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O que o ensino de História da África tem a ver com direitos humanos?

Aline Cristina Oliveira do Carmo


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Talvez você não saiba, mas o ensino sobre a região e a história dos diversos
povos que compõem o continente africano nem sempre foi uma realidade dentro das
escolas brasileiras. Aliás, é necessário registrar: raramente fez parte de nossos currículos
escolares. Engraçado pensar nisso, quando sabemos que a formação do povo brasileiro
se constituiu fundamentalmente, como já assinalava Darcy Ribeiro, pelas matrizes
indígena, africana e européia. Na verdade, a invisibilidade da história indígena e da
cultura afro-brasileira na educação era tão gritante que foram necessárias duas leis para
que o ambiente acadêmico - tanto escolar quanto universitário - incluísse em seu
cotidiano a problematização da discriminação racial, de povos étnicos e de minorias
nacionais.
Para o canadense Charles Taylor (1931 - ), filósofo que defende as assim
chamadas políticas do multiculturalismo - ou políticas da diferença - a importância
dessas leis surge da necessidade que todos possuímos de sermos reconhecidos como
pessoas dignas. Aqui, a idéia de dignidade deve ser buscada no pensamento do alemão
Immanuel Kant (1724–1804), filósofo que traçou as bases do que hoje é denominado
direitos humanos. Isso porque sua filosofia era declaradamente universalista, o que
significa a defesa radical - ao menos no plano teórico - do direito à igualdade de todos
os cidadãos. Quem era considerado cidadão no período pré e pós Revolução Francesa,
que empenhava as bandeiras da "liberdade, igualdade e fraternidade", é algo em que
ficamos a pensar.
Assim, o crescimento atual de tantas lutas que demandam do Estado o
reconhecimento de suas identidades enquanto grupos minoritários (tais como os povos
indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos) surge a partir da denúncia de
um universalismo "cego às diferenças", pois, sob a máxima do princípio da igualdade,
acabava por promover algum tipo de padronização das sociedades, como uma
homogeneização de massa.

1
Um exemplo? Até a promulgação da Constituição da República de 1988 (ou
seja, apenas há um pouco mais de 20 anos atrás), as políticas indigenistas oficiais do
país obrigavam essas populações a abandonarem seus nomes tradicionais para se
registrarem com nomes cristãos1. Ao longo desse tempo, desde a época colonial, embora
legalmente já fossem reconhecidos os direitos originários dos povos indígenas às suas
terras, foram nutridos e disseminados diversos preconceitos com relação a essas
culturas. O professor da Faculdade de Educação da UERJ José Ribamar Bessa Freire
explicitou esses equívocos ao identificar algumas afirmações implícitas, facilmente
encontradas no senso comum da sociedade brasileira. Assim, ele destacou cinco idéias
relacionadas à imagem que temos dos índios, que não são corretas, mas que continuam
na cabeça da maioria dos brasileiros: a idéia do índio genérico (que desconsidera o fato
de existirem uma diversidade de populações indígenas, formadas por grupos de variados
troncos linguísticos, "como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros"), a
idéia de que se tratam de culturas atrasadas e congeladas (presentes na dicotomia índio
x civilizado), que os índios fazem parte do passado e que o brasileiro não é índio2.
Dessa maneira, ele cita os profundos conhecimentos sobre astronomia, medicina e
demais ciências indígenas, além da rica literatura indígena, como ricos patrimônios da
humanidade, ainda ignorados pela população brasileira.
Paralelamente ao pensamento que visa negar a indianidade dos brasileiros e a
importância dos conhecimentos produzidos por esses povos, podemos encontrar um
conjunto de práticas sociais apoiadas legalmente que, mesmo no período após a
abolição, fizeram perdurar idéias coloniais relativas aos ex-escravos e seus
descendentes. O advogado e escritor Nei Lopes lembra não apenas o fato de que a lei
abolicionista continha somente um artigo e nenhum projeto em benefício dos negros
(tornados então em milhares de desempregados e sem moradia 3), mas também o Código
Penal de 1890, que instituía os crimes de "vadiagem" e "capoeiragem", com o objetivo
1
No parecer em que defende a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em
Roraima, o jurista José Afonso da Silva realiza um histórico da proteção constitucional aos
índios, indicando que, exceto na atual Carta Magna de 1988, praticamente todas as
constituições brasileiras apregoavam "a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional", sob
a forma da catequese e da civilização. Cf. SILVA, José Afonso da. Parecer jurídico em resposta
à consulta do Conselho Indígena de Roraima (CIR) em 30 de julho de 2008.
2
Cf. FREIRE, José Ribamar Bessa. Herança Cultural Indígena: Quem são os herdeiros? (ou O
que foi mesmo que nós herdamos dos índios?). Palestra proferida no dia 22 de abril de 2002 no
curso de extensão de gestores da cultura dos municípios do Rio de Janeiro, organizado pelo
Departamento Cultural. Parte dela havia sido tema de uma conferência, gravada e transcrita
pelo Centro de Estudos do Comportamento Humano (CENESCH) de Manaus (Am). Texto
publicado pelas revistas da UERJ e CENESCH.

2
claro do poder público em manter um controle coercitivo sobre os recém emancipados.
Diga-se de passagem, essa visão do negro como, a princípio, um indivíduo perigoso,
ainda se faz bastante presente, ao menos em termos policiais4.

Então o que o ensino de História da África ( e Indígena) tem a ver com direitos
humanos?

Como vimos, esses direitos tratam de políticas universalistas, que visam à


proteção de todos sem qualquer distinção, com base no princípio da igualdade, o qual
busca assegurar, antes de mais nada, a dignidade da pessoa humana.
Para seguirmos em nossa investigação, é necessário dizer que o pensamento
teórico que estamos discutindo é denominado liberalismo político, frisando-se aqui que
não se trata unicamente do liberalismo econômico, o qual defende o "estado mínimo"
em prol da livre iniciativa dos empresários. O liberalismo político que ora temos em
mente se refere a uma política baseada na teoria moral kantiana, de modo a priorizar
certos direitos individuais, inerentes a todas as pessoas, enquanto seres capazes de agir
com autonomia, isto é, segundo a sua própria lei.
Charles Taylor é o autor que se destaca nesse debate ao conseguir indicar de
modo claro o que está por trás dos discursos multiculturalistas, presentes na afirmação
de que o Estado liberal possui um papel fundamental no reconhecimento e garantia dos
modos de vida de grupos étnicos e nacionais minoritários:

A exigência de reconhecimento assume nesses casos caráter de urgência


dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em que
“identidade” designa algo como uma compreensão de quem somos, de
nossas características definitórias fundamentais como seres humanos. A tese
é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por
sua ausência, freqüentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos
outros, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais
danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes
devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível.
O não-reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos,
3
O Professor Hélio Santos, mestre em Finanças e doutor em Administração pela Universidade
de São Paulo (USP) realizou uma projeção, de modo a apresentar em números atuais o que
significou o abolicionismo tal como promovido de 1888: 9 a 8 milhões de pessoas
desempregadas de uma só vez. Como resultado da ausência de políticas de inclusão, ele
indica o fato da baixa participação da população negra no mercado de trabalho como uma das
causas para as posições vergonhosas do Brasil nos indicadores da ONU ou do Banco Mundial.
Cf. Revista Afirmativa Plural n°8, p. 28.
4
LOPES, Nei: Direitos Civis, lá e cá. Artigo publicado na Tribuna do Advogado - OAB/RJ, ano
XXXVI, Fevereiro/2009, p. 19.

3
podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém numa modalidade
de ser falsa, distorcida e redutora. 5

Relembrando os estudos de Frantz Fanon que indicam como principal arma


utilizada pelos colonizadores para manter povos sob o seu domínio a da imposição de
uma imagem depreciativa desses grupos, Taylor defende a tese forte de que o devido
reconhecimento não é mera cortesia, mas uma necessidade humana vital6.

A premissa de base dessas exigências é a de que o reconhecimento forja a


identidade, em particular na aplicação fanonista: os grupos dominantes
tendem a consolidar sua hegemonia ao inculcar no subjugado uma imagem
de inferioridade. A luta pela liberdade e pela igualdade tem, portanto, de
passar por uma revisão dessas imagens. Os currículos multiculturais
pretendem ajudar nesse processo de revisão7.

Amy Gutmann, na sua introdução à obra “Multiculturalism: Examining the


Politics of Recognition“8, afirma que a exigência feita por certos grupos sociais
minoritários de inclusão de uma bibliografia no currículo básico dos cursos
universitários que dê voz a autores e tradições de pensamento historicamente
marginalizados, em detrimento do uso de autores clássicos da civilização ocidental, é
politizar demais o conteúdo do ensino superior. No entanto, devemos pensar que a
própria universidade é atualmente estruturada sob valores democráticos, como o da
liberdade de expressão, servindo de algum modo a um ideal político. Se assim não
fosse, acredito que não haveria por que negar ouvir e estudar, no plano acadêmico, o
que esses grupos têm a dizer. Mal ou bem, os próprios autores do pensamento clássico
ocidental também influenciaram direta ou indiretamente o estabelecimento de estados
constitucionais, como o próprio Kant. Nesse sentido, não se trata propriamente de
defender o grupo x ou y , mas de uma luta pela efetivação dos ideais pelos quais foi
feita a universidade. Em contrapartida, a autora afirma que os grupos em desvantagem
nesse contexto não têm outra escolha a não ser aceitar os padrões que a sociedade lhes
impõe na academia, visto que a idéia de que uma certa tradição de pensamento não

5
TAYLOR, Charles: “A Política do Reconhecimento”, in: Argumentos Filosóficos. Tradução de
Adail Ubirajara Sobral. Edições Loyola, p..241.
6
Ibid. pp. 242 e 268.
7
Ibid. p. 269.
8
TAYLOR, Charles [et al]: Multiculturalism: examinig the politics of recognition
[Multiculturalismo: examinando a política do reconhecimento]. Editado e introduzido por Amy
Gutmann. 1994, Princeton University Press.

4
reflete nada mais do que uma vontade de poder não poderia servir de argumento para
que minorias recebam determinados tipos de privilégios ou espaços desproporcionais à
sua real representatividade no meio acadêmico. Penso, por outro lado, que tais
demandas sociais visam apenas à efetiva realização de direitos constitucionalmente
assegurados, e não necessariamente a tornarem-se uma nova hegemonia. A questão aqui
é de que modo deve-se efetivar o pluralismo de idéias na universidade. Uma boa
variedade de pensamentos que possuam algum tipo de relevância para a construção da
identidade de uma determinada sociedade devem ser estudadas seriamente, a fim de que
o conhecimento permaneça aberto para o novo e o diferente; caso contrário, fica difícil
pensar em como ele poderia se desenvolver de fato.
No Brasil, a discussão também ocorre com a sanção dos dispositivos legais
acima mencionados (Leis 10.639/2003 e 11.645/2008) que alteram a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino de História da
África e Cultura Afro-Brasileira e Indígena por todas as disciplinas curriculares, da
educação infantil até o nível superior. A justificativa para a adoção dessa medida está na
própria LDB, datada de 1996, que já no seu 3°artigo estabelece como princípios da
educação o apreço à tolerância e o pluralismo de idéias, indo ao encontro, como não
poderia deixar de ser, do pilar da República Federativa do Brasil – e de todos os estados
democráticos de direito: a dignidade da pessoa humana, fundamento de raízes kantianas
de uma compreensão igualitária de todos os seres racionais. Além disso, conforme
preceitua o art. 26, §4° da Lei 9394/96, é imperativo que “o ensino de História do
Brasil leve em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação
do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia”.
O argumento contrário à adoção desses tipos de medidas, consideradas
compensatórias9, afirma que tal justificativa poderá ser utilizada, de modo inclusive
oportunista, por todo e qualquer grupo social que se sentir marginalizado e, por isso,
não reconhecido devidamente pela cultura majoritária de uma determinada sociedade
liberal. Dessa maneira, a incorporação de medidas desse tipo, que visem ao
reconhecimento de minorias, estaria trazendo um grave risco à realização e permanência
9
Políticas compensatórias são aquelas adotadas no intuito de reparar injustiças feitas no
passado, como a subjugação de um grupo humano sobre outro, na medida em que, muito
embora tais práticas tenham sido abolidas há bastante tempo, suas conseqüências parecem ter
uma “inegável inclinação perenizante”. Sobre a diferença entre justiça compensatória e justiça
distributiva, cf. GOMES, Joaquim B. Barbosa: Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da
Igualdade – O Direito como instrumento de transformação social: A experiência dos EUA. Rio
de Janeiro, Renovar: 2001.

5
do princípio basilar dos estados modernos: a igualdade entre seres racionais
(fundamento da noção de direitos humanos universais), pois uma valorização extremada
das diferenças dividiria cada vez mais os grupos humanos.
Nesse sentido, para o professor K. Anthony Appiah, originário de Gana e atual
titular de estudos afro-americanos e de filosofia da Universidade de Harvard, “os
indivíduos e suas escolhas são mais importantes do que a cultura que se quer
preservar”10. Essa visão é o que, no fundo, reflete um dos aspectos mais distintivos do
tradicional posicionamento do liberalismo político, representado, entre outros, por John
Rawls (1931 - ): a prioridade do justo sobre o bem. Esta concepção se caracteriza pela
idéia de que as instituições públicas (como as escolas, hospitais e ministérios do
governo) devem garantir somente os bens mínimos necessários ao pleno exercício dos
direitos e liberdades fundamentais, a despeito de qualquer concepção abrangente sobre a
vida, o que seria do domínio privado dos indivíduos (como decidir-se pelo catolicismo
ou budismo, ser vegetariano ou ainda assumir-se hetero, homo ou bissexual). O que
significa dizer, grosso modo, que, segundo o liberalismo político, o Estado deve se
restringir a questões de justiça, como a distribuição e efetivação dos direitos, as quais
devem prevalecer sobre questões pessoais. No entanto, Charles Taylor observou o
surgimento de um novo tipo de liberalismo, o qual não consideraria a adoção de
políticas específicas direcionadas a grupos historicamente marginalizados uma afronta
ao princípio da isonomia. Cabe frisar que, de acordo como filósofo contemporâneo Will
Kymlicka11, tais políticas possuem caráter permanente, diferentemente das reservas de
vagas para determinados grupos na universidade, por exemplo, notadamente
transitórias.
Por outro lado, é importante observar a análise feita pelo professor ganês sobre a
situação atual da literatura africana e de seus escritores, de modo a considerar as
circunstâncias da composição das literaturas póscoloniais e as dificuldades para uma
"descolonização da mente" por parte dos povos que viveram um longo período sob o
domínio de uma metrópole. O interessante nessa abordagem é o aprofundamento de que
o fato da construção de intelectuais na África se deu como um produto do encontro
colonial e através de uma educação construída fundamentalmente com base em modelos
10
APPIAH, K. A.: Entrevista concedida à Revista Veja Online, em 08/03/2006. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/080306/entrevista.html

11
Cf. KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural – Una teoría liberal de los derechos de las
minorías. Tradução de Carme Castells Auleda. Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona: 1995.

6
europeus e, portanto, que privilegiava os textos e os pensamentos da metrópole,
especialmente com a imposição do ensino de línguas européias12.
Assim, quando falamos de identidade, no caso, de identidade brasileira, é
fundamental assinalar o vínculo entre esta e a memória, na medida em que as memórias
são construídas e reconstruídas ao longo do tempo, sendo gradativamente alterada,
especialmente nos relatos públicos sobre o passado, segundo os interesses e descobertas
de cada momento histórico13.
Acredito que os termos dessa discussão, que às vezes adquire tons fortemente
emotivos, devem ser muito bem definidos. Afinal, quais são as demandas legítimas, se é
que existem, do Multiculturalismo? O reconhecimento de que fala Taylor se
fundamenta mais na noção de dignidade ou de sobrevivência cultural?
Para justificar a legitimidade de políticas da diferença, C. Taylor indica a
existência de um pressuposto nos princípios estabelecidos de igual respeito:

Como pressuposto, a afirmação é a de que todas as culturas humanas


que animaram sociedades inteiras por um período considerável de
tempo têm alguma coisa importante a dizer a todos os seres humanos
(...) esse pressuposto ajudaria a explicar por que as exigências de
multiculturalismo se apoiam em princípios estabelecidos de igual
respeito. Se negar o pressuposto equivale a negar a igualdade e se
advêm importantes conseqüências para a identidade das pessoas a
partir da ausência de reconhecimento, pode-se defender a insistência
na universalização do pressuposto como extensão lógica da política da
dignidade. Do mesmo modo como todos devem ter iguais direitos
civis e de voto, seja qual for sua raça ou cultura, assim também devem
gozar do pressuposto de que sua cultura tradicional tem valor. Essa
extensão, por mais logicamente que pareça decorrer das normas
aceitas de dignidade igual, combina com muita dificuldade com estas,
visto que se opõe à cegueira das diferenças que foi central a essas
normas. Mas ela parece de fato vir delas, embora com dificuldades.14

Appiah afirma que é um absurdo tentar impor às pessoas a perpetuação de certas


narrativas coletivas ad eternum, como forma de resistência ao processo de globalização
e homogeneização cultural. Entretanto, acredito que a política de reconhecimento

12
Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de meu Pai - A África na filosofia da cultura (1992).
Editora Contraponto. Trad. Vera Ribeiro. Revisão da trad. Fernando Rosa Ribeiro.

13
Eurípedes A. Funes Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade.
Universidade Federal do Ceará. Resvista Afro-América Virtual nº2.
14
TAYLOR, Charles: A Política do Reconhecimento in: Argumentos Filosóficos (2000), Ed.
Loyola, pp. 269 - 271.

7
proposta pela perspectiva multiculturalista não se coloca no sentido de impor aos
indivíduos uma certa narrativa à qual ele deverá se ater e sob a qual deverá se apresentar
à sociedade para sempre. A demanda por reconhecimento se dá no sentido de um direito
à memória. É tendo isso em vista que o respeito à autonomia pessoal se expressará no
nível público, visto que para alguém construir sua própria narrativa de modo autêntico,
ela deverá conhecer a história que a precedeu, no intuito de resignificá-la de acordo com
suas compreensões pessoais acerca do mundo, constituídas através dos constantes
diálogos consigo mesma e com os outros. O professor de Harvard critica a política de
reconhecimento proposta por Charles Taylor, na medida em que ela forçaria o indivíduo
a se associar a uma narrativa coletiva contra a qual muitas vezes resiste, ou não gostaria
de se associar diretamente a ela, como se fosse obrigado a reproduzir indefinidamente
uma mesma cultura.
No artigo em que comenta A Política do Reconhecimento, o filósofo Jürgen
Habermas (1929 - ) ressalta a importância de não se confundir os diferentes fenômenos
que emergem nesse contexto15. Embora os movimentos feminista, nacionalista e das
minorias nacionais e étnicas possuam um caráter emancipatório, contra a opressão, a
marginalização e o desprezo, suas reivindicações específicas variam de caso a caso, uma
vez que podem exigir do Estado diferentes tipos de tratamento.
No fundo, o que esses grupos pretendem é garantir que o conjunto da sociedade
não lhes privará das condições necessárias para sua sobrevivência. O reconhecimento da
necessidade de promover direitos específicos, no intuito de proteger a identidade
coletiva de certos grupos, se dá sob a evidência, entre outras, da inadequação dos
direitos individuais a determinados interesses de caráter coletivo. A demanda das
comunidades remanescentes de quilombos no Brasil por um título indiviso de suas
terras exemplifica esse ponto. As características que configuram uma identidade
etnocultural singular e que requerem um tratamento diferenciado são, por exemplo,
instituições médicas e governamentais próprias, a língua falada pelo grupo e o território,
uma vez que esses elementos permitem a construção de uma narrativa coletiva e
relações específicas com os bens naturais da região, os quais adquirem uma valoração
cultural particular. A idéia de que um índio, por exemplo, deva se submeter ao mesmo

15
“Feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a herança eurocêntrica do
colonialismo, todos esses são fenômenos aparentados entre si, mas que não cabe confundir”.
HABERMAS, J.: “ A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito”, in: A inclusão
do outro. Edições Loyola p. 246.

8
tipo de julgamento num processo judicial é questionada, na medida em que tais
tribunais, além de não possuírem entre seus membros nenhum índio capaz de
compreender as diferentes linguagens de expressão que compõem a identidade de sua
tribo, seriam formados por representantes de uma sociedade que historicamente lhe
negou sua própria condição humana. A premissa para que tal proteção possa ser
conferida seria considerar se as práticas tradicionais do grupo são uma interpretação
igualmente válida dos princípios democráticos.
Por isso, é importante destacar que o debate em voga na filosofia política
contemporânea indica uma mudança na opinião pública no que se refere a uma visão
dos direitos de minorias não mais como matéria de políticas discricionárias ou
compromissos pragmáticos, mas como matéria fundamentalmente de justiça.

Para saber mais, leia.

No direito:
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
Na filosofia:
KANT, Immanuel: "Idéia de uma história universal com um propósito
cosmopolita" (1784) in: A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de
Artur Morão. Lisboa: Edições 70, p. 29 – 32
Na literatura:
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo
Negro, 2004.

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