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Fundação Universidade

Federal de Rondônia

PEDAGOGIA
Licenciatura em Pedagogia

Antropologia II

DIRED Diretoria de Educação


a Distância UNIR Virtual
Educação à Distância
Fundação Universidade
Federal de Rondônia

TOMBO I
Unidades I e II
Páginas 07 a 76

TOMBO II
Unidade III
Páginas 77 a 120

DIRED Diretoria de Educação


a Distância UNIR Virtual
Educação à Distância
1

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE


RONDÔNIA
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E NOVAS
TECNOLOGIAS
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL

CURSO: LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

MÓDULO: III

DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA II

PROFS. DRS. ARI MIGUEL TEIXEIRA OTT


ARNEIDE BANDEIRA CEMIN
ESTEVÃO FERNANDES

Rondônia - 2009
2

APRESENTAÇÃO DOS AUTORES


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AUTORES.

Eu sou a professora que aparece aí na foto. Meu nome é Arneide


Bandeira Cemin, nascida Carvalho. Mudei para Cemin por causa de um
casamento significativo. Sou mulher, tive filhos e tenho netos, mas não gosto
de ser identificada por esse tipo de realização. Gosto mesmo de ser professora
e de “criar problemas para pensar”; ou seja, eu gosto de fazer pesquisa. Nesta
foto eu estou escrevendo o meu endereço para um jovem e querido colega, em
um evento cientifico: O “XV Ciclo de Estudos do Imaginário, cujo tema foi
Envolvimento/Desenvolvimento”, ocorrido em Recife, em outubro de 2008. A
vida que eu amo é o mundo dos livros, das ideias, das realizações humanas:
cidades, catedrais, monumentos, tecidos, jóias, palácios, roças, casebres.
Adoro a natureza. Amo as florestas, o céu, os rios, os pássaros e os animais
em estado selvagem. Já tive muitos animais domésticos e selvagens.
Atualmente convivo com muitos animais em estado selvagem e só tenho um
animal doméstico: uma cadela Fila, a Duquesa. Isso porque ela matou a minha
última gata, já antiga e depois disso passou a matar todos os gatos que eu
tentei criar: o último deles foi o “Dom Quixote De La Mancha”. Eu e a Duquesa
temos muita intimidade. No meu último aniversário, 16 de abril, ela me viu
dançar sozinha e feliz e veio dançar comigo, era 2:30 da manhã e o único
convidado, meu amigo, professor Edinaldo Bezerra de Freitas, tinha ido
embora da nossa festa improvisada em minha casa. Eu não acreditei quando
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ela me acompanhou na dança, mas era verdade. Parecia que ela estava
tomada por um espírito humano.
Esse texto de antropologia que eu e o Ari escrevemos para esse curso à
distância trata dessas coisas todas, as minúcias do cotidiano, nas inumeráveis
e sensíveis elaborações do mundo humano com os seus dramas de verdades
e incertezas. A antropologia, enquanto ciência compreensiva do humano,
oferece um modo de interpretação da condição humana porque tem uma visão
ampliada, multifacetada dessa condição. Suas teorias e os seus métodos, dos
quais tratamos os mais importantes: evolucionismo, funcionalismo e
estruturalismo; permitem, por comparação, ver simultaneamente o que é
comum e genérico às culturas humanas e o que é particular a cada povo,
tradição, sociedade e civilização.
Esta disciplina de Antropologia II foi escrita em parceria. O trabalho foi
dividido em três unidades: o professor Ari Miguel Teixeira Ott, escreveu a
primeira, o professor Estevão Fernandes a segunda e eu a terceira. A parceria
decorre de sermos antropólogos e professores do Departamento de Ciências
Sociais da UNIR. Recém graduada, eu fui bolsista como auxiliar de pesquisa
em um projeto sobre a colonização agrícola em Rondônia, a convite de dois
professores da UNIR na época: um economista e um sociólogo. Isso me
oportunizou fazer mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em
Sociologia, orientada por José Vicente Tavares dos Santos. O título da minha
dissertação de mestrado é: “Colonização e Natureza: análise da relação social
do homem com a natureza na colonização agrícola em Rondônia”. Fiz
doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em Antropologia Social, com
um estudo sobre religiosidade Amazônica, cujo título é “Ordem, xamanismo e
dádiva: o poder do Santo Daime”, sob a orientação da professora Liana Maria
Sálvia Trindade. Nos últimos anos eu faço pesquisa e escrevo sobre a
violência nas relações sociais de gênero, com ênfase na relação
homem/mulher. Tenho parceria de pesquisa com o Ari Ott, quanto à violência
que afeta as populações indígenas.
Nós encaramos a escrita deste curso como um desafio profissional.
Aproveitamos a nossa capacidade de nos relacionarmos “à distância” com boa
qualidade comunicativa para como leitores e escritores, sermos desafiados,
inquiridos, instigados a ir adiante. As novas tecnologias nos permitem ir além
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do “espaço e do tempo”, criação de novas temporalidades, novas


espacialidades. Estamos apenas começando a criar esses novos dispositivos
de conhecimento. É tipo de jornada para a vida toda. A disposição em criar
habilidades para a aprendizagem é o que nos especifica enquanto espécie.
Eu encontrei na vida acadêmica um modo de viver a vida em liberdade e
criatividade. Tive a sorte de ter sido educada para ser “livre pensadora” e
experimentalista, “acima do bem e do mal”; bem no modo existencialista. Ou
seja, com muita responsabilidade sobre as minhas escolhas. Liberdade
condicionada (como toda liberdade) a escolher o saber. O meu objetivo é que
esta apresentação seja um convite para o gosto pelas humanidades: a
antropologia é uma área interdisciplinar: vê o fenômeno humano em pelo
menos três perspectivas simultâneas: biológica, sociológica e psicológica.
Desejo bom proveito!

A autora

Ari Miguel Teixeira Ott.


A Arneide tem toda razão. Desejo que vocês todos façam bom proveito
deste material que preparamos a seis mãos. Nem sempre é fácil três pessoas
trabalharem na produção de um texto. Mas, no nosso caso, como fazemos
muitos outros trabalhos de pesquisa em conjunto, a gente toca de ouvido.
Eu trabalho na UNIR há 25 anos. Já dei aula de antropologia para os
mais diferentes cursos: Geografia, Enfermagem, História, Medicina, Ciências
Sociais, Psicologia. Só por esta relação você percebe que a antropologia é esta
ciência interdisciplinar que dialoga com muitos campos diferentes.
A minha graduação foi em medicina, na Universidade Federal da Bahia e
trabalhei como psiquiatra, antes de me dedicar ao ensino e a pesquisa. Depois
fiz mestrado na UnB, a Universidade de Brasília, e minha dissertação foi sobre
os curandeiros do sertão de Sergipe. Depois me envolvi com administração
universitária e trabalhei como Vice-Reitor da UNIR no início dos anos noventa.
Foram tempos de muita luta para ajudar a construir uma Universidade
que respeite o próprio nome. O maior patrimônio de uma instituição é o seu
nome, assim como também o é, o nome das pessoas.
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Depois fui fazer doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina –


UFSC, na área de Ciências Humanas, com concentração em sociedade e meio
ambiente. Escrevi uma tese sobre o PLANAFLORO em Rondônia, um projeto
de caráter ambiental que pretendia corrigir os erros do POLONOROESTE,
financiado pelo Banco Mundial e que possibilitou asfaltar a rodovia BR 364 e
assentou os milhares de migrantes. Ou seja, até hoje estamos tentando corrigir
os exageros do desenvolvimento a qualquer custo das décadas de setenta e
oitenta e que provocou um enorme impacto ambiental.
Nos últimos anos tenho trabalhado com saúde indígena. É muito
precária a situação dos povos indígenas em Rondônia, com órgãos
governamentais que não cumprem sua missão. Só não é pior por conta da
resistência destes povos. Afinal, são cinco séculos resistindo bravamente a
todo tipo de extermínio.
Nesta Antropologia II, estaremos mais focados em interpretar melhor a
sociedade em que vivemos, com nossas unidades e diversidades. Claro que
nosso sonho é que vocês se encantem, tanto quanto nós somos encantados
com esta disciplina que busca entender o mais fugidio dos “objetos”: o ser
humano e suas crenças e práticas.

O autor
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APRESENTAÇÃO

Unidade I

O que faz o Brasil, Brasil (e os brasileiros)

É claro que nós brasileiros compartilhamos um conjunto grande de


características com outras sociedades. Mas também é claro, se pensamos
mais cuidadosamente sobre nós mesmos, que temos características próprias,
muito nossas, que nos distinguem de outros povos, de outras sociedades. Há
duas coisas, conta a piada, que somente os brasileiros têm: saudade e
jabuticaba.
Nesta unidade estudaremos o que faz o Brasil ser o Brasil e os
brasileiros se sentirem brasileiros. Porque somos diferentes dos outros povos e
diferentes entre nós mesmos, embora ao mesmo tempo, pelo menos em
determinadas situações como na Copa do Mundo de Futebol, nos sentimos
pertencendo a um mesmo povo e a uma mesma pátria.
As ciências sociais de modo geral, particularmente a sociologia e a
antropologia, tentam explicar a sociedade na qual vivemos. Ou, dito de outra
maneira, tentam compreender porque somos o que somos. Na vida cotidiana
apenas vivemos as nossas vidas, sem qualquer preocupação em explicar
nossos comportamentos. Mas, como vimos na Antropologia I, os seres
humanos são primatas muito curiosos que não se contentam apenas em fazer
as coisas. Este é o trabalho dos cientistas sociais: observar o que as pessoas
estão fazendo e buscar explicações sobre o que elas pensam que estão
fazendo.
Eles fazem isso de dois modos básicos: ou tomando pequenos grupos
dentro da sociedade mais ampla e analisando o modo como vivem, ou
tentando entender quais os constituintes básicos da sociedade mais ampla, de
toda a sociedade.
Nesta unidade vamos tentar compreender a unidade e a diversidade
brasileiras, as diferenças regionais, étnicas e raciais que contribuíram e
contribuem para fazer do Brasil, o Brasil e dos brasileiros, brasileiros.
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O ponto de partida será as diferentes representações acerca dos povos


indígenas e o ponto de chegada será a possibilidade de compreender que
somos ao mesmo tempo muito diversos, mas também constituímos uma
sociedade única.
Bons estudos e bom aproveitamento!

Cultura e sociedade no Brasil: unidade e diversidade

Na disciplina de Antropologia I foram consideradas várias definições de


cultura e estudada sua importância na constituição da sociedade. Seguramente
vocês sabem, mesmo que intuitivamente, o que é a sociedade. Mas, vejamos
definições cientificas de sociedade:

Uma ou duas definições de sociedade

Não há uma definição de sociedade que seja única e aceita de modo geral.

No sentido mais amplo pode-se dizer que sociedade refere-se à totalidade das
relações sociais entre as criaturas humanas.

No sentido mais estrito uma sociedade seria cada conjunto de seres humanos
de ambos os sexos e de todas as idades, unidos em um grupo que se
autoperpetua e possui suas próprias instituições e culturas distintas.

Observe que para se ter uma sociedade é necessária a coexistência dos dois
gêneros, para que ocorra a reprodução física, e de todas as idades, para que
ocorra a reprodução social.

Além disso, deve haver instituições próprias àquele agrupamento humano: os


modos como se julga e se castiga pessoas desviantes do que se considera
norma aceitável, por exemplo. Deve haver também uma cultura distinta para
aquele grupo: a definição do que se pode e não se pode comer, por exemplo.

Por fim, ressalte-se que sociedade é, essencialmente, um conceito para


designar uma suposta realidade, útil para as pesquisas sociológicas. Na vida
cotidiana nós vivemos imersos em pequenos grupos, como a família, a
vizinhança, o grupo da igreja, o time de futebol, os colegas de trabalho ou de
estudo.
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Para uma sociedade grande e complexa como a brasileira podemos


apontar a existência de instituições sociais únicas, como o sistema judicial, ou
a língua portuguesa, falada em todo território nacional.
Podemos falar de uma unidade social característica que permite que um
rondoniense viaje para o Paraná e se sinta em casa, afirmando a existência de
uma sociedade brasileira.
Assim como podemos apontar a extrema diversidade existente no Brasil.
Em Rondônia, para citar apenas um exemplo, podemos viajar alguns
quilômetros e visitar uma aldeia indígena.
As pessoas falarão outro idioma que não o português (embora os mais
jovens também falem português), poderão estar empenhadas em atividades
que são incompreensíveis aos meus olhos, comendo alimentos que podem
parecer estranhos ao meu gosto. Mas, é bom lembrar, entre as sociedades
indígenas não haverá unidade, mas ampla diversidade, pois elas também
divergem na língua e nos comportamentos.
Em resumo, a sociedade brasileira se constitui na unidade e na
diversidade. Vamos tentar entender como chegamos a este ponto.

Os primeiros habitantes do Brasil

Observe atentamente o mapa a seguir.


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Podemos chegar a algumas conclusões. A primeira delas é que o


homem americano não se originou na América, não é autóctone, mas chegou a
este continente através de migrações.
O homem moderno, o Homo sapiens, tal qual eu e você, originou-se no
continente africano e de lá partiu para colonizar o mundo. Depois de ocupar a
Europa e a Ásia pode chegar ao continente americano pelo Estreito de Bering
há cerca de 12 mil anos. Esta ponte de gelo e rocha entre a Sibéria e o Alasca
se formou devido a glaciação que congelou gigantescas porções do mar,
permitindo a longa caminhada para o novo continente.
Ao mesmo tempo, depois de ocupar a Austrália e as ilhas da Oceania
pode ter chegado em levas sucessivas à costa oeste da América do Sul. Não
há concordância entre os pesquisadores sobre as datas, mas se pode afirmar
que há cerca de 10.000 anos atrás o homem ocupava as Américas desde o
Alasca até a Patagônia, no extremo da América do Sul.
Coube a Peter Wilhelm Lund (1801-1880), naturalista dinamarquês,
descobrir os primeiros fósseis humanos no Brasil. Entre 1835 e 1845,
pesquisando em grutas do município mineiro de Lagoa Santa, encontrou
esqueletos que foram datados em cerca de 2 mil anos e ficaram conhecidos
como fósseis do Homem de Lagoa Santa. Todos estes achados foram
enviados para museus da Dinamarca.
Em 1975, na mesma região, foram desenterrados o crânio e outros
ossos de uma mulher que recebeu o nome de Luzia. Trata-se do mais antigo
fóssil humano do continente, com 11.500 anos.
Outros sítios arqueológicos, de enorme riqueza, estão situados no
Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979 e tombado em 1991
pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade. O parque fica no
Piauí, no município de São Raimundo Nonato.
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O fóssil e a reconstituição arqueológica de Luzia, a mais antiga ancestral brasileira.

SABER MAIS:

Luzia era uma mulher baixa, de apenas 1,50 metro de altura. Comparada aos seres
humanos atuais, tinha uma compleição física relativamente modesta para seus 20 e
poucos anos de idade. Sem residência fixa, perambulava pela região onde hoje está o
Aeroporto Internacional de Confins, nos arredores de Belo Horizonte, acompanhada
de uma dúzia de parentes.
Não praticava agricultura e vivia do que a natureza agreste da região lhe oferecia:
coquinhos de palmeira, tubérculos e folhagens. Em ocasiões especiais, dividia com
seus companheiros um pedaço de carne de algum animal que conseguiam caçar.
Eram tempos difíceis aqueles e Luzia morreu jovem.

Walter Neves, o arqueólogo que a descobriu e estudou, deu a ela o nome de Luzia em
homenagem a Lucy, célebre fóssil de Australopithecus afarensis datado de 3,5
milhões de anos achado na Etiópia em 1974 por Donald Johnson.

Conta-se que no momento da descoberta o rádio do acampamento tocava a música


“Lucy in the Sky with Diamonds”. título de uma canção gravada pelos Beatles em
1967, que faz parte do oitavo álbum da banda, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band.

Composta por John Lennon a canção gerou controvérsia por seu título, que foi
interpretado como uma possível alusão ao LSD (dietilamida do ácido lisérgico, que é
uma das mais potentes substâncias alucinógenas conhecidas). Lennon alegou que a
inspiração do título veio de um desenho de seu filho, Julian. No desenho, uma colega
de Julian chamada Lucy, passeava pelo céu com diamantes.
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A chegada dos europeus ao Brasil

Quando os portugueses desembarcaram nas praias de Monte


Pascoal em abril de 1500, atualmente município de Porto Seguro na Bahia,
encontraram sociedades indígenas que estavam habitando as costas brasileira
há pelo menos 8.000 anos.
O cronista da viagem, Pero Vaz de Caminha, enviou uma carta ao Rei D.
Manuel relatando os acontecimentos da viagem e do encontro com a natureza
e as pessoas. Infelizmente pouco lida, a carta representa a primeira visão de
um europeu sobre as terras e os povos do novo mundo, inaugurando um ciclo
de representações que vai oscilar entre a chegada ao paraíso e a descida ao
inferno.

Trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha

Sobre o aspecto físico dos índios e suas indumentárias:


Dos que ali andavam, muitos - quase a maior parte - traziam aqueles
bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços
furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de
borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os
dois nos cabos. E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade
deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros
quartejados d'escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem
novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas
vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as
nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. Outros traziam carapuças de
penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas
moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem
feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de
nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como
ela.

Sobre o modo de vida dos índios:


Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou
galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem.
E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e
frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e
tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
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E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra
coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam
aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que
nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui
mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e
convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe
logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos
de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje
também comungaram.

Sobre a nova terra:

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de
metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares
frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo
d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa
das águas que tem!

Sobre o começo do nepotismo na Ilha de Vera Cruz, futuro Brasil:

E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra
qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito
bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de
São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita
mercê.
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Sobre a primeira missa:


Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e
sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos
batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele
ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros
fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada
com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram,
a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e
devoção.

Esta visão generosa, contudo, logo seria substituída por relatos e


depoimentos de viajantes que enxergavam apenas paganismo e selvageria. Foi
especialmente relevante a descoberta da prática do canibalismo entre os índios
da costa brasileira para se desenhar um quadro de horror.
No primeiro livro de história do Brasil o cronista assim os descreveu:
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[...] Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis


não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos
animais sem ordem nem concerto de homens, [...] Todos
comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de
quantas pode haver: não de seus amigos com quem eles têm
paz [...]. Têm esta qualidade estes índios que de qualquer
coisa que comam por pequena que seja hão de convidar com
ela quantos estiverem presentes, só esta proximidade se acha
entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro
nenhum enjeitam por peçonhento que seja, só aranha. [...]”
(GANDAVO, 1995).

É deste mesmo autor a observação de que na língua tupi não havia as


letras F, L e R e disso concluiu que era "coisa digna de espanto porque assim
não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem
terem além disso conta, nem peso nem medida".
Outro viajante cuja obra vai marcar profundamente o imaginário europeu
sobre o Brasil foi Hans Staden (1525 – 1579). Sua história sobre o naufrágio,
captura pelos Tupinambá, permanente ameaça de ser devorado e finalmente a
libertação depois de mais de nove meses como prisioneiro, tornou-se uma das
primeiras descrições para o grande público acerca dos costumes dos indígenas
brasileiros. O sucesso do seu livro foi maior ainda porque nele constavam
gravuras sobre sua vida entre os Tupinambá, com cenas explícitas de
canibalismo, ou antropofagia.

O viajante alemão Hans Staden,


vestido a rigor e...

...dançando nu entre os Tupinambá


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Cena espantosa com


Hans Staden assistindo
o devoramento de um
prisioneiro

Para conhecer mais

O livro de Hans Staden está editado no Brasil e é uma leitura


emocionante:

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 218 p. il.

Além disso, pode-se assistir ao filme baseado em sua obra. Trata-se de um dos
poucos filmes na história do cinema em que a língua falada pelos atores é, de
forma predominante, o tupi. O trailer pode ser visto em www.youtube.com

A morte e o devoramento de um prisioneiro obedecia mais a um ritual social do


que a uma exigência dietética. O prisioneiro e seu algoz envolviam-se em uma
dança da morte, com insultos e imprecações mútuas, um acusando o outro de
covardia e louvando a própria coragem. A disputa era também temporal, com o
prisioneiro ameaçando seu matador de morte futura por seus parentes. Quanto
maior a firmeza e desdém do prisioneiro em relação as pancadas de tacape
que levava na cabeça, mais determinado e agressivo devia ser seu adversário.
A altivez e a coragem para matar e para morrer eram os ideais perseguidos
pelo prisioneiro e pelo matador.

Ao que parece, uma das razões para Hans Staden se manter vivo por mais de
nove meses foi o desconhecimento das regras sociais. Cada vez que foi levado
ao centro da aldeia para o ritual de morte comportou-se covardemente,
suplicando ao seu matador perdão e caridade. Pior ainda: apavorado pela
proximadade do fim, não controlova os esfincteres e se sujava com as próprias
fezes e urina. Os Tupinambá, com justa razão, consideravam um sujeito sujo
daqueles indigno de ser devorado e mandavam ele se lavar!
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A representação dos índios somente seria modificada com o advento da


literatura romântica no Brasil. José de Alencar (1829-1877), um dos seus
expoentes, escreveu a trilogia que resgatará um índio idealizado: O Guarani
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). São todas sagas heróicas com
papel de destaque para os personagens indígenas. Em O Guarani, pela
primeira vez, se insinuará a formação de um casal constituído por um índio e
uma branca, enquanto Iracema, sempre lembrada como “a virgem dos lábios
de mel e de cabelos mais negros que a asa da graúna” será a metáfora de uma
America nascente que se entrega ao conquistador branco, dele parindo um
filho da dor, chamado Moacir.

Iracema de Antonio Parreiras


(1860-1937). Na impossibilidade
de usar uma índia como modelo,
o pintor carioca tomou uma
mulher branca. A cena retrata a
solidão de Iracema quando seu
amado Martim Soares parte para
a guerra contra seu povo.

O canibalismo, ou antropofagia, será retomado pelos intelectuais da


Semana de Arte Moderna de 1922, que significou um rompimento com as
concepções artísticas do séc. XIX, uma idealização de beleza incompatível
com a modernidade. O pintor Di Cavalcanti foi o idealizador do evento e dele
participaram outros pintores como Anita Malfatti, escritores como Oswald de
Andrade e poetas como Manuel Bandeira. Na abertura da Semana Bandeira
recitou Os sapos, poema de sua autoria que proclamava:
“Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...”. (Foi impiedosamente vaiado)

Em 1928, como desdobramento da Semana, foi lançado por Oswald de


Andrade o Movimento Antropofágico que defendia “uma atitude brasileira de
devoração ritual dos valores europeus, a fim de superar a civilização patriarcal
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e capitalista, com suas normas rígidas no plano social e os seus recalques


impostos, no plano psicológico” (Antonio Candido).

Embora publicado no 1º exemplar da Revista de Antropologia. (São


Paulo, 1º maio, 1928) o Manifesto Antropofágico, espécie de declaração de
princípios do movimento, provocativamente era datado como sendo Ano 374
da Deglutição do Bispo Sardinha. Como indicado pelo título o manifesto
proclamava a antropofagia:

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos.
De todas as religiões.
De todos os tratados de paz.
Tupy, or not tupy that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu.
Lei do homem. Lei do antropófago.

Para conhecer mais


Procure na internet e leia o Manifesto na íntegra.
Assista ao filme Macunaíma (1969), baseado na obra homônima de Mário de
Andrade. A personagem-título, um herói sem nenhum caráter (anti-herói), é um
índio que representa o povo brasileiro, mostrando a atração pela cidade grande
de São Paulo e pela máquina. A frase característica da personagem é "Ai, que
preguiça!". Como no dialeto indígena o som "aique" significa "preguiça",
Macunaíma seria duplamente preguiçoso.

Na década de 60 do século passado o Movimento Modernista


desembocará no Tropicalismo, liderado pelos músicos Caetano Veloso e
Gilberto Gil, além das participações da cantora Gal Costa e do cantor-
compositor Tom Zé, da banda Mutantes, e do maestro Rogério Duprat. A
cantora Nara Leão e os letristas José Carlos Capinan e Torquato Neto
completaram o grupo, que teve também o artista gráfico, compositor e poeta
Rogério Duarte como um de seus principais mentores intelectuais.
O Movimento Tropicalista dialogou com obras literárias como as de
Oswald de Andrade ou dos poetas concretistas, elevando algumas
composições tropicalistas ao status de poesia. Suas canções compunham um
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quadro crítico e complexo do País – uma conjunção do Brasil arcaico e suas


tradições, do Brasil moderno e sua cultura de massa e até de um Brasil
futurista, com astronautas e discos voadores.

Conclusão
A representação que a sociedade nacional construiu das sociedades
indígenas esteve relacionada (como ainda está) ao substrato histórico. Ou seja,
a cada momento corresponde uma representação que varia desde um povo
idealizado, “sem pecado abaixo da linha do equador”, que vive em um éden
imaginado pela cosmogonia cristã-ocidental; até o outro extremo, de um povo
canibal, dedicado a práticas bárbaras, condenáveis sob qualquer aspecto.
As políticas de inclusão ou exclusão destas sociedades também têm
variado, ora enfatizando a integração, ora abandonando os povos indígenas à
própria sorte. Paralelamente, os índios têm assumido o protagonismo de suas
histórias e crescido demográfico, mantendo, porém sua identidade étnica.

Agora sugerimos que você conecte a internet e clique no


link abaixo para assistir Caetano Veloso cantando Um índio, música-poema
cuja primeira estrofe profetiza: “Um índio descerá de uma estrela colorida e
brilhante. De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena o espírito dos pássaros das
fontes de água límpida”
http://www.youtube.com/watch?v=dPdfwzYuOsw
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Unidade II

Diferenças regionais

A ocupação da Amazônia

Admita-se que tenha havido uma natureza edênica amazônica. Mas esta
natureza primeva nunca se deu ao conhecimento humano. Nela, o homem era
ausência.
No princípio só havia água e céu e tudo estava escuro. Um dia Tupana
desceu do céu e já queria encostar na água quando saiu dela uma
terra pequena na qual ele pisou. Neste momento, apareceu o sol e o
calor dele rachou sua pele que começou a escorregar-lhe pelas pernas
e, quando o sol desapareceu, a pele de Tupana caiu de seu corpo e
estendeu-se por cima da água para transformar-se em terra. Mas,
ainda não havia gente naquela terra! (Mito Tikuna).

A chegada das gentes significará o desaparecimento irremediável


daquele hipotético mundo natural. No princípio e por milênios, habitada por
grupos indígenas, posteriormente e durante séculos, por grupos europeus e
seus descendentes, cada cultura específica que conheceu a Amazônia lançou
sobre ela o olhar e construiu em torno dela as categorias explicativas amplas e
particulares, totalizantes e detalhadas, próprias e miscigenadas, transmitidas
geração após geração.
Para cada sociedade que a habitou, a Amazônia foi percebida e
representada de modo próprio. Ela teve, tem e terá infinitos sentidos, sempre
em conformidade com a relação dialógica que o homem estabelecia,
estabelece e estabelecerá com a natureza.
21

A construção de sentido do ambiente amazônico, vale dizer da sua


representação, estará condicionada ao contexto histórico-cultural da sociedade
que o habita. Os grupos indígenas, desprovidos do senso de posse da
natureza, perceberão a floresta como morada, abrigo e comida, e a relação
homem/natureza será mediada pela narrativa mítica. Os europeus e seus
descendentes, que a inventam a partir do século XVI, imbuídos do sentido
mercantil-capitalista, enxergarão a mata como fonte de lucro e tentarão
entendê-la pela narrativa científica.
As tentativas científicas de entender a complexidade amazônica,
contraditoriamente, também criaram mitos, considerados válidos por algum
tempo, até que novas pesquisas, novos métodos e novas abordagens os
reformulassem. No atual estágio de conhecimento acerca da Amazônia, pode-
se constatar um significativo conjunto de mitos construído ao longo dos
séculos.

Os mitos amazônicos

 mito da homogeneidade, que representou a região como um imenso e


uniforme tapete verde atravessado por longos e tortuosos rios. Nenhuma visão
da Amazônia é mais distante da realidade. Ela abriga uma indescritível
diversidade geográfica e ecológica, refletida no clima, nas formações
geológicas, nas altitudes, nas paisagens, nos solos, na formação vegetal e na
biodiversidade. A heterogeneidade também ocorre do ponto de vista político,
social e econômico. São oito países com diferentes estilos de governo, políticas
e leis para a região, assim como ela é habitada por uma ampla variedade de
grupos humanos, que vão desde indígenas vivendo em total isolamento, até
residentes de grandes cidades;

 mito do vazio amazônico, que produziu a crença de uma região virgem,


um imenso espaço vazio, ou a última fronteira da humanidade. Por este
enfoque, a Amazônia é uma terra sem homens para onde a sociedade deve se
22

expandir, aliviando os problemas da pressão populacional nas áreas periféricas,


ignorando os direitos das populações que lá vivem;

 mito da imensa riqueza e extrema pobreza, que tomando como


referência a exuberância da vegetação tropical, estabeleceu a crença de que o
solo da Amazônia é rico. Somente depois de investidos bilhões de dólares em
projetos de assentamento agrícola é que se pôde constatar que esta riqueza
era apenas aparente, reconhecendo-se que a riqueza da região está na
biodiversidade do seu ecossistema, da sua flora, da sua fauna e do seu
germoplasma nativo. A contrapartida desta percepção foi considerar os solos
amazônicos tão pobres que tornaria impossível qualquer outra atividade que
não a preservação incólume da floresta. Esta posição extremada tampouco se
sustenta, dado que existem extensas faixas de solos aptos para a agricultura;

 mito do indígena como obstáculo ou como modelo para o


desenvolvimento, que justificou, no primeiro caso, o extermínio sistemático
destas populações, a agressão territorial e cultural ou a sua conversão ao
modelo civilizatório ocidental. No segundo caso — a louvação do modelo
indígena — desconheceu-se que aquelas culturas são formas adaptativas
próprias àquele ambiente e que sua adoção como modelo generalizado para o
desenvolvimento da Amazônia é impraticável;

 mito de pulmão do mundo, que considerava a floresta amazônica


responsável pela produção de 80% do oxigênio (O2) e fixador de dióxido de
carbono (CO2) e que sua destruição privaria o planeta dos seus pulmões. O
mito desconsiderava tanto a importância dos oceanos e das outras regiões
tropicais nesta tarefa, quanto o fato da floresta amazônica ser uma floresta
madura, mantendo um equilíbrio quase perfeito entre a produção de O2 e a
fixação de CO2. Por outro lado, a contribuição da Amazônia para o balanço
hídrico do planeta é inegável, dado que o rio carrega para o mar 176.000 m³ de
23

água por segundo, representando aproximadamente 1/6 de toda a água doce


levada para os oceanos;

 mito de solução para os problemas da periferia, que submeteu a região


a projetos de colonização governamentais visando à expansão da fronteira
agrícola, não só no Brasil como na Colômbia, Peru, Equador e Bolívia, com o
deslocamento de colonos atraídos por dois outros mitos: uma terra desabitada
e com solos férteis. A colonização tem sido acompanhada de construção de
estradas, de cidades e de hidrelétricas. O balanço geral dos últimos cinquenta
anos de colonização é negativo: os problemas da periferia não foram resolvidos
e criaram-se novos problemas na Amazônia;

 mito da Amazônia como área rural, que considera a fronteira amazônica


semelhante aos movimentos migratórios que se desenvolveram no Brasil na
primeira metade do século XX, com pioneiros ocupando terras livres com
atividades agrícolas que paulatinamente geravam crescimento da população e
da produção. Na Amazônia, a fronteira já nasceu heterogênea, constituída por
frentes de várias atividades, com povoamento rural e produção agrícola
relativamente modesta, urbana e com intenso ritmo de urbanização, com o
governo federal e as agências multilaterais assumindo o papel de planejador e
investidor;

 mito de internacionalização da Amazônia, que surgiu como corolário dos


outros mitos e da extensa agressão ambiental nos últimos quarenta anos.
Abandonado nos anos 90, pelo absurdo que representaria internacionalizar a
Amazônia como área de suprema importância ecológica e deixar outras áreas
igualmente importantes espalhadas pelo planeta com domínio nacional .

Esses diferentes mitos, utilizados em conjunto ou isoladamente, foram


disseminados e incorporados à representação popular, gerando imagens-sínteses
24

que variavam do “inferno verde” ao “paraíso perdido”. Eles foram construídos para
explicar a Amazônia e desconstruídos cada vez que a complexidade da região
mostrou-se maior que o seu poder explicativo.

Duas representações dominantes da Amazônia: o paraíso perdido e a floresta em chamas.

A ocupação de Rondônia

Os primeiros viajantes relataram o trabalho hercúleo que significava


navegar pelo trecho encachoeirado do Rio Madeira, onde contam-se 45
cachoeiras e corredeiras, que obrigavam os barcos a serem descarregados,
levados por terra para transpor estes acidentes e novamente carregados,
tornando a viagem demorada e penosa.
25

Em 1779, por exemplo, dois viajantes  Luís Fernando Machado e José


Gonçalves da Fonseca  demoraram 53 dias na travessia das cachoeiras. Era
quase impossível, portanto, transportar a borracha coletada no Vale do
Guaporé, tanto do lado brasileiro, quanto boliviano. Em 1903, quando da
assinatura do Tratado de Petrópolis entre o Brasil e a Bolívia, através do qual
foi anexado o atual Estado do Acre, entre as suas cláusulas constava a
obrigatoriedade de construção de uma estrada de ferro que possibilitasse uma
saída boliviana para o Atlântico, pela transposição das corredeiras do Rio
Madeira. Parecia ser um bom negócio, considerando que a Bolívia poderia
escoar sua produção de látex.
As tentativas anteriores de construir uma ferrovia tinham redundado em
fracasso, com a perda de muito material e maior número de trabalhadores,
mortos em conflitos com os grupos indígenas da região e por doenças que logo
assumiam o caráter epidêmico pelas condições de extrema insalubridade da
região, que facilitavam a sua proliferação.
A despeito dos fracasso anteriores em 1907 começou efetivamente a
construção da ferrovia. O empreiteiro americano Percival Farquhar comprou a
concessão para construção da estrada ligando Santo Antônio do Alto Madeira a
Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia, incluindo o arrendamento da ferrovia
por 60 anos. A construção foi uma epopéia da qual participaram trabalhadores
brasileiros e estrangeiros contratados nos portos do mundo: americanos,
turcos, alemães, chineses, barbadianos, ingleses, irlandeses, antilhanos,
italianos.
As condições de trabalho e vida dos construtores foram descritas por
Osvaldo Cruz, que esteve em Santo Antônio em 1910 e considerou a
localidade a mais insalubre de todas que tenha conhecido, afirmando não ter
encontrado qualquer pessoa que se pudesse designar como hígida.
Foi dele a sugestão, acatada pelos engenheiros, para que se
transferisse o canteiro de obras e o início da ferrovia de Santo Antônio para
uma baía localizada sete quilômetros abaixo com melhores condições de
drenagem natural das águas e, por consequência menor proliferação de
Anófeles, mosquito transmissor da malária.
26

SABER MAIS:

Acesse e leia o interessante artigo que trata das viagens de cientistas à


Amazônia no começo do século XX.

SCHWEICKARDT, J. C.; LIMA, N. T. Os cientistas brasileiros visitam a


Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-
1913). História, Ciências, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14,
suplemento, p.15-50, dez. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v14s0/02.pdf> Acesso em: 12 fev. 2009.

Nasceu, assim, aquela que seria a cidade de Porto Velho, embora a


mudança não impedisse que principalmente a malária e o beribéri dizimassem
os trabalhadores. A mortalidade foi incalculável, a tal ponto que se dizia que
cada dormente da ferrovia representava uma vida perdida.
A estrada de ferro, construída para transportar pélas, foi inviabilizada
pela competitividade internacional, pois a borracha produzida na malásia era
mais barata e de melhor qualidade. O impacto dela sobre o ambiente foi
relativamente pequeno, menos para os índios e para os quelônios da região.
Os primeiros foram dizimados por novas endemias introduzidas pelos brancos,
pelas encarniçadas, sangrentas e desiguais lutas, pela escravização e pela
desestruturação cultural. Os segundos, porque se o transporte de borracha era
insuficiente para cobrir os custos, logo descobriu-se este novo e rentável
produto: as tartarugas, tracajás e matamatás do vale do Guaporé.
Elas eram fáceis de serem apresadas quando deixavam as águas do rio
para a desova nas praias, bastando colocá-las de barriga para cima sobre a
areia; resistentes ao transporte por não exigirem qualquer cuidado,
amontoadas umas sobre as outras dentro dos vagões; de carne extremamente
saborosa e possibilitando que os melhores cozinheiros preparassem até 30
diferentes pratos, suficientes para alimentar dúzias de pessoas com uma única
tartaruga adulta.
A caça aos quelônios foi tão intensa que, tendo resistido por milhões de
anos às piranhas e tucanarés, seus predadores naturais, sucumbiram ao
homem. Em pouco mais de cinquenta anos, eles tinham quase desaparecido
do vale do Guaporé.
27

A cidade de Porto Velho e seu território receberam todos os influxos dos


diferentes ciclos de crescimento e decadência. Conheceu também certa
prosperidade do primeiro ciclo da borracha, notadamente a ligação telegráfica feita
pelo Marechal Rondon, para voltar ao marasmo quando o ciclo se esgotou.
Hospedou os “soldados da borracha” que foram enviados para os seus seringais
durante a Segunda Guerra e os acolheu quando eles foram abandonados ao final
do conflito.
Nesta época, foi emancipada politicamente, transformada em capital do
novo Território Federal do Guaporé, constituído de terras desmembradas dos
Estados do Amazonas e Mato Grosso. Na década de cinquenta teve a
denominação modificada para Território Federal de Rondônia, em homenagem a
Cândido Mariano da Silva Rondon. Finalmente, em 1981 foi alçado à categoria de
Estado.
Dois acontecimentos marcaram a vida do Território nos anos sessenta: a
descoberta das jazidas de cassiterita e a conclusão da estrada rodoviária, ligando
Cuiabá a Porto Velho. Iniciada ainda nos anos 50, durante o governo de Juscelino
Kubitschek, foi concluída em meados da década seguinte. Embora sem cobertura
asfáltica, de conservação precária e com o tráfego constantemente interrompido
durante a época de chuvas, foi ela que funcionou como rota migratória do
sul/sudeste para a região.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, foi o órgão
federal responsável pelos projetos de colonização em Rondônia. Com área de
238.512,8 km² o Estado faz parte da zona de transição entre a bacia amazônica e
o maciço central brasileiro, com florestas tropicais cobrindo a maior parte do
território, mas também com áreas de savanas arvoradas, localizadas no sul do
Estado.
O incentivo à colonização da região prendia-se, por um lado, à ideologia da
segurança nacional, de ocupação e integração de “terras novas” ao conjunto do
país, simbolizada pelo slogan integrar para não entregar. Por outro lado, prendia-se
à necessidade de alocar populações excedentes, expulsas das zonas rurais
tradicionais do sul/sudeste pela modernização do setor agrícola, voltado para
produtos exportáveis. Rondônia, neste sentido, apresentava as características
necessárias ao empreendimento:
28

 A localização da região na continuidade da direção do movimento das frentes


pioneiras do Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso);
 A existência da estrada Cuiabá-Porto Velho, ligando a Amazônia Ocidental ao
centro/sul do país, possibilitando relativa rapidez nos deslocamentos dos
migrantes;
 A categoria política/administrativa de Território Federal, admitindo plena
interferência do governo central nas determinações das políticas e projetos locais;
 A situação jurídica das terras, com uma porcentagem relativamente elevada de
terras públicas devolutas;
 A concepção de vazio demográfico, que possibilitava deslocar "homens sem
terra, para uma terra sem homens";
 A existência de terras mais férteis do que a média da região amazônica.
Na década de 70, o INCRA estabeleceu dois modelos de assentamento no
Estado: Projeto Integrado de Colonização - PIC e Projeto de Assentamento Dirigido
- PAD. A cartografia de ambos era a mesma, assumindo a forma de espinha de
peixe, pois consistia na abertura de estradas coletoras de até cem quilômetros
adentrando a floresta em linha reta, a partir das quais eram construídas novas
estradas perpendiculares e retilíneas, denominadas linhas.
Na década de 80, entretanto, o permanente e incontrolável fluxo migratório
para a região, estimulado pela própria propaganda governamental que ressuscitou
o mito do Eldorado, superou a capacidade de atendimento dos modelos, que foram
simplificados para Projetos de Assentamento - PA e Assentamentos Rápidos - AR.
Este conjunto de projetadas facilidades provocou uma onda migratória sem
precedentes para a Amazônia, transformando o perfil demográfico de Rondônia,
que passou de pouco mais de cem mil pessoas em 1970 para quase 1,5 milhão de
pessoas em 2000.
Para Rondônia, essa massiva migração afetou de modo profundo o meio
ambiente, dado que significou a transformação do modelo de base extrativista
vegetal e mineral para o modelo agro-pastoril. Se o primeiro impactava
relativamente pouco a floresta, o segundo somente poderia subsistir pela
derrubada da mata.
Os colonos que recebiam lotes estavam obrigados a derrubar a floresta para
iniciar suas lavouras e para garantir a posse da terra, conforme determinava as
normas do INCRA. No início, as derrubadas não foram extensas, limitadas que
estavam pela reduzida disponibilidade financeira dos pequenos agricultores e pelo
uso quase exclusivo da mão de obra familiar.
29

Deve ter contribuído também para a preservação da mata as


representações dos camponeses "de que a floresta precisa ser conservada porque
é necessária – como reserva de terra e de herança para a reprodução física e
social de outras gerações camponesas", conforme relatou Arneide Cemin na sua
dissertação de mestrado.
À medida que a agricultura de subsistência e de mercado foi sendo
abandonada, entretanto, fosse pela concentração de lotes, fosse pela perda de
lavouras, como ocorreu com o cacau infestado pela “vassoura de bruxa”, instalou-
se a pecuária como atividade dominante e a derrubada de florestas atingiu o seu
ápice em meados dos anos oitenta.
Da mesma forma, o novo ambiente impactou fortemente as populações
migradas para Rondônia, que eram predominantemente do sul/sudeste brasileiro,
com pouco ou nenhum conhecimento sobre o novo ambiente. Essa “ignorância
ecológica” impossibilitava o migrante de usufruir adequadamente das plantas
comestíveis e medicinais oferecidas pela floresta (com exceção do mel e da
castanha), ao mesmo tempo em que o expunha a acidentes de trabalho e
doenças.
Entre essas destacava-se a malária pelas características do seu ciclo
epidemiológico. A derrubada da mata e a presença do homem espantavam os
mamíferos existentes na área, mas não espantava as fêmeas dos anofelinos que
tinham o seu suprimento sanguíneo assegurado involuntariamente pelo ser
humano. A precariedade das habitações, que não contavam com tela de proteção
nas portas e janelas, e a exposição do homem nos horários de pico de atividade
anofélica, facilitaram sobremaneira a proliferação da malária, que assumiu caráter
epidêmico e foi causa de muitas mortes e do abandono puro e simples de muitos
lotes.
A década de 80, entretanto, não significou apenas o ponto mais alto da
destruição ambiental e da ocupação desordenada de Rondônia. Significou,
também, o fim dos ciclos e a instauração de muitas Amazônias, em torno das quais
organizam-se os mais diferentes grupos de pressão e onde havia alternância,
agora existe concomitância.
O extrativismo vegetal e mineral é praticado ao mesmo tempo que a
agricultura e pecuária extensiva, dividindo o espaço com uma crescente atividade
industrial. O velho e o novo, o tradicional e o moderno interpenetram-se,
30

complementam-se, antagonizam-se. O conhecimento científico sobre a região


convive simultaneamente com práticas predatórias e agressivas ao meio ambiente;
a agricultura da mandioca de coivara disputa espaços com o agrobusiness da soja;
os antigos fortes, agora transformados em atração turística, assistem ao
surgimento das torres de telefonia móvel.
Duas novas hidrelétricas estão sendo construídas no Rio Madeira. Depois
de toda a propaganda que se fez para convencer a população dos benefícios que
significariam a produção de energia elétrica para Rondônia, a população foi
informada que a energia gerada pelo Rio Madeira será transferida toda para o
Centro-sul do país.
Os efeitos da ocupação são visíveis sobre as floretas que outrora cobriam o
Estado. Com exceção das áreas protegidas, especialmente das terras indígenas,
praticamente toda a região foi desmatada em quase quarenta anos de ocupação,
conforme mapa a seguir.

Conclusão
O mapa acima representa bem o que significou a expansão da fronteira
agrícola para a Amazônia e particularmente para Rondônia. O planejamento
31

governamental, enfrentando um movimento migratório de massa, se mostrou


insuficiente para, ao mesmo tempo, promover a ocupação ordenada do espaço,
garantir o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida das populações e
assegurar a proteção ambiental.
Somente as áreas protegidas, com ênfase para as terras indígenas,
permanecem com a floresta preservada. A grande área verde no centro do estado,
sobrepondo terras indígenas, reservas extrativistas e florestas nacionais, concentra
os mananciais dos principais rios de Rondônia. Sua ocupação significará também o
esgotamento dos recursos hídricos.
Felizmente, a consciência ambiental e a proteção de grandes áreas são,
hoje parte da agenda de desenvolvimento do estado. A opinião pública, mais bem
informada, reconhece o perigo que o ser humano representa para as outras
espécies e a necessidade de frear a expansão do capitalismo a qualquer custo.

Entreviste seus parentes e escreva a história de migração da sua família,


antes que a memória se perca.
Escreva um texto dissertativo e compartilhe com seus colegas.
32

Subunidade III

Diferenças étnicas e raciais

O conceito de raça em Antropologia

Provavelmente nenhum outro conceito foi cercado de conflito tão amargo ou


sujeito a tamanha distorção quanto o de raça. A controvérsia popular reflete os
movimentos sociais dos últimos cem anos: do colonialismo ao nazismo, da
segregação norte-americana ao apartheid sul-africano. Ou seja, o debate em torno
do conceito de raça pode esconder uma disputa entre diferentes modos de
interpretar e tentar transformar realidades sociais.
No Brasil atual este debate retornou por conta das propostas de ações
afirmativas, que reserva vagas em empregos e universidades para pessoas pardas
e negras, historicamente discriminadas e merecedoras de reparação das elites
brancas que exploraram e expropriaram as “outras raças”.
Antes, porém, de apresentar a questão das cotas raciais, vale a pena
retornar ao século XIX e o faremos apresentando o quadro A Redenção de
Can, de Modesto Brocos y Gómez, pintada em 1895.
33

Leiam a seguir descrição sobre este quadro feita por Ricardo Ventura Santos e
Marcos Chor Maio no artigo: Qual "retrato do Brasil"? Raça, biologia,
identidades e política na era da genômica.

Quatro personagens estão representados na tela, tendo ao fundo uma parede


de barro (pau-a-pique), comum em regiões pobres do Brasil. De pé, à
esquerda, vê-se uma velha negra, que olha para o alto com os braços
parcialmente levantados, como que agradecendo aos céus por uma graça
alcançada. No outro extremo, sentado e parcialmente de costas para os
demais está um homem de seus 30-35 anos. De tez branca, sua aparência
lembra a de um migrante ibérico ou mediterrâneo. O centro do quadro é
ocupado por um par mãe-filho: a mãe (fenotipicamente mulata) lembra uma
Madona renascentista com o menino Jesus (de pele branca) em seu colo.
Brocos y Gómez pintou o quadro em 1895, menos de dez anos depois de
assinada a chamada Lei Áurea (1888), que aboliu a escravidão no Brasil. A
Redenção de Can é usualmente interpretada como expressando o ideal do
"branqueamento": a velha negra agradece por sua filha, mulata clara (portanto,
já parcialmente "branqueada"), ter se casado com um migrante branco e
gerado uma criança de tez branca
Fonte: SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. . Qual "retrato do Brasil"? Raça, biologia, identidades e
política na era da genômica, Mana, Rio de Janeiro, vol.10 n.1, 2004 Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93132004000100003&lng=en&nrm=iso&tlng=pt#nt02>. Acesso em: 12 fev. 2009.

Cerca de cinquenta anos depois de pintado o quadro a UNESCO (órgão


das nações Unidas voltado para as questões educacionais e culturais produziu
uma Declaração das Raças.

A DECLARAÇÃO DAS RAÇAS DA UNESCO (18 DE JULHO DE 1950)

1 – Os cientistas estão de acordo, de um modo geral, em reconhecer


que a humanidade é uma e que todos os homens pertencem à mesma espécie,
Homo sapiens. Além disso, admite-se comumente que todos os homens se
34

originaram, segundo todas as probabilidades, do mesmo tronco: as diferenças


existentes entre os diversos grupos humanos são devidas ao jogo de fatores
evolutivos de diferenciação, tais como a modificação na situação respectiva
das partículas que determinam a hereditariedade (gens), a mudança da
estrutura dessas mesmas partículas, a hibridação e a seleção natural. Foi
assim que se constituíram grupos mais ou menos estáveis e mais ou menos
diferenciados, que têm sido classificados de diversas maneiras, com intenções
diferentes.

2 – Do ponto de vista biológico, a espécie Homo sapiens compõe-se de


um certo número de grupos que diferem uns dos outros pela frequência de um
ou de vários gens particulares. Mas esses mesmos gens aos quais devem
imputar-se as diferenças hereditárias existentes entre os homens são sempre
em pequeno número considerando o conjunto da constituição genética do
homem e a grande quantidade de gens comuns a todos os seres humanos,
qualquer que seja o grupo a que pertencem. Resumindo, as semelhanças entre
os homens são muito maiores do que as diferenças.

3 – Uma raça, biologicamente falando, pode, pois, definir-se como um


grupo entre os que constituem a espécie Homo sapiens. Esses grupos são
suscetíveis de cruzamentos. Porém, devido às barreiras que os mantiveram
mais ou menos isolados no passado, apresentam eles certas diferenças físicas,
fruto de particularidades de sua história biológica, Representam variações
sobre o mesmo tema.

4 – Em resumo, a palavra “raça” designa um grupo ou uma população


caracterizada por certas concentrações, relativas quanto à frequência e à
distribuição, de gens ou de caracteres físicos que, no decorrer dos tempos,
aparecem, variam e muitas vezes até desaparecem sob a influência de fatores
de isolamento geográficos ou culturais. Cada grupo reflete de modo diferente
as manifestações variáveis desses caracteres em populações diferentes.
Sendo as nossas observações largamente afetadas pelos nossos preconceitos,
somos levados a interpretar arbitrária e inexatamente toda variabilidade que se
produz num grupo dado como uma diferença fundamental que o separa dos
outros de modo decisivo.

5 – São esses os fatos científicos. Infelizmente, na maioria dos casos, o


termo “raça” não se emprega no sentido aqui definido. Muita gente chama
“raça” todo grupo humano arbitrariamente designado como tal. É assim que
muitas coletividades nacionais, religiosas, geográficas ou culturais, devido á
acepção muito elástica dada à palavra, foram qualificadas como “raças”,
quando é evidente que os norte-americanos não constituem uma raça, como
também não a constituem os ingleses, os franceses ou qualquer outra nação
da mesma maneira, nem os católicos, nem os protestantes, nem os
muçulmanos, nem os judeus representam raças; não se podem definir como
grupos “raciais” os povos que falam inglês ou qualquer outra língua; os
habitantes da Islândia, da Inglaterra ou da Índia não formam uma raça; e não
se poderia admitir como membro de uma raça particular os indivíduos que
participam da cultura turca, chinesa ou qualquer outra.
35

6 – Os grupos nacionais, religiosos, geográficos, linguísticos ou culturais


não coincidem necessariamente com os grupos raciais, e os aspectos culturais
desses grupos não têm nenhuma relação genética demonstrável com os
caracteres próprios à raça. Os graves erros ocasionados pelo emprego da
palavra “raça” na linguagem corrente tornam desejável que se renuncie
completamente a esse termo quando se tratar da espécie humana e que se
adote a expressão de “grupo étnico”.

Fonte: UNESCO. Declaração das Raças. 1950. Disponível em:<


http://www.achegas.net/numero/nove/decla_racas_09.htm>. Acesso em: 12 fev. 2009.

Leiam a seguir o debate político e ideológico que está embutido na


tentativa de estabelecer o sistema de cotas raciais para as Universidades
públicas brasileira.

COTAS RACIAIS SOB AMEAÇA

Por Correio Braziliense, 24 de abril de 2009 15:37

Levantamento do Correio aponta que maioria dos senadores da CCJ é contra o


projeto que prevê reserva de vagas nas universidades para índios, negros e
pardos. Parlamentares defendem critério socioeconômico

Depois de tramitar por uma década na Câmara dos Deputados, o projeto de lei
que institui as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas corre o
risco de voltar à estaca zero. Levantamento do Correio mostra que apenas os
seis parlamentares do bloco de apoio ao governo na Comissão de Constituição
e Justiça (CCJ) do Senado, onde a matéria aguarda parecer, são favoráveis à
utilização do critério étnico para a reserva de vagas. Os demais senadores —
no total são 23 titulares, além do presidente e do vice — devem acompanhar o
voto em separado que será apresentado pelo presidente da comissão,
Demostenes Torres (DEM-GO). No relatório paralelo, ele vai retirar o ponto
mais polêmico do projeto: o critério racial. A votação na CCJ está prevista para
a próxima quarta-feira.

Desde que a proposta chegou ao Senado, depois de aprovado na Câmara, o


parlamentar expressa sua opinião contrária. Embora reconheça que índios,
pardos e negros tenham sido excluídos historicamente, Torres acredita que as
cotas raciais podem dividir a sociedade brasileira. "A característica do povo
brasileiro é a miscigenação, e uma lei que leva em conta as diferenças étnicas
é racista", costuma defender.

O voto do presidente vai bater de frente com o relatório da senadora Serys


Slhessarenko (PT-MT), que será favorável ao texto enviado pela Câmara, que
prevê tanto o recorte social como o étnico. Para ela, retirar do PLC 180/08 o
36

critério racial é descaracterizar o projeto. "Já disseram que essa lei, uma vez
aprovada, estaria legitimando o racismo, mas não consigo entender o porquê.
Ao contrário, não aprová-la é que é uma atitude racista", diz a parlamentar, que
ontem participou de um ato público em defesa do projeto.

Em seu relatório, Serys vai rejeitar o PLS 344/08, do senador Marconi Perillo
(PSDB-GO), que tramita apensado ao PLC 180/08. A proposta do parlamentar
é destinar parte das vagas nas instituições de ensino superior a alunos
egressos de escolas públicas, por um período de 12 anos. "O critério de
natureza social contém o de natureza étnica e racial, mas a recíproca não seria
verdadeira. A proposta para a implantação de reservas de vagas nos cursos de
graduação ficará mais bem assentada se a voltarmos para os estudantes que
tenham cursado os quatro últimos anos do ensino fundamental e todo o ensino
médio em escolas públicas estaduais e municipais", argumenta Perillo.

Já a senadora defende veementemente que a reserva de vagas para pardos,


índios e negros é uma forma de fazer justiça a pessoas que foram excluídas do
processo educacional. Professora durante 26 anos em Mato Grosso, ela diz
que pode contar nas mãos a quantidade de alunos negros e indígenas que teve
em sala de aula. "Já temos muitas universidades que têm o corte da escola
pública. Temos universidades que têm o corte da renda e temos universidades
com corte da questão do negro. Mas um projeto de lei que traga no seu bojo os
três cortes, isso é que vai ser a transformação para valer para pessoas que
nunca tiveram oportunidades", argumenta.

Perillo afirma, porém, que defender cotas unicamente sociais não é uma forma
de negar a injustiça histórica cometida contra parte da população. "Priorizar o
critério social não significa ignorar os 300 anos de escravidão do Brasil,
tampouco desconsiderar que, ao final do processo de abolição, não houve
qualquer mecanismo de integração do negro à sociedade", diz. Mas, para o
parlamentar, é importante usar o corte de renda para corrigir as distorções que
atingem a sociedade contemporânea.

Em seu relatório, a senadora vai usar o argumento de que pesquisas mostram


que, mesmo entre pobres, os negros são mais desfavorecidos socialmente. Já
para combater juridicamente o argumento de que as cotas ferem a autonomia
universitária, ela vai remeter a um voto do ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) Eros Grau, segundo o qual "o exercício desta autonomia não
pode, contudo, sobrepor-se ao quanto dispõem a Constituição e as leis".

Na quarta-feira, durante a reunião da CCJ, o relatório de Serys será lido,


seguido pelo voto em separado. Qualquer que seja o resultado da votação, a
matéria seguirá para as comissões de Educação e Direitos Humanos para, em
seguida, ser votada no plenário da Casa. Se sofrer qualquer modificação em
relação ao texto original, o projeto voltará à Câmara dos Deputados. A
senadora admite que a batalha é difícil, mas diz que tem expectativas de
convencer os senadores a mudarem de opinião na terça-feira, quando haverá
uma reunião, acordada entre ela e Demostenes Torres, com os demais
membros da CCJ. De acordo com a senadora, o objetivo será "afinar" a
proposta. Mas ela avisa: não abre mão das cotas raciais. "Do meu ponto de
37

vista, nesse caso, não tem meio-termo. Ou se é a favor ou contra", diz.

Paloma Oliveto – Correio Braziliense, 24/04

Parando para pensar (e agir)


A Senadora Serys produz uma frase de efeito ao afirmar: "Do meu ponto
de vista, nesse caso, não tem meio-termo. Ou se é a favor ou contra".
E você, depois de ler o material, pesquise na internet sobre as cotas
raciais?
Você sabe qual a posição dos parlamentares de Rondônia sobre esta
questão?

Que tal mandar um e-mail para os oito deputados federais


e três senadores perguntando o que eles pensam a respeito?

O conceito de etnia em Antropologia

O termo etnia é geralmente empregado para designar um grupo social


que se diferencia de outros grupos por sua especificidade cultural. É, portanto,
um conceito intimamente relacionado ao de grupo étnico (podendo este ser
tomado como sinônimo daquele) e de cultura.
Outro conceito também utilizado pelos antropólogos e que se relaciona
com etnia é etnicidade, uma tradução livre do termo inglês etnicity, que
significa a condição de pertencer a um grupo étnico.
Um exemplo pode ajudar a compreender melhor a operacionalização
destes conceitos. Nós, brasileiros, constituímos um único grupo étnico, assim
como os argentinos constituem um só grupo étnico. É claro que nos diferentes
estados do Brasil, assim como nas diferentes províncias argentinas, existem
diferenças no que se refere a preferência alimentar, tipos de vestimentas,
38

comportamento mais ou menos cerimonioso, sotaque ao falar, maneiras de


cumprimentar, entre muitas outras.
Estas diferenças são apenas diferenças nacionais, não se constituindo
rondonienses e paranaenses, gaúchos e baianos em grupos étnicos distintos.
Porém, imagine que um grupo de brasileiros de diferentes estados viaje para a
Inglaterra e se hospede em uma pensão onde também se hospeda um grupo
de argentinos de diferentes províncias.
Nesta situação de grupos culturais distintos que operam em um contexto
social comum tanto brasileiros, quanto argentinos, vão acionar a etnicidade e
reafirmar o pertencimento a um grupo étnico. É provável que se comece uma
discussão interminável sobre qual dos dois países tem o melhor futebol, mas
esta rivalidade esportiva estará apenas escondendo rivalidades muito maiores.
É também importante considerar que as teorias sobre assimilação
supunham o desaparecimento dos grupos étnicos mais vulneráveis
tecnologicamente e mais frágeis demograficamente. Os grupos maiores
envolventes assimilariam os menores, provocando o desaparecimento de
diferentes etnias.
Esta foi, aliás, a concepção predominante nas políticas indigenistas
desenvolvidas pelo governo brasileiro no século passado. Imaginava-se que os
grupos étnicos indígenas estavam fadados ou ao desaparecimento, ou a
assimilação pela sociedade nacional majoritária.
O que ocorreu, felizmente, foi o oposto do que se pensava: estes grupos
persistiram apesar das pressões. Eles tiveram seus territórios demarcados e
por conta do seu estilo de vida não predatório assumem hoje um papel
significativo na preservação ambiental. Leia mais sobre sociedades indígenas
na atualidade:
39

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Beto Ricardo e Fany

Ricardo
Instituto Socioambiental - ISA

Para saber mais: www.socioambiental.org

Sobre o crescimento demográfico


Tendo como editores gerais os antropólogos Beto Ricardo e Fany Ricardo, o
livro mostra que nestes últimos cinco anos pesquisados o número de etnias
aumentou, passando de 216 para 225 (graças a processos de
reconhecimento), e que a população indígena total contabilizada pelo Censo do
IBGE/2000 cresceu 150% desde 1991, alcançando a marca de 734 mil
pessoas, que se auto-identificam genericamente como indígenas. Dado
surpreendente é o fato de o IBGE ter registrado 63 mil pessoas auto-
declaradas indígenas no Estado de São Paulo, atrás somente do Amazonas,
com 113 mil.
De maneira geral, o livro mostra que a população total de cada povo - um
mosaico de sociedades que falam cerca de 180 línguas e metade das quais
tem população de até 500 indivíduos - manteve nestes cinco anos um ritmo
acelerado de crescimento, com vários povos tendo duplicado sua população
nos últimos dez anos. Porém, 12 povos têm uma população de 5 até 40
pessoas, ou seja, continuam ameaçadas de desaparecer. Apenas quatro etnias
têm população superior a 20 mil.

Sobre o território indígena


A publicação mostra que houve avanços na área de reconhecimento dos
direitos territoriais indígenas, com 81 Terras Indígenas (TI) demarcadas e
homologadas por decretos presidenciais entre 1o de janeiro de 2001 e 31 de
40

julho de 2006. Um dos maiores destaques foi a TI Vale do Javari (AM), pela
sua extensão de 8,5 milhões de hectares (ha) contínuos na área de fronteira
internacional com o Peru e por abrigar, além de sete povos indígenas
conhecidos, vários grupos isolados. Outra grande conquista foi a TI Raposa
Serra do Sol (RR), com seus mais de 1 milhão de ha, atendendo a
reivindicações históricas dos povos Makuxi, Wapixana, Ingarikó e Patamona,
apoiados por campanha nacional e internacional.

Sobre as dificuldades dos povos indígenas


Mas os povos indígenas sofreram, também, reveses no período, com um
endurecimento das posições anti-indígenas, como é mostrado no capítulo
Legislação. Depois das conquistas inscritas na Constituição de 1988, uma onda
conservadora propõe projetos de lei ou emendas constitucionais com objetivos
de excluir ou diminuir garantias dos povos indígenas. Após uma significativa
melhora nos indicadores de saúde com a implantação, a partir de 1999, dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os últimos anos viram esses
indicadores despencarem em função da excessiva burocratização e influência
política ao qual o sistema foi exposto.

Sobre a preservação ambiental

Isso acontece em um momento onde o valor das Terras Indígenas para a


conservação da biodiversidade e das florestas do Brasil fica cada vez mais
evidente. Cruzando dados oficiais de 2003 para a Amazônia brasileira, o ISA
constatou que as Terras Indígenas têm índice de desmatamento inferior
(1,14%) aos das Unidades de Conservação federais (1,47%) e estaduais
(7,01%) localizadas na região.
A contenção do desmatamento pelas Terras Indígenas é apontada como de
suma importância, na medida em que o boom do agronegócio tem pressionado
as TIs situadas na fronteira agrícola, deixando-as sujeitas à pressão de
grileiros, madeireiros e pecuaristas. No médio e no longo prazos, a situação
das Terras Indígenas pode se complicar, mesmo que demarcadas e
relativamente preservadas, por conta dos efeitos da ocupação predatória dos
seus entornos. Um exemplo é o Parque Indígena do Xingu, onde as matas que
protegiam as nascentes e cursos dos principais afluentes formadores do Rio
41

Xingu foram praticamente dizimadas nos últimos cinco anos, afetando


negativamente a vida nas aldeias dentro da Terra Indígena, com problemas
como assoreamento e diminuição dos peixes.

Conclusão
Para nós antropólogos o conceito de raça, que se estabelece em torno
de diferenças físicas externas, foi abandonado em favor do conceito de etnia,
que se configura em torno de diferenças culturais.
Na vida cotidiana, contudo, ainda persistem preconceitos e exclusão
contra aqueles que não são fisicamente semelhantes a nós. Ademais, a
discussão extrapolou o ambiente acadêmico e migrou para o campo político,
com acirradas discussões em torno do estabelecimento de cotas para as
chamadas minorias, que foram excluídas do beneficio da educação superior,
por exemplo.
Os estudos mais recentes indicam que pelo menos um dos argumentos
usados por aqueles que são contrários as cotas nas universidades está errado:
alunos cotistas têm desempenho escolar igual ou melhor do que alunos não-
cotistas. Ao que parece estes alunos sentem-se motivados a estudar e se
dedicar mais do que os outros.
Em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira esta discussão não
terminará apenas com a edição de leis e decretos. À medida que as instituições
se fortaleçam e o debate democrático avance será possível ampliar o leque de
oportunidades para todos, incluindo os excluídos.
42

Unidade II

A escola como microcosmo da sociedade

Fonte: http://webradiobrasilindigena.files.wordpress.com/2007/11/escola_indigena_700.jpg
43

APRESENTAÇÃO

Vimos ao longo da unidade anterior como o Brasil é um país marcado


por diferenças étnicas, raciais e regionais. A Antropologia se inscreve,
justamente (como temos visto desde nossa primeira apostila), no estudo e
reflexão sobre essa diferença, conquanto tais diferenças nos falem um pouco
sobre nós mesmos, a partir da noção de alteridade.

Nesta unidade daremos continuidade a esse tipo de reflexão, mas com


um foco muito mais específico: aqui buscaremos compreender de que forma os
conceitos Antropológicos se inscrevem na compreensão da educação e da
escola. Há um ramo da Antropologia, chamado “Antropologia da Educação”, e
outros – como a chamada “Antropologia da Criança” – que tratam justamente
de buscar compreender como se dá o processo de educação, socialização e
transmissão da cultura em diferentes sociedades.

É interessante perceber como o conceito de “infância”, por exemplo, nos


soa quase natural: pergunte a qualquer pessoa o que é uma criança... Quase
certamente você ouvirá alguma resposta do tipo “é uma pessoa jovem”, ou
“uma pessoa pequena”,... Faz-se necessário, assim, que busquemos
relativizar (lembra-se da primeira apostila? Vale a pena dar uma revisada
nesse conceito) o conceito de infância, bem como o de educação, pois ambos
escondem inúmeras complexidades e desdobramentos. Diferentes culturas
lidam de forma bastante diferente com a criança e com os jovens: há culturas
em que pessoas que chamaríamos de “crianças” já exercem papel social
relevante, como os Xavante, por exemplo – muitas vezes antes mesmo de
saber andar, a pequena Xavante já está casada e por volta da puberdade, já
tem vida sexual relativamente ativa com seu marido, sem que haja reprovação
social.

Aliás, se pudermos resumir a proposta desta apostila, veremos que


trata-se de buscar perceber como categorias que vemos como “dadas” – raça,
sexo, idade, etc. – na verdade são construídas culturalmente.

Assim, nossa primeira parte trará algumas considerações sobre os


conceitos de cultura popular e erudita. A questão aqui a ser colocada é a
44

seguinte: que tipo de conhecimento é passado na escola? Ela reproduz algum


tipo de desigualdade, ou dá conta da chamada “cultura popular”? Como
consequência dessa questão, há outra, tão relevante quanto: será que há
mesmo uma diferença entre o que chamamos de cultura erudita e outra,
popular? Como o próprio fenômeno da cultura responde a essa contraposição,
caso exista?

Em seguida, buscaremos trazer algumas considerações sobre como


opera a transmissão da cultura. Como alguém aprende a ser membro de uma
cultura especifica, se socializando e se comportando como deve, nas situações
adequadas? Há algum momento, ou ocasião especificas, a partir da qual
podemos notar que um sujeito está se tornando membro especifico de uma
cultura? É na infância, na fase adulta, ou não importa a idade?

Finalmente, na última parte desta unidade, tentaremos introduzir você,


leitor amigo e aluno, em reflexões da antropologia sobre a sala de aula e
infância. O que há por trás dessa instituição que todos julgamos conhecer tão
bem? Que tipos de desafios existem na educação intercultural? Afinal, aluno e
professor é tudo igual?

Vejamos.
45

Subunidade I

O popular e o erudito

Joana é arquiteta e mora no Leblon, bairro nobre na zona sul do Rio de


Janeiro. Estudou nos melhores colégios que o dinheiro pode pagar, fala
fluentemente inglês e francês, e está aprendendo alemão para poder fazer seu
doutorado em uma instituição respeitada na Europa. Frequentadora assídua de
teatro, lê livros de filosofia existencialista – nada de traduções, sempre que
pode, lê no original – e em seu tempo livre vai a concertos no Teatro Municipal,
ou frequenta lugares em que se toque MPB, bossa nova ou jazz. Como
passatempo, está se dedicando a estudar piano em um tradicional
conservatório carioca. Em sua casa, trabalha Sandra. Ao contrário de Joana,
Sandra mora na favela do Cantagalo. Foi mãe muito cedo, por isso teve que
abandonar os estudos e arranjar um trabalho, depois de ser expulsa de casa
pelo seu pai, em uma pequena cidade do sul do Maranhão. Vai trabalhar na
casa de Joana três vezes por semana, o que lhe dá tempo para trabalhar como
diarista em mais duas casas. Em seu tempo livre, quando não está vendo
novela em casa, com a filha e o namorado, Francisco, vai ao bar na esquina
tomar umas cervejas e dançar noite adentro (quase sempre um bom forró), ou
à feira de São Cristóvão (conhecida como “feira dos paraíbas”) comer um arroz
com cuxá e farinha seca. Ao contrário de Joana, Sandra jamais foi ao teatro,
tampouco ao cinema. Da mesma forma, há anos não pega em um livro -
quando muito, consegue ler as listas de compras ou escrever recados na casa
da patroa, ou no máximo, dá uma olhada nas capas das revistas de fofoca
quando passa em frente a alguma banca de jornal.

Pode-se dizer que Joana seja uma pessoa culta, ao contrário de Sandra;
mas tanto uma quanto outra tem cultura. O que, afinal, isso quer dizer? Roberto
DaMatta, em um pequeno texto intitulado “Você tem Cultura?” trata dessa
46

questão: a palavra “Cultura”, no dia a dia possui duas acepções: a primeira tem
a ver com o que chamamos aqui de alguém “culto”: dizemos de alguém como
Joana que ela seja uma pessoa culta, em contraposição a alguém ignorante,
sem conhecimentos. Joana é uma pessoa sofisticada, ou como dizem por aí,
“com conhecimentos”. “Cultura”, no outro sentido – no sentido Antropológico –
diz respeito a maneira como as pessoas classificam e pensam o mundo. No
primeiro sentido (no senso comum), pode haver pessoas sem cultura, enquanto
que, no segundo sentido (para a Antropologia), todos os homens possuem
cultura.

Leia o texto de Roberto DaMatta na íntegra no site:


http://www.furb.br/site/arquivos/788660-650601/voce%20tem%20cultura.pdf

O problema, aqui, é que no dia a dia as pessoas usam a palavra


“cultura” nos dois sentidos, indiscriminadamente, podendo gerar alguma
confusão. Como escreve DaMatta, no texto citado,

Falamos então em "alta cultura'' e "baixa cultura" ou “cultura popular",


referindo naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a
própria idéia de cultura. Assim, teríamos a cultura e culturas particulares e
adjetivadas. (popular, indígena, nordestina, de classe baixa, etc.) como
formas secundárias, incompletas e inferiores de vida social. Mas a verdade
é que todas as formas culturais ou todas as "sub-culturas” de uma
sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto
importante que não pode ser esgotado completamente por uma outra "sub-
cultura". Quer dizer, existem gêneros de cultura que são equivalentes a
diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses
gêneros podem estar associados a certos segmentos sociais. O problema é
que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e
de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença
hierarquicamente, que é uma: forma de exclui-la.
(DaMatta, 1981, p. 4)
47

Em outras palavras, pode-se dizer é que as pessoas confundem os dois


conceitos de cultura, levando-as a pensar que há culturas mais legítimas que
outras, uma vez que há pessoas “mais cultas”, que outras. Ou seja: a “boa
cultura” é aquela de Joana, já a de Sandra, é vista como sub-cultura.

Será que isso é tão estranho assim aos nossos ouvidos? Basta darmos
uma olhada nos programas de televisão e buscarmos ver a diferença de
linguagem e de público entre os diferentes programas. Quem assiste a um
programa cujo foco seja o funk¸ pagode ou músicas sertanejas, verá facilmente
que o público entrevistado, a linguagem utilizada e mesmo as propagandas do
intervalo são bastante diferentes de programas sobre colunismo social, ou jazz,
por exemplo. O mesmo se aplica a emissoras de rádio, revistas, jornais, etc.
Uma experiência bem interessante é comparar as mesmas noticias em jornais,
revistas e/ou noticiários de televisão diferentes.

Afinal, há culturas melhores que outras? O erudito e o popular, são


desiguais ou simplesmente diferentes? Em outras palavras, a cultura de Joana,
do nosso exemplo, é “mais legítima” que a de Sandra?

Vá ao dicionário e faça uma pesquisa nos verbetes


“popular” e “erudito”. No meu (Houaiss da língua portuguesa online) algumas
definições de popular: “relativo ou pertencente ao povo, esp. à gente comum”,
“feito pelas pessoas simples, sem muita instrução”, “que prevalece junto ao
grande público, esp. às massas menos instruídas”, “ao alcance dos não ricos,
barato”, “homem do povo, anônimo”, e “adaptado ao nível cultural ou ao gosto
das massas”. Já erudito quer dizer “aquele que tem ou revela erudição”-
erudição vem do latim eruditus, “aquele que obteve instrução, conhecedor,
sábio”, sendo antônimo de tolo.

Lembra-se daquela passagem do texto do Roberto DaMatta? Se


tomarmos essas definições de popular e erudito, à luz do que escreve aquele
48

autor, logo vemos qual é a cultura vista como “legitima” e qual a percebida
como “sub-cultura” afinal, popular é adaptado ao “nível cultural das massas”.
Sendo assim, a “boa” cultura é a de Joana. E Sandra, tem cultura? A cultura do
samba, do carnaval, da cachaça e do arroz com feijão e farofa, está “no mesmo
nível” da cultura de Mozart e Beethoven, de Shakespeare e do champanhe
acompanhando caviar e trutas flambadas?

Não se trata de se perguntar qual “cultura” é mais legítima: em seu


sentido antropológico, a cultura funciona como um meio de buscar
compreender as diferenças e semelhanças entre os homens – cada cultura é
única, sem que haja culturas superiores ou inferiores (vimos isso na primeira
unidade, lembra-se?).

Vá até o livro Antropologia I e pesquise sobre o conceito de cultura e


suas propriedades.

Agora escreva um texto dissertativo e poste na Biblioteca.

A seguir, posto um trecho de uma resenha do livro O que é cultura


popular, de Antônio Augusto Arantes.

Vejamos:
49

Sobre o sentido de “culto”:

No dicionário Aurélio a palavra cultura é registrada como saber, estudo, elegância,


e esmero. Evoca, portanto, os domínios da filosofia, das ciências e das belas-artes.
Nas sociedades estratificadas em classes esses campos da cultura são, na
verdade, atividades especializadas que tem como objetivo a produção de um
conhecimento e de um gosto. Tal conhecimento parte das universidades e das
academias. É difundido entre as camadas sociais como os mais belos e os mais
corretos. Ser culto, nesse sentido, é ter bom gosto, razão ou saber, ter
conhecimento e estar informado.

Sobre a capacidade de (re)criação

Na cidade de São Paulo grande parte da população é descendente de estrangeiros


e migrantes rurais. Aí vários modos de vida são recriados. A inspiração rural, por
exemplo, está presente nos infalíveis tomateiros e pés de chuchu plantados nos
quintais de pequenas dimensões. Isso mostra que embora as escolas, as igrejas,
os meios de comunicação e os museus ensinem as pessoas a ter um modo de vida
refinado, civilizado e eficiente – isto é, culto -, elas não conseguem evitar que
muitos objetos e práticas qualificadas como populares pontilhem seu cotidiano.
Nesse aspecto o refinado, civilizado e eficiente refere-se ao culto e o mau gosto,
ingênuo, pitoresco e ineficaz refere-se ao popular.

As atitudes contraditórias em relação à cultura popular resultam em grande medida


a alguns paradoxos. Nas sociedades industriais, sobretudo nas capitalistas, o
trabalho manual e o trabalho intelectual são pensados e vivenciados como
realidades profundamente distintas uma da outra. Há um enorme desnível de
prestígio e de poder entre essas profissões decorrentes da concepção
generalizada na sociedade de que o trabalho intelectual é superior ao manual. Para
a sociedade capitalista o que é popular é necessariamente associado ao fazer
desprovido de saber.

Grande parte dos autores pensa cultura popular como folclore, ou seja, como um
conjunto de objetos, práticas e concepções – sobretudo religiosas e estéticas -,
consideradas tradicionais. Outros concebem as manifestações culturais tradicionais
como resíduo da cultura culta de outras épocas e, às vezes, de outros lugares,
filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas de estratificação social. Diz-
se: o povo é um clássico que sobrevive. Pensar em cultura popular como sinônimo
de tradição é impossibilitar a compreensão das sucessivas modificações por quais
necessariamente passaram esses objetos, concepções e práticas do povo. É
pensar as modificações como empobrecedoras ou deturpadoras.
50

Cultura como resistência


A resistência e a participação ocorrem quando nos espaços alternativos,
fragmentários e dispersos, como um teatro no fundo do quintal, embora
conquistados a duras penas e com muito empenho, pequenos grupos de vizinhos,
amigos e parentes, companheiros de trabalho, de igreja ou de partido
desenvolvem as suas formas de expressão, a partir das suas maneiras de pensar,
de agir, de fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes
de tornar viáveis, política e materialmente, as suas atividades. Nesse sentido,
fazer teatro, música, poesia ou qualquer outra modalidade de arte é construir, com
cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com suas roupagens
identificadoras, particulares e concretas, o que é mais abstrato e geral em um ser
humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação
na produção da sociedade. Esse é o sentido mais profundo da cultura, popular ou
outra, defende Arantes

Em alguma medida, isso vai ao encontro do que escreve DaMatta


naquele texto,

Assim, o carnavalesco e o religioso não podem ser classificados em termos


de superior ou inferior ou como articulados a uma "cultura autêntica" e
superior, mas devem ser vistos nas suas relações que são complementares.
O que significa dizer que tanto há cultura no carnaval quanto na procissão e
nas festas cívicas, pois que cada uma delas é um código capaz de permitir
um julgamento e uma atuação sobre o mundo social no Brasil. Como disse
uma vez, essas festas nos revelam leituras da sociedade brasileira por nós
mesmos e é nesta direção que devemos discutir o conteúdo e a. forma de
cada cultura ou sub-cultura em uma sociedade. (DaMatta, 198, p.3).

Assim, a cultura – seja ela erudita, popular ou sob qualquer rótulo – nos
permite enxergar, no sentido antropológico, a visão de mundo do “Outro”. E
esse “outro”não precisa estar necessariamente em uma aldeia indígena, em
um quilombo ou em uma ilha perdida no meio do pacífico. Esse “Outro” pode
ser o Nós, relativizado, o vizinho, as relações raciais do dia a dia, a ética que
rege o papo na esquina, o sotaque daquele sujeito com quem você convive
todos os dias. Daqui se depreendem algumas coisas: em primeiro lugar, o que
é familiar nem sempre é conhecido: mesmo nossa cultura deve ser posta em
perspectiva, seja ela “popular”, ou “erudita”: uma festa social envolve normas e
etiquetas da mesma maneira que uma festa junina; e em segundo lugar
(novamente usando Roberto DaMatta, desta vez em outro texto), o olhar
51

antropológico implica em um duplo movimento: de tornar o exótico em familiar;


e transformar o familiar em exótico.

Com o intuito de ir treinando nosso olhar relativista, há a


seguir alguns exemplos de músicas compostas em diversos contextos.
Observe bem que linguagem essas músicas utilizam, sobre o que falam, por
quem e para quem foram escritas, em que medida refletem o contexto social
nas quais foram compostas e que tipo de reflexão tecem sobre sua própria
realidade:

“Ai, ai, que bom


Que bom, que bom que é
Uma estrada e uma cabocla
Cum a gente andando a pé
Ai, ai, que bom
Que bom, que bom que é
Uma estrada e a lua branca
No sertão de Canindé
Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié
Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a pé Fonte: Luiz Gonzaga. Disponível em:
http://3.bp.blogspot.com/_ouhtmF_EjR4/SUK
Mas o pobre vê nas estrada Ymk4Ae5I/AAAAAAAACp0/5SBAVz31u44/s4
O orvaio beijando as flô 00/pst03041.gif>. Acesso em: 12 fev. 2009

Vê de perto o galo campina


Que quando canta muda de cor
Vai moiando os pés no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O cristão tem que andá a pé”
(Estrada de Canindé, composição de Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira)
52

Escute aqui essa música, na interpretação de Luiz


Gonzaga e Fagner: http://www.youtube.com/watch?v=35rquT5wpGY

“Agora irmãos vou falar a verdade


A crueldade que fazem com a gente
Só por nossa cor ser diferente
Somos constantemente assediados pelo racismo
cruel
Bem pior que fel é o amargo de engolir um sapo
Só por ser preto isso é fato
O valor da própria cor
Não se aprende em faculdades ou colégios
E ser negro nunca foi um defeito
Será sempre um privilégio
Privilégio de pertencer a uma raça
Que com o próprio sangue construiu o Brasil

Sub-raça é a ...! (4x)


Fonte: Câmbio Negro. Disponível em:
Sub-raça sim é como nos chamam http://www.rockpost.com.br/wp-
content/uploads/2009/03/x-ao-centro-
Aqueles que não respeitam as caras com-o-cambionegro.jpg. Acesso em:
Dos filhos dos pais dos ancestrais deles 12 fev. 2009
Não sabem que seu bisavô como eu era escuro
E obscuro será o seu futuro
Se não agir direito
Talvez ser encontrado em um esgoto da Ceilândia
[1]
Com três tiros no peito
O papo é esse mermo a realidade é ...
Não de um bote mal dado senão câmbio te bota
Fique esperto racista se liga na fita
Somos animais mermo se ... quem não acredita”
(Sub-raça, do grupo Câmbio Negro)

[1]: Ceilândia é uma das cidades da periferia de


Brasilia, de onde é a Banda
53

Clique para ouvir a música Sub-Raça:


http://www.youtube.com/watch?v=v4-fCegp1-o

Estou enfiado na lama


É um bairro sujo
Onde os urubus têm casas
E eu não tenho asas
Mas estou aqui em minha casa
Onde os urubus têm asas
Vou pintando segurando as paredes do
mangue do meu quintal
Manguetown
Andando por entre os becos
Andando em coletivos
Ninguém foge ao cheiro sujo
Da lama da Manguetown
Andando por entre os becos
Andando em coletivos
Ninguém foge à vida suja dos dias da
Manguetown
Esta noite eu sairei Fonte:Chico Science. Disponível em:
Vou beber com meus amigos <http://feijaocomarroz.files.wordpress.
E com as asas que os urubus me deram ao com/2008/03/chico.jpg>. Acesso em:
12 fev. 2009
dia
Eu voarei por toda a periferia
Vou sonhando com a mulher
Que talvez eu possa encontrar
Ela também vai andar
Na lama do meu quintal
Manguetown
Fui no mague catar lixo
Pegar caranguejo, conversar com urubu
(Trecho da música Manguetown, de Chico
Science)
54

Veja aqui, o clipe da música Manguetown, com Chico


Science e Nação Zumbi: http://www.youtube.com/watch?v=yIjg0mdsqjM

Assim, a primeira vista temos uma oposição entre as categorias


ERUDITO (ligado ao moderno, ao hegemônico) e POPULAR (ligado ao
tradicional, ao subalterno). Entretanto, o que se observa – e os exemplos acima
parecem reforçar esse ponto de vista – é justamente o oposto: não há uma
lógica popular em oposição a uma erudita, mas sim lógicas complementares
entre si, de lugares, de falas diferentes e que se interpenetram.

O que parece ocorrer e escrevo isto aqui a título de hipótese, e para fins
de discussão – é o seguinte: podemos supor que estejamos caminhando para
uma homogeneização das diversas culturas, devido ao avanço de um sistema
capitalista ocidental hegemônico. Assumindo isso, assumimos também que
como consequência os diversos grupos não hegemônicos adequarão suas
lógicas à lógica capitalista e que toda forma original de cultura é uma resposta
contraria a hegemonia, somente. Isso seria reduzir o próprio papel inventivo
dessas culturas e supor que a suas respectivas lógicas internas sejam somente
regidas pelas intempéries que atravessam.

Outro ponto de vista, contudo, é o da complementariedade e da


incorporação desses elementos enquanto fator de inovação. A partir desse
ponto de vista – e é essa a hipótese – podemos dizer que sim, a
autoconsciência desses grupos é tornada mais evidente em uma situação de
conflito com esse sistema hegemônico; contudo, tais grupos tomam
determinados elementos de sua própria cultura (a sanfona, o discurso racial, o
mandacaru, nos exemplos mencionados) e os tomam enquanto signos de
alteridade, intercambiando o local com o global. Daí o uso da capoeira na
Bahia e do Samba no Rio de Janeiro, por exemplo, por grupos vistos como
“subalternos”: é uma apropriação do estereotipo utilizado para manutenção da
própria identidade, a partir das estruturas dadas pelo próprio sistema “mundial”.
55

Não devemos nos esquecer que a cultura está sempre se reinventando,


de tal maneira que podemos assumir a existência de uma “cultura popular” não
enquanto fruto de uma relação subalterna, mas sobretudo enquanto forma de
determinados grupos manterem sua identidade, com a incorporação – ou não –
de elementos externos. Exemplos nesse sentido não faltam: a incorporação de
elementos católicos nas religiões afro-brasileiras; o bumba-meu-boi de
Parintins; os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro; etc. Assim,
paradoxalmente, a cultura se transforma para se manter, sem que isso seja
uma contradição.

Leia o texto de Roger Chartier, “Cultura popular”: Revisitando um


conceito historiográfico, disponível no site :

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf
56

Reflita sobre a música a seguir, a partir da discussão


desta subunidade. A incorporação das palavras de língua estrangeira, nesse
contexto, funciona como sua aceitação ou como crítica? Por quê?

Samba do approach
Zeca Pagodinho

Venha provar meu brunch


Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat
(Venha provar)
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat

(Xá comigo!)
Eu tenho savoir-faire
Meu temperamento é light
Minha casa é hi-tech
Toda hora rola um insight
Já fui fã do Jethro Tull (*)
Hoje me amarro no Slash (**)
Minha vida agora é cool
Meu passado é que foi trash

(Beautiful!)
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat

Fica ligada no link


Que eu vou confessar, my love
Depois do décimo drink
Só um bom e velho Engov
Eu tirei o meu Green Card
E fui pra Miami Beach
Posso não ser pop star
Mas já sou um noveau riche
57

(Olha só...)
Eu tenho sex-appeal
Saca só meu background
Veloz como Damon Hill
Tenaz como Fittipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia um macho man
E de noite drag queen
58

Subunidade II

A transmissão da cultura

Fonte: Crianças Xikrin (PA) ostentando suas bonecas com pinturas tradicionais. Disponível em:
http://unicorneoazul.blogspot.com/2008/02/os-ndios-xikrin.html. Acesso em: 12 fev. 2009.
59

APRESENTAÇÃO

Ao final da subunidade anterior, salientamos o papel dinâmico da


cultura, e como a tradição é permanentemente reinventada. Nesta subunidade
buscaremos nos aprofundar um pouco mais sobre a questão, a partir de uma
pergunta relativamente simples, mas com desdobramentos bastante
complexos: como a cultura é transmitida? Há, evidentemente, uma série de
teorias antropológicas sobre o assunto, de modo que opto por dar um sobrevoo
na temática, de modo bastante genérico, de modo a preparar o leitor para as
paginas que se seguem.
Um desses antropólogos, Dan Sperber propõe, por exemplo, em seu
livro La Contagion des idées, que as ideias se propaguem tal qual doenças,
sendo possível traçar uma epidemiologia das representações sociais. O que
ele propõe viria a ser conhecido na Antropologia como “Teoria da Relevância”:
seu pressuposto é que a mente humana tende a apreender aqueles aspectos
que são mais relevantes. Até aí, nada demais, certo? Vamos ver?

SABER MAIS:

Ao lado, o antropólogo Dan Sperber (foto do site:


http://www.britac.ac.uk/cmsfiles/assets/7481.jpg)
Há vários textos online em sua pagina,
http://www.dan.sperber.com/
60

Proponho uma atividade simples em sala, ou em casa, parecido com a


brincadeira de “telefone sem fio”. Formule alguma frase absurda do tipo “Uma
velhinha de casaco azul atravessou a rua no sinal vermelho, quando um ônibus
desgovernado desviou dela e bateu em um caminhão azul de cervejas”. Peça
para a pessoa para quem você disse isso falar para outra pessoa, e daí para
outra e assim por diante. Ao final, veja que frase sai. Agora, pense que não é
uma frase, mas uma historia, como a de Noé, por exemplo. É natural, com o
tempo, que as pessoas aprendam o seguinte mote: Deus disse a um homem
que fizesse um barco, lá colocou os animais, inundou a Terra e depois o
homem e sua família, com os animais, se salvaram”. Mas, e os detalhes? A
pomba, o corvo, quantos dias choveu, o arco-iris, o nome dos personagens... O
normal é que a historia, ao longo das gerações se desdobre e se reinvente, de
modo que a longo prazo a história gerou uma série de outras historias, que por
sua vez se desdobram em outras, e em outras... Assim, a sociedade acaba
gerando uma série de símbolos com capacidade de síntese e que funcionem,
eles próprios, como elemento fundamental daquela historia – essa parte da
teoria viria a ser desenvolvida posteriormente por outro antropólogo, Carlo
Severi.
Tudo muito abstrato até aqui, certo? Então vamos a um exemplo. Quais
os símbolos mais importantes da Igreja Católica? A hóstia e a cruz. A que
esses símbolos remetem? Ao sacrifício de Cristo. E qual o principal
fundamento da teologia católica? A crença de que este sacrifício seja para a
redenção da humanidade. Assim, esses símbolos possuem poder de síntese
de toda uma teologia e funcionam, em termos Sperberianos, como objetos com
relevância, uma vez que os fieis vêem em ambos – hóstia e cruz – a síntese
dos fundamentos de suas crenças. Assim, tornar-se católico pressupõe o
compartilhamento desse simbolismo e o aprendizado dessa simbologia. Se
pararmos para pensar, veremos que todo o pertencimento a alguma ordem
religiosa pressupõe o reconhecimento de determinados símbolos.
Outro exemplo, fora da religião. Quais são os símbolos “relevantes”
quando pensamos em uma cerimônia de casamento, por exemplo? Um buquê?
Uma marcha nupcial? Um vestido de noiva? Um bolo de casamento? Tornar-se
membro de uma cultura é apreender, ao longo de nossa vida, a que cada um
61

desses objetos remete, e em que contexto. Como escreve Leslie White, o


homem é o único animal capaz de saber a diferença entre a água benta e a
água destilada: Se “cultura”, por exemplo, é a ordenação da experiência e ação
humanas por meios simbólicos (conceito dado pelo antropólogo norte-
americano Marshall Sahlins), tornar-se membro de uma cultura implica em se
saber o porquê dessa diferença, ou seja, em aprender a compartilhar símbolos.
Façamos um teste. Qual dos seguintes símbolos você conhece?

Fonte:
http://2.bp.blogspot.com/_ree85NYELJM/STw5y54ECpI/AAAAAAAAB7Q/AS8WYansvt8/s4
00/ouroborosFreemason.jpg
62

Fonte: http://karenswhimsy.com/public-domain-images/chinesesymbols/chinese-
symbols-5.jpg

Fonte:http://convertisseurs.euro.free.fr/Zone%20Euro/Autriche/COCA-COLA%20(V).jpg
63

O primeiro símbolo é um ouroboros, símbolo da eternidade; o segundo,


um símbolo chinês de proteção para noivos e o último, o símbolo de uma
conhecida marca de refrigerantes. Por que será que a maioria dos leitores
desta apostila certamente saberá o terceiro símbolo, mas não os outros dois?
Porque eles não pertencem ao seu universo cultural.
Outro exemplo? Lembro-me de um professor de Antropologia, renomado
estudioso de culturas africanas que me narrou um episódio bastante
desagradável. Ele estava em um funeral, em meio a rituais bastante tensos.
Fumante inveterado, resolveu acender um cigarro. Como não tinha fósforos,
resolveu acender o cigarro em uma das inúmeras velas na casa. Nesse
momento, um silêncio assombroso se abateu no recinto. Seu informante lhe
disse, em seguida, que deveria se retirar, pois aquele fogo simbolizava a alma
do morto, e ao tocar na chama, ele a tornou impura. Dessa forma, eles tiveram
que refazer todo o ritual.
Outra historia ocorreu comigo, quando trabalhava na Funai, em Brasília.
Certa vez eu passei por um indígena da etnia Xavante (MT), sem reconhecê-lo.
Entretanto, se tratava de um velho amigo meu, que me perguntou por quê não
o cumprimentara. Brincando, respondi que não o fiz porque ele estava com a
cabeça raspada, e não o reconheci “feio daquele jeito”, disse, rindo. Entretanto,
percebi que ele ficou sério de repente... “Meu irmão morreu há pouco tempo, e
na nossa cultura raspamos a cabeça em sinal de luto e respeito”. Nem preciso
dizer o mal estar que me abateu.
Seja como for, esse tipo de mal estar, que tanto eu quanto meu
professor sentíamos, se deveu ao fato de esses símbolos (vela, cabelo,...)
serem alheios ao nosso universo cultural (assim como os dois primeiros
símbolos acima). O desafio do antropólogo é fundir seu horizonte ao horizonte
daquele que ele observa, tentando ao máximo compreender suas categorias e
símbolos, e traduzi-las em termos de seus próprios. Vimos isso na primeira
apostila, e ao entendermos como ocorre a transmissão da cultura, pode-se
dizer que se trate de um processo a partir do qual ocorre compartilhamento de
determinados símbolos.
Aqui vale a pena falarmos de outro antropólogo, o norte-americano Roy
Wagner. Segundo sua visão, símbolos sempre se remeteriam a outros
símbolos, de tal maneira que os símbolos somente adquiririam algum contexto
64

a medida em que estiverem relacionados entre si: o significado dos símbolos


somente pode ser compreendido a partir de seu contexto. Assim, para ele, a
cultura opera articulando-se por um lado à convencionalização: nesse sentido,
há símbolos convencionais e compartilhados; e por outro lado, à invenção,
quando novos símbolos e metáforas são criadas. Isso dá margem a cultura se
reinventar permanentemente, com novas metáforas e simbolizações surgindo a
partir das antigas.

O antropólogo Roy Wagner


Veja sua entrevista no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=
UpKS6qzKl0Q

Fonte: Roy Wagner. Disponível em: < sitehttp://img.youtube.com/vi/_d1-urturl4/0.jpg>. Acesso em:


12 fev. 2009.

Por que esse aspecto da reinvenção é importante, e em que medida ele


se articula com o que foi visto na subunidade anterior?
Se a cultura é um sistema aberto, e tornar-se membro de uma cultura é
compartilhar de símbolos que encontram-se em permanente fluxo, dando à
cultura seu caráter dinâmico, não haveria culturas “autênticas”, ou “não
autênticas” – assim, índio que usa celular permanece sendo indígena, sim
senhor, como vimos anteriormente e revimos aqui. O que se vê é uma
incorporação de elementos externos à cultura para manutenção de sua própria
identidade, sem que a estrutura dessa cultura esteja comprometida.
Um exemplo disso é o conceito de aculturação, muito utilizado na
etnologia brasileira entre os anos 1960 e 1980. Tal conceito não leva em conta
o dinamismo da cultura, supondo que os povos indígenas possam vir a ser
“assimilados”, abandonando sua cultura “tradicional”. Ainda hoje ouve-se falar
muito em aculturação. Veja a reportagem a seguir:
65

Anomalia etnico-ideologica
Mario César Flores
Publicado em O Estado de S. Paulo em 09 de maio de 2008
(http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080509/not_imp169900,0.php)
Embora menos do que no Peru, no Equador e na Bolívia, países de grande
participação indígena na população, as tensões da questão indígena estão
crescendo a um nível preocupante no Brasil, onde pessoas e entidades
públicas e não-governamentais, religiosas e seculares, nacionais e
estrangeiras, de intenções nem sempre claramente expostas, cultivam um
estranho sentimento que distingue os cidadãos brasileiros de etnia indígena
dos demais cidadãos, na contramão da lógica que sugere a integração.

Nesse quadro étnico-ideológico e ao amparo de preceito constitucional


incoerente com a realidade - preceito pretendido como reparação pautada no
devaneio de que a História poderia ter sido diferente -, nossas áreas indígenas
vêm sendo demarcadas à revelia da verdade demográfica e dos graus de
aculturação, que sugerem soluções diferentes. Reside aí um tópico crítico da
questão: aos índios ainda primitivos é razoável procurar assegurar área
compatível com seu número, necessária à sobrevivência nômade, à custa da
natureza, simultaneamente propiciando-lhes criterioso estímulo à integração -
inexorável no maior prazo, como sempre ocorreu nos confrontos históricos
entre níveis de civilização muito distintos. Quanto aos aculturados, cidadãos
brasileiros de etnia indígena mais tendentes aos confortos e benefícios da
civilização do que aos hábitos do passado primitivo, não há sentido em
diferenciá-los radicalmente dos demais cidadãos brasileiros rurais.

É bem verdade que, mesmo quando aculturados e integrados, esses índios


conservam alguns resíduos - em natural declínio - da cultura tradicional, para
cujas práticas lhes devem ser proporcionadas as condições adequadas, mas
tais resíduos já não incluem o nomadismo e a sobrevivência propiciada pela
natureza, exigentes de grandes áreas. Ressalte-se: condições adequadas aos
resíduos culturais autênticos, não aos usados artificialmente, sobretudo para a
TV, emblematicamente refletidos neste fato cômico e ridículo: um chefe de
aldeia integrada chega a ela dirigindo caminhonete, vê a equipe da televisão,
entra em casa correndo e dela sai usando o cocar, sempre à mão para a TV...
66

Sugerimos que o professor que vai ministrar a disciplina


marque um Chat para a discussão dessa reportagem apresentada.

Procure no google sobre “A indigenização da modernidade”,


e leia os dois artigos publicados pelo antropólogo Marshall Sahlins na revista
Mana, em 1997, disponíveis nos links:

1ª. Parte: http://www.scielo.br/pdf/mana/v3n1/2455.pdf


2ª. Parte: http://www.scielo.br/pdf/mana/v3n2/2442.pdf
67

Subunidade III

A dimensão cultural da sala de aula

Fonte: http://peabloggy.files.wordpress.com/2007/05/calvary-christian-school.jpg
68

APRESENTAÇÃO

Peço ao leitor que, por um segundo apenas, feche seus olhos e busque
se lembrar de seu tempo de infância. Certamente virão à mente lembranças de
férias, viagens com a família, das manhãs e tardes na escola, dos jogos e
brincadeiras. Normalmente pensamos na infância como fase idílica, um
exemplo disso certamente é o poema do Poeta Cassimiro de Abreu (1837-
1860) intitulado Meus oito anos: ”Oh! Que saudades tenho da aurora da minha
vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais! Que amor, que
sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras, à sombra das laranjeiras,
debaixo dos laranjais!”.

Se você resolver colocar em uma folha de papel algumas dessas


reminiscências e compará-las com as de algum amigo, certamente perceberá
semelhanças e diferenças: se vocês tiverem idades muito diferentes, e/ou se
um tiver sido criado em uma grande metrópole, enquanto o outro foi criado na
zona rural, certamente suas infâncias ocorreram de maneira bastante diferente.
E se forem de sexos diferentes, então? Enquanto os meninos se lembram dos
jogos de bola, as meninas certamente trarão na lembrança uma boneca
preferida. Se você tiver filhos, também perceberá que as brincadeiras deles
não são, via de regra, as suas: se perguntar a uma criança se ela prefere um
moderno vídeo game ou um peão, quase todas escolherão a primeira
alternativa.

Um texto que levanta esse tipo de questionamento é


Brincadeiras de menina na escola e na rua: Reflexões da pesquisa no campo,
de Maria Isabel Ferraz Pereira Leite., publicado na revista Cadernos Cedes, n.
56, em abril de 2002 (http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v22n56/10865.pdf).
69

No que isso se insere nas discussões que temos tido nesta unidade?
Vejamos. Vimos que a transmissão da cultura ocorre quando há
compartilhamento de símbolos, sendo esses símbolos apreendidos pelo
convívio em determinada cultura. Também vimos que a cultura é um sistema
em aberto, o que permite aos mais diversos grupos humanos articular suas
próprias culturas a fim de manter sua identidade. Vimos, finalmente, que
construções como sexo, raça e tudo aquilo que julgamos ser “natural” do ser
humano é, na verdade, resultado de uma complexa teia de relações
metafóricas e simbólicas que definem aquela cultura.
Quase sempre aprendemos como nos comportar em determinada
cultura quando somos crianças, eis porque quase sempre os antropólogos,
quando se inserem em uma cultura muito diferente, são quase sempre tratados
como tal. O antropólogo Anthony Seeger, por exemplo, escreveu em seu livro:

“Quando lá chegamos pela primeira vez,


tratavam-me como uma criança, o que eu era, já
que não sabia falar ou ver como eles viam. [...]
[Eles] tratavam-me como um menino de 12 anos
quando partimos, pois eu sabia remar, pescar e
caçar pelos arredores, como o faz um menino de
12 anos.” (1980, p.34-35)

Veja bem, caro leitor, ele não era visto como se fosse criança; ele era,
de fato, uma criança para os Suyá: não o deixavam sozinho, se comportavam
com ele contando historias da mesma forma que contavam aos filhos, era
supervisionado pelas mulheres, etc. Não importava que o antropólogo e sua
esposa, que o acompanhava na aldeia fossem vistos, em nossa cultura, como
adultos: lá, eles eram crianças.
A infância é uma construção cultural: o que é uma criança varia de uma
cultura para outra, e isso talvez seja um fato difícil de ser assimilado, mas basta
ao leitor procurar no Google por “historia da infância”, para ver como chegamos
ao nosso conceito de criança.
Em seu livro “Adolescência e Cultura em Samoa”, por exemplo, a
Antropóloga Margareth Mead analisa as relações entre o desenvolvimento da
personalidade do adolescente e o tipo de cultura. Sua tese é que a crise da
70

puberdade não é um fato natural ou inevitável do desenvolvimento biológico,


mas um produto das características de nossa sociedade. A questão é que
estamos acostumados a ver as crianças como pequenos adultos
biologicamente em formação, frágeis e sem opinião formada. Aracy Lopes da
Silva, na introdução do livro por ela organizado nos traz alguns paradigmas
para uma Antropologia da Infância (p. 18-23):
1. A infância é uma construção social, não sendo um
componente natural, mas, antes e sobretudo, um elemento
especifico de cada cultura;
2. Tal qual o gênero e a raça, a infância pode ser considerada
uma variável da analise social. Isso quer dizer que seu mundo
tem significados próprios, não existindo em função dos
adultos;
3. Elas são ativas na construção de sua própria vida social, não
sendo passivos frente aos processos sociais. O que se propõe
é que não se façam pesquisas apenas “sobre” as crianças,
mas “para” elas. (SILVA et al., 2002, p.18-23)

Sociedades diferentes possuem diferentes visões da infância – há, alias,


sociedades nas quais não existe sequer o conceito de “infância”. Assim, ao
contrario da visão clássica e estática de “socialização” (que pressupõe que as
novas gerações aprendam a ser iguais às antigas), os estudos antropológicos
sobre educação devem levar em conta a relação entre estrutura e mudança (o
que explica as duas subunidades anteriores): que lugar a criança ocupa na
construção de sua própria sociedade? Trata-se de redirecionar o foco, não para
instituições como escola e/ou família, mas para a voz das próprias crianças,
não enquanto seres incompletos. Que sentido elas dão à suas experiências
nesses contextos, passa a ser tão ou mais importante do que os contextos, em
si.
E como pensar a escola nesse contexto? E como pensar a Antropologia no
contexto da escola?
Talvez o texto a seguir lhe ajude a pensar essas questões:
71

O que é o saber? Segundo Galli, é uma dimensão social holística que vai do
caos à ordem, para outra ordem; que se desconstrói com bases em
pressupostos construtivos, postos em movimento pela experiência e pela
vivência. Trata-se da fruição da cultura, que gera um fazer reflexivo e crítico,
por vezes chamado educação.
O objetivo é assimilar o indivíduo à ordem social propiciadora do nós coletivo
e que, ao mesmo tempo em que integra buscando homogeneizar, diferencia
cada um por suas características pessoais, por gênero, por idade, garantindo
o equilíbrio da vida em sociedade. A educação realiza-se, então, no interior
da sociedade, composta por diferentes grupos e culturas, visando um certo
controle sobre a existência social, de modo a assegurar sua reprodução por
formas sociais coletivamente transmitidas.
A educação, nessa forma primeira, é uma modalidade de ajustamento
psicossocial que resulta numa forma de controle social, com base na
organização social e no horizonte cultural partilhado por um grupo. Um
aspecto a considerar é que a cultura é, aí, entendida como técnica social de
manipulação da consciência, da vontade e da ação dos indivíduos, com a
finalidade de modelar as personalidades humanas dos membros do grupo
social, tal como afirma Florestan Fernandes, ao tratar da educação entre os
Tupinambás (1966).
Para exemplificar que todas as sociedades possuem técnicas para estimular
e corrigir seus membros da infância à idade adulta, via transmissão de
conhecimento, valores e normas, Melatti (1979) relata o processo educativo
de uma criança marubo. Diz ele: "Durante o tempo em que o indivíduo é uma
criança de colo, sem dúvida já se inicia sua formação como marubo". Ela
pressupõe desde o contato com os alimentos até outros hábitos como
amarrar os pulsos, os braços, os tornozelos e as pernas para que
engrossem, fazendo dele um bom trabalhador no futuro. À medida que
cresce, está sujeito a tapas, empurrões ou ainda a punições quando faz algo
de errado. Uma punição comum é a urtiga que é passada no corpo para que
a criança deixe de ter preguiça e torne-se aplicada no trabalho. Da mesma
forma, quando maiores, tomam a "injeção de sapo", uma espécie de
queimadura em pele viva, que espanta a preguiça e o panema (azar) (op. cit.,
pp. 291-301).
Este e outros exemplos entre grupos tribais como os Arapesh, estudados por
Mead, ou os japoneses, estudados por Ruth Benedict, revelam a existência
de um sistema de interpretação de um modo de vida, mas também uma
pedagogia, como diz Galli, que se formaliza como técnica e ritual educativo,
criando sistemas especializados nessas técnicas e ritos. Nesse sentido,
cultura e educação são termos que se invocam e se concitam mutuamente,
como afirmam Cazanga M. e Meza (1993). Segundo esses autores,
"permanentemente envolvido no processo educativo e pelo simples fato de
estar vivendo, o homem está aprendendo na sociedade pela cultura; a
sociedade é o meio educativo próprio do homem, ainda que a todo momento
não tenha consciência disso" (p. 82).
Isto não quer dizer que os indivíduos sejam produtos mecânicos de uma linha
de montagem. O homem como ser variável, mutável no temperamento e no
comportamento, não fica à mercê de sua natureza e de sua cultura, mas sim
está sujeito a condições históricas determinadas e determinantes do universo
em que está inserido.
72

A partir do texto acima e de todos os conceitos que temos visto até aqui,
agora é momento de parar e refletir:
- O que é escola, para você?
- O que é infância?
- O que é Educação?

Em nossa próxima unidade discutiremos mais sobre os processos


educacionais, de modo que ficará bastante clara a aplicação da Antropologia
na busca da compreensão do processo educacional, mas é fundamental ao
aluno saber que a interlocução entre os conceitos antropológicos e
pedagógicos é cada vez mais frequente: de que forma culturas diferentes
percebem a educação; escolas nas aldeias são vistas meramente como algo
“externo” à comunidade?; os educandos agem passivamente frente ao
processo educacional? Há algo na escola que poderia ser chamado de ritual?
A educação escolar poder ser vista somente enquanto um fluxo desinteressado
de conhecimentos? Que interesses movem os atores envolvidos? Como os
processos de aprendizagem e de produção de conhecimento se inserem nos
diferentes contextos sociais e culturais? Se a escola transmite cultura, que
cultura ela transmite, e por quê?
O objetivo desta Unidade era dar ao aluno subsídios no sentido de
pensar de forma crítica tais questões, buscando fazê-lo compreender que
problematizar a escola, a partir de conceitos antropológicos, é inseri-la
analiticamente em contextos diversos, criando outro campo de preocupações,
complementar as práticas escolares e políticas vividas no campo da educação.
Como você já deve ter observado, a interlocução entre as unidades e apostilas
tem ficado mais estreita, de tal modo que é essencial ir revisando os conceitos
como cultura (bastante aprofundado aqui), relativismo, etnocentrismo, dentre
outros.

Vejamos um exemplo? Leia o texto a seguir:


73

MINER, H. “Ritos corporais entre os Nacirema”. In: A. K. Romney e P. L. De


vore (eds.). You and Others - Introductory Anthropology. Cambridge:
Winthrop Publishers, 1973. p. 72-76

Rituais de Corpo entre os Nacirema

O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de


comportamento que os diferentes povos apresentam em situações
semelhantes que é incapaz de surpreender-se, mesmo em face dos costumes
mais exóticos. De fato, embora nem todas as combinações de comportamento
logicamente possíveis tenham sido descobertas em algumas partes do mundo,
o antropólogo pode suspeitar que elas devam existir em alguma tribo não
descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema
apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como
um exemplo dos extremos a que pode atingir o comportamento humano.
Foi o professor Linton, vinte anos atrás, o primeiro a chamar a atenção
dos antropólogos para o ritual dos Nacirema, mas a cultura deste povo
permanece insuficientemente compreendida ainda hoje. Pouco se sabe sobre
sua origem, embora sua tradição relate que vieram do Leste. Conforme a
mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem a sua
nação.
A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado
altamente desenvolvida, que evoluiu em um rico habitat natural. Apesar do
povo dedicar muito de seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte
dos frutos destes trabalhos e uma considerável porção do dia são despendidos
em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja
aparência e saúde assomam como interesse dominante no ethos deste povo.
Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos
cerimoniais e a filosofia a ele associada são singulares.
A crença fundamental do sistema parece ser a de que o corpo humano é
repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença.
Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas
características através do uso de poderosas influências do ritual cerimonial.
Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os
74

indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas


casas, e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, muito frequentemente, é
feita em termos do número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são
construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmaras de culto são
das mais ricas paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas
aplicando paçocas de cerâmica às paredes de seu santuário.
Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais
a ele associados não são cerimônias familiares, mas privadas e secretas. Os
ritos normalmente são discutidos apenas com as crianças e, neste caso,
somente no período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude,
contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes
santuários e obter descrições dos rituais.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede.
Neste cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas,
sem os quais nenhum nativo acredita poder viver. Estes preparados são
conseguidos através de uma série de profissionais especializados, os mais
poderosos dos quais são os médicos-feiticeiros, cujo auxílio deve ser
recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médicos-feiticeiros não
fornecem a seus clientes as poções de cura, só decidem quais devem ser seus
ingredientes e então escrevem em uma linguagem antiga e secreta. Esta
escrita é entendida apenas pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os
quais, em troca de outra dádiva, providenciam o encantamento necessário.
Abaixo de cada caixa-de-encantamentos, existe uma pequena pia-
batismal. Todos os dias, cada membro da família, um após o outro, entra no
santuário, inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes
tipos de águas-sagradas na pia-batismal e procede a um breve rito de ablução.
As águas sagradas vêm do templo da Água-da-Comunidade, onde sacerdotes
executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro.
Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente, o Latipsoh, em cada
comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para
tratar de pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo.
Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo
permanente de vestais que, com roupas e toucas específicas, se movimentam
serenamente pelas câmaras do templo.
75

As cerimônias Latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma


boa porção de nativos realmente doentes que entram no templo se recuperem.
Sabe-se que crianças pequenas, com uma doutrinação ainda incompleta,
resistem às tentativas de levá-las ao templo, porque “é lá que se vai para
morrer”. Apesar disto, adultos doentes não apenas querem, mas anseiam por
sofrer os prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para
tanto, não importa o quão doente esteja o suplicante ou qual seja a
emergência. Os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele
não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter-
se conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiões não
permitirão ao neófito abandonar o local se não fizer ainda outra doação.
O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as
suas roupas. Na vida cotidiana, o Nacirema evita a exposição de seu corpo e
de suas funções naturais. As atividades excretoras e de banho, enquanto parte
dos ritos corporais, são realizadas apenas no segredo do santuário doméstico.
Da perda súbita do segredo do corpo, quando se entra no Latipsoh, podem
resultar traumas psicológicos. Um homem cuja própria esposa nunca o viu em
um ato excretor acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto
executa suas funções naturais em um recipiente sagrado. Este tipo de
tratamento cerimonial é necessário porque os excretos são usados por um
adivinha, para averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente.
Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao
escrutínio, manipulação e aguilhoadas dos médicos-feiticeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer
qualquer coisa além de jazer em duros leitos. De tempos em tempos, o médico-
feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua
carne. O fato de que estas cerimônias de templo possam não curar, e possam
mesmo matar o neófito, não diminui de forma alguma a fé das pessoas no
médico-feiticeiro.
Como conclusão, deve-se fazer referências a certas práticas que têm
suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão perversiva ao
corpo natural e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras as
pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras.
Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm
76

pequenos, e torná-los menores quando são grandes. A satisfação geral com o


tamanho dos seios é simbolizada no fato da forma ideal estar virtualmente além
da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas de um
desenvolvimento hipermamário, são tão idolatradas que podem levar uma vida
boa simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados
nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos.
Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são
ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As funções naturais de
reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu
enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos esforços para
evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do
intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é, na realidade, pouco
frequente.
Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser
este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo
conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si
mesmo. Mas até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham
real significado quando encarados sob o ângulo relevado por Malinowski
quando escreveu:
“Olhando de longe e de cima, de nossos altos postos de segurança na
civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia.
Mas sem seu poder de orientação, o homem primitivo não poderia ter
dominado, como fez, suas dificuldades práticas, nem poderia ter o homem
avançado aos estágios mais altos da civilização.”

Produza um pequeno texto descrevendo as SALOCSE que você


conhece e procure analisá-las a partir dos conceitos antropológicos discutidos
(principalmente o de Cultura).

Boa sorte!
77

UNIDADE III

Educação das minorias e dos excluídos

Fonte: http://www.stelle.com.br/imagens/domenico.jpg
78

APRESENTAÇÃO

Escrevendo sobre a relação entre antropologia, educação e cidadania,


Cláudia Fonseca (1994) argumenta que, sendo o Brasil uma sociedade
estruturada por classes com grandes desigualdades sociais, o resultado é uma
“apartação”, uma separação provocada pelas condições de vida muito
diferentes em que cada uma delas vive. Essas diferenças materiais e culturais
exigem esforço de interpretação teórica das lógicas dos sistemas simbólicos de
cada um dos contextos de classe. Isso implica que o educador (a) considere
analiticamente a condição de vida material e os valores e as regras culturais do
meio de origem do educando (a) e dele (a) próprio. Lembramos que a
etnografia pode ser usada para a pesquisa da sala de aula, da escola, do
bairro. Vimos as recomendações de Malinowski sobre o método etnográfico,
em Antropologia I, no tópico sobre o Funcionalismo.
Fonseca (1994) diz que a redução da distância social entre as classes,
as etnias e os gêneros, só pode ser feita de forma adequada em contexto
democrático, que permita o dialogo e o contato dialógico, no qual “as próprias
categorias do “observador” se transformem em função do contato
intersubjetivo”, com a “alteridade”, o “outro”, escreve Fonseca (1994). Por isso,
ela indaga “como professores e professoras podem ser sensíveis as formas de
expressão cultural típicas das classes populares, a exemplo do futebol, dos
terreiros de candomblé, tornando-os artífices do exercício de cidadania”.
Fonseca propõe a questão de como educadores podem ensinar atitudes
adequadas a situação cidadã e democrática em um país “apartado” pelas
desigualdades sociais e culturais?
Esta questão será tomada como eixo desta terceira unidade onde
enfocaremos a relação entre educação, sociedade e cultura, visando elucidar o
fato de o sistema educacional ser a expressão da sociedade que elabora e
reelabora a constituição de si, produzindo a cultura. O nosso sistema
escolarizado é uma forma entre outras de equacionar o problema da
manutenção e da continuidade física e cultural do grupo. Assim, além da
desigualdade étnica e de classe que regula as relações sociais entre nós;
abordaremos também a desigualdade de poder econômico, político e social e
simbólico entre homens e mulheres, por que o modo dessa relação,
79

denominada “relação de gênero”, estrutura, ao lado de classe e etnia, o acesso


de homens e de mulheres aos recursos sociais e a liberdade de usá-los à seu
favor.
Deixaremos muito outros grupos de fora, cuja educação requer reflexão
teórica e políticas públicas especiais, a exemplo da educação de idosos,
portadores de necessidades especiais, prisioneiros (as), ribeirinhos, o (a)
pequeno (a) agricultor (a) familiar, o (a) sem-terra, os (as) seringueiros (as),
pescadores (as); entre tantas outras especificidades.

Fonte: Malinowski na Ilhas Trobriand. Disponível em:


<http://1.bp.blogspot.com/__TVTjj6i5Is/SEengJs_I2I/AAAAAAAAApI/D9urq1G9m64/s400/antropologia+4.j
pg>.
80

Subunidade I

Teorias antropológicas, educação e cidadania.

As teorias que foram apresentadas na disciplina de Antropologia I:


Evolucionismo (MORGAN), Funcionalismo (MALINOWSKI) e Estruturalismo
(LÉVI-STRAUSS) são úteis para a análise dos processos educativos próprios à
sociedade e ao sistema escolar nacional. O Evolucionismo de Morgan criticou o
determinismo biológico expresso na noção de raça, propondo que a mente
humana varia não de acordo com a raça, mas sim com o modo de vida próprio
a cada etapa da tecnologia daquela sociedade. Construiu um modelo de
análise que leva em conta o exame tanto da tecnologia de base material:
alimento, habitação, ferramentas, armas, utensílios; quanto às instituições
sociais: organização do parentesco, formas de governo. Modernamente o
Evolucionismo nos estimula a indagar sobre a influencia da tecnologia para o
desenvolvimento da mente e das instituições sociais.
O Funcionalismo, ao criticar o método comparativo dos evolucionistas,
mostrou que trabalhar com dados culturais fora dos seus contextos de origem
produz muita distorção e não fornece base sólida para a construção de um
modelo de interpretação da história cultural da humanidade como um todo, tal
como o proposto pelo modelo evolucionista de Morgan, pautado nos estágios
étnicos de Selvageria, Barbárie e Civilização. Assim, vimos como Malinowski
contribuiu para o desenvolvimento do “método etnográfico” sob a técnica da
“observação participante”, que exige a descrição minuciosa e analítica do
contexto de vida dos grupos em estudo, com base em uma vivência cotidiana e
prolongada com o grupo a ser pesquisado. É próprio da perspectiva teórica
Funcionalista, mostrar como a pesquisa partindo de qualquer elemento
significativo da cultura pode produzir compreensão sobre a estrutura e a
dinâmica social. O “método de Mosaico” tem por princípio teórico a idéia de que
a sociedade é um sistema estruturado e dinâmico de instituições sociais inter-
relacionadas entre si de modo a se influenciarem mutuamente. Compreende
81

que cada aspecto cumpre uma função para a totalidade social. Assim o
Funcionalismo pode orientar a pesquisa de como a sociedade está relacionado
com o sistema escolar e o modo como este sistema interage com a sociedade.
O Estruturalismo melhora o método da pesquisa etnográfica porque
retém do funcionalismo a idéia de que as sociedades humanas tendem à
organização sistêmica, ou seja, constroem estruturas ordenadas, mutuamente
articuladas; e vai além, propondo um método de análise do modo de
estruturação das sociedades, que leva em conta os “sistemas de
pensamento”: ciência, arte, religião, mitologias de cada sociedade; elucidando
o modo de construção dos códigos e das mensagens que os humanos
elaboram em suas vivencias sociais.
O estruturalismo interpreta a sociedade como um sistema de
comunicação que se fundamenta na troca (circulação) entre os grupos dos
bens preciosos: mulheres, bens e mensagens. A análise da circulação de
mulheres elucida os sistemas de parentesco, as regras de casamento e de
hereditariedade, moradia e pertença ao grupo. A análise do modo de circulação
dos bens mostra como lógicas distintas do puramente econômico podem
orientar a sua distribuição, a exemplo das lógicas religiosas, de parentesco,
cosmologia entre muitas outras. A análise do modo de circulação das
mensagens sintetiza o melhor do método estruturalista visto que a teoria
preconiza que cada elemento da cultura, seja material ou imaterial, pode ser
visto como SIGNO, ou seja, algo que expressa um significado que pode ser
interpretado ao modo de uma mensagem, um texto que pode ser lido,
decodificado. Pois como no exemplo do uso da manteiga entre os Dorzé,
exposto em Antropologia I, qualquer elemento, seja do ambiente natural, seja
da cultura, pode ser utilizado para veicular os significados, os valores do grupo.
Desse modo, o Estruturalismo ao propor o método de análise das oposições e
dos contrastes propõe um modo de análise de circulação dos símbolos, que ele
diz operar por sistemas de transformações. Veja como os usos da manteiga
entre os Dorzé varia de acordo como o domínio ao qual se aplica, ou melhor,
aos quais se opõem, realizando contraste, funcionando como marcadores de
sentido simbólico.
82

https://ssl-relativa.locaweb.com.br/livrosdeprogramaca/images/8575161180.jpg

Educação das minorias e dos excluídos

No inicio da colonização a educação escolarizada era restrita as


finalidades da catequese A vinda da família real ao Brasil, em 1808, é um
marco da expansão do ensino escolarizado, que, entretanto, não incluía os
índios, os negros e as diversas categorias de mestiços, em geral pobres. A
independência do país (1822), a abolição da escravatura (1888) e a
Proclamação da República (1889), Influenciarão a política da educação dos
quadros dirigentes do país e da qualificação de mão-de-obra para o trabalho. O
projeto de “embranquecimento” do país pela importação de mão de obra
europeia, contribuiu para que os negros, os índios e seus mestiços fossem
mantidos excluídos do sistema de escolarização. Veja o caso de Moçambique,
também colonizada pelos portugueses.
83

“No período Colonial em Moçambique, aprender significava


aprender o sistema colonial português. O acesso a esse sistema de educação
era muito limitado e destinado à população branca portuguesa, em menor
número, para moçambicanos portugueses (mulatos), para a população indiana
que chegou a Moçambique no século XIX. Para a grande maioria da população
africana o acesso a educação era quase impossível. Além disso havia poucas
escolas, uma estrutura intelectual muito precária e voltada à população
européia. Os africanos negros que conseguiram entrar na escola no período
colonial, até 1974, sofriam uma política de assimilação da cultura européia.
Isso significava deixar de lado os seus idiomas de família e de região. Na sala
de aula, falava-se português. A religião oficial era a católica e não havia espaço
para as religiões locais. Esse modelo de educação criou no africano
moçambicano uma contradição psicológica muito grande. Muitas vezes o
estudante africano estava em estado de guerra com ele mesmo, pois havia
todo o background da família que, dentro da sala de aula não tinha qualquer
valor. Era uma lavagem cerebral” .

TURNER, M. Educação em situações de ‘conflito’: Moçambique X EUA. IN:


GROSSI, E. P. e BORDIN, J. Construtivismo pós-piagetiano: um novo
paradigma sobre aprendizagem. Petrópolis, Vozes, 1993.

Vamos ver na internet!


84

Reivindicação por reparação caracteriza movimento negro contemporâneo


http://www.comciencia.br/reportagens/negros/02.shtml

Sistema de cotas para negros amplia debate sobre racismo


http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml
85

Subunidade II

Educação de afro-descendentes

Fonte: http://www.emn.ufscar.br/
86

A ideologia do branqueamento

No Brasil nós temos o “preconceito às avessas”, ou seja, negamos a


existência de relações hierárquicas entre os “nossos povos fundadores”:
negros, índios e brancos. No Brasil nós temos o “preconceito de não ter
preconceito”, escreveu um importante historiador brasileiro, o Nelson Werneck
Sodré. Entretanto, aprendemos desde a infância que a etnia, a classe e o
gênero determinam o nosso lugar no mundo. Assim, diferenciamos as pessoas
marcando-as simbolicamente pela cor da pele e pelo fenótipo. No Brasil,
negros, índios e brancos têm valor simbólico, prestígio e riqueza material de
modo muito diferenciado. Assim, esses grupos têm posições desiguais quanto
as características de renda, ocupação, habitação, instrução, linguagem, religião
e organização familiar.

Modelo educacional e colonialismo

Essas diferenças remontam a fundação histórica do Brasil como uma


sociedade de senhores e de escravos. Brancos europeus de um lado e índios e
negros do outro lado. Complexas relações de exploração, dominação,
subordinação, mas também resistência e criatividade foram gestadas no
decorrer dos 500 anos de história do país. História que começa a ser contada a
partir da chegada do europeu, ignorando a vasta história e as diversas
civilizações dos povos indígenas e das sociedades africanas, ambas com altas
civilizações milenares.
Por tudo isso, vivemos ainda o “problema racial” de um modo muito
velado e também violento, pois sobre as características decorrentes das
diferenças socioeconômicas são construídas imagens que colocam em dúvida
o status de humanos a estes grupos postos em condições subumanas:
escravizados à ferro e fogo, como se dizia e praticava no Brasil colonial. A
imagem destes grupos como animais bestiais foi sendo construída na
brutalidade e no servilismo das relações escravocratas; mas também foram
87

tornadas verdades pela ciência do século XIX e início do século XX: a exemplo
das teorias raciais expressa pelo “determinismos biológico” que, como vimos,
atribui características moral e psicológica “inatas” às diferentes raças. Estas
idéias podem ser apreendidas em nosso imaginário onde os negros são
sexualmente promíscuos, os índios são preguiçosos e os brancos são o
máximo da perfeição humana.
As sociedades colonizadas configuram-se como sociedades multietnicas
na medida em que colocam em interação conflituosa, violenta e também
cooperativa, povos distintos. O sistema escolar é implantado pelo colonizador
contra a cultura do colonizado. Vejamos o que nos diz Turner (1993) ao
comparar Moçambique e Estados Unidos da América, mostrando o que ele
chama de “pedagogia do conflito”, mostrando como a escola é um campo de
enfrentamento cultural:

Fonte: Africana no Brasil Colônia. Disponível em: www.jornallivre.com.br


88

Leia a excelente análise de Turner, transcrita abaixo. Os


títulos e intertítulos foram acrescentados ao texto para destacar pontos que
consideramos importar evidenciar no texto.

Nos Estados Unidos, a aprendizagem no sentido contemporâneo,


para a grande maioria da população, é a aprendizagem do sistema norte-
americano, dos valores da sociedade norte-americana. Até algum tempo, se
você não fazia parte dessa maioria, se pertencesse a um grupo minoritário,
hispânico, negro ou índio, por exemplo, o sistema educacional era de choque.
O modelo era elitista e tinha raízes européias. A princípio, tinha uma
ligação com a Inglaterra. Tudo o que era inglês era bom, fazia parte do
passado país. Os textos falavam dos "nossos antepassados ingleses". Os
antepassados que vieram de Gana ou da China não tinham vez. Essa idéia
elitista que está presente no modelo norte-americano começa nas faculdades,
como Harvard, Yale, entre outras.
O problema da integração dos colonizados e dos migrantes pobres no
sistema escolar

Na Califórnia, o maior Estado dos EUA, os dados indicam que no ano


2.000 a população branca será minoritária. A maioria da população da
Califórnia, no ano 2.000, será constituída de asiáticos, vindos do Japão, da
China e de diversos países do sudeste asiático, e de hispânicos vindos do
México e da América Central. Então, a Califórnia já representa uma outra
realidade com estes grupos que adquirem cada vez maior importância e
trazem junto com eles cultura, língua e costumes. Tudo isso está entrando
nas salas de aula. É uma situação diferente da ocorrida no início do século
XX com a tradicional imigração de italianos, alemães, irlandeses, judeus russos
e outros. Para estes grupos, a meta era integrar-se na sociedade americana.
89

A contestação política da exclusão étnica

Quando as crianças imigrantes ingressaram nas escolas primárias, nas


décadas de 20 e 30, a meta era conseguir uma rápida assimilação dos valores
norte-americanos. Ninguém contestava isso. Agora não. Agora, os imigrantes
dizem que sua cultura também tem valor. Querem vê-la representada no sistema
de educação, nos currículos escolares. Isso está provocando um choque nas
escolas. Quando o professor de história dos Estados Unidos, por exemplo,
começa a falar de uma maneira mais ou menos tradicional sobre o papel da
população indígena, um aluno de origem indígena protesta e diz-se ofendido pela
maneira como está sendo tratada sua cultura. O fato de um professor pronunciar a
palavra "nativo", por exemplo, pode gerar um processo Jurídico, por racismo,
contra ele. Estes choques dentro das salas de aula são normais hoje em dia.
Nas grandes cidades, como Nova Iorque, Los Angeles, Filadélfia, Miami, a grande
maioria das professoras é branca e tem uma média de 40 alunos, sendo que, em
geral, só um é branco. O resto da turma é formado por hispânicos, negros,
asiáticos e europeus recém-chegados do Leste.
Assim, a idéia do americano típico já está ultrapassada. Na Flórida e na
Califórnia, os grupos tradicionais tentaram criar legislação para obrigar o uso da
língua inglesa nos lugares públicos. Até agora, essas tentativas fracassaram, mas
estes grupos tradicionais têm muito medo que os estrangeiros bárbaros acabem
tomando conta de tudo. O prefeito de Miami, nos últimos 6 anos, é de origem
cubana. Várias cidades do Texas têm prefeitos de origem mexicana. No
Congresso, já há vários deputados de origem mexicana, há um deputado recém-
eleito de origem indígena e um outro que veio do Alaska.
O “novo mundo” é multicultural: o “mosaico” de culturas

Os Estados Unidos, como outros países que possuem muitas etnias


convivendo, é um mosaico de culturas. Não foi apenas uma cultura que fundou a
sociedade nacional. Para adotar uma postura mais honesta e realista, o currículo
escolar tem, de algum modo, que incluir as contribuições destes outros grupos.
Por exemplo, a guerra dos EUA contra o México, no século XIX, foi uma guerra
imperialista com objetivo de tomar terras do México e, de fato, conseguiu tirar 50%
do território mexicano. Nos EUA, ela é chamada de "a guerra entre os EUA e o
México". Para o México, foi uma guerra de opressão, patrocinada pelos EUA. Deve
90

sair um filme em 1993 sobre o "cow-boy" negro e seu papel na história do oeste
norte-americano.
O “mosaico” assimétrico: a exclusão do negro, do índio e da mulher
Houve muitos "cow-boys" negros, mas, nos filmes de John Wayne, eles nunca
aparecem. Com o filme "Dança com lobos", Hollywood descobriu que havia
indígenas dignos, com sentimentos e emoções. Então, é preciso reescrever a
história dos EUA, incluindo o papel das minorias e da mulher. Na visão tradicional
da história norte-americana, a mulher quase nunca aparece. Só nos últimos 15
anos é que esse papel histórico da mulher começou a ser escrito. Poucos norte-
americanos sabem que as ferrovias do oeste dos EUA foram construídas no século
XIX por operários chineses. A história desses milhares de chineses que viveram
nos EUA não é contada. Os currículos precisam Incluir todas estas pessoas que
foram excluídas ao longo dos anos. Isso faz parte desta verdadeira guerra em
favor do multiculturalismo que existe hoje nos EUA.
A escola como campo de guerra civil
Outro problema nas escolas norte-americanas é a violência. Passou a ser
normal nas grandes escolas, nos bairros populares, que para entrar no colégio é
preciso passar por um detector de metal, a fim de evitar Ingresso de pistolas e facas.
Várias escolas tornaram-se campos de guerra. Como um estudante vai aprender
alguma coisa se está com medo de ser atacado dentro da sala de aula? Fazendo
um paralelo com a situação de Moçambique, Infelizmente, em muitas escolas
norte-americanas também há uma espécie de guerra civil.
Fonte: TURNER, M. Educação em situações de ‘conflito’: Moçambique X EUA. IN: GROSSI, E.
P. e BORDIN, J. Construtivismo pós-piagetiano: um novo paradigma sobre aprendizagem.
Petrópolis, Vozes, 1993. p. 221-223.

Vamos ver na internet!

Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial


http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/seppir/publicacoes/
91

Arquivo pdf - Veja a íntegra »

Quilombos do Brasil
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/seppir/copy_of_acoes/

Veja o Programa Brasil Quilombola 2004


http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/seppir/publicacoes/brasilquilombola_2004.pdf

Veja o site do Programa a Cor da Cultura


http://www.acordacultura.org.br/

Conclusão

A incorporação dos grupos étnicos dominados ao acesso escolar em


nosso país é, até hoje, uma questão “mal-resolvida”, basta lembrarmos a atual
“polêmica das cotas” e o modo como escolas étnicas são relegadas a status de
“questão menor”, a exemplo de escolas indígenas e quilombolas; e a
igualmente precária escolarização rural, à exceção talvez das escolas técnicas;
como também a grandes diferenças de recursos e de equipamentos
disponibilizados para a rede publica estadual e municipal, particularmente, nas
periferias das cidades.

1. A partir dos tópicos em destaque, faça uma redação, em três laudas,


que expresse o seu entendimento e experiência da situação brasileira,
inspirando-se no texto de Turner (1993).

2. Compare o seu texto ao de seus colegas de grupo e avalie o que você


deixou de considerar, bem como a qualidade de sua escrita e raciocínio,
frente à de seus colegas. Reescreva o seu texto visando melhorá-lo
naquilo que for necessário.
92

 Modelo educacional e colonialismo

 O problema da integração dos colonizados e dos migrantes

pobres no sistema escolar

 A contestação política da exclusão étnica

 O “novo mundo” é multicultural: o “mosaico” de culturas

 O “mosaico” assimétrico: a exclusão do negro e da mulher

 A escola como campo de guerra civil


93

Fonte:
http://4.bp.blogspot.com/_WxtVM2yP0PA/STsKupqIRYI/AAAAAAAABnc/2oNAkj76D5c/s400/bel
eza+negra.JPG

Educação e Movimento Negro - Evm

Livro: Tramas da cor: enfrentando o preconceito no dia-a-dia escolar - Rachel


de Oliveira

OLIVEIRA, R. de. Tramas da cor: enfrentando o preconceito no dia-a-dia


escolar. São Paulo: Selo Netro, 2005.

http://www.emn.ufscar.br/
94

Educação indígena

Fonte: http://www.socioambiental.org/prg/pib.shtm

Do estigma ao direito à diferença

A legislação brasileira institui a educação escolar indígena como


diferenciada. A Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação assim a definem. O Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNE/Indígena) registra:

São mais de 200 os povos indígenas que vivem hoje no Brasil.


Falam mais de 170 línguas diferentes (muitas tão diversas e
incompreensíveis entre si como o português e o chinês) e seus
territórios localizam-se por todo o país. Além das diferenças
relativas à língua, ao modo de viver (de organizar-se
socialmente, economicamente, politicamente) e de pensar
(sobre o mundo, a humanidade, a vida e a morte, o tempo e o
espaço) têm a memória de percursos e experiências históricas
diversas, de seus contatos com outros povos indígenas e com
os não-índios. Da reflexão sobre estas trajetórias, de suas
teorias sobre o cosmos e sobre os seres, dos significados que
construíram filosoficamente para as coisas e os
acontecimentos, nascem diferentes visões de mundo
expressas na arte, na música, nos mitos, nos rituais, nos
discursos. Este é um processo sem fim. Culturas e línguas são
frutos da herança de gerações anteriores, mas estão sempre
em eterna construção, reelaboração, criação, desenvolvimento.
95

O respeito ao direito à diferença – exigido no Brasil pela


Constituição Federal – é o principal recurso para a
continuidade do processo de construção desse patrimônio vivo,
sempre renovado em seus conteúdos e significados.
(RCNE/Indígena, 1998, pág. 22)

Fonte:
http://1.bp.blogspot.com/_jHiPGQxAOKA/SgLca2x9lvI/AAAAAAAABzU/qr6IiWh68jI/s400/63694
5.jp

As características da educação escolar indígena

As características da educação escolar indígena é o fato de ser


comunitária, ou seja, definida pela comunidade, intercultural, pois lida com pelo
menos duas culturas distintas; bilíngue ou multilíngue, conforme o caso das
línguas em uso. Específica e diferenciada porque adequada a cada povo em
particular: decidindo calendário, pedagogia, conteúdos e espaços de
aprendizagens.
A criação da categoria escola indígena exigiu formação especifica para
esse tipo de magistério. Programas de formação de professores indígenas, em
nível de magistério, foram implementados em vários estados, inclusive em
Rondônia, onde o programa de formação foi chamado de Projeto Açaí. Várias
universidades brasileiras desenvolveram cursos de formação superior para
indígenas, e a Universidade Federal de Rondônia, realizará neste ano de 2009,
96

o primeiro vestibular voltado a esse público, visando seleção para o curso de


Educação Intercultural, sediado no campus de Ji-Paraná. O RCNE/Indígena
esclarece algumas ideias equivocadas sobre os indígenas que são
compartilhadas por professores não-índios, contribuindo para o preconceito
contra estes povos. Idéias como:

Ideias erradas sobre os povos indígenas

São todos iguais: desconhece-se e nega-se a grande


diversidade sociocultural e linguística entre os povos indígenas.
São do passado: primeiro, nega-se a presença dos povos
indígenas como parte da população brasileira e como
integrantes do futuro do país; segundo, considera-se o índio
como representante da ‘infância’ da humanidade, como
remanescente de um estágio civilizatório há muito ultrapassado
pelos ‘civilizados’. Os índios não têm história: decorrente da
noção anterior, esta baseia-se na falsa certeza de que os
povos indígenas ‘pararam no tempo’, não ‘evoluíram’, vivem
como na ‘nossa’ pré-história. Como consequência, imagina-se
erroneamente que as sociedades e culturas indígenas não se
transformam, não se desenvolvem e que as suas tradições são
absolutamente imutáveis. São seres primitivos: ‘atrasados’, que
precisam ser ‘civilizados’: nega-se aos povos indígenas o
direito a autodeterminação e a autonomia de suas escolhas e
desqualifica-se seu patrimônio histórico e cultural. Isto impede
que se admita e reconheça a existência de ciências e de
teorias sociais indígenas, de uma arte e religião próprias, etc.
São aculturados: não são mais ‘índios’: imagina-se que quando
os povos indígenas alteram alguns aspectos no seu modo de
viver tornam-se ‘aculturados’, deixam de ser ‘autênticos’ e não
podem mais reivindicar terras e outros direitos relativos à
condição de índios. (RCNE/Indígena, 1998, pág. 41)
97

Fonte: Egon Heck/Cimi. Indígenas participam de audiência pública na


C.D.H./Senado.Disponível em: http://www.cimi.org.br/#

Leia abaixo o texto de Alcida Rita Ramos, antropóloga,


estudiosa das sociedades indígenas, dando uma excelente visão introdutória
sobre as sociedades indígenas no Brasil.
_______________________________________________________________
Os índios serão extintos?
Através de quase cinco séculos, os povos indígenas do Brasil têm resistido
tenazmente à morte. Aqueles que preveem a sua extinção em futuro próximo
parecem não se dar conta desse longo processo de resistência que, desde
1500, tem posto à prova as energias e determinação dos índios para
sobreviver.
Gigantescas pressões que vão desde matanças intencionais, transmissão de
doenças, usurpação de terra a medidas mais sutis de desagregação, não têm
sido suficientes para eliminar todas as etnias indígenas neste país. A
imensa mortalidade, que teve o seu ponto mais crítico talvez no início deste
século, causou a extinção de muitos povos e reduziu drasticamente a demo-
grafia de todos. A população indígena do Brasil é, na verdade, a menor
98

dentre os países sul-americanos, em proporção à população branca


majoritária. Porém os nossos índios existem e estão aqui para ficar.
O processo histórico de colonização
A avalanche do processo histórico da conquista abalou enormemente os
povos indígenas, transformou suas culturas, mas não os eliminou. Por cima
dos escombros do morticínio de vários séculos, os indígenas brasileiros
chegam quase ao fim do século XX com tal disposição de luta por seus
direitos feridos que dão à nossa história um exemplo cabal de resistência
étnica.
A identidade étnica permanece?
Pode ser que suas culturas tenham sido desfiguradas — e isso tem
ocorrido em vários casos, mas sua identidade étnica permanece. Os Gaviões
do Pará podem usar calculadoras para contabilizar sua produção de
castanha, mas continuam se afirmando não apenas como índios, mas como
índios Gaviões, agora mais do que nunca. Usar roupa, relógio de pulso,
sandália havaiana ou radio transistor faz um índio se tornar branco tanto
quanto um colar de contas, uma pulseira de fibra, uma rede de algodão ou
uma panela de barro transformam um branco em índio. O que conta é o
modo de ser, a visão de mundo, a atitude para com a vida, a sociedade,
o Universo, e isso não se destrói tão facilmente. Nem mesmo onde mis-
sionários ortodoxos mantêm internatos, submetendo crianças indígenas a um
constante processo de endoutrinamento, o resultado é a erradicação da
tradição étnica. Na verdade, é do Alto rio Negro, no Amazonas, onde
padres salesianos mantêm tais internatos, que vem um dos fortes clamores
indígenas pela preservação da sua identidade.

A lição que os povos indígenas nos dão é que a violência do processo


de conquista não aplainou a diversidade cultural e étnica. Eles nos mostram na
sua prática social e política, que a tradição não é uma coisa fossilizada do
passado que só pode persistir no isolamento. Ao contrário, tradição é o
conjunto de significados — crenças, valores, saberes — que um povo construiu
e vai transformando de geração a geração.

É esse processo de revitalização constante da tradição que dá a cada


povo indígena a força e o respaldo mental e emocional para continuar a
preservar a sua especificidade étnica em meio a todas as vicissitudes que
advêm do contato com a sociedade nacional que o rodeia. Essa tradição
99

continuamente revivida é só deles e ninguém a pode tirar. Na sua luta em


defesa própria contra o perigo da aniquilação cultural, os indígenas começam
a utilizar os meios dos civilizados, seja pela via político-partidária, seja pela
organização em movimentos sociais, ou lançando mão de recursos jurídicos.
Mas nem por isso deixam de ser índios.

Pelo contrário, é lançando mão de mecanismos de defesa dos brancos


que eles se afirmam como seus iguais. Porém uma coisa deve ser enfatizada.
Ser igual aos brancos não quer dizer abrir mão de sua identidade específica,
mas ser reconhecido como legitimamente diferente. Essa igualdade não deve
ser por mera semelhança, mas por equivalência. Neste país de tantas
línguas e culturas, a luta dos índios é pelo reconhecimento de que suas
línguas e suas culturas são tão válidas quanto a língua portuguesa e a dita
"cultura brasileira", em si mesma já tão diversificada. É, afinal, o desejo de ver
este país assumir explicitamente aquilo que existe de fato, isto é, uma
sociedade pluriétnica, capaz de comportar em seu seio modos de ser social
diverso e enriquecedor para toda a coletividade nacional. (RAMOS, 1986, p. 90-
92.)
100

Escolha um dos temas a seguir, entre os indicados


para ver na internet, leia a matéria correspondente e redija um texto de no
máximo duas laudas sobre o assunto escolhido e anote no seu Diário de
Bordo.

Política Indigenista

Programas regionais para uma nova política indigenista

http://www.socioambiental.org/inst/docs/download/rtf/prog_reg.pdf

Educação Escolar Indígena

http://portal.mec.gov.br/coneei/

http://www.funai.gov.br/

http://www.cimi.org.br/

Manifesto em favor de uma educação escolar indígena de qualidade


http://www.cimi.org.br/?system=news&eid=244
101

Educação escolar, territorialidade e autonomia dos povos indígenas

A educação escolar faz parte das lutas dos povos indígenas


pela garantia e proteção territorial e pelo reconhecimento da
diversidade sociocultural, relacionados à c... Leia mais

Políticas, gestão e financiamento da educação escolar indígena e


diversidade cultural

... A consideração da interculturalidade, do bilinguismo / multilinguismo, das


especificidades dos contextos Leia mais

Participação e controle social


O reconhecimento e o respeito à sociodiversidade indígena
implicam na constituição de mecanismos institucionalizados
de diálogo e consulta prévia e informada dos repres... Leia
mais

Diretrizes para a Educação Escolar Indígena

No sentido de avançar no tratamento das especificidades dos povos indígenas


e suas demandas educacionais de maneira sistêmica é necessário ampliar as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar
Indígena, do Conselho Nacional de... Leia mais
102

Conclusão
É preciso considerar o espaço e o tempo dos processos educativos de
cada sociedade. Em nosso caso, mantemos as crianças e os jovens em
escolas separadas de outras atividades. Diferente dos processos de ensino dos
povos indígenas nos quais o processo de ensino é realizado no transcorrer das
atividades ordinárias, cotidianas; e extraordinárias do grupo, a exemplos dos
rituais de nascimento, núpcias, funerais, guerras e viagens de longa distâncias.
A contradição que se apresenta é a do confronto entre o sistema escolar,
instituição que visa homogeneizar a cultura nacional e a diversidade das
culturas indígenas. Aracy Lopes nogueira, estudiosa da escolarização indígena
indaga: será possível à escola o respeito real as ‘formas de transmissão de
conhecimento’ próprias à socialização indígena, tal como garantido
expressamente nas leis? (SILVA et al., 2002, p. 57)

Fonte: http://www.aguaforte.com/osurbanitas7/amaral4.jpg
103

Subunidade III

Gênero e Educação

Fonte: http://200.130.7.5/spmu/docs/Livro_II_PNPM_completo08.10.08.pdf
104

Determinismo biológico e patriarcado

O “Determinismo biológico” também é usado para legitimar outra situação de


desigualdade social, além da desigualdade étnico-racial, que é a desigualdade de
poder social e simbólico entre os gêneros masculino e feminino. Pois durante muito
tempo se afirmou que as diferenças entre homens e mulheres eram de base
biológica, desconsiderando-se os fatores culturais que constituem a subjetividade e
com ela, a identidade de ser homem ou mulher. Muito já se conquistou na
compreensão das hierarquias entre homens e mulheres, bem como, na redução das
diferenças de poder econômico, social e político. Therborn, em estudo comparativo
sobre a família no mundo (1900-2000), afirma que o “sistema do patriarcado” é a
estrutura de poder que mais passou por transformações no século XX. O patriarcado
dava ao pai, chefe de família poderes absolutos sobre a sua mulher e os seus filhos e
filhas. A mulher não tinha direito a voz, pois ela era representada pelo homem; não
votava, não tinha propriedade e nem controle sobre os seus bens. As leis de
casamento eram muito restritivas às mulheres, colocando-a em subordinação ao
marido.
Ainda segundo Therborn, a “grande transformação” deste quadro de restrições
à cidadania e aos direitos humanos das mulheres ocorreu na segunda metade do
século XX, quando constituições “democráticas” foram sendo elaboradas ou impostas
aos países sob a influência Ocidental. Mostra a participação de liberais, comunistas;
e entre eles, os movimentos feministas também liberais ou comunistas, nesse
processo de construção dos direitos das mulheres frente ao patriarcado, entendido
por Therborn como “direito do pai”, ou seja, o direito do macho adulto sobre as
fêmeas e os seus filhos e filhas.
Hoje as políticas públicas são condicionadas por lei a considerar a dimensão
de gênero em sua formulação. Assim, as políticas de saúde, educação, habitação,
crédito, trabalho, agricultura, justiça; todas as políticas públicas precisam levar em
conta a diferença de gênero, de modo a prever o tipo de impacto de cada política
sobre os homens e as mulheres.
105

MAS AFINAL, O QUE É GÊNERO?

Fonte: http://linhaslivres.files.wordpress.com/2009/03/trabalho-domestico.jpg

Para entender a noção de gênero é preciso estabelecer diferença entre sexo,


sexualidade e gênero. O sexo diz respeito a anatomia do corpo indicando o pênis e a
vagina. Sexualidade diz respeito a prática do ato sexual, se ocorre com pessoas do
mesmo sexo ou de sexo diferente. E o gênero diz respeito ao modelo de homem e de
mulher que cada sociedade constrói. Os modelos não são fixos e se transformam
junto com a sociedade.
Assim, as características que serviam para definir a mulher, no inicio do século
XX, já não se aplicam às mulheres da atualidade. Nossas bisavós estavam
impedidas de estudar, ter um ofício fora do âmbito doméstico, optar por não ter filhos.
Miriam Pillar Grossi, antropóloga, estudiosa das questões de gênero, lembra que
Simone de Beauvoir, filósofa francesa, que escreveu uma importante obra em dois
volumes, na década de 50, sobre a condição da mulher no Ocidente, intitulada “O
segundo sexo”; nela Beauvoir diz que as mulheres estavam presas ao “essencialismo
de sua condição biológica”.
Ou seja, em nossa sociedade raciocinava-se pela lógica do “determinismo
biológico”, dizendo que as mulheres eram fracas, emotivas, ilógicas e destinadas
pela “natureza” a gerar crianças e cuidar delas. Veja a sequência do argumento de
Miriam Pillar Grossi, sobre cultura, gênero e diferença sexual, no texto abaixo, onde
ela discute o essecialismo de gênero, ou seja, a idéia de que o comportamento de
homens e de mulheres em sociedade tem por base a “natureza” de cada sexo.
106

SABER MAIS

Leia o texto de Grossi, transcrito a seguir.


Observação: Os títulos e intertítulos do texto foram acrescentados por mim,
para dar destaque aos assuntos tratados.

Gênero, Natureza e Cultura.

Mas, se as mulheres estão ligadas à Natureza, o que elas têm a ver com a Cultura? Um dos
trabalhos mais polêmicos a este respeito é o de Levi-Strauss a respeito de como se dá a passagem da
natureza à cultura. Segundo ele, os homens precisam "trocar as mulheres" para construir a cultura.
Se todas as pessoas casassem com familiares não haveria trocas, não se aprenderia nada de novo;
portanto, é por isto que em todas as culturas existe o "tabu do incesto", que significa que somos
proibidos de casar com determinadas pessoas. Na cultura ocidental cristã não podemos casar com
parentes muito próximos: pais, irmãos, tios e primos, porque acreditamos que as crianças podem
nascer aleijadas, o que não acontece em outras sociedades.

Estudos antropológicos sobre a diferença social e cultural entre homens e mulheres


Antropólogos que estudaram culturas de todo o mundo são unânimes em constatar que todos
os grupos sociais consideram uma classificação básica a separação das esferas masculinas e
femininas. Esta classificação se constrói a partir da diferença biológica entre homem e mulher; no
entanto, o que será atribuído a cada sexo, em cada lugar, em cada momento histórico dado, em
cada situação, vai depender de cada cultura. Masculino não existe sem feminino e vice-versa, no
entanto ser homem ou ser mulher no Brasil, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre ou no Bom Fim,
é muito diferente do que ser homem ou mulher numa tribo indígena da Amazônia ou mesmo em
outros lugares do Ocidente.
A relação entre sexo e temperamento não é natural
107

Quem primeiro deu exemplos disto foi uma famosa antropóloga americana dos anos 30,
Margareth Mead, que escreveu um livro bombástico para sua época - Sexo e Temperamento - onde
ela analisava 3 diferentes culturas da Melanésia: os Mundugumor, os Tchambuli e os Arapesh. Estas
três tribos viviam numa mesma ilha a poucas milhas de distância. Na primeira delas homens e
mulheres eram muito pacíficos, ambos cuidavam das crianças com carinho e o valor maior era a
harmonia. Na segunda, o principal valor era a agressividade e tanto homens quanto mulheres
viviam brigando, demonstrando força física, ensinando as crianças a serem independentes
desde cedo. Finalmente na terceira tribo Mead descobriu o que ela chamou de "inversão dos
papéis de homens e mulheres no Ocidente: os homens eram pacíficos, caseiros e as mulheres
agressivas e atuando no espaço público". A tese principal da autora neste livro era portanto de que
não existiam "atribuições naturais" ligadas ao sexo biológico e sim atribuições sociais que ela
chamou de papéis sexuais.
Divisão de papéis sexuais: trabalho e valor; público e privado
Papéis sexuais seriam, portanto tarefas e valores associados em determinada sociedade às
pessoas do mesmo sexo biológico. Com o tempo, no entanto, muitos pesquisadores acabaram
usando o termo apenas para falar da divisão sexual do trabalho em diferentes sociedades,
ligando seguidamente as atividades domésticas às mulheres e as públicas aos homens. O
exemplo de grupos de caçadores/coletores foi muito utilizado para explicar por que havia uma
divisão de tarefas associadas às atividades de reprodução humana. Como o conceito de papéis
sexuais acabou se confundindo com sexo, a partir dos anos 70 algumas pesquisadoras vão
começar a usar o termo gênero para se "referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas de homens e mulheres", como definiu Joan Scott.
Não é o biológico que determina o gênero: o mito do amor materno
' Para nós é sempre difícil pensar que não é o biológico que determina o gênero, pois afinal é
no corpo que fixamos nossa identidade, que mostramos aos outros quem nós somos. Em função
disto, nossa cultura nos ensinou, por exemplo, que a maternidade (como função biológica) é que
distingue as mulheres dos homens. Por mais que a gente até possa optar por "não ser mãe",
desvincular nossa identidade de "mulher" deste corpo biológico é muito difícil. A maternidade tem
um suporte biológico, mas a forma como ela é vivida e social e culturalmente construída já foi
mostrada por Elisabeth Badinter a respeito do "mito do amor materno", onde ela conta como até o
século XVIII a concepção de maternidade era muito diferente da que temos hoje. Algumas
feministas radicais dos anos 70, como Sulamith Firestone, pensavam que a solução para a
igualdade entre homens e mulheres seria a de acabar com a maternidade, produzindo bebês
de proveta. Hoje, esta forma de solução que buscava "apagar as diferenças" já está
108

ultrapassada, inclusive porque, com a popularização das experiências de fecundação ín uííro,


pesquisadores têm demonstrado o quanto estas soluções servem mais aos interesses capitalistas
da indústria farmacêutica do que para as próprias mulheres.
A dificuldade em distinguir sexo de gênero
Sei que é muito difícil distinguir sexo de gênero porque a construção de nossa identidade
pessoal se constrói na nossa identidade sexual. Assim, categorias como "atividade" e
"passividade" são percebidas como "masculinas" ou "femininas" quando na verdade são atitudes
que variam de acordo com a cultura e o momento histórico. Na nossa cultura, por exemplo,
passividade é percebida como um comportamento "natural" das mulheres. Mas quantas de nós
seguimos à risca este modelo, tanto no plano social quanto sexual?
Outros gêneros: as várias formas de sexualidade
Para desconstruir estes modelos, muitos pesquisadores se têm dedicado a estudar a
homossexualidade. Robert Stoller, um dos pioneiros neste campo, postulou que é mais fácil mudar
o sexo biológico do que o gênero da pessoa. Estudando casos de identidade sexual de hermafroditas,
com os quais houve problemas na definição do sexo ao nascer, ele constatou que é praticamente
impossível fazer uma criança de mais de três anos de idade mudar de gênero. De acordo com
Stoller, a identidade de gênero se constrói desde o nascimento quando se olha para a criança e se
lhe atribui um gênero que vai se consolidando no processo primário de socialização. Segundo ele, a
escolha do objeto sexual que vai se dar na adolescência não será um elemento constitutivo da
identidade de gênero do indivíduo. Assim, por exemplo, um homem que escolher outro do mesmo sexo
como objeto "de desejo não vai se "sentir mulher" e sim homem.
A escola e o processo de construção social da hierarquia entre os sexos

Falar em gênero é, portanto pensar não em homens e mulheres biologicamente diferenciados


mas em masculino e feminino como constituídos a partir de "relações sociais fundadas nas
diferenças entre os sexos", diferenças lentamente construídas e hierar quicamente determinadas.
A escola é, sem dúvida, um espaço privilegiado para este exercício, pois é nele que se dá grande
parte do processo de socialização de meninas e meninos. Pergunto-me como professoras e
professores se têm utilizado deste espaço, seja para reificar todos estes estereótipos de gênero,
seja para questioná-los e reinventá-los.

Fonte: GROSSI, M.P. O masculino e o feminino na educação. IN: FREIRE, M. e GROSSI, E.


P (Org). Paixão de aprender. Petrópolis, Vozes, 1993, pág. 255-257
109

Fonte: http://blogdamentecerebro.blog.uol.com.br/images/mariadapenha.jpg

Fonte: http://www.teatrovilavelha.com.br/blog/2007/mulheres.jpg
110

A) Seguindo o roteiro a seguir, produza um texto de até 02 laudas expondo a sua


compreensão da distinção entre sexo, sexualidade e gênero, o modo de articulação entre a
natureza e a cultura, e as formas de reprodução da hierarquia entre os sexos pelas práticas
escolares.

B) Observação: Inspire-se no texto de Grossi, exposto logo acima, mas construa um texto
próprio. Não faça cópia, atente para as regras de citação e de referências bibliográficas.
Utilize a sua vivência para fundamentar os seus argumentos. Faça uso dos conceitos
antropológicos: cultura, gênero, papéis sociais; entre outros que você julgar adequado para
efetuar a sua exposição e análise.

1. Gênero, Natureza e Cultura

2. Estudos antropológicos sobre a diferença social e cultural entre homens e mulheres


3. A relação entre sexo e temperamento não é natural
4. Divisão de papéis sexuais: trabalho e valor; público e privado
5. Não é o biológico que determina o gênero: o mito do amor materno
6. A dificuldade em distinguir sexo de gênero
7. Outros gêneros: as várias formas de sexualidade
8. A escola e o processo de construção social da hierarquia entre os sexos.
111

Outros gêneros. A relação de gênero, não diz respeito


apenas a relação entre homens e mulheres, designa também a relação entre
mulheres e homens separadamente, além das relações estabelecidas por
outras identidades de gênero, a exemplo de gays e lésbicas; além de travestis,
transexuais, bi-sexuais e transgêneros.

Fonte: http://www.baressp.com.br/especiais/paradagay/images/parada_gay.png

Vamos ver na internet!

Conheça o II plano nacional de políticas para as mulheres


http://200.130.7.5/spmu/docs/Livro_II_PNPM_completo08.10.08.pdf

Conheça o site da secretaria especial de políticas para as mulheres - spm


112
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/

Conheça o observatório Brasil da igualdade de gênero


http://www.observatoriodegenero.gov.br/

Fonte: http://www.justica.sp.gov.br/glbtt/

Vamos ver na internet!

Delegados de conferência GLBTT divergem sobre papel do Estado


http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/13/materia.2008-04-13.5059225380/view
113

Assista ao vídeo da parada do orgulho gay.

Levantamento do Grupo Gay da Bahia mostra que a cada dois dias um


homossexual é assassinado no país. Gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros
pedem o fim da violência.

Disponível em: http://www.agenciabrasil.gov.br/media/videos/2007/06/29/Orgulho_Gay.flv/view

Fonte: A luta da mulher do campo pela terra, pela moradia e pelo trabalho. Disponível em:

<http://oglobo.globo.com/fotos/2009/03/09/09_MHG_pais_sem-terra-mulheres_0.jpg>.
114

Sugestão para o estudo de gênero nas escolas

O magistério tem gênero?

A) O magistério tem gênero? Ou seja, é profissão de mulher? Qual é a


consequência da presença de docente do sexo masculino nas escolas?
Como é a distribuição de poder entre professoras e professores no sistema
educacional?

Como nos tornamos professoras? E Professores?

B) Como nos tornamos professoras? E Professores? Como isso se relaciona


ao nosso modo de nos construirmos como homem e como mulher? Ou
ainda, com referência a outras formas de sexualidade?

Como são as relações de gênero na escola?


C) Como são as relações de gênero na escola? Entre professores, funcionários
e direção? Entre alunos? Entre professores e alunos? Como são tratados
meninos e meninas?
Como são tratadas as questões da sexualidade?
D) Como são trabalhadas questões como gravidez, estupro,
virgindade, homossexualidade, sexualidade, com os alunos?
A ciência é masculina?
E) Gênero e Ciências. Por que toda a ciência que ensinamos é
masculina? Por que há poucas mulheres cientistas? Por que não
valorizar experiências "femininas" ligadas a procedimentos químicos na
cozinha, por exemplo?
Como são representados os gêneros nos Estudos Sociais?
F) Gênero e Estudos Sociais. Por que há tão poucas mulheres
115

na História Oficial? Pensar na história das mulheres, em novas


formas de construir a história (ver os trabalhos da História Social
das Mentalidades que abordam a História das Mulheres). Sugerir
que se faça a história recente a partir da memória das mulheres da
família.
Gênero e Linguagem
G) Gênero e Linguagem. A língua não é neutra. Refletir com os
alunos sobre a gramática portuguesa, propor uma "guerrilha da
linguagem". Na literatura, estudar como as mulheres são mostradas
como personagens, propor mais leituras de autoras mulheres e
analisar como a língua pode ser utilizada de diferentes maneiras
ligadas ao gênero.
Gênero e Artes

H) Gênero e Artes. Como aparece a questão de gênero no teatro,


na música, nas artes plásticas? Reproduzem-se estereótipos, cons-
troem-se novos modelos?
I) Há casos de crianças que sofrem de violência doméstica e sexual em sua
escola?

Observação bibliográfica: Neste roteiro, inspiro-me em FONTANA


(2000), nas questões a, b, c; e transcrevo as questões d, f, g, h, do texto de
GROSSI. (1993, pág. 258)
116

Fonte: http://www.sertao24horas.com.br/cute/data/upimages/mulheres-violencia.jpg

Em grupo, escolha um dos tópicos do roteiro acima


indicado, desenvolva o tema por escrito, em até duas laudas.
117

CONCLUSÂO

A distância entre as classes sociais provocada por pouca ou nenhuma


escolarização afeta a renda que se pode obter. A renda estrutura a condição de
vida, e esta condição determina quase que de modo absoluto as trocas
culturais entre os muito ricos e aqueles que quase nada tem de seu; nem
mesmo nome ou existência notável, a não ser como um incômodo a ser
afastado. Assim, estes grupos são segregados fisicamente aos bairros pobres
e miseráveis. Ali também residem os índios que migram de modo forçado ou
voluntário para as cidades.
A relação entre cultura, educação e poder mostra todo o seu potencial
tanto nas situações de dominação quanto de libertação. Ou seja, a educação
pode ser instrumento de desenvolvimento humano ou de opressão de um ou
alguns grupos de humanos sobre outros. Historicamente, desde a
modernidade, cujo marco é a Revolução Francesa (1789), a expansão do
sistema educacional acompanhou o processo de formação dos Estados-
Nacionais. Vimos com o exemplo de Moçambique, que os países colonizados,
como é o caso do Brasil, tem seu sistema educacional importado da metrópole
e até hoje se mantêm afastado dos mecanismos internos às culturas dos
grupos subordinados: negros, índios, certas categorias de mestiços e brancos
pobres, mulheres e minorias religiosas e sexuais, a exemplo dos movimentos
GLBTTT: gays, lésbicas, travestis, transgêneros, transsexuais, bissexuais,
sado-masoquistas.
O principio de exclusão, que separa os grupos dominados dos ganhos
da nossa civilização, opera com resultados notáveis para as políticas
antidemocráticas, segregacionistas, genocidas e etnocidas. Pois a parte da
população que não tem acesso à escolarização sistemática de qualidade, tem
mais obstáculos para compreender os processos de exploração econômica e
de subordinação cultural instituídas em diversas instâncias organizacionais da
sociedade-mundo que a palavra globalização pretende indicar. Essas
organizações vão das grandes empresas multinacionais aos organismos
internacionais que regulam o comércio, o trabalho, a justiça e a educação em
plano global.
118

REFERÊNCIA

ARANTES, A. A. O que é cultura popular. Brasília: Ed. Brasiliense, 1981.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial Curricular


Nacional para as Escolas Indígenas. RCNEI. Brasília, 1998.

FONSECA. C. Antropologia, cidadania e educação. Revista do Geempa , nº 3,


p.75-84, 1994.

FONTANA, R. A. C. Como nos tornamos professoras? Belo Horizonte:


Autêntica, 2000.

GANDAVO, P. de M. Tratado da Terra do Brasil. In: RONCARI, L. Literatura


Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp,
1995.

GROSSI, M. P. O masculino e o feminino na educação. IN: FREIRE, M.;


GROSSI, E. P. (Org.). Paixão de aprender. Petrópolis: Vozes, 1993.

MEAD, M. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1988.

RAMOS, R. A. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1986.

SEEGER. Os índios e nós. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980.

SILVA, A. L. da; MACEDO, A. V. L. da S.; NUNES, Â. (Org.). Crianças


Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global. 2002.

THERBORN, G. Sexo e poder: a família no mundo- 1900-2000. São Paulo:


Contexto, 2006.

TURNER, M. Educação em situações de ‘conflito’: Moçambique X EUA. IN:


GROSSI, E. P. e BORDIN, J. Construtivismo pós-piagetiano: um novo
paradigma sobre aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1993.

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