Prefácio
Prólogo: Aqui permaneço
1. A religião medieval: o contexto da Reforma
2. O vulcão de Deus: Martinho Lutero
3. Soldados, linguiças e revolução: Ulrico Zuínglio e os reformadores radicais
4. Depois das trevas, luz: João Calvino
5. Paixão em chamas: a Reforma na Grã-Bretanha
6. A reforma da Reforma: os puritanos
7. A Reforma acabou?
Linha do tempo da Reforma
Leituras adicionais
A chama inextinguível
Descobrindo o cerne da Reforma
Michael Reeves
1a edição, 2016
— Mark Dever
Washington, D.C.
Agosto de 2009
Prólogo: Aqui permaneço
Os clarins retumbaram quando a carruagem passou pelos portões da cidade. Milhares se
enfileiravam nas ruas para vislumbrar seu herói, e muitos mais brandiam retratos dele de
janelas e telhados. Era a tarde de quarta-feira, 16 de abril de 1521, e Martinho Lutero
adentrava a cidade de Worms.
Parecia uma entrada triunfal. No entanto, Lutero sabia aonde entradas triunfais
poderiam levar. A realidade era que ele estava chegando para ser julgado e, como Jesus,
aguardava a morte. Ao ensinar que o pecador, confiando só em Cristo, poderia — a despeito
de seus pecados — ter plena confiança diante de Deus, ele trouxera sobre si a fúria da
igreja. Seus livros já haviam sido lançados em fogueiras, e muitas pessoas esperavam que
Lutero se unisse aos escritos em poucos dias. Ele, contudo, estava determinado a defender
sua doutrina: “Cristo vive”, ele disse, “e nós entraremos em Worms apesar de todas as
portas do inferno”.
No dia seguinte, o arauto imperial foi ao alojamento de Lutero para escoltá-lo até o
julgamento. As multidões eram tão grandes que ele foi forçado a conduzir Lutero com
discrição por alguns becos até o palácio do bispo. Ainda assim, eles não passaram
despercebidos, com muitas pessoas subindo em telhados na avidez de observar. Às quatro
da tarde, Lutero entrou no salão; pela primeira vez, o filho de um mineiro da Saxônia,
vestido em seu humilde hábito de monge, postou-se diante de Carlos V, o sacro imperador
romano, senhor da Espanha, Áustria, Borgonha, do Sul e Norte da Itália, dos Países Baixos, e
“vice-rei de Deus na terra”. Ao ver o monge, o imperador, ferrenho defensor da igreja,
balbuciou: “Ele não vai me transformar em herege”.
Lutero não deveria falar até segunda ordem. Então, o porta-voz do imperador,
apontando para a pilha de livros de Lutero em uma mesa em frente a ele, lhe disse que ele
havia sido convocado para confirmar se reconhecia os livros publicados em seu nome e,
caso os reconhecesse, verificar se ele os renunciaria. Com uma voz suave, que o povo se
esforçou para ouvir, Lutero admitiu serem dele os livros. Então, para a comoção de todos,
pediu mais tempo para decidir se precisava retratar-se. Ele parecia hesitar. Na verdade,
Lutero esperava lidar com pontos específicos de seu ensino; ele não esperava que lhe
pedissem para rejeitar todos os seus escritos. Era necessário refletir mais quanto a isso.
Com má vontade, deram-lhe um dia para pensar e, depois disso, Lutero foi advertido de que
deveria esperar o pior se não se arrependesse.
No dia seguinte, Lutero foi readmitido na presença do imperador às seis da tarde. O
salão estava lotado, e tochas melancólicas foram acesas, tornando o local bastante quente.
Como resultado, Lutero transpirava muito. Ao observá-lo, todos esperavam um discurso de
desculpas abjetas, com a súplica de perdão por sua hedionda heresia. Todavia, no momento
em que ele abriu a boca, tornou-se claro que isso não ocorreria. Desta vez, ele falou em voz
alta e clara. Anunciou que não se retrataria dos ataques contra as falsas doutrinas, pois isso
concederia ainda mais poder aos destruidores do cristianismo. “Bom Deus, que tipo de
ferramenta da maldade e tirania então eu seria!”. A despeito do furioso grito de “Não!” do
imperador, Lutero prosseguiu, exigindo que, se ele estivesse errado, fosse refutado com a
Escritura e, em seguida — prometeu — Lutero seria o primeiro a queimar seus livros.
Pela última vez, perguntaram se ele retrataria de seus erros e, então, ele concluiu:
“Estou preso pelas Escrituras que citei e minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Não posso e
nem vou retratar-me de nada, pois não é seguro, nem correto contrariar a consciência. Não há nada mais
que eu possa fazer. Aqui permaneço. Que Deus me ajude. Amém”.
Isso não consistiu apenas em um discurso. Para Lutero, a Palavra de Deus o havia libertado
e salvado. Ele não contava com outra segurança. Mas, com ela, dispunha de coragem para
permanecer firme quando o porta-voz do imperador respondeu fulminando-o pela
arrogância de crer ser o único conhecedor da verdade. De fato, naquele momento parecia
que Lutero se levantava contra o mundo todo.
Dois soldados acompanharam Lutero pelo salão em meio a gritos de “Mande-o para
a fogueira!”. Uma multidão o seguiu até seu alojamento. Ao chegar lá, ele ergueu as mãos,
sorriu e gritou: “Eu sobrevivi! Eu sobrevivi!”; então, voltando-se para um amigo, afirmou:
mesmo que tivesse mil cabeças, preferia vê-las todas decepadas a abandonar o evangelho.
De volta ao salão, o imperador declarou que o monge oposto a toda a cristandade
tinha de estar errado e, portanto, ele determinara “apostar nessa causa meus reinos e
feudos, meus amigos, meu corpo e sangue, minha vida e alma”. Os limites foram traçados. A
Reforma havia começado. E, naquela tarde, Lutero fez mais do que escrever uma página da
história; ele lançou um desafio para cada geração.
1. A religião medieval: o contexto da Reforma
Quando o século XV acabou e o século XVI teve início, o velho mundo parecia desaparecer
às mãos do novo: o poderoso Império Bizantino, o remanescente da Roma imperial, entrou
em colapso. Colombo descobriu o novo mundo nas Américas, Copérnico virou o universo de
cabeça para baixo com o heliocentrismo, e Lutero deu nova forma ao cristianismo (em
sentido literal). Todos os antigos fundamentos, outrora de aparência tão sólida e
indubitável agora se desfaziam nessa tempestade de mudanças, abrindo caminho para a
nova era em que as coisas seriam muito diferentes.
Hoje, olhando para trás, parece quase impossível ter a mínima noção de como deve
ter sido essa época. “Medieval” — a própria palavra invoca imagens góticas e sombrias de
monges cantando — enlouquecidos pelo claustro — e camponeses supersticiosos em
revolta. Tudo muito estranho. Em especial aos olhos da modernidade: somos igualitaristas
democráticos da cabeça aos pés, eles viam tudo em sentido hierárquico; nossa vida gira em
torno de alimentar, amamentar e fartar o ego, eles buscavam abolir e rebaixar o ego (ou,
pelo menos, admiravam quem assim procedia). A lista de diferenças poderia prosseguir.
Ainda assim, esse foi o cenário da Reforma, o contexto em que as pessoas eram tão
apaixonadas pela teologia. A Reforma foi uma revolução, e revoluções não lutam só a favor
de algo, elas também lutam contra alguma coisa — nesse caso, o velho mundo do
catolicismo romano medieval. Assim, como era ser um cristão nos séculos anteriores à
Reforma?
É claro que nem todos estavam preparados para aceitar a versão oficial sem
questionamento. Para citar apenas um exemplo, Roberto Grosseteste, que se tornou
bispo de Lincoln, Inglaterra, em 1235, acreditava que o clero deveria pregar a Bíblia
em primeiro lugar, não oferecer a missa. Ele mesmo, de forma bastante incomum,
pregava em inglês, não em latim, para ser compreendido pelo povo. E entrou em
conflito com o papa várias vezes (quando, por exemplo, um sacerdote que não
falava inglês, foi nomeado para sua diocese), chegando ao ponto de chamar o papa
de “anticristo que seria condenado por seu pecado”. Poucos poderiam escapar
usando essa linguagem, mas Grosseteste era muito famoso, não apenas pela
santidade pessoal, mas como acadêmico, cientista e linguista, que o papa se viu
incapaz de silenciá-lo.
Outro aspecto do catolicismo romano medieval impossível de ignorar era o culto aos
santos. A Europa estava repleta de santuários dedicados a vários santos, e eles eram
importantes, não apenas em sentido espiritual, mas econômico. Com um bom número de
relíquias do santo padroeiro, um santuário poderia garantir o fluxo constante de
peregrinos, tornando todos vencedores: de peregrinos a publicanos. Como em outros
aspectos, o que parecia alimentar esse culto era o fato de Cristo ter se tornado uma figura
cada vez mais assustadora na mente do público ao longo da Idade Média. O Cristo
ressurreto e assunto era visto como o Juiz do juízo final, completamente terrível em sua
santidade. Como aproximar-se dele? Sem dúvida, ele ouviria sua mãe. Assim, quando Cristo
retornou ao céu, Maria se tornou a mediadora por meio de quem as pessoas poderiam se
aproximar dele. Porém, tendo tamanha glória concedida a ela, Maria, por sua vez, tornou-se
a inacessível e flamejante rainha do céu. Usando a mesma lógica, o povo começou a apelar
para sua mãe, Ana, a fim de interceder junto a ela. E, assim, o culto a santa Ana cresceu,
atraindo a fervorosa devoção de muitos, incluindo-se uma desconhecida família alemã, os
Luteros. E não se contava apenas com santa Ana — o céu estava abarrotado de santos,
todos mediadores muito convenientes entre o pecador e o Juiz. E a terra parecia cheia de
suas relíquias, objetos que poderiam transmitir parte de sua graça e mérito. Como é
evidente, questionava-se a autenticidade de algumas dessas relíquias: uma piada corrente
afirmava existirem tantos “pedaços da verdadeira cruz” espalhados pelo mundo cristão que
a originária seria grande demais para um homem carregá-la. Ora, Cristo era onipotente.
A versão oficial era que Maria e os santos deveriam ser venerados, não adorados;
mas, no dia a dia, essa era uma distinção sutil demais para pessoas que não estavam sendo
ensinadas. Com muita frequência, o exército de santos era tratado como um panteão, e suas
relíquias como talismãs de poder mágico. Assim, como poderiam os ignorantes aprender as
complexidades desse sistema de teologia e, assim, evitar o pecado da idolatria? A resposta
padrão era que, mesmo nas igrejas mais pobres, eles estavam rodeados de figuras e
imagens de santos e da virgem Maria, em vitrais, em estátuas, em afrescos: eles consistiam
na “a Bíblia dos pobres”, os “livros dos analfabetos”. Na falta de palavras, as pessoas
aprendiam com as imagens. Deve-se dizer, entretanto, que o argumento é um pouco
superficial: a estátua da virgem Maria não consegue ensinar a distinção entre veneração e
adoração. O próprio fato de os serviços religiosos serem em latim, língua desconhecida do
povo, demonstrava que a instrução não era mesmo uma prioridade. Alguns teólogos
tentaram escapar disso argumentando que o latim, como língua sacra, era tão poderoso que
poderia afetar até quem não o entendesse. Isso parece bastante improvável. Ao contrário, a
verdade era que o povo não precisava entender para receber a graça divina. Bastava a “fé
implícita” ainda informe. De fato, considerando-se a ausência de instrução, não poderia ser
de outra forma.
Dinâmico ou doente?
Se você já teve o azar de se encontrar em uma sala repleta de historiadores da Reforma, o
que parece causar grande comoção é perguntar em voz alta: “O cristianismo à véspera da
Reforma era vigoroso ou corrupto?”. Essa pergunta garante o início de uma acalorada
discussão. Há alguns anos, isso não provocaria nenhum murmúrio; todos pareceriam
concordar que, antes da Reforma, os povos europeus gemiam por mudanças, odiando o
jugo opressor da Igreja Romana corrupta. Agora, nem todos têm a mesma opinião.
Pesquisas históricas, em especial a partir da década de 1980, têm mostrado além de
qualquer dúvida que, na geração anterior à Reforma, a religião se tornara mais popular que
nunca. Com certeza, as pessoas tinham suas queixas, mas a grande maioria participava dela
com gosto. Havia mais missas pagas a favor dos mortos, mais igrejas construídas, mais
estátuas de santos erigidas e mais peregrinações que nunca. Livros de devoção e
espiritualidade — tão confusos quanto os de hoje — eram muito populares entre quem
podia ler.
O zelo religioso do povo sugeria a ânsia por reforma. Por todo o século XIV, ordens
monásticas se reformavam, e mesmo o papado passou por algumas tentativas
fragmentadas de reforma. Todos concordavam com a existência de alguns galhos mortos e
umas maçãs podres na árvore da igreja. Todos riram quando o poeta Dante colocou os
papas Nicolau III e Bonifácio VIII no oitavo círculo do inferno em sua Divina comédia. Sem
dúvida, papas velhos e sacerdotes corruptos bebiam muito antes da missa. Mas, o próprio
fato de as pessoas poderem rir mostra quão sólida e segura a igreja parecia — ela poderia
aguentar. E o fato de quererem cortar os galhos mortos só mostrava o quanto amavam a
árvore. Esses desejos de reforma não supunham a existência de uma podridão fatal no
tronco da árvore. Afinal, desejar papas melhores é algo muito diferente de não os querer;
idealizar sacerdotes e missas melhores é muito distinto de preferir missas e sacerdócio
separado. Dante também mostrou isso: ele não só puniu os papas maus em seu inferno,
como também dispensou a vingança divina sobre os opositores dos papas, pois os papas,
bons ou maus, eram vigários de Cristo. Às vésperas da Reforma, muitos cristãos agiam
assim: devotados e dedicados ao aperfeiçoamento, não à derrubada de sua religião. Não se
tratava de uma sociedade à procura de mudanças radicais, apenas da limpeza de abusos
reconhecidos.
E então? Vigoroso ou corrupto? É uma falsa antítese. Sem dúvida, o cristianismo
anterior à Reforma era popular e animado, mas isso não fazia dele saudável ou bíblico. Na
verdade, se todas as pessoas estivessem famintas do tipo de mudança trazida pela Reforma,
isso sugeriria que a Reforma teria consistido em um pouco mais que um movimento social
natural, uma faxina moral. Isso os reformadores sempre negaram. Não, esse movimento
não representou uma reforma moral popular; ele compreendeu um desafio ao próprio
coração do cristianismo. Os reformadores afirmaram que a Palavra de Deus estava
irrompendo para mudar o mundo; isso foi inesperado e algo contra a corrente; não era
obra humana, mas uma granada divina.
Presságios do apocalipse
A Reforma pode ter sido inesperada, a maioria das pessoas se contentaria com uma
reforma em escala menor, mas, ainda assim, no ensolarado céu medieval, negras nuvens
começavam a se formar. No início, elas não passavam do tamanho da mão de um homem.
Ninguém sabia, mas elas representavam sinais de que os céus estavam prestes a cair sobre
o catolicismo romano medieval.
A primeira dela formou-se logo sobre Roma. Em 1305, o arcebispo de Bordeaux foi
eleito papa. Entretanto, por vários motivos, ele não estava interessado em mudar-se para
Roma, como se esperava dos papas. Em vez disso, ele fez de Avignon, no sul da França, o
novo quartel-general papal. O rei da França ficou muito satisfeito: seria muito mais fácil de
lidar com um papa francês em terreno francês. Assim, ninguém ficou muito surpreso
quando o papa eleito a seguir também era francês e escolheu permanecer em Avignon. E as
coisas continuaram desse jeito com os próximos papas. Fora da França, as pessoas estavam
menos empolgadas. Elas chamavam esse episódio de “cativeiro babilônico da igreja”. O
papa deveria ser o bispo de Roma, a igreja principal; mas, esses homens em Avignon eram
de fato bispos de Roma? Desse modo, a cristandade começou a perder a confiança no
papado.
Depois de setenta anos, o povo de Roma estava cansado; afinal, a corte papal era a
maior fonte de dignidade (e lucro) da cidade. Assim, em 1378, quando o Colégio de
Cardeais se reuniu em Roma para eleger o papa seguinte, uma multidão os cercou, exigindo
a eleição de um papa apropriado, italiano e, de preferência, romano. É compreensível que
os cardeais aterrorizados tenham cedido às exigências da multidão. Contudo, eles logo
começariam a se arrepender da decisão quando perceberam quão dominador e agressivo
era o novo papa. Muitos começaram a cogitar a invalidade da eleição ocorrida sob ameaças.
Portanto, um novo papa foi eleito, um francês. Infelizmente, o primeiro indicado, ainda em
perfeita saúde, recusou-se a renunciar; assim, agora havia dois papas, e, como era
esperado, eles excomungaram um ao outro. Na prática, com dois santos padres, isso
implicava na existência de duas igrejas mães.
Toda a Europa dividia sua lealdade. A França, claro, apoiava o papa francês; então,
como reflexo, a Inglaterra apoiou o outro, e assim por diante. A situação ficou insustentável,
e um concílio foi convocado para resolver o problema. A solução consistiu na destituição
dos papas existentes e na eleição de um novo. Entretanto, nenhum dos papas destituídos
cederia com tanta facilidade. Assim, havia agora três deles. O episódio chamado “Grande
Cisma” só chegou ao fim com um concílio mais robusto, o Concílio de Constança, reunido
entre 1414 e 1418. Esse concílio conseguiu fazer dois dos papas concordarem em
renunciar, e o terceiro papa em Avignon, que se recusou, foi declarado deposto. No lugar
dele, um novo papa foi eleito e, com exceção de uns poucos apoiadores remanescentes do
papa de Avignon, todos aceitaram o novo. O cisma terminou, mas ele criou uma crise de
autoridade: onde estava a autoridade suprema da igreja? Em Avignon ou Roma? E, como o
concílio estabeleceu qual papa era o papa, o concílio detinha autoridade superior à do
papa? A crise de autoridade duraria muito tempo após o fim do cisma, pois, embora o
Concílio de Constança tivesse declarado que um concílio detinha autoridade superior à do
papa, os papas lutaram com unhas e dentes contra a ideia. Com tantos concorrentes
competindo, como o cristão comum poderia saber a vontade de Deus?
Enquanto isso, com papas por todo canto, a cidade de Roma começara a entrar em
decadência. Era mais do que vergonhoso, pois, se Roma fosse a gloriosa mãe em quem toda
a cristandade depositava a esperança, ela não poderia ser uma ruína. De fato, para
recuperar seu prestígio, ela precisava tornar-se mais gloriosa que nunca. Toda a Europa
deveria se encantar. Assim, no século seguinte, os papas renascentistas atraíram muitos
astros para sua órbita: Fra Angelico, Benozzo Gozzoli e Bernardino di Betti (Pinturicchio)
estavam todos empregados; Rafael Sanzio recebeu a missão de decorar os apartamentos
pessoais do papa no Vaticano; Michelangelo Buonarroti deveria adornar a capela Sistina;
Donato Bramante reconstruir a basílica de São Pedro. Pode ter sido glorioso, mas também
era terrivelmente caro. Era necessário obter recursos onde fosse possível, e as pessoas
começaram a reclamar de papas que pareciam mais interessados no dinheiro delas que em
sua alma, e pela arte que parecia mais pagã que cristã. A reconstrução da basílica de São
Pedro, em especial, custaria mais caro a Roma que o pior pesadelo do papa, pois ela
despertaria a ira de Martinho Lutero.
Também surgiu um ar de corrupção em torno do local que, junto com a
extravagância, fazia de Roma a Las Vegas de sua época — em especial, sob os Bórgias. Em
1492, Rodrigo Bórgia deu o passo simples, porém efetivo, de comprar os votos necessários
para ser eleito papa, Alexandre VI. Foi o começo apropriado do papado capaz de fazer um
cardeal ruborizar-se. Ele gerou vários filhos com suas amantes, e havia o rumor de que
tivera mais um com Lucrécia, sua filha festeira, famigerada pelo anel usado para envenenar.
Além disso, Alexandre VI tornou-se conhecido pelo hábito de organizar orgias no Vaticano
e envenenar seus cardeais. Isso não abriu um bom precedente para o ofício de “santo
padre”: seu sucessor, o amante da guerra Júlio II, também era “papa” em mais de um
sentido, e seu sucessor, Leão X, era agnóstico (ordenado aos sete anos, ninguém pensou em
perguntar sobre sua crença). Evidentemente, o papado teve pontos baixos antes, mas, em
meio à crise de autoridade eclesiástica, era uma péssima hora para perder a
respeitabilidade.
Indulgências
No catolicismo romano medieval, quando um pecador queria confessar a um
sacerdote, este exigia a realização de muitos atos de penitência. Todo pecado sem
penitência nesta vida sofreria consequências no purgatório. A boa notícia consistia
na vida de santos tão bons que eles não só obtiveram méritos bastantes para entrar
direto no céu, evitando o purgatório, como também obtiveram mais mérito que o
necessário para entrar no céu. Esse excesso de mérito da parte deles era guardado,
por assim dizer, no tesouro da igreja, do qual apenas o papa detinha as chaves. O
papa poderia, assim, conceder uma dádiva de mérito (indulgência) para qualquer
alma que considerasse digna, acelerando sua jornada pelo purgatório, ou até
mesmo pulando todo o purgatório (com a indulgência “plena” ou “plenária”). No
início, as indulgências plenárias foram oferecidas aos participantes da Primeira
Cruzada, mas logo doações em dinheiro foram consideradas atos penitenciais
suficientes para merecer a indulgência. Tornava-se cada vez mais claro na mente
das pessoas: um pouco de dinheiro poderia assegurar bênção espiritual.
Houve mais do que repulsa, contudo. Em 1520, o papa emitiu uma bula (um decreto
autenticado pelo selo ou bulla do próprio papa) ordenando que Lutero se retratasse em 60
dias ou encarasse a excomunhão e o banimento (sob o qual ninguém seria permitido
abrigá-lo ou sustentá-lo; ao contrário, as pessoas eram obrigadas a entregá-lo). Isso
confirmou o raciocínio de Lutero: ninguém tentou refutá-lo com a Escritura, uma prova
para ele de que Roma não estava interessada na Palavra de Deus, só em silenciar quaisquer
ameaças à sua supremacia. Colocando-se acima e contra a Palavra de Deus, Roma só
poderia ser um instrumento de Satanás. Sua intensa resposta foi um tratado intitulado
Contra a execrável bula do anticristo. Assim, quando o prazo de 60 dias terminou, o povo de
Wittenberg foi convidado ao fosso de carniça do lado de fora de um dos portões da cidade.
Lutero apareceu e queimou sua cópia da bula com as palavras: “Pelo fato de vocês
confundirem a verdade de Deus, o Senhor hoje confunde vocês. Que sejam lançados ao
fogo!”. Com a bula foram queimadas obras de teologia e livros da lei canônica, destruindo
em sentido simbólico todo o sistema eclesiástico da igreja romana.
Então, nada aconteceu. Tecnicamente, Lutero agora estava excomungado e sob
banimento, mas a autoridade de Roma já estava sendo desrespeitada. Era uma situação que
o sacro imperador romano não poderia tolerar. Lutero foi convocado a apresentar-se
diante dele no próximo concílio imperial em Worms. A partir desse momento, Lutero
passou a enfrentar a ira do imperador e do papa, a possibilidade de ser queimado e a
perspectiva do inferno se, depois de tudo isso, ainda estivesse errado. Esse é o testemunho
do poder transformador de sua descoberta do evangelho: o monge outrora atemorizado na
tempestade agora desafiaria todos eles com a impassível afirmação “Aqui permaneço!”.
Raptado
Depois da audiência, não demorou muito para o imperador declarar Lutero “um cismático
obstinado e herege manifesto” que não deveria ser recebido e lido por ninguém, sob a pena
do castigo mais terrível. Lutero, entretanto, não ficou esperando a condenação em Worms.
Ele já havia embarcado em uma carruagem para Wittenberg.
Todavia, no caminho, enquanto a carruagem adentrava um desfiladeiro estreito e
arborizado, um grupo de cavaleiros cercou o grupo de Lutero, apontando suas flechas. Em
meio a praguejamentos, Lutero foi retirado e levado para longe. Todos sabiam o que teria
acontecido: Lutero fora capturado para ser executado de forma sumária e silenciosa. “Oh,
Deus”, escreveu o artista Albrecht Dürer, “se Lutero está morto, quem agora nos ensinará o
santo evangelho com tanta clareza?”. Era o que os sequestradores queriam que as pessoas
pensassem. Na verdade, eles estavam a serviço do eleitor Frederico, o Sábio, que criou um
plano para manter Lutero em custódia segura sem correr o risco de ser visto abrigando um
fora da lei. E eles não levaram Lutero para uma vala secreta; depois de ziguezaguear pela
área para despistar qualquer perseguidor, eles chegaram, tarde da noite, ao castelo de
Wartburg, a fortaleza de Frederico na Saxônia Eleitoral.
Esse foi o lar secreto de Lutero pelos dez meses seguintes — e o cenário de seus
feitos mais extraordinários. Ele deixou a barba e o cabelo crescer, escondendo seu visual de
monge, e logo estava irreconhecível em roupas de cavaleiro. O fora da lei Martinho Lutero
desaparecera; esse personagem era conhecido como “senhor Jorge”. Parecia um nome
apropriado para um matador de dragões. Apesar de toda a empolgação e o triunfo que ele
pode ter sentido, Lutero considerou esse período no castelo muito difícil. Ele estava
solitário e doente. Ainda assim, trabalhou em um frenesi que superou até os esforços do
ano anterior. Incapaz de pregar para uma congregação, ele escreveu um livro de sermões.
E, entre outras coisas, em menos de onze semanas, conseguiu traduzir o Novo Testamento
Grego de Erasmo para o alemão. Foi necessário lapidar um pouco antes que a obra
estivesse pronta (e algumas ilustrações foram adicionadas, um panorama de Roma similar
à descrição de Apocalipse a respeito da destruição de Babilônia, por exemplo), mas,
supreendentemente, nesse tempo Lutero produzira uma obra-prima. A linguagem era tão
enérgica, tão envolvente, tão das ruas, que transformou a própria maneira de as pessoas
falarem alemão. Lutero estava se tornando o pai da língua alemã moderna. E o mais
importante, com a publicação da obra em setembro de 1522, Lutero realizou o sonho de
que as pessoas “pudessem desfrutar e provar a clara e pura Palavra de Deus e agarrar-se a
ela”.
Por meio de cartas, ele também buscava encorajar a reforma em Wittenberg. Uma
característica de parte do aconselhamento pastoral envolvia chocar o leitor para promover
a apreciação mais clara do evangelho. “Seja um pecador e peque com ousadia”, ele escreveu
a um jovem amigo que tentava fazer da própria piedade a base da confiança diante de Deus,
mas creia e alegre-se em Cristo com ainda mais ousadia, pois ele é vitorioso sobre o pecado, a morte e o mundo.
Enquanto estivermos aqui [neste mundo] havemos de pecar. A justiça não habita nesta vida, mas, como Pedro
diz, nós aguardamos novos céus e uma nova terra, em que habita a justiça. Basta apenas que, pelas riquezas da
glória de Deus, cheguemos a conhecer o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Nenhum pecado nos separará do
Cordeiro, mesmo que cometamos fornicação e assassinato mil vezes ao dia. Você acha que o preço pago pela
redenção de nossos pecados por tão grande Cordeiro é tão pequeno?
Além disso, em Wartburg Lutero sofreu tentações e ataques que jamais o deixariam. “Minha
tentação é esta: achar que eu não conto com um Deus gracioso.” Pode parecer uma tentação
estranha, depois de todos os seus contratempos, mas ele a enxergava como um ataque do
diabo, e isso o forçava a ser um médico especialista em dúvida. Não que isso fosse sempre
óbvio. Às vezes, ele rugia injúrias debochadas ao tentador: “Mas, se isso não for o suficiente
para você, diabo, eu também defequei e urinei; abra sua boca e abocanhe um pedaço
enorme”. Em outras ocasiões, ele defecaria no inimigo ou lançaria seu tinteiro nele,
deixando, para os peregrinos de Lutero admirarem, uma mancha de tinta (regularmente
retocada, evidentemente, de modo a aumentar o senso de devoção — as relíquias voltaram
com muita facilidade).
Muitos consideram esse lado de Lutero bastante perturbador. Ele estava
desequilibrado? Sem dúvida, Lutero não era um herói cristão limpo e engomadinho; ele era
bastante terreno. Todavia, seria errado reduzir essas batalhas com o diabo como crises de
um lunático de boca suja. Seus ataques não se encaixam em diagnósticos médicos ou
padrões de depressão normal. E suas reações tinham um motivo: Lutero considerava a
dúvida inspirada por Satanás como algo a ser excretado, rejeitado, menosprezado e
ridicularizado com risos. Era algo sutil e tentador demais para ser combatido de frente.
Em outros momentos, ele enfrentava suas dúvidas escrevendo um versículo bíblico
relevante na parede, em um móvel ou em qualquer coisa por perto. Mais uma vez, isso é
muito revelador. Ele sabia que dentro de si mesmo havia apenas pecado e dúvida. Toda a
sua esperança residia fora dele, na Palavra de Deus. Ali, sua segurança diante de Deus não
era afetada por como ele se sentia ou como ele agiu. E, assim, ao enfrentar a dúvida, ele não
buscaria conforto dentro de si (isso seria incredulidade e pecado, a origem de toda a
ansiedade, não a cura!); pelo contrário, ele exibiria diante de seus olhos a Palavra externa e
imutável.
Katie
Não demorou muito até a maioria dos monges deixar o monastério de Lutero em
Wittenberg. E, para os que ficaram, a vida já não girava em torno de serviços incontáveis;
agora, o tempo livre deles era gasto em conversas sobre a nova teologia regadas a canecas
de cerveja. Logo, Lutero era o único que restara e, depois disso, o eleitor decidiu lhe dar
todo o monastério para ser sua enorme casa.
Na verdade, em todos os lugares, monastérios e conventos pareciam estar se
esvaziando, com monges e freiras ouvindo sobre a descoberta de Lutero e abandonando o
catolicismo. Em 1523, um grupo de freiras de um estado alemão diferente (onde o regente
executava freiras fugitivas) escreveu a Lutero perguntando o que deveriam fazer. Ele
aconselhou a fuga e até a organizou. Desfrutando do simbolismo, ele enviou um vendedor
de arenque ao convento na manhã de Páscoa, com a carruagem cheia de barris de arenque.
Nove freiras entraram nos barris e foram contrabandeadas para uma nova vida em
Wittenberg.
As ex-freiras, evidentemente, não contavam com nenhum tipo de seguro social e,
assim, Lutero sentiu que era sua obrigação fazer com que elas se casassem. Ele conseguiu
maridos para oito delas, mas a nona, Katharina von Bora, foi uma dificuldade. Por um
período, a última coisa na cabeça de Lutero era casamento. Ele presumiu que não
demoraria muito para ser queimado como herege, além do fato de enfrentar repetidos
ataques contra a sua vida. Assim, Lutero sentia não ser justo que ele tomasse uma esposa.
Entretanto, apesar de toda a sua impassibilidade diante do papa e do imperador, depois de
dois anos, a importunação de seus amigos e a resoluta nona freira o cansaram. Ele casou-se
com Katharina, 15 anos mais nova, em 1525.
É evidente que Martinho e Katie gostavam da companhia um do outro, caminhando
no jardim, pescando juntos ou comendo com amigos. As cartas do casal, escritas quando
Lutero viajava, eram repletas de piadas e clara afeição. Ela era determinada o bastante para
contrapor o indomável reformador. “Nos assuntos domésticos, eu acato a Katie. Fora essa
exceção, sou guiado pelo Espírito Santo.” Assim, Lutero recorria a subornos para fazê-la ler
mais sua Bíblia.
O lar que eles construíram no antigo mosteiro era uma casa jovial e turbulenta que,
com o passar dos anos, esteve cheia com três filhos, duas filhas, um cão de estimação e
incontáveis visitantes, parentes e alunos. Lutero tinha uma pista de boliche construída no
jardim para quando ele parasse seus estudos ou suas orações (ele orava por, pelo menos,
três horas ao dia, lendo versículo a versículo e confiando nas promessas de Deus com vigor,
exigindo que ele as cumprisse). Katie gerenciava uma considerável cervejaria particular,
vendendo parte do produto para ajudar a fechar as contas e usando o resto para lubrificar
todas as discussões teológicas durante as refeições e noite adentro. Isso não a impediu de
às vezes censurar Martinho por beber um pouco a mais nessas ocasiões, nem de sentir-se
contrariada quando os alunos gastavam a hora da refeição tomando notas em vez de
comer. Duas vezes, contudo, a tragédia atingiu a família: as duas filhas morreram jovens,
uma delas, Magdelene, nos braços de Martinho. Ele foi vencido pelas lágrimas, mas fez o seu
melhor para consolar o restante da família com a esperança do evangelho. “Ela ressuscitará
no último dia”, ele declarou diante do caixão. Isso foi dito com uma confiança que outrora
ele teria considerado um pecado presunçoso.
Lutero e os judeus
Provavelmente, nada afasta mais as pessoas de Lutero do que seu tratado Von den
Juden und ihren Lügen [Dos judeus e suas mentiras]. Difundido e usado como uma
tradicional obra-prima alemã pelos nazistas no século XX, e exposto em uma caixa
de vidro nas Reuniões de Nuremberg, é o suficiente para muitos desprezarem
Lutero como um antissemita odioso e toda a sua teologia como fatalmente
infectada. Sem dúvida, essa obra possui um terrível conteúdo que seria preferível
ter sido esquecido antes de sua escrita. Entretanto, não só ela foi redigida muito
depois do irromper da Reforma, depois de Lutero mudar de opinião sobre os judeus
(significando que é inteiramente inapropriado pintar toda a sua teologia com esse
tom), como também a caricatura é uma distorção. Não há racismo envolvido.
Em 1523, ele escreveu Dass Jesus Christus ein geborener Jude sei [Que Jesus Cristo
nasceu judeu], uma crítica aos maus-tratos comuns dos judeus pelos cristãos. Ele o
dedicou a um judeu convertido de quem se tornara amigo, e a quem Lutero mais
tarde sustentou financeiramente (e cujo filho ele abrigaria) com grande custo
pessoal. Contudo, com a passagem do tempo, ele detectou o que via como uma
dureza de coração nos judeus incrédulos, pois eles se recusavam a reconhecer que
suas próprias Escrituras os dirigiam de forma inegável a Cristo. Por fim, levado a
agir por uma virulenta apologética judaica que atacava o cristianismo, em 1542, ele
escreveu Von den Juden und ihren Lügen. Ali, ele argumentava primeiro que ser filho
de Abraão consistia sempre uma questão espiritual, não genética; em seguida, ele
prosseguiu mostrando a partir do Antigo Testamento que Jesus deve ser o Cristo
prometido; só então ele passa para suas notórias recomendações. Embora ele
condenasse atos pessoais de vingança, ele argumentava que as então comuns leis de
blasfêmia deveriam ser aplicadas aos judeus, tornando a religião deles um crime.
Assim, as sinagogas e casas de judeus deveriam ser destruídas como perigosos
focos de blasfêmia; e, junto com outros blasfemadores, os próprios judeus deveriam
ser expulsos.
Para a audiência moderna, é difícil não apenas deixar de ler o posterior
antissemitismo racial nesse material tão desagradável, como também entender que
essas eram, na época, medidas normais contra os hereges. Lutero argumentou que
os poderes do Estado deveriam ser aplicados para preservar o cristianismo.
Embora suas recomendações sejam repulsivas, elas não procederam da falta de
cuidado espiritual. Concluindo a obra, ele escreveu: “Que Cristo, nosso amado
Senhor, os converta com misericórdia e nos preserve firme e imutavelmente no
conhecimento dele, que é a vida eterna. Amém”.
O soldado gentil
Todavia, isso ainda não significava queimar bulas papais e escrever tratados contra Roma.
Enquanto Lutero fazia tudo isso, Zuínglio se uniu à hierarquia católica romana ao aceitar o
cargo de clérigo na Grande Igreja. Seu temperamento fazia dele alguém muito cauteloso,
agindo com covardia às vezes, e isso significava que a Reforma em Zurique foi menos
dramática e explosiva que em outros lugares. Ligado a isso, havia o fato de Roma depender
dos mercenários suíços e, assim, embora cada vez mais preocupados com as notícias de
Zurique, os papas não sentiam que poderiam incomodar a cidade com a excomunhão de
Zuínglio. Em 1523, antes de perceber que não havia mais homens de Zurique indo lutar por
Roma, o papa sentiu que poderia escrever uma carta amigável e cheia de elogios a Zuínglio.
Como consequência, alguns radicais em Zurique começaram a considerar Zuínglio
um obstáculo, impedindo o fluir do Espírito derramado na obra da Reforma. Eles queriam
remover essa barreira e acelerar o passo. Entretanto, a falta de ação em Zurique não deve
ser confundida tão facilmente com falta de reforma. Zuínglio sabia que forçar a mão,
embora empolgante, não efetivaria uma mudança real. Ao contrário, ele cria que o
verdadeiro segredo da reforma é mudar o coração do indivíduo pela aplicação do
evangelho. A reforma externa das igrejas deve fluir da conversão interna se quisermos algo
mais que uma cirurgia plástica. Assim, em vez de uma campanha por mudança, Zuínglio
dedicou-se a pregar a Palavra de Deus. Tendo preparado o povo, ele então esperaria que
eles exigissem a mudança requerida pela Palavra de Deus. Os resultados não foram rápidos,
mas sua duração foi quase singular, além até de sua morte. Quando as mudanças chegaram
a Zurique, elas vieram da profunda convicção popular de serem ordenadas pela Palavra de
Deus e assim permaneceram.
Anna Zuínglio
Bem cedo, Zuínglio convenceu-se de que Roma estava errada ao insistir no celibato
de seus sacerdotes. A Bíblia não ensinava isso. Porém, ele cria que se casar
consistiria em uma pedra de tropeço desnecessária para quem não tinha ainda
alcançado o conceito da autoridade da Bíblia sobre o papa. Assim, em 1522, ele
casou-se em segredo com Anna Reinhart. Só depois de dois anos, ele sentiu que o
povo conseguiria aceitar isso e, então, os dois se casaram oficialmente e tiveram
muitos filhos, dos quais vários morreram na infância.
Em casa, Zuínglio mostrava que, embora desaprovasse a música na igreja, na
realidade, ele era um músico talentoso e capaz de tocar vários instrumentos
diferentes. Em geral, esses talentos parecem ter sido usados para divertir as
crianças e mandá-las dormir!
Quando Zuínglio morreu, seu tenente e sucessor, Heinrich Bullinger, recebeu Anna
e os dois jovens filhos remanescentes em sua casa.
Radicalização
Lutero e Zuínglio enfrentaram presença de radicais. Em Wittenberg e Zurique havia
aqueles que pensavam que a Reforma estava caminhando muito devagar ou não na medida
por eles desejada. A história da Reforma Radical diz respeito principalmente a Zurique,
pois os radicais de lá, no final, obtiveram muito mais sucesso. Eles deixaram o legado mais
duradouro. Antes de tudo, entretanto, precisamos brevemente retornar a Wittenberg.
O ano é 1521. Martinho Lutero, ao voltar da Dieta de Worms, foi raptado e colocado
em custódia preventiva no castelo de Wartburg. A Reforma em Wittenberg, portanto,
encontrou-se por um tempo nas mãos do colega de Lutero, Andreas Karlstadt. Foi um erro:
Karlstadt era impetuoso, e forçava a reforma em um ritmo com que o povo não poderia
lidar. No Natal, por exemplo, ele deu pão e vinho ao povo, ordenando que eles mesmos
pegassem o pão do prato, em lugar de inseri-lo na boca das pessoas como os sacerdotes
católicos faziam. Os presentes ficaram chocados e horrorizados. Eles criam que o pão era o
próprio corpo de Cristo: pegá-lo com as mãos imundas representava um sacrilégio terrível.
Um homem tremia tanto que derrubou o pão. Karlstadt mandou que ele o pegasse, mas o
homem estava tão abalado emocionalmente que não foi capaz.
Todavia, Karlstadt não estava sozinho ao forçar a reforma acelerada. Assim que os
males da idolatria foram proclamados dos púlpitos, tornou-se quase impossível deter as
multidões que realizavam tumultos iconoclastas regados a álcool. Isso não significa negar a
sinceridade religiosa dos destruidores de imagem. Muitos eram profundamente contrários
às imagens e a tudo o que elas representavam. A questão se resumia ao fato de não haver
muitos passatempos empolgantes no século XVI; assim, destruir estátuas, quebrar vidros e
queimar imagens de madeira lhes parecia algo divertido. Pessoas bêbadas e as entediadas
não precisavam de muito para serem aliciadas. E toda a experiência era deliberadamente
programada para ser divertida. Em um caso, por exemplo, uma estátua de madeira da
virgem Maria foi acusada de ser uma feiticeira. Ela foi lançada no rio para ser testada.
Sendo de madeira, ela evidentemente flutuou; assim foi condenada e queimada. Todo
mundo adorava lembrar essa.
Para piorar, três homens da área de Zwickau chegaram a Wittenberg, afirmando
serem profetas que não precisavam da Bíblia, pois o Senhor falava com eles. Rejeitaram o
batismo infantil e defendiam o avanço do reino de Deus por meio do massacre dos ímpios:
“Nasça de novo ou morra!”. As comportas da mudança foram abertas, e as águas
começaram a correr. Wittenberg estava em uma espiral rumo ao caos.
Lutero, ignorando a sentença de morte que pairava sobre ele, saiu do esconderijo
para pedir uma reforma mais cuidadosa. Pregou uma série de sermões em que, como
Zuínglio, defendia que a verdadeira reforma viria pela conversão do coração das pessoas,
não pela alteração de práticas externas. E, à semelhança de Zuínglio, disse que o poder de
mudar os corações encontrava-se só na Palavra de Deus, não em martelos, fogo e força:
Eu não constrangerei ninguém pela força, pois a fé deve vir livremente sem compulsão. Observem meu
exemplo: Eu me opus às indulgências e aos papistas, mas nunca pela força. Eu apenas ensinei, preguei e traduzi
a Palavra de Deus; fora isso, não fiz mais nada. Enquanto eu dormia ou bebia a cerveja de Wittenberg com meus
amigos Filipe e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu o papado de tal forma que nenhum príncipe ou imperador
jamais seria capaz. Eu não fiz nada; a Palavra fez tudo.
Os radicais, Lutero acreditava, não compreendiam o alvo da Reforma. Seu ataque era contra
a ideia de que poderíamos fazer algo para obter mérito diante de Deus. O ataque dos
radicais objetivava questões externas como as imagens, os sacramentos e, no caso dos
“profetas” de Zwickau, a Bíblia. A mensagem de Lutero anunciava a salvação toda como um
dom puro a ser recebido com fé simples. A mensagem deles era que coisas externas
deveriam ser rejeitadas.
Menno Simons
Talvez o maior líder anabatista e defensor dessas posições teológicas seja o
holandês Menno Simons. Nascido treze anos depois de Lutero, como o alemão, ele
foi sacerdote católico romano. Contudo, as dúvidas surgiram. E, com seu irmão
Pieter, ele começou a se sentir atraído pela causa anabatista. Em 1535, Peter foi
sugado para a confusão em Münster e morto. Menno ficou assustado e escreveu seu
primeiro livro, Teghens de grouwelijcke ende grootste blasphemie van Jan Van
Leyden [Contra a blasfêmia de Jan van Leyden]. Era um sinal de alerta para o
anabatismo pacifista, e Menno se tornaria o líder deles. Sob sua direção, o
anabatismo afastou-se de revoluções sangrentas e revelações particulares. Os
menonitas deveriam ser pacíficos e bíblicos. Assim, Menno selou a vitória do
radicalismo pacífico e bíblico do mártir anabatista de Zurique, Felix Mantz. Müntzer
e Münster se tornariam ruínas do passado; Menno ofereceu ao anabatismo um
futuro.
Ainda que, ao longo da história, todos os radicais tenham sido chamados anabatistas, os
historiadores hoje tendem a dividir a Reforma Radical em três campos: anabatistas,
espiritualistas e racionalistas.
Nós já vimos os dois primeiros. Os anabatistas consideravam a Bíblia sua autoridade
suprema, embora diferissem dos reformadores magisteriais no que enxergavam nela. Os
espiritualistas eram homens como Thomas Müntzer, que seguia a “palavra interna” de Deus
recebida de forma direta no coração. Eles desprezavam coisas externas como a Bíblia e os
sacramentos. Sebastian Franck, por exemplo, em sua obra Verbütschiert Buch [O livro
selado] (1539), listou o que ele via como todas as contradições da Bíblia para conduzir seus
leitores da morta e inútil palavra escrita à viva palavra interna do Espírito. Possivelmente,
o líder mais influente tenha sido Kaspar Schwenckfeld, que conseguiu seguidores com tanta
lealdade que até hoje ainda há quem o siga. Como eles costumavam encontrar-se era
tipicamente espiritualista: sem ministros, sacramentos e adoração formal, eles se
contentavam com oração e exortação mútua nos lares.
Ainda não vimos o terceiro grupo, os racionalistas. Esse grupo acreditava ter a
Reforma demonstrado que a igreja estava errada em muitos aspectos. Mas, como os outros
radicais, eles não achavam que os reformadores principais haviam feito o suficiente. Havia
outras crenças tradicionais da igreja, eles pensavam, como a doutrina da Trindade, que
precisavam ser eliminadas, como o purgatório, as indulgências e a missa.
A principal figura aqui era um italiano de Siena chamado Fausto Sozzini (1539-
1604), ou Fausto Socino, como ele se tornou mais conhecido. Ele desenvolveu as ideias de
seu tio Lelio para criar um sistema de pensamento, o socinianismo, considerado a ameaça
teológica mais séria do século XVII por protestantes e católicos. O problema não era estava
no grande número de socinianos; seus números eram semelhantes aos dos seguidores de
Schwenkfeld, e até mais discretos na Polônia. Porém, eles tocaram na ferida, pois os
socinianos questionavam não apenas o que sabemos, mas como o sabemos. Na opinião
deles, a razão, não a Bíblia, deveria ser o juiz, e nada que contradissesse a “sã razão” ou
contivesse uma contradição em si deveria ser crido. A Trindade foi rapidamente mandada
para o olho da rua (três não podem ser um) e, em completo contraste com a crença
anabatista de que Jesus não era realmente humano, eles argumentavam que ele não era
realmente Deus. Livrar-se da Trindade sempre tinha sido mais popular nos limites da
Europa, onde havia mais interação com judeus e muçulmanos. A vida poderia ser muito
mais fácil sem a ofensa da Trindade.
Livrar-se do Deus triúno do cristianismo significava abrir mão do cristianismo e
encontrar um novo deus e uma nova religião — precisamente o que o socinianismo fez.
Nessa religião, Jesus era apenas um mestre, não o Salvador. A cruz já não lidava com o
pecado e nem alcançava perdão. Era um simples, talvez comovente, martírio. Na verdade, o
perdão dos pecados não apresentava nenhuma dificuldade, pois a realidade do juízo divino
foi negada. Em outras palavras, o socinianismo lançou a semente da religiosidade moral e
racional moderna.
Havia muitos modelos diferentes de reforma, alguns bem distantes da de Lutero! O
que fazia toda a diferença não era o zelo, a estratégia ou o esforço, mas a teologia.
4. Depois das trevas, luz: João Calvino
João Calvino não poderia ser mais diferente de Lutero e Zuínglio. Com certeza, ele não
seguia o tipo soldado musculoso de Zuínglio. Ele se dizia “um acadêmico tímido”. Nem ele
poderia ter desfrutado de uma das tumultuadas refeições da família Lutero. Magro como
uma vassoura, Calvino era conhecido como “grande jejuador“ que se privava com
frequência de comida. Nos melhores dias, ele comia apenas uma pequena refeição para
clarear a mente e proteger o corpo sempre atacado por doenças. Enquanto Lutero urraria
com gargalhadas e tragaria sua cerveja, Calvino preferiria sentar em quietude com seus
livros. Lutero era precipitado e ríspido, Calvino era autocontido e (normalmente) polido.
Ambos dispunham de olhos notados pelas pessoas, mas, enquanto dizia-se que os de Lutero
brilhavam, os de Calvino queimavam. O temperamento de ambos poderia ser assustador
quando provocado; todavia, enquanto Lutero era caloroso, Calvino se destacava pela frieza.
Ambos escreveram muito; enquanto Lutero disparava livros como uma semiautomática em
uma briga de rua, Calvino passava anos polindo e refinando sua obra principal.
Calvino jamais seria uma celebridade cristã: um intelectual avesso a câmeras, ele
sempre evitava os holofotes. Seus retratos apresentam um rosto magro, a cabeça pulsante
coberta com uma simples boina preta, e olhos notavelmente intensos. Nisso, as imagens são
bastante reveladoras, pois, apesar do corpo fraco e de ser retraído por temperamento, sua
mente e vontade eram fortes e intimidadoras. Ele nasceu como um cordeiro, mas tornou-se
um leão pelo Senhor que o salvou.
Renascença
Aos 10 de julho de 1509: Lutero e Zuínglio haviam acabado de se tornar sacerdotes, um
aterrorizado e o outro ansioso pela batalha, e Jean Cauvin nascia na cidade agrícola de
Noyon, a quase 100 km ao norte de Paris. Cauvin era francês e sempre consideraria a
França sua terra natal, e Noyon seu lar na terra. Mas, foi como “Calvino” (o nome soava
muito melhor em latim) que ele lideraria a próxima geração da Reforma.
Calvino nasceu a tempo de conhecer o mundo anterior à Reforma. Crescendo em
meio à vida e aos assuntos da igreja local, ele se lembraria, mais tarde, de beijar parte de
um dos corpos de santa Ana (ela tinha muitos espalhados por toda a Europa). Mas, sua vida
começou como o oposto de Lutero: seu pai realmente o queria como sacerdote. Assim, com
quase 12 anos, ele foi enviado a Paris para estudar teologia. Por séculos, Paris fora a nave
mãe dos estudos teológicos na Europa, mas a faculdade de Calvino logo teria algo
surpreendente para arrogar para si: dentro de poucos anos, ela teria como ex-alunos
Erasmo, o líder da reforma moral da igreja, Calvino, e Inácio de Loyola, o general da
Contrarreforma católica. Entretanto, depois de cinco anos, o pai de Calvino abandonou o
sonho do sacerdócio para o jovem João, retirou-o de Paris e enviou à Orleans para estudar
direito. Lutero enfurecera o pai ao abandonar a carreira de direito para tornar-se
sacerdote, o pai de Calvino parece ter se decepcionado com a igreja. Seja como for, ele
estava chegando à conclusão do pai de Lutero de que havia perspectivas melhores no
direito.
Em Orleans, o jovem Calvino foi atraído pelo mundo intelectual do humanismo
renascentista e apaixonou-se. Ali havia uma comunidade de acadêmicos dedicados à
redescoberta das belezas clássicas da Grécia e de Roma. Por meio de seu saber, eles
estavam trazendo o renascimento da era dourada. Era empolgante, mas também muito
confortável e tranquilizador. Com certeza havia críticas à igreja, mas de forma gentil, de
dentro dela. O apego à virgem Maria e a crença no purgatório nunca eram questionados.
Calvino lançou-se nisso, esperando que, em poucos anos, pudesse provar seu valor e roubar
a coroa de príncipe da nova erudição pertencente a Erasmo.
Entretanto, havia algumas pessoas no novo círculo social de Calvino que sabiam
mais sobre a graça de Cristo que Erasmo. Pelo menos, Lutero pensaria que sim. Primeiro,
havia o primo de Calvino, Pierre Robert, apelidado “Olivétan” [Olivetano] por causa de sua
lâmpada à óleo de oliva, usada para seus estudos, que nunca parecia se apagar à noite.
Revelando a tendência da família para o trabalho quase incessante, ele conseguiu produzir
uma tradução completa da Bíblia para o francês quando contava 29 anos. E havia Melchior
Wolmar, que ensinou grego a Calvino. Essa era a iniciação de um círculo muito mais
arrojado. Por volta da década de 1520, o grego era a língua da Reforma. A Universidade de
Sorbonne, em Paris, campeã da velha ortodoxia, observara com clareza os perigos do grego
e do hebraico, e tentou deter segundo a lei o que era uma óbvia abertura para a heresia.
Mentes pretensiosas, armadas com o conhecimento das línguas bíblicas, poderiam se
considerar capazes de entender as Escrituras por conta própria, apenas lendo o texto.
Entretanto, os professores de Sorbonne argumentavam, o verdadeiro significado da
Escritura encontra-se em seu sentido “místico”, que nenhum homem pode conhecer “a
menos que ele seja educado na faculdade de teologia”.
Talvez Wolmar tenha passado para Calvino mais que seu conhecimento de grego,
talvez ele tenha emprestado algumas cópias dos escritos de Lutero. Seja como for, o
“renascimento” começou a significar algo mais pessoal para Calvino que o retorno da era
clássica. Como ele escreveu depois, após esse período “Deus, por uma súbita conversão,
subjugou e conduziu minha mente a uma disposição ensinável”. Não sabemos mais do que
isso. Era característico de Calvino, que nunca gostou de falar sobre si. Mas, apesar de todo o
desejo de continuar sua vida particular de estudos, João agora se tornara, como ele
expressou, um “amante de Jesus Cristo”.
França em chamas
As coisas pareciam positivas para a Reforma na França. O jovem rei Francisco I não era um
fanático caçador de bruxas, mas um monarca humano e esclarecido, protetor de quem
falava em reformar e purificar a igreja. Então, em 1528, alguém levou uma faca a uma
proeminente estátua milagreira da virgem Maria em Paris, decapitando a Madonna e a
criança, esmagando a cabeça dos dois e pisando no dossel. Francisco chorou ouvindo as
notícias e liderou uma procissão pelas ruas para expiar o pecado. Era exatamente o tipo de
comportamento que Lutero condenara em Wittenberg, mas os seguidores de Lutero
sofreriam pelo escândalo. Foram colocadas em prática medidas contra até quem ocultasse
os luteranos. Além disso, o papa logo faria um apelo especial a Francisco, para que ele
eliminasse “a heresia luterana e outras seitas a infestar o reino”.
Então, nesse momento tão tenso, o novo reitor da Universidade de Paris, Nicholas
Cop, começou o novo semestre com um discurso luterano demais para aliviar a situação.
Com sua prisão iminente, ele fugiu do país e foi para Basileia, Suíça, unindo-se a pessoas
como Erasmo e outros refugiados como Olivetano. O nome de Calvino entrou sem demora
para a lista negra. Talvez, ele tivesse ajudado no discurso de Cop. As autoridades vieram à
sua procura e, aparentemente, ele conseguiu sair do quarto no último minuto, descendo
pela janela em uma corda feita de lençóis. Seu quarto foi revistado, sua correspondência
inspecionada e, agora, Calvino estava em fuga.
Assim, a temperatura subiu mais um pouco. Em uma noite de outubro de 1534,
placas atacando a missa foram colocadas em cidades por toda a França. Uma delas foi
pregada na porta dos aposentos do rei no castelo de Amboise. Ninguém sabia quem as
escrevera, todavia, não deveriam ser pessoas moderadas. Autointitulados Articles véritables
sur les horribles, grands et importables abus de la messe papale, inventée directement contre
la sainte cène de notre Seigneur, seul médiateur et seul sauveur Jésus-Christ [“Verdadeiros
artigos sobre os horríveis, grandiosos e importantes abusos da missa papal, idealizada
diretamente contra a ceia do Senhor de Jesus Cristo“], eles protestavam contra os
blasfemos “engano” e “idolatria” da missa. Se isso não estava claro na mente do rei antes,
agora se tornara: “Reforma” era outra palavra para sedição perigosa. Ele conduziu outra
procissão por Paris para expiar o sacrilégio, mas, desta vez, adicionando um novo sacrifício
para apaziguar a deidade ofendida: ao longo da rota da procissão, piras foram acesas para
queimar 36 transgressores que supostamente contribuíram com as placas.
Tudo isso deixou a vida muito mais tensa para Calvino, que tentava não chamar
atenção. Embora concordasse com a teologia das placas, Calvino lamentava o estilo
acalorado dos que fizeram os letreiros e dos destruidores de estátuas. Talvez motivado por
isso, ele escreveu sua primeira obra de teologia, não contra Roma, mas contra os
anabatistas. Esse era um sinal precoce de algo que jamais abandonaria seu pensamento: ele
odiava aqueles que, pervertendo a Reforma ou por seu comportamento descontrolado
traziam má fama à Reforma.
Calvino rapidamente sentiu que a situação na França estava ficando intolerável. O
país tornou-se um Egito, uma terra de servidão que ele deveria deixar para adorar o
Senhor. E, assim, cruzando a fronteira, Calvino tornou-se um exilado. Foi claramente uma
decisão difícil, e ele nunca deixou de saudosamente relembrar sua bela pátria, esperando
que, um dia, ela fosse liberta. Para isso ele trabalharia: do exílio ele convocaria seus
conterrâneos à resistência.
De volta ao combate
Enquanto Calvino vivia feliz no exílio em Estrasburgo, Genebra se encontrava uma bagunça.
O autor das placas francesas com ataques à missa havia chegado (como pastor) e partido, e
reinavam a confusão doutrinária e o caos político. Por fim, a política mudou o suficiente
para Genebra querer Calvino de volta e, assim, três anos depois de expulsá-lo da forma
mais fria, a cidade lhe enviou um caloroso convite para voltar. Ele teria rido se pudesse; só
a ideia de retornar era terrível demais para se pensar nisso. Quando Farel (que estava
ocupado demais para voltar) insistiu que ele aceitasse, Calvino respondeu que preferiria
“cem mortes a essa cruz”.
Porém, com Bucer e Farel unindo-se, ele foi persuadido. Pobre Calvino! Em 1541, ele
voltou a Genebra com Idelette e seus filhos, e subiu a ladeira da pequena Rue des Chanoines,
onde a cidade lhe providenciara uma pequena casa mobiliada. Com um pequeno quintal e
uma estonteante vista dos Alpes, a cidade buscava amenizar a situação. Porém, Calvino
jamais confiaria nos genebrinos de novo. Ele vivia de malas prontas, por assim dizer,
sempre preparado para ser expulso de novo.
O ar estava pesado de expectativa enquanto ele subia de volta a seu antigo púlpito. A
congregação preparou-se para uma torrente de anátemas que sem dúvida procederia de
um amargo deportado que agora tinha voz pública. Em vez disso, Calvino apenas continuou
a exposição do versículo que ele começara na última vez em que esteve ali, três anos e meio
antes. A mensagem era a mais clara possível: Calvino não voltou com objetivos pessoais
(longe disso!), mas viera como pregador da Palavra de Deus.
Entretanto, se a Palavra de Deus se tornasse o cetro pelo qual Deus governaria sua
igreja em Genebra, algo deveria ser feito para garantir isso. O problema era que o concílio
da cidade tomou para si o poder do papa e exercia controle, de forma estrita, sobre tudo
que acontecia na igreja. Calvino sabia da necessidade de atacar enquanto era bem-vindo.
Assim, no mesmo dia do retorno, ele submeteu ao concílio da cidade uma lista de propostas
para a reforma ampla da igreja de Genebra. A maior parte foi aceita.
As propostas deixavam muito claro que a Reforma não se restringia ao rompimento
com Roma, significava dedicação à reforma contínua pela Palavra. A igreja reformada
deveria sempre se reformar. Calvino propôs, entre outras coisas, que cada lar recebesse
uma visita pastoral todo ano, que todos aprendessem o catecismo que explicava a fé
evangelica, e que so quem o fizesse fosse recebido a mesa do Senhor. E, para ter absoluta
certeza de que Genebra jamais seria mencionada na mesma frase que a comunidade
polígama de Jan van Leiden em Mü nster, ele propos que um comite disciplinar fosse
organizado para garantir a sociedade ordeira.
O comitê não detinha poder para impor disciplina e, uma vez organizado,
geralmente distribuía reprimendas verbais sobre os faltosos aos sermões ou às aulas de
catecismo. Contudo, sua fama era de um grupo bastante severo. Em um curioso contraste
com a Wittenberg de Lutero, o comitê tentou impedir os cidadãos de frequentar tavernas,
substituindo-as por “abadias”, onde eles podiam estar sob supervisão com uma Bíblia
francesa. Previsivelmente, o plano não foi um grande sucesso. E, quando foi elaborada uma
lista com os nomes cristãos aceitáveis (como “Jacques” e “Jean’) e inaceitáveis (como
“Claude” e “Monet”), alguns começaram a sentir que havia coisas demais sendo prescritas.
Ou seja, muitos genebrinos não gostavam de receber ordens para viver a vida santa dos
comprometidos quando eles mesmos não eram comprometidos. “Ah, nós não queremos
esse evangelho aqui, vá procurar outro”, certa vez Calvino acusou os genebrinos de dizer. É
quase possível ouvi-los choramingando.
Tudo isso garantiu a Calvino a reputação de aiatolá protestante. Mas, ela sempre foi
injusta. O homem não pode ser julgado pela cidade. Ele era, como disse, um “acadêmico
tímido” sem pretensões de poder despótico, e sem qualquer chance de obtê-lo. Sendo
refugiado francês, não cidadão de Genebra, ele não podia votar nem exercer qualquer cargo
secular, e vivia na cidade apenas pela graça diária do concílio, que poderia, por capricho e a
qualquer momento, expulsá-lo de novo.
Ainda assim, o próprio fato de ele ser imigrante ajudou a alimentar o ressentimento
contra Calvino como testa de ferro de todas as reformas. A situação não melhorou com a
onda imensa de imigrantes, em geral provenientes da França, que estava tomando Genebra.
Quando Calvino retornou à cidade em 1541, a população de Genebra consistia em quase 10
mil habitantes, mas, no fim de sua vida, o número de residentes era mais que o dobro. Os
refugiados recém-chegados eram de maioria francesa, como Calvino, que transformaram a
cidade, introduzindo indústrias, como a relojoaria, e até mudando a principal língua das
ruas para o francês.
É possível ter uma impressão do apelo exercido por Genebra sobre os evangélicos
atormentados na França com o que uma mulher da cidade-natal de Calvino, Noyon, disse ao
chegar lá:
Oh, como estou feliz por ter abandonado o amaldiçoado cativeiro babilônico e por logo ser libertada de minha
prisão final! Ai de mim se estivesse agora em Noyon, onde não ousaria abrir minha boca para confessar a fé
com sinceridade, ainda que os sacerdotes e monges vomitassem todas aquelas blasfêmias ao meu redor! Aqui
não só tenho liberdade de dar glória a meu Salvador ao estar diante dele com ousadia, como sou orientada.
As pessoas deixavam para atrás a vida anterior para viver abertamente como evangélicos e
ouvir o ensino das Escrituras.
Embora os imigrantes estivessem felizes, sua chegada acendeu a habitual xenofobia,
e as tavernas estavam cheias de ideias sobre o que fazer com eles. Uma ideia popular é que
eles deveriam “arrumar um barco, colocar todos os franceses e banidos nele, e enviá-los rio
Ródano abaixo” de volta à França. O nome de Calvino estava implícito.
A coisa começou a ficar feia. Mulheres foram presas ao serem flagradas dançando,
provocando uma feroz reação contra Calvino; cartazes com dizeres rudes e impublicáveis
sobre ele foram colados pela cidade — um até mesmo em seu púlpito. Era um presságio do
pior porvir, quando, no início da década de 1550, ocorreram tumultos e tensões liderados
por um grupo que amava partidarismo e odiava Calvino. Durante seus sermões, as pessoas
começaram a tentar abafá-lo, algumas tossindo, outras fazendo ruídos inconvenientes com
seus assentos.
Parecia que Calvino não sobreviveria por muito tempo em Genebra. Em 1553, ele
declarou, sem o apoio da lei, não permitir que um dos líderes dessa facção contrária a
Calvino, os “libertinos”, participasse da ceia do Senhor. Esperando que o domingo seguinte
fosse o último, ele pregou com um nó na garganta, mas, ainda assim, recusou-se a desistir.
Diante da mesa do Senhor, ele anunciou: “Morrerei antes de minha mão estender as coisas
sagradas do Senhor aos julgados escarnecedores”. Quase inexplicavelmente, Calvino não foi
expulso. Porém, sua vida na cidade estava por um fio.
Miguel Serveto
Nesse momento mais sombrio aconteceu o evento que lançaria a pior sombra sobre
o nome de Calvino: Miguel Serveto foi queimado por heresia em Genebra. A imagem
de Calvino ao lado da pira, com um sorriso sinistro no rosto, sem dúvida oferece um
bom combustível para a lenda de “Calvino, o Inquisidor Protestante”. Mas, o que
aconteceu? O monstro foi finalmente revelado?
Miguel Serveto era um radical espanhol da laia de Fausto Socino, que esperava o
progresso da Reforma e a rejeição do que ele considerava crenças corrompidas,
como a Trindade. Por séculos, a Espanha abrigara grandes populações judaicas e
muçulmanas, e muitos cristãos espanhóis consideravam a Trindade um obstáculo,
deixando os cristãos de fora do alegre clube monoteísta espanhol. Serveto tornou-
se a voz desse movimento, argumentando que a Trindade representava uma crença
adicionada mais tarde à religião monoteísta simples e sem floreios do Antigo
Testamento, em que só Deus Pai era Deus. Se pudéssemos todos voltar a essa
verdade básica e original, então judeus e cristãos não precisariam mais se separar.
Católicos e protestantes ficaram de igual modo horrorizados com a defesa de um
deus completamente diferente. Entretanto, os católicos o capturaram primeiro, nos
limites da fronteira francesa de Genebra, em Viena. Tendo-o considerado culpado
de heresia, também conseguiriam queimar apenas sua efígie primeiro — pois ele
escapou pelos telhados e cruzou a fronteira para Genebra.
Calvino era tão odiado ali que parecia um bom lugar para fugir. Mesmo ao ser preso
em flagrante, Serveto permanecia otimista: da prisão ele escreveu ao concílio da
cidade, exigindo a prisão de Calvino e oferecendo-se caridosamente para ficar com
a casa e os bens do reformador quando ele fosse executado. Em 1553, pedidos
assim pareciam realistas. Entretanto, a própria Genebra foi acusada por toda a
Europa católica de ser um abrigo para hereges; mesmo o concílio da cidade podia
enxergar que, ao tolerar Serveto, isso mostraria que Roma estava certa.
Calvino, seu teólogo, foi convocado para atuar como promotor. Como se esperava,
Serveto foi declarado culpado e, em concordância com outras cidades protestantes
na Suíça e na Alemanha, Genebra pronunciou a sentença de morte. Não houve
nenhuma polêmica: toda a cristandade concordava com a pena de morte como
sentença apropriada para heresia e, nas décadas anteriores, vários feiticeiros,
conjuradores e satanistas confessos (confessos enquanto seus pés estavam sendo
grelhados, evidentemente) foram torturados e queimados em Genebra. Isso ocorreu
no século XVI.
Também em 1553, Calvino não estava em posição de exercer qualquer influência
sobre a pena. Na verdade, ele pediu uma pena de morte mais leniente, decapitação,
o que lhe foi negado. Por fim, ele foi visitar Serveto na prisão uma última vez para
tentar convencê-lo. Ele fracassou e, assim, Serveto foi levado aos portões da cidade
e queimado.
Quando as chamas subiam, Serveto gritou: “Ó, Jesus, Filho do Deus eterno, tem
piedade de mim!”. Se ele estivesse preparado para gritar: “Ó, Jesus, eterno Filho de
Deus”, ele nunca teria sido queimado. É perturbador o que isso revela. As duas
confissões estão em polos opostos. Porém, o fato de hoje termos dificuldade em
enxergar isso demonstra como o espírito erasmiano de pouca doutrina saiu-se
vencedor.
A maré vira
Em 1555, era como se as nuvens subitamente desparecessem e o sol brilhasse de novo. Os
favoráveis a Calvino venceram as eleições para o concílio da cidade. Isso iniciou uma
revolta. Espadas foram brandidas, e o líder do antigo partido contrário a Calvino confiscou
o bastão de autoridade da cidade. Não poderia haver símbolo mais claro de um golpe de
Estado. Então, todos se lembraram de que coisas assim não acontecem em cidades suíças
de respeito, e os líderes foram condenados à decapitação, pregados no pelourinho e
esquartejados. Muitos conseguiram fugir intactos antes de serem presos, mas tudo havia
mudado. Era uma nova era, o partido contra Calvino estava fora de cena, e isso daria a
Calvino a liberdade de fazer coisas a que ele jamais se aventurara antes.
O que Calvino faria com essa oportunidade recém-chegada? Ele estabeleceu um
programa ultrassecreto para a evangelização de sua pátria França. Ele já estava bem
estabelecido como líder exilado do protestantismo francês, tendo contato regular com
muitas igrejas clandestinas dali. Mas, depois de 1555, seus esforços foram levados a um
nível muito mais ambicioso. Uma rede secreta foi montada, e abrigos seguros e
esconderijos organizados, de forma que os agentes do evangelho poderiam cruzar a
fronteira da França para plantar novas igrejas clandestinas (algumas até subterrâneas).
Com máquinas de impressão secretas instaladas em Paris e Lyon para prover-lhes
recursos, tudo foi um incrível sucesso. A procura por literatura logo ultrapassaria o que as
máquinas poderiam suprir, e a imprensa tornou-se a indústria dominante em Genebra na
tentativa de lidar com a necessidade.
Mais de 10% de toda a população da França tornou-se reformada, com dois milhões
ou mais congregando nas centenas de igrejas plantadas. O calvinismo tinha bons resultados
em especial entre a nobreza, e quase um terço dela parece ter se convertido, dando à fé
reformada uma influência política desproporcional a seu tamanho real. O antigo sonho de
Calvino de ver a França evangélica começava a parecer uma possibilidade. Ele escreveu
uma confissão de fé para a igreja ali e a apoiou em tudo o que era possível. Apesar do
crescimento do evangelicalismo na França, os franceses precisavam muito de
encorajamento: quando, por exemplo, uma igreja foi invadida em Paris, mais de cem
pessoas foram presas e sete queimadas. Embora ele escrevesse para confortá-los como
alguém em liberdade, jamais falou como se estivesse em uma torre de marfim. Sentindo a
iminente ameaça de martírio em Genebra, suas cartas são salpicadas por toda parte de
menções ao sangue que ele sabia que logo seria derramado: “É verdade que agora falo de
fora da batalha, porém, não muito distante, e não sei por quanto tempo, pois até onde se
pode julgar, nossa vez se aproxima”.
T Depravação Total (Total Depravity): Não significa que somos tão pecadores
como poderíamos ser, mas que o pecado nos afeta de forma tão ampla que não
temos a capacidade de fazer nada em relação à salvação.
U Eleição Incondicional (Unconditional Election): Significa que Deus escolhe
algumas pessoas para a salvação e outras para a condenação de modo
incondicional, e não baseia a decisão em nada proveniente dessas pessoas, seja bom
ou mau.
L Expiação Limitada (Limited Atonement): Significa que, na cruz, Cristo pagou
pelos pecados só dos eleitos, não pelos pecados de toda a humanidade.
I Graça Irresistível (Irresistible Grace): Significa que, quando Deus deseja salvar
uma pessoa, essa pessoa será incapaz de resistir e recusar-se a nascer de novo.
P Perseverança dos Santos (Perseverance of the Saints): Significa que Deus
preserva os verdadeiros cristãos até o fim, sem permitir que eles percam a salvação.
Embora esses “cinco pontos do calvinismo” revelem o crescente interesse na
predestinação entre os calvinistas, eles foram projetados para proteger o que os
calvinistas acreditavam serem importantes verdades negadas pelos arminianos.
Elas nunca tiveram a intenção de consistir em um sumário da fé calvinista ou do
pensamento de Calvino.
A prova? Em 1559, Calvino chegou à última e maior edição das Institutas. Agora,
elas eram bem mais que uma útil introdução à fé evangélica, como ocorrera com a
primeira edição em 1536. Agora, elas estavam transformadas em um suntuoso
banquete de exposição do evangelho, representando a riqueza e o alcance do
pensamento de Calvino. Se algo revela a mentira da ideia de Calvino como alguém
obcecado com a predestinação, é isto: Depois de ter examinado Deus, o mundo,
tudo o que Jesus fez por nós, nossa salvação, a oração e uma série de outros tópicos,
é somente na página 920 da versão padrão das Institutas que Calvino começa a
examinar a eleição — e, do total de 1521 páginas, ele dedica apenas o tópico 67
delas! Sem dúvida, sua visão não se limitava à predestinação. Seu pensamento era
rico e abrangente. Consistia na tentativa de examinar todas as coisas por meio das
lentes da Palavra de Deus.
Os mártires de Oxford
Entre as vítimas mais famosas de Maria estão o antigo arcebispo da Cantuária,
Thomas Cranmer; o famoso pregador e bispo de Worcester, Hugh Latimer; e o bispo
de Londres, Nicholas Ridley. Em 1555, Ridley e Latimer foram queimados juntos, de
costas um para o outro, no final da Broad Street em Oxford. Latimer, com quase
oitenta anos, foi o primeiro a morrer, gritando entre as chamas: “Tem bom conforto,
mestre Ridley, e sê valente; neste dia, pela graça de Deus, brilharemos como uma
vela na Inglaterra; creio que ela jamais se apagará”. Infelizmente para Ridley, a
madeira a seu redor foi disposta de maneira equivocada, de forma que ele passou
por um terrível sofrimento: suas pernas foram queimadas antes de o restante de
seu corpo ser consumido pelas chamas. Ao que parece, a horrível visão levou
centenas às lágrimas.
Cinco meses depois, Thomas Cranmer foi queimado no mesmo local. O antigo
arcebispo e arquiteto de boa parte da Reforma inglesa, agora com quase setenta
anos, tinha, sob extrema coerção, renunciado ao protestantismo. Foi um triunfo
para o reinado de Maria. Apesar de sua retratação, contudo, ele era uma
representação tão grande da Reforma que mesmo assim ele foi condenado à
fogueira. Essa decisão fez mais que acabar com a vitória de Maria, pois, quando o
dia da execução chegou, Cranmer recuou-se a ler a retratação. Em vez disso,
afirmou com ousadia que era de fato protestante, embora um covarde por
abandonar seus princípios. Como consequência, anunciou: “Pelo fato de minha mão
ter pecado, escrevendo o que era contrário a meu coração, assim ela será a primeira
a receber a punição”. Ele se manteve fiel à palavra: quando as chamas foram acesas,
ele estendeu a mão que assinara a retratação para que ela queimasse primeiro.
Tendo brevemente renegado o protestantismo, Cranmer queimou com uma
bravura comovente e desafiadora e, assim, morreu o primeiro arcebispo da
Cantuária protestante.
Ao norte da fronteira
As coisas funcionaram de forma diferente na Escócia, embora a Reforma escocesa tenha
começado em tons parecidos. Ao mesmo tempo em que a literatura luterana estava sendo
contrabandeada para a Inglaterra e discutida em Cambridge, ela fazia incursões à Escócia,
encontrando ávidos leitores em St. Andrews. Como na Inglaterra, alguns dos convertidos
evangélicos começaram a pregar as novas doutrinas. Entretanto, nenhum deles fez muita
diferença até que, em 1528, um deles, Patrick Hamilton, foi preso e queimado por heresia
em St. Andrews. Ele melhorou a imagem do evangelicalismo na Escócia, fazendo muitos se
perguntarem que nova doutrina era essa, por que era tão perigosa e por que um homem
morreria por ela.
Uma coisa diferente da Escócia era que o rei (Jaime V, na época) detinha completo
controle da igreja em seu país. Assim, em sua mente, não havia necessidade de romper com
Roma como Henrique VIII da Inglaterra fizera. O que ele ganharia? A coroa escocesa jamais
estaria interessada em cortar laços com Roma.
Em 1542, Jaime morreu, abrindo uma janela de oportunidade para a Reforma. O
monarca por direito era agora a infante Maria da Escócia, mas Jaime Hamilton, conde de
Arran, governava no papel de regente. No ano seguinte, ocorreu algo extraordinário: “A fase
piedosa de Arran”. O próprio Arran tinha a extraordinária capacidade de alternar entre o
catolicismo e o protestantismo, mas naquele ano, ele era protestante. O resultado foi um
ano de legislação a favor dos protestantes: uma versão bíblica na língua local foi sancionada
(e vendeu bem); pregadores evangélicos foram comissionados; e o proeminente cardeal
David Beaton, católico romano, de St. Andrews foi até preso.
Então, Baton encabeçou uma revolta e, depois de um ano, Arran decidiu ser católico
de novo. Ler a Bíblia no próprio idioma foi declarado ilegal outra vez e, como claro sinal de
que os bons tempos estavam de volta, o proeminente pregador evangélico George Wishart
foi capturado, julgado e queimado como herege.
Entretanto, os protestantes escoceses não eram do tipo que deixariam barato esse
tipo de tratamento. Um pequeno grupo disfarçado invadiu o castelo de St. Andrews,
assassinou Beaton, pendurou seu corpo na janela e prosseguiu para conquistar o castelo.
Durante o ano seguinte, o castelo se tornou um local de refúgio para os protestantes
ingleses, que mantiveram seu controle até serem bombardeados por tropas francesas
chamadas para ajudar.
Muitos dos derrotados foram condenados a servir como galerianos em navios
franceses, acorrentados a bancos para remar o dia todo sob a ameaça do chicote. Entre eles,
estava o antigo guarda-costas, portador do sabre, de Wishart e, mais tarde, pregador dos
réus do castelo, John Knox. Seus colegas de prisão conheciam sua teologia: seu primeiro
sermão, sobre o papa como a prostituta da Babilônia, foi inequívoco. Mas, agora, no navio,
eles começaram a conhecer seu fervor. Eles costumavam ser ameaçados com tortura se não
reverenciassem a imagem da virgem Maria ou a assistissem à missa, quando celebrada a
bordo. Entretanto, quando Knox se recusou e a imagem de Maria foi forçada sobre seu
rosto para que ele a beijasse, Knox a agarrou e lançou ao mar. Depois disso, os captores
pararam de tentar e, após quase dois anos tornando a vida deles miserável, ele foi
libertado.
Knox passou um tempo na Inglaterra, tentando fazer Cranmer acelerar sua Reforma,
mas, quando Maria, a Sanguinária, subiu ao trono, ele partiu para Genebra. Para ele,
Genebra era um paraíso: “A mais perfeita escola de Cristo que já houve sobre a terra desde
os dias dos apóstolos”. Isso o fez sonhar com sua terra natal. Knox conseguiu viajar nos
anos seguintes, chegando até a passar brevemente pela Escócia, onde foi recebido de modo
caloroso pelo crescente número de protestantes escoceses, que começavam a vê-lo como
um tipo de líder exilado. Na maior parte do tempo, porém, ele aguardava em Genebra,
acumulando ira enquanto assistia como os eventos na Grã-Bretanha se desenrolavam.
Em 1558, sua ira estourou e ele libertou de sua pena a obra The First Blast of the
Trumpet Against the Monstruous Regiment of Women [O primeiro toque da trombeta contra
o monstruoso governo das mulheres]. Pelo “governo” das mulheres, ele se referia aos
reinos das duas rainhas católicas, Maria da Escócia e Maria, a Sanguinária, da Inglaterra. Na
mente de Knox, a raiz de todos os horrores em ataque contra a Grã-Bretanha era o
“monstruoso” fato de as mulheres governarem, quando o comando era reservado aos
homens. A obra surgiu em uma hora desastrosa, pois, pouco depois da publicação, Maria, a
Sanguinária, morreu, o que poderia deixar Knox livre para voltar para a Inglaterra.
Entretanto, não havia como Isabel permitir que o autor dessa obra vivesse em seus
domínios. Talvez ele não tenha escrito com ela em mente, mas Isabel jamais perdoou Knox
pelo insulto e sempre nutriu uma profunda suspeita de tudo que viesse de Genebra.
Contudo, no ano seguinte (1559), Knox finalmente retornou à Escócia. De imediato,
seus sermões vulcânicos alimentaram o sentimento protestante (e algumas revoltas). Ele
foi declarado criminoso, mas um poderoso grupo de nobres e cidadãos protestantes se
dispôs a defender Knox e lutar pelo protestantismo. Ao mesmo tempo, o catolicismo
começava a ser associado com algo estrangeiro, como na Inglaterra. A própria Maria, a
rainha da Escócia, era francesa demais: criada na França, vivia na França, estava casada
com um francês, com mãe francesa (que tinha assumido o cargo de regente no lugar de
Arran); para muitos escoceses, havia o incômodo sentimento de que a Escócia estava sendo
transformada em uma província da França. Assim, o patriotismo escocês começou a fundir-
se com o protestantismo escocês na tentativa de se livrar dos franceses católicos.
Evidentemente, tudo isso era música para os ouvidos de Isabel lá na Inglaterra. Ela
amava a ideia de ter a Escócia protestante ao norte em vez de estar cercada pelo que era
uma desconfortável prensa católica, com a Escócia católica ao norte e a França católica ao
sul. Ela decidiu enviar tropas ao norte para ajudar os protestantes a vencer. A mera
aparição deles foi o suficiente para alterar a situação e, em 1560, o Parlamento Escocês
conseguiu decretar que o papa não detinha nenhuma autoridade na Escócia e que, agora,
toda a doutrina e a prática deveriam ser conformadas à nova confissão de fé (a Confissão
escocesa) esboçada por John Knox. Maria da Escócia pode não ter gostado, mas ela ainda
estava na França e, quando chegou à Escócia, um ano depois, foi obrigada a aceitar. Agora, a
Escócia era um país calvinista.
Que reviravolta extraordinária! Em 1558, Inglaterra e Escócia eram católicas; em
1560, protestantes. Evidentemente, como na Inglaterra, seria necessário mais tempo para o
protestantismo tornar-se uma convicção pessoal e popular. Na páscoa de 1561, por
exemplo, menos que 10% da população de Edimburgo estava preparada para receber a
ceia do Senhor calvinista. A população não se manteve especialmente apegada à missa, ela
precisava entender a nova teologia. Existia a carência de pregadores treinados e da liturgia
protestante antes de as pessoas aceitarem o evangelicalismo com sinceridade.
Política e teologia
Talvez o aspecto mais notável da reforma na Inglaterra e na Escócia consista em suas
muitas diferenças da reforma ocorrida em Wittenberg, Zurique e Genebra. Em poucas
palavras, a reforma movida mais pela teologia parece diferenciar-se da reforma mais
promovida pela política. Para os reis e rainhas da Inglaterra, a política estava no centro de
sua mente, o que não ocorreu no caso de Lutero, Zuínglio e Calvino. Pode-se observar o
mesmo nas diferenças entre a reforma na Inglaterra e na Escócia: na Inglaterra, a Reforma
seguiu o método de cima para baixo, conduzida por monarcas (e usada pelos
reformadores); na Escócia, ela foi predominantemente de baixo para cima, exigida pelo
povo, apesar do monarca.
Se essa diferença prova algo, é que o cerne da Reforma consistia em um movimento
doutrinário. Não se buscava a reforma política, social ou moral com roupagem teológica;
bem no fundo, havia um conjunto de perguntas teológicas: “O que é o evangelho?”, “Como
podemos saber?”, “O que é salvação e como posso ser salvo?”, “Quem é o povo de Deus, e o
que é a igreja?”. O próprio fato da facilidade da percepção da diferença entre Martinho
Lutero e Henrique VIII diz tudo. Era bem possível usar a Reforma para fins políticos (como
Henrique fez), mas a Reforma em si foi uma revolução teológica (como Lutero
demonstrou).
6. A reforma da Reforma: os puritanos
Quem eram os puritanos?
“Puritano”: termo mais usado como arma que descrição. Para a grande maioria, trata-se de
uma lama verbal que, uma vez atirada contra alguém, faz a vítima parecer um pedante
risível e rabugento fazendo caretas. Para a pequena minoria, a palavra deve ser brandida
como a descrição de uma equipe de ouro, unida com as mais impecáveis credenciais
teológicas e espirituais.
A expressão foi cunhada como termo pejorativo depois que Isabel tornou-se rainha:
para o inglês médio, havia o “papista” católico de um lado, e o “preciosista” ou “puritano“ —
alguém que exagerou do outro lado. Isso sugeria um tipo de santarrão caçador de picuinhas
que se considerava mais santo que os outros. Essa não era uma descrição justa: as pessoas
às quais ela foi aplicada jamais se enxergavam como indivíduos puros (bem longe disso,
como o constante testemunho de sua pecaminosidade demonstra). Todavia, nem a outra
descrição é muito precisa: os chamados puritanos diferiam uns dos outros, muitas vezes de
modo marcante. Eles podiam discordar sobre o propósito da cruz, sobre como ser salvo; o
poeta John Milton, um puritano incontestável, nem mesmo cria na Trindade, o Deus de
todos os credos cristãos.
Então, quem eram os puritanos? Talvez John Milton tenha se expressado muito bem
quando mencionou a “reforma da Reforma”, pois esse era o alvo que unia todos os
puritanos. Isso não significava que se eles achassem puros, mas que desejavam purificar o
que não havia sido purificado na igreja e em si mesmos. Eles queriam reforma e, embora
tivessem ideias diferentes de como ela deveria ser, todos tencionavam aplicar a Reforma ao
que ela não tinha ainda tocado. Eles pensavam que a Reforma era algo bom, mas que não
estava completa ainda.
Extirpando o “papismo”
O puritanismo teve início quando Isabel estabeleceu a Igreja da Inglaterra com seu peculiar
protestantismo inglês. Todos os protestantes se deleitaram em ver a Inglaterra recobrada
de Roma, mas os que logo seriam chamados puritanos eram as pessoas que jamais se
conformariam com a criação de Isabel. Não que eles desejassem deixar a Igreja da
Inglaterra; ela ainda era a igreja, afinal (os poucos que a deixaram nos primeiros anos do
reinado de Isabel, de modo geral, não são conhecidos como puritanos). No entanto, na visão
deles, era uma igreja muito sem personalidade, pela metade, precisando de uma boa
quantidade de reformas adicionais. Ao serem exilados no reinado de Maria, muitos deles
tinham visto na Suíça como as coisas poderiam ser e, da mesma forma que os ingleses de
hoje meneiam a cabeça quando comparam seu sistema ferroviário com o suíço, os
puritanos meneavam a cabeça quando comparavam a igreja de Isabel com a Genebra de
Calvino. Por exemplo, os ministros da Igreja da Inglaterra ainda eram chamados sacerdotes
e vestiam trajes especiais: sem dúvida, pensavam os puritanos, isso não levaria o povo a
pensar que eles estavam ali em sentido primário não para ensinar, mas para oferecer o
sacrifício da missa? O sinal da cruz ainda era usado no batismo: certamente isso distraía as
pessoas do verdadeiro sentido do batismo, transformando-o em mero ritual. Um anel de
casamento ainda era dado nas cerimônias da Igreja da Inglaterra: isso não encorajaria as
pessoas a considerar o casamento um sacramento, como Roma defendia, com o anel como
sinal externo? As pessoas ainda deviam se ajoelhar na comunhão (para receber, em vez de
pão real, uma hóstia, para que nada do corpo de Cristo caísse no chão): isso não sugeria a
adoração do pão e do vinho, como na missa? E quanto às práticas como a crisma? Onde isso
está na Bíblia?
O problema era que, embora Isabel fosse protestante, ela não gostava do que
chamava de “inovações” e, instintivamente, preferia os antigos costumes (como jurar, ao
estilo católico, “pelo corpo de Deus!”). Ela considerava completamente sem importância o
tipo de coisa pelo que os puritanos se contorciam. Em sua mente, a questão da religião na
Inglaterra fora fechada em 1559: a Inglaterra era protestante, e não havia nada mais a ser
dito. Contudo, para os puritanos, a ideia de uma “instituição” religiosa era inteiramente
contra uma convicção protestante fundamental: a igreja devia ser continuamente
reformada para alinhar-se cada vez mais à Palavra de Deus.
E não se tratava apenas de como seria o serviço religioso dominical. Nenhum
puritano podia considerar a obra da reforma completa quando a maioria da população
ainda tinha pouco ou nenhum entendimento da justificação só pela fé. Não bastava
reformar o modo de a igreja operar; a Reforma deveria transformar a vida do indivíduo,
obtendo não só uma adesão externa ao protestantismo, mas o evangelicalismo interior e
sincero.
As sementeiras para isso foram as universidades, em especial Cambridge, onde
tutores influentes como Laurence Chaderton adotaram a visão de que o principal propósito
da universidade era suprir a terra com pregadores. Em sua faculdade, não era permitido
aos alunos estudar ali por muito tempo, esperava-se que eles partissem para assumir um
púlpito. Quando partiam, a amizade formada na universidade consistia na chave para o
apoio mútuo.
Reformando almas
Embora Richard Baxter tenha ministrado quase um século depois da primeira
geração de puritanos, todos os puritanos teriam repetido com sinceridade o que ele
disse sobre a seguinte questão:
Como podemos achar que a reforma está terminada, quando livramo-nos de algumas cerimônias e
mudamos alguns trajes, gestos e formas? Não, senhores! Converter e salvar almas é a nossa real atividade.
Essa é a principal parte da reforma.
Baxter deveria ser o modelo puritano do que isso implicava. A fim de alcançar essa
reforma, ele cria na insuficiência da pregação regular; era preciso dedicar tempo às
pessoas garantindo que elas entendessem o evangelho por si próprias, aplicando-o
à situação delas e sendo seu tutor pessoal. Assim, na paróquia de Kidderminster, na
década de 1650, Baxter começou a visitar todos os paroquianos uma vez ao ano,
passando uma hora com cada família, e visitando cerca de quinze famílias por
semana. O resultado foi admirável:
Em uma palavra [nunca acredite em um puritano quando ele diz que será breve!], quando fui até
lá pela primeira vez, havia apenas uma família na rua que adorava a Deus e invocava seu Nome e,
quando parti, havia algumas ruas em que não restava uma família que não o fizesse, professando
séria piedade, dando-nos esperanças de sua sinceridade.
O monarca alegre
Não demorou muito para o povo querer um rei de novo. Eles ofereceram a coroa a
Cromwell (que a recusou) e, quando ele morreu em 1658, a falta de um sucessor capaz
significava que eles precisavam ser rápidos em oferecê-la a Carlos, o filho do rei executado.
Carlos II, proclamado rei em 1660, era o completo oposto de tudo que a Inglaterra
tinha visto na última década. O “monarca alegre”, como ele se tornou conhecido, parecia ter
tantos cães da raça spaniel quanto amantes; sabe-se com certeza que ele conseguiu ter
quatorze filhos ilegítimos com sete delas. Sob a república, o adultério era crime capital; sob
Carlos, agora a castidade era punida — com escárnio. E (alguém se atreveria a dizer?)
Carlos era muito diplomático quanto às diferenças teológicas sendo, no máximo, um
católico romano reservado (sabe-se que ele se converteu ao catolicismo romano no leito de
morte).
Nessa atmosfera, a reação ao puritanismo foi popular e brutal. Em 1662, o Livro de
oração comum foi reimposto; e, agora, para acabar com a discussão de uma vez por todas, o
clero era forçado a declarar que a obra não continha nada contrário à Palavra de Deus e
que, consequentemente, eles não poderiam se desviar dela em suas igrejas. Cerca de dois
mil clérigos — um quinto deles — recusaram-se e foram removidos do ministério. Então,
para impedi-los de assumir outro ministério, o Conventicle Act [Ato do conventículo] de
1664 tornou ilegal assembleias religiosas com mais de cinco pessoas fora da Igreja da
Inglaterra. No ano seguinte, o Five Mile Act [Ato das cinco milhas] impedia esses ministros
de se distanciaram cinco milhas [7,5 km] de qualquer “cidade, vila ou burgo” onde tivessem
ministrado antes. O puritanismo estava sendo legalmente amordaçado.
Entretanto, os ministros puritanos continuavam em ação. Alguns clérigos expulsos
conseguiram ser renomeados para outros lugares. Além disso, havia lugares (por exemplo,
nas Midlands, onde hoje está Birmingham) que ficavam a mais de cinco milhas de qualquer
“cidade, vila ou burgo”, e todos eles se tornaram fortalezas não conformistas. Outros
pastores puritanos enfrentaram as consequências. Quando, por exemplo, em 1665 e 1666,
Londres sofreu um surto de praga e um incêndio global, muitos deles ficaram ilegalmente
com as congregações em sofrimento para ministrar a elas (e adverti-las do pecado do qual
a “praga das pragas e o fogo eterno resultarão”). Como resultado desse desrespeito da lei, a
perseguição tornou-se mais intensa e cerca de vinte mil puritanos foram lançados na prisão
pelos próximos vinte anos. Na Escócia, era pior: a pena de morte foi imposta para a
pregação ilegal, e a tortura era liberada como instrumento na busca por suspeitos.
Ainda assim, apesar desses florescimentos tardios na árvore do puritanismo, o
regime de Carlos II estava atacando as próprias raízes, fazendo-os murchar. Não foi apenas
a mordaça dos pregadores; logo surgiu a lei de que os cargos públicos só poderiam ser
ocupados por anglicanos e que apenas os anglicanos podiam ir para a universidade. A
questão não era apenas que os não conformistas se tornaram cidadãos de segunda classe,
incapazes de progresso e influência sociais; o problema real para eles era que Cambridge e
Oxford haviam sido seminários e centros de treinamento puritanos. Com grande parte da
próxima geração impedida de qualquer educação do tipo, os homens de calibre teológico
morreram, deixando o puritanismo como um movimento cada vez mais superficial, que não
seria levado a sério de novo. O puritanismo, afinal, era um movimento preocupado com
palavras (e a Palavra de Deus) e, assim, quando os puritanos não eram mais educados, o
músculo do movimento se estagnou. Pior: sem laços fortes com ancoradouros bíblicos, com
o passar dos anos, muitos deles encontraram-se vagando à deriva, longe das crenças
básicas cristãs como a Trindade.
Pelo fato da lentidão de sua morte, é difícil dizer com certeza quando a era puritana
terminou. Não houve um cataclismo final, uma última resistência. Ainda havia evangélicos
na Igreja da Inglaterra, mas tantos deles foram expulsos, silenciados e suprimidos que o
antigo movimento viu-se cada vez mais disperso e sem liderança, até que por volta de 1700
ninguém mais falava muito dos “puritanos“. Até lá, as pessoas falariam com desdém dos
“dissidentes”, um grupo rejeitado, impotente e de segunda classe e ignorado com facilidade.
Mas, em outro sentido, se o puritanismo era “a reforma da Reforma”, perguntar quando a
era puritana terminou significa perguntar quando (ou se) a Reforma terminou. Essa é a
questão que trataremos a seguir.
De volta ao futuro
Quanto mais perto se observa, mais claro se torna: a Reforma não foi, em sentido primário,
um movimento negativo, voltado ao afastamento de Roma; ela consistiu em um movimento
positivo, voltado ao Evangelho. A pura reação negativa era a marca de certos radicais, mas
não da Reforma principal. Infelizmente, para nós hoje, obcecados com inovações, isso
significa que não podemos alistar a Reforma apenas na causa do “progresso”. Os
reformadores não estavam atrás de progresso, mas de regresso: eles nunca se sentiram
dominados pelas novidades como ficamos, nem impacientes com algo antigo por sua
antiguidade; ao contrário, a intenção deles era desenterrar o cristianismo antigo e
originário, o cristianismo soterrado sob séculos de tradições humanas.
Assim, precisamente por isso a validade da Reforma se mantém para hoje. Se a
Reforma tivesse sido apenas uma reação à situação histórica de cinco séculos atrás, se
significasse apenas um pouco do “progresso” do século XVI, esperaríamos que ela tivesse
chegado ao fim. Mas, como um projeto para se aproximar cada vez mais do evangelho, ela
não pode acabar.
A situação hoje dá testemunho, mais que nunca, da necessidade da Reforma. A
doutrina da justificação é rejeitada como insignificante, errônea ou perturbadora. Algumas
novas perspectivas sobre o que o apóstolo Paulo quis dizer com a justificação, em especial
quando tendem a remover a ênfase da necessidade de conversão pessoal, têm confundido
as pessoas, deixando o artigo que Lutero afirmou que não pode ser abandonado ou
comprometido justamente assim: abandonado ou comprometido. E não são só as novas
leituras da Bíblia. A cultura do pensamento positivo e da autoestima tem varrido a
necessidade de o pecador ser justificado. Em suma, o problema de Lutero ser torturado
pela culpa diante do Juiz divino é rejeitado como um problema do século XVI, e sua solução,
portanto, mostra-se desnecessária para nós hoje.
Mas, na verdade, é precisamente nesse contexto que a solução de Lutero surge como
notícias muito alegres e relevantes. Pois, tendo abandonado a ideia de que podemos ser
culpados diante de Deus e, assim, precisar de sua justificação, nossa cultura sucumbe ao
velho problema da culpa de formas mais sutis — e para as quais ela não tem respostas.
Hoje, somos todos bombardeados com a mensagem de que seremos mais amados quando
nos tornarmos mais atraentes. Isso pode não ter mais relação com Deus, mas ainda
representa uma religião de obras, profundamente encravada no ser. Para isso, a Reforma
tem as boas novas mais radiantes. Como Lutero expressou: “Os pecadores são atraentes por
serem amados; eles não são amados por serem atraentes”. Só essa mensagem do amor de
Cristo, contrário ao senso comum, apresenta a solução séria.
A Reforma consiste em uma mensagem profundamente relevante, bela e doce, que
oferece alegria e desafia a morte: não surpreende que Richard Sibbes tenha chamado a
Reforma de “a chama que o mundo inteiro jamais será capaz de extinguir”.
Linha do tempo da Reforma
1304 Nascimento de Petrarca, “o pai do humanismo”.
1520 Lutero publica seus três tratados da Reforma e queima a bula papal.
1521 Dieta de Worms. Lutero é levado sob custódia ao castelo de Wartburg, onde traduz o
Novo Testamento para o alemão. Henrique VIII publica sua Defesa dos sete sacramentos
contra Lutero e é premiado com o título “defensor da fé”.
1528 Execução de Patrick Hamilton na fogueira (em St. Andrews) por heresia.
1529 Lutero e Zuínglio não conseguem concordar sobre a ceia do Senhor no Colóquio de
Marburgo.
1531 Morte de Zuínglio na batalha de Kappel. Execução de Thomas Bilney por heresia em
Norwich.
1534 Henrique VIII declarado “chefe supremo da Igreja da Inglaterra”. Primeira edição
completa da tradução da Bíblia por Lutero.
1536 Calvino chega a Genebra. Publicação da primeira edição de suas Institutas. Morte de
Erasmo. Execução de William Tyndale. Começa a dissolução dos monastérios ingleses.
1559 Calvino produz sua edição final e definitiva das Institutas. Retorno de John Knox à
Escócia.
1572 Milhares de protestantes franceses são mortos nos massacres do dia de são
Bartolomeu.
1633 William Laud torna-se arcebispo da Cantuária. Nova edição do Book of Sports.
1662 Um quinto do clero da Inglaterra é expulso pela recusa à adesão ao Livro de oração
comum. Começa a perseguição aos não conformistas.
Leituras adicionais
Eu marquei as “leituras obrigatórias” com duas estrelas.
O contexto da Reforma
Para ter uma boa ideia de como era viver na Europa católica romana medieval, tente
Princes, Pastors and People: The Church and Religion in England, 1500–1700 [Príncipes,
pastores e o povo: a igreja e a religião na Inglaterra, 1500-1700], de S. Doran e C. Durston
(Routledge, 1991). Ou, para um pouco mais de profundidade, Religion and Devotion in
Europe c.1215-c.1515 [Religião e devoção na Europa c.1215-c.1515] de R.N. Swanson
(Cambridge University Press, 1995).
Mas, para penetrar na mente medieval desfrute do fascinante The Discarded Image: An
Introduction to Medieval and Renaissance Literature [A imagem descartada: introdução à
literatura medieval e renascentista] (Cambridge University Press, 1994) de C. S. Lewis.
Martinho Lutero
** Todo cristão deveria ler a clássica biografia de Lutero por Roland Bainton, Here I Stand:
A Life of Martin Luther [Aqui permaneço: A vida de Martinho Lutero] (Abingdon, 1950). Um
exuberante e viciante livro de cabeceira.
** E por que não tentar ler algo do próprio Lutero? Você pode ler seu excelente Da
liberdade cristã. A versão inglesa é gratuita em
<http://www.theologynetwork.org/historical-theology/starting-out/the-freedom-of-the-
christian.htm>. Ou, se quiser um pouco mais, Timothy Lull reuniu uma excelente pequena
coletânea das obras mais importantes de Lutero em seu Martin Luther’s Basic Theological
Writings [Escritos teológicos básicos de Martinho Lutero] (Fortress, 1989).
A Reforma na Grã-Bretanha
O livro que ajudou muitos a ver o que motivava os reformadores ingleses foi o clássico Five
English Reformers [Cinco reformadores ingleses] do bispo John Charles Ryle (Banner of
Truth, 1960). Excelente!
Para ver o coração de um reformador inglês, dê uma olhada nas orações diárias de John
Bradford, online em <http://www.theologynetwork.org/historical-theology/starting-
out/dailymeditations-and-prayers.htm>.
Uma pequena e útil introdução é o já mencionado Princes, Pastors and People.
A narrativa clássica da Reforma na Inglaterra é The English Reformation [A Reforma
inglesa] de A. G. Dickens (2. ed., Pennsylvania State University Press, 1989). Sua abordagem
está desatualizada hoje, mas ele ainda serve para ter uma boa ideia da história em geral.
Para obter um panorama da Reforma enquanto ela varria a Europa, tente o Reformation:
Europe’s House Divided 1490-1700 [Reforma: a casa dividida da Europa] (Penguin, 2003) de
Diarmaid MacCulloch. Ou para uma leitura com menos opiniões, veja The European
Reformation [A Reforma europeia] de Euan Cameron (Clarendon, 1991).
Os puritanos
**O primeiro livro deve ser O caniço ferido de Richard Sibbes. Prepare o lenço! Você pode
encontrá-lo online em português em <http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf>.
** Para um delicioso menu do puritanismo, veja K. M. Kapic e R. C. Glason, The Devoted Life:
:
** Outro jeito excelente de beneficiar-se da sabedoria puritana é o livro de James I. Packer,
Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (Editora Fiel).
A Reforma acabou?
Para um excepcional e profundo exame do entendimento reformado da justificação, leia
The Doctrine of Justification by Faith [A doutrina da justificação pela fé] do grande puritano
John Owen. Disponível em <http://www.ccel.org/ccel/owen/just.i.html>. Owen exigirá um
período de mastigação, pois ele é um alimento sólido.
Embora este autor discorde de suas conclusões, Is the Reformation Over? An Evangelical
Assessment of Contemporary Roman Catholicism [A Reforma acabou? Uma avaliação
evangélica do catolicismo romano contemporâneo] (Baker and Paternoster, 2005), por
Mark Noll e Carolyn Nystrom, é útil ao esboçar o atual estado das relações protestantes-
católicos.
Para um valioso conjunto de ensaios analisando as diferenças que permanecem entre
protestantismo e catolicismo romano, veja John Armstrong (ed.), Roman Catholicism:
Evangelical Protestants Analyze what Divides and Unites Us [Catolicismo romano:
protestantes evangélicos analisam o que nos une e divide] (Moody, 1994). Mark Husbands
e Daniel J. Treier também reuniram uma útil coletânea de artigos examinando questões
sobre a doutrina da justificação em Justification: What’s at Stake in the Current Debates
[Justificação: o que está em jogo nos debates atuais] (IVP and Apollos, 2004).
[1] Oswald Bayer, “Justification: Basis and Boundary of Theology” in: Joseph A. Burgess & Marc Kolden (orgs.), By
Faith Alone: Essays in Honor of Gerhard O. Forde. Eerdmans, 2004, p. 78.
[2] J. I. Packer & O. R. Johnston, “Historical and Theological Introduction” in: Martin Luther on The Bondage of the
Will. James Clarke & Co., 1957, p. 43-4.
[3] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 33.
[4] Os anabatistas não devem ser confundidos com os batistas. Apesar de semelhanças e pontos em comum, os
batistas não se originaram dos anabatistas; sua história é diferente e tem início um século mais tarde, na Inglaterra.
[5] Os reformadores convencionais são geralmente chamados de reformadores “magisteriais” por causa de sua
cooperação com os magistrados seculares.
[6] O teólogo chamava-se Pierre Caroli (1480-1545?). Doutor em teologia pela Sorbonne, passou por experiências
comuns a todos os que se tornavam protestantes. Ele se desentendeu com Calvino e o acusou de arianismo em
1536. Calvino refutou a acusação com a publicação de Confessio de Trinitate propter calumnias P. Caroli (1537).
[N. do R.]
[7] Quase uma década depois, em 1545, Caroli reapresentou a acusação contra Calvino e também contra Farel de
arianismo e sabelianismo ao publicar Refutatio blasphemiae Farellistarum in sacrosanctam Trinitatem. Calvino a
refutou com Pro G. Farello et collegis eius adversus Petri Caroli theologastri calumnias defensio. [N. do R.]
[8] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 153.
[9] Edmund Morgan, The Puritan Family: Religion & Domestic Relations in 17th Century New England. Harper
Perennial, 1966, p. 16.
[10] Esse tipo de trocadilho era muito comum na Inglaterra de Isabel. Mar, em inglês, significa “estragar,
desfigurar”, e prelate significa “prelado” — um título eclesiástico honorífico. [N. do T.]
[11] Prato tradicional da Escócia, feito com estômago de carneiro recheado com vísceras de carneiro, flocos de
aveia e temperos. [N. do R.]
[12] Inn, no presente contexto, refere-se a um prédio para reuniões estudantis, principalmente de alunos de
direito, em Londres, termo que caiu em desuso no inglês moderno. [N. do E.]
[13] Disponível gratuitamente com o título O caniço ferido em http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf [N. do T.]
[14] M. A. Noll & Carolyn Nystrom, Is the Reformation Over? An Evangelical Assessment of Contemporary Roman
Catholicism. Baker and Paternoster, 2005, p. 12-3, 23.
[15] Noll & Nystrom, p. 232.
[16] Ibid.