que eu…
– És capaz de parar com as objeções, por favor? – interrompeu Rachel. –
Já tomei a minha decisão, portanto, Darcie, tudo o que falta fazer agora é
encontrarmos uma empresa que transporte as peças da tua mãe. Tem de ser
uma com todas as garantias, já que agora sabemos o quanto elas valem.
– O Nat pode embalá-las – decidiu Darcie. – Ele sabe muito bem como o
fazer, porque já foi ele que tratou disso quando nos mudámos para cá. Que
queres dizer com isso, que têm de ter todas as garantias?
– Que têm de ter um seguro. Olha, para dizer a verdade, estou tentada a
comprar uma das tuas esculturas para mim. Não que antes não quisesse, mas,
como eu costumo dizer, porquê pagar algumas centenas de libras quando podes
pagar uns milhares? Ora aí tens – disse para Alicia –, fizeste a tua primeira
venda. Por isso, já me podes devolver o dinheiro e ainda nem to emprestei,
portanto, para lá de te queixar.
Não conseguindo evitar de rir, Alicia disse:
– Não me estava a opor, tu é que não me deixas falar. Aceito de bom grado
um empréstimo para pagar o transporte das esculturas para Londres, mas nem
pensar que te vou levar dinheiro por…
– Lá está ela de novo – disse Rachel para Darcie. – Vamos lá para fora
continuar a nossa conversa, ou a tua mãe vai acabar por me tirar do sério, a
tentar dar-me uma obra de arte de graça quando eu quero pagar uma pequena
fortuna.
Quando Darcie deu o braço a Rachel e a conduziu ao jardim, Alicia virou-
se para Nat, que não se tinha pronunciado desde que ela lhe falara da reação
de Cameron ao seu trabalho.
– Estás muito calado – arriscou Alicia, esperando que a descontração dos
últimos momentos não tivesse dado a Nat a impressão de que os seus
problemas tinham perdido importância.
– Estou bem – disse Nat.
– E então, achas que são mesmo boas notícias, ou estou-me a entusiasmar
demasiado?
– Parecem boas – respondeu ele.
Ainda sem conseguir perceber o que o filho estava a pensar, mas certa de
que se relacionava com o pai, Alicia disse:
– Se não as quiseres embalar…
– Não há problema, eu faço isso. Quando precisas de ter tudo pronto?
– Ainda não sei – disse Alicia.
Sentando-se à mesa, pousou as suas mãos sobre as dele, mas logo de
seguida recuou involuntariamente, quando Nat se afastou com rapidez.
– Vou para cima – disse ele. – Preciso de fazer um telefonema.
Vendo-o avançar pelo átrio fora, Alicia disse:
– Já falaste com a Summer?
Para sua surpresa, o filho voltou-se.
– Porquê? Ela ligou?
– Não, estava só a pensar se terias chegado a falar com ela a semana
passada. Como estão a correr as coisas em Itália?
Nat baixou os olhos.
– Acabou tudo – murmurou baixinho e, antes que a mãe conseguisse dizer
mais alguma coisa, começou a subir as escadas, galgando dois degraus de
cada vez em direção ao seu quarto.
Alicia ficou a olhar para o átrio. Aquela maré de infortúnio tinha de ter um
fim, implorava Alicia em pensamento. Tinha de ter, porque o filho não
conseguia aguentar mais nada – e, se ele não conseguisse, então ela também
não seria capaz.
Capítulo Vinte e Um
Alicia passara as duas últimas semanas às voltas pelo campo com
Cameron, em busca de inexplorados talentos artísticos e casas até um milhão
de libras. Na maioria das vezes, Darcie e Jasper acompanhavam-nos, e até Nat
se juntara a eles num par de ocasiões. Nat desenvolveu uma relação incrível
com o cão e levava-o em longas caminhadas para brincar incansavelmente a
atirar-lhe uma bola enquanto o resto do grupo inspecionava casas antigas em
ruínas e obras de arte tão feias de fazer cair o queixo. No entanto, a busca de
talentos não fora totalmente infértil, uma vez que haviam descoberto um
maravilhoso e exuberante hippie de sessenta anos com uma grande coleção de
aguarelas, que Alicia tinha a certeza de conseguir vender, e um oleiro rústico e
extremamente dotado que, por razões que não quiseram aprofundar, se
apresentara como Flash Gordon.
Apesar de as peças de Alicia já terem sido transportadas para Londres,
Cameron decidira mantê-las em armazém até que ela tivesse tempo para ir à
capital colaborar na organização da exposição do seu trabalho. Não era que
estivesse assim tão ocupada no Somerset, mas a relutância dos filhos em
visitar Londres, por medo de não quererem voltar para Holly Wood, estava a
refreá-la. Apesar de nunca terem realmente conversado com ela sobre o
quanto desejavam voltar para as suas antigas escolas e amigos, no fim do
verão, Alicia ouvira-os falar entre si, e o coração doía-lhe com a vontade de
fazer os seus desejos tornarem-se realidade. Daria tudo para ser capaz de
mudar o curso dos próximos meses, especialmente para fazer desaparecer o
julgamento iminente de Nat, mas Robert telefonara-lhe de França para a avisar
de que não estava a conseguir fazer progressos com Annabelle, por isso, Nat
deveria estar preparado para aquilo ir até ao fim. “Se achasse que era a
Sabrina que a estava a incitá-la a fazer isto”, dissera o irmão, “dizia-te e
punha-lhe cobro. Mas, tanto quanto pude perceber, a decisão é unicamente da
Annabelle e ela não se deixa demover.”
Desanimada e irritada com a notícia, Alicia procurou empenhar-se a fundo
na sua dupla operação de busca, mas, à medida que o dia do regresso de
Annabelle se aproximava, o humor de todos começou a mudar. Parecia que o
verão estava a chegar a um fim prematuro e nuvens escuras ocultavam o céu,
quando, na realidade, sob aquele manto, este permanecia azul e estival. No dia
antes de Annabelle voltar, o céu descobriu-se, mas, a seguir, o sol não pareceu
voltar a ter energia para brilhar tão intensamente.
A única coisa boa no regresso de Annabelle foi que coincidia com o
estágio oficial de Nat no escritório de Jolyon. Durante as duas semanas
seguintes, Nat iria para Bristol, onde já não estaria sujeito às lealdades
divididas da aldeia ou ao incómodo e humilhação de não poder ir até à rua
principal. Quando voltasse para casa, já saberia os resultados dos últimos
exames da escola, que deviam ser bons, e depois restavam apenas três dias até
Nat e Darcie começarem a escola em Stanbrooks, ele no último ano e ela no
oitavo. Alicia não sabia quem receava mais o momento, mas supunha que
fosse Nat, uma vez que metade da sua turma provavelmente já teria
conhecimento do que se passava.
– Se pelo menos o conseguisse matricular noutro sítio, longe do Somerset
– lamentou-se a Jolyon quando levou o filho de carro a sua casa, onde ficaria
durante o estágio. – O Nat não devia ter de passar por uma coisa assim; pode
afetá-lo para o resto da vida.
– Não há dúvidas de que será uma experiência que o Nat não irá esquecer
– concordou Jolyon –, mas o Oliver mantém um contacto regular com o
Serviço de Acusação da Coroa e ainda temos esperanças de conseguirmos
fazer arquivar a acusação de violação. É claro, ainda teremos a questão das
relações ilícitas devido à idade dela, mas primeiro temos de resolver o
problema maior.
– O Oliver tem de conseguir – disse Alicia com premência. – Este
julgamento não pode acontecer, não pode.
Apesar de Nat não conseguir ouvir o que a mãe e Jolyon diziam enquanto
desfazia as malas no quarto, sabia qual deveria ser o assunto, porque, a seguir
ao que lhe parecia uma trégua de duas semanas, com Annabelle longe, o seu
próprio sentido de fatalidade estava a regressar em força. Começar o ano na
nova escola era o primeiro obstáculo que teria de superar, previsivelmente
com toda a gente a tomar o partido de um ou de outro, tal como tinham feito na
aldeia, mas pior, muito pior, seria se acabasse mesmo por ser julgado. O facto
de setenta por cento dos casos de violação acabarem por ser arquivados antes
de irem a julgamento não lhe servia de grande consolação, uma vez que
esperara que Oliver tivesse conseguido anular a acusação logo a seguir à
primeira audiência. Ao invés, o tempo passava e o ministério público parecia
continuar a acreditar na solidez daquele caso. A perspetiva horrenda,
impensável, de se ver acusado de violação no tribunal, julgado por um júri e,
a seguir, possivelmente mandado para a prisão durante, pelo menos, cinco
anos, numa altura em que deveria estar a estudar na faculdade de direito,
começava a abater-se sobre ele com um peso terrível e asfixiante.
– Mãe, olha o que encontrei no fundo de uma gaveta – disse Darcie, saindo
do velho escritório da avó para a sala de jogos, onde Alicia estava a passar
em revista os dossiês e livros que tirara da secretária da mãe.
Olhando para a pequena caixa que Darcie largou sobre o banco de
trabalho, Alicia perguntou:
– Que há aí dentro?
– Sobretudo cartas do avô – disse Darcie, tirando uma para fora.
Vendo a caligrafia familiar do pai ao longo da folha que Darcie
desdobrava, Alicia sentiu a nostalgia invadir-lhe o coração.
– Quantas há? – perguntou Alicia, pegando na folha.
– Imensas. A caixa está cheia. Não é querido que a avó as tenha guardado?
Alicia sorriu.
– Quando será que ela as leu pela última vez…? – perguntou Alicia,
olhando para a data da carta que tinha na mão. Para sua surpresa, era de antes
de os pais serem casados.
– As pessoas agora já não escrevem cartas, pois não? – disse Darcie.
Alicia abanou a cabeça.
– É uma pena, mas tens razão.
– Não tens nenhuma do pai?
Desejando que as tivesse, Alicia disse:
– Guardei todos os postais que ele me enviou ao longo dos anos e mesmo
alguns dos recados que o teu pai deixava para me avisar de que ia chegar
tarde, ou pedir para ir buscar a roupa dele à lavandaria ou que lhe pusesse um
programa a gravar.
Darcie torceu o nariz.
– Guardas esse tipo de bilhetes parvos? – disse.
Sorrindo, Alicia disse:
– Os bilhetes não diziam só isso. O resto só me diz respeito a mim e tu só
vais perceber quando fores mais crescida. Será que devíamos ler estas cartas?
– Ah, acho que até devemos – disse Darcie, que claramente não partilhava
dos escrúpulos da mãe. – Quer dizer, não podemos simplesmente deitá-las
fora, seria como se não tivessem valor nenhum para nós, e isso não seria
correto. Se queres saber a verdade, acho que, se a avó estivesse aqui, nos
diria para irmos em frente. No fim de contas, se não queria que as víssemos,
porque as guardou, quando não lhe faltaram oportunidades para se livrar
delas?
– Vendo as coisas assim, acho que podíamos dar uma olhadela – disse
Alicia. – Mas só gostava de saber porque estás tão interessada.
Darcie olhou-a com uma expressão inocente.
– Nunca conheci o avô – lembrou –, por isso é uma maneira de o ouvir
falar. Bem, mais ou menos, tu sabes o que quero dizer.
Inclinando-se para lhe dar um beijo, Alicia disse:
– Sei exatamente o que queres dizer, e exprimiste-te muito bem. Agora, vai
atender o telefone e voltamos a meter as cartas na gaveta até termos tempo
para as vermos melhor.
Regressando alguns minutos mais tarde, Darcie disse:
– Era o Cameron. Pediu-me para te dizer que está a caminho e, se
quisermos sair para jantar, vai ter de ser num pub, porque ele traz o Jasper.
Sorrindo, Alicia disse:
– Vens connosco ou queres que te deixemos em casa da Rachel?
Darcie olhou para ela com um ar inseguro.
– Não há problema se eu for? – perguntou.
Surpreendida pela hesitação da filha, Alicia disse:
– Claro que não. Porque haveria de haver?
Darcie encolheu os ombros.
– Não sei. Podias preferir estar sozinha com ele e achar que eu estava a
mais.
Alicia abriu a boca de espanto, rindo.
– O Cameron e eu não temos nenhum relacionamento – disse num tom
firme. – Somos só amigos e, além disso, se ele pode trazer o Jasper, tenho a
certeza de que te posso levar a ti. Sei que ele vai insistir.
Darcie alegrou-se de imediato.
– Gosto mesmo, mesmo dele – disse num tom caloroso. – É tão engraçado,
não é? Sempre a correr atrás da bola e a tentar ser amigo de toda a gente.
Quem me dera que tivéssemos um cão, tu não?
Uma vez que, inicialmente, Alicia pensava que a filha estava a falar de
Cameron, demorou a reagir, mas finalmente disse:
– Para ser sincera, tenho andado a pensar nisso e, depois de a loja estar a
funcionar em pleno e as nossas finanças um pouco melhores, se calhar é uma
hipótese.
Darcie desatou aos saltos.
– Vamos arranjar um igual ao Jasper, por favor, por favor. São os melhores
e o Nat também quer um.
Abraçando-a, Alicia disse:
– OK, mal possamos vamos procurar na internet se alguém na zona tem
uma cadela que vá ter uma ninhada. Ou também podemos procurar um
cachorro num canil ou associação.
– Oh, sim, isso era mesmo fixe – concordou Darcie. – Desde que o cão não
tenha problemas de comportamento ou agressividade, nem nada do género.
Podíamos dar-lhe uma boa casa, não era?
– Acho que sim – disse Alicia, sentindo de súbito a dor de alargar a
família sem a presença de Craig. O seu primeiro instinto foi voltar atrás na
promessa, em vez de dar mais um passo que fosse na direção do futuro sem
ele, mas, forçando-se a sorrir para lá da mágoa que sentia no coração, disse:
– Acho que nos devemos ir arranjar, não?
Enquanto Darcie corria pelas escadas acima à sua fente, Alicia seguia-a
num passo mais calmo, consciente de que a sua relutância em planear uma vida
sem Craig ainda a estava a retrair, como se, agora, os seus sonhos estivessem
presos dentro das recordações.
– OK, cada um de vocês tem uma – anunciou Darcie, entregando uma folha
de papel ao pai, à mãe e a Nat. Então, de súbito, agarrou nas folhas de novo. –
Não, vou ler eu – decidiu, empilhando as folhas num montinho alinhado.
– O que é? – perguntou Nat, espreguiçando-se com indolência e depois
contorcendo-se a rir quando Alicia lhe espetou o dedo na barriga peluda e
exposta.
Era domingo de manhã e Craig e ela ainda estavam deitados, com Nathan
vestido com boxers e t-shirt, espraiado na cama ao lado da mãe, e Darcie, que
fora arrancar o irmão a uma bela manhã de sono para assistir ao grande
evento, sentada de pernas cruzadas e encostada ao apoio dos pés da cama.
– Daah, são os poemas que estive a escrever para vocês – lembrou ao
irmão.
Nat virou a cabeça para Alicia.
– Mal posso esperar – mastigou Nat, o que lhe mereceu uma cotovelada de
aviso nas costelas.
– Ouvi o que ele disse – queixou-se Darcie, olhando para o pai.
– Ignora-o, esquilinho – disse Craig. – O teu irmão tem um sentido
artístico subdesenvolvido, não é como tu, fofinha. Mas anda lá, brinda-nos
com a magia das tuas palavras.
Darcie riu com vontade.
– OK, aqui vai – disse, olhando para a primeira folha. – Este é para ti, pai.
– “O meu pai é advogado, forte e alto, / manda as pessoas para a prisão
por crimes que causam sobressalto, / gosto muito dele, do fundo do coração, /
tê-lo por pai é melhor que ter uma varinha de condão” – quando terminou,
ergueu os olhos, com uma expressão deliciada.
– Fantástico – disse Craig, num tom entusiasmado. – Muito bem,
esquilinho. Posso ficar com ele?
– Vou arranjar-te uma cópia – respondeu Darcie. – Agora o teu, mãe –
disse a Alicia. – Estás pronta?
Ainda a tentar disfarçar o sorriso que a resposta anterior lhe provocara,
Alicia disse:
– Prontíssima.
– “A minha mãe é escultora, magra e bela, faz coisas de aço e bronze,
segue os caprichos do espírito dela, / adoro-a muito, do fundo da alma, / tê-la
por mãe faz-me sempre manter a calma.”
Os olhos de Darcie cintilavam de orgulho ao olhar para Alicia.
– Brilhante! – declarou Alicia. – Adoro. Também me podes arranjar uma
cópia?
Darcie acenou com a cabeça com um ar importante.
– Ia terminar com o verso “E ela fez de mim uma obra de arte calma” –
disse, olhando de novo para o poema. – Ainda posso mudar, tenho de pensar.
OK, Nat, é a tua vez. Estás pronto?
– Diz lá – encorajou-a ele.
– “O meu irmão é um chato, mas gosto dele na mesma, / chama-se Nat e
não é nenhum pato”…
– Não é nenhum pato – troçou Nat. – Que tipo de poema…
Darcie ergueu os olhos, ofendida, enquanto a mãe tapava a boca de Nat
com a mão.
– Continua – disse Alicia suavemente.
Darcie olhou para ele com fúria e, depois, voltou a baixar os olhos para o
poema:
– “Chama-se Nat e é mesmo, mesmo pato” – corrigiu-se. – “É um ás no
desporto, alto e moreno, / se um dia tiver problemas, quero-o a meu lado no
terreno.”
Darcie ergueu os olhos insegura.
– É mesmo giro – disse Nat, aplaudindo. – Estamos diante de uma futura
escritora famosa. Também me podes dar uma cópia?
– Não, porque ainda dizes que te vai dar jeito na casa de banho, ou para
limpar o ranho. – A seguir, os seus olhos reluziram de novo. – Olha, também
rimou – disse, dirigindo-se ao pai.
Rindo, Craig agarrou-a nos braços e deu-lhe um grande beijo na bochecha.
– Vou mandar emoldurar os três – disse – e vamos pendurá-los nos nossos
quartos.
Darcie pareceu gostar da ideia, até que torceu o nariz, queixosa.
– Mas eu não vou ter um – fez notar.
– Oh, sim, vais – disse Craig –, porque o Nat vai escrever um para ti, não
vais, filho?
– Vão passear – exclamou Nat. – Eu…
– E – interrompeu-o Craig –, vai fazê-lo agora mesmo. De modo que
vamos lá a meter mãos à obra, Nat. Deslumbra-nos a todos com o teu génio
poético, mostra lá como és muito melhor que a tua irmã. – Depois, num
sussurro, disse a Darcie: – Não lhe vai sair nada de jeito, não te preocupes, os
teus vão ser sempre melhores.
– Ah, sim? – relicou Nat. – OK, então, assim de improviso, aqui vai… A
minha irmã é uma fofura, é querida e pouco amua, a Darcie é uma ternura e…
Vive cá na rua…
Craig piscou o olho e Darcie riu.
– Eu disse-te – murmurou Craig.
– Canta e dança bem, e com música se abana – prosseguiu Nat – e, como
qualquer rapariga, nunca se engana.
Darcie desatou a rir.
– Foi bastante bom – disse, generosa. – Exceto a parte da rua, foi um
bocado despropositado.
– Sim, como o teu verso sobre eu ser um pato.
– Eu disse que não eras, até começares a ser mau para mim – lembrou ela.
– OK, antes que se gere aqui uma discussão – interrompeu Craig –, quem
vai até à padaria comigo buscar uns croissants para o pequeno-almoço?
– Eu não – disse Nat. – Está um gelo lá fora. Vou voltar para a cama.
– Eu estou a fazer os trabalhos de casa – disse Darcie.
Craig olhou para Alicia.
– Parece que estás por tua conta – disse ela, escondendo-se sob os lençóis.
Craig virou-se de lado, para que o seu rosto ficasse mais perto do dela.
– Aposto que consigo tirar os miúdos daqui em três segundos – murmurou.
– Fui – exclamou Nat, mesmo antes de os pais se começarem a beijar.
– Eu também – disse Darcie, indo-se embora atrás do irmão.
Rindo enquanto a porta se fechava atrás deles, Alicia disse:
– Não é espantoso como ela se lembrou daquilo que tu disseste sobre eu
seguir os caprichos do meu espírito, ao criar as minhas esculturas?
– Hmm, espantoso – murmurou Craig, passando-lhe a mão pelas coxas.
Alicia fechou os olhos.
– Então, não vai haver croissants? – disse baixinho.
– Não vai haver croissants – confirmou Craig e, virando-lhe o rosto dela
para si, beijou-a profundamente enquanto a puxava para cima dele.
Sabrina estava com um humor excelente. Pela primeira vez, tudo parecia
estar a ir bem. Todos os amigos que ela queria convidar para um cocktail, no
segundo fim de semana de setembro, estavam disponíveis, o barman e os
fornecedores estavam contratados e Robert devia regressar de mais uma
viagem a Washington dois dias antes, pelo que estaria de volta a casa com
tempo de sobra. Para além do sucesso destes planos, havia também o prazer
de saber que a sua primeira reunião do clube de leitura já fora marcada para o
final da semana seguinte (de modo que teria de se pôr a ler rapidamente); The
Buzz conseguira angariar mais anúncios do que o habitual, graças ao trabalho
árduo de June naquelas três últimas semanas, e Sabrina recebera um convite
muito bem-vindo para uma festa de fim de verão em casa dos Roswells, que
eram sempre muito seletivos em relação à sua lista de convidados. Não que
Robert e ela alguma vez tivessem sido deixados de fora, mas, estando
envolvidos em toda aquela situação desagradável de inquéritos policiais e
audiências no tribunal, podiam, na perspetiva da elite da zona, ter sido
considerados personae non gratae.
Felizmente tal não acontecera e, uma vez que na semana anterior, logo
depois de voltar de França, soubera que Nathan Carlyle fora despachado para
Bristol e que os partidários de Annabelle na aldeia haviam permanecido leais,
sentia-se realmente abençoada. Agora, tudo o que tinha de fazer era ajudar
Annabelle a ultrapassar a provação que se seguiria e, se fosse feita justiça,
com alguma sorte isso poderia contribuir para as aproximar, sem que
precisasse de tocar em todo aquele assunto doloroso do seu comportamento
após a rutura com Craig. Ao mesmo tempo, poderia até tornar impossível a
permanência de Alicia na aldeia. Dois coelhos de uma só cajadada. Seria
maravilhoso.
– Mãe! – chamou Annabelle, de algum lugar em casa.
– Estou aqui – gritou Sabrina da pequena divisão que usava como
escritório. A seguir ao seu horrível confronto em França, houvera uma espécie
de tréguas desconfortáveis entre mãe e filha, principalmente, suspeitava
Sabrina, porque ambas continuavam com medo de que aquilo se repetisse. De
certo modo, passava-se o mesmo no seu relacionamento com Robert: muita
simpatia e boa disposição à superfície, enquanto, sob essa capa, algo muito
diferente se passava. Sabrina tentara abordar a questão com ele, mas o marido
evitara-a sempre, dizendo que estava demasiado calor ou que se sentia
demasiado cansado para fazer amor ou que Sabrina estava a dar importância a
mais ao assunto. “É claro que ainda te acho atraente”, assegurara-lhe Robert
ainda na noite anterior, “mas de momento não tenho mesmo vontade”.
– Mãe! – gritou Annabelle de novo.
Com um suspiro exasperado, Sabrina levantou-se da frente do computador
e foi até à porta.
– Onde estás? – perguntou.
– Cá em cima. Preciso que venhas até aqui.
– Estou ocupada. Que queres?
– Já te disse, preciso que venhas cá.
– Vou quando tiver acabado. A que horas é a tua consulta no dentista, para
eu saber quando tenho de estar pronta?
Annabelle saiu para o patamar e inclinou-se sobre o corrimão.
– Estou grávida – anunciou.
Sabrina ficou muito quieta à medida que todos os sinais que tentara ignorar
começavam a chocar dentro da sua cabeça, como num bizarro número de
circo, convertendo-se numa realidade inimaginável.
– Se pensas que isso tem piada… – disse numa voz rouca.
– Vê por ti mesma, se não acreditas – exclamou Annabelle, atirando para o
átrio um tubinho branco onde era visível uma linha azul.
Aproximando-se para o apanhar, Sabrina observou-o e sentiu a cabeça a
rodopiar. Ergueu o olhar para Annabelle, cujos olhos eram como lagos
profundos e atormentados no seu fantasmagórico rosto branco, e depois voltou
a contemplar a linha azul. Não tinha a certeza de quanto tempo ficara ali de pé,
imóvel. Só sabia que, quando ergueu de novo o olhar, Annabelle voltara para
o quarto e Sabrina não conseguia pensar em mais nada, para além do facto de
que o que segurava nas mãos representava o primeiro indício de um bebé que
tinha o sangue dela e de Craig a correr-lhe nas veias.
A festa de fim de verão dos Roswells era um dos grandes eventos da zona.
Toda a gente importante era convidada, dos aristocratas que detinham
propriedades na área aos políticos com cargos poderosos, das celebridades
mais requisitadas aos milionários bem relacionados. Robert era sempre
incluído na lista de convidados graças ao seu convívio frequente com
presidentes e primeiros-ministros e, como sua esposa, naturalmente esperava-
se que Sabrina o acompanhasse. Na verdade, nenhuma calamidade – ou filha
rebelde – poderia ter impedido Sabrina de ir à festa naquela noite, porque
estar presente naquele evento era absolutamente vital para a posição social de
um casal na vizinhança. E, para Sabrina, era de crucial importância que ela e
Robert mantivessem um determinado estatuto social.
Embora tivesse chovido intermitentemente todo o dia, agora, enquanto os
duzentos e tal convidados cintilantes se misturavam pela longa e soberba
galeria da mansão, as portadas da parede sul estavam abertas para permitir o
acesso ao terraço, com a sua excelente vista dos jardins e do pôr do sol.
Sabrina vagueava por entre os convidados, enquanto ia conversando
alegremente com a irmã de Archie Roswell, Camilla, cujo marido era
apontado como o próximo embaixador britânico na China, uma posição de
enorme relevância no mundo de hoje. Na fonte das sereias, recentemente
restaurada a custos astronómicos, pararam para admirar as sinuosas estátuas
de pedra que representavam as criaturas aquáticas, com jatos rendilhados
jorrando das bocas viradas para cima, antes de avançarem para se juntarem a
Felicity e Bodwin Singer-Smythe. Os Singer-Smythes eram parentes próximos
de um dos duques mais proeminentes do país e eram conhecidos por deterem
uma fortuna avaliada em aproximadamente meio bilião de libras.
Com a conversa a fluir tão agradavelmente quanto o champanhe, Sabrina
olhou em volta à procura de Robert e sorriu com aprovação quando o viu a
passear pelo jardim geométrico com Archie Roswell, aparentemente absorto
em qualquer coisa que Archie dizia. Era uma pena que Robert tivesse de fazer
uma chamada para os Estados Unidos às nove e meia, na altura em que toda a
gente estaria sentada no grande salão a jantar, mas Sabrina sabia que o marido
ia lidar com aquilo tão discretamente que estaria de volta antes que dessem
pela sua ausência. Robert era, realmente, o marido perfeito, decidiu com um
suspiro trémulo, leal, solidário e, acima de tudo, tolerante para com os seus
defeitos tolos.
Desde a cena terrível com Annabelle na quinta-feira, não a embaraçara
nem uma vez mencionando-a de novo, a não ser para concordar que deveria,
de facto, ser um assunto encerrado. A seguir, prontificou-se a levar Annabelle
a Londres para a intervenção cirúrgica e, para sua surpresa e confusão, a filha
aceitara. Como mãe de Annabelle, cabia a Sabrina levá-la, e estava mais que
disposta, mas Annabelle estava decidida – queria que fosse Robert a segurar-
lhe na mão. Assim, iriam ambos a Londres mal o marido regressasse de
Washington daí a duas semanas. Por essa altura, Annabelle teria tido algum
tempo para se voltar a integrar na escola, tirando depois um dia de folga para
“consultar um especialista sobre um pequeno problema de natureza íntima”,
diria Sabrina à diretora da escola.
Pensando melhor, enquanto ria e conversava agora com a elite da zona,
decidiu que poderia dizer antes que se tratava de algo relacionado com o
cérebro ou as costas, porque não queria que ninguém suspeitasse sequer da
verdade – ou, o que seria igualmente mau, que se tratava de uma DST.
– Sabrina, querida, tens um ar absolutamente esplêndido – disse Emily
Roswell na sua agressiva voz masculina, enquanto se aproximava do grupinho
de Sabrina. – Essa cor fica deliciosa em ti. Pela parte que me toca, pareço um
cadáver com um vestido creme, mas, com esse teu exótico tom de pele escuro,
consegues usar essa cor como ninguém.
Brindando Emily com um dos seus sorrisos mais charmosos, Sabrina
disse:
– Obrigada. Foi um presente de Robert quando estivemos em França. Na
verdade, para ser absolutamente precisa, comprou-mo quando estávamos no
Mónaco.
– Oh, pobrezinha, o Mónaco é um lugar horrível no verão – disse Emily
com uma careta. – Não me apanhavam nem a milhas dali, a são ser que
estivéssemos no nosso iate, é claro. A nossa filha, a Jacoba, tem uma casinha
lá. Adora aquilo. Todos os dias faz a viagem para a universidade, em Nice.
Falando de filhas, como passa a nossa querida Annabelle? Soube do que
aconteceu. Coisa horrível, pobrezinha. Como se tem sentido? Imagino que
deva estar terrivelmente traumatizada. De facto, estava um bocado à espera
que o Robert e tu desistissem de vir hoje à noite.
– Oh, nunca faríamos isso – assegurou-lhe Sabrina. – Gostamos tanto das
tuas festas, e a Annabelle está a lidar muito bem com tudo, agrada-me dizer.
Está a ser muito corajosa e insistiu bastante para que viéssemos esta noite.
Quando Sabrina acabou de falar, a atenção de Emily já se desviara para o
grupo seguinte e, enquanto se afastava, envolta em chiffon e L’Air du Temps,
Camilla disse:
– Sabrina, está cá uma pessoa que tenho mesmo de cumprimentar. Porque
não vens comigo e me deixas apresentar-te? Aqui entre nós – disse Camilla
baixinho, enquanto circulavam entre os convidados –, tenho um fraquinho por
ele, mas, por favor, não me denuncies. Cameron – exclamou deliciada,
estendendo os braços. – Como é bom ver-te! A Emily disse-me que eras capaz
de vir.
Virando-se para ela, os olhos de Cameron franziram-se enquanto sorria.
– Camilla, que fazes aqui? – disse calorosamente. – Pensei que estavas em
Pequim.
– Ainda não parti propriamente – respondeu ela, enquanto se abraçavam. –
É verdade que estás à procura de casa aqui na zona?
– Estou, mas receio que não tenha tido grande sorte até agora. O Ronald
está cá?
– Oh, está algures por aí, tenho a certeza de que vais dar de caras com ele
mais cedo ou mais tarde. Agora, deixa que te apresente uma grande amiga
minha. Sabrina Paige, Cameron Mitchell. O Cameron é uma das nossas
maiores autoridades em termos de arte moderna. Na verdade, são capazes de
já se terem conhecido – acrescentou, lembrando-se aparentemente só agora
dessa possibilidade.
– Não, infelizmente não – murmurou Sabrina, compondo o seu sorriso mais
ardente enquanto avançava para lhe apertar a mão –, mas já ouvi falar de si, é
claro. Muito gosto em conhecê-lo.
– Igualmente – respondeu Cameron educadamente. – Parece que a nossa
reputação nos precede, porque eu também ouvi falar de si.
Sabrina sorriu e bateu as pálpebras.
– Espero que não acredite em tudo o que ouve – disse num tom jocoso.
– Ah, mas acho que devia – disse Cameron.
Agradada pela troca de cumprimentos, Sabrina disse:
– Na verdade, estou muito contente por tê-lo conhecido porque adorava
convidá-lo para uma soirée que vamos ter no dia doze, se na altura continuar
por cá.
Seria um erro mencionar June de todo naquela fase, mas a amiga ia passar-
se dos carretos quando o visse. Ele era tão atraente!
– Tenho de voltar para Londres no dia quinze – disse Cameron –, por isso
deve ser possível, mas tenho de confirmar com a minha companheira para ter a
certeza de que não temos nada planeado para essa noite. Acho que já a
conhece… – estendendo o braço para trás de si, agarrou na mão de Alicia e
segurou-a, enquanto esta se despedia do casal com quem estava a falar e se
voltava.
O rosto de Sabrina ficou lívido. À medida que Alicia também
empalidecia, Cameron apertou-lhe mais a mão.
– Que fazes aqui? – silvou Sabrina.
– Fomos convidados – disse Cameron, antes que Alicia pudesse
responder.
– A Emily Roswell faz ideia de quem tu sejas? – cuspiu Sabrina. – Não é
possível, porque ela nunca deixaria a mãe de um violador…
– O meu filho não é nada disso – atalhou Alicia furiosamente. – A tua filha
é que é uma pega e uma mentirosa…
Sabrina quase explodiu de ira.
– Como te atreves…?
– Anda daí, Alicia – disse Cameron, tentando afastá-la.
– Não tens vergonha da forma como estás a usar a tua própria filha para
me castigares por o Craig não me ter deixado? – desafiou-a Alicia. – Podias
ter mantido as coisas entre nós…
– Foi o teu filho que atacou a minha filha – disse Sabrina a ferver de raiva.
– Ele é um rapaz perverso, um tarado…
– É um rapaz cujo pai acaba de morrer e tu estás a tentar arruinar-lhe a
vida. Porque não o deixas em paz?
– Ele merece tudo o que lhe está a acontecer. Anda a abusar da minha filha
desde que ela tinha doze anos, por isso, se fosse a ti, mantinha a Darcie
debaixo de olho ou, a seguir, ele ainda se lembra de começar a abusar da irmã.
Alicia deu-lhe um soco com tanta força, que Sabrina caiu para cima das
pessoas atrás dela. De repente, Robert estava ali e, antes que Sabrina
percebesse o que estava a acontecer, esvaziou-lhe um copo de vinho tinto no
vestido.
– Oh, meu Deus – disse Sabrina –, que fizeste… Olha para mim.
Agarrando-lhe no braço com firmeza, Robert começou a guiá-la por entre a
multidão.
– Estás bem? – murmurou Cameron, abraçando Alicia de modo protetor.
– O que ela disse… – disse Alicia sem fôlego. – Como foi capaz…? Foi
tão…
– Chiuu, eu sei. Anda, vamos para dentro.
– Acho que prefiro voltar para casa.
– Como queiras.
Voltaram costas para se irem embora e os convidados que tinham ouvido a
troca de galhardetes ficaram a vê-los afastarem-se, alguns falando baixinho
entre si com vozes abaladas pelo choque. Uma mulher, que Alicia nunca vira
antes, aproximou-se e pousou-lhe amigavelmente a mão no braço, mas outra
virou-lhe ostensivamente as costas ao cruzar olhares com ela. Quando
chegaram à frente da casa, viram Robert e Sabrina no pátio de entrada mais
abaixo, entrando no carro. Depois de dar uma gorjeta ao empregado do parque
de estacionamento, Robert fechou a porta e arrancou.
– Lamento que tenhas tido de passar por aquilo – disse Cameron, enquanto
esperavam que lhes trouxessem o carro. – A culpa foi minha…
– Não, eu é que devo pedir desculpas – interrompeu Alicia. – Imaginei que
ela estivesse aqui, mas, como uma tola, tive esperanças de que
conseguíssemos evitar-nos – disse Alicia, cobrindo o rosto com as mãos
quando sentiu uma nova vaga de horror percorrê-la. – Como pôde ela dizer
aquilo?
– Ela envergonhou-se mais do que tu – disse Cameron –, portanto, deves
tentar esquecer.
Inspirando profundamente, Alicia ergueu os olhos e disse:
– Ouve, não tens de te ir embora. Deixa-me chamar um táxi…
– Vou contigo – disse Cameron num tom firme e, quando o empregado
parou o carro à frente deles, escoltou Alicia ao lugar do passageiro.
Robert manteve um silêncio terrível enquanto guiava para casa, muito pior
do que quando perdia as estribeiras porque então, pelo menos, Sabrina podia
responder alguma coisa. Assim, não havia maneira alguma de comunicar com
ele. Estava mais zangado do que alguma outra vez, o que a estava a enervar
imenso. Embora gostasse de acreditar que o marido não ouvira o que dissera,
sabia que o mais provável era ter ouvido ou não lhe teria deitado a bebida
sobre o vestido. Era a sua maneira de assegurar que ela viria embora da festa,
Sabrina compreendia isso, mas porque não dizia ele nada?
– Acho que pelo menos devias…
Robert ergueu a mão, interrompendo-a. Irritada, mas demasiado nervosa
para discutir, Sabrina voltou o rosto na direção do crepúsculo, observando o
campo sem, contudo, o conseguir ver devido à velocidade a que seguiam.
Tinha a boca inchada e latejante no sítio onde Alicia a atingira e o seu vestido
estava estragado. O vinho infiltrara-se agora por completo no tecido,
encharcando-o e colando-lhe a seda à pele. Era como sangue, espesso e
vermelho e totalmente indelével. Se a polícia os mandasse parar, iria pensar
que ela fora esfaqueada ou baleada. Sabrina perguntou a si própria se
desejava tê-lo sido.
Talvez tivesse ido longe de mais com a observação sobre Nathan e a irmã,
mas, na verdade, quem poderia dizer que não tinha razão? O rapaz podia ser
um tarado em potência e, se fosse, o melhor seria mesmo que a sociedade se
livrasse dele rapidamente. Imaginou dizer aquilo a Robert e sentiu as palavras
murcharem dentro dela.
O medo do que as pessoas poderiam agora estar a comentar começou a
atormentá-la como agulhas na cabeça. Podiam começar a deixar de a convidar
por causa daquilo e, se assim fosse, a culpa seria de Alicia. Aquela maldita
mulher não devia estar ali, não fazia parte da sociedade da zona e nada
daquilo teria acontecido se, de alguma maneira, não se tivesse conseguido
introduzir ali com Cameron Mitchell. A mulher era uma ameaça, uma intrusa,
uma inimiga funesta, que deveria sair daquele sítio ao qual já não pertencia.
Quando Robert virou o carro para o acesso à casa, o seu rosto estava
completamente fechado, nada revelando do que sentia ou pensava. Sem
esperar que Sabrina saísse, abriu a porta do seu lado, depois fechou-a com
força e entrou em casa. Não havia nenhum sinal de Annabelle, mas a
desarrumação na cozinha mostrava que, em algum momento durante a noite, a
enteada tinha preparado alguma coisa para comer. Depois de encher um copo
com água, Robert dirigia-se ao átrio da entrada quando Sabrina disse:
– Não vais dizer nada?
Robert não se voltou, limitando-se a prosseguir o seu caminho, subindo as
escadas e passando pela porta do quarto que partilhava com Sabrina em
direção ao maior dos quartos de hóspedes. Lá dentro, pousou o copo junto à
cama e arrancou a gravata de laço. Não, não ia dizer nada, não porque não
quisesse, mas porque estava tão furioso que tinha medo de não saber quando
parar. Primeiro, precisava de se acalmar, para passar depois a concentrar-se
no trabalho que teria de realizar em Washington nas duas semanas seguintes,
antes de regressar para resolver o problema de Annabelle. Depois disso, teria
muito mais a dizer do que Sabrina alguma vez desejaria ouvir.
Capítulo Vinte e Dois
De cabeça baixa e mãos a tapar os ouvidos, Darcie saiu pelos portões da
escola a correr, ziguezagueando entre grupos compactos de estudantes e
atravessando a estrada para o sítio onde Nat a esperava, na sombra de um
enorme muro de tijolo vermelho. Una ia mesmo atrás dela, com a preocupação
estampada no bonito rosto sardento.
– Eles foram mesmo maus – disse Una ofegante, enquanto Darcie
mergulhava o rosto no ombro do irmão. – Sabes, chamaram-lhe nomes e coisas
do género. Foi horrível.
Nat, que também experimentou a sua quota-parte de insultos, abraçou
Darcie com força, dizendo:
– Desculpa, esquilinho, não devias ter de passar por isto…
– A culpa não é tua – gritou Darcie, erguendo a cabeça. – Eles são
estúpidos e só se sabem portar assim.
– Exatamente – concordou Una. – Um dia destes vão arrepender-se,
quando alguém começar a implicar com eles.
– Anda – disse Nat, pegando na mochila de Darcie e atirando-a por cima
do ombro –, vamos apanhar o autocarro.
– Onde está a mãe? – perguntou Darcie, quase em pânico. – Porque não
nos veio buscar como prometeu?
– Não recebeste a mensagem dela? – disse Nat. – Foi falar com alguém na
Câmara, por causa da loja. Só chega a casa às cinco.
Darcie manteve-se muito junto ao irmão e com o braço dado a Una do
outro lado, evitando deliberadamente olhar para alguém, quando começaram a
descer a colina em direção à paragem do autocarro. A estrada estava agora
apinhada com alunos de outras duas escolas vizinhas, que saíam pelos
respetivos portões, e dezenas de pais que tinham vindo buscar os filhos.
Annabelle caminhava pela rua principal com Georgie e Catrina, que a
tinham ido esperar à porta da sala de aulas alguns minutos antes,
aparentemente ansiosas por saber como ela estava e o que se passava com
aquela coisa da violação, como Catrina lhe chamou. Parecia que não se
importavam de estar com ela depois das aulas, mas ainda nenhuma das duas
dissera se a voltariam a convidar para as festas, ou para casa delas ou para
algum dos lugares onde costumavam ir antes de a idade de Annabelle se ter
tornado relevante.
Este primeiro dia de aulas também não tinha sido fácil para Annabelle, que
teve de suportar que a olhassem e falassem dela como se não fosse capaz de
ouvir ou notar nada. Pensavam que era estúpida ou algo do género? Só porque
fora violada não queria dizer que agora fosse cega, surda ou tivesse deixado
de ter sentimentos. Ainda bem que ninguém tentara vir dizer-lhe alguma coisa,
ou Annabelle ter-lhes-ia dado uma bofetada. Não tinham nada que ver com o
que lhe acontecera, por isso deviam limitar-se a deixá-la em paz.
– Oh, meu Deus – murmurou Georgie, parando de repente. – Olha quem
está ali.
Annabelle seguiu a direção dos seus olhos e estacou. Nat estava quase a
menos de vinte passos, do outro lado da rua, ao lado da paragem do autocarro.
– Ei, Nathan – chamou Georgie maldosamente. – Violaste alguém nos
últimos tempos?
Quando Nat lhes voltou as costas, Annabelle viu que Darcie começara a
chorar. Nat tentou confortá-la, mas, de súbito, Darcie voltou-se com raiva.
– Isto é tudo culpa tua – gritou para Annabelle –, por dizeres mentiras
sobre o meu irmão. Devias ter vergonha.
Agarrando-a, Nat fê-la voltar as costas e seguir em direção à escola.
– Vamos, não podemos estar perto dela senão arranjamos problemas –
disse.
– Mas não é justo! – protestou Darcie. – Foi ela que causou esta
situação…
– Não faças isso – suplicou Nat. – Está toda a gente a olhar. Vamos sair
daqui.
– Isso mesmo, fujam – gritou Georgie nas suas costas.
– O Robert está ali – disse Annabelle, avistando o Mercedes. – Vamos,
depressa.
Apercebendo-se de algum tipo de interação entre Annabelle e Nathan,
Robert saiu do carro sem ter ideia do que iria fazer, mas a sobrinha estava a
chorar e o sobrinho parecia abalado – não os podia deixar afastarem-se assim.
Por outro lado, Annabelle corria já em direção a ele, parecendo igualmente
infeliz e, se lhe virasse as costas agora, o pequeno capital de confiança que
conseguira construir com ela seria destruído num instante. Por fim, ao ver
Annabelle e as amigas entrarem no carro, Robert teve de aceitar que não havia
forma alguma de poder oferecer também boleia para casa a Nat e Darcie e,
uma vez que não tinha sequer a certeza de que o tivessem visto, voltou a
sentar-se ao volante, jurando fazer algo para os compensar.
– Que aconteceu? – perguntou, cruzando o olhar com Annabelle no espelho
retrovisor.
– Nada – respondeu. – Onde está a mãe?
– Teve de ficar à espera de um telefonema – mentiu.
Não lhe poderia dizer a verdade, uma vez que Sabrina não chegara
realmente a admitir que tinha medo de dar de caras com Alicia na escola, mas
Robert sabia que esta era a verdadeira razão para lhe ter pedido para vir em
vez dela. Quando chegaram a casa, depois de deixarem Georgie e Catrina nas
respetivas moradas durante a viagem, não havia sinal de Sabrina. O carro dela
também não estava, mas não havia qualquer recado a dizer onde fora nem
quando previa regressar.
– Tenta ligar-lhe para o telemóvel – disse Robert a Annabelle enquanto
esta abria o frigorífico. – Ainda tenho de redigir um documento antes de partir,
amanhã, por isso vou voltar para o meu escritório.
– Quanto tempo vais ficar fora? – perguntou Annabelle.
– Não tanto quanto esperava – respondeu. – Estou de volta no dia dez.
Robert esteve quase a acrescentar que a levaria a Londres no dia a seguir a
esse para a sua “pequena intervenção cirúrgica”, como Sabrina insistia em
chamar-lhe, mas deteve-se. Annabelle sabia a data da sua marcação e não
precisava que lhe lembrasse.
Ia a meio do jardim quando as lágrimas de Darcie e o rosto pálido de Nat
lhe pesaram de novo na consciência e, sabendo que não podia continuar sem
descobrir se tinham chegado bem a casa, mudou de direção e saiu para Holly
Way, atravessando a rua principal para The Close. Não era provável que já
tivessem voltado, mas podia sempre esperar por eles.
Uma vez que o carro de Alicia não estava no lugar habitual, não tinha
muitas esperanças de que lhe abrissem a porta quando bateu, mas, para sua
surpresa, ouviu passos nas escadas e, a seguir, Nat estava à sua frente. Pela
expressão do sobrinho, Robert soube imediatamente que o vira na escola.
– Já chegaste – disse Robert desajeitadamente.
– A mãe do Simon viu-nos e deu-nos boleia – respondeu Nat.
Robert acenou com a cabeça.
– Ainda bem. Então, onde está a tua mãe?
– Numa reunião por causa da loja.
– Estou a ver. Bom, desde que vocês estejam bem…
– Estamos ótimos, obrigado.
Robert ergueu a mão numa espécie de aceno e foi-se embora pelo caminho
de acesso. O facto de Nat não o ter convidado a entrar dizia-lhe muito
claramente como o sobrinho estava magoado, e Robert não o censurava. No
lugar de Nat, sem dúvida que se sentiria igualmente desapontado e traído, mas
bastava-lhe pensar em Annabelle e na sua gravidez, sem saber quem era o pai,
e na recusa de Sabrina em reconhecer sequer que a filha se portara como uma
vagabunda para saber onde era o seu lugar de momento.
– O fuinha não vai ter muitas dificuldades em decidir se vai levar este
caso avante – disse o sargento-detetive Clive Bevan, enquanto voltava com
Lisa para as instalações da EICS depois de acompanharem à rua um rapazinho
assustado e a respetiva mãe, ambos vítimas de agressão sexual pelo namorado
desta última, que vivia lá em casa. – Aposto que o nosso evasivo advogado da
Coroa gostaria que as coisas fossem tão claras e sólidas no caso Carlyle.
Anda a sofrer grandes pressões para reduzir a acusação.
– É engraçado falares nisso – disse Lisa, conduzindo-o à sala audiovisual
onde um dos seus colegas estava a analisar algumas partes da mais recente
gravação vídeo. – Esta manhã recebi uma chamada da Sabrina Paige, pedindo-
me para falar com a Annabelle.
– Ah sim? – disse Bevan, sentando-se na borda de uma secretária.
– Segundo a mãe, a Annabelle está a começar a ter pena do Nathan e da
irmã, por isso está a considerar desistir da queixa. A Sra. Paige acha que isto
pode ser um comportamento típico de uma vítima, pelo que gostava que eu
convencesse a filha a levar as coisas até ao fim.
Bevan fez uma cara feia.
– E que vais fazer? – perguntou.
– Falar com a Annabelle e descobrir o que ela está realmente a sentir. Mas
agora ela está nas aulas e eu, por aqui, tenho o horário bastante
preenchido.Provavelmente terá de ficar para a semana que vem.
Bevan olhou para o relógio para ver a data.
– Acho que o Nathan Carlyle tem uma audiência em tribunal dentro em
breve – disse –, a não ser que a Acusação ceda e faça a vontade aos
advogados dele. A Ash está totalmente envolvida no assunto, é claro. Tem a
mesma opinião que eu, que as mentiras do rapaz no início o vão tramar, por
isso também não facilita a pressão sobre o fuinha. Não queria estar no lugar
dele, isso de certeza, mas será interessante ver o que a jovem Annabelle tem a
dizer quando conseguires falar com ela.
***
Não era a coisa mais fácil que Robert alguma vez fizera, mas também não
esperara que fosse, uma vez que nunca tinha lidado com assuntos do foro
ginecológico de raparigas adolescentes. Contudo, enquanto conduzia o carro
que o levava a si e a Annabelle de volta a casa, através de uma Londres
chuvosa em direção à M3, apercebeu-se de que a enteada não esperava que
ele fosse especialista naquilo por que acabava de passar – tinha somente de
colocar o tipo certo de questões e escutar quando ela tivesse vontade de falar.
– Não foi assim tão mau – disse Annabelle, movendo-se ligeiramente no
assento. – Quer dizer, não doeu nem nada assim. Não que quisesse passar pelo
mesmo de novo, entendes, mas, pelo menos, agora já está tudo tratado, por
isso a nossa vida pode voltar ao normal.
Isso nunca vai acontecer, pensou Robert tristemente para si mesmo.
– Estás desconfortável? – perguntou, quando Annabelle mudou de novo de
posição.
– Um bocadinho, mas não é grave. Tenho uns analgésicos que posso tomar
se a dor piorar.
A seguir, Annabelle ficou calada durante algum tempo, com a cabeça
reclinada no encosto do assento e os olhos semicerrados diante das apinhadas
ruas principais do sudoeste de Londres.
– Se calhar devíamos ligar à tua mãe – disse Robert pela terceira ou quarta
vez. – Ela deve estar à espera de saber notícias tuas.
Annabelle virou-se e olhou para ele.
– Amanhã, é suposto encontrar-me com aquela Lisa da EICS – disse. – Ela
vai lá a casa.
Robert acenou com a cabeça e carregou mais no acelerador, uma vez que
tinham acabado de entrar na autoestrada.
– Vão falar sobre quê? – perguntou num tom neutro.
Annabelle encolheu os ombros.
– Não sei. A mãe acha que estou a passar por uma fase típica de vítima,
por isso quer que a Lisa me esclareça as ideias, como ela diz.
– E achas que estás só a passar por uma fase? – disse. – Ou gostavas
simplesmente que tudo isto terminasse?
– Bem, é claro que gostava que terminasse, mas não tenho a certeza se
devo deixar o Nat livrar-se assim. Quer dizer, ia sentir-me muito mal se, mais
tarde, descobrisse que ele fez o mesmo a outra rapariga e eu o podia ter
impedido.
Lançando-lhe um olhar rápido, Robert disse:
– Isso és tu a falar ou é a tua mãe?
Annabelle refletiu no assunto.
– Um pouco de ambas, suponho, mas ela tem razão, não tem? Não se pode
deixar alguém safar-se de algo tão grave como uma violação.
Robert esteve a ponto de lhe perguntar se ela sabia realmente o significado
da palavra “violação”, mas, intuindo que a enteada poderia ficar ofendida,
disse antes:
– Sabes que o Nathan foi hoje a tribunal?
A forma como Annabelle desviou o rosto sugeria que sabia.
– Daqui em diante, as coisas vão ficar muito sérias – disse Robert num tom
grave. – Não que já não o sejam, mas parece que da próxima vez vai ser um
julgamento real, com um juiz a presidir à sessão e os advogados dos dois
lados a defenderem cada um o seu caso. Não vai ser agradável ver todos os
teus segredos discutidos assim, numa sessão aberta. O advogado do Nat vai
tentar passar uma imagem o mais negra possível de ti.
Annabelle ficou em silêncio durante algum tempo, digerindo a informação,
antes de dizer:
– Na verdade, não vou lá estar. Vou testemunhar por videoconferência, por
isso não vai ser assim tão mau.
– Não, é o Nat quem vai ter de enfrentar o júri.
– Mas todos os criminosos têm de o fazer – lembrou Annabelle.
– De facto, mas, por vezes, as pessoas inocentes também se podem ver
nesta situação, e serem acusados de algo que não fizeram é ainda muito pior
do que se tivessem mesmo cometido o crime.
– Isso seria terrível – concordou Annabelle –, mas o Nat fez mesmo
aquilo, Robert, a sério.
Não era a resposta que Robert desejava.
– A sério? – repetiu ele, desanimado.
Annabelle engoliu em seco, baixando os olhos.
– Sim – disse –, mas… Bem, seja como for, não quero falar mais disso – e,
ligando o telemóvel, marcou o número de Sabrina.
Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto Alicia foi buscar Darcie à escola,
Nat percorreu The Close até ao rio. Embora o corpo lhe doesse, e ainda
sentisse a cabeça latejante do muito que chorara, parecia não se sentir tão
oprimido nem tão tenso como antes. Depois de ler a carta e de se ir abaixo de
um modo que não queria que ninguém, para além da mãe, algum dia visse,
sentaram-se a falar sobre o pai durante muito tempo, partilhando as suas
memórias e contando coisas que nunca antes tinham contado um ao outro.
Riram e choraram muito mais e, durante uns momentos, ficaram calmamente
sentados, sem dizer nada enquanto liam a carta de novo.
Agora, quando Nat alcançou a margem do rio, com uma chuvinha fina
substituindo-lhe as lágrimas no rosto, deu consigo a dirigir-se para a ponte
pedonal que conduzia ao Copse. Era a primeira vez que se tinha encaminhado,
ou sequer olhado naquela direção desde aquela noite terrível. Não ficou
surpreendido ao ver que não havia agora nenhuma fita policial isolando a
cena, nem carros-patrulha ou equipas forenses entupindo a estrada, nem
multidões esforçando-se para espreitar o que estava a acontecer. Tudo havia
desaparecido e o local regressara ao seu estado de antes, tranquilo e frondoso.
Entrando na ponte, Nat percorreu-a até meio e ficou a olhar para o Copse,
para lá dela. Não havia ninguém por perto, e o único ruído que quebrava o
silêncio era o do rio a deslizar sobre as rochas. Nat não sabia bem porque não
queria avançar mais nem porque viera até ali de todo. Só sabia que os seus
passos o tinham conduzido naquela direção, quase como se tivessem vontade
própria.
Perguntava a si próprio se o pai o poderia ver agora, ler os seus
pensamentos ou olhar para dentro do seu coração. Sentia-se ligado a ele de
uma forma que não sucedia desde que o pai morrera, mas não fazia ideia se se
devia a algo que vinha das profundezas do seu ser ou a algo que o transcendia.
Era um debate que gostaria de ter com o pai, se havia vida depois da morte, ou
algo do género. Lágrimas novas picaram-lhe os olhos quando o futuro bocejou
vazio diante dele. Agora, nunca saberia a opinião do pai sobre aquele assunto
e, apercebendo-se disso, sentiu a ferida daquela terrível perda abrir-se de
novo, puxando-o para o seu interior.
– Estarei sempre presente para ti, filho – disse Craig quando saíam pelos
portões da escola, lado a lado. – Foi cometida uma injustiça e nós corrigimo-
la. Nunca tenhas medo de erguer a tua voz se tiveres razão, e sê o primeiro a
pedir desculpas se achares que erraste.
O assunto que o pai o fora ajudar a resolver na escola era agora
irrelevante. O que importava eram as palavras que dissera e a forma como ele
tomara como certo nesse dia, e em qualquer outro, que o pai sempre estaria
presente para ele.
Nat olhou para baixo, para o rio e, vendo o céu refletido na água, pensou
se o facto de estar a sentir o pai tão próximo significaria que este, de facto,
estava por perto. Nat queria acreditar que sim, mas, ao mesmo tempo, não
sabia se tinha a coragem necessária. Que lhe diria, pensou, se tivesse a
oportunidade de se despedir dele? Não sabia, não conseguia pensar, mas então
vieram-lhe à cabeça os poemas tolos de Darcie, e Nat engoliu em seco,
sorrindo com embaraço. Gosto muito dele, do fundo do coração, tê-lo por pai
é melhor que ter uma varinha de condão.
Ouvindo um barulho atrás de si, Nat voltou-se e, vendo Annabelle a pouca
distância, de pé na margem do rio, sentiu-se gelar por dentro. Temendo que
pudesse ser uma armadilha, saiu rapidamente da ponte e começou a correr
pelo caminho de volta. Mal chegou a casa, agarrou no telefone para ligar a
Jolyon e informá-lo de que acabara de infringir as medidas de coação.
– Não sei se ela me seguiu ou se foi só uma coincidência – disse –, mas
achei que tinha de comunicar isto antes que ela o faça, porque a última coisa
de que preciso é de ser detido outra vez por algo que não fiz.
Capítulo Vinte e Quatro
Não era normal Robert ver-se interrompido quando trabalhava no seu
escritório de manhã bem cedo, sobretudo por alguém a bater à porta. Em geral,
quando queriam falar com ele usavam o intercomunicador. Assim, foi com um
sentimento de contrariedade e desânimo que se apercebeu de que devia ser a
esposa a trazer-lhe um pequeno-almoço que não desejava, numa tentativa de
reconquistar as suas boas graças.
– Robert? Estás aí?
Surpreendido por ouvir a voz da enteada, Robert levantou-se
imediatamente e foi abrir a porta. Annabelle estava de pé sob a chuva
miudinha que caía, com um impermeável sobre a cabeça que lhe ocultava a
parte superior do rosto.
– Estás bem? – perguntou, apressando-se a fazê-la entrar. – Ainda não
estava à espera de te ver a pé.
– Já são dez e meia – disse Annabelle.
Piscando os olhos ao olhar para o relógio, Robert sorriu ironicamente
diante do comentário, mas, ainda preocupado com Annabelle por tudo aquilo
que esta passara no dia anterior, disse apenas:
– Como te sentes?
Ela encolheu os ombros.
– Estou bem. Um bocado… sabes… lá em baixo, mas de resto estou bem.
Presumindo que a palavra em falta fosse “dorida”, Robert disse:
– Tomaste os analgésicos?
– Ontem à noite, sim, mas agora estou bem. Só me sinto um pouco cansada
e farta de tudo… – disse, encolhendo os ombros.
E também chorosa, pensou Robert, olhando para ela mas sem o dizer.
– Então, a que devo esta honra? – perguntou amavelmente, indicando-lhe
com um gesto que se sentasse num dos seus sofás para visitas.
Annabelle sentou-se na beira do sofá, enrolou o casaco numa trouxa e
pousou-o no colo e, depois de esperar que Robert se sentasse também, disse:
– Eu pensei… Bem, na verdade, queria agradecer-te por me teres levado
lá ontem.
Comovido pela gratidão de Annabelle e o esforço que fizera ao ir até ali,
Robert disse:
– Foste muito corajosa e estou extremamente orgulhoso de ti.
Annabelle ergueu um ombro de novo, mas Robert não conseguiu perceber
se o gesto pretendia diminuir a importância do seu comentário ou se Annabelle
se sentia embaraçada. O que podia, sim, perceber, era que a enteada estava ali
para mais do que um mero agradecimento, mas deixá-la-ia explicar ao seu
próprio ritmo.
– Se dependesse de mim, já teria voltado para a escola hoje – disse ela,
percorrendo com o olhar o espaço à sua volta –, mas a minha mãe combinou
com a Lisa, tu sabes, a mulher da EICS, para ela vir cá hoje de manhã.
– Ah, sim – disse Robert seriamente. – A que horas vem?
– Às onze.
A seguir, inclinando a cabeça para um dos lados, Annabelle começou a
desenhar com o dedo arabescos invisíveis no braço do sofá. Robert observou-
a sem falar, enquanto esperava que a enteada convocasse as palavras que
parecia estar a ter dificuldades em encontrar.
– Ontem vi o Nat – conseguiu Annabelle finalmente dizer, mantendo os
olhos fixos no dedo.
– A sério? – disse Robert, mantendo um tom suave, apesar de sentir o
coração começar a bater mais depressa.
Annabelle acenou com a cabeça.
– Acho que… – Annabelle inspirou fundo, mas parecia estar quase a
soluçar. – Acho que ele tinha estado a chorar – disse. – Quer dizer, de onde eu
estava era difícil dizer com certeza, mas era o que parecia. Achei, quer dizer,
pensei se poderia ter algo a ver com a ida dele a tribunal ontem.
– Suponho que sim – disse Robert.
Annabelle olhou para ele de fugida e, depois, desviou o olhar de novo.
– Então, não sabes o que aconteceu?
– Se estás a perguntar se falei com o Nat ou a Alicia, a resposta é sim, e a
próxima audiência está marcada para sete de outubro. É nessa altura que vão
marcar a data do julgamento.
Annabelle manteve os olhos baixos à medida que o rubor lhe subia do
pescoço para as faces.
– Achas… – disse ao fim de algum tempo – Quer dizer… E se eu dissesse
que já não queria participar no julgamento? Eles cancelavam tudo?
Falando agora ainda com maior cautela, Robert disse:
– Provavelmente, mas também depende dos motivos que apresentasses. Se
queres desistir da queixa… É isso que estás a dizer?
Ainda sem olhar para ele, Annabelle continuou a desenhar círculos com o
dedo à volta do braço do sofá, até que, por fim, acenou com a cabeça.
– Acho que sim – disse calmamente.
Esforçando-se por ignorar o acesso de esperança que sentia no peito, de
modo a não se precipitar, Robert disse:
– Terias de ter mesmo a certeza.
Annabelle ergueu finalmente os olhos e Robert sentiu-se sobressaltado e
preocupado ao ver a sua expressão profundamente angustiada.
– Tenho a certeza – disse ela –, mas, se retirar a queixa, toda a gente vai
dizer que sou uma mentirosa, e não sou. Disse a verdade sobre o que
aconteceu.
Robert sentiu a boca totalmente seca.
– Queres dizer que ele te violou?
– Sim.
– Então, porque queres desistir da queixa?
Annabelle encolheu os ombros.
– Porque sim.
Robert esperou.
– Isto está a deixar toda a gente infeliz e nervosa e, se vai afetar o resto da
vida dele e da minha… Quer dizer, eu sei que vai, por isso… Não vale a pena,
pois não?
Recostando-se na cadeira, Robert refletiu uns momentos.
– Já falaste com a tua mãe sobre isto? – perguntou.
Annabelle recuou por um momento e olhou para Robert como se este fosse
louco.
– Nããão –respondeu. – Já sabes como ela é. Vai-se passar da cabeça.
Começando agora a compreender melhor as coisas, Robert disse:
– Então, estás à espera que eu o faça por ti?
Annabelle olhou-o com uma expressão de súplica.
– Ela vai tentar fazer com que eu mude de ideias, ou convencer a Lisa
Murray a fazê-lo, e não quero que isto continue – lamentou-se. – É uma
estupidez a forma como as pessoas andam a distorcer tudo e a insultarem-se
umas às outras. A Darcie não fez propriamente nada de errado, pois não? Não
entendo por que razão andam a tratá-la mal.
– Mas a questão aqui não é a Darcie, ou os insultos das pessoas – lembrou
Robert num tom grave.
– Eu sei, só estou a dizer. As outras cenas todas, as idas a tribunal e ele
ficar marcado para o resto da vida… Bem, isso também é uma estupidez. Não
é como se ele me tivesse realmente magoado… a sério. Quer dizer, sobrevivi,
não é verdade?
Decidindo levar o seu papel de advogado do diabo até ao fim, Robert
disse:
– Se ele te forçou, Annabelle…
– Não quero falar mais nisso – interrompeu-o ela bruscamente. – Só quero
dizer à mãe o que decidi.
Robert olhou para ela firmemente, ainda sem certezas sobre o caminho a
seguir.
– Por favor – insistiu Annabelle.
Robert suspirou e pressionou os dedos contra os olhos.
– OK, eu falo com ela – disse por fim –, mas tu também tens de estar
presente.
Parecendo bastante relutante, Annabelle disse:
– Só se prometeres que não me deixas sozinha com ela.
Robert teve de reprimir um sorriso.
– Dou-te a minha palavra de honra. Então, quando queres ter esta
conversa? Antes de a agente da EICS chegar ou quando ela cá estiver?
Annabelle refletiu.
– Não sei. Que achas melhor?
Robert pensou também durante uns momentos antes de responder.
– Pode ser melhor dar à tua mãe uma oportunidade para se acostumar à
ideia, antes de a agente aparecer.
Quando entrou na sala de estar com Annabelle, Lisa esperou que ambas
estivessem sentadas nos sofás antes de começar a falar.
– Tens a certeza absoluta de que é isto que queres?
Annabelle acenou com a cabeça.
– O teu padrasto não te influenciou de maneira nenhuma?
– Não! Só quero que isto tudo acabe para poder seguir com a minha vida.
– Mas continuas a dizer que o Nathan te violou?
– É a verdade.
– E ficas feliz por vê-lo livrar-se assim, sem ser castigado pelo crime que
cometeu?
– Feliz, não fico, mas é melhor que arruinar o resto da vida dele, sabendo
que a culpa é minha.
– Sendo tu a vítima, a culpa nunca pode ser tua, sobretudo tendo em conta
a tua idade.
– Sabe o que quis dizer.
Lisa observou-a atentamente.
– Nas duas ocasiões anteriores em que nos encontrámos, realcei a
importância de dizeres a verdade e que consequências poderias enfrentar se
não o fizesses. Portanto, se estás a mentir acerca do facto de o Nathan te ter
violado…
– Não estou a mentir – gritou Annabelle, começando a chorar. – Só não
quero que esta confusão toda continue.
– OK – disse Lisa, pondo-se de pé. – Se tens realmente a certeza, então
vamos falar outra vez com os teus pais.
Encontrando Robert e Sabrina ainda na cozinha, Lisa manteve a mão
pousada sobre o ombro de Annabelle ao dizer:
– Estou convencida de que a Annabelle está a ser sincera na sua decisão
de desistir da queixa por violação, por isso vou contactar o sargento-detetive
Bevan para o informar. Como compreendem, poderá haver repercussões…
– Que quer isso dizer? – perguntou Sabrina, claramente ainda muito
agitada.
– Só saberei depois de falar com o sargento-detetive Bevan.
– Bem, quando falar, pode dizer-lhe que, pelo menos, quero aquele rapaz
processado por relações sexuais ilícitas.
– Vou ligar-lhe do carro a caminho de Bristol – disse Lisa. – Tenho a
certeza de que terão notícias dele até ao fim do dia.
– Oh, meu Deus – disse Alicia tremendo, quando Jolyon lhe contou as
novidades. – Tens a certeza? Não é possível terem-se enganado?
Jolyon respondeu num tom cheio de afeto:
– Acredita em mim, não te estaria a ligar se não tivesse a certeza. O
Serviço de Acusação da Coroa arquivou a queixa.
Alicia sentiu os joelhos fraquejarem sob o efeito do alívio e deixou-se cair
pesadamente na cadeira atrás dela.
– Tenho de ligar ao Nat. Ele…
– Espera só um momento – aconselhou Jolyon. – Ainda estão a discutir a
acusação de relações sexuais ilícitas, por isso é melhor esperarmos até
sabermos o resultado final.
– Sim, é claro. Oh, meu Deus, também têm de desistir dessa. Por favor…
– Deixa isso com o Oliver. Ele pareceu-me bastante confiante quando
falámos, por isso acho que não pretende sair daquela reunião sem ter
conseguido o arquivamento.
***
***
Apesar de, naquela noite, Alicia ter vontade de abrir infindáveis garrafas
de champanhe e festejar, sabia que as últimas seis semanas, já para não falar
nas últimas vinte e quatro horas, após a leitura da carta do pai, tinham sido
demasiado traumáticas para que Nat fosse capaz de sentir já verdadeira
alegria. Assim, prevendo o efeito profundo que as boas notícias poderiam
surtir sobre ele, Alicia esperou até chegarem a casa da escola para lhe dizer
que as acusações tinham sido arquivadas.
Durante uns momentos, Nat limitou-se a olhar para ela inexpressivamente
e, depois, quando Darcie começou a saltar de alegria, o alívio tomou conta
dele de forma tão violenta que mal conseguia respirar à medida que começou a
soluçar. Envolvendo-o nos seus braços, Alicia chorou com ele e, quando
Darcie foi agarrar-se a eles, abraçaram-se os três, beijando-se e rindo, apesar
de não conseguirem parar de chorar.
– Vês, eu disse-te que ia correr tudo bem – disse Darcie com lágrimas nos
olhos. – Eu tinha a certeza e, agora, aquelas pessoas horríveis na escola vão
parecer mesmo estúpidas. Mais – prosseguiu animadamente –, o mundo inteiro
vai saber que a Annabelle é uma mentirosa.
Imaginando já que se tinham passado mais coisas na escola do que os dois
lhe tinham dito, Alicia deixou contudo passar em branco a confissão
involuntária, dizendo:
– Na verdade, há mais uma coisa que deves saber. Aparentemente, hoje de
manhã, antes que alguém soubesse que o caso tinha sido arquivado, a
Annabelle já tinha decidido retirar a queixa.
Nat e Darcie olharam para ela espantados. Alicia sorriu e acariciou-lhes o
rosto.
– Porque é que ela fez isso? – perguntou Nat.
– Que interessa, o que importa é que fez – disse Darcie.
– O tio Robert acha que ela não conseguia enfrentar o julgamento – disse
Alicia, repetindo as palavras de Robert. – A propósito, é capaz de ser ele –
acrescentou, quando o telefone começou a tocar.
Darcie atendeu, uma vez que era quem estava mais perto.
– Fala a escrava número dois da Alicia Carlyle – disse.
Rindo do outro lado da linha, Rachel disse:
– Acabei de receber a mensagem da tua mãe sobre o Nat. São notícias
fantásticas.
– São, não são? – disse Darcie radiante. – É a Rachel – disse baixinho
para a mãe. – Chorámos todos – continuou ao telefone –, e agora ainda
estamos a tentar recuperar do choque de saber que a Annabelle, de qualquer
maneira, já tinha decidido retirar a queixa. E não fez nada de mais, a
mentirosa. Queres falar com a minha mãe?
– Por favor.
Pegando no telefone, Alicia disse:
– Imagino que tenhas estado todo o dia metida no consultório?
– Correto, e estou exausta, mas temos de festejar logo à noite. Que planos
tens?
– Para dizer a verdade, o Cameron ofereceu-se para nos levar a um sítio à
escolha do Nat, mas ainda não pude falar disso com ele. Mas, onde quer que
seja, porque não vêm ter connosco?
– Adorávamos. O Todd tem treino de futebol, mas pode sempre faltar e, se
alguém tiver mais alguma coisa agendada, vale desmarcar mal eu lhes diga.
Liga-me mal saibas onde vão.
Depois de desligar, Alicia disse a Nat:
– Então, que achas? Queres ir a algum sítio?
Nat encolheu os ombros, permanecendo com um ar aturdido e não
inteiramente capaz de acreditar naquilo tudo.
– Já sei – exclamou Darcie –, vamos àquele sítio em Wells, ao lado dos
correios. Toda a gente diz que é mesmo fixe. Não me lembro agora do nome…
Independentemente do nome, se ficava ao lado dos correios, ficava perto
do edifício da câmara e Alicia, achando que Nat não precisava de recordar a
sua primeira ida a tribunal, disse:
– Podemos sempre ir ali ao Traveller’s.
Nat voltou-se quando ouviu baterem à porta.
– Se calhar é o tio Robert – disse Alicia. – Ele disse que ia passar por
aqui depois de vocês voltarem da escola.
Corando ao recordar como fora brusco com o tio aquando da sua última
visita, Nat foi abrir a porta.
– Olá, Nat – disse Robert afetuosamente.
Nat sentiu-se corar ainda mais.
– Olá. Entra, a minha mãe está à tua espera.
– Imagino que ela já te tenha dado as boas notícias – disse Robert,
enquanto avançava pelo átrio. A seguir, deu um grito de espanto quando Darcie
lhe saltou ao pescoço de felicidade.
– Foste tu que a fizeste mudar de ideias, não foste? – insistiu ela. – Sabia
que ias conseguir. És tão inteligente.
– Na verdade, a Annabelle tomou esta decisão sozinha – disse Robert –,
mas fiquei muito contente.
– Seja como for, tudo se teria resolvido – continuou Darcie –, porque o
Oliver convenceu-os a arquivar o caso.
– Olá – disse Alicia, abraçando-o. – Obrigada por vires. Queres tomar
alguma coisa?
– Sim, até me apetecia – respondeu Robert. – Se tiveres vinho…
– Temos – informou Darcie, abrindo o frigorífico –, a não ser que a mãe o
tenha bebido todo.
Revirando os olhos enquanto puxava uma cadeira para Robert se sentar,
Alicia perguntou a Nat:
– Também queres um copo?
– Daqui a pouco – disse. – Primeiro queria ir lá acima mandar uns emails,
se não se importarem.
– É claro – disse Alicia, dando-lhe um beijo no rosto.
– Eu também! – exclamou Darcie. – Tenho de ir contar a toda a gente que o
Nat ganhou e a Annabelle é uma… – Darcie deteve-se mesmo a tempo e olhou
desconfortavelmente para o tio. – Que a Annabelle mudou de ideias – disse e,
dando a Robert outro abraço expansivo, correu pelas escadas acima atrás de
Nat.
– Desculpa aquilo – disse Alicia, começando a servir o vinho.
Robert abanou a cabeça, como que para retirar importância à situação.
Passando um copo ao irmão, Alicia agarrou depois no seu e sentou-se também
à mesa.
– Então – disse, depois de terem brindado ao fim do pesadelo –, ela tomou
a decisão mesmo sozinha ou tu ajudaste-a a chegar lá?
– Não, a decisão foi só dela – respondeu Robert. – Acho que começou a
aperceber-se de como isto estava a afetar toda a gente e daquilo por que,
provavelmente, ela própria teria de passar quando chegasse o julgamento… A
Annabelle tem imensos problemas que precisam de ser resolvidos. – Robert
olhou Alicia nos olhos. – Aquele maldito caso tem muitas culpas no cartório.
Os danos que causou, o afastamento…
Alicia baixou o olhar para o seu copo, mas, quando ia começar a
responder, Robert disse:
– Ela contou-me que viu o Nat ontem e achou que ele tinha estado a chorar,
embora seja difícil dizer se foi isso que a fez decidir.
– Sim, ele disse-me que a viu perto da ponte. O Nat teve medo que fosse
alguma armadilha para o fazer infringir as medidas de coação e ligou ao
advogado para o informar.
Robert acenou com a cabeça devagar e bebeu um gole de vinho.
– Ela continua a insistir que está a dizer a verdade – continuou Robert –,
mas gostaria de pensar que se deve ao facto de ser suficientemente esperta
para perceber que, se admitir que mentiu, há uma boa hipótese de ser
processada.
Alicia guardou a sua opinião para si, não querendo que nada estragasse
aquele dia. Contudo, se Annabelle continuava a insistir que dizia a verdade,
então aquela provação ainda não terminara.
– Então, como vão as coisas em casa? – perguntou. – Imagino que a
Sabrina não esteja muito satisfeita com a decisão.
– Não, não está – admitiu Robert, sem se alargar mais sobre o assunto.
Reunindo coragem para falar daquilo que agora lhe ocupava o pensamento,
Alicia disse:
– Não sei se estou a fazer bem em contar-te isto, mas encontrei uma carta
do Craig para a mãe em que ele fala do caso, e do que significou para ele. Eu
não ia … Bem, eu… Queres vê-la?
Depois de refletir uns instantes, Robert abanou a cabeça.
– Não, acho que não – respondeu. – Eu próprio tomei muitas decisões nos
últimos tempos, e não vejo como é que andar a repisar o passado vá servir
para alguma coisa. – Robert olhou-a nos olhos. – A carta disse-te alguma coisa
que já não soubesses?
Alicia engoliu em seco e olhou de novo para o copo.
– Digamos apenas que eliminou alguns fantasmas – respondeu. – Também
foi uma experiência catártica para o Nat, quando eu lha dei para ler.
Quando Robert bebeu mais um gole de vinho, Alicia olhou-o atentamente.
– Que se passa? – perguntou. – Vejo que alguma coisa está a preocupar-te.
O irmão fez um gesto de rejeição.
– Agora não quero falar disso – disse, ouvindo o som de passos nas
escadas. – Talvez possamos ir jantar a algum sítio na semana que vem, só nós
os dois. Há já muito tempo que não fazemos algo assim. Nessa altura,
provavelmente também já te poderei dizer mais.
Alicia ergueu as sobrancelhas.
– Agora estou curiosa. – A seguir sorriu, estendendo a mão a Nat quando
este entrou na cozinha. – Não demoraste muito – disse.
– Mandei um email coletivo ao pessoal – disse ele.
O coração de Alicia alegrou-se ao olhar para o filho. O peso parecia sair-
lhe dos ombros minuto a minuto, deixando-a agora entrever de novo o jovem
brilhante, cheio de vida e extremamente atraente que Nat sempre fora.
– Então, vou ter direito a um copo? – perguntou ele, esfregando as mãos.
– É claro. Serve-te e depois vem-te sentar connosco.
Olhando para o relógio, Robert disse:
– Na verdade, receio que não possa ficar muito mais tempo. Tenho de me
ir encontrar com um colega no laboratório antes de ele partir para o Dubai.
– Oh, esperava que pudesses ficar e conhecer o Cameron – disse Alicia.
– O Cameron? – repetiu Robert admirado.
– É o novo mentor da minha mãe – explicou Nat, sentando-se pesadamente
numa cadeira. – É super-importante no mundo da arte e tem um cão mesmo
fixe.
Robert olhou para Alicia com uma expressão de encorajamento.
– Não é o que estás a pensar – disse ela. – Somos só amigos.
– Ele vai expor as esculturas da mãe na galeria dele em Bond Street –
prosseguiu Nat –, quando ela arranjar tempo para lá ir. E tem andado a ajudá-
la a descobrir artistas locais para promover na loja.
– Bem, parece-me tudo bastante amigável – provocou-a Robert,
terminando o vinho. – Vou ficar à espera de o conhecer.
Pondo-se de pé para o abraçar, Alicia disse:
– Obrigada por vires até cá.
Robert tocou-lhe carinhosamente no rosto.
– Antes de me ir embora, há mais uma coisa – disse, desviando o olhar da
irmã para Nat. – Não sei o que vais achar disto, e é provável que amanhã ela
até mude de ideias, mas a Annabelle pediu-me para te perguntar se aceitas
falar com ela.
O copo de Nat deteve-se a meio caminho da boca enquanto o seu rosto
perdia a cor. Alicia desviou rapidamente o olhar do filho para Robert.
– Não acho que isso seja muito boa ideia – respondeu por ele.
– Não te preocupes. Como disse, o mais provável é nem acontecer –
tranquilizou-a Robert.
Nat pousou o copo.
– Desculpa – disse –, mas, depois de tudo o que se passou, não posso
mesmo confiar nela.
– Tinha a certeza de que ias pensar assim – respondeu Robert –, e não te
posso propriamente censurar – respondeu Robert e, depois de abraçar Nat,
deixou que Alicia lhe desse o braço e o acompanhasse até à porta.
– Na verdade – disse Nat, surgindo no átrio atrás deles –, diz-lhe que,
desde que haja mais alguém presente, eu vou pensar no assunto.
Capítulo Vinte e Cinco
Depois de uma noite quase sem dormir, ainda profundamente perturbada
pelo comportamento de Annabelle, e numa pilha de nervos a pensar se ainda
tinha um futuro com Robert, Sabrina mal conseguia olhar para si mesma
quando se levantou pela manhã. Ao ver-se ao espelho, as suas entranhas deram
um nó. Os seus olhos estavam vermelhos e sonolentos e a sua pele estava tão
inchada e enrugada como uma esponja velha.
Molhando o rosto com água fria, limpou-o com uma toalha e começou a
tentar reparar os danos causados por toda aquela angústia. Tinha de fazer o seu
melhor para lembrar Robert, quando este a visse, de como ele sempre a achara
atraente, ou não seria capaz de parar aquele comboio desgovernado que sentia
vir na sua direção.
Sabia que o marido já estava a pé, porque ouvira o chuveiro há cerca de
vinte minutos. Também o tinha ouvido chegar a casa da sua reunião na noite
anterior, mas quando se levantou para perguntar se ele vinha para a cama,
Robert respondera que ainda tinha muito trabalho a fazer, por isso iria dormir
no quarto de hóspedes para não a acordar. Sabrina sabia que era uma
desculpa, assim como sabia que algo de crucial mudara no seu casamento,
mas, fossem quais fossem as decisões a que Robert tivesse chegado,
continuava a acreditar que seria capaz de o fazer mudar de ideias. Precisava
de falar com ele e de explicar como fora tola ao não perceber antes como era
afortunada em tê-lo como marido. Mais do que isso, muito, muito mais,
amava-o tanto, que isso fazia com que tudo o que alguma vez pudesse ter
sentido por qualquer outra pessoa parecesse insignificante (com a possível
exceção de Craig, mas é claro que não seria tão insensível, ou estúpida, a
ponto de lhe dizer isto, e, seja como for, também já não tinha a certeza de que
fosse verdade).
Deixaria claro que estava preparada para fazer qualquer coisa que Robert
pedisse para tentar compensar toda a dor e sofrimento que lhe causara a ele e
a Annabelle. Poderiam começar de novo, dir-lhe-ia ela, passar uma esponja
sobre tudo o que sucedera, incluindo aquela terrível história da violação.
Poderia, até, considerar pedir desculpas a Alicia pelo comentário que fizera
sobre Nathan e Darcie na festa dos Roswells, se Robert assim o desejasse.
Qualquer coisa, desde que este não dissesse que já não aguentava mais estar
casado com ela.
Vestida com calças de ganga pretas e uma camisola de gola alta justa, e
com o cabelo preso na nuca com um requintado travessão de tartaruga, saiu do
seu quarto, aproximou-se do de Annabelle e encostou o ouvido à porta. Não
ouvindo nada, abriu-a. As cortinas ainda estavam fechadas e Sabrina
conseguia distinguir a forma da filha debaixo dos cobertores. Aparentemente,
Annabelle ainda dormia, pelo que fechou a porta de novo silenciosamente e
começou a descer as escadas. Precisava de resolver as coisas com Robert, em
primeiro lugar, depois estaria pronta para enfrentar a filha.
Amanhã, Sabrina, tu e eu temos de conversar, dissera ele no dia anterior.
Ao recordar aquelas palavras agora, sentia-as ecoarem tão ameaçadoramente
pela sua cabeça, como negras profecias de desgraça, que quase se deteve e
voltou a correr para o quarto. Queria esconder-se, tal como fizera após a
rutura com Craig, enfiar-se debaixo dos cobertores para tentar escapar de um
mundo que se estava a transformar num sítio em que tinha medo de existir. Mas
não era preciso ter medo, disse a si mesma com firmeza. Era apenas com
Robert que tinha de lidar, o seu marido, o homem que a amava, que a adorava,
e lhe perdoaria qualquer coisa.
Ao encontrar a cozinha vazia, pôs-se a fazer uma cafeteira de café fresco
que pôs numa bandeja com duas chávenas, uma seleção de biscoitos e uma
única rosa que arrancou de um arranjo que estava sobre a mesa, colocando-a
numa jarra delicada. Então, enchendo-se de coragem, dirigiu-se ao escritório
do marido.
– Posso entrar? – perguntou em voz alta, sem poder bater à porta.
Quando Robert abriu, o seu coração agitou-se imediatamente com a
apreensão. A expressão dele era demasiado sombria para ser acolhedora, mas
Sabrina sorriu, de qualquer maneira, dizendo:
– Espero não estar a interromper. Ouvi-te a levantar e achei que poderias
gostar de um café.
Apercebendo-se das duas chávenas quando se desviou para a deixar
entrar, Robert disse:
– Tens intenções de te juntar a mim?
– Só se não te incomodar – disse Sabrina, num tom tranquilizador. – Se
não puder ser, posso sempre…
– Tudo bem – disse ele. – Precisamos de conversar e acho que agora é um
momento tão bom como qualquer outro. Onde está a Annabelle?
– Ainda está a dormir.
Robert acenou com a cabeça e, fechando a porta, esperou que Sabrina
servisse o café, sentando-se depois no sofá diante daquele em cuja
extremidade ela se sentou nervosamente. No dia anterior, Annabelle; hoje,
Sabrina.
– Como foi a tua reunião ontem à noite? – perguntou Sabrina
descontraidamente, enquanto lhe oferecia um biscoito.
Recusando, Robert disse:
– Tal como esperava – disse Robert, bebendo um gole do seu café. A
seguir, pousou a chávena e olhou-a de novo nos olhos, com uma expressão
firme. – Espero que concordes – começou – que não podemos continuar assim,
por isso…
– Eu sei – disse Sabrina apressadamente –, e estou…
– Por favor, quero que escutes o que tenho para te dizer.
– Não, tu precisas de me ouvir…
– Sabrina!
A agudez do seu tom de voz deteve-a.
– Penso que temos de aceitar que o nosso casamento já não está a
funcionar – disse Robert num tom grave.
– Mas pode…
Robert ergueu a mão.
– Tenho-me esforçado muito, desde que se começou a desmoronar –
prosseguiu ele –, para o manter de pé, mas agora chegámos a um ponto onde
não há mais nada que possa fazer. Lamento que as coisas tenham chegado a
isto, mas…
– Não, não, espera – disse Sabrina numa voz sufocada. – Tu não percebes.
Eu amo-te, Robert, quero que fiquemos juntos…
– Quer isso seja verdade, quer não…
– É verdade. Juro-te. Agora estás zangado e perturbado, depois de tudo o
que aconteceu. Estamos todos, mas seria estúpido e errado fazer algo drástico.
Podemos fazer com que tudo corra bem de novo.
– Em todo este tempo, depois do Craig – continuou Robert, quase como se
ela não tivesse falado –, sempre acreditei que pudéssemos de algum modo
superar as dificuldades, mas a tua obsessão por ele e a forma como ainda não
o conseguiste esquecer, mesmo ao fim de tantos meses, tornam impossível
ficarmos juntos.
– Não! Por favor, não digas isso! – exclamou Sabrina, tentando dominar o
seu pânico. – Aquilo que aconteceu com o Craig… foi um equívoco completo.
Eu pensava que o Craig era o grande amor da minha vida, mas ele nunca
poderia ser, porque o grande amor da minha vida és tu. Agora sei isso, com
mais certeza do que alguma vez soube o que quer que fosse. Deixei-me levar
durante aquele caso. Não conseguia ver as coisas com clareza…
– Não foi só durante o caso – lembrou Robert. – Foi a maneira como te
comportaste depois, recusando-te a deixares-me aproximar-me de ti durante
meses, a ires-te abaixo à frente da Annabelle… Meteste-te na cama e não te
levantaste semanas a fio. Sempre a ameaçares matar-te porque não valia a
pena continuares a viver. E o mais triste de tudo isto é que ainda não pareces
perceber, ou pelo menos aceitar, o mal que causaste à tua filha durante essa
fase. Não tens nenhum relacionamento com ela, Sabrina. Ficaste tão
embrenhada em ti mesma e no teu próprio mundo que mais valia teres saído
porta fora e abandonado a Annabelle há dois anos, para o bem que lhe tens
feito desde aí.
Sabrina olhava-o com uma expressão chocada e defensiva.
– Ela não tem respeito nenhum por ti, e quem a pode censurar? A
Annabelle está completamente devastada pela maneira como lhe viraste as
costas, sente-se furiosa e frustrada e quase totalmente sem rumo. Mal sabe
distinguir o certo do errado, e uma das coisas mais trágicas que descobri, ao
longo deste verão, é o pouco respeito que ela tem por si mesma. É por isso
que vai para a cama com qualquer um que a queira. A Annabelle não se
importa consigo mesma. Pensa que não tem valor nenhum, porque foi isso que
lhe mostraste pela forma como a trataste.
O rosto de Sabrina estava lívido.
– Eu amo a minha filha – disse com voz trémula – e nunca tentes dizer que
não.
– Nunca tentaria, porque no fundo sei que a amas, mas nunca o demonstras
da forma correta. Pareces nem perceber que esta acusação de violação foi,
muito provavelmente, um grito pela tua atenção. A tua filha está a tentar chegar
até ti de qualquer maneira possível, e tu continuas a não a ouvir. Algo
aconteceu naquele bosque, em julho, e nunca te sentaste com ela para falar
disso. Há apenas dois dias, a Annabelle fez um aborto, e não tenho a certeza
que lhe tenhas sequer perguntado como está.
– É claro que perguntei…
– O teu relacionamento com a tua filha é o relacionamento mais importante
na vida de ambas. Sei que, a algum nível, sabes disso, mas ultimamente tens
dado tanta importância a ser convidada para as festas certas, ou para clubes do
livro, ou sabe Deus que mais preenche a tua agenda, que não é realmente de
admirar que, entre ti e a Annabelle, tudo se esteja a desmoronar. Ela olha para
ti em busca de orientação, como um modelo, e tudo o que vê é que dás mais
importância às trivialidades da tua vida do que a ela, ou como sucumbes por
causa de um caso de que ela nem sequer tinha conhecimento na altura. Imagina
como foi confuso e assustador para ela quando começaste a rejeitá-la. Pensa
como o seu instinto de sobrevivência estava mal preparado quando teve de
entrar em ação tão precocemente. É de admirar que tenha seguido uma direção
tão errada?
Os olhos de Sabrina estavam carregados de confusão.
– Não conseguia evitar comportar-me assim – disse, num tom queixoso. –
Quando o Craig e eu… Na altura em que fomos forçados a separar-nos…
– Vocês não foram forçados a nada – disse Robert. – O Craig escolheu
ficar com a Alicia e, na minha opinião, isso é que provocou a histeria que veio
depois. Simplesmente, não aguentaste a rejeição. Pensavas que eras melhor, ou
mais merecedora, do que a minha irmã. Na verdade, não sei o que se passava
na tua cabeça, mas a maneira como te fixaste em livrar-te dela desde que
voltou para Holly Wood só prova o que estou a dizer. Tens ciúmes da Alicia e
acho que sempre tiveste. Provavelmente, foi por isso que seduziste o marido
dela, para tentares provar a ti mesma, ou a ela, ou talvez a ambas, que ela não
podia ganhar sempre, ou que mais alguém te dá atenção, mesmo que ela não
dê. E, de facto, ela não dava quando a Darcie era bebé. Será que tudo tem
origem nisso? Não sei, o que sei é que pareces quase tão obcecada com ela
como estavas com o Craig. Tentaste impedi-la de ganhar a vida, indo mesmo
ao ponto de tentares usar a situação entre o Nathan e a Annabelle para a forçar
a sair da aldeia. Bem, Sabrina, estás certa quando pensas que vocês as duas
não podem continuar a viver aqui, mas enganas-te ao acreditar que é ela que
tem de se ir embora. Esta é a casa dela, é onde ela pertence…
Erguendo-se em pânico, Sabrina gritou:
– Este é o meu lar! Tu e eu vivemos nesta casa há mais de dez anos, o que
me torna tão membro desta aldeia quanto ela. Mais ainda, porque sou eu quem
tem estado aqui, presente, a defender as causas deles, a contribuir para as
obras de caridade, a organizar as…
– Ninguém te está a tentar tirar isso. Já fizeste muitas coisas boas desde
que vieste para cá, mas, para mim, é bastante óbvio que tu e a Alicia não
podem viver na mesma zona, e se tu e eu já não formos casados…
– Não podes simplesmente livrar-te de mim como se eu fosse lixo –
enfureceu-se Sabrina descontroladamente. – Sou tua mulher. A Annabelle é tua
enteada. Tens responsabilidades…
– Das quais não tenho intenção nenhuma de fugir. Assegurar-me-ei de que
tens dinheiro suficiente para começar de novo e vou continuar a pagar os
estudos da Annabelle até que ela termine a universidade. Além disso, faço
questão de pagar algum tipo de terapia conjunta para ti e a Annabelle, se
estiveres de acordo; mais do que tudo, quero que ela volte ao caminho certo,
ao que realmente é, à miúda que permanece por baixo de todos os estragos
provocados nos últimos tempos.
O medo e a frustração estampavam-se no rosto de Sabrina. A sua testa
estava coberta de suor e as mãos fechavam-se e tremiam. A imagem que
Robert descrevia estava completamente errada. Não fazia sentido na sua
cabeça, nem ela pretendia deixar que fizesse. Tinha de a destruir antes que se
tornasse uma realidade.
– O que ela precisa é de ficar na mesma escola – protestou zangada – e de
viver na mesma casa que tem sido o lar dela desde os cinco anos. Iria destruí-
la, se a expulsasses daqui para fora.
– Não vou fazer nada disso – interrompeu-a Robert. – Vou estar sempre
disponível para a Annabelle e vou certificar-me de que ela sabe isso, mas
nada é mais importante do que a relação dela contigo. Precisas de ajuda com
isso, Sabrina, por favor, tanto para teu bem como para o dela.
Sabrina começou a andar para a frente e para trás, torcendo as mãos à
medida que uma série de pensamentos apavorantes lhe percorria a cabeça.
Sabia que não estava a lidar com aquilo adequadamente, corria mesmo o risco
de perder, portanto, tinha de abordar a questão de outra maneira.
– OK – disse por fim –, vou fazer o que dizes e levar a Annabelle a um
psicólogo…
– A Annabelle só, não, tu também.
– Sim, eu também vou – concordou –, na condição de tentarmos resolver
as coisas entre nós.
Robert exalou um suspiro cansado e, durante um longo momento, limitou-
se a olhar para ela. Para lá da sua tristeza, a sua expressão era tão insondável
como os projetos em que trabalhava. Ao fim de algum tempo, Sabrina atreveu-
se realmente a ter esperanças de que Robert lhe fosse dar outra oportunidade.
Mas, depois, este disse:
– Lamento, Sabrina, mas já te disse…
– Não tens de tomar uma decisão agora – atalhou ela apressadamente. –
Dá-nos só uma oportunidade. Por favor. A Annabelle é… Ela confia em ti, ela
precisa de ti. Não lhe podes virar as costas agora.
– Não estou a sugerir que saiam desta casa hoje – disse Robert, cuja
expressão finalmente revelava como se sentia despedaçado. – Podemos fazer
as coisas gradualmente e, se tudo correr bem, por volta do fim do ano…
– Nessa altura já estará tudo resolvido – prometeu Sabrina, exibindo um
otimismo que cintilou como uma luz ao fundo de um túnel. – Já nos teremos
recomposto e deixado tudo isto para trás…
– Sabrina – atalhou Robert suavemente –, estás sequer a pensar se a
Annabelle deve continuar perto dos amigos que a levaram por maus caminhos
ou que, pelo menos, a encorajaram? Ou se deve continuar perto dos rapazes
que no passado se aproveitaram dela? Não seria melhor para a tua filha, e
para ti, se começassem de novo?
Sabrina olhou para ele em desespero. Não podia negar que Robert tinha
razão, mas também não ia admiti-lo. Então, os seus olhos brilharam com uma
expressão de esperança e disse:
– Já sei, porque não começamos todos de novo? Podíamos mudar-nos para
outro sítio…
– Não me estás a ouvir – disse Robert. – Já te disse, as coisas entre nós
não podem continuar assim.
– Eu sei, eu sei, mas estou disposta a mudar. Farei qualquer coisa…
– Tenho a certeza que sim, mas receio que a situação já tenha chegado
longe de mais. Os meus sentimentos por ti já não são o que eram. Ainda gosto
de ti, é claro, mas…
– Não, não digas isso – exclamou Sabrina, tapando os ouvidos. – Não
estás a falar a sério. Eu sei que pensas que sim, mas estás zangado e
perturbado, e admito que lidei mal com muitas… Terrivelmente mal. Deixa-me
corrigir a situação, Robert, por favor. Podemos procurar ajuda juntos, algum
terapeuta especializado em famílias. Podemos ir todos juntos.
Suspirando pesadamente, Robert disse:
– Não vou discutir mais contigo agora. Quero que vás embora e penses
sobre o que eu disse, que comeces a aceitar que, algures num futuro não muito
distante, vamos tomar medidas para seguirmos por caminhos separados.
– Não! Não! – exclamou Sabrina. – Eu amo-te, Robert. Juro.
– Eu sei – disse ele –, é isso que torna tudo tão difícil.
Dois dias depois, Nat percorreu The Close em direção à rua principal,
consciente de que os olhos de Darcie e da mãe o seguiam. A ansiedade e a
desconfiança em relação à motivação de Annabelle aumentavam a cada passo
que dava.
– Vê-se que nunca ficas sozinho com ela – prevenira-o Darcie
sombriamente antes de sair de casa. – Agora já sabemos do que ela é capaz e
não queremos ter a polícia à perna de novo.
– Não te preocupes – respondeu ele, passando-lhe os dedos pelo cabelo –,
o tio Robert prometeu que vai estar sempre lá, por isso vou estar tão bem
protegido por um belo pau de cabeleira como as heroínas dos teus romances
da Jane Austen.
Agora, Nat perguntava a si próprio se realmente queria que o tio ouvisse
tudo o que Annabelle pudesse ter para dizer, mas então, recordando que não
tinha nada a esconder ou a recear – para além das mentiras dela, é claro –,
avançou.
Não havia sinais de ninguém quando se aproximou da casa, no fim de
Holly Way, mas os portões estavam abertos e, para alívio seu, não se via o
carro de Sabrina em lado nenhum. Era alguém que Nat não queria mesmo ver –
nunca mais na vida, se pudesse.
Bateu duas vezes à porta e voltou-se para observar a rua de novo.
Imaginou que os rumores já voariam por Holly Wood, porque de certeza
alguém o teria visto vir para ali. Que estariam agora a pensar as pessoas que
tomaram o partido de um ou de outro? Isso importava? Realmente, não, mas
ele sabia que demoraria algum tempo até conseguir perdoar aqueles que
tinham virado a cara à mãe ao longo das últimas sete semanas.
Ouvindo passos no átrio, virou-se e exibiu um breve sorriso quando o tio
abriu a porta.
– Olá, Nat – disse Robert calorosamente, afastando-se para o deixar
passar. – Entra. Desculpa se cheiro um bocado a fumo, estou a queimar umas
coisas no jardim e a Annabelle tem estado a ajudar-me. Ela ainda está lá fora,
para dizer a verdade.
– Obrigado – disse Nat ao entrar para o vestíbulo de chão em mármore. O
odor do local envolveu-o, trazendo-lhe imagens do passado que o encheram de
nostalgia, mas fazendo-o também sentir um misto de emoções muito mais
desconfortável, à medida que os momentos íntimos passados com Annabelle
pareciam ser soprados pelo ar do quarto dela na sua direção.
– Onde está a Sabrina? – perguntou Nat, enquanto seguia Robert pela
cozinha.
– Foi fazer compras a Bath. Queres tomar alguma coisa?
– Não, acho que não, obrigado. Sabes de que é que a Annabelle quer falar
comigo?
Robert abanou a cabeça.
– Imagino que deve ser sobre o que aconteceu – disse –, mas ela não mo
disse especificamente, por isso estou como tu, às escuras.
– Mas vais estar sempre presente, não vais? – disse Nat, precisando de ter
a certeza.
– Vou, mas ela disse que, antes disso, gostava de falar contigo em privado.
Não te preocupes, ela sugeriu que fosses ter com ela ao jardim e eu fico aqui
na cozinha, de onde posso ver tudo o que se passa.
Nat olhou para o exterior onde Annabelle estava, curvada dentro de um
anoraque negro, a atirar pedaços de madeira e folhas secas para um monte
fumegante.
– Tu compreendes, não é? – disse Nat. – Só não quero que ela arme mais
nada para cima de mim.
– Acho que não precisas de te preocupar com isso – tranquilizou-o Robert.
Nat olhou-o com uma expressão ansiosa.
– Então, vou até lá agora. Achas bem? – perguntou.
Robert acenou com a cabeça.
– Vou preparar um chocolate quente, para o caso de te apetecer, quando
voltares. Hoje o ar está fresco, não achas?
Ao atravessar pelo relvado em direção à horta junto à qual Annabelle se
encontrava, atiçando o fogo com um pau, Nat agarrou num pedaço de madeira
que encontrou pelo caminho e atirou-o para as chamas reticentes ao
aproximar-se dela.
– Olá – disse Annabelle, corando ligeiramente ao olhar para ele.
Tinha o cabelo amarrado atrás com um elástico negro, descobrindo-lhe
totalmente o rosto, e os seus olhos pareciam diferentes, pensou Nat, mais
claros e menos intensos. Então, apercebeu-se de que ela não estava a usar
maquilhagem nenhuma. Dava-lhe um ar mais jovem, mais parecido com a
Annabelle que antes conhecia.
– Olá – disse Nat. – Então, de que queres falar comigo?
Annabelle encolheu os ombros.
– Só pensei, sabes, que podias querer pedir-me desculpa pelo que fizeste.
Nat ficou muito quieto.
– O que é que andas a tomar? – perguntou num tom zangado. – Não tenho
nada por que pedir desculpas…
– Tens sim, tu violaste-me…
– Violei-te, o caraças. Tu estavas a pedir-me…
– Sim, até tu começares a tentar matar-me.
– Não estava nada a tentar matar-te! Tu é que me tinhas enervado mesmo a
sério, e depois começaste a rir e a provocar-me, a incitar-me… Tiveste o que
querias, Annabelle.
– Mas disse-te para parares e quando uma rapariga te diz para parares,
tens de parar.
– E foi o que eu fiz.
– Não logo de imediato, e estavas mesmo a magoar-me e a assustar-me.
Pensei mesmo que me querias matar.
– E, mal dei conta disso, parei. Meu Deus, tu andavas por ali sem roupa
interior, seguiste-me para o bosque, até te ofereceste para me ensinar como se
faz…
– Mas não precisavas que te ensinasse, pois não? – disse Annabelle num
tom atrevido. – Exceto a não seres violento.
– OK, admito que fui um pouco bruto…
– Um pouco! Fiquei cheia de nódoas negras.
– Mas não te violei.
– Violaste, sim, e depois ainda tiveste de me dizer todas aquelas coisas
horríveis, chamar-me ordinária e dizer que esperavas não ter apanhado
nenhuma infeção porque eu era a maior puta de Holly Wood. – Os olhos de
Annabelle encheram-se repentinamente de lágrimas. – Se não tivesses sido tão
mau para mim, poderia ter sido capaz de te perdoar, mas não paravas de dizer
que eu era uma pega e que me devia manter longe das pessoas decentes porque
só servia para espalhar doenças.
– Peço desculpa por isso – disse Nat, passando a mão pelo cabelo. – Tens
razão, não devia ter dito essas coisas, mas estava zangado porque tinhas
acabado de me contar sobre o caso que a tua mãe teve com o meu pai. Não
estava a pensar corretamente, e enervaste-me tanto… Mas isso também não
quer dizer que te violei.
– Mas violaste.
– Raios – disse Nat. – Tu não…
– E mais – interrompeu-o Annabelle –, não só me devias pedir desculpas
como também me devias agradecer por ter retirado a queixa, caso contrário,
podias ter acabado por ir para a prisão.
– Nem pensar. Os meus advogados conseguiram fazer arquivar o caso
porque nunca se iria aguentar diante de um júri.
Annabelle pareceu perplexa.
– Ninguém me disse isso – respondeu. – Queres dizer que, afinal, o
processo não foi interrompido por eu ter dito que era o que queria?
Apercebendo-se de que aquilo era uma questão problemática para ela, Nat
disse:
– Podia ter sido assim, se tivesses retirado a queixa primeiro, mas por
essa altura os colegas do meu pai já tinham escrito uma carta ao Procurador-
Geral explicando por que motivos o caso nem devia ter ido avante, muito
menos até àquele ponto. Depois de a polícia tomar conhecimento, sabiam que
tinham de recuar.
O rosto de Annabelle parecia tenso e inseguro.
– Então, na realidade, nunca tive ninguém do meu lado – disse, com os
olhos a começarem a encher-se de lágrimas novamente.
– Tiveste, sim. Para começar, um dos polícias, e a tua mãe, e o tio Robert,
e metade da aldeia…
– O Robert tentou manter-se neutro.
– Bem, ele é mesmo assim.
– Na verdade, não sei se a minha mãe alguma vez acreditou em mim –
disse Annabelle tristemente. – Ela diz que sim, mas com ela nunca se sabe.
– Continua a haver aquele polícia – disse Nat desajeitadamente.
– Mas não é como ter o mundo inteiro a apoiar-me, pois não, como tu
tiveste?
– Foram só alguns advogados e, seja como for, não é essa a questão.
– Não, suponho que não – disse Annabelle, olhando de novo para as
chamas mais abaixo. – A questão é – continuou – que agora toda a gente pensa
que sou uma mentirosa e já não tenho amigos nenhuns. Quer dizer, a Georgie e
a Catrina dizem que são minhas amigas, mas já não me convidam para fazer
nada. Não que me importe, porque de qualquer maneira não queria, mas tu
continuas a ter tudo. Todos os teus amigos, a tua mãe, a Darcie… Imagino que
agora me devem odiar, tal como o resto das pessoas. O Robert é o único que
gosta de mim, mas mesmo ele não me quer aqui. Ele diz que é porque uma
rapariga da minha idade não pode viver na mesma casa com um homem
sozinho que não é pai dela, mas eu sei que é só uma desculpa.
– Na verdade, provavelmente ele tem razão – disse Nat seriamente. – Ia
parecer um bocado estranho, mas porque é que estás a dizer isso? A tua mãe
vive convosco…
– Ele anda a falar em divorciar-se dela.
Embora surpreendido, Nat não se conseguia obrigar a dizer que lamentava,
pelo que permaneceu em silêncio.
– Achas que o Robert não me quer aqui porque tenho uma reputação tão
má? – perguntou Annabelle finalmente.
– Não, deve ser por causa das coisas que as pessoas pensam que os
padrastos são capazes de fazer.
– Mas eu tenho má reputação, não tenho? É por isso que ninguém se quer
dar comigo. Quer dizer, as raparigas da minha idade. Algumas delas até nunca
tiveram namorado.
Sem saber como responder a isto, Nat contemplou a fogueira, sentindo o
calor das chamas no rosto e o fumo picando-lhe os olhos. Pensou em quando
eram mais novos e em como tinham sido chegados, não apenas devido aos
seus jogos secretos, mas porque, na verdade, se davam mesmo bem. No
entanto, agora eram pessoas diferentes, a sua inocência desaparecera por
completo e Nat sentia-se chocado e pesaroso de novo pela forma como as
coisas tinham acabado entre eles.
– É estranho, não é, que eu sinta que és a única pessoa com quem posso
falar – disse Annabelle ao fim de algum tempo. – Mas isso não te deve agradar
lá muito, porque provavelmente odeias-me mais do que toda a gente.
– Eu não te odeio.
Annabelle olhou para ele fugazmente e recomeçou a atiçar o fogo.
– Vais contar esta conversa à tua mãe? – perguntou.
– Não sei.
Annabelle encolheu os ombros.
– Tens sorte em ter uma mãe como ela. Acho que a minha nunca vai mudar.
O Robert diz que sim, com a terapia correta. – Annabelle deu uma risadinha. –
Meu Deus, como ela precisa de ir ao psicólogo! É mesmo doida, se queres
saber a minha opinião.
Nat sorriu debilmente.
– Acho que o que realmente importa – disse – é pores tudo isto para trás
das costas e arranjares uns amigos decentes.
Annabelle acenou vagamente com a cabeça.
– O Robert tem razão, talvez o melhor seja mudar para uma escola nova,
num sítio onde ninguém saiba nada de mim – disse Annabelle, e depois, de
súbito, soluçava com tanta intensidade que, antes de Nat poder refletir, já
pusera um braço à volta dela.
– Vai ficar tudo bem – disse ele quando ela escondeu o rosto no peito dele.
– Não vai nada – disse Annabelle num queixume. – Toda a gente me odeia.
Andam todos a falar de mim…
– Isso vai parar – assegurou-lhe Nat. – As pessoas estão mais interessadas
é na vida delas. Daqui a pouco, vão-se esquecer de tudo, e se te vais mudar
daqui…
– Eu sei – disse Annabelle numa voz sufocada –, mas não quero estar
sempre sozinha. Não tenho ninguém com quem falar, nem nenhum sítio para ir,
e sei que a culpa é toda minha, mas …
– Chiuuu – disse Nat, dando-lhe palmadinhas nas costas. – Isso vai mudar,
a sério, as coisas mudam sempre. Olha para nós agora. Há um mês, ninguém
pensaria que estaríamos aqui a falar assim, e foste tu que tornaste isto
possível.
Annabelle sorriu algo hesitantemente.
– Porque pensei que podias querer pedir-me desculpa – lembrou. – Ainda
acho que devias.
– E peço, por te assustar tanto naquela noite e por dizer coisas que te
magoaram tanto, mas juro-te, quando eu… Bem, tu sabes, quando fizemos
aquilo… Juro pela memória do meu pai que pensei que era o que querias e,
quando percebi que não era, parei.
Annabelle acenou com a cabeça.
– E eu juro que, quando fiz queixa à polícia, foi porque pensava mesmo
que me tinhas violado, e suponho que também te queria castigar por tudo o que
me disseste depois.
– Bem, não há dúvida de que castigaste.
– Lamento – disse Annabelle baixinho.
– Eu também – disse Nat.
De pé à janela, Robert sorriu de alívio ao testemunhar um segundo abraço
que pareceu acabar numa série de risadinhas da parte de Annabelle e numa
espécie de sorriso confundido de Nat. Enchia Robert de prazer vê-los assim,
sentia-se quase entusiasmado. Só gostava que as mães de ambos pudessem
seguir o seu exemplo. Contudo, pensando bem, Robert concluiu que teria de
esperar muito, muito tempo até ver isso acontecer.
Sabrina e June estavam sentadas no carro da primeira, estacionado diante
das garagens coloridas adjacentes à Coach House, suficientemente perto para
verem a casa mas ocultas atrás de outro carro. Observaram em silêncio
quando Alicia saiu pela porta da frente e foi deitar qualquer coisa no caixote
do lixo junto ao portão.
June lançou um olhar ansioso a Sabrina.
– Tens a certeza de que queres ir para a frente com isto? – perguntou num
tom de dúvida.
Sabrina continuou a olhar para o outro lado da rua, de olhos vidrados e
assustadoramente pálida. June não estava certa de ter sido uma boa decisão ir
até ali. Estava segura de que, se Robert soubesse, proibiria Sabrina de lá ir,
mas, por outro lado, tendo em conta as intenções de Sabrina, aquilo poderia,
na verdade, ser o que Robert desejava.
Quando a porta da frente se fechou nas costas de Alicia, June olhou de
novo para Sabrina, mas esta continuava de olhos fixos na Coach House como
se observasse a mulher que se encontrava lá dentro através das paredes.
Passaram-se mais alguns minutos, e então, abrindo subitamente a porta do
lado do condutor, Sabrina saiu. Não disse nada a June, nem hesitou quando
começou a atravessar a rua, limitando-se a manter os olhos fixos na porta de
que se aproximava.
Observando-a, June sentia-se cada vez mais preocupada com a
instabilidade que Sabrina demonstrara ao longo das últimas vinte e quatro
horas. Parecia a mulher desequilibrada dos primeiros tempos a seguir à rutura
com Craig, quando, à superfície, tudo parecia ainda estar a funcionar bem,
mas, interiormente, Sabrina já se havia desmoronado por completo. June
pensou se deveria correr atrás dela e tentar convencê-la a voltar para casa. Se
achasse que tinha alguma hipótese de ser bem-sucedida, provavelmente fá-lo-
ia, mas sabia que não tinha, por isso o melhor que podia fazer era ficar ali
sentada à espera, permitindo a Sabrina sentir-se segura, sabendo que a amiga
estava por perto se precisasse dela.
Alicia franziu a testa ao ouvir o som de alguém a bater à porta por entre o
estrondo que saía das colunas do iPod de Darcie.
– O Nat não tinha levado as chaves? – disse, olhando para o relógio.
– Não sei – respondeu Darcie, concentrada no bolo de chocolate que
estava a fazer.
Passando rapidamente as mãos por água, Alicia limpou-as ao avental
enquanto ia ver quem era.
No instante em que viu Sabrina, sentiu as entranhas gelarem de choque.
– Mas que…?
– Por favor, ouve-me – interrompeu-a Sabrina, encostando uma mão à
porta para impedir Alicia de a fechar. – Tenho algo a dizer-te. Posso… Posso
entrar?
Alicia olhou-a com uma expressão gélida.
– Não estou interessada em nada que tu…
– Por favor – disse Sabrina –, não te vou tomar muito tempo.
Alicia olhou-a fixamente, sem a mínima confiança.
– Preciso de falar contigo – disse Sabrina trémula, com os olhos a
encherem-se de lágrimas.
Apesar de não se deixar comover, Alicia saiu para o exterior, encostando a
porta.
– A Darcie está lá dentro – disse. – Não quero que ela ouça o que quer que
seja que tens para dizer, sobretudo se disser respeito ao pai dela.
Sabrina retraiu-se visivelmente. Então, com o seu olhar quebrado fixo em
Alicia, disse:
– Eu quero… Queria pedir desculpa pelo que disse na festa dos Roswells.
Alicia pestanejou, incrédula. Um instante depois, as suas suspeitas
fizeram-se ouvir.
– Porquê? – perguntou.
Sabrina pareceu desnorteada pela pergunta.
– Eu só… Foi… Não devia ter dito aquilo – conseguiu finalmente dizer.
– Estás coberta de razão, não devias, mas não vou aceitar as tuas
desculpas de maneira nenhuma, porque, francamente, estou desconfiada dos
teus motivos.
Sabrina pareceu abalada como se a possibilidade de ver as suas desculpas
rejeitadas nunca lhe tivesse ocorrido. Então, de súbito, como se algo dentro
dela tivesse mudado, os seus olhos cintilaram de irritação.
– Talvez gostasses que me pusesse de joelhos e me humilhasse – sugeriu
amargamente.
– Se quiseres, mas não vai fazer diferença. Ou foi o Robert que te
convenceu a fazer isto ou tens outra razão para vir até cá, que serve os teus
próprios interesses.
Sabrina estava prestes a contradizê-la abruptamente, quando pareceu
reconsiderar.
– OK – disse, afastando uma madeixa de cabelo do rosto –, vim até aqui
porque tinha esperanças de que pudéssemos deixar as nossas diferenças para
trás e começar de novo. Ambas adoramos o Robert, e sentir-se dividido entre
as duas como ele se sente, especialmente com toda esta situação horrível entre
a Annabelle e o Nathan, tem sido muito difícil. Penso que ele não anda bem e
temo que se continuarmos com esta… guerra, bem, isso só lhe vá fazer pior.
Alicia observava-a atentamente. Sabrina estava a representar muito bem,
tinha de admitir, mas ainda assim não a convencia.
– O meu irmão esteve aqui ontem – disse. – Não tem problema nenhum de
saúde, pelo menos nada que não se resolva se saíres da vida dele.
Sabrina recuou como se tivesse apanhado uma bofetada.
– Como saberias se ele está doente ou não? – disse, furiosa. – Não vives
com ele.
– Não preciso, para saber que estás a mentir. O que se passa realmente,
Sabrina? Não me digas que o Robert finalmente ganhou juízo e decidiu
expulsar-te de casa? É por isso que te estás a tentar desculpar? Para causar
boa impressão junto dele? Oh, meu Deus, tenho razão. Ele decidiu mesmo.
Alicia quase sentia vontade de rir. Sabrina olhou-a com uma expressão
letal, mas, quando estava prestes a debitar uma resposta encolerizada, Alicia
ergueu a mão.
– Fizeste por merecer isto, Sabrina – disse mordazmente. – Só pergunto a
mim própria porque demorou tanto tempo.
– Não aconteceria de todo, se não tivesses vindo para cá – silvou Sabrina
entre dentes. – Tudo o que correu mal na minha vida foi por tua causa.
Primeiro o Craig, depois a Annabelle…
– Não voltes a dizer o nome do meu marido na minha frente – disse Alicia
com raiva. – Tu meteste-te entre mim e ele, fizeste todos os possíveis por
destruir o nosso casamento e partiste o coração do meu irmão ao fazê-lo.
Portanto, vai para outro lado com as tuas mentiras e as tuas desculpas falsas,
Sabrina, porque aqui não convences ninguém.
– Não, espera, espera – exclamou Sabrina, agarrando Alicia pelo braço
quando esta começava a voltar-lhe as costas. – Por favor. Pensa na Annabelle.
Sei que foi um verão difícil…
Alicia deu uma gargalhada incrédula.
– … mas se o Robert nos obrigar a ir embora – prosseguiu Sabrina –, ela
não vai perder só o seu lar e os seus amigos, vai perdê-lo também a ele, e
nenhum dos dois quer realmente isso.
Apesar de algo comovida com aquela argumentação, Alicia estava
sobretudo espantada por Sabrina tentar usar Annabelle para a persuadir depois
de tudo o que se passara.
– Devias ter pensado nisso há muito tempo e, para além do mais, conheço
o meu irmão, ele nunca vai abandonar a Annabelle, mesmo que ela não esteja a
viver debaixo do mesmo teto que ele.
Sabrina levou subitamente as mãos à cabeça em frustração.
– Ouve, compreendo porque me odeias – exclamou –, mas tentares
castigar-me por uma coisa sobre a qual não tinha qualquer controlo…Não pedi
para me apaixonar pelo Craig, tal como ele não pediu para se apaixonar por
mim.
A expressão de Alicia endureceu de fúria.
– É tempo de parares de te enganar, Sabrina – disse bruscamente. – Ele
não te amava…
– Mas foi essa a última coisa que ele me disse – gritou Sabrina
desesperada. – Qual foi a…
– Já me perguntaste isso antes – atalhou Alicia com dureza – e não tens
nada com isso, mas queres que te diga quais foram as últimas palavras dele
sobre ti? Ele perguntava a si próprio como podia ter arriscado tanto por tão
pouco. Disse que tu eras uma loucura, uma obsessão, mas que o sexo contigo
não significava nada.
Sabrina recuou um passo, como se tivesse sido atingida por um raio.
– Podes acreditar no que quiseres, eu sei a verdade…
– Não, Sabrina, tudo o que sabes é o que contaste a ti própria. Nessa tua
cabecinha patética e doente, distorceste e mudaste as coisas para encaixarem
nas tuas ilusões e nas tuas fantasias, quando, o tempo todo, ele esteve aqui,
amando-me a mim e aos filhos, e fazendo os possíveis por se livrar de ti…
– És tu quem vive de fantasias – gritou Sabrina num tom de grande
sofrimento. – Ele voltou a procurar-me, lembras-te? Não me conseguia
deixar…
– Mas acabou por deixar, e a única coisa que lhe foi então difícil foi lidar
com a culpa que sentia por me ter magoado tanto. Enquanto tu, para citar as
palavras dele, não passaste de um “desvio de carácter”. Trocando por miúdos,
foste o maior erro da vida dele, do qual se arrependeu até ao dia da sua morte.
O rosto de Sabrina empalideceu e tremeu com a recusa.
– Ele não te diria isso…
– Na verdade, foi o que disse à minha mãe. Escreveu-lhe uma carta, há
mais de um ano, dizendo-lhe o que a vossa ligação significava para ele e como
a família sempre estivera e sempre estaria em primeiro lugar. Podia mostrar-te
a carta, mas não o vou fazer porque me pertence unicamente a mim e aos meus
filhos, tal como ele também pertencia. Não tinhas qualquer direito ao Craig,
Sabrina, nem quando era vivo, nem agora, que está morto. Por isso, vai-te
embora. Não te queremos mais nas nossas vidas.
Quando Alicia lhe virou as costas, algo dentro de Sabrina explodiu e,
atirando-se para a frente, bateu com o punho fechado nas costas de Alicia,
fazendo-a voar disparada contra a porta.
Atordoada pela pancada, Alicia só no último momento se apercebeu de
que Sabrina pegara numa pedra, conseguindo contudo esquivar-se antes que
ela a atingisse na cabeça.
– Nããão! – gritou June, saltando do carro.
Sabrina voltou-se de um salto, quando June desatou a correr na sua
direção.
– Não te aproximes, June – avisou-a. – Foi ela que provocou isto.
– Não, não – implorou June, tropeçando ao entrar no portão a correr.
Darcie abriu a porta por completo.
– Mãe! – exclamou, vendo Alicia tentar erguer-se do chão. – Que foi?
– Volta para dentro – disse Alicia sem fôlego, empurrando-a para o
interior.
Darcie gritou quando Sabrina se atirou de novo a Alicia. Esta desviou-se
mesmo a tempo, e a seguir pôs-se de pé, arrastando Darcie pelo átrio dentro e
batendo a porta atrás delas.
– Sua cabra! – guinchou Sabrina. – Estás a roubar tudo o que é meu, mas
não te vou deixar.
Recuando, Sabrina arremessou a pedra pela janela da sala de estar.
– Robert – disse June em pânico ao telemóvel. – Tens de vir cá. Estamos
em casa da Alicia e a Sabrina… Oh, meu Deus, ela enlouqueceu.
Dentro de casa, Alicia estava aninhada com Darcie na cozinha. Ambas
sustiveram a respiração e encolheram-se ao ouvir outra janela partir na frente
da casa. Conseguiam ouvir Sabrina a gritar e a barafustar, mas Alicia tinha as
mãos sobre os ouvidos de Darcie, tentando impedi-la de ouvir aquela loucura.
– Que se passa com ela? – gritou Darcie. – Porque é que ela está a fazer
isto?
– Ela… não sei – respondeu Alicia a tremer. – Vou ligar ao tio Robert.
Ao agarrar o telefone, saltou, quando mais uma pedra entrou disparada por
outra janela.
– Não pertences aqui! – berrava Sabrina. – Esta casa é minha e do
Robert…
June tentava agarrá-la.
– Sabrina, por favor, para – suplicou.
– Quero matá-la – disse Sabrina num silvo selvagem. – É por causa dela
que estou a perder tudo. A culpada é ela…
– Sabrina, a Darcie está lá dentro. Ela é só uma criança…
– Não me interessa – e, empurrando June, agarrou noutra pedra.
– Sabrina, tens de te controlar – implorou June de novo, tentando tirar-lhe
a pedra. – Há pessoas a ver…
– Deixa-as ver. Quero que toda a gente saiba tudo o que ela me roubou – e,
com toda a sua força, atirou a pedra contra a janela da sala de jogos.
– Oh, meu Deus – murmurou June quando o vidro se estilhaçou em mil
pedaços.
– Sabrina! – gritou Robert, surgindo a correr por The Close.
Sabrina voltou-se e, quando o viu, bradou sarcasticamente:
– Ali vem ele, armado em salvador da irmã. Começo a ter as minhas
suspeitas, sabes, com isso de a pores sempre em primeiro lugar… Mas que…?
– rosnou, enquanto June lhe prendia ambos os braços atrás das costas.
– Pelo amor de Deus, vê se te controlas – disse June baixinho enquanto
Robert entrava pelo portão a correr.
– Mas o que é que se está aqui a passar? – perguntou ele, olhando para
June. – Que faz ela aqui?
Com uma expressão de desamparo, June disse:
– Ela veio pedir desculpas…
– Quê?
– Desculpa, pensei que pudesse correr tudo bem.
Agarrando Sabrina quando esta se libertou de June, Robert virou-a para
ele e estava prestes a pedir-lhe explicações quando Nat e Annabelle
apareceram a correr ao fundo da rua.
– A minha mãe ligou-me – gritou Nat. – Que se passa?
Sabrina encolheu-se.
– Mantenham aquele rapaz longe de mim – cuspiu. – Ele é perverso. É um
violador…
Robert tapou-lhe a boca com a mão e disse a June:
– Temos de a levar para casa.
– Vou buscar o carro dela – disse June.
– Mãe, que tens? – exclamou Annabelle, com um ar aterrorizado quando
Sabrina começou a gritar continuamente como se não fosse capaz de se deter.
– Nat, vai para dentro e vê se a tua mãe está bem – disse Robert.
Tirando as chaves de um bolso, Nat olhou por cima do ombro para Sabrina
e Annabelle, e depois abriu a porta.
– Também sempre te odiei – berrou Sabrina quando Nat entrou. – Odeio-o
– disse a Annabelle. – Ele não presta. Violou-te…
– Mãe, para, por favor – suplicou Annabelle.
Robert segurava Sabrina, mas esta lutava ferozmente para se libertar. O
seu cabelo parecia um ninho de ratos e tinha o rosto manchado de lágrimas e
rímel.
– Isto é culpa tua – disse colericamente a Robert. – Vais-me expulsar de
casa. Já não gostas de nós…
– Chiuu, para com isso, por favor. Para! – ordenou Robert, abanando-a.
– Não posso – disse Sabrina, engolindo em seco. – Eu estou… Oh, meu
Deus, Robert, não consigo suportar. Não aguento mais…
Puxando-a para ele, Robert abraçou-a com força e, enquanto Sabrina
tremia e arquejava em desespero, sentiu-se invadir pela culpa e pela
consternação. Ela tinha razão, aquilo era culpa dele. Devia ter percebido
como ela estava perto do limite, como lhe seria difícil lidar com as coisas que
lhe dissera.
– Por favor, não me obrigues a sair de casa – suplicou Sabrina, agarrando-
se a ele. – És tudo o que tenho. Não serei capaz de sobreviver sozinha.
– Então e eu? – disse Annabelle. – Ainda me tens a mim.
Sabrina olhou para ela inexpressivamente. Então, parecendo compreender
de quem se tratava, começou a soluçar.
– Annabelle, minha menina – disse numa voz sufocada, levando as mãos ao
rosto. – Que foi que te fiz? Porque me odeias?
– Não te odeio – exclamou Annabelle, aproximando-se dela. – Tu só…
– Chiuu – disse Robert, interrompendo-a suavemente. – Vamos levá-la
para casa. Depois, haverá tempo para o resto.
– Sim, quero ir para casa – disse Sabrina num queixume. – Por favor,
levem-me para casa.
– A June já está aqui com o carro – disse Robert num tom reconfortante e,
conduzindo Sabrina para o portão, fez um sinal com a cabeça a Annabelle para
o abrir.
– A Annabelle também vem? – perguntou Sabrina.
– Sim, estou aqui – disse Annabelle, passando cautelosamente um braço à
volta da mãe.
– Vou chamar o médico e pedir-lhe para te receitar qualquer coisa, para te
ajudar a acalmar – disse Robert serenamente.
– Sim, sim – concordou Sabrina. – Preciso de me acalmar. Não devia ter
perdido o controlo assim, mas não consegui evitar – disse Sabrina, olhando
para Robert ansiosamente, com a cabeça e os ombros ainda sacudidos pelos
soluços. – Ela tentou… Ela tentou dizer que o Craig não me amava – disse
hesitantemente –, mas eu sei que ele amava. Mas agora não importa, pois não?
– Não – respondeu Robert e, abrindo a porta de trás do carro, esperou que
Annabelle entrasse primeiro e, então, empurrou Sabrina para o lugar ao lado
dela. – Leva-a para casa – disse a June. – Vou ver se a minha irmã está bem e
depois vou lá ter.
– Não! – gritou Sabrina. – Quem precisa de ti sou eu.
– Eu já vou lá ter – disse Robert –, mas agora, por favor, tenta controlar-te,
para bem da Annabelle, mas também por ti – e, enfiando a cabeça pela janela
do lado do condutor e inclinando-se sobre June, carregou no botão para
trancar as portas de trás.
June ergueu os olhos para ele e, depois de exibir um breve sorriso de
solidariedade e encorajamento, arrancou. Já tinham passado por aquilo antes e
sentia-se tão triste e apreensiva como Robert por verem a situação a repetir-
se.