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Ou
de Marisa Salomão
SUMÁRIO
1. Só uma palavras
2. Caminhos
3. Dólmens
4. Dona de casa
5. Eu, Vita & Virgínia
6. Fantasia
7. Gula
8. Madonas
9. Lusitânia
Só Umas Palavras
Vita e Virgínia não eram comuns: eram mulheres. Assim como todas nós,
escondiam “estranhos” poderes dentro das gavetas, nos bolsos do avental, na caixa de
costura, na caixinha de joias, na saboneteira, no pote de pó de arroz e em cada cantinho
disponível à magia. Vita e Virgínia eram bruxas como nós. Usavam e abusavam dos
feitiços e dos encantamentos, sem sentirem a menor culpa quando lançavam terríveis
maldições. Quando eram boas, eram boas, quando eram más, eram ótimas. Exatamente
como nós.
Vita e Virgínia não eram óbvias, eram mágicas como nós. Amaram, odiaram,
trabalharam, suaram, sofreram, fizeram limonada de um limão, multiplicaram pães,
sonharam com grandes paixões, fantasiaram romances, reclamaram da vida, exaltaram os
dias nublados em que só elas avistavam o sol, cantaram na chuva, viraram lobas a defender
a cria... exatamente como todas nós.
Outro dia elas me visitaram enquanto eu coava o café. Chegaram agitadas, envoltas
no tule diáfano dos fantasmas. Pediram-me para escrever um livro que pudessem decorar.
Perguntei a razão, e Vita, a mais tagarela, respondeu-me com uma interrogação: “Você se
esqueceu que as mulheres carregam livros na memória?”.
E foi assim que este livro nasceu sob a forma de história contada em versos.
Exatamente como aqueles que ilustram as lembranças dos nossos segredos mais íntimos...
As Avós
Vita e Virgínia,
mulheres
aves
coiotes
múltiplas
fadas
megeras
donzelas
anciãs
profanas
donas
lunáticas
aquáticas
raízes
duas
mil
infinitas
eu
tu
nós
Vita rezava para a Lua. Na sacada da varanda conversava com a mulher azul que chegava
no finzinho da tarde. Conversa prateada, trançada, estrelada. Vita lhe confiava segredos. A
Lua, desejos. De tão íntimas, eram uma da outra. Vita era Lua e Lua era Vita. Vitalua,
Luavita. Duas moças anciãs à espera de um namorado.
&
Virgínia rezava para Fátima. No avarandado do fundo da casa conversava com a moça azul
que chegava ao final da tarde. Conversa azulada, encantada, refogada. A moça ajudava o
preparo da janta enquanto Virgínia orava e catava feijões. Orações culinárias, ensopadas,
encorpadas. De tão íntimas, eram uma da outra. Virgínia era Fátima e Fátima era Virgínia.
Uma era virgem. A outra, nem tanto.
CAMINHOS
Vita detestava carros, ônibus, trens, aviões, e navios. Dizia que os pés eram amantes das
estradas, e que os caminhos, o destino das solas...
Bulgáricas
E mesmo se pudesse
A alfândega confiscava.
Suculento
Que na frigideira,
Como Zeus
Me deu a Europa.
No quarto de Vita, entre uma curva e uma encruzilhada, ficava um enorme espelho. Uma
esquina sossegada, um atalho escondido debaixo de uma velha escada.
Timeless
Lixando as unhas.
Esquecer os aquecimentos.
Alongar suspiros.
Ignorar o apito.
Com pé de pato.
Nadei de costas
No olhar de égua.
Uma linha
Um fiapo
Uma strega.
Cofres de organdi
Um salto
Um giro
Um trampolim.
Anágua de meretriz
Um corte
Um rasgo
Uma cicatriz.
Fome metafísica
No prato do desejo.
Última ceia
Reticência
Um beijo.
Um dia as duas chegaram com folhas de papel celofane, linha e cerol. Perguntei se faríamos
uma pipa. Tiraram a roupa, abriram os braços e responderam: “Vem voar com a gente
menina. A pipa fica para os meninos!”
Amanhecer esquálido
Virgínia não ficou velha. O tempo lapidou as suas arestas. Com o passar dos anos foi
adquirindo maior transparência e luminosidade. Por vezes, dava a impressão de ter
realmente se tornado um dólmen. Em alguns momentos, ela retomava a forma e corria ao
espelho. Mas era tarde: os ventos, as areias, as chuvas, o sol e a lua já tinham inscrito a sua
passagem...
Silicone metafísico
E vieram os becos.
Soul on ice
Virgínia areava as panelas como se fosse colocá-las na caixa de joias. Polia inumeráveis
vezes entre jorros de água e oceanos íntimos.
Mistérico
E desintegram a cozinha
Como brilham...
Como brilham...
Descascam as batatas
Cortam maçãs
Vitalina não era uma "boa dona de casa". Era anarquista demais para se prestar a hábitos e
horários! E se você a visitasse, certamente sairia da casa dela fugindo! Mas se você não
ligasse para papagaios empoleirados em cadeiras, esbravejando palavrões para um pequinês
deitado no centro da mesa ela sorveria muitas xícaras de café,
Das noivas, Vita só apreciava os vestidos. Nos casamentos, ficava do lado de fora da igreja.
Não cumprimentava os noivos e sempre recusava o bolo... Nos chás de panela,
Dos alhos
Ervilhas
E pimentões.
E reticências a gosto.
Levei muito tempo para descobrir a razão do desemparelhamento dos brincos de Vitalina:
ela amava a liberdade!
Panos
De mulheres mortas.
Espantalhos cênicos
Mechas de néon
Barras redondas
Franjas geométricas
Esqualidez sexual.
Um tapete felpudo
Cadáver desnudo
Batons franjados
Bordas cosméticas
Mulheres janelas
Dobrando fronhas
Alisando lençóis.
Adição tristonha
Subtração insana.
Varal noturno
Entre o pregador
O fio e o pano
Arreganhar de pernas
Lavadeiras modernas
Eternas.
Desvios oclusos
Sinais vesgos.
A menor mancha
E as bordas.
Depois
E só falaria bobagens.
Esqueceria Proust
Cultuaria zeros
E aboliria os cálculos.
E das dores
A linha do horizonte
Menires de porcelana
Na embriaguez da pia.
E gotas de detergente.
Mais um cadáver
Esqueceu do bilhete!
Mortos...
Antes de ir embora, as duas me entregaram os seus mistérios. Vita, a eterna anarquista, deu-
me de presente uma folha em branco; Virgínia, a irmã das Virgens, uma caixa cheia de
medalhas. Depois se foram sem as pieguices das despedidas. Deixaram-me tripartida; uma
figura a um passo de uma exótica esquizofrenia.
Vita e Virgínia
Na orla do andar, disfarçavam-se em avós
Se a polícia viesse
Figurinha de álbum
Decalque de criança
Beber a vida até o último gole
E a devolve profana?
Nessa eu acredito
As suas canetas
O seu chapéu
O seu casaco
E o seu diário.
E penduricalhos.
Era uma vez duas mulheres que tinham a alma de todas as mulheres. Chamavam-se
Virgínia e Vitalina, Maria e Cristina, Josefina e Beatriz, Rita e Cláudia, Rosemary e
Berenice, Márcia e Olívia, Alexandra e Andréia, Marina e Felícia, Juliana e Joana, Luiza e
Daniela, Nádia e Leila, Leda e Lídia, Izabel e Raquel, Denise e Glória, Ana e Joana, Cecília
e Clarice, Diana e Dorotéia, Sônia e Sandra, Lia e Sofia, Carolina e Júlia, Flávia e Amália,
Dolores e Natália, Neide e Joaquina, Neusa e Eleusa, Patrícia e Paula, Andréia e Fernanda,
Sebastiana e Antônia, Clara e Mara, Zélia e Amélia, Ângela e Bruna...
FANTASIA
Quando Vita desejava qualquer coisa que fosse, corria ao quintal e rabiscava a terra.
Passava horas riscando caminhos, círculos e ziguezagues. Para ela, a vida era um eterno
traçado agrário.
Quase sempre
Quase sempre eu me esqueço
Sandices de moças
Ilusões de fêmeas.
Confidências femininas
Sem terra.
Memórias de louca
Alinhavos de meretriz
Sem linha.
Quase sempre eu quase chego
E me atraso
E perfume de jasmim.
E também de calmarias.
E vamos ao Village
Um mero malabarismo
Onde me equilibro
Sem trajetória.
Numa cirurgia
Sem falha.
Você me afoga
Me dá caldo
Me soma
Multiplica
Subtrai
&
Divide.
Sandices
Por que me apaixonei por George Sand
Por quê?
Divã
E também um regador.
No telhado da escuridão.
E inventam metafísicas.
E avermelham o firmamento.
Enlouquecem as pedras
E arrepiam o pensamento.
Cópula transcendental.
E criam as anarquias
Disfarçadas em meias.
E escurecem o dia.
São sacralidades obscenas
São olhos-mágicos
Espiando as meninas.
Only Words
Um salto de escarpin
Na mudez do saxofone.
O fio teso
Esconde um trilho
Um rubor no precipício.
E o fio
E o sinal
E a linha
E o canal?
Sementes transgênicas
Memórias inférteis
Solidão telefônica
Afônica
Dar pêsames
E parabéns.
Esquecer rostos
Negar teorias
Inventar filosofias.
Afinal
Vomitei o mundo.
E deixei verter
Os sinais vermelhos
As leis
Os nãos
Os deves
E os sins
Depois...
Voltei à mesa
E lambi os dedos.
Mastiguei ruídos
Vita odiava dietas. Para ela o mundo haveria de ser eternamente banhado em muita
manteiga e molhos caramelados. Comia as horas, minutos e segundos, e lambia os dedos e
raspava a panela. Para Vita nenhuma porção era o bastante: nela não havia vez para as
medidas. A sua fome ultrapassava a física. Era apetite quântico.
Anorexia
E se o psicanalista insistisse
Um tornado no inverno
Me olhou de relance
Entendi o recado:
Virgínia acreditava que o céu e a terra só eram das santas. No seu paraíso os santos nem
chegaram a ser expulsos, porque lá não entraram.
Esquizofrenices
Ou um gozo da linguagem?
E a forma
Um desvio da imagem?
Lixam as unhas
Compram vestidos
E chapéus.
Quando eu morrer
Quando eu morrer
Quero distância.
E os créditos cancelados.
Lápis
Borracha
Vodka
Vinho
Papel
&
Máquina de escrever.
E muitos discos.
Não tiro o pó
Não varro
E o jardim de inverno.
Se me derem um documento
Se me trancarem incomunicável
Sem as palavras
Substantivos
E verbos.
Os lápis e as canetas
Se me internarem
Esqueçam as burocracias
E os detalhes do enxoval.
Um belo dia Virgínia trouxe Fátima para morar na casa. Alojou-a no jardim, numa gruta
cercada por roseiras, bem perto do varal.
Quando lhe perguntaram a razão de ter o seu santuário tão próximo ao tanque,
simplesmente respondeu: "As mulheres gostam de trocar confidências enquanto lavam a
roupa."
Segredos femininos
As mulheres não gostam de coisas óbvias
Mas, a alma
Virgínia nasceu em Mangualde, numa pequena vila cravada no coração das montanhas. De
tanto viver cercada por pedras acabou se tornando uma rocha. Redonda, polida, lapidada,
bruta, preciosa, barata, afiada, mas sempre rocha.
A lua das ursas
Que lua é essa que rosna
Sem nome
Um intervalo negro
Sem forma
Um nó de Ísis
Sem pescoço
Uma árvore
Sem floresta.
Na fronteira de Hécate.
Na caverna da medusa.
Um desvio do ça
Bibelôs de Lacan
No afã de gala.
Metáforas da fala
Na curva do ali
O pincel de Picasso
Do sino da garganta
Cinco horas
Só na praça!
Um lampião rodopia
E Lacan fala.
Memória lusitana
Me vestirei de preto
E ao meio-dia
Um círculo
Na limpeza do porão
E panelas na pia
Um círculo
Cozinhando no fogão
E na janela
Um círculo
No mingau da panela
Uma cruz
No meio da agonia
Um círculo
Na cruz do dia.
Nós
Nós são tão fáceis de fazer
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Nós
Eu cortaria o céu
Eu cortaria os pulsos
Se tivesse um bisturi
Eu me tornaria um ladrão
Se tivesse coragem.
E limparia o cofre.
Me arrependo de não ter aprendido a dançar o Vira. Virgínia bem que tentou me ensinar um
dia quando estávamos na cozinha. Soltou os cabelos, emoldurou-os com o jardim do lenço
e com quatro forminhas de empada improvisou um par de castanholas. Assustei-me com as
voltas da sua saia que virava e virava, virava e vira. Levei muito tempo para entender as
palavras de Virgínia ao final da dança: "Vem dançar, ó menina, que o vira nunca termina!"
Cosmética
E cadê o sol?
Cadê o sol?
Voodoo
Preciso subir ao sótão
Desenferrujar as agulhas.
Secar o mar
E o comprimido de aspirina.
As manhãs de Vitalina eram sempre azuis. Com ela aprendi os encantamentos do sol, os
filtros das flores, as maldições e as bênçãos das ervas. Vitalina acordava como uma flor:
esticava a alma para o céu e dava bom-dia à vida.
Pas des deux
Elas dançam com borboletas nos pés
São doidas...
São vagas...
Laços diáfanos
E escondem punhais.
Coroa de turquesas
Sol alado
Emplumado
Um deus viado
pervetido e malvado.
Heresia europeia
Tumor cristão
Como paixões
Angústias e risos.
Nuvens
Chuvas e vendavais.
O sol e os planetas
Encurvam as retas
Desconhecem setas
Arranham os cumes
Exalam perfumes
Meretrizes sagradas
Tão descaradas
Tão descaradas...
E desconhecem as bulas.
Com gula engolem o mundo
E violam nuvens.
Selvagens falácias
Aterros femininos
Tão leves!
E vomitam tempestades.
Afrodites nuas
Caçadoras de luas
Nada mais.
São sombras
Fantasmas
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