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Vita &Virgínia

Ou

Somos Todas Feiticeiras

de Marisa Salomão
SUMÁRIO

1. Só uma palavras
2. Caminhos
3. Dólmens
4. Dona de casa
5. Eu, Vita & Virgínia
6. Fantasia
7. Gula
8. Madonas
9. Lusitânia
Só Umas Palavras

Vita e Virgínia não eram comuns: eram mulheres. Assim como todas nós,
escondiam “estranhos” poderes dentro das gavetas, nos bolsos do avental, na caixa de
costura, na caixinha de joias, na saboneteira, no pote de pó de arroz e em cada cantinho
disponível à magia. Vita e Virgínia eram bruxas como nós. Usavam e abusavam dos
feitiços e dos encantamentos, sem sentirem a menor culpa quando lançavam terríveis
maldições. Quando eram boas, eram boas, quando eram más, eram ótimas. Exatamente
como nós.

Vita e Virgínia não eram óbvias, eram mágicas como nós. Amaram, odiaram,
trabalharam, suaram, sofreram, fizeram limonada de um limão, multiplicaram pães,
sonharam com grandes paixões, fantasiaram romances, reclamaram da vida, exaltaram os
dias nublados em que só elas avistavam o sol, cantaram na chuva, viraram lobas a defender
a cria... exatamente como todas nós.

Outro dia elas me visitaram enquanto eu coava o café. Chegaram agitadas, envoltas
no tule diáfano dos fantasmas. Pediram-me para escrever um livro que pudessem decorar.
Perguntei a razão, e Vita, a mais tagarela, respondeu-me com uma interrogação: “Você se
esqueceu que as mulheres carregam livros na memória?”.

E foi assim que este livro nasceu sob a forma de história contada em versos.
Exatamente como aqueles que ilustram as lembranças dos nossos segredos mais íntimos...
As Avós

Vita e Virgínia,

mulheres

aves

coiotes

múltiplas

fadas

megeras

donzelas

anciãs

profanas

donas

lunáticas

aquáticas

raízes

duas

mil

infinitas

eu

tu

nós
Vita rezava para a Lua. Na sacada da varanda conversava com a mulher azul que chegava
no finzinho da tarde. Conversa prateada, trançada, estrelada. Vita lhe confiava segredos. A
Lua, desejos. De tão íntimas, eram uma da outra. Vita era Lua e Lua era Vita. Vitalua,
Luavita. Duas moças anciãs à espera de um namorado.

&

Virgínia rezava para Fátima. No avarandado do fundo da casa conversava com a moça azul
que chegava ao final da tarde. Conversa azulada, encantada, refogada. A moça ajudava o
preparo da janta enquanto Virgínia orava e catava feijões. Orações culinárias, ensopadas,
encorpadas. De tão íntimas, eram uma da outra. Virgínia era Fátima e Fátima era Virgínia.
Uma era virgem. A outra, nem tanto.
CAMINHOS

Vita detestava carros, ônibus, trens, aviões, e navios. Dizia que os pés eram amantes das
estradas, e que os caminhos, o destino das solas...
Bulgáricas

Eu nunca fui à Bulgária

E nunca conheci um búlgaro.

De lá não pude trazer nada

E mesmo se pudesse

A alfândega confiscava.

Aliás, no dia em que consegui o visto

O aeroporto estava em greve.

Fui então ao açougue e comprei um bife.

Um pedaço de bull sangrento

Suculento

Que na frigideira,

Como Zeus

Me deu a Europa.
No quarto de Vita, entre uma curva e uma encruzilhada, ficava um enorme espelho. Uma
esquina sossegada, um atalho escondido debaixo de uma velha escada.
Timeless

Quando o tempo eriçar os arames

E nos varais as saias rodopiarem

Exibindo íntimas grotas

Estarei debaixo de um outdoor

Lixando as unhas.

Quando o tempo libertar os loucos

E nos hospícios só restarem esparadrapos

Estarei detrás do sinal

Procurando espinhas no rosto.

Quando o tempo afiar tesouras

E os ventos rasgarem o céu

Estarei na ponta do abismo

Ensaiando um pas des deux.

Quando o tempo enrolar os tapetes

E mechas se enroscarem nos grampos

Eu me enforcarei nas tranças de Rapunzel

Enquanto aguardo o cabeleireiro.


O tempo de Vita tinha a velocidade meteórica da falta de pressa. Não era regulado por
relógios e muito menos por dias. Era um tempo absoluto, um facho de luz que iluminava os
becos.
Aeróbicas

Não explicar nada.

Não tentar saltos abruptos.

Não forçar os músculos.

Esquecer os aquecimentos.

Alongar suspiros.

Não forçar a barra.

Mergulhar no caldo sem levantar gota.

Ignorar o apito.

Não olhar o placar.

Não buscar medalhas.

Perder a competição e enxugar o suor.

Por fim, uma vitamina & um suspiro em círculos.


Vita caminhava por caminhos tortos. Riscava muros com a ponta metálica do guarda-chuva
e cortava caminho pelos terrenos baldios. Evitava os túneis e preferia cruzá-los pelas
encostas. Os caminhos íngremes eram os seus preferidos. Dizia que eles lembravam os
arrepios da mocidade. Das calçadas conhecia os nomes, os buracos, e os esquecimentos.
Vivia achando objetos perdidos.
Nado de Costas

Nada de falar dos ladrilhos e raias

Nem dos mergulhadores de saias

Ou das bordas transbordando vaias.

Não coloco a touca nem o tapa nariz

Quico no trampolim, finjo um salto mortal

E depois escapo por um triz.

E se alguém por acaso quiser saber

Vou dizer que eu não quis.

Foi um acaso de nada que me tirou da escada

Quando a boia do mickey furou.

Mergulhei na piscina como um gato

Com pé de pato.

Nadei de costas

Sem nenhum estilo.

Não ganhei medalhas

Não fui à olimpíada.

Contentei - me com as migalhas

Que esqueceram na geral.


Vita adorava os binóculos. Guardava-os num desses cofres que se costuma ver nos filmes
de mafiosos. Vez por outra destrancava o segredo. Girava o círculo de ferro, ajustava os
números, e depois ia para a janela espiar os humanos. Não ficava muito tempo. As lentes
lhe causavam coceira nos olhos.Voltava então para guardá-los outra vez no cofre. Travava
o segredo e ia conversar com os cavalos...
Binóculos
Abstrações oceânicas

No olhar de égua.

Uma linha

Um fiapo

Uma strega.

Cofres de organdi

No viés das pregas.

Um salto

Um giro

Um trampolim.

Anágua de meretriz

Na piscina sem água.

Um corte

Um rasgo

Uma cicatriz.

Fome metafísica

No prato do desejo.

Última ceia

Reticência

Um beijo.
Um dia as duas chegaram com folhas de papel celofane, linha e cerol. Perguntei se faríamos
uma pipa. Tiraram a roupa, abriram os braços e responderam: “Vem voar com a gente
menina. A pipa fica para os meninos!”
Amanhecer esquálido

O dia amanhece no filtro de papel

Na claridade dos óculos dentro da bolsa.

O dia amanhece logo depois da veneziana

Um pouco aquém do sujeito que observa

E além daquilo que é percebido.

Acorda como um risco no vazio

Criando espaços que não existem

Ou fingem existir por pura insistência.

O dia amanhece num sol maduro

Prestes a ser colhido

Espremido até o caldo.


Um dia Vita saiu de casa bem cedinho. Arrumou - se com esmero, pegou algumas bolachas
na cozinha e colocou dentro da bolsinha. Conversou com os seus mortos, escutou o jornal
matinal, regou as plantas, deixou a louça por lavar, abriu as cortinas da casa, e saiu
deixando a porta sem trancar. Desapareceu no espelho da esquina. Nele escreveu com
batom um último verso: "Não me esperem para o jantar".
DÓLMENS

Virgínia não ficou velha. O tempo lapidou as suas arestas. Com o passar dos anos foi
adquirindo maior transparência e luminosidade. Por vezes, dava a impressão de ter
realmente se tornado um dólmen. Em alguns momentos, ela retomava a forma e corria ao
espelho. Mas era tarde: os ventos, as areias, as chuvas, o sol e a lua já tinham inscrito a sua
passagem...
Silicone metafísico

Eu queria ser eterna

Como a Marylin do ventilador

Queria o perfume e o calor

Da areia nas coxas

E ser musa de algum pintor.

Eu não queria os espelhos

Nem a sabedoria anciã

Queria não ouvir o odioso “senhora”

Que o padeiro insiste em dizer todo dia.

Aliás, eu nem queria ir à padaria.


Vide bula

Que buraco é esse que me faz comer a geladeira?

Que fome é essa que me embrulha o estômago?

Que gordura é essa que me assombra?

Que desgosto é esse que me amarga a boca?

Que fúria é essa que me faz biliosa e feia?

Que espelho é esse que reflete essa desconhecida?

Em qual farmácia encontro o remédio?

Se ao menos eu achasse a bula...


Um dia, Virgínia deu de andar cismada. Sentava calada num canto da sala e de lá não saía
nem se Fátima a chamasse. Folheava um velho álbum de fotografias, enquanto resmungava
aflita: “Deve estar por aqui aquela senhora que toda manhã cisma em me aparecer no
espelho”.
Uma dama quase idosa

Ao mirar-me hoje no espelho do toucador

Descobri que a velhice me apavora

Ao passar batom nos lábios

O carmim espalhou-se por caminhos.

Eu sei que eram traços de rugas!

Mas preferi fingi-los vias.

Procurei a lisura da pele

E os dedos encontraram cristais.

Eu sei que eram escamações da idade!

Mas preferi fingi-los joias.


Becos

Ao completar quarenta, não me preocupei.

O corpo estava em pleno funcionamento

Os poucos fios brancos nos cabelos

Pareciam estrelas brilhando no firmamento.

Cheguei até a gostar das rugas no rosto

Comprei pilhas de cremes bem perfumados

E ao ritual de beleza chamei de bom gosto.

Aos quarenta, meus rios não eram secos

As estradas me levavam a qualquer lugar.

Aos cinquenta, os caminhos estreitaram.

E vieram os becos.
Soul on ice

O sol não devia brilhar para os velhos

Para eles, só chá de hortelã.

O sol é pra carne fresca e corpos torneados

Para os velhos bastam os casacos de lã.

Mas o que fazer, se ele insiste em me dar bom-dia

Se entra pela janela e a minha pele arrepia?

O que fazer com o gelo e o cachecol

Se ainda estremeço com os beijos do sol?


Baile de máscaras

Procurei no baú as velhas roupas

Revirei o armário e a gaveta

Poli o espelho coberto de teias

E vesti o jeans e a camiseta.

Vestida de mim mesma

Fui barrada no baile.

A fantasia não era adequada...


No dia do seu funeral, Virgínia revelou-me a face da morte. Não era feia como diziam. Não
era triste e nem combinava com o pranto. Tinha a rigidez e a solidez de um dólmen. Um
monumento lusitano com delicadas conchinhas de ouro nas orelhas.
Dona de casa

Virgínia areava as panelas como se fosse colocá-las na caixa de joias. Polia inumeráveis
vezes entre jorros de água e oceanos íntimos.
Mistérico

Elas lavam louças

E desintegram a cozinha

Num gozo volátil de detergente.

Arranham as panelas como éguas

Que mastigam o mundo com os dentes.

Penteiam-se como as cadelas

Lambem seus corpos

Como as esponjas lambem panelas.

Como brilham...

Como brilham...

Descascam as batatas

Cortam maçãs

Arreganham vaginas aquáticas

Enquanto descaroçam romãs.

Vitalina não era uma "boa dona de casa". Era anarquista demais para se prestar a hábitos e
horários! E se você a visitasse, certamente sairia da casa dela fugindo! Mas se você não
ligasse para papagaios empoleirados em cadeiras, esbravejando palavrões para um pequinês
deitado no centro da mesa ela sorveria muitas xícaras de café,
Das noivas, Vita só apreciava os vestidos. Nos casamentos, ficava do lado de fora da igreja.
Não cumprimentava os noivos e sempre recusava o bolo... Nos chás de panela,

Não tão óbvio

Cansei das transparências aquáticas

De ver o mundo pelos copos de requeijão.

Cansei das deformidades plásticas

De ver a vida pelo vidro do fogão.

Cansei das cebolas

Dos alhos

Ervilhas

E pimentões.

Quero outros temperos

Uma xícara de letras

Uma pitada de giz

Meia dúzia de palavras

Uma colher de pontos

Algumas gotas de vírgulas

E reticências a gosto.
Levei muito tempo para descobrir a razão do desemparelhamento dos brincos de Vitalina:
ela amava a liberdade!
Panos

Eles flutuam sobre as toalhas

Nas pregas mergulhadas no anil do tanque.

Conhecem os desvios óticos

Que confundem o mar com o mangue.

São panos embranquecidos pelos dedos

De mulheres mortas.

Damas que esfregam sonhos na bacia

E estendem a luxúria nos varais.

São retalhos esquizofrênicos

Espantalhos cênicos

Notas de um blues no palco.

São falos das lavadeiras

Que escorregam no sabão da heroína

De um pano de prato drogado.


Bordéis matemáticos

Mechas de néon

Como anéis de oferta

Numa caixa de Corn Flakes

Barras redondas

Franjas geométricas

Esqualidez sexual.

Um tapete felpudo

Cadáver desnudo

Uma Barbie ancestral.

Batons franjados

Nos lábios das senhoras

Bordas cosméticas

Calcinhas sem elástico.

Mulheres janelas

Dobrando fronhas

Alisando lençóis.

Adição tristonha

Subtração insana.
Varal noturno
Entre o pregador

O fio e o pano

Um olhar de moça assustada

Estica-se como elástico

Pronto a prender o rabo-de-cavalo.

Sensação de roupa na corda

Vento com cheiro de água sanitária

Uma lambida de cloro

Arreganhar de pernas

Lavadeiras modernas

Eternas.

Entre o sabão e as águas vaginais

A liberdade das perversões

Agitadas nos varais.

Desvios oclusos

Sinais vesgos.

Enxágue e não deixe pistas

A menor mancha

Pode estragar o trabalho.


Esfregue as pregas

E as bordas.

Lave e enxágüe à noite

Cuidado com corantes


Quando o relógio da sala anunciava as seis horas da tarde, Vita dependurava o pano de
prato no cabide da cozinha, desamarrava o avental, enchia uma taça de vinho, apagava a luz
da sala e ligava o rádio. Pela janela a luz da lua entrava lhe fazendo uma serenata. Vita
engolia o vinho e mastigava um antigo namorado.
Don’t explain
Eu queria o sapato do Fred Astaire

E o vestido branco da Ginger.

Queria os peitos da Mae West

E os óculos da Greta Garbo.

Queria também a tolice da Marylin

E a idiotia da Doris Day.

Depois

Sairia por aí feito uma tola

E só falaria bobagens.

Esqueceria Proust

E casaria com um burocrata.

Iria ao shopping nos sábados

E poliria as unhas quando elas lascassem

Não explicaria nada

E das indagações manteria distância.

Cultuaria zeros

E aboliria os cálculos.

Escreveria versos que rimassem

Tolices como amor e dor.

E das dores

Só conheceria a dos dentes.


Numa clara manhã de uma segunda-feira, Virgínia decidiu resolver a luta que travava com
a senhora que todo dia lhe aparecia no espelho.Chamou-a para uma luta aberta. “Mano a
mano”, como costumava ouvir dos malandros da rua. Olhou-a no fundo dos olhos, respirou
profundamente e ligeira sacou do seu pote de creme hidratante. Do fundo do espelho a
senhora sorriu por ter perdido a luta.
Louça noturna

A linha do horizonte

Despenca da bainha da saia.

Menires de porcelana

Na toalha estendida do céu.

Noite transbordando de uma taça

Na embriaguez da pia.

O canário preso suicida-se

Entre o lavar dos pratos

E gotas de detergente.

Morre entre a gaiola e a pia

Mais um cadáver

Na necrofilia das paredes.

Esqueceu do bilhete!

Mortos...

Por que será que escrevem?


Um dia Vita percebeu que era a dona da casa e mandou todo mundo embora.
Sinatra revisitado

Sob a minha pele se escondem escamas

Que de noite arranham o cobertor

E despejam maresias no lençol.

Debaixo da minha pele mora uma ursa

Mal humorada e rabugenta

Que se assusta com o movimento

De estranhos na sua floresta.

Sob a minha pele ela afia as garras

E me engole com os dentes.

Debaixo da minha pele mora um oceano

Que afoga peixes e dilacera marujos

Em noites menstruadas e sem lua.

Sob a minha pele se abriga o medo

O pavor petrificado da Medusa

No instante exato que mirou o homem.

Quando as visitas se chão e espanou os móveis. Aproveitou as penas do espanador para


uma
Vita e Virgínia não enceravam o assoalho da casa: ziguezagueavam paixões sobre a
madeira...
Eu,
Vita & Virgínia

Antes de ir embora, as duas me entregaram os seus mistérios. Vita, a eterna anarquista, deu-
me de presente uma folha em branco; Virgínia, a irmã das Virgens, uma caixa cheia de
medalhas. Depois se foram sem as pieguices das despedidas. Deixaram-me tripartida; uma
figura a um passo de uma exótica esquizofrenia.
Vita e Virgínia
Na orla do andar, disfarçavam-se em avós

Lavavam lençóis e cerziam os buracos das meias

Tricotavam a vida com linhas e laços sem nós

Como duas aranhas a tecer teias.

Vita bordava jardins em ballet de linhas

Remendava o mundo num bem-me-quer.

Virgínia rezava Ave Marias e Salve Rainhas

Para um deus transformado em mulher.

Costuravam fantasias e bordavam caminhos

Decifravam enigmas e corriam na contramão

Exalavam maresia e ventavam moinhos

Escondiam sonhos no fogão.

Vita me deu a fúria dos mares bravios

A saudade do porto e a fome das navegações.

Virgínia deu-me a química dos desafios

Os pontos, as vírgulas e as interrogações.

Quando morreram, não viraram estátuas de praça

E lentamente a fumaça do tempo as foi levando.


Hoje, quando tudo está vazio e sem graça

Me visto com as duas e na Orla Ando.


Certa vez uma cartomante me disse que os fantasmas de duas mulheres me atormentavam.
Sugeriu um trabalho. Pediu dinheiro e alguns badulaques. Ficou furiosa quando eu respondi
que lhe daria em dobro, contanto que as duas ficassem!
Donas
Domina são donas sem domínios

Possuem o nada e dispensam o tudo

Domina são donas dos desígnios

Carregam o destino num entrudo.

Domina são dominós femininos

Desenham pontos na escuridão

Ferozes e meigas como os felinos

Senhoras da ruptura e da perversão.

Domina são barcos sem marinas

Missas negras sem Papa e sem latim

Domínios de tules e bailarinas

Tatuam os lábios com rubro carmim.

Domina são donas sem dó

Dão à luz e engolem a vida

Nas tripas sangrentas do nó.


Greve

Eu queria me filiar a um sindicato e fazer greve

Não cozinhar, lavar, passar, encerar

Nem resolver problemas.

Comprar uma passagem de navio ou avião.

Eu queria entrar em greve e organizar passeata

Com cartazes desaforados e fora da lei

Queria berrar num megafone

E, se possível, virar guerrilheira.

Se a polícia viesse

A receberia com porrada

Respaldada por Mao Tse Tung e Fidel.

Queria ver o meu rosto no cartaz da esquina

E nunca mais azulejos e cozinhas!


Vita e Virgínia me ensinaram que a vida não pode ser mais ou menos, que as emoções não
permitem o morno e muito menos o banho-maria. Aprendi a lição e hoje oscilo entre as
queimaduras e a hipotermia.
Identidade

Sou assim confusa e estabanada

A um passo do exagero e da exaltação.

Não encontro meio-termo em nada

E sempre corro na contramão.

Sou assim mescla de anjo e vampiro

Em busca de hóstias e sangue

Excessiva no ar que respiro

E atropelo como um tanque.

Sou assim anônima e exibida

Bem próxima do carnavalesco.

Nas paixões não tenho medida

E busco um amor dantesco.

Sou assim primitiva e tribal

Num fio entre a razão e a loucura

Não consigo ser racional

E reviro latas na rua escura.


Delírios femininos
Eu queria ter as pernas da Dietrich

E o olhar fatal da Greta Garbo

Queria beber champanhe

E morrer entre pílulas e lingerie

Queria estar nua no jornaleiro

Ser musa do sexo dos adolescentes

Queria ser objeto de desejo

E cortar a vida com os dentes.

Eu queria ser metafisicamente fútil

Recitar Verlaine como se vai ao cinema

Queria cultivar o inútil

E esquecer qualquer teorema

Queria ser complicada e difícil

Falar tolices por puro prazer

Ter aquele ar de quem paira por cima

E morre de tédio em viver.

Queria ser samba-enredo

Figurinha de álbum

Decalque de criança
Beber a vida até o último gole

E do mundo levar lembrança.


Aos quinze anos ganhei de Virgínia um terço e uma imagem de Fátima. O terço ela mandou
usar como colar ou pulseira, e a imagem, como confidente.
As pernas de Joana D’Arc
Que Joana tinha um arco

Todo mundo sabe

Mas quem é que me diz

Do seu gozo e prazer?

Quem sabe que fim levaram

As pernas, a boca e o sexo de Joana?

Quem é que lhe tira a santidade

E a devolve profana?

Joana, a santa, é um saco!

Não passa de moça imaculada

Lutando entre visões e arcos.

Joana, amazona astuta

Donzela de mil nomes e faces

Aquela que no fogo ardeu

Não pela França

E sim pelas mulheres

Nessa eu acredito

E pra ela rezo.


Elas chegaram sem pedir licença. Invadiram o quarto e ali acamparam. Virgínia trouxe
lembranças de dores nunca vividas. Vita, o despudor dos jardins e a teimosia da vida.
O fantasma de Virgínia

Numa tarde fria de inverno

Virgínia incorporou na casa.

Chegou com os seus livros

As suas canetas

O seu chapéu

O seu casaco

E o seu diário.

Surgia nas horas mais impróprias

E até hoje me assusta quando abro o armário.

De início, não a reconheci com aquele casaco encharcado

Pediu-me uma xícara de chá e reclamou do frio

Atropelava palavras num inglês acentuado

E demonstrava estranha fixação pelos rios.

Desde então nos tornamos amigas

Vamos ao shopping e ao supermercado

Trocamos segredos inconfessáveis

No verão lemos poemas à beira do rio

Catamos seixos enormes e arredondados.

Virgínia sempre os guarda no bolso do casaco


No início me assustei com essa mania

E confesso que temi perguntar

Quem sabe as pedras não terão serventia

No dia que o meu chapéu eu for comprar?


Dorothy Parker

Quando o fantasma de Virgínia

Aqui em casa veio morar

Não chegou desacompanhado

E trouxe outro pra assombrar.

Enquanto Virgínia vagava encharcada

Entre os livros da biblioteca

Dorothy fuçava gavetas e armários

Experimentando vestidos e sapatos

Com ares de boneca.

Virgínia chorava pelas rugas

E pelos cabelos grisalhos.

Dorothy a socorria com cremes

E penduricalhos.
Era uma vez duas mulheres que tinham a alma de todas as mulheres. Chamavam-se
Virgínia e Vitalina, Maria e Cristina, Josefina e Beatriz, Rita e Cláudia, Rosemary e
Berenice, Márcia e Olívia, Alexandra e Andréia, Marina e Felícia, Juliana e Joana, Luiza e
Daniela, Nádia e Leila, Leda e Lídia, Izabel e Raquel, Denise e Glória, Ana e Joana, Cecília
e Clarice, Diana e Dorotéia, Sônia e Sandra, Lia e Sofia, Carolina e Júlia, Flávia e Amália,
Dolores e Natália, Neide e Joaquina, Neusa e Eleusa, Patrícia e Paula, Andréia e Fernanda,
Sebastiana e Antônia, Clara e Mara, Zélia e Amélia, Ângela e Bruna...
FANTASIA

Quando Vita desejava qualquer coisa que fosse, corria ao quintal e rabiscava a terra.
Passava horas riscando caminhos, círculos e ziguezagues. Para ela, a vida era um eterno
traçado agrário.
Quase sempre
Quase sempre eu me esqueço

E faço uma força danada para lembrar

De coisas que não aconteceram.

Sandices de moças

Ilusões de fêmeas.

Quase sempre eu me afogo

E faço de conta que sei nadar

Em águas secas que não verteram.

Coisas sem importâncias

Confidências femininas

Que nem vale a pena narrar.

Quase sempre eu escorrego

E limpo a saia que sujou

Numa poça de lama

Sem terra.

Memórias de louca

Alinhavos de meretriz

Num corte de pano

Sem linha.
Quase sempre eu quase chego

E me atraso

Sem nunca ter ido

E muito menos saído.


Cinzas

No meu funeral, quero me vestir de cetim.

Quero um batom vermelho como sangue

E perfume de jasmim.

No meu funeral, quero estar gostosa

Como uma estrela saída da tela.

Quero poetas, pintores, cantores, e atores

Mas não quero nenhuma vela!

No meu funeral quero piadas e risadas

Quero beijo na boca, vinho, e perversão.

E, por favor, não fechem o caixão!


Quando Vita se apaixonava, não escrevia cartas nem poemas. Saía para o jardim e fazia
feitiços!
Spell

Preciso de agulhas de ouro

Uma gota do sangue de uma virgem

Uma estrela ainda viva

Um retalho da colcha de alguma rainha

Uma nota musical desconhecida

E um novelo de raios da lua.

Preciso também de um eclipse

(e se possível, uma tempestade)

Necessito urgentemente de ventos

E também de calmarias.

Depois de misturar tudo no meu caldeirão

Finco o seu corpo num meteoro

Rasgo a noite com uma tesoura de luz

Invoco o fantasma de Cole Porter

E vamos ao Village

Escutar uns blues.


Matemática
Você arrepia os meus pêlos

Como a manhã eriça os raios do sol

Me prende numa teia

Trançada sobre um girassol.

Você enfeitiça os meus relógios

Como um nada que bóia no excesso,

Uma água que bebe o mergulhador.

Você debulha os meus grãos

Como as mãos capturam a história.

Você faz do meu mundo

Um mero malabarismo

Onde me equilibro

Sem trajetória.

Você me retalha com uma navalha

Numa cirurgia

Sem falha.

Você me afoga

Me dá caldo

Me soma

Multiplica
Subtrai

&

Divide.
Sandices
Por que me apaixonei por George Sand

Quando tinha tanta fotonovela?

Por que comprei uma Lee

Se havia tanto organdi?

Por que livros?

Por quê?
Divã

Se você me pedisse o céu

Eu comprava cetim azul

E nele bordava estrelas.

Se você me pedisse o mar

Eu colocava sal na banheira

E um peixe quase vivo.

Se você me pedisse a terra

Eu lhe dava um vaso de flor

E também um regador.

Se você me pedisse a lua

Eu lhe dava um queijo

E uma taça de vinho.

Mas se você aumentasse a lista

Eu lhe indicava um bom analista!


Vita não perdia o seu tempo sonhando com amores, dinheiro, terrenos e mansões. Ela tinha
coisas mais interessantes para sonhar. Certa vez levou dois anos procurando botões
redondos, transparentes, e que tivessem dentro uma flor. Os botões caíram como uma luva
no vestido que o amado desabotoou...
Blue Moon

Os olhos da lua miam

No telhado da escuridão.

Os olhos da lua enganam

E inventam metafísicas.

Os olhos da lua sangram

E avermelham o firmamento.

Enlouquecem as pedras

E arrepiam o pensamento.

São furacões de saias

Beijos brancos no varal

Cópula transcendental.

Os olhos da lua confundem

E criam as anarquias

Vestem as coxas com teias

Disfarçadas em meias.

Os olhos da lua uivam

São lentes bifocais

Que clareiam a noite

E escurecem o dia.
São sacralidades obscenas

Equação sem fórmula

Química sem elementos

Língua sem fonemas.

São olhos-mágicos

Espiando as meninas.
Only Words

O fio estendido do telefone

No buraco vazio da meia.

Um salto de escarpin

Na mudez do saxofone.

O fio teso

Esconde um trilho

Uma cicatriz na curva

Um rubor no precipício.

E o fio

E o sinal

E a linha

E o canal?

Only words pra passar o tempo

Pra fingir que se disse e se falou.

Sementes transgênicas

Plantações sem colheita

Arrepios sem pelos

Memórias inférteis

Partos que não pariram.

Solidão telefônica
Afônica

Como a cantora careca.


Quando saiu de Portugal, Virgínia escondeu na mala os ventos da Serra da Estrela. “São só
lembranças, miúda”, respondia sem demonstrar entusiasmo. A verdadeira resposta era dada
quando cruzava as pernas e uma brisa de estrelas, a sua saia subia.
Quem sabe?
Desfazer nós

Ir até o miolo da tripa

Lembrar de qualquer coisa

Mesmo que não valha a pena.

Fingir emoções banais

Dar pêsames

E parabéns.

Esquecer rostos

Apagar com borracha.

O que você acha?

Não fazer perguntas a ninguém

E muito menos esperar respostas.

Negar teorias

Inventar filosofias.

Combinar azul com magenta

Afinal

Todo mundo inventa!


Bulimia quântica

Ontem, depois do jantar

Vomitei o mundo.

Enfiei o dedo na garganta

E deixei verter

Os sinais vermelhos

As leis

Os nãos

Os deves

E os sins

Depois...

Voltei à mesa

Comi com as mãos

E lambi os dedos.

Mastiguei ruídos

E limpei a boca na toalha.


Das regras, Vita só acatava as menstruais.
GULA

Vita odiava dietas. Para ela o mundo haveria de ser eternamente banhado em muita
manteiga e molhos caramelados. Comia as horas, minutos e segundos, e lambia os dedos e
raspava a panela. Para Vita nenhuma porção era o bastante: nela não havia vez para as
medidas. A sua fome ultrapassava a física. Era apetite quântico.
Anorexia

Eu queria te comer inteiro

Despejar adoçante na tua barba

E lamber todo o açúcar.

E se o psicanalista insistisse

Naquelas explicações tísicas

De uma antropofágica fome de pai

Não o escutaria e o comeria!

Eu queria te mastigar sem pressa

Como uma criança ranhenta

Que se delicia com os líquidos do resfriado.


Virgínia não usava sutiã. Usava porta-seios. Enquanto os sutiãs guardavam os seios das
outras mulheres, Virgínia tinha uma porta que para eles abria.
Eclipse

Você surgiu como um fenômeno climático

Um tornado no inverno

Um maremoto sem mar...

Você surgiu como um traço de grafite

Num muro sujo da cidade.

Chegou como uma jazz band

Num funeral em New Orleans...

Você surgiu como um eclipse apocalíptico

Uma trombeta sem anjos

Um macarrão sem molho

Uma lua sem São Jorge...

Você surgiu na linha da esferográfica

Que, mesmo falhando, eu teimo em usar.


Um dia, enquanto raspava as panelas, Vitalina me revelou em segredo: “Bruxas são
mulheres gulosas!”
Na cozinha de Vitalina os temperos se misturavam a estranhos ingredientes. Dentro de
pequenos frascos se escondiam orégano, sangue de virgem, canela, alho, cabelos, salsinha,
unhas, raiz-forte, umbigo seco, sangue da lua, pimenta, sal, e esperma... Nas prateleiras,
minúsculas garrafas abrigavam poderosas poções. Na cozinha de Vita o alimento
transcendia a lógica nutricional e assumia o frigir dos desejos e o refogado da volúpia.Vita
não cozinhava: temperava os dias.
Lagartixa lunar

Uma lagartixa acabou de cruzar a sala

Empinada como os seios das virgens

Curiosa que nem o olhar das mulheres.

Passou como um cometa de carne

Uma questão matemática

Uma fórmula química.

Não disse a que veio.

Desconfiou dos móveis

E se aliou aos cestos.

Me olhou de relance

Piscou os olhos de água

Entendi o recado:

Lagartixas são fêmeas

Que sobem pelas paredes

Querendo alcançar a lua.


Quando o homem chegou à lua Vitalina não acreditou. Desligou o rádio e se recolheu mais
cedo.
MADONAS

Virgínia acreditava que o céu e a terra só eram das santas. No seu paraíso os santos nem
chegaram a ser expulsos, porque lá não entraram.
Esquizofrenices

O bom selvagem era esquizofrênico?

Ou todo louco é um bom selvagem?

Não seria tudo só um jogo

Ou um gozo da linguagem?

Será que a língua é selvagem

E a forma

Um desvio da imagem?

Será que tudo não seria um erro

De um Deus bêbado e de ressaca?

E a cultura, simples aspirina

De uma enxaqueca divina?


O Chapéu das lobas

As lobas cismam que os chapéus são barcos

Que bóiam nas águas do eterno.

Guardam pedras nos bolsos do casaco

E se afogam no gozo divino do inferno.

Todos os dias elas planejam suicídios

Lixam as unhas

Compram vestidos

E chapéus.

No toucador erigem altares arredios

E com unhas polidas arranham o céu.

São lobas de muitos mantos

Gotas doces de Channel

Não são amadas pelos santos

E muito menos vão para o céu.


Um dia Virgínia me deu um terço de cristal e um livrinho de orações com capa de
madrepérola. Disse-me que o infinito e a terra estavam ali guardados. Não me ensinou o
catecismo nem contou a saga dos santos. Omitiu martírios e não falou dos anjos. Falou de
mulheres que apareciam nas grutas, nas nuvens e sobre as árvores. Mostrou-me madonas a
amamentar rebentos. Foi nesse dia que descobri que Deus é uma mulher grávida.
Quando eu morrer

Quando eu morrer

Não quero a eternidade

Nem um céu com anjos.

O eterno me irrita e provoca alergia

Os anjos são tão bobos

Que me dão agonia.

Quando eu morrer

Não quero conversa com Deus

E dos Seus conselhos

Quero distância.

Se ele me cobrar pecados

Mostro os bolsos furados

E os créditos cancelados.

Aliás, nem faço isso

Não Lhe devo explicação!

Simplesmente penduro a conta

E não pago quando puder.


Depois

Escolho um lugar bem isolado

Sem nenhuma boa alma por perto

E muito menos um santo!

Pego coisas no almoxarifado:

Lápis

Borracha

Vodka

Vinho

Papel

&

Máquina de escrever.

Pego também uma vitrola

E muitos discos.

Se a casa estiver suja

Não tiro o pó

Não varro

Não limpo o banheiro

E o jardim de inverno.

Deixo tudo como Virgínia deixou

Antes de se mudar pro inferno.


Non Sense
Se me internarem num hospício

Juro que não fujo

Nem apelo sanidade.

Se me derem um documento

Assino e reconheço firma.

Se me trancarem incomunicável

Juro que não reclamo

(Tenho fantasmas demais por companhia)

Mas não me deixem

Sem as palavras

Substantivos

E verbos.

Que não me roubem

Os lápis e as canetas

Nem surrupiem as borrachas.

Se me internarem

Que o façam, afinal!

Esqueçam as burocracias

E os detalhes do enxoval.
Um belo dia Virgínia trouxe Fátima para morar na casa. Alojou-a no jardim, numa gruta
cercada por roseiras, bem perto do varal.

Quando lhe perguntaram a razão de ter o seu santuário tão próximo ao tanque,
simplesmente respondeu: "As mulheres gostam de trocar confidências enquanto lavam a
roupa."
Segredos femininos
As mulheres não gostam de coisas óbvias

Como um anel numa caixa de presente.

Preferem a sutileza mítica

De uma mecha de cabelo enrolando um pente.

As mulheres não gostam de pouca imaginação

Odeiam as celas e as prisões.

Preferem aprisionamentos mais livres

Como o desespero das grandes paixões.

As mulheres não gostam de coisas certas

Como almoço ao meio dia e jantar às oito.

Amam as possibilidades das portas abertas

E as indefinições geométricas do coito.

As mulheres rejeitam as vestes da santidade

Mas adoram procissão e romaria.

Da virgem conhecem a real identidade:

Maria é somente um mar que ia...


A noiva desnuda
As moças quando se casam

Trocam os sonhos por panelas

Fingem que são felizes

E espiam o mundo pelas janelas.

As moças quando se casam

Engordam e se tornam amargas

Escondem todos os espelhos

E só vestem saias largas.

As moças quando se casam

Envelhecem antes do tempo

Choram com novelas tolas

E se irritam com o vento.

As moças quando se casam

Entregam o corpo a Deus

Mas, a alma

Elas guardam para o Diabo!


LUSITÂNIA

Virgínia nasceu em Mangualde, numa pequena vila cravada no coração das montanhas. De
tanto viver cercada por pedras acabou se tornando uma rocha. Redonda, polida, lapidada,
bruta, preciosa, barata, afiada, mas sempre rocha.
A lua das ursas
Que lua é essa que rosna

E rasga a pele com garras de ursa?

Que frio lunar é esse que me enlouquece

E me afoga nos líquidos de uma colmeia?

Que fome é essa que me emburaca

E reflete ancestrais nas pedras?

É somente uma lua

Nada mais que uma lua.

Uma pausa sideral

Sem nome

Um intervalo negro

Sem forma

Um nó de Ísis

Sem pescoço

Uma árvore

Sem floresta.

É somente uma lua bêbada

Na fronteira de Hécate.

Um mistério de Elêusis revelado

Um décimo terceiro trabalho


Sem Hércules.

É somente uma lua fadista

Na cova das musas

Uma reticência portuguesa

Na caverna da medusa.

É somente uma lua

Que quer ser lua

E nada mais que uma lua.


Portugal estava muito além de Copacabana. Mas Virgínia parecia não acreditar nisso.
Entrava no mar e nadava como se a qualquer momento fosse aportar em Lisboa.
Gala
Uma tela de Dalí

Um pouco mais ali do que isso

Muito além de Gala.

Uma curva freudiana

Um desvio do ça

Bibelôs de Lacan

No afã de gala.

Metáforas da fala

Néant no boulevard do ser

Seta para o dali

Na curva do ali

Além da Espanha e Paris

Uma estrada de giz.

O pincel de Picasso

Coça o céu da boca de Lorca

Muito além das cinco badaladas

Do sino da garganta

Cinco horas

Só na praça!
Um lampião rodopia

E acorda a noite de Gala

Enquanto Freud inala

E Lacan fala.
Memória lusitana

Quando eu for a Portugal

Fingirei que regresso.

Me vestirei de preto

E chorarei por mortos

Que não conheci.

Me cobrirei com véu

E rezarei com as mulheres.


Virgínia era trágica como os precipícios. Escondia Shakespeare no olhar. E embora devota,
era irmã das pragas. Amaldiçoava os injustos, os cruéis e os malvados com a justiça e a
bondade das madonas.
Jogo da velha
Uma cruz no almoço

E ao meio-dia

Um círculo

Na limpeza do porão

Uma cruz na louça

E panelas na pia

Um círculo

Cozinhando no fogão

Uma cruz no vidro

E na janela

Um círculo

No mingau da panela

Uma cruz

No meio da agonia

Um círculo

Na cruz do dia.
Nós
Nós são tão fáceis de fazer

Como é difícil fazermos nós!

Nós

São meras laçadas na linha

Nós

Somos um ponto que definha

Nós

São apertos bem dados

Nós

Somos um jogo sem dados

Nós

São possíveis laços

Nós

Somos desenhos sem traços

Nós

São alinhavos de teias

Nós

Somos sapatos sem meias


Nós

São amarras laçadas

Nós

Somos rumos sem estradas

Nós

São indagações quânticas

Nós

Somos soluções semânticas

Nós

São nuvens em movimento

Nós

Somos notas sem andamento

Nós

São curvas de uma seta

Nós

Somos vida em linha reta.

Nós são tão fáceis de fazer

Como é difícil fazermos nós!


Freecortes

Eu cortaria o céu

Se tivesse uma navalha

Só pra ver se sangrariam estrelas.

Eu cortaria os pulsos

Se tivesse um bisturi

Por pura exibição e chantagem.

Eu me tornaria um ladrão

Se tivesse coragem.

Arrombaria o seu amor

E limparia o cofre.
Me arrependo de não ter aprendido a dançar o Vira. Virgínia bem que tentou me ensinar um
dia quando estávamos na cozinha. Soltou os cabelos, emoldurou-os com o jardim do lenço
e com quatro forminhas de empada improvisou um par de castanholas. Assustei-me com as
voltas da sua saia que virava e virava, virava e vira. Levei muito tempo para entender as
palavras de Virgínia ao final da dança: "Vem dançar, ó menina, que o vira nunca termina!"
Cosmética

Onde se escondeu o acaso

Dos dados de Mallarmé?

Onde se enroscou o bigode de Dali?

Por onde andará Brenda Lee?

Cadê minha bicicleta?

Cadê a combinação de cetim?

Por que se afastaram de mim?

Quem foi o Diabo que apagou a festa?

Quem foi o Cristo que acendeu as rugas?

Quem passou filtro solar no sol?

E cadê o sol?

Cadê o sol?
Voodoo
Preciso subir ao sótão

Desenferrujar as agulhas.

Preciso do trapo de uma saia

E algumas bagas de faia.

Preciso parar o tempo

Secar o mar

Colher tremoços em Portugal

E lhe cozinhar no azeite fervente

Temperado com açúcar e sal.


Virgínia não nascera para amar os homens. No dia em que nasceu, a Virgem planejara
torná-la um dólmen. Uma dor de barriga do menino Jesus atrapalhou os seus planos.
Virgínia veio então ao mundo como uma menina. Cresceu com estranhas manias: erguia
dólmens por tudo quanto é canto. Tinha um no jardim, um no quintal dos fundos da casa, e
até um bem pequeno no altar do quarto. Na igreja, jamais reverenciou os santos. Preferia as
madonas, redondas, sólidas, aéreas como os seus dólmens.
Foolices

O dia amanhece como um poeta em busca de rimas

Como um escafandrista à cata de pistas no fundo do mar.

Amanhece um pouco além da cortina

Entre a curva da embriaguez

E o comprimido de aspirina.
As manhãs de Vitalina eram sempre azuis. Com ela aprendi os encantamentos do sol, os
filtros das flores, as maldições e as bênçãos das ervas. Vitalina acordava como uma flor:
esticava a alma para o céu e dava bom-dia à vida.
Pas des deux
Elas dançam com borboletas nos pés

Equilibradas nas pontas do vazio

Mergulham no além das verticais

Como se o mundo fosse um precipício

Onde sapatilhas buscam asas no vácuo.

Elas costuram mentiras

E riscam romances na gruta da morte.

São doidas...

São vagas...

Musselines vestidas de carne

Laços diáfanos

Que costuram os olhos

E suspendem os suspiros em tule.

São fenomenologias anárquicas

Mulheres sem véus

Moças selvagens que brincam de princesas

E escondem punhais.

São garotas de rua

Fingindo que o tempo

Se esconde atrás da lua.


Se havia uma coisa que Vitalina gostava, era de um bom bailado! Adorava tanto
aMadness

Um deus paranóico no divã do analista

Coroa de turquesas

Serpentes engolidas por águias

Sol alado

Emplumado

Montezuma preso numa camisa de força

Fogueiras sobre as cinzas

Onde foi que tudo começou?

Quando foi que a pedra foi perdida?

Que doença se estirou feito um lençol?

Um deus drag queen espia

por detrás das plumas coloridas

Assopra perfumes em feridas

Um deus viado

pervetido e malvado.

Heresia europeia

Tumor cristão

Um deus louco como um ameríndio

Mulato e profano como um índio

Preso num consultório

Expia pecados no purgatório.


I Wish
Eu queria ter um zíper na imaginação

Para só abri-lo em situações de emergência.

Queria ter um bolso sobressalente

Escondido entre o ventre e o coração.

Nele, eu guardaria coisas inúteis

Como paixões

Angústias e risos.

De vez em quando acrescentaria coisas

Ainda mais inúteis

E que ninguém presta atenção:

Nuvens

Chuvas e vendavais.

Eu queria ter um saquinho mágico

Para guardar varinhas e estrelas

Só para dizer que as tinha

Pois nenhuma delas eu usaria!

Eu queria ter um chapéu de toureiro

E... se possível, também um touro

Que trancaria no armário.


Eu queria falar muito

E dizer palavras muito feias

Que causassem uma boa impressão.

Queria ter um aparelhinho para surdez

Para poder escutar melhor as conchas

E espalhar boatos sobre o mar...

Queria ter a lua

O sol e os planetas

E de quebra alguns demônios

E anjos tocando trombetas.

Queria ser avarenta e emprestar dinheiro

Só para cobrar beijos como juros.

Aliás, eu queria mesmo era ser Deus.

Só para desfazer o que foi feito

E inventar coisas novas!


O poder de Vita concentrava-se no desejo. O mundo para ela era um enorme sorvete que só
lhe implorava uma lambida. E Vita lambia a vida com a gula de uma criança! Vita não
tinha o mínimo pudor de exibir um coração lambuzado, babado de sonhos, e os desejos
mais loucos. Para ela a magia era isso: desejar, desejar, desejar, e desejar sempre. Os seus
feitiços eram dedos furtivos sobre o glacê colorido do bolo da vida. E se alguém por acaso
lhe perguntasse de onde vinha tamanho poder, ela certamente responderia: "Vem do fundo
da goela da gula!”
Moças
As moças que eu conheço

Se enroscam como gatas

Enquanto lambem as patas.

Encurvam as retas

Desconhecem setas

E sempre avançam o sinal.

As moças que eu conheço

Arranham os cumes

Exalam perfumes

E espiam pelas frestas.

São bailarinas profanas

Meretrizes sagradas

Tão descaradas

Tão descaradas...

Assoviam para os homens

E se beijam entre si.

Não ligam para os avisos

E desconhecem as bulas.
Com gula engolem o mundo

Enquanto levantam as saias

E violam nuvens.

São moças fálicas

Selvagens falácias

Impuras como as águas

Perfeitas como os erros.

Aterros femininos

Tão leves!

Engomam o céu das bocas

E vomitam tempestades.

Afrodites nuas

Caçadoras de luas

Aves fugidias, sombrias.

As moças que eu conheço

Pedem carona na estrada

E se lançam dos penhascos.

São teimosas e geniais.

Nada mais.

As moças que eu conheço

São fumaças voláteis

Que inebriam e viciam.


Sinuosas fantasias estendidas

Na alvura solácea dos varais.


Nas manhãs ensolaradas dos sábados, Amália chegava à porta e gritava “ó vizinha!”. O céu
acinzentava as nuvens e o vento trazia um gosto amargo de maresia. A Lusitânia aportava
no mar seco do Estácio, enquanto Virgínia ouvia fados e mergulhava lençóis no anil.
Strégguas

Elas conhecem de perto o desvio

São éguas em tropel alucinado

Esticando a vida num fio.

Elas estavam lá quando tudo se criou

Lamberam a língua dos deuses

E o relógio do tempo parou.

Elas decifram todos os enigmas

São líquidos do cio da lua

Que livram os homens dos estigmas.

Obscenas elas dançam desnudas,

Coladas nos muros das cidades

Como assombrações mudas.

Elas ferem e curam feridas

São éguas que cospem léguas

E semeiam luas recém paridas.

Elas comem e engolem o mel

São sombras

Fantasmas

Meninas que dispensam o céu.


Vita me ensinou as primeiras lições do feminino anárquico. E bem antes dos sutiãs serem
queimados nas praças, ela me trouxe o primeiro fósforo. Fizemos uma bela fogueira no
quintal e realizamos o meu primeiro ritual. Dentro do fogo jogamos as pieguices
românticas, os lacinhos, os bibelôs e o pinguim da geladeira. Queimamos todos os
príncipes encantados e casamos com os sapos. Rolamos na terra e fizemos amor com os
répteis de Lilith. Criamos asas. Pintamos com barro os nossos rostos e declaramos guerra
ao Paraíso. Nos aliamos com as medusas e rasgamos o código da boa dona de casa.

*****

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