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A FILOSOFIA

DO ILUMINISMO
ERNST CASSIRER

A FILOSOFIA
DO ILUMINISMO

Tradução:

ÁLVARO CABRAL

EDITORA DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
UNICAMP

Reitor. José Martins Filho


Coordenador Geral da Universidade'. Aodré VÜlalobos
Conselho Editorial Aifredo Miguel Ozorio de Almeida,
Antonio Carlos Bannwart. César Francisco Ciacco
(Presidente), Eduardo Guimarães, GíraJdo Severo de
Souza A vi la, Herrn<3genes de Freitas Lei do Filho, Jsyme
Antunes Maoiei Júnior, Luiz Ccsar Marques Filho, Paulo
JosÉ Samenho Moran
Diretor Executivo'. Eduardo Guimar&es
FICHA CATALOGRÃFICA ELAJBORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL-UNICAMP
Cassirer, Ernst
C27)f A filosofia do ilumjnisdo / Erast CassLrcr;
2-ed. traduflo: Alvaro Cabral. — 2.ai. -- Campinas,
SP: Editara da UNICAMP, 1994
(Coloçào Repertórios)
Tradução de: Die Philosophic deraufktãrontg,
1. fluminisino - Filosofia. I, Tftulc.

[SBN 85-268-0232-1 20.C D D -142.7


índice para catálogo sistcmSrico;
I. Uumitusmo-Filosofia 142.7
Cofeção Repertórios

Este edição é publicada poi acordo


com a Imprensa da Universidade de Yale.
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Coordenação Editorial
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Editoração
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Preparação
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Revisão
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Rosa Doha V. do Nascimento

Max Cassirer
1994
Editora da Unicamp por seu 75.° aniversário
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Fax:(0I92) 39.3157 como prova de amor e respeita
PREFÁCIO

A presente obra pretende ser simultaneamente menos e


mais do que uma monografia sobre a filosofia do Iluminismo.
Em primeiro lugar, menos: tal monografia teria que se impor
como tarefa, expor ante os alhos do leitor toda a riqueza dos
detalhes, acompanhar em suas múltiplas ramificações o nasci­
mento e o desenvolvimento dos diversos peculiares da filosofia
do Iluminismo. A própria forma da coleção “ Grundrisses der
philosophischen Wissenschaften” [Elementos de Ciências Filosó­
ficas] e os objetivos a que ela se propõe impedem semelhante
empreendimento. No plano geral dos “ Grundrisses" [elementos],
não se pode ter em vista o exame e a apreseniação exaustiva,
em toda a sua amplitude, dos problemas propostos pela filoso­
fia do Iluminismo. Em vez desse programa extensivo, requer-se
um outro de natureza puramente intensiva. Trata-se de compre­
ender o pensamento ilutninista menos em sua amplitude do que
em sua profundidade, de apresentá-lo não na totalidade dos seus
resultados e de suas manifestações históricas, mas na unidade
de sua fonte intelectual e do princípio que a rege. Não me parece
necessário nem possível empreender um relato épico de curso,
desenvolvimento e destino da Filosofia das Luzes; o que se pre-
tende, sobretudo, e tornar perceptível o movimento interior que ademais, revelar as forças criadoras por meio das quais esse»
se realizou nela « a avão dramática etn que, de certa modo resultados são intimamente elaborados. Tal método quer forne­
F0-] pensamento esteve envolvido. Todo o fascínio caracicrhik»’ cer, com o desenvolvimento das doutrinas e dos sistemas filosó­
todo o valor cisteinái;-;o próprio do Iluminismo residem nesse’ ficos, uma “fenomenologia do espirito filosófico"; quer acom­
movimento. n* energia do pensamento que o suscita e na paixão panhar, passo a passo. 5 consciência cada vez mais lúcida e mais
com que os seus problemas são equacionado,. Nessa perspectiva, profunda que esse espírito, mesmo tratando de problemas obje­
numerosos elementos se integram à sua unidade, os quais, para tivos, adquire de st mesmo, de sua natureza e de seu destino,
um outro método que expusesse pura e simplesmente os resul­ de seu caráter e de sua missão. Que me seja permitido realizar
tados. pudenam passar por contradições insolúveis, por uma um dia uinu recapitulação geral, uma síntese completa dc meus
mistura eclética de temas heterogêneos. Para desvendar sua sig- estudos anteriores é aigo que não me atrevo mais a esperar e
mficaçao histórica própria, cumpre interpretar desde um centro ainda menos ouso prometeT. Nesle meio tempo, esses estudos
U R .C O de perspectiva a suas tensões e distensões, suas dúvidas e
permanecerão como meros segmentos separados, cujo caráter
decisões, seu ceticismo e sua fé inquebrantável.
fragmentário não desconheço mas que, segundo espero, servirão
Essa é a interpretação que esta obra vai tentar oferecer um dia para a construção do grande edifício quando chegar o
ala situa a filosofia do Ibminismo no quadro de um mais vasto momento oportuno.
encadeamento histórico, o qual não pode, evidentemente ser Quanto à filosofia do Iluminismo, cumprc dizer que ela
aqui desenvolvido mas apenas esboçado em suas linhas gerais oferece condições bastante favoráveis a esse gênero de análise.
O movimento que nos propomos descrever, longe dç estar con­ Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que e!a
centrado e fechado sobre si mesmo, encontra-se. muito pelo produziu não consistem num conteúdo doutrinal que ela teria
contrário ligado por múltiplos vínculos tanto ao futuro quanto tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do que isso:
ao passado. Ele conslitui apenas um ato, uma fase singular do ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a
imenso movimento de idéias graças ao qual o moderno pensa­ Epoca das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo dc seu
mento íilosófico adquiriu a certeza. a segurança de si mesmo, pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apro­
o sentimento específico de si e sua autoconsciência específica, priou-se da herança desses séculos c ordenou, examinou, sistema­
xpus em outros livros, em especial em Indhiduum unã Kmmm tizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade,
m der / hdosophie der Renaistance (1927) e em Die Ptaivnhdie contribuiu com idéias originais e sua demonstração. Entretanto,
Rewtssanee m England (1932), outras fases desse vasto movi­ a filosofia do Iluminismo, apesar de ter adotado a maioria dos
mento, procurando sublinhar a importância das mesmas. A pre­ seus materiais de outras fontes e de ter desempenhado, nesse
sente obra faz parte integrante dessa série, tanto por seu obje­ senlido, um papel subalterno, nem por isso deixou de instituir
tivo quanto por suas perspectivas metodológicas. A filosofia do uma forma de pensamento filosófico perfeitamente nova e ori-
llumtnismo, h semelhança das obras acima ciladas, procura con- gimil. Apodera-se de riquezas intelectuais já existentes? Contcn-
siderar a htstórm da filosofia Sob uma luz que não tem por tâ-se — como é visivelmente o caso no tocante à imagem do
unica finalidade estabelecer e descrever os resultados, mas, universo físico — em dar prosseguimento à construção sobre os
alicerces já assegurados pelo século XV II? JSSo não impede que prontos e acabados para a. de forças atuantes, da condição de
tudo o que lhe cai nas mãos adquira um oulro sentido e abra resultados para a de imperativos. Tal é o sentido verdadeira­
um novo horizonte filosófico. Na verdade, o que aí temos não i mente fecundo do pensamento iluminista. Manifesta-se menos
outra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movi­ por ura conteúdo de pensamento determinado do que pelo pró­
mento universal do pensamento filosófico. Na Inglaterra e na prio uso que faz do pensamento filosófico, pelo lugar que lhe
França, o Iluminismo começa por quebrar o molde obsoleto do confere e pelas tarefas que lhe atribui. O século X V III, que se
conhecimento filosófico, a forma do sistema metafísico. Não auto-intitulou orgulhosamente o "Século da Filosofia", justificou
acredita mais no privilégio nem na fecundidade do '‘espírito de essa pretensão na medida em que devolveu efetivamente à filo­
sistema ; vê neste não a força mas o obstáculo e o freio da sofia seus direitos originais, em que a restabeleceu em sua sig­
razão filosófica. Entretanto, ao abandonar o esprit de système, nificação primeira, sua significação verdadeiramente “clássica” .
ao bater-se contra ele, nem por isso o Iluminismo renuncia ao Deixou de encerrar-se na esfera do pensamento, abriu caminho
sprit systématique. uo qual pretende, pelo contrário, inculir mais até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento
valor e eficácia. Em vez de se fechar nos limites de um edifício puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa ativi­
doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir dade deve encontrar seu aiicerce, segundo a convicção profunda
verdades da cadeia de axiomas fixados de uma vez por todas, da filosofia do Iluminismo. Dssconhece-se, portanto, o sentido
a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em dessa filosofia se se acredita poder considerá-la — e executá-la
seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, for­ — como simples "filosofia da reflexão” . É verdade que foi um
ma de toda a existência, tanto natural quanto espiritual. A filo­ pensador nada menos que da estirpe de Hegel o primeiro a en­
sofia já não significa, à maneira dessas novas perspectivas fun­ veredar por esse caminho da critica e que parece tê-lo legitima­
damentais, um domínio particular do conhecimento situado a do de uma vez por todas com a autoridade do seu nome. Mas
par ou acima das verdades da física, das ciências jurídicas e encontramos no próprio Hegel uma curiosa retificação, pois o
políticas etc., mas o meio universal onde todas essas verdades julgamento de Hegel como historiador e filósofo da história di­
formam-se, desenvolvem-se e consolidam-se. Já nâo está separada verge totalmente do veredicto que a metafísica do mesmo Hegel
das ciências da natureza, da história, do direito, da política; nu­ proferiu a respeito do Iluminismo. A Phànomenoiogie des Geistes
ma palavra, ela é o sopro tonificante de todas essas disciplinas, [A fenorr.enologia do espírito! traça um retrato da época do
a atmosfera fora da qual nenhuma delas poderia viver. Já não é Iluminismo muito diferente, por sua riqueza e profundidade,
a substância separada, abstrata, do espírito; oferece o espírito daquele que Hegel costumava esboçar num espírito puramente
como um todo, em sua verdadeira função, no modo específico polêmico. O movimento profundo, o esforço principal da filo­
de suas investigações e de seus problemas, em seus métodos, no sofia do Iluminismo não se limitam, com efeito, a acompanhar
próprio curso do saber. Assim é oue todos os conceitos e os a vida e a contemplá-la no espelho da reflexão. Pelo contrário,
problemas, que o século XV III parece ter muito simplesmente ela acredita na espontaneidade originária do pensamento e, longe
herdado do passado, deslocaram-se e sofreram uma mudança ca­ de restringi-lo à tarefa de comentar a posteriori e de refletir,
racterística de significação. Passaram da condição de objetos reconhece-lhe o poder e o papel de organizar a vida. O pensa-
mo deve. sem duvida, analisar, examinar, mas iambém pro- tuante, em permanente fluxo, não poderia reduzir-se a uma
vocar. fazer nascer a ordem cuja necessidade ela concebeu que simples soma de opiniões individuais. A ''filosofia" do llumi-
mais nao fosse para provar, no próprio mo de realizar-se o seu nismo propriamente dila é algo muito diverso do conjunto do
realismo e verdade próprios. que foi pensado c ensinado pelos grandes mestres do período,
f impossível encontrar um acesso a essa camada profunda por Voliaire e Montesquieu, Hume ou Condillac. D'Alembcri
da filosofui do Iluminismo se nos aiivemios. como a grande ou Diderot, WoJff ou Lamberi. Ela não se destaca da soma e
ma,ona das obras históricas dedicadas a esse período, ao seu da sucessão cronológica dessas opiniões porque, de um modo
corte longitudinal, se nos contentarmos em fazer desfilar ao geral, ela não reside numa doxologia. mas na ane e na forma
u>rrer do tempo a diversidade dos fenômenos intelectuais e dei­ de conduzir os debates de idéias. As forças espirituais que a
xar por ass.m dizer, qUe eles se desenrolem. Tal método de governam só são perceptíveis na própria ação e no movimento
rabalho e, em todo o caso, deficiente, mas os seus defeitos in- continuo do debate: someme ai será possível captar a pulsação
trinsecos talvez em parte alguma se manifestem mais elaramen.e da vida interior do pensamemo iluminista. F.sse faz parte da­
queles teares espirituais onde "de um pedal mil tios são movi­
v v n * aptreSCnta^ ° da do século X V III. No
dos / as lançadeiras vão e vêm, / Os fios correm sem ser vistos”
t o t h d lu H “ COnS6rVar a eSperança de [Ci/i Trití tatisend Faden regt, / Die Schifflein herüber. hinüber
totalidade do conteúdo e do desenvolvimento da filosofia
acompanhando esse desenvolvimento de sistema em sistema, de schiessen, j Die Fàdett ungesehen jtiessen],
Trazer para a luz esses fios invisíveis deve ser a tarefa
Hobbe ra ^ 8Ít ranChe' de Spin02a a U ihniz- * Bacon e
. . Mas esse fio c°ndmor abandona-nos no limiar essencial da reconstrução e da meditação históricas. Para con­
do scculo XVII], porquanto é o sistema filosófico como tal que seguir realizar essa tarefa, procuramos apresentar no presente
carece entao de força de lei e de representatívidade. E Christian livro não uma história de diversos pensadores e suas doutrinas
Iff. que quem obstinadamente manter-se fiel à forma siste- pessoais, mas uma história das idéias na Época do iluminismo,
matica, acred.lando que ela comportava toda a verdade especifi­ a fim de que sc possa apreender essas idéias mais em sua eficácia
camente filosófica, também tentou cm vão que os outros ele- imediata do que em sua gênese teórico-abstrata. Por isso tínha­
gessem esse meio para resolver a totalidade dos problemas mos que decidir, naturalmente, deixar em segundo plano uma
S icos do seu tempo. O pensamento iluminista consegue profusão de detalhes mas cuidando de não omitir nenhumu das
sempre extravasar do quadro rígido do sistema e liberlor-se jus­ forças essenciais que modelaram o rosto do Iluminismo e deter­
tamente nos espíritos mais fecundos e mais originais, da sua minaram sua visão da natureza, da história, da sociedade e da
estnta disciplina. Não é nas doutrinas particulares, nos axiomas arte. Graças a esse método, c possível descobrir que a filosofia
c teoremas em que ele acaba por fixar-se que esse pensamento do século XVII], que ainda há quem se obstine em apresentar
manifesta com maior clareza a sua estrutura e a sua orientação como uma mistura eclética de temas intelectuais dispares, é
característica, mas quando se deixa empolgar no próprio devir dominada, na vçrdadc, por um reduzido número de grandes
e sua eíaboraçao, quando duvida e averigua, quando derruba idetas fundamentais que nos são propostas numa síntese coerente
e constrói. A totaJidad’ desse movimento incansavelmente flu­ s segundo uma rigorosa articulação. Todo 0 estudo histórico
deve partir dessa base, ou seja, adotar por ponto de partida o nosso objetivo. Além disso, tampoucc há necessidade dc, após
fio condutor que nos pode guiar com segurança através do labi­ a obra de Kant e a “ revolução do pensamento” realizada pela
rinto dos dogmas e das doutrinas individuais. Crítica da razão pura, revertermos aos problemas e às conclu­
No que se refere à critica teórica do Iluminismo, está fora sões da filosofia do iluminismo. Mas se alguma vez tivesse de
de cogitação abordá-la no âmbito deste livro. Mas vale colocar ser escrita essa “história da razão pura”, da qual Kant nos ofe­
o nosso trabalho sob a égide do lema spinozista: non, ridere, receu um esboço na última seção da Crítica da razão, ela não
non Ingere, neque detestari, sed intelUgere. A Época das Luzes poderia deixar de reservar um lugar de destaque para aquela
raramente beneficiou-se de semelhante favor. O mais grave de­ época que foi a primeira a descobrir e a afirmar apaixonada­
feito que se lhe aponta comumente é o de nada entender a mente a autonomia da Razão, e a inpô-la em todos os domínios
respeito de tudo o que está historicamente longe dela, dc ludo da vida do espírito. Aliás, é de uma evidência cristalina que
o que, de um modo geral, lhe é estranho; de ter elevado a sua nenhuma obra de história da filosofia pode ser pensada e rea­
própria cscala de valores, com uma ingênua suficiência, à cate­ lizada numa perspectiva puramente histórica: toda a volta ao
goria de norma universal, a única válida e a única possível, e passado da filosofia constitui um aio de conscientização e de
de aferir por esse padrão todo o passado histórico. Se a Epoca autocrítica filosófica. Ora, mais do que nunca, parece-me já ser
do Iluminismo não pode ser inteiramente absolvida nesse ponto, lempo de que a nossa época realize esse retorno auLocrilíco
não será demais acrescentar que ela expiou com sobras o seu
sobre si mesma e se veja no límpido espelho que a época do
erro. Essa suficiência do "eu sei mais" CBesserwissens“) de que
Iluminismo lhe oferece. Muitas coisas que hoje consideramos
recriminam o Século das Luzes e sobre a qual ninguém se cansa
ser fruto do “progresso” perderão seu brilho, sem dúvida, nesse
de acumular provas gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje
espelho; muitas coisas de que nos vangloriamos parecerão insó­
impedem um julgamento isento do Iluminismo. À medídu que
litas e caricaturais. E seria julgar apressadamente e iludir-nos
nos mantemos à margem de toda a polêmica direta abstemo-nos
de submeter esses preconceitos a uma crítica explicita, de pro­ perigosamente atribuir todas essas deformidades a defeitos do
ceder, em suma, a um "resgate” da época iluminista. O que nos espelho, cm vez de ir procurar-lhes a causa em outro lugar. O
importou, acima de tudo, foí desenvolver e esclarecer, histórica Sapere audel, que é. segundo Kant, a “divisa do Iluminismo” ,
e racionalmente, o conteúdo do seu pensamento e a sua proble­ lambém vale para a nossa própria atitude histórica a seu res­
mática filosófica central. Esse esclarecimento constituí a pri­ peito. Cumpre deixar de lado os insultos e as atitudes de sobran­
meira e a mais indispensável condição para uma revisão do ceria. Tenhamos a coragem de nos medir por esse pensamento,
famoso processo que o Romantismo intentou contra a filosofia de nos explicar intimamente com ele. O século que viu e glori­
do Iluminismo. O julgamento adverso que foi proferido no de­ ficou na razão e na ciência “ a suprema faculdade do homem”
correr desse processo ainda hoje é repetido sem crítica pela não pode estar para nós inteiramente superado; devemos encon­
maioria, e continua sendo de bom-tom aludir à "trivialidade do trar o meio de descobrir sua verdadeira fisionomia e, sobretudo,
iluminismo . Bastará que nos seja permitido impor o silencio de libertar as forças profundas que produziram e modelaram
a esse gênero de julgamento para pensarmos ter alcançado o essa fisionomia.
Nlo podemos encerrar este prefácio sem agradecer uma
vez mais ao professor Fritz Medicus, editor dos "Grtmdrisses
der phílosophischen Wissenschafíen”, a quem devemos a pri­
meira sugestão para esle livro e que teve a gentileza de nos
ajudar a reler as provas.
SUMÁRIO

Ernst Cassirer

Hamburgo, outubro de 1932.

I. O PENSAMENTO D a ERA DO ILUMÍNISMC 19

II. NATUREZA E CIENClA DA NATURt-ZA


NA FILOSOFIA DO ILUMINISMO ................. 65

III. PSICOLOGIA E TEORIA DO CONHECI­


MENTO ................................................................ 135

IV. A IDÉIA DE RELIGIÃO ................................... 189


O dogma do pecado original e o problema da
leotlicéia............................... ................................ 193
A idéia de tolerância e a fundação da “religião
natural“ ..................... .......................... ............... 220
Religião e história......................... ................... 246

V. A CONQUISTA DO MUNDO H1STORICO . . . . 267

VI. O DIREITO, O ESTADO E A SOCIEDADE . . . 315


A idéÍEi de direito c o princípio dos direi los ina­
lienáveis ................................................................ 315
A idéia de contrato e o método das dcncias sociais 337
I. OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA ESTÉ-

TÍCA .................................................................... 367


O "século da crítica“ ........................................... 307

A estética clássica e o problema da objetividade


da b e lo ................... ................................... 37f
/
O problema do gosto e a conversão ao subjetivísmo 394
O PENSAMENTO DA ERA DO 1LÜM 1N1SMO
A estética da intuição e o problema do g ênio ___ 411

Entendimento e imaginação. Gottsched e os suíços 433

Fundação da estética sistemática — Baumgaiten 441

D ’Alembert iniciou os seus Elementos de jilosojia com um


iminel onde procura definir a situação do espirite humano em
meados do século X V III. No decorrer dos três últimos séculos,
wimeça ele por assinalar, foi possível observar que em meados
ilt cada um desses séculos ocorreu sempre uma transformação
importante no conjunto da vida intelectual. Assim, cm meados
ik> século XV inicia-se o movimento literário c imelcctual da
Kcnascença; em meados do século XVI, a Reforma religiosa
está no apogeu; e no século XVII é a vitória da filosofia carte
ílnna que provoca uma revolução radical na imagem do mundo
Será possível descortinar um movimento análogo no século
W i l l e determinar sua direção e seu alcance? "Por muito
jKtuca atenção que se preste” — prossegue D ’Alembert — "aos
meados do século cm que vivemos, aos acontecimentos que nos
iiflitarn ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes,
iiii nossas o^ras e até às nossas conversas, é muito difícil passar
dcspercebiJa a extraordinária mudança que. sob múltiplos as­
pectos, ocorreu em nossas idéias; mudança essa que, por sua

t9
rapidez, parece piomeier-nos uma ainda maior. Cabe ao tempui iliKcutido, analisado e, no mínimo, agitado. Uma nova luz sobre
fixar o objelo, a natureza e os limites dessa revolução, cujo« ulgims objetos, uma nova obscuridade sobre vários, foi 0 fruto
inconvenientes e cujas vantagens a nossa posteridade conhecera Hii a conseqüência dessa efervescência geral dos espíritos: tal
melhor do que nós. O nosso século é chamado o Século da Fila* , „mo o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é carregar para
sofiít por excelência, Se examinarmos sem prevenção o tistaJfl hn praias alguns materiais e delas afastar outros." 1
atiiíil dos nossos conhecimentos, não se pode deixar de conviB O homem que usa essa linguagem é um dos cientistas mais
que a niosofia registrou grandes progressos enire nós. A ciêtici* respeitáveis do seu tempo, um de seus porta-vozes intelectuais.
da natureza adquire a cada dia novas riquezas; n geometria, ; i l Suas palavras fornecem-nos, portanto, uma idéia da índole e da
atnpliar os seus limites, transportou seu facho para as regiõeJ tllreção de toda a vida intelectual de sua época. Ora, a época
da física que se encontravam mais perto dela; o verdadeiro sisl em que viveu D ’Alembert sentiu-se empolgada por um movi­
tema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeiçoai mento pujante e, longe de abandonar-se a esse movimento, em-
do, Desde a Terra até Saturno, desde a história dos céus à doa l>cnhou-se em compreender-lhe a origem e o destino, O conheci­
insetos, a ciênciu da natureza mudou de feições, Com ela, quasel mento de seus próprios atos, a autoconsciência e a previsão
todas as outras ciências adquiriram novas formas e, com efeilol intelectual, eis o que lhe parecia ser o verdadeiro sentido do
era imprescindível que o fizessem. 0 estudo da natureza parece] pensamento, de um modo geral, e a tarefa essencial que, acre­
ser por si mesmo frio e tranqüilo, porque a satisfação que elci ditava ele, a história lhe impunha. Não se trata apenas de que
ocasiona é um sentimento uniforme, contínuo e sem abalos, el » pensamento se esforça por alcançar novas metas, desconheci­
porque os prazeres, para serem vivos, devem ser separados porl das até então; é que quer agora saber para onde o seu curso
intervalos e marcados por acessos. Não obstante, a invenção e ol o leva e quer, sobretudo, dirigir o seu próprio curso. Aborda
uso dc um novo método de filosofar, a espécie dc entusiasmo quel u mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espí­
acompanha as descobertas, uma certa elevação dc idéias que em rito de descoberta; todos os dias aguarda novas e infalíveis reve­
nós suscita o espetáculo do universo, todas essas causas tive-j lações. Contudo, a sua sede de saber, a sua curiosidade intelec­
ram que excitar nos espíritos uma viva fermentação. F.ssa fer­ tual não se voltam somente para o mundo. O pensamento sente-se
mentação, agindo em todos os sentidos por sua natureza, envol­ ainda mais profundamente conquistado, mais apaixonadamente
veu com uma espécic de violência tudo o que se lhe deparou,] eomovido por uma outra questão: a de sua própria natureza e
como um rio que tivesse rompido seus diques. Assim, desde os] du seu próprio poder. Não é por isso que ele se afasia incessan­
princípios das ciências profundas ate os fundamentos da Reve-J temente do curso das descobertas destinadas a ampliar o hori­
laçáo. desde a metafísica até as questões de gosio. desde a mú­ zonte da realidade objetiva, a fim de retomar à sua origem?
sica à moral, de^de as disputas escolásticas dos teólogos alé os A sentença de Pope, the proper study oI mankind is man, ex­
objetos de comércio, desde os direitos dos príncipes aos direitos prime com impressionante brevidade o sentimento profundo que
dos povos, desde a lei natural até as leis arbitrárias das nações,) essa época tinha de si mesma. É uma época que sente, em seu
numa p;davra, desde as questões que mais profundamente nos próprio âmago, uma nova força atuando e que, não obstante,
tocam alé as que só superficialmente nos interessam, tudo foi. está menos fascinada pelas criações incessantes dessa força do

20 21
que pelo seu modo de ação. Nao contente de usufruiT os seus Av partida e de chegada de suas investigações. O que foi aos
resultados, ela explora a forma dessa atividcde produtora para olhos do século o seu Drograma e a sua realização é para 0 his­
tentar analisá-la. É nesse sentido que se apresenta, para o con* toriador apenas o começo, o início de seu trabalho; onde se
junto do século X V III, o problema do "progresso" intelectual. «creditou encontrar então uma resposta, apresenta-se a verda­
Nfo existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado deira questão. O século X V III está impregnado de fé na unidade
e empolgado pela idéie de progresso intelectual quanto 0 Século o imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo 0
das Luzes, Equivocar-se-iam, porém, sobre o sentido essência indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cul­
dessa idéia, aqueles que tomassem "progresso” num sentide tura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas
quantitativo conio uma simples extensão do saber, como urii c convicções morais, das idéias e dos julgamentos teóricos, des­
progressus m indefinitum. A par da ampliação quantitativa en­ taca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade
contra-se sempre uma determinação qualitativa; à constante ex­ e sua consistência são justamente a expressão da essência própria
tensão do saber para eíérn de sua periferia corresponde um da razão. Para nós — se bem que estejamos de acordo, no plano
regresso sempre tnais consciente e mais pronunciado ao centro das idéias e dos fatos, com determinadas teses da filosofia do
próprio e característico da expansão. Se se busca a multiplici­ Uuminismo — a palavra "razão” deixou de ser há muito tempo
dade, é para aí encontrar a certeza da unidade. Dedica-se àj uma palavra simples e unívoca. Assim que recorremos a esse
extensão do saber com o sentimento, com a segurança de que vocábulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez
ela não vai enfraquecer e diluir o espírito mas, pelo contrário, mais conscientes da gravidade das mudanças de sentido que ele
vai reanimá-lo e "concentrá-lo'^. Percebe-se que os diversos ca­ sofreu no transcurso dessa história. Nessas condições, sempre
minhos que o espírito deve percorrer, franqueando-lhe a reali­ nos acode ao espírito como a expressão de “ razão" ou a de
dade como um todo a fim de lhe traçar o quadro completo, só "racionalismo” têm pouco peso, mesmo no sentido de uma ca­
aparentemente são caminhos divergentes. Objetivamente consi­ racterística puramente histórica. Tanto isso é verdade que o
derados, os caminhcs divergem, mas essa divergência nada lem conceito genérico como tal permaneceu vago e indeterminado
de dispersão. Todas as energias do espírito permanecem ligadas até o momento de receber uma differentia specifica, um sentido
a um centro motor comum. A diversidade, a variedade das for­ verdadeiramente preciso e determinado, Onde procurar, para o
mas é tão-só o desenvolvimento e o desdobramento de uma força século X V III, essa diferença específica? Se tanto se comprazia
criadora única, de natureza homogênea. Quando o século X V II1 em autodenominar-se um “século da razão” e um século filo­
quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, sófico” , onde encontrar o traço característico e distintivo dessa
recorre ao nome de "razão". A "rezão” é o ponto de encontro designação? Em que sentido devemos tomar aqui a "filosofia"?
e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus Quais as tarefas particulares que lhe são atribuídas, de que re­
desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas reali­ cursos dispõe para as levar a cabo e para estabelecer sobre ali­
zações. Cuidemos, porém, de não cometer* o erro de nos satis­ cerces seguros uma doutrina do mundo e do homem?
fazermos precipitadamente com essa característica, de acreditar­ Se se comparar a resposta que o século X V III deu a essas
mos que o historiador do século X V III vai encontrar aí o ponto questões com as que já encontrou prontas no começo de suas

22 23
atividades intelectuais, o que impressiona de imediato é uma análise. Newton não começa por definir certos princípios, certos
diferença negativa. O século XVII via na construção de “siste­ conceitos e axiomas universais, a fim de percorrer passo a passo,
mas filosóficos a tarefa própria do conhecimento filosófico. l*>r meio de raciocínios abstratos, o caminho que leva ao conhe­
Para que lhe parecesse verdadeiramente "filosófico", era preciso cimento do particular, dos simples “ fatos". Ê na direção inversa
que o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia que se move seu pensamento. Os fenômenos são o dado; os
primordial de um ser supremo e de uma certeza suprema intui­ princípios, o que é preciso descobrir. Se os princípios são, com
tivamente apreendida, e que tivesse transmitido a luz dessa efeito, o tcqóxíqov tf] 9üvctbi , os fenômenos devem
certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido. Ê o que jjermanecer o nqóxsqov nçòç tfpâç É Por isso clue
efetivamente ocorre quando, pelo método da demonstração e da ti verdadeiro método da física jamais poderá consistir em partir
dedução rigorosa, são mediatamente ligadas ã certeza primordial de algum dado arbitrariamente admitido (de um willkürlich-an-
outras proposições, a fim de se percorrer, por meio dessa cone­ y,enummenen Ansatzpunkt), de uma “ hipótese", para desenvolver
xão mediata, toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre nté o fim as conclusões que aí estão implícitas. Tais hipóteses
si mesma. Nenhum elo dessa cadeia pode ser separado do con­ são imaginadas ao arbítrio de cada um, modificadas e transfor­
junto, nenhum deles se explica nem se conclui por si mesmo. madas da mesma maneira; logicamente consideradas, todas se
A única explicação de que é suscetível consiste em sua "dedu­ equivalem, e só lograremos sair dessa equivalência e dessa indi­
ção ' rigorosa e sistemática, a qual o reconduz à causa primeira ferença racional para atingir a verdade, a determinação física,
do ser e da certeza, permitindo assím avaliar a distância a que se procurarmos alhures Os nessos critérios. Um ponto de partida
se encontra em relação a essa causa primeira e ao número de verdadeiramente unívoco não nos pode ser fornecido pela abstra­
elos intermediários que o separam daquela. O século X V III ção e ‘‘definição’' física mas somente pela experiência e obser­
renunciou a esse modo e a essa forma de "dedução", de deriva­ vação. Não se trata, em absoluto, tanto para Newton quanto
ção e de explicação sistemática. Não rivaliza, em absoluto, com para seus discípulos e sucessores, de afirmar uma oposição entre
Descartes e Malebranche, com Leibniz e Spinoza, no tocante ao "cxperiência" e "pensamento”, de abrir um abismo entre o do­
rigor e à autonomia do método. Busca uma outra concepção mínio do pensamento puro e o dos "simples fatos . Não é ques­
da verdade e da "filosofia" que confere a uma e a outra mais tão de um conflito de validade, de um dualismo metódico entre
amplitude, uma forma dotada de mais liberdade e mobilidade, us ‘relations of ideas”, de uma parte, e a "matter of fact , de
mais concreta e mais viva. A Era do llumínismo não outorga esse uutra parte, como o que encontrou sua expressão mais nítida na
ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passado; prefere Enquiry concerning human understanding, de Hume. 0 newto-
formá-lo tomando por exemplo a física contemporânea, cujo mo­ nismo não pressupõe, como objeto e condição inviolável da in­
delo tem sob seus olhos. Em vez do Discurso do método de Des­ vestigação, senão a ordem e a legalidade perfeita da realidade
cartes, apóia-se nas Regulae philosophandi de Newton para re­ empírica. Entretanto, essa legalidade significa que os fatos, co­
solver o problema central do método da filosofia. E essa solução mo tais, não são um material simples, uma incoerente massa de
logo encaminha a investigação para uma direção inteiramente detalhes, mas que se pode demonstrar, nos fatos e pelos fatos,
diferente. A via newtoniana nãc é a da dedução pura mas a da u existência de uma forma que os penetra e os une. Essa forma

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apresenta-se como matematicamente determinada, estruturada e busca e que todo o mundo está persuadido de encontrar, em
articulada segundo o número e a medida. Mas é justamente essa todo o caso, no caminho da ciência, não é a lógica escolástica
articulação que não pode ser objeto de uma antecipação con­ nem uma lógica de concepção puramente matemática: é a "ló­
ceptual; ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos. O gica dos fatos” . Que o espírito se abandone, pois, a toda a ri­
encaminhamento do pensamento não vai, por conseguinte, dos queza dos fenômenos, que se meça continuamente por ela: longe
conceitos e dos axiomas para os fenômenos, mas o inverso. A de correr o risco de aí se perder, está seguro de encontrar nela
observação é o datum; o princípio, a lei, o quaesitum. E esse nua verdade e sua própria dimensão. É assim que se estabelecerá
novo programa metódico que deixa sua marca em todo o pen­ o verdadeira reciprocidade, a verdadeira correlação de “ sujeito”
samento do século X V III. O esprit systématique nem por isso é c “objeto", de “ verdade” e "realidade" e que se produzirá entre
subestimado Ou marginalizado; mas foi cuidadosamente distin­ esses termos a forma de "adequação’', de correspondência, que é
guido do esprit de système. Toda a teoria do conhecimento se a condição de todo c conhecimento científico.
empenha em confirmar essa distinção. D ’Alembert, no ‘'Discurso
A conciliação áo "positivo'1 e do “ racional” não é uma exi­
preliminar da Enciclopédia, situa-a no ceniro do debate, e o
gência puramente teórica; essa síntese í um fim acessível, um
Tratado dos sistemas, de Condillac, dá a essa idéia sua forma
ideal realizável: o pensamento setecentista vê aí a prova con­
explícita e sua justificação. Tenta o autor, nessa obra, aplicar a
creta, imediatamente convincente no curso que as ciências, desde
crítica histórica aos grandes sistemas do século X VII, procurando
o seu renascimento, efetivamente adotaram. Nos progressos da
mostrar a causa de seus respectivos fracassos: em vez de se
prender aos fatos e de deixar que os conceitos se formem no física, na sucessão das etapas percorridas por essa ciência, uma
contato com aqueles, tais sistemas elevaram uni lateralmente ao por uma, ele está inteiramente convencido de que tem, de certo
status de dogma o primeiro conceito que lhes ocorreu. Em con­ modo, sob os olhos a realização do seu ideal. Pode acompanhar
traste com esse "espirito de sistema”, cumpre doravante estabe­ aí, com efeito, passo a passo, a marcha triunfal do espírito ana­
lecer novos vínculos entre o espírito “positivo” e o espírito "ra­ lítico moderno. Num intervalo de um século c meio, apenas,
cional". Não é que eles estejam, em momento nenhum, em esse espírito acaba de submeter-se à totalidade do real, parece
posição conflitante, mas só se conseguirá obter uma verdadeira ter até realizado, enfim, o grande desígnio de unificar sob uma
síntese entre eles se se respeitar uma autêntica via de mediação. regra única e absolutamente universal toda a diversidade dos
Nao se busque, portanto, a ordem, a legalidade, a “ razão”, como fenômenos naturais. E a fórmula cosmológica que se apresenta
uma regra “ anterior” aos fenômenos, concebível e exprimível a na lei newtoniana da atração universal não foí encontrada por
priori: que se demonstre a razão nos próprios fenômenos como acaso nem descoberta às apalpadelas: é um método rigoroso
a forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente. que dá suas provas nessa descoberta. Newton conclui o que
Que não se pretenda antecipar a razão sob a forma de um sis­ Kepler e Galileu tinham começado: esses três nomes não evocam
tema fechado: há que deixá-la desenvolver-se a longo prazo, pelo simplesmente as personalidades de grandes sábios, mas autên­
conhecimento crescente dos fatos, e impor-se pelos progressos ticos símbolos, marcos importantes do conhecimento científico
em sua clareza e em sua perfeição. A lógica que todo o mundo e do próprio pensamento científico. Partindo da observação dos

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fenômenos celestes, Kepler leva essa observação a um grau de l'j.i e depois reconstruindo-o a partir desses elementos é que se
rigor, dc "exatidão” matemática que jamais fora atingido antes consegue compreendê-lo. Galileu dá um exemplo clássico desse
dele. Graças a trabalhos de uma paciência infatigável, ele chega procedimento na sua descoberta da trajetória parabólica dos
às leis que estabelecem a figura das trajetórias dos planetas c u»rpos lançados no espaço. A forma dessa trajetória não podia
determinam a relação entre o período de revolução de cada pla­ ver diretamente decifrada pela intuição nem aduzida de um
neta e a sua distância do Sol. Mas essa observação dos fatos é líiande número de observações separadas. A intuição fomece-
apenas um primeiro passo. A tarefa que a mecânica de Galileu iios, é certo, alguns traço* gerais* mostra-nos que a uma fase
se impôs tem mais amplitude e maior alcance; a sua problemá- ascensional sucede uma fase de queda do corpo lançado etc.,
tica penetra numa nova camada, mais profunda, da conceptua- mas faltam sutileza, exatidão, rigor e precisão nessa determina-
lizaçao em física. Com efeito, já não se trata de examinar um çüo. Só podemos chegar a uma concepção exata, verdadeiramente
determinado setor dos fenômenos da natureza, por muito vasto mutemática, desse processo se relacionarmos esse fenômeno com
e importante que e!e seja, mas de fundamentar universalmente as condições particulares que o determinam, e considerarmos se-
a dinâmica, a teoria da natureza como tal E não escapa a Cali- piiradamente cada uni dos planos de determinação que nele se
leu que a intuição imediata da natureza não está à altura de cnlrccruzam para procurar estabelecer a lei. É descoberta a lei
semelhante tarefa, que ela deve recorrer a outros instrumentos dn trajetória parabólica: o recrudescimento e o decréscimo de ve­
de conhecimento, a outras funções intelectuais. Os fenômenos locidade explicam-se de modo rigoroso a partir do instante em
da natureza oferecem-se à intuição na unidade de seus processos, que sc consegue provar que o fenômeno balístico é um processo
como totalidades indivisíveis. Ela percebe-os como simples dados complexo cuja determinação depende de duas "forças” : a força
individuais; pode descrever em largos traços seu desenvolvi­ de impulsão originária e a força de gravitação. Todo o desen­
mento, mas essa forma dc descrição não poderia substituir uma volvimento ulterior da física está dado de antemão nesse sim­
"explicação" verdadeira. Para explicar um fenômeno natural, ples exemplo como num modelo elementar; toda a estrutura do
nao basta apresentá-lo em seu ser e em sua maneira de ser; d seu méiodo já aí está implícita.
necessário fazer ver de que condições particulares tal fenômeno A teoria de Newton conservou e confirmou todos os traços
depende c reconhecer com impecável rigor em que espécie dc que aí já são nitidamente reconhecíveis. Ela está construída,
dependência^ ele se encontra a respeito dessas condições. Essa com efeito, pelo cruzamento dos métodos dc “ resolução" e de
exigência só pode ser satisfeita peta decomposição da imagem "composição". Tomando como ponto de partida as três leis de
sintética do fenômeno que nos é fornecido pela intuição e pela Kcplcr, a teoria newtoniana não se satisfaz em ler e interpretar
observação imediata para resoivê-la em seus momentos consti­ essas leis como expressão de um simples estado fatual da obser­
tutivos. Esse procedimento analítico é, segundo Galileu, a con­ vação; ela tenta, ademais, reconduzir esse estado de fato aos
dição de todo o conhecimento rigoroso da tiatureza. Esse método seus pressupostos, provar que ele é a conseqüência necessária
de construção dos conceitos físicos é, simultaneamente, um mé­ da convergência de diversas condições. Em primeiro lugar, cum­
todo de "resolução" e um método de ‘'composição1'. Só decom­ pre que cada um dos sistemas de condições seja explorado por
pondo um acontecimento aparentemente simples em seus elemen- si mesmo e que o seu modo de ação seja conhecido. Foi assim

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que o fenômeno do movimento planetário, que Kepler vira como *i>ticordâncta unânime quanto a essas premissas da teoria do
um todo, revelou ser uma formação complexa. A teoria newto- i Imhecimento. O Tratado de metafísica, de Voltaire; o "Discurso
niana reduziu-o a dois tipos de lei fundamentais: à lei da queda l'ii'liminar” da Enciclopédia, de D'Alembert; c as Investigações
livre e à lei do movimento centrífugo. Cada uma delas tinha ■i‘bre a clareza dos princípios da teologia e da moral, de Kant,
sido estudada separadamente, e de maneira rigorosamente con­ Iulum a esse respeito a mesma linguagem, Todos proclamam que
clusiva, por Galileu e Huyghens: todo o problema consistia en­ d verdadeiro método da metafísica harmoniza-se, basicamente,
tão em realizar a síntese das descobertas deles, reduzindo-as a (<-<ii) o que foi introduzido por Newton na física e proporcionou
um único princípio inteligível. A façanha de Newton está jus­ U i l i copiosos frutos. Voltaire declara que o homem que se desco­

tamente na realização dessa síntese: consiste menos na descoberta nhece ao ponto de pretender penetrar d essência interior das
de um fato desconhecido antes dele, na aquisição de um material *■ lisas, conhecê-las na pureza do seu "em si" (An-Sich), não tarda
inteiramente novo, do que no remanejamento intelectual operado nu adquirir consciência do limite de suas faculdades; ele vê-se
na base do material empírico. Já não se trata mais de contemplar nu posição de um cego que tivesse de julgar a natureza das
a estrutura do cosmo e sim, doravante, de a peneirar; ora, o I iires. A benevolência da natureza colocou, porém, uma bengala
cosmo só se abre para esse espécie de penetração quando sub­ uns mãos do cego, que é a análise. Munido dessa bengala ele
metido ao pensamento matemático e ao seu método analítico. vhí poder abrir caminho entre as aparências, ser informado dos
Ao criar, com o cálculo dos fluxos e o cálculo infinitesimal, um «ms efeitos e de seu ordenamento, de nada mais necessitando
instrumento universal a serviço desse programa, parece evidente pura orientar-nos intelectualmente, para organizar sua vida e a
que Newton e Leibniz demonstraram, pela primeira vez em ter­ liência.3 “É claro que jamais se deve Formular hipóteses; não
mos de rigor absoluto, a "inteligibilidade da natureza". O cami­ c deve dizer: comecemos por inventar princípios com os quais
nho do conhecimento da natureza desenrola-se indefinidamente, Ilutaremos de explicar tudo. Mas temos que dizer: façamos exa-
mas sua direção permanece fixada com firmeza, porquanto o Inmente a análise das coisas. Sempre que nos é impossível ter a
seu ponto de partida e o seu destino não são exclusivamente ujuda da bússola da matemática e do farol da experiência e da
determinados pela natureza dos objetos mas também pela forma llMca para guiar o nosso rumo, é mais do que certo que não-
e pelas forças específicas da razão. pudemos avançar um só passo.'* Contudo, de posse desses dois
A filosofia do século X V III está, em todas as suas partes, Instrumentos, vamos poder e devemos arriscar-nos no mar alto
vinculada ao exemplo privilegiado, ao paradigma metodológico do saber. Bem entendido, devemos renunciar à esperança de
da física newtoníana; mas logo sua aplicação foi generalizada, nirancar alguma vez às coisas o seu segredo, de penetrar no ser
Não se contenta em compreender a análise como a grande fer­ absoluto da matéria ou da alma humana. Mas o "seio da natu­
ramenta intelectual do conhecimento físico-ma temático e vê aí reza’’ nos está francamente aberto se entendermos por isso a
o instrumento necessano e indispensável de todo o pensamento urdem e a legalidade empíricas. É nesse ponto central que vamos
em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepção já nos estabelecer a fim de, a partir daf, avançarmos em iodas as
está assegurado, Se é verdade que certos pensadores e certas direções. A potência da razão humana não está cm romper os
cscoías divergem em seus resultados, há, não obstanle, uma limites do mundo da experiência a fím dc encontrar um caminho

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de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-nos . I. ii.riilos e seus últimos motivos, a crença e a “verdade pré-fa-
a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança e a Ui, .«In". Mas, após esse trabalho dissolvente, impõe-se de novo
habilitá-lo comodamente, Uma vez mais, manifesta-se aqui a ...... iiireía construtiva. Ê evidente que a razão não pode perma-
mudança de significação característica que a idéia de razio so­ i>. u i nitre esses disjecta membra; deverá construir um novo
freu em relação ao pensamento do século XV11 . Para os grandes i-liikiii, uma verdadeira totalidade. Mas ao criar ela própria
sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, ■i it tulii!idade, ao levar as partes a constituírem o todo segundo
para Spinoza e Leibniz, a razão é a regíão das “verdades eter­ .. i.uru que ela própria pTomuígou, a razão assegura-se de um
nas", essas verdades que são comuns ao espírito humano e ao 1 'iilL-ito conhecimento da estrutura do edifício assim erigido.
espírito divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos I Ih compreende essa estrutura porque pode reproduzir-lhe a
à luz da razão é "em Deus", portanto, que o vemos imediata­ mNf.irução em sua totalidade e no encadeamento de seus mo-
mente: cada ato da razão assegura-nos a nossa participação na mciilüs sucessivos. É mediante esse duplo movimento intelectual
essência divina, franqueia-nos o acesso ao domínio do inteligível, .tiii ti idéia de razão se concretiza plenamente: não come a
do supra-sensívei puro e simples. O século XVII i confere à razão iili i , i iL’ um ser mas como a de um fazer.
um sentido diferente e mais modesto. Deixcu de ser a soma de Essa convicção abre caminhos nos diversos domínios da
"idéias inatas”, anteriores a toda a experiência, que nos revela ■itliLiru do século X V III. A sentença famosa de Lessing, de que
a essência absoluta das coisas. A razão define-se muito menos i,:iLi se deve procurar o verdadeiro poder da razão na posse da
como uma possessão do que como uma forma de aquisição, Ela ■ .■■ uniade mas em sua aquisição, encontra por toda a parte seu
não é o erário, a tesouraria do espírito, onde a verdade é depo­ piinilclo na história das idéias do século X V III. Montesquieu
sitada como moeda sonante, mas o poder original e primitivo ii iitn dar uma justificação teórica geral para essa sede de sa­
que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. iu r inscrita na substância da alma humana, para essa infatigá­
Essa operação de assegurar-se da verdade constitui o germe e a vel curiosidade intelectual que nos impele de idéia para idéia,
condição necessária de toda a certeza verificável. É nesse sen­ «cm permitir que nos detenhamos jamais naquele pensamento
tido que tode o século X V III concebe a razão. Não a tem em i|iil' acabamos de atingir: ” A nossa alma é feita para pensar,
conta de um conteúdo determinado de conhecimentos, de princí­ ou seja, para aperceber: ora, semelhante ser deve ser dotado
pios, de verdades, preferindo considerá-la uma energia, uma ilc curiosidade, pois como todas as coisas estão numa cadeia
força que só pode ser plenamente percebida em sua ação e em ininterrupta, em que cada idéia precede uma e segue-se a uma
seus efeitos. A sua natureza e os seus poderes jamais podem ser mitra não se pode gostar de ver uma sem ver uma outra.” A
plenamente aferidos por seus resultados; é à sua função que tíhido sciendi, que a dogmática teológica tinha banido e a que
cumpre recorrer. E a sua função essencial consiste no poder de nplicara o ferrete ignominioso do orgulho intelectual, foi desse
ligar e de desligar. A razão desliga o espírito de todos os fatos modo proclamada qualidade necessária da alma e como tal
simples, de todos os dados simples, de todas as crenças basea­ icstabelecida em seus direítc1^ naturais. A defesa, o reforço e a
das no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; só lustificação desse pensamento são as finalidades essenciais que
descansa depois que desmontou peça por peça, até seus últimos .1 cultura do século X V III se atribuiu. Portanto ela não viu

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sua tarefa principal na aquisição e ampliação de certos conhe­ as matemáticas o "orgulho da razão humana”, sua pedra de
cimentos positivos. No que se refere à própria Enciclopédia, que toque, sua caução e fiança? Mas, por outro lado, via-se com
se converteu no arsenal de todo« esses conhecimentos, essa ten­ crescente clareza que o poder inerente &s matemáticas deparava-
dência fundamental manifesta-se igualmente sem ambigüidade. se com certos limites: elas são, sem dúvida, o exemplo e o mo­
Diderot, o seu fundador, declara não ser sua intenção adquirir delo da razão, mas sem lograr, no entanto, dominá-la, esgotar-lhe
um mero acervo de conhecimentos mas provocar uma mutação o conteúdo. Assim se estabelece um curioso processo intelectual
no modo de pensar. A Enciclopédia foi criada "pour changer la que parece acionado por forças diametralmente opostas. O pen­
façon commune de penser"} A consciência dessa tarefa sensi­ samento filosófico parece querer, de um só movimento, liber-
biliza e agita todos os espíritos, suscitando neles um sentimento lar-se das matemáticas e vincular-se-lhes, emancipar-se do seu
inteiramente novo de tensão interior. Até os mais moderados e domínio exclusivo, tentando simultaneamente, digamos, não re­
os mais refletidos entre os pensadores verdadeiramente "cientí­ chaçar ou contestar essa autoridade mas juslificá-la por ura
ficos” sentem-se impelidos para a frente, empolgados por esse outro lado. Ele ganha em ambos os planos, no sentido de que a
movimento. Ainda não se atrevem a definir seus fins últimos, análise, que conslilui a forma cssencial do pensamento matemá­
mas não podem escapar à sua potência e acreditam sentir que tico dos tempos modernos se reconhecida em sua significação
se avoluma nele, através dele, como que um novo futuro da profunda, extravasa largamente, por sua própria função univer­
humanidade. Por exemplo, Duelos escreveu em suas Considéra- sal, os limites da matemática pura, da grandeza e do número.
tions sur les moeurs de ce siècte: "Não sei se tenho uma opinião O tratado de Pascal, Do espírito geométrico, dedica-se a deter­
excessivamente benévola do meu século, mas parecc-me haver minar cuidadosamente os limites das ciências matemáticas da
uma certa fermentação universal [ ,..] cujos progressos poderiam natureza e da ciência do espírito, prenúncio de que já no século
ser dirigidos e acelerados por uma educação bem entendida”. X V II se percebia com nitidez o deflagrar iminente desse movi­
Pois o que se quer não é deixar-se muito simplesmente contami­ mento. Nessa obra, Pascal opõe o “espírito geométrico" ao "esprit
nar pela efervescência geral e empolgar pelas forças em ação. fin" para mostrar como eles se distinguem um do outro em suas
Quer-se, outrossim, compreendê-las e dominá-las â medida que respectivas estruturas e usos. Mas essa severa delimitação não
se adquire essa compreensão. Não se quer mergulhar apenas em tardará em ser questionada de novo. Fontenelle, por exemplo, no
redemoinhos e turbilhões de idéias novas, mas assumir o leme prefácio de seu livro De l'utilité des mathématiques et de la
e guiar o curso do espírito para metas definidas. psysique* declara que “ o espírito geométrico nao está tão exclu­
O primeiro passo nesse caminho foi, para o século X V III sivamente ligado à geometria que não possa separar-se dela e
partir em busca de uma fronteira determinada entre o espírito transportar-se para outros domínios. Uma obra de moral, de po­
matemático e o espírito filosófico. A tarefa era difícil e com­ lítica, de crítica, até mesmo uma obra de eloqüência jamais será,
plicada ainda por uma dialética interna, porquanto sc tratava ceteris paribus, tão bela e tão perfeita quanto se fosse concebida
de satisfazer igualmente a duas exigências diferentes, cm apa­ num espirito geométrico". O século X V III dedica-se a esse pro­
rente oposição. Não SC devia, obviamente, quebrar o vínculo blema e resolve-o no sentido de que o “espírito geométrico”, se
entre matemática c filosofia, nem mesmo afrouxá-lo: não eram o entendermos como o espírito da análise pura, é de aplicação

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absolutamente ilimitada e não se encontra vinculado a nenhuma por toda a parte. Nessa afirmação, a psicologia do século X V III
problemática particular. Tenta fornecer a prova dessa tese em dó ainda um passo mais além das posições de Locke, seu mestre
duas direções diferentes. A análise, cuja potência só fora até e guia. Contentara-se Locke em pôr em evidência duas fontes
então experimentada no domínio do número c da grandeza, é diferentes da vida mental; a par da "sensação", ele mantinha a
agora aplicada, por um lodo, no plano do psíquico, e por outro, "reflexão” como forma autônoma e irredutível. Mas os seus
no plano do social. Trata-se, nos dois casos, dc pruvur que uma discípulos e sucessores vão tentar eliminar esse dualismo por
nova inteligibilidade se revela e que um novo domínio de grande diversos meios e impor um fundamento estritamente "monístico” .
importância tornou-se acessível à autoridade da raziiu, desde que Berkeley e Hume condensam "sensação’’ e "reflexão” no termo
esta aprenda a submetê-lo ao seu método específico, o método único de "percepção", procurando mostrar que essa expressão
da relação analítica e da reconstrução sintética. No tocante, cm esgota tudo o que nos é dado como experiência intema ou exter­
primeiro lugar, à realidade psíquica, ela parece, pela maneira na, como objeto da natureza e como conteúdo do próprio eu.
como se nos oferece concreíameníe, pela experiência imediata Quanto a Condillac, acredita ele que o seu verdadeiro mérito
que temos dela, zombar de semelhante tentativa. Apresenta-se- pessoal, que o progresso essencial que ele fez a psicologia reali­
nos com uma riqueza ilimitada, numa diversidade infinita. Não zar em relação a Locke, consiste em ter conservado o método
tem um só momento, uma só de suas formas, que sejam idênti­ geral ensinado pelo mestre mas estendendo-o ao novo domínio
cos aos outros; nenhum dos seus conteúdos é jamais reapresen- dos fatos elementares da alma. A arte analítica de Locke afir­
tado da mesma maneira. Na corrente do devir psíquico, cm seu ma-se na decomposição das idéias, mas também se esgota nessa
incessante fluxo, não há duas ondas que tenham uma só e mesma decomposição. Ele tende a provar que toda a representação,
forma; cada uma como que jorra do nada, única c sem volta, por complexa que seja, é construída com os materiais da per­
e ameaça logo mergulhar de novo no nada. Contudo, segundo cepção sensorial ou do sentido íntimo, e mostra como esses ma­
a concepção dominante da psicologia do século X V lil, essa di­ teriais devem combinar-se a fim de produzir as diversas formas
versidade perfeita, essa heterogeneidade, essa fluidez do con­ de objetos psíquicos, Mas, objeta Condillac. acontece que Locke
teúdo psíquico, é apenas aparente. Um olhar mais penetrante deteve-se nessa decomposição. Seu comedimento não visou
reconhece, sob a mutabilidade quase desenfreada do psíquico, a mais além dessa análise, em vez de estender-sc ao conjunto
base sólida, os elementos estáveis e consistentes, ê tarefa da da vida e da atividade da alma, em vez de apurar a origem
ciência trazer para a luz esse elementos que escapam ao conhe­ das diversas operações psíquicas. Ora, nessa direção abre-se à
cimento imediato para colocá-los sob os nossos olhos, clara­ exploração um domínio ainda muito pouco explorado e de
mente determinados e nitidamente distintos. Também aí não uma riqueza imensa. A par dos simples dados da visão, da au­
existe multiplicidade e diversidade que não se reduza, cm defi­ dição, do tato, da cinestesia, do paladar e do olfato, Locke
nitivo, a uma soma de unidades, nenhum devir que não repouse, deixou subsistir, como totalidades originais e irredutíveis, as
em última instância, num. Ser consistente. Desde o momento cm diversas classes de atividades psíquicas. A atenção e a com­
que se passa das formas psíquicas para as suas fontes c os seus paração, o discernimento e a combinação, o desejo e a volição:
princípios essa unidade e essa relativa simplicidade revelam-se cada um desses fatos vale por si só, como um ato autônomo

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que só se encontra e se demonstra na experiência imediata, e dade. É também uma realidade em cujo seio nasce o homem,
não se deixa reduzir a nenhum outro. Mas assim é, no fundo, que ele não cria nem organiza, com a qual, muito simplesmen­
o método de dedução, em seu conjunto, que se vê privado de te, se defronta; e tudo o que se espera do homem, tudo o que
seus frutos e de seu verdadeiro rendimento. Tanto depois como se lhe exige, é que se adapte a essas formas preexistentes. Mas
entes dessa diligência, o ser psíquico apresenta-se-nos como uma a anuência e a obediência passiva também têm aqui seus limites.
diversidade irredutível que é perfeitamente possível descrever A faculdade de pensar, assim que é despertada no homem, fá-lo
em sua particularidade, mas não se deixa explicar e deduzir a erguer-se incansavelmente contra essa espécie de realidade. A
parlir dessas qualidades originárias. Se se quiser tomar verda­ sociedade é intimada a comparecer perante o tribunal da razão,
deiramente a sério essa dedução, é necessário que se recorra, interrogada sobre a legitimidade de seus títulos, sobre os funda­
para o conjunto das operações do espírito, à máxima que Locke mentos de sua verdade e de sua validade. E. por esse procedi­
fizera sua no domínio apenas das idéias. Ê preciso mostrar para mento, o ser social, por sua vez, deve condescender em deixar-se
todo esse conjunto que o pretenso "imediatismo” não passa de tratar como uma realidade física que o pensamento esforça-se
aparência, que ele não se sustenta sob o olhar penetrante da por conhecer. Institui-se de novo, em primeiro lugar, a divisão
análise científica. Os atos singulares do espírito, cada um deles em partes componentes: considera-se a vontade geral do Estado
em separado, não constituem, de maneira nenhuma, dados ori­ como se fosse constituída de vontades particulares, como se fosse
ginais, mas resultados e produtos. Para compreender a sua cons­ nascida dc sua união. Somente por meio desse pressuposto fun­
tituição, para reconhecer a sua verdadeira natureza, é necessário damental é que é possível fazer do Estado um "corpo”, a fim
acompanhar sua gênese, observar passo a passo como desperta de submetê-lo ao mesmo método que deu suas provas na desco­
na alma, a partir de simples dados sensoriais que a afetam, a berta das leis universais do mundo material. Hobbes precedeu
faculdade de identificar esses dados, de os comparar, distin­ 0 século X V III nesse caminho. O fundamento e o princípio de
guir, abstrair e combinar. Foi essa a tarefa que o Tratada das sua teoria política, a tese segundo a qual o Estado é um "corpo”,
sensações de Condillac propôs-se a realizar. Parece que o método têm precisamente essa significação; os procedimentos do pensa­
analítico obtém aqui um novo triunfo, em nada inferior às suas mento que nos levam ao conhecimento exato da natureza dos
proezas no domínio das ciências naturais, da explicação cientí­ corpos físicos são-lhe igualmente aplicáveis sem restrição. Por­
fica do mundo material. A realidade material e a realidade psí­ tanto, o que Hobbes diz do pensamento em geral, que é um
quica estão doravante reduzidas, por assim dizer, ao mesmo "cálculo”, que esse cálculo consiste em adicionar e subtrair,
denominador: ambas são construídas com os mesmos elementos, vale igualmente para todo o pensamento político. Esse pensa­
associados de acordo com as mesmas leis.3 mento também deve começar, portanto, por desfazer o vínculo
Mas, a par dessas duas realidades, existe uma outra que que une as vontades particulares, a fim de o reatar de novo à
não pode continuar sendo considerada um simples dadu e cuja sua maneira e pelo seu próprio método. É assim que Hobbes
origem deve ser explorada, único meio de submetê-la, por sua dissolve o status civilis no status na turalis, que suspende em
vez, à autoridade da lei e da razão, Trata-se daquela ordem de pensamento o vínculo existente entre as vontades individuais
coisas que se nos manifesta pela existência do Estado c da socie­ para deixar apenas subsistir seu antagonismo radicaJ, a "guerra

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de todos ccntra todos”, Mas é precisamente a partir dessa ne­ uma classe de cidadãos usar os privilégios que desfrutariam para
gação que será gerado e edificado em seguida o conteúdo posi­ destruir o equilíbrio e a harmonia do todo, e que, em contra­
tivo da lei civil em sua validade incondicional e ilimitada. A partida. todos os interesses particulares sirvam ao bem geral e
gênese da vontade do Estado pela forma do contrato impõe-se lhe estejam subordinados." Nessa formulação, um problema de
como a única que permite reconhecer-lhe o conteúdo e estabe- sociologia e de política é, de certo modo, transformado num
lecer-lhe os fundamentos. Ê o vínculo que liga a filosofia da problema de estadismo. O espírito das leis de Montesquieu vis­
natureza de Hobbes à sua doutrina política: uma e outra são lumbra igualmente o essencial de sua tarefa nessa transforma­
duas aplicações diferentes do seu pensamento lógico fundamen­ ção, Montesquieu não se propôs apenas a descrever as formas
tal por meio do qual o conhecimento humano só compreende e os tip os de constituições — despotismo, monarquia constitu­
verdadeiramente 0 que ele gera a partir de seus elementos. Toda cional, constituição republicana — e expor empiricamente sua
a conceituação válida, toda a definição completa e perfeita deve maneira de ser. Sua ambição era mais alta: reconstruir esses
ter aí seu ponto de partida: só pode ser uma definição "causal”. regimes políticos a partir das forças que os constituem. É ne­
A filosofia é concebida, em sua totalidade, como uma soma de cessário conhecer essas forças para fazê-las atingir sua verda­
definições causais desse gênero: eia nada mais é do que o conhe­ deira meta, para mostrar de que maneira e por que meios elas
cimento completo dos efeitos por suas causas, dos resultados podem ser utilizadas com vistas à instauração de uma constitui­
derivados pela totalidade dos meios e das condições que os ção que realize a exigência da maior liberdade possível. Se­
produzem. gundo a demonstração de Montesquieu, uma tal liberdade só é
A filosofia política e social do século X V III não aceitou, possível num único caso: quando toda e qualquer força parti­
de um modo geral, sem restrições o conteúdo da doutrina de cular é limitada e restringida por uma força oposta, A célebre
Hobbes, mas foi profunda e duradouramente influenciada por doutrina da “ divisão dos poderes” nada mais 6 do que o desen­
sua forma. Aficerçou-se na teoria do contrato, cujos pressupos­ volvimento conseqüente e a aplicação concreta desse pensamen­
tos fundamentais foi buscar no pensamento antigo e medieval; to fundamental. Montesquieu quer mudar o equilíbrio instável
mas, ao mesmo tempo, aplica a esses pressupostos desenvolvi­ que rege e caracteriza as formas imperfeitas de Estado, conver­
mentos e modificações característicos da influência exercida tendo-o num equilíbrio estático; ele quer mostrar que ligações
sobre ela pela imagem do mundo decorrente das ciências na­ cumpre estabelecer entre as forças particulares para que ne­
turais da época. Também nesse domínio se desenha com nitidez nhuma delas chegue a sobrepujar as outras, para que todas, justa­
a vitória do método de “ resolução’' e de “ composição”. A socio­ mente por que se equilibram de modo recíproco, deixem à
logia constitui-se à imagem da física e da psicologia analítica. liberdade o mais vasto campo possível. O ideal que a doutrina
O seu método, explica por exemplo Condillac no seu Tratado política de Montesquieu descreve é, por conseguinte, o ideal de
dos sistemas, consiste em ensinar-nos a reconhecer na sociedade um "governo misto” que ofereça uma garantia contra 0 risco
um “corpo artificial11 composto de partes que exercem umas de uma recaída no despotismo, a saber, que a forma de mistura
sobre as outríis uma influência recíproca. Ê necessário organizar seja tão sábia e tão prudentemente calculada que a irrupção de
o conjunto desse corpo de tal maneira que seja impossível a uma força de um lado deflagre incontinent! 0 aparecimento de

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uma força oposta àquela do outro lado, de modo que o equilí­ se não estivesse, de certo modo, nele “investido". O próprio con­
brio procurado restabeleça-se por si mesmo. Montesquieu tem ceito de "princípio” renuncia assim, bem entendido, ao caráter
a certeza, ao considerar as coisas desse modo. de que elaborou absoluto a que tinha pretensões nos grandes sistemas metafísicos
um sólido esquema intelectual que lhe permitirá ordenar e con­ do século X V II. Contenta-se em possuir uma validade relativa;
trolar a infinita multiplicidade € diversidade de formas de Estado quer assinalar a última parada a que o pensamento chegou, em
empiricamente existentes. Esse ordenamento e essa formulação cada caso, à medida que avençava, sob reserva de que seja,
de princípios fundamentais constituem seu objetivo essencial. por sua vez, abandonada e suplantada, quando necessário. Em
"Apresentei os princípios” , assim declara ele no prefácio de função dessa relatividade, o "princípio" torna-se dependente do
O espírito das leis, ''e vi os casos particulares submeterem-st a estado e da forma da ciência da mesma maneira, por exemplo,
eles como por si mesmos, as histórias de todas as nações serem que uma SÓ e mesma proposição que em uma ciência é postu­
apenas seqüências e cada lei particular ligada a outra lei, ou lada como princípio, pode aparecer em outra como uma con­
depender de outra mais geral". O método da razão é, portanto, clusão. Disse D ’Alembert: “ É assim que devemos nos conduzir
nesse domínio, exatamente o mesmo que nas ciências da natu­ na escolha, no desenvolvimento e na enunciação dos princípios
reza e no conhecimento psicológico. Consiste em partir de fatos fundamentais de cada ciência, daqueles que formam a cabeça
solidamente estabelecidos pela observação mas em não se ater, de cada porção da cadeia. Chamamos-lhes princípios porque é
por certo, a esses simples fatos como tais: não basta que os aí que os nossos conhecimentos começam. Mas, bem longe de
fatos estejam "ao lado” uns dos outros, é preciso que eles se merecerem esse nome por si mesmos, eles talvez não sejam mais
encaixem uns "nos" outros, que a simples coexistência se revele, do que conseqüências muito distantes de outros princípios mais
quando tudo foi bem apurado, como dependência, e a forma de gerais que sua sublimidade encobre ao nosso olhar. Nlo imite­
agregado converta-se em forma de sistema. Essa forma sistemá­ mos os primeiros habitantes da beira-mar que, não vendo o fim
tica não pode, evidentemente, ser imposta aos fatos desde fora; do mar para além da margem, acreditavam não ter ele uma
é preciso, isso sim, que provenha deles próprios. Os "princí­ conclusão.” T A relatividade que é aqui reconhecida e admitida
pios” que devemos investigar por toda a parte, e sem os quais não contém a menor implicação céptica, o menor risco de cepti­
será impossível assegurar um conhecimento em qualquer domí­ cismo; ela apenas exprime a certeza de que nenhum limite in­
nio, não são tais ou tais pontos de partida arbitrariamente esco­ transponível é imposto à razão em seu incessante progresso, que
lhidos pelo pensamento e impostos à experiência concreta para os fins a que ela parece chegar só podem e só devem constituir
remodelá-la. São condições gerais a que só podemos ser con­ para ela um novo começo.
duzidos por uma análise completa do dado. O caminho pelo De tudo 0 que precede sobressai que. comparando o pen­
qual o pensamento deve enveredar conduz, portanto, seja em samento do século X V III ccm c do século X V II, em nenhum
física como em psicologia e em política, do particular para o ponto verifica-se uma verdadeira ruptura entre eles. O novo
geral, processo que, no entanto, seria impossível se todo o ideal do saber desenvolve-se em continuidade perfeita a partir
particular como tal não estivesse já submetido a uma regra uni­ de pressuposições que tinham sido fixadas pela lógica e pela
versal, se o geral não estivesse implícito nele desde o começo, teoria do conhecimento do século X VII, Descartes e Leibniz em

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particular. A diferença que existe entre essas duas formas de razáo. O ordenamento racional, o domínio racional do dado, só
pensar não representa uma radical mutação; apenas exprime uma é possível com uma rigorosa unificação. “ Conhecer’’ uma mul­
espécie de deslocamento de acento. Cada vez mais, o acento des­ tiplicidade significa colocar os seus elementos em relação recí­
loca-se do geral para o particular, dos "princípios’’ para os proca de tal maneira que, partindo de um ponlo determinado,
"fenômenos”. Mas o pressuposto fundamental de que entre os a totalidade possa ser percorrida segundo uma regra constante e
dois domínios não existe oposição, nenhum conflito, mas uma geral. Essa forma de pensamento “discursivo” tinha sido fixada
reciprocidade perfeita de determinações, conserva sua plena for* por Descartes como norma fundamental do conhecimento mate­
ça, se pusermos de lado, porém, o cepticismo de Hume, o qual mático. Demonstrara ele que toda operação matemática tem por
envolve, efetivamente, uma forma nova e fundamentalmente di­ finalidade determinar uma proporção entre uma grandeza “ des­
ferente de problemática. A “ autoconfiança" da razão em mo­ conhecida” (incógnita) e Uma outra que é conhecida. Entretanto,
mento nenhum é abalada. Antes de tudo, foi a exigência de uni­ essa proporção só pode ser concebida com perfeito rigor se o
dade do racional ismo que conservou todo o seu poder sobre os conhecido e o desconhecido participam de uma “ natureza co­
espíritos. A idéia de unidade e a de ciência são e continuarão mum". Um e outro, o conhecido e o desconhecido, devem poder
sendo intercambiáveis. "Todas as ciências, em seu conjunto", aprescntar-se sob forma quantitativa e, como tais, inferir-se de
escreve D ’Alembert, retomando assim as teses iniciais de Des­ uma só e mesma unidade numérica. A forma discursiva do co­
cartes nas Regulae aã directionem tngenii, "nada mais são do nhecimento tem constantemente, pois, o caráter de uma redução:
que a força do pensamento humano, que é sempre uno e idên­ ela reduz o complexo ao simples, a diversidade aparente à iden­
tico, e que deve permanecer sempre semelhante a si mesmo, tidade que a fundamenta. O pensamento do século X V III dedi­
por mais variados e múltiplos que sejam os objetos a que esse ca-se a essa tarefa fundamental, procurando estender o seu efeito
pensamento se aplica.” O século X V II deve a solidez e a uni­ a domínios cada vez mais vastos, Graças a essa extensão, a idéia
dade interior a que chegou — sobretudo no meio cultural do de ‘‘cálculo’’ perde sua significação exclusivamente matemática.
classicismo francês — ao espírito de coerência e rigor com que O cálculo deixa de ser aplicável tão-só ao número c à grandeza:
manteve essa exigência unificadora, ampliando-a a todos os domí­ extravasa do domínio da quantidade para o das qualidades pu­
nios do espírito e da vida. Essa exigência não se impôs apenas ras. Pois as próprias qualidades deixam-se relacionar entre si.
à ciência, mas também à religião, à política e à literatura. "Un ligar-se umas às outras, de modo que se possa inferir umas das
roi, une loi, une foi”,* eis a máxima que governa essa época. outras numa ordem fixa e rigorosa. Basta sempre, quando pos­
Quando se passa para o século X V III, parece que esse absolutis­ sível, estabelecer a lei geral dessa ordem para que se possa, em
mo da unidade de pensamento vai perdendo sua potência, es* virtude dessa ordem c dentro dos seus limites, manter sob as
barrando em múltiplos obstáculos que a levam a admitir con* nossas vistas o conjunto do domínio onde a lei se aplica. A idéia
cessões. Mas as modificações e concessões não atingem, de falo, de cálculo tem, assim, a mesma extensão que a de ciência; ela
o próprio âmago desse pensamento; a função unificadora como ê aplicável a todas as multiplicidades cuja estrutura se reporta
tal continua sendo reconhecida como a função fundamental da
a certas relações fundamentais que permitem detcrminá-la intei­
* Ern francês no original: "Um rei, uma lei, uma fé.” (N. do T.) ramente. Condillac foi o primeiro a exprimir, em La langue des

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caiculs, com uma precisão perfeita, essa idéia gerai da ciência riqueza e delicadeza dos seus matizes. Se se consegue por esse
de que quis dar, em sua psicologia, uma demonstrarão caracte­ método produ2 Ír o psíquico, não é menor, evidentemente, a
rística e uma ilustração pertinente e fecunda. Para ele, que se possibilidade de o reduzir. E revela-se, com efeito, que tudo
ateve, de uma forma geral, à idéia cartesiana da alma, de sua aquilo a que chamamos “ realidade psicológica" e experimenta­
imortalidade e de sua espiritualidade, está fora de dúvida que mos como tal é apenas, no fundo, a repetição e a transformação
uma matematização imediata do psíquico é impossível, porquan­ de uma qualidade fundamenta] determinada, essa qualidade, pre­
to a aplicação direta dos conceitos de grandeza só é válida cisamente, que já está implícita na mais elementar das impres­
quando o próprio objeto é constituído de partes e pode ser re­ sões sensíveis. A sensação é a fronteira entre o mundo do corpo
constituído a partir delas. A malemalização produzir-se-á, por­ e o inundo da alma, entre o mármore como "matéria” morta e
tanto, no domínio da substância corporal que se define apenas um ser vivo e animado. Mas não é porque se transpôs essa
por sua extensão, e não no domínio da substância pensante fronteira que se tem necessidade, na dimensão do psíquico, de
"indivisível". Mas essa oposição fundamental, essa distinção equipar-se de outra maneira e improvisar novos princípios.
substanciai insuprimível que separa a alma do corpo não opõe Aquilo que temos 0 costume de considerar princípios diferentes,
qualquer fronteira intransponível à simples junção de conhe­ de opor à vida sensível da alma as faculdades “superiores” do
cimento analítico. Essa função despreza todas as diferenças asso­ espírito, nada mais é, na verdade, senão modificações do ele­
ciadas às coisas, não estando ligada, de maneira nenhuma, na mento originário da sensação. Pensamento e julgamento, desejar
pureza de sua forma e de seu uso formal, ao pressuposto de e querer, imaginação e criação artística, nada acrescentam de
um conteúdo determinado. Se o psicológico não se deixa, como novo, qualitativamente falando, nada de essencialmente hetero­
o corporal, dividir em partes, ele decompõe-se, não obstante, gêneo, em relação ao elemento sensível originário. O espírito
em momentos e em elementos constitutivos no pensamento. nada cria, nada inventa; ele repete e combina. Nessa própria
Basta para isso conseguir superar a diversidade aparente de repetição pode dar mostras, é verdade, de um poder quase ines­
suas formas, mostrando que essas são apenas o desenvolvimento gotável. Estende o universo visível para além de todo limite;
progressivo de um germe, de uma fonte comum, de um fenô­ projeta-se no infinito do espaço e do tempo, sem deixar de preo­
meno originário do “psíquico em geral". Essa demonstração é cupar-se com a produção em si mesmo de figuras sempre novas.
fornecida pela célebre imagem que Condillac colocou no centro Em tudo isso, porém, o espírito só tem que haver-se consigo
de sua psicologia. Partiu ele da hipótese de uma estátua de mesmo e suas “ idéias simples”. Essas constituem o sólido ter­
mármore que 6 progressivamente "animada” e dotada de uma reno sobre o qual assenta todo o edifício de seu mundo, tanto
vida psíquica de conteúdo cada vez mais rico à medida que do mundo “exterior” como do mundo “ interior” — e esse ter­
cada um dos sentidos imprime, inscreve no mármore, uma por reno jamais pode ser abandonado.
uma, suas qualidades respectivas. Trata-se de mostrar desse modo A tentativa a que Condiliac se entrega aqui, a de provar
que a série contínua dessas “ impressões" e a ordem temporal que toda a realidade psíquica é uma transformação, uma meta­
segundo a qual elas Jhe são fornecidas bastam para constituir a morfose da simples impressão sensível, será retomada e desen­
totalid'ide da existência psíquica, para produzi-la em toda a volvida por Helvétius em seu livro Do espírito. A influência

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que essa obra bastante fraca e pouco original exerceu sobre a pelo nome, não na coisa em si, dos instintos mais elementares
literatura filosófica setecentista explica-se pelo fato de que essa da natureza humana, dos desejas e das paixões mais “baixas” .
época encontrou aí um traço característico do seu pensamento Não há nenhuma grandeza moral que se eleve acima desse nível:
sob uma forma deveras expressiva, até num exagero que toca por elevados que sejam os objetivos que a vontade se atribui,
as raias da caricatura. Nesse exagero aparecem claramente os algum bem supraterrestre, alguma finalidade supra-sensível que
limites e o risco metodológicos desse modo de pensamento. Esse ela possa imaginar-se perseguindo, ela nem por isso deixará de
risco consiste no nivelamento que ameaça a consciência na me­ permanecer igualmente encerrada no círculo estreito do egoísmo,
dida em que a sua riqueza viva é fundamentalmente negada, em da ambição e da vaidade. A sociedade jamais poderá obter a
que passa a seT considerada não mais do que uma máscara e repressão desses instintos primitivos mas tão-somente a sua su­
uma roupagem. O pensamento analítico arranca a máscara que blimação e o seu disfarce — é isso, de resto, tudo o que ela
dissimula os fenômenos psíquicos, mas a realidade assim des­ pode esperar e exigir, se acaso se fizer uma idéia exata de si
mascarada só vai mostrar em seguida, em lugar da diversidade mesma e dos indivíduos. As mesmas considerações são válidas
anterior e da mobilidade interna, a mais nua uniformidade. A a propósito do mundo teórico. Assim como, segundo Helvétius,
diferenciação das formas, assim como a dos valores, desmorona, não existe escala de valores no plano ético, tampouco há, na
revela ser mera ilusão enganadora. No interior do psíquico, opinião deíe, diferenças verdadeiramente radicais entre as for­
deixa de haver doravante "alto" ou “baixo", “ superior” ou “in­ mas teóricas. Tudo se funde, em definitivo, na massa única e
ferior”. Tudo é colocado no mesmo plano, tudo se torna equi­ indivisa das impressões. Aquilo a que chamamos julgamento e
valente e indiferente. Helvétius desenvolve sobretudo essas con­ conhecimento, imaginação e memória, entendimento e razão —
siderações no domínio da ética. Sua intenção profunda consiste nada disso constitui, de fato, uma faculdade específica, própria
em eliminar essas hierarquias artificiais que as convenções ins­ e originária da alma. Também aqui se produziu o mesmo dis­
tituíram e que se empenham cuidadosamente em manter. Ao farce. Acredila-se numa elevação acima da impressão sensível
passo que a ética tradicional falou sempre de uma categoria quando, na verdade, ela foi apenas ligeiramente modificada;
particular de sentimentos “ morais”, ao passo que acreditava no máximo, envolveu-se-a numa outra vestimenta. Para a crí­
descobrir um "sentimento de simpatia" originário no homem tica, que rechaça tais envoltórios, todas as condutas teóricas
capaz de opor-se aos seus instintos sensuais egoístas, capaz de aparecem de forma idêntica. Todas as operações do espírito se
os dominar e reprimir, Helvétius procura mostrar como seme­ reduzem, com efeito, ao julgamento, e esse nada mais é do que
lhante "hipótese” não se coaduna com a simples realidade dos a percepção de semelhanças e dessemelhanças (convenances
sentimentos e das ações humanas. Quem se debruçar simplis- e disconvefumces) entre as idéias individuais. Mas esse conhe­
tamente e sem preconceitos sobre essa realidade não descobrirá cimento da semelhança e da diferença também pressupõe uma
nela o menor vestígio desse pretenso dualismo. Descobrirá por "consciência" originária que é inteiramente análoga à percep­
toda parte o mesmo impulso instintivo sempre semelhante e ção de uma qualidade sensível, na verdade completamente idên­
totalmente uniforme. Verá que tudo o que o homem glorifica tica. *Eu julgo ou eu sinto que, de dois objetos, um que deno­
como desinteresse, magnanimidade e altruísmo só se distingue mino toesa exerce sobre mim uma impressão diferente daquele

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que denomino pé; que a cor que nomeio vermelho age sobre literatura, na moral, na política, na teoria do Estado c da so­
meus olhos de modo diferente do daquela que denomino ama­ ciedade; chega ao ponto de afirmar-se na teologia, dando a essa
relo; e concluo em semelhante caso que julgar não é senão disciplina uma forma inteiramente nova.* Mas na filosofia, assim
s e n t ir N Todo o edifício dos valores éticos, do mesmo modo como no movimento das idéias em geral, a sua influência não é,
que a escala lógica do conhecimento, é demolido de alto a baixo, cm absoluto, incontestada. Com a filosofia teibniziana tinha sur­
como se vê. Os dois edifícios são arrasados por essa mesma gido, de fato, uma nova corrente intelectual que trazia consigo,
razão de que só ao nível do chão se pensa encontrar para eles sem dúvida nenhuma, profundas mudanças para a mundivisão
uma fundação sólida e inabalável. Entretanto, seria um erro desse tempo mas que, sobretudo, imprimia ao pensamento uma
considerar, como não poucas vezes foi feito, que as perspectivas forma e uma direção inteiramente novas. À primeira vista, pa­
que Helvétius aqui representa eão típicas do conteúdo da filo­ rece que Leibniz apenas deu prosseguimento à obra de Des­
sofia do Iluminismo, ou mesmo do pensamento do enciclope- cartes, libertou as potências que nela dormitavam a fim de lhes
dismo francês, porquanto foi justamente no círculo da Enciclo­ conferir seu pleno desenvolvimento. Assim como a sua obr3
pédia que se produziram as críticas mais severas e as mais matemática, assim como a análise do infinito sai diretamente da
precisas contra a obra de Helvétius, e foram os nomes mais problemática cartesiana, porquanto apenas quer ser a elaboração
eminentes da literatura filosófica francesa, homens como Turgot conseqüente, a realização sistemática da geometria analítica, tam­
e Diderot, os que tomaram a iniciativa. Mas o que, em todo o bém se pode dizer, com efeito, que toda a lógica leibniziana
caso, é indiscutível é que tanto em Helvétius quanto em Con­ tem sua origem na combinatória que ela tende a desenvolver
dillac atua um certo método que caracteriza o conjunto do século como uma teoria formal geral do pensamento. E ií incontestável
X V III, uma certa forma de pensamento que determina de an­ para Leibniz que só no progresso da análise existe futuro e
temão tanto as suas realizações positivas quanto as suas difi­ esperança paia o progresso dessa teoria formal, pani a realização
culdades intemas. suas vitórias e seus fracassos. do ideal da scientia generalis. tal como se lhe afigura, É sobre
esse ponto que vão doravante conccntrar-sc todos os seus tra­
balhos de lógica. Trata-se de chegar a um "alfabeto do pensa­
mento": de reduzir todas as formas complexas dc pensamento
2
aos seus elementos, ou seja, às operações de simplicidade extre­
ma, do mesmo modo que, na teoria dos números, todo o número
O pensamento do século X V III, tal como o consideramos
até o presente momento, corresponde em suma ao desenvolvi­ pode ser concebido e apresentado como um produto de números
mento do espírito analítico que è, sobretudo, um fenômeno primos. Uma vez mais, parece que a unidade, a uniformidade e
francês. Na verdade, a França era a pátria, a própria terra a simplicidade, a identidade lógica, em suma, constitui o fim
clássica da análise desde que Descartes consumara a reforma, último e supremo do pensamento. Todas as proposições verda­
a transformação radical da filosofia. A partir de meados do deiras, na medida em que pertencem ao domínio das verdades
século X VII, esse espírito cartesiano penetra em todos os domí­ estritamente racionais, das verdades “eternas”, são proposições
nios. Ele não se impõe somente na filosofia mas também na * uirtualmente idênticas”, reportando-se ao princípio de identi­

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dade e de contradição. Pode-se, como fez Louis Couturat em constituem a verdadeira unidade do mundo. A mônada só existe
sua notável exposição da doutrina, tentar considerar desse ponto na medida em que é ativa, e sua atividade consiste em passar
de vista o conjunto da lógica leibniziana; pode-se ir mais longe para estados semp:e novos e em desenvolvê-los incessantemente
e associar-lhe, situando-a no âmbito dessa problemática, a sua de seu própria fundo. “ A natureza da mônada í ser fecunda e
teoria do conhecimento, a sua filosofia da natureza e a sua gerar uma diversidade sempre nova”. É por isso que todo o mo­
metafísica. Parece, de fato, que ao proceder-se assim apenas se mento da mônada, ainda o mais simples, envolve o seu passado
está sendo fiel às intenções pessoais de Leibniz, que sempre e já está prenhe de seu futuro. E nenhum desses momentos é
declarou não existir nenhuma divisória erguida entre a sua ló­ absolutamente idêntico aos outros; jamais se resolve na mesma
gica, a sua matemática e a sua metafísica, que toda a sua filo­ soma de “qualidades” puramente estáticas. Toda a determinação
sofia era matematicamente oriunda dos próprios fundamentos que aí encontremos deve ser, peio contrário, considerada tran­
da matemática. sitória. Para descobri-ia e compreendê-la racionalmente não
E, no entanto, parece, se considerarmos justamente a rela­ basta apoiarmo-nos num sinal característico fixado aqui ou ali;
ção íntima e indissolúvel que une as partes dessa filosofia, que temos que colocar claramente sob os olhos a regra da transição,
os motivos considerados até o presente como fundamentais, por rcpresentarmo-nos a sua lei específica. Prolongando esse pensa­
muito importantes e indispensáveis que sejam para a gênese do mento até as suas últimas conseqüências, vê-se que o tema lógico
universo intelectual leibniziaao, não o esgotam em sua totali­ fundamental que domina e impregna a mundivisão de Leibniz
dade, Quanto mais se aprofunda, com efeito, a significação e a só na aparência é o da identidade. Em vez dessa identidade
especificidade do conceito leibniziana de substância mais niti­ analítica, característica do pensamento de Descartes ou de Spi-
damente se vê que esse conceito implica, não apenas do ponto noza, encontramos aqui um princípio de continuidade, sobre o
de vista do seu conteúdo mas também sob o seu aspecto formal, qual Leibniz construiu a sua matemática e o conjunto da sua
uma nova mutação (eíne neue Wendung). Uma lógica que se metafísica. Continuidade quer dizer unidade na multiplicidade,
construísse unicamente com base no conceito de.identidade, que ser no devir, constância na mudança. Esse termo designa uma
aí estabelecesse todo o sentido de conhecimento, que reduzisse ligação que sÓ pode exprimir-se na mudança e na constante al­
toda a multiplicidade à unidade, toda a mudança à constância, teração das determinações, e que exige, por conseguinte, a mul­
toda a diversidade à estrita uniformidade, semelhante lógica não tiplicidade ião necessariamente, tão originária e essencialmente
se harmonizaria com o conteúdo do novo conceito de substância. quanto a unidade. Até mesmo a relação do geral com o par­
A metafísica de Leibniz distingue-se da de Descartes e de Spi- ticular será doravante esclarecida de uma nova maneira. Ini­
noza ao postular, em vez do dualismo cartesiano e do monismo cialmente, parece que Leibniz manteve, de fato, a prioridade
spinozista, um “ universo pluralista". A "mônada” leibniziana do universal e seu ‘'primado” lógico de maneira incondicional.
não é uma unidade aritmética, puramente numérica: é uma uni­ O fim supremo de todo o conhecimento reside nas “verdades
dade dinâmica. O verdadeiro correlato dessa unidade não é a eternas”, exprimindo as relações universais e necessárias entre
individualidade mas a infinidade. Cada mônada é um centro as idéias, entre o sujeito e o predicado do julgamento. As ver­
dinâmico vivo; somente a sua riqueza e diversidade infinitas dades de fato, as simples verdades "contingentes”, não se inte­

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gram nesse modelo lógico; contudo, são tanto mais clara e dis­ todò (der Begriff des Ganzen), dentro dessa nova perspectiva,
tintamente percebidas quanto melhor se conseguir reduzi-las a adquire uma significação nova e mais profunda. O "todo” do
determinações puramente racionais e, finalmente, resolvê-ias. mundo, que se trata de representar, já não é redutível a uma
Embora esse fim só seja acessível a um entendimento divino, simples soma de partes; LaI representação não o esgota. A tota­
nem por isso constituí menos a norma, o fio de Ariadne do lidade revela-se como totalidade, não mais "mecânica'' mas "or­
conhecimento humano acabado. E no entanto, por oulra parte, gânica”; seu ser não mais consiste na soma de suas partes mas
não existe, se nos referirmos à intuição fundamental que domi­ precede-as, já que é ele que as toma possíveis em sua natureza
na a lógica e a teoria do conhecimento leibnizianos, uma simples e modalidade. Al reside precisamente a diferença decisiva que
relação de subsunção entre o universal e o particular, Não se separa a unidade da mônada da do átomo. O átomo é o elemento,
irata de subordinar um ao outro mas de conhecer que um está o constituinte fundamental das coisas no sentido de que repre­
implícito e fundamentado no outro. Ê por esse motivo que, a senta 0 que resta finalmente quando elas são divididas até o
par do "princípio de identidade” , aparece, como norma tão le­ fim. Ê "unidade” por oposição, de certo modo, à multiplicidade,
gítima e indispensável de verdade quanto aquele, o “ princípio opondo-se a toda e qualquer tentativa para subdividi-la uma
de razão suficiente", 0 qual constitui para Leibniz a condição ve2 mais, à custa de sua solidez, fixideí e indivisibilidade, A
de todas as "verdades de fato”. A física é governada pelo prin­ mônada, em contrapartida, ignora essa oposição e essa resistên­
cípio de razão suficiente, assim como a matemática o é pelo cia, pois de um modo geral não existe para ela alternativa entre
princípio de identidade. Ela não se contenta em estabelecer rela­ unidade e multiplicidade, cisão entre esses dois momentos, mas
ções puramente conceptuais, a concordância ou discordância de pelo contrário, reciprocidade interna, correlação necessária. A
idéias. Deve partir da observação, da experiência sensível, mas mônada não é unidade simples nem simples multiplicidade, mas
nSo pode, por outro lado, contentar-se em recolher simplesmente "expressão da multiplicidade na unidade” (muHorum in uno
as observações, colecioná-las e considérá-Ias em sua acumulação. expressio). Ela é um todo que não consiste em partes nem cons­
É necessário que desse agregado se extraía um sistema: e como titui o seu resultado, mas que se desenvolve constantemente
consegui-lo senão dando forma à massa incoerente de "fatos”, numa multiplicidade de determinações. Sua particularidade só
estabelecendo relações internas de modo que ela se apresente se revela nesses aios sucessivos de particularização (Besonde-
como uma soma de "causas” e "efeitos”? A vizinhança no es­ ru*ig); particularização essa que só é possível e inteligível na
paço e a sucessão no tempo tornam-se assim uma verdadeira condição de que a forma completa a partir da qual ela se de­
"conexão” em que cada elemento é determinado e condicionado senvolve conserve-se em si mesma e permaneça fechada sobre
pelos outros segundo regras fixas, de modo que, de todo o estado si mesma. A sua natureza e a sua realidade não vão perder-se,
singular do universo, na medida em que ele é plenamente cog- portanto, e dispersar-se na sucessão dessas determinações; pelo
noscível, pode-se aduzir a totalidade dos seus fenômenos. contrário, conservam-se iniatas e presentes, se assim podemos
Não iremos mais além, até o conteúdo particular dessa dizer, em cada uma delas. Essa visão fundamental é conceptual
intuição fundamental; contentemo-nos em considerar a sua es­ e terminologicamente concebida por Leibniz graças à idéia de
trutura categorial. Verifica-se de imediato que o conceito de força: pois a força é para ele 0 estado presente que tende para

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o estado que se lhe segue e que aquele envolve de antemão é em si mesmo essencial e valioso para si mesmo. Cada subs­
(status ípse praesens, dum tendit ad sequentem seu sequentem tância individual, dentro do sistema leibniziano, é não só uma
praeinvolvit). A mônada não é um agregado mas um todo di­ parte, uma fração, um fragmento do universo, mas esse mesmo
nâmico que só se pode manifestar numa profusão, digamos até, universo, visto de um certo lugaT e numa certa “ perspectiva".
numa infinidade de efeitos variados e que, no entanto, embora Ora, só a totalidade, abrangendo 0 universo inteiro dessa pers­
diferenciando-se infíniiavamente nas expressões de sua força, pectiva característica e singular, constitui a verdade do ser.
conserva-se como ura centro de força, único e vivo, Essa con­ Essa verdade não está constituída de tal modo que as diversas
cepção, que já não se baseia simplesmente na idéia de ser mas imagens monadológicas do mundo tenham em comum alguma
na de atividade pura, confere ao problema do individual um parte integrante, na qual elas se harmonizariam, e que figuraria,
sentido inteiramente novo. Nos limites da Icgica analítica, da em suma, como a origem comum da “ objetividade”. É preciso
lógica da identidade, só é possível tratar esse problema na con­ compreender, pelo contrário, que toda a substância, embora
dição de se encontrar o meio de reconduzir o indivíduo ao conservando sua própria permanência e desenvolvendo suas re­
conceito universal, considerando-o um caso especial do univer­ presentações segundo a sua própria let, relaciona-se, contudo,
sal. O individual só pode ser "pensado” em geral, ser percebido no próprio curso dessa criação individual, com a totalidade das
“ clara e distintamente”, por essa referência e nessa vinculação outras e afina-se, de algum modo, com eias. A idéia central
ao universal. Tomado em si, segundo o modo em que se oferece da filosofia leibniziana não tem que ser procurada no conceito
à percepção sensível ou à simples intuição, permanece "confuso". de individualidade nem no de universalidade; estes dois con­
É óbvio que, mediante uma vaga impressão de conjunto, pode­ ceitos devem, pelo contrário, ser compreendidos por meio de
mos estabelecer que o individual ê, mas não seríamos capazes um outro. Ao refletirem-se um no outro eles geram, nessa pró­
de dizer, com verdadeira exatidão e certeza, o que ele é. É o pria reflexão, o conceito fundamental de harmonia, o qual cons­
conhecimento desse Mo que”, desse quid, que permanece em titui o ponto de partida e o fim de todo o sistema. Em nossa
cada caso reservado para o universal, que só é possível obter própria natureza, explica Lcibntz em seu tratado Da verdadeira
considerando a natureza da espécie ou a definição que fornece teologia mística, esconde-se um germe, um vestígio, um símbolo
as caracte ísticas gerais. Em suma, o individual só pode ser da essência divina e sua vera imagem. O que significa que só
'‘concebido" pela maneira como, por assim dizer, ele se encon­ se alcança a verdade do ser, a harmonia suprema e a mais in­
tra "inserido” (umgriffen) no universal, com o qual está rela­ tensa plenitude da realidade no auge da energia individual e
cionado por suSsunção. A doutrina leibniziana do conceito ainda não em seu nivelamento, sua igualização e sua extinção. Esse
está ligada, por múltiplos laços, a esse esquema tradicional, em­ pensamento fundamental impõe uma nova orientação das idéias.
bora seja a sua própria filosofia a que lhe fez a crítica mais Ela não vem apenas modificar algum resultado particular; essa
decisiva, a que implicitamente a modificou e até a desmontou. nova orientação desloca, na verdade, o centro de gravidade de
Com efeito, o individual, na filosofia leibniziana, obtém a posse toda uma visão do mundo.
de uma prerrogativa inalienável. Longe de estar confinado ao No início, parece, sem dúvida, que tal modificação interna
simples papel de um caso ou de exemplo, ele exprime algo que não tem nenhuma importância direta, historicamente demonstrá-

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vel, para a filosofia do século X V III. Com efeito, o pensamento o mais importante discípulo de Wolff, quem manifestará, sobre
profundo de Leibniz nlo atuou de imediato, em sua totalidade, esse ponto e em muitos outros, sua originalidade e sua indepen­
como uma força viva e presente. 0 século XVI [I só conhecia dência de espírito. Em sua metafísica e, mais particularmente,
inicialmente a filosofia leibniziana sob uma forma muito incom­ nas grandes linhas da sua Estética, Baumgarten encontra o ca­
pleta, puramente “exotérica”. Para o conhecimento da doutrina, minho que reconduz ate certas fontes das idéias de Leibniz
dispõe apenas de um pequeno número de textos que, como a que estavam até então como que soterradas. A estética alemã
Monadología e a Teodicéia, devem sua existência a uma oca­ e a filosofia da história retornam, por conseguinte, em seu
sião exterior e contingente e SÓ contêm a doutrina sob uma desenvolvimento, à concepção original e profunda do problema
forma popular, transposta e abreviada, sem nenhuma justifica- da individualidade que tinha sido inicialmente revelada e apli­
çSo nem qualquer desenvolvimento rigorosamente conceptual. A cada na Monadología c no “sistema de harmonia preestabele­
obra-mestra da teoria leibniziana do conhecimento, os Novos cida” de Leibniz. Mas é no seio da cultura francesa do século
ensaios sobre o entendimento humano, somente em 1765 in­ X V III, uma vez mais, onde a influência cartesiana vinha pre­
gressa no campo visual do século X V íII, graças à edição orga­ dominando amplamente, que a influência e a ressonância de
nizada por Raspe com base no manuscrito de Hanover, ou seja, certas idéias e de certos problemas fundamentais de Leibniz se
numa época em que a filosofia do Iluminismo já realizara a fazem sentir com força crescente. O encaminhamento dessa in­
maior parte do seu desenvolvimento e adquirira sua fisionomia fluência não passa pela estética e pela teoria da arte. as qttais
definitiva. A influência das idéias de Leibniz é, por conseguinte, só a muito custo se afastam da órbita da doutrina clássica seis­
inteiramente indireta: só atuará na forma transposta que o sis­ centista, mas pela filosofia da natureza c pelas ciências naturais
tema de Wolff lhe impôs. Ora, justamente, a lógica de Wolff descritivas, nas quais a rigidez conceptual começa, pouco a pou
e sua metodologia distinguem-se da de Leibniz na medida em co, a afrouxar. A maior ênfase recai doravante sobre a idéia
que procuram reduzir ao esquema mais simples e mais uniforme leibniziana de desenvolvimento; o sistema da natureza do
possível a diversidade das abordagens leibnizianas. Se Wolff século X V III, que estava dominado pela idéia de fixidez das
confere à idéia de harmonia, aos princípios de continuidade e espécies, passa progressivamente por uma mudança de dentro
de razão suficiente o lugar que lhes compete na economia do para fora. De Maupertuis, retomando os princípios da dinâmica
sistema, por outro lado procura limitar-lhes a significação e a leibniziana, defendendo e explicando o princípio de continuida­
independência originais, apresentando-os como conseqüências, de, até a física e a metafísica do orgânico em Diderot e os pri­
como deduções do princípio de contradição. Os conceitos leibni- meiros esboços de teoria descritiva completa da natureza na
zianos e os temas fundamentais do seu sistema só foram, pois, História natural, de Buffon, acompanha-se o desenrolar de um
transmitidos ao século X V III com certas restrições e como que constante progresso, É verdade que Voltaire, no Candide, exer­
quebrado por sua passagem através de um meio refrativo. Pouco ce seu espírito à custa da Teodicéia de Leibniz e recrimina-
a pouco, entretanto, vai surgir um movimento de idéias que lhe, em seus Elementos da jitosojia de Newton, não ler feito
tenderá a anular a ruptura e a remover 05 obstáculos que se outra coisa senão retardar com suas idéias a própria física e 0
opõem à compreensão. Na Alemanha, é Alexander Batimgarten, progresso da ciência em geral. "Sua razão suficiente, sua continui­

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dade, seu orgulho, suas mônadas etc.” — escreveu Voltaire em oposição fundamental já estão contidas as grandes tarefas inte­
1741 — "são germes de confusão, dos quais o senhor Woiff fez lectuais com que o século XVI í [ se defrontará e que irá abordar,
brotar metodicamente quinze volumes in quarto que, mais do que desde a teoria do conhecimento até a física, desde a psicologia
nunca, instilarão nas cabeças alemãs o gosto de ler muito e até a política e a sociologia, desde a filosofia da religião até a
entender pouco.’1 Voltaire, contudo, nem sempre foi dessa estética, sob tio variados aspectos.
opinião. Em O século de Luís XIV, quando queria fazer ver e
compreender em suas grandes correntes o conjunto da estrutura
intelectual do século X V I1, não se tratava, para ele, de menos­
prezar o papel de Leibniz, e reconhecia efetivamente sem reser­
vas a significação universal de sua obra. Essa mudança de opi­
nião manifesta-se ainda mais nitidamente na geração seguinte à
de Voltaire, no círculo dos enciclopedistas franceses. D ’Alem­
bert, embora combatendo, é certo, os princípios da metafísica
leibniziana, nunca deixa de confessar sua profunda admiração
pelo gênio filosófico e matemático de Leibniz. E Diderot, no
artigo “Leibniz” da Enciclopédia, pronuncia o entusiástico elo­
gio de Leibniz: ele proclama, com Fontenelle, que a Alemanha,
só por ter albergado esse espírito, não merece menos honra
que a Grécia por Platão, Aristóteles e Arquimedes, ao mesmo
tempo. O caminho ainda é longo, sem dúvida, desde esse elogio
pessoal até uma penetração autêntica, uma compreensão mais
profunda dos princípios da filosofia ieibriiziana. Entretanto, se
se quiser apresentar em seu conjunto a estrutura intelectual do
século X V IíI, torná-la inteligível em sua gênese, cumpre colo­
car lado a lado, distintamente, essas duas correntes intelectuais
diferentes que nele confluíram: a forma cartesiana clássica de
análise e essa nova síntese filosófica, que teve em Leibniz o
seu ponto de partida, mas que atuam em comum e se justapõem.
Da lógica das "idéias claras e distintas" a marcha do pensa­
mento leva à lógica da "origem” e do individual, da mera geo­
metria à dinâmica e à filosofia dinâmica da natureza, do “nie-
canicismo” ao “ organicismo”, do princípio de identidade ao
princípio dc infinidade, de continuidade e de harmonia. Nessa

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NOTAS

1 D ’Alembert, Eléments de philosophie l; Mélanges de littérature,


d’histoire et de philosophie, Amsterdã. 1758, IV, pp. 1 e ss.
1 Voltaire. Traité de métaphysique, cap, V.
3 Em franc» no original: "Para mudar a maneira comum de pen­
sar.” O , sobre este ponto. Ducros, Le,ï encyclopédistes, Paris, 1900,
p. 138.
4 Oeuvres, I, p. .34.
•'Cf. 9obrc o conjunto do problema, o Traité des sensations de Con­
dillac, assim como o "Extrai) raisonné" que o próprio Condillac adicionou
à última edição de sua obra (Ed, Georges Lyon, Paris, 1921, especial-
mente pp. 32 e ss.).
0 Condillac, Tratado dos sistemas. 2.® Parle, cap, XV.
1 D'Alembert, artigo "Elementos de ciência" da Enciclopédia. Cf.
Éléments de philosophie IV ; Mélanges de littérature, d'histoire et de
philosophie IV, pp. 35 e ss.
* HelvéÜliS, De (‘esprit, ed. Paris, 1759, p. 8,
* O leitor encontrará precisôes úteis na excelente exposição de Gus­
tave Lunson, "I.’influence de la philosophie cartésienne sur lu littérature
française", Revue de Métaphysique et de Morale. 1896; cf. Études d'his­
toire littéraire, Paris, 1929, pp. 58 e ss.
10 Cf. Correspondence, de Voltaire; em particular, as cari lis a Maîron,
de 5 de nviio de 1741, e n Maupertuis, de 10 de agosto de 1741,
r
a

NATUREZA E CIÊNCIA DA NATUREZA NA


FILOSOFIA DO ILUMINISMO

/ Para obter 6 medida exata do papel da ciência da natureza


na gênese e elaboração da imagem do inundo na época moderna
não nos cingiremos a considerar todas essas descobertas que se
integraram ^ma por uma, como traços característicos, ao con­
teúdo dessa imagem e que definitivamente a modificaram de um
modo radical. Essa transformação, cuja amplitude parece, à pri­
meira visla, quase incomensurável, está muito longe de esgotar
a totalidade das forças criadoras oriundas da física. Se essa de­
sempenhou um papel decisivo, foi menos pelo novo conteúdo
objetivo do pensamento, cujo acesso ao espírito humano foi fran­
queado pela física, do que pela nova junção que ela atribui ao
pensamento. A ciência da natureza não é meramente o movi­
mento do pensamento que se aplica ao mundo dos objetos, mas
também o meio onde c espírito adquire o autoconhecimento.
E desse modo se instaura um processo mais significativo do que
o recrudesci mento e a extensão desse material com que a física
recém-nascida enriqueceu o saber humano. O crescimento e a

65
ampliação constante desse material parecem, a partir dos séculos restringir sua amplitude mas de conhecer a lei que o envolve c
XVI e XVII, ter que prosseguir ad injinitum. Desintegrou-se a 0 impregna profundamente. Essa legalidade do universo que se
forma rígida da mundívísão antiga e medieval; o mundo deixa de revela ao pensamento e se define pelo pensamento constitui u
ser um "cosmo” no sentido de uma ordem visível em seu todo, correlato necessário de sua imensidade visível. A nova concepção
diretamente acessível à intuição. Espaço e tempo ampliam-se infi­ da natureza nasce, portanto, do ponto de vista da história das
nitamente: seria impossível continuar a concebê-los por meio idéias, de um duplo motivo: forças aparentemente opostas a con­
dessa figura sólida que a cosmologia antiga possuíra na doutrina dicionam e informam. O impulso para o singular, o concreto,
platônico dos cinco corpos regulares ou no universo escalar aris- o fato agem nela tanto quanto o impulso para o.universo abso­
totélico, ou apreender sua grandeza por medidas e números fini­ luto, o instinto de se agarrar ao mundo com todos os seus órgãos,
tos, Em vez desse mundo único e do ser único, eis que sobrevêm tanto quanto o instinto de se lançar cm seu vôo a fim de ganhar,
a infinidade de mundos incansavelmente gerados no seio de um graças a essa elevação, uma perspectiva mais correta, O desejo
devir em que cada um representa apenas uma fase transitória, e o gozo sensuais juntam-se à potência do espírito para arrancar
singuiar, do inesgotável processo vital do universo. Entretanto, a o homem no mero dado e mandá-lo divagar ao ar livre no país
mudança essencial não reside nessa extensSo ilimitada, mas, antes, do possível. A concepção moderna da natureza que se formou
no fato de que o espírito, até por causa dessa extensão, adquire depois da Renascença com uma nitidez e uma firmeza crescentes,
consciência dessa nova força cuja presença sente em si mesmo. e que busca prover-se, nos grandes sistemas do século X V II, em
Todo o aumento de extensão continuaria sendo estéril c só de­ Descartes, Sptnoza e Leibniz, de um fundamento e de uma legi­
sembocaria, em última instância, no vazio se o espírito não ad­ timidade filosóficas, caracteriza-sc sobretudo pela nova relação
quirisse, ao mesmo tempo, por esse meio, uma nova intensidade, que se estabelece entre sensibilidade e entendimento, entre expe­
uma nova concentração em si mesmo. Tal concentração só 0 con­ riência e pensamento, entre mundus sensibilis e mundus in-
firma em sua própria e verdadeira natureza. A sua mais elevada telligibilís.
energia e a sua mais profunda verdade não residem no poder
Mas essa mudança de método no conhecimento da natureza
de passar ao infinito, mas de se afirmar em face do infinito, de se
implica, ao mesmo tempo, uma modificação decisiva da "onto­
mostrar igual em sua simples unidade à infinidade do ser. Já
logia” pura: ela desloca e altera a escala de valores pela qual
Ciordano Bruno, em quem o novo sentimento universal se mani­
se aferia até então a ordem do ser. A tarefa do pensamento
festou claramente pela primeira vez cm toda a sua força, definiu
medieval consistia essencialmente em reproduzir a arquitetônica
nesse senlido a relação entre o eu e o mundo, o sujeito e o objeto.
Para ele, a infinidade do devir, o grande espetáculo do mundo do ser, em descrevê-la em seus grandes traços. No sistema reli­
que se desenrola constantemente sob os nossos olhos é a con­ gioso da Idade Média, tal como a escolástica o fixara, toda a rea­
firmação desse sentido profundo que o ego só pode descobrir lidade recebia seu lugar imutável e indiscutível; por esse lugar,
em si mesmo. Ê a força da razão que constitui para nós o único pela distância maior ou menor que o separava do ser da causa
modo de accsso ao infinito, que nos garante sua existência e nos primordial, o seu valor também era plenamente determinado.
ensina a aplicar-lhe a medida e o limite com o objetivo não de Não pode haver em tal sistema a menor dúvida: todo o pensa-

66 67
mento se sabe situado no seio dc uma ordem inviolável que não desencadear um conflito. Muito peto contrário, os grandes siste­
lhe compete criar mas perccbcr. Deus, a alma e o mundo são os mas escolásticos no auge da sua época têm por sua tarefa essen­
três eixos do ser em tomo dos quais se articula o sistema do cial sua conciliação, a concordância entre os respectivos conteú­
saber. Ü conhecimento da natureza não é, de modo algum, ex­ dos; O reino da graça não anula o reino da natureza. Se ele se
cluído desse sistema; contudo, fica desde o início limitado a esse ergue acima do reino da natureza e, de certo modo, o sobrepuja,
círculo estreito do ser donde não pode sair sem se perder, sem não contesta, porém, a sua consistência: gratia natural non tollit,
se desnortear na escuridão a luz que queima nele. O conheci­ sed perjicit, Nem por isso deixa de valer o fato de que a natu­
mento "natural" coincide com o conhecimento das "criaturas": reza não encontrará em si mesma a sua acabada perfeição, que
ele é o saber, na medida em que este é acessível a um ser finite, deverá procurá-la além de si mesma. Nem a ciência, nem a mora­
criado dependente; o saber que não se estende a nenhum outro lidade, nem o Estado podem erigir-se sobre o seu alicerce. Há
domínio salvo o dos objetos sensíveis e finitos. Portanto, quer sempre necessidade, para levá-los à sua verdadeira perfeição, de
do lado do sujeito quanto do objeto, é limitado e entravado. Os uma assistência sobrenatural, A "luz natural" como tal já não
limites do conhecimento natural não coincidem, evidentemente, contém em si nenhuma verdade própria; está corrompida e
nem mesmo no pensamento medieval, com os dos seres físicos obscurecida, e não saberia como libertar-sc, como restabelccer-se
ou corporais, dos seres materiais. A par do conhecimento natural dessa escuridão. Para o pensamento medieval subsiste, a par da
do mundo, dos corpos e das forças que atuam neste mundo, lei divina, tanto no domínio teórico quanto no prático, uma es­
existe um conhecimento natural do direito, do Estado, até da fera psíquica, relativamente autônoma, da lei natural, esfera que
religião e de suas verdades fundamentais, pois os limites do co­ é acessível à razão humana e talvez dominada c explorada por
nhecimento natural rtão são determinados por seu objeto mas por cia., Não obstante, a iex naturaüs constitui o primeiro grau e o
sua origem. Todo o saber é "natural", seja qual for o domínio ponto de fixação da tex divina, a única que está em condições
a que se refere, se decorre exclusivamente da razão humana e de restaurar o conhecimento primitivo perdido pelo pecado. A
se se apóia unicamente nela, sem recorrer a nenhuma outra razão continua sendo a serva da revelação (tanquam jamulci et
fonte de certeza/A "natureza" significa, portanto, menos uma ministra); no nível das faculdades naturais, intelectuais e espiri­
classe de objetos que um certo horizonte do saber, de compreen­ tuais, ela coloca o espírito no caminho da revelação, prepara o
são da realidade; Deve-se-lhe imputar tudo o que se situa no
terreno da revelação.
campo do lumen naturale, o que não requer, para ser demons­
Essa concepção, que permanece viva muito além da época
trado e compreendido, nenhuma outra ajuda senão a das facul­
da escolástica, que se afirma ainda sem contestação, por exem­
dades naturais do conhecimento. £ nesse sentido que se opõem
plo, no estabelecimento da velha teologia protestante nos séculos
o "reino da natureza" e o "reino da graça". 0 primeiro é-nos
comunicado peia percepção sensível e pelas operações que lhes XVI c X V II ,1 sofre por dois caminhos diferentes o ataque do
estão Hgadas, julgamento e raciocínio lógicos, o uso discursivo pensamento renascentista. É a filosofia da natureza que toma a
do entendimento; o outro só nos é acessível graças à revelação. dianteira: pode-se enunciar a sua tendência profunda, o seu
Entre fé e saber, entre revelação e razão, não cabe, de resto, princípio fundamental, dizendo que 0 verdadeiro ser da natureza

68 69
não deve ser procurado no plano do criado mas no plano da oa seres individuais não lhes é prescrita por um legislador estra­
criação,fA natureza é mais do que simples criatura; ela participa nho; está fundada em seu próprio ser e é plenamente cognoscí-
do ser divino originário, visto que a força da eficácia divina vcl a partir desse ser. A conseqüência disso é que um segundo
está viva nela, O dualismo do criador e da criatura é assim c essencial passo foi dado; a passagem do naturalismo dinâmico
suplantado. A natureza não se opõe mais a Deus como o moíum da Renascença para a matemática física já está implicitamente
ao movens, como 0 movido ao motor divino, porquanto é justa­ consumada. Com efeito, esta última constrói-se pura e simples*
mente uni princípio criador originário que se move interiormen­ mente sobre a idéia de lei, mas essa idéia está então dotada de
te. O poder de dar-se forma e de desenvolver-se a si mesmo uma significação mais rigorosa e mais determinada. O que dora*
assinala a natureza do selo da divindade. Não nos figuremos vante se impõe com todo o rigor é o estabelecimento da lei da
Deus ccmo urna força que sobrevêm de fera, agindo como causa ação que define a natureza da coisa, não por uma espécie de
motriz primeira sobre uma matéria estranha; ele mesmo se adivinhação mas por um conhecimento claro e distinto, não pela
empenha no movimento, aí está imediatamente presente. Tal penetração de uma corrente de simpatia mas exprimindo-a atra­
modo de presença convém apenas à divindade, só esta é digna vés de idéias claras. Tanto o sentimento quanto a intuição sen­
dela. “No» est Deus vet intelligenlia exterior circuntrolans et sível e a imaginação não se encontram â altura dessa exigência,
círcumducense dignius enim illi debet esse internum principium h qual só se pode responder procurando fora dos caminhos co-
motus, quod est natura própria, species propría, anima própria mumente trilhados relações novas entre o individual e o todo,
quam habeant tot quot in itlius gretnio vivunt.” entre a "aparência* e a "idéia". A observação sensível deve
combinar-se com a medida exata para engendrar a nova forma
Nessas fórmulas de Giordano Bruno manifesta-se uma ra­
da teoria da natureza. Essa teoria, tal como foi estabelecida por
dical mudança da idéia de natureza. A natureza é elevada até a
Kepler e Galileu, ainda está impregnada de um profundo Impulso
esfera do divino, parece ser absorvida por sua infinidade, mas,
religioso que lhe confere seu dinamismo. De fato, o objetivo
por outro lado, representa justamente a individualidade, o ser
que ela se propõe a alcançar não mudou: descobrir na legali­
próprio, o ser singular dos objetos. E é igualmente sobre essa
dade da natureza o vestígio de sua divindade. Contudo, justa­
potência distintiva que irradia de cada coisa, como de um centro
mente por causa desse contexto religioso, tal teoria não podia
de força particular, que assenta o seu valor inalienável, a "digni­
deixar de entrar em conflito, de um modo cada vez mais grave,
dade" que ela reivindica na totalidade do ser. Com o nome de com as formas tradicionais da fé. A luta que a Igreja travou
‘'natureza'’ entende-se doravante tudo isso ao mesmo íempo: sig­ contra a penetração do espírito físico-matemático moderno só se
nifica, em primeiro lugar, o ordenamento de todas as partes em compreende nessa perspectiva, O que ela combatia na física não
relação ao Uno, da totalidade da atividade e da vida que as era certamente tal ou tal resultado da investigação científica.
engloba a todas; contudo, esse ordenamento deixa agora de ser Sempre teria havido uma conciliação possível entre esses resul­
uma simples subordinação, porquanto a parte não está somente tados c a doutrina da Igreja: Galileu acreditou por muito tempo
no todo, ela afirma-se igualmente contra esse todo. Constitui algo nessa conciliação e trabalhou sinceramente nesse sentido. Mas
de especificamente individual e necessário. A lei a que obedecem o trágica mal-entendido no qual ele finalmente viria a naufragar

70 71
foi o de ter procurado a divergência que se esforçava por resol­ Ora, esse espírito humano manifestara-se claramente desde
ver onde ela não estava, o de ter-se subestimado, assim como então no próprio parecer do século X V III; o que Galileu recla­
as inovações que introduzira na atitude metodológica do cientis­ mava não se convertera, com Newton, em realidade? O proble­
ta. Por isso Galileu não foi capaz de conduzir sua réplica até ma que a Renascença tinha formulado não encontrara, num
a verdedeira e profunda raiz do conflito; ficou na teotativa de prazo de tempo extraordinariamente curto, urua solução con­
adEplar e>equilibrar as conseqüências intermediárias. Na verda­ cludente e definitiva? Galileu e Kepler tinham concebido a
de. não era à nova cosmologia que se opunham com todas as idéia de lei natural em toda a sua amplitude e profundidade,
suas forças as autoridades eclesiásticas; enquanto "hipóteses" com teda a sua importância metodológica, mas só tinham podi­
matemáticas, essas autoridades podiam permitir tanto 0 sistema do realizar a demonstração da aplicação concreta dessa concep­
de Copémico quanto 0 de Ptolomeu. O que era intolerável, o ção para fenômenos naturais isolados, como 0 queda dos corpos
que ameaçava 0 sistema da Igreja até em seus alicerces era a e o movimento dos planetas. Subsistia, porlanto, uma lacuna
nova concepção da verdade que Galileu proclamava.5 A par da por onde a dúvida poderia insinuar-se; faltava ainda 0 prova de
verdade da revelação, eis que surge agora uma verdade própria que essa legalidade rigorosa, a qual se revelava válida nas par­
e origina], uma verdade física independente. Essa verdade não tes, era transferível para 0 todo, de que 0 universo como tal
nos é dada pela palavra de Deus mas em sua obra; não assenta era acessível aos conceitos rigorosos dc conhecimento matemá­
tio testemunho das Escrituras ou da Tradição e está a todo tico, de que ele podia ser adequadamente concebido por inter­
instante presente sob os nossos olhos. Naturalmente, ela não é médio deste. Essa prova foi fornecida na obra de Newton: já não
legível para quem não tiver a menor idéia da escrita em que se tratava mais de ordenar e regular um campo fenomenal cir­
se nos apresenta e que, por conseguinte, não saberia decifrá-la. cunscrito, mas de descobrir e fixar claramente uma — que
6 uma verdade que pode vestir-se de palavras simples; a única dizemos? — "Lei do Cosmo". Essa lei fundamental Newton pro­
expressão que lhe corresponde e lhe convém encontra-se nos pusera-a e demonstrara-a manifestamente na teoria da gravita­
objetos matemáticos, nas figuras e nos números. Graças às mate­ ção. Era, enfira, o triunfo do saber humano: a descoberta dc
máticas, ela apresenta-se sob uma forma acabada, numa tessitura um poder de conhecer que se igualava ao poder criador da natu­
sem lacunas e perfeitamente transparente. A revelação jamais reza. Foi assim que o século X V III, em seu conjunto, compreen­
poderá, somente pela palavra, atingir esse grau de limpidez, de deu e apreciou a obra de Newton: reverencia em Newton, bem
translucidez, de univoddade, porquanto a palavra, como tal, entendido, o grande cientista experimental; mas, longe de ficar
mantém-se sempre cambiante e ambígua, permitindo uma varie­ por aí, proclama incansavelmente e com uma insistência crescen­
dade de interpretações. A sua compreensão e a sua interpretação te que Newton não deu somente à natureza regras fixas e dura-
são obra humana, portanto necessariamente fragmentária, ao douras, mas também à filosofia. Não menos importantes do que
passo que na natureza estende-se sob os nossos olhos 0 plano os resultados de suas investigações são as máximas resultantes
gera] segundo o qual o universo é construído, em sua unidade dessas investigações, as regulae phiíosophandi cujo valor provou
indivisível e inviolável, aguardando apenas o espírito humano na física è com as quais marcou essa ciência para sempre. A
para o reconhecer e 0 exprimir. admiração ilimitada, a veneração que o século X V III manifes-

72 73
ton a Newton baseia-se nessa interpretação do conjunto de sua e fixá*lo pela observação, experimentação, medida e cálculo. Mas
obra. Se essa obra parece tão importante, tão incomparável, não os nossos elementos de medição não devem basear-se somente
é exclusivamente cm função da elevação de seus propósitos e nos dados sensíveis, devem recorrer igualmente a essas funções
de seus êxitos mas atnda mais pelo CtUninho que ela inaugurou. universais de comparação e de contagem, de associação e de dis­
Newton foi o primeiro a traçar o percurso que conduz das hipó­ tinção, que constituem a essência do intelecto. Assim, à auto­
teses arbitrárias e fantasiosas à clareza do conceito, das trevas nomia da natureza corresponde a autonomia do entendimento.
à luz.
Num só e mesmo processo de emancipação intelectual, a filoso­
[ ... ] Nature and Nature's laws lay hid in night, fia iluminista procura mostrar a independência da natureza ao
God said: “Let Newton be" and alt was light [ . . . ) * mesmo tempo que a independência do entendimento. Ambos
Nestes versos de Pope está expressa da maneira mais cOn- devem ser doravante reconhecidos em sua originalidade própria
cisa e significativa a veneração de que Newton gozava no pensa­ e assim correlacionados. Toda a mediação entre a natureza e o
mento da época iluminista. Com ele, graças a ele, pensava-se entendimento que se arrogasse detentora de uma onipotência ou
ter enfim encontrado o solo firme, a fundação que nenhuma de um ser transcendente tornar-se-ia imediatamente supérflua.
transformação ulterior da física poderia vir a abalar. A corres­ Tal mediação não permite o estabelecimento de um vínculo mais
pondência da natureza e do conhecimento humano está agora estreito entre a natureza e o espírito; muito pelo contrário,
estabelecida de uma vez por todas, o vínculo que os une é sempre teve por efeito afrouxar toda e qualquer vinculação entre
doravante indissolúvel. Os dois termos dessa correlação são. eles, pela simples posição do problema, pelo questionamento da
sem dúvida, perfeitamente independentes, mas nem por isso dei­ natureza e do espírito, e acabará por rompê-la. Essa ruptura já
xam de estar, graças a essa mesma independência, numa perfeita ocorrera, na metafísica dos tempos modernos, por iniciativa dos
harmonia. A natureza que está no homem encontra-se, em suma» sistemas ocasiona listas, sacrificando a independência de ação da
com a natureza do cosmo e reencontra-se nela. Quem descobre natureza e a independência formal do espírito à onipotência da
uma não pode deixar de encontrar a outra. lá era o que a causa primeira divina. Contrária a essa recaída na transcendên­
filosofia da natureza da Renascença entendia por natureza: uma cia, a filosofia iluminista proclama, tanto para a natureza como
lei que as coisas não recebem do exterior mas que decorre da para o conhecimento, o princípio de imanência. Cumpre con­
própria essência delas, que está desde a origem implantada nelas. ceber a nutureza e o espírito por sua essência própria, a qual
Natura estque nihitm nisi virtus insita rebus. não é em si algo de obscuro e de misterioso, de impenetrável ao
Et lex qua peragunt proprium cuncta entia cursum* entendimento,, mas que, pelo contrário, consiste em princípios
Para descobrir essa lei devemos abster-nos de projetar na que lhe são plenamente acessíveis, que ele é capaz de descobrir
natureza as nossas representações e os nossos devaneios subje­ e de explicar racionalmente por si mesmo.
tivos; devemos, pelo contrário, acompanhar o seu próprio curso Nessa perspectiva, explica-se a potência quase Uimitada que
* A rmIn reza c as leis da natureza permanecem ocultas na noite/1 o conhecimento físico adquiriu sobre todo o pensamento da
Deus disse: "Faça-se Newion" e tudo era [uz (N. do T,). Época das Luzes. D ’Alembert chamava o século X V III de Século

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as ciências da natureza e as ciências do espírito, assim como o
da Filosofia; mas não tinha menos direitos nem menos orgulho
princípio sobre o qual essa ligação repousa:
em designar-se como o Século da Ciência, A organização da
pesquisa no domínio da física já estava muito avançada no A ciência da natureza adquire de dia para dia novas
século X VII; atingira até uma certa perfeição. Na Inglaterra, riquezas? a geometria, ao dilatar suas fronteiras, levou
com a fundação da Royal Society em 1660, tinha sido criado um o seu facho às partes da física que se encontravam
local de encontro para os trabalhos de todos os cientistas. Na mais perto dela; o verdadeiro sistema do mundo foi
realidade, essa sociedade já existia e funcionava antes como uma finalmente reconhecido. Desde a Terra aié Saturno,
associação livre de pesquisadores independentes, como uma es­ desde a história dos céus até a dos insetos, a física
pécie dc “universidade invisível" (ittvisible college), antes de mudou de rosto. Com ela, quase todas as outras ciên­
receber, com o decreto régio de fundação, seu estatuto e sua cias adquiriram uma nova forma. Essa fermentação
sanção oficial. Manifestava desde sua origem um espírito meto­ intelectual, agindo em todos os sentidos por sua pró­
dológico muito especial, recordando incessantemente que nenhu­ pria natureza, propagou-se com uma espécie de violên­
ma idéia merecia confiança em física se não tivesse dado antes cia a tudo o que lhe era oferecido, como um rio cauda­
suas provas empiricamente, se não tivesse sido testada na devida loso que rompeu seus diques. Assim, desde os princípios
ocasião e por meio da experimentação, O movimento assim de­ das ciências profanas aos fundamentos da Revelação,
sencadeado alcança em seguida a França e encontra seu primeiro desde a inelafísica até as questões de gosto, desde a
apoio na Académie des Sciences fundada por Coíberí (1666). música à moral, das disputas dos teólogos aos proble­
Mas só o século XV III lhe proporcionou toda a sua amplitude, mas econômicos, desde os direitos naturais até os direi­
ao estender sua ação a todos os domínios da vida intelectual. tos positivos, em suma, desde as questões que nos
Foi somente então que ele saiu do círculo das academias e das interessam de perto até as que só indiretamente nos
sociedades científicas para converter-se, de uma simples oportu­ afetam, tudo foi discutido, analisado ou, peto menos,
nidade propiciada ao homem de ciência, num dos elementos mais agitado. Uma nova luz sobre alguns assuntos, uma nova
obscuridade sobre muitos outros foi o fruto ou a con­
importantes e mais profundos de toda a civilização. A par dos
seqüência dessa agitação geral dos espíritos, como o
investigadores experimentais, dos matemáticos e dos físicos, par­
efeito do fluxo e refluxo do oceano consiste em! trazer
ticipam agora no movimento igualmente os espíritos que se es­
para a costa alguns objetos e dela afastar outros.
forçam por realizar uma nova orientação do conjunto das ciên­
cias morais, Uma renovação dessas ciências, uma visão mais Nem um só pensador notável do século X V III escapou a
profunda do espírito das leis, do espírito da sociedade, da polí­ essa tendência profunda. Se Voltaire, no começo, fez época na
tica, até da arte poética, parece impossível se nâo se olhar para França, não foi por seus poemas nem pelos seus primeiros esbo­
o grande exemplo das ciências naturais. Ê ainda D'A!emberí ços filosóficos, mas por sua introdução a Newton, por seus
quem não só encarna em sua pessoa mas exprime com maior Êléments de la philosophie de Newton; entre as obras de Diderot
rigor e clareza, nos seus Elementos de filosofia, essa ligação entre encontra-se uma intitulada Jtléments de physiologie e entre os

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escritos de Rousseau, uma exposição dos Fondements de la de Théologie physique, um tratado do inglês Derham em tradu­
chimie. Os primeiros trabalhos de Montesquieu relacionam-se ção francesa, a que se seguem pouco depois a Thêotogie astro-
com problemas de física c dc fisiologia, e ele parece ter sido ttomique, do mesmo Derham, a Thêotogie de l‘eait. de Fabrícius,
impedido de lhes dar prosseguimento por força de uma circuns­ e a Thêotogie des insectes, de Lesser.4 Voltaire não se enfurece
tância exterior, unia doença dos olhos que desde cedo lhe tornou apenas contra as pretensas descobertas dessa física teológica; ele
difícil a observação minuciosa. Nesse estilo tão característico de procura, sobretudo, aniquilá-la no plano metodológico, desacre­
suas obras da juventude diz Montesquieu: "Poder-se-ia quase ditá-la como filho monstruoso do espírito metodológico, como
pensar que a natureza é como essas virgens que guardam por bastardo da fé a da ciência, "Quando alguém quer levar-me
muito tempo o seu tesouro, mas que, depois, deixam-se arrebatar pelos caminhos da física a crer na Trindade, diz-me que as três
num instante esse mesmo tesouro que tão zelosamente defen­ pessoas divinas correspondem às três dimensões do espaço. Um
diam/' 15 Todo o século X V III está impregnado dessa convicção: outro acha que me vai dar a prova tangível da iransubstancia-
acredita que na história da humanidade chegou finalmente o ção: mostra-me pelas leis do movimento como pode existir um
momento de arrancar à natureza o segredo tão ciosamente guar­ acidente sem o seu sujeito". Uma nítida separação metodológica
dado, que findou o tempo de deixá-la na obscuridade ou de se só se impõe aos poucos. Toma a dianteira na geologia eliminan­
maravilhar com ela como se fosse um míslério insondável, que do em primeiro lugar o esquema temporal em que se desenro­
é preciso agora trazê-la para a luz fulgurante do entendimento lava o relato bíblico da Criação, Já no século XVII os ataques
e penetrá-la com todos os poderes do espírito. visavam sobretudo a esse esquema, Fontenelle compara a crença
Em primeiro lugar, era necessário que o vínculo unindo dos antigos na imutabilidade dos corpos celestes à crença de
uma rosa que quisesse recorrer ao fato de, era sua memória de
teologia e física fosse definitivamente desfeito. Embora já esti­
rosa, jamais ter visto ainda morrer um jardineiro. A crítica
vesse bastante mais solto antes do século X V III, não fora ainda
torna-se mais séria depois que passou a apoiar-se em resultados
quebrado de modo nenhum. A autoridade das Escrituras conti­
empíricos, em especial nas descoberlas da paleontologia. O tra­
nuava sendo respeitada em questões que só dependiam da física.
tado de Thomas Burnet, Telturis sacra theoria (1680), assim
As zombarias cora que Voltaire atormentava inexoravelmente a
como a sua Archaeologia philosophica (1692) esforçam-se uma
"física bíblica" parecem-nos hoje superadas e insípidas, mas um vez mais por confirmar a verdade objetiva do relato bíblico da
juízo histórico justo não deve esquecer que ele se defrontava no Criação; mas Burnet deve, a esse respeito, renunciar expressa­
século X V III com um adversário que era ainda sério e perigoso. mente ao princípio de inspiração literal e refugiar-se numa inter­
A ortodoxia ainda não renunciara, em absoluto, ao princípio da pretação alegórica que lhe permite reformular toda a cronologia
inspiração literal e o resultado lógico desse princípio era que o bíblica. Em lugar dos sete dias da Criação, ele introduz épocas
relalo mosaico da Criação continha uma autêntica ciência da ou períodos a que se pode atribuir qualquer duração, não
natureza cujos dados não podiam ser abalados. Não só os teólo­ importa qual, imposta pelas descobertas empíricas. Em As épocas
gos, mas também os físicos e os biólogos esforçavam-se por sus­ da natureza, a niais importante obra dc Buffon, esse procedi­
tentar e explicar essa ciência. Em 1726, é publicado com o título mento será elevado à categoria de um princípio de investiga­

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ção bem definido, Buffon não pretendia entrar em conflito com natureza com um espetáculo que se desenrolasse num vasto palco
a teologia e, aos primeiros ataques dirigidos contra a sua obra, de teatro. Ao espectador sentado na platéia oferece-se uma série
submeteu-se às decisões da Sorbonne. Mas, ao manter silêncio de eventos que chegam e partem em confusa seqüência. O espec­
a respeito do Gênese, disse muito mais do que poderia ter de­ tador absorve-se na contemplação desses eventos, deleita-se na
clarado em qualquer polêmica. Com efeito, pela primeira vez riqueza variegada das imagens que se desenrolam diante dele,
era esboçada uma história física do mundo que se mantinha à sem se preocupar muito em indagar como é que o espetáculo é
margem de toda a espécie de dogmática religiosa e só queria realizado. Mas, se por uma vez se encontrar na multidão de es­
apoiar-se em fatos observáveis e nos princípios da física teórica. pectadores um mecânico, ele não se contentará em olhar. Não
Uma brecha ineparáveí foi assim aberta no sistema tradicional, descansará enquanto não estiver na pista das causas e não des­
e o espírito irrequieto de Voltaire não descansou, ao longo de cobrir como funciona o mecanismo que produz essa sucessão de
uma obra que se estendeu por mais de meio século, enquanto cenas. A conduta do filósofo é idêntica à do mecânico. Mas
não demoliu, pedra por pedra, podemos dizer, todo 0 edifício ocorre nesse caso uma circunstância que aumenta a dificuldade:
desse sistema. Essa destruição era a preliminar indispensável para é que a natureza, no espetáculo que produz incessantemente sob
a reedificação da física. A ciência tinha reaberto agora, com os nossos olhos, escondeu tão bem o seu dispositivo que, duíante
pleno conhecimento de causa, o processo outrora intentado por séculos, ninguém logrou descobrir-lhe o mecanismo secreto. Só
Galiíeu. Ela reabria-o dessa vez em seu próprio fórum e decidia a ciência dos tempos modernos conseguiu espreitar nos basti­
fazê-lo de acordo com as suas próprias normas. Desde então o dores: percebeu não só 0 espetáculo mas compreendeu também
seu veredito nunca mais foi seriamente contestado: o próprio a engrenagem que o põe em movimento. E ao invés de, por
adversário aderiu-lhe finalmente em silêncio. Assim foi alcança­ essa descoberta, o encanto do espetáculo diminuir, o seu valor
da uma das primeiras vitórias decisivas da filosofia do Iluminis- é, muito pelo contrário, realçado. Seria um erro crer, como
mo. Ela punha um ponto final numa questão que se iniciara na muitos, que o conhecimento dos mecanismos que regem o curso
Renascença: delimitava definitivamente o domínio do conheci­ do universo lhe reduzem a dignidade. “No que me diz respeito.,
mento racional, no interior do qual este não encontrava o menor ainda o tenho em mais alto apreço depois de saber que ele &
obstáculo e o menor constrangimento autoritário, onde podia
como um relógio. Não é deveras surpreendente que a natureza,
movimentar-se livremente em todos os sentidos e, apoiando-se
por mais admirável que seja, assenta em definitivo sobre coisas
nessa liberdade, chegar, enfim, ao pleno conhecimento de si
tão simples?“ 7
mesmo e das forças que continha em seu bojo.
A comparação assinalada por Fontenelle é mais do que um
simples jogo de espírito; ela enccrra um pensamento que era
de importância decisiva para toda a edificação do conhecimento
2
da natureza no século XVII. A filosofia cartesiana da natureza
Em Enireliens sur la pluralité des mondes. Fontenelle, pro­ conferira a esse pensamento seu cunho característico e uma apli­
curando explicar a cosmologia cartesiana, compara a história da cação universal. Nada se compreende da natureza se a considerar-

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mos tão-somente uma soma de fenômenos, se apenas tomarmos caminho, mais se aproximava dos fenômenos particulares da na­
em consideração a sua extensão no espaço e a sucessão de even­ tureza, maiores eram as dificuldades que se acumulavam à sua
tos no tempo. Trata-se de remontar desses fenômenos aos prin­ frente. Ele só podia defrontar essas dificuldades encontrando
cípios; ora. estes só se encontram nas leis universais do movi­ escapatórias nos novos e cada vez mais complicados mecanismos,
mento. Portanto, assim que essas leis foram descobertas e se enredando-se numa série de hipóteses. Essa tela finamente tecida
lhes deu uma expressão matemática exata, está traçado o cami­ foi despedaçada por Newton. Este esforça-se igualmente por es­
nho para lodo o conhecimento ulterior. Basta-nos desenvolver o tabelecer princípios matemáticos universais que governem o curso
que aí se encontra contido e implícito para ter uma visão com­ da natureza; mas não acredita na possibilidade de reduzir toda
pleta de toda a natureza, para compreender o universo até em a física à geometria. Pelo contrário, defende o privilégio e a
suas estruturas mais íntimas. O tratado de Descartes sobre o especificidade da pesquisa física, especificidade essa que se ba­
sistema do mundo devia fornecer a execução desse plano teórico. seia, para ele, no método de experimentação e de raciocínio
Estava colocado à sombra do lema: "Dêem-me a matéria e indutivo. O caminho da investigação física não se faz de cima
construirei uni mundo", O pensamento jâ não quer mais aceitar para baixo, dos axiomas e princípios para os fatos, mas, inver­
o mundo como um dado empírico; assume como tarefa pene­ samente, destes para aqueles. Não podemos começar por hipó­
trar no edifício e observar por si mesmo como a construção é teses gerais sobre a natureza das coisas para deduzir daí, em
realizada. Em suas próprias idéias, claras e distintas, encontra seguida, o conhecimento dos efeitos particulares; devemos, pelo
o exemplo e o modelo de toda a realidade. A evidência de seus contrário, iniciar a nossa investigação na posse do conhecimento
princípios ç de seus axiomas matemáticos o conduz com toda a que nos foi facultado de antemão pela observação direta, para
segurança de um extremo ao outro do domínio da natureza. tentar chegar em seguida, subindo progressivamente, até as pri­
Pois existe um só caminho fixo e determinado, uma única cadeia meiras causas e 0$ elementos mais simples dos acontecimentos
dedutiva fechada sobre si mesma, que leva das causas mais eleva­ em curso. O ideal da dedução opõe-se assim ao ideal da aná­
das e mais genéricas do devir até os mínimos efeitos, por com­ lise. E essa análise é um princípio sem fim; ela não pode esta-
plexos que sejam. Não existe qualquer espécie de barragem entre belecer-se em função de uma série limitada, de um programa
o domínio das idéias claras e distintas e o dos fatos, entre a predeterminado de operações mentais; deve ser reatada a cada
geometria e a física. Uma vez que a substância dos corpos con­ novo estágio do desenvolvimento da ciência experimental. Jamais
siste apenas em extensão, o conhecimento dessa extensão, a se registra aí um ponto final absoluto, apenas uma série de pa­
geometria pura, prepondera simultaneamente na física. Ele expri­ radas relativas e provisórias. Newton considerou a sua própria
me a essência do mundo dos corpos e suas fundamentais pro­ doutrina, a teoria da gravitação universal, uma dessas paradas
priedades universais mediante definições exatas, e parte daí para provisórias, porquanto se contentou em mostrar na gravitação
a determinação do particular e dos fatos, numa seqüência con­ um fenômeno universal da natureza sem lhe averiguar as causas
tínua. últimas. Rechaçou expressamente uma teoria mecânica da gra­
Mas esse grandioso projeto da física cartesiana não resistiu vitação porque a experimentação nenhuma prova satisfatória nos
ao teste da experiência. Quanto mais Descartes progredia nesse fornece nesse sentido. Tampouco deseja estabelecer uma causa

82 83
metafísica qualquer para a gravidade: isso significaria para o ff* lidades "ocultas”, como aquelas a que a escolástica recorria, 6
sico uma transgressão injustificável dos limites do seu domínio. arbitrária e, bem entendido, vazia de sentido; em contrapartida,
Ora, esse só tem que se ocupar dos fenômenos da gravidade e seria indubitavelmente um progresso muito claro e muito con­
não deve procurar exprimir esses fenômenos em simples con­ siderável para o pensamento científico chegar-se a delimitar a
ceitos, numa definição abstrata. O que ete procura é uma fór­ riqueza dos fenômenos naturais a um reduzido número de pro­
mula matemática que os reúna a título de casos particulares priedades fundamentais da matéria e a certos princípios do mo­
concretos e que faça deles a descrição completa. A teoria física vimento, mesmo que as causas dessas propriedades e desses
não pode nem deve ir além dos limites de uma descrição pura princípios devam, no início, permanecer desconhecidas para nós.
dos fenômenos da natureza.8 Vista nessa perspectiva, a gravi­ Com essas teses clássicas, como as que se encontra, por
dade é, de fato, uma propriedade geral da matéria, mas não exemplo, em conclusão da sua Ó p t ic a Newton traçou um pro­
existe a menor necessidade de considerá-la uma de suas pro­ grama claro e preciso para o conjunto das investigações teóricas
priedades essenciais. A filosofia da natureza que se propõe a da física do século XV11I. O ponto mais crítico dessas investi­
edificar o mundo pelo puro pensamento, a construí-lo a partir de gações é a passagem de Descartes a Newton, efetuada com muita
conceitos simples, vê-se constantemente a braços, segundo New- energia e lucidez, O ideal de uma filosofia da natureza pura­
ton, com uma dupla tentação e um duplo perigo. Toda vez que mente "mecanista", segundo a concepção que Fontenelle anun­
ela se depara com alguma qualidade geral das coisas, a qua] se ciava nas fórmulas citadas mais acima, é assim progressivamente
encontra por toda a parte, tudo o que pode fazer é hipostasiar afastado e, por fim, totalmente abandonado pelos teóricos do
essa qualidade, ou seja, fazer dela uma qualidade primeira, abso­ conhecimento da nova física. No seu Tratado dos sistemas (1749),
lutamente real, do ser, ou resolvê-la, reduzi-la, explicando-a como Condillac já assume essa posição sem ambigüidade para eliminar
uma conseqüência de raz5es mais longínquas. Entretanto, esses do domínio da física esse “espirito de sistema'1 que produziu os
dois perigos são estranhos ao verdadeiro empirismo, o qual se grandes edifícios doutrinais da metafísica do século X V I1. Em
contenta em estabelecer os fenômenos, sabendo por outro lado vez de não se sabe que explicação geral mas arbitrária, extraída
que nenhum fenômeno constitui uma realidade tão absolutamente de uma pretensa "natureza das coisas", era imprescindível dar
derradeira que nSo seja suscetível de atnda outra operação analí­ lugar à observação pura dos fenômenos e à simples demonstra­
tica. Tal análise não pode, porém, ser realizada de modo preci­ ção de sua conexão empírica. O físico deve, em definitivo, re­
pitado pelo pensamento, por antecipação; ela deve aguardar os nunciar a essa ambição de explicar o mecanismo do universo.
avanços da experiência. Ê nesse sentido que Newton insiste no Ele já tem muito que fazer, e tem feito muito, quando se em­
fato de que a gravidade é, de momento, um elemento "último" penha em mostrar as relações determinadas que unem seus di­
da natureza, uma qualidade provisoriamente “irredutível“, que versos elementos. O ideal do conhecimento da natureza deixou
nenhum mecanismo conhecido basta para explicar, o que não ex­ de se inspirar, por conseguinte, no modelo da geometria a fim
clui, evidentemente, que essa mesma qualidade, à luz de obser­ de optar pelo da aritmética, pois é a teoria dos números a que,
vações ulteriores, não possa por sua vez ser reduzida a fenôme­ segundo Condillac, oferece o exemplo mais claro e mais simples
nos mais simples. A hipótese de que não se sabe quais as qua­ de uma teoria das relações em geral, de uma lógica geral das re­

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lações.10 Mas esse ideal de conhecimento possui, antes, a am­ sempre a possibilidade de erro, de ilusão sensorial. Para escapar
plitude de sua extensão e a força dc sua influência em virtude de a essa ilusão, não temos outro recurso senão rasgar o véu da
ter sido adotado por Voltaire como grito de guerra no decorrer aparência, relacionar os dados empíricos com idéias, exprimi-los
das lutas que travou contra a física cartesiana. Com esse seu por idéias que em si contêm suas próprias garantias. Existe, por­
incomparável talento para simplificar e generalizar os problemas, tanto, uma certeza imediata, intuitiva, dos princípios e um co­
para universalizá-los, Voltaire não tardou em situar o problema nhecimento mediato, derivado dos fatos. A certeza dos fatos está
no plano da generalidade. O método de Newton não é unica­ subordinada à dos princípios e deles depende. Mas a nova teoria
mente válido para a física; ele vale para todo saber em gerai e do conhecimento físico, apoiando-se em Newton e Locke, in­
submete doravante esse saber a condições e restrições bem deter­ verte essa relação. O princípio é que é derivado e o fato, como
minadas. Quando não podemos valer-nos da bússola das mate­ matler of fact, é que está na origem. Não existe nenhum prin­
máticas nem do farol da experiência e da física, é certo que nlo cípio que seja ccrto "cm si"; cada um deles deve a sua verdade
podemos dar um só passo em nosso caminho. Ê em vSo que e a sua credibilidade interna ao uso que fazemos dele, uso que
esperamos poder decifrar algum dia a essência das coisas, seu não poderia consistir em oulra coisa senão permitir-nos abranger
puro "era si" (ihr reines An-Sich). Não poderemos compreender, inteiramente a diversidade dos fenômenos dados e impor-lhes
partindo de idéias gerais, como é possível que uma fração de uma ordem e uma classificação segundo pontos de vista deter­
matéria aja sobre uma outra se não chegarmos a fazer uma idéia minados. Se pusermos de lado essa junção de ordem e de clas­
clara do nascimento das nossas próprias representações. Tanto sificação, todos os princípios caem no vazio. Eles não possuem
num caso como no outro deveremos contentar-nos em estabelecer em si mesmos a sua razão de ser; só podem receber sua verdade
o “quê” sera ter a menor idéia do "como”. Indagar como pen­ e sua cerieza por intermédio daquilo que fundamentam. Como
samos e sentimos, como os nossos membros obedecem ao co­ nada têm a fundamentar que não pertença ao domínio da obser­
mando da nossa vontade, significa interrogarmo-nos sobre os vação, das realidades de fato, é óbvio que esses princípios, por
segredos da criação. Ora, nesse ponto, todo o saber nos aban­ universais que sejam, nunca podem escapar inteiramente a esse
dona: não existe nenhum saber dos primeiros princípios. Nada domínio, passar-lhe por cima, "transcendê-lo". Em meados do
de verdadeiramente primeiro, de absolutamente originário ja­ século, graças aos discípulos e apóstolos que a doutrina de New­
mais nos será plena e adequadamente conhecido: " Aucun premier ton encontrou na França, graças a Voltaire, a Maupertuis, a
ressort, aucun premier príncipe ne peut ètre saisi par nous." 11 D ’Alembert, essa concepção impôs-se por toda parte. Costuma-
Na questão da certeza e da incerteza do conhecimento, os papéis se considerar a conversão ao "mecanismo", ao "materialismo”,
foram curiosamente trocados em conseqüência dessa passagem como o traço mais significativo da filosofia da natureza do sé­
de um ideal construtivo da física para um ideal puramente ana­ culo X V III e acredita-se com freqüência que basta isso para
lítico. Para Descartes, a certeza e a firmeza de todo o saber fun­ caracterizar exaustivamente 0 seu espírito, em particular a orien­
davam-se nesses primeiros princípios, ao passo que todo o estado tação geral do espírito francês nessa época. Na verdade, esse
de fato como tal permanecia incerto e problemático. Não po­ ''m aterialism otal como se apresenta, por exemplo, no Système
demos confiar na aparência sensível, porquanto ela comporta de la nature, de Holbach, e em L'homme machine, de La Mettrie,

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representa apenas um fenômeno isolado que não pode, de modo blema mais difícil e mais profundo, A filosofia de D ’Alembert
nenhum, passar por representativo desse período. As duas obras renuncia a estabelecer a fórmula metafísica do cosmo que nos
citadas constituem um caso específico, uma recaída no espírito desvendaria o "em si” das coisas (das An-Sich der Dinge); ela
dogmático contra o qual o século X V III batalha pela pena de quer ater-se ao domínio fenomenal, colocar em evidência o sis­
seus pensadores científicos mais eminentes, e que se esforça jus­ tema que esses fenômenos constitôem, sua ordem constante e
tamente por superar. A mentalidade científica do círculo da En­ completa. Onde podemos assegurar-nos, entretanto, da verdade
ciclopédia não é encarnada, em absoluto, por Hoibach e La desse mesmo sistema, da existência de uma tal ordem? Onde re­
Mettrie, mas por D'Alembert, em quem vamos encontrar a mais side a garantia, a prova decisiva de que esse sistema universal
nítida recusa em aceitar o mecanismo e o materialismo como dos fenômenos é, pelo menos, um sistema perfeitamente fechado,
princípios derradeiros de explicação das coisas, como pretensas perfeitamente uno e uniforme em si mesmo? Essa uniformidade
soluções dos enigmas do mundo. D ’Alembert não se desvia um é postulada por D ’Alembert, não é fundamentada mais precisa­
milímetro sequer da linha metodológica traçada por Newton. mente em parte aíguma. Não é lícito recear, então, que, por esse
Corta,cerce toda e qualquer questão que diga respeito à essência postulado, uma nova forma de crença tenha sido introduzida?
absoluta das coisas e seu fundamento metafísico. "No fundo, Um pressuposto metafísico indemonstrado e mdemonstrável não
que nos importa penetrar na essência dos corpos, desde que, se dissimularia aí por acaso? O racionaltsmo clássico, na pessoa
presumindo-se que a matéria é tal como a concebemos, possamos de seus pensadores mais eminentes, Descartes, Spinoza e Leibniz,
deduzir propriedades que consideramos primitivas; as outras já se deparara com esse problema. Ele acreditava resolvê-lo re­
propriedades secundárias de que nos apercebemos nela e que o duzindo a questão da unidade da natureza à da unidade de sua
sistema geral dos fenômenos, sempre uniforme e contínuo, em origem divina. Se é verdade que a natureza é obra de Deus, ela
nenhuma parte nos apresenta contradição? Detenhamo-nos, pois, remete-nos para a imagem do espírito divino, ostenta o selo de
e não procuremos diminuir por sutis sofismas o número já es­ sua imutabilidade e de sua eternidade. Em suma, é a sua origem
casso dos nossos conhecimentos claros e certos.” Sobre questões que nos assegura sua verdade autêntica e profunda. A unifor­
como a união da a]ma e do corpo e sua ação recíproca, como a midade da natureza tem suas raízes e sua fonte na forma essen­
origem das idéias primeiras, como as razões últimas do movi­ cial de Deus. Não está já implícita na simples idéia de Deus que
mento, a Providência lançou um véu que procuramos em vão ele só pode ser pensado como um, em concordância consigo
erguer. " £ uma triste sorte para a nossa curiosidade e o nosso mesmo, imutável em seus pensamentos e em suas vontades? Co­
amor próprio — mas é essa a sorte da humanidade. Pelo menos, locar nele a possibilidade de uma mudança de sua existência
devemos concluir daf que os sistemas ou, melhor, os sonhos dos equivaleria a uma negação, a um aniquilamento de sua essência.
filósofos sobre a maioria das questões metafísicas não merecem A identificação spinozista de Deus e da Natureza, a sua fórmula
ocupar nenhym lugar numa obra unicamente destinada a conso­ Deus sive Natura, repousa inteiramente nessa concepção funda­
lidar os conhecimentos reais adquiridos pelo espírito humano," 12 mental. Admitir, nem que fosse em pensamento, que a ordem
Com essa espécie de resignação crítica em face do conhe­ da natureza poderia ser outra, é admitir que Deus possa ser ou
cimento, iá nos encontramos, entretanto, no limiar de um pro­ vir a ser outro: "Si res alterius naturae potuissent esse vel alio

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modo ad operandum determinari, ut naturae ordo alius esset, sarnento deve tomar nesse ponto impn^-lhe uma tarefa bem mais
ergo Dei etiam rntura alia posset esse, quam jam est." 13 Quer árdua e empenha a sua responsabilidade de um modo muito
falemos das leis da natureza ou das leis dc Deus, trata-se apenas mais pesado do que todas as questões concernentes ao simples
de uma mudança de linguagem: as leis universais da natureza se­ conteúdo da filosofia da natureza. Não se trata, efetivamente, do
gundo as quais tudo acontece e pelas quais tudo é determinado, conteúdo da natureza mas do seu conceito, não dos dados da
nada mais são do que os decretos eternos de Deus, o que implica experieneia mas de sua forma. A filosofia do lluminismo podia
sempre uma verdade e uma necessidade eternas.1* considerar relativamente simples a tarefa de libertar a física da
Mesmo para Leibniz não existe, cm última instância, ne­ dominação, da tuteia da teologia. Bastava-lhe, para consumar essa
nhuma outra prova conclusiva da constância da natureza, da libertação, recolher a herança do século precedente, separar con­
harmonia das idéias e do real, do acordo dos fatos e das verdades ceptualmente o que já fora apartado de fato. A filosofia ilumi-
eternas, a não ser o recurso à unidade do princípio supremo nista, em suma, nada mais fez do que esclarecer uma situação
donde provém o mundo dos sentidos, assim como 0 do enten­ de fato que era o resultado metodológico do trabalho científico
dimento. A fim de justificar que os princípios fundamentais da de dois séculos; aduziu-lhe as conseqüências mas sem realizar,
análise do infinito sejam aplicáveis sem restrição à natureza, desse ponto de vista, a revolução intelectual. Contudo, a partir
que o princípio de continuidade possui não só uma significação do instante em que se apresenta, a essa mesma ciência, a questão
matemática abstrata mas lambém uma significação física con­ de sua justificação, surge um novo e mais radical problema. Para
creta, Leibniz parte do fato de que as leis da realidade não podem que serve libertar a física de lodo e qualquer elemento teoló-
afastar-se das leis puramente ideais dit lógica e da matemática: gico-metafísico, limitar o seu alcance a simples enunciados empí­
Ç ’est par ce que tout se gouverne par raison et qu'autrement il ricos se, por outro lado, não se consegue eliminar os elementos
n’y auroit point de science n’y règle ce qui ne serait point con- metafísicos de sua estrutura? Ora, toda a afirmação que for além
jo n m avec la nature du souverain principe." « Mas essa demons­ da simples constatação da presença de um objeto dos sentidos,
tração não contém um círculo manifesto? Podemos concluir da encontrado aqui ou ali, não comporta em si um tal elemento?
uniformidade empírica, cujo espetáculo a natureza parece ofe­ Será necessário considerar como resultado da experiência a in­
recer-nos, a unidade absoluta e a imutabilidade de Deus e de­ terpretação sislemática da natureza e será possível realizar a de­
pois, em sentido inverso, apoiar-nos nessa imutabilidade divina monstração, a dedução da uniformidade absoluta dessa expe­
para afirmar a uniformidade perfeita, a harmonia rigorosa da riência — ou tratar-se-á, antes, de uma premissa da experiência,
ordem da natureza? Não atentamos contra as leis mais elemen­ de um preconceito, de utna pré-opinião? E esse preconceito, esse
tares du lógica, não sentimos o chão fugir-nos sob os pés quando a priori lógico, não é tão contestável quanto poderia sê-lo qual­
admitimos como prova final o que, em primeiro lugar, cumpriria quer a priori metafísico ou teológico? Não nos contentemos em
justamente provar, quando apoiamos toda a certeza dos nossos afastar, um por um, os conceitos e juízos metafísicos do horizonte
julgamentos e raciocínios empíricos numa hipótese metafísica da ciência empírica. Tenhamos a ousadia, finalmente, de per­
que se^ presta muito mais às dúvidas e aos debates do que à correr o caminho até o fim: que se prive a idéia de natureza do
aquisição dessa mesma certeza? Com efeito, a decisão que o pen- apoio da idéia de Deus. Que sucederá então à pretensa " neces-

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sídadc" da natureza, de suas leis universais, eternas, invioláveis? traordinariamente rigoroso e conseqüente — no sentido da in­
Existirá uma certeza intuitiva dessa necessidade, ou alguma outra vestigação de uma lógica da ciência experimental. A Holanda
prova dedutiva concludente? Ou deveremos renunciar a todas as já tinha sido no século X V II o pais onde se associavam, de ma­
provas desse tipo e decidirmo-nos a dar o último passo — reco­ neira exemplar, simultaneamente o movimento tendente a uma
nhecer que o mundo dos Fatos deve ser o seu próprio suporte, observação exata dos fatos, para a elaboração de um rigoroso
que procuramos era vão para ele a firmeza de um outro apoio, método experimental, e um estilo de pensamento crítico propenso
de um “fundamento” racional? a determinar, com tanta certeza quanto clareza, o sentido e o
Em toda essa problemática, antecipamos o desenvolvimento valor da hipótese científica. O exemplo clássico dessa associação
que conduz do fenômeno da física matemática ao cepticismo de é fornecido pelo maior dos cientistas holandeses, Christian Huy-
Hume. E não entendemos por esse desenvolvimento uma pura ghens, que, no seu Trailé de ía lutttière (1690), expõe, no que
construção intelectual mas um processo histórico concreto que se refere às relações da experiência e do pensamento, da teoria
se pode acompanhar passo a passo no pensamento do século e da observação, princípios que superam largamente o cartesia-
XV III e colocar em evidência até nos detalhes de seus nós e ra­ nismo em clareza e distinção. Huygbens estabelece nitidamente
mificações. Esse ponto preciso escapou, até o presente, aos his­ que não se trata de atingir em física a mesma evidência que nas
toriadores da filosofia e, com isso, o verdadeiro ponto de partida demonstrações e deduções matemáticas, que não existe nenhuma
do cepticismo de Hume não foi enfatizado. É evidente que esse certeza intuitiva das verdades físicas fundamentais. Que tudo 0
ponto de paríida nuo aparece a quem se contenta, como ocorre que se deve exigir e obter em física é uma "certeza moral", a
freqüentemente, em situar a doutrina de Hume no contexto do qual, na realidade, pode elevar-se a um tão alto grau de pro­
empirismo britânico e em interpretar o seu desenvolvimento his­ babilidade que, na prática, em nada perde para uma demonstra­
tórico a partir desses pressupostos. A doutrina de Hume não ção rigorosa. Com efeito, se as conclusões aduzidas sob a pres­
representa, com efeito, um resultado final mas um recomeço da suposição de uma determinada hipótese são plenamente confir­
filosofia; representa mais do que um cio na cadeia espiritual que madas pela experiência, se se pode, em particular, prever novas
vai de Bacon a Hobbes, de Hobbes a Locke e de Locke a Ber- observações baseando-nos nessas conclusões e se se encontra a
keley. É claro que Hume tomou deles alguns de seus instrumen­ sua confirmação na experiência, então alcançou-se, efetivamente,
tos de pensamento, o arsenal conceptual e sistemático do empi­ aquela espécie de verdade a que a física pode aspirar.17 Os físi­
rismo e do sensualismo. Mas a sua problemática autêntica, espe­ cos holandeses do século X V III continuarão construindo sobre
cífica, provém de outro lado, tem origem numa outra causa que essas fundações, persuadidos que estavam de ter sob os olhos,
se situa no prolongamento, na continuação direta dos debates com a teoria de Newton, a confirmação por excelência da cor­
científicos dos séculos XVII e X V III, Um dos elos mais impor­ reção de suas posições. Com efeito, nenhum outro elemento
tantes da cadeia encontra-se nos trabalhos da escola newtoniana, hipotético aí sc encontra, além daqueles que a experiência pode
em particular na elaboração metodológica rigorosa de que se imediatamente comprovar. S’Gravesande, em sua aula inaugural
beneficiaram as idéias de Newton entre os pensadores e cientis­ como professor de matemática e astronomia na universidade de
tas holandeses.1® Essas idéias foram reatadas de um modo ex­ Leyde, em 1717, tentou desenvolver e esclarecer sob todos os as­

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pectos essa idéia fundamental. Mas, no transcurso desse desen­ raciocinar por analogia, a qual, por consegui me, pode servir de
volvimento, defrontou-se precisamente cora um problema difícil fundamento legítimo para os nossos raciocínios." Mas essa
ç deveras curioso, Quando, (ornando por base certas observações, conclusão, esse "por conseguinte”, dissimula mal a fiexáfiaatç
prevemos fatos que ainda não observamos diretamente, apoiamo- eiç ãilo yévoz * A necessidade psicológica e biológica do ra­
nos no axioma dc uniformidade da natureza. Sem esse axioraa. ciocínio por analogia permitirá afirmar seja o que for a favor de
sem a hipótese de que as leis que descobrimos hoje na natureza sua necessidade lógica, de sua verdade "objetiva'*? O empirismo
vão manter-se e perdurar mais tarde, toda a conclusão inferida matemático chegou agora ao limiar do empirismo céptico: a partir
do passado para o futuro cairia manifestamente no vazio. Ora, desse instante a passagem de Newton a Httme torna-se inevitável.
como esse mesmo axioma será demonstrável? Responde S’Grave- As duas concepções estão separadas apenas por uma frágil e
sande: “Não se trata de um axioma estritamente lógico mas de delguda divisória que o menor sopro derrubará. Dcscartcs, para
um axioma prático; sua validade não decorre da necessidade do pedra angular de sua doutrina da certeza do saber, não encon­
pensamento mas da necessidade da ação. Toda a ação, toda a trou outra coisa a não ser a "veracidade divina". Teria sido pôr
transação ptática com as coisas não estaria vedada ao homem se em dúvida essa veracidade pretender contestar a validade abso­
este não pudesse levar em conta que os ensinamentos recolhidos luta das idéias e dos princípios que discernimos com clareza e a
de uma experiência passada ainda valem no futuro, aí conservam evidência mais perfeita, a das noções e regras da matemática
sua força e sua validade? O raciocínio que conclui do passado pura. Agora, pelo contrário, é preciso retorrer, a fim de confir­
e do presente para o futuro não é, evidentemente, um raciocínio mar a validade dos primeiros princípios da física, à verdade da
de lógica formal, um silogismo constrangedor; mas nem por isso experiência, não à veracidade de Deus mas à sua bondade; daí
deixa de ser um raciocínio que, por analogia, é perfeitamente resulta que uma convicção indispensável ao homem, de uma im­
válido e até indispensável. O saber que temos das coisas físicas, portância e dc uma necessidade vital para ele. deve ter também
0 que sabemos da natureza empírica das coisas, não transpõe o um fundamento na natureza das coisas. Podemos confiar no ra­
limite desse conhecimento por analogia. Temos, entretanto, o ciocínio por analogia, prossegue S*Gravesande, se levarmos em
direito e a obrigação de confiar nele, visto que nos é imprescin­ conta a bondade suprema do Criador: "Pois a certeza da analo­
dível aceitar por verdadeiro tudo cuja refutação implicaria a gia baseia-se na invariabilidade dessas leis que não poderiam estar
supressão para o homem dc todo e qualquer meio de existência sujeitas a mudança sem que O gênero humano se ressentisse disso
empírica, de todo e qualquer tipo de vida social." u c perecesse em pouco tempo/' 29 Mas, sendo assim, o problema
Uma curiosa reviravolta acaba, portanto, de se concretizar fundamental da metodologia da física vê-se implicitamente trans­
de uma assentada: a certeza da física, que era baseada em pres* formado num problema de tcodicéia. Elímíne-se a questão da
supostos puramente lógicos, repousa agora numa pressuposição Icodkéia, ou dê-se-lhe uma resposta negativa, e o problema da
biológica e sociológica, O próprio S’Gravesande procura atenuar ccrteza da indução fiSica adquire então um aspecto muito dife­
a novidade e o radicalismo desse pensamento recorrendo, uma rente. E foi justamente essa a mudança que se realizou cm
vez mais, a uma interpretação, a uma explicação metafísica. De­ Hume. O empirismo matemático encontrava-se num pomo tal
clara ele: “O Autor da natureza colocou-nos na necessidade de que a certeza da "uniformidade da natureza" só podia ser esta­

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belecida e justificada por uma espécie de "fé". Hume apodera-se duzidas unicamente da extensão. Esta constitui, em suma, a ver­
dessa conclusão mas despoja imediatamente essa fé de todos os dade, a essência, a substância do mundo material, ao passo que
seus componentes metafísicos, descarta todos os elementos trans­ todas as outras qualidades são postas na categoria de simples aci­
cendentes. Ela não mais assenta em bases religiosas mas em pura­ dentes, dc propriedades “contingentes''. Newton e sua escola
mente psicológicas; deriva de uma necessidade puramente ima­ contestam igualmente nesse ponto o cartesianismo e opõem ao
nente da natureza humana. Nesse sentido, a teoria humiana do seu ideal dedutivo um ideal puramente indutivo. Se nos ativermos
belief, da crença, é a continuação e a solução irônica de todo estritamente ao fio condutor da experiência, sustentam eles, só
um processo intelectual tendente a conferir à própria ciência ex­ poderemos concluir pela coexistência regular dessas proprieda­
perimental um fundamento religioso. A solução consiste na in­ des, sem poder jamais pretender deduzir umas das outras. Para
versão dos papéis entre a ciência e a religião. Não é a religião bem compreender a história desse problema, uma espiada à dou­
que permite, graças à sua verdade superior, “absoluta", dar um trina dos físicos holandeses é particularmente reveladora. S’Gra-
sólido ponto de apoio à ciência; pelo contrário, é a relatividade vesaiidc e seu discípulo e sucessor Musschenbroek não se can­
do conhecimento científico que arrasta, por sua vez, a religião saram de repelir que é inteiramente frívolo querer distinguir entre
para o seu terreno movediço. Nem a ciência nem a religião são as determinações essenciais e não-essenciais da malcria. Como
suscetíveis de uma justificação "racional", estritamente objetiva; saber se uma lei natural que vemos por toda parle confirmada
contentemo-nos, pois, em sacar uma e outra de suas fontes sub­ pela experiência e que, por conseguinte, devemos reconhecer
jetivas, em compreendê-las, na falta de poder fundamentá-las à como uma lei universal — por exemplo, a Lei da Inércia — nos
semelhança das expressões de certos instintos primitivos e pro­ revela uma propriedade essencial e necessária dos corpos? "Essas
fundos da natureza humana. leis são extraídas da esscncia da matéria ou deve-se deduzi-las
A conclusão a que nos leva a análise do problema da cau­ somente de certas propriedades fundamentais que Deus conferiu
salidade impõe-se também do ponto de vista do problema da aos corpos, sem que elas, entretanto, lhes pertençam essencial e
substância. O empirismo matemático também antecipava, sobre necessariamente, ou, enfim, os efeitos que temos sob os nossos
esse ponto, um resultado decisivo. Com efeito, nãc combatia ele olhos assentam em causas exteriores das quais não podemos ter
a idéia de uma matéria cujas propriedades fundamentais, aquelas a menor idéia? Eis o que ignoramos de forma absoluta.“ Pode­
que nos são indicadas pela experiência, estariam unidas por uma mos considerar, com uma certeza empírica, a extensão e a forma,
relação constante entre princípio e conseqüência e por uma cau- o movimento e o repouso, u gravidade e a inércia como quali­
sação recíproca; e que seriam dedutíveis umas das outras, na mais dades primárias da matéria, mas nada impede que a par dessas
rigorosa necessidade intelectual? Tal dedução era justamente o qualidades que conhecemos existam outras, as quais serão talvez
ideal a que Descartes sujeitara a física. Partindo das proprie­ descobertas mais tarde, e que poderíamos considerar pelos mes­
dades puramente geométricas da matéria, Descartes procura mos­ mos motivos, ou com maiores razões, qualidades primitivas e
trar que se pode extrair delas todas as determinações que temos originárias.*1 Temos, pois, que nos decidir, também nesse ponto,
o costume de atribuir ao mundo dos corpos.1'Todas as qualidades por um abandono definitivo. Km vez de separar a "essência"
da matéria, inclusive a impenetrabilidade e a gravidade, são de­ da '‘aparência’', c de inferir esta daquela, devemos tomar po-

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siçio, pura e simplesmente, no interior do mundo da experiência; natureza e de aí se estabelecer em definitivo foi essa tendência
em vez de querer ''explicar" uma propriedade por uma outra, fatal para questionar o além da natureza. Que se descarte essa
devemos nos ater à vizinhança, à coexistência dos diferentes ca­ questão de "transcendência“ e a natureza deixa instantanea­
racteres que a experiência nos revela. Nada perderemos do nosso mente de ser um mistério. Não é a sua essência que é misteriosa
saber real com esse abandono; apenas nos emanciparemos de um ou incognoscível, foi o espírito humano que lançou sobre ela uma
ideal t|uc o progresso do conhecimento empírico sempre recha­ obscuridade artificiai. Arranque-se-lhe esse véu de palavras, de
çou c desmembrou. Percebe-se que não vai mais que um passo conceitos arbitrários, de preconceitos íantásticos e a essência apre-
dessa visão das coisas è dissolução completa da idéia de subs­ sentar-se-nos-á tal como ér como um todo organizado, que se jus­
tância, ao pensamento de que a representação das coisas corres­ tifica a si mesmo, que se sustenta e se explica inteiramente por
ponde tão-somente à representação de uma simples soma, de um si mesmo. Nenhuma explicação extrínseca, buscando o princípio
agregado de qualidades. A passagem efetua-se progressivamente da natureza para além dela própria, jamais poderá atingir esse
e sem ruído: a tentativa de exchtir das fundações da filosofia da objetivo, pois o homem é obra da natureza e só tem existência
experiência todos os elementos "metafísicos11 é levada finalmente com ela. É em vão que ele se esforça por escapar à sua lei:
tãô longe que ameaça, que compromete os próprios fundamen­ mesmo em pensamento, só aparentemente ele pode romper
tos lógicos do empirismo. tais vínculos. Qualquer esforço que seu espírito faça para
transpor os limites do mundo sensfvel vê-se-lhe incessantemen­
te reconduzido, pois a única faculdade que lhe é concedi­
3 da ê a de interligar os dados sensíveis. Nesses dados está con­
tido todo o conhecimento que poderemos desejar obter sobre
Enquanto a física matemática se conserva nos limites de um a natureza; e esses dados oferecem-se-nos, aliás, numa ordem tão
feno' enismo estrito, chegando mesmo à elaboração de conclu­ clara e tSo completa que nada subsiste de obscuro ou de duvi­
sões cépticas, a jilosojia popular da ciência envereda pelo ca­ doso. O segredo da natureza esquiva-se aos que ousam resistir-
minho exatamente oposto. Ela não é afetada por qualquer escrú­ lhe, encará-la de frente com arrogância. Não vislumbra nela con­
pulo ou dúvida crítica e está firmemente decidida a não pres­ tradição nem ruptura; aí vê apenas um ser e uma forma de
cindir de nenhuma de suas ambições epístemológicas. Impelida legalidade, Todos os processos naturais, incluindo aqueles fatos
pelo desejo de conhecer o que o mundo contém em seu núcleo que temos o costume de designar como fatos espirituais, toda a
secreto, acredita ter ao alcance dc sua mão a solução de seus ordem física cm seu conjunto, assim como a ordem “moral”
enigmas. Já não necessita, no fundo, para chegar a essa solução, das coisas em sua totalidade, reduzem-se inteiramente à matéria
de nenhum esforço positivo: tudo o que nos resta fazer é afastar e ao movimento e confundem-se com eles. "Existir não quer dizer
os obstáculos que retardaram até o presente os progressos do outra coisa senão ser suscetível de movimento e concebível no
conhecimento da natureza e o impediram de prosseguir resoluta­ movimento, conservá-ío em si, recebê-lo e transmiti-lo; atrair
mente em seu caminho até o fim, O que, de maneira incessante, sobre si as matérias que são apropriadas para fortalecer o seu
reteve o espírito do homem dc tomar verdadeiramente posse da ser e afastar de si aquelas que podem debilitá-lo." Tudo 0 que

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somos e podemos vir a ser, as nossas representações, os nossos doravante o seu único guia: “Eis os meus filósofos", costumava
atos de vontade, as nossas atividades, nada mais são do que os ele dizer, referindo-se aos seus sentidos.31 Aquele que não se
efeitos necessários da natureza e das qualidades fundamentais contenta com esse mundo visível, que indaga as causas invisíveis
que a natureza nos outorgou, assim como das condições nas quais dos efeitos visíveis, não age mais sabiamente, segundo Diderot,
essas qualidades se desenvolvem e se transformam.” do que um camponês que atribuísse o movimento do seu relógio,
O raciocínio, que é o único a poder assegurar-nos da ver­ cujo mecanismo não entende, a um ser espiritual escondido em
dade da natureza, não consiste, portanto, na dedução lógica ou seu interior.
matemática, é o raciocínio que vai da parte ao todo. S<5 podemos Sobre esse ponto o materialismo dogmático converge com
decifrar e determinar a essência da natureza em seu conjunto o íenotnenismo: pode servir-se das suas armas sem que por esse
partindo da essência do homem. A fisiologia do homem toma-se, fato concorde com as suas conclusões. Pois ele também afirma
portanto, o ponto de partida e a chave do conhecimento da natu­ estar muito longe de seu pensamento pretender determinar a
reza. As matemáticas e a física matemática perdem sua posição cssência absoluta da matéria e não ter essa questão nenhuma im­
central e são substituídas, entre os fundadores da dou i rina mate­ portância decisiva para a sua argumentação. Declara La Mettrie:
rialista, pela biologia e fisiologia geral. La Mettrie parte de ob­ "Síitisfaz-nic igualmente nada saber sohre o modo como a ma­
servações médicas; Holbach recorre sobretudo à química e às téria, cm si inerte e bruta, converte-se em matéria ativa e orga­
ciências da vida orgânica; a objeção de Diderot à filosofia de nizada; tudo ignorar das outras maravilhas iticoncebíveis da na­
Condillac é a de que não poderia limitar-se unicamente à simples tureza, não poder compreender, por exemplo, o nascimento do
sensação como elemento primeiro de toda a realidade: a análise sentimento e do pensamento num ser que, aos nossos sentidos
deve ir muito mats longe e procurar a causa da sensação. E ela limitados, pouco mais parece ser do que um pedaço de lama. Que
não se cnconlra em nenhuma outra parle mas em nossa própria se me conceda somente que a matéria orgânica encerra cm st
organização física. Assim, o fundamento da física deixa de resi­ um princípio de movimento, graças ao qual cia se diferencia, u
dir na análise das sensações para localizar-se na história natural, que toda z vida animal depende dessa diferença de organização."
nu fisiologia e na medicina. A primeira obra de La Mettrie, que é O homem está para o macaco e os animais superiores como o
a “história da alma“, explica que só existe um meio de escrever relógio planetário construído por Huyghens está para um relógio
essa história: é permanecer constantemente preso ao fio condutor elementar, “Se são necessários instrumentos mais numerosos, mais
dos processos físicos e não arriscar a menor iniciativa que não rodas e molas para indicar o movimento dos planetas do que para
esteja justificada pela observação fiel dos fenômenos corporais. assinalar o curso das horas, se Vaucanson tivesse que pôr mais
São observações desse gênero, efetuadas por ocasião de um aces­ arte para construir o seu tocador de flauta do que para o seu
so de febre dç que foi acometido e durante o qual ele adquiriu canário, então apenas um grau a mais dc sua arte teria sido ne­
uma consciência aguda da completa transformação de toda a sua cessário a fim de produzir um ser falante [ ...) O corpo humano
vida sentimental c intelectual, as que estão, segundo o seu pró­ nada mais é do que um prodigioso pêndulo, construído com uma
prio relato, na origem de suas investigações e que orientaram arte e uma habilidade stipremas.” "'1 Constitui um dos traços me­
ioda a sua filosofia.*” A experiência sensível, corporal, devia ser todológicos característicos do materialismo do século XVUI dei­

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xar de considerar as relações do corpo e da alma à maneira dos trar-DOS-á sempre a mesma ligação constante, quer entre as diver­
grandes sistemas metafísicos do século X VII, desde o ponto de sas propriedades materiais quanto entre realidades e fatos cor­
vista da substância, mas quase exclusivamente do ponto de vista porais e espirituais. Portanto, se nada encontramos de surpreen­
da causalidade, A questão de saber como se harmonizam as suas dente em atribuir à matéria, a par de sua propriedade funda­
duas "naturezas" só pode perturbar-nos; basta que estejamos cer­ mental de extensão, outras determinações, por que recuaríamos
tos da ligação indissolúvel de suas operações. A esse respeito, é diante da idéia de adicionar-lhe, ademais, a faculdade de sentir,
impossível traçar uma linha de demarcação em alguma parte: de recordar, de pensar? O pensamento como tal é, sem dúvida,
a separação dos fenômenos corporais e dos fenômenos espirituais difícil de associar à matéria organizada, mas nem mais nem me­
é apenas unta abstração para a qual a experiência não nos forne­ nos, em última análise, do que a impenetrabilidade ou a eletri­
ce documento nem prova. Por minuciosas que sejam as nossas cidade, o magnestimo ou a gravidade, que tampouco se deixam
observações, por mais longe que possamos levar a nossa análise reduzir à simples extensão roas representam, pelo contrário, algo
experimental, nunca se chegará a um ponto em que seja possível de novo e de diferente.28 O que vale para as sensações e as idéias
separar o espiritual do corporal. Essas duas realidades só nos são vale igualmente para os nossos desejos e os nossos instintos, para
dadas em conjunto; elas estão feitas de tal modo de um só jato os ditames da nossa vontade e das nossas inclinações morais. Já
que a supressão de uma jamais será possível sem a destruição da não temos a menor necessidade, para compreendê-los, de fazer
outra. Uma vez que só podemos conceber e julgar a essência de intervir um princípio sobrenatural e imaterial, de recorrer a uma
uma coisa por seus efeitos, apenas nes resta, portanto, uma con­ substância simples que não passa, afinal, de uma palavra vazía.
clusão: £ ligação necessária e indissolúvel nos efeitos prova a "Postulado o princípio mínimo de movimento, os corpos anima­
identidade da essência. A distância que parece separar a maté­ dos terão tudo do que necessitam para mover-se, sentir, pensar,
ria "morta” dos fenômenos da vida, o movimento da sensação, arrepender-se e comportar-se, numa palavra, no físico e no moral
tampouco nes deve induzir em erro. Ignoramos, é certo, de que que dele depende.” 27
maneira a sensação nasce do movimento; mas não encontramos Com esses argumentos bem conhecidos do sistema materia­
a mesma incerteza nos casos em que meramente lidamos com a lista, entretanto, apenas apreendemos, de momento, a superfície
matéria pura e simples e seus fenômenos fundamentais? O sim­ e não 0 verdadeiro núcleo do pensamento que a anima. Pois, por
ples fenômeno do choque, a transmissão de uma energia cinética paradoxal que isso possa parecer, à primeira vista esse núcleo
de uma massa para uma outra, podemos "compreendê-lo” con- de pensamento não deve ser procurado do lado da filosofia da
ceptualmente, explicá-lo? Não; devemos contentar-nos em esta­ natureza, mas do lado da ética. O materialismo, na forma em que
belecê-lo pela experiência. O mesmo método de verificação em­ surgiu no século X V III, em que se consolidou e foi defendido,
pírica impõe-se igualmente para os chamados problemas da não é um simples dogma científico ou metafísico: é um impera­
"psicofísica” : mecânica ou psicoffsica, as duas questões são, ao tivo. Ele não quer somente fixar ou corroborar uma tese sobre a
mesmo tempo, tão enigmáticas e, por outro lado, tão transparen­ natureza das coisas, mas, sobretudo, comandar e interditar. En­
tes uma quanto outra. Se nos contentarmos com os julgamentos contramos esse traço com particular nitidez no Sysfème de la
da experiência e nada procurarmos além dos seus limites, ela mos­ nature, de Hotbacb. Vista do exterior, a doutrina de Holbach

102 Í03
parece representar o sistema do mais rigoroso e mais conseqüente teologia, ciência do sobrenatural, foi um obstáculo invencível ao
determinismo. Ao quadro da natureza não se deve acrescentar progresso das ciências que com ela quase constantemente coli­
o menor traço que não seja compreensível a partir do homem, diram em seu caminho. A física, a historia natural, a anatomia
de seus desejos, de seu querer. No reino da natureza nada existe não liaham o direito de observar fosse o que fosse, salvo pelos
de justo ou de injusto, de bom ou de mau: reina aí a perfeita olhos malévolos da superstição." 30 Entretanto, o reino da su­
equivalência de todos os seres e de todos os acontecimentos. To­ perstição é ainda muito mais perigoso quando se lhe confia a
dos os fenômenos aí são necessários e nenhum ser, nas condições organização da ordem moral. Não contente por aniquilar então
dadas e em função de qualidades que já são as suas, pode agir o saber humano, ela arranca do homem o próprio fundamento de
de qualquer outro modo senão daquele como efetivamente agiu. sua felicidade. Mergulha os homens na angústia com mil fan­
Por conseguinte, não existe mal nem culpa nem desordem na tasmas, arrebata-lhes as mais simples alegrias da existência. O
natureza: "Tudo eslá em ordem na natureza, cujas partes jamais único remédio é a supressão radical, decisiva, de todo o espiri­
podem afastar-se das regras certas e necessárias que decorrem tualismo. É necessário extirpar, de uma vez por todas, as idéias
da essência que receberam." 28 Portanto, que o homem se acre­ de Deus, de liberdade, de imortalidade, a fim de que parem as
dite livre não passa de uma perigosa ilusão, de uma fraqueza intervenções incessantes do outro mundo — que essas idéias si­
intelectual. É a estrutura do átomo que o forma, seu movimento mulam construir — neste nosso mundo, cuja ordem racional o
é que o faz agir: condições que não dependem dele determinam espiritualismo ameaça subverter. La Mettrie desenvolve a mesma
o seu ser e governam o seu destino.20 Mas se tal é o conteúdo forma de argumentação em L’homme machine. O mundo jamais
da tese materialista, a sua expressão cai numa estranha contra­ será fslíz enquanto não se decidir a ser ateu. Junto com a crença
dição. Ela nunca responde à exigência spinozista: tion riãere, em Deus desaparecerão também todas as querelas teológicas e
non Iugere neque detestari, sed inteiligere. Ainda que seja ape­ as guerras religiosas. “A natureza infeccionada por um veneno
nas exteriormente, a filosofia na natureza de Holbach não pre- sagrado retomará seus direitos e sua pureza." 31
lende ser mais do que a preparação, a introdução de um conjunto Ao apresentar-se dessa maneira, como aguerrido militante e
mais completo. O "sistema da natureza" constitui para ele ape­ como acusador, impondo uma norma ao pensamento e à fé dos
nas a base do "sistema social'" e da "moral universal": a verda­ homens, em vez de contentar-se com a tomada de posições teóri­
deira orientação do seu pensamento só se apresenta nessas duas cas, 0 Système de la nature, entretanto, mergulha num difícil dile­
últimas obras, plenamente desenvolvida e nitidamente exposta. ma. A doutrina da necessidade absoluta do curso da natureza
O homem deve libertar-se de todos os ídolos, de todas as ilusões prende-se na rede de suas próprias demonstrações. Com que direi­
sobre a origem primeira das coisas: esse despojamento é-lhe in­ to, de fato, pode-se ainda falar de "normas" no âmbito dessa dou­
dispensável para cuidar do ordenamento do mundo e realizá-lo trina? No que poderia ela basear-se para impô-las e avaltá-las?
com paz e segurança. Foi o espiritualismo teológico que impediu O dever não irá revelar-se uma pura quimera e converter-se em
até o presente toda a organização verdadeiramente autônoma do simples necessidade? Que mais nos restaria, nesse caso, senão
sistema político e social. É o freio que retardou a cada passo o abandona rmo-nos a essa necessidade? Como poderíamos regê-la,
desenvolvimento das ciências. "Inimiga jurada da experiência, a prcscrcver-lhe 0 seu percurso? A crítica que se exerceu desde o

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século X V III contra o Système de la nature já tinha descoberto que cometemos incessantemente contra a idéia de necessidade ao
o ponto fraco fundamental da argumentação. À réplica de Fre­ submetermo-nos a todo o instante, em nossas representações e
derico. 0 Grande, insiste expressamente sobre esse ponto: "Após cm nossos julgamentos, em nossas afirmações e negações, ao do­
ter esgotado todas as provas destinadas a mostrar que os homens mínio da necessidade. Esse duplo movimento, essa oscilação entre
são conduzidos em todas as suas ações por uma necessidade fa­ os dois pólos da necessidade e da liberdade, realiza completa­
tal — objeta o rei — , o autor deveria aduzir a conseqüência mente, segundo Diderot, o próprio círculo da nossa existência e
óbvia de que somos apenas uma espécie de máquina, marionetes do nosso pensamento. £ graças a esse círculo, e não por uma
acionadas por uma força cega. H, no entanto, ele encoleriza-se afirmação ou uma negação simples e unilateral, que chegamos a
contra os padres, contra os governos, contra todo 0 nosso sistema um conceito bastante compreensivo para envolver toda a natu­
de educação: acrcdita, pois, que os homens que exercem esses reza: esse conceito de natureza que se eleva fundamentalmente
atividades são livres, depois de lhes demonstrar que são escravos. acima do bem e do mal, acima da concordância e da discordân­
Que loucura e que absurdol Se tudo é movido por causas neces­ cia, do verdadeiro e do falso, porquanto inclui os momentos opos­
sárias, todos os conselhos, todos os ensinamentos, os castigos e tos e integra ambos.
as recompensas são tão supérfluos quanto inexplicáveis: poder- Mas o século X V III, em seu conjunto, não se entregou a
se-ia igualmente pregar a um carvalho e querer persuadi-lo a esse turbilhão, a essa vertigem dialética de Diderot que o arras­
transformar-se em laranjeira." tava alternadamente do ateísmo ao panteísmo, do materialismo
Uma dialética mais sutil e mais flexível do que aquela de ao panpsiquismo dinâmico e vice-versa. No desenvolvimento do
que Holbach dispunha podia, evidentemente, tentar reduzir essa seu pensamento, o Système de la nature desempenha um papel
objeção e envo]vê-la habilmente nos ardis de sua própria argu­ relativamente exíguo e secundário. Os pensadores mais próxi­
mentação. Diderot apercebe-se com toda a clareza das antino­ mos do círculo de Holbach rejeitaram as conclusões de sua obra
mias do sistema do fatalismo, exprime-as da maneira mais exata, em seu radicalismo e combateram-lhe, inclusive, as premissas. O
mas, ao mesmo tempo, serve-se dessas antinomias como forças espírito satírico e contundente de Voltaire reconhece-se no modo
motrizes, como veículos de seu próprio pensamento dialetizado como acerta em cheio no ponto vulnerável da obra de Holbach.
de ponta a ponta. Ele reconhece a circularidade da argumenta­ Com lucidez e sem o menor constrangimento, põe a nu a con­
ção, mas logo a converte num jogo de espírito intencional. Foi tradição de Holbach que, tendo erguido como sua bandeira a
levado por esse impulso que ele concebeu sua obra mais espiritual luta contra o dogmatismo e a intolerância, não tardou em elevar
e mais original: o romance facques le fataliste, que quer apre­ a sua doutrina ao status de dogma e em defendê-la com ura zelo
sentar a idéia de fatum como o alfa e 0 ômega de todo o pen­ fanático. Voltaire recusa-se a deixar-se marcar como livre-pen-
samento humano, mostrando ao mesmo tempo como, com essa sador com semelhantes argumentos e levanta-se contra a idéia de
idéia, o nosso pensamento cai em contradição consigo mesmo, receber das mãos de Holbach e de seus adeptos o "diploma de
como, pelo simples fato de expor essa idéia, deve implicitamente ateu". Seu julgamento é ainda mais nítido no tocante à apresen­
negá-la e suprimi-te. Não nos resta outra solução senão consi­ tação da obra e ao seu valor literário. Incluiu-a no mímero
derar também como necessária essa situação, isto é, essa falta das obras pertencentes ao gênero literário pelo qual alimenta a

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menor dose de indulgência: o "género enfadonho'' [genre en- da estética sistemática, as que tiveram igualmente uma partici­
nuyeux],*3 Com efeito, além de seu comprimento e dc sua pro­ pação ativa na edificação da filosofia da natureza do século
lixidade, o texto de Holbach é de uma rigidez e de uma aridez X V III: o movimento que elas deflagraram desempenhou um pa­
profundas. De resto, não é seu propósito expresso excluir do es­ pel, fez mesmo época, até no desenvolvimento das ciências da
petáculo da natureza não só todos os elementos religiosos mas natureza.
também todos os elementos estéticos, bem como esterilizar todas
as potências do sentimento e da imaginação? "Pensemos nisto:
somos apenas as partes sencientes de um todo que é desprovido 4
de toda sensibilidade; dc um todo cujas formas e ligações cadu­
cam todas mal nasceram, e duraram um tempo mais ou menos Em seu escrito intitulado Da interpretação da natureza
longo. Vejamos na natureza uma oficina prodigiosa que contém (1754), Diderot, que, entre os pensadores do século X V III, pos­
tudo o que é necessário para produzir as criaturas que temos sui sem dúvida o faro mais aguçado para todos os movimentos e
diante dos nossos olhos e não atribuamos suas obras a alguma transformações do seu tempo, observa que 0 século parece ter
causa misteriosa que não existe em parte algunia, salvo em nosso atingido um ponto particulai mente critico, talvez mesmo decisivo.
cérebro." 93 Goethe tinha, sem dúvida, essas linhas sob seus Chegamos a um momento em que se anuncia uma grande trans­
olhos, ou outras semelhantes, ao declarar que, para cie e seus formação das ciências, "Atrevo-me a afirmar que. antes de uma
amigos de juventude, em Estrasburgo, quando ouviam falar dos ccntena de anos ter transcorrido, não haverá três geômetras se­
enciclopedistas, era como se deambulassem entre as bobinas e os quer em toda a Europa. Essa ciência atingiu o seu ponto culmi­
teares de uma imensa tecelagem, no ambiente trepidante e estri­ nante e, quanto ao essencial, permanecerá no estado a que foi
dente de uma mecânica incompreensível para os olhos e para o levada pelos Euler e os Bernouilli, os D ’Alembert e os Lagrange.
espírito, na inimeligibilidade de uma oficina que integra os mais Hies fixaram as colunas de Hércules que não se poderá transpor."
complexos dispositivos, e pensando sempre que essa fabricação Sabemos como essa profecia respeitante à história das matemá­
tem por único objetivo produzir a peça de tecido que acabamos ticas puras foi desmentida pelos acontecimentos; os cem anos
por nos sentir culpados de usar, na forma de vestuário, sobre o vaticinados por Diderut ainda não tinham transcorrido quando
nosso próprio corpo. Quanto ao Système de la nature, ele e seus morreu Gauss, que tinhm renovado, uma vez mais, toda a estru­
amigos pensavam ser incompreensível que semelhante livro ti­ tura das matemáticas, que ampliara os seus limites até novos
vesse podido passar por perigoso: "Parecia-nos tão pardacento, horizontes, tanto quanto ao conteúdo como do ponto de vista do
tão lúgubre e mortal, que dificilmente suportávamos a suu pre­ método, de uma maneira que o século X V III não podia prever.
sença; tremíamos diante dele como diante de um espectro”, A Mas, no entanto, existe um sentimento correto na ba; da pro­
reação provocada pela obra de Holbach, desde a sua publicação, fecia dc Diderot. O ponto que ele quer enfatizar, sobre o qual
relaciona-se com o fato de que suscitou contra ele a unanimi­ quer insistir, é que as matemáticas não podem mais pretender,
dade não só das forças religiosas mas também das forças vivas doravante, ler o monopólio da autoridade no domínio das ciên­
da arte de sua época. Foram essas forças, levando à restauração cias da natureza. Surgira uma rival que elas não conseguirão

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repelir inteiramente. Sem dúvida, as matemáticas poderão, no passo que, por essa mesma razão, o conhecimento dos fatos so­
interior de seu domínio, atingir a perfeição, levar seus conceitos freu um atraso. Ej no entanto, é esse conhecimento que conlém
ao auge do rigor e da exatidão: essa perfeição nem por isso dei­ em si, seja qual for a sua natureza, a verdadeira riqueza da filo­
xará de ser um obstáculo imanente. Elas não podem, com efeito, sofia. É um dos preconceitos da filosofia racional que aquele que
escapar ao círculo de seus próprios conceitos, elaborados por não sabe contar seus escudos pouco mais rico é do que aquele
elas próprias; são desprovidas de todo o acesso direto à reali­ que só possui um. Lamentavelmente, a filosofia racional ocupa-se
dade empírica, concreta, das coisas. Somente a experimentação, muito mais de comparar e dc combinar os fatos que já conhece
a observação fiel da natureza, pode abrir-nos esse acesso. Mas, do que em recolher novos." ** Diderot encontrou assim uma
para permitir ao método experimental ser eficaz, para extrair dele fórmula muito característica e muito esclarecedora que anuncia
todos os frutos que ele é capaz de gerar, cumpre-nos desenvot- um novo estilo de pensamento. Ao espírito contábil, ordenador
vê-lo até tomar-se perfeitamente independente, libertá-lo de toda e calculador, ao espírito do racionalismo do século X V III, opõe-
e qualquer tutela. Devemos, portanto, combater, no domínio da se agora uma nova tendência, a de apropriar-se do real em toda
física, não só o espirito de sistema da metafísica mas também o a sua riqueza, de abandonar-se-lhe naturalmente, sem a preo­
da matemática, Quando o matemático, não contente por desen­ cupação de saber se essa riqueza deixa-se definir por idéias
volver por conta própria seu universo conceptual, afaga a espe­ claras e distintas, deixa-se medir e contar. Ainda se continuaria
rança de envolver na rede de seus conceitos a realidade como construindo, sem dúvida, tais sistemas dc idéias, mas sem ali­
um todo, ele passa a ser, por isso mesmo, um metafísico. "Quan­ mentar ilusões sobre sua significação e seu alcance real. "Feliz o
do os geómetras depreciaram os metafísicos estavam muito longe filósofo sistemático a quem a natureza concedeu, como a Epicuro
de pensar que toda a sua ciência não era outra coisa senão uma ou a Lucrécio, como a Aristóteles ou a Platão, uma ditosa ima­
metafísica. Com essa tomada de posição começa a empalidecer ginação, uma grande eloqüência e a arte de apresentar suas
o ideal da física matemática que domina e anima todo o século idéias em imagens impressionantes e sublimes. 0 edifício que
X V III; em seu lugar eleva-se um novo ideal, a exigência de uma
ele ergueu pode muito bem desmoronar um dia, mas seu retrato
física puramente descritiva. Diderot concebeu e desenhou em
continuar de pé, até niesmo entre os escombros.” O sistema
largos traços esse ideal muito antes que ele tivesse sido realizado
possui, portanto, no fundo, uma significação mais individual do
em detalhe. Indaga ele: por que possuímos, apesar de todo esse
que universal, mais estética do que objetiva e lógica. Ele é in­
brilhante desenvolvimento do saber matemático, tão exíguos co­
nhecimentos ainda, certos e incontestáveis, no domínio da natu­ dispensável como instrumento do conhecimento; mas cuidemos
reza? Faltam os gênios? Há deficiências dc reflexão e de inves­ de não nos converter em escravos de um simples instrumento.
tigação? De maneira nenhuma: o motivo deve ser procurado, Possuir o sistema sem ser por ele possuído: Laidem habeto.
antes, num desconhecimento do princípio das relações que unem dummodo te Lais non habeat.3* Ê uma nova direção de investi­
o saber conceptual ao conhecimento dos fatos. “As cifincias abs­ gação e, por assim dizer, um novo temperamento de investigador
tratas monopolizaram por muito tempo os melhores espíritos. Os que surge, exigindo ser reconhecido, justficado em seu estilo
conceitos e as palavras prosperaram de forma desmedida, ao própria e na validade do seu método.

no ni
Essii justificação pode ser abordada mediante considerações nado; mal o perdemos de vista e logo encontramo-nos inevita­
que já foram feitas em física matemática. Os partidários e os velmente perdidos. Se pensássemos em ensinar uma criança a
sucessores de Newton sempre disseram e repetiram, em sua po­ falar começando pelas palavras que se iniciam com a letra A.
lêmica contra a física ‘‘ racional" dc Descartes, que doravante continuando pelas que se iniciam com B e assim por diante,
não era mais preciso preocuparem-se em explicar s natureza, metade de uma vida teria passado antes de ter-se terminado com
bastando descrever inteiramente os seus fenômenos.30 Em vez o alfabeto. O método c excelente no domínio do raciocínio, mas,
da definição, operação válida, até fundamental nas matemáticas, em minha opinião, nocivo no caso d& história natural, de um
é necessário recorrer à descrição. Ora, para um físico, na reali­ modo geral, e da botânica em particular." ÍT Isso não significa,
dade, a descrição exata dc um fenômeno coincide, em última evidentemente, que essas ciências possam prescindir do método
análise, com a sua medida: só se descreve com rigorosa exatidão e do espírito sistemático mas que, em vez de irem pura e sim­
o que se pode determinar por valores puramente numéricos e plesmente buscar seus princípios às disciplinas "racionais", de­
exprimir por relações entre esses valores. Mas, quando se passa vem elaborá-los em conformidade com seus próprios objetos.
da física para a biologia, o postulado de descrição pura adquire
Sem dúvida, Diderot não teria podido apresentar essa exi­
um outro sentido. Já não se traia agora de transformar a reali­
gência de uma forma tão nítida se cia já não tivesse, num certo
dade intuitiva numa soma de grandezas, num lecído de números
sentido, recebido satisfação ao tempo cm que ele redigia suas
e medidas; é preciso, pelo contrário, conservar-lhe a forma pró­
reflexões sobre a interpretação da natureza. Foi, com efeito,
pria e específica. É ela que deve ser exposta aos nossos olhos, em
nesse preciso momento que se publicaram os três primeiros vo­
toda a riqueza e diversidade do seu ser e na profusão do seu
lumes da História natural, de Buffon. Um novo tipo de ciência
devir. E essa construção lógica dos conceitos de ciasses e de es­
eslava assim criado, formando, em certa medida, uma contraparte
pécies, graças à qual buscamos geralmente o conhecimento da
(ein Seitenstück) para os Philosophiae naturalis principia ma-
natureza, opõe-se dc um modo direto à contemplação da sua
themaiica, de Newton. Sem dúvida, a obra de Buffon não é com­
riqueza. Esses conceitos só podem resultar muito mais numa
limitação da intuição, no empobrecimento, no enxugamento de parável, de maneira nenhuma, com a de Newton no plano da
seu conteúdo, do que em sua perfeita compreensão. Vate a pena densidade, da originalidade e da criatividade, mas em nada lhe
lutar contra essa esclerose mediante a pesquisa, a elaboração de perde do ponto de vista do método, porquanto aponta com per­
conceitos que permilam adaptarmo-nos à riqueza individual, à feita clareza uma certa orientação fundamental na elaboração
singularidade individual das formas naturais, ligarmo-nos a essa dos conceitos científicos, os quais adquirem a amplitude majes­
singularidade sem perder a flexibilidade que ela impõe. Diderot tosa de um projeto universal que o método lhes confere. Desde
ilustra pessoalmente esse programa no seu Tratado de botânica. a introdução com que a obra se inicia, Buffon parte do princípio
Diz ele nessa obra: "Se me atrevesse a lanto, sustentaria de bom de que è ocioso e perfeitamente errôneo estabelecer nas ciências
grado este paradoxo: que, em certas circunstâncias, nada existe da natureza um ideal estritamente monisla e dele fazer depen­
de mais molesto c mais prejudicial do que o método. Ê um fio der todos os ramos da investigação. Todo o monismo metodológi­
condutor para se chegar â verdade que jamais pode ser abando­ co desse tipo esbarra, inevitavelmente, no conflito das matemáti­

112 113
cas e da física. Com efeito, a "verdade” matemática não consiste coLhos já naufragou Lineu, na sua Filosofia da botânica. Na
em outra coisa senão num sistema de proposições puramente ana­ posse de uma propriedade, de uma característica qualquer, sus­
líticas unidas entre si pelo vínculo da estrita necessidade e que, cetível de lhe permtir reagrupar o mundo das plantas, Lineu
em última análise, exprimem apenas um só e mesmo conteúdo acredita poder, por meio dessa simples repartição, dessa clas­
de saber sob diferentes formas. Ora, essa concepção da verdade sificação analítica, traçar diante dos nossos olhos o quadro de
perde o seu sentido e a sua força a partir do instante em que suas relações, de sua organização, de sua rede de parentesco.
nos aproximamos da verdade e tentamos nos instalar nela. Quan­ Mas nós não poderíamos obter um quadro desse gênero sem nos
do deixamos de lidar com conceitos que nós próprios forjamos, resolvermos a inverter totalmente o processo assim entabulado.
prescrevendo-lhes a forma e a determinação, conceitos que po­ Devemos, nesse caso, ter em vista não uma divisão analítica mas
demos inferir uns dos outros com perfeito rigor dedutivo, logo a reunião sistemática dos seres vivos; em vez de os situar em
se apaga essa evidência de que dispomos pata comparar entre tal ou tal espécie bem distínta, cumpre-nos conhecê-los em seu
elas idéias puras; por conseguinte, já não se trata de transpor parentesco, suas formas de transição, seu desenvolvimento e suas
os limites do simples provável. Temos de nos confiar então à transformações, pois é justamente nisso que consiste a verda­
condução, à direção única da experiência: só ela nos pode pro­ deira vida da natureza. Uma vez que a natureza procede por
porcionar agora essa espécie de certeza de que é suscetível a ver­ diferenças imperceptíveis de uma espécie a outra, de um gênero
dade física dos objetos. Devemos multiplicar as observações, a outro, de tal modo que entre eles encotramos uma série de
precisá-las, generalizar os fatos, relacioná-los com a ajuda de ra­ estados intermediários que têm o ar de pertencer metade a um
ciocínios por analogia, até chegarmos, enfim, a um grau de gênero, metade a um outro, nada de melhor nos resta fazer do
conhecimento que nos permita percebê-los na perspectiva da que aceitar a delicadeza, a sutileza dessas transições, tornar o
relação da parte com o todo, da dependência dos efeitos par­ nosso pensamento suficientemente ágil para representar o movi­
ticulares em face dos efeitos universais. Já não nos satisfaz então mento e as nuanças das formas naturais, A partir daí Buffon
comparar a natureza com as nossas idéias; de certo modo, pas­ decide-se francamente pelo nominalismo: declara que não há es­
samos a compará-la a si mesma, vemos como cada uma de suas pécies nem gêneros na natureza mas somente indivíduos, E acre­
operações relaciona-se com um centro, como elas concatenam-se dita ver em todas essas observações a confirmação de tal ponto
mutuamente na totalidade de uma atividade única.38 Essa uni­ de vista. Os animais de um continente não são encontrados nos
dade escapa-nos enquanto prosseguirmos com a repartição em outros, e quando acreditamos ter descoberto as mesmas classes,
classes ou em gêneros, pois tais classificações só podem fornecer estas foram modificadas a tal ponto que nos fica difícil reco­
um sistema de nomenclatura, não um sistema *da natureza. Elas nhecê-las. Teremos necessidade de uma outra prova para nos
são úteis, sem dúvida, até indispensáveis para nos propiciar uma convencermos de que nenhum ser vivo é de um tipo imutável,
visão geral dos fatos, mas nada é mais perigoso do que substituir que sua natureza pode sempre sofrer transformações, até mes*
as coisas significadas por simples sínais, fazer definições reais mo, com o tempo, mudar inteiramente, e que as espécies menos
de definições puramente nominais e delas esperar a mínima ex­ bem-equipadas já desapareceram ou desaparecerão num prazo
plicação da “essência*' das coisas. Segundo Buffon, nesses es­ mais ou menos curto? 30

í 14 115
Não se traia de debater aqui a importância dessas idéias do conteúdo essencial da história da natureza. A teoria lógico­
de Buffon como esboço de uma doutrina da evolução universal. ma temática da definição já exigia em Descartes uma explicação
No nosso conlexto, elas importam menos peio seti conteúdo do estritamente mecanicista da natureza como sua contrapartida e
que por sua forma, pelo ideal de saber que introduzem, idea! seu corolário indispensável. Quando, pelo contrário, o centro de
que encontrará progressivamente na obra inteira de Buffon uma gravidade do pensamento desioca-se da definição para a descri­
realização concreta. A própria estrutura do conhecimento bioló­ ção, do gênero para o indivíduo, o mecanismo deixa de poder
gico começa aqui a desenhar-se nitidamente e é contra a forma ser considerado o único e suficiente princípio de toda a expli­
da física teórica que ela se afirma. O método das ciências da cação; prepara-se uma paisagem para uma visão da natureza
natureza deixa de receber sua lei unicamente das matemáticas; que, em vez de deduzir o devir do ser, deduz o ser do devir e
eíe encontra um segundo foco, se assim podemos dizer, na forma explica-o por ele.
fundamental do conhecimento histórico. A famosa passagem da
Crítica do juízo, de Kant, onde st: encontra desenvolvida pela
primeira vez, de uma forma clara e distinta, a idéia de urna 5
"arqueologia da natureza“, parece ter sido expressamente escrita
a propósito da obra de Buffon. Diz este: "Assim como na his­ O sistema da física cartesiana levou prontamente de vencida,
tória dos homens consultam-se documentos, interrogam-se moe­ na França, a resistência que encontrara na doutrina da Igreja e
das e medalhas, decifram-se inscrições antigas para fixar as re­ uus defensores escolásticos da Tísica das "formas substanciais'’.
voluções e as épocas da vida intelectual, também na história da A partir de meados do século X V II, ludo evoJuiu mui lo depres­
natureza devemos esquadrinhar os arquivos do mundo, arrancar sa: o cartesianismo impôs-se não só no círculo dos espíritos cultos
os mais antigos monumentos das entranhas da terra, reunir os mas também, a partir de Entretiens iur la pluralité des mondes,
escombros e juntar num só corpo de testemunhos todos os in­ de Fontenclle, como um dos elementos da "cultura” geral da so­
dícios de mudanças físicas que possam reconduzir-nos às diver­ ciedade. Sua influência é tão forte e duradoura que os próprios
sas idades da natureza. É esse o único meio de fixar um ponto pensadores mais opostos aos seus objetivos essenciais não podem
qualquer na infinidade do espaço, de colocar alguns limites no livrar-se dela. A doutrina de Descartes condiciona fundamental­
trânsito infinito do tempo." 40 É nesse procedimento que repousa mente, no século X V III, a forma do espírito francês, e essa for­
o poder dc uma ciência nalural puramente descritiva, a qual ma revela-se tão possante e tão firme que pode assimilar e sub­
deve afastar cada vez maís, em biologia, o método precedente, meter-se ao próprio conteúdo que a combate.*1 Tanto na Ingla­
tomado da lógica escolástica, de definição por gemis proximum terra quanto na Alemanha não se chegou a uma dominação tão
e differentia specijica. Em boa verdade, só existe de definido o ilimitada do cartesianismo. A Alemanha preferiu edificar a sua
que é claramente conhecido, nitidamente delimitado e exata­ vida intelectual sob a égide das teses leibnizianas, as quais, na
mente descrito. "Il n’est de bien défini que ce qui est exactement verdade, só registram uma penetração muito progressiva, tendo
décrit." E, por essa nova concepção da essêecia e dos fins da que se assegurar primeiro, passo a passo, da solidez do terreno,
conceptuação científica, trunsforma-se também a própria visão para depois exercer uma ação profunda e silenciosa. E, na In­

116 117
glaterra, cs sistemas empiristas exercem uma crítica que se torna superiores do pensamento, desde a impressão obscura e confusa
cada vez mais rigorosa e contundente contra as idéias essenciais até o mais alto conhecimento reflexivo. Enquanto a experiência
do sistema cartesiano, sobretudo contra a doutrina das idéias nos ensina que tal continuidade existe, pode o pensamento dis­
inatas e o modo como se apresenta a idéia de substância. Mas, cordar? Ao passo que os fenômenos constituem uma série inin­
em especial, permanece viva uma forma de filosofia da natureza terrupta, devem encontrar nos princípios e nas explicações essa
que se liga diretamente ao dinamismo renascentista e que tende negação brutal que a doutrina cartesiana lhes opõe? Plantas c
até a juntar-se, mais além, às suas fonics antigas, mormente às animais vêem sua vida negada, anulada pelo cartesianismo, que
doutrinas neoplatônicas. Foi na Escola de Cambridge que essas fez deles autômatos, repele-os para o mundo mecânico. Contra
tendências começaram primeiro a ganhar forma, a encontrar uma essa tentativa de mecanização, More e Cudworth elaboram a
expressão sistemática. Um dos primeiros líderes dessa escola, teoria das "naturezas plásticas". A vida não se limita à faculdade
Henry More, saudou com entusiasmo a filosofia cartesiana quan­ de pensar, à consciência; ela exprime-se de um modo mais es­
do esta surgiu, vendo nela o triunfo decisivo, sem contestação, do pontâneo e mais universal como o poder de criar formas. Deve­
espiritualismo, porquanto considerava ter sido consumada nela mos reconhecer a vida a todos os seres que, em seu modo de
a separação radical da matéria e do espírito, da substância ex­ existência, nas formas exteriores em que se oferecem aos nossos
tensa e da substância pensante. Mas, tendo ele próprio construído sentidos, indicam que certas forças criadoras agem em nós e,
mais tarde a sua própria teoria da natureza, é justamente a res­ ainda que indiretamente, no-las revelam. D o fenômeno natural
peito desse ponto que ele rompe com o cartesianismo. Descartes, mais simples ao mais complexo, desde os elementos até os orga­
com efeito, de acordo com as objeções que lhe faz Henxy More, nismos superiores mais diferençados, reina essa autoridade, essa
não só distinguiu as duas substâncias como separou uma da outra, hierarquia das "naturezas plásticas”. £ somente nela, e não ape­
levando tão longe a distinção racional que tornou toda a conexão nas nas massas e seus movimentos, que a ordem e a coesão do
real impossível entre elas e gerou um abismo intransponível de todo podem fundar-se.12
uma para a outra. Entretanto, não é na associação das duas subs- Leibniz, em sua crítica da filosofia cartesiana, enveredou
Lâncias, na unidade de sua ação, que repousam a unidade e a vida por um outro caminho, tomando expressamente posição contra
da natureza? Essa unidade é destruída, a vida desfeita, na supo­ a doutrina das naturezas plásticas.” Embora situando o fenô­
sição de que o reino do espírito só começa com a consciência meno da vida orgânica no próprio centro de suas investigações,
humana e que se limita ao domínio das idéias "claras e distin­ como biólogo e como metafísico, também teve o cuidado, por
tas". O que refuta essa limitação, o que, por princípio, a toma outra porte, de evitar tode o ataque ao grande prÍDCÍpio de ex­
impossível, é a intuição da continuidade das formas da natureza. plicação matemática da natureza que a ciência deve a Descartes
Em nenhuma parte, entre as diversas formas da vida que encon­ e até de acarretar-lhe a menor limitação. £ por isso que, quando
tramos por toda parte sob os nossos olhos na natureza orgânica os pensadores da Escola de Cambridge falam do morbus mathe-
e na forma de autoconsciência, se nos apresenta uma solução de maticus de Descartes, no qual descortinam o vício fundamental
continuidade. Um processo graduado contínuo, nunca interrom­ de sua doutrina da natureza, Leibniz, pelo contrário, sustenta
pido, vai desde os processos vitais elementares até as condutas que uma doutrina da vida deve ser concebida de tal modo que

119
nunca entre em contradição com os princípios do conhecimento um outro mais perfeito. Aquilo a que chamamos processo "m e­
físico-matemático. Segundo Leibniz, para garantir a unidade des­ cânico" nada mais é, portanto, do que o aspecto exterior, a re­
ses dois modos de pensamento, para estabelecer entre eíes uma presentação e a expressão sensível do processo dinâmico que
completa harmonia, não existe outro meio senão submeter todos se desenrola nas unidades substanciais, nas forças orgânicas, fi
os fenômenos da natureza, sem exceção, a explicações rigorosa­ assim que o extenso, onde Descartes acreditava ter encontrado
mente matemáticas e mecânicas, sem deixar de considerar, entre­ a substância dos corpos, assenta no inextenso, o "extensivo" no
tanto, que os princípios da própria mecânica não poderiam con­ "intensivo”, o "mecânico" no "v ita l". "Ouod in corpore exhtbe-
sistir simplesmente em extensão, forma e movimento, e recorrem tur mechanice seu. extensive, id in ipsa Entelechta concentraiur
ainda a outras fontes. O mecanismo é a bússola intelectual que dynamice et monadice, in qua mechanismi fons et mechanicorum
nos aponta o único caminho seguro através do domínio dos fe­ repraesentatio est; nam phaenomena ex monadibus resuttant." 4<
nômenos, que submete os fenômenos ao "princípio da razão'1 Assim foram lançados, sem o menor desconhecimento dos
(Síiíz vom Crunde) e permite concebê-los de modo racional e direitos de uma explicação matemática da natureza, os funda­
expÜcá-los inteiramente. Contudo, não será com esse gênero de mentos de uma nova "filosofia do orgânico"; pelo menos, estava
explicação que se alcançará a compreensão do mundo. Para com­ equacionado um problema que deveria desempenhar um impor­
preender o mundo, não basta sobrevoar d iscursi vãmente os fenô­ tante papel no desenvolvimento da filosofia da natureza do
menos, ordená-los em seu quadro espaço-temporal. Em vez de ir século X V I II . Não foram razões puramente teóricas, especula­
de um elemento do devir ao outro, aproximando-os segundo o ções abstratas, as que suscitaram e alimentaram esse problema,
espaço e o tempo, em vez de estabelecer separadamente os di­ Não menos importante é o papel desempenhado pelas novas pers­
versos estados que um corpo orgânico percorre em seu desen­ pectivas estéticas apresentadas por espíritos dotados do sentido
volvimento, a fim de os unir mutuamente pela relação de causa da arte. Já na idéia leibniziana de harmonia se manifesta a con­
e efeito, convirá colocar a questão da razão de ser da série in~ junção dessas duas influências. E em Shaftesbury revela-se de
ieira. Essa questão de ser não é, por sua vez, um elemento da uma forma ainda mais nítida a importância dessa razão estética
série, porquanto se situa além dela. Para reconhecê-la, devemos para edificar uma nova concepção da natureza. No desenvolvi­
abadnnar a ordem físíco-matemática dos fenômenos e passar daí mento dessa concepção, Shaftesbury apóia-se nos pensadores da
à ordem metafísica das substâncias; devemos alicerçar nas forças Escola de Cambridge. na teoria das "naturezas plásticas”. Mas
originárias, primitivas, as forças secundárias e derivadas. É essa repele todas as cunseqiicncias místicas, em particular as que
a tarefa que o sistema leibniziano da monadologia quer executar. Henry More extraíra dessa doutrina. Todo 0 seu esforço tende,
As mônadas são os sujeitos donde o devir extrai integralmente com efeito, a conceber a idéia de forma de tal modo que ela
seu princípio e sua fonte. O princípio de sua eficiência, de seu deixe transparecer a sua origem espiritual, "ultra-sensível” , mas
progressivo desenvolvimento, não é a relação mecânica de causa conservando, não obstante, a sua natureza puramente intuitiva.
e efeito mas uma relação teleológica. Cada mônada é uma ver­ Shaftesbury, que vê o mundo como uma obra de arte, quer re­
dadeira "enteiéquia” que se esforça por desenvolver e aumentar troceder desta para o artista que a produziu e que se mantém
a sua essência, por elevar-se de um certo grau de elaboração a presente, imediatamente, em todos os seus aspectos, por mínimos

120 121
que sejam. Esse artista não submete a sua criação a um modelo e das forças “ demoníacas” da natureza. Ele vê o um no todo e
exterior, que ele se limitaria a reproduzir. Ainda menos se con­ o todo no um. Nessa perspectiva de imanência estética deixa de
forma, em suas obras, a um plano preconcebido. Sua eficiência haver na natureza alto e baixo, interior e exterior: a oposição
é interiormente determinada e, por conseguinte, não poderia ser absolula entre aquém e além, entre imanência e transcendência,
validamente expressa por analogias extraídas dos processos de está agora ultrapassada. O conceito de forma interior {inward
exterioridade, como a ação de um corpo sobre o outro. A idéia form ) situa-se além de toda e qualquer separação desse gênero:
de finalidade que penetra e domina ioda 2 mundivisão de "Pois tal é o princípio da natureza que o que valia para o exte­
Shaftesbury sofre igualmente, desse modo, um deslizamento de rior vale também para o interior." A poderosa corrente de um
sentido. Assim como não visamos ao objetivo tanto na ctiação sentimento novo da natureza parte daí para penetrar no curso
quanto na fruição artística — a finalidade do ato, na criação da história das idéias do século X V I II . O hino à natureza de
tanto quanto na contemplação, nada mais é do que o próprio Shaftesbury aí desempenha um papel decisivo, sobretudo no de­
ato — , tampouco o “gênio" da natureza conhece um fim exte­ senvolvimento do pensamento alemão; ele liberta as forças pro­
rior a si mesmo. Todo o seu ser está em agir. A sua essência, fundas graças às quais formar-se-ão a filosofia da natureza de
entretanto, nSo se esgota em nenhuma obra singular, nem mesmo Herder assim como a do jovem Goelhe.45
na infinidade de suas obras; ela só se nos revela no próprio ato Com a concepção da natureza de Herder e de Goethe já
de produzir e de dar forma. E esse ato é a fonte primária de ultrapassamos, evidentemente, os limites da época do Iluminís-
toda a beleza: "The beautifying, not the beautiful, is tfte really mo, mas tampouco nessa direção ocorreria qualquer ruptura no
beautiful.n * Essa imanência da finalidade que deriva da sua esté­ pensamento do século X V I I I . A transição realizou-se em perfeita
tica é mantida por Shaftesbury na sua filosofia da natureza, nela continuidade. A mediação estava dada de antemão no sistema de
fazendo penetrar uma nova corrente do pensamento. Ademais, Leibniz, em seu pensamento universal, 0 qual continha em si
ele deu assim um passo além do modelo dos pensadores de Cam- mesmo a unidade e a continuidade do desenvolvimento. Também
bridge que concebem as "naturezas plásticas" — as quais eles na cultura francesa aparece com nitidez crescente, a partir de
consideram indispensáveis a toda a atividade organizada — como meados do século, 0 desenvolvimento do conceito ieibniziano de
sendo essencialmente potências subordinadas, submetidas à lei mônada. A tal propósito, cabe particularmente a Maupertuis o
e à direção da vontade divina. Deus paira acima do mundo como crédito de ter lançado uma ponte entre a Alemanha e a França.

o seu telos, o seu princípio transcendente, ao passo que as "natu­ A sua posição pessoal em relação a Leibniz não está, de resto,
inteiramente isenta de contradições, mas a dependência efetiva
rezas plásticas" são atuantes no mundo, incumbidas de certo
da sua metafísica, da sua filosofia da natureza e da sua teoria
modo pela causa primeira, que apenas visa a fins universais, de
do conhecimento, em face dos princípios leibnizianos, não é me­
engendrar e de elaborar o individual. Shaftesbury abandona essa
nos indiscutível. Maupertuis recorre às idéias leibnizianas tanto
oposição do inferior e do superior, da potência divina suprema
para demonstrar o seu princípio de mínima ação como para es­
* Em inglês no original: “Aquele ou aquilo qUc embeleza, não o tabelecer e provar 0 seu princípio de continuidade, e nelas se
belo, é o que realmente possui beleza,” (N. do T.) apóia também para a sua teoria da fenomenalidade do espaço

122 123
'u do tempo. Na verdade, ela esforça-sc por dissimular essa estrei­ pretenda explicar a formação de uma planta ou de um animal.
ta dependência: ao mesmo tetnpo em que se apropria tacitamente Tanto o problema da reprodução quanto os problemas comple­
dos seus princípios, obstina-se em criticar, em combater o sistema xos da teoria dn hereditariedade não podem ser tratados em ter­
qtia sistema, mormente sob a forma que ele recebeu de W o lff e mos puramente físicos; nem sequer é possível a sua formulação
dos seus discípulos. Essa atitude turva e ambígua não deixou de correta nessa perspectiva. Somos necessariamente remetidos para
desservi-lo em seu conflito com König.w Mas, ainda mais nitida­ uma concepção da matéria que é diferente da que o físico pos­
mente do que na versão Maupertuis do "princípio da mínima tula. Tanto a extensão cartesiana quanto a gravitação newtonia-
ação”, a dívida, denunciada por König, em relação ao pensa­ na não proporcionam a menor elucidação sobre os fenômenos da
mento de Leibniz, evidencia-se nas teorias biológicas contidas vida e estão longe de permtir que se proceda a uma completa
num tratado latino intitulado Dissertalio inauguraíis metaphysica dedução. Por conseguinte, não há outra solução senão somar aos
de universal! Naturae systemate, atribuído a um certo doutor predicados puramente físicos — predicados de impenetrabilida­
Batimann e que terio sido impresso em Erlangen, em 1751. O de, dc mobilidade, de inércia, de gravidade — outros predicados
que confere a esse estudo sua importância para a história das em relação com a realidade objetiva da vida. E Maupertuis volta-
idéias é ver-se aí pela primeira vez uma tentativa de concilia­ se então para Leibniz, o qual proclamava justamente que, em
ção, de comparação no plano dos princípios, dos dois grandes lugar de se procurar na noção de massa os princípios essenciais
adversários que se enfrentam na filosofia da natureza do século e verdadeiros da explicação física, cumprc recorrer, para esse
X V III. Maupertuis foi o primeiro defensor na França das idéias fim , às substâncias simples cuja essência só pode caracterizar-se
de Ncwton; nesse combate, ele precedcu o próprio Voltaire e, como consciência, uu seja, pelos predicados de representação e
de certo modo, abriu-lhe o caminho."1 Mas náo tardou em reco­ de apetite. Maupertuis insiste igualmente no seguinte ponto: seria
nhecer que o principio ncwtoniano da atração não poderia cons­ impossível haver uma explicação completa da natureza se não
tituir um fundamento suficiente a uma ciência descritiva da na­ nos resolvermos, em vez de tratar esses dois predicados como
tureza para compreender e interpretar os fenômenos da vida propriedades derivadas, a incluí-los entre os elementos primiti­
orgânica. Por mais brilhantemente que tenha sido demonstrada vos do ser. Ê verdade que, por outro lado, Maupertuis recusa-se a
a teoria de Newton em astronomia e em física, encontramo-nos, seguir o radicalismo leibniziano ao distinguir o mundo das subs­
diz Maupertuis, assim que sc passa à química, diante de proble­ tâncias do mundo dos fenômenos, o mundo do "simples" do
mas inteiramente novos que já não se deixam tratar por esse mundo do "composto". Abordando a idéia de mónada, ele não
único princípio. Seria necessário, pelo menos, caso se quisesse conceberá, à maneira dc Leibniz, essas unidades primárias donde
salvaguardar na química a validade do principio universal de resultam os processos naturais como pontos "metafísicos” mas.
atração das massas como princípio supremo de explicação, dar efetivamente, como pomos físicos. Para atingir essas unidades
à própria idéia de atração um outro sentido mais amplo do que não é necessário, em absoluto, abandonar o mundo dos corpos
cia possuí em física. E deparamo-nos com uma nova mudança como tal, ultrapassar o plano onde se situa o ser e o devir da
de sentido quando se passa da química à biologia, desde que se matéria; basta ampliar a idéia de matéria de modo que, em vez

124 125
de excluir os fatos primitivos da consciência, ela contenha-os em olhos, ao passo que a primeira relação só pode ser concebida
si mesma. Por outras palavras, devemos incluir na definição da por inferências e raciocínios indutivos." 48
matéria não só as características de extensão, impenetrabilidade, Descartadas, desse modo, as objeções apresentadas contra a
gravidade etc. mas também as de desejo, aversão e memória. função e a coordenação direta das propriedades "psíquicas" e
Pretender que tal associação envolva uma contradição, que pre- "físicas" na noção de matéria, a construção da filosofia da natu­
dicados tão heterogêneos, até mesmo opostos, não podem coin­ reza pode agora prosseguir sem obstáculos. Não está em causa,
cidir num mesmo sujeito, eis uma objeção que não pode pertur- para nós, deduzir a consciência do nao-consciente: isso seria pre-
bar-nos, dado que só é válida se partirmos do princípio de que tender uma verdadeira criação ex nihilo. Não é menos absurdo
as explicações de que o cientista serve-se correspondem a defi­ acreditar que se possa explicar o nascimento da vida espiritual
nições reais, ou seja, a definições que devem designar a natureza pela associação de átomos, nenhum dos quais possui a sensação
da coisa e exprimi-la plenamente. Descartes e seus adeptos con­ nem a inteligência ou a mínima qualidade psíquica que seja,49
sideram a consciência e o pensamento o atributo essencial da Não resta, portanto, outra solução a não ser transportar a cons­
alma, a extensão o atributo essencial do corpo; são, portanto, ciência para os próprios átomos como um verdadeiro fenômeno
perfeitamente coerentes ao estabelecer uma divisória estanque primitivo. Não se cogita de admitir que ela possa ser engendrada
entre a alma e o corpo, uma vez que esses dois atributos nada pelos átomos mas, isso sim, desenvolvida e levada a níveis de
têm de comum entre si, só atribuindo a um as características que clareza cada vez mais elevados. Da maneira como Maupertuis
se recusam a admitir no outro. Ocorre, porém, que essa exclusão realiza esse programa, nada resta, por certo, do princípio carac­
recíproca fica insustentável a partir do instante em que se reco­ terístico da filosofia leibniziana da natureza. O espiritualismo
nheceu que todo o poder do pensamento limita-se ao estabele­ leibniziano é caricaturada sob a forma de um vago e confuso
cimento de caracteres empíricos. Tais caracteres implicam-se in ­ hilozoísmo: a matéria, como tal, é animada, dotada de sensação
teriormente uns aos outros? São suscetíveis ou não de ser associa­ e de desejo, de certas simpatias e antipatias. A cada uma dessas
dos? Não podemos nem queremos apurar isso: basta que a expe­ partes é atribuído não só um "instinto", que a leva a procurar
riência os apresente sempre juntos e que possamos estabelecer a o que lhe convém e a fugir do que lhe é contrário, mas também
sua coexistência regular. "Se o pensamento e a extensão são um certo sentimento de si mesma. Quando uma parte se associa
apenas propriedades, eles podem muito bem pertencer a um a outras em grande quantidade, ela não perde esse sentimento
mesmo sujeito cuja essência própria nos é desconhecida. Sua de si mesma; da confluência de todas essas moléculas animadas
coexistência não é nem mais nem menos inconcebível do que a nasce, simplesmente, uma nova consciência comum, na qual par­
união da extensão e do movimento. Podemos perfeitamente sen­ ticipam todos os elementos que serviram para a constituição do
tir uma resistência mais forte à idéia de unir extensão e pensa­ todo e na qual sua individualidade se fundamenta. "Sendo a
mento do que à de unir extensão e movimento; contudo, isso percepção uma propriedade essencial dos elementos, não parece
depende apenas do fato de que a experiência apresenta-nos cons­ que ela possa extinguir-se, dim inuir ou aumentar. Pode perfei­
tantemente esta ultima união e a coloca diretamente sob os nossos tamente receber diferentes modificações através das diferentes

126 127
combinações dos elementos; mas deverá sempre, no universo, for­ transformação perpétua. Esse universo ilimitado e móvel, somen­
mar uma mesma soma, ainda que sejamos incapazes de a seguir te um pensamento móvel pode concebê-lo, um pensamento que
ou de a conhecer. Cada elemento, em sua associação com os se deixa levar de impulso a impulso, que jamais repousa na
outros, fundiu sua percepção com a deles e perdeu o sentimento contemplação do presente e do dado, mas que se inebria com a
específico de si mesmo, dc modo que nos falta a lembrança do profusão dos possíveis, que os quer percorrer e tentar todos.61
estado primitivo dos elementos e a nossa origem deve estar intei­ Graças a esse traço fundamental do seu espirito, Diderot é o
ramente perdida para nós.60 primeiro a romper com a visão do mundo estático do século
Os Pensamentos sobre a interpretação da natureza, de Dide­ X V I I I para dotá-lo de uma visão dinâmica. Todos os esque­
rot. estão ligados à doutrina de Maupertuís. Mas o autor possui mas, todas as investigações puramente classificatórias lhe pare­
um senso crítico demasiado penetrante para não identificar os cem estreitas, insuficientes ou, pelo menos, só lhe parecem apro­
pontos fracos dessa doutrina. Não sem razão, ele vê nessa tenta- veitáveis para fixar o estado do saber num dado momento espe­
tiva de superar o materialismo apenas uma variedade do mate­ cífico. Não se deve atribuir de antemão nenhum limite ao conhe­
rialismo. E a esse materialismo simplesmente um pouco mais cimento por intermédio de tais esquemas, nenhuma hipótese deve
refinado opõe ele uma concepção puramente dinâmica . Na ver­ pesar sobre o seu futuro. Temos que permanecer abertos a toda
dade, é muito arriscado, falando de Diderot, pretender definir a novidade, não deixar que nenhum modelo, nenhuma prescri­
com um nome o conjunto de idéias filosóficas que por ele foram ção, retraia o horizonte da experiência. Desse ponto de vista,
sucessivamente sustentadas e querer, por assim dizer, apor-lhes pode-se dizer que Diderot avança para uma nova concepção da
um rótulo. O pensamento de Diderot só é cabalmente apreendi­ filosofia da natureza. É ocioso pretender atribuir limites à natu­

do, na realidade, em sua trajetória, em seu movimento inces­ reza, querer encená-la em nossos gêneros e em nossas espécies.
Ela só conhece a diversidade, a heterogeneidade perfeita. Ne­
sante, impetuoso, que não repousa com nenhum resultado obtido,
nhuma de suas formas permanece idêntica, cada uma delas re­
que em nenhum ponto do seu curso revela o que é e o que quer.
presenta spenas um estado de equilíbrio transitório de suas for­
Diderot mudou de "posição” inúmeras vezes ao longo de sua
ças criadoras e que, mais dia menos dia, deverá romper-se. "Tal
vida. Nada de fortuito nem de arbitrário, porém, nessas m u­
como nos reinos animal e vegetal, um indivíduo começa, por
danças. Adquire-se a convicção de que nenhuma posição singu­
assim dizer, cresce, perdura, definha e acaba; não ocorreria o
lar donde consideremos o universo, nenhuma luz particular sob
mesmo com espécies inteiras? Se a fé não nos ensinasse que os
a qual o coloquemos, está à altura de sua riqueza e de sua
animais saíram das mãos do Criador tal como os vemos e se
diversidade interior, de sua incessante mobilidade. Diderot não fosse permitido ter a menor incerteza acerca do seu começo e
faz o menor esforço para cristalizar seu pensamento em fórmulas do seu fim , o filósofo entregue às suas conjeturas não poderia
fixas e definidas; ele é permanentemente um elemento fluido e suspeitar de que a animalidade tinha os seus elementos parti­
fugidio. Mas é justamente nessa volubilidade que ele avizinha-se culares, esparsos e confundidos na massa da matéria desde toda
de uma realidade que tampouco conhece o que seja estabilidade, a eternidade? Que acontecera uma reunião desses elementos por­
que é impelida, pelo contrário, por um fluxo incessante, uma que havia a possibilidade de que isso se fizesse? Que 0 embrião

128 129
formado desses elementos passou por uma infinidade de organi­ motas
zações e de desenvolvimento, que evoluiu do movimento à sensa­
ção e, sucessivamente, às idéias, ao pensamento consciente e à
reflexão? Milhões de anos transcorreram entre cada um desses
1 Para maiores precisões acerca d«se ponto, coosultar em especial
desenvolvimentos — e é possível que muitos outros desenvolvi­
Ernst Troeltsch, Vernunft und Offenbarung bei Johann Gerhard und
mentos que nos são desconhecidos venham ainda a ocorrer.” 62 Melanchtan, Göttin gern, 1891,
‘'Quem conhece as raças de animais que nos precederam? Quem 2 Cf., para uma exposição mais completa da questão, o roeu livro
sabe que raças de animais sucederão às nossas? Tudo muda, Erkenntnisproblem [O problema do conhecimento], 5.» edição, vof, I,
pp. 276 e ss.
tudo passa, apenas o todo permanece. O mundo começa e acaba
3 Giordano Bruno, De Immenso, Livro V IU , cap. 9; Opera Latina,
sem cessar; ele está a cada instante em seu começo e em seu fim. vol. I, parte 2, p. 310.
Nesse oceano incomensurável de matéria, não há uma molécula 4 D'Alembert, Éléments de philosophie, cf. acima pp. 76 e ss.
que se assemelhe a outras, não há uma molécula que se asseme­ 5 Sobre os primeiros trabalhos científicos de Montesquieu, cf. por
lhe a si mesma de instante para instante: Rerum novus nascitur exemplo Sainte-Beuve. Montesquieu, causeries du fundi, vol. VU.
ordo, eis a eterna divisa do m undc.” 6 Sobre a amplitude e o conteúdo dessa literatura de “ física teoló­
gica”, ver as informações mais detalhadas que foroece D. Mbrnet etn Les
Não pode, portanto, haver ilusão mais perigosa e pior so­
sciences de la nature en Frahce au X V itl» siècle, Paris, 1911, pp. 3J e ss,
fisma para os filósofos do que o "sofisma do efêmero” — a
TFontencUe, Entretiens sur la pluralité des mondes, Premier soir,
idéia de que o mundo deve ser necessariamente o que é presen­ Oeuvres de Fontenelle, Paris, 1818, pp. 10 e SS-
temente. Sua existência constitui apenas um átimo fugaz na 8 Para mais detalhes sobre a oposiçSo entre “explicação da natures»”
infinidade do devir: nenhum pensamento pode medir a priori a e "descrição da natureza”, entre "definição" e "descrição" em Newton
e seus discípulos, cf. Erkenntnisproblem , 3.“ edição, vol, II, p. 401.
riqueza de tudo o que esse devir pode engendrar.63 “Rerum
ooptice, lat. reddid. Samuel Clarke, 1740, Ljb. 111, Quaestto 31.
novus nascitur ordo": a divisa a que Diderot submete a natu­
10 Condillac, Traité des systèmes; Logique, p. II, cap. 7 e passim.
reza não vale para a posição que ele próprio ocupa na história
11 Voltaire, Le philosophe ignorant (1766), vol. X ; cf, Traité de mé­
das idéias do século X V I I I ? Ele cria uma nova ordem das idéias: taphysique (1734), em particular o cap. 3 e ss. [Em francês no original:
não contente em ultrapassar largamente os resultados adquiridos "Nenhuma energia primeira, nenhum primeiro princípio pode ser apreen­
pelo seu tempo, ele acomete aquelas formas de pensamento graças dido por nós." N. do T-l

às quais esses resultados foram adquiridos e nas quais se ensaiara 12 D ’Atembert, Éléments de philosophie V/; Mélanges, vol. IV,
pp. 59 e ss.
fixá-los.
13Spinoza, Ètica, Proposição 33: se as coisas tivessem podido
ser de outra natureza ou determinadas a operar de modo diverso, de tal
sorte que fosse outra a ordem da Nalureza, Deus também poderia ser,
por conseguinte, de natureza diferenle da que é presentemente
(N . do T .)
14 " Lege naturae universales, secundum quas omnte flunt et deter-
minúntur, nihil sitnt Dei aetemi decreta, quae semper aetemam veritalem
et necessitatem involvunt.” Tractatus Theobgico-Politicus, cap. III, se& 7.

130 131
‘ »Leibniz a Varîgnon, em 2 de fevereiro de 1702, Mdthemaùsche 81 U homme machine, p. 111.
Schriften, ed. Oerhardt, vol. IV , p, 94 [Em francês no original: " é porque ®a Cf. Voltaire, Poèmes. Les cabales (1772), Oeuvres, Paris, Le*
tudo fcc rege pela razão e, se assim não fosse, não existiria ciência nem quien, 1825, vol. XIV, pp. 236 e ss. [Etn francês no original. N. do T.]
regra, o que estaria em contradição com a natureza do princípio sobe­ M Système de la nature, p. 205.
rano." N. do T.].
M Diderot, De Vinterprétation de la nature, IV , X V II, X X I; Oeuvres,
1# Para a importância dos trabalhos desses cientistas holandeses no ed. Assézat, vol. II.
desenvolvimento do próprio pensamento francês, em especial para a in- w Op. cit.. sec. X X I, X X V II.
fluântia que exerceram em Voltaire cf. a obra de Pierre Bru net, Les
physiciens hollandais et ta méthode expérimentale en France au X V III * ®* Cf. acima pp. 81 e ss.
siècle, Paris, 1926. La Botanique mise à la portée de tout le monde, Oeuvres (Assé*
17 Huyghena, Traité de la lumière, ed. alemã de Lommel, Leipzig, zal), V I, 375.
1890, p. 3 e ss. 38 Buffon, Histoire naturelle (1749): Primeiro discurso.
19 Cf. S'Gravesaode, Discurso inaugural De Math estas in omnibus 30 No que se refere à posição de Buffon aa história do evolucioná-
scienliis praecipue t* Physlcis usu (1717) e O tralado Physices Elemen­ mo, cf. Perrier, La Philosophie zoologique avant Danvin.
to. . ,sive Introductio ad philosophiam Newtoniam, Leyde, 1720. 40 Buffon, Histoire naturelle, citado em Joseph Fabre, Les pères de
10 S'Gràvesande, Physices Elemento, [da] trad. francesa de Joncourt; la Révolution. (De Bayle à Condorçct), Paris, 1910, pp. 167 0 ss.
cf, Bru net, op. cit., pp. 56 e ss. 41 Sobre a influência de Descartes, cf. G. Lansoü, "L ’influence de ta
só S'Gravcsande, Rede über die Evidenz', cf,t a introdução à tradução philosophie cartésienne sur la littérature française ”, Revue de Métaphy­
francesa dos Eléments de physique, de Êlie de Joncourt. sique, 1896 (Êtudei d’histoire littéraire, Paris, 1929, pp. 58 e SS.).
31 Cf. y Grave sande, Physices elementa Mathematica, Pracfado, e 43 Fiz um a exposição mais profunda da filosofia da natureza da
Musschenbroek, "De methodo instituendi experimenta physica”, discurso Escola de Cambridge e de sua doutrina das "naturezas plásticas” no meu
de posse como reitor (1730). livro Die Platonische Renaissance in England und die Schule von Cam­
î ! Holbach, Systime de la nature, cf. em especial pp. 1 e sa., p. 53 bridge (Stud, der Bibi. Warburg), Leipzig, 1932, cap, IV.
e passim.
,s Cf. o scu tratado Considérations sur tes principes de vie et sur
« C f . La Mettrie, Histoire naturelle de f t e (1745): publicado ulte­ les natures plastiques, Philos. Schriften (Gerhardt) VI, pp. 539 e ss.
riormente sob o título Traité de l’âme.
14 Carta de Leibniz a Christian Wolff, Correspondência entre Leibniz
2* Traité de l'âme, cap. I. e Wolff, ed. Gerhardt, Halle, 1860, p. 139; para mais detalhes, cf. o meu
2n La Mettrie, U homme machine, ed. Maurice Solovine. Paris, 1921 livro Ober Leibniz1 System, Marburg, 1902, especialmente pp. 283 e ss.
p. 130. e 384 e ss.
M La Mettrie, & homme machine, p. 134. *s A demonstração precisa dessa influência foi fornecida por Dil they
” Ibid., p. 113, no artigo Aus der Zeit der Spinoza-Studien Goethes (Archiv, f. Gesch. d.
Philosophie, 1894; Gesammelte Schriften, II, pp. 351 e SS.). Sobre à
ss Holbach, Système de la nature, Parte I, caps. 4 e 5 (pp. 50 e ss„
58 e ss.). visão da natureza em Shaftesbury e suas relações com a Escola de Cam*
bridge, ver a exposição detalhada que apresentei em Die Platonische
20 Holbach, op. cit., p. 274; cf. La Mettrie. Discours sur te bonheur
Renaissance in England. Leipzig, 1932, Cap. 6.
(Oeuvres philosophiques, pp. 211 e ss.): "Sou e considero um ponto de
honm ser cidadão zeloso: mas não é nessa qualidade que escrevo, é como
Para os detalhes do conflito, cf. Harnack, Geschichte der Aka­
filósofo: como tal, vejo que Cartouche foi feito para ser Cartouche e demie der Wissenschaften zu Berlin, Berlim, 1901, pp, 252 e SS.
Pirro para ser Pirro; os conselhos são imiteis para quem nasceu com a Sobre a tomada de posição de Maupcrtuis a favor de Newton e
sede da carnificina e do sangue.1' sobre os seus primeiros trabalhos matemáticos e físicos, cf. Brunet, Mau-
10 Système de la nature, p. 311. periuis, 2 vols., Paris, 1929, I, pp. 13 e ss.

132 133
■*#Mtaupertuu, Systime de la ruitare, see. in , IV , X IV , X X D ; Oeit-
vrei, Lyon, 1756, vol. II, pp. 139 t ss.
«»Loc. ciL, sec. L X III, L X IV , pp. 166 e u .
» I b i d . , sec. L U I, LTV, pp. 155 e ss.
Vcr, a ess« respeilo, o exccíecte retrato d t Diderot traçado por
Bernh. Groetbuysen ("L a peosée de Dideroi*', em La Grande Revue.
Vol. 82, 1913, pp. 322 fl ss.).
111
6J De I'interpolation rfe la nature, sec. LVTE1, Oeuvres (Asjé.).
»* Diderot, Le rive de D’Alembert, Oeuvres, vol. D , pp. 132, 1S4 PSICOLOGIA E TEORIA DO CONHECIMENTO
e passim.

Um dos traços característicos do século X V I I I é a estreita


relação, poderíamos até dizer o vínculo indissolúvel que existe,
no âmbito do seu pensamento, entre o problema da natureza e
o problema do conhecimento. O pensamento não pode dirigir-se
ao m undo dos objetos exteriores sem voltar-se simultaneamente
para si mesmo, procurando assim assegurar-se, num só e mes­
mo ato, da verdade da natureza e da sua própria verdade. Ao
invés de o conhecimento ser simplesmente tratado como um
instrumento e utilizado de modo singelo como tal, vemos ser
continuamente colocada, era termos cada vez mais prementes,
a questão da legitimidade desse uso e da estrutura desse instru­
mento. Kant não foi, em absoluto, o primeiro pensador a for­
mular essa questão, embora lhe tenha dado um outro rumo, uma
significação aprofundada e uma solução radicalmente nova. A
tarefa universal de determinar os limites do espírito (ingenii
limites definire) já tinha sido estabelecida por Descartes com
uma clareza decisiva. A mesma questão converte-se em seguida,

134 135
com Locke, no fundamento de toda a filosofia da experiência. nhecunento por sua origem, Assim é que a origem psicológica
O empirismo de Locke também comporta uma tendência inten­ converte-se num critério lógico mas, por outra parte, não faltam
cionalmente "crítica” . A determinação do objeto da experiência as normas lógicas para penetrar na psicologia e orientar seus
deve preceder a investigação da função experimental. Não lemos problemas. A psicologia recebe delas um caráter reflexivo pre­
o direito de aplicar o nosso conhecimento a não importa que dominante: não se contenta em perceber as realidades e os pro­
objeto para descobrir-lhe a natureza. A primeira questão deve cessos mentais, quer sondá-los até atingir seus fundamentos últi­
ser, pelo contrário: que espécie de objeto convém ao conheci­ mos, os próprios eíementos do psiquismo, a fim de expô-los à
mento? Quais slo os objetos que ele é suscetível de determinar? plena luz, analiticamente. Ê nesse domínio, precisamente, que
Entretanto, para resolver esse problema, para discernir exata­ ela alimenta um vivo sentimento de pertença, de estreito paren­
mente a natureza específica do espirito humano, não há outro tesco com a ciência universal da natureza. Seu ideal supremo é
caminho senão percorrer de lés a lés toda a extensão da seu tomar-se a “ química da alma” , no sentido em que a química é
domínio e reconstituir a ordem do seu desenvolvimento desde a anatomia do inorgânico e a própria anatomia é a análise dos
os primeiros até as suas realizações supremas. O problema corpos organizados. "Depois que tantos arrazoadores fizeram o
crítico reduz-se, portanto, a um problema genético. Somente a romance da alm a", diz Voltaíre a respeito de Locke, "eis que
gênese do espírito humano pode fornecer uma solução verda­ chegou um sábio para lhe fazer modestamente a história. Locke
deiramente satisfatória para o problema da sua natureza. A psi­ expôs e explicou ao homem a razão humana, tal como um exce­
cologia é assim colocada, de modo explícito, na base da teoria lente anatomista explica os mecanismos do COTpo humano.” 1
do conhecimento e, até a Critica da razão pura , de Kant, ela Os grandes sistemas racionalistas do século X V II tinham resol­
reivindicará esse papel quase sem contestação. A reação contra vido a questão fundamental da verdade do conhecimento, da
essa concepção, proveniente dos Novos ensaios sobre o enten­ concordância das idéias e dos objetos, ao situar o mundo das
dimento humano, de Leibniz, virá algumas dezenas de anos mais idéias & o mundo dos objetos numa só e mesma camada primi­
tarde, quando essa obra veio a ser a publicada pela primeira tiva do ser. É nesse nível que eles se reúnem e é por essa coin­
vez em 1765, em conformidade com o manuscrito da Biblioteca cidência primordial que se explicam os acordos que em seguida
de Hanover, e sua influência subseqüente limitar-se-á, aliás, ao realizam de forma indireta. A natureza do conhecimento hu­
domínio da filosofia e da cultura alemãs. A distinção radical do mano só se infere de si mesma, decifra-se nas idéias que contém
método transcendental e do método psicológicô. da questão do em si mesma a priori. Essas idéias "inatas” constituem o selo
“ começo” e da questão da "origem” da experiência, tal como que foi impresso desde o começo no espírito humano e que
foi sistematicamente elaborada por Kant, não pode ser retida, lhe assegura, de uma vez por todas, a sua origem e o seu destino.
portanto, num exame histórico em benefício do problema fun­ O ponto de partida de toda a filosofia, de Descartes em diante,
damental do século X V I I I . Nessa época, pelo contrário, as fron­ está nessas noções primitivas que consideramos em nós mesmos
teiras não cessara de confundir-se. A "dedução transcendental” e que, de certa maneira, são os arquétipos pelos quais se mode­
nunca se distinguiu da "dedução psicológica” ; determina-se, lam todos os nossos outros conhecimentos. Entre essas noções
mede-se a validade objetiva dos conceitos fundamentais do co- primeiras encontramos as de ser, número e duração, que pos-

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suem um valor absoluto para todo o conteúdo do pensamento, os cbjetos exteriores; nSo dispomos de qualquer outro recurso
ao passo que as idéias de extensão, forma e movimento só valem para agir sobre eles. Foi assim que a doutrina cartesiana das
para o mundo dos corpos e a idéia de pensamento só para a idéias inatas viu-se alçada por Malebranche às alturas de um
alma.5 Toda a realidade empírica, toda a diversidade dos corpos princípio segundo 0 qual só em Deus vemos todas as coisas.
e toda a vida complexa da alma estão contidas nesses modelos Não existe um conhecimento verdadeiro das coisas, salvo se
simples e primitivos, que se relacionam de antemão com essa relacionarmos em nós mesmos as percepções sensíveis com as
realidade objetiva pela única razão de que assim se relacionam idéias da razão pura. Somente essa relação confere às repre­
também, simultaneamente, com a sua própria origem. A i j â é r n sentações uma significação objetiva; de simples modificações
inatas são "as marcas do operário impressas em sua obra". Que do nosso eu, convertem-se por esse meio em representações do
benefício se colhe, então, em interrogar-se,, ainda sobre a sua ser e da ordem dos objetos, Em si mesmas, as qualidades sensí­
ligação com a realidade, sobre a possibilidade de aplicarias a veis, as sensações de cores, de som, os cheiros e os sabores ainda
esta? São aplicáveis à experiência pela simples razâo de que não comportam o menor indício de um conhecimento do ser
vêm a mesma origem dela e de que não poderia haver, portanto, e do mundo; enquanto vivências imediatas apenas nos assinalam
a mínima oposição entre sua própria estrutura e a estrutura das os diversos estados por que passa a nossa alma, de instante a
coisas. A razão como sistema de idéias claras e distintas e o instante. Só a ciência permite extrair desses estados de alma a
mundo como totalidade do ser criado não podem separar-se um indicação de um estado de coisas objetivamente real e objetiva­
do outro em nenhum ponto; cada um desses dois planos do mente válido, de uma existência da natureza e de uma legalidade
ser oferece tão-somente expressões e representações diversas de inviolável. Mas só pode efetuar essa passagem do subjetivo ao
uma mesma e única substancialidade (W etm heit). 0 intelíectus objetivo na condição de reconduzir o contingente ao necessário,
archetypus divino converte-se, assim, no mundo cartesiano, no a existência fatual à racionalidade, o temporal ao intemporal e
elo fixo no grampo de ferro que mantém unidos 0 pensamento ao etemo. Para chegar ao conhecimento da natureza, ao conhe­
e o ser, a verdade e a realidade. Esse traço característico da cimento do mundo físico, devemos, em vez de atribuir à '’maté­
doutrina destaca-se ainda mais francamente nos discípulos ime­ ria" uma propriedade sensível qualquer, reduzi-la à pura exten­
diatos e sucessores de Descartes. Ora, todo o movimento do são. Entretanto, cumpre-nos juntar a essa redução uma outra
pensamento a partir de Descartes consistiu precisamente em cujo alcance é mais profundo, Com efeito, não basta aceitar a
negar todo o vínculo direto entre a realidade e o espírito huma­ extensão no sentido em que ela nos é dada na extensão concreta,
no, entre a substantia cogitans e a substantia extensa, mesmo na "im aginação” . Para concebê-la em sua estrita e autêntica ver­
ao ponto de o desfazer inteiramente. Não existe nenhuma espé­ dade, temos que nos libertar também de todas as imagens que
cie de "união*’ entre a alma e o corpo, entre as nossas repre­ esta última nos fornece e dar o passo que nos conduzirá da
sentações e a realidade, salvo a que é dada e produzida na essên­ extensão imaginativa à "extensão inteligível” .® E por intermédio
cia divina. Nenhum caminho leva diretamente de um pólo a dessa idéia de uma extensão inteligível que o espírito humano
outro do ser; deve-se passar necessariamente pela mediação da é suscetível de conhecer a natureza, a realidade física; mas só
existência e da eficácia de Deus. Só por esse meio conhecemos conceberá essa mesma idéia se a relacionar, se a reconduzir a

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Deus como um verdadeiro "lugar das idéias’*. Nesse sentido, do lluDoinismo considerou ser a sua tarefa essencial inicia-se
todo ato de conhecimento autêntico, todo ato da razão estabe­ nesse ponto e com especial virulência. O problema lógico c
lece uma unidade imediata, uma junção entre Deus e a alma episte mo lógico das "relações da consciência com os seus obje­
humana. A validade, a potência e a certeza das idéias funda­ tos'1 náo pode ser resolvido pela introdução de temas religiosos
mentais do saber estão fora de questão pelo próprio fato dc que e metafísicos que, pelo contrário, só iriam obscurecê-lo. Em sua
participamos nelas e através delas da existência divina. Em ú lti­ célebre carta a Marcus Herz, a qual contém a primeira formu­
ma análise, é nessa participação metafísica que repousam toda a lação precisa do problema crítico, Kant condena solenemente,
verdade e toda a certeza lógica; é nela que se apóia a prova uma vez mais, toda a tentativa para se resolver assim esse pro­
perfeita. A luz que ilum ina para nós o caminho do conheci­ blema. "Platão tomou para primeira fonte dos conceitos puros
mento vem de dentro, não de fora; da região das idéias e das do entendimento uma antiga concepção da divindade; Male-
verdades eternas, não das coisas sensíveis. E, no entanto, essa branche, uma concepção desse ser primordial que ainda tem
pura luz “ interior” , justamente, não nos pertence; ela é o re­ curso nos dias de hoje [ . . . ] Na determinação da origem e da
flexo de uma fonte luminosa mais alta: "C'est un éclat de la validade dos nossos conhecimentos, o deus ek machina constitui
substance lumineuse de notre maître commun." 4 a escolha mais extravagante que se poderia fazer; além do
N um exame atento desse desenvolvimento metafísico do círculo vicioso que introduz na dedução dos nossos conhecimen­
racionalismo cartesiano, percebe-se com toda a clareza o ponto tos, oferece ainda a desvantagem de favorecer todas as fantasias
onde ele devia fatalmente entrar em conflito com a filosofia ilu- e lucubrações cerebrais piedosas ou fantásticas.” ’ Nessa parte
minista. Esta encontra-se, a propósito do problema do conhe­ negativa da sua doutrina, K ant sustenta ainda uma tese que
cimento, diante de uma tarefa idêntica àquela com que se de­ corresponde à opinião comum de toda a filosofia do Huminis-
parou a propósito do problema da natureza e que ela acreditava mo, a qual nunca deixou de se manifestar contra toda e qual­
então ter vitoriosamente solucionado. Trata-se de estabelecer a quer tentativa de encontrar num mundo transcendente um ponto
natureza e o conhecimento em seu próprio fundamento, explicar de apoio para a alavanca do conhecimento. Quanto 8 Voltaire,
uma e outro por suas próprias determinações. Convém, tanto na luta perpétua que travou contra semelhante tendência, ma­
para um quanto para b outro, abster-se de recorrer a todo o nifesta sua predileção pelo sistema de Malebranche, em quem
"além ”. Entre conhecimento e realidade, entre sujeito e objeto, vê o mais profundo metafísico de todos os tempos;* mas é evi­
não deve interpor-se nenhuma instância estranha. O problema dente que essa referência constante serve-lhe para provar a im­
deve ser formulado e resolvido no terreno da experiência: o potência do "espírito de sistema” da metafísica* Para Voltaire
menor pa$so que arriscarmos fora do seu domínio significará e pare todo o enciclopedismo francês, essa atitude negativa im­
uma solução ilusória, uma explicação do desconhecido por algo plica imediatamente uma certa posição que eles considerarão
mais desconhecido ainda. Assim, essa mediação em que o aprio­ doravante inatacável. Que mediação, com efeito, irá subsistir
rismo e o racionalismo pensavam ter baseado a mais alta certeza entre o eu e a coisa, entre o sujeito e o objeto, se excluirmos
do saber deve ser recusada sem vacilação nem concessão, O o caminho da transcendência 7 Que espécie de relação é agora
grande processo de secularização do pensamento que a filosofia pensável entre eles, senão uma relação de influência direta excr-

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cida por um sobre o outro? Se o eu e o objeto pertencem a mo não renunciou, em absoluto, a valer-se de princípios uni­
duas camadas diferentes do ser, se devem, apesar de tudo, estar versais e de sua evidência imediata. Mas essa evidência mudou,
em contato e estabelecer entre si uma conexão, será inevitável por certo, de lugar: não enuncia mais um vinculo entre idéias
que a realidade exterior se comunique à consciência. Mas a ún i­ puras mas a apercepção de uma ligação de jacto. Em vez da
ca forma empírica que conhecíamos de uma comunicação dessa metafísica da alma, deve aparecer a história da alma, esse “ mé­
espécie é a da impressão (Einwirkung) direta. Só ela permite todo estritamente histórico” que Locke defende contra Descar­
lançar uma ponte entre a representação e o objeto. O princípio tes.10 Pode-se muito bem afirmar que a autoridade de Locke,
segundo o qual toda a idéia que encontramos em nós mesmos em todas as questões de psicologia e de teoria do conhecimento,
assenta numa “ impressão" prévia e só se explica a partir desta é quase incontestada durante a primeira metade do século
será por conseqüência elevado à categoria de um axioma incon­ X V I II . Voltaire situa Locke muito acima de Platão — e D ’Alem­
testável. Mesmo 0 cepticismo de Hume, embora dirigido contra a bert declara na introdução da Enciclopédia que Locke é o cria­
validade universal da relação de causalidade em geral, não he* dor da filosofia científica, tal como Newton o foi da física
sitou na presença dessa forma especial da famosa relação: se científica. Condillac, num exame rápido da história do problema
nem sempr® é possível produzir o original de uma determinada da alma, associa Locke diretamente a Aristóteles; declara ele
idéia, por mais profundamente escondido que possa estar esse que tudo o que foi produzido nesse meio tempo não conta, por
original, nenhuma dúvida pode haver, contudo, de que ele exis­ assim dizer, para nada no avanço verdadeiro do problema.11
te e temos que o procurar. Duvidar disso significaria apenas A psicologia inglesa, tal como a francesa, só procura ultrapassar
leviandade e inconsequência.8 Locke numa direção: a liquidação do que resta de dualismo
Reencontramos aí um resultado surpreendente e teorica­ no princípio de sua análise, a distinção da experiência “ inte­
mente paradoxal: 0 empirismo psicológico vê-se precisamente rior" e "exterior” que ela quer eliminar para reduzir todo o co­
forçado, para desenvolver a sua tese, a colocar à frente de sua nhecimento humano a uma só e mesma fonte. A oposição enlre
doutrina um axioma, psicológico. O princípio: nihil est in in- "sensação” e “ reflexão” apenas espelha um pseudodilema que
tellectu quod non antea fuerit in sensu não pretende, em absoluto, se apaga diante de uma análise mais apurada. Todo o desen­
enunciar uma verdade fatual que teria sido provada por m úl­ volvimento, todo o progresso da doutrina empirista de Locke a
tiplas confirmações indutivas. N ão lhe reconhece uma simples Berkeley e dc Berkeley a Hume tende a compensar e, em última
probabilidade empírica mas uma certeza perfeita, indubitável, análise, a apagar inteiramente a suposta diferença entre sensa­
inclusive uma espécie de necessidade. Diderot declara expres­ ção e reflexão, e a crítica da filosofia francesa do século XV11I
samente* "N ada existe de demonstrado em metafísica e nada incide igualmente sobre esse único ponto, tendente a eliminar o
sabemos, em momento algum, sobre as nossas faculdades inte­ resto de autonomia que Locke tinha concedido à reflexão. A
lectuais, nem sobre a origem e o progresso dos nossos conhe­ reflexão queria ser conhecimento da alma no que se refere à
cimentos, se o antigo princípio: nihil est in intellectu etc. oSo é sua própria existência e aos seus próprios estados, mas existirá
a evidência de um pirmeiro axioma." B Essa fórmula de Dide­ tal conhecimento, na verdade, como dado empírico real? Algu­
rot é característica, porquanto mostra que o próprio empiris- ma vez nos experimentamos a "nós mesmos” sem que não so­

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brevenha, nessa experiência, alguma impressão, por mínima que opor nenhuma fronteira superior ao processo de gênese contí­
seja, relacionada com um fato físico, com uma disposição ou nua da vida anímica. Longe de se deter diante das formas dc
uma condição do nosso corpo? Alguma ver será possível indicar energia espiritual pretensamente "superiores” , esse processo de­
na experiência um puro "sentimento do eu” (Ichgefüht), uma ve encontrar aí a sua plena eficácia e o seu papel decisivo.
autoconsciência abstraía? Maupertuis, ao formular essa questão, Nada se encontrará nesse nível que já não esteja contido e cons­
recusa-se a resolvê-la dogmaticamente, mas é propenso a dar- tituído nos elementos sensíveis primitivos. Os atos do espírito,
lhe uma resposta negativa. Quanto mais fundo penetra-se na as operações intelectuais, nada comportam que seja verdadei­
idéia de uma' existência pura mais longe se leva a sua análise, ramente novo e, daí, misterioso; são apenas sensações transfor­
mais claramente se afirma a impossibilidade de separar essa madas. Convém acompanhar passo a passo a gênese desses atos,
idéia de todo e qualquer dado sensível. Verifica-se, em particu­ 0 processo de transformação dos elementos sensíveis primitivos
lar, que o sentido do tato desempenha em seu aparecimento um da vida da alma. Veiifica-se eotao que as diversas fases singu­
papel decisivo.11 Vamos encontrar a mesma argumentação em lares nunca estão separadas por um corte nítido mas, pelo con­
Condilíac sob uma forma essencialmente mais radical, a qual trário, fundem-se insensivelmente umas nas outras. Ao conside­
culmina numa penetrante crítica dos fundamentos da psicologia rarmos o conjunto dessas metamorfoses psíquicas, reconhece­
e da teoria do conhecimento em Locke. Sem dúvida, Locke deu mos uma só e mesma ordem de desenvolvimento, tanto dos atos
um importante passo no sentido do avanço da investigação em­ do pensamento e da volição quanto dos atos de sentir e per­
pírica; também foi, indubitavelmente, o prim eiTO a traçar-lhe ceber. Condilíac não é exatamente "sensualista” , no seDtido de
0 percurso que deveria ser adotado. Mas deteve-se a meio ca­ querer fazer do eu, à maneira' de Hume, um simples "feixe
m inho e recuou precisamente diante do problema que apresen­ de percepções’*. Insiste na simplicidade da natureza da alma,
tava maiores dificuldades. Com efeito, fot quando se abordavam onde se deve procurar, diz ele expressamente, o verdadeiro su­
as mais altas funções da vida mental, do poder de comparar, jeito da consciência. A unidade da pessoa pressupõe necessaria­
de distinguir, de julgar, de querer, que Locke tornou-se, de sú­ mente a unidade do ser senciente, portanto, que exiBte uma
bito, infiel ao seu método geral. Contenta-se em enumerar sim­ substância espiritual simples que sofre somente modificações
plesmente essas faculdades e em apresentá-las como poderes fun­ múltiplas sob o efeito de diversas impressões que se exercem
damentais da alma, em vez de segui-las até às suas origens. sobre o corpo e cada uma de suas partes.14 Os sentidos não
Portanto, é no ponto mais importante, no ponto decisivo, que são, pois, stricto sensu, mais do que as causas ocasionais e não
se quebra precisamente o fio da investigação. Locke, que com­ a origem de todos os nossos conhecimentos. Com efeito, não
bateu vitoriosamente as idéias inatas, não derrubou o precon­ são eles que sentem e sim a alma, por ocasião das modificações
ceito das operações inatas da alma. Ele não viu que, à seme­ que se produzem nos órgãos corporais. Devemos observar cui­
lhança da vista e do ouvido, a atenção, a compreensão etc. dadosamente as primeiras sensações de que temos consciência,
não são qualidades primárias indivisíveis mas estruturas tardias descobrir a causa das primeiras operações do espírito, surpreen-
que só podemos adquirir pela experiência e a aprendizagem.13 dâ-las em seu nascimento, acompanhá-las até seus limites extre­
Ê necessário, portanto, dar continuidade ao desenvolvimento sem mos, em suma, devemos, como disse Bacon, recriar de certo

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modo todo o entendimento humane, t, Íím de comoreendê-lo cimento e constitui para este um pressuposto indispensável.
realmente em sua estrutura.1“ Locke já enfatizara esse ponto em sua análise dos fenômenos
Nessa tentativa de "recriação", Condillac não se ateve, volitivos: o que determina os homens a empreender uma da­
evidentemente, à simples observação empírica. O Trailé des sen- da ação voluntária, o que é, em cada caso singular, a causa
sations não se contenta em alinhar observações; peio contrário, concreta da decisão tomada, não é, de forma alguma, a repre­
obedece a um plano sistemático partindo de uma hipótese teó­ sentação de um bem futuro para o qual a ação serviria de meio.
rica que ele quer consolidar e provar passo a passo. A célebre Nem essa representação nem a avaliação puramente teórica dos
imagem da estátua que, sob a influência das impressões que se possíveis fins singulares do querer, do ponto de vista do melhor
exercem sobre ela, desperta para a vida e eieva-se para formas ou do pior, contêm qualquer espécie de força motriz. Não se
de vida cada vez mais ricas e diferenciadas, mostra claramente trata de uma força que atua de antemão, pela previsão teórica
que a "história natural da alm a” que Condillac nos quer apre­ e antecipação de um bem futuro, mas de uma força que age no
sentar não está inteiramente isenta de intenções especulativas sentido de antes para depois, proveniente do desprazer e do
ou sintéticas. Condillac tampouco se contenta em desenvolver mal-estar que a alma Bente em certas situações em que se vê
diante dos nossos olhos a gênese da alma e a diversidade cres­ colocada e que a impelem irresistivelmente a fugir dessas situa­
cente de suas formas: ele quer revelar-nos a orientação dessa ções. Esse mal-estar (uneasiness) e .essa inquietação foram con­
gênese, desvendar-nos os seus verdadeiros mecanismos. Assim, siderados por Locke o verdadeiro motor e o impulso decisivo
encontramos nele uma nova posição do problema, repleta de de todo o nosso querer.16 Condillac parte das mesmas conside­
fecundas possibilidades: compreende ser impossível descobrir rações mas entendeu levá-las muito além do círculo dos fenô­
os fatores essenciais dessa gênese se permanecermos no domínio menos volitivos e estendê-las a todo o domínio da vida psíquica.
das nossas simples idéias e representações, no domínio do nosso A "inquietude” é para ele não só o ponto de partida do nosso
conhecimento teórico. Ê necessário recorrer a uma outra di­ desejo e dos nossos anseios, do nosso querer e da nossa ação,
mensão do psíquico. Não é sobre a especulação, sobre a mera mas também das nossas sensações e das nossas percepções, do
observação, que repousa a atividade de alma, não é aí que se nosso pensamento e dos nossos julgamentos, e até mesmo dos
escondem as fontes vivas de todas as nossas diversas energias. atos superiores de reflexão a que a nossa alma se eleva.17 Desse
Pode o movimento ser explicado pelo repouso? A dinâmica da modo se vê invertida a ordem habitual das idéias, aquela que,
vida-anímica pode fundamentar-se na estática? Para compreen­ estabelecida em novas bases, recebera a sanção da psicologia
der que a força latente está subentendida em todas as metamor­ cartesiana. A vontade deixa de ser causada pela representação,
foses da alma, jamais se detendo em qualquer forma estável, passando esta a ser causada por aquela. Deparamo-nos aqui,
esforçando-se sempre por alcançar novas realidades e novas pela primeira vez, com a atitude "voluntarista” cujo rastro pode
operações, é necessário supor nela a existência de um princípio ser seguido em metafísica até Schopenhauer e em teoria do co­
motor originário que não pode ser encontrado nas representa­ nhecimento até o pragmatismo moderno. É no simples ordena­
ções e no pensamento mas tão-somente no desejo e no esforço. mento teórico dos fenômenos que, segundo Condillac, consiste
O impulso instintivo (Trieb) é, portanto, "anterior” ao conbe- a primeira atividade da alma, na apreensão pura e simples do

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que os sentidos nos oferecem, no ato da percepção. O ato de se confundem assim que as necessidades cessam, nada sc vó
atenção que lhe sucede imediatamente permite insistir em certas além de um caos. As idéias passam uma e outra vez sem ordem;
percepções, destacar certos dados sensíveis do conjunto do pro­ são quadros móveis -que somente oferecem imagens bizarras c
cesso psíquico. Entretanto, essa acentuação, esse esforço de de­ imperfeitas, e toca às necessidades a tarefa de redesenhá-las e
terminadas percepções seria impossível se não houvesse razão situá-las em sua verdadeira l u z . " 18 A ordem lógica das nossas
nenhuma para escolher umas em vez de outras. Ora, essa razão idéias não é, portanto, primária mas derivada, segundo Con-
não pertence, como tal, à esfera puramente teórica, mas à da dilíac; trata-se de uma espécie de reflexo ou de espelho de
prática: A atenção só capta 0 que, num certo sentido, “ afeta” di­ ordem biológica; o que em cada caso nos parece importante,
retamente o eu, ou seja, o que corresponde à satisfação de suas "essencial’', é-0 menos em função da essência das coisas do que
necessidades e inclinações. Também são as inclinações e neces­ da direção do nosso "interesse” , o qual é determinado pelo
sidades que determinam a orientação das nossas lembranças: a que nos for proveitoso, pelo que for útil à nossa conservação.
memória não se explica pela associação mecânica das idéias, Estamos, pois, ao mesmo tempo, na presença de uma ques­
sendo determinada e governada pela vida instintiva. É a neces­ tão prenhe de conseqüências no que tange à significação da
sidade que recupera da obscuridade e restabelece alguma idéia filosofia iluminista como um todo. H á o costume, enquistado
esquecida: “ As idéias renascem peia própria ação das necessi­ numa concepção demasiado estreita desse período, de recrimi­
dades que as produziram." As idéias formam na nossa memória nar na psicologia do século X V I II sua orientação num sentido
certos turbilhões que se multiplicam na própria medida em que exageradamente “ intelectualista” , limitando o essencial de suas
os nossos instintos se avolumam e se diferenciam. Cada um análises à vida inteiectual e ao conhecimento teórico, ignorando
deles apresenta-se como o centro de um movimento determinado oa menosprezando, em contrapartida, a força e a originalidade
que se prolonga até a periferia da vida psíquica, até as repre­ da vida instintiva. Essa concepção, entretanto, não resiste a
sentações claras é conscientes. “ Assim é que as idéias renascem um exame histórico sem preconceitos. Quase todos os sistemas
pela própria ação das necessidades que inicialmente as produ­ do século X V III reconheceram claramente, pelo menos, e apro­
ziram- Elas formam, por assim dizer, na memória, turbilhões fundaram o problema que acabamos de abordar. Já no século
que se multiplicam corao as necessidades. Cada necessidade é X V I I a análise das emoções e das paixões tinha sido substituída
um centro, cujo movimento se comunica até a circunferência. no centro de interesse da psicologia e da filosofia em geral.
Esses turbilhões são alternativamente superiores uns aos outros, v4s paixões da alma, de Descartes, e a teoria spinozista das
à medida que as necessidades vão ficando cada vez mais vio­ paixões no Livro I I I da £tica não são obras secundárias, me­
lentas. Todos efetuam suas revoluções com uma variedade sur­ nores; fazem paríe integrante dos sistemas. No conjunto, entre­
preendente: empurram-se, destroem-se, formam-se de novo, de­ tanto, o pensamento que prevalece é, de fato, o de que é im ­
bilitam-se, à medida que os sentimentos, aos quais devem toda possível apreender e determinar pelas paixões a “ natureza” da

a sua força, enfraquecem-se, eclipsam-se, ou produz-se o que alma. Essa natureza reside no “ pensamento” e só no pensamento

ainda não tinha sido experimentado. De um instante a outro, encontra sua marca verdadeiramente característica. É a repre­
o turbilhão que arrastou vários é por sua vez tragado; e todos sentação, a idéia clara e distinta, não a paixão obscura e con­

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fusa, que caracteriza, por conseguinte, a natureza da alma. Os então incontestada. E, em suma, a inversão do inferior e do
instintos, os desejos, as paixões sensíveis SÓ indiretamente lhe superior; mostra que a razão que se costuma honrar como ;t
pertencem. Não estão af suas propriedades originárias e seus faculdade soberana do homem desempenha afinal um papei
movimentos próprios mas perturbações que experimenta, oriun­ inteiramente secundário no conjunto da vida psíquica. Ela exer­
das do corpo, de sua junção com o corpo. A psicologia e a ce tão escassos poderes na direção das faculdades "inferiores"
ética do século X V II fundem-se essencialmente nessa concepção da alma que não se cansa, pelo contrário, de recorrer a elas,
das paixões còroo fenômenos de inibição e de perturbação, como e não saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibili­
perturbationes animi. Somente possui valor ético o ato que do­ dade e da imaginação. Todo o saber racional se reduz exclusi­
mina essas "perturbações", que manifesta a vitória da parte vamente à inferência da causa a partir da observação do efeito;
ativa da alma sobre a parte passiva, a vitória da "razão11 sobre ora, essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, in­
as paixões. Essa perspectiva estóica não caracteriza somente a certa, e jamais poderá ser estabelecida por via puramente lógi­
filosofia do século X V II; ela impregna toda a vida espiritual ca. Para ela só existe a justificação indireta, aquela que consiste
dessa época. £ o ponlo de contato da doutrina de Descartes t em descobrir sua origem psicológica, em reconduzir à sua ori­
do pensamento de Com eille.ís A vontade racional dominando gem a crença na validade do princípio de causalidade. Verifi­
os impulsos dos sentidos, os instintos e as paixões, tais são o ca-se então que essa “ crença” não se fundamenta, de maneira
sinal e a essência da liberdade do homem. O século X V I I I não alguma, era princípios racionais universais e necessários mas
se detém num critério tão negativo, numa apreciação tão ne­ provém de um simples "instinto” , de uma pulsâo primitiva da
gativa das paixões. Longe de ver aí uma simples inibição, pro­ natureza humana. Esse instinto é, em si mesmo, cego; mas é
cura o impulso originário indispensável da vida da aíma. Na justamente nessa cegueira que consiste a sua força essencial, a
Alemanha, os princípios da filosofia leibniziana já deviam de­ potência pela qual ele impõe-se a todo o curso de nossas idéias.
sempenhar um papet nesse sentido. Com efeito, Leibniz, ao ela­ Hume parte desse resultado teórico para sistematicamente es­
borar o seu conceito de mônada, não procurou reduzir a sua tender a todo o domínio do psíquico o processo de nivelamento
natureza à simples "representação” , ao conhecimento teórico. por ele iniciado. Procede então à redução das camadas superio­
A mônada não se limita & atividade representativa: ela efetua res da vida psíquica segundo um plano que é, em si, perfeita­
em si a síntese da representação e do esforço. A idéia de repre­ mente metódico. Em sua História natural da religião, procura
sentação e a de tendência, a idéia de perceplio e a de percep- assinalar até que ponto é ilusória e caduca essa pretensão que
turitio,™ são colocadas lado a lado no mesmo plano. De um a religião tem de comunicar, de tornar acessível ao homem um
modo geral, a psicologia alemã liga-se a essa hipótese básica "outro m undo". O verdadeiro solo nutriente da religião, da
que lhe permite dar aos fenômenos voluntários e efetivos uma representação e da adoração de Deus não está af. Não deve
posição independente no sistema da psicologia. Mas um movi­ ser procurado numa idéia inata nem em qualquer certeza intui­
mento idêntico esboça-se na França e na Inglaterra, daí passando tiva primitiva; tampouco poderíamos encontrá-lo por intermédio
a outros países. O cepticismo crítico de Hum e leva, no domínio do pensamento e do raciocínio, mediante provas e argumentos
da psicologia, a uma inversão de critérios cuja validade era até teóricos. Uma vez mais, não nos resta outra solução senão a de

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r :úuirar a raiz profunda do religioso na vida instintiva. O sen­ orgulnoso eoiíicio da razão se sustenta. Tudo 0 que há dc me­
timento do medo é o começo dc toda e qualquer religião; é a lhor na poesia, na pintura, na música, todo o sublime da arie
partir dele que se explica e sc desenvolve toda a religião sob e dos costumes, brota dessa mesma fonte. Portanto, as paixões
seus múltiplos aspectos. O novo modo de pensamento que assim não devem ser enfraquecidas mas, pelo contrário, intensificadas,
se manifesta em Hume exerce igualmente uma ação incessante pois a verdadeira força da alma nasce de sua concordância recí­
no seio da cultura francesa setecentista. Vauvenargues produz proca e não dc sua destruição.2® Em tudo o que precede perce-
quase o efeito de uma violência subversiva, de um ato revolu­ be-sc sem dificuldade um deslocamento progressivo das pers­
cionário, ao declarar, em sua Introdução ao conhecimento do pectivas fundamentais da psicologia e uma modificação da ordem
espírito humano (1746), que a verdadeira e profunda natureza dos valores psicológicos; metamorfose que se manifesta antes
do homem não consiste em sua razão mas em suas paixões. do aparecimento das principais obras de Rousseau e que se
O imperativo estóico de dominar suas paixões pela razão nunca realiza fora de sua influência. Essa metamorfose, como iremos
seria mais do que puro devaneio. A razão não é no homem uma ver, não é somente importante para o sistema do conhecimento
faculdade diretora e dominante. Não podemos compará-la com teórico: ela age em todas as direções, a sua influência exerce-se
o ponteiro que indica as horas no mostrador de um relógio. tanto sobre a ética e a filosofia da religião quanto sobre a esté­
As engrenagens do conhecimento e o seu primum movens são tica do Século do Iluminismo, cujos problemas ela coloca em
pulsões primitivas, originárias, que nos acodem sem tréguas, novas bases.
oriundas de um domínio diferente, absolutamente irracional.
Até mesmo os pensadores mais claros e lúcidos entre os ilumi-
nistas franceses, até mesmo os protagonistas e porta-vozes de 2
uma cultura puramente intelectual estão de acordo a respeito
dessa tese. No seu Tratado de metafísica Voltaíre declara que, Ao considerar-se o conjunto de problemas de que tratam a
sem as paixões, sem o orgulho, a ambição, a vaidade, todo o teoria do conhecimento e a psicologia do século X V III, sur­
progresso da humanidade, todo e refinamento de gosto e todo preende a percepção de que, apesar da sua diversidade e da
o desenvolvimento das artes e das ciências seriam impensáveis: especificidade de cada um, eles convergem para um mesmo
"Foi com esse expediente que Deus. a quem Platão chamou o ponto. A busca de detalhes vê-se levada constantemente, apesar
eterno geômetra e a quem eu chamo o eterno maquinista, ani­ de toda a sua riqueza e de sua aparente dispersão, para um
mou e embelezou a natureza: as paixões são as rodas que fazem problema teórico fundamental onde se reúnem todos os fios.23
funcionar todas essas m áquinas.” 31 O tratado Do espírito, de Trata-se da questão que tinha sido apresentada peia primeira
Helvétius, não foi escrito em tom diferente. O primeiro escrito vez na óptica de Molíneux e que logo despertara o mais vivo
independente de autoria de Diderot, 05 Pensamentos filosóficos, interesse filosófico. As experiências que fizemos num dos nossos
também parte desse mesmo pensamento. E fútil bradar contra setores sensoriais podem perm itim os constituir um setor de
as paixões, seria o cúmulo da insensatez empenhar-se era des- conteúdo qualitativamente diferente e de outra estrutura espe­
mií-las, nada menos do que socavar 0 terreno sobre o qual o cífica? Haverá uma conexão interna que nos permita passar

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diretamente de um setor a outro, por exemplo, do m undo tátil Molineux é, portanto, perfeitamente clara, de fato: para além
ao mundo visível? Um cego de nascença que tivesse adquirido, do exemplo particular que ele destaca, encontra-se colocada a
graças à experiência do tato, o conhecimento exata de certas questão geral de saber se o "sentido** como tal está em condi­
formas corporais e que soubesse apontar com segurança as di ções de construir para a nossa consciência a forma do mundo
ferenças entre elas, continuaria possuindo esse mesmo dom de real ou se necessita da colaboração de outras faculdades psí­
distinção depois que uma feliz operação ihe proporcionasse o quicas e, nesse caso, coloca-se a questão de apreender o modo
sentido da visão e ele tivesse que passar a julgar essas mesmas como determiná-las.
formas com base em dados puramente ópticos? Poderá ele dis­ Berkeley, em Nova teoria da visão e nos Princípios do
tinguir de imediato, por meio da visão, um cubo de uma esfera, conhecimento hutnano, tinha partido deste paradoxo: a única
ou terá que realizar um longo e difícil esforço de conciliaçao matéria, o único material de que dispúnhamos para edificar o
antes de chegar a estabelecer a ligação entre as impressões tatets nosso mundo perceptivo, consiste apenas em simples impressões
e a forma visível de um e de outro volume? Todas essas ques­ sensíveis — mas, por outro lado, essas impressões sensíveis não
tões ficaram sem uma solução geral imediata mas n ã o tardaram comportam em si a menor indicação das "form as" sob as quais
em exercer unia influência muito alÉm dos meios científicos ver­ a realidade percebida se nos apresenta. Acreditamos ver essa
dadeiramente especializados. O Diário filosófico, de Berkeley, realidade diante de nós como uma estrutura sólida onde cada
mostra-nos como ele se preocupou com esses problemas que elemento singular teria seu lugar designado e suas relações com
constituíram, de certo modo, o genne de toda a sua teoria da todos os demais elementos exatamente determinadas. Aliás, não
percepção. A Nova teoria da visão, que é o primeiro ato da é justamente essa determinação o que constitui o caráter essen­
filosofia de Berkeley e contém implicitamente todos os seus re­ cial dessa realidade? Se as percepções particulares não fossem
sultados, nada mais é, em suma, do que uma tentativa de de­ ordenadas em sua simultaneidade e em sua sucessão, se não
senvolvimento do problema de Molineux até as suas uítimas tivessem entre si relações fixas no espaço e no tempo, não
conseqüências para o elucidar. E algumas dezenas de anos mais existiria para nós qualquer m undo objetivo, não haveria a me­
tarde o problema reencontra no seio da filosofia francesa toda nor "natureza das coisas". E mesmo o idealista mais convicto
a sua força e fecundidade anteriores. Voltaire consagra-lhe uma não pode renunciar a essa "natureza das coisas": terá, inclusive,
análise penetrante em seus Elementos da filosofia de Newton que admitir e exigir nos fenômenos uma ordem fixa e inviolável
(1738) ;M Diderot coloca-o no centro da sua-primeira obra de para que a aparência não redunde, para ele, em pura ilusão.3®
psicologia, de teoria do conhecimento, as Cartas sobre os cegos Por conseguinte, a questão crucia! de toda a teoria do conheci­
(1749). Quanto a Condillac, está fascinado a tal ponto por essa mento consiste em saber o que essa ordem significa, e a de toda
questão que declara sem rodeios ter que se procurar aí a origem a psicologia em saber como aquela se constitui. Mas parece
; a chave de toda a psicologia moderna, porquanto foi ela que que a experiência, a única que poderia fornecer-nos informações
chamou a atenção para o papel decisivo do julgamento nos mais certas, falta-nos justamente nesse ponto. O mundo que ela nos
simples atos e a foríiori na construção progressiva do mundo apresenta nunca é, de fato, um mundo em devir, mas sempre
da percepção.*6 A importância teórica decisiva do problema de um mundo já constituído: ela coloca diante de nós os objetos

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em sua forma definitiva, em particular segundo uma distribuição camente. Ela consiitui, portanto, o único mundo que nos 6
espacial determinada, sem nos informar como foi que eles adqui­ acessível, o dos dados imediatos dos sentidos, como que um
riram essa forma. Não só a primeira vez que olhamos para as corpo estranho, o qual, não obstante, não pode ser eliminado
coisas faz-nos descobrir nelas certas qualidades sensíveis mas, sem que o mundo desmorone e retorne ao caos originário. "Dis-
além disso, cremos adquirir consciência de certas relações espa­ tance is, in its own nature, imperceptible and yet it is perceived
ciais: atribuímos a cada objeto uma ceria grandeza, uma certa by sight": 27 com essas palavras Berkeley exprime, na Nova teo­
posição e uma certa distância em face dos outros objetos. Mas ria da visão, da maneira mais rigorosa e impressionante, o
procuramos, entretanto, as razões de todas essas asserções; e dilema em face do qual a psicologia e a teoria do conhecimento
chegamos à conclusão de que elas são impossíveis de encontrar sensualista viranvse colocadas desde o seu nascimento.
nos dados que o sentido da visão fornece-nos. Esses dados só Quando atribuiu ao seu conceito fundamental dc percepção
se diferenciam por sua posição numa gradação puramente qua­ uma significação mais ampla, Berkeley superou esse dilema ao
litativa e intensiva e nada contêm que possa levar de imediato inserir nele, além da simples sensação, a atividade de repre­
à idéia de grandeza, de quantidade pura. O raio luminoso que, sentação. Toda a impressão sensível possui esse poder de re­
partindo do objeto, alcança o meu olho, nada me pode informar presentação, de referência mediata. Com efeito, a impressão não
diretamente acerca da forma espacial desse objeto nem sobre a se propõe simplesmente à consciência com o seu próprio con­
sua distância, Tudo do que o olho dispõe é da impressão feita teúdo específico, ela torna-lhe também visíveis e presentes todos
na própria retina. E a natureza dessa impressão não permite os outros conteúdos aos quais está vinculada por uma sólida
aduzir nenhum saber referente à causa que a suscitou nem à conexão empírica, E essa interação das impressões sensíveis,
distância menor ou maior a que tal objeto encontra-se. A con­ essa regularidade com a qual elas se convocam e se representam
clusão que se deve tirar dessa análise é que tudo aquilo a que mutuamente perante a consciência, é o fundamento últim o da
chamamos distância, posição, grandeza dos objetos tem, na rea­ representação do espaço. Essa representação nào é dada como
lidade, algo de invisível. E parece que a tese fundamental de tal numa percepção isolada, não pertence separadamente à visão
Bedkeley é assim reduzida ao absurdo, na medida em que se ou ao tato. Tampouco é um estado qualitativo específico que
anula a identificação de esse e de percipi. No âmbito dos fenô­ seria dado tão originariamente quanto a cor ou o som: ela resulta
menos que se nos impõem imediatamente e que não podemos das relações que os diversos dados sensíveis mantêm entre si,
recusar, de maneira nenhuma, apresenta-se-nos algo, portanto, Na medida em que as impressões visuais e as impressões táteis
que ultrapassa as fronteiras da percepção. A distância que se­ se encontram, no decorrer da experiência, estreitamente ligadas
para os objetos singulares parece, por sua própria natureza, entre si, a consciência adquire a capacidade de passar de uma
impossível de perceber, mas, por outro lado, ela constitui um à outra segundo regras determinadas com absoluta exatidão; è
elemento indispensável, ao qual não podemos renunciar a fim nessa passagem que devemos procurar a origem da representa­
de construir a nossa imagem do mundo. A “ forma1 espacial das ção do espaço. Quanto à passagem propriamente dita, é evidente
percepções mistura-se à sua "matéria” sensível, sem que seja que temos de entendê-la como transição puramente empírica e
dada por ela e, ademais, sem que se lhe deixe reduzir analiti- de maneira nenhuma lógica. Não se trata de uma conexão de

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ordem lógico-matemática e muito menos de um "raciocínio” que a imaginação de cada um de vós apresenlar-lhe-á de maneira
nos conduziria de certas percepções visuais para outras de na­ idêntica os corpos a que essas cores parecem estar ligadas. Esse
tureza tátil, ou destas para aquelas. Somente o hábito e o exer­ julgamento rápido e involuntário que formaram ser-lhes-á úiil
cício estabelecem essa conexão e progressivamente a consolidam. ao longo da vida: pois se tivéssemos que esperar, a fim de ava­
A idéia de espaço não é, pois, a rigor, um elemento da cons­ liar as distâncias, as grandezas e as situações de tudo o que nos
ciência sensível; é a expressão de um processo que se reflete rodeia, pelo exame dos ângulos e dos raios visuais, estaríamos
nela. Só a rapidez com que esse processo se realiza e a regu­ mortos antes de saber se as coisas de que temos necessidade
laridade com que se desenrola permitem que, em nossa auto- estão a dez passos de nós ou a cem milhões de léguas, se são
observação, saltemos etapas intermediárias e que, desde o come­ da espessura de uma bolota ou de uma montanha.” A teoria
ço, já possamos antever o fim . É necessária a análise psicoló­ da visão de Berkeley foi conhecida e admitida, em seus traços
gica e a crítica mais penetrante para nos recordar a existência essenciais, por quase todos os psicólogos de primeira ordem do
dessas etapas intermediárias. Descobrimos assim a experiência, século X V III, Condillac e D iderot” modificaram-na em alguns
entre os diversos domínios da sensibilidade, das mesmas rela­ detalhes, indicando ambos que as impressões da vista já contêm
ções que existem entre os signos da língua e sua significação, em si mesmas uma certa "especialidade” . Deixam para o tato
O som vocal não é, de maneira nenhuma, semelhante ao con­ apenas o papel de aclarar e fixar as experiências feitas por inter­
teúdo que ele designa, não lhe está ligado por nenhuma espécie médio da vista; só o consideram indispensável para a elaboração
de necessidade natural, o que não impede o som de cumprir da representação do espaço, não para o seu aparecimento. Mas
sua função de designar esse conteúdo e de convocá-lo Èt cons­ a tese rigorosamente empirista como tal não é afetada por essa
ciência. O mesmo pode ser dito a respeito das ligações que sc modificação. Toda a “ aprioridade” do espaço é vigorosamente
estabelecem entre impressões de gênero diferente e totalmente rejeitada e assím a questão de sua universalidade c de sua ne­
díspares, do ponto de vista qualitativo. Nada distingue os sinais cessidade é colocada sob uma nova luz. Se devemos apenas à
da língua dos sentidos dos da língua falada, salvo a universali­ experiência a percepção das estruturas do espaço, não podemos
dade e a regularidade de sua coordenação. Voltaire declarou, descartar o pensamento de que uma mudança da nossa expe­
ao explicar o pensamento de Berkeley: "Aprendemos a ver pre­ riência — como a que ocorreria nc caso de uma modificação
cisamente como aprendemos a falar e a ler. Os julgamentos da nossa organização psicofísica — não venha a atir-gir o pró­
repentinos, quase uniformes, que formulamos numa certa idade, prio âmago da "natureza” do espaço, E o pensamento não sa­
a respeito de distâncias, grandezas e situações, fazem-nos pensar beria deter-se em semelhante declive. O que significa essa cons­
que basta abrir os olhos para ver as coisas da maneira que ve­ tância, essa ‘‘objetividade’* que temos o hábito de atribuir às
mos. Ê um engano. Se todos falássemos a mesma língua, sería­ formas da percepção e do entendimento? Exprimirá ela seja o
mos propensos a crer na existência de uma conexão necessária que fot da natureza das coisas ou tudo o que entendemos por
entre as palavras e as idéias. Ora, todos os homens falam, nesse tal nSo se relacionará, não se limitará à nossa própria natureza?
caso, a mesma linguagem: a da imaginação. A natureza disse Para falar como Bacon, os julgamentos que baseamos nessa na­
a todos: quando tiverem visto cores durante um certo tempo, tureza valem ex analogia universi ou não valerão antes, de ma-

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neira exclusiva, ex analogia ho min is? Com essa indagação, 0 Cheselôen conseguiu em 1728 curar, graças a uma feliz operação,
problema da origem da representação do espaço vai muito além um rapaz de catorze anos cego de nascença, tudo levou a crer
dos seus limites iniciais. Descobre-se agora a causa que remeteu que essa questão, apresentada por Molineux como pura hipótese,
incessantemente para esse problema as reflexões psicológica e íinha encontrado a sua solução experimental. As observações
epistemológica do século X V III. O conceito cujo destino estava efetuadas com esse rapaz pareciam confirmar, dc fato, todos os
em causa era o de verclade em geral. Se o espaço, elemento pontos da tese empirista. As predições teóricas de Berkeley es­
fundamental da percepção humana, é somente engendrado pela tavam inteiramente corroboradas: verificava-se que o doente, ao
convergência e interação das diversas impressões sensíveis, en­ recuperar a luz, não tinha, de rcuineira nenhuma, adquirido ime­
tão não pode pretender nenhuma necessidade, nenhuma digni­ diatamente a faculdade de ver, que, em particular, ele tinha que
dade racional que seja superior ã que cabe aos seus elementos aprender, progressiva e penosamente, a distinguir as formas cor­
constitutivos. A subjetividade das qualidades sensíveis, que a porais que se lhe apresentavam à vista. Dessane se confirmava
ciência moderna conhece e reconhece doravante, também acar­ a tese de que, entre os dados espaciais do sentido do tato e
reta o espaço em sua órbita, portanto. O que vale para o espaço os da visão, não existia nenhum parentesco, de que as relações
vale no mesmo sentido e com a mesma legitimidade em relação entre eles só se estabeleciam na base de uma ligação habitual.
a rodos os outros fatores em que assenta a "fo rm a " do conhe­ Entretanto, se essa conclusão é correta, não podemos continuar
cimento. A psicologia antiga já distinguia rigorosamente entre falando de um espaço único, o mesmo para todos os sentidos,
as diversas ciasses de conteúdos sensíveis, por um lado, cores e servindo-lhes, por assim dtzer, de substrato uniforme. Esse
e sons, gostos e cheiros, e, por outro lado, os conceitos formais, espaço homogêneo, produto do espírito, segundo Leibniz, do
atribuindo a estes últimos, entre os quais a duração, o número, intellecius ipse, revela não ser mais do que uma abstração. Os
o movimento e o repouso, um lugar à parte, na medida em que dados que a experiência nos apresenta, os únicos que ela coloca
esses elementos, dizia ela, não dependem de um sentido parti­ ao nosso alcance, não se encaminham no sentido da unidade e
cular mas da aio&yxrjQtov xoivòv . Nos tempos mo­ da homogeneidade do espaço mas, pelo contrário, no de uma
dernos, a teoria racional ist a do conhecimento retomou essa dis­ pluralidade de "espaços" qualitativamente diferentes e tão nu­
tinção psicológica respeitante à origem das idéias a fim de esta­ merosos quanto os domínios sensoriais. Espaço óptico, espaço
belecer uma diferença específica de validade entre essas duas tátil, espaço das nossas sensações motoras, todos possuem sua
classes. As idéias que se costuma atribuir ao senso comum, ao própria estrutura, específica e completa; as conexões e as rela­
sensus communis, sustenta Leibniz, pertencem na realidade ao ções que eles estabelecem entre si não se baseiam, absoluta­
próprio espírito e provêm do seu próprio fundo: “ São idéias mente, numa natureza comum, na identidade de uma “ forma"
do entendimento puro que não têm seu princípio nos sentidos abstrata, mas tão-só na ligação empírica regular que existe entre
mas somente a causa ocasional do seu aparecimento, e que são eles e graças à qual todos esses espaços têm a possibilidade de
por isso suscetíveis de definições e de provas exatas." 30 A aná­ representar-se reciprocamente. Mas, então, uma conseqüência
lise exata ocasionada pelo problema de Mülineux veio revelar adicional parece inevitável, A questão de saber a qual desses
que essa doutrina não tinha o menor fundamento. E quando espaços sensoriais pertence a "verdade" autêntica e definitiva

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perde todo o sentido. Eles eq ui valem-se todos uns aos outros, sobre o mundo físico, assim como sobre o mundo intelectual? A
nenhum deles pode exigir um grau mais elevado de certeza, de existência não sofreria para nós uma transformação radical se
objetividade e de universalidade para si do que para os outros. fôssemos dotados de um novo sentido ou se um dos nossos
Aquilo a que chamamos objetividade, verdade ou necessidade sentidos nos fosse retirado?
só tem, por conseguinte, uma significação relativa e não abso­ O século X V I I I compraz-se em completar e em ilustrar as
luta. Cada sentido tem o seu próprio mundo, resta apenas com­ especulações psicológicas assim esboçadas por meio de espe­
preender e analisar todos esses mundos de maneira puramente culações cosmológicas Dos Entretiens sur la pluralité des mon­
empírica, sem tentar reduzi-los a um denominador comum. A des, de Fontenelíe, até à Allgemeiner Naiurgeschichte und
filosofia do Iluminismo não se cansará de recordar essa relati­ Theorie des Himmels [História universal da natureza e teoria
vidade. O motivo que se anuncia aqui, não contente por impor- do céu], de Kant. podemos apreender a continuidade de uma
se sem tréguas ao pensamento científico, tomar-se-á o tema mesma tendência e de um movimento idêntico de pensamento.
favorito de toda a literatura. Swift tratou esse tema n ’Âs viagens Talvez toda a riqueza de possibil idades que podemos produzir
de Gulliver, com supremo vigor satírico e uma incomparável em imaginação e construir in abstracto esteja efetivamente rea­
penetração intelectual; daí passou à literatura francesa, encar­ lizada no universo, talvez a cada corpo celeste correspondam os
nando-se em particular no Micromégas de VoUaire. Também habitantes dotados de uma constituição psicossomática parti­
Diderot, na Carta sobre os cegos e na Carta sobre os surdos e cular. "Diz-se que poderia muito bem faltar-nos um sexto sen­
mudos, se compraz nas variações sobre esse tema, nas ilustra­ tido natural, com o qual nos seriam ensinadas muitas coisas que
ções multicores. A primeira dessas obras tende essencialmente hoje ignoramos. Esse sexto sentido está aparentemente em algum
a mostrar, com o exemplo do célebre geômetra cego Saunderson, outro mundo, onde talvez falte algum dos cinco sentidos que
que todo o desvio na adaptação orgânica do homem deve ter possuímos. As nossas ciências têm certos limites que o espírito
inevitavelmente por efeito uma mudança completa da sua natu­ humano jamais pôde ultrapassar. H á um ponto em que elas nos
reza espiritual. Essa mudança, porém, não diz somente respeito faltam bruscamente; 0 resto é para outros mundos, onde algo
ao m undo sensível, à forma da realidade percebida; encontra-se do que nós sabemos é desconhecido.*'81 Como ura fio vermelho,
a mesma diferença, se levarmos a análise mais longe, em todos esse pensamento continua ao longo de toda a literatura psicoló­
os domínios da atividade: tanto intelectual quanto moral, tanto gica e epistemológica da época iluiuinísta.35 E cada vez mais a
estética quanto religiosa. A relatividade chega à esfera superior, lógica, a moral e a teologia parecem estar prestes a resolver-se
a das chamadas idéias puramente intelectuais: não alcança a numa antropologia pura e simples. Johann Christion Lossius
idéia e a palavra “ Deus” , que não deve significar coisas dife­ transpôs a última etapa em seu livro Phystscke Ursachen des
rentes para o cego e para o que vê. Haverá uma lógica, uma Wajiren [As causas físicas do verdadeiro], ao explicar que no
metafísica, uma moral que possam libertar-se e desligar-se da lugar da teoria inútil dos juizes e raciocínios lógicos era neces­
estrutura dos nossos órgãos sensoriais? Não somos nós mesmos sário colocar a teoria raais útil da origem das nossas idéias e,
e a particularidade de nossa organização, 0 que não nos cansa­ com esse propósito, classificar as nossas idéias não mais era fun­
mos de exprimir por intermédio de todos os nossos enunciados ção de seu conteúdo e dos objetos a que se referem mas dos

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órgãos que parecem feitos para tais ou tais dessas idéias. Desse mento do seu substrato corporal. As coisas só mudam quando
modo, aperceber-nos-íamos da verdadeira natureza das idéias passam pelo talo, pois toda a experiência tátil manifesta neces­
humanas, não completamente, por certo, mas em todo o caso sariamente uma dupla relação. Em cada um dos seus fenômenos
com uma clareza incomparavelmente maior do que a de todas particulares, ela proporciona-nos, ao mesmo tempo, o conhe­
as explicações que nos foram dadas desde Aristóteles até Leib* cimento de uma certa parte do nosso corpo e apresento-nos
niz. Ê evidente que teremos de renunciar em absoluto à uni­ assím, de uma certa maneira, uma primeira abertura para o
versalidade, à objetividade, mas não se causará mais prejuízo mundo da realidade objetiva. Entretanto, Condillac não pára
à verdade do que à beleza quando se perceber e admitir que nessa primeira solução; procura até expressamente completá-la
ambas são "d e natureza mais subjetiva do que objetiva” , que e aprofundá-la na última edição do Tratado das sensações. E a
elas não exprimem uma propriedade dos objetos mas uma rela­ questão adquire então, para eie, um rumo diferente e mais ra­
ção das coisas conosco, uma relação das coisas com quem as dical. Por um lado. devemos confessar que todos os nossos
pensa ,ss conhecimentos provêm dos sentidos; por outro, é visível que to­
Dessa perspectiva até ao pleno reconhecimento do "idealis­ das as sensações apenas exprimem diferentes maneiras de ser
mo subjetivo" só restava dar um passo; entretanto, esse último do nosso eu. Como poderemos alguma vez "sentir" objetos Fora
passo, cumpre dizê-lo, raramente foi transposto no pensamento de nós? De nada adiantaria alçarmo-nos até o céu ou mergulhar
do século X V I I I e a inevitável conclusão só foi aduzida a con­ no mais profundo dos abismos, pois nunca sairemos dos limites
tragosto. Berkeley não encontraria inicialmente discípulos ime­ do nosso eu; é a nós mesmos que reencontramos sempre com
diatos nem sucessores: mesmo os que seguiam o seu método o nosso próprio pensamento. Portanto, o problema apresenta-se
analítico procuravam evitar as suas conseqüências metafísicas. a Condillac com toda a clareza, mas os meios de resolvê-lo logi­
Esse ponto apresenta-se com particular nitidez no Ensaio sobre camente falham sempre no método sensualista.31 Diderot reco­
a origem dos conhecimentos humanos, de Condillac, bem como nheceu perfeitamente esse ponto fraco: considera ele que Con­
no seu Tratado das sensações. Em primeiro lugar, Condillac dillac acitou os princípios de Berkeley, ao mesmo tempo em que
acredita que pode encontrar a pova da “ realidade do mundo procurava escapar às suas conseqüências. Entretanto, o idealis­
exterior” , muito simplesmente, na experiência tátil. Tudo 0 que mo psicológico não pode ser verdadeiramente superado dessa
os outros sentidos nos mostram, o que nos é oferecido pelo maneira. Diderot vê aí, como Kant veria mais tarde, um “ es­
cheiro e paladar, vista e ouvido, não seria suficiente para nos cândalo da razão humana” : "U m sistema que, para vergonha
oferecer tal prova. Em todas as sues determinações, com efeito, do espírito humano, é o mais difícil de combater, embora seja
jamais apreendemos outra coisa senão modificações do nosso eu, o mais absurdo de todos." 39
sem que se encontre a menor indicação firme de uma cat/sa ex­ Percebe-se a mesma incerteza íntima nas cartas filosóficas
terior, donde essas modificações seriam provenientes. Ao ver, de Maupertuís e em suas reflexões sobre a origem da lingua­
cheirar, provar, ouvir, ela ignora inteiramente a existência de gem. Também nele o problema foi exposto com clareza e ousa­
órgãos físicos para todas essas atividades sensoriais. Ela absor* dia. Não só Maupertuis coloca a extensão, no que se refere ã
se-se no ato puro de perceber sem ter primeiramente conheci' sua “ reaiidade objetiva” , em pé de igualdade absoluta com as

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outras qualidades sensíveis, não só declara que não se pode con­ taçao sensualísta por uma outra puramente nominalista. E Mau-
ceber a menor diferença de princípio enlre o espaço puro e os pertuis tem plena consciência de que deslocou mas não resol­
fenômenos de cor e de som se considerarmos o seu conteúdo veu a questão. De sorte que a sua análise redunda, em defini­
e a sua origem psicológica, mas vai ainda mais longe ao investigar tivo, numa conclusão céptica; eis exprime a existência da ár­
o sentido do julgamento da realidade em geral, o sentido do vore como objeto independente do eu. Por conseguinte, será
julgamento “ é " ou “ há” . O que significa esse julgamento? Em difícil encontrar nela algo mais do que nos julgamentos pre­
que consiste o seu conteúdo e o seu fundamento próprios? O cedentes, os quais nada mais eram do que signos afetados a
que significa isso quando dizemos não só que vemos ou toca­ certas experiências perceptivas. Se eu não tivesse tido mais do
mos uraa árvore, mas também quando lhe adicionamos a afir­ que uma única vez a experiência que se exprime na sentença,
mação de que ‘'há*' um árvore? O que esse “ há” acrescenta "vejo uma árvore, vejo um cavalo” , jamais saberia, por muito
aos dados fenomenais, aos simples dados dos sentidos? Pode-se vivas que pudessem ter sido tais experiências, se poderia for­
descobrir uma percepção da existência que seja tão simples e mar o julgamento " h ã " . Além disso, se a minha memória fosse
tão primitiva quanto a percepção da cor ou do som? E se, como tão ampla que eu não recuasse diante da tarefa de amontoar
é manifesto, não for esse o caso, que outra significação o jul­ a bel-prazer sinal sobre sinal para cada uma das minhas per­
gamento de existência implica? Ao refletir sobre essa questão, cepções, de m unir cada uma delas com um sinal especial, talvez
é-se levado a pensar que entendemos per "existência” não tanto nunca fesse levado a enunciar o julgamento "h á ", mesmo su­
um novo ser mas um novo signo. Esse signo permiíe-nos atri­ pondo que tivesse conhecido as mesmas experiências percepti­
buir um único nome a uma série complicada de impressões sen­ vas que me dão atualmente a oportunidade de formular esse
síveis e fixá-la assim para a nossa consciência. É um com­ julgamento. Não se deve, pois, considerar esse julgamento como
plexo de impressões presentes, de lembranças e de expectativas a síntese de todas as experiências singulares: "eu veio", "eu vi1’,
o que por esse nome se exprime. A experiência a que ele se "eu verei”? m O progresso aqui realizado consiste no desloca­
refere compõe-se da repetição de experiências análogas e de mento do centro de gravidade do problema da realidade, que
circunstâncias determinadas solidamente ligadas entre si e que passa do domínio da simples sensação para o do julgamento.
desse modo parecem conferir-lhe uma realidade mais firme. A Quanto ao próprio julgamento, não é, de maneira nenhuma,
percepção "v i uma árvore” liga-se a esta outra: "F ui a um certo concebido e reconhecido em sua verdadeira dignidade racional:
lugar, voltei a esse lugar e encontrei de novo a árvore” etc. quis-se fazer dele apenas um agregado, uma vizinhança e uma
De tudo isso nasce uma nova consciência: "D e cada vez que sucessão de percepções. Essa questão somente soErerá uma trans­
vier a este lugar, verei uma árvore” , o que, em última análise, formação radical e receberá uraa solução critica quando esse
não quer dizer outra coisa senão “ há uma árvore'1. Tudo in ­ obstáculo tiver sido abolido, ou seja, quando Kant tiver definido
dica que uma análise estritamente sensualísta do problema do o juízo (Urteil) como "unidade de ato5’, conferindo-lhe, graças
ser é desse modo bloqueada; não se trata, por certo, de reduzir à espontaneidade que nele reside originariamente, o papel de
e de encerrar a idéia de ser numa simples sensação. Mas o gn- exprimir a "unidade objetiva da consciência". A "questão da
nho é, a bem dizer, muito escasso; trocamos a nossa interpre- relação1' da representação com um objeto será apresentada,

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por conseguinte, em novas bases: transferida do simples nível não poderia baver “ faculdade” no sentido de uma pura possi­
ce uma questão de psicologia para o próprio centro de uma bilidade, de uma "potência11 vazia — e ainda menos está cm
"lógica transcendental” . questão compartimentar as diversas aptidões da alma, hiposiu-
siá-las em faculdades autônomas. O próprio W olff, se bem que
os seus esforços no sentido de distinguir cuidadosamente os con­
3 ceitos tenham podido prestar-se, às ve2cs, a tal objeção, conscr-
v8-se sempre rigorosamente fiel ao postulado da unidade da
Também essa últim a mudança, ainda que expresse uma alma. A divisão da alma em faculdades distintas, sua definição
“ revolução no modo de pensar” , não se realiza na história sem e denominação constituem essencialmente nele um modo de
mediações e sem preparações. Pois, na Alemanha pelo menos, apresentação; em contrapartida, mostra sempre no estudo dos
as doutrinas psicológicas de Locke e Berkeley, de Hume e Con­ próprios fatos que esses poderes não são faculdades separadas,
dillac nunca chegaram a dominar sem contestação. Embora a independentes umas das outras, mas somente as direções e as
influência de Locke tenha podido parecer durante um certo
expressões divergentes de uma única potência ativa que é a
íempo predominante, certos limites não deixaram de ser-lhe
força de representação ( Vorstellungskraft).ST
impostos desde o começo pela elaboração sistemática de que a
Quanto à própria representação, não deve ser aqui enten­
psicologia foi objeto por parte de Christian W olff. A psicologia
dida, de maneira nenhuma, como puro reflexo de uma realidade
racional e empírica de W o lff adotou um caminho próprio, em­
exterior mas como energia puramente ativa. A natureza da subs­
bora mantendo-se fiel aos princípios leibnizianos. Ela baseia
a sua doutrina da alma na da espontaneidade, na doutrina da tância, declara Leibniz, reside na sua produtividade, ou seja,

autarcia e da autonomia da mônada, a qual, sem receber nada no poder de engendrar de seu seio séries de representações sem­
do exterior, produz ela própria o seu conteúdo de acordo com pre novas [Portanto, o eu não é o simples teatro das idéias mas
a sua própria lei. H á incompatibilidade entre esse modo de ela­ sua fonte e causa primeira]: fons et fundus idearum pruescriptiu
boração e a idéia de influxus physicus, a própria idéia de " im ­ lege nasciturarum.3’' E nisso que consiste precisamente a sua
pressão" que persiste nas psicologias inglesa e francesa. Segundo verdadeira perfeição: o eu é tanto mais perfeito quanto menos
Leibniz e W olff, uma psicologia que pretende encontrar na im ­ foretn os impedi mente« e as perturbações com que essa livre
pressão o fundamento essencial do psíquico já frustrou a po­ produção manífesta-se nele. Escreve Leibniz em Da sabedoria:
sição inicial da própria questão. Menosprezou o fenômeno pri­ "Entendo por perfeição toda a elevação do ser, pois do mesmo
mitivo da alma, que consiste na ação e não num puro sofrer. modo que a doença é, de algum modo, uma diminuição e uma
A psicologia da ‘'sensação" opõe-se então uma psicologia pura­ queda da saúde, também a perfeição é algo que se eleva acima
mente funcional. N5o se faz jus à verdadeira orientação desta da saúde [ . . . ] Ora, tal como a doença provém de uma função
última quando é considerada e criticada, segundo uma atitude lesada, o que é sabido por quem quer que possua alguns rudi­
muito generalizada, como simples psicologia das faculdades mentos de medicina, a perfeição revela-se, pelo contrário, na
(Vermögens-Psychologie). Com efeito, na doutrina leibniziana. força de agir, visto que, consistindo todo o ser numa certa força.

168 169
quanto maior for essa força mais o ser é eminente e livre. Atém tética, de filosofia da religião. Foi esse ponto de pãrtida original
disso, manifesta-se em cada força, e tanto mais quanto maior ela que preservou a filosofia alemã do século X V I II do perigo do
for o m últiplo a partir do um e no um, na medida em que o um ecletismo. Por mais gravemente que a “ filosofia popular" tenha
rege fora dele e nele representa-se muitas coisas. Ora, a unidade sido exposta a esse perigo, por mais frequentemente que lhe
na pluralidade nada mais é do que harmonia, e í do fato de tenha sucumbido, a ciência e a filosofia sistemática nunca dei­
que tal coisa se harmoniza com ial coisa que decorre a ordem, xaram, porém, de reencontrar o seu caminho graças a essas
da qual decorre a beleza, que desperta 0 amor. Por aí se vé, questões de princípio que Leibniz fora o primeiro a expor com
portanto, como beatitude, prazer, amor, perfeição, essência, força, toda a clareza. Assim é que W o lff foi e continuou sendo desde
liberdade, harmonia, ordem e beleza estão interligados, embora então o praecepíor Germaniae, e o elogio de Kant — de que
sejam pouco numerosos aqueles que verdadeiramente se aper­ ele foi na Alemanha o verdadeiro promotor do espírito de pro­
cebem disso, Portanto, basta que a alma sinta em si uma grande fundidade assume aqui todo o seu valor. 6 também por essa
harmonia, ordem, liberdade, força ou perfeição, e que experi­ razão que Kant não só se vincula, como se sabe, ao pensamento
mente prazer nisso, para que nela seja suscitada uma alegria [ . . . ] alemão mas, além disso, não poderia verdadeiramente encontrar
Essa alegria é estivei e não pode decepcionar nem causar uma alhures os fundamentos da sua problemática e do seu sistema:
tristeza ulterior se se ativer ao conhecimento e for acompanhada porque essa filosofia tinha nitidamente percebido e exatamente
de uma luz donde brota, na vontade, uma inclinação para o determinado a possibilidade teórica mais fundamental de cons­
bem que se chama virtude [ . . . ] Daí resulta que nada serve mats tituir uma imagem do mundo perfeitamente unificada. Para des­
à beatitude do que elucidar o entendimento e exercer a vontade tacar suas direções essenciais podemos apoiar-nos na oposição
para agir, em todas as ocasiões, de acordo com o entendimento, que já encontramos antes. A filosofia francesa e a filosofia in ­
e que cumpre buscar essa luz, muito especialmente, no conhe­ glesa do século X V I I I punham todo o seu cuidado e o seu esforço
cimento das coisas que podem elevar constantemente o nosso na constituição da totalidade do conhecimento filosófico de
entendimento para uma luz mais alta, de modo que daí jorre modo a não haver mais a necessidade — para retomar uma fór­
um progresso incessante em sabedoria e em virtude e, por con­ mula característica de Locke — de tomar emprestado ou men­
seguinte, em perfeição e alegria, cujo proveito subsiste ainda na digar nenhum dos seus fu n d a m e n to s .E r a necessário que todo
alma após esta vida.” 3® esse conjunto assentasse exclusivamente sobre si mesmo e só se
Nesse punhado de fórmulas características, Leibniz traça justificasse per se. Em função dessa exigência de autonomia é
de maneira sucinta o caminho a ser seguido por toda a filosofia que foi rejeitado 0 sistema das idéias inatas: recorrer ao “ inato”
do lluminismo na Alemanha, define o próprio conceito de filo­ não valia mais, ao que parecia, do que recorrer a uma instância
sofia do llum inism o e esboça o seu programa teórico. Essas estranha, do que fundamentar o conhecimento na existência e
linhas realizam em si mesmas uma verdadeira "unidade na m ul­ natureza de Deus. Esse recurso apresentava-se em Descartes
tiplicidade” , porquanto condensam tudo o que o lluminismo com a redução do sentido e do valor do inato à potência cria­
alemão continha em germe e devia realizar mais tarde em ma­ dora de Deus — sendo as idéias e verdades eternas, para ele,
téria de psicologia, de teoria do conhecimento, de ética, de es­ os produtos dessa potência.** No lugar dessa causalidade, en-

170 171
contramos em Malebranche uma união verdadeiramente subs­ rito faz-se espelho da realidade é sobretudo como um espelho
tancial: a visão das idéias e das verdades eternas, a qual deve permanente e vivo da realidade; não como soma de simples ima­
estabelecer e provar a participação imediata do espirito humano gens mas como totalidade de forças imaginantes (bildeitdcn
na existência divina. Quanto à filosofia empírica, tendo rejei­ Krãften). Revelar essas forças, tomá-las conhecidas em sua es­
tado essa forma de transcendência só lhe restava a experienria, trutura específica e fazer entender o mecanismo de sua intera­
a “ natureza das coisas”,a para fundamentar o conhecimento. ção, tal é doravante a verdadeira tarefa fundamental da psico­
Mas essa "natureza das coisas” , por sua vez, ameaça de um logia e da teoria do conhecimento. É a tarefa que o século X V III
outro lado a autonomia do espírito, que doravante deve desem­ alemão vai empreender e tentar levar a bom termo, graças a
penhar tão-somente o papel de um simples espelho e de um pacientes trabalhos especializados. Se í verdade que esses tra-
espelho que apenas pode refletir as imagens, sem as produzir bajhos tendem para a prolixidade e perdem-se, com certa fre­
ou elaborar jamais por sua própria conta. "Nesta parte, o en­ qüência, nessa mesma prolixidade, nem por isso deixam de ter
tendimento é meramente passivo; e se terá ou não esses come­ sua profundidade específica: seja qual for a diversidade dos
ços e, por assim dizer, esses materiais de conhecimento, eis algo problemas, trata-se sempre de fazer valer um princípio deter­
que está fora do alcance do seu próprio poder ( . . . ) Quando ofe­ minado, dc elucidá-lo e de demonstrá-lo sob diversos ângulos.
recidas à mente, o entendimento não pode mais recusar-se a A espontaneidade do eu, descoberta e defendida como uma
ter as idéias simples nem alterá-las quando estão impressas, nem realidade psicológica, prepara agora o terreno paTa uma nova
apagá-las e fazer ele próprio outras novas, da mesma forma que concepção do conhecimento, tal como abre novas tarefas e no­
um espelho tampouco pode recusar, alterar ou obliterar as ima­ vos caminhos para a estética.
gens ou idéias que os objetos colocados diante dele ai produ­ É assim, em particular, que a divisão da âlma em "facul­
zem," « dades distintas já não serve agora unicamente para a análise
Leíbniz opÔe sua própria doutrina a essas duas teorias: empírica dos fenômenos; a partir dela inicia-se e esboça-se o
tanto à da “ transcendência” metafísica quanto à da forma em­ desenvolvimento de uma futura sistemática universal, de uma
pírica da '‘imanência” . Ele salva a exigência de imanência: tudo "fenomenologia do espírito” propriamente dita. Aquele que
o que pertence à mònada deve provir do seu próprio fundo. percebeu e sustentou essa nova aplicação é precisamente o mais
Mas a importância e o rigor que ele confere a esse princípio original e o mais penetrante dos mestres da psicologia analítica.
profbem-lhe não só de se remeter a Deus mas de recorrer até à Os Ensaios filosóficos sobre a natureza humana, de Te tens,
natureza, no sentido habitual do termo. Deixou de ser possível distinguem-se das obras de Berkeley ou de Hume com o mesmo
continuar mantendo uma oposição entre a natureza do espírito título, no plano metodológico, pelo fato de que, não contentes
e a natureza das coisas, com uma dependência unilateral da­ em classificar e descrever os fenômenos da vida psíquica indi­
quele em face destas. “ Aquilo a que chamamos observação da vidual. eles consideram essa tarefa descritiva um mero preâm­
natureza das coisas nada mais é, com freqüência, do que o co­ bulo para uma teoria geral do "espírito objetiva", Não basta
nhecimento do nosso próprio espírito e de suas idéias inatas, considerar o entendimento quando ele se ocupa em reunir expe­
que não há necessidade de procurar no exterior.’’ “4 Se o espí­ riências e em constituir, partindo das sensações, as primeiras

172 173
idéias sensíveis; cumpre também observá-lo quando ele alça monstração, na filosofia alemã do Iluminismo, a arte onde st;
vôo para as alturas, quando elabora teorias e organiza as ver­ concretizam justamente a manifestação e o desenvolvimento desse
dades em forma de ciências, pois i aí que se manifesta a energia microcosmo. É nesse ponto qae intervém, em particular, a dou
superior do poder de pensar. Portanto, é aí que se deve formu­ trina das faculdades da alma, de Mendelssohn, a qual procede
lar a questão das regras fundamentais segundo as quais o en­ também por reconstrução, produzindo imagens mentais diversa­
tendimento edifica obras tão gigantescas quanto a geometria, mente especificadas- a partir das forças que estão na origem
a óptica e a astronomia, Tetens considera a contribuição de dessas imagens. Para distinguir de modo claro e seguro o objeto
Bacon e de Locke, de Condillac, de Bonnet e de Hume perfei­ da arte do do conhecimento teórico, para separar o belo do ver­
tamente inadequadas para a solução dessa questão; eles não en­ dadeiro, Mendelssohn vê-se obrigado a dedicar-lhe uma classe
xergaram, sustenta Tetens. 0 problema do conhecimento racional especial de fenômenos psíquicos. Q objeto belo não é nem o
em sua importância específica; negligenciaram-no quase intei­ objeto do simples saber nem o objeto do simples desejo. Esca-
ramente em proveito do problema do conhecimento sensível.45 pa-nos das mãos se quisermos tratá-lo como objeto de saber,
A mais importante inovação por ele introduzida na doutrina tomá-lo acessível pelo método do saber, pelo processo de aná­
das faculdades da alma, a idéia fundamental com que a enri­ lise e definição, pelas distinções e explicações conceptuais. Mas
queceu. desenvolve-se igualmente nesse mesmo sentido. Quando a sua natureza não nos escapa menos quando o consideramos
exige uma definição precisa do sentimento. que o distinga com apenas de um ponto de vista puramente "prático” , quando o
nitidez da sensação, não se trata de uma idéia que tenha ido abordamos pelo querer e agir: assim que o objeto é visado pelo
buscar à observação interior; ele é levado a essa distinção pela desejo ou esforço, deixa imediatamente de ser um objeto “ belo” ,
consideração de que nos encontramos, num caso e no outro, objeto de contemplação e de fruição artísticas. Partindo dessas
diante de dois modos inteiramente diferentes da relação com o considerações, Mendelssohn é levado a postular uma faculdade
objeto. Se atribuímos a nós mesmos a sensação, a sua função da alma específica e autônoma a que deu o nome de “ faculdade
essencial não consiste, porém, em exprimir o nosso próprio es­ de aprovação” (BilUgunsgsvermõgens). A avaliação e aprovação
tado mas uma qualidade do objeto. N o que se refere ao senti­ do belo não se mistura nenhuma excitação do desejo; “ Parece,
mento, pelo contrário, ele comporta uma relatividade muito antes, ser uma marca distintiva da beleza que seja contemplada
diversa, muito mais radical e puramente subjetiva; tudo o que com um prazer sereno, que nos agrade mesmo quando não nos
sabemos por intermédio dele é que se produziu uma mudança pertence e ainda estamos muito distantes do desejo de a possuir.
em nós mesmos, e aceitamos essa mudança tal como ela se dá Só depois, quando consideramos o belo em sua relação conosco
imediatamente, sem relacioná-la a nenhum objeto exterior. e percebemos sua posse como um bem, é que desperta em nós
Em contrapartida, essa relação nada tem de •'subjetiva'1, o desejo de tê-la, de arrebatá-la, de possuí-la: um desejo que é
no sentido de puramente arbitrária; contém em si, pelo con­ muito diferente da fruição da beleza.” w Assim, a doutrina das
trário, a sua própria regra e a sua própria legalidade, e o senti­ faculdades — é nisso que consiste o seu verdadeiro valor teórico
mento constitui assim um verdadeiro microcosmo, um mundo — não entende fazer pura e simplesmente da psicologia uma
per se: é o privilégio de o fenômeno da arte proceder à sua de­ teoria dos elementos da consciência, sensações e "impressões",

174 175
mas uma teoria que abrange todas as atitudes c condutas psí­ nhuma significação autônoma que possa convir a esse sinal: cie
quicas. São as energias anímicas que se trata de reconhecer e representa somente para a memória, ulterior e indiretamente, o
de descrever em sua «alidade específica e não meramente os que foi originariamente dado na percepção. E quando no lugar
conteúdos psíquicos como dados estáticos, t fácil perceber, desse das idéias das coisas levamos em conta as idéias de relações,
ponto de vista, os estreitos vínculos que unem agora a psicologia nada foi mudado nessa situação, porquanto o espírito não pode
à estética, ou seja, à disciplina onde, depois das Réjlexious cri estabelecer nenhuma espécie de conexão que nào tenha sido ex­
tiques sur la poêsie. la peinture et ia musique (1719), de Dubos, perimentada primeiro na realidade nem pensar verdadeiramente
prevalece esse mesmo ponto de vista energético. Nas reflexões em nenhuma unidsde nem em nenhuma diferença que nãa tenha
e observações de Dubos é permitido ver-se uma confirmaçao sido antes comprovada nos fatos. Ê justamente essa concepção
direta da doutrina leibniziana, segundo a qual toda a alegna que a crítica da psicologia funcional ataca. É ainda Telens
estética está fundamentada na "elevação do ser", na vivacidade quem contesta com extraordinário vigor essa teoria do pensa­
e recrudescimento da intensidade das forças psíquicas. O prazer mento como simples ''substituição de fantasmas". Ê possível,
gerado por esse puro sentimento de viver pode superar ampla­ admite ele, que o pensamento seja suscitado pela impressão
mente a aversão passível de resultar, digamos, dc uma conside­ sensível, pelo dado empírico; contudo, jamais se contentará com
ração do objeto como tal. Escreveu Lessing a Mendelssohn: esse dado nem permanecerá nesse nível. Não lhe basta constituir
“ É inútil dizer-vos que 0 prazer que está ligado a uma deter­ idéias como simples agregados; precisa elevar-se ao nível dos
minação mais forte da nossa energia pode suplantar de longe 0 ideais que é impossível compreender sem a participação da
desprazer que nos causam objetos para os quais fluí essa ener­ "força de criação plástica" (bildenden Dichtkraft). "O s psicó­
gia, ao ponto de deixarmos de ter consciência d is s o ." " E. no logos explicam comumente a criação poética pela decomposição
seu tratado Von der Krajt in den Werken des schõnen Künste e recomposição das representações que foram captadas na sen­
[Do vigor nas obras de arte], Sulzer expõe por sua vez a mesma sação e convocadas pela memória. Sendo assim, a criação poé­
doutrina, esforçando-se, nessa perspectiva, por distinguir a tica seria apenas uma substituição de imagens e nenhuma
energia do pensamento teórico das da contemptaçao estética e representação elementar nova poderia nascer daí para a cons­
do movimento voluntário. ciência." Essa explicação continua sendo, portanto, insuficiente
E eis que a teoria estética intervém uma vez mais, por um para toda e qualquer verdadeira obra de arte. Não se faz jus­
outro lado, na teoria do conhecimento. Ao impor de modo de­ tiça a um Klopstock ou a um Milton "a o pretender-se que as
cisivo os direitos da "im aginação” pura, ao esforçar-se por mos­ imagens criadas pela vitalidade de sua linguagem poética não
trar que a "faculdade poética” é uma faculdade não simples­ são outra coisa senão um amontoado de idéias empíricas ele­
mente combinatória mas originariamente criativa, ela provocou mentares ligadas pela vizinhança ou sucessão imediata". E o
uma profunda mudança no seio da problemática lógica, na mesmo pode ser dito a respeito dos ideais científicos, como os
teoria dos sentidos e da origem das idéias. Para Berkeley, para que encontramos nas matemáticas e em toda a ciência exata.
Hume, para Condillac, a idéia é apenas um acúmulo de im­ Esses ideais tampouco se explicam por adições ou subtrações
pressões ou sua soma ou o stnal que a representa, Nao há ne de sensações individuais, por combinação ou por abstração; são

176 .177
"verdadeiras criaturas da faculdade poéiic8'\ "Vimos ser real­ versais da ffsica nunca são, evidentemente, demonstráveis a
mente esse o caso das idéias gerais da geometria. Mas, na rea­ priori, a partir de simples conceitos. Mas só fundamentando-sc
lidade, todas as outras são da mesma natureza." O processo de numa falsa alternativa é que se imaginará poder concluí r-sc sei*
generalização empírica não basta, portanto, para elevar à cate­ necessário que eles nasçam exclusivamente da indução, ou seja,
goria de idéia pura o que apenas era, no início, uma imagem de uma simples sucessão de observações singulares. Nem mesmo
sensível. As representações gerais sensíveis ainda não são idéias uma let como a da inércia poderia ser inteiramente deduzida
gerais nem conceitos da faculdade poética e do entendimento. e compreendida dessa maneira. " A idéia de um corpo posto em
Nada mais são do que a matéria-prima, e a forma dessas idéias movimento, o qual não age sobre nenhum outro nem sofre a
não poderia ser compreendida nem deduzida a partir daí. No ação de nenhum outro, leva o entendimento a representar-se
entanto, é nessa forma que assenta o verdadeiro rigor, a exatidão que o seu movimento prossegue sem mudança, e mesmo que
de um conceito. “ Seja, por exemplo, a representação de uma tenha sido preciso ir buscar às sensações essa última idéia, a sua
linha curva, fechada sobre si mesma, tornada das sensações vi­ associação com a primeira não é menos a obra da faculdade de
suais; ela recebeu a sua forma característica de cada uma das pensar que, em virtude da sua própria natureza, realiza em
aparências sensíveis que a produziram por sua associação. Mas nós a relação entre essas duas idéias; e a associação realizada em
isso não é tudo. Temos em nosso poder a representação da nós pela ação do entendimento é m uito mais a causa da con­
extensão e podemos modificar à vontade essa extensão ideal. vicção que temos de que o nosso julgamento é verdadeiro do
Portanto, a imaginação dispõe a imagem da linha circular de que a associação de idéias produzidas pelas sensações.1'** De
modo que cada ponto se encontre a igual distância do centro, um modo geral, pode-se dizer que onde quer que uma relação
que nem um só esteja mais distanciado nem mais próximo desse determinada entre idéias seja pensada, o recurso à simples sen­
centro. O últim o retoque é proporcionado nessa imagem pela sação, à impressão passiva, é insuficiente para conceber a idéia
faculdade poética, e o mesmo pode ser dito de todos os nossos de uma relação como tal em sua natureza específica e para
ideais." 48 fundamentá-la em sua própria espécie. £ inegável que tal natu­
E essa extrapolação do dado da impressão sensível, essa reza específica existe: é absolutamente impossível reduzir todas
faculdade de "im aginação” , não limita de maneira nenhuma o as relações e conexões entre os conteúdos de consciência à iden­
seu poder ao domínio da matemática pura. Manifesta-se com tidade e diversidade, à unanimidade e contradição. A sucessão
clareza não menor na elaboração dos conceitos da experiência: das coisas, sua contiguidade, o modo particular de sua coexis­
os conceitos em que se baseia a física teórica não se explicam tência, a dependência de uma coisa em relação a uma outra,
apenas, com efeito, por "combinações de aparências sensíveis". todas essas formas de relacionamento implicam, evidentemente,
Partem, é certo, de tais aparências mas não se detêm aí; ligam- algo mais- do que simples uniformidade ou diversidade. Assim
se-lhes mas transformam-se sob a ação espontânea do entendi­ 6 que se manifestam por toda parte formas de relacionamento
mento. Essa atividade espontânea, não o simples hábito nascido específicas, rigorosamente distintas umas das outras, em que se
da regularidade das sensações, constitui o verdadeiro germe e a pode reconhecer em cada uma delas uma certa direção do pen­
substância das primeiras leis do movimento. Os princípios uni­ samento, um caminho que, por assim dizer, ele adota espon-

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taneamente, sem ser forçado a isso desde o exterior, peta pres­ estabelecer um sistema das formas do pensamento c por subor­
são mecânica das impressões e óo hábito. Aquilo £ que dinar a cada uma dessas formas uma língua de sinais compará­
chamamos julgar e associar, deduzir e concluir é, portanto, algo vel ao algoritmo do cálculo infinitesimal, Nenhum pensamento
distinto de colocar as idéias na sequência umas das outras, algo rigoroso será possível enquanto não conseguir fazer com que a
mais, inclusive, do que perceber entre elas semelhança e har­ toda associação de conceitos corresponda nos sinais uma deter­
monia. "Mesmo sc o raciocínio se explica como o ato de minada operação, com regras universais para todas as operações,
deduzir a semelhança ou a diferença entre duas idéias de sua Lambert quis estender o domínio desse modo de pensamento
semelhança ou de sua diferença respectivas a respeito de uma muito além das fronteiras da geometria pura. pois é um pre­
mesma terceira, essa dedução da semelhança ou da diferença conceito, segundo ele, ter acreditado que as idéias de extensão
a partir de outras relações da mesma espécie não deixa de ser e de grandeza eram as únicas suscetíveis de explicações rigo­
uma atividade própria do entendimento, produção ativa da rosas e de desenvolvimentos dedutivos. A certeza e o rigor des­
idéia de uma relação a partir dc uma outra que representa aigo ses desenvolvimentos não valem apenas para o domínio da quan­
mais [, . .1 do que a mera percepção de duas relações, uma após tidade mas pedem ser igualmente obtidos onde só relações
a outra,” ss qualitativas estão em causa. A partir dessa problemática geral,
No ponto em que nos encontramos, manifesta-se nitida­ Lambert acredita poder marcar também com toda a nitidez os
mente a unidade interna, a consistência sistemática que o pen­ limites da filosofia de Locke e de sua análise das idéias funda­
samento alemão da época iluminista conservou, apesaT de sua mentais do conhecimento. Nao se dispõe a contestar a "anato­
aparente fragmentação em mil problemas especiais, Com efeito, mia das idéias" realizada por Locke; admite que as idéias pelas
de dois lados diferentes, tanto do lado da psicologia quanto do quais queremos exprimir os elementos da realidade não podem
da lógica, não estamos sendo agora remetidos de volta para um ser produzidas só pelo pensamento mas devem ser descobertas
mesmo problema central? As duas disciplinas convergem para a na experiência, O verdadeiro conhecimento da realidade não
mesma questão, a da natureza e da origem da “ idéia de rela­ pode fundar-se sobre um princípio puramente formal, simples­
ção". Enquanto Tetens expõe a questão como psicólogo ana­ mente "pensável" (gedenkbaren), como o "princípio de razão” ;
lista, Lambert faz dela a pedra angular da sua lógica e da sua essa "pensabilidade" (Gedenkbarkeit), ou seja, o perfeito acordo
metodologia geral. Vincula-sc igualmente a Leibniz e sua tarefa das partes num todo lógico, pode pertencer igualmente ao sim­
histórica essencial foi a de redescobrir, de algum modo, certas ples possível. No conhecimento da realidade, pelo contrário,
idéias leibnizianas básicas, em sua originalidade e profundidade lida-se com determinações materiais, “ com sólidos e com for­
próprias. Longe de contentar-se com o quadro tradicional dessa ças", e, para afirmar a existência e a natureza de cada força
filosofia apresentado por W olff e sua escola, ele retoma à pro­ específica, não basta construí-la com a ajuda de conceitos, sendo
blemática inicial de servir a Leibniz de ponto de partida para necessário apoiar-se no testemunho da experiência. Para ela,
constituir o seu sistema. Antes de tudo, é o plano da “ caracte­ cumpre renunciar, portanto, a toda verdadeira definição e dar­
rística universal" que retém duradouramente sua atenção; liga- mo-nos por satisfeitos com a descrição. Devemos, "como bons
lhe diretamente o seu projeto de "semiótica” , esforçar.do-se por anatomistas", reduzir pela análise o dado a seus elementos pri­

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mitivos, sem pretender chegar ao esclarecimento destes últimos que não são contingentes mas necessárias. Sobre todos esses
pela explicação das ídéías. Uma explicação, na medida em que pontos, a teoria da verdade de Lambert é, em suma, o correlato
ela é, de um modo geral, possível, só pode ser dada pelo cami­ lógico do que Tetens tinha estabelecido, como psicólogo, da na­
nho que Locke desbravou, não levando mais longe a elaboração tureza das idéias de relação. Como essas duas correntes distin­
lógica mas demonstrando a origem das idéias simples. Mas as tas da filosofia alemã iluminista conjugam-se finalmente em
coisas cncaminham-se de um outro modo assim que essas idéias Kant, pode-se dizer que é um pensamento que chegou a uma
fundamentais são estabelecidas e que adquirimos, pelo método conclusão relstiva, a qual significa, evidentemente, ao mesmo
prescrito, alguma luz sobre o seu número e a sua ordem, por­ tempo o seu fim e a sua ultrapassagem por um novo princípio
quanto se verifica então que cada uma dessas idéias envolve, e uma nova problemática.
na sua simples compreensão, na sua natureza particular, uma
multiplicidade de outras determinações que são inerentes à sua
natureza e dela decorrem imediatamente. Por conseguinte, não
é indispensável, para desenvolver inteiramente essas determina­
ções, recorrer uma vez mais à experiência. Vamos aperceber-
nos, com efeito, de que essas diversas idéias estão entre elas
em certas relações de compatibilidade ou de incompatibilidade,
de dependência etc., as quais é possível estabelecer pela simples
consideração de sua "essência", O conhecimento dessas rela­
ções como tais é, portanto, um conhecimento rigorosamente in­
tuitivo e apriorístico, em total contraste com o conhecimento
empfrico-dedutivo. E essa espécie de aprioridade, segundo Lam-
bert, não vale somente dentro dos limites da geometria pura.
O que faltou a Locke foi a idéia de procurar para cada uma
das idéias elementares o que os geâmetras procuraram para o
espaço, a demonstração de suas propriedades estruturais por via
dedutiva.®1 È ao que se aplica a “ aletologia” de Lambert, que
quer ser, a exemplo da mathesis utiiversalis, uma teoria getai
da verdade, ou seja, uma tecria das relações e conexões entre
idéias elementares. Além da geometria, ele vale-se, sobretudo,
da aritmética, da cronometria e da forometria puras, extraindo
daí exemplos e documentos em apoio a um certo tipo de ver­
dade que, embora ele deva a sua matéria à experiência, de­
monstra com base nessa matéria a existência de determinações

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NOTAS

1 Voilai«, Lettres sur les anglais. Lettre X III, Oeuvres, Paru, Le-
quien. 1821. X XV I, p. 65.
2 Cf. a esse respeito especial mente a carta de Descartei à condessa
palatina Elisabeth, de 21 de maio de 1643; Oeuvres, ed. Adam-Tan.ierv,
III, p. 665.
3 Para um estudo mais detalhado da idéia de "extensão inteligível'’
em Malebranche, cf, Erkenntniiproblcni, vol, I, pp. 573 e ss,
I Malebranche, Entretiens sur la métaphysique, V, sec, 12 [Em fran-
cês no original: “É um darão da substância luminosa do nosso mestre
comum". N. do T.]
6 Carta a Marcus Herz, de 21 de fevereiro de 1772, Werkv {ed.
Cassírer), vol, LX, pp. 104 e ss.
flCf. Le siècle de Louis X IV , Oeuvres (Lequien), vol. XIX, p. 140.
7 Voltaire, Poésie satyrique: Les systèmes, Oeuvres, vol. XIV, pp. 231.
e ss., assim como Tout en Dieu, comentaire sur Malebranche (1769);
Oeuvres, vol, X X X I, pp. 201 e ss.
8 Hume! Treaüse oj human nature, parte IIL, sec. 2.
s Diderot, Apologie de l’abbé de Prades, scc. XII.
,0 Cf. Locke, Essay on human understandlng, Livro I, cap. 1, sec. 2.
II "Imediatamente depois de Aristóteles vem Locke; pots nio se deve
contar os outros filósofos que escreveram »obre o mesmo assunto." Con-
dillac, " Extrait raisonné du Traité des sensations" (ed, Georges Lyon,
Paris, 1921, p. 32).
15 Cf, Maupertuis, Examen philosophique de la preuve de l'existence
de Dieu employée dans VEssai de Cosmologie, Mémoire de J'Académie de
Berlin, 1756, i XJX e ss.
Locke são conheceu até que ponto temos necessidade de aprender
a tocar, a ver, a ouvir etc. "Todas as qualidades da alma pareceram-lhc
qualidades iDatai e não suspeitou dc que elas poderiam inferir sua origem
da própria sensação." CondíUac, Extrait raisonné, loc. cíl , p. 33.
14CondiIIac, Traité des animaux (1755), cap. 2.
!s Extrait raisonné, loc. cit., p. 31,
16 Locke, Essay on human understanding, Livro II, cap. 21, sec.
30 » ss.
if “Faltava demonstrar, portanto, que essa inquietude £ o primeiro
princípio que nos dá os hábitos de tocar, ver, ouvir, senlir, provar,
comparar, julgar, refletir, desejar, amar, odiar, temer, especar, querer;
que é por intermédio de ta, numa palavra, que nascem iodos os hábitos
da alma e do corpo.*' Extrait raisonné, p. 34.

185
19 Condillac, Traité des animaux, pp. 395 e ss, ** Mauperttiis, Réf Sexions philosophiques Sur Porigine des langues rt
la Mgnijication des mots, sec. X X IV e ss.; Oeuvres, I, pp. 178 e ss.
w Sobre a ligaçSo do cartesianismo com o teatro de Corneille, cf.
G. Lanson, L’Influence de la philosophie cartésienne sur la littérature 37 Cf. por exempio W olff, Psyctiobgia nitionalis, 5 184 e ss.; Psychrj-
logia empirica, 5 I I e passim.
française (cf. acima p. 150).
ÎO Para a distinção de perceptio e de percepturitio c t Leibniz, cf. 38 Leibniz, carta a D e Volder, 24 de março de 1699, Philos. Schriften
em particular a correspondência com Christian Wolff, em edição de (Gerhardt), II, p. 172.
Gerhardt, Halle, 1860, p. 56. 30 Leibniz, Von der Weislleih escritos alemães selecionados e editados
il Voltaife, Traité de métaphysique (1734), cap. VTÏI; Oeuvres {Le- por Gíihrauer, I, pp. 422 e SS.
quien), X X X I, p. 61. 40 Cf. Locke, Essay on human understandlng, Livro I, cap. IV,
22 Diderot, Pensées philosophiques (1746), sec. 1 e ss. § 24 e ss.

38 £ impossível penetrar aqui mais fundo no problema dessa busca 41 Cf. Descartes, Carta a Mersenne, maio de 1630, Oeuvres, ed.
de detalhes; por isso me contento em remeter o leitor para as exposições Adam-Tanmery, I, p. 151: “Perguntais-me In quo genere cmisae Deus
mais completas do problema do conhecimento, as quais serão encontra­ disposuit adernas veritates. Eu vos respondo que é in eodem genere causae
das num outro volume que dedicarei ao mesmo tema. que ele criou todas as coisas, isto é, ui efficiens et totalis causa. Pois é
certo que ele é o Autor tanto da existência quanto da essência das cria­
Éléments de la philosophie de Newton, cap. VII; Oeuvres, vol.
turas; ora, essa essência nada mais 6 do que essas verdades eternas, as
XXX, pp. 138 e ss. quais não concebo emanando de Deus, como os raios do Sol; mas sei
2®Condillac, Traité des sensations, ed. Lyon, p. 33. que Deus é Autor de todas as coisas, e que essas verdades são alguma
IWCf. Berkeley, Principies of human knowledge, sec. 34; Dialogues coisa, e por conseguinte que ele í o seu Autor,"
between fiylas and PhUonons, III e passim. 42 Cf. acima p. 89 e SS.
W New theory of vision, 5 11 [Em inglês no original: "Em sua pró­ 43 Locke, Essay on human understandlng. Livro II, cap. 1, sec. 25.
pria natureza a distância é imperceptível e, no entanto, ela é percebida
44 Leibniz, Nouveaux essais, Livro I. cap. 1, § 21.
pela vista”. N, do T.]
45 Tetens, Phitos. Versuche über die menschliche Natur und ihre
Voltaire, Éléments de la philosophie de Newton, cap. V III (.Oeu­
Entwicklung, Riga, 1777, I, pp. 427 e ss. (Reedição da Kaatgesellschaft,
vres, XXX, p. 147), Berlim, 1913, pp. 416 e ss.)
îO Cf. Diderot, Lettre sur les aveugles, e Condillac, Traité des sen­
48 Mendelssohn, Morgenstunden, Abschn. V II,
sations, parte I, cap. 7, cap. 11 e ss.
■*TA . Mendelssohn, 2 de fevereiro de 1757, Werke (Lachmann-
30 Leibniz, fJovos ensaios sobre o entendimento humano, Livro II, Muncker) X V II, p. 90.
cap. 5. 4S Cf. para o conjunlo, Teiens, Philos. Versuche über die menschl.
31 ponlenelle. Entretiens sur la pluralité des mondes, “Troisième N a lu r. . . ; Primeiro Ensaio, Über die Natur der Vorstellungen, n.° XV ,
soir”, Oeuvres, Paris, 1818, II, p. 44. reedição da Kant-Gesellschaft, pp. 112 e ss. Cf. também Erkenntnis­
32 Pcde-se citar, no âmbito do Ihiminismo alemão, B, Sulzer, por problem, II, pp. 567 e ss.
extmplo; cf. ZergUederung des Begriffs der Vernunft (1758); Vermischle 40 Tetens, Philos. Versuche..., Quarto Ensaio: Über die Denkkraft
philosopbîsche Schriften, I, p. 249: und das Denken, IV (e op. eil., pp. 310 e SS.).
33 Lcssius, Physische Ursacken des Wahren, Gotha, 1775, pp. B e SS.) 50 Op. cit,, Quinto Ensaio: Von der Verschiedenheit der Verhältnisse
56 (cf. Erkenntnisproblem, voL II, pp. 575 e ss.). und der allgemeinen Verhältnisbegriffe (pp, 319 e ss.),
34 Sobre a atitude hesitante de Condillac a respeito do problema da 6- Cf. Lambert, Anlage zur Architectonic oder Theorie des Einfachen
"reaÜdade do mundo exierior", ver para naaiores detalhes a inlroduçSo und Ersten in der philosophischen und mathematischen Erkenntnis, Riga,
de George Lyon à sua edição do Traité des sensations, pp. 14 e ss. 1771, § 10. Para uma exposição mais completa do método de Lambert,
Diderot, Lettre sur les aveugles. Oeuvres, ed. Naigeon, II, p. 218. cf. o nosso Erkenntnisproblem, U, pp. 534 e ss.

186 187

R
IV
A IDÉIA DE RELIG IÃ O

Qual é o traço mais característico do Século das Luzes?


Nada parece mais fácil de responder, segundo 8 idéia tradicional
que dele se fez: a atitude crítica e céptica em facc da religião,
eis 0 que caracteriza a própria essência do Iluminísmo. Mas
desde que se queira relacionar esse ponto de vista rotineiro com
fatos históricos concretos, imediatamente surgem as hesitações,
8$ dúvidas e as mais sérias reservas, pelo menos no que se
refere ao pensamento alemão e inglês. Essa idéia ora pode pas­
sar por defensável a propósito da filosofia francesa do século
X V III, ora representa urr erro grosseiro em relação às outras.
Adversários, inimigos, admiradores e aduladores do Iluminísmo,
todos estão de acordo, porém, nesse ponto. Em suas obras, assim
como em sua epistolografia, Voltaire não se cansa de lançar seu
velho grito de guerra: " Écrasez 1’infâm e!" [Esmaguem a infa­
mei]. E acrescenta prudentemente não ser a fé o que ele com­
bate mas a superstição, não a religião mas o uso solerte que dela
faz a Igreja; entretanto, a geração seguinte, que reconhecerá em
Voltaire o seu mestre espiritual, não se deterá nessas distinções.
O enciclopedismo francês declara guerra aberta à religião, à sua

189
validade, à sua pretensa verdade. Censura-lhe não só ter freado natureza, o código da sociedade e o código da religião. Cada
desde sempre o progresso intelectual mas, além disso, ter se reve­ uma dessas leis tolhe as outras e a si mesma impõe-se restrições;
lado incapaz de fundar uma verdadeira moral e uma ordem po­ por isso jamais se conseguiu estabelecer uma verdadeira harmo­
lítica e social justa. Em sua Politique naturelle, Holbfich retoma nia entre elas. Por conseguinte, em nenhum tempo e em nenhuma
constantemente a esse ponto. A pior das malfeitorias que ele nação ê possível apresentar um homem íntegro, um cidadão
atribui à religião é a de fazer dos homens, na medida em que os íntegro ou mesmo um verdadeiro crente”.3 Uma vez adquirida

leva a temer invisíveis tiranos, verdadeiros lacaios e covardes consciência desse precário estado de coisas, nenhuma reversão,
nenhum compromisso, nenhuma conciliação é mais possível. É
diante dos potentados terrestres, sem forças para tomar nas
preciso escolher entre a liberdade e os grilhões, entre a lucidez
próprias mãos a direção de seu destino.1 O deísmo é, por sua
da consciência e a obscuridade das paixões, entre a ciência e
vez, rejeitado como posição híbrida, ura meio-termo ambíguo.
a crença. E tal escolha não oferece, evidentemente, a menor dú­
Por mais que o deísta, declara Diderot, se esforce por cortar
vida para o homem dos novos tempos, o homem da Era da
uraa dúzia de cabeças da hidra da religião, outras tantas volta­
Razãc, o homem do Iluminismo. Ele renunciará sem hesitação
rão a brotar daquela que ele deixou ilesa.2 Extirpar de maneira
ao socorro vindo do alto, desbravará ele próprio o caminho
absoluta toda e qualquer crença, seja qual for o argumento em
para alcançar a verdade, não pensará que possui essa verdade
que ela se apóie e a forma de que se revista, tal parece ser, em se não a tiver extraído e provado graças às suas próprias forças,
definitivo, o único meio de libertar o homem dos preconceitos
Entretanto, seria uma atitude irrefletida e equivocada con­
e da servidão e de abrir-lhe o caminho da verdadeira felicidade, siderarmos 0 Século das Luzes, baseados apenas nas declarações
"Em vão, ó supersticioso,” — assim faz Diderot a natureza falar
dos seus protagonistas e porta-vozes, uma época profundamente
ao homem — "buscas o teu bem-estar nos limites do mundo irreligiosa e hostil a toda crença. Essa prevenção nos faria correr
onde a minha mão te colocou. Emancipa-te pois do jugo da o risco de ignorar o que ela realizou positivamente de mais
religião, a minha soberba rival, que ignora os meus direitos; elevado. O cepticismo como tal é incapaz de realizações dessa
renuncia a esses deuses usurpadores do meu poder para voltar ordem. O século X V I II não assenta seus propósitos intelectuais
a viver sob o amparo das minhas leis. Retorna, pois, à natureza mais vigorosos e seu característico dinamismo espiritual na re­
de que desertaste. Ela te consolará, ela expulsará do teu coração jeição da fé, mas no novo ideal de fé que ele promove e na
esses temores que te angustiam, essas inquietações que te dila­ nova forma de religião em que ela se encarna. A o Século das
ceram, esses transes que te sacodem, esses ódios que te separam Luzes aplica-se, portanto, em toda a sua profundidade e sua
dos teus semelhantes, a quem deves amar. Quando te entregares verdade, a palavra de Goethe acerca da fé e da descrença. Ao
à natureza, à humanidade, a ti mesmo, espalharás flores ao apontar o conflito da fé e da descrença como o tema de maior
longo do caminho de tua vida". "Se percorrermos a história de profundidade, até mesmo o único tema da história do mundo
todas as nações através dos séculos, verificaremos que o homem e dos homens, ao acrescentar que toda época em que reina a fé
encontra-se submetido sempre a três leis distintas: 0 código da é, para os seus contemporâneos e para a posteridade, brilhante,

190 191
fecunda e estimulante, ao passo que aquela onde a descrença O dogma do pecado original e o problema da teodicébt
proclama o seu mísero triunfo naufraga aos olhos da posteriori-
%
dade porque a ninguém interessa dedicar-se ao conhecimento Em toda essa abundante e freqüentemente confusa literatura
da esterilidade — diante desse dilema goethiano nem por um que o século X V I II dedicou à teologia e à filosofia da religião
instante se pode duvidar de que lado convém situar a época — somente sobre a questão do deísmo o número de panfletos
iluminista. O sentimento que por toda parte a domina é um trocados de uma parte e de ouira é inimaginável — ainda é
sentimento profundamente criador, uma confiança absoluta na possível, no entanto, definir 0 ponto de convergência teórica em
edificação e renovação do mundo. É essa renovação que se tomo do qual o debate gravita. O lluminismo não teve que
espera e exige agora da própria religião. A hostilidade super­ tomar a iniciativa desse problema, porquanto já o encontrou na
ficial em face da religião que nos impressiona na época do herança espiritual dos séculos precedentes e contentou-se em
lluminismo não deve dissimular aos nossos olhos qus todos os abordá-lo com os novos Instrumentos intelectuais que adquirira
seus problemas intelectuais ainda estão intimamente misturados nesse meio-tempo. |á a Renascença pretendera ser não só uma
com os problemas reljjiiosoi que destes recebem constantes e restauração da Antiguidade Clássica e do espírito científico mas
poderosos impulsos. Cui.i efeito, quanto mais se sente a insu­ também uma transformação, uma renovatio da religião. A reli­
ficiência das respostas fornecidas até então pela religião para gião que ela tinha em vista era uma religião de adesão ao mundo
as questões fundamentais do conhecimento e da moral, mais ( Weltbejahung) e de afirmação do espírito, concedendo a ambos
essas questões se impõem com intensidade e paixão. A luia que seus respectivos valores específicos, descobrindo o verdadeirc
se trava já não gravita somente em tomo dos dogmas e de sua seio do divino não na depreciação ou no aniquilamento do m un­
interpretação mas em torno do modo de certeza da religião, não do e do espírito mas em sua exaltação. Assim se estabeleceu esse
apenas em tomo do conteúdo da fé mas das modalidades e da deísmo universal que se propagaria um pouco por toda a parte
direção da fé como tal. Portanto, não é à dissolução da religião na teologia de inspiração humanista dos séculos X V I e X V II,
que se dedicam com todas as suas forças, principalmente no Essa teologia tem raizes na idéia de que a essência do divino só
quadro da filosofia alemã, mas a fundamentá-la e a aprofundá-la pode ser apreendida no conjunto de suas manifestações e de
num sentido " transcendental". Esse esforço explica a especifi­ que, per conseqüência, possui um sentido e um valor inalienável
cidade da religiosidade da época iluminisla, suas tendências e autônomo. O ser absoluto de Deus não pode exprimir-se em
tanto negativas quanto positivas, tanto a sua fé quanto a sua nenhuma forma e em nenhum nome, porquanto formas e nomes
descrença. Cumpre, antes de tudo, apreender a unidade que liga são modos de limitação, inadequados, nesse sentido, para a essên­
esses dois momentos, reconhecer a sua reciprocidade, para per­ cia do infinito. Mas a recíproca, justamente, não é menos verda­
ceber-se em sua unidade real o desenrolar histórico da filosofia deira: uma vez que toda a forma particular está igualmente
da religião no século X V llf: um movimento que parte de um distanciada da essência do absoluto, todas as suas formas, por
foco de pensamento bem-cstabclccido para atingir um fim ideal outra parte, estão igualmente próximas dele. Toda e qualquer
perfeitamente determinado. expressão do divino, desde que seja em si mesma autêntica e

192 193
verídica, deve medir-se, aferir-se pelas outras; elas são equiva­ divina: devia acontecer no seio do trabalho e do desenvolvi­
lentes entre si, na medida em que, em vez de designar a própria mento dc espirito humano.'*
essência, indicam-na somente em figuras, em símbolos. £ possível, Mas essa religião humanista encontrou na Reforma um
de Nicolau de Cusa a Marsílío Fiei no, e deste a Erasmo e a adversário implacável. A Reforma, parece, condiz com a Re­
Tomas More, acompanhar o desenvolvimento e o constante re­ nascença no tocante a conferir um novo valor e uma nova sanção
forço desse espírito religioso humanista. Nos primeiros decênios religiosa à vida terrena. Tende igualmente para uma interiori-
do século X V I, parecia que esse desenvolvimento tinha chegado zação, para uma espirítuaiização do conteúdo da fé. E essa espi-
a seu termo, que estava fundada uma "religião dentro dos lim i­ rituaüzação não se limita ao eu, ao sujeito religioso: e!a estende-
tes da humanidade". Ela não opunha hostilidade alguma nem se ao ser do munde, coloca-se numa nova relação com o centro
cepticismo algum, em face do dogma cristão, esforçando-se, pelo de certeza da fé. Eis que o mundo deve ser agora justificado
contrário, por compreender e interpretar o próprio dogma de pela certeza da fé. À exigência ascética de negação do mundo
maneira a fazer dcln a expressão da nova consciência religiosa, opõ-se doravante a exigência de transformação do mundo. Essa
É na própria idéia do Cristo que Nicolau de Cusa vê realizada transformação deve rcalizar-se pelo trabalho no seio da profis­
a sua concepção fundamental da hutnuniias. A hutnanitas do são, na ação exercida no âmbito da ordem social secular, Mas se
Cristo converte-se no vínculo do mundo e na prova suprema da Humanismo e Reforma se encontram, em certo sentido, num
sua unidade interior, visto que só ela lançou uma ponte sobre terreno comum, conservam-se, porém, muito separados em suas
o fcbismo entre o infinito e o finito, entre o princípio criador e razoes profundas. A fé do reformador permanece, em sua origem
o ser criado. O universalismo religioso assim fundado permite, e em seus fins, estranha aos ideais religiosos do Humanismo.
portanto, envolver o universo em novas formas de vida inte­ O âmago do conflito pode-se definir numa expressão: o pecado
lectual, as quais nasceram no decorrer da Renascença, e reinter- original, a propósito do qual o Humanismo e a Reforma têm
pretá-las de um ponto de vista filosófico. Ele abre-se do mesmo posições radicalmente diferentes. O Humanismo, bem entendi­

modo para as matemáticas, as novas ciências e a cosmologia, ao do, jamais usou atacar frontalmente o dogma da queda original,
mas toda a sua orientação espiritual tende a abrandar o rigor
fundar — contra Santo Agostinho c a Idade Média — uma
do dogma, a privá-lo de sua força. Com uraa nitidez cada vez
doutrina profundamente nova do sentido da história. Tudo isso
maior, percebe-se no pensamento religioso do Humanismo a
parecia então possível com base na religião, parecia realizado
penetração do espírito pelagianisfa; de um modo cada vez mais
não contra a religião mas graças a ela. Com essa nova am pli­
consciente, esforça-se por rejeitar o rude jugo da tradição agos-
tude, parecia que a religião revelava, finalmente, sua verdadeira
tiniana. O retorno à Antiguidade não devia tardar era alimentar
e essencial profundidade. O problema da reconciliação do ho­
o conflito: recorre-se à doutrina platônica do Eros e à doutrina
mem com Deus, que tinha sido o que estava em jogo na luta
estóica da autarcia da vontade contra a doutrina agostiniana
dos grandes sistemas escolásticos t de toda a mística da Idade da corrupção radical da natureza humana e de sua incapacidade
Média, apresentava-se agora sob uma nova luz. Essa reconcilia­ para voltar de moto próprio ao divino. O universalismo religioso
ção deixou de scr esperada exclusivamente da eficácia da graça para o qual o Humanismo tendia não podia ser salvo numa

194 195
lhará perante Deus: pelo contrário, arroga-se direitos, ou espera
outra base; não se podia fundamentar de outro modo umn reve­
ou, pelo menos, deseja a ocasião, o tempo e a obra que lhe
lação que não fosse saída de uma pregação singular, limitada
permitirão atingir finalmente a salvação. Mas aquele que não
no espaço e no tempo, da palavra divina." Mas 0 protesto in­
duvida de que tudo depende da vontade de Deus, esse não
transigente do sistema reformado lcvanta-sc contra essa amplia­
deposita mais a menor esperança em si mesmo, não escolhe nem
ção doutrinal. A fé na qual vivem c morrem os reformadores é
elege mais os homens mas espera tudo da eficácia divina; esse
a fé no caráter único e absoluto da palavua. bíblica. O interesse
é o que está mais perto da graça que deve salvá-lo."
que dedicam ao mundo em nada podia atenuar essa fé: a fé e
o mundo são postulados, ambos, por essa mesma palavra. A Assim, o veredicto da fé reformada abateu-se sobre a fé
Bíblia, em sua transcendência, sua autoridade sobrenatural e humanista — e foi em vão que o século X V I I I tentou lutar
absoluta, é o único objeto a que sc pode associar a certeza da conlra esse julgamento. Sem dúvida, os ideais da Renascença
salvação. O "individualism o" religioso representado pela Refor­ continuavam vivos; ainda encontravam, sobretudo no domínio

ma permanece, portanto, inteiramente ordenado em função de da filosofia, defensores e campeões. Mas todos os grandes mo­
realidades puramente objetivas que o ligam ao m undo sobre­ vimentos religiosos da época contrariavam suas tendências. Toda
natural." E quanto mais tende a confirmar essas ligações, mais esperança estava perdida de uma religião universal como a con­
cebida por Nicolau dc Cusa e expressa em De pace fidei: no
se vê conduzido de volta à interpretação agostiniana do dogma,
o qual retoma, tanto em Lutero quanto em Calvino, seu lugar tugar da paz da fé sobreveio a mais rude e mais implacável das
na base e no cerne do sistema da teologia. A ruptura com 0 guerras religiosas. E a vitória, por toda parte, nessa guerra,

Humanismo é então inevitável. Consuma-se com um rigor c uma parecia decretar um retrocesso para o mais inexorável dogma­

lucidez implacáveis no De servo arbítrio, de Lutero. Ao defen­ tismo. Se é verdade que Hugo Grotius na Holanda e a Escola

der, ainda que com certa prudcncía, a liberdade humana, ao de Cambridge na Inglaterra tentavam reencontrar o espírito da
Renascença, o efeito imediato desses esforços nâo foi além de
bater-se pela autarcia e autonomia da vontade, a qual não teria
um quadro relativamente estreito. Grotius sucumbe ao ataque
sido inteiramente corrompida pela queda original. Frasmo expri­
do goma ri 5mo, que pretendia derrotar o arminianismo holandês:
me nada menos, segundo Lutero, do que o mais óbvio cepticismo
Cudworth e More não podem resistir mais à pressão do purita-
religioso. Não existe erro mais perigosa do que crer numa inde­
nismo e do cafvimsmo ortodoxo. Sem dúvida, a obra desses pen­
pendência do homem, que seria considerado uma potência autô­
sadores não foi esté ri], quer no plano da religião quer no plano
noma a respeito da graça divina, sem o menor poder para
da história das idéias: ela abriu o caminho para a teologia do
opor-se ou cooperar. Cumpre distinguir rigorosamente entre a
Iluminísmo, À teologia do século X V I II está, com efeito, clara­
potência de Deus e a nossa, entre a obra de Deus e a nossa,
mente consciente dos seus vínculos com a história universal. A
pois dessa distinção depende o nosso autoconbecimento, assim
objeção que se opõe com tanta freqüência ao século X V I I I , a
como o conhecimento c a glória de Deus. "Enquanto um homem
de que ele se autoproclamou o "começo dos tempos“, a de que
estiver convencido de que ainda pode fazer algo pOT sua salva­
menosprezou e subestimou as grandes realizações do passado,
ção. por pouco que seja, ele manterá a confiança em si mesmo
cai aqui no vazio. Semler, um dos mais influentes teólogos da
e não alimentará o desespero em seu fntiino; tampouco se Tiumi-

19?
196
época na Alemanha, manifesta um verdadeiro espírito de critica Jansênto sobre Agostinho, a problemática pascaliana une-se uo
histórica — cujos elementos descobriu na investigação bíbli­ agostinismo. Entretanto, 0 que separa Pascal de Agostinho, o
ca — ao reconhecer e exprimir os vínculos históricos que o unem que o faz ser reconhecido como um pensador dos tempos, é a
aos seus predecessores. Em sua luta contra a ortodoxia, ele forma e o método da demonstração. Esse método está impreg­
vale-se diretamente de Erasmo, a quem considera o verdadeiro nado do ensino de Descartes, tenta levar até os derradeiros mis­
fundador da teologia protestante. De novo são apresentadas, com térios da fé o seu ideal racional, o ideal da verdade clara c
toda a clareza, as velhas questões: autarcia da razão, autonomia distinta. D aí provém a paradoxal mistura de temas: o conteúdo
do querer moral. Mas exigem doravante respostas independentes doutrinal que Pascal pretende demonstrar nos Pensamentos faz
de toda a autoridade exterior, da Bíblia e da Igreja. Somente o mais extremo contraste com o modo da demonstração. A tese
então se quebrou o poder do dogmatismo medieval: o agosti- que ele sustenta é a da impotência radical da razão, incapaz por
nísmo deixa de ser atacado em suas conseqüências, em seus si mesma da menor certeza, que só pode chegór à verdade re­
efeitos imediatos, passando a sê-lo em seu princípio, em seu nunciando a ela própria e submetendo-se imeiramente, sem re­
centro vital. A idéia de pecado origina! é, com efeito, o alvo servas, à fé. Mas, justamente, Pascal não pretende exigir ou
comum que utie em sua luta as diversas tendências do pensa­ pregar a necessidade dessa submissão: quer prová-la. Não se
mento iluminista. Hume bate-se ao lado do deísmo inglês, Rous- dirige ao crente mas ao descrente; aborda-o no seu próprio ter­
seau ao lado de Voltaire: parece que, por algum tempo, a fim reno, fala na sua língua e serve-se das suas armas. Todo o equi­
de abater esse inimigo comum, nada resta das diferenças e d i­ pamento da moderna lógica analítica, que Pascal domina melhor
vergências. do que ninguém, que ele mesmo utilizou e levou à sua perfeição
Consideremos, em primeiro lugar, o problema no seio da suprema nos seus trabalhos matemáticos, deve ser agora adaptado
vida intelectual francesa, onde ele adquiriu seu aspecto mais à exposição e ao desenvolvimento dos problemas da religião.
agudo e encontrou suas fórmulas mais expressivas. Com uma Avança para a solução desses problemas com os mesmos meios
perfeição que só podia ser alcançada pelo espírito analítico fran­ que já utilizara na solução de problemas geométricos, a propó­
cês, todos os aspectos que o problema continha foram destaca­ sito das seções cônicas, de um problema de física experimental,
dos e cada um deles desenvolvido a ti as suas extremas conse­ no seu Tratado do vácuo. A observação exata dos fenômenos e
qüências. As diversas abordagens possíveis são dispostas face a o poder da hipótese devem uma vez mais, no presente caso,
face, formando uma antítese muito simples, e dessa antítese re­ determinar a decisão. Não temos outro meio, não necessitamos de
sultou, como um desfecho óbvio, a solução dialética. O problema qualquer outro meio para resolver o debate. O físico, a fim de
do pecado original é apresentado, uma vez mais, na filosofia solucionar o problema apresentado por uma força da natureza,
francesa do século XV IT l, por um de seus pensadores mais pro­ não dispõe de nenhum outro recurso senão examinar as suas
fundos. Descobrimo-lo, exposto com extraordinária clareza, uma manifestações, fazê-las dar seu testemunho ordenando-as siste­
austeridade e uma força ímpares, nos Pensamentos de Pascal. maticamente; não existe outro método para decifrar o mistério
Dificilmente se pode dizer que, depois de Agostinho, 0 seu con­ da natureza humana. A primeira coisa que se deve exigir dc uma
teúdo se haja modificado; graças à mediação da grande obra de hipótese é que se harmonize com os fenômenos e os explique

198 IW
todos. Esse postulado, "salvar os fenômenos" ( a<t>Cetv rà A natureza humana só é concebível por esse inconcebível com
<paivójiiva ), não vale menos para a teologia do que para a que nos deparamos em sua profundidade. Assim são invertidos
astronomia. E é aí que Pascal espera o seu adversário, que aguar­ todos os critérios respeitantes â forma lógica, "racional”, do co­
da o céptico e o descrente. Se estes rejeitam a solução da religião, nhecimento. Logicamente, explica-se o desconhecido reduzindo-o
se se recusam a admitir a doutrina do pecado original e da "dupla ao conhecido: aqui, é o conhecido, o dado, a existência imedia­
natureza” do homem, é a eles que cabe então fornecer uma ex­ tamente vivenctada, que se explica mediante uma causa inteira­
plicação mais verossímil. No lugar do duplo devem colocar o mente desconhecida. Mas precisamente esse retorno dos instru­
simples, no lugar da discordância, o acordo. Mas essa pretensa mentos e dos critérios racionais nos ensina que atingimos um
unidade, justamente, e esse acordo logo entram em conflito ra- limite, limite não contingente mas necessário, não subjetivo mas
dica] com tudo o que a existência humana nos oferece. Onde objetivo do conhecimento. Não é uma debilidade do nosso en­
quer que o homem, com efeito, apresente-se a nosscs olhos, o tendimento, da nossa compreensão intuitiva das coisas (unserer
que vemos? Não um ser completo, em harmonia consigo mes­ Einsicht), o que nos impede de chegar ao conhecimento ade­
mo, mas um ser dilacerado, dividido, vergado ao peso das con­ quado do objeto: é o próprio objeto que desafia toda a raciona­
tradições. Essas contradições são os estigmas da natureza hu­ lidade, que contém em si uma antinomia absoluta. De fato, todo
mana. Desde o momento em que quer compreender a sua posição 0 critério racional é, como tal, imanente: o que significa que a
no mundo, o homem vê-se colocado entre o infinito e o nada, na forma racional da nossa compreensão das coisas consiste em
presença de ambos, impotente para decidir se períence a um ou concluir de uma essência determinada e constante, da “natureza"
ao outro. Erguido acima de todas as coisas, desce abaixo de cada de uma coisa, as propriedades que necessariamente lhe perten­
uma delas; é o seT mais sublime e o mais rejeitado: tudo neíe cem. Nesse caso, porém, estamos lidando com uma natureza que
conjuga potência e impotência, grandeza e miséria. A sua cons­ de imediato se nega a si mesma; aqui, é a imanência que, a par­
ciência não se cansa de propor-lhe um fim que, em sua condição, tir do instante em que tentamos apreendê-la pura e simples­
ele jamais pode atingir: nessa vontade de se superaT e nas perpé­ mente, nega-se a si mesma e converte-se em transcendência.
tuas recaídas consome-se toda a sua existência. Não poderíamos “ Quem destrinçará este imbróglio? A natureza confunde os pir-
escapar a esse conflito que se manifesta em todos os fenômenos rònicos e a razão confunde os dogmáticos. Em que te converterás,
da natureza humana, e o único meio de explicá-lo consiste em pois, ó homem, que procuras apurar qual é a tua verdadeira
transpô-lo do plano fenomenal para a sua fonte inteligível, dos condição através da tua razão natural? [. . .] Reflete, pois, sober­
fatos para o seu princípio. O problema da dupla natureza irre­ bo, sobre o paradoxo que tu mesmo és. Humilha-te, razão impo­
dutível do homem só se resolve se se recorrer ao mistério da tente; cala-te, natureza imbecil: aprende que o homem trans­
queda. De súbito, por esse mistério, toma-se claro tudo o que cende infinitamente o homem, e escuta do teu mestre a tua
no começo parecia mergulhado em impenetrável escuridão. Se verdadeira condição, que ignoras. Escuta D eus!” 7
é verdade que essa “ hipótese” continua sendo em si mesma um Essas fórmulas pascalianas íriam apresentar à filosofia fran­
mistério absoluto, também constitui, por outro lado, a única cha­ cesa do século X V I II o mais difícil e o mais radical dos pro­
ve que nos pode abrir as verdadeiras profundezas do nosso ser. blemas. Os filósofos defrontavam-se aí com um adversário a sua

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altura, com o qual nSo podiam evitar medir-se se quisessem dar que possa parecer, à primeira vista, a atividade humana, incnpnz
um passo adiante, por menor que fosse. Se era impossível que­ de ater-se a um resultado adquirido, passando sempre dc um fim
brar nesse ponto a vertigem da transcendência, se o homem de­ a outro, saltando incessantemente de uma iniciativa para oulra,
via ser e manter-se "transcendente em relação a si mesmo”, toda não é nessa diversidade, entretanto, que ela revela a sua verda­
explicação “natural" do mundo e da existência estava de ante­ deira intensidade e toda a potência de que é capaz? É justa­
mão prejudicada. Compreende-se, nesse caso, por que a filoso­ mente na extensão, no desdobramento espontâneo de todas essas
fia francesa do Iluminismo voltava incessantemente aos Pensa­ forças diversas que eíe sente em si mesmo que o homem é tudo o
mentos de Pascal, como sob o efeito de uma compulsão interior, que pode e deve ser: “ Essas pretensas contrariedades, a que
para fazer com tanta freqüência dessa obra c teste de suas fa­ chamais ccntradições, são os ingredientes necessários que en­
culdades críticas. Através de todas as etapas da carreira de es­ tram no composto do homem, que é, como o resto da natureza, o
critor de Voltííire teve prosseguimento a crítica de Pascal, inicia que deve ser."
essa crítica com a sua primeira obra filosófica, as Cartas sobre Mas essa filosofia do senso comum não í a última palavra
os ingleses t meio século depois, ele retorna a esse trabalho de de Voltaire sobre a questão. Por pouco que ele se debruce sobre
sua juventude para complelá-lo e expor novos argumentos.9 En­ os argumentos de Pascal, percebe-se claramente que estes nunca
frentando o desafio pascaliano, ele proclama que vai sustentar a deixam de perturbá-lo. De fato, no ponto em que estamos, a
causa da humanidade contra o “sublime misantropo". Entretan­ simples negação deixa de ser suficiente: espera-se da filosofia
to, quando se examina um por um os seus argumentos, chama das Luzes, exige-se dela, uma decisão clara e positiva. Uma vez
a atenção o fato de que ele procura evitar a luta aberta. Voltaire, que rejeita o mistério do pecado original, ela é solicitada a situar
com efeito, tem o cuidado de não seguir Pascal até 0 centro pro­ alhures a causa e a origem do mal, a reconhecer e demonstrar
priamente religioso do seu pensamento, até o mais profundo da sua fonte mediante, exclusivamente, as forças da razão. Diante
sua problemática. Ele quer manter-se à superfície da existência do problema metafísico como tal, parece que, sobre esse ponto,
humana, mostrar que essa superfície basta-se a si mesma, ex­ não existe, de fBto, escapatória possível: duvidar do dogma só
plica-se a si mesma. A seriedade pascaliana, ele opõe suas con­ nos faz mergulhar ainda mais profunda e inexoravelmente no
siderações irônicas e jocosas, à profundidade mística, a volubi­ enigma da teodicéia. Esse enigma subsiste para o próprio V ol­
lidade do mundano. Recorre a um "senso com um ", que converte taire, paja quem a existência de Deus é uma verdade rigorosa­
em juiz das sutilezas da metafísica. Aquilo a que Pascal cha­ mente demonstrável. Eu existo, logo algo necessário e eterno
mava as contradições da natureza humana é apenas, para Vol­ existe é uma proposição que nada perdeu, para ele, de sua força
taire, a prova de sua riqueza, de sua plenitude, de sua variedade e de sua evidência.® Assim, uma vez que o nó górdio da teodi-
e mobilidade. Sem dúvida, ela nada tem de “ simples” , no sentido céia permanece intato, como poderemos escapar à conclusão de
em que se poderia atribuir-lhe uma existência determinada, pres­ Pascal de que "o nó da nossa condição faz seus entrelaçamentos
crever-lhe uma carreira fixa, porquanto se abre incessantemente nesse abismo"? 10 Voltaire sempre rechaçou o otimismo como
a novas possibilidades. Mas essa versatilidade quase ilimitada doutrina metafísica e via na solução de Leibniz e Shaftesbury
não é, para Voltaire, a sua fraqueza mas a sua força. Por díspar apenas uma ficção mitológica, um “ romance".11 Quem pretender

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que tudo está bera é um charlatão: confessemos a existência do I.. . ,a verdadeira sabedoria
mal sem acrescentar ainda aos horrores da vida u absurda com­ Ÿ, saber fugir da tristeza
placência de negá-lo.12 Se Voltaire declara-se aqui favorável ao Nos braços da volúpia.]
cepticismo teórico, contra a teologia e a metafísica, nem por isso Voltaire ainda não quer ser mais do que o apologista do
deixa de ser atingido, ainda que indiretamente, pelos golpes da seu tempo: apologista do luxo requintado, do bom gosto, da
argumentação pascaliana a que ele se propunha refutar. £ m todo volúpia liberada de todos os preconceitos,54 Mais tarde, sem dú­
caso, se se considerar o resultado a que Voltaire chegou, vemo-lo vida, voltou atrás a respeito dessa glorificação do prazer — por
exatamente no ponto onde se encontrava Pascal, cuja conclusão ocasião do terremoto de Lisboa de 1755, retratou-se expressa-
pessoal, incansavelmente aprofundada, era de que 8 filosofia menie. O axioma tout est bien, como tal, como enunciado dou­
como tal, de que a razão, desde que queira contar exclusivamente trinal, é rejeitado em termos absolutos.16 Insensata ilusão, a de
consigo mesma, sem o mínimo apoió da revelação, desaguará fechar os olhos para os males cuja presença nos acossa de todos
necessariamente no cepticismo: " O pirromsmo é o verdadeiro,"**1 os lados; não há outra saída senão fixar o olhar no futuro, es­
Tcndo-se assim despojado ele próprio de todas as suas armas perar que este nos traga a solução de um enigma que, de mo­
contra o cepticismo sobre a questão da origem du mal, vê-se mento, nos é impenetrável: “Un jour tout sera bien, voilà notre
agora empurrado para os seus últimos entrincheinimemos, Re­ espérance; tout est bien aujourd'hui, voilà l'illusion," lUm dîa
gistra iodas as respostas e a todas rejeita, Sehopenhauer valeu-se tudo estará bem, eis a nossa esperança; tucio está bem hoje, eis a
com cerla predileção do C cmelide de Voltaire, do qual quis fazer ilusão,] Voltaire adere aqui. portanto, a um compromisso —
a arma por excelência da luta contra o otimismo, Mas. na ver­ compromisso que se impõe tanto em teoria quanto no plano
dade, Voltaire não é mais um teórico do pessimismo do que um ético. O mal moral também é inegável: sua justificação consiste
teórico do otimismo, A sua posição sobre o problema do mal em ser inevitável, dada a própria natureza do homem. Sem as
não surgiu de nenhuma doutrina determinada; ela não pode e fraquezas humanas, a nossa vida estaria condenada à im obili­
não quer ser mais do que a expressão do humor passageiro com dade, porquanto os mais vivos impulsos da nossa existência nas­

o qual ele aborda o mundo e o homem. Esse humor admite toda cem, precisamente, dos nossos instintos e das nossas paixões,
portanto, de um ponto de vista ético, dos nossos defeitos, Vol­
a espécie de matizes — compraz-se precisamente nesse jogo de
taire encontrou a fórmula mais impressionante de sua visão do
matizes. Em sua juvenlude, Voltaire ignora todo o acesso de
n’undo c da vida no seu conto filosófico Le monde comme il va,
pessimismo. Defende uma filosofia puramenle hedonista, para a
vision de liabouc (1746). Babouc recebe do anjo lturicl a ovdem
qual a ''justificação1' da existência consiste em abandonar-se a
de ir è capital do reino para observar aí a vida c os costumes: o
todos os prazeres e em esgotá-los até o fim. Parece-lhe tão pe­
scu julgamento decidirá se a cidade devo ->cr arrasada ou pou­
noso quanto fútil esforçar-se por adquirir uma outra sabedoria;
pada, Ele descobre a cidade em suas fraquezas, seus defeitos, suas
[ .. .] Ui véntuble sagesse
mais graves deficiências morais mas, ao mesmo tempo, em todo
fist de savoir }uir la tris lesse
o brilho dc sua civilização e todo o refinamento de sua vida
Dans les brai de la volupté.
social. E emite a sliíi sentença. Pelos mais hábeis ourives da ci-

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dade, manda forjai uma estatueta composta de todos os metais, fixa, estabelecer uma escala determinada pela qual se possa afe­
desde os mais preciosos aos mais vis, para levá-la a Ituriel. “De­ rir os diversos valores de prazeT e de desprazer. No ponto em
sejarias quebrar esta bela estatueta, porque ela não é inteira­ que se estava, a questão consistia toda ela em realizar a síntese
mente feita de ouro e diamantes?", perguntou a Ituriel. O anjo metódica dessa bipolaridade: orientar o curso dissimulado das
compreendeu: "Decidiu nem mesmo cogitar de corrigir Persé- sensações de prazer e desprazer para a racionalidade, encontrar-
polis, e deixar correr o mundo como ele está: pois, disse ele, se lhes uma fórmula exata. Tudo o que faltava, aparentemente,
nem tudo vai bem, tudo é passável." Mesmo no Candide, onde para que esse objetivo fosse alcançado era a associação da psi­
ele esmiuçou o otimismo em todos os seus traços, Voltaire não cologia e da matemática, da observação empírica e da análise
se desviou desse sentimento. Não podemos escapar ao mal nem conceptual. Essa é a síntese tentada por Maupertuis no seu
podemos extirpá-lo. Mas devemos deixar o mundo seguir o seu Essai de philosophie morale. Partindo de uma certa definição de
curso, tanto o mundo físico quanto o moral, e adotar nele uma prazer e desprazer, ele procura representá-los de tal forma que
posição tal que nunca possamos deixar de lutar contra ele: pois seja possível atribuir-lhes diretamente um valor quantitativo de­
essa é a fonte de toda a felicidade de que o homem é capaz. terminado, compará-los em termos numéricos. O conhecimento
Essa mesma incerteza, que se evidencia na atitude de V ol­ do mundo físico depende do princípio da redução das diferen­
taire a respeito do problema da teodicéia, é igualmente obser­ ças qualitativas que assinalamos entre os fenômenos a diferenças
vada nos outros pensadores do século X V I II . A lileratura a res­ puramente quantitativas; o princípio é o mesmo para os fenô­
peito desse problema é quase inesgotável: ele continua sendo menos psíquicos. A heterogeneidade que os dados imediatos da
visto como o verdadeiro problema fundamental que deve decidir expericncia vivida manifestam não nos dispensa de estabelecer
da sorte da metafísica e da religião, £ por isso que se está sem­ sua homogeneidade conceptual. D o mesmo modo, por diversas
pre voltando a ele, sem que, em boa verdade, o problema tenha que sejam as modalidades de prazer e desprazer, algo de co­
sido muito enriquecido, no fundo, com esses múltiplos debates. mum , entretanto, lhes pertence: uma certa intensidade e uma
Retoma-se constantemente os argumentos de Leibniz, reinter- certa duração determinadas que elas possuem, tanto umas quan­
pretados de m il maneiras, mas não se faz nenhum esforço para to ou iras. Se conseguirmos submeter à medição esses dois ele­
compreendê-los na unidade viva dos conceitos e dos princípios mentos, estabelecer a relação segundo a qual a grandeza do todo
fundamentais da sua filosofia. O espírito sistemático desemboca manifesta uma dependência da grandeza dos seus elementos cons­
no ecletismo com uma freqüência cada vez maior.1® Surge um tituintes, o caminho estará aberto para uma solução; seria pos­
novo tema: a psicologia empírica apodera-se do problema e pro­ sível, nesse caso, proceder a um cálculo das sensações e dos
cura tratá-lo com os seus próprios meios. Parece abrir-se utn sentimentos que nada teria a invejar ao rigor dos cálculos efe­
caminho: a questão de saber se o prazer ou a dor predomina na tuados em aritmética, geometria, física. Assim, o problema de
existência humana despoja-se de sua antiga nebulosidade e as­ uma "matemática das grandezas intensivas", de uma mathesis
senta agora numa base científica mais sólida, Se se pretende intensorum, aquele que foi concebido por Leibniz a propósito
resolver, em definitivo, essa questão, é impossível contentar-se da questão da nova análise do infinito, apresenta-se agora até no
com uma apreciação vaga; é necessário encontrar uma medida domínio da psicologia. A lei que Maupertuis procura formular

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aqui é rigorosamente análoga aos princfpíos da estática e da di­ das emoções.1®A objeção verdadeiramente decisiva de Kant con
nâmica. Para fazer um cálculo dos elementos de prazer e des­ tra esse método só se manifesta de forma válida, entretanto, em
prazer, é necessário partir do falo de que sua grandeza depende, sua própria fundamentação da ética. De fato, a crítica kantiana
por um lado, de sua força e, por outro, do tempo durante o qual devia minar de uma vez por todas o edifício argumentativo da
eles estão presentes c atuam na alma. Uma dupla intensidade filosofia popular do século X V I II , no tocante ao problema da
numa duração simples pode, portanto, apresentar globalmente (eodicéia. Ao rejeitar o eudemonismo cotno fundamento da ética,
o mesmo resultado de uma intensidade simples numa dupla priva o calculo do prazer e do desprazer de toda significação
duração. De um modo geral, pode-se definir a grandeza de um positiva, moral ou religiosa. Doravante, é em outra esfera que
estado feliz ou infeliz como o produto da intensidade do prazer se debaterá a questão do valor da vida. ' Ê muito fácil decidir
e do desprazer com a duração de um e de outro. Apoíando-se sobre o valor que teria a vida se ela fosse unicamente avaliada
nessa fórmula, Maupertuis tratou então de avaliar logo, ecn ter­ em termos de fruição (ou seja, do fim natural da soma de todas
mos comparativos, os sistemas éticos segundo o seu valor de as inclinações, a felicidade). Esse valor cairia abaixo de zero;
verdade. Tudo bem considerado, esses sistemas só se distinguem com efeito, quem jria querer recomeçar uma vida nas mesmas
pelo tipo de cálculo de felicidade em que cada um deles se ba­ condições, ainda que mesmo de acordo com um novo plano
seia- Todos nos querem oferecer uma prescrição sobre a melhor elaborado por si (mas em harmonia com o curso da natureza) e
maneira de chegar ao "bem supremo", que consiste em fazer exclusivamente assente na fruição? [ . . . ] Portanto, subsiste ape­
produzir na vida a maior soma possível de felicidade. Mas uns nas o valor que nós próprios atribuímos à nossa vida, não sim­
querem alcançar esse resultado através do aumento e acumula­ plesmente porque o fizemos mas porque o fizemos, de maneira
ção de bens, ao passo que outros querem evitar os inales e infor­ intencional, independentemente da natureza, de tal modo que a
túnios. O epicurista esforça-se por aumentar a soma de prazeres, própria existência da natureza só possa constituir um fim sob
o estóico por reduzir a de desprazeres; um ensina que a finali­ essas condições."
dade da existência é alcançar a felicidade; o outro, que é a de A filosofia popular da época do Iluminismo não tinha a
evitar a infelicidade.17 Esse cálculo, como um todo, levou Mau­ maturidade necessária para pensar em tal finalidade para além da
pertuis, de resto, a um resultado pessimista: na vida comum, dimensão de prazer e desprazer. Somente dois pensadores se­
verifica-se que a soma dos males prepondera constantemente tecentistas conceberam essa mesma idéia, proveniente de duas
sobre a dos bens.18 Numa de suas obras pré-crfticas, o Ensaio direções diferentes, que assim prepararam indiretamente a pro­
para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, blemática kantiana e que, num certo sentido, pressentiram-na.
Kant remete-nos para o cálculo de Maupertuis, sem deixar de Graças a eles, o problema da teodicéia não só foi tratado de uma
lhe combater tanto os resultados quanto o método, O problema nova maneira mas, sobretudo, adquiriu uma nova significação
assim apresentado, afirma cie, é insolúvel para 0 homem por­ teórica. A metafísica tinha, nesse ponto, esgotado todas as suas
que só podem ser levadas em conta as sensações da mesma es­ possibilidades numa série de tentativas estéreis; atingira um li­
pécie, ao passo que nas condições complexas da vida todos os mite em que não havia, para ela, qualquer futuro nem um recuo
estados afetivos são diferentes por força da própria diversidade possível. Para evitar remeter-se uma vez mais o saber à fé, para

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não o mergulhar de novo no abismo do irracional de que falava nização determinada, em seu devir e em seu movimento uma
Pascal, só restava um caminho: convocar a ajuda de outras for­ ordem e uma regra rítmicas: eis o fenômeno primordial que
ças intelectuais e confiar-lhes a sorte do debate. Para chegar ao prova de imediato a sua origem puramente espiritual, “super­
centro do problema da teodicéia, o pensamento do século X V I II sensível Os sentidos como tais não são capazes de explicar
deve realizar, pois, uma espécie dc desvio. Em vez de partir de esse fenômeno e ainda menos de compreender a sua origem
uma explicação metafísicoteológica, da análise da essência di­ última. Aí onde os sentidos agem sozinhos, ende as relações
vina para daí concluir, por via dedutiva, os diversos atributos que estabelecemos entre o mundo e nós próprios assentam uni­
de Deus, em vez de se mergulhar, portanto, na essência do ab­ camente nas necessidades e impulsos sensíveis, o reino das for­
soluto, ela dedica-se doravante a desenvolver inteiramente todas mas ainda não é acessível. Assim, todo o conhecimento da
as energias constituintes, criadoras, que o eu contém em si. £ o forma das coisas é vedado ao animal, porque os objetos do seu
único caminho de que se pode esperar uma solução imanente — meio só agem sobre ele como excitantes, para despertar-lhe os
uma solução que não force o espírito a ultrapassar seus próprios instintos e ocasionar-lhe certas reações. Com efeito, esse conhe­
Hmites. E eis que de novo se manifestam os dois temas funda­ cimento não é nele despertado sob a ação do desejo, da ativi­
mentais que irão adquirir, no movimento das idéias do século dade imediata, mas pela força da intuição pura — uma intuição
X V I II , uma importância cada vez maior e uma consciência cada que permanece pura de toda e qualquer tentativa de apossar-se
vez mais clara de sua especificidade. Por um lado, é o problema do objeto, de mcmopolizá-!o. Shaftesbury viu nessa faculdade de
estético, por outro, o problema do direito e do Estado que assu­ pura contemplação, nesse prazer que se conserva puro de todo o
me a liderança desse movimento, Nenhum dos dois parece estar, “interesse”, a força primitiva em que assenta toda a fruição da
nem um pouco, em estreito contato ou em ligação com o pro­ arte, assim como toda a criação artística. Ê nela que o homem
blema da teodicéia e, no enfanto, verifica-se que a partir de am­ é verdadeiramente ele próprio, é graças a essa faculdade que ele
bos produziram-se uma transformação característica e um apro­ participa na felicidade suprema, a única felicidade que lhe é
fundamento desse mesmo problema. O primeiro pensador a atra­ outorgada. Assim foram radicalmente subvertidos todos os cri­
vessar aqui a ponte foi Shaftesbury. Fundou uma filosofia que térios, todos os valores que temos o hábito de aplicar ao exame
não só comporta uma parte estéfica de grande importância teó­ do problema da teodicéia _ Vê-se, como efeito — e vê-se por
rica mas, sobretudo, uma filosofia em que a estética constitui quê — , que o simples cálculo dos bens e dos males no mundo
a verdadeira chave do conjunto. Segundo Shaftesburv, a questão fica necessariamente muito aquém do sentido autêntico e pro­
da natureza da verdade não se separa da da beleza: as duas fundo desse problema. O coníeúdo da vida não deve defínir-se,
juntam-se em sua raiz e principio útlimo. Toda beleza ê ver­ a esse propósito, por sua matéria, mas por sua forma. Não de­
dade — do mesmo modo que toda verdade, em sua própria pende do grau de prazer que a vida nos concede, mas da ener­
substância, percebe-se e concebe-se graças ao sentido da forma, gia pura das forças criadoras pelas quais ela se dá um conteúdo.
ou seja, ao sentido da beleza. Toda a realidade participa na for­ Ê nessa direção que Shaftesbury procura a verdadeira "teodi­
ma; longe dc ser uma massa informe e desordenada, ela possui céia", isto é, a justificação definitiva da existência; não na esfera
uma proporção interior, conserva em sua existência uma orga­ do prazer e da dor mas na do livre esboço interior, da criação

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regida por um protótipo c ura arquétipo puramente espirituais. 0 ponto onde a questão da verdadeira significação da existência
Essa criação promeléica, que supera dc longe a simples fruição humano, de sua felicidade ou de sua miséria, pode ser final­
e em nenhum ponto lhe é comparável, revela-nos a verdadeira mente sclucionada. Tal é a visão das coisas que ele encontrou
divindade do homem e, por conseguimc, a divindade do todo.11 no estudo e na crítica das instituições políticas. D iz ele nas
Mas é por um outro caminho, numa direção perfeitamente Confissões; Vi que tudo dependia radicalmente da política c
original do pensamento do século X V l l l, que somos conduzidos que, fosse qual fosse o ponto dc vista que se adotasse, nenhum
desde que consideremos a posição de Rousseau a respeito do povo jamais seria senão aquilo que a natureza do seu governo
problema da teodicéia,” £ um personagem da estatura de nada o fizesse ser; assim, essa grande questão do melhor governo
menos que um Kant para reconhecer expressamente em Rous» possível parecia-me reduzir-se a isto: qual é a natureza do go­
seau o mérito de ter, nesse domínio, transposto a última etapa. verno próprio para formar um povo que seja o mais virtuoso,
“ Newton foi o primeiro a ver a ordem e a regularidade unidas o mais sensato, enfim, o melhor, se tomarmos essa palavra no
à perfeita simplicidade onde, anies dele, não se descortinavam seu sentido mais am plo?" Uma nova norma foi assim aplicada
senão desordem e confusa diversidade: e, desde então, os come­ 5 existência humana: em vez da simples exigência de felicidade,
tas deslocam-se em trajetórias geométricas. Rousseau foi o pri­ a idéia dc direito e de justiça social, reconhecida como a ver­
meiro a descobrir, sob a diversidade das formas convencionais, a dadeira medida da existência humana, como a escala de valores
natureza profundamente escondida do homem e a lei secreta se­ em função da qual ela deve ser vivida. E o emprego desses
gundo a qual suas observações justificam a Providência. Antes, novos critérios levou primeiro Rousseau a um julgamento extre-
tinha-se por válidas as objeções dc Alphonsus e de Manes. De­ ma mente negativo. Todos aqueles bens que a humanidade ima­
pois de Newton e Rousseau, Deus está justificado e daqui em gina ter adquirido no transcorrer de sua evolução, esses tesouros
diante a doutrina do Papa é verdadeira”,2S Essas fórmulas são, pretensamente acumulados, os da ciência, das artes, as alegrias
à primeira vista, difíceis de interpretar: não se encontra em de uma existência nobre e requintada, tudo isso é reduzido a
Jean-Jacques Rousseau, por assim dizer, nada que possa ser in ­ nada pela crítica inexorável de Rousseau. Ao invés de esses bens
terpretado como um debate explicito, como uma explicação ra­ terem podido renovar o valor e o conteúdo da vida, eles apenas
cional do problema da teodicéia, comparável à que encontramos a distanciaram cada vez mais da sua fonte primeira e, em defini­
em Leibniz, Shaftesbury ou Pope. A originalidade, n verdadeira tivo, alienaram-na inteiramente do seu sentido autêntico. Desse
importância de Rousseau, reside num outro domínio mui lo dife­ ponto de vista, no -quadro que ele traça das formas de vida
rente: não é ao problema de Deus mas ao problema do direito tradicionais e convencionais, da existência do homem na socie­
e da sociedade que o seu pensamento, como um todo, se dedica. dade, Rousseau concorda surpreendentemente com Pascal. Ele
No entanto, foi precisamente através dele que Rousseau nos foi o primeiro pensador do século X V I II que, de novo, toma a
apresentou uma perspectiva e uma abordagem novas. Foi o pri­ sério as acusações pascalianas, que lhes avalia todo o peso. Em
meiro, sem dúvida, a elevar 0 problema acima do plano da vez de as enfraquecer, de as lançar na conta, como fez Voltaire,
existência individual para situá-lo expressamente no nível da do humor masoquista de um misantropo irrealista, Rousseau re­
existência social. Foi aí que Rousseau acredita ter descoberto toma ao âmago da questão. A descrição apresentada pelos Pen-

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sarnentos de Pascal da grandeza e da miséria do homem reencon­ Portanto, Rousseau concede a Pascal todas as premissas em
tra-se, traço por traço, nas primeiras obras de Rousseau, no que este fundamentou a sua argumentação. Jamais procurou em­
Discurso sobre as aríes e as ciências e no Discurso sobre a de­ belezar ou enfraquecer; tal como ele, descreve o estado presente
sigualdade. Tal como Pascal, Rousseau apenas vê nas bagatelas da humanidade como o estado da mais profunda degradação.
com que a civilização dotou os homens futilidades e bens ilu­ Contudo, ora reconhece o fenômeno donde partiu Pascal, ora se
sórios. Como ele, insiste no fato de que toda essa riqueza apa­ recusa a admitir as explicações propostas pela metafísica mís­
ratosa não tem outro papel senão o de cegar o homem para a sua tica e religiosa de Pascal. Seus sentimentos, ianto quanto seu
pobreza interior. O homem só se refugia no mundo, na socie­ pensamento, revoltam-se contra a hipótese de uma perversão
dade, numa multidão de ocupações e divertimentos díspares original da vontade humana. Para ele, como para toda a sua épo­
porque não suporta a sua própria presença, porque ver-se, con- ca, a idéia de pecado original perdeu toda força e todo valor.
templar-se a si mesmo o espanta e o enche de medo. Toda essa Sobre esse ponto, ele não combateu o sistema ortodoxo menos
agitação incessante e vã é fruto do pavor que o repouso lhe severa e radicalmente do que o fizeram Voltaire e os pensadores
causa. Pois se ele pudesse ficar quieto por um instante a fim de da Enciclopédia. Foi justamente a esse propósito que se pro­
adquirir verdadeiramente consciência de si mesmo, de reconhe­ duziu entre ele e a doutrina eclesiástica um conflito implacável e
cer tudo o que é, o homem entregar-se-ia ao mais profundo de­ um rompimenfo definitivo, No julgamento que pronunciou sobre
sespero. Quanto às forças que no estado atual, empírico, da so­ a obra de Rousseau, a Igreja logo destacou, com toda a lucidez,
ciedade aproximam e unem os homens, o julgamento de Rousseau essa questão central como o único ponto verdadeiramente crí­
tampouco é diferente do de Pascal. Insiste continuamente nesse tico. A carta pastoral por meio da qual Christophe de Beaumont,
ponto: em nenhuma parte existe um ethos primitivo, uma von­ arcebispo de Paris, condena o Emtiio, enfatiza, com efeito, que
tade de viver em comum numa unidade verdadeira, nenhuma a tese de Rousseau, sustentando que os primeiros instintos da
natureza humana são sempre inocentes e bons, encontra-se em
simpatia natural une os homens entre sí. Todos os vínculos
absoluta contradição com tudo o que as Escrituras e a Igreja
sociais não passam de mera ilusão. Amor-próprio e vaidade, von­
sempre ensinaram a respeito da natureza do homem. Rousseau
tade de dominar o outro e de estar sempre em posição de des­
enfrenía, com efeito, um dilema a que, aliás, não tenta escapar.
taque, tais são os verdadeiros grilhões que retêm a sociedade
Pois se reconhece o faio de que o homem ê "degenerado” , se des­
hum ana.24 "Todos, com um belo verniz de palavras, empe­
creve essa degeneração com um rigor cada vez maior e cores
nham-se em ludibriar os outros sobre os seus verdadeiros propó­
cada vez mais sombrias, como não lhe reconhecer a causa, como
sitos; ninguém é enganado e nem um só é tão íolo que se iluda,
furtar-se à conclusão de que o homem é “ radicalmente m au"?
embora todos falem como ele. Aparentemente, todos buscam a Rousseau desfaz-se desse dilema com a introdução da sua dou­
felicidade, ninguém se preocupa com a realidade. Todos empe­ trina da natureza e do "estado de natureza". Em todo o jul­
nham seu ser na aparência; todos, escravos e vítimas do amor- gamento que formulamos sobre o homem, cumpre-nos distinguir
próprio, não vivem para viver mas para fazer crer que vi­ sempre com o maior cuidado se o nosso enunciado refere-sc ao
veram . "2r> homem da natureza ou ao homem da cultura — se se trata do

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"homem natural” ou do "homem artificial". Enquanto Pascal responsabilidade exclusiva por essa espécie de amor-próprio. P,
explicava as contradições insolúveis que u natureza humana nos d!a que faz do homem um tirano contra a natureza c contra si
apresenta dizendo que, de um ponto de vista metafísico, está­ mesmo. Desperta necessidades e paixões que o homem natural
vamos lidando com uma dupla natureza, para Rousseau essa jamais conheceu e coloca-lhe nas mãos os recursos sempre novus
dupla natureza e o conflito que daí resulta residem no próprio para saciá-las sem limites nem freios. A sede de dar o que falar
seio da existência empírica, no desenvolvimento empírico do ho­ de si, a ânsia de se distinguir dos outros: tudo isso nos toma
mem. Foi esse desenvolvimento que obrigou o homem a sub* incessantemente estranhos a nós mesmos, tudo isso nos trans­
meter-se ao jugo da sociedade, condenado-o assim a todos os porta, de certo modo, para fora de nós mesmos.26 Mas essa
males morais, alimentando nele todos os vícios, orgulho, vai­ alienação estará verdadeiramente inscrita na natureza de toda
dade, sede inextinguível de poder. "Tudo está bem” — diz sociedade? Não será possível conceber uma comunidade real­
Rousseau no começo do Emílio — "ao sair das mãos dc Autor mente humana que não tivesse necessidade de recorrer à força,
das coisas; tudo degenera nas mãos dos homens." Portanto, Deus à cupidez e à vaidade, que se alicerçasse inteiramente na sub­
é desculpado e a responsabilidade dos males cabe unicamente missão de todos a uma lei reconhecida interiormente como coer­
ao homem. Mas essa culpa pertence a esfe mundo, não ao “ além “, civa mas necessária? Tais são as indagações que Rousseau for­
não é anterior à existência histórica empírica da humanidade, mula e que tratará de resolver no Contrato social. Na suposição
apareceu ao mesmo tempo que esta: por isso é que devemos de que desmorone a forma opressiva de sociedade que prevale­
buscar exclusivamente nesse terreno a solução e a libertação. ceu até os nossos dias e de que no seu lugar surja uma nova
Nenhum socorro vindo do alto, nenhuma assistência sobrena­ forma de comunidade ética e política, uma sociedade em cujo
tural pode propiciar-nos essa libertação: somos nós próprios seio cada utn, em vez de estar submetido à arbitrariedade di
quem deve concretizá-la e encontrar a resposta. Essa conclusão outrem, somente obedecerá à vontade geral que ele conheceria c
indicará a Rousseau c novo caminho que ele percorrerá até reconheceria como sua — não teria soado a hora da libertação?
0 fim em suas obras políticas, sem se desviar jamais do rumo Mas é em vão que sc aguarda ser emancipado desde fora. Ne­
traçado. A teoria ético-política de Rousseau situa a responsabi­ nhum deus nos trará a alforria: todo homem deve tornar-se 0
lidade num lugar onde, até então, ninguém imaginara sequer seu próprio salvador e, num sentido ético, o seu próprio criador.
procurá-la. O que constitui a verdadeira importância histórica e A sociedade, sob a forma que ainda prospera, infligiu à hum a­
o valor sistemático de sua leoria é o fato de que ela criou um nidade suas feridas mais cruéis: é ela quem pode e deve curar
novo sujeito de "im putabilidade”, que não é o homem individual essas mesmas feridas pela sua própria renovação. Tal é a solução
mas a sociedade humana. O indivíduo como tal, ao sair das que a Filosofia do direito de Rousseau oferece para o problema
mãos da natureza, ainda não está em condições de escolher entre da teodicéia.27 Foi ele, de fato, quem situou 0 problema num
o bem e o mal. Abandona*se ao seu instinto natural de conser­ terreno inteiramente novo, fazendo-o passar do plano da metafí­
vação; é dominado pelo “amour de soi", mas este ainda não se sica para c centro da élica e da política.
converteu em amor-próprio (amour propre), o qual só se com­ Detenhamo-nos aqui por um instante a fim de examinar,
praz e só se mitiga na opressão de outrem. A sociedade tem a uroa vez mais, em seu conjunto, o desenvolvimento do problema

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da teodicéia no século X V I II : um traço fundamental, simulta forma específica de cada uma delas, a contribuir para a M ia
neamente muito genérico .e muito característico do pensamento determinação com uma participação decisiva. Portanto, ttão se
dessa época, logo se destaca, a saber, que o século X V I I I não rompeu totalmente a relação entre a idéia de Deus, por urna
formulou espontaneamente o problema da teodicéia. £ um pro­ parte, e, por outra, as idéias de verdade, moralidade e direito,
blema que ele herdou dos grandes sistemas do século X V II e mas o sentido dessa relação foi mudado. Produziu-se, de certo
que lhe foi transmitido sob uma forma condicionada por esses modo, uma "mudança de sinal": a idéia fundadora passa à con­
sistemas. De fato, parece que Leibniz, muito especialmente, ti­ dição de fundada (Begründeiett) e o que até então servia para
nha esgotado todas as possibilidades conceptuais — a filosofia justificar é agora o que exige uma justificação. E, finalmente,
do Iluminismo nada acrescentou de essencial às suas idéias nem a própria teologia do século X V I I 1 é arrastada nesse movimento.
às suas perspectivas teóricas. É por isso que e!a ainda fala intei­ Ela renuncia de moto próprio ao primado que até então reivin­
ramente a linguagem da metafísica, serve-se de conceitos elabo­ dicava para si: em yez de situar no absoluto a ordem de valores,
rados pela metafísica, Mas dentro dessa concha formal instau- submete-se a certas normas provenientes de outros domínios, for­
ra-se progressivamente um conteúdo novo. Partindo do domínio necidas pela "razão" na medida em que esta representa a tota­
da teologia c da metafísica teológica, o problema adquire uma lidade das forças espirituais independentes. Assim se consumou,
orientação intelectual especificamente nova. Essa mudança in- nesse domínio, a ruptura com o dogma do pecado original. A
lerna realiza-se à medida que o conteúdo concreto da cultura rejeição desse dogma constitui a marca característica da nova
espiritual da época iluminista penetra no problema e transfor- orientação da teologia do Iluminismo, tal como se desenvolveu
ma-o a Longo prazo. Assim se realiza, no domínio das "ciências especialmente na Alemanha, onde se encontram os seus repre­
morais”, o mesmo processo de "secularização" que já observa­ sentantes mais importantes. Todos consideram a idéia de um
mos no domínio das ciências da natureza. As idéias teóricas peccatum originale transmitindo-se de geração em geração corao
elaboradas peia metafísica do século X V II ainda estão forte­ perfeitamente absurda, uma ofensa aos princípios mais elemen­
mente lastreadas no pensamento teológico, com toda a sua ori­ tares da lógica e da ética. O que é deveras notável é que, de um
ginalidade e independência. Para Descartes e Malebranche, para modo geral, eles não abandonaram nem um pouco o terreno da
Spínoza e Leibniz, não existe nenhuma solução do problema da dogmática como tal. Mesmo naqueles que tentam salvar os ele­
verdade que não tenha a mediação do problema de Deus\ o co­ mentos constitutivos dessa dogmática à custa de algumaa modi­
nhecimento da essência divina constitui o princípio supremo do ficações e reinterpretações, a idéia de que o homem perdeu todo
conhecimento donde decorrem, por via dedutiva, todas as outras o poder por sua queda, que sem a graça divina ele é incapaz de
certezas. Ora, no pensamento do século X V I II , o centro de gra­ exercer o bem e a verdade, é rechaçada sem hesitação. A polê­
vidade da questão desloca-se: a física, a história, o direito, o mica contra Santo Agostinho prossegue, pois, ao longo de toda
Estado, a arte escapam cada vez mais à dominação e à tutela essa literatura "neológica”, cujo tom sobe à medida que o tempo
da metafísica e da teologia tradicionais. Essas disciplinas dei­ passa.28 Reimarus, em sua Apologia, empenha toda a sua energia
xaram de esperar que a idéia de Deus as ratifique e legitime; para sustentar que o ato de pecado reside nos pensamentos, nos
pelo contrário, são propensas a modelar essa idéia segundo a desejos ou nas obras, que ele está rigorosamente ligado, portan­

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to, à consciência do atuante e não poderia transmitir-se samente na presença de nossa incerteza e de nossas lacunas. Mas
fisicamente, passar de um sujeito a outro. £ a mesma coisa vale essa limitação não apresenta, na realidade, nenhum perigo —
para a salvação e a justificação: assim como outrem não pode por muito pouco que tenhamos consciência dela. A ciência corri­
cometer por mim uma falta grave, tampouco pode adquirir por ge por si mesma as faltas que comete, em virtude do seu pro­
mim o mérito moral. No desenvolvimento interno do protestan­ gresso interno, e os erros em que ela pode envolver-nos eliminam-
tismo uma importante mudança foi assim realizada. Num certo se naturalmente, desde que a deixemos seguir seu curso de
sentido, o combate prossegue entre Lutero e Erasmo mas, dessa maneira espontânea. M uito mais graves são os erros que, etn
vez, pendendo a favor do último. A profunda ruptura que tinha vez de surgirem de uma insuficiência de saber, têm por causa
oposto a Renascença e a Reforma, o ideal humanista de liber­ uma falsa direção da pesquisa. O que mais se deve temer não
dade e de dignidade humana, vê-sc dessarte reparada. A época é a falta mas a perversão. E essa perversão — inversão e falsi­
iluministfl ousa de novo valer-se desse postulado fundamental ficação dos verdadeiros critérios científicos — sobrevém quando
que deflagrara, sob a égide da Renascença, a luta contra os gri­ pretendemos antecipar o objetivo a alcançar, fixá-lo antes da
lhões da Idade Média. Assim se realiza essa concepção em que investigação. O inimigo da ciência não é a dúvida mas o dogma.
Hegel, em sua Filosofia da história, vê a essência autêntica e a O dogma não é a ignorância pura e simples mas a ignorância
verdade do protestantismo. Ao reconciliar-se com o Humanismo, que sc arvora em verdade, que quer impor-se como verdade:
0 protestantismo converteu-se na religião da liberdade. Enquan­ eis o perigo que ameaça verdadeiramente o conhecimento em
to o conflito em torno do dogma do pecado original devia con­ suas estruturas mais profundas. Pois já não se trata, nesse caso,
duzir na França a uma rigorosa separação da reügião e da filo­ de um erro mas de uma impostura, não de uma Ilusão involun­
sofia, a idéia de protestantismo podia transformar-se na Alema­ tária mas de uma mistificação na qual o espírito caí por sua
nha até absorver as novas correntes intelectuais e as atitudes própria culpa e na qual se enterra cada vez mais profundamente.
mentais que as tinham engendrado, até desmontar e abandonar E essa regra não é válida apenas para a ciência mas também
a forma histórica do protestantismo herdada do passado para para a fé. Com efeito, o que verdadeiramente sc opõe à fé não
melhor valorizar a pureza do seu ideal primitivo.*® é a incredulidade mas a superstição; pois esta afeta as próprias
raízes da fé, poluí a fonte donde jorra a verdadeira religião.
Vemos, portanto, que a ciência e a fé enfrentam um adversário
A idéia de tolerância e a fundaçác da “ religião natural” comum: não existe tarefa mais urgente do que a luta a travar
contra esse adversário, É necessário que ciência e fé estejam
Ê um princípio geral da filosofia iluminísta, centenas de unidas nessa luta: somente na base de seu mútuo acordo será
vezes citado sob diversas formas e com diversos propósitos, que possível repartir seus respectivos valores e determinar suas fron­
os mais graves obstáculos com que nos deparamos na busca da teiras respectivas,
verdade não são as insuficiências do nosso saber. Por outro lado. Bayle é o primeiro pensador a adotar nitidamente essa po­
não há dúvida de que o nosso saber sofre com tais insuficiên­ sição. No seu Dictionnaire historique et critique, ele realizou
cias, de que cada passo em frente da ciência nos coloca peno­ a obra fundamental na qual todos os trabalhos ulteriores deviam

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ir buscar seus princípios e suas justificações. É aqui que o Eles já aparecem nitidamente em Descartes, ao lançar as pedras
cepticismo de Bayle se enraíza e que ele revela sua verdadeira fundamentais do raciona! ismo. Descartes, com efeito, parte do
fecundidade, sua significação eminentemente positiva: "N ão sei princípio de que o conhecimento humano está sujeito às mais
se não se poderia assegurar que os obsláculos dc um bom exame diversas ilusões, mas tem a obrigação de evitar que essas ilusões
vêm menos de que o Espírito está vazio de Ciência do que de o desviem do caminho da verdade e o façam mergulhar no erro.
estar repleto de preconceitos." Dessa frase, que se encontra no Pois a ilusão provém dos sentidos ou da imaginação, ao passo
verbete "Pellison” do Dictiom aire, poder-se-ia fazer a divisa de que o erro significa uma falta de julgamento, e que o julga­
toda a sua obra. Bayle acha por bem não tocar no conteúdo da mento é uma livre operação do entendimento, a quem cabe toda
fé — evita ioda e qualquer crítica explícita desse conteúdo. A a responsabilidade pelo ato de julgar. Só do entendimento de­
atitude que ele combate com todas as suas forças é aquela para pende ceder ao impulso dos sentidos, abandonar-se às seduções
a qual todos os meios são bons para consolidar a fé, aquela que da imaginação ou recusar-se a anuir àquele ou a estas, Ele pode
amontoa confusamente verdades e quimeras, lucidez e precon­ e deve, se os dados de que dispõe são insuficientes para consti­
ceito, razão e paixão, pondo como única condição que sejam uti­ tuir um verdadeiro julgamento e atingir uma perfeita certeza,
lizáveis, de uma maneira ou de outra, no inLeresse superior da deixar em suspenso a sua decisão. Somente no caso de julgar com
obra apologética. Com tais procedimentos, o conteúdo da fé não precipitação, de deixar-se levar a pronunciamentos sem dispor
é salvo mas destruído, porquanto esse conteúdo só pode subsistir de premissas completas, é que irá fatalmente cair no erro e na
em sua pureza. O mal fundamental que cumpre combater não incerteza, que não são apenas defeitos do entendimento mas
é, portanto, o ateísmo mas a idolatria, não a descança mas a refletem, sobretudo, uma vontade defeituosa. É à vontade que
superstição. Essa máxima de Bayle é uma antecipação da tese cabe dirigir o curso do conhecimento, e a vontade possui o meio
central do encíclopedismo francês em matéria de crítica religiosa. de evitar todos os passos em falso, que é ter sempre presente
Diderot refere-se-lhe assiduamente. No artigo "Pirronismo" da essa regra universal e absoluta de só pronunciar julgamentos ali­
Enciclopédia, ele declara que Bayle (em poucos concorrentes na cerçados em idéias claras e distintas. Ao reassumir o princípio
arte dos raisonnements e, sem dúvida, nenhum que o supere. cartesiano, o Iluministno é levado a postular a regra que, segun­
Embora acumule dúvidas sobre dúvidas, não pára de progredir do Kant, contém a essência autêntica da Aufklärung', “ O Ilumi-
segundo um plano metódico; um ariigo do seu Dicionário é um nismo representa o homem saindo da condição de menoridade
pólipo vivo que a si mesmo se fragmenta numa porção de outros cm que se mantinha por sua própria culpa. A menoridade é a
pólipos, todos vivos e que se geram uns aos outros. O próprio incapacidade de servir-se do seu entendimento a não ser sob a
Diderot não se cansa de repetir que a superstição c ura pior des­ direção de uma outra pessoa. Diz-se que está em condição de
conhecimento de Deus e uma ofensa mais grave contra Deus do menoridade por sua própria culpa quando a causa não é o defei­
que o ateísmo, no sentido de que a ignorância está metios longe to do entendimento mas só lhe falta a decisão e a coragem
da verdade do que o preconceito.™ Compreender-se-á melhor o para usá-io sem ser dirigido por quem quer que seja. Sapere
sentido e o conteúdo desse enunciado se recordarmos os pressu­ aude\ Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimen­
postos metodológicos e episícmológicos em que ele se baseia. to! Tal é a divisa do Ilum inism o." 81 Essa divisa explica por

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que a filosofia do Ilumtnísrao julga e aprecia de modo diferente última ordejn, é possível encontrar uma forma de defesa da tole­
as diversas circunstâncias suscetíveis de engendrar o erro. Todos rância que se resolve num indiferentismo puro e simples. No
os fracassos que o conhecimento sofre não são faltas: há aqueles conjunto, é a tendência inversa a que predomina: o princípio
que apenas exprimem os limites da nossa própria natureza e de liberdade de crença e de consciência é a expressão de uma
que, portanto, são necessários e inevitáveis. Esse ser a quem o nova força religiosa positiva que, para o Sécuio das Luzes, é
próprio Deus impôs certos limites intransponíveis, como poderia realmente determinante e característica. A consciência religiosa
ele responsabilizá-lo por manter se dentro dos limites que assim adquire uma nova forma, a fim de se afirmar de modo claro e
lhe foram designados e por não almejar a onisciêncía? Temos firme. Essa forma não podia realizar-se sem uma inversão com­
que responder, não por tais limitações do nosso saber mas, pelo pleta do sentimento religioso e dos fins da religião. Essa mudan­
contrário, pela loucura de pretender libertarmo-nos delas e de ça decisiva produz-se no momento em que, no lugar do paihos
ousar, com uma segurança dogmática, formular julgamentos so­ religioso que agitava os séculos precedentes, os séculos das
bre o universo e sua origem. A verdadeira descrença não se guerras de religião, surge um puro ethos religioso. A religião não

manifesta na dúvida — pelo contrário, na dúvida exprimem-se deve ser mais algo a que se está submetido; ela deve brotar da

a prudência, a humildade simples e sincera do conhecimento — , própria ação e receber da ação suas determinações essenciais, O
homem não deve ser mais dominado pela religião como por uma
mas naquela segurança afetada que se vangloria de sua própria
força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio na sua liber­
opinião e tripudia sobre todas as outras. Num sentido ético e
dade interior. A certeza religiosa deixou de ser a dádiva de uma
religioso, essas lacunas do saber, até mesmo as falhas e imper­
potência sobrenatural, da graça divina; somente ao homem com­
feições do pensamento, não contam aos olhos do Ser suprenio.
pete elevar-se até essa certeza e nela permanecer. Desse princípio
D iz Diderot: " O Autor da natureza, que não me recompensará
teórico decorrem, como de si mesmas, por uma ncessidade in ­
por ter sido um homem de espírito, tampouco me condenará lis
terior, todas as conseqüências que o século X V I I I dele extraiu,
penas eternas por ter sido um néscio," 33 O que conta, em con­
todas as exigências concretas e práticas que assumiu. Apresen­
trapartida, o que deve figurar no registro ético, é essa fé "cega"
ta-se, porém, uma conseqüência que deve parecer bizarra a todos
que se fecha deliberadamente a toda investigação e se coloca em
os que partem de uma concepção rotineira da época iluminista.
posição defensiva contra todo espirito de livre exame; uma fé
Se existe um predicado de que o Ilum inismo se vê atribuído ou
que não se contenta em limitar o conteúdo do conhecimento mas
que ele mesmo se atribui com perfeita convicção, é o de ser, se­
quer ainda destruir nele a natureza, a forma e o princípio.
gundo parece, a época do intelectualismo puro, subscrevendo sem
Vê-se, pois, que se desconhece, que se interpreta de modo reservas ao primado do pensamento, da pura especulação teórica.
totalmente errôneo a tolerância cuja necessidade è proclamada Essa visão das coisas não ê confirmada, entretanto, pela forma­
pela filosofia iluminista, atribuindo-lhe um sentido puramente ção e desenvolvimento de seus ideais religiosos. M uito pelo
negativo. A tolerância é uma outra coisa muito diversa «J.i reco­ contrário, é a tendência oposta a que nitidamente domina: sem
mendação de uma atitude lassa e indiferente a respeito das ques­ dúvida, o pensamento iluminista esforça-se por fundar uma "re­
tões religiosas. Somente em alguns pensadores insignificantes, de ligião nos limiies da simples razão” , mas busca também, por

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outra parte, e com empenho não menor, emancipar-se da domi­ esse tema e converte-o no argumento supremo a favor do fato
nação do entendimento. O que é que ele não se cansa, justa­ de que o próprio âmago da religião e da moralidade não depende
mente, de censurar no sistema dogmático que tanto combate? das representações particulares da fé. Nas Cartas persas, de
De que lhe falta o próprio núcleo (Mittelpunkt) da certeza reli­ Montesquieu, a comparação entre o Oriente e o Ocidente rara­
giosa, ao considerar que a fé consiste em ter por verdadeiras mente se decide em favor deste último: a observação cândida e
determinadas teses doutrinais e ao pretender encerrar a fé nos o senso crítico do persa descobrem por toda parte o arbitrário,
dogmas. Tal limitação não é possível nera desejável: faria da o convencional, o contingente, no que, segundo a óptica do
religião uma simples opinião, privando-a de sua virtude própria, próprio país, passa por ser o próprio modelo da sabedoria e
que i prática e moral. Quando essa virtude é atuante, quando da santidade. Por esse meio foi criado um certo gênero literário
ela se manifesta em sua força e em sua verdade, estamos muito que serviu depois, inúmeras vezes, para a crítica e a polêmica.
além das representações e dos conceitos religiosos, Essas repre­ Mas essa polêmica não pretendia ser, de maneira nenhuma, ape­
sentações e esses conceitos nunca devem ser tomados por outra nas destrutiva; ela quer servir-se da destruição como de um
coisa senão o manto exterior de que se reveste a certeza religiosa. meio de construção. Partindo da estreiteza e das limitações do
São complexos c ambíguos, mas não temos por isso que deses­ dogma, o homem avança para a liberdade de uma consciência
perar da unidade da religião, pois a diversidade apenas diz res­ religiosa verdadeiramente universal. Dideroi, em seus Pensamen­
peito aos sinais sensíveis, não ao conteúdo supra-sensível que tos filosóficos, forneceu desse sentimento da época a fórmula
busca nesses sinais uma figuração necessariamente inadequada. mais vigorosa e mais nítida: "O s homens baniram a Divindade
A teologia do Huminismo professa, portanto, o mesmo princípio dentre eles; relegaram-na para um santuário; as paredes de um
que Nicolau de Cusa formulou três séculos antes; adere com templo Jimitam-lhe a visão; nada existe do outro lado. Que in ­
toda a firmeza ao partido de uma religião única dissimulada sob sensatos soisl Destruam esses recintos que cerceiam as vossas
a diversidade dos ritos e conflitos de representação e de opinião. idéias; ampliem Deus; vejam-no por toda parte onde ele está,
Mas, a partir da Renascença, o horizonte ampliou-se muito e é ou digam que ele não existe." M Essa luta pela "am pliação” da
um círculo ainda mais vasto de fenômenos religiosos que ela idéia de Deus em que o século X V I II reuniu todas as suas forças
quer englobar nesse mesmo princípio. Já no De pace )idei, o intelectuais disponíveis não precisa ser aqui descrita em deta­
combate pela verdadeira religião desenrola-se não só entre cris­ lhe, Basta indicá-la em seus grandes traços, destacar-lhe os temas
tãos, judeus e muçulmanos, mas também com os pagãos, os tár­ gerais. As armas dessa luta já tinham sido forjadas desde o
taros e os citas, que não pretendem menos do que os Outros século X V I [; é uma vez mais o Dicionário de Bayle que abastece
participar do verdadeiro conhecimento de Deus. Entretanto, no o arsenal de toda a filosofia iluminista. Nos escritos que publi­
século X V I II , são os povos do Oriente que retêm a atenção e cou contra Luís X IV por ocasião da revogação do Édito de
exigem a igualdade de direitos para as suas convicções religio- Nantes, Baylc começa por uma reivindicação especial: o reco­
S8S.m Leibniz já citara a civilização chinesa; W olff, num discurso nhecimento da liberdade de crença e de consciência para o?
sobre a filosofia chinesa, celebra Confúcio como um profeta de adeptos da Reforma; tal foi o primeiro objetivo da sua luta. Mas
grande pureza moral e coloca-o a par do Cristo, Voltaire retoma a amplitude da demonstração que ele consagra a essa reivindi-

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cação supera de muito a sua tarefa imediata; suas posições tor- seu conteúdo; bastava aplicá-la até as suas últimas conseqüên­
nam-se tão contundentes que geram o escândalo até entre os seus cias para se atingir o objetivo. No entanto, restava ainda uma
aliados e asseguram-lhe o surgimento de um adversário fanático tarefa por realizar, da qual Voltaire se encarregou: a de trazer
na pessoa de Jurieu, um dos mestres da teologia reformada. para a luz o tesouro soterrado no Dicionário de Bayle sob uma
Bayle, com efeito, insiste em afirmar que a sua apologia da avalanche de erudição histórica e teológica. 0 princípio da crí­
liberdade religiosa não pretende servir a uma fé particular mas tica ética da Bíblia, que tinha sido tão veementemente comba­
propõe-se a um fim universal, puramente filosófico, e que o tido no século X V II e tão severamente condenado pelos doutri­
princípio que ela proclama vale imperativamente para todos, nários ortodoxos, tanto do lado protestante quanto do lado cató­
sem a menor distinção de convicções religiosas. Ele denuncia <» lico, pertence doravante, graças a Bayle, ao acervo comum das
restrição como absurda e intolerável num sentido puramente aquisições do século. Quando, mais tarde, Voltaire fizer um
ético, em funçüo dos critérios da razão moral: nenhuma auto­ exame retrospectivo desse conflito, em 1763, no seu Tratado
ridade religiosa tem, de uma vez por todas, o direito de recorrer- sobre a tolerância, isso ocorrerá com o sentimento inabalável de
lhe. Cumpre manter uma distinção radical entre moralidade e uma vitória alcançada, enfim, após luta acesa. Vivemos numa
religião. Quando elas entram em conflito, quando o testemunho época, declara ele em substância, em que a razão penetra cada
das Escrituras contradiz diretamente o da consciência moral, dia mais nos palácios dos nobres e nas lojas dos burgueses e
convém resolver o problema de tal maneira que seja mantido dos mercadores. Esse progresso não podia ser impedido: os frutos
um primado absoluto para a consciência moral. Se esse primado da razão alcançarão sua plena maturidade. Pois é uma lei do
for abandonado, terá que sc renunciar também a todo critério mundo intelectual que a razão só existe e subsiste se for re­
de verdade religiosa e ficamos, nesse caso, desprovidos de toda criada dia após dia. "O s tempos passados são como se nunca
e qualquer referência para julgar o valor de uma pretensa reve­ tivessem existido. £ preciso partir sempre do ponto onde se está
lação e até mesmo, no interior da religião, para distinguir a e daquele a que as nações chegaram.* Hm seu laconismo e em
verdade da impostura. Portanto, importa rejeitar o sentido lite­ sua exatidão, essa fórmula é daquelas que só Voltaire sabe im­
ral da Bíblia toda vez que aí se encontra expressa a obrigação provisar: ela condensa, em seu brilho, todas as convicções e
dc um ato que contradiz os princípios elementares da moral, tendências da filosofia ilummista. Aliás, o Tratado sobre a tole­
£ nesses princípios e não na simples transmissão do sentido lite­ rância é notável pela seriedade, serenidade e realismo absoluto
ral que residem as verdadeiras máximas imprescritíveis da exe­ com que Voltaire trata o assunto, qualidades em que ele não é
gese, aquelas que jamais devem ser descartadas em proveito de pródigo nos seus outros escritos sobre a religião. Como ele tem
um sentido literal pretensamente assegurado, "É preferível re­ em vista, nesse caso, um objetivo perfeitamente concreto, e ao
jeitar o testemunho da crítica e da gramática do que o da razão.” qual pretende servir, porquanto luta por uma revisão do pro­
O fio condutor de toda a interpretação da Bíblia será, portanto, cesso de Jean Calas, o seu estilo adquire uma austeridade e uma
esta regra: "Todo o sentido literal que contém a obrigação de força muito especiais. Renuncia a fazer espírito e entrega-se
praticar crimes é falso." 31 A máxima reguladora está assim pos­ menos do que em outros escritos às digressões polêmicas. O
tulada, a filosofia do Iluminismo nada tinha a acrescentar ao ethos pessoa] que se esconde atrás das invectivas satíricas de

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Voltaire raramente foi levado a uma expressão tão pura e tão o que age; a verdade de sua essência só se realiza no sentido c
vigorosa quanto nesse escrito da velhice. A tolerância, que os na ação. Tal é a pedra de toque que atesta a autenticidade de
fanáticos da religião ousam denunciar como um erro perigoso toda religião. Diderot retomará esse argumento capital píira
e uma exigência monstruosa, é apresentada por Voltaire como provar a superioridade da religião natural sobre todas as reli­
"o apanágio da razão”. Não se trata de uma exigência especial giões "positivas”. É ocioso, observa ele inicialmente, esperar uma
que seria apresentada pela filosofia: expriiue o próprio princípio decisão direta da competição que opõe as diversas religiões his­
da filosofia, contém sua essência e sua justificação. Ora, é justa­ tóricas, pois cada uma delas reivindica só para si uma superio­
mente sobre esse ponlo que a filosofia sc irmana à religião. Ê ridade absoluta que redunda na rejeição dogmática de todas as
obra da filosofia e o seu maior triunfo que o tempo das guerras Outras crenças. Mas essa simples negalividade tem, não obstante,
religiosas lenha agora findado, que o judeu, o católico, o lute­ seus limites. Por muito exclusiva, por mais profundamente hos­
rano, o grego, 0 eslvinista e o anabatista vivam juntos frater- til que toda religião possa ser em relação às outras, nenhuma
namente e sirvam de maneira análoga ao bem comum, "A filoso­ tem, contudo, o poder nem a vontade de romper completamente
fia, só a filosofia, essa irmã da religião, desarmou as mãos que os vínculos que a unem à religião natural. A essa terra natal de
a superstição mantinha por tanto tempo ensangüentadas; e o toda religião, cada uma sente-se ligada de algum modo e nenhu­
espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se ma jamais se deixará desenraizar de todo. Apresentemos, pois,
com os excessos a que fora arrastado pelo fanatismo," 30 Ainda a uma ou a outra das diversas doutrinas religiosas a questão de
em nossos dias, não faltam os iluminados e os fanáticos; mas saber à qual das outras doutrinas, abstração feita, bem enten­
deixem a razão agir e o mal será curado, lenta mas inexoravel­ dido, da sua própria supremacia, ela atribui o segundo lugar.
mente. A razão é suave, ela é humana; ensina-nos a tolerância A resposta que obtemos então é perfeitamente esclarecedora: esse
e aniquila a discórdia; reforça a virtude e torna amável a obe­ segundo lugar nunca é reservado a uma qualquer das outras
diência às leis, em vez de lhes obedecer pela coação.” religiões positivas mas sempre e unicamente à religião natural.

Por esse lado, uma vez mais se manifesta, portanto, que os A causa é, portanto, julgada, para quem. pelo menos, quer consi-

valores intelectuais puros s§0 progressivamente sentidos como derá-Ia sem prevenção, desde um ponto de vista puramente filo­
sófico. Sabe-se agora onde residem a universalidade e a eterni­
insuficientes. A verdade da religião não pode ser estabelecida
dade verdadeiras: “Tudo o que começou terá um fim: t tudo
segundo critérios puramente teóricos; não se pode decidir sobre
aquilo que não teve começo não findará. Ora, o cristianismo
o seu valor pondo de parte a sua eficácia moral. É esse o signi­
começou; ora, o judaísmo começou; ora, não existe uma só re­
ficado em Lessing do apólogo do anel: a verdade tíltíma e
ligião sobre a terra cuja data não seja conhecida, exceto a reli­
profunda da religião só sc prova desde o interior. Toda a de­
gião natural; portanto, somente ela não acabará, e todas as
monstração extrínseca é insuficiente, quer se trate de uma
outras passarão". Judeus e cristãos, maometanos e pagãos, Lodos
demonstração empírica, apotando-sc em fatos históricos, ou de
são os heréticos e os cismáticos da religião natural. Esta última
uma demonstração lógico-metafísica, escorada em razões abstra­ é, portanto, a única suscetível de uma verdadeira prova, pois a
tas, visto que, em definitivo, a religião é sempre e tão-somente verdade da religião natural está para a religião revelada como

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o testemunho que me dou a mim mesmo esíá para o testemunho teóricas da existência de Deus sobre as quais a teologia c ;t
que recebo de outrem, e aquilo que sinto imediatamente em metafísica do século X V II tinham alicerçado o seu sistema: o
m im está para o q u ; «unheci através de outrem; "como o que centro de gravidade da certeza religiosa desloca-se para um
se encontra em mim escrito pelo dedo de Deus está para o que ponto onde esse gênero de prova é inaplicável e não apresenta
homens fúteis, supersticiosos e mentirosos gravaram no perga­ mais, aliás, qualquer espécie de interesse.
minho e no mármore; como o que contenho em mim e por toda
A mesma tendência fundamental manifesta-se, no essencial,
parte encontro inalterado está para o que se encontra fora de
no desenvolvimento do deísmo inglês, apesar da complexidade
mim e muda com os climas; como o que aproxima o homem
e das flutuações das diversas argumentações. O deísmo é, cm
civilizado e o bárbaro, o cristão, o infiel e o pagão, 0 filósofo
primeiro lugar, um sistema rigorosamente intelectualista que quer
e o povo,.o sábio e o ignorante, o ancião e a criança, está para
banir os mistérios, os milagres, os segredos da religião a fim de
o que, por outro lado, distancia o pai do Filho, arma o homem
colocá-la sob a luz clara do saber. Christianity not mysterious,
contra o homem, expõe o sábio e c erudito ao ódio e à perse­
o simples título da obra de Toland (1696), basta para indicar o
guição do ignorante e do fanático". £ em vão que se objetará
tema que passou a ser incessantemente debatido no seio do
ainda que, sendo a mais antiga, a religião natura! também deve
ser a mais imperfeita; donde veio a idéia de que o primitivo não movimento deísta. A importância filosófica do deísmo depende,

é o mais puro, o autêntico — o a priori de toda religião? sobretudo, do novo princípio que sustenta na posição do pro­
E mesmo admitindo o princípio de uma efetivação cabal, de um blema religioso. A questão do conteúdo da fé, declara-se logo
aumento de perfeição no transcurso da história, não é coisa certa de início, é indissociável da questão de sua forma: as duas
que o debate desenrole-se para vantagem dessa ou daquela reli­ questões devem ser resolvidas simultaneamente. A questão não
gião positiva e de seus artigos de fé. Onde poderíamos obter a se estriba apenas no conteúdo da verdade desse ou daquele
certeza de que chegamos ao fim desse desenvolvimento? Se é dogma; ela envolve também 0 modo da certeza religiosa como
verdade que a lei natural pôde ser efetivada pela lei mosaica e tal. Toland pensa poder apoiar-se em Locke, poder introduzir
a lei mosaica pela lei cristã, por que esta última não seria, por diretamente suas idéias e os princípios da teoria do conhecimen­
sua vez, efetivada por uma outra que Deus não teria ainda reve­ to de Locke no problema da religião. O que vale para o conhe­
lado aos homens? BT Tais são as teses de Diderot em D ã sufi­ cimento em geral não deve, com efeito, aplicar-se igualmente ao
ciência da religião natural: vê-se a que ponto elas estão aparen­ conhecimento religioso em particular? Locke definia o ato de
tadas com as que Lessing sustentará. É igualmente em Lessing conhecer em geral como 0 ato de adquirir consciência de um
que Diderot noa faz pensar quando distingue estritamente entre acordo ou de um desacordo existente entre as idéias. Resulta
provas históricas e provas racionais, e ao insistir cuidadosamen­ dessa definição que o conhecimento contém, por sua própria
te em que os testemunhos de facto, por muito seguros que pos­ natureza, uma relação e que, por conseguinte, os termos dessa
sam parecer, jamais alcançam um grau de certeza suficiente para relação devem, antes de tudo, ser dados à consciência e clara­
serem usados como provas de verdades eternas e necessárias.38 mente compreendidos sob uma forma ou outra. Se os termos quu
Assim se encontra cada vez mais abalada a força das provas a fundamentam não são compreendidos, a própria relação perde

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todo 0 seu significado. Essas considerações puramente metodo­ nidade. A idéia de revelação (Ofjenbarung } não se opõe, por­
lógicas fornecem, segundo Toland, aos objetos da fé religiosa tanto, à de religião naturaí no sentido em que uma e outra se
um princípio essencial e uma limitação necessária. Está excluída distinguiriam por seus conteúdos específicos, Não é o conteúdo
a transcendência absoluta desses objetos: como poderia a nossa que elas manifestam o que as distingue mas a natureza e 0 modo
consciência eognoscente, crente e judicativa manifestar-se a res­ dessa manifestação. A revelação não é uma causa específica de
peito dc um objeto se esse objeto não estivesse, de alguma ma­ certeza mas, simplesmente, uma forma particular de comunica­
neira, presenter se não fosse representado por um fenômeno ção de uma verdade, cuja prova final cumpre buscar na razão.
qualquer? O "irracional" absoluto, ultrapassando o entendimen­ Em Christiailiiy as old as the Creatlon (1730), Tindal parte
to humano, não comporta justamente uma ta) "presença": logo. do mesmo princípio. Começa por salientar que religião natural
é tão impossível afirmar que ele é quanto determinar o que ele ê. e religião reveiada não se distinguem absolutamente por suas
Se se objeta que se pode perfeitamente estar seguro da existência respectivas substancias mas tão-só pela maneira como elas são
de uma coisa sem conhecer um só predicado dessa coisa, sem conhecidas cios homens: uma é a manifestação interior; a outra,
que se possa dizer nada acerca de sua natureza, tal argumento a manifestação exterior da vontade de um ser onisciente e infi­
não se sustenta, visto que, mesmo que essa espécie de conheci­ nitamente bom. Para que um tal ser possa verdadeiramente ser
mento fosse possível, qual significado poderia ele ter para nós? pensado, temos que nos desfazer de todas as restrições, de todas
A menos que se pretenda que a fé resulte em si mesma total­ as (imitações do antropomorfismo, Se Deus dissimulasse uma
mente vã e absurda, é imprescindível que o seu objeto possua parte qualquer da sua essência e da sua potência, se reservasse
um sentido qualquer, ou seja, que comporte certas determina­ uma e outra para um tempo e um povo determinados, à custa
ções que se ‘'compreendem” , que são claramente inteligíveis. O de outros, não estaria ele justamente nesse caso manifestando
que é misterioso, de todo^ os pontos dc vista, o que escapa por tal limitação? Uma vez que Deus é eternamente o mesmo e que
princípio a toda a compreensão deve. portanto, permanecer es­ a natureza não é menos una e imutável, é necessário que a reve­
tranho tanto à fé quanto ao saber. “ Quem poderia vangloriar-se lação dissemine sua luz igualmente por todos os lados. Deus n2o
de ser mais sábio do que o seu vizinho porque sabe de ciência seria Deus se pudesse, como quer, por exemplo, o dogma da
infalível que existe na natureza algo que tem o nome de Blictri, "graça eletiva”, dissimular de algum modo a sua própria natu­
ignorando, porém, no que consiste esse Blictri"? 30 Toland con­ reza ao esclarecer apenas uma parte da humanidade, abando­
clui que o mistério só pode existir num sentido relativo, nunca nando a ou ira às trevas e à cegueira. O mais importante e
absoluto. Quer indicar dessa maneira um conteúdo inacessível essencial critério para a autenticidade de toda revelação só pode
a um certo modo de entendimento, não um conteúdo que ultra­ ser, portanto, a universalidade que a eleva acima das limitações
passa, em geral, todas as possibilidades de entendimento. Q uan­ locais e temporais. O cristianismo é verdadeiro no sentido e na
to à palavra "mistério”, deve ter significado originariamente medida em que preenche essa condição primordial. Existe e
uma doutrina que, sem contradizer por isso a razão, continha subsiste por não eslar vinculado a nenhum espaço nem a ne­
em si uma verdade conhecida que, entretanto, por um motivo nhum tempo particulares — e por ser tão velho quanto o mundo.
qualquer, deveria manter-se secreta para uma parcela da hum a­ Entre a lei cristã e a lei natural não existe, quanto ao conteúdo,

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a menoi oposição: a lei cristã quer apenas ser a reproclamação do ethos deísta. "A nessa época" — assim escrcvcu no seu
do que a lei natural tinha estabelecido e prescrito. Essa nova comentário contra a revogação do Êdito de Nantes — “est/í
proclamação [a republicaiion of the law of nature) dirige-se ao repleta de espíritos fortes e de deístas. Há quem se surpreenda
conhecimento do homem; mas, sobretudo, tem em vista a sua mas, quanto a mim, o que causa surpresa é que não existam
moralidade. Por conseguinte, o cristianismo representa a reve­ mais, em face das devastações causadas no mundo pela religião,
lação verdadeiramente infalível, aquela que supera todas as e a extinção que ela acarreta pelas conseqüências quase inevitá­
outras em valor e em certeza. Assim, Tindal avizinha-se da defi­ veis de toda sorte, ao autorizar para sua prosperidade temporal
nição que será ulteriormente retomada ipsis verbis por Kant em todos os crimes imagináveis, o homicídio, a extorsão, o exílio,
Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft [A reli­ o rapto etc., os quais geram uma infinidade de outras abomi­
gião nos limites da simples razão]. Segundo Tindal, a religião nações: a hipocrisia, a profanação sacrílega dos sacramentos
consiste em reconhecer nos nossos deveres os mandamentos de etc." 41 Na origem do deísmo encontramos, primeiro, uma ati­
Deus, em relacionar normas morais de uma validade e de um tude de revolta em relação ao espírito das guerras de religião
alcance universais com o seu autor, considerando-as a expressão dos séculos passados; uma nostalgia profunda dessa pax fidei
da sua vontade. Portanto, mesmo no desenvolvimento do deísmo que a Renascença tanto ambicionara e prometera mas não
íngtês, o centro de gravidade está agora deslocado no plano lograra estabelecer em parte alguma. Não é, evidentemente, nas
puramente intelectual para o da "razão prática”: o deísmo "mo­ guerras de religião que Deus se nos revela em sua essência e em
ral” tomou o lugar do deísmo "construtivo",40 sua verdade mas unicamente na paz da fé — segundo a sólida
A extraordinária influência que o deísmo inglês exerceu convicção deísta. Deus é bondoso demais para ser o autor de
sobre o conjunto da vida intelectual do século X V III assenta coisas tão perniciosas quanto as religiões positivas, as quais con­
essencialmente nessa nova orientação. A considerar apenas o seu têm a semente inextirpável da guerra, dos massacres, das injus­
conteúdo teórico, a intensidade dessa influência é dificilmente tiças — , conforme reconhece a argumentação de Bayle. Na Ale­
concebível. Entre os mais destacados pensadores desse movimen­ manha, é também a esse tema que o deísmo deve a continuidade
to, nenhum possui, com efeito, uma verdadeira profundidade, de sua penetração; na história das idéias alemãs do século X V III,
um cunho verdadeiramente original — e os argumentos pura- pode-se acompanhar de ano a ano o avolumar da onda deísta.
mente teóricos pelos quais o deísmo trata de apoiar a defesa dos Nas revistas, a bibliografia e as resenhas críticas das obras dos
seus pontos de vista são, com freqüência, contestáveis e restrin­ "livres-pensadores ingleses" passam a merecer um capítulo es­
gem-se a meias verdades. Mais do que todos esses argumentos, o pecial e regular.42 Mas é verdade que a luta pelos direitos da
que causou uma fortíssima impressão na atitude do deísmo foi "religião natural” e pelas relações a estabelecer entre razão e
a sincera vontade de verdade e a seriedade moral com que abor­ revelação nunca se revestiu na Alemanha da acuidade que co­
dou a crílica do dogma. É aí que reside a sua potência especí­ nheceu nos círculos intelectuais franceses. Encontrou, porém,
fica, aquela que lhe incute um impulso interior. Bayle, que se um outro adversário na Alemanha: não apenas uma ortodoxia
situa no ponto de partida do movimento deísta, já tinha reco­ e uma hierarquia eclesiástica esforçando-se, com toda a sua auto­
nhecido com nitidez essa situação, e por isso profetizou a vitória ridade e toda a sua sede de dominação, por reprimir o livre

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movimento cio pensamento; sua laicfa consiste, antes, cm dar monstração desse mesmo conteúdo, afastando do dogma todos os
flexibilidade a um sistema religioso que já contém os numerosos elementos que não são suscetíveis de ser assim demonstrados
germes de um novo modo dc pensar. A filosofia leibniziana de­ e esforçando-se, através de pesquisas de história dogmática, por
sempenha na Alemanha o papel de um meio intelectual onde se denunciá-los como aditamentos ulteriores, estranhos à pureza ini­
realiza a evolução do pensamento religioso e esse meio tem o cial da fé. O conteúdo da revelação é assim substancialmente
poder de abarcar os pensamentos mais antagônicos, de aproxi­ reduzido, ao mesmo tempo em que a própria idéia de revelação
má-los e de reconciliá-los. A tendência profunda da filosofia de ainda permanece intata. Entretanto, ela já não tem outro papel
Lcjbniz, a tendência para a harmonia”, permanece viva nesse senão o de confirmar e sancionar precisamente aquelas verdades
sentido, No sistema de Cliristian Wolff tampouco se chega nunca que são evidentes para a razão e se harmonizam plenamente com
a uma separarão brulal entre o conteúdo da fé e o do saber, esta. De resto, à demonstração slricto sensu, à prova própria-
entre revelarão e razão. Trata-se sempre, pelo contrário, de pon­ mente si logística, opõe-se cada vez mais a prova empírica que,
derar cuidadosamente os respeciivos direitos de um lado e de do seu lado, tende a procurar seus fundamentos mais nas certezas
outro c de os destrinçar. Sem dúvida, chega-se a uomestar, como jntimas do que em tal ou tal fato histórico. “A minha experiência
em Locke e Leibniz, o conteúdo da fé pur sua irracionalidade, é a minha prova'1, diz Jerusalcm. E a experiência essencial, na
mas ninguém pretende jamais que esse conteúdo possa ser obra qual devem apoiar-se todas as provas da religião, é essa paz da
exclusiva da razão e não comportar nenhum demento supra- alma que nos torna mais ditosos do que jamais poderia ser con­
racional. Razão e revelação são reconhecidas como fontes origi­ seguido por essa faculdade puramente teórica que é a razão.M
nárias do conhecimento: longe de se combaterem, elas devem A autoridade dessa instância pretensamente “objetiva*' é recusa­
completar-se, persuadir-se dc que, de sua cooperação, resultará da pelo apelo à subjetividade como princípio autêntico e vetda-
um conjunto completo, uma significação única da verdade reli­ deiro de toda a certeza religiosa, de modo que há apenas um
giosa. Nâo se trata de incitar essas duas forças a combaterem-se passo mais a dar para eliminá-la explicitamente. Esse passo será
ou a rivalizarem mas de ussociá-las a fim de que seu acordo se dado pelo subseqüente racionalismo teológico, que chegará a in­
tome manifesto. No seio da escola wclffiana havia, portanto, timar o conteúdo da fé, como um todo, a comparecer perante 0
amplo espaço para uma ortodoxia que conservava uma fé inaba­ tribunal da razão e a negar a necessidade da revelação como
lável na revelação, ainda que pouco a pouco se modificasse a fonte específica de conhecimento. Tinha sido assim que a exi­
forma sob a qual essa fé era apresentada e cada vez mais se im­ gência fundamental do deísmo vencera a resistência da própria
pusesse a necessidade de um método demonstrativo.45 A tendên­ teologia e a penetrara totalmente. Quando Sack declarou, certo
cia dos autênticos teólogos "modernos" na Alemanha — a cha­ dia, que a revelação era o 11telescópio da razão”, sem o qua!
mada “neologia" representada por homens como Semler, Sack, esta jamais poderia, ou só obscuramente poderia, discernir as
Spalding, Jerusylem e outros -— vai muito além, sem dúvida, verdades mais importantes da religião, Rcimarus pôde retorquir-
desse simples resultado. A razão não serve apenas para sustentar lhe que até mesmo essa comparação tem seus limites. Se 6 certo
e provar formalmente um conteúdo de fé já dado e confirmado que os órgãos da percepção tomam-se mais penetrantes graças
por outras fontes; a ela se recorre também para efetuar a de­ ao telescópio e ao microscópio, é óbvio que não podem ser su-

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planlados por esses instrumentos, os quais são perfeitamente inú­ ral", o deísmo parte, com efeito, da idéia de que existe uma
teis sem o dom natural da visão; da mesma forma, no domínio "natureza humana", por toda parte idêntica a si mesma, dotada
espiritual, todo saber deve, em definitivo, ser relacionado e afe­ de certos conhecimentos fundamentais tanto do gênero teórico
rido pelas faculdades naturais do espírito."19 quanto prático, que são para ela absolutamente certos. Contudo,
Foi assim que o movimento deísta rompeu finalmente todos onde iremos encontrar essa natureza? Será um fato empirica­
os diques e levou dc roldão todas as defesas que se tentava mente dado? Será que não passa, talvez, de uma hipótese? E
opor-lhe. Sua vitória parecia não poder tardar, apesar de todos o defeito fundamental do deísmo não consiste em confiar, serr
esses esforços coligados contra ele e o crescente fluxo de lite­ prévia reflexão, nessa hipótese e em guindá*la, por sua parte, à
ratura polémica e apologética. Mas eis que de súbito o sistema categoria de um dogma? É contra esse dogma que se ergue a
ameaçado da ortodoxia recebeu uma nova e inesperada ajuda. critica de Hume. Ele não ataca o deísmo nem do lado da razão
Um dos adversários mais obstinados desse sistema foi quem, ino­ nem do lado da revelação: resolve simplesmente apreciá-lo se­
pinadamente, passou a fazer causa comum com ele. Com efeito, gundo o critério da experiênca, do puro conhecimento dos fatos.
não é o dogmatismo teológico que rechaça os assaitos do deísmo Convence-se então de que o orgulhoso edifício do deísmo assen­
e detém seus avanços, mas o mais radical cepticismo filosófico. ta em alicerces de barro: a "natureza humana" sobre a qual se
Na Inglaterra, Samuel Clarke acabava de empregar toda a sua pretendia fundar a religião natural não passa de mera ficção. A
acuidade intelectual para deduzir rigorosamente de princípios experiência revela-nos essa natureza sob uma luz muito diferente
universais o conteúdo inteiro da fé cristã.''0 O próprio Voltaire daquela que inspirava os esforços construtivos do deísmo: não
não escondeu sua admiração pela sagacidade do autor: Clarke, um tesouro de conhecimentos fundamentais, de verdades a priori,
declara ele em sua Carta inglesa, é uma "verdadeira máquina de mas um fervilhar confuso de instintos, não um cosmo mas um
raciocinar" {une vraie machtne à raisonnements), apropriada caos. À medida que se vai penetrando mais profundamente nessa
para as tarefas mais difíceis.17 F Vollatre jamats desdisse essa sua natureza humana, à medida que a descrevemos com maior exa
apreciação: não chegou até, no Tratado de metafísica, a colocar tidlo, vemo-la perder toda a aparência de ordem e de raciona
Clarke a par de Locke como um dos primeiros "artesãos da ra­ lidade. Hume já chegara a essa conclusão no domínio das nossas
zão"? ** É bem verdade que todo esse luxo de provas parece representações teóricas. Temos 0 costume de considerar o "prin­
resvalar sobre o deísmo sem o arranhar, e torna mais visíveis, cípio de causalidade" como a regra suprema de todo o nosso
pelo contrário, as fraquezas da ortodoxia. Na sua defesa do conhecimento teórico, acreditamos que esse princípio confere a
"livre pensamento", Anthony Collins observa ironicamente que todo o nosso saber sua coesão e seu rigor internos. Mas, quando
ninguém duvidara jamais da existência de Deus antes de Clarke se analisa mais precisamente os conceitos, essa pretensão re-
ter decidido provar essa existência/* Entretanto, onde o lógico duz-se a nada, dado que a própria idéia de causa, que deveria
e o metafísico fracassaram, vai triunfar o adversário irredutível garantir o mais firme ponto de apoio para o nosso conhecimento,
de todo dogmatismo lógico e metafísico, ê Hume quem vaí co­ 6 incapaz de produzir por sua própria conta o mínimo funda­
locar o deísmo diante de uma nova dificuldade e desse modo que­ mento objetivo. Ela não pússui nenhuma evidência imediata, ne­
brar seu predomínio. Para fundar o conceito de "religião natu­ nhuma significação nem necessidade a priori; ela própria não

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passa de ser o produto do jogo das nossas representações, as quais, lando as religiões superiores, puramente “espirituais”, que se
longe de se interligarem segundo princípios objetivamente ra­ elevam tão alto acima das representações "primitivas" de Deus:
cionais, limitam-se a acompanhar em conjunto o jogo da imagi­ esse argumento é reduzido a zero desde que, em vez de consi­
nação, a obedecer às suas leis mecânicas. A mesma crítica vale, derar a religião em sua transposição racional, sob sua mdumen
a fortiori, para as nossas representações religiosas. Seu conteúdo cária idealista, a vejamos em sua prosaica realidade empírica. A
pretcnsameiuc objetivo, seu sentido sublime redundam cm pura religião por toda parte oferece o mesmo rosto, desde os seus
ilusão a partir do instante em que as relacionemos com suas ver­ primórdios até a sua mais recente realização, desde os seus piores
dadeiras fontes, em que nos representemos de que maneira elas avíltamentos até o seu ápice. As mesmas forças psíquicas que
surgem e desenvolvem-se. Não descobriremos então nelas nem prevaleciam quando das primeiras manifestações da religião ain­
conteúdo especulativo nem conteúdo ético original. Não é a me­ da estão agindo erri seu curso subseqüente, mantendo-se vivas em
ditação sobre os princípios do Ser e as causas da ordem do lodo o seu desenvolvimento. A superstição assume formas dife­
mundo nem a devoção a um Ser de uma sabedoria e de uma rentes, mais elaboradas, mas sua natureza íntima não mudou.
bondade infinitas o que provocou as primeiras representações Ousemos erguer o véu de palavras, de conceitos abstratos, de
de Deus, o que as fundamentou e justificou. Essa espécie de idéias morais com que se cobrem as religiões "superiores" e cons-
considerações "filosóficas” não tem poder nenhum sobre as mul­ talaremos que a religião tem por toda parte o mesmo rosto. O
tidões. O homem não começou como filósofo: é ilusório e ocio­ credo quia absurdum impõe sempre e em toda parte o seu anti­
so esperar que ele acabe filósofo. Lie nada entende de um reino go poder. Existe pior absurdo lógico do que o dogma da tran-
onde predomina a "razão” abstraia, porquanto está submetido su bslanei ação? Algo moralmente mais funesto, mais pernicioso
ao poder de seus instintos e de suas paixões. São estes que engen­ para a sociedade h u i m , do que os artigos de fé das religiões
dram e alimentam os primeiros dogmas e as primeiras represen­ positivas? Nada distingue uma religião "superior" das inferio­
tações religiosas, e neles permanecem duradouramente enraiza­ res, a não ser que um terceiro rn.;íÍ*o se junte à esperança e ao
dos. Nem o pensamento nem a vontade moral os formaram, e medo, motivo esse oriundo, sem dúvida, de um certo refina­
muito menos os alimentam. Foi pela esperança e pelo medo que mento intelectual, mas que, de um ponto de vista moral, repre­
os homens foram inicialmenle conduzidos à crenca e nesla fi­ senta mais um retrocesso do que um progresso. É o motivo da
caram constantemente retidos. Vor aí peneiramos, enfim, na ver­ adulação (Schmeichleí) que impele os homens a elevar seus
dadeira camada originária da religião. Não existe fundamento deuses acima de toda medida de perfeição terrena, a atribuir-lhes
racional nem ético para a religião: ela é, pura e simplesmente, predicados cada vez mais sublimes. Entretanto, numa análise
uma causa antropológica. Nasce do medo de polênc;as sobrena­ mais minuciosa, interrogando mais a conduta dos homens do que
turais e do desejo do homem de con graça r-se com elas, de aco- suas idéias, vcrifica-se que, deixando de lado toda essa subli­
modar-se à vontade delas. O jogo de paixões e de imaginação do­ midade espiritual e moral, tudo permanece no estado antigo. O
mina e dirige as engrenagens da nossa vida religiosa. A supers­ Deus, todo bondade, sabedoria e justiça do cristianismo, tomou-
tição, o medo dos demônios constituem as verdadeiras raízes da se, no retrato que o calvinismo dele traçou, um tirano tão cruel,
idéia de Deus. E não se creia podcT escapar a essa conclusão ei- pérfido e arbitrário quanto todos aqueles que as religiões primi-

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tivas sempre temeram e adoraram. A deisidaemonie, o temor dos se estenda o nosso olhar até as superstições mais diversas a fim
demônios, eitá na base dc todas as representações religiosas su­ de colocá-las em conflito umas com as outras, enquanto nós pró­
periores, e esse sentimento nada ganhou, por certo, ao deixar de prios, durante essas furiosas desavenças, vamos encontrar a nos­
manifestar-se abertamente, ao tentar dissimular de modo insi- sa felicidade na fuga para as regiões aprazíveis, embora um tanto
dióso — e ao dissimular-se a si mesmo — todas as fraquezas obscuras, da filosofia." 61
que as religiões primitivas ingenuamente divulgam."0 Na realidade, o método adotado por Hume c por ele segui­
Tal é a "história naturai da religião" esboçada por Hume, do até as suas últimas conseqüências não é característico, de
que assim pensou eliminar de uma vez por todas a idéia de maneira nenhuma, do século X V III. Esse século tinha confiança
"religião nalural", denunciá-la como simples divagação filosó­ demais no poder da razão para renunciar ao seu uso a respeito
fica. Em suma, era a própria filosofia que livrava o sistema da fé de ponto tão vital. Não tinha a menor intenção de abandonar-se
revelada do seu mais perigoso adversário. Mas, para esse mesmo à dúvida, insistindo sempre, pelo contrário, numa decisão clara
sistema, a análise realizada por Hume representava uma esto­ e segura. Por isso é que a História natural da religião de Hume
cada não menos mortal. O cepticismo tinha, evidentemente, a permaneceu um acontecimento isolado no curso das idéias da
última palavra tanto em relação à religião revelada quanto em época do Iluminismo. Com efeito, um outro caminho era ainda
relação à religião natural, "Nobre privilégio da razão humana praticável, o qual, longe de levar a uma ruptura brutal da razão
o de chegar ao conhecimento do Ser supremo, o de poder con­ e da experiência, como na doutrina de Hume, parecia combinar
cluir, mediante as obras visíveis da natureza, pela existência de e reconciliar as aspirações de uma e de outra. Para enfrentar os
um princípio tão sublime quanto o do supremo Criador! Maí ataques cépticos dirigidos contra ele, era imprescindível que o
observemos o reverso da medalha. Atentemos para a maior parts conceito de "religião natural” recebesse um conteúdo definitivo.
das nações e das idades. Examinemos os princípios religiosos qiit Não podia continuar subsistindo por mais tempo como pura as­
prevaleceram, de Tato, no mundo. Teremos grande dificuldade piração; era necessário mostrar que as exigências e as afirma
em persuadir-nos de que sejam outra coisa senão o fruto dos de­
çÕes desse conceito tinham seu lugar na realidade da vida reli
vaneios de espíritos doentes... Não há absurdos teológicos, por
giosa. O conceito de religião natural não devia procurar seu
mais flagrantes que sejam, que não tenham sido alguma vez acei­
fundamento apenas do lado da razão, mas também do lado da
tos por homens de uma inteligência tão vasta e cultivada quanto
história. Graças a essa tareia, com a qual se viu a braços por
possível. Não há preceito religioso, por mais rigoroso e austero,
uma necessidade interna, o pensamento do século X V III depa
que não tenha sido adotado pelos mais voluptuosos e perversos
rou-se com um problema de ordem geral que deve abordar agora
dos homens.. . Tudo isso é um quebra-cabeça, um enigma, um
inexplicável mistério. Dúvida, incerteza, abstenção de iuTparaen- com todo o equipamento próprio do seu método. Trata-se de
to, é tudo o que parece resultar de um exame mais profundo compreender a relação que une a religião e a história, de con­
dessa questão. Mas tamanha é a fragilidade da razão humar.a e ceber a determinação recíproca dos dois termos, de ver como, no
tão irresistível é o contágio da opinião, que temos grande difi­ seio dessa reciprocidade, desenvolve-se a realidade autêntica e
culdade em manter essa dúvida tão deliberada, a menos que ;oncreta da religião.

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deve acompanhar passo a passo o exame da maneira como essas
Religião e história
regras desenvolveram-se historicamente, como se realizaram no
decorrer do desenvolvimento empíricc-histórico. O verdadeiro
Essa idéia largamente disseminada e, ao que parece, inex-
''lluminismo1' do espírito só pode resultar da cooperação e do
tirpávei, de que o século X V III permaneceu alheio e cego à rea­
confronto entre esses dois modos de análise. A certeza da exis­
lidade histórica, de que o seu pensamento foi absolutamente
tência do espírito é parte integrante e indispensável do seu devir;
a-histórico, já foi refutada, dc maneira direta e decisiva, por uma
mas, inversamente, esse devir não poderia ser percebido nem
observação, mesmo superficial, do processo de desenvolvimento
reconhecido em seu sentido autêntico sem ser relacionado e me­
da sua problemática religiosa. A mutação interna que intervóm a
dido por uma existência imutável (ein unveränderliches Sein).
esse propósito caracteriza-se justamente pelo fato de que a reli­
gião emancipou-se do jugo do pensamento metafísico e teológico A primeira e mais severa prova que a nova concepção finha
e um novo critério, uma nova regra de apreciação se criou, Essa que enfrentar era o confronto com o próprio fundamento de
regra nãc é simples: baseia-se, pelo contrário, em dois elementos toda certeza religiosa, ou seja, a tarefa de determinar, de deli­
distintos que ela une e procura conciliar. O espírito racional e o mitar clara e metodicamente, 0 conteúdo de verdade da Bíblia.
espírito histórico são os dois elementos cuja síntese é assim pro- Aliás, o simples fato de suscitar a questão e de pretender resolvê-
posla. A razão é relacionada com a história, a história com a ra­ la já representava uma espécie de revolução do pensamento re­
zão: essa reciprocidade fornece-nos uma nova visão religiosa e ligioso, visto que implicava um rompimento deliberado com um
um novo ideal de conhecimento religioso. Razão e história, niti­ princípio que a própria Reforma jamais contestara, que ela. pelo
damente distintas, são mantidas num estado de tensão mútua, no contrário, procurara impor mais rigorosa e implacavelmente que
qual assenta todo o movi me nlo interno do pensamento religioso nunca: o princípio da inspiração verbal, Todo o esforço da Re­
do século X V IIL Muito longe de se caminhar para um simples forma tendia justamente a provar que a verdade das Escrituras
nivelamento que sacrificaria a história à razão, que a aniquilaria, era integral e única, sem lacunas e sem limites — e que só se
vamos encontrar uma polaridade reconhecida e elaborada com podia proclamá-la em sua integridade e validade absoluta sc o
extremo cuidado. Essa relação polar, entretanto, de acordo com o texto bíblico não comportasse nenhuma distinção nem divisão.
espírito da filosofia íluminista, não exclui um equilíbrio ideal Cada palavra, até cada letra da Bíblia, devia igualar todo 0 con­
entre as duas forças opostas: trata-se, com efeito, de uma exis­ junto em valor e em santidade, reivindicar para si a plena vali­
tência e de uma verdade que se desvendam, sob formas diferen­ dade da certeza da revelação. Mas já no século X V III essa
tes, é certo, mas perfeitamente concordantes quanto ao seu con­
pretensão tinha grande dificuldade em impor-se contra os pro­
teúdo essencial, na razão e na história. Trata-se, portanto, de
gressos do espírito filosófico. O princípio cartesiano da duvida
uma parte, de erguer diante da história o espelho da razão, de
metódica não podia deter-se era tão propício caminho. Sem dú­
observar nele a sua imagem; de outra parte, de discernir toda
vida, o próprio Descartes não se cansara de garantir que as no­
racionalidade existente no ponto de vista da história. Em suas
vidades da sua doutrina diziam respeito à ciôncía e não à fé, de
tendências e orientações respectivas, as duas visões coincidem,
proclamar expressamente, para tudo o que pudesse penetrar no
A convicção de que as regras da razão são eternas e imutáveis

247
246
terreno dos dogmas uò louíõ^.., „ua inteira submissão à autori­ cspecificamente histórica. O firo ultimo e o principio de seu pen­
dade das Escrituras e da Igreja. Ele náo impede, porém, que seus samento são o ser p u t o , não o devit; não a mudança empírica
discípulos e sucessores imediatos não tardem em abandonar essa mas a causa imutável e a unidade essencial das coisas, encerrada
prudente reserva. Mesmo os pensadores que são inspirados pela e sustentada em si mesma. E esse o único objeto do conhecimento
mais pura religiosidade pessoal, que querem sobretudo servir-se adequado; a existência finita, derivada, particular, só é cognoscí-
dos princípios cartesianos para o despertar e o aprofundamento vel pOr intermédio da “imaginação”. O mesmo ocorre com o
do espírito religioso, não podem escapar a esse movimento. A conhecimento do tempo e das relações temporais. Jamais a ima­
primeira obra cujo título já subentende uma história crítica dos ginação poderá alçar-se ao plano do conhecimento filosófico, do
livros bíblicos saiu dos círculos oratorianos. Seu autor, Richard conhecimento sub specie aeternitatis, o qual, pelo contrário, deve
Simon, inspira-se em Malebranche, de quem é amigo pessoal. supcrá-la, despojar-se do imaginário, para atingir a sua perfeição.
Começa por examinar a autenticidade dos diversos livros da Bí­ Desse ponto de vista, o reconhecimento de uma verdade "histó­
blia, por formular hipóteses sobre a sua origem, numa série de rica" no sentido próprio parece estar excluído; em rigor, essa
diligências que abalam os fundamentos da ortodoxia. Sublinhe-se idéia só pode ser uma contradictio in adiecto. No entanto, Spi­
que esse primeiro exame ainda estava reservado aos meios ecte* noza foi quem primeiro concebeu com plena lucidez a idéia de
siásticos e pretendia servir indiretamente aos planos da Igreja uma historicidade da Bíblia e quem a desenvolveu de maneira
Católica, pois a crítica de Simon quer demonstrar que os pro­ clara e positiva. Acompanhando o desenrolar dessa tese a fim
testantes não têm razão em confiar exclusivamente na verdade de mostrar a sua situação no conjunto do sistema spinozista, des­
da Bíblia e em remeter para essa foníe única e fundamental toda cobre-se que ela não provém, em absoluto, de uma orientação
e qualquer outra autoridade religiosa. A Bíblia, por si mesma, histórica imediata, de um interesse espontâneo pelo método his-
não oferece um abrigo absoluto contra as investidas da dúvida; lórico como tal; ela nada mais representa senão uma das conse­
ela deve ser completada e apoiada por outras instâncias, pelo qüências mediatas das premissas lógicas do sistema. Ê o monismo
testemunho concordante da tradição da Igreja.52 Assim, não che­ de Spinoza que se recusa a admitir a situação distinta da Bíblia,
gamos ainda a uma concepção, a uma apreciação histórica mais até mesmo a situação distinta do espiritual em geral. Extensão e
livre das Escrituras. A história, na medida em que se recorre ao pensamento, natureza e espírito, ordem das coisas e ordem das
seu julgamento, & constantemente anexada aos fins particulares idéias não são duas ordens diferentes e fundamentalmente dis­
da ortodoxia eclesiástica. É preciso esperar pela audácia de Spi- tintas. mas duas ordens idênticas, assentes na mesma lei essen­
noza para que seja. enfim, apresentada a questão realmente inci­ cial. Assim, a consideração da existência histórica não pode ser
siva e decisiva. O seu Tratado teológico-político é, com efeito, separada da da existência natural: uma e outra devem ser estu­
a primeira tentativa de justificação e de fundamentação filosófica dadas desde um mesmo ponto de vista. "Para abreviar, resumirei
da crítica bíblica. À primeira vista, pode parecer estranho e esse método dizendo que ele em nada difere do que se utiliza na
paradoxal que esse pape! tenha tocado a Spinoza. Se considerar­ interpretação da natureza, mas concorda em todos os pontos
mos o conjunto de sua metafísica e de seu fundamento racional, com ele. Com efeito, assim como 0 método na interpretação da
nada parece menos favorável, na verdade, a uma perspectiva natureza consiste essencialmente em considerar primeiro a natu­

24V- 24f
reza como observador e, depois de ter assim reunido os dados lidade do seu autor. O Tractatus theologico-politicus quer ex­
certos, em concluir a partir deles as definições das coisas natu­ plicar a Bíblia dessa maneira. Não há dúvida que suas explicações,
rais, também para interpretar as Escrituras é necessário adquirir comparadas aos resultados da crítica bíblica científica ulterior,
um exato conhecimento histórico a uma vez na posse desse co­ apenas produzem, com bastante freqüência, uma impressão de
nhecimento, ou seja, dc dados e princípios certos, poder-se-á estranheza e arbitrariedade. Mas o princípio metodológico como
então concluir, com base neles e por via de legítima conseqüên­ tal não é atingido por essas fraquezas c esses defeitos manifestos;
cia, qual o pensamento dos autores das Escrituras. Desse modo, apesar de todos os ataques que o Tratado de Spinoza sofreria,
com efeito (quero dizer, se não se admitirem onlros princípios e ele não podia mais ser abandonado daí em diante.
outros dados para interpretar as Escrituras e esclarecer o seu
Parece que Spinoza não exerceu nenhuma influência direta
conteúdo a não ser o que possa ser extraído das próprias Escri­
sobre o pensamento do século X V III. Evita-se cuidadosamente
turas e de sua história crítica), cada um poderá avançar sem
pronunciar o seu nome; sua doutrina só é divulgada por canais
risco de erro e poderá tentar fazer-se uma idéia daquilo que ul­ indiretos que carreiam toda espécie de impurezas. Em sua ex­
trapassa a nossa compreensão, com a mesma segurança de tudo
posição e sua crítica do spinozismo, Bayle fez tudo o que pôde
o que nos é conhecido graças íi luz natural." S:1 Tal é o prindoio. para orientar os debates para uni caminho falso, colocando-os
simples mas decisivo, c prenhe de conseqüências, que Spinoza numa perspectiva perfeitamente unilateral e errônea. Mas a pró­
representa: ele decide interpretar não o ser, a "natureza das coi­ pria idéia de uma crítica histórica da Bíblia tampouco deixaria
sas", a partir da Bíblia, mas a própria Bíblia como uma parte do
de vingar e de expandir-se incessantemente, apoiando-se menos
ser e como tal submetida às suas leis universais. Ela não é a chave
na verdade, em considerações gerais de método e dc filosofia do
da natureza, é um dos seus elementos; por isso eía deve ser tra­
que no grande modelo do Humanismo e no ideal dc saber que
tada segundo as mesmas regras que valem para todas as espé­
o caracteriza. O mestre espiritual desse movimento não 6 Spinoza
cies de conhecimento empírico. Por que se deveria, além disso,
mas Erasmo. As convicções religiosas e o ethos do Humanismo
esperar da Bíblia verdades absolutas, intuições metafísicas acerca
tinham, com efeito, encontrado sua primeira expressão clássica
do princípio fundamental das coisas, acerca da natura naturans,
na edição crítica do Novo Testamento publicada por Erasmo.
quando ela própria é apenas uma realidade condicionada e se­
gunda, quando ela própria pertence integralmente à natura nata- Partira este do princípio de que, ao restabelecer o texto autên­
ratai O método que se impõe para a interpretar e compreender, tico da Bíblia, devolvia-se ao mesmo tempo à doutrina cristã
paTa chegar h sua verdade relativa consistirá portanto, necessa­ toda a sua pureza original. Gue se decante esse texto de todos
riamente, em tratá-la, em interrogá-la com os meios da investi­ os acréscimos tardios, de todas as falsificações arbitrárias, e a
gação empírica. As dificuldades que ela contém, as contradições imagem do cristianismo puro se destacará por si mesma, em sua
evidentes que comporta, resolvem-se desde que cada texto seja sublime simplicidade, em sua significação ética primeira e fun­
colocado de novo em seu contexto; quando, em vez de consi­ damental. Essa convicção devia inspirar a obra do maior dis­
derar cada passagem da Bíblia uma verdade intemporal, ela é cípulo de Erasmo, Hugo Grotius. Foi no espfrilo extraordinaria­
explicada pelas particularidades de sua origem e pela individua­ mente amplo e alimentado em todas as fontes da erudição hu~

250 >51
manisia e teológica de Grotius que nasceu o primeiro plano com­ de conceitos antropomórficos. Ela foi assim excluída definitiva­
pleto de crítica bíblica; suas Annotationes ao Antigo e ao Novo mente do domínio da verdade filosófica, a qual não poderia ser
Testamento traçaram nos mínimos detalhes o caminho a ser se­ apreendida na imaginado mas apenas concebida na ratio e na
guido pela investigação do século X V III. Ernesti fala com a intuitio. O que o espírito religioso considera ser a garantia su­
maior admiração dessa obra, e vale-se dela expressamente como prema de toda "inspiração” é, portanto, pelo contrário, para
de um modelo. No Tratado da livre investigação do cânone Spinoza, a sua fraqueza e a sua deficiência radical. A violência
(1771), de Semler, esse desenvolvimento obteve a sua primeira com que s inspiração a possa-se do indivíduo e submete-0 intei­
e concludente realização. A crítica filosófica pouco tem a acres­ ramente, a maneira como faz dele um instrumento sem cons­
centar a esse trabalho; ela contenta-se, de um modo geral, cm ciência e sem vontade nas mãos de uma potência estranha, apa­
remeter para os seus resultados e em aduzir deles as conseqüên­ rentemente superior: todos esses traços excluem a possibilidade
cias lógicas, No artigo "Bíblia" da Enciclopédia, D ide roí esboça de uma verdade autêntica e rigorosa, pois toda verdade está
um quadro quase completo das tendências e tarefas essenciais da ligada à condição da liberdade interior e da intuição racional.
crítica bíblica. Estabelece os diversos critérios que permitem Ela só pode ser alcançada se a potência das paixões e da imagi­
apreciar a autenticidade dos livros das Escrituras; exige que se nação for represada e submetida ao comando rigoroso da razão,
analise cuidadosamente o conteúdo desses livros, que se averigúe A intensidade da paixão, a força da imaginação que se manifes­
as condições em que eles foram escritos, que se determine exa­ tam no visionário religioso, no profeta, são a prova mais certa,
tamente a data de sua composição. O princípio da inspiração portanto, de que suas visões nada têm a ver com a descoberta
verbal foi assim rejeitado de uma vez por todas: 0 método de de um conteúdo de verdade objetiva nem com a proclamação de
uma vontade divina universalmente coerciva, e de que toda essa
interpretação histórica penetrou até o cerne do sistema teológico.
predicação permanece vinculada à subjetividade do profeta que.
Mas, apesar de todas as negativas, não foi um abandono
embora pretendendo falar em nome de Deus, na verdade somente
do verdadeiro espírito desse sistema o que assim se produziu?
fala em seu próprio nome e somente divulga o seu próprio estado
O senso histórico recém-despertado não foi um verdadeiro vene­
interior. O capítulo de introdução do Tratado teológico-poiítico
no que a teologia recolheu em seu seio? Voltando a Spinoza, não
o qual trata da profecia, desenvolve essa tese com perfeita niti­
pode haver nesse ponto nenhuma dúvida: a idéia de historici­
dez. Ele mostra que a imagem de Deus muda com cada profeta,
dade da Bíblia só comporta "um sentimento essencialmente nega­
que eia recebe a forma de sua imaginação e a cor de seus humo­
tivo, pois todo o saber que se liga e se limita às relações de tem­
res, Segundo o temperamento do profeta, a força da sua imagi­
po ostenta, em definitivo, a marca da “imaginação". Semelhante
nação, segundo os eventos por ele vividos anteriormente, a men­
saber nunca nos poderá fornecer uma idéia adequada, uma in­ sagem transforma-se. "Conforme for o homem, assim será o seu
tuição estritamente objetiva. Mantém-se confinado no domínio Deus": suave para o suave, colérico para o colérico, sombrio e
da subjetividade, do puro antropomorfismo. Reconhecer e tratar severo para o oprimido e 0 melancólico, bom e misericordioso
a Bíblia como uma realidade condicionada pelo tempo, eis o para o espírito sereno/'*1 PaTa exprimir o pensamento profundo
que significa exatamente para Spinoza considerá-la uma coleção da crítica bíbiica de Spinoza na língua do seu sistema, que o

9 S2 253
Tratado teológicopolítico não pode c não deve evidentemente noza introduz na religião a consideração da história, essa ini­
falar, digamos que a "substância", a natureza e a essência de ciativa só pode e deve servir para limitar-lhe o alcance, para
Deus, não pode ser dada em nenhuma visão profética, mas que evidenciar os limites intransponíveis de sua certeza, e não para
nessas visões é sempre um certo "modo" que se exprime e a si justificá-la filosoficamente.
mesmo se anuncia. E mais do que em qualquer outra parte im-
Mas foi então que ocorreu uma prodigiosa virada na histó­
põe-se aqui a tese de que toda determinação é negação, l.onge
ria das idéias do século X V III: o primeiro grande pensador que
de tal forma de expressão poder trazer para a íuz o âmago e o
realmente compreendeu Spinoza. que profundamente meditou e
sentido do divino, ela é, peto contrário, a sua aniquilação. A
compartilhou do seu pensamento, irá agora ultrapassar as con­
característica do divino é a sua universalidade, a qual exclui
clusões do seu mestre. Lessing é quem dará ao spinozismo a sua
toda limitação ao individual, todo vínculo com o individual.
verdadeira fisionomia, libertandu-o das caricaturas com que o
Os milagres e as visões proféticas da BíbÜa ferem essa certeza
heviam sobrecarregado os teólogos e filósofos seus adversários.
primordial da filosofia. Ë procurar Deus no ocasional e no con­
Foi ele 0 primeiro a enxergar a doutrina de Spinoza sob a sua
tingente, em vez de procurá-lo no universal e no necessário. O
verdadeira luz, e entregou-se a esse pensamento sem reservas
milagre, como usurpação {Eingrijf) da ordem natural, como rup­
nem preconceitos; perte do fim de sua vida, nada mais tinha,
tura com suas leis universais, é absolutamente antidivino. pois
segundo parece, de essencial, de decisivo, a opor ao seu rigor ló­
nessas leis consistem a verdade e a essência de Deus: constituem
gico e à sua necessidade interna, A entrevista com facobl mos­
o seu testemunho. “Mas uma vez que, necessat iomente. nada é
verdadeiro senão por um decreto divino, as le!s universais da tra em Lessing, desde o começo, um spinozista convicto: "As
natureza são simples decretos divinos decorrentes da necessi­ concepções ortodoxas da Divindade nada mais significam para
dade c da perfeição da natureza divina. Portanto, se alguma mim; não as tolero. Ev xai llãv : não conheço nenhuma outra."
coisa ocorresse na natureza em contradição com as suas leis uni­ Mas toda a grandeza de Lessing, sua soberba imparcialidade, sua
versais, isso também estaria cm contradição com o decreto, com receptividade, assim como sua originalidade e profundidade, re­
o entendimento e a natureza de Deus; ou, se admitirmos que velam-se ainda por esta característica: foi ele quem, sem deixar
Deus age contrariamente às leis da natureza, seremos obrigados de reconhecer Spinoza como seu mestre, tomou a iniciativa de
a admitir também que ele age contra a sua própria natureza, ç ultrapassar as suas conclusões, segundo uma lógica puramente
nada pode ser mais absurdo,” KI1 A crença nos milagres, no senti­ imanente, metodológica. O caráter essencialmente produtivo da
do próprio, é portanto para Spinoza a perversão do sentido re­ crítica de Lessing é aí não menos evidente do que no domínio
ligioso: pregar os milagres significa negar a Deus. A situação da crítica estética e literária. Verifica-se que ele aceila a visão
não é diferente no tocante a todas essas profecias e revelações de Spinoza sobre os pontos mais importantes, os mais essenciais;
religiosas subjetivas que provêm dc indivíduos isolados e so­ sem dúvida, mas peh maneira como os acolhe, impregna-os com
mente exprimem essas naturezas particulares. Toda particulari­ o seu próprio caráter e o seu próprio pensamento, ao ponto de
dade é negação da universalidade: toda historicidade restringe, os reformar por completo. Lessing, tal como Spinoza, nega ao
perturba e oblitera o racional. Na medida, portanto, em que Spi- milagre todo o valor probatório no plano religioso. Por conse-

254 255
guínte, o milagre autêntico reside no universal, não no parti­ poralidade como tal não constitui o contrário do ser, porquanto
cular, não no contingente mas no necessário. Os "milagres da só nela 0 ser pode aparecer e manifestar-se em sua pura essen-
razao , corno lhes chamava Leibniz, são para ele o testemunho cialidade. Ao levar essa idéia fundamental para o domínio da
autêntico e o selo do divino. Lessing adere, portanto, com Spi- religião, Lessing tem pela frente um problema inteiramente novo
noza, à unidade e à universalidade da idéia da natureza e, ao c uma solução não menos nova: doravante, não mais se recor­
mesmo tempo, defende o postulado da pura imanência. Deus é rerá somente à historicidade das fontes da religião para criticá-
uma potência intramundana (eine innerweltUche Macht), não ex­ la, até mesmo para refutá-la; agora, a historicidade enrafza-se no
terior ao mundo; não uma violência que irrompe no mundo da sentido fundamental e originário da religião. Ao passo que Spi­
nossa experiência, mas uma força que o impregna e o elabora noza, ao examinar a sua história, só pensa em contestar o valor
interiormente. Lessing, entretanto, vê o modo como se processa absoluto da revelação, Lessing quer, pelo contrário, executar
tal elaboração sob um prisma diferente de Spinoza. Onde este através desse mesmo exame a restituição (Restitution), o resgate
só via decepção e ítusão, Lessing entreviu uma verdade nova e da religião. A verdadeira, a única religião "abscluta” é aquela
essencial. As relações entre todo" e " parte", entre **universal" que abriga em si a totalidade das formas fenomenais do religiös«?.
e particular t entre universalidade e individualidade são, com Nada de individual está absolutamente perdido nela; nenhuma
efeito, muito diferentes nele do que eram para Spinoza. A sig­ visão tão particular, inclusive nenhum erro, que não sirva, num
nificação do particular e do individual não é puramente nega­ sentido, à verdade e não lhe pertença. Desse pensamento funda­
tiva; ela também ê, por outra parte, eminentemente positiva. mental nasceu Erziehung des Menschengeschlechts ÍA educação
Por esse traço, reconhece-se em Lessing o partidário firme e cons­ do gênero humano], de Lessing, que transfere para um novo
tante de Leibniz que nunca deixou de ser. Mens non pars est, domínio o conceito teibniziano de teodicéia: ao conceber a re­
sed simulacrum divimtatis, repraesentalivum universi: dessa fór- ligião como um plano divino de educação, Lessing elabora uma
mula leibniziana característica Lessing está em seu pleno direito Icodicéía da história, ou seja, um sistema de justificações que
de aproprtar-se. A individualidade tampouco representa para ele aprecia a religião não em função de um ser estável, dado no co­
uma limitação simplesmente quantitativa, mas uma determinação meço dos tempos, mas em função do seu devir e da finalidade
qualitativa, incomparável e insubstituível: não um fragmento do desse devir.
real, mas uma representação perfeita, autêntica e exaustiva do Descobre-se toda a dificuldade que e^sa nova idéia teve em
real. Desse modo, a existência temporal adquire uma outra ex­ impor-se se compararmos, sobre esse ponto, Lessing e Men­
pressão, um aspecto muito diverso do que tinha em Spinoza. delssohn. Por muito próximos que estejam esses dois pensadores
Tendo definido a mônada como "expressão da multiplicidade na pelo conteúdo de seu ideal religioso, a separação entre eles é
unidade , Leibniz podia igualmente defini-la como expressão do muito nítida no plano do método. Sem dúvida, Lessing e Men­
temporal no imutável. A mônada só é à medida que se desenvolve delssohn estão, por seus pressupostos teóricos, estreitamente apa­
progressivamente, e não existe cm seu desenvolvimento nenhuma rentados: arabos aderem às concepções leibnízianas. No início,
fase separada que não seja absolutamente indispensável ao todo, apenas havia entre eles uma diferença de orientação: enquanto
que não lhe pertença necessariamente. Portanto, a forma da tem- Mendelssohn se contenta, em geral, com a interpretação tradi-

256 257
cíon2l que essas concepções encontraram no sistema de Christian ciilrc as verdades necessárias ou enire as verdades contingentes?
Woiff, Lessing, em contrapartida, movido por seu senso crítico Ilascia-se num princípio racional intemporal ou num princípio
e por seu interesse pela filosofia da história, preferia remontar temporal histórico? Lessing debateu-se longamente com esse pro­
incessantemente às fontes. O esquema geral do pensamento é o blema e parece ter, por veies, desesperado de resolvê-lo; ele
mesmo, portanto, para Lessing e Mendelssohn: é fornecido pela uno pode renunciar à "racionalidade” da religião nem pôr em
distinção Ieibniziana das formas fundamentais da verdade.58 A dúvida a particularidade, a própria singuíaridade de suas for-
teoria Ieibniziana do conhecimento tinha, com efeito, traçado iniis, a realidade de seus vínculos com uma tetra e uma época.
uma fronteira rigorosa com o objetivo de separar as verdades Ü cerne da fé não consiste em admitir, em ter por verdadeiro
“eternas'1 e as verdades "temporais", as verdades "necessárias" um sistema conceptual intrinsecamente válido e absolutamente
e as "contingentes". As verdades eternas e necessárias exprimem Intcmporal; a fé não pode deixar de estribar-se numa verdade
as relações que regem as idéias puras, quer essas idéias possuam singular, única no seu gênero, acerca de um evento individual e
ou não, efetivamente, um objeto na realidade, no mundo empí­ sem retorno. Entre esses dois caminhos naturalmente separados,
rico real. Os teoremas da geometria ou da aritmética puras não existirá uma terceira soiução? "As verdades históricas contin­
são menos eterna e necessariamente verdadeiros mesmo que não gentes jamais podem provar as verdades neccssárias da razão."
exista na realidade espaço-temporal, no mundo dos corpos físi­ HSe nada tenho a objetar, historicamente, ao fato de que o
cos, nenhuma forma singular que corresponda exatamente aos Cristo ressuscitou um morto, deverei aceitar igualmente por ver­
rigorosos conceitos estabelecidos pelas matemáticas para os núme­ dadeiro que Deus tem um filho da mesma natureza que ele? Se
ros e as diversas figuras geométricas. E o que vale para as ver­ nada tenho a objetar historicamente ao fato de que o próprio
dades matemáticas não vale menos, segundo Leíbníz, para as Cristo ressuscitou dentre os mortos, deverei aceitar igualmente
verdades da lógica, da ética e da metafísica. São, com efeito, por verdadeiro que esse Cristo ressuscitado era o filho de
ciências que não se valem somente do mundo real. dado aqui e Deus? f . . . 1 Saltar dessa verdade histórica para umu outra classe
agora, mas também de todo e qualquer mundo possível. Elas não muito diversa de verdades, exigir de mim que mude. por essa
se referem a tal existência singular no espaço, a tal evento único razão, iodas as miohas concepções metafísicas e morais [ ...] se
no tempo; nelas se exprime a forma absolutamente universal da isso nào é uma fístá^acnç eh; ãXXo yévoç , então
própria razão — da razão sempre e por toda parte idêntica a st ignoro o que Aristóteles poderia entender por essa fórmula [ ,..]
mesma, que ignora toda a possibilidade de mudança, de movi­ Tal é o abismo horrivelmente profundo que não pude resolver-
mento, de alteração, pois que toda alteração significaria declínio me a transpor, apesar de ter tão freqüente e seriamente tentado
de sua natureza originária, supranatural e eterna. Partindo dessas o salto. Que aquele que puder acudir-me o faça, eu lhe peço e
definições leibniziunas da verdade e das distinções específicas lhe imploro. E que Deus lhe conceda a merecida recompensa." 87
que elas implicam, cai-se inevitavelmente na questão de saber Nem a teologia nem a metafísica especulativa do século
de que modo são aplicáveis ao problema da certeza religiosa e X V U l continham em si um princípio que permitisse responder
quais as conseqüências de que se revestem para esse problema. verdadeiramente à indagação de Lessing e satisfazer suas exigên­
A que espécie de certeza pertence a fé religiosa? A f<5 tem lugar cias. Ele precisava encontrar o seu próprio caminho, descobrir o

258 259
meio de entulhar a seus pés 0 "abismo horrivelmente profundo". Inaceitável que a realização do fim supremo da humanidade pu­
Foi essa, de íato, a tarefa realizada por Lessing em sua última desse ser confiada a um guia tão duvidoso quanto a história,
obra de filosofia da religião. O histórico não se opõe ao racio­ luiii todas as suas iiracíonalidades e contradições, seus prós e
nal: é o caminho paru a sua realização, o lugar autêntico, o contras sem objetivo e seu repouso, com suas flutuações e erros
Único lugar, a bem dizer, de sua efetivação. Os elementos que l>erpétuos. É por isso que ele foge ás mudanças inúmeras para
o espírito a nali tico de Lsibniz distinguira com um esmero e ncolher-se nas leis invioláveis e sempre idênticas da razão, Mas,
uma clareza incomparáveis tendem de novo a juntar-se, A reli­ no fundo, Lessing já não conhece tal "razão", Isso não significa
gião, segundo Lessing, não pertence absolutamente à esfera do que ele não tenha sido, desde o início, o grande racionaüsta que
etemo e do necessário, nem à esfera do puro contingente e do fui até o fim, mas substitui a concepção analítica da razão por
temporal. Ela é a união de ambas, sua unidade, manifestação sua concepção sintética, a visão estática por uma visão dinâmica,
do infinito no finito, do eterno racional no devir temporal. Por Sc da nos mostra por si mesma o movimento, a razão quer,
todos os desenvolvimentos que forneceu a esse tema, Lessing já não obstante, compreendê-lo sem sua própria lei imanente. É ela
se situa, evidentemente, na transição da filosofia do lluminismo própria quem mergulha agora na corrente do devir, não para
propriamente dita. Tanto u "neologismo" teológico quanto o ra­ oe deixar agarrar e arrebatar por seus redemoinhos, mas para
cional ismu universitário não podiam acompanhá-lo nesse cami­ encontrar, no seio desse devir, n sua própria certeza, para afir­
nho, pois essas duas correntes pensam a razão no sentido dn mar sua perenidade e sua constância. Nesse pensamento despon­
"identidade analítica":98 a unidade e a verdade da razão ba­ ta a aurora de uma nova visão do ser e da verdade da história
seiam-se em sua unicidade e em sua uniformidade e não pode­ que não podia, na realidade, brotar, aperfeiçoar-se e afirmar-se
riam subsistir validamente de outro modo. A atitude adotada no âmbito da teologia e da metafísica. Coube a Herder dar, nesse
por Mendelssohn a respeito das teses de Lessing è particular­ caso, o primeiro passo decisivo ao formular o problema para a
mente característica e esclarecedora: "Por minha parte — lemos totalidade da realidade histórica e ao procurar uma resposta na
no Jerusalem de Mendelssohn — não faço a menor idéia dessa uhscrvação concreta dos fenômenos históricos. Mas a sua inicia­
educação do gênero humano que o meu falecido amigo Lessing tiva só aparentemente foi solitária. Ela não apresenta a menor
deixara que não sei que historiador da humanidade lhe metesse ruptura com o pensamento da época iluminista; desenvolveu-se
na cabeça. O progresso 6 para o homem individual, a quem a lenta e constantemente no seio desse mesmo pensamento, nutriu-
Providência concedeu passar na Terra uma parte de sua eterni­ se do seu solo. O problema da história apresentara-se à filosofia
dade [ . , . J Mas, que o conjunto da humanidade deva avançar ra­ do lluminismo, em primeiro lugar, no âmbito dos fenômenos reli­
pidamente neste mundo, na seqüência do tempo, e aperfeiçoar-se, giosos, e foi aí, de fato, que a sua urgência impôs-se. Mas não po­
não me parece que tenha sido esse o objetivo da Providência: dia limitar-se a esse primeiro aspecto do problema; por isso se viu
pelo menos, não é, nem de longe, tão certo e tão necessário sempre arrastada para mais longe, na direção de novas conse­
quanto se tem o costume de imaginar a fim de salvaT a Provi­ qüências e de novas exigências. E foram essas conseqüências e
dência divina." Para Mendelssohn, que encarna aqui o próprio essas exigências que lhe abriram todo o vasto horizonte do mundo
tipo de filósofo do lluminismo, era em definitivo uma idéia histórico.

260 261
NOTAS

' Cf. Holbach, Politique naturelle, Discurso 111, em particular # X II


c .vs. f reproduzido em Hubert. D’Holbach ri .«-j amis, Paris, « n i duU,
pp. 163 e ss.)
1 Dideroi. Traité de la tolérance, ed. por Tourneux em Diderot et
Cathérine II , pp. 292 e ss.
s Diderot. Supplément au voyage de Bougainvllle (1771), Oeuvres
(Assezat), II, pp. 199 e ss.; cf. especialmente II, pp. 240 e ss.
* Paru uma exposição mais compléta, cf. o meu iivro tndividuum
und Kosmox in der Philosophie der Renaissance. Suid. der Bibl: Wxrburg
X. Leipzig, 1927.
® Para mais detalhes, consultar o meu tivro Oie Píatonische Re-
naissance in lingland und die Schiile von Cambridge, caps. 2 e 4,
n S. Troellsch, Renaissance und Reformation, Ces. Werke, vol. 4.
pp. 275 e ss.
t Pascal, Pensées, art. VI7I (ed. Ernest Havet. 3.‘ edição, Paris,
1897, I. p. 114).
flCf. Voltaire, Remarques sur les pensées de M . Pascal, 1728-78,
Oeuvres (Lequien, Paris, 1921), X X X I, pp. 281 e ss.
* Cf. Additions aux remarques sur les "pensées” de Posent (1743);
op. cit., vol. X X X I, p. 334: “f existe, donc quelque chose existe de toute
éternité est une proposition évidente."
10Pensées, V III (op. cit. p. M i ) : "Le noeud de notre condition
prend scs replis et ses IOUTS dans cet abîme; de sorte que l'homme est
plus inconcevable sans ce mystère que ce mystère n'est inconcevable à
l'homme." 10 nó de nossa condição fa i sens entrelaçamentos nesse abis­
mo; de modo que o bomem é mais inconcebível sem esse mistério do
i|iic esse mistério inconcebível ao homem.]
*■
* Cí. em particular, " Il faut prendre un parti ou le principe l'action"
11772); sec. X V II: “Des romans inventés pour deviner l’origine du m al."
{Oruvres, X X X I, p. 177)
is " Il faut prendre un parti" [É preciso tomar partido], sec. XVI
Ufeuvres, X X X I, pp. 174 e ss.).
13 Cf. Pensées, ed. Havet. X X IV , p. I; X X V , p. 34 (II, 87, lî<>) c
ptissim.
H Cf. o poema Le Mondain (1736) e Défende du mondain OH Vupt>-
loyie du luxe. Oeuvres, X IV , pp. 112 e sa., 122 e SS. As análises seguinte»

263
3obre Voltaire e Rousseau já foram parcialmente publicadas em forma '** Cf. em especial a exposição de Troeltsch, Die Bedenlung des
um pouco diferente. Cf. o meu artigo: “Das Problem Jeao-Jacques Protestantismus für die moderne Welt, 3.* edição, Munique e Berlim,
Rousseau", Archiv für Geschichte der Philosophie, ed. Arlhur Siein, vol. 1927, assim como Renaissance und Reformation (Gêj. Werke, IV, pp, 261
XLT. J932, pp. 210 e u . e w-).
ls Poime sur le disastre de Lisbonne ou eXamen de et! aziome: taut *0 CF. Diderot, Lettre sur its sourds et muets, assim como Pensen*
est bien (1756), Oeuvres, X II, pp. 179 e $$. piutasophiques, séc. X II: “La superslition est plus injurieuse que 1'ithéis-
18 Seüi insistir demais sobre esse ecletismo d o s debates em lorao me*”
do problema da teodjcéia, remeto o leitor para as obras de J. Krcmcr, 81 Resposta d pergunta: o Que £ o Huminisino?, Kant, Werke, IV,
Das Problem der Theodizee in der Philosophie und Literatur des 18 p. 169.
Jahrhudert, BerJim, 1909; e de K.. W olff, Schillers Theodizee mH einer as AddUions aux pensécs pMosophiques, XI*
Eifiletung Uber das Theodizeeproblem in der Philosophie und Literatur
das 18 Jahrh., U ipaig. 1909. 35 Sobre a sigoificaçãú do Orieatt para a cultura francesa do século
XVJTJ, cf. Martino, LfOríent dons le litlêrature française üttx X V II6 ct
17 Mauperluis, Essai de philosaphie morale, caps. I. IV e V: Oeuvres,
X V III* sièctes, Paris, 1906-
vol. pp. 193 e 83.
*4 Diderot, Pensées phUosopftiques, X X V I; Oeuvres {Assczai), I, 138.
18 Ibid., cap. II, pp. 201 e as.
*5 Bayle, Commentaire philoxopftitjut sur cts paroles de l'ßvangile:
19 Kant, Werke (ed. Cassirer), II, pp. 2\9 e 35-
contraiu,f les tfentrer; Oeuvres Diverses, Hain, 1727, II, 367-74.
3 Kant, Kritik der Urteilskraft [Critica do juízo J, 5 83, Werke,
36 Voltaire, Traité sur la foi/rance à 1‘occasion de la riorf dt íean
V , p. 514.
Çaftis, caps. 1 t 4 {Oeuvres, X X IX , pp. 63, 74 e ss.).
21 Para mais detalhes sobre a teoria da forma e o fuadaraenlo da
Diderot, De fa tujjisance de la religlon r.aiurrUe, IV , XVILI, X X V
Teodicéiã. de Shaflesbury, cf. o x c u estudo sobre Die Platonische Reinas-
t &s.
sance in England . . . cf. acima, p. 109» cap. pp. 110 e » •
Cf. por exemplo Diderot, Introduction aux grwtds príncipes, e sua
33 A Continuação baseia-se parcialmente no meu artigo j l citado.
resposta às objeções contra essa obra. Oeuvres, cd Naigeon (1798), I.
"Das Problem Jean-Jacques Rousseau", para o qua] remeto o leitor para
p. 350.
todas as explicações complementares e as justificações mais rigorosas que
se trapõein. Cf. acima p. 263, noia U . Sß Tolaod, Christianity not mysferious, pp. 12 e 128.
23 Kant, Werke (Hartenstein) VTII, p. 630, 40 Para acompanhar esse desenvolvimento cm detalhe, ver sobretudo
a penetrante exposição de Leslie Stephen, Hiitory of english ihoughi on
24 Para o COtyUalo, comparar a exposição de Rousseau noa dois tke Eighteenth Century, 2 vols.. 2.* edifâo, Londres, 1881; cf. também
Discursos coroados pela Academia com os Pensamentos de Pascal, em Troeltsch, artigo "Deismus", Gm. Schriften IV, pp, 429 e ss.; e Hermann
particular te arts. II e IV , ed. Havct, I pp. 26 e $$, 48 e ss. Schwarz, artigo "Deismus" cm Pädagosisches Leticon (Vethagen &
** Cf. Rousseau, esboço autobiográfico: Rousseau jage de Jcan- KJasing).
Jacques, 3.^ di&OgO.
Bayle, Commentaire phUosophiqve, Oeuvres Diverses, p. 367.
2« Cf. Oiscours sur Porigine de finégatité parmi les fiommes (Oeu­ 4- Sobre o desenvolvimento do díísmo na Alemanha, pode-se con-
vres, Zweibrücken, 1732, pp. 75 e ss., 90 e ss., 138 e M.). SLillar Hetlner, Literaturgesi'h, d. achtsehnt, Jahrhunderts, 3.* edição,
27 Para tima exposição mais completa acerca do conteúdo e dos III, pp. 204 e ss.
princípios gerais da Filosofia do direito de Rousseau cf, adiante, cap. VI.
Para detalhe desse desenvolvimento, cf. por exemplo Troeltsch,
2* Exemplos dessa polêmica encontram-se noj "Sermões” e nos escri­ em seu artigo "Aufklärung", Ges. Schriften, IV, pp, 370 e ss. Para a
tos póstumos de Jerusalem, awim conao na autobiografia de Semlcr orientação da primeira corrente 'wolffiana. cf, especialmente Os escritos
Cf. tambécn sobre esse desenvolvimento como um todo, Aner, Theologie de Cana, Usus Philasophiae Leibniiiuitoe et Wolffiunae in TfteOlogia
der Lestingzeit, pp. 50 c ss.. 158 c ss., 223 e passim. (1733) e Philosophiae Woiffianae consennur cum Thcvlogta (173J),

264 265
*■*Sobre o desenvolvimento da "neologia" na Alemanha, cf. espe­
cialmente a descrição e o abundante material compilado por Aner, Theoto-
gie der Lrssingzeit, Ha lie, 1929. Sob o aspeulo bistórico, tám particular
interns« as relações existent« entre os “ncólogos" alemães do século
X V III e a filosofia da religião inglesa do século XVU. A idéia de "expe­
riência religiosa", tal como eslá represe ntadn, por exemplo, cm Jerusalem,
foi prefigurada em particular pelos pensadores tia "Escola de Cam ­
bridge". Delalhes a esse respeito em meu livro Die Pialotiischc Renais- V
saner in h ng land ... (cf, acima. p. 119); cm especU. pp. 19 e ss.
«■'Cf, o Prefácio tie Reimarm para a seu Abhandlung von dtn A CONQUISTA DO MUNDO HISTÓRICO
vornehtusten Warheitcn der naturtiçhen Religion.
4,1 Cf. Clarke. A demonstration oj lhe being and attributes of God,
Londres, 1705/06.
*1 Ver a V II Letire stir Its anglais. Oeuvres, X X V I, pp. 35 e H.
48 Traité de métaphysique, cap. II, Oeuvres, X X X I, pp. 20 e ss.
4S Collins, A Ji.M ourse of freeihinkitty oirusfaned by the rise and
growth of a sect railed freethinkers. Londrei, 1713. Para umu inforniu^flo
mais completa, ver Leslie Stephen, op. cil., vol. I, p. 80. Essa idéia tão corrente de que o século X V III é um século
su Para todo este assunto, cf. Hume. J he natural history of religion, especificamente “a-histórico" constitui, em si mesma, uma idéia
sec. I e ss., sec. VI, XII1-XV, desprovida de qualquer fundamento histórico: nada mais do que
51 Hume, op. cil., sec. XV. uma palavra dc ordem divulgada pelo Romantismo, uma divisa
*a Cf. Richard Simon, H'sioire critique du Vieux Testament, Paris,
para se pari ir em campanha contra a filosofia do Uuminismo.
1678.
E se examinarmos um pouco mais de perto o desenrolar dessa
33 Spinoza, Tractatus thcologico-politicus, cap, 17; edição alcmÜ coor­
denada por Carl üebhurdt, Leipzig. 1906. Philos. Bibliotbek, vol. 93, campanha, não se tarda em descobrir que foi o próprio Século
p. 135. das Luzes que forjou as armas. O mundo da cultura histórica,
M Cf. especialmente, Theolog.-poiit. Traktat, cap. 2, edição alemã ao qual se recorre tanto, do lado do Romantismo, contra a filo­
(Gebbardt), p. 4].
sofia ilummista, e em nome do qual se combatem os seus princí­
w Op. cil., cap. 6, pp. 112 e ss.
pios intelectuais, só foi descoberto graças à eficácia desses
r>«0 leilor encontrará uma exposição mais compleia do que so segue
no meu aritgo “'Die Idee der Religion bei Lessing und Mendelssohn” princípios, graças às idéias e aos ideais do século X V III. Se não
ztim zchnjitrigen Besic hen dcr Akudetnie fiir die Wissensihttjt se tivesse beneficiado da ajuda e da herança intelectuais do Ilu-
dea Judentums. Berlin), 1929, pp. 22 c w.: umu separata desse artigo
minismo, jamais o Romantismo teria podido estabelecer c susten­
baseou-se na supracitada exposição).
57 Letting. Ober den Ucwets des Grwfr.i und dcr Kraft, Uchriften tar as suas posições. Por mais que se afaste da filosofia das
(ed, Lachmann-Muncker), X III, pp. 5 e ss. Luzes em sua concepção da materialidade da história, em sua
CÍ. acima cap, I. pp. 35 e s.s. "filosofia da história" substancial, permancce-lhe ligado em seu
método, do qual é profundamente devedor. Com efeito, é ainda
o século X V III que, nesse domínio, formulou o problema pro-

267
266
priameníe filosófico, questionaudo ag condições de possibilidade a caber à época que sucedeu ao Romantismo restabelecer um
da história, tal como já questionara antes as condições dc possi­ equilíbrio mais justo. Ela própria estava saturada de espírito
bilidade da física. Trata-se apenas, evidentemente, de um pri­ romântico e aceitava o postulado de historicidade estabelecido
meiro esboço, mas ele esforça-se por estabelecer essas condições e fundamentado peto Romantismo. Mas, ao mesmo tempo, adota­
a fim dc apreender o "sentido" do devir histórico, para adquirir ra em relação ao século X V III a distância conveniente, o que
uma idéia clara e distinta do que seja esse sentido, para fixar lhe permitiu conceder, em suma, a esse mesmo século 0 bene­
as relações entre "idéia" e "realidade", entre "lei" e "fato", e fício do ponto de vista historicista. Dillhey foi um dos primei­
para traçar limites estáveis e seguros entre esses termos. Que o ros, no seu artigo "Das achtzehnte Jalnhundert und die geschicht-
Romantismo tenha, em grande medida, desconhecido esse tra­ liche Welt" lO século X V III e o mundo históricol,1 a conferir
balho de pioneiro decisivo, que em muitos casos o tenha recha­ ao Século das Luzes a fruição plena e integral desse benefício.
çado com desdém,, essa atitude não deve continuar influenciando Se ele refutou de forma definitiva nesse artigo a "fable con
e perturbando por mais tempo o nosso julgamento, Há uma venite” de um século X V III a-histórico e anti-histórico, os pro­
curiosa ironia no fato de que o Romantismo, na acusação que blemas concretos suscitados a tal propósito estão, entretanto,
formula em nome da história contra a filosofia do Iluminismo, muito longe de ser resolvidos. Pois não se trata somente de
comete justamente a falta que assaca ao seu adversário. Parece acrescentar um "senso histórico1', como um traço necessário e
que, de súbito, os papéis inverteram-se, que se produziu uma indispensável, ao quadro geral da época iluminista, mas de defi­
completa reviravolta dialética. O Romantismo, que ultrapassa nir a direção própria da nova corrente intelectual que tem aí o
incomparavelmente o século X V III pela amplitude do seu hori­ seu ponto de partida e proceder depois ao acompanhamento dos
zonte histórico e por sua capacidade de penetração histórica, seus efeitos específicos. A visão da história do século X V III é
perde esse privilégio a partir do instante em que se trata de colo­ menos a de um edifício acabado, de contornos bem-delimitados.
car esse século numa justa perspectiva histórica. Aquele que do que a de uma força agindo cm todos os sentidos. Como essa
se entrega ao passado com todas as forças do coração e do força se comporta, inicialmente, num ponto determinado — o
espirito, a fim de o apreender em sua realidade pura, fracassa domínio dos problemas religiosos e teológicos — e como pros­
diante desse passado próximo com o qual ainda se encontra segue em sua expansão, atingindo progressivamente todos os
em relação direta. Os princípios elaborados para vencer 0 recuo domínios do espírito? De que modo aí se revela e se mantém
do tempo, inclusive o extremo distancianfento histórico, revelam- como um impulso vivo? As considerações que se seguem tenta­
se inaplicáveis à vizinhança histórica. A respeito da geração que rão responder a essas questões.
o precede imediatamente, da geração de seus pais, ,foí e conti­
nuou sendo vitima de "cegueira histórica11. Nunca se preocupou
em avaliar o Iluminismo segundo suas normas específicas, não 1
soube, em especial, ver e tratar o quadro do mundo histórico
elaborado pelo século X V I, a não ser em termos polêmicos, E A filosofia do Iluminismo considera desde o começo que
não é raro essa polêmica transpor os limites da caricatura. Viria os problemas da natureza e os da história formam uma unidade

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que é impossível desfazer arbitrariamente a fim de tratar à parte não se tratava de contar com o apoio da existência de fato dc
de cada uma das frações. Ela pretende abordar uns e outros uma ciência comparável, por seu grau de certeza e pela solidez
com o mesmo equipamento intelectual, aplicar à natureza e à de suas razões, à física matemática. Era preciso, pelo contrário,
história a mesma espécie de problemática, o mesmo método uni­ num só movimento de pensamento, conquistar o mundo da
versal da "razão”. Antes de tudo, é que, sob a sua nova forma, história e fundamentá-lo, assegurar o seu domínio no decorrer
conhecimento físico e conhecimento histórico defrontam-se com da conquista. É claro que tal tarefa não podia ser realizada de
o mesmo adversário, contra o qual devem proteger-se em comum. repente, porquanto exigia uma longa e árdua preparação. Mas
Nos doís casos, cumpre descobrir um fundamento puramente é justamente essa preparação que convoca para a luta todas as
“imanente"; nos dois casos, todo o esforço tem por objeto a forças intelectuais do século e que, dc um outro lado, testa-as.
tarefa de estabelecer natureza e história em seus próprios terre­ Era preciso eníão que a filosofia do Iluminismo se convertesse
nos, fixá-las em suas articulações centrais. A ciência como tal num pensamento efelivamente produtivo; ela não podia conti­
recusa-se a reconhecer qualquer realidade sobrenatural ou trans- nuar a contentar-se em reunir os resultados científicos que lhe
histórica. Vimos como nasceram dessa recusa uma nova idéia Cram apresentados pelas diversas disciplinas; tinha que pôr mãos
de Deus e uma nova "ciência sagrada" {Gottesgelehrlheit) uma h obra e tratar de realizar ela própria, em grande medida, as
nova forma de religião e de teologia. As concepções dos teólogos tarefas de uma ciência propriamente dita. Voltaire, no domínio
inovadores, dos "neólogos" setecentistas, apóiam-se sobretudo na da física, é apenas aquele que desbravou o caminho para Newton
idéia e na exigência de uma crítica histórica das fontes da reli­ na literatura, o divulgador de suas idéias e de seus princípios;
gião. Na Alemanha, Mosheim e Michaelis, Ernesti c Semler tor­ mas, no domínio da história, é uma concepção original e inde­
naram-se os verdadeiros "mestres da geração neologista”. Aqui, pendente. uma nova abordagem metodológica que Voltai re assu­
a história é quem ergue o facho do Século das Luzes, quem me o risco de inaugurar, abrindo-lhe o caminho no seu Essai
liberta os "neólogos" dos grilhões da interpretação dogmática sur les moeurs [Ensaio sobre os costumes]. Todos os grandes
das Escrituras e da ortodoxia dos séculos precedentes.3 Mas a ensaios históricos que o século XV1I1 produziu estão asara sob
situação não podia, evidentemente, ser tão simples e unívoca em a influência dessa impressionante façanha filosófica. Assim como
história quanto na física, onde a filosofia do século X V III via influenciou na França Turgot e Condorcet, Voltaire influencia
um domínio reconhecido e consolidado há muito tempo. Na na Inglaterra Hume, Gibbon e Robertson. E Hume é, ao mesmo
física, o conhecimento já dera, depois da Renascença, o passo tempo, a prova direta da estreita união pessoal que existe dora­
decisivo, a nuova srienza de Galíleu reivindicara e obtivera sua vante entre a história e a filosofia. A época da "historiografia
dignidade própria e sua independência como pensamento cien­ filosófica" que começa no século X V IIf procura realizar um
tífico. Tal como Kant, toda a filosofia do Iluminismo podia, por­ equilíbrio entre esses dois elementos. Não quer, de maneira algu­
tanto, considerar a física matemática um "fato”, cujas condições ma, submeter unilateralmente a história aos imperativos cons­
de possibilidade podiam, evidentemente, ser debatidas, mas cuja trutivos da filosofia, mas separar imediatamente dela própria,
realidade se impunha sem contestação nem reserva. Para a his­ da riqueza c da visão palpitante do detalhe histórico, novas
tória, em contrapartida, ainda havia todo um trabalho a realizar; tarefas e novos problemas filosóficos. A permuta dc idéias que

270 271
desse modo se instaurou e que não parou de crescer em inten­ não só o testemunho da experiência sensível mas todo o saber
sidade e amplitude é proveitosa para ambas as partes. Assim que não seja rigorosamente demonstrável, que não seja redutível
como a matemática se tomou o protótipo das ciências exatas, u axiomas evidentes e à demonstração racional. Daí resulta que
também a história é agora o modelo metodológico a que o século a dimensão da história fica inteiramente fora do círculo do ideal
X V III conferiu uma nova e profunda compreensão da tarefa de saber cartesiano. Não existe o menor conhecimento de um
universal e da estrutura específica das ciências humanas. O pri­ fato que possa conduzir a esse ideal, à verdadeira sapienlta
meiro passo devia ser ainda libertar o conjunto dessas ciências universalis. Em suma, a dúvida cartesiana apenas comporta um
da tutela da teologia. Ao aceitar, numa escala crescente, a intro­ caráter negativo a respeito da história: ela rechaça e recusa,
dução do método histórico em sua própria esfera, ao constituir-se üra, em vez de recusar os fatos como (ais, Bayle faz deles, pefo
ela mesma história dos dogmas da Igreja, a teologia era reco­ contrário, o verdadeiro tipo e o modelo de toda a sua teoria da
nhecida, ao mesmo tempo, como uma aliada que não tardaria ciência. Estabelecer fatos perfeitamente seguros, inabaláveis, tal
em revelar-se mais poderosa do que ela e em contestar-lhe final­ é, para ele, o ponto de apoio arquimediano, o ponto de amarra­
mente o domínio do seu próprio terreno, A competição amistosa ção de toda cicncía. Assim é que, em pleno século rigorosamente
redundaria em conflito, o qual deveria engendrar a nova forma racional e racionalista, ele será o primeiro “positivista'1 convicto
da história e das ciências humanas em geral. c conseqüente. A opinião de D ’Alembert, de que a metafísica
De um ponto de vista puramente filosófico, as origens desse só pode ser uma ciência de fatos se não quiser converter-se numa
movimento remontam ao século X V II. O cartesianismo, com sua ciência de quimeras, poderia ter sido pronunciada por Bayle.
orientação estrita e exclusiva para o "racional", mantivera-se es­ Ele renuncia a todo o conhecimento das primeiras “causas"
tranho ao mundo histórico propriamente dito. Segundo ele, o absolutas do ser e só quer considerar os fenômenos como tais;
conhecimento de um fato nunca pode ter pretensões à verda­ é no quadro do mundo fenomenal que Bayle quer operar a
deira certeza, nem comparar-se em valor ao saber etaro e distinto distinção clara e nítida do certo e do incerto, do “provável” e
da lógica, da malemálica pura e das ciências exatas da natureza. do errôneo e ilusório. Portanto, aplica a dúvida ã realidade
O pensamento de Malebranche não se afasta um milímetro se­ histórica, serve-se dela como de uma ferramenta para descobrir
quer dessa regra: só perlence ao domínio do saber autêntico, n verdade da história, para atingir uma forma de certeza que lhe
"filosófico”, declara ele, "aquilo que o próprio Adão teria podi­ seja própria e adequada. Nessa investigação, ele é infatigável
do conhecer". Hm seus começos de filósofo, Bayle ainda é um e insaciável, impelido pelo instinto sempre desperto para exami­
cartesiano convicto, que nunca deixou de testemunhar, em espe­ nar os dados do mundo fático, histórico, e adotar uma posição
cial, sua admiração pela física cartesiana. Mas a dúvida metódi­ cm relação a eles. Nesse mundo histórico nada existe para Bayie
ca assume nele, porém, uma outra direção e atribui-se uma outra de indiferente ou de insignificante; dificilmente se vislumbra
finalidade. A dúvida de Descartes é determinada pelo princípio nele algumas nuanças de valor e de significação. Não é por
de que não podemos confiar em nenhuma fonte de certeza que acaso que ele escolheu para a sua obra crítica a forma de um
nos tenha iludido uma vez ou que contenha em si a possibilida­ Dictionnaire historique ei critique. Ao invés do espírito de su­
de de nos iludir. Medido por esse critério, cumpre-nos rejeitar bordinação que rege os sistemas racionais, o Dicionário faz pre-

272 273
valecer o princípio da simples sucessão por vizinhança, Nunca até dessa realidade. A certeza, a indiscutível validade formal da
ac encontrarão nele idóias hierarquizadas, deduzidas umas das demonstração matemática, não pode resgatar o caráter fundamen­
outras, mas sempre a mera acumulação de materiais, todos no talmente duvidoso de sua aplicação à realidade concreta das
mesmo plano, todos pretendendo o mesmo direito a serem inte­ coisas. A história depende de um outro "género de certeza"
gralmente expostos e Iraladas catn profundidade. Não sc observa (genre de certilude) que a matemática, mas é suscetível de ser
sequer um princípio de seleção na maneira como ele armazena infinitamente aperfeiçoada no interior desse gênero. O fato de
esses materiais. Apenas aqui e ali se surpreende um toque de que um indivíduo chamado Cícero existiu é metafisicamente
escrúpulo ou uma ponta de dúvida; mas em nenhum momento mais certo do que a existência real. (>i natura rerum, de um
ele age de acordo com um plano metódico que permita fixar objeto como aqueles que a matemática pura define.1
limites aos diversos conteúdos, separar o importame do secundá­ Todas essas considerações dão acesso, efetivamente, ao
rio, o essencial do acessório. Acontece com freqüência que o mundo dos falos; maá não fornecem nenhum espécie de princí­
não-essencial ou mesmo o inteiramente insignificante encontra pio que perniita obter verdadeiramente o domínio desse mundo,
lugar no Dicionário, que nesse seja objeto de desenvolvimentos assegurar o seu controle intelectual. O conhecimento histórico
circunstanciados e de atenções cuidadosas, ao passo que o impor­ ainda não consiste em mais do que um simples agregado, uma
tante é entregue ao abandono, Não é o peso das coisas que deci­ soma dc detalhes sem vínculos entre eles e sem lógica interna.
de a escolha dos assuntos, mas a preferência contingente, indi­ A realidade histórica apresenta-se a Baylo como um amontoado
vidual, o interesse subjetivo que a erudição de Baylc manifesta monstruoso de escombros e faltam todos os meios para se asse­
justamente pelos objetos mais longínquos, as antiguidades mais nhorear peto pensamento dessa massa de materiais. Era neces­
raras, as curiosidades históricas, Bayle tem perfeita consciência sário o inesgotável poder de assimilação de Bayle pfira enfrentar
dessa sua característica pessoal e refere-se-lhe freqüentemente o caudal crescente e invasor do saber especializado. A própria
nas descrições que faz de si mesmo em seus escritos e nas suas moldura do Dicionário explode. O núcleo original dos artigos
cartas intimas. Escreveu ele certa vez a seu irmão: *]e vois bien independentes encontra-se agora flanqueados por um verdadeiro
que mon insatiabiüté de nouveiles esi une des maladies opiniâtres exército de comentários, observações e noias, que acabam por
contre tesquetles tons les rcmèdes blanchissent. Cest une hy- sufocá-lo inieiramente. E, na maioria das vezes, Bayle apaixona-
dropsie toute pure. Phts on lui fournit. plus elte demande." 3 O se muilo menos pelos artigos fundamentais e pelas "questões
amor ao fato pelo fato, a “devoção ao minúsculo" atingem nele essenciais" que aí são tratadas do que por aquelas que nos pare­
uma vivacidade inaudita. E essa concepção do saber opõe-se cem justamente ser "acessórias", Não só ele se entrega alegre­
consciente e expressamente ao ideal do saber racional rigoroso. mente ao não-essencial mas, além disso, vê aí a expressão da
Como efeito, por maiores que sejam as vantagens que este últi­ nova tarefa que lhe incumbe como hisloriador. Não se ofende
mo saber tenha, em exatidão e rigor, sobre o saber puramente com a censura de futilidade nem com o título de minutissimarum
empírico do historiador, essa concepção deverá pagar tais van­ rerum minutissimus scrutalor que lhe conferem. Não é por incli­
tagens com um defeito essencial. O seu caráter estritamente ra­ nação pura, explica ele, mas por reflexão, por uma intenção
cional veda-lhe todo o contato direto com a realidade, exclui-a metódica consciente, que optara por essa maneira de trabalhar.*

274 275
Se a historiografia moderna, com efeito, pode e deve suplantar fnloH singulares essas pedras sólidas com as quais o historiador
a antiga, é pprque não se contenta como esta em dar apenas o ileve erguer o seu edifício: a tarefa que o excita e o apaixona é
esboço das coisas (te gros des choses) mas prende-se a iodas as justamente a atividade intelectual que permite adquirir as pedras
particularidades a fim de fornecer para eias uma detalhada expli­ l>iira a construção. Com uma clareza sem precedentes, ele de­
cação crítica® Nada está mais distante do pensamento de Bayle monstra o complexo de condições a que está justamente vincula­
do que um projelo de filosofia da história, do que uma inter­ do o fato como tal. É esse conhecimento que faz de Bayle o
pretação teleológica da história. Disso ele já foi impedido por lógico da história. O fato já não é para ele o começo do conhe­
seu profundo pessimismo, o qual lhe proíbe descobrir em qual­ cimento histórico; num certo sentido, é o seu fim; seu tertninus
quer parte da história um plano coerente, um todo racionalmen­ ad quem e não mais o seu terminus a quo. Essa diligência nao
te organizado. Uma olhada para os fatos, para a história real da parte dele, chega até ele: quer desembaraçar o único caminho
humanidade, deve bastar para curar-nos de todas as especulações que pode conduzir a uma verdade dos fatos. Não sc pense que
e construções apressadas, ensinando-nos que essa história nunca li:mos essa verdade ao alcancc da mão, que podemos apreendê-la
foi oulra coisa senão o rosário de crimes e infortúnios do gênero de imediato em sua realidade sensível; pelo contrário, ela só
humano.7 Vê-se que, quanto mais dirigimos um olhar lúcido e l>ode ser o resultado de uma operação intelectual que não deixa­
penetrante para o singular, mais teremos que renunciar ao conhe­ ria nada a desejar cm complexidade, sutileza e rigor aos mais
cimento, 3 compreensão verdadeira do todo, reduzir a nada, pelo difíceis raciocínios matemáticos. É necessário o mais refinado
contrário, toda a esperança de uma tal compreensão, exame seletivo, a mais atenta investigação critica e uma avalia­
E, no entanto, essa dissolução e desintegração do mundo ção crítica dos testemunhos individuais para descobrir e extrair
histórico em Bayle produziram finalmenle uma concepção nova, da sua ganga o núcleo sólido de um determinado "fato ” histó­
positiva e altamente proveitosa do todo. As partes separadas rico. O valor especial dessas considerações históricas decorre do
unem-se e cristalizam-se em torno de um centro de gravidade fato de Bayle não se ter contentado em apresentar irt abstracto
determinado precisamente por esse modo de investigação; Bayle essas exigências mas de segui-las até nas pesquisas mais concre­
não toma a realidade do "fato" num sentido material mas for­ tas de detalhes. Antes dele, jamais a crítica da tradição tinha
mal; essa realidade não é somente para ele um p”oblema de sido realizada com tamanho rigor e inexorabilidade, com uma
conteúdo mas, sobretudo, um problema de método. 8 a essa tão minuciosa exatidão. No levantamento sistemático dc suas
nova orientação que Bayle deve a sua verdadeira originalidade lacunas, dc suas obscuridades, de suas contradições, Bayle é in­
e a sua importância na história do pensamento. Com efeito, fatigável. E é aí que brilha 0 seu verdadeiro gênio de historiador,
dificilmente um só dos fatos coletados por Bayle à custa desse que consiste, por paradoxal que isso pareça, não na descoberta
trabalho heróico ainda apresenta para nós, materialmente falan* do verdadeiro mas na do falso, O simples plano extrínseco do
do, um interesse essencial. Mas existe, mesmo assim, uma cir­ Dicionário, sua concepção literária inicial já stío- totalmente ca­
cunstancia que conferc à obra, não obstante, o seu valor ines­ racterísticos: Bayle queria, em primeiro lugar, oferecer no seu
quecível: é que, pela primeira vez, a idéia de fato é concebida Dicionário não uma enciclopédia do saber mas uma “coletânea
como um problema profundo. Bayle já não considera mais os de erros". "Por volta do mês de novembro dc 1690" — escreve

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ele numa carta — "formei o projeto de compor um Dicionário obra com a última das grandes concepções e construções pura­
crítico, o qual conteria uma coletânea de erros que têm sido mente teológicas da história que foram tentadas, aquela que
cometidos, tanto pelos que fizeram dicionários como por outros Itossuet nos deixou no seu Discurso sobre a história universal.
escritores, e que reduziria, sob cada noine de homcra ou de cida­ l üsa obra oferece-nos um vasto plano de conjunto, sublime à
de, os erros referentes a esse homem ou a essa cidade." 8 A su­ nua maneira, uma interpretação religiosa universal da história.
perioridade intelectual de Bayle, seu virtuosismo erudito e lite­ Mus essa iniciativa tão ousada, se considerarmos os seus funda­
rário encontraram aí seu terreno de eleição. Seu instinto de mentos empíricos, os fatos sobre os quais ela assenta, foi verda­
farejador celebra aí seu verdadeiro triunfo; seu júbilo nunca é deiramente edificada sobre areia, A verdade desses fatos só pode
maior do que quando surpreende a pista dc um erro secreto que ser assegurada, com efeito, por um circulo vicioso. Toda auto­
vinha arrastando-se há séculos. Uma ve2 mais, a ordem de ridade dos fatos, dos dados históricos, repousa para Bossuet na
grandeza desses erros importa-lhe muito ponto; Bayle está fasci­ autoridade da palavra bíblica; mas essa mesma autoridade, ele
nado por sua existência como tal e por sua qualidade. É preciso tem que fundá-la, por sua vez, na autoridade da Igreja e, por
que o erro seja perseguido até em seus últimos entrincheiramen- conseguinte, na tradição. Assim, a tradição toma-se o funda­
tos, em seus tillimos refúgios, e seja extirpado a todo custo, quer mento de toda certeza histórica. Mas no que se baseia o con­
0 seu objeto seja grande ou pequeno, sublime ou miserável, teúdo c o valor próprios da tradição? Em testemunhos históri­
grave ou insignificante, O fanatismo crítico de Bayle apíica-se cos, nem mais nem menos. Bayle é o primeiro pensador moderno
igualmente às matérias mais fúteis, é a propósito delas que se n desvendar esse circulo com um rigor crítico implacável c a
mostra mais constantemente entusiasmado, pois é nelas que resi­ enfatizar inúmeras vezes as conseqüências fatais. Desse ponto
de por excelência o erro histórico sob sua forma específica. Aí de vista, Bayle não fez muito menos pela história do que Galilcu
se vê como a mais insignificante negligência na transmissão e pela física. Ga li leu exige a independência total da física cm
propagação da tradição acarreta as conseqüências mais fatais, relação ao texto bíblico para a interpretação dos fenômenos,
como pode levar até uma falsificação radical da verdadeira si­ impõt: e justifica metodicamente essa exigência: Bayle abre o
tuação. Toda negligência dessa ordem deve ser, portanto, des­ caminho dessa independência em história, Foi ele quem realizou,
mascarada implacavelmente, e esse trabalho puramente negativo mutatis mutandis. a revolução copernicana em História. Em vez
do historiador não deve fraquejar em momento algum nem de basear a "verdade" da história num pretenso dado objetivo
recuar diante do mais imperceptível dos detalhes. Nenhuma in­ imposto dogmaticamente pela Bíblia ou pela Igreja, ele retorna
formação alterada deve escapar a essa prova; nenhum citação às fontes subjetivas, às condições subjetivas dessa verdade. A
inexata é permitida, nenhuma deve ser citada de memória, sem crítica das fontes históricas, que lhe serviu de ponto de partida,
referência à fonte real.® Por todas essas exigências Bayle foi o adquire em suas mãos uma amplitude cada vez maior até con­
verdadeiro criador da "acribia" histórica. Para a sua obra filo­ verter-se nuina espécie de "crítica da razão histórica . Nada é
sófica, entretanto, essa acribia é apenas, evidentemente, um mais errôneo e prejudicial, segundo ele, do que o preconceito
meio e não um fim em si. Para entender bem a finalidade para de que a verdade histórica poderia e deveria ser aceita como
que tendem as considerações de Bayle, cumpre comparar a sua moeda corrente, na base do crédito. Mas, pelo contrário, a mis*

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são da inteligência consiste em proceder à cunhagem da moeda iiiriito dialético sem igual. Foi no Dicionário que a filosofia do
e em testar cuidadosamente cada peça, antes de pô-lo em cir­ [luiuinismo aprendeu a formular os seus próprios problemas.
culação. (|tic encontrou forjadas as armas que deveria utilizar para a
emancipação da consciência histórica. E, nesse sentido, Bayle
G taubst du denn: von Mund zu Ohr
Ini não só o lógico da nova ciência mas, além disso, o seu mo-
Sei ein redlicher Gewinnst?
nilísto. fi o apóstolo e a encarnação viva das virtudes propria-
Überliefrung, o du Thor,
mrnte históricas, A história só pode ser tocada com mãos limpas,
Ist auch wohl ein Himgespinnst!
níiu se cansou Bayle de proclamar, o relato histórico não deve
Nun geht erst das Unheil an;
Dich vermag aus Glaubensketien t>cr impedido por nenhum preconceito nem desfigurado por ne­
Der Verstand allein zu retten, nhuma parcialidade confessional ou política.10 "Todos os que
Dem du schon Versieht gethan. l unhe cem as leis da História estarão de acordo em que um
liístoriador, se quiser cumprir fielmente suas funções, deve des­
[Crês, pois, que da boca à orelha poja r-s<3 do espirito de adulação e do espírito de maledicência
Haja um lucro honesto? e colocar-se o mais possível na posição de um estóico, a quem
A tradição, ó insensato, nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar
Ainda é uma quimera! (itento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o res­
ß de julgamento que se trata agora; sentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até
Dos grilhões da crença mesmo o amor da pátria. Deve esquecer que está num certo
Só o intelecto pode salvar-te. país, que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor dc
Ele, a que tu já renunciaste.]
gratidão a este ou àquele, que tais e tais são seus progenitores
Esses versos do West östlicher Divan de Goethe são, talvez, ou seus amigos. Um historiador, enquanto no exercício de sua
os que permitem resumir da maneira mais clara e mais perti­ função, é como Melquisedeque, sem pai. sem mãe e sem genea­
nente o papel de Bayle e os que melhor caracterizam a sua logia. Se lhe perguntarem donde veio, deverá responder: não
orientação pessoal. É a sua inteligência penetrante, inflexivel­ sou francês, nem alemão, nem inglês ou espanhol; sou habitante
mente analítica, a que libertou em definitivo a história dos gri­ do mundo; não estou a serviço do imperador, nem do rei da
lhões da Fé e estabeleceu-a sobre fundações metodológicas au­ França, mas somente a serviço da verdade; essa é a minha única
tônomas. Inaugura essa taTefa peia crítica da tradição teológica rainha, só a ela prestei juramento de obediência." Por essa má­
mas, ao invés de ficar por aí, estende as suas investigações a xima e o imperativo moral que a fundamenta!, Bayle foi o grande
todo o conjunto da história profana. Ê no que precisamente ele mestre da filosofia do Iluminismo, esboçou o seu "projeto de
foi o precursor do século X V III, para o qual o Dictionnaire lima história universal desde uma perspectiva cosmopolita",
historique et critique constituiu não só uma reserva científica encarnando-a numa obra-prima que é o seu exemplo e modelo
inesgotável mas também um exercício intelectual, um treína- clássico,

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2 cala cm suas exposições de tempos em tempos submergem a linha
de pensamento e ameaçam torná-la quase irreconhecível. Mas.
Bayle nunca nos deu uma verdadeira filosofia da história; quunto ao conteúdo, toda essa riqueza é dominada e validada
a bem dizer, se considerarmos a sua concepção geral e as suas por um princípio rigorosamente intelectual. "Examinei primeiro
premissas metodológicas, ele nem mesmo podia tentar oferecer- os homens" — escreve ele no Prefácio da obra — “e julguei
nos uma. O primeiro a enveredar por esse caminho foi Giam- que, nessa infinita diversidade de leis e costumes, não eram cies
battista Víco, cujos Principi di una scienza nuova d ’intorno alia Lirienlados unicamente por seus caprichos. Coloquei princípios e
comune natura ddle nazioni constituíram o primeiro esboço siste­ vi os casos particulares submeterem-se a eles por si mesmos, as
mático de uma filosofia da história. Na verdade, essa obra, conce- histórias de todas as nações serem apenas seqüências e cada lei
bida numa perspectiva de oposição deliberada a Descartes e desti­ particular ligada a outra lei, ou depender de uma outra mais
nada a expulsar o racionalismo da história, essa obra que se apóia geral.”
mais na "lógica da imaginação" {Logtk der Phantasie) do que na Assim, para Montesquieu, a realidade dos faios comu tal
de idéias claras e distintas', nenhuma influência exerceu sobre não é a finalidade obrigatória da investigação. Ê apenas uma
a filosofia do Iluminismo. Permaneceu mergulhada numa obs­ etapa a transpor com o objetivo de chegar a alguma outra coisa
curidade donde só viria a ser tardiamente retirada por Herder. que é a verdadeira meta da investigação. Pode-se afirmar que
No âmbito da filosofia do Iluminismo, a primeira tentativa de­ Montesquieu é o primeiro pensador a conceber e exprimir de
cisiva de fundar uma filosofia da história foi obra de Montes- maneira clara e precisa a noção do “tipo ideal" histórico, O
quieu. Nesse sentido, O espírito das teis caracteriza uma nova espírito das leis é uma teoria política c sociológica dos tipos. A
época; é uma obra que não nasceu diretamente de interesses obra quer mostrar e demonstrar que os k..ganisin>.s i-olíticos que
históricos e que ignora a pura alegria do fato estabelecido em designamos pelos nomes de república, aristocracia, monarquia,
sua unicidade, tão característica de Bayle. O simples título da despotismo não são meros agregados de elementos variados, que
obra de Montesquieu já indica que se trata do espírito das leis cada um dentre eles está, por assim dizer, pré-formado, c é a
e não dos fatos. Ele não averigua, examina ou avalia os fatos expressão de uma determinada estrutura. £ evidente que essa
per se mas pelas leis que neles se apresentam e exprimem. As estrutura permanece escondida enquanto ficarmos na simples
leis somente são acessíveis numa matéria concreta, não se pode consideração dos fenômenos políticos e sociais. Nesse domínio,
descobri-las em qualquer outra parte nem demonstrá-las de outro nenhuma forma é idêntica a nenhuma outra; encontramo-nos
modo, Entretanlo, por outro lado, essa matéria só encontra seu diante de uma heterogeneidade total e dc uma variabilidade
conteúdo e seu sentido verdadeiros quando tornada como exem­ quase ilimitada. Mas essa aparência desfaz-se desde o instante
plo, como paradigma de relações universais. Montesquieu mani­ em que sc aprenda a retroceder dos fenômenos para os princí­
festa, tanto quanto Bayle, um amor decidido pelo detalhe, cuja pios, da diversidade das Formas empíricas para as forças consti­
contemplação procura adquirir através de estudos profundos e tuintes. Apercebemo-nos então, na abundância de repúblicas, de
dc grandes viagens. O prazer que lhe causa o singular é tão vivo a república, nas inúmeras monarquias históricas, de a monarquia.
que a ilustração particular, o acessório anedótico que cie inter­ Montesquieu quer mostrar no detalhe que o princípio sobre o

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qual repousa a república, sobre o qual se baseia a sua perma­ ti Moníesquieu, porém, o mérito de ter descoberto um novo c
nência, é a “virtude" (vertu) cívica, ao passo que a monarquia fecundo princípio e fundado um novo método das ciências si>
se alicerça no princípio da honra c o despotismo, no medo. ciais. Ora, é notável que esse método dos “tipos ideais”, de que
Compreendemos assim que a verdadeira diferença, a essencial, é dc é o iniciador e que aplica com perfeita mestria, nunca tenha
a diferença de impulso {Antriebe), de motivação intelectual e víndo a ser depois abandonado como tal e que, pelo contrário,
moral, que confere a cada sociedade a sua forma e o seu mo­ somente na sociologia dos séculos X IX e X X tenha encontrado
vimento, Explica Moníesquieu: "Entre a natureza do governo e o desdobramento completo de suas múltiplas possibilidades. E
seu princípio há esta diferença; a sua natureza é o que o faz ser Montesquieu já extrai daí a doutrina de que todos as elementos
como é, e sen princípio é o que o faz agir. À primeira constitui constitutivos de uma determinada sociedade estão entre si numa
sua estrutura particular e a segunda, as paixões humanas que o situação de estrita correlação. Não são as parcelas de uma soma
movimentam.” 11 Moníesquieu tem perfeita consciência da na­ e sim forças interdependentes cuja ação recíproca depende da
tureza lógica particular dos conceitos fundamentais que ele assim forma do todo. Até nos mínimos detalhes verifica-se essa comu­
introduziu. Não vê aí conceitos abstratos que possuíssem tão- nidade de ação e essa organização estrutural. O modo de edu­
somente a universalidade de um gênero e apenas pretendessem cação. o sistema de justiça, a organização do casamenlo e da
destacar certos traços comuns, tal como se encontram nos fenô­ família, iodo o mecanismo de política interna e externa: tudo
menos reais. Para além de tal generalidade empírica, eíe quer isso depende, num cerlo sentido, da forma fundamental do Es­
estabelecer a generalidade, a universalidade de sentido que se ex­ tado; é impossível modificá-los arbitrariamente, sem afetar ao
prime nas formas particulares de Estado; quer tornar visível a mesmo tempo essa forma fundamental c. em última instância,
regra interior que domina e governa essas formas. O fato de destruí-la. Com efeito, a corrupção de uma sociedade não começa
que essa regra nunca se exprima plenamente em qualquer forma cm tal ou tal direção de sua ação mas na destruição do seu
individual, de que não possa realizar-se plena e exatamente em princípio interno: “A corrupção dc cada governo começa qua?e
nenhuma individualidade histórica, nada retira à sua importân­ sempre pela dos princípios." 13 Enquanto o seu princípio se
cia. Ao atribuir às diversas formas de Estado um princípio espe­ mantiver como tal, enquanto se mantiver saudável, uma forma
cífico, repousando a essência da república na virtude, a da mo­ política nada tem a tem eT sobre o seu futuro; o próprio enfra­
narquia na honra etc., ele não entende que se possa tomar essas quecimento de suas instituições e de suas leis particulares não
essências por realidades empíricos concretas. Mais do que um ser, lhe causará nenhum dano. Por outro lado, desde que o princípio
é um dever-ser (ein Soílen) o que elas exprimem.12 Ê por isso desmorone, desde que adormeça a força que interiormente o
que as objeções que podem ser suscitadas contra a realização do aciona, as melhores leis deixam de oferecer qualquer proteção:
sistema de Moníesquieu não valem forçosamente contra suas "Quando os princípios do governo são corrompidos uma vez,
idéias fundamentais. A infra-estrutura empírica na qual ele lenta as melhores leis tornam-se más e voltam-se contra o Estado:
fundamentar seu sistema pode parecer muito imperfeita nos dias quando seus princípios são sadios, as más têm o efeito das bons:
de hoje, por causa do nosso horizonte histórico ampliado, da a força do princípio arrasta tudo [. ] Poucas são as leis que não
nossa problemática sociológica mais elaborada; isso não retira sejam boas quando o Estado não perdeu os seus princípios; e

284 285
como dizia Epicuro, referindo-se às riquezas: não é o licor que so de uma batalha, ou seja, uma causa particular, arruinou um
está estragado, é o vaso,"14 Estado, havia uma causa geral que fazia com que esse Estado
Se acabamos assim de delinear os contornos de uma filo­ devesse perecer através de uma única batalha. Numa palavra, a
sofia política, ainda não apresentamos, contudo, o menor fun­ situação principal arrasta com ela todos os acidentes panicul;-
damento para uma filosofia da história. Os tipos ideais descritos res." IU As condições físicas agem igualmente sobre esse estado
por Montesquieu são, com efeito, formas puramente estáticas. geral, E Montesquieu é um dos primeiros pensadores a indicar c
Elas estabelecem um princípio de explicação do ser do corpo so­ assinalar a importância das mesmas, a mostrar o vínculo que une
cial sem oferecer nenhum meio de interpretação do seu devir. a forma política e as leis de um país ao seu clima e à natureza
Entretanto, Momesquieu não duvida dc que o seu método não do seu solo. Nesse ponto, entretanto, recusa a simples dedução a
possa estender-se a esse problema também com proveito. Está partir de fatores puramente físicos; ele subordina as causas ma­
convencido de que o devir, à semelhança do ser. nada mais é teriais às espirituais. E evidente que nem todo solo, nem todo
do que um simples agregado, um desenrolar de eventos inde­ clima convém a tai ou tal forma política; mas, inversamente, as
pendentes e separados, mas que é possível descobrir aí igual­ condições físicas nunca são inteiramente determinantes. Ê tarefa
mente certas orientaç5es típicas. É possível, sem dúvida, que. que compete sobretudo ao legislador estabelecer condições jus­
visto do exterior, aquilo a que chamamos "história" nunca ma­ tas e sãs para o Estado. Os maus legisladores são aqueles que
nifeste semelhante orientação e só deixe entrever um enredo cedem às deficiências do clíma; os bons, aqueles que se aper­
de "acasos”. Mas esse aspecto lende a dissipái-se à medida que cebem das deficiências e contra elas reagem com todas as suas
se passa da superfície dos fenômenos para a sua verdadeira pro­ Iorças morais e espirituais. “Quanto mais as causas físicas levam
fundidade, O caos. o conflito dos eventos singulares dissolve-se. os homens ao repouso, mais as causas morais devem afastá-los
os fenômenos reduzem-se a uma "razão” que permite explicá-los. dele.” !T O homem não está simplesmente submetido às forças da
"Os que afirmaram que uma fatalidade ceett produziu fodos os natureza; ele conhece essas forças e, graças a esse conhecimento,
efeitos que vemos no mundo disseram um grande absurdo, pois é capaz de conduzi-las para a mela que escolheu, de estabelecer
que maior absurdo do que uma fatalidade cega ter produzido entre elas um equilíbrio que assegure a conservação da sociedade
seres inteligentes? Existe, portanto, uma razão primeira e as leis "Se é verdade que o caráter do espirito e as paixões do coração
são as relações que se encontram entre ela e os diferentes seres, são extremamente diferentes nos diversos climas, as leis devem
assim como as relações desses diversos seres entre si.” 1S £ certo ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses ca­
que, com bastante freqüência, parece que o mero acaso decide racteres." IS O curso geral c o objetivo geral da história estão
do destino de um povo, determina a sua grandeza e a sua deca­ assim impregnados de uma ordem comparável à chis leis da natu­
dência. Uma observação mais penetrante leva, porém, à desco­ reza, em rigOT e em certeza. No nível de desenvolvimento em
berta de um outro quadro. "Não é o acaso que domina o mun­ que nos encontramos ainda íalta muito, sem dúvida, para que o
do r..-] Existem causas gerais, quer morais, quer físicas, que mundo moral esteja tão bem ordenado quanto o mundo físico.
agem em cada monarquia, elevam-na, mantêm-na ou precipitam- Se ele também possui leis naturais determinadas e imutáveis, não
na; todos os acidentes estão submetidos a essas causas; e se o aca­ parece obedecer-lhes com tanta perseverança quanto a natureza

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física obedece às suas. A causa disso i que os indivíduos dotados a um quadro absolutamente rígido e inflexível. A esse propó­
de razão estão limitados e, pot via de conseqüência, sujeitos a sito, exisle em O espírito das leis uma fórmula muito significa­
erros, e que, de um outro tado, agem segundo o seu próprio tiva. Descrevendo a Constituição inglesa, que ele reverencia co­
pensamento e a sua própria vontade. Quer dizer, não obedecem mo um modelo político, Montesquieu não sublinha menos o fato
constantemente às leis fundamentais que por eles próprios fo­ de estar bem longe de querer impor a mesma forma de governo
ram criadas.10 Montesquieu, entretanto, é filho do seu tempo, é aos outros puíses, de impô-la como termo obrigatório de refe­
um legítimo pensador du Era do Ihimimsmo, que espera do pro­ rência: "Como poderia afirmar isso, eu que acredito que o pró­
gresso do conhecimento desse estado de coisas uma nova ordem prio excesso de razão nem sempre é desejável e que os homens,
do mundo da vontade, uma nova orientação geral da história quase sempre, acomodam-se melhor no meio do que nas extre­
política e social da humanidade. Ê o que o conduz à filosofia midades?" 21 Até mesmo em suas construções puramente teóri­
da história; do conhecimento dos princípios gerais e das forças cas. Montesquieu procura, portanto, descobrir e conservar cons­
motrizes da história, ele espera a possibilidade de organizá-los tantemente o "meio1' certo, assim como quer manter o equilí­
com mais segurança no futuro, O homem não está somente brio entre os elementos fundamentais do pensamento, entre a
submetido à necessidade da natureza, cie pode e deve criar livre­ “experiência" e a "razão”. Graças a esse dom de equilíbrio, sua
mente o seu destino, construir o seu próprio futuro. Mas um obra continuou exercendo uma influência muito além dos estrei­
simples desejo será impotente se não for conduzido e penetrado tos limites da "filosofia do Iluminismo". Não só foi o exemplo
por uma visão segura das coisas, a qual só pode nascer da união e o modelo da visão histórica dos enciclopedistas mas também
e da concentração de todas as faculdades do espírito. Ela exige, dominou com seu prestígio os seus adversários e críticos mais
ao mesmo tempo, que o espírito observe cuidadosamente as rea­ perspicazes. Embora se empenhasse em combatcr o método e as
lidades individuais, que ele mergulhe nos detalhes empíricos da premissas de Montesquieu, Herder nem por isso admirou menos
história e, por outra parle, que analise teoricamcníc as diversas esse "nobre e gigantesco empreendimento" e ambicionou para
"possibilidades" para as situar e distinguir com nitidez umas das os seus próprios projetos situarem-se à mesma altura desse mo-
outras. Montesquieu mostra idêntica mestria na solução de ambos delo.M
os problemas. Üe todos os pensadores do seu meio, ele é o dotado
de mais viva penetração histórica, o que possuí a mais pura
intuição das diversas formas da existência histórica. Não disse 3
ele um dia, falando de si mesmo, que para faiar da história
antiga tentara adotar o espírito da Antiguidade, metendo-se na Analisando em 1753, no Vosstschen Zeitung, o Essai sur
pele de um antigo? 2,1 Esse olhar exercitado na apreensão do les moeurs de Voltaire, Lcssing inicia o seu artigo com o co­
singular e esse gosto da singularidade preservaram-no igual­ mentário de que a mais nobre ocupação do homem é o homem
mente, em sua construção teórica, de toda parcialidade dou­ — mas de que podemos ocupar-nos desse objeto de "duas ma­
trinária. Sempre se defendeu vitoriosamente contra a exposição neiras diferentes": "Considera-se o homem quer individualmente
puramente esquemática, a redução da multiplicidade de formas quer de um modo geral. Da primeira maneira. £ muito difícil

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inferir que o homem é essa nobilíssima ocupação. Conhecendo políticos, ao surgimento e queda dos grandes iupérics, aos tro­
o homem individualmente, o que é que se conhece? Loucos e nos que desabam. Em vez de prestar atenção ao gênero humano,
celerados [ ...] Outra coisa muito diferente é considerar o ho­ dc adotar por máxima o homo sum, a maioria dos historiadores
mem em geral. Em geral, ele denuncia sua grandeza e sua ori­ itão tem feito outra coisa senão descrever batalhas. O verdadeiro
gem divina. Considerem-se os empreendimentos do homem, como objeto da história é a história do espírito, não o detalhe de fatos
ele amplia cotidi&namente as fronteiras da sua inteligência, como quase sempre controvertidos. "Em vez dessa enorme acumula­
sâo sábias as leis que o governam, quanta diligência seus monu­ ção de fatos, em que um jamais deixa de contradizer a outro,
mentos testemunham [ . . . I Nenhum escritor se dedicou jamais, dever-se-ia reter somente os mais importantes e os mais seguros
de forma especial, a esse objeto, de modo que o autor da presente ii fim de coiocar um fio condutor na mão do leitor e para que
obra tem o direito dc proclamar: libera per vacuum posui ves-
ele fique em situação de formar um juízo acerca da ruína, re­
iigia princeps" ** Lessing, o maior adversário e o crítico mais nascença e progressos do espírito humano, e desse modo aprenda
penetrante que Voltaire encontrou no século X V III, quis nessas
tt conhecer o caráter e os costumes dos diversos povos." **
poucas linhas render plenamente justiça à importância de sua
Voltaire considera, em suma, que os verdadeiros defeitos da his­
obra histórica. Ele toca de imediato no cerne da obra e caracte­
tória, tal como foi escrita até o presente, são, por uma parte,
riza a sua orientação mais profunda: a intenção de Voltaire, efe­
uma concepção e uma interpretação míticas do passado; por
tivamente, consiste em elevar a história acima do "demasiado
cutra parte, o culto dos heróis, ao qual ele não é propenso, em
humano", do contingente, do singular absoluto. Não é sua in­
absoluto. Esses dois defeitos estão em correspondência; consti­
tenção retratar o individual e o ocasional mas o "espírito dos
tuem a dupla expressão de um único defeito mais profundo. A
tempos" e o "espírito das nações". Não se interessa pela simples
interpretação mitológica da história produziu o culto dos heróis,
seqüência de acontecimentos mas pelo progresso da cultura e
dos líderes e dos príncipes, e não pára de alimentá-lo.
pela organização interna dos seus diversos elementos. Sob 3
forma que projetava inicialmente Voltaire, o Ensaio sobre o$
l'aime peu les héros, Us font trop de fracas,
costumes era destinado á marquesa de Chãtelet, que se queixava,
fe hais ces conquérants, fiers ennemis d'eux-mêmes,
por comparação com as ciências da natureza, do caráter heteró­
Que dans les horreurs des combats
clito e fragmentado do saber histórico. Deveria ser possível rea­
Ont placé le bonheur suprême,
lizar em história uma ciência análoga à de Newton, reduzindo
Cherchant partout la mort, et la fesant souffrir
os fatos a leis. Mas não seria possível, tanto em história quanto
4 cent mille hommes leurs semblables.
em qualquer outra área, chegar-se ao conhecimento das leis sem
Plus leur gloire a d’éclat, plus, ils sont haïssables,*
descobrir um pólo imóvel no fluxo dos fenômenos. Esse ele­
mento imulâvel e idêntico não se encontra, por certo, no curso * “Gosto pouco dos heróis, são barulhentos demaís/Detesto esses
infinitamente múltiplo e cambiante do destino dos hotnens; ele altivos inimigos de si mesmos./Que nos horrores dos
c o n q u is ta d o r e s ,
iwmbíitís/Colocaram a felicidade suprema,/Buscando por toda parle a
só pode eslar na própria natureza humana. Que se deixe, por­
mor le, e fazendo-a sofrer/A ccm mil homens seus semelhantes./Quanto
tanto, de prestar unicamente atenção na história aos eventos mais refulge a glória deles, mais abomináveis são.” (N. do T .)

290 291
escreveu Volíaire a Frederico, o Grande, aa carta que lhe enviou munu, aJtua*se diretamente na Unha das idéias e dos princípios
após a vitória de Chotusitz,25 O centro de gravidade da história ik- Voltaire. Como conciliar, porém, essa fé no progresso da
foi assim deslocado, segundo uma intenção metodológica cons­ humanidade — é realmente essa a pergunta que se deve acabar
ciente, da história política paia a história do espírito. Aí reside |u)!' fazer a Voltaire — com a convicção não menos firme de
0 traço característico que distingue nitidamente Voltaire de Mon- ■|iie a humanidade, "no fundo”, é sempre a mesma, de que a sua
tesquieu. Sc o Ensaio sobre os costumes e O espírito das leis verdadeira "natureza" não mudou? Se esta última hipótese preva-
foram publicados, com efeito, quase ao mesmo tempo ç num Irci-, a substância própria do espírito escapa à ação do devir his­
ambiente cultural semelhante, as duas obras perseguem, no en­
tórico, que não pode atingi-la em suas profundidades extremas,
tanto, finalidades muito diferentes. Para Montesquíeu, a vida
l ura quem sabe separar a casca do cerne da história, são sempre
política continua sendo o centro do mundo histórico: o Estado
r por toda parte as mesmas forças que a dominam e dirigem-lhe
é o veTdadeiro sujeito, até único, da história universal. O espí­
o curso. Voltaire permanece fiel a essa concepção que já carae-
rito da história coincide com o "espírito das leis". Em Voltaíre,
Icrizava o pensamento histórico da Renascença e cujos repre-
pelo contrário, o conceito de espírito assume envergadura maior:
i-nlantes principais são Maquíavel e fuan Luís Vives; *B ê a
engloba toda a vida interior, todo o conjunto de transformações
concepção que ele exprime nitidamente e sem rodeios em diver­
a que a humanidade deve submeter-se antes de alcançar o conhe­
sas passagens de sua obra histórica. "Resulta deste quadro —
cimento e a verdadeira autoconsciência. A tarefa essencial a que
tscreveu ele resumindo uma vez mais o conjunto de suas desco­
0 Ensaio sobre os coslumes $e propõe é fazer compreender a lenta
marcha da humanidade em direção a esse objetivo e todos 03 bertas na conclusão do Ensaio sobre os costumes — "que tudo
obstáculos que deve superar, Para realizar essa tarefa, é evi­ ii que se relaciona intimamente com a natureza humana asseme­
dente que não se contentará em considerar a história política; lha-se de um extremo ao outro do universo, que tudo o que pode
0 olhar quererá dominar a história da religião, a da ciência, a depender do costume é diferente, e que é um acaso sc se parece,
da arte, a da filosofia, e haverá o propósito deliberado de traçar u domínio do costume é muito mais vasto do que o da natureza;
assim o quadro completo das fases particulares que o espírito estende-se aos hábitos, a todos os usos, espalha a variedade no
teve dc percorrer e transpor a fim de adquirir sua forma pre­ cenário do universo; a natureza aí difunde a unidade; ela esta­
sente. belece por toda parte um pequeno número de princípios invariá­
Mas justamente a propósito desse plano fundamental, as veis: assim, o solo é por toda parte o mesmo e a cultura produz
considerações de Voltaire sobre a história colocam-nos diante Erutos diversos.” 27 Pode haver, sendo assim, uma história filo­
de uma questão deveras embaraçosa. Ao aprofundar-se essa pers­ sófica no sentido próprio? Toda aparência de mudança, de evo­
pectiva, ao analisac os princípios que a embasam, surge um lução, não se dissipa desde que se reverta aos princípios verda­
curioso dilema. Voltaire é o entusiástico profeta do progresso: Foi deiros que, por trás dos reflexos cambiantes dos fenômenos,
por esse pensamento que ele mais fortemente influenciou o permanecem inalteravelroente idênticos? E o conhecimento ///o-
seu tempo e as gerações subseqüentes. A célebre obra dc Condor- sófico do proccsso histórico não seria, no fundo, a supressão
cet, Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito hu- desse processo? Poderá o filósofo deleitar-se com o variegado e

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confuso caudal de eventos sabendo que essa diversidade é ilusó­ continuamente imposta através de obstáculos e resistências, H
ria, que ela não provém da natureza mas tão-somente do hábito? evidente que a "razão", como faculdade humana fundamental, é
Sobre todas essas questões, a filosofia da história de Voltaire dada desde o início e é por toda parte uma e idêntica. Mas,
não nos satisfaz com qualquer resposta explicita. Mas a soLição longe de se manifestar exteriormente em sua perenidade e em sua
implícita que nos propõe o Ensaio sobre os costumes é não per­ universalidade, ela dissimula-se por trás da multidão de usos e
manecer em parte nenhuma exposto unicamente aos aconteci­ costumes e sucumbe ao peso dos preconceitos. A história mos­
mentos, vincular pelo contrário diretamente a essa exposição tra como a razão sobrepuja pouco a pouco as resistências, como
uma análise intelectual dos fenômenos que permita separar o con­ se torna o que é por natureza. Portanto, o verdadeiro progresso
tingente e o necessário, o duradouro e o passageiro. Desse ponto não diz respeito à razão nem, por conseguinte, à humanidade
de vista, Voltaire concebe o trabalho do historiador estrita­ como tal, mas somente à sua exteriorização, à sua revelação
mente sob a mesma luz que 0 trabalho do físico. Historiador e ISichtbarkeit) empírico-objetiva. E é justamente essa revelação,
físico têm a mesma tarefa, a de descobrir a lei escondida no essa visibilidade progressiva, essa marcha da razão para a com­
fluxo e na confusão dos fenômenos. Essa lei nada tem a ver,
pleta transparência o que constitui o verdadeiro sentido do pro­
tanto na história quanto na natureza, com um plano divino que
cesso histórico. Não compete à história suscitar a questão meta­
atribuiria a cada coisa seu lugar no todo. Devemos renunciar,
física da origem da razão, que ela, de resto, não dispõe de
tantq no conhecimento histórico quanto nas ciências da natureza,
nenhum meio para resolver. A razão como tal é algo de supra-
às tngenuidades da teleologia. Voltaire vê a encarnação dessa te-
temporal, de necessário e de eterno que não requer, em absoluto,
leologia no Discurso sobre a história universal, de Bossuet, que
averiguar a questão do seu começo. Tudo o que a história pode
ele admira, de resto, como obra-prima literária, mas censu­
provar é que o eterno, não obstante, manifesta-se tcmporalmente,
rando-lhe ter assim transmudado em ouro o vil chumbo.*® A
lem lugar no transcurso do tempo e reveia, pouco a pouco, dc
historiografia critica deve nesse ponto prestar à história o mes­
um modo cada vez mais puro e mais perfeito, sua configuração
mo serviço que os matemáticos prestaram às ciências da natureza.
Ela deve libertar a história do domínio das causas finais e re­ primeira c original.
conduzi-la às causas empíricas reais. A física foi libertada da Voltaire fixou nessa concepção fundamental da história o
teologia pelo conhecimento das leis mecânicas da natureza; 6 programa teórico adotado depois por todos os historiadores sete­
necessário que a psicologia realize a mesma tarefa no interior do centistas. Se não logrou pessoalmente o pleno preenchimento
mundo histórico. Ê a análise psicológica que determina, em de­ desse programa no seu Ensaio sobre os costumes, não há, con­
finitivo, o verdadeiro sentido da idéia dc progresso; ela funda­ tudo. por que debitar os defeitos de execução que aí se obser­
menta-a e justifica-a, ao mesmo tempo que aponta seus limites vam ao sistema dc pensamento do seu autor. É uina critica apres­
e mantém seu uso no interior desses limites. Ela mostra que a hu­ sada e superficial aquela que pretende demonstrar através dessas
manidade não poderia ultrapassar as fronteiras da sua "natureza" insuficiências a "não-historicidade” fundamental do Iluminismo.
— que essa natureza, entretanto, não é dada de uma vez por As fraquezas que se apressaram em opor à obra histórica de
todas, que deve, pelo contrário, ser elaborada pouco a pouco e Voltaire são provenientes muito menos do seu sistema do que

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da sua personalidade e do seu temperamento individual. Voltaire abranger com igual amor todas as culturas, looua os tenip'.
não tem a menor propensão para o caminho sereno das investi­ povos. Mas, por outro lado, é inegável que Voltaire possuí espe­
gações históricas, para a moderação, a indulgência e a perse­ cificamente "defeitos de suas virtudes". O que poderia pa­
verança que permitem levá-las a efeito. Se ele se volta para o recer, objetivamente considerado, uma falta de abertura constitui,
passado, não é pelo passado em si mas no interesse do presente sob outro aspecto, a acuidade desafiadora do relato, o que lhe
e do futuro. A história para ele não é um fim mas um meio, confere esses traços vivos e pessoais que cativaram e empolga­
um instrumento de educação e de instrução do espírito humano. ram os contemporâneos. Voltaire foi o primeiro pensador do
Longe de se contentar em examinar e investigar, Voltaire exige século X V III que deu vida à grande obra-prima histórica e
e antecipa com veemência o conteúdo de suas exigências. Não encamou-a num modelo clássico. Aliviou a história do acúmulo
só acredita estar no bom caminho mas vê-se peTto do fim, ine­ de erudição, livrou-a do discurso obscuro e prolixo dos cronistas.
bria-se e exalta-se por atingir, enfim, o seu objetivo após tantos é desse êxito que ele se orgulha, acima de tudo, é ai que ele
esforços e perplexidades. Esse ambiente, esse pathos pessoal coloca toda a sua dignidade de historiador. Quando em 1740 c
transparece constantemente em sua exposição histórica. Essa ex­ capelão sueco Nordberg publicou sua história erudita de Car­
posição é tanto mais perfeita porquanto Voltaire reencontrou no los X II, assinalando alguns equívocos de Voltaire e entregando-
passado a melhor maneira de expressar seu próprio ideal. Por se a algumas criticas um tanto mesquinhas da sua História dt
isso o momento culminante de sua obra histórica é O século de Carlos XH , este último não tardou em devolver-lhe o cumpri
Luís X IV . Sem dúvida, Voltaire é capaz em muitos outros casos mento com ênfase satírica: "Talvez seja uma coisa importante
de vê-los com clareza e de raciocinar com justiça, mas, na maio­ para a Europa” — escreveu ele a Nordberg — "que se saib ■
ria das vezes, seus julgamentos e seus veredictos são exces­ que a capela do castelo dc Estocolmo, que ardeu há ‘iO anos
sivamente rápidos e brutais para permitir um aprofundamento estava na nova a!a do lado norte do palácio e que havia nel*
sereno. O orgulho intelectual do filósofo corta a palavra ao dois quadros do intendente Kloker, os quais estão aiualmenU
historiador. A todo instante, o relato empenha-se em proclamar na Igreja de São Nicolau; que as cadeiras estavam cobertas di
como a idade clássica da razão é superior em saber e lucidez azul nos dias de sermão; que umas eram de carvalho e outrai
não só à Idade Média mas até a essa tão celebrada Antigui­ de nogueira. Também acreditamos ser de extrema importância
dade. Voltaire sucumbe a essa teleologia rudimentar que ele ficar instruídos a fundo de não haver ouro falso no pálio que
refuta e combate com tanta energia como teórico. Ele descobre serviu na coroação de Carlos X II; saber qual era a largura do bal-
na história o seu ideal filosófico, assim como Bossuet nela en­ daquino; se a igreja era decorada com planejamentos vermelhos
controu o seu ideal teológico; este mede toda realidade pela ou azuis, e de que altura eram os bancos: tudo isso pode ter seu
bitola da Bíblia, aquele nunca deixa de impor ao passado, sem mérito para aqueles que querem instruir-se sobre os lídimos in­
hesitação nem reserva, a medida da razão. Tudo isso, sem dú­ teresses dos príncipes [ .. . ] Mas um historiador tem múltiplos de
vida, criou obstáculos à realização desse vasto plano de uma veres. Permita-me lembrar-lhe aqui dois que são merecedores dl
história verdadeiramente universal que, em seu espírito, deveria certa reflexão: o de não caluniar e o cie não entediar. Desejv

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perdoá-lo do primeiro, porque o seu livro não será lido por nin­ tória, seja criada uma ciência filosófica dos princípios, cujos
guém; mas não posso perdoar-lhe o segundo, porque fui obri­ problemas serviriam para tratar a história das ciências. No piano
gado a lê-lo. * ** Há aí mais do que sarcasmo; está aí expresso um enciclopédico do saber que nos ofereceu nos seus Elementos de
novo ideal do estilo de historiador que Voltaire soube encarnar filosofia, D'Alembert definiu ainda nesse sentido a tarefa da his­
e impor como norma. Lorde ChesterffieJd dizia a respeito da tória: “A história geral das Ciências e das Artes encerra quatro
obra histórica de Voltaire que ela continha a história do espírito grandes temas; os nossos conhecimentos, as nossas opiniões, as
humano "escrita por um homem de gênio para uso dos homens nossas disputas e os nossos erros. A história dos nossos conhe­
de espírito". Voltaire, na verdade, nesse domínio menos do que cimentos revela-nos as nossas riquezas ou, melhor, a nossa real
em nenhum outro, não sucumbe ao perigo de "fazer espírito"; indigência. Por um íado, humilha o homem ao mostrar-lhe o
ele apóia-se em investigações especializadas, amplas e muito pro­ pouco que faz, por outro, enaltece-o e encoraja-o, ou pelo menos
fundas, e a "acribia" do historiador nada tem de estranha para consoia-o, desenvolvendo nele os usos multiplicados que soube
ele. A sua atenção prende-se, sobretudo, ao detalhe sociológico: fazer a partir de um pequeno número de noções claras e certas.
interessa-se muito mais pOT descobrir e descrever o estado da A história das nessas opiniões faz-nos ver como os homens, ora
sociedade em tal ou tal época, as formas vigentes de vida fami­ por necessidade, ora por impaciência, substituíram com êxito
liar, as espécies e os avanços das artes e dos ofícios, do que em diverso a verdade pela verossimilhança; ela mostra-nos como o
repisar eternamente a descrição dss disputas políticas e religio­ que inicialmente era apenas provável tornou-se em seguida ver­
sas das nações, suas guerras e suas batalhas. Recorre à filologia dadeiro à força de ter sido retocado, aprofundado, refeito c
e à lingüística, declara que, com muita freqüência, uma etimo­ como que depurado por sucessivos trabalhos de vários séculos;
logia confirmada pode propíciar-nos uma idéia correta das trans­ ela oferece à nossa sagacidade e à dos nossos descendentes fatos
formações dos povos, que o alfabeto de que um povo se serve a verificar, pontos de vista a seguir, conjeturas a aprofundar,
lestemunha incontestavelmente quem foi o seu verdadeiro edu­ conhecimentos começados que é mister aperfeiçoar [ ...] Enfim,
cador e quais as fontes primordiais dos conhecimentos da na­ a história dos nossos erros mais notáveis ensina-nos a desconfiar
ção.50 Até mesmo a história das ciências teve que se submeter de nós mesmos e dos outros; além disso, ao mostrar os caminhos
aos imperativos metodológicos assim fixados. Nesse domínio, que se afastaram da verdade, facilita-nos a busca da verdadeira
D ’Alembert foi um discípulo de Voltaire. A influência decisiva senda que nos conduz de volla a ela." 33
que exerceu o Prefácio que escreveu para a Enciclopédia, do O plano aqui traçado por D'Alembert encontrou, no que
ponto de vista filosófico e literário, não repeusa, em definitivo, se refere à história das ciências exatas, uma brilhante realização
no fato de que, pela primeira vez, a evolução das ciências estava na obra do seu mais genial discípulo. A Mecânica analítica, de
sendo encarada nessa nova perspectiva? D ’Alembert não con­ Lagrange, oferece-nos uma amostra de história da ciência que é
cebe essa evolução como uma acumulação interminável de novos quase insuperável, mesmo em nossos dias. Os trabalhos ulterio­
conhecimentos eruditos mas como 0 desenvolvimento metódico res, por exemplo, a Kritiscke Geschichte der allgemeinen Prin-
da idéh rto próprio s&bsr. Exige que, em lugar de uma poli-his- zipien der Mechanik [História crítica dos princípios gerais da

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mecânica], de Eugen Diihring, mantiveram-se fiéis ao modele elaborará sistematicamente e figurará em seu ensino,®3 As pri­
metodológico que nos é aqui apresentado. Mas D ’Alembert vai meiras tentativas de uma história crítica da filosofia estão inti­
ainda mais longe por conta própria; ele confere à história não só mamente ligadas a esses esforços. Os artigos de Diderot na
um valor teórico mas também um valor ético, e espera que ela iincidopéia sobre diversos sistemas filosóficos ainda possuem
nos proporcione o conhecimento cabal da humanidade moral. apenas uma escassa originalidade no plano da história propria­
"A ciência da história depende da filosofia por dois lados: peloi mente dita; foram inspirados, de maneira muito visível, por
princípios que servem de fundamentos à certeza histórica e pela Bayle, Brucker e a Histoire critique de la philosophie, de Des-
utilidade que se pode extrair da história. Os homens colocados landes (1756). Um novo espírito manifestou-se porém nesses
no pateo do mundo são apreciados pelo indivíduo judicioso como urtigos, em particular nos dedicados à filosofia moderna — a
testemunhas ou julgados como atores; ele estuda tanto o uni­ Hobbes, Spinoza e Leibniz. O enunciado de opiniões cede cada
verso moral quanto o físico, no silêncio dos preconceitos; acom­ vez mais o lugar à attólise, encaminhada tanto no sentido histó­
panha os relatos dos escritores com a mesma circunspecção con rico quanto no sistemático, visando tanto ao conteúdo doutrinal
que observa os fenômenos da natureza; examina os matizes que quanto às condições históricas que o viram nascer.
distinguem a verdade histórica do verossímil e o verossímil dt £ claro que o predomínio do espírito analítico, tão carac­
fabuloso; reconhece as diferentes linguagens da simplicidade, terístico do século X V III, estende-se a todo esse domínio. Esse
da lisonja, da prevenção e do ódio; fixa-lhes as características; espírito também implica, em história, uma acentuada insistência
determina quais devem ser, segundo a natureza dos fatos, os no uniforme à custa da mudança, nos elementos de constância
diversos graus de força nos testemunhos e a autoridade nas à custa dos elementos de movimento. Um único pensador do sé­
testemunhas. Esclarecido por essas regras tão sutis quanto se­ culo X V III soube conservar, em face dessa tendência dominante,
guras, é principalmente para conhecer os homens com quem uma posição original e autônoma: Hume, que não se afina mais
convive que ele estuda aqueles que viveram. Para o comum dos com o tipo geral do Iluminismo para a filosofia da história do
leitores, a história é o alimento da curiosidade ou o alívio do que para a teoria do conhecimento e a filosofia da religião. Coir
tédio; para o indivíduo judicioso, é a compilação das experiên­ Hume começa a abrandar, a flexibilizar-se essa perspectiva está­
cias morais realizadas pelo gênero humano; compilação essa tica, a qual se dedicava unicamente a conhecer as “propriedades"
que seria mais concisa e mais completa se fosse ditada unica­ fixas e imutáveis da natureza humana; ele prefere abordar o
mente por critérios judiciosos, mas que, por imperfeita ou in­ processo histórico como tal, em vez do substrato idêntico que
completa que seja, ainda encerra as maiores lições; tal como a imaginamos subjacente. Não só como lógico mas também como
coletânea de observações médicas de todas as eras, sempre au­ filósofo da história, Hume é o crítico da idéia de substância.
mentada e sempre imperfeita, forma não obstante a parte mais Sem dúvida, não descreve a história como um movimento con-
essencial da arte de curar." 32 Assim se desperta, a partir da línuo, mas delicia-se com suas mudanças incansáveis, com a
história, na filosofia do Iluminismo a idéia de um estudo filosó contemplação do devir como tal. Não busca uma “razão” nesse
fico do homem, de uma "antropologia geral” como a que Kan1 devir, não acredita nisso. Em vez de um interesse racional, é um

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interesse psicológico e estético o que ele vincula ao desenrolar the beginning of Ume, pass, as it were, in review before us;
dos fatos. A “imaginação”, que ele opõe à razão abstrata ns sua appearing in their true colours, without any of those desguises,
teoria do conhecimento, sublinhando a sua importância, também whichf during their life lime, so much perplexed the judgement
adquire na história um papel preponderante; recorre-lhe como a of the beholders. What spectacle can be imagined, so magnifi­
faculdade fundamental do historiador. "Haverá, na verdade, mais cent, so various, so interesting? What amusement, either of the
suave arrebatamento para o espírito do que transportar-se para senses or the imagination, can be compared with it?" M Que
as mais recuadas idades do mundo e observar a sociedade huma­ espetáculo — mas, lamentavelmente, nada mats do que um es­
na em sua infância, dando timidamente os seus primeiros passos petáculo! Pois Hume não acredita mais que se possa penetrar
no caminho das artes e das ciências; ver a pol/tica do governo no sentido dos acontecimentos e descobrir nele o plano geral.
e a civilidade da conversação afinando-se gradualmente, e tudo Ele abandona a questão de saber que segredo se esconde no
o que faz o ornamento da vida avançando para a perfeição?" mais profundo do mundo histórico, desfrutando a simples con­
Em vez de definir de antemão, em suas grandes linhas, a fina­ templação sem procurar medir pela craveira de uma “idéia"
lidade da história, Hume prefere mergulhar na riqueza do seu preconcebida os quadros sempre cambiantes que a história faz
conteúdo concreto. Para ele, a história é, por muito pouco que refletir sob os nossos olhos. Mas, uma vez mais, não se faz jus
a inteligênca possa apreendê-la, por muito pouco que possamos ao cepticismo de Hume se apenas se tomar em consideração os
penetrar em suas "razões" últimas, o mais nobre e o mais belo seus elementos negativos. Até nesse papel aparentemente dissol­
"divertimento do espírito*' (Unlerhaltung des Geistes); nenhum vente ele realiza uma tarefa positiva multo importante. Resisten­
outro se lhe compara. "Como preferir-lhe esses passatempos fú­ te a toda generalização apressada, prendendo-se à materialidade
teis que nos absorvem por tanto tempo? Como consíderá-los mais dos fatos, Hume não fornece apenas um alerta metodológico
satisfatórios, mais dignos de reter as nossas atenções7 Que per­ mas também um verdadeiro ajuste do método. Sua doutrina
versidade deve ser a de um gos‘o capaz de uma tão ruim escolha impõe a especificidade, a legitimidade do individual e rasga o
de seus prazeres!" Contudo, por mais alto que a história seja caminho para o seu reconhecimento. Para dar a esse reconhe­
aqui erguida, por mais celebrada que seja como o mais nobre cimento o seu verdadeiro status filosófico era necessário, eviden­
ornamento da existência humana, Hume nem por isso abjura do temente, dar mais um passo, que ele não deu nem podia dar.
seu cepticismo. Comparemos esse elogio da ciência histórica cora Era preciso que o individual se tomasse não apenas um fato.
as esperanças, as exigências, o idealismo que o século X V III ti­ a matter of fact, mas um problema. Não bastava chamá-lo do
nha depositado inicialmente na história: o contraste logo nos im­ reino das idéias para o Teino des fatos: cumpria definir o lugar
pressiona. Qual é essa vida dramaticamente movimentada que faz do individual no reino das idéias. Essa exigência mais profunda,
desfilar a história sob os nossos olhos? Que prazer se pode ter à qual era maís difícil responder, consistia em criar uma nova
em acompanhar o nascimento, os progressos, a queda e final­ idéia de indivíduo, extrair dela as diversas significações, as apli­
mente a destruição dos mais florescentes impérios? Em ver quais cações e modificações possíveis. O empirismo céptico de Hume
as virtudes que os levaram ao apogeu, quais os vícios que os não estava equipado para tal empreendimento. O pensamento
conduziram ao declínio? "In short, to see aü human race, from do século X V III teria que enveredar por um novo caminho c

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confiar-se a um novo guia. Teria que trazer para a luz do dia o ti produção incessante de seus fenômenos. A totalidade desses
tesouro metodológico enterrado na doutrina de Leibniz: não fora tciiòmenos está, bem entendido, prefigurada na substância; não
essa doutrina a que dera ao problema da individualidade, graças v produz propriamente nenhuma "epigênese", nenhuma forma-
ao princípio da "mônada", a sua expressão mais penetrante, ao vAo nova, no sentido de que seria determinada do exterior. Tudo
colocá-lo no centro de todo um sistema filosófico? ü que a substância poderia parecer engendrar sob a ação de
(orças exteriores está, na verdade, baseado também na sua
própria natureza, aí se encontra pré-formado, predeterminado.
4 1'or outra parte, entretanto, não se trata de imaginar-se uma
determinação rígida e acabada. O ser da substância não está
A concepção leibniziana da substância também se propõe ncabado na plena realização do seu desenvolvimento; o meio e
a distinguir o que permanece sob a mudança. De um outro u fim são tão essenciais quanto o seu começo. A metafísica
lado, entretanto, a sua originalidade consiste em apresentar a leibniziana fundamenta o ser da "raônada” era sua identidade,
relação entre o um e o múltiplo, entre a duração e a mudança, sem deixar de admitir nessa identidade a idéia de continuidade.
como uma relaçlo de pura reciprocidade ( Wechselverhaltnis). Identidade e continuidade assim reunidas estão na origem da
Tal concepção não pretende subordinar o múltiplo ao um, o totalidade, ou seja, de sua organização interna em tomo do seu
cambiante ao duradouro: parte do princípio de que esses mo­ próprio centro.*®
mentos opostos somente se explicam uns pelos outros. Por con­ Essa idéia fundamental da metafísica leibniziana devia for-
seguinte, um conhecimento autêntico não pode ser um conheci­
necer um novo e promissor ponto de partida para a conquista
mento ou do duradouro ou do cambiante: cumpre demonstrar a
do mundo histórico. Mas foi preciso esperar bastante tempo até
sua interdependência, apreender a sua correlação. £ na mudan­
que esse empreendimento cumprisse suas promessas e se desen­
ça incessante que se revela a unidade da lei, a unidade da subs­
volvesse livremente. Sem dúvida, o sistema de Wolff não descar­
tância; é ai que ela encontTa a única expressão de que é susce­
tou, em absoluto, o problema da história; ele procurou até defi­
tível. A substância persiste: essa substância nSo implica, porém,
nir com nitidez a posição da história em face do mundo racio­
nenhuma imobilidade; pelo contrário, essa substância envolve
nal. Segundo a teoria da ciência de W olff, cada disciplina divi-
a regra constantemente idêntica a si mesma de seu próprio pro­
dc-se em duas partes uma concreta, empírica, a outra "históri­
gresso. A concepção estática da substância cede o lugar a uma
ca". A experiência deve conservar a totalidade dos seus direitos
concepção dinâmica: a substância só é "sujeito" ou "substrato”
na medida em que é força, em que se revela diretamente ativa, na economia do sistema: a cosmologia geral estribar-se-á na
em que manifesta a sua verdadeira natureza pela sucessão de suas física empírica, a psicologia racional na psicologia empírica. Mas
atividades. A natureza da substância não consiste em permane­ 0 equilíbrio que W olff esforça-se assim por manter pouco se
cer fechada em si mesma: ela é produtividade, desenvolvimento justifica num plano puramente metodológico e é a própria forma
de uma diversidade sem fim a partir de si. A sua "existência" é io sistema, a da dedução, da demonstração matemática, que
precisamente essa "gênese” de um conteúdo sempre renovado, ^ntra em conflito com esse equilíbrio. A filosofia, segundo a

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sua própria tarefa, continua sendo a ciência do raciona), não a humano], o religioso reconcilia-se com o histórico, que assim é
do histérico; a ciência do possível, não a da existência de facto: reconhecido com o um fator necessário, um momento indispen­
scientia possibilium quaaienus esse possunt. Portanto, uma "filo­ sável do religioso. Contudo, o pensamento de Lessing não sc
sofia da história" propriamente dita não pode encontrar lugar estende ao mundo histórico como tal. Que o dedo da Providên­
no sistema de W olff, já que ela implicaria uma mistura de cia o tenha organizado até os ínfimos detalhes é atgo de que
gêneros, uma confusão das fronteiras do saber, uma verdadeira Lessing não duvida, por certo, mas nem por isso se permite
iitTtjfíiitji^ ei- yiro{ .* Não é o mundo dos erguer o véu desses mistérios. Foi preciso esperar Herder para
fatos, aquele de que trata a história, o que constitui o objeto da que esse passo decisivo fosse dado. Sua obra, para quem a
filosofia, mas o mundo das "razões". E, mesmo quando a filo­ loma em sua totalidade concretp, é incomparável; ela não conhe­
sofia se aplica aos fatos empíricos, 6 ainda o princípio de razão ce antecipação nem preparação na cultura da época, Parece cair
que permanece como sua máxima e seu íio condutor. A univer­ do céu, gerada peio nada: brota de uma visão da história que
salidade e a necessidade das causas contradizem o caráter con­ é inigualável em pureza e perfeição. Essa nova concepção do
tingente, eventual e singular que sc liga de modo inseparável a mundo histórico jamais poderia fundaT-se, entretanto, e desen-
toda a existência histórica. Não se trata de atingir dessa forma volver-se sistematicamente sem os instrumentos intelectuais que
o ideal de rigorosa "clareza" matemático-filosóficar jamais a já estavam à sua disposição. A “metafísica" da história de Her­
história terá acesso ao santuário da ciência e da filosofia. der liga-se em todos os pontos às idéias de Leibniz, se bem que
Tinha parecido, entretanto, que esse santuário era suscetí­ a vivacidade das perspectivas a coloque, desde o início, prote­
vel de entreabrir-se por um outro lado. Enquanto a filosofia, em gida do perigo de aplicar esquematicamente a teoria.9T Com efei­
sua pureza abstrata, mantinha-se à margem do mundo histórico, to, ela não se contenta em buscar o simples contorno da história;
acreditando poder e dever preservar-se, a teologia tomara a ini­ quer discernir separadamente cada forma e apropriar-se dela de
ciativa de deslocar as fronteiras, de recusar a legitimidade dos dentro para fora. Rompe, em definitivo, com as limitações do
compartimentos estanques que separavam o conteúdo "dogmá­ pensamento analítico, particularmente com o princípio de iden­
tico do conteúdo histórico" da fé. Já vimos qual tinha sido tidade. A história aniquila toda identidade aparente, nada co­
o ponto de partida desse movimento, que objetivos intelectuais nhece que seja realmente idêntico, ignora todo retorno ao seme­
o tinham determinado.80 No âmbito do pensamento alemão, foi lhante. Não pára de engendrar novas criaturas e de dotar os
Lessing quem nesse movimento chegou às últimas conseqüên­ seres a que dá vida com uma forma própria e um modo de
cias, foi com ele que o método atingiu seu ponto culminante.
existência autônomo. Toda a generalização abstrata é, portanto,
Em Erzichung des Menschengeschlechis [Educação do gênero
impotente em seu domínio. Nenhum conceito específico único,
* Metabaús eis alta genos (literalmente, transposição para outro gê­ nenhuma norma universalmente coerciva é capaz de englobar
nero). Consisle em ,lfalar de uma outra coisa", isto 6, dar a um termo toda a sua riqueza. Cada situação humana tem seu valor sin­
um significado distinto por pertencer a uma classe diferente daquela em
que esse termo foi iniciíilrficnte entendido (Cf, J, Ferrater Mora, Dicio­ gular, cada fase da história possui seus direitos próprios e sua
nário dc filosofia, no verbete "sofisma” ) (N. do T.), necessidade imanente. Fases e situações não são isoladas umas

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das outras, elas só existem no todo e pelo todo. Cada uma delas im lngiircs, abrangê-tos num olhar, mim sentimento, numa pala-
é igualmente indispensável ao todo. Ê em sua heterogeneidade vtii! O discurso, perfil obscuro de um semimorto! Seria prcciso
perfeita que se constitui a-verdadeira unidade, a qual não se u-tinir ai toda a pintura vibrante do modo de vida, dos costu-
representará como unidade de um estado de coisas mas como mus, dns necessidades, dos caracteres da terra e do céu, ou de
a de utn processo. O , primeiro esforço do historiador deverá, j/t os ler percorrido, seria preciso simpatizar com essa nação
portanto, ser, em vez de submeter o seu objeto a uma medida | n i ii i sentir uma só de suas inclinações e de seus comportamentos,

uniforme fixada definitivamente, o de adaptar a sua medida à pura senti-lo&-todos juntos, encontrar uma palavra, todo o pen-
individualidade do objeto. "E uma tolice'' — protestou Herder rmmento em sua plenitude — ou então que se lê? uma pala­
a propósito dos egípcios — “exumar tal ou tal virtude egípcia vra. ” 38 Para esse gênero de "achado" (Finden) das palavras que
singular de sua terra, de seu tempo e dos alvores do espírito tívycam para nós, espontaneamente, a imagem concreta que
humano a fim de exprimir o seu valor nas medidas de um outro IHrrmite não as distinções analíticas mas a síntese intelectual e
tempo! I . . . ] Deixemos o grego equivocar-se totalmente acerca visual, os recursos de Herder são inesgotáveis; é aí que ete dá
do egípcio e o oriental odiá-lo: o nosso primeiro pensamento não provas de sua verdadeira mestria. Ele não se contenta em des­
pode ser outro senão vê-los, muito simplesmente, em seus pró­ crever, em caracterizar: ele próprio se insere em cada uma das
prios lugares, sob pena de os enxergarmos, sobretudo desde a épocas que vivência, para cada uma delas alimenta o sentimento
Europa, como caricatura grotesca." É preciso que a história re­ torreio, o único que convém. Pois recusa também a quimera dc
nuncie às "caractcrizaçõcs gerais". "Faz-se o retrato de um povo uma “ felicidade absoluta, autônoma, imutável, tal como o filó-
inteiro, de uma época, de uma regiSo — mas de quem é esse ftofo a define". A natureza humana não é o receptáculo de uma
retrato? Ajuntam-se povos e tempos, sucedendo-se e sobrepon­ Iclicidade dessa espécie: “Mas atrai para si de toda parte tanta
do-se uns eos ovitros como as ondas do mar — de quem é a ima­ felicidade quanto lhe é possível- uma argila flexível, capa?
gem? Quem encontrou a palavra certa para descrevê-los? [ ...] mis mais diversas situações de se formarem as necessidades e as
Quem observou que coisa inefável é a qualidade própria de um npressões mais variadas [ ...] A partir do instante em que o sen-
homem, pela qual se possa dizer, ao apontar tudo o que a dis­ lido interior de felicidade, a partir do instante em que a incli­
tingue, como ele sente e como ele vive, como todas as coisas nação mudou: logo que as circunstâncias e as necessidades exte­
mudam e lhe periencem depois que seus olhos as viram, que riores adotam esse outro sentido — quem pode comparur as sa-
sua alma as avaliou, que seu coração as sentiu — que profun­ lisíações diversas, de diversos sentidos, em sentidos diversos?
didade se esconde no caráter de uma única nação que, por Toda a nação conserva nela o seu centro de felicidade, assim
mais assiduamente que tenha sido observada e admirada, nem como cada esfera o seu centro dc gravidade!" A própria Provi­
por isso escapa a todo discurso ou, pelo menos, nesse discurso, dência não aspirou, em absoluto, à monotonia e à uniformidade;
é tãc raramente reconhecível para aquele que a compreende e ula quis alcançar seus fins pela mudança, a criação perpétua de
a interpreta — e isso nada é comparável com o desejo de domi­ novas forças e a desiruição das outras: “ Hlósofo, no teu vale
nar o oceano de todos os povos, de todos os tempos e de todos do norte, a balança infantil do teu século à mão, sabe-o tu

308 309
melhor do que ela?“ B® Vê-se por essas palavras que, sob a NOTAS
influência e com a ajuda de Hamann, Herder guarda uma certa
distância em relação ao seu próprio tempo. £ em vão que se
buscaria em toda a filosofia da história do século X V III um ' Publicado originalmente na revista Detitiche Rundschau, agoslo
tão nobre timbre de sino quanto na obra dele; nada desse gênero «-li-inbro de 1901 ; faz agora pude de G «mm. Schriften, vol. Ifl (1927),
l>l> aw c ss.
tampouco se encontra em Montesquieu, Voltairç ou Hume. E,
3 Cf. acima, pp. L45 e ss.; para iimii exposição niíuS tlctiilhada, ver
no entanto, ainda que se eleve muito acima dela, Herdcr não \rnri, Theologie der Lesstngzeit, pp. 20*1 e ss., 233, 309 e passim.
rompe abruptamente com a filosofia do llurainismo. Esse pro­ * Carla ao irmão dc 27 de fevereiro dc 1773; em Lettres dc Bttyle à
gresso e essa elevação só eram possíveis nos caminhos abertos in famille; no Apêndice das Oeuvra Diverses, H «in. 1737; vol. I.
pelo século X V IU , o qual, portanto, forjou de maneira defini­ (lini franges no orijjinal: "Vejo perfeitamente que a minha ittsiidabî-
llilmlc de novidades é uma das doenças p e d in te s contra ai quais iodos
tiva as próprias armas que permitiram vencê-lo e fixou, com o .ï» remédios fracassam. Ë uma hidropsia ptira, Quamo mais sc !hc dá,
rigor e a precisão que o caracterizam, as premissas donde Her- iimi* du pede." N. do T.].
der extraiu suas conclusões. É nesse sentido que a vitória alcan­ ' Projet d'un dictionnaire critique ( Dissen a lion a du Rondel), Roter-
ilii. 16^2; ci. Del volve, Religion, critique et philosophie positive chez
çada por Herder sobre o século X V III constitui, na verdade,
l'terre Bayk, Puris. lyOfi, pp. 226 e ss.
uma vitória que o século X V III alcança sobre si mesmo; é uma a Dissertation à Du Rondel.
daquelas derrotas que são, talvez, a mais clara expressão do fl Dictionnaire, artigo "Arche laus", cf. Del volve, op. cit., p. 226.
triunfo. Foi ao superai-se a si mesmo que a filosofia do Ilumi- I Dictionnaire, artigo "Manichéens'', tom cntirîo D.
nismo atingiu o seu apogeu espiritual. * Caria a Naudis dc 22 de maio dc 1692, Lettres de Bayit à sa
htmillc. Oeuvres Diverses, I, apêndice, p. 161.
n " Il ne faul pas souffrir qu'un homme qui cite nllôrc le moins du
..... idc le rapport de son témoin." l“ Não sc deve consentir que um homem
•lue cita altere seja o que for no dcDoimcnto da sua testemunha.”! “ Nou­
velles de la république des lettres”, Oeu vres Divertes, vol. 1. p. Î3Ü; cf.
bh liminaire, artigo "Péritles” , comentário E: para o conjunto, ver La­
hmte. lltiyte, Nouvelliste et critique littéraire, Paris, 192S, pp. 27 c ss.
1,1 Dictionnaire, artigo "Usson” , comentário K, vol. IV, fol. 28S8.
II O espirito <las tris. U vro lit , cap. I; cf. cap. 2 e ss.
■-Cf. O espirite, das leis, Livro 111, cap. U : “Tais são OS princípios
d i» três governos, o que não significa que, em determinada república,
m tu-se virtuoso, mas sim que sc deveria sé-lo. Isso tampouco prova que
mil na certa monyrquia reine a honra u que, num dado líslndo despótico,
viiiore o niedo; mus sim que a honra e o medo deveriam existir, sem o
quê tais for mus de xwerno seriam imperfeitas.”
•* O espírito das leis. VIU, p. 1,
n Ibid., V lll, p. 11.
,s O espirito da* leis. I. p. 1.

310 Ml
Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de 3* Cf. acima cap. I, pp. 51 e ss.
leurs décadence, cap. X V III. *# Ver acima pp. 246 e ss.
17 O espirito dot leis. X IV , p. 5; cf. cm particular, X V I, p, 12- i7 p ara a relação entre a filosofia da história de Herder e os con­
i* Ibid., XTV, p. 1. ceitos fundamentais da filosofia de Leibniz, cf. a pormenorizada expo­
l* Ibid., I, p. I. sição oo meu ensaio Freiheit und Vom i, Studien zur deutschen Geistesge-
Cf. a esse respeito Sorel, Montesquieu, Paris, 1887, pp. 151 e as. schichte, 3.* edição, pp. 1B0 e ss.
38 Herder, Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der
31 O espírito das leis, X I, p. 6.
Menschheit (Idéias para uma filosofia da história d a , humanidade),
23 Cf. Herder, Auch eine Philosophie der Geschichte tur Bildung der
Werke (Suphan), V, pp. 489 e ss., 301 e ss.
Menschheit. Werke (Supban) V, p. 565.
4» Herder, op. cit., V, pp. 507 e ss.
23 "Fui o primeiro a caminhar com passo livre nessa lerra vazia."
Lessing, Schriften {EU. Lach mann-M ußeker ) V , p. 143.
** Cf, Voltaire, Remarques pour servir de supplément ä CEssai sur
Us moeurs. Oeuvres (Pari*, Lequien, 1820), X V ÏÏI, pp. 420 e ss.
Cart a de 26 de maio de 1742, Oeuvres, ed. Lequien, LI, p. 119.
Sobre esses diversos pontos, cf. o meu livro Das Erkentitnisproblem
in der Philosophie und Wissenschaft der neueen Zeit, I, pp. 164 e ss.
37 Essai sur les moeurs, cap. C X C V II, Oeuvres, X V III, p. 425.
38 Voltaire, Le Pyrrhonisme de l'histoire (1768), cap. 2; Oeuvres,
X X V I, p. 163.
^ Carta a Nordberg, do prefácio da nova edição da Histoire de
Charles X II (1741); Oeuvres, X X II, pp. 12 e ss,; sobre Nordberg e sua
crítica a Voltaire, ver Georg Brandes, Voltaire, I, pp. 182 e ss.
so Essai sur les moeurs, "Introduction", Oeuvres, X V , 110; sobre
Voltaire historiador, ver Gustave Lanson, Voltaire, cap. 6; 6.* edição,
pp. 107 e ss.
D ’Alembert, Eléments de philosophie, sec. I l (Mélanges de litté­
rature etc., vol. IV , pp. 9 e ss.).
82 D'Alembert, Éléments de philosophie III; loc. cit., pp. 16 e ss.
J® Cf. etn particular as indicações de Kant sobre a orientação dos
seus cursos durante o semestre de inverno de 1765-1766, Werke (ed.
Cassirer), ÏI, pp. 319 e ss.
3* E m inglês no original: "Em resumo, ver toda a raça buinana,
desde o começo do tempo, desfilar, por assim dizer, diante de nossos
olhos; apresentando-se em suas verdadeiras cores, sem qualquer daqueles
disfarces que, durante suas vidas, tanto desconcertaram o julgamento
dos espectadores. Que espetáculo pode ser imaginado que seja tio magní­
fico, tão variado e interessante? Que entretenimento, dos sentidos ou
da imaginação, lhe pode ser comparado?" (N. do T.) Hume, 0 / the
study of History. Essays moral, political and literary, ed. Green &
Grose, nova impressão, Londres, 1898. vol, II, pp. 388 e ss.

312 313
VI

O DIREITO, O ESTADO E A SOCIEDADE

A idéia de direito e o princípio dos direitos inalienáveis

Urna das características essenciais da filosofia do Iluminismo


ê que, apesar do seu apaixonado impulso para o progresso,
apesar de todos os seus esforços para quebrar as velhas Tábuas
da Lei e reconstruir a vida sebre alicerces intelectuais comple­
tamente novos, ela nem por isso deixou de voltar incessantemen­
te aos problemas filosóficos originários da humanidade. Já
Descartes se defendia contra aqueles que lhe censuravam querer
fundar uma filosofia absolutamente "nova" explicando-lhes que
a sua doutrina, uma vez que assentava em princípios estrita­
mente racionais, uma vez que se apoiava somente na razão,
podia muito bem reivindicar o privilégio da Antiguidade. Quem,
senão a razão, possui com efeito o verdadeiro direito de primo-
genitura? Não domina da, do alto de sua idade, todas essas
opiniões e todos esses preconceitos que a obnubilaram no de­
correr dos séculos? A filosofia do Iluminismo fez sua essa reivin­
dicação. EJa luta em todos os domínios contra o poder do
costume, da tradição e da autoridade. Contudo, não crê estar

515
desempenhando assim uma tarefa puramente negativa e dissol­ »éculo X V III, que a adapta à sua própria vida intelectual. Nesse
vente, Pelo contrário, quer varrer o entulho do passado para ponto, ela consegue, por cima de dois mil anos de história, esta-
desembaraçar e instaurar as fundações definitivas do seu edifí­ labdecer um diálogo direto com o mundo intelectual antigo que é
cio. Essas mesmas fundações são imutáveis e inabaláveis, tãc tio importante do ponto de vista da história das idéias quanto
antigas quanto 8 própria humanidade. Por conseguinte, a filo­ ilc um ponto de vista puramente especulativo. As duas teses
sofia do Iluminismo não considera a sua obra um ato de destrui­ luntlamentais sustentadas na República de Platão por Sócrates
ção mas um ato de restauração. Até em suas mais audaciosas c Trasímacos entram uma vez mais em conflito. É evidentemente
revoluções, ela quer ser apenas uma restituição: uma restituiio numa outra perspectiva que as reencontramos, é num mundo
in integrum pela qual a razão e a humanidade devem ser res­ intelectual fundamentalmente diferente que ambas as teses são
tauradas ein seus antigos direitos. De um ponto de vista histó­ formuladas de novo. Mas essa mudança de circunstâncias não
rico, essa dupla tendência afirma-se no sentido de que a filosofia Huprimc o parentesco profundo e a comunidade real das teses
do Iluminismo, no decorrer de todos os seus combates contra mitigas e novas, Na língua de duas épocas diferentes revela-se
a ordem existente e o passado imediato, sempre se compraz em nmn só e mesma dialética que nada perdeu de sua força e de
voltar aos temas intelectuais da Antiguidade e aos problemas M.-U rigor, que-descarta todas as conciliações tentadas preceden­
antigos. A esse respeito, acertou o passo, por assim dizer, com temente para caminhar, sobre novas bases, cm direção a uma
o Humanismo renascentista, que lhe transmitiu suas aquisições, nítida decisão de priDcípio.
Mas usa essa herança de um modo essencialmente mais livre A questão platônica da "natureza” do justo, de sua essência
do que o Humanismo lograra fazer outrora, encerrado como própria, não é um problema isolado, parcelar, que requeriria
estava no quadro da investigação puramente erudita. Só extrai iipenas uma idéia singular e sua explicação filosófica. Na ver­
dessa herança alguns traços fundamentais que se harmonizam dade, ela é inseparável da questão universal c fundamental do
com o seu modo de pensar, sem preocupação com o resto, que sentido e da realidade da Idéia em geral e só poderá receber
abandona. Mas ocorre justamente cora bastante freqüência que esclarecimento e solução definitiva nessa perspectiva geral. Em
a filosofia do Iluminismo, ao acentuar com tanta nitidez esses nossas idéias tanto lógicas quanto éticas, exprimir-se-á uma reali­
traços, devolva-nos à fonte verdadeira dos problemas. É um dade objetiva e determinada, existente em si? Ou essas idéias
pouco o pape) que ela desempenhou no tocante ao problema nada mais são do que sinais verbais a que atribuímos arbitra­
do direito. Em nenhum caso pretende manter-se na consideração riamente um certo conteúdo? Existirá o igual em si, o belo em
apenas dos direitos adquiridos historicamente: ela remete-se ao aí, o justo em si? Ou é em vão que buscamos, no curso cam­
"direito que temos de nascença". Mas para fundar e sustentar biante das nossas representações e opiniões, algo que seja autên­
esse direito, ela vincula-se à mais antiga herança intelectual; tica e verdadeiramente idêntico, que não seja carreado ao acaso
leva-nos de volta ao problema radicalmente formulado por Pla­ e puxado para cá e para lá ao sabor das nossas fantasias (phan-
tão. Com efeito, Platão tinha apresentado a questão fundamental tasnutia)! Haverá uma forma originária e fundamental, modelo
das relações do direito e da força-, essa questão foi reatada pelo e correlato das nossas idéias? Ou o simples fato de propor a

316 317
questão encerra mal-entendtdo e quimera? Tal é o alcance uni­ o pensador mais importante e mais original produzido nos meios
versal da decisão em causa nos profundos debaies que se desen­ humanistas. Por isso procura, de múltiplas maneiras, ligar-sc dirc-
rolam no Górgias e na República a respeito da essência do Uimente às doutrinas da Antiguidade. Em seu tratado Lehrc vorn
justo. É a propósito da questão da natureza, do eidos da justiça, Ursprung der Geselschaft und vom Ursprung des Rechts l Dou­
com efeito, que deve ser resolvida a questão de direito do trina da origem da sociedade e do direito], Grotius remonta
eidos como tal, do seu quid juris? próprio. Se se revela que, primeiro a Aristóteles e deste a Platão. Do mesmo modo que em
examinada mais de perto, a idéia de justiça reduz-se a nada, Plutão a doutrina do direito nasce da interação da lógica e da
que ao invés de conter um sentido essencial e imutável ela ética, também o problema do direito, no espírito de Grotius,
designa apenas uma representação instável e fugaz, então a liga-se ao problema das matemáticas. Essa síntese é um dos
mesma sorte está reservada a toda e qualquer outra realidade traços característicos da orientação geral do século X V II. As
que tenha podido aspirar à dignidade de idéia. A idéia só vale, matemáticas constituem o meio e o instrumento intelectual da
nesse caso, por instituição, &éaet , não por natureza, yráau ; restauração das “ idéias” platônicas. Não só a física mas também
somente a instituição lhe confere realidade, somente da insti­ as ciências "morais" enveredaram por esse caminho. Entretanto,
tuição dependem seu conteúdo e sua duração relativa. Ao atacar, o vínculo metodológico que assim se instala comporta certa­
sobre esse ponto, a solução sofística, ao empenhar-se em pre­ mente para as ciências jurídicas conseqüências que, à primeira
servar o conteúdo essencial do direito — a saber, o que o direito vista, são sumamente paradoxais e perigosas; o que o direito
"é " no sentido mais puro e o que significa no sentido mais pode ganhar num plano puramente ideal, parece estar fadado a
profundo — de toda mistura com a simples força, ao interditar perdê*lo do ponto de vista da "realidade", da aplicação empí­
ao direito basear-se na força, Platão apresenta a verdadeira e rica. Abandona o mundo do real, do efetivo, do eficiente a fim
crucial questão de sua filosofia. Trata-se, para ele, do ser e do de transferir-sc para o lado do " possível". Lcibniz não fez mais
não-ser, não só da ética mas também da lógica. O curso ulterior do que extrair a conclusão clara e segura das idéias de Hugo
da história levará, sem dúvida nenhuma, a abrandar cada vez Grotius quando declarou que a cicnda jurídica faz parte daque­
mais o rigor dessa ligação. A forma metodológica da questão las disciplinas que não dependem da experiência mas de defi­
platônica será, depois, cada vez mais raramente compreendida nições, não dos fatos mas de provas estritamente racionais. O
em sua significação própria; só o conteúdo sobrevive, e consti­ que é o direito e a justiça em si? Essa questão não pode, eviden­
tui um dos elementos que, de um modo ou de outro, deve ter temente, ser esclarecida pela experiência. Direito e justiça en­
lugar certo em todas as "teorias" do direito e do Estado. cerram a idéia de um acordo, de uma proporcionalidade e
£ preciso esperar pelos séculos X V II e X V III para que o harmonia, que continuaria válida mesmo que nunca viesse a en­
problema seja abordado de novo em toda amplitude de sua uni­ contrar sua realização concreta num determinado caso, mesmo
versalidade. Foi Hugo Grotius, muito especialmente, quem abriu que não houvesse ninguém para exercer a justiça e niuguém a
o caminho nesse domínio. Ele não é apenas homem político e cujo respeito eía tivesse que ser exercida. O direito compara-se
jurista mas também um humanista de vasta erudição; é mesmo nisso è aritmética: o que essa ciência nos ensina sobre a natu-

318 319
reza dos números e suas relações contém uma verdade eterna e meio de elevar-se acima da contingência, da dispersão e da exte­
necessária, uma verdade que subsistiria intata mesmo que o rioridade do mundo dos fatos, a fim de produzir um sistema
mundo empírico desmoronasse inteiro e não houvesse mais nin­ jurídico tal que todos os elementos venham a concatema-se na
guém para ser efetivamente contado, nem sobrasse objeto algum urdidura do todo, que cada decisão individual receba do todo
a contar.1 É a mesma comparação e a mesma analogia metodo­ a sua sanção e a sua autenticação.
lógica que Grotius coloca no centro tia sua argumentação no Para que essa tese capital do direito natural pudesse dar
prefácio da sua principal obra. Ele declara expressamente que suas provas, era preciso superar dois impedimentos e enfrentar
suas deduções sobre o direito da guerra e da paz (em De jure dois poderosos adversários. Por um lado, o direito tinha que
belti ac pacis, 1625) não têm o propósito de fornecer uma so­ afirmar sua originalidade e sua autonomia intelectual em rela­
lução determinada para esta ou aquela questão concreta, para ção aos dogmas da teologia e escapar a seu perigoso assédio;
os problemas da política contemporânea. Pelo contrário, ele des­ por outro lado, cumpria-lhe definir e delimitar claramente a es­
carta do debate todas as intenções desse gênero, da mesma fera do jurídico em face da do Estado e protegê-la, era sua
forma que o matemático tem o costume de considerar as figu­ especificidade e em seu valor próprio, do absolutismo estatal.
ras sobre as quais raciocina independentemente de toda reali­ Por conseguinte, o combate para a fundação do direito natural
dade material. No desenvolvimento ulterior da doutrina do di­ moderno travou-se em duas frentes. Deve prosseguir contra a
reito natural essa matematização do direito foi levada ainda doutrina teocrática que deduz o direito de uma vontade divina
muito mais longe, Pufendorf chega a advertir-nos contra uma absolutamente irracional, impenetrável e inacessível à razão hu­
conclusão precipitada: o fato de que os princípios do direito mana, assim como contra o "Estado LevíatãM. Em ambos os
natural aplicam-se a certos problemas concretos poderia lançar casos, trata-se de abalar e vencer um só e mesmo princípio, o
sobre eles uma certa suspeita; não obstante, eles são de uma staí pro ratione voluntas. Calvino estribava-se nesse princípio
evidência perfeita, tanto quanto podem sê-lo os axiomas da para provar que todo direito se baseia, em definitivo, na onipo­
matemática. Se a teoria do direito natural relaciona assim 0 di­ tência divina, que essa, porém, é absolutamente indeterminável
reito e a matemática, é porque essas duas disciplinas são para e não está sujeita à limitação de nenhuma regra ou norma. O
ela os símbolos de um só e mesmo poder espiritual; ela vê em cerne da dogmática calvinista reside nesse pensamento, mormen­
ambas os mais importantes testemunhos da autonomia e espon­ te o dogma central da predestinação; beatítude e danação aí
taneidade do espírito. Uma vez que o espírito é capaz, a partir estão implícitas. Não cabe interrogar-se sobre a razão e o direito
de si mesmo, de gerar suas "idéias inatas", de iniciar e con­ da decisão divina de salvar a alma; formular tal indagação já
cluir a construção do domínio das grandezas e dos números, não representaria uma impertinência sacrílega, uma exaltação da ra­
poderia possuir um menor poder de construção e elaboração zão humana acima do próprio Deus. Ê o poder absoluto de Deus
criadora no domínio do direito. Ele tem que partir de normas que rejeita a maior parte da humanidade, ao passo que salva e
originais, que cria por iniciativa própria, e abrir um caminho até exalta o pequeno círculo dos eleitos: danação salvação ocorrem
a formulação do particular Não existe para o espírito outro sem nenhuma "razão" no sentido humanC do termo, sem a

320 32 í
menor consideração pela dignidade ou o mérito moral. A pro­ sentido primeiro e originário, no sentido de lex naturalis, jamais
blemática filosófica do direito natural desenvolveu-se a partir se resolve numa soma de atos arbitrários. Ela não é a totalidade
dessa problemática religiosa. Grotius é um dos campeões inte­ do que foi ordenado e estatuído: é o "estatuante" originário,
lectuais do movimento que, na Holanda, sob a liderança do ordo ordinans e não ordo ordinatus. A idéia completa dc lei
bispo Jakob Arminiue, opunha-se ao dogma calvínista da graça pressupõe, sem dúvida, um mandamento (Geboi) endereçado à
eletiva. O seu combate nas fileiras dos arminianos e dos "re- vontade individual; mas o mandamento não cria a idéia de direi­
raonstrantes" não só marcou profundamente o seu destino pes­ to e de justiça, sujeita a essa idéia; coloca-a em execução.
soal — após a condenação do arminianismo no sínodo de Dor- Abstenhamo-nos, porém, de confundir essa execução com a fun­
drecht, ele foi privado de seus cargos e encarcerado — mas dação da idéia de direito como tal. É nos “ProlegômenosH de
imprimiu igualmente uma orientação a toda a sua atividade eru­ sua obra De jure belli ac pacis, onde Grotius procede a essa
dita e literária. Grotius encontra-se precisamente na mesma si­ fundação, que se manifesta com maior nitidez o "platonismo1'
tuação em que Erasmo se encontrara: defendendo o ideal de da doutrina moderna do direito natural. Sabe-se que o demiurgo
liberdade do humanismo contra a doutrina do servo arbítrio que platônico não é o criador de idéias, que ele apenas modela o
fora restabelecida em toda a sua acuidade pelos líderes da Re­ mundo real à sua imagem, ao imitar o modelo íncriado e sempre
forma, tanto Lutero quanto Calvi no. Mas, ao mesmo tempo, existente; o mesmo ocorre, segundo Grotius, com a formação e
vê-se chamado a lutar contra um outro adversário. Depois da ordenação da sociedade civil. Ao decretar as leis positivas, o
onipotência divina, é contra a onipotência do Estado que Grotius legislador conserva os olhos fixados numa norma de validade
deve terçar armas, contra o “Deus mortal", segundo a fórmula universal, exemplar, coerciva para a sua própria vontade e para
tão expressiva e tão característica de Hobbes.3 Nesse outro com­ todas as outras. £ nesse sentido que se deve entender a célcbre
bate, ele enfrenta um pensamento especificamente moderno que frase de Grotius de que todas as teses do direito natural conser­
vinha, desde a Renascença, ganhando continuamente terreno. variam sua validade mesmo admitindo que não exista nenhum
Depois de O príncipe, de Maquiavel, e do De Republica, de Deus ou que a própria divindade não tivesse a menor preocupa­
Bodin, a idéia dc que o detentor do poder supremo do Estado ção com as coisas humanas.8 Essa proposição não tem a intenção
não está sujeito a nenhuma condição ou restrição jurídica foi de cavar um abismo entre a religião, por uma parte, o direito
objeto de uma penetrante elaboração. Era contraste com essas e a moralidade, por outra. Grotius continua sendo, em toda a
duas correntes, o direito natural sustenta como tese suprema a sua personalidade, um pensador profundamente religioso: põe
existência de um direito que sobreleva todo poder humano ou tanto empenho na renovação moral, na reforma da religião,
divino e que é dele independente. O conteúdo da idéia do direito quanto na fundação intelectual e no aprofundamento da idéia
como tal não tem sua fonte no domínio do poder e da vontade de direito. A tese de que pode e deve existir um direito sem
mas no da razão pura, Nenhum ato de autoridade pode mudar que se seja por isso obrigado a admitir a existência de Deus
ou retirar seja o que for ao que essa razão concebe como "exis­ tem que ser, portanto, compreendida hipoteticamente e nunca
tente", ao que é dado em sua pura essência. A lei, em eeu "teticamente”. Entendida como a afirmação de uma tese, é

322 323
evidente que não significaria outra coisa, como Grotius logo velação e preparar seus caminhos, Mesmo que, numa certa me­
acrescenta, senão uma impertinência e um absurdo. Em contra­ dida, ela seja reconhecida, a lei natural permanece subordinítda,
partida, como simples “hipótese", na acepção platônica do termo, portanto, à lei divina. Santo Tomás de Aquino explica essas duas
ela serve para eliminar nitidamente as diversas competências no leis como dois raios da essência divina, uma destinada a fins
âmbito da esfera moral e religiosa que Grotius ainda considera terrenos, a outra instituída pela revelação para fins supra ter­
uma unidade perfeita (a separação que será efetuada no século renos,4 Se Grotius ultrapassa a escolástica é menos, portanto,
X V III é-lhe absolutamente estranha). O direito não recebe sua pelo conteúdo do seu pensamento do que pelo seu método. Ele
validade da existência de Deus; de um modo geral, não deve vai realizar no domínio do direito a mesma revolução que Ga-
apoiar-se em nenhuma existência, seja ela empírica ou absoluta. Üleu realizou na física. Trata-se de definir uma fonte de conhe­
Ele decorre da idéia do bem — dessa idéia a respeito da qual cimento jurídico que não provenha da revelação divina mas sub­
Platão dizia que ele suplantava todas as outras em força e em sista, pelo contrário, por sua própria "natureza" e evite assim
dignidade ( õwáust aoi nQsafieíq. ■tSjrepé^otxra )■ Essa "trans­ (oda mácula e toda falsificação. Tal como Galiíeu proclama e
cendência" da idéia do direito, que eleva a justiça e o bem acima defende a autonomia da física matemática, também Grotius luta
de todo ser ( íxíxstva tfjç ovalaç ), que nos impede de fun­ pela autonomia da ciência jurídica. Parece que o próprio Gro-
dar o seu sentido sobre qualquer coisa existente, Grotius analisa-a lius tinha uma noção perfeita desse parentesco ideal: manifesta
cada vez mais profundamente. Foi esse, muito exatamente, o por Galileu a sua mais profunda admiração e chama-o, numa
seu verdadeiro pape! filosófico e histórico. Afinal de contas, a carta, de o maior gênio do século, A palavra e o conceito de
Idade Média cristã já se ocupara igualmente da idéia de um di­ "natureza”, na vida intelectual do século X V III, englobam e
reito natural inspirado, em seus aspectos essenciais, no estoi­ condensam dois grupos de problemas que estamos habituados a
cismo. A par da lex divina, o pensamento escolástico não ignora distinguir nos dias de hoje. As "ciências da natureza” nunca
a esfera própria, relativamente autônoma, da lex naturalis. O eram então separadas das "ciências do espírito” e ainda menos
direito não está pura e simplesmente subordinado à revelação, se opunham do ponto de vista de sua especificidade e validade.
não é deduzido exclusivamente desta. Ensina-se então uma mo­ "Natureza" não designa somente o domínio da existência "fí­
ral natural e um conhecimento natural do direito que a razão sica", a realidade "material”, da qual cumpre distinguir a "inte
conservou para além da queda original e que são considerados lectuai " ou a “e s p ir it u a lO termo não diz respeito ao ser dat
a razão necessária e o ponto de ligação da restauração sobrena­ coisas mas à origem e fundamento das verdades. Pertencem à
tural, assente na graça divina, do conhecimento perfeito que o ''natureza", sem prejuízo de seu conteúdo, todas as verdades
homem possuía antes da queda. Apesar de ludo, a Idade Média suscetíveis de um fundamento puramente imanente, as que não
não podia reconhecer uma autonomia perfeita tanto da lex na­ exigem nenhuma revelação transcendente, as que são certas c
turalis quanto da " razão natural”. A razão permanece a criada evidentes per se. Tais são as verdades que se busca não só no
da Tevelação (tanquam famula et ministra). No âmbito das fa­ inundo físico mas também no mundo intelectual e moral, pois
culdades naturais do espírito e da alma, ela deve conduzir à re­ são essas as verdades que fazem do nosso mundo um só "m un­

324 325
do”, um cosmo que repousa em si mesmo, que possuí em si as conhece. Portanto, mesmo que não existisse nenhum Deus,
mesmo o seu próprio centro de gravidade. deveríamos amar a justiça e tudo fazer para nos igualar a um scr
O século X V III também aderiu ao principio dessâ unidade. dc quem temos uma idéia tão sublime e que, se existe, é necessa­
Montesquieu faz sua estréia oa área da ciência experimental.6 riamente justo. Libertos do jugo da religião, não estamos menos
Foi por esse caminho que Sfi viu conduzido à sua problemática submetidos ao reino da justiça.1 O direito possui, como a ma­
própria; a análise das instituições jurídíco-políticas. Na quali­ temática, sua estrutura objetiva, que o arbitrário não poderia
dade de jurista, formula a mesma questão que Newton já for­ mudar. "Antes de existirem leis feitas, já havia relações de jus­
mulara como físico: longe de contentar-se com as leis empi­ tiça possíveis. Afirmar que nada existe de justo nem de injusto
ricamente conhecidas do cosmo político, ele quer reduzir a fora do que ordenara ou defendem as leis positivas é o mesmo
diversidade dessas leis a um pequeno número de princípios de­ que dizer que antes de ser traçado um círculo seus rajos não
terminados. O que pa:a Montesquieu constitui o "espírito das eram todos iguais."
leis” é a ordem, a interdependência sistemática que existe entre A filosofia do Iluminismo vinculou-se primeiro, sem reser­
as normas particulares, Ele pôde assim começar sua obra por vas, a esse "apriorismo'' do direito, à idéia de que devem existir
uma definição da idéia de lei que determina o seu objeto em normas jurídicas absoluta e universalmente obrigatórias e imu­
toda sua amplitude, em sua Significação universal, ignorando táveis. A investigação empírica e a doutrina empirista não fazem
toda e qualquer limitação a uma ordem de fatos particulares. nenhuma exceção nesse ponto. A esse respeito, as opiniões de
"As leis, no seu sentido mais amplo," — declara ele — “são Voltaire e Diderot não diferem dos de Grotius e Montesquieu.
as relações necessárias que derivam da natureza das coteas."8 Contudo, não deixam de, ao mesmo tempo, cair num difícil di­
Ora bem, essa natureza das coisas existe tanto no possível quanto lema. Como conciliar essa concepção com a tendência geral da
no real, tanto no objeto de pensamento quanto na realidade dos teoria do conhecimento por eles postulada? Como harmonizar a
fatos, tanto no físico quanto no moral. A heterogeneidade do necessidade e a imutabilidade da idéia de direito com a tese de
dado nâo deve afastar-nos da busca da uniformidade escondida; que toda idéia provém dos sentidos e, por conseguinte, só pode
jamais o contingente nos deve fazer perder de vista o necessá­ representar as experiências sensíveis singulares em que ela se
rio (barrar-nos o acesso ao conhecimento do necessário). Partindo baseia? Voltaire percebeu claramente a contradição que se es­
dessas concepções, Montesquieu retoma expressamente, a partir conde sob essa dupla afirmação e parece que uma certa vacilação
das Cartas persas, o princípio sobre o qual Grctius fundais o manifestou-se, de tempos em tempos, nos seus julgamentos. Mas,
direito natural. A justiça é uma certa “relaçãc de conveniência” no fim das contas, é o racionalisía ético, o defensor entusiasta
que permanece constantemente idêntica a si mesma, seja qual do perseguido e da razão moral, quem leva a mcthor sobre 0
for o sujeito que a conceba, quer seja contemplada por Deus, empirista e o céptico. Sobre esse ponto, chegará mesmo a tomai
por um anjo ou por um homem. E, comc a vontade de Deus posição contra Locke, seu mestre e guia. Ao mostrar que não
está constantemente de acordo com o seu conhecimento, é im­ existem idéias inatas, objeta Voltaire, Locke não provou, em
possível que ele infrinja as normas eternas do justo, porquanto absoluto, que não pode existir um principio universal da moral

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0 reconhecimento de tal principio não quer dizer que âle exista pelo qual elas trabalham e alimetttatn-se juntas e deu ao húinrin
em ato e que, desde o começo, atue em todo ser pensante, mas certos sentimentos de que não pode desfazer-se, e que sün «s
tão-somente que todo ser pensante deve descobri-Lo em si mesmo. vínculos eternos e as primeiras leis da sociedade na qual Dcuii
Essa descoberta corresponde a um certo período, a uína certa previu que os homens viveriam." 8 E í ainda à famosa analogi»
etapa do desenvolvimento individual, mas o conteúdo que então das leis da natureza que Voltaire recorre para a demonstração
se descobre e se revela à consciência não é o resultado desse dessa doutrina. Seria necessário que a natureza rompesse com
desenvolvimento: ele sempre existiu. "Concordo com Locke em sua unidade, sua ordenação, sua perfeita regularidade, precisa­
que não existe realmente nenhuma idéia inala; segue-se, como é mente quando se trata de sua criatura mais sublime, o homem?
evidente, que tampouco existe em nossa alma qualquer propo­ Deveria ela limitar-se a reger o mundo físico por leis universais
sição de moral inata; mas do fato de que não nascemos com ç invioláveis, abadou ando inteiramente o mundo moral ao acaso
barba, segue-se que nós, habitantes deste continente, não nas­ c ao arbitrário? Nesse ponto, devemos romper com Locke e ade­
cemos para ser barbados numa certa idade? Não nasceroos com rir a Newton e ao seu célebre princípio: "Natura est semper
força para caminhar; mas quem quer que tenha nascido com sibi consona". Assim como a lei da gravitação que descobrimos
dois pés caminhará um dia. Assim é que ninguém traz consigo na Terra não está Ligada ao nosso planeta, assim como essa lei
ao nascer a idéia de que se deve ser justo; mas Deus conformou nos revela uma força fundamental da matéria que atinge os
de tal modo os órgãos dos homens que todos, numa certa idade, pontos mais longínquos do cosmo e une entre elas todas as par­
concordam com essa verdade." 8 O historiador da civilização tículas da malérta, do mesmo modo também a moralidade rege
que gosta de expor a diversidade e a contradição dos usos e cos­ todas as nações que conhecemos. Sem dúvida, descobrimos, ao
tumes dos homens, de mostrar sua inteira relatividade, sua de­ analisar essa lei e segundo as circunstâncias, milhares de dife­
pendência em face de circunstâncias cambiantes e contingentes, renças, mas o fundamento é sempre 0 mesmo, a saber, a idéia
não estará se desmentindo nesse juigamento? Não, porque Vol- de justo e de injusto. "Comete-se prodigiosamente a injustiça nos
taire acredita sempre descobrir por trás da instabilidade das furores de suas paixões, tal como se perde a sua razão na em­
opiniões, dos preconceitos, dos costumes, o caráter imutável da briaguez: mas quando a embriaguez se dissipou a razão volta, c
moralidade. "Se bem que o que se chama virtude numa região é essa, em minha opinião, a única causa que faz subsistir a so­
ciedade humana, causa subordinada à necessidade que temos uns
seja precisamente o que se chama vício numa outra, e que a
dos outros.” 10 A fim de provar a existência de Deus e sua bon­
maior parte das regras do bem e do mal diferem como as línguas
dade, em vez de recorrer a pretensos milagres físicos, à ruptura
e as indumentárias, entretanto parece-me certo existirem leis na­
da ordem natural, dever-se-ia procurar apoio no milagre moral:
turais com que os homens são obrigados a concordar em lodo o
universo, mesmo a contragosto. Na verdade, Deus não disse aos Les miracles sont bons; mais soutuger son frère,
homens: ‘Eis as leis que vos dou de minha boca, e pelas quais Mais tirer son ami du sein de la ntisère,
quero que vos governeis’; mas ele fez no homem o que fez em Mais à ses ennemis pardonner leurs vertus,
muitos outros animias: deu às abelhas uai poderoso instinto C’est un plus grand miracle, et qui ne se fait plus.11

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Também em Diderot a fé numa natureza moral imutável em capaz.“ É deixando a natureza obrar por conta própria, sem
si neesma e r,a estabilidade do princípio de justiça que daí de- cadeias nem obstáculos convencionais, é nessa realização de si
ccrre permanece inabalável: na sua visão do mundo tio perfeita­ mesma que ela realizará simultaneamente o único e verdadeiro
mente móvel e dinâmico, essa fé desempenha o papel do ponto bem, com a felicidade do homem e a prosperidade da sociedade.
fixo de Arquimedes.13 Quando Helvétius, em sua obra De l ’esprit, Assim, Diderot percorre tode caminho que vai de uma fundação
resolve abalar essa fé, quando procura desvendar, desmascarar “apriorístíca“ da ética a uma fundação puramente utilitária. Co­
todos os pretensos instintos morais como outros tantos disfarces meça por conceber a idéia do direito e da iustiça como uma
do egoísmo, logo Diderot tomou partido carrtra essa iniciativa de idéia pura, intrinsecamente válida e imutável per s«; mas, à me­
nivelamento.13 Ele atém-se á essência eterna e imutável da mo­ dida que ele lhe aprofunda o conteúdo e prccura defini-lo com
ralidade, embora dê a essa exigência um fundamento que, com­ maior precisão, é nas obras imediatas e concretas da natureza que
parado com as teorias do direito natural, revela uma direção de acredita descobrir a realidade. O puro moralismo de que fazia
pensamento muito diferente. A gradual mudança de sentido da profissão de fé na crítica da religião e dos dogmas religiosos
idéia de "natureza" que acompanhamos passo a passo no pen­ converte-se progress!vãmente num puro e simples pragmatismo.
samento do século X V III faz-se sentir cada vez mais: o centro "Mas, doutor, e o vício e a virtude?" — indaga mlle. de 1'Espi-
de gravidade passa do apriorismo ao empirismo, do lado da ra­ nasse, protestando contra a ética naturalista do médico em O
zão para o da experiência, Não é o comando abstrato da razão sonho de D'Alembert — "a virtude, essa palavra tão sã em todas
que dirige e une os homens; um vínculo mais verdadeiro e mais as línguas, essa idéia tão sagrada em todas as naçõesl" "Ê pre­
sólido reside na identidade de suas inclinações, de seus instintos, ciso transformá-la" — respondeu o médico — “na de benevo­
de suas necessidades sensíveis. £ ai que nos cumpre buscar a lência e seu oposto na de malevolência. Nasce-se felizmente ou
verdadeira unidade orgânica do gênero humano, é af que ela infelizmente; é-se irresistivelmente arrastado peta torrente geral
encontra seu verdadeiro ponto de apoio, e não em simples pres­ que leva um à glória, o outro à ignomínia." 18 Assim, Diderol
crições religiosas ou morais. Toda moral, toda religião que aban­ foi finalmente levado a fundamentar a superioridade do direito
dona esse ponto de apoio, que rejeita e abandona os naturais "natural" e da moralidade natural em relação à moral teológica
impulsos sensíveis da conduta, não passa de um mero castelo de essencialmente no seu modo de eficácia. O que ele objeta a essa
cartas. Que nenhum "dever" tenha a temeridade de negar ou moral religiosa, assim como a toda religião revelada, é tê-lo sido
de transformar radicalmente o ser empírico do homem! Esse ser sempre desastrosa para a vida da sociedade. Ela rompe todos
nunca deixará de renascer e será sempre mais forte do que todo os vínculos naturais que unem o homem ao homem, alimenta a
e qualquer dever , Uma moral que se declare inimiga da natu­ discórdia e o ódio entre os amigos mais íntimos e entre aqueles
reza está desde logo condenada à impotência. Para que conser­ que estão unidos pelos laços do sangue; rebaixa os deveres na­
vasse, entretanto, alguma influência, teria que extirpar do ho­ turais ao subordiná-los a uma outra ordem de deveres pura­
mem, ao mesmo tempo que sua sensibilidade, ioda nobreza e mente quiméricos.1® Diderot permanece fiel a essa linha de pen­
grandeza moral, todo amor e toda abnegação natural de que é samento em todos os seus artigos da Enciclopéia, assim fome-

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cendo ao conjunto da obra a linha gerai da sua problemática dos séculos X V II e V III. Ele vê o original dessa Declaração
ética,1T D'Alembert não vê de outro modo os limites metodoló­ nos "Bilis of Right" americanos, em especial na Declaração dc
gicos da ética: uma ética puramente filosófica só pode ter como Direitos promulgada pelo Estado de Virgínia em 12 de junho
finalidade indicar ao indivíduo a sua posição no seio da socie­ de 1776. Entretanto, mesmo admitindo a perda positiva da tese
dade humana e de lhe ensinar a melhor maneira de consagrar de Jellinek — a dependência da Declaração francesa em relação
suas faculdades ao bem-estar e à felicidade de todos. " O que hos seus modelos americanos é inegável e demonstrável até nos

pertence única e essencialmente à razão e o que, por conseguinte, detalhes — , não se segue daí, em absoluto, que esse autor tenha
é uniforme em todos os povos são os deveres que Iodos temos razão na parte negativa que se lhe prende. Não são as próprias
para com os nossos semelhantes. O conhecimento desses deveres declarações americanas dominadas pela influência do novo es­
é o que se chama Mora! [ ...] Poucas ciências tem um objeto pírito que anima os teóricos do direito natural? Longe de cons­
mais vasto e princípios mais suscetíveis de provas convincentes. tituírem a raiz donde brotou a reivindicação dos direitos do ho­
Todos esses princípios convergem para um ponto comum, sobre o mem e do cidadão, digamos antes que elas são seus ramos late­
qual é difícil alimentarem-se ilusões; eles tendem a nos conse­ rais, um desenvolvimento à parte, determinado por motivos par­
guir o meio mais seguro de ser feliz, mostrando-nos a ligação ticulares e favorecido por certas circunstâncias históricas, das
íntima do nosso verdadeiro interesse com a plena realização dos idéias do direito natural. Assim é que elas não se deduzem, dc
nossos devere;- ..] É a motivos puramente humanos que as so­ maneira nenhuma, do princípio exclusivo de liberdade dc crença
ciedades devem seu nascimento; a religião não tem nenhum pa­ e dos conflitos religiosos que se desenrolaram em torno desse
pel na sua formação inicial [ . . . ] O filósofo não se encarrega de princípio na Inglaterra do século X V III. Trabalhos recentes e
colocar o homem na sociedade e conduzi-lo nela; cabe ao mis­ perspicazes acerca da Declaração dos Direitos do Estado dc
sionário atraf-lo em seguida para os pés dos altares." 18 Virgínia mostraram claramente que, na época em que fot pro*
Sobre as fundações assim preparadas pelos teóricos do di­ nunciada essa declaração, a questão da liberdade religiosa não
reito natural foi edificada a doutrina dos direitos do homem e desempenhava nenhum papel ou, pelo menos, tinha um papel
do cidadão, tal como a desenvolveu o século X V III. Ela cons­ muito secundário.*0 Existe, evidentemente, todo um movimento
titui o ponto de convergência espiritual, a unidade ideal dos múl­ de idéias do qual a Declaração da Constituinte faz parte, no
tiplos esforços tendentes a uma renovação moral e a uma reforma seio do qual ela se desenvolveu organicamente e donde caiu como
política e social. Ê verdade que trabalhos recentes de história um fruto maduro; ela af está bem visível sob os nossos olhos,
do direito público tentaram mostrar que a base histórica da dou- muito antes que tenha podido ser uma questão de influência das
tria dos "direitos do homem” era nitidamente mais estreita. “ declarations of righJ": esse movimento remonta às origens do
Georg Jellinek, em sufc muito conhecida obra, Die Erklärung der direito natural moderno, até Grotius, e foi depois instituído e
Menschen- und Bürgerrechte,™ sustenta a tese .de que não houve elaborado teoricamente, sobretudo no âmbito da filosofia do di­
nenhuma relação direta entre a Declaração da Assembléia Cons­ reito do idealismo alemão, em Lcibniz e Wolff.21 Na Inglaterra,
tituinte francesa de 26 de agosto de 1789 e as idéias filosóficas é principalmente a Locke que cabe o estabelecimento, no seu

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Treatise on govemment, do princípio í^ r n d o o qual o contrato pura ilusão. O simples fenômeno do querer basta, portanto,
social, que é concluído pelos indivíduos entre eles, não consti­ para provar a liberdade: "Querer e agir é precisamente a mes­
tui, de maneira nenhuma, o fundamento único do conjunto de ma coisa que ser livre.” Como essa liberdade humana é conci­
relações jurídicas existente entre os homens. Todos os vínculos liável com a Providência divina? Essa questão continua sendo,
contratuais são, pelo contrário, precedidos de vínculos originá­ sem dúvida, um dilema insolúvel: mas essa dificuldade não nos
rios que não podem ser criados nem ser suspensos por um con­ deve impressionar muito, pois o limite com que nos deparamos
trato. O homem possui direitos naturais que existiam antes da aqui iremos reencontrá-lo em todos os problemas metafísicos e
constituição de vínculos sociais ou civis, e, em face desses di­ £ idêntico para cada um desses problemas,*2 Voltaire, mais tarde,
reitos, a função própria e o objetivo essencial do Estado con­ rejeitou esse julgamento e declarou-se favorável a um franco
sistem em dar-lhes um estatuto na ordem política, conceder-lhes determinismo: o sentimento da liberdade, demonstra ele então,
sua proteção e sua caução. No número desses direitos, Locke não contradiz tal determinismo, pois ser livre, no sentido da auto­
inclui muito particularmente a liberdade individual e o direito consciência imediata, não significa absolutamente "poder que-
de propriedade. A filosofia francesa do século X V III não des­ itfr" o que se quer mas "poder fazer” o que se quer. Uma von-
cobriu, portanto, a doutrina dos direitos inalienáveis, Mas foi lade sem motivos suficientes seria simplesmente absurda, pois
ela, sem dúvida, a primeira a fazer dessa doutrina um verdadeiro seria a negação da ordem da natureza. "Serio deveras singular
evangelho moral, a aderir-lhe com paixão e a proclamá-la com que Loda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas
entusiasmo. E ao proclamá-la dessa maneira, inseriu-a verdadei­ e que houvesse uni animalzinho dc cinco pés de altura que, des­
ramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de cho­ prezando essas leis, pudesse agir como melhor lhe agradasse, ao
que, essa potência explosiva que se manifestou nos dias da Re­ sabor exclusivo do seu capricho. Ele agiria ao acaso, e sabc-se
volução Francesa. Voltaire, claro, não é um revolucionário, nem que o acaso não é nada. Inventamos essa palavra para exprimir
por temperamento pessoal nem por suas preocupações. Contudo, o efeito conhecido de toda causa desconhecida." M Mas a incer­
por trás do tema dos direitos inalienáveis, ele pressentiu a apro­ teza e a vacilação interior que Voltaire manifesta a respeito do
ximação irrefreável de uma nova época de que se fez o arauto. problema metafísico da liberdade nada mais significam senão o
O que ele exprimiu como filósofo teórico, como metafísico, pouco interesse e a escassa atenção que ele dedica pessoalmente
sobre o problema da liberdade, é deveras insuficientes e, aliás, a esse aspecto da questão. O debate que conta para ele não é
bastante vago e ambíguo. No seu Tratado de metafísica (1734), teórico, não se trata da elaboração de um conceito abstrato mas
ele sustentava ainda, esforçava-se por afirmar, apesar de todas de uma questão eminentemente pratica, diríamos até, a questão
as dificuldades, a doutrina de uma liberdade da vontade humana. prática por excelência. O ideal voltairiano da liberdade nasceu
Todas as objeções que se fazem contra ela, mostra Voltaire, da i bservação da vida política concreta, da comparação e da
todas puramente conceptuais e dialéticas, esbarram no simples apreciação das diversas formas de governo. Ora, é na Consti­
testemunho da consciência. O sentimento da liberdade, vivo e tuição inglesa que a Europa de então encontrava a realização
imediatamente presente era cada um de nós, não pode ser uma mais próxima desse ideal, porque essa Constituição comportava

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uma proteção eficaz da propriedade e da segurança pessoal de cin.'*M Mas encun ira-se ainda uma outra coisa em Condorcet:
cada cidadão. Quem quer que tenha se apercebido uma vez da tui filosofia da história e da civilização que ele nos deu com o
importância desses bens, quem quer que tenha reconhecido sua »eu Tableau des progrès de l'esprit humain, percebe-se que ele
necessidade razoável, encontrará em si mesmo a força necessária compreendeu perfeitamente que complexo histórico de motivos
para defendê-los e conservá-los. "No essencial, em sua acepção juirlicularcs gerou a idéia de direitos inalienáveis. Declara ele,
mais apropriada, a idéia de liberdade coincide com a dos direi­ com efeito, que toda a ciência da sociedade humana só pode ter
tos do homem. O que quer dizer, finalmente, ser livre senão co­ um objetivo: garantir aos homens, na mais ampla medida, o livre
nhecer os direitos do homem? Pois conhecê-los é defendê-los." u tiso de seus direitos fundamentais numa perfeita igualdade. Nos
Toda a obra de Voltaire como escritor político é sustentada tempos modernos, é nos Estados livres da América do Norte que
e inspirada por esse pensamento. Ele está convencido de que esse objetivo esteve mais perto de sua realização, é a esses Es­
basta mostrar aos homens o verdadeiro rosto da liberdade para tados, por conseqüência, que cabe a glória de ter tomado rea­
despertar e mobilizar neles todas as forças necessárias à sua lidades concretas as grandes idéias do século. Condorcet atribui,
realização. É por isso que, para Voltaire, tal como para Kant, porém, a origem dessas idéias à filosofia dos séculos X V II e
a "liberdade de pena* é verdadeiramente o "paládio dos direitos XVIU e credita especialmente a Rousseau o mérito de ter eleva­
do povo". “Servir-se de sua pena, como de sua língua, tem seus do a teoria dos direitos do homem à categoria das verdades que
próprios riscos, faz parte do direito natural. Conheço muitos li­ daí cm diante não poderão ser mais esquecidas nem por muito
vros enfadonhos; mas não sei de nenhum que tenha causado um tempo combatidas.27 Em conclusão, o retrospecto que apresen­
prejuízo real.” 25 Conquistar e garantir a liberdade de pensa­ tamos sobre 0 movimento das idéias do século X V III mostra-nos
mento decide tudo: tal é a máxima implantada por Voltaire na uma vez mais como os grandes espíritos da Revolução Francesa
filosofia do seu século, assim desencadeando a torrente cauda­ eslavam conscientes da estreita conexão que existe entre a "teo­
losa de idéias que irrompeu na literatura da França revolucio­ ria" e a "práxis". Neles, pensamento e ação nunca se separaram;
nária. Proclama-se agora em toda parte que a primeira etapa de estão constantemente certos de que podem traduzir de imediato
toda a libertação, que a verdadeira constituição intelectual da o primeiro na segunda e conferir a esta a garantia daquele.
nova ordem política só pode consistir numa declaração dos di­
reitos inalienáveis, do direito à segurança e integridade ffsica da
A idéia de contrato e o método das ciências sociais
pessoa, à livre fruição de seus bens, ò igualdade perante a lei e ã
participação de todos os cidadãos no Poder Legislativo. "Não é
Se se quiser compreender o novo caminho adotado pelas
no conhecimento positivo das leis estabelecidas pelos homens"
ciências sociais nos séculos X V II e X V III, se se quiser fazer uma
— declara Condorcet — "que se deve procurar conhecer o que idéia muito clara do novo método que aí se desenvolveu, é indis­
acontece com sua adoção, é somente na razão, e 0 estudo das pensável relacionar, colocar em estreita conexão esse desenvol­
leis instituídas em diferentes povos c cm diferentes séculos só é vimento com o que a lógica registrou durante o mesmo período.
útil para fornecer à razão o apoio da observação e da experiên- Por paradoxal que possa parecer semelhante aproximação, ela

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. aracteriza, inegavelmente, uma aas tendências fundamentais des- acredita não ter realizado assim apenas uma reforma lógicai vô
ia época. Com efeito, desde a Renascença que se assiste à pro­ nesse empreendimento nada menos do que uma transformação
gressiva ascensão de umo nova forma de lógica que, em lugar completa do próprio ideal do conhecimento filosófico, O que ele
de se contentar em classificar e ordenar o saber adquirido, quer censura à escolástica foi ter acreditado que podia compreender
ser um instrumento do saber. Racionalistas e cmpiristas concor­ o ser tomando-o por um simples ser, algo passivo, com proprie­
dam com a necessidade dessa nova lógica c rivalizam para ím- dades e características estáveis. Por isso lhe faltava tanto a ver­
plementá-lfi. Bacon não é o único a querer, por sua filosofia, dadeira estrutura da natureza corporal quanto a do pensamento;
fornecer um orgarton à ciência; Leibniz também insiste na ne­ ambas só são concebíveis, de fato, no movimento. Nós apenas
cessidade, para a lógica, de sair dos caminhos tradicionais, de compreendemos aquilo que fazemos nascer sob os nossos olhos.
superar as formas escolásticas, a fim de se atingir uma real É-nos vedado conceber o que escapa ao devir; o eterno. 0 scr
fecundidade, a fim de converter-se numa Lcgica inventionis. O imóvel de Deus ou das inteligências celestes transcende todo o
impulso assim dado influenciou de um modo muito nítido e conhecimento humano. Aquilo que quer verdadeiramente co­
direto a teoria da definição. O método escolástico de definição nhecer, o homem deve constituMo, deve produzi-lo a partir dos
de um conceito por genus proximum e differentia speeifica é seus elementos. É para esse ato de produção que deve tender
cada vez mais considerado insuficiente. Não basta que a defi­ toda a ciência — ciência das coisas tanto materiais quanto es­
nição analise e descreva o conteúdo de um determinado con- pirituais. Onde nos faltar a possibilidade de produzir o objeto
;eíto; ela deve ser um meio para a construção do conteúdo dos construindo-o, aí se detém igualmente o conhecimento racional,
conceitos e para a sua consolidação através dessa atividade edifi­ o conhecimento estritamente filosófico: ubi generatio n u lla ...
cadora. £, assim que nasce a teoria da definição genética ou cau­ ibi nulla Philosophia intelligitur.3*
sal, em cuja elaboração participaram todos os grandes lógicos Com essas explicações fundamentais da tarefa e do conceito
seiscentistas A verdadeira e fecunda explicação de conceitos geral da filosofia, já nos encontramos, entretanto, em plena /t/o-
não procede de um modo abstrato; ela não se contenta em abs­ ofia social de Hobbes, Na verdade, não existe nele, de uma à
trair um elemento de um complexo dado de propriedades ou de utra, nenhuma separação, apenas uma transição. Se a teoria do
caracteres e de fixá-lo isolando-o. PeJo contrário, quer seguir a istado faz parte da filosofia, é porque ela se adapta plenamente
lei intema segundo a qual o todo é gerado, ou segundo a qual se ao seu método, porque não pode nem quer outra coisa senão a
pode pensar que o seja. E por essa lei do devir quer tomar aplicação desse método a um objeto particular. Também o Es­
visível o seu ser e o seu modo de ser verdadeiros; não indica tado é um "corpo" — e não há outra solução, por conseqüência,
apenas o que esse todo é mas também por que é. A verdadeira ?ara entender a sua natureza do que analisá-lo até seus últímcs
definição genérica permite-nos penetrar com o olhar a estrutura :lementos e reconstituí-lo em seguida. A fim de chegar-se a uma
do complexo; e não só essa estrutura como tal: ela penetra ao ;iência efetiva do Estado, basta transferir para a política o mé­
mesmo tempo até a sua causa. Hobbes foi o primeiro lógico todo de composição e de resolução que Gaüleu empregou cm
moderno a elucidar a importância dessa "definição causal". E física,30 Em política, assim como em física, é indispensável puni

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a compreensão do todo retroceder até os seus elementos, às for­ {will nur àiçh selbst). O problema da teoria política consistt
ças que do começo reúnem as diversas partes componentes e cm explicar como, desse isolamento absoluto, pode nascer uma
que continuam mantendo-as associadas. E o fio dessa análise não nssociação e não uma associação destinada a estabelecer entre os
poderá quebrar-se era nenhum ponto; ela só cessará quando se indivíduos conexões flexíveis: uma associação que deve acabar
tiver chegado aos elementos reais, às unidades absolutas e índe- pur uni-los num todo único. Tal é o problema que Hobbes quer
componíveis. Para compreender verdadeiramente as estruturas resolver mediante a doutrina do estado de natureza e a do con­
políticas e sociais é preciso que o homem as divida em seus ele­ trato social. Dominação e submissão: nada mais do que essas
mentos últimos. Esse ideal não é realizável por um método pu­ duas forças para unir nura só corpo político o que está separado
ramente empírico; Hobbes não alimenta quaisquer ilusões nesse por natureza e para manter esse corpo em existência, O contrato
ponto, mas essa objeção não o impedirá de aplicar o seu princi­ üocial apenas será, para Hobbes, um contrato de submissão. En­
pio racional geral até as suas últimas conseqüências. Onde quer fraquecer de algum modo essa sujeição, impor-lhe qualquer res­
que encontremos o homem, na natureza e na história, vemo-lo trição, seja ela qual for, significaria privar de seu fundamento a
comprometido em alguma forma de sociedade e não como indi­ existência do Estado, devolver ao caos o cosmo político. Eis
víduo isolado. Hobbes não pode esquivar-se a esse limite empí­ como o radicalismo lógico engendra em Hobbes o radicalismo
rico e 6 muito conscientemente que o transpõe. Os vínculos político — e reciprocamente. Querer limitar de uma forma ou
efetivos das formas primitivas de sociedade, por exemplo, os de Outra o alcance dessas relações de dominação é atacar as raí­
vínculos existentes entre os membros de uma família, cumpre zes racionais do sistema, é negá-lo logicamente. O ato pelo qual
desfazê-los, até mesmo cortá-los, para compreender o ser social, os indivíduos desvestem-se de sua vontade própria a fim de trans­
deduzi-lo de seus princípios. Não esqueçamos que a filosofia feri-la para o soberano, na condição de que os outros façam o
não é o saber do quê, mas o saber do porquê, o saber do ôkítt , mesmo, não se consuma no interior de uma sociedade já exis­
não do simples ôtt , Ora, todo pensamento é, segundo Hobbes, tente; é, pelo contrário, o começo da sociedade, é o ato que a
cálculo, e todo cálculo é adição e subtração. Devemos elevar a constitui inicialmente. A relação que Hobbes concebe entre as
faculdade de “subtrair", de abstrair conceptuaJmente, ao seu duas formas de contrato, o "pactum sodetatis" e o "pactum sub-
mais alto grau» devemos levá-la até o limite extremo de suas jectioms", não deixa subsistir o menor dualismo: só existe uma
possibilidades para ter êxito, em seguida, na adição, ou seja, na
forma de contrato, que é o contrato de submissão, fonte de todas
integração intelectual dc um lodo, Com efeito, é a combinação
as formas de vida social*1 Os indivíduos, antes dc terem reali­
dos dois métodos que deve engendrar o conhecimento verda­
zado o contrato com o soberano, não são mais do que uma massa
deiro da eslmíura de um todo complexo. E por essa razão que
desordenada, um agregado que não apresenta o menor indício de
Hobbes, inicialmente, procede pela segregação rigorosa das iint-
“totalidade”. Só a dinâmica da força soberana procede à fusão
dades: toma as vontades individuais e serve-se delas como de
uma moeda de conta, como unidades puramente abstratas, sem do iodo político, só ela o mantém coeso por sua autoridade sem
qualquer "qualidade” particular. Cada uma dessas vontades quer limite. O contrato social entendido como contrato de sujeição é,
a mesma coisa — e cada uma delas apenas sc quer a si mesma portanto, o primeiro passo que conduz do “stutus naturalis” ao

340 341
"status chnlis" e continua sendo a condido sine qua non da lese de que a utilidade seja, de algum modo, a mãe do justo e
manutenção desse estado civil. do equitativo (ulilitas justi prope mater et aequi, Horácio, Sá­
Entretanto, o direito natural não pode admitir, em virtude tiras, I, 35: o homem não deixará de buscar, de exigir o direite
do seu princípio fundamental, que a autoridade do Estado seja pelo direito, mesmo que nenhuma utilidade, nenhuma vantagen
concebida como um poder sem limites, como uma potestas le~ ou proveito esteja-lhe associado.33 A faculdade de elevar-se até r
gibus soluta. Para salvar esse princípio, a idéia de contrato social idéia do direito e da obrigação jurídica, e de adquirir consciên­
tem que ser concebida num outro sentido muito diverso e de­ cia no que já estava implícito no simples instinto de sociabili­
fendida de uma outra maneira, A sociedade, no espírito de Gro- dade, na inclinação natural para a vida em comum, é o privi­
tius, não é uma associação de indivíduos com vistas à realização légio do homem c o fundamento de toda a sociedade especifi­
de um certo objetivo; ela baseia-se num instinto irreprimível da camente humana. Essa dedução não pode deixar de evocar a
natureza, um "appetitus societatis". indispensável ao homem união íntima, o casamento, tão característico da obra de Grotius,
para tornar-se homem. O indivíduo abstrato a que a teoria de do espírito jurídico e do pensamento humanista: o direito não
Hobbes é forçada a retomar fica, portanto, segundo Grotius, é uma criação contingente do homem, mas uma determinaçãí
fora da espécie humana, à margem da forma pura da humani­ essencial e necessária de sua natureza. Grotius vê no direito a
dade. Como poderia ele concluir então um contrato? No ato de fonte originária donde jorra, e onde se reflete em sua máxima
contratar, na promessa como tal, reside justamente um dos tra­ pureza, a humanítas ipsa. Donde a idéia de contrato, aliás, tira­
ços fundamentais da natureza humana como natureza humana­ ria a sua significação própria e a sua perfeita justificação senão
mente social. Por conseguinte, por sua própria natureza, a so­ dessa sociabilidade natural? O princípio de respeito incondi­
ciedade não poderia basear-se no contrato, ser gerada pelo con­ cional do contrato que constitui uma das regras supremas do
trato; pelo contrário, o contrato é que só é possível e inteligível direito natural requer, evidentemente, que o Estado não seja
na hipótese de uma "sociabilidade" original. Essa sociabilidade concebido como a soma dos instrumentos do poder e dos meios
fundamentada na razSo não pode ser substituída por um ato de coerção física, 0 Estado é uma entidade ideal, e sua natureza
arbitrário, por uma simples convenção. Grotius descarta, por­ deve ser interpretada a partir de suas tarefas, a partir de seu
tanto, tanto para o Estado quanto para o direito, 0 princípio de sentido e de seu telos ideais. E esse sentido reside, efetivamente,
uma fundação e de uma dedução puramente utilitária. Ele não na noção de contrato, mas entendida como a de um livre com­
nega, evidentemente, que o Estado e o direito não tenham por promisso, não como a de uma obrigação imposta por necessidade
missão fundamental proteger a sociedade, mas essa proteção, e por coerção. Nada pode questionar a validade do "contrato
acrescenta Grotius, de acordo com uma fórmula muito expres­ originai", nem mesmo o poder do Estado, porquanto esse podei
siva e característica, deve harmonizar-se com a natureza do en­ repousa justamente nesse antecedente e a revogação do contratc
tendimento humano. Haec societatis custodia, humano intellectui abalaria seu próprio fundamento. O Estado só pode criar e fun­
conveniens, fons est ejus juris, quod proprte tali nomie appella- dar o direito na condição de conter, de realizar em si mesme
tur.*2 Nessa perspectiva, não se treta mais, portanto, de aceitar a um direito original. Portanto, o caráter obrigatório da lex civilU

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deve estar cimentado no poder fundamental da lex naturalis. O ativo. O instinto de rapina e de dominação violenta é estranho
direito como tal é anterior e superior ao Estado; só pode forne­ no homem da natureza como tal; esse instinto não pode nasccr
cer um ponto de fixaçao e iim fundamento inabalável a partir c ganhar raízes no homem antes que esse tenha ingressado na
dessa autonomia e dessa independência. sociedade e aprendido a conhecer os desejos ''artificiais" que a
A doutrma do contrato que encontramos em Rousseau é sociedade alimenta. 0 elemento mais saliente da constituição
de um outro tipo. É certo que se tem cometido com freqüência psíquica do homem da natureza não é a tendência para oprimir
o erro de tomar a doutrina do contrato social de Rousseau poi outrem pela violência mas a tendência para ignorá-lo, para se­
uma das formas da doutrina do direito natura] e de a interpretai para r-se deie. 0 homem da natureza não é incapaz, sem dúvida,
nessa perspectiva; mas falta a essa interpretação c núcleo racio­ de compaixão, segundo Rousseau; mas, longe de enraizar-se num
nal do pensamento de Rousseau e traí sua originalidade históri instinto social "inato", essa compaixão é apenas um dom da
ca. Sem dúvida, Rousseau integrou à sua teoria certos elementos imaginação. O homem recebe da natureza a faculdade de pene­
tomados de Hobbes e Grotíus, mas criticando com toda liber­ trar na existência e nos sentimentos de outrem e, em certa me­
dade esses dois pensadores. No tocante a Grotíus, ele formulou dida, essa faculdade de "empatía" permite-lhe vivenciar como
graves objeções contra as suas teses, desde c Discurso sobre a seu próprio um sofrimento alheio.31 Mas vai uma grande dis­
origem da desigualdade, e é totalmente ocioso, também, procurar tância entre essa atitude quese baseia numa simples impressão
interpretar o Contraio social como um dos prolongamentos da da sensibilidade e num interesse ativo, numa ação realizada com
doutrina do direito natural. Rousseau separa-se nitidamente do outrem e para outrem. Isso é cometer um estranho vaitQov
direito natural, embora conserve com ele, è verdade, múltiplos ngorcQov , uma bizarra inversão do anterior e do posterior,,
contatos, em sua concepção da leleologia social e, sobretudo, na do começo e do fim, fazer de semelhante instinto a origem da
sua psicologia social. Rejeita expressamente a idéia de um appe- sociedade. Essa forma de simpatia que permite superar o puro
1itus societatis, de um instinto primitivo de sociabilidade que egoísmo pode perfeitamente constituir a meta da sociedade, mas
impeliria o homem para o homsm. Ele não hesita, nesse ponto, não o seu ponto de partida. No estado de natureza, seria impos­
ira voltar a Hobbes, em ligar-se diretamente a ele.“ Sem chegar sível existir harmonia entre interesse pessoal e interesse comum.
a descrever o estado de natureza “ como uma guerra de todos O interesse do indivíduo, longe de coincidir com o da sociedade,
contra todos, vê-o, porém, como um estado em que cada um exclui-o, pelo contrário, e a recíproca também é verdadeira.
está perfeitamente isolado e perfeitamente indiferente aos outros. Assim nos primórdios da sociedade, os quais não são consciente­
Os homens nesse estado não estão ligados uns aos outros nem mente elaborados pela vontade mais são o produto fatal do jogo
por um vínculo moral, nem por um laço sentimental, nem pela de forças em face das quais o homem, ao invés de as controlar,
idéia de dever, nem por um movimento de simpatia. Cada um sucumbe-lhes, as leis sociais são apenas o jugo que cada um
existe para si mesmo e só procura o que é necessário à conser­ quer impor a outrem sem sonhar sequer em submeter-se-lhe ele
vação da sua própria vida. Segundo Rousseau. o defeito da próprio. Rousseau sente o grande peso dessas formas de socie­
psicologia de Hobbes é somente o de ter colocado no lugar do dade ampliadas com o tempo, tradicionais e convencionais, e
ígoísmo passivo que reina no estado de natureza um egoísmo revolla-se amargamente contra elas. "Você precisa de mim, por­

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que sou rico e você é pobre. Façamos, pois, um acordo entre ou exige para si, pota só tem existência e querer no seio du
nós: permitirei q u e você ted ha a honra de servir-me, na condi­ "vontade gerar. Essa espécie de "contrato” é a única, segundt
ção de que m e dê o pouco q u e the resta, em retribuição do Rousseau, a possuir uma força objetivamente obrigatória qut
trabalho que terei em dar-lhe ordens." 36 Tal é, segundo Rous­ não seja a coerção física. Daí resulta a estrita correlação cstu-
seau, a forma de contrato que dominou a sociedade até os nossos belecida por Rousseau entre a idéia autêntica da liberdade c a
dias, forma que implicava, por certo, um vínculo jurídico mas de lei. Liberdade significa adesão à lei estrita e inviolável qu«
que nem por isso deixava de estar nos antípodas de todos os cada um se impõe a si mesmo. O verdadeiro caráter da liber­
YÍnculos morais autênticos. dade não é a fuga peranie a lei ou o simples desprendimento em
Ê aqui que começa o protesto de Rousseau e que intervéir. relação aos ditames da lei mas a livre aquiescência, o livre con­
a sua vontade de reforma. Contra Hobbes, ele vai insistir vigoro­ sentimento em face da lei. Emancipar o indivíduo não signifien,
samente sobre este ponto: o contrato social é nulo, absurdo e portanto, para Rousseau, arrancá-lo a toda e qualquer forma dt
contraditório se, em vez de unit intimamente as vontadeí indi­ sociedade, mas encontrar uma forma tal de sociedade que pre
viduais, coage-as desde o exterior a unir-se por meios físicos de serve a pessoa de todo indivíduo cora a força solidária da asse
coerção. Um vínculo dessa natureza carece, de fato, de um dação política, de modo que o indivíduo, tendo concluído ur
ponto de apoio e & moralmente sem valor. Para que uma auto­ pacto com todos os outros, somente obedece, não obstante, t
ridade possua esse valor é necessário que os indivíduos subme­ si mesmo nesse acordo recíproco. "Enfim, cada um dando-se a
tam-se a ela e não que ela submeta os indivíduos- Tal é a formi todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobn
de autoridade que o Contrato social de Rousseau quer assegurar o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si
são essas as regras fundamentais que ele quer elaborar. Enquan­ mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde e maior
to os súditos que se unem pelo contrato continuam, a despeito força para conservar o que se tem. Enquanto os súditos só esti­
dessa união, existindo como vontades individuais — enquanto verem submetidos a tais convenções, não obedecem a ninguém
mas somente à própria vontade.“ É verdade que os cidadãos re­
é sempre um, individualmente, quem pactua com o outro, ou
nunciaram de uma vez por todas à independência natural (indé-
os indivíduos instalam um soberano e submetem-se a ele como
pendance naturellé) que vigora no estado de natureza, mas tro-
a uma pessoa privada — , nenhuma unidade autêntica e verda­
caram-na por um outro bem mais precíoso.,T Passaram agora a
deira foi ainda real Liada. Essa unidade jamais será alcançada
ser indivíduos na acepção mais elevada do termo, verdadeiros
pela coerção, é na liberdade que ela deve alicerçar-se. Na ver­
súditos voluntários, enquanto não passava antes de um feixe de
dade, a liberdade não exclui de maneira nenhuma a submissão;
instintos e de apetites sensuais. Somente a adesão à vontade geral
ela não significa arbitrariedade mas, pelo contrário, estrita ne­ {volonté généralé) constitui a personalidade autônoma. E Rous­
cessidade da ação. Mas essa submissão já não é a submissão de seau nlo hesita em colocar esse objetivo da ordem social esta­
uma vontade individual ou de uma pessoa individual a um belecida por contrato muito acima do estado de natureza, que
outro sujeito voluntário igualmente individual. Ela quer dizen ele parecia, inicialmente, glorificar mais do que tudo.88 Embora
a vontade individual está suspensa como tal, nada mais deseja nesse estado* assim afirma ele, o homem se prive de muitas

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vantagens que frui na natureza, ganha outras de igual morta: divíduo não só se dá ao todo mas abdica de si mesmo cm bene
suas faculdades exercem-se e desenvolvem-se suas idéias am- fício do todo: "Ademais, fazendò-se a alienação sem reservas, a
pliam-se, seus sentimentos enobrecem-se. Toda sua alma se eleva união é tão perfeita quanto possa ser e a nenhum associado res­
a lal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degra­ tará algo mais a reclamar."42 Rousseau é então levado a con­
dassem com freqüência a uma condição inferior àquela donde denar toda resistência individual à lei, mas é porque não existe
saiu, deveria bendizer incansavelmente o instante feliz que de]a para ele nenhuma dúvida de que, quando a lei vigora em toda
o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado sua pureza e sua verdadeira universalidade, nenhuma exigência
um ser inteligente e um homem.3D moral do indivíduo pode efetivamente ficar por satisfazer. Essas
Esse entusiasmo pela força e dignidade da lei caracteriza a exigências são "absorvidas“ (aufgehoben) peta lei — no duplo
ética e a política de Rousseau, que nisso se revela um prede­ sentido desse termo, ou seja, por uma parte, não podem apre-
cessor de Kant e de Fichíe.40 Pretende tão pouco dar lugar no sentar-se como exigências independentes e, era contrapartida, o
seu ideal social e político ao arbitrário do indivíduo que vê, pelo seu sentido autêntico é integrado na própria lei e por isso con­
contrário, na decisão individual uma espécie de pecado contra o servado e preservado. Quando domina a força bruta, quando
espírito verdadeiro de toda a sociedade humana. Nenhuma hesita­ um indivíduo ou um grupo de indivíduos reina e impõe suas
ção, nenhuma flutuação sobre esse ponto: desde o primeiro esbo­ decisões e suas ordens a todos os outros, então é evidente que
ço do Contrato social a lei é apontada como a mais sublime de se requer, que se torna razoável e necessário fixar limites ao
todas as instituições humanas, o dom do céu graças ao qual o poder usurpado. Com eíeito, esse poder está exposto ao perigo
homem aprende, desde a sua existência terrena, a pressentir os de cometer abusos que cumpre então prever, tanto quanto pos­
mandamentos invioláveis da divindade.'11 Ê, portanto, um contra- sível. Mas, no fundo, todas as medidas preventivas racionais
senso absoluto, no plano histórico, interpretar, como o fez na continuarão sendo, na realidade, ineficazes; quando está ausente
Alemanha o período do Siurm und Drang, o evangelho da nature­ a vontade de legalidade como tal, todas as “leis fundamentais",
za como se significasse que era necessário eliminar o reino da lei por mais cuidadosamente meditadas que sejam, através das quais
para retornar à natureza. Se Rousseau tivesse enveredado por se procura cercear o poder do soberano, não impedirão que este
esse caminho, o Contraio social teria caído em contradição fla­ as interprete no sentido que mais lhe convenha e manipule-as a
seu bel-prazer. É era vão que se limitará o quantum de poder
grante, quase inacreditável, com o Discurso sobre a origem da
se não se converter igualmente o seu quale, ou seja, a sua fonte
desigualdade. ,,, porquanto é impossível proclamar de um modo
e a sua significação. A teoria do direito e do Estado de Rousseau
mais nítido e mais inexorável o reino incontestável, a soberania
visa nada menos do que propiciar essa conversão qualitativa. Se
absoluta da lei, do que nessa segunda obra. O indivíduo não
ele proclama a soberania absoluta da vontade do Estado, essa
pode opor reservas nem restrições à lei. Toda cláusula que po­
mesma soberania tem por condição, bem entendido, que o pró­
deria ser inserida no contrato social em benefício de tal ou tal prio Estado tenha-se constituído como Estado, o que pressupõe
direito individual apenas comprometeria o seu sentido e o seu não depender ele de nenhuma outra fonte jurídica de atividade
conteúdo próprio, A verdadeira unidade só se realizará se o in­ senão a vontade geral. Esse ponto assente, toda a limitação de

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soDerania parecerá não só supérflua tnas contraditória, porquan­ natureza, tem apenas uma significação administrativa, perde
to a questão da extensão do poder perde o seu sentido, uma toda legitimidade. Pois a lei pode muito bem ir até o ponto dc
vez que se trata agora do seir conteúdo e do seu princípio, os limitar-se em seu exercício, de delegar a outrem uma parle do
quais não são suscetíveis de "mais" e de "menos". Desde que poder que nela reside, mas não pode chegar ao ponto de aiiemir-
não tenha de enfrentar mais a simples força física mas a idéia se e aniquilar-se a si mesma. A ídéta de “direitos imprescri­
pura de Estado jurídico, o indivíduo não tem mais necessidade tíveis ”, que apenas tinham por papel, essencialmente, no espí­
de ser protegido: a proteção verdadeira realiza-se doravante no rito do direito natural, delimitar e salvaguardar a independência
Estado e pelo Estado, de modo que seria absurdo proteger-$e da esfera do indivíduo em face da do Estado, tal idéia é agora
dele. Rousseau não renuncia em conseqüência disso ao princípio considerada válida no próprio interior da esfera do Estado, Não
dos direitos inalienáveis, mas faz com que esse princípio jamais é o indivíduo, é a totalidade dos cidadãos, a volontè générale,
seja válido contra o Estado, onde ele vê justamente esse princí­ que possui direitos definidos que ela não pode abandonar nem
pio encarnado e solidamente fixado. De um ponto de vista for­ transferir sob pena de destruir-se e de abdicar de sua própria
mal, essa concepção é desenvolvida de tal maneira que Rous­ natureza.
seau — nesse capítulo, ele segue o modelo metodológico de
Já mostramos antes que força revolucionária reside nessa
Hobbes — rompe com o dualismo que caracteriza até então a
conversão da doutrina do contrato.41 Em primeiro lugar, é o
doutrina do contrato. Eíe já não conhece o contrato sob a sua
pensamento que eleva Rousseau acima do seu ambiente histó­
forma dupla, uma peía qual a sociedade constitui-se a partir
rico imediato, é através dele que Rousseau domina o meio inte­
dos indivíduos, a outra pela qual ela se dá um soberano e se
lectual da Enciclopédia. Não é que os contemporâneos de Rous­
submete à vontade deste. Hobbes tinha reduzido todo 0 processo
seau deixem a desejar quanto à sua vontade resoluta de reforma
de constituição do Estado ao pacto de submissão; Rousseau, in­
e quanto à importância desses projetos reformadores. Muito
versamente, reduziu-o ao contrato de associação,43 pura e sim­
antes dele, as graves e incuráveis mazelas do Ancien Régime já
plesmente, Todo poder que quer apresentar-se como legítimo
tinham sido reconhecidas. A crítica do Estado e da sociedade
está contido nesse contrato e nele deve encontrar seu funda­
sistematicamente realizada pelo círculo da Enciclopédia tinha
mento. De resto, nenhuma soberania, seja derivada de que prin­
cípio for, jamais se elevará mais alto do que constituí, de fato, sido preparada desde o século X V JI e começo do século X V IÍÍ.
o seu fundamento e a sua justificação original, Todo poder de No caminho claramente assinalado por Fénelon vamos encon­
governo que se encarna num indivíduo ou que seja exercido trar homens como Vauban, Boulainvilliers e Boisguillebert. O
por uma coletividade nunca passa de ser um potj^r delegado, Exame de consciência para um rei, de Fénelon, focaliza de certo
Não pode abolir nem infringir a soberania popular que é a ex­ modo todas as objeções que depois foram suscitadas contra o
pressão adequada, o único portador e o único titulajr-da vontade regime do absolutismo e seus abusos. E tais objeções nlo ficaram
geral, O poder de governar só é legítimo na medida em que deri­ no plano das decisões abstratas; elas atacam o mal pela raiz,
va do povo e quando é confirmado pelo povo. Assim que expira procurando definir medidas concretas para eliminá-lo. Em todos
o mandato da vontade geral, o poder de governar, o qual, por os domínios, sente-se o impulso de uma vontade resoluta de rc-

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formas. Por toda parte exigem-se mudanças radicais, na legisla­ maneira de explicar e de argumentar; separa-sc do seu século
ção e na administração, no aparelho da justiça t na distribuição menos pelos ideais políticos que defende do que pela deduçíio
dos impostos, no direito penal e no processo penal. E não são racional e justificação que para eles propõe. Por mais chocadu
filósofos, puros “doutrinários”, os que travam esse combale; que pudesse estar o século X V III com a situação política exis­
pelo menos, foram precedidos por homens práticos em quase tente, jamais teria levado, entretanto, a crítica dessa situação
todos os domínios." D ’Argenson, em Considérations $ur le até uma crítica da existência social como tal. Para ele, essa
gouvernement ancien el prêsent de ta France, obra composta existência é um fim em si e um fim evidente em si. Nenhum
em 1739 mas que já circulava em manuscrito antes de ser im­ pensador da Enciclopédia põe cm dúvida que o homem não
pressa em 1764, chama à França um "sepulcro caiado”: 0 alví- pode viver de qualquer outro modo senão nas formas da "socia­
nitente brilho exterior em que ela vive dissimula toda a sua bilidade" e da "sociedade” e que seu verdadeiro destino não
podridão interior, Quando D'Argenson. em 1744, é charaado ao pode ser cumprido alhures. A verdadeira originalidade de Rous­
ministério, ê aclamado com entusiasmo por seus amigos filóso­ seau está precisamente em atacar essa premissa, em contestar a
fos; os homens do mundo e os políticos designam-no espiritual­ hipótese metodológica que continuava inspirando implicitamente
mente como o "secretário de Estado da República de Platão”.** todaa as tentativas de reforma. E verdade que a idéia de comu­
O terreno, em suma, estava perfeitamente preparado, tanto no nidade deve ser identificada com o ideal de sociedade que c
plano dos fatos quanto no das idéias, para o advento da critica civilização ár, século X V III perfilha com uma cega credulidade?
social de Rousseau, quando ela se manifesta pela primeira vez Não haverá, antes, entre as duas noções uma completa oposi­
com os discursos de resposta às questões apresentadas no con­ ção? Para conseguir-se estabelecer solidamente a verdadeira
curso para a Academia de Dijon. O próprio D'Argenson, como comunidade não é imprescindível distingui-la com cuidado e
se vê no seu Diário, saúda amistosamente o Discurso sobre a protegê-la dos ídolos da "sociedade"? Foi em face dessa proble­
desigualdade como obra de um “verdadeiro filósofo" *T Parece, mática que eclodiu o conflito opondo Rousseau aos enciclope­
portanto, que uma continuidade perfeita estabeleceu-se entre distas; devemos acompanhar o seu desenvolvimento a fim de
Rousseau e o conjunto do movimento das idéias do século
discernir, sob sua verdadeira luz, a ruptura que se desenha
X V III. E por isso que se compreende dificilmente que Rous­
nesse ponto.
seau tenha imaginado, ao longo de toda a sua vida, que desviou
Em As origens da França contemporânea, Taine censura aos
de forma radical o curso das idéias do século mas também que
enciclopedistas terem sido doutrinários ingênuos, terem elabora­
os melhores espíritos da época, depois de terem tentado em vSo
do seu sistema político e social de um modo puramente sintético
durante um certo tempo atraí-lo para o seu círculo, acabaram
e se lhe aferrarem sem levar em conta a realidade histórica
por tratá-lo como um estranho e um intruso, de quem pressen­
tiam sem dúvida a potência demoníaca, mas de quem deviam concreta. Tal censura foi considerada indefensável faz muito
afastar-se para não sacrificar a clareza e a segurança de suas lempo. Ninguém pode contestar nesses pensadores a sede dc
visões do mundo.48 O cerne dessa incompatibilidade reside me­ realidade, a flexibilidade de seu sentido das realidades. Todos
nos no conteúdo do pensamento de Rousseau do que na sua querem colaborar espontaneamente, todos compreendem como é

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longo, penoso e difícil o caminho que vaj da "teoria“ à "práti­ intelectual, porque esse progresso, em virtude do impulso inte­
ca". Mesmo um fanático da abstração como Holbach, por exem­ rior que o anima e da lei imanente que o governa, dará a urdem
plo, como teórico do “sistema da natureza", está longe de ima­ social sua nova e melhor forma. O refinamento dos costumes,
ginar, enquanto pensador político, a implantação direta na rea­ o aumento e a expansão das ciências também transformam, final­
lidade de suas idéias e exigências. No seu Système social, ele mente, a moralidade e conferem-lhe um fundamento seguro. Essu
descarta expressamente toda e qualquer solução revolucionária, fé é tão poderosa que, para a maioria desses pensadores, a
declarando que os remédios desse gênero são sempre mais cruéis idéia que buscam e tanto se empenham em fundamentar e justi­
do que os males que pretendem curar. A voz da razão não está ficar, a de comunidade (Gemeinschaft), confunde-se não só com
sedenta de tumultos nem de sangue; se as reformas que ela pre­ a de sociedade (Geselischajt) mas também com a de sociabilida­
coniza são lentas é porque são melhor analisadas e ponderadas, de (Geselligkeit), O mesmo ocorre com a expressão francesa
o que as torna mais estáveis e seguras.40 Contudo, não é menos société, à qual constantemente se sobrepõem todas essas signi­
evidente para todos esses pensadores que compete à razão assu­ ficações. Pretende-se criar uma filosofia sociável, uma ciência
mir a direção do movimento de renovação política e social, a sociável. Os ideais políticos, é claro, mas também os ideais es­
ela cumpre empunhar o facho. Só se encontrará a força bastante peculativos, éticos e artísticos são elaborados peios saions e para
para vencer o mal se este for totalmente esclarecido, levando as os saions. Mesmo no domínio das ciências, essa "urbanidade”
“Luzes" até as suas causas e suas fontes. Nos líderes do Ilumt- social é elevada à categoria de uma medida e de um critério de
nismo, essa fé no poder da razão não assenta em bases pura­ avaliação e julgamento genuíno e intuitivo (wirklicher Einsicht)
mente intelectuais. Sem dúvida, ainda se pode apontar o puro de relações. Toda idéia que não for exprimível nessa linguagem
intelectualismo de D ’Alembert e a fria serenidade do seu espí­ da urbanidade não deu provas de clareza e distinção. Fontenelle,
rito matemático, mas Diderot já nos aparece como um persona­ no século X V II, submeteu a essa prova a doutrina de Descartes
gem muito diferente, muito mais imaginativo do que pensador em Entretiens sur ta pluralité des mondes-, Voltai re, no século
intelectual ista. Mesmo em seus projetos propriamente intelec­ X V III, realiza o mesmo empreendimento a propósito dos Princí­
tuais, ele deixa-se arrastar por sua imaginação e muito atém dos pios matemáticos da filosofia natural, de Newton. O movimento
limites do demonstrável. Ao referir-se à vaga e ambígua oposição propaga-se à Alemanha e aí se consubstancia num exemplo bri­
entre " racional ismo” e “irracionalismo", é bom que se diga que lhante, o das Briefen an eine deutsche Prinzessirt (Cartas a uma
Rousseau, comparado a Diderot, surge-nos então, em certa me­ princesa alemã), de Leonhard Euler. Diderot resume todos esses
dida, como um racionalista. Diderot jamais atingiu, nem se es­ esforços e dá-lhes a mais penetrante expressão quando declara
forçou nunca por atíngír, nos seus artigos da Enciclopédia refe­ ser uma obrigação moral tornar as idéias "populares". O ver­
rentes a questões fundamentais de ordem política e social, o dadeiro Humanismo é aquele cuja realização passa pela popula­
rigor dedutivo que caracteriza o Contrato social, E, no entan­ ridade, cuja realização está condicionada por essa passagem para
to, ainda não é af que reside a diferença decisiva que opõe um a língua da sociedade. "Apressemo-nos a tornar a filosofia po­
ao outro. Ê que Diderot e os enciclopedistas estão impregnados pular, Se queremos que os filósofos caminhem na frente, aproxi­
da convicção de que se pode confiar no progresso da cultura memos o povo do ponto onde os filósofos estio. Dirão existirem

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obras que jamais estarão ao alcance de todo mundo? Se eles o existir entre consciência moral c consciência cullunit cm ^-t nl
dizem, apenas estão mostrando que ignoram o que podem o bom E, uma vez a questão assim encarada e formulada cont lodo u
método c o longo hábito,"r,í> Não são as ciências exatas e as rigor, a resposta não podia continuar duvidosa por muiio mtiU
matemáticas que, por sua vez, se recusam a privar-se de ajuda tempo. A harmonia desmorona entre o ideal ético e o ideal Icó
e dos encorajamentos do espírito de sociedade (gesclligen Çeisl) rico do século. O próprio Rousseau descreveu com griindc pe­
do século, e até mesmo os melhores espirites acreditam que suas netração o instante em que esse desmoronamento produziu-se
pesquisas só podem obter sucesso e fecundidade nesse meio. No nele. Ê o momento em que, cm conseqüência da questão posta
"Discurso preliminar" da Enciclopédia, D'Alembert sustenta que em concurso pela Academia de Dijon, Rousseau encontra-sc
a superioridade específica do século X V III não é ser mais fértil diante do problema de saber "se o restabelecimento das ciências
do que os outros em gênios, em espíritos verdadeiramente cria­ e das artes contribuiu para depurar os costumes". Assim diz cie
dores. A natureza não é sempre igual a si mesma? Todas as em sua célebre carta a Malesherbes: "Se alguma coisa asseme­
épocas não produziram grandes gênios? Mas o que podem fazer lhou-se alguma vez a uma inspiração súbita, ela é o movimento
os grandes intelectos quando estSo dispersos e entregues à sua que se produziu em mim nessa leitura: de repente, sinto o espí­
própria intutção? "As idéias que se adquire pela leitura e pela rito ofuscado por mil luzes; um tropel de idéias vivas af se
sociedade são o germe de quase todas as descobertas. É um ar apresenta simultaneamente, com uma força e uma confusão,
que se respira sem pensar nele e ao qual se deve a vida.'* O que me lançou numa inexprimível perturbação." 61 Como numa
espírito da Enciclopédia, seu sentimento da vida e do pensamen­ visâo súbita, Rousseau descobre o horrível abismo que perma­
neceu escondido aos olhos dos seus contemporâneos, que por
to talvez nunca tivessem sido expressos numa fórmula mais
ele roçaram sem más intenções e sem pressentir o perigo ameaça­
justa e mais concisa. A sociedade é o ar vital; a verdadeira ciên­
dor. O domínio do querer está separado do domínio do saber.
cia, a verdadeira filosofia, a verdadeira arte não podem florescer
OpÕem-se por seus fins e por seus caminhos. Nessa civilização
em nenhum outro lugar, A Enciclopédia quer instaurar e asse­
do espfrito de sociedade em que o século X V III vê a flor da
gurar essa união; é ela que, pela primeira vez, adquire consciên­
verdadeira humanidade, Rousseau reconhece o pior perigo. O
cia da ciência como função social e declara que o seu desenvol­
conteúdo dessa civilização, os seus primeiros passos, o seu estado
vimento só é possível na base dc uma sólida organização social.
atual, tudo confirma sem ambigüidade que ela é desprovida de
Todos os outros esforços políticos e éticos devem também pro­ lodo impulso moral, que se alicerça tão-somente no instinto de
curar aí seus lugares, pois não se pode esperar a renovação da poder c de posse, na ambição e na vaidade. O filósofo da vida
existência política e social senão do crescimento e da expansão social deve então ceder o passo ao filósofo da história e apurar
dessa cultura do espírito que se adquire em sociedade. por que caminhos a sociedade chegou à sua presente forma, des­
É nesse ponto que intervém a critica, a contestação radical vendando assim as forças que continuam a movimentá-la e a
de Rousseau. Ele ousa quebrar o vínculo considerado indisso­ governá-la. Entretanto, essa parte de sua tarefa não foi conce­
lúvel. Ele descobre que é problemática e inteiramente contestável bida nem realizada por Rousseau num sentido puramente histó­
a unidade que se admitia até então, ingenuamente e de boa-fé, rico. Que ele oponha o estado natural ao estado civil, que des­

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creva a passagem de um para outro, jamais deixa entender que ser rejeitada, o mundo humano que deve mergulhar dc novo
se trata de questões de fato que poderiam ser solucionadas por caos inicial- Rousseau está bem tenge de tal anarquismo teórico
provas históricas e no âmbito de uma exposição de história. e prático, arauto entusiástico que é da "lei'' e da "vontade
Tanto na descrição do estado de natureza quanto na do "con­ geral”. Tampouco formulou semelhante conclusão a propósito
trato social”, a palavra e a idéia de desenvolvimento são toma­ da cultura intelectual, das artes e das ciências. Pelo contiário.
das numa acepção mais lógica e metodológica do que empírica. nunca deixou de proclamar ■ — e por que não acreditar muito
Sc ê lícito dizer que Rousseau faz nascer e crescer sob os nossos simplesmente nessas declarações, em vez de pô-las em dúvida
olhos a sociedade civil, isso não é no sentido de ura relato épico como uma espécie de auto-sugestãc? — que jamais lhe acudira
mas no sentido da “definição genética" que é o método por no espírito, ao atacar as artes e as ciências, a rejeição radical
excelência da filosofia do direito e da filosofia política dos sé­ de todas as suas contribuições para a edificação da sociedade.
culos X V II e X V n i.s* Ele precisa apresentar-nos o processo da "Nesses dois primeiros escritcs” — assim diz ele, falando de si
gênese da sociedade porque é o único meio de revelar-nos o mesmo e dos dois Discursos — "dedica-se sobretudo a destruir
segredo da sua estrutura, porque as forças que mantêm a socie­ L-sse prestigio ilusório que nos dâ uma admiração estúpida pelos
dade só podem tornar-se visíveis em sus ação. Rousseau expH- instrumentos de'nossas misérias e a corrigir essa admiração en­
cou-se com muita nitidez sobre os princípios do seu método no ganadora que nos faz reverenciar cs talentos perniciosos e me­
prefácio do Discurso sobre a desigualdade. Falar do "estado de nosprezar as virtudes úteis. Mas a natureza humano não retro­
natureza", diz ele, é falar de “um estado que já não existe, que cede, e jamais se retorna aos tempos de inocência e de igualdade
talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, uma vez que nos distanciamos deles. Obstinaram-se em acusá-lo
e do qual é necessário, porém, ter noções corretas, para bem de querer destruir as ciências, as artes, os teatros, as academias
juígar o.nosso estado atual". Portanto, Rousseau está longe de e voltar a mergulhar o universo em sua primitiva barbárie, quan­
eceitar o estado de natureza como um estado de fato em cuja do ele, pelo contrário, sempre insistiu na conservação das insti­
contemplação ele absorver-se-ia, ã beira do qual suspiraria, com tuições existentes, sustentando qye sua destruição apenas faria
o qual sonhana. Serve-se dele como de utn critério ou de uma eliminar os paliativos e deixar os vícios, e substituir a corrupção
norma, como a pedra de toque que permite fazer a prova de pela desordem e a pilhagem." BB Segundo Rousseau, só se esca­
pará a essa desordem, que está no pólo oposto da verdadeira
tudo o que, na forma presente da sociedade, é verdade ou
liberdade, abolindo a ordem vigente, cujas impostura e arbitra­
embuste, o que é lei obrigatória em si ou o que apenas é con­
riedade são conhecidas, demolindo até as suas fundações o edi­
venção e arbítrio. O Estado e a sociedade de hoje devera con­
fício político e social existente para construir em seu lugar um
templar seu próprio rosto no espelho do estado de natureza,
outro que se erga sobre alicerces mais seguros. O "contrato so­
devem aprender a ver-se e a julgar-se.
cial" encarrega-se dessa nova construção: ele transformará o
Supondo-se que esse julgamento leve à condenação e rejei­ atual estado de coerção em estado de razão, a sociedade que tí
ção de toda a ordem social existente até os nossos dias, isso não obra da necessidade cega numa obra de liberdade. O homem
quereria dizer, evidentemente, que é a ordem em gerai que deve não passou do estado natural ao estado civil impelido por uma

358 359
inclinação moral primitiva, como queria mostrar o Discurso so­ então será lícito ao homem ocupar-se na busca da verdude este
bre a desigualdade, e não i mantido nesse estado por forças ori­ rior. A ciência não redundará mais, então, no simples “refina­
ginariamente morais nem pela vontade ou o entendimento, Ê mento”, não concorrerá mais para enfraquecer e adormecer o
muito mais admissível que o homem tenha chegado ao estado so­ homem. Uma falsa ordem das coisas em ética tinha inclinado u
cial impelido por um destino inexorável, pela coerção física da ciência nessa direção, convertendo-a em simples refinamento in­
natureza exterior e pela de suas emoções e paixões, do que telectual, uma espécie de luxo espiritual. Ela voltará de moto
tenha livremente decidido criar a sociedade. Não se trata de próprio ao bom caminho quando esses impedimentos forem eli­
recuperar o perdido com essa queda nem de corrigir um estado minados. A liberdade do espírito nada pode propiciar ao homem
de decadência. Se o homem deve retornar à sua condição e na­ sem a liberdade moral, e essa liberdade só pode ser adquirida
tureza originais, não é para se conservar obstinadamente nelas por uma mudança radical da ordem social, com a expulsão de
roas para voltar a percorrer todo esse caminho uma vez mais tudo o que é arbitrário e a vitória da necessidade interior da lei.
desde a origem. E que o homem, nesse segundo percurso, não A unidade espiritual do século X V III também se revela
se abandone ao poder de seus instintos, que escolha e que diri­ aqui sob uma nova luz, graças ao conflito que eclodiu e à luta
ja, que tome em suas mãos o leme e decida sobre o caminho e o apaixonada que Rousseau travou contra a sua época; pois R o usr
objetivo da viagem, que saiba para onde vai e por quê. Se o seau, mesmo levantando-se contra a filosofia do lluminismo,
ignora, não poderá levar a idéia do direito à sua vitória e reali­ mesmo levando a melhor sobre ela, continuou sendo um verda­
zação final. Como se vê, a exigência é inteiramente racional: deiro filho desse lluminismo que combatia. O seu evangelho
mas é o racionalismo ético que doravante prepondera sobre o do sentimento não contradiz essa afinidade: os fatores em ação
racíonalismo teórico. Essa preponderância, essa repartição de não são simplesmente afetivos, porquanto expressam verdadeiras
forças, uma vez assegurada, nada impede, é verdade, que se
convicções intelectuais e morais. Não é uma simples “sensibi­
conceda um certo direito relativo ao saber teórico. A ciência
lidade" que se reflete no "sentimentalismo" de Rousseau mas
— tal é a doutrina que Rousseau sustenta a partir do Contrato
uma força moral e uma nova vontade moral. Graças a essa
social — não pode ser perniciosa se, em vez de pretender pairar
inspiração fundamental, a "sentimentalidade" de Rousseau pôde
acima da vida, consentir em colocar-se a serviço da própria vida.
ganhar a arrastar em seu movimento espíritos tão profundamen­
Tudo o que tem a fazer é renunciar a reivindicar para si mesma
te diferentes quanto, por exemplo, na Alemanha, os espíritos
o primado absoluto no domínio dos valores espirituais que se
relacionam com a vontade moral. Assim, na sociedade humana, fundamentalmente não-sentimentais de Lessing e Kant, Talvez
a edificação do mundo do saber deve ser precedida pela elabo­ em nenhuma outra parte a Força do pensamento iluminista, a
ração clara e segura do mundo da vontade. Que o homem unidade sistemática de sua visão do mundo manifestou-se mais
encontre primeiro em si mesmo uma lei fírrae antes de preo­ do que na resistência que opôs ao seu mais perigoso adversário,
cupar-se com as leis do mundo, dos objetos exteriores. Quando afirmando contra ele os valores que lhe são mais próprios, Rous­
0 espírito resolver esse primeiro problema, quando tiver alcan­ seau não destruiu o universo do século X V III, deslocou sim­
çado, na ordem do universo político, uma liberdade autêntica, plesmente o seu centro de gravidade. Por todo o trabalho dc

360 361
seu pensamento, ele preparou, meJhor do que nenhum outro
NOTAS
penssdcr do seu século, o caminho de Kant, Este pôde apoiar-se
era Rousseau, estribar-se nele para a construção sistemática do
seu próprio mundo intelectual: esse mundo intelectual que ven­
1 Mitteilungen aus Leibniz? ungedruckten Schriften [Comunicação du
ceu a filosofia do Iluminismo e que, no entanto, é a sua derra­
escritos inéditos de Leibniz], por Georg Mollal, Leipzig, 1893, p. 22; para
deira transfiguração e a sua mais profunda justificação, uma exposição mais detalhada, cf. o meu livro Leibnil’ System in seinem
wissenschaftlich en Grudlagen [O sistema de Leibaiz em seus fund amen los
científicos], Marburgo, 1902, pp. 425 e ss., 449 e ss. Os comentários
seguintes são baseados, em parte, num artigo que publiquei com o tílulo
de "Vom Wesen und Werden des Naturrechts” em Zeitschrift für
Recfttsph itosophie in Lehre und Praxis, vol. V I, pp. 1 e ss.
2 O mesmo combate que Grotius trava na Holanda contra o dogma­
tismo calvinista e o principio do Estado absolutista será retomado na
Inglaterra psla "Escola de Cambridge” e sustentado em condições meto­
dológicas e históricas semelhantes. Não desenvolvo mais essa questão
aqui porque a tratei em detalhe no meu estudo Die Platonische Renais­
sance in England und die Schule von Cambridge, Leipzig, 1932, (Stud.
der Bibi. Warburg X X IV ).
®De jure belti ac pacis, Prolegomena, sec. X I.
4 Sohre as relações da lex naturaiis e da lei' divina na filosofia me­
dieval, ver Gierke, Johannes Allhusiits und die Entwicklung der natur-
rechtlichen Staatstheorien (1879, 3,E edição, Breslau, 1913), pp. 272 e
ss., para uma análise detalhada; na primeira teologia protestante a con­
cepção medieva! ainda conservava todo O seu poder. Ver os detalhes em
Troeltsch, Vernunft und Offenbarung bei Johann Gerhard und Melanch-
ton, Göttingen, 1891, especialmente pp- 98 e S S . Cf. acima pp. 67 e ss.
5 CÍ. acima p. 77.
6 Montesquieu, O espírito das leis. Livro I, cap. 1.
7 Montesquieu, Cartas persas, Carta L X X X II.
s Carta ao príncipe herdeiro Frederico, outubro de 1737, Oeuvres,
vol. 50, p. 13â.
8 Voltaire, Traité de métaphysique, cap- I X ( Oeuvres, X X X I, pp. 65
e ss.).
10 Voltaire. Le phHosophc ignorant, cap. X X X V I, Oeuvres, X X X I,
pp. 130.
11 Voltaire, Discours en vers sur l’homme, sétimo discurso, Oeuvres,
X II, 91 £’'Os milagres sao bons; mas aliviar seu Írjnão,/Mas arrancar seu
amigo do seio da miséria,/ Mas a Seus inimigos perdoar suas virtudes./Ê
um milagre major, e que já não se faz mais.” (N. do T.)]

352 363
u Cf. em especial o julgamento de GroeLhuysen, "L a peosíe de M Condorcel, Essai sur fes assemblées provinciales, 2 * parte, art. V);
Diderot", La Grande Revuc, 1913; vol. 82, pp. 337 e ss. cf. Henri Sée, Les Idées politiques en France au X V IIIe siècle, Puris,
18 Cf. acima pp. 47 e ss. 1920, p. 210.
ï3 Condorcet, Tableau des progrès de l'esprit humain, 98 époque;
14 Cf. o juízo de Diderot a respeito do seu irmão, o abade Diderot,
Oeuvres, 1804, V lll, p. 233. Cf. De !'influence de la révolution de I*Amé­
na carta a Sophia Voll and, 17 de ngoslo de 1759 (ed. Babeion, Paris,
rique, "Introduction’1 (Mélanges d'économie politique. X IV , Paris, 1847,
sem data, I, 71): “ Ê honesto mas inflexível. Teria sido um bom amigo,
pp. 544 e ss.).
um bom pai, x o Cristo não lhe tivesse ordenado calcar aos pés todas
essas misérias. £ um bom cristão que me prova, a todo momento, que 28 Para delalbes sobre esse desenvolvimento, cf. a minha exposição
mais valia ser um bom homem, e que aquilo a que chamam a perfeição em Das Erkenntnisproblem [O problema do conhecimento], 3.® éd., II,
evangélica nada mais é do que a arte de sufocar a natureza, que teria pp. 49 c ss., 86 est., 127 e ss. e passim.
falado nele, talvez, tão fortemente quanto em mim.” 3* Hobbes, De corpore, parte I, cap. I, sec. 8.
•* Diderot, Le rêve de D'Alemberr, Oeuvres (Assézat) II, 176; cf. Cf. acima, capítulo I, pp. 34 e ss.
especialmente, de Diderot, o diájogo; Est-il bon, est-il méchant? S1 Sobre o significado dessa etapa para o desenvolvimento geral da
« C f . cm especial Diderot, Ent retten tfun philosophe avec ta maré- teoria do Estado, ver Gierke, Johannes Aithusius, 3.“ edição, pp. 86 e ss.,
chale de ,, . 101 e ss.

17 Para maiores detalhes, consultar Hubert, Les sciences sociales dans 82 De jure belll ac pacis, Prolcgomena, sec. 8.
fEncyctopédie. Paris, 1923. 33 De jure belli ac pacis, Prolegomena, sec, 16.
18 D'Alembcrt, Eléments de philosophie, sec. VU; M Hanges de fiui- ** O que se segue apóin-se, em parte, no meu artigo sobre Rousseau
rattire etc., IV, pp. 79 e ss. citado antes, e para o qual remeto o leitor interessado numa exposição
mais completa do problema e numa justificação mais detalhada da minha
10 2.* edição. Leipzig, 1904; 3.* edição organizada por Walter Jelli-
posição. Cf. acima p. 263, nula 14.
nek, 1919.
M Para a "psicologia do homem natural", segundo Rousseau, e a
30 Para maiores detalhes sobre esse problema, ver G. A. Sala oder
crítica de Hobbes, cf. principalmente o Discurso sobre a origem da desí-
Vom Werden der Benschenrechte. Ein Beitrag zur modernen Verfassungs­
yuatdade. . 1.* Parle.
geschichte unter Zugrundelegung der vlrginlschen Erklärung der Rechte
vom 12. Juni 1776, Leipzig, 1926, e E. Voegelin, Der Sinn der Erklärung W C f. o artigo "Économie politique" de Rousseau, na Enciclopédia.
der Menschen und Bürgerrechte van 1789, Zeitschr. f, öfjentl. Recht V ifl si Do contrato social, 1, 6; II, 4 e passim.
(1928), pp. 82 c ss. Cf. também J. Hashagcn, Zur Entstehungsgeschichte
39 N o meu artigo já citado, procurei mostrar mais precisamente que
der nordamerikanischen Erklärungen der Menschenrechte, Zeitschrift für
não b i ruptura no desenvolvimento do pensamento de Rousseau e, em
die gesamte Staatswisscmchajt, 73. Jahrgang (1924), pp, 482 e ss.
especial, nenhuma contradição entre as leses do Discurso sobre a desi-
31 Para mais detalhes, ver o meu livro Die Idee der republikanischen fiualdade e as do Contrato social {cf. em particular, pp. 190 e Ss.),
Verfassung, Hamburgo, 1929,
3ü Do Contrato social, liv r o 1, cap. 8.
33 Traité de mêtaphysique, cap. VII, Oeuvres, X X X I, pp. 51 e 57.
'I0 Sobre essa aproximação, cf. Gurvitch, Kant und Fichte ais Rous-
23 Le philosophe ignorant (1766), sec. X III, Oeuvres, X X X I, pp. seau-lnierpreten, Kant Studien X X V II (1922), pp. 138 e ss. Cf. também a
85 e ss. obra de conjunto de Gurvitch, L'Idée du droit social. Notion et système
21 Cf. Voltaire, Lcttres sur les anglais. Carta IX, e O artigo "Gouver­ du droit social. Histoire doctrinale depuis le XVH*, siècle jusqi/à ta fin
nement" no Dictionnaire philosophique, sec. VI; Oeuvres XX V I, pp. 40 du X IX e siècle, Paris, 1932, pp. 260 e ss.
e ss.; XL, pp. 101 e ss. Cf. sobre esse ponto, Scblnz, La pensée de J.-J. Rousseau, Paris.
2i Dictionnaire philosophique, artigo “Liberti d'imprLmer” ; Oeuvres 1929, pp. 354 c ss.
X U , p. 23. <‘J Do contrato social, Livro I. cap, 6.

364 365
« Para mais detalhes, ver Gierke, Johannes Ahhusius, sobretudo
pp. 115 c ss.
14 Ver acima pp. 212 e ss.
4” É agora possível fazer-se uma idéia correta desse movimento,
graças à coletânea de textos importantes que é oferecida pelas obras de
Henri Sée, Les idées politiques en Franca au À' VU5 siècle, Paris, 1923, e
L’évolution de la pensée politique en France au X V IIIe siècle. Paris, 1925.
Cf. também de Henri Sée "Les idées philosophiques et la littérature pré- VU
revoltitîonnaire”, Revue de Synthèse Historique, 1925. Pode-se consultar
ainda G . Lanson, Le rôle de l'expérience dans la formation de ia philo­ OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS
sophie au siècle XV U* fn France, Études i f histoire littéraire, Paris, 1930, DA ESTÉTICA
pp. 164 e ss.
Cf. a carta de Voltaire ao duque de Richelieu de 4 de fevereiro
de 1757; Oeuvres (Paris, Lequien), L X , p. 238.
’•"C f. Henri Sée. L’évolution de la pensée politique. . p. 98.
43 Para as relações de Rousseau com os enciclopedistas, ver a meu
artigo Das Problem 1eau-Jacques Rousseau, pp. 201 e ss.
Holbach, Système social, II, p. 2. O “século da critica”
50 Diderot, De l'interprétation de la nature, sec. X I, Oeuvres ( A^sé-
zat), II, pp. 38 e ss.
O século X V III que tanto gostou de procíamar-se o “ século
Segunda carta a Malesherbes, de 12 de janeiro de 1762.
da filosofia" não tem menos direito ao título de “ século da
Cf. acima pp. 337 e ss.
crítica". Na verdade, essas duas fórmulas constituem apenas a
1,3 Rousseau juge de Jean-Jacques, 3.° diálogo.
expressão diferente de uma só e mesma realidade. Elas tendem
a caracterizar sob seus diversos aspectos o dinamismo intelectual
com que s época sente-se interiormente animada e que alimen­
tou os seus mais originais movimentos de idéias. Em todos os
grandes espíritos do século manifestam-se os Laços íntimos que
unem à filosofia a crítica estética e literária — e não por acaso
mas sempre na base de uma unidade profunda e intrínseca dos
problemas. Sem dúvida, existiram sempre relações estreitas entre
os problemas fundamentais da filosofia especulativa e os da crí­
tica literária, a partir desse Renascença que queria ser um “ re­
nascer das artes e das ciências” e resultou tanto de permutas
diretas e estimulantes quanto de um enriquecimento recíproco.
Mas o Século do íiuiuinismo deu um passo a mais; cie deu
uma outra conotação, nitidamente mais estreita, à reciprocidade

366 367
que deve existir eníre esses dois domínios. Ela confere-lhe uma geral: ele só verá na própria "razão” filosófica uma faculdade
significação que já não é simplesmente causal mas originária e original e radical de determinação de limites. Essa determina­
substancial; não se trata somente dc acreditar que filosofia e ção manifesta-se como necessidade suprema quando se trata
crítica encontram-se e concordam em seus resultados indiretos, de separar idealmente dois domínios que não são simplesmente
mas de afirmar e apurar uma unidade natural entre as duas de estruturas diferentes mas sobre os quais se pode afirmar
disciplinas. Dessa convicção e dessa exigência nasceu a esté­ que a diferença eleva-se ao nível de uma diametral oposição.
tica teórica, ciência na qual se conjugam dois movimentos de Da consciência dessa oposição nasceu a síntese intelectual que
origem muito diferente. Por uma parte, há todo o esforço do devia conduzir o século X V II 1 à fundação da estética teórica.
século X V III no sentido de uma visão clara e segura do indi­ Mas, antes que essa síntese tivesse recebido na obra de Kant
víduo, da unificação formal e da estrita coerência racional. To­ a sua forma definitiva, o pensamento filosófico deveria ainda
dos os fios diferentes que a critica literária e a reflexão esté­ enfrentar uma série de etapas preliminares com vistas à defi­
tica teceram ao longo dos séculos devem reunir-se num só nição, sob diversos aspectos e várias perspectivas, da unidade
tecido; o material oferecido com abundância pela poética, retó­ que queria estabelecer entre os termos em conflito. A batalha
rica e teoria das ari.es plásticas deve, em última instância, ser que prosseguiu na estética do século X V U I para a definição
ordenado, distribuído e considerado numa perspectiva sintética. e classificação dos conceitos fundamentais reflete em suas fa­
Mas essa necessidade de clareza e de domínio racional consti­ ses, por menores que fossem, esse esforço universal. Quer se
tui apenas o ponto de partida para o empreendimento. Partindo tratasse do conflito entre '‘razão” e “ imaginação”, da oposição
dessa problemática puramente racional, a idéia abre caminho entre "gênio” e "regras”, de fundamentar o belo no sentimento
até o questionamento do próprio conteúdo do pensamento. En­ ou numa determinada forma de conhecimento, em todas esses
tre o conteúdo da arte e o da filosofia procura-se agora uma antíteses projeta-se inexoravelmente o mesmo problema funda­
correspondência, afirma-se agora um parentesco que, no come­ mental, É como se a lógica e a estética, como se o conheci­
ço, parece ser percebido de um modo obscuro demais para mento puro e a intuição artística tivessem que se medir urti
poder ser expresso em conceitos precisos. Mas parece então que pelos outros e compreender-se segundo os seus próprios critérios.
a verdadeira e essencial tarefa da crítica reside, precisamente, Reencontramos o mesmo processo em todos os esforços, tão
em transpor esse limite, em penetrar com seus raios o claro- diversos c tão divergentes, efetuados no século X V III para a
escuro da "sensação" e do "gosto“ que ela deve, sem cometer fundação da estética: ele foi o seu centro dc gravidade latente,
nenhum atentado à sua natureza, trazer para a luz do conhe­ o seu foco espiritual. Ê evidente que entre os numerosos pen­
cimento. Pois 0 século X V III, mesmo quando admite que o sadores que participaram nesse movimento, nenhum deles tem.
pensamento esbarra com um limite, quando reconhece a exis­ no início, a menor consciência do objetivo para o qual ele
tência de um “ irracional”, exige um conhecimento claro e segu­ tende, nenhum reconhece de imediato uma linha determinada
ro desse mesmo limite. Sabe-se que o mais profundo dos seus à qual o curso do pensamento ligar-se-ia, um problema básico
pensadores, Kant, elevará no finat do século essa existência Ditidamcnte concebido e conscientemente visado no conflito das
à categoria de uro caráter próprio, constitutivo da filosofia em múltiplas tendências. A problemática, pelo contrário, mantém-se

368 369
em permanente movimento e. segundo o predomínio desfe ou marcantes da história das idéias alemãs que uma tal "harmonia
daquele interesse — psicológico, lógico, ético — , assiste-se a preestabelecida" fosse possível. Disse Windelband a respeito da
um perpétuo deslocamento de sentido das normas e dos concei­ Crítica do juízo kantiana que o conceito da poesia goethiana aí
tos fundamentais que governam a estética nascente. Mas, no se encontrava, de certo modo, construído a priori; que aí se
final, cristaliza-se, a partir desse complexo de tendências de apa­ reencontra na forma de obra e de ato o que antes fora justifi­
rência contraditória, uma nova configuração. Em face da lógica cado e exigido pela pura necessidade do pensamento filosófico.
e da filosofia moral, da física e da psicologia, estabelece-se ago­ Essa unidade do ato e da exigência, da obra artística e da cons­
ra uma nova problemática que, no começo, não se distingue ciência reflexiva, o pensamento alemão do século X V III não
nitidamente delas, Mil vínculos ligam-na ainda a todas essas dis­ procurou estabelecê-la, elaborá-la artificialmente: ela resulta di­
ciplinas, Entretanto, sem que o pensamento filosófico se esforce retamente do simples encontro, da compenetração e da coope­
verdadeiramente por desfazer esses vínculos, nem por isso dei­ ração dinâmica de suas forças criadoras. São essas forças que
xou de começar a estirá-los aos poucos até conseguir, enfim, engendram, como seu resultado necessário e imanente, uma no­
se não de fato pelo menos num plano puramente conceptual, va forma de filosofia, simultaneamente com um novo modo,
rompê-los. Dessa ruptura, desse movimento de libertação inte­ uma nova “ dimensão” do processo de criação artística. Essa
lectual nasce uma disciplina nova, autônoma: a filosofia esté­ síntese, que assinala a realização e o apogeu da cultura do
tica. Tudo o que podia acontecer na estética setecentista por século X V III, é fruto do paciente trabalho realizado passo a
desvio ou descaminho contribui indiretamente, na reatidade, pa­ passo durante a época que estamos estudando. Coube ao Século
ra a gestação t a edificação dessa forma de pensamento. A do lluminismo a glória incomparável e imprescritível de ter
história não deve negligenciar nem subestimar nenhum desses cumprido a tarefa de unir, com uma perfeição inigualada, a
elementos, mesmo que eles apenas sejam ainda esboços impre­ obra critica à obra criadora, conferindo a cada uma as virtudes
cisos, pois é, sem dúvida, nesse inacabamento que se apresenta da outra.
de maneira mais clara e mais imediata a nossos olhos a ela­
boração de uma consciência filosófica da arte e da lei que rege
essa consciência em sua gênese. A estética clássica e o problema da objetividade do belo
Mas algo ainda mais maravilhoso se esconde nessa pré-
história da estética teórica. Não só uma nova disciplina filosó­ O novo ideal de saber instituído por Descartes na origem
fica é elaborada com todo o rigor do seu método mas, além da sua filosofia tem a ambição de englobar não só todas as
disso, no final desse desenvolvimento, surge uma nova forma partes da ciência mas também todos os aspectos c todos os mo­
de criação artística. Contemporânea da filosofia kantiana, a poe­ mentos do agir. Com as ciências, stricto sertsu, com a lógica,
sia goethiana marca a sua culminação espiritual, constituindo-se as matemáticas, a física e a psicologia, que vão receber uma
em seu desígnio profético. E os laços íntimos que unem essas nova orientação, a arte é doravante submetida, por sua vez.
duas obras maiores só se compreendem plenamente nesse con­ à mesma exigência estrita. Ela deve ser aferida pela ‘'razão” ,
texto histórico. Sempre foi considerado um dos traços mais ser testada de acordo com as regras racionais: não existe ne-

370 371
nliutn outro meio de comprovar se a arte possui um conteúdo aparentemente tão heterogêneas de modo a defini-las e a dedu­
autêntico, duradouro e essencial. Tal conteúdo nada tem a ver zi-las a partir desse princípio. Ü c.-minho a ser percorrido pela
com as excitações fugidias do prazer que a obra de arte des­ estética dos séculos XVU e XV1H estava, pois. traçado de
perta em nós. Para ser universalmente válida ela quer ser esta* antemão: a natureza, em todas as suas manifestações, é subme­
belecida sobre alicerces mais firmes, ser isenta da mobilidade tida a certos princípios que o conhecimento tem por tarefa
intitula de prazer e desprazer, ser apreendida em sua realidade essencial determinar e enunciar em termos claros e precisos;
e em sua necessidade próprias. Pessoalmente, Descartes não jun­ n arte, rival da natureza, não pode deixar de ser afetada pela
tou à sua filosofia nenhuma estética, mas na estrutura geral da mesma obrigação. A natureza está submetida a leis universais
sua obra filosófica já se encontra implícito semelhante desígnio. e invioláveis; devem existir para a “ imitação da arte" leis da
Com efeito, ele estende ao domínio da arte a unidade absoluta mesma espécie e dc igual dignidade. E todas essas leis parciais
qeu caracteriza, em seu cnlender, a natureza do saber e que devem, em definitivo, harmonizar-se e estar subordinadas a um
deve superar todas as divisões arbitrárias e convencionais. Ele princípio único e simples, a um axioma da imitação em geral.
não hesita em ampliar a sua concepção de uma sapientia uni- £ essa convicção fundamental que Batteux exprime pelo sim­
versalts até englobar no postulado universal da razão a arte ples título de sua obra principal, Les beaux-arts réduits ã un
em seu conjunto e em todas as suas formas particulares. Quan­ même príncipe [As belas-artcs reduzidas a um mesmo princí­
do Descartes, nas Regulae ad díreci tonem ingenii, dá-nos a sua pio], a qual parece proclamar o cumprimento vitorioso de todo
primeira demonstração segundo o inétodo das idéias claras e o esforço dos séculos X V ÍI e X V III em matéria de método.
distintas do ideal da Mathesis universalis, ele não deixa de co­ Aqui domina iguolmcnte o grande exemplo de Newton: da
locar sob a autoridade desse ideal, compartilhando, de resto, ordem que ele tinha estabelecido no universo físico devia de­
nesse aspecto, da tradição medieval, não só a geometria c a rivar a ordem do universo intelectual, ético e estético. À ma*
aritmética mas também a música. E quanto mais se expande neira de Kant, que via em Rousseau o Newton do mundo moral,
o espírito do cartcsianismo mais a nova lei é energicamente es­ a estética do século X V III procura e exige um Newton da arte.
tendida ao domínio da teoria estética. Se essa teoria quer afir­ E essa exigência não parecia, de maneira nenhuma, oca ou
mar-se e justificar-se, sç ela quer ser outra cotsa que não ttm mero quimérica depois que Botleau se arvorara em "legislador do
conglomerado aígo confuso de observações empíricas e dc regra1; Parnaso". Parecia que sua obra tinha, enfim, elevado a estética
empilhadas a esmo, é necessário que ela encarne o caráter e a ao nível de uma ciência exata, ao substituir postulados pura­
missão de uma teoria como tal. que seja maicada com o cunho mente abstratos poT aplicações concretas e investigações espe­
próprio da teoria. Ela não pode deixar-se conduzir nem desviar ciais. O paralelismo das artes e das ciências, q^e constitui uma
peia diversidade dos objetos; pelo contrário, deve abarcar a das teses fundamentais do classicismo francês, parecia agora es­
natureza da criação e do julgamento artístico em sua unidade e tabelecido com base nos fatos. Desde antes de Boileau, expli­
integridade, Tanto no mundo das artes como no das ciências só ca-se esse paralelismo pela origem comum das artes e das
desfrutaremos essa visão sintética se submetermos a um só e ciências no poder absolutamente único e soberano da "razão” .
mesmo princípio as formas fenomenais da arte tão diversas e Ora, trata-se de um poder que ignora todo compromisso e

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trar das leis da ordem natural. A convicção profunda que ustú
não sofre nenhum desvio. Quem não o reconhecer de forma
então viva em toda pane manifesla-se num poema didático dc
absoluta e inteira, quem não o reconhecer sem restrições por
guia, comete um crime de lesa-majestade, Em sua Pratique du M.-J. Chénier:
théâtre, de 1769, cinco anos antes da publicação da Arte poé­
C'est le bon sens, la raison qui {ait tout:
tica de Boileau, D ’Aubignac escreveu: "Em tudo que depen­
Vertu, géniet esprit, talent et goût.
de da razão e do senso comum, a licença é um crime jamais
Qu’est-ce vertu? raison mise en pratique;
permiudo.” A "licença poética” — assim como a científica —
Talent? raison produite avec éclat;
é assim repelida e condenada. Diz Le Bossu no início do seu
Esprit? raison qui finement s'exprime.
Traité du poème épique: "As artes têm sm comum com as
Le goût n'est rien quJun bon sens délicat,
ciências serem, como estas, fundadas na razão, e deverem dei­
Et le génie est la raison sublime.
xar-se conduzir pelas luzes que a natureza nos deu." 1 Vê-se
como a estética clássica concebe a natureza. Tal como nos [Ê o bom senso. a razão que tudo faz:
debates em torno da '‘moral natural” ou da “ religião natural'', Virtude, gênio, espírito, talento e gosto.
a idéia de natureza tem, no domínio das teorias estéticas, uma O que é virtude? razão posta em prática:
significação mais funcional do que substancial. A norma e o Talento? razão produzida com brilho;
modelo que ela propõe não se encontram de imediato numa Espírito? razão que sutilmente se exprime.
categoria de objetos mas no exercício livre e seguro de certas O gosto apenas é bom senso delicado,
faculdades cognitivas. Pode-se aceitar "natureza” como sinô­ E 0 gênio é a razão sublime.]
nimo de “ razão” ;1 tudo vem da natureza, tudo lbe pertence,
do que não é o produo fugaz do instante, o fruto do humor Mas seria cometer um grave equívoco a respeito do sentido
ou do artifício, mas funda-se, pelo contrário, nas leis de bron­ dessa redução do "gênio" e do "gosto” ao bom senso se ape­
ze da ordem eterna. Esse fundamento é o mesmo para aquilo nas se visse aí um elogio, uma glorificação do “senso comum .
a que chamamos "beleza” e para o que chamamos "verdade". A teoria do classicismo francês nada tem a ver com uma fi­
A partir do momento em que atingimos a camada original da losofia qualquer do common sense, porquanto não se apóia no
criação inspirada pela razão, deixamos de poder crer numa uso cotidiano e banal do entendimento mas nas faculdades su­
situação particular e excepcional do belo, A "excecão” . como premas da razão científica. Pelas mesmas razoes que a mate­
negação da lei, não pode ser bela nem verdadeira: " Rien n’est mática e a física do século X V III. ela visa ao ideal de rigor
beau que le vrai" tSó o verdadeiro é belo]. Verdade e beleza, que constitui o correlato necessário e a condição indispensável
razão e natureza são apenas expressões diversas da mesma de sua exigência de universalidade. Portanto, encontramos sem­
coisa: da ordem única e inviolável do ser que se descobre por pre uma harmonia profundu, até uma coincidência perfeita
inteiro, tanto no conhecimento da natureza como na obra de entre os ideais científicos e os tdeais artísticos dessa época,
arte. O artista só pode rivalizar com as criações da natureza pois a teoria estética não quer outra coisa senão adotar o ca­
minho já inteiramente aberto pelas matemáticas e pela fítíica.
e insuflar em suas obras uma vida verdadeira se se compene­

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Ao alicerçar toda a ciência da natureza na geometria pura, supremo e essencial de toda a critica filosófica. Bem entendido,
parecia que Descartes preparara um novo triunfo para o co é impossível rechaçar totalmente o concurso da imaginação: o
nhecimunto intuitivo puro. Com efeito, segundo a sua doutrina, conhecimento aí tem seu primeiro impulso e seu ponto dc
todo ser, a fim de scr clara e distintamente pensado, de scr partida. Mas o pior erro. o caminho mais perigosamente errôneo
apreendido cm seu conceito puro, deve ser submetido primeiro que ameaça o conhecimento e contra o qual a crítica deve
às leis da intuição espacial, transposto para "figura", Essa es­ adverti-lo, consiste em aceitar por fim esse começo do saber,
pécie dc construção e de representação figurativa é ensinada toiná-lo por seu verdadeiro sentido e telos. O conhecimento
expressamente por Descartes como o método fundamental de só poderia adngir seu fim abandonando seus começos, ultra­
todo conhecimento nas Regulae aá directionem ingeiiii. Mas passando-os com uma clara consciência racional. A própria in­
é só na aparência que ete afirma assim e justifica o primado tuição pura autoriza e exige essa ultrapassagem, uma “ trans­
da intuição sobre o pensamento puro, uma vez que logo acres­ cendência” desse modo: o encaminhamento do pensamento
centa pertencer o caráter puramente intuitivo à natureza das conduz da extensão sensível, tal como se apresenta nos objetos
figuras geométricas mas não à do método geométrico, E quanto físicos, a essa "extensão inteligível” f hiteíligibten Ausdehnung)
a esse método, faz todo o possível por libertá-lo dos limites que é a única a fundamentar as matemáticas como ciência
da intuição e torná-lo independente das sujeições da “ imagi­ exata.4 E devemos considerar igualmente o mundo corporal por
nação , Esse esforço filosófico produziu a geometria analítica, intermédio da extensão inteligível se queremos torná-lo acessível
cuja tarefa própria e essencial foi descobrir o procedimento ao conhecimento, se queremos verdadeiramente pcnetrá-lo com
graças ao qual podem-se representar todas as relações intuitivas a luz da razão. A essa luz ele despoja-se de iodas as suas pro­
entre figuras sob a forma de relações numéricas rigorosas que priedades e características puramente sensíveis, que são rejei*
as determinem exaustivamente. É assim que Descartes reduz a tadas do domínio da verdade para o da aparência subjetiva. O
matéria à extensão”, o corpo físico à pura especialidade; que o objeto conserva como sua natureza autêntica e verdadeira
este, porém, não está sujeito, do ponto de vista do seu conhe­ não é 0 que ele oferece de si mesmo à intuição direta, ao pri­
cimento, às determinações da sensibilidade e da "imaginação”, meiro olhar, mas, pelo contrário, certas relações puras que ele
mas às do entendimento puro, às determinações da lógica e da expressa era si mesmo e que se relacionam com regras rigorosas
aritmética,3 Essa crítica da sensibilidade e da imaginação em­ e universais. Essas regras, que tratam menos dc objetos singu­
preendida por Descartes foi logo retomada e ampliada por Ma- lares do que de relações c proporções universais, fornecem a
lebranche. Toda a primeira parle da sua principal obra, Recher- todo o ser sua estrutura corpórea, ou seja, a norma da qual ele
che de la vérité, é dedicada a essa tarefa. Uma vez mais, a ima­ não pode afastar-se e que não pode abandonar sem perder logo
ginação, longe de apresentar-se como um dos caminhos da ver­ o seu próprio caráter enquanto ser, enqminlo verdade objetiva.
dade, é antes a fonte de todas as ilusões a que está exposto A estética clássica é imitada, iraço por iraço, dessa teoria
o espírito humano, não só no domínio das ciências òa natureza física e matemática. Ela encontrava-se. evidentemente, para rea­
mas também no do conhecimento moral e metafísico. Controlar a lizar sua conscientização intelectual, diante de uma nova e mais
imaginação, freá-la e regê-la conscientemente, tal é 0 objetivo difícil tarefa, visto que, a despeito de todas us limitações e

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restrições de que a "imaginação" tinha sido objeto no domínio A fórmuia conserva aqui toda a sua força: 0 verdadeiro poeta
do puro conhecimento, teria sido deveras contestável e parado­ deve nascer poeta. Mas o que vale a respeito do poeta não vale
xal interditar-lhe de início o acesso ao limiar da teoria da arte. necessariamente para a poesia lato sensu. Pois uma coisa é o
Semelhante ostracismo seria, na verdáde, equivalente a uma impulso que suscita o processo criador, que o sustenta inces­
total negação da arte. Uma tal revolução na contemplação do santemente e lhe propicia o pleno desenvolvimento, e outra coisa
objeto de arte não destruiria esse mesmo objeto e não o despo­ muito diferente é a obra que é o fruto desse impulso, Uma obra
jaria do seu verdadeiro sentido? Com efeito, a teoria clássica, digna desse nome, criatura autônoma possuindo verdade e per­
por mais nitidamente que se recusasse a basear a arte na ima­ feição objetiva, deve despojar-se, em sua pura essência e em
ginação, não ficou cega, de maneira nenhuma, para 3 especifi­ sua consistência, das forças subjetivas que eram indispensáveis
cidade da fantasia, do imaginário, nem insensível aos seus atra­ à sua gênese. Ê então possível e necessário cortar todas as pon­
tivos e & sua magia. Já a tradição, a veneração da Antiguidade tes que a reconduziriam ao mundo onde se forjam as ficções,
impunham desde □ começo determinados limites. Essa tradição porquanto a lei que governa a obra de arte como tal não é um
exigia, para que a obra dc arte concretizc-se, a união de uma produto da imaginação, é uma lei efetiva, que o artista não tem
severa formação prática e de uma disposição inata, de um que inventar mas que descobrir, que ele deve ir buscar à natu­
i rigeuium que não se pode adquirir mas deve estar presente e reza das coisas. O total dessas leis efetivas não é outro, segundo
ativo desde a origem, como dom da natureza. Ego nec studium Boileau, senão a ‘‘razão": é nesse sentido que ele ordena ao
sine divite vena nec rude quid possit, video ingenium: alterius poeto que sme a razão. O poeía não deve buscar nem a pompa
sic altera poseit operrt rest et conjurât amïce. Ë com uma pará­ exterior nem o falso ornamento, deve contentar-se com o que
frase dessas palavras de Horácio que se abre a Arte poética de o próprio objeto Fornece-lhe. Deve aceitá-lo em sua simples ver­
Boileau: dade e persuadir-se, além disso, de que cumpre assim todos os
seus deveres a serviço supremo da beleza. Pois a beleza só se
C’est en vain qu'au Parnasse un téméraire auteur deixa abordar pelo caminho da verdade, e esse caminho exige
Pense de l’art des vers atteindre la hauteur: que não se fique no aspecto exterior das coisas, na impressão
S'il ne sent point du ciel l'influence secrète, que elas causam nos sentidos e na sensibilidade, mas que se
Si son astre en naissant ne l'a formé poète. leve cuidadosamente em conta o percurso entre a "essência” e
Dans son génie étroit il est toujours captif, & ''aparência” . Não poderíamos conhecer o objeto da natureza
Pour lui Phébus est sourd, ei Pégase est rétif, pelo que é sem operar uma seleção severa entre os fenômenos

[E em vao que no Parnaso um temerário autor que nos assediam incessantemente, sem distinguir entre o variá­
Pensa da arte dos versos atingir a altura; vel e o constante, entre o contingente e o necessário, entre o
Se ele não sente do céu a influência secreta, que só tem valor para nós e o que está fundamentado na própria
Se seu astro ao nascer não o formou poeta, coisa; o mesmo pode ser dito no tocante ao objeto de arte. Ele
De seu gênio escasso será sempre cativo, não é mais dado e conhecido no absoluto, devendo ser deter­
Para ele Febo ê surdo e Pcgaso esquivo.] minado e apreendido por um processo seletivo da mesma ordem.

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A estética clássica deixou-se desencaminhar — por imitadores Part-tout se montre aux yeux, et va saisir le coeur;
de segunda ordem, é verdade, não por espíritos verdadeiramente Que le bien et le mal y sont prisés au juste;
criadores — até querer estabelecer regras determinadas para a Que jamais un faquin n ’y tint un rang auguste;
produção de obras de arte. Mas se pretendeu dirigir esse pro­ Et que mon coeur, toujours conduisant mon esprit.
cesso seletivo, racionalÍz4-lo e controlá-lo em função de critérios Ne dit rien aux lecteurs, qu'à soi-même il n’ait dit.
fixos, nio imaginou sequer ensinar diretamente a verdade artís­ Ma pensée au grand jour par-tout s'offre et s'expose
tica: ela acreditava poder preservar do erro e estabelecer os El mon vers, bien ou mal, dît toujours quelque chose.i
critérios do erro. Mais uma vez revela-se o seu parentesco com
(Só o belo é verdadeiro, só o verdadeiro é agradável.
a doutrina cartesiana do conhecimento, ao reger-se pelo princí­
Ele deve reinar em toda parte, e mesmo na fábula;
pio metódico segundo o qual só podemos atingir a certeza filo­
De toda ficção a hábil falsidade
sófica por uma via mediata, ou seja, inspecionando as diversas
Só tende a fazer brilhar aos olhos a verdade.
fontes de erro, a fim de superá-las e de eliminá-las. £ nesse sen­
Sabes por que meus versos são lidos nas províncias?
tido que, para Boileau, a beleza da expressão poética coincide
São procurados pelo povo e recebidos pelos príncipes?
com a sua "exatidão" (Richtigkeit); e esse conceito de “ exati­
Não é porque seus sons, agradáveis, numerosos,
dão" é central em toda a sua estética. Ele combate tanto o bur­
Sejam sempre igualmente favoráveis ao ouvido;
lesco quanto o estilo precioso e afetado porque ambos se afas­
Que em mais dc um lugar o sentido não estorve a medida
tam, em sentidos diferentes, desse ideal. E o mérito supremo,
E uma palavra qualquer não afronte a cesura:
senão o único, que Boileau ambiciona para a sua própria poesia
Mas é que neles a verdade, triunfando da mentira,
é que ela se mantenha fiel a esse princípio, que não impressione
Por toda parte salta aos olhos e vai conquistar o coração;
o leitor por encantos superficiais mas pela simples clareza do
Que o bem e o mal aí são avaliados com eqüidade;
pensamento, pela economia e escolha refletida da expressão:
Que nunca ura patife aí ocupa um lugar augusto;
E que meu coração, guiando sempre o meu espírito.
Rien n’est beau que te vrai, te vrai seul est aimable.
Nada diz aos leitores que a si mesmo já não lenha dito.
H doit régner part-tout, et même dans la fable;
Ofereço e exponho o que penso por toda parte, Ò luz do dia.
De toute fiction l'adroite fausseté
E meus versos, bem ou mal, dizem sempre alguma coisa.)
Ne tend qu'à faire aux yeux briller la vérité.
Sais-tu pourquoi mes vers sont tus dans les provinces?
A questão fundamental e central da estética clássica, a
Sont recherchés du peuple, et reçus chez les princes? questão da relação sistemática entre o “ geral” e o '‘particular",
Ce n'est pas que leurs sons, agréables, nombreux, entre a regra e a exceção, apresenta-se aqui sob a sua verdadeira
Soient toujours à l ’oreifle également heureux; luz. Nunca se deixou de objetar à estética clássica que não pos­
Qu'en plus d ’un lieu le sens n’y gêne la mesure suía o menor sentido do individual, que procurava no geral
Et qu‘un mol quelquefois n ‘y brave la césure. ioda a verdade e toda a beleza, deixando que ambas se perdes­
Mais r'est qu'en eux le vrai, du mensonge vainqueur, sem em puras abstrações. Tairte, que sustenta essa tese, fez doIn

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o ponto de partida de uma crítica que não visa apenas ã estética será então estabelecida e solidamente fundada por um uiitrn
dos séculos X V II e X V III mas rechaça, ao mesmo tempo, todo caminho. Para toda função dada, o quociente diferencial ajne-
o espírito do classicismo e pretende arrebatar-ihe lodo o seu senta-nos a “ natureza'1 dessa função, toda a trajetória da curv»
brilho de empréstimo, desvendar-lhe a impotência e a pobreza. que lhe corresponde, com a máxima precisão e tão inteligivel­
ê evidente que um exame histórico e um julgamento sem pre­ mente quanto possível. Todos os detalhes que a intuição tiver
venções deverão orientar-se num sentido muito diferente. Jtm a possibilidade de descobrir nessa curva aí são condensadua,
vez de servir-se da estética do classicismo para manifestar a in­ numa expressão conceptual única, onde se concentram os raios
suficiência e a fragilidade interna do "espírito clássico", pro- da evidência. Dessa fórmula que coloca à nossa disposição a
curar-se-á esse espírito, pelo contrário, em seus pontos fortes, e análise do infinito podemos inferir imediatamente todas as pro­
o esforço será no sentido de o compreender e interpretar através priedades da curva e todas as suas características, de um modo
de suas realizações mais altas e verdadeiramente centrais. Uma rigorosamente dedutivo. A intuição como tal não poderia chegar
vez mais, impõe-se o paralelismo entre a elaboração da estética a essa forma de unificação. Pretende ela representar-se um con­
e o desenvolvimento que a lógica e as matemáticas conheceram ceito geométrico dado, o conceito de elipse, por exemplo? Não
nos séculos X V II e X V III, Considera Descartes que o único lhe resla mais do que passar em revista e comparar entre si as
progresso verdadeiramente decisivo que realizou em relação ao inúmeras figurações possíveis desse conceito. Dessa comparação
método geométrico dos antigos foi o de ter sido quem primeiro destaca-se finalmente uma certa "imagem1’ da elipse que está
doto» a geometria de uma independência e de uma suficiência muito longe de constituir um objeto realmente simples e homo­
racionais autênticas. A geometria antiga é, sem dúvida nenhuma, gêneo. Para uma ‘‘consideração" pura e simples, com efeito,
uma escola incomparável do espírito, mas não pode — como segundo o hcibilus concreto, as classes particulares de elipses
Descartes mostra ao longo do Discurso do método — aguçar mantêm-se nitidamente diferentes. Há as que se aproximam da
o espírito sem ocupai* incessante e simultaneamente a imagina- forma circular; há outras, estreitas e alongadas, que se afastam
çao até exauri-la, enfim, por ocupá-la em toda sorte de figuras muito dessa forma e que, no plano da figuração puramente in­
e problemas particulares. A busca nao pode, nesse caso, evitar tuitiva, formam com ela um perfeito contraste. Entretanto, o
perder-se indefinidamente na consideração de casos especiais e conceito geométrico, tal como a análise apresenta-o e desenvol­
ser obrigada a inventar e a efetuar uma demonstração especial ve-o, prova que todas essas diferenças nada têm a ver com a
para cada grupo de casos específicos, A nova anáíise cartesiana elipse, que não dependem da sua “ natureza11, Do ponto de vista
vai pôr cobro a esses obstáculos: ela contém regras universais do conceito, não cabe procurar essa natureza em toda essa va­
e desenvolve métodos válidos em todos os casos, implicando a riedade ilimitada de particularizações intuitivas da forma elíp­
solução dos casos especiais e sua delenninaçâo a priori. E mais tica quando cia reside numa lei dc construção universal: e essa
um progresso na mesma direção será obtido quando as mate­ lei nos é fornecida sob sua forma rigorosamente exata na equa­
máticas transpuserem a fronteira da geometria analítica de Des­ ção da elipse. O pensamento matemático apreende, enfim, a
cartes para o cálculo infinitesimal de Leibniz e o cálculo dos verdadeira ‘‘unidade na multiplicidade’’. Não pretende negar n
fluxos íiewfonianos. A dominação do particular pelo universal diversidade como tal nem recusá-la, mas, pelo contrário, com-

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preendê-fa e fundamentá-la. A fórmulj da função sob a sua for­ tar-se sem ferir a própria ‘‘natureza” e perder seus títulos à
ma geral só contém, bem entendido, a regra universal que permite verdade artística, Boiieau procura destacar essas leis implícitas,
determinar a interdependência das variáveis mas é sempre pos­ baseadas na natureza dos diversos gêneros poéticos, respeitadas
sível reportar-se da fórmula geral para uma figura particular inconscientemente desde sempre na prática da arte, a fim de
qualquer caracterizada, como tal, por grandezas determinadas Empó-las ao conhecimento claro e distinto. Quer enunciá-las e
que são as suas constantes individuais. Toda determinação dessas formulá-las em termos explícitos, à maneira da análise matemá­
grandezas — um comprimento determinado, por exemplo, que tica, a qual permite uma tal formulação, uma expressão do
atribuímos ao pequeno eixo da elipse — Tedunda num novo conteúdo próprio e da estrutura fundamental correspondente a
caso particular; mas todos esst.s casos particulares "são”, na tal ou tal classe de figuras. Por isso é que o próprio gênero
realidade, o mesmo, na medida em que todos eles têm, para o não é para ele algo que o artista deveria elaborar, muito menos
geômetra, uma só e mesma significação, fi um mesmo sentido geo­ um meio e um instrumento de criação de que poderia, a seu bel-
métrico, um ser idêntico e uma verdade idêntica da elipse que prazer, apossar-se ou desfazer-se, mas, pelo contrário, algo dado
se escondem para nós na massa heterogênea das figuras parti­ como lat e intrinsecamente necessário. Os gêneros e as espécies
culares e que a fórmula analítica caracteriza e, de certa maneira, de arte não se comportam, nesse capítulo, de um modo diferente
desvenda em sua própria essência. das coisas da natureza: possuem igualmente imutabilidade, esta­
Foi na imitação dessa "unidade na multiplicidade” das ma­ bilidade, forma e destinação específicas, nada podendo ser-lhes
temáticas que se constituiu a “ unidade na multiplicidade” esté­ acrescentado ou retirado. O esteta não é mais o legislador da
tica, exigida pela teoria clássica. É um erro acreditar que o arte que o matemático e o físico o são da natureza. Tanto uns
princípio da unidade na multiplicidade como tal 6 incompatível quanto outros não ordenam nem governam, apenas estabele­
com o espírito do Classicismo, que nesse princípio exprime-se o cem o que “é”. E não constitui obstáculo nenhum para o gênio
mais virulento anticlassicismo.R Pois também no domínio da arte estar ligado e, de certo modo, submetido a essa realidade obje­
não se trata, para o espírito clássico, de uma simples negação tiva mas, pelo contrário, é uma garantia contra o arbitrário e
da multiplicidade, de sua supressão, de sua extinção, mas da a certeza de elevar-se à única forma possível e verdadeira de
forma, da organização positiva e sintética a dar-lhe. Na Arte liberdade artística. Mesmo para o gênio, existem certos limites
poética, Boileai) esforça-se por estabelecer uma teoria gera! dos intransponíveis, tanto do lado dos assuntas artísticos quanto do
gêneros poéticos, tal como o geômetra uma teoria geral das cur­ íado dos gêneros artísticos: está fora de cogitação tratar não im­
vas. Quer instituir o "possível" a partir da multiplicidade de porta que assunto em não importa que gênero; a própria es­
objetos reais, ta[ como o matemático quer perceber o círculo, trutura do gênero já efetua por si mesma uma certa seleção nas
a elipse, a parábola, em sua “ possibilidade”, a saber, na lei de matérias a tratar, excluindo tudo o que não se presla ao único
construção que lhes serve de base. Tragédia e comédia, elegia modo de tratamento que ela aceita. Ü artista deve, portanto, pro­
e epopéia, sátira e epigrama, todos esses géneros possuem sua curar alhures a sua liberdade de movimento: não no conteúdo
própria lei dc construção bem-de terminada, que nenhuma cria­ como tal, o qual, em considerável medida, é fixado e organizado
ção individual está autorizada a violar, da qual não pode afas­ de antemão, mas na direção da expressão e da apresentação. £ so­

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mente na expressão que se faz conhecer o que é comu mente de no perfeita e unívoca. É esse o seu objetivo; mas desse modo é
minado a “originalidade".7 E aí que o artista vai empregar suas introduzida uma limitação imaner.te. A teoria científica pode
faculdades individuais: entre as diversas expressões possíveis de perfeitamente designar, sem dúvida, um só e mesmo objeto por
um mesmo assunto, o artista verdadeiro dará sempre sua prefe­ diversos símbolos — o geômetra, por exempío, pode exprimir
rência àquela que suplanta as outras em segurança e fidelidade, a equação de uma curva primeiro em coordenadas cartesianas,
em clareza e concisão. Contudo, ele não vai procurar a novidade depois em coordenadas polures. Mas uma dessas expressões ga­
pela novidade e a todo preço mas, simplesmente, aquela dose de nhará, finalmente, em perfeição relativa porque conduz, para
nevidade que convier para satisfazer a necessidade de simplicida­ o objeio em questão, à fórmula mais simples de iodas. Essa
de, concisão, brevidade convincente, numa medida jamais alcan­ mesma '‘simplicidade” & elevada pela estética clássica ao status
çada ainda. Um pensamento novo, diz Botleau a certa altura, não de um ideal: a simplicidade vale como corolário da verdadeira
é, absolutamente, um pensamento que jamais tenha sido pensa­ beleza, tal como esta é o corolário e o critério da verdade.
do: “ é, pelo contrário, um pensamento que deve ter ocorrido a Os pontos fracos dessa teoria são bem visíveis. Contudo,
todos mas que alguém foi o primeiro a tomar o iniciativa de não foi tanto às deficiências de princípios que o desenvolvi­
expressá-lo.*’ Ê verdade que nessa fórmula esconde-se um novo mento ulterior da estética ficou inicialmente associado. As de-
obstáculo; uma vez alcançada essa adequação perfeita entre ficiênciBS de execução, aquelas que apareceram quando da
o assunto e a expressão, a arte chegou a uma meta que já não aplicação dos princípios clássicos à consideração de gêneros
há a necessidade nem a possibilidade de ultrapassar. O pro­ artísticos e de obras particulares, pesaram muito mais. Por
gresso não é um progressus in indejinitum, detendo-se num muito paradoxal que essa idéia possa parecer, pode-se afirmar
certo nível de perfeição. Toda perfeição artística significa, ao a esse propósito que uma das fraquezas essenciais da doutrina
mesmo tempo, um non plus ultra, um limite da arte. O século clássica não é ter levado longe demais a abstração mas não
de Luís XIV , de Voltatre, é um novo exemplo dessa coinci­ ter perseverado nela com suficiente constância. Com efeito,
dência clássica, em certas formas de arte, da perfeição interior um pouco por toda parle, misturam-se, no estabelecimento c
e do fim dos tempos. Também aqui se manifesta a analogia defesa da teoria, motivações que, longe de serem logicamente
que a teoria admite entre os problemas artísticos e científicos inferidas de seus princípios gerais e de suas pressuposiçòs. pro­
e que ela tenta desenvolver em detalhe. Condi Mac via o elo vêm do contexto particular dessa problemática, da estrutura
que une a arte e a ciência em sua relação comum com a lin­ inte-ectual histórica do século X V II. Essas motivações insi­
guagem. São dois níveis e duas direções diferentes de uma nuam-se no trabalho dos mais eminentes teóricos, à sua revelia,
só e mesma função intelectual que se exprime na criação e uso e levam-nos a afastar-se de seus objetivos puramente especula­
de sinais. A arie, assim como a ciência, coloca os "sinais” dos tivos. A ilustração asais clara dessa situação encontra-se na
objetos no íugar dos objetos, e só se distingue dela peio uso controvérsia que com tanta freqüência passou por ser o próprio
que Eaz dos mesmos.8 A vantagem dos sinais científicos, justa­ cerne de toda a estética clássica, porquanto parece que essa
mente, sobre os da linguagem usual, sobre as simpies palavras, estética só foi concrelamente testada a propósito da doutrina
é serem muito melhor definidos, tenderem para uma expressão das três unidades e que o seu destino’filosófico e teórico lhe

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está vinculado. E, no entanto, v^I^a-se justamente q u e essa a própria estética clássica, de acordo com a sua tendência ge­
doutrina não foi criada pela estética do Classicismo, que a pre­ ral, sempre nos preveniu, justamente, contra a confusão entre
cedeu. pelo contrário, e viu-se simplesmente imbricada no sis­ o que é verdadeiro e válido “ pela natureza da coisa” e o que
tema,® E essa inserção jamais produziu uma justificação verda­ parece válido a um indivíduo, do seu ponto de vista particular.
deiramente convincente. Ao anunciar a doutrina das unidades, Ela exigia do ÍndÍvíduo> enquanto sujeito estético, que esque­
Boileau fala, sem dúvida, como legislador da razão e em n<> cesse o seu temperamento particular, a sua "idiossincrasia",
me da razão.
para deixar falar apenas a pura necessidade do objeto. Não
6 uma violação dessa exigência, uma contestação do caráter
Mais nous, que la raison à ses règles engage, estritamente "impessoal” da razão, tal como é sempre afir­
Nous voulons qu'avec art laction se ménage; mado pelos teóricos do Classicismo, usar como medida do dra­
Qu en un lieu, qu’en un jour, un seul fait accompli ma as condições aleatórias em que se encontra o espectador
Tienne jusqu'à ta fin fe théâtre rempli.1* c elevá-las k categoria de norma da criação? E esse traço não
[Mas nós, que a razão às suas regras obriga, é único: é simplesmente o sintoma mais destacado desse deslo-
Queremos que com arte a ação se ton siga; camente característico das motivações que encontramos por
Que num lugar, que um dia, um só fato consumado toda parte, até mesmo nos adeptos do classicismo estrito. To­
Mantenlia até o fim o teatro lotado.] dos se esforçam pela simplicidade, exatidão, pela simples “ na­
turalidade” da expressão, mas vão buscar a medida do na­
Essa aplicação da doutrina, medida pelo cânone da pura tural, sem a menor hesitação ou escrúpulo, ao mundo em que
lógica, esconde, porém, uma evidente sub-repção: o ideal da vivem, baseiam-se no que lhes fornecem o ambiente imediato, o
razão que ele sustenta em todas as oportunidades é aqui subs­ hábito e a tradição. Aqui, de súbito, o poder de abstração de
tituído por Boileau por uma medida puramente empírica. Nesse que estão dotados os fundadores da doutrina clássica começa
ponto, a estética clássica afasta-se nitidamente da sua concepção a faltar-lhes: em vez da reflexão critica sobrevêm uma credu­
científica da “ razão universal" a fim dc enveredar pelo cami­ lidade ingênua, uma veneração por todos os dados puramente
nho de uma filosofia do "senso comum”. Em vez da verdade, empíricos da cultura intelectual e artística do século X V II. Esse
ela recorre à verossimilhança ( Wahrscheinlichkeit) c ainda ouro fascínio pesa tanto mais sobre aqueles pensadores que disso
sentido estrito que tem somente um valor de facto. Uma tal estiverem menos conscientes. Boileau não postula somente a
valorização do simples fato é, contudo, fundamentalmente in­ equivalência da "natureza” e da “ razão’1; ele chega mesmo a
compatível com os verdadeiros e mais profundos princípios da identificar a natureza propriamente dita com um certo estado
teoria clássica. É evidente que não se trata de um argumento de civilização (Gesittung). Só é possível chegar a esse estado
satisfatório par- justificar a necessidade absoluta da unidade cultivando as formas que a vida social criou e levou a um tão
de lugar e de tempo reportar-se ao espectador, para quem seria alto grau de refinamento. Doravante, a razão e a natureza, n
absurdo ver desfilar no transcurso de algumas horas acome­ corte e a cidade são elevados à categoria de modelo e de ideal
timentos que preenchem um ano ou uma dezena de anos. Pois estético. "Étudiez la cour et connaissez la ville; l'une et l'autre

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>.’st toujours en modèles fertile." [Estudai a corte e conhecei E é exatamente nesse ponto que cumpre ver a origem do
.1 cidade; uma e outra são sempre férteis era modelos.] Sub- movimento de idéias que culminará com a dissolução e derrota
rept ici ameute, as conveniências ínsinuam-se assim no lugar da das teorias do Classicismo. Sem dúvida, na primeira metade do
natureza, as convenções no lugar da verdade. O teatro, pri­ século X V III, essas teorias ainda dominam quase sem contesta­
meiro, onde se revelam a forma e a flor da mais nobre socia­ ção. Voltaire é um espírito penetrante e crítico demais para
bilidade, não poderia afastar-se desse quadro. Em nenhuma par­ não se aperceber de algumas fraquezas nelas existentes, mas,
te os preceitos da razão são mais severos e em nenhuma parte, por outro lado, tem uma admiração enorme pelo “Século de
de resto, o poet2 deve observá-los com tanto rigor e escrúpulo, Luís X IV ”, do qual veio a ser o primeiro historiógrafo, admi­
no receio de contrariar os fins essenciais do teatro. É por isso ração bastante para não se subtrair às suas estritas exigências
que Boileau situa aí a exatidão da regra a que a poesia dramá­ em matéria de gosto. Entretanto, em seus acessos de cepticismo
tica deve submeter-se, no mesmo plano que a sua estreiteza, ao e de pessimismo, não deixa de criticar a cultura do seu tempo
ponto de tratar exatidão e estreiteza quase como sinônimos; e procura, no conto O ingênuo (1767), opor a essa cultura
corrompida o espelho da natureza, a simplicidade e a franqueza
Dans un roman frivole aisément tout s’excuse; do pensamento, a inocência dos costumes. Mas justamente a
C'est assez qu’en courant la fiction am ttse; maneira como ele apresenta o seu herói moslra com toda clareza
Trop de rigueur alors seroit hors de saisûn: como ele é devedor ao seu século desse mesmo ideal da natu­
Mais la scène demande une exacte raison reza, como esíá inteiramente comprometido com esse ideal: o
L’étroite bienséance y veut être gardée.** filho da natureza de quem ele nos quer fazer o retrato está muito
[Num romance frívolo tudo é facilmente desculpado; longe, com efeito, de toda rudeza e de toda barbárie, Não só
Basta que, ao desdobrar-se, nos divirta a ficção; ele mostra a maior delicadeza e respeito pela civilização mas
Rigor demais seria então deslocado: vai ao ponto de falar a língua da galantería. Voltaire, portanto,
Mas o palco exige uma exata razão enquanto esteta, considera que o gosto refinado, autêntico, ba­
O estreito decoro aí quer ser guardado.] seia-se no instinto de sociabilidade do homem, o qual só pode
originar-se — é essa a tese do Ensaio sobre o gosto — no âm­
Por essa última equivalência, a doutrina clássica converteu bito da vida social. Antes de Rousseati, a cuitura francesa sete­
ir»a!me me seus ideais estéticos em certos ideais sociológicos aos centista jamais fizera uma distinção rigorosa entre o social c o
quais ela os vinculou. "Os diversos gêneros poéticos ernm tra­ natural. Rende-se preito à natureza, devota-se-lhe uma paixão
tados — díz Goethe nos Comentários à sua tradução do ro­ entusiástica, mas todos os traços do convencionalismo são intro­
mance O sobrinho de Rameau [de Diderot] — “como outras duzidos no quadro que se faz da belle nature. Diderot foí o
tantas sociedades nas quais convém obedecer a um comporta­ primeiro na França que ousou abalar essa convenção. Em suas
mento particular [. ..] O francês não teme falar de conveniências obras manifesta-se um novo pathos revolucionário mas, em sua
ao julgar produtos do espírito, palavra que, a bem dizer, só ação imediata de crítica e de escritor, em particular na sua obra
pede representar o que se faz em sociedade.’' 12 de poeta dramático, não se atreve mais do que os outros a rom

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per os vínculos. Lessing foi o único a dar o passo verdadeira­ obra, são regras universais, rigorosamente mtemporais. A des-
mente decisivo, na Dramaturgia de Hamburgo, e a extrair daí razão tem uma ''história’1, não a razão; esta continua sendo o
as últimas conseqüências, Denuncia a confusão indefensável e que sempre foi desde o começo e o que será até o fim dos
funesta que se produzira na França, no drama e na teoria dra­ tempos. Mas eis que, de súbito, além das conseqüências que a
mática, entre as exigências da pura "razão’* estética e as exi­ estética clássica daí extraíra, as premissas também claudicaram.
gências puramente convencionais, ligadas à época e sem valor Com o surgimento de novas idéias cientificas e filosóficas, as­
gerai. E procede a uma severa e inexorável seleção, excluindo sim como de novas exigências políticas e sociais, sente-se uma
do campo das normas estéticas do classicismo tudo o que tem evolução dos padrões estéticos. Os novos tempos exigem, de
sua origem nno na verdade e na natureza mas somente nas ilu­ um modo cada vez mais enérgico e consciente, uma nova arte.
sões de que toda a época, por brilhante que seja, faz alarde. Ao patético e ao culto do herói da. tragédia francesa clássica,
Essas ilusões não podem produzir nenhuma forma artística ver­ Diderot opõe uma nova sensibilidade social e, concomiianie-
dadeira nem nenhum caráter dramático autêntico. Só a varinha mente, estética; defende a causa de um novo gênero poético, a
mágica do gênio poético, jamais as regras de conveniência de chamada "tragédie domestique“. E a crítica estética do século
uma escola estética, pode lograr êxito numa tal criação: "Q uan­ X V III já estava pronta para integrar tais experiências, reconhe-
do a pompa e a etiqueta convertem os homens em máquinas, é cé-las e interpretá-las teoricamente. Dubos inaugurou o cami­
tarefa do poeta fazer dessas máquinas homens de novo.” nho com as suas Réflexions critiques sur la poésie et ta peinture.
A obra de Lessing tinha sido preparada, sem dúvida, até Foi um dos primeiros a manifestar interesse de especialista pelo
nos detalhes, pela estética setecentista. À força de confundir os desenvolvimento de uma arte individualmente considerada e a
princípios sociais e estéticos, segundo o erro cometido peia dou­ revelar as causas desse desenvolvimento sem se ater apenas às
trina clássica, teria que acabar-se por tomar solidário, de al­ causas intelectuais mas igualmente às causas naturais, climáti­
gum modo, o destino histórico de uns e outros. A partir do cas e geográficas. A par das “causas morais” , ele reserva um
instante em que não podiam mais sustentar-se diante de uma vasto campo de ação às “ causas físicas". No domínio da esté­
crítica cada vez mais penetrante que denunciava seus pontos tica pura, ele é assim o iniciador da teoria que, mais tarde,
fracos, esses princípios teriam fatalmente que ceder e acabar em sociologia e em ciência política, será brilhantemente susten­
por dissolver-se. Dessa derrota, a estética do século X V III au­ tada por Montesquieu. Não importa que solo e que tempo pro­
feriu um novo enriquecimento ao tomar plenamente consciência, duzem tal ou tal arte: mo« omnis fert omnia tellus.1* Essa
por ocasião de um evento histórico concreto que lhe dizia perspectiva marca o abandono da fixidez do esquema clássico.
diretamente respeito, do vínculo existente entre a arte e o Pretende-se uma teoria que acolha a diversidade e a mobilidade
espírito do tempo", A poética de Boileau era, como se viu, dos fenômenos estéticos, uma teoria que se veja nascer dessa
profundamente determinada pela sua época e, em suma, toda mesma multiplicidade. Em suma, a tendência é para passar das
impregnada dela, mas, na doutrina como tal, esse fato evidente simples fórmulas ao conhecimento da estrutura própria da cria­
não tinha a menor probabilidade de exprimir-se. As regras esta­ ção artística, a qual, como se vê cada vez mais claramente,
belecidas por Boileau, no espírito do autor e na perspectiva da não se decifra na essência da obra de arte mas obriga a teoria

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a inserir-se no processo da criação artística a firo de o recons­ panes nessa época a psicologia e a teoria do conhccimenio, jii
tituir mentalmente.
procurando a chave de todos os problemas que a metafísica pro­
metera resolver sem jamais o conseguir. Se existe um domínio
onde se impõe tal abordagem do problema í o da estética, a qual,
O problema do gosto e a conversão ao subjetivismo por sua própria essência, é um fenômeno puramente hunmno.
A mutação interna que pôe fim ao reinado da doutrina Toda espécie de "transcendência’' está, por esse fato. segundo
clássica no âmbito da estética corresponde exatamente, no plano parece, condenada de antemão; nenhuma solução lógica ou me­
metodológico, à conversão que, no pensamento físico, foi con­ tafísica é pensávet mas somente uma solução antropológica
sumada pela passagem de Descartes a New ton. E a mesma fi­ stricto sensu. Psicologia e estética ingressam, portanto, numa
nalidade que 6 perseguida, em ambos os casos, por caminhos associação tão estreita que parecem, por um certo tempo, fundir-
e procedimentos intelectuais diferentes. Trata-se de libertar-se se uma na outra: a passagem da psicologia para a problemática
do despotismo absoiuto da dedução, trata-se de dar lugar, ao transcendental, passagem essa que proporcionou finalmente a
lado dela e não contra ela, de maneira nenhuma, aos fatos Kant romper esses vínculos, em nenhum outvo domínio foi mais
simples, aos fenômenos, à observação direta. Não está em ques­ difícil de realizar; em nenhuma parte as dificuldades teóricas
tão, evidentemente, renunciar ao apoio sobre princípios mas, pesaram tanto quanto na área dos problemas estéticos funda­
outrossim, elaborar os princípios em função dos fenômenos em mentais,
vez de subordinar os fenômenos a princípios definidos, válidos Ê claro que o método psicológico, ao procurar na natureza
a priori e fixados de uma vez por todas. Assim, o método de humana a origem e o único fundamento do belo, não pretende
explicação e de dedução tende cada vez mais, também nesse em absoluto dar livre curso a um relativismo ilimitado, elevar
domínio, a ceder o lugar à pura descrição.14 E essa descrição o sujeito individual à posição de um juiz da obra de arte cujas
uso parte mais das obras de arte mas da consciência estética sentenças sejam absolutas e sem apelação. Ele y6. pelo contrário,
cu;a natureza ela quer, em primeiro lugar, reconhecer e definir, uma espécie de sensus communis no gosto; a natureza e a pos­
lá não são agora os gêneros artísticos que estão em causa, prin­ sibilidade de tal "senso comum1' constituem propriamente o
cipalmente, mas as atitudes artísticas: a impressão que causa a ponto de partida de sua problemática. Se a forma estética nor­
obra de arte sobre aquele que a contempla e o julgamento no mativa que vigorava até então está doravante descartada, toda a
qual ele procura fixar essa impressão para si mesmo e para espécie de regra não deve, porém, ser eliminada por tal motivo; a
os outros. Essa tendência da estética visa sempre è "natureza", estética não vai ser entregue ao acaso e ao arbitrário. A elimi­
tem-na por modelo que o artista deve esforçar-se por alcançar nação do arbitrário, a descoberta de leis específicas da consciên­
e respeitar em todos os casos; mas o próprio conceito de natu­ cia estética constituem, pelo contrário, a finalidade da estéticH
reza acaba de realizar uma característica mutação semântica. O enquanto ciência. Diderot encontrou termos justos e penetran­
fio condutor deixou de ser, com efeito, essa naiura rerum à tes para exprimir esse princípio fundamental no começo do seu
quat se vinculava o objetivismo estético para ser agora a natu­ Ensaio sobre a pintura. Se o gosto fosse apenas uma questão
reza do homem: essa natureza à qual recorrem de todas as He humor, donde proviriam essas deliciosas emoções que ema

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nam do mais fundo do nosso eu de maneira tao súbita, invo­
ser rigorosamente definido, plenamente determinado cm todas
luntária e impetuosa, esses movimentos da aima que profunda­ as suas características e deve conservar 0 sentido estabelecido
mente nos sacodem, que ampliam ou constrangem o nosso ser,
pela definição ao longo de toda a série de fases do pensamento.
que nos arrancam lágrimas de júbilo ou de dor? Esses fenômenos Toda vacilação, toda obscuridade e toda ambigüidade signi­
que cada um experimenta e vivencia em si mesmo não poderiam
ficam a morte do conceito lógíco-ma temático, o qual só recebe
ser recusados por teorias abstratas nem abalados por argumen­
seu sentido e seu valor próprios de sua exatidão, e que é tanto
tos cépticos. "Apage Sophista" — gritou Diderot — "jamais
raais perfeito quanto melhor lograr realizar esse ideal. Em es­
persuadirás meu coração de que ele faz mal em agitar-se, nem tética, porém, 6 uma outra norma que prevalece. Não é difícil
as minhas entranhas de que fazem mal em comover-se." '* encontrar toda uma série de fenômenos expondo-se claramente,
Essa nova perspectiva metódica só pretende fundamentar acessíveis a toda observação imparcial e que, no entanto, es­
racionalmente o julgamento do gosto com reservas expressas, tão tão distanciados da exatidão que esta não teria grande di­
se ainda assim não renunciar a isso inteiramente nem abando­ ficuldade em deslruMos. Uma idéia estética não recebe seu va­
nar, dc maneira nenhuma, seus direitos à universalidade. Só está lor e seu encanto de sua exatidão c de sua clareza mas da mul­
agora em questão uma determinação mais exata dessa universa­ tiplicidade de relações que ela condensa em seu seio, e esse
lidade assim como o modo segundo o qual sua validade pode encanto não se perde porque não se consegue dominar com o
ser assegurada. A dedução pura e o simples raciocínio revelam- olhar essa multiplicidade de relações, resolvê-la analiticamente
se aqui impotentes: a exatidão do gosto não se deixa demons­ cm seus elementos constitutivos. A significação estética de uma
trar da mesma maneira que a validade de uma dedução lógica tal idéia não é diminuída pelos impulsos complexos, até contra­
ou matemática. E necessário fazer intervir aqui outras faculda­ ditórios, que ela suscita, pela maneira como ela cintila em mil
des, apostar, por assim dizer, numa outra cor psicológica. Essa cores, por tudo o que ela comporta de fugaz e de flutuante.
convicção já tendia a manifestar-se a Ira vis do edifício da teoria Em muitos casos, ela só é constituída, na verdade, pelo con­
clássica. A obra de Bouhours intitulada La manière de bien junto desses traços. Assim como Pascal tinha distinguido o "es­
penser dans les ouvrages de l ’esprit [A maneira de bem pensar pírito sutil” do "espírito geométrico” , opondo um ao outro
nos labores do espírito] só está separada da Arte poética de numa antítese muito profunda, também Bouhours opõe ao es­
Boileau por um século ou pouco mais e quer completar a obra pírito de "rigor” que Boileau tinha elevado ao nível de prin­
de Boileau sem lhe subverter os princípios. Como o próprio cípio da arte o espírito de finura e delicadeza, o espírito de
título já indica, trata-se de dar uma "arte de pensar" estética delicatesse, O que se designa aqui por "delicatesse" é, de certo
como peça anexa do Art de penser de Port-Royal. Mas a forma modo, um novo órgão que não tende, como o pensamento
do pensamento e do julgamento estético destaca-se com mais matemático, a solidificar, a estabilizar e a fixar o conceito,
clareza e distinção do que no modelo acima de todas as for­ mas que se exprime, muito pelo contrário, na leveza e mobili­
mas de inferência puramente "discursivas”. A finalidade su­ dade do pensamento, na agilidade em captar os matizes mais
prema que o pensamento discursivo possa propor-se é a exa­ sutis e as transições mais céleres. São essas transições e esses
tidão e a unîvocidade. Todo conceito de que ele faz uso deve matizes que dão a esse pensamento sua tonalidade cspecifica-

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I
J

mente estética. Por estranha e chocante que essa idéia possa epigrama, que de perde na inteiramente dessa condição, que si.-
parecer à primeira vista, pode-se dizer que, a par do ideal esté­ funcionam em termos de surpresa, Um epigrama nâo se justi­
tico de rigor e exatidão, encontra-se um outro, diametralmente fica, na acepção estética, somente por sua verdade: poderia
oposto: o ideal de inexatidão. O classicismo estrito caracteriza­ muilo bem limitar-se a ser um simples aforismo, íaltando-llic
va como não-verdade ira em si mesma toda coisa inexata e, por a vida e o movimento da arte. É muito menos graças à verdade
conseguinte, rejeitava-a. Mas a '‘razão" estética, Bouhours in­ do que por meio da falsidade que o epigrama recebe vida c
siste sobre esse ponto, não é prisioneira do ‘‘clarc e distinto”. movimento. “ Os pensamentos, à força de serem verdadeiros,
Não só ela suporta uma certa margem de indeterminação como tomam-se por vezes triviais” : esse risco de trivialidade estética
s exige e provoca, pois a imaginação estética só se inflama e só pode ser evitado por uma certa configuração, uma espécie
desenvolve na presença do que sinda não está plenamente de­ de roupagem do pensamento, por uma guinada surpreendente
terminado, do que ainda não está totalmente pensado, Não se de sua expressão, ê a expressão, não o conteúdo do pensa­
trata aqui do simples conteúdo do pensamento e de sua verdade mento como ta', que contém cada vez mais a verdadeira carga
objetiva mas do desenrolar do pensamento e da sutileza, da estética. Não é surpreendente, portanto, e muito menos para­
ligeireza, da presteza com que se realiza, Não é o mero resultado doxal, nesse contexto, que Bouhours exija para todo produto
que é decisivo mas o modo como é obtido, o próprio fato de válído da arte não a verdade pura e simples mas uma certa
resultar, Do ponto de vista estético, um pensamento é tanto mistura expressa de falsidade, e que por essa mesma razão
mais valioso quanto mais visível for o encadeamento criador, justifique o equívoco, porque o faíso e o verdadeiro aí estão
a gênese da forma inesperada, o "jorro" (Herausspringen). A misturados e formam uma unidade.18 Com efeito, é por meio
lógica exige constância, a estética pede a subitaneidade. A ló­ da expressão do falso que Bouhours, que fala reiteradamente
gica deve pôr a claro todas as pressuposições de um pensamento, a língua do classicismo, consegue quebrar os grilhões da con­
não perder nenhum dos elos intermediários que o preparam, cepção clássica da verdade e da realidade e iniciar seu vôo
segui-lo em todas as suas mediações; para a arte, pelo contrá­ para a região da "ííusão estética”. A estética como tal não
rio, o imediato é a fonte onde ela inesgotavelmente inspira-se, nasce nem floresce a pura e pálida luz do pensamento; cum­
A estrita "retidão” do pensamento, à qual se ligava a estética pre juntar-lhe o seu contrário, realizar uma justa divisão entre
clássica e que esta erigia em norma, deixou de ser válida: a luz e sombra. Uma e outra são igualmente essenciais: a artt
linha reta é 0 caminho mais curto entre dois pontos somente não quer ser, a par do mundo natural, uma segunda realidade
na acepção geométrica, n3o no sentido estético. A estética de igualmente objetiva, mas construí-fo em imagem c nela fixá-lo.
Bouhours, ao basear-se no princípio da delicadeza, vai ensinar, É por isso que o ideal puramente racional da ’'adequação”,
portanto, a arte do desvio ã justificar sua validade e riqueza. da adaequaüo rei et intellectus, não se impõe à arte no mesmo
Um pensamento esteticamente válido (pensamento delicado, pen­ sentido que à ciência. A estética clássica, por f,er rnantido esse
samento engenhoso) faz quase sempre uso daquele para atingir ideal, linha sido assim levada a enfatizar decisivamente o “na­
seus fins: surpreender o espírito e imprimir-lhe, por meio dessa tural” e o "exato'’. A representação era tanto mais perfeiu-
surpresa, um novo impulso. Existem gêneros poéticos, como o quanto melhor conseguisse retratar o próprio objeto, refleti-k

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sem as turvaçõcs e refrações que a natureza do assunto pode efeito que elas exercem, procurando determinar desse moda ;i
ocasionar. Entretanto, essa nornia começa agora a edipsar-se, verdadeira essência da arte. Mas nessa análise da impressão
A ênfase recai menos sobre a proximidade do que sobre ;i di* estética, o cu e o objeto defrontam-se com dois fatores igual­
tância cm relação ao objeto, não no que, na arte, iguala-se à mente necessários e legítimos. A estrutura precisa dessa relação
natureza mas no modo específico de sua expressão e de sua causal e a participação de cada um desses momentos, o “sujeitu"
representação. O que esses meios de expressão comportam de e o “objeto**, não podem ser estabelecidas de antemão por consi­
inadequado no sentido racional do termo, seu caráter mediato derações abstratas; o exame dessa conexão cabe exclusivamen­
e mtafórico, é expressamente admitido e em nada muda sua te à experiência. Ê em Dubos, portanto, qge pela primeira vez,
apreciação. A imagem esboçada pela arte, com efeito, nunca é com todo o rigor, a auto-observação define-se como o princípio
igualada ao objeto nem coincide com ele, portanto não poderia específico da estética e oposta a todo e qualquer outro método
ser condenada por não-verdade; ela tem sua própria verdade, puramente lógico como fonte autêntica de todo o conhecimento
autônoma e imanente: "Le figurê n‘est pas faux et la méta- estabelecido. A essência da estética não pode ser conhecida de
phore a sa vérité aussi bien que la fiction, * 17 maneira puramente conceptual; o teórico, nesse domínio, não dis­
O novo tema que se percebe na obra de Bouhours só en­ põe dc outros meios para comunicar suas intuições de um modo
controu, porém, seu pleno desenvolvimento em Dubos. O que convincente a náo ser recorrendo à sua própria experiência in-
naquele não passou de simples bosquejo tomou-se nas Réfle- lerior. A impressão imediata, à qual deve estar associada toda
xions critiques sur (a poéste et la peinture, de Dubos, um pen­ a criação de conceito em estética, e à qual deve remeter-se cons­
samento sistemático que o autor desenvolve era todos os senti­ tantemente, não poderia, de maneira nenhuma, ser substituída
dos. Os fenômenos que Bouhours tinha descoberto, de certa e rechaçada por deduções. “ Eu não poderia esperar ser aprova­
maneira, na periferia da estética, são agora transferidos para do” — diz Dubos no uiíeio de seu livro .— " se ngo conseguir
0 centro da teoria estética. Não se trata mais de fazer simples­ fazer o leilor reconhecer no meu presente estudo o que se
mente tugar para a imaginação e o sentimento ao lado das passa em si mesmo, numa palavra, os movimentos mais íntimos
faculdades intelectuais, mas de provar que também são facul­ de seu coração. Quase nunca se hesita em rejeitar como um
dades verdadeiramente fundamentais. Se se chamou por essa espelho infiel o espelho onde a pessoa não se reconhece.” 16 O
razão à obra de Dubos a "primeira estética do sentimentalis­ estético já não se apresenta agora ao artista com seu código em
mo”,18 é evidente que se deve fazer reservas, historicamente, a mãos, tal como quer mais impor ao público normas fixas e
respeito da fórmula, porquanto não se encontram nele, em parte universalmente válidas. Apenas quer ser o espelho onde o au­
alguma, esses traços verdadeiramente “ sentimentais*', como sur­ tor e o espectador devem contemplar-se e reconhecer-se, aí reen­
girão mais tarde na época da "sensibilidade” (Empfindsamkeit). contrando sua vida interior e suas experiências mais profundas.
O que ele entende por “ sentimento” não significa um mergulho Toda educação, todo refinamento do juízo estético só podem
do eu em st mesmo, portanto, nesse sentido, uma atitude “ subje­ consistir, em última instância, em aprender a ver sempre mais
tiva". Sem dúvida, ele parte mais simplesmente da consideração claramente essas experiências intimas, essas impressões originá­
e da análise de obras de arte e observa, em primeiro lugar, o rias, e em distingui-las das contribuições arbitrárias c gratuitas

400 40Í
da retlcxao. ’loduí as teorias c sutilezas sobre concutos estéti­ dos atos de percepção, ver e ouvir, provar c cheirar, percebe-se
cos que não servem para esse fim são rejeitadas; tudo o que o caminho que Hume vai seguir uté as suas últimas conseqüên­
não possui a ingenuidade da impressão e não reforça o nossa cias. A filosofia de Hume tem por objeto muito menos, expli­
confiança nela não atinge a finalidade essencial a que u estética citamente, as questões estéticas do que as questões de teoria
deve propor-se. O gosto, no sentido próprio, não pode ser apren­ do conhecimento e de psicologia, de ética e de filosofia da re­
dido nem ser suscitado, elaborado verdadeiramente por simples ligião. A estética ocupa, no entanto, um lugar importante no
considerações teóricas, assim como a percepção sensível tam­ seio dessa problemática e, de um ponto de vista metodológico,
pouco se presta a tal ensino. " O coração agita-se por si mes­ ela apresenta uma contribuição perfeitamente original. Com
mo e por um movimento que precede toda a deliberação quando Hume, de fato, a frente de combate é deslocada. Por mais ener­
o objeto que se lhe apresenta é realmente um objeto tocante [ . . . I gicamente que os campeões da "estética do sentimento” tenham
O nosso coração está feito, organizado para isso. Sua atividade defendido a especificidade do sentimento c afirmado o seu ime-
precede, portunto, todas as conclusões (raison^etnasis), assim diatismo, jamais chegaram ao ponto de contestar o “ruisonne-
como a atividade do olho e do ouvido as antecede ein suas sen­ meni” como tal, questionar a “ razão” em sue função fundamen­
sações. É tão raro ver homens nascidos seni o sentimento de que tal. O conflito gravitava em torno da disjunção (Trennung)
eituo falando quanto é raro encontrar cegos de nascença, Mas das faculdades, não de uma contestação ou de um aviltamento
seria impossível comunicá-lo àqueles que não o possuem, como da razão. Enquanto faculdade do pensamento lógico e da pro­
é impossível dar visão e ouvido a quem nunca os teve ( . . . ) Cho­ va, do raciocínio causal sobre o qual repousa todo o nosso
ra-se numa tragédia antes de haver discutido se o objeto que conhecimento da realidade, ela mantinha-se à margem de con­
o poeta aí nos apresenta c um objeto capaz de comover por si testação. Foi nessa direção, precisamente, que Hume transpôs
mesmo e se está bem-imitado. O sentimento ensina-nos o que uma etapa decisiva. Ele ousou levar a luta até o próprio coração
há na tragédia antes que tenhamos pensado em examiná-la [ ...] das defesas do adversário, querendo assim demonstrar que, jus­
Se o mérito mais importante tios poemas c dos quadros fosse es­ tamente onde o racionalismo colocava seu orgulho e sua força,
tar em conformidade com as regras redigidas por escrito, po ê aí que se encontra, pelo contrário, o ponto fraco de sua po­
der-se-ia dizer que a melhor maneira de julgar de sua excelência sição, Não cabe mais agora ao sentimento justificar-se perante
assim como o lugar que devem ocupar na estima dos homens o tribunal da razão; a razão é que se vê agora citada perante
seria através da discussão e da análise. Mas o mérito mais im­ o foro da sensação, da ''impressão’* pura, a fim de responder
portante dos poemas e dos quadros é o de nos agradai ; e todos aí por suas pretensões. E a sentença pronuncia que todo o poder
os homens, com a ajuda do sentimento interior que há neles reivindicado pela razão pura era um poder ilegítimo e contra
conhecem sem saber as regras se as produções das artes são a natureza, um poder usurpado, A razão perde não só a sua
bous ou ruins.” 'N> posição soberana como deve igualmente, em seu próprio terreno,
Agora que o ”gosto" já não é coordenado nem está su­ no domínio do conhecimento, abdicar de sua função de líder
bordinado às operações lógicas da dedução c da prova mas e ceder a primazia à imaginação. Houve, pois, uma permuta
i/olueudo no mesmo plarm, cm sua imediação (Unmiitelbarkeit). de papéis na batalha pela fundação da estética. Enquanto, no

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:omeço, Et imaginação só linha ^u t tutar por reconhecimento com efeito, tratar da "coisa em si” e de sua natureza absoluta;
e a igualdade de direitos, ei-la agora definida como a mais fun­ enuncia tSo-somente uma relação que subsiste entre os objetos
damental das faculdades da alma, a faculdade dirigente e do- e nós próprios, sujeitos perceptivos, sensíveis e judicantes. Essa
minante a que devem sumbeter-se todas as outras. As conclu­ relação pade, em cada caso particular, ser verdadeira” sem
sões impõem-se por si mesmas no tocanle à edificação da esté­ que por isso seja sempre e estritamente a mesma, pois a natu­
tica, da "filosofia do belo", e Hume. aliás, aduziu-as explicita­ reza e. portanto, a verdade de uma relação jamais dependem
mente no seu ensaio intitulado Of the standard o} taste [Do pa­ de apenas um dos dois membros que ela une mas da maneira
drão do gosto], É verdade que a estética deve ser entregue ao como eles se determinam reciprocamente. A referência ao sujei­
cepticismo se se entender por isso renunciar a normas univer­ to valorativo e Volítivo não é, portanto, algo dc puramente
sais e necessárias, impondo-se o tempo todo o todo indivíduo exterior ao conteúdo e ao sentido do juízo de valor: só eta pode
pensante. Em nenhuma parte é mais fácil refutar a pretensão determinar-lhe o conteúdo e constituir-lhe o sentido. Se esse
de reger assim a verdade c a necessidade do que no domínio ponto é bem entendido, dele resulta para o juízo estético uma
da estética, quando a experiência cotidiana nos ensina que não primazia, um privilégio particular cm relação ao juízo lógico.
existe nenhuma escala fixa dos valores estéticos nem jamais Esse privilégio não depende de 0 juízo estético realizar mais,
existitu, De uma época a outra, de um indivíduo a outro, varia mas de exigir menos do que o juízo lógico. Uma vez que se
o critério que aplicamos à avaliação do belo e é uma tarefa bem opõe a toda falsa generalização, em que quer ser um enunciado
vã pretender extrair desse fluxo e desse caudal dc opiniões al­ não acerca dos objetos como tais mas sobre a nossa relação
gum modelo que ostente o limbre da verdade c da validade. com os objetos, ele pode atingir aquela "adequação” l Angemes■
Mas, embora reconhecendo essa variabilidade, essa relatividade senheit) que as ciências da realidade objetiva esforçam-se em
de julgamento do gosto, convém considerar que ela não contém vão por alcançar. O sujeito individual, se é evidente que rrão
para a estética os perigos que parece apresentar para a lógica e pode arrogar-se nenhuma jurisdição sobre as coisas, nem por
para as ciências puramente racionais. Essas não querem nem isso deixa de ser o único juiz possível e autorizado dos seus
podem renunciar a algum critério objetivo dado na natureza próprios estados, e é isso, em última análise, o que o juízo esté­
das coisas. Ambicionam conhecer o próprio objeto, na pureza tico nos quer informar. Ele pode, em suma, obter muito mais
do seu em si, e descrever suas determinações essenciais. Elas porque ambiciona muito menos. O entendimento pode errar
consideram, portanto, que lhfcs é sonegado o seu legítimo fruto porque o seu critério não está unicamente em si mesmo, mas
e que estão ameaçadas em suas próprias metas se o cepticismo também na natureza das coisas a que ele se refere e que quer
opuser a (ais investigações barreiras fixadas de uma vez por "encontrar" de qualquer maneira. O sentimento não está ex­
todas. No domínío das ciências racionais, o cepticismo só pode posto a semelhantes erros porque tem em si mesmo o seu con­
ser, em todo caso, um princípio negativo e dissolvente. Mas teúdo e a sua medida. "Todo sentimento está certo; porque
a situação é bem diferente desde que as nossas atenções con­ o sentimento a nada se refere além de si inesmo e é sempre
centrem-se na esfera dos sentimentos e dos puros juízos de real, onde quer que um homem esteja consciente disso. Mas
valor, Um juízo de valor que se considere correto não pretende, nem todas as determinações do entendimento são corretas por­

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que têm uma referência a algo além delas mesmas, a saber, aos humana entendida não como um conceito lógico universal ou
fatos reais, os quais nem sempre estão em conformidade cora um ideal ético e estético mas, de fato, como a que caracteriza
esse padrão. Dc mil julgamentos diversos formulados a respei­ uma determinada espécie biológica. Se os indivíduos diferem
to de um estado de coisas objetivo, só existe um único que é .ms dos outros, eles, ajustam-se, porém, apesar de suas diver­
o certo e o verdadeiro; a grande dificuldade está em descobri-lo gências, no sentido de que a própria variação possui uma am­
e demonstrá-lo. Em contrapartida, mil sentimentos e aprecia­ plitude e uma lei determinadas. Daí resulta essa concordância
ções diferentes relativos ao mesmo objeto podem ser todos cor­ relativa que podemos constatar invariavelmente, como um fe­
retos. Com efeito, o sentimento não pretende apreender e defi­ nômeno dado, entre os julgamentos estéticos. Por mais ocioso
nir algo de objetivo mas exprimir uma certa concordância (con­ que seja querer estabelecer normas absolutas, não deixaremos,
formidade ou relação) entre o objeto e os órgãos e as faculda­ no entanto, de descobrir uma certa regularidade empírica, uma
des do nosso espírito, ê por isso que podemos, num sentido, média empírica, por assim dizer. A diferença continua sendo
julgar ‘'objetivamente'' a beleza, porque ela é, justamente, algo possível no plano abstrato mas torna-se desprezível in concreto.
de um absoluto subjetivismo, não unia coisa mas um estado em Quem pretendesse situar no mesmo nível, sob a relação do
nós mesmos. Beauty is no quality in things lhetnselves; it exisis gênio e do estilo, Ogilby e Milton, Bunyan e Addison, não se
merely in the mind which contemplates them, and each mind exporta, sem dúvida, a uma refutação racionalmente fundamen­
perceives a difierent beauty." 31 tada, mas o seu julgamento não passaria por ser menos extra­
Todos os indícios de validade universal parecem estar en­ vagante do que se quisesse comparar um charco ao oceano ou
tão inteiramente extirpados do julgamento estético; mas se um montículo de térmitas ao pico de Tenerife.23 A conformi­
Hume, tanto na estética quanto na lógica, abandona toda uni­ dade a que o gosto, como sensus communis, pode aspirar não
versalidade teórica, nem por isso entende privar-se da univer­ se deixa, portanto, deduzir nem demonstrar mas assenta, de
salidade prática. Num plano paramente conceptual, deve ser fato, numa base melhor e mais sólida do que aquela que a
entendido, em toao caso, que o sentimento estético e a apre­ especulação jamais lhe teria podido fornecer. Percebe-se até,
ciação estética só podem valer no interior cessa mesma esfera na verdade, que, de um ponto de vista puramente empírico, o
subjetiva. Entretanto, se nesse caso tampouco se trata de uma acordo efetivo entre julgamentos produz-se mais depressa e com
verdadeira conformidade, dc uma identidade ro sentido lógico mais segurança no domínio do gosto do que no do conhecimento
do termo, entre os sujeitos, isso não significa a existência dc racional e puramente filosófico. Os sistemas filosóficos não va­
uma uniformidade empírica, a qual tampouco permita às ine­ lem muito mais do que para a sua época, seu brilho dissipa-se
vitáveis diferenças de sentimento e de julgamento escaparem bem depressa ao ser eclipsado por um novo aslro em ascensão,
a todo e qualquer critério. Tal critério não nos é dado a priori, ao passo que as grandes obras da arte clássica suportam muito
evidentemente, pela "natureza’' do belo, mas como uma rea­ melhor e com mais segurança o teste do tempo. Por mais inti­
lidade de fato pela natureza do homem. Assim é que os cri­ mamente ligadas que pareçam estar à sua época, por mais
térios do gosto, íto vez de multiplicarem-se ad infiniíum, man­ inexplicáveis que sejam fora das condições espirituais que as
têm-se dentro de limites fixados, precisamente, pela natureza viram nascer, não é menos verdade que essas condições não

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impõem limite nenhum aos efeitos das obras de arte. Pelo con­ sença pura, 0 goslo não é suscetível, sem dúvida, de nenhum.,
trário, lançam uma ponte sobre os séculos e propiciam o mais outra maneira de defini-lo e de fundamentá-lo, é um "je ne sais
seguro testemunho do fato de que, se o pensamento dos homens quoi"; mas teremos um conhecimento indireto de “ meognosd-
muda, sua vida afetiva e, por conseguinte, sua sensibilidade es­ vel” se relacionarmos essa presença com o seu passado, Ein
tética permanecem, no fundo, constantemente as mesmas. A todo julgamento de gosto condensam-se inúmeras experiências
pretenso verdade objetiva que devíamos encontrar nas obras dos anteriores. Esses julgamentos não são mais redutíveis a consi­
pensadores antigos volatilizou-se, ao passo que o fascínio que a derações especulativas que a um simples "instinto : o instinto
poesia antiga exerce sobre nós não se desfaz e apodera-se de do belo seria apenas uma qualitas occulta, à qual é tão estéril
nós, como sujeitos sensíveis, com uma força sempre igual. " Aris­ recorrer em psicologia quanto em física — e de igual modo
totle and Plato, and Epicurus, and Descartes, may successively severamente reprovado e excluído. Escapamos a esse duplo pe­
yield to etch other: but Terence and Virgil maintain an univer­ rigo ao encontrar uma explicação puramente empírica para esse
sal. undisputed empire over the minds of men. The abstract pretenso “ instinto” , reconhccendo-o precisamente como uma rea­
philosophy of Cicero has lost its credit: the vehemence of his lidade derivada, produzida, não-originária e fixa. Desde o ins­
oratory is still the object of our adm iration"23 tante em que abrimos os olhos para a luz do dia, recebemos
Sem dúvida, Hume só concede à estética um mínimo de inúmeras impressões, todas acompanhadas de um sentimento ou
"validade universal” (Allgemeingültigkeit), com o qual a menta­ juízo de valor determinado, de uma concordância ou discordân­
lidade empírica dos pensadores setecentistas não podia dar-se cia. Todas essas observações e experiências, acumulando-se em
por satisfeita. Embora reconhecendo a experiência como fonte nossa memória, apoiando-se umas nas outras e condensando-se
do julgamento estético, tentara ainda assim colocar essa mesma numa nova expressão de conjunto, constituem aquilo a que cha­
experiência em bases mais sólidas e conferir-lhe um sentido mamos 0 sentimento do belo. Esse sentimento é certamente “ irra­
"objetivo" determinado. Mas o problema é, sem dúvida, deslo­ cional” no sentido de que, na experiência pura do belo. a lem­
cado dessa forma, porquanto o estudo não pode limitar-se dora­ brança dessas experiências anteriormente vividas é apagada, de
vante aos fenômenos estéticos como tais e à sua simples des­ que a realidade atual (die Aktualitàt) da experiência não nos
crição: ele deve retornar aos alicerces desses fenômenos e tentar pode dar, portanto, nunhuma idéia da sua produção, da sua
mostrar seu fundamentum in re. Onde buscar esse fundamento, origem genética.114 Mas para Diderot essa origem, se não é um
onde estabelecê-lo com mais segurança sertão vinculando a bele­ fenômeno imediatamente demonstrável, constitui, não obstante,
za à finalidade, senão mostrando ser ela apenas a expressão ve­ um postulado aduzido das premissas gerais do empirismo.
lada de uma tal finalidade? Foi Diderot quem, na sua doutrina “Q u’est-ce donc que le goût? Une facilité acquise par des expé­
estética, revalorizou esse tema. Segundo ele, o gosto é simulta­ riences réitérées, à saisir le vrai ou le bon, avec la circonstance
neamente subjetivo e objetivo: subjetivo porque repousa tão-só qui le rend beau et d'en être promptement et vivement tou­
no sentimento individual, e objetivo porque esse sentimento nada ché.“ ' 1 A própria redação dessa definição indica que Diderot,
mais é do que, justamente, o resultado e o eco de centenas de ao esforçar-se por apresentar urna definição empírica do belo,
experiências individuais. Enquanto simples falo, em sua pre­ corre uma vez mais o risco de deixar escapar o seu modo dv

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ser específico e de deixá-lo díssolver-se na perfeição física ou em ambos os casos o critério utilizado pertence a um uutru
moral, na finalidade objetiva. " Michelangelo deu à cúpula de plano, diferente daquele em que se situa o fenômeno da bokvu.
São Pedro a mais bela forma possível. O geòmeira De La Htre, Como a "razão" na estética clássica, o "entendimento" leva fi­
impressionado com essa forma, traça-lhe a projeção e descobre nalmente a melhor na estética empírica, A imaginação é reco­
que ela contém a curva de máxima resistência. O que foi que nhecida, por certo, nessa doutrina como uma faculdade uuiònu-
inspirou essa curya a Michelangelo, entre uma infinidade de ma, como um poder particular do espírito; procura-se até ver
outras que ele poderia ter escolhido? A experiência da vida aí a poderosa chave, a raiz psicológica de toda atividade, mes­
cotidiana. £ eta que sugere ao mestre carpinteiro, tão segura­ mo a puramente teórica. Mas essa elevação aparente ameaça, por
mente quanto ao sublime Euler, o ângulo do esteio com a parede sua vez, nivelá-la, precisamente: após ter conquistado a esfera
que ameaça ruir; foi ela que lhe ensinou a dar à asa do moinho teórica, sofre-lhe agora a contaminação. Não era o bom meio
a inclinação mais favorável ao movimento de rotação; é ela que de estabelecer a auionomia do belo e a autarquia da imagina­
faz freqüentemente entrar em seu cálculo sutil os elementos que ção. O impulso intelectual requerido para alcançar essa mela
a geometria acadêmica não poderia apreender. " 26 Nessa defi­ foi recusado tanto ao racionalismo estético quanto ao empirismo
nição empírica e prática, o belo não só correrá o risco de ser re­ estético. Esse impulso só podia vir de um pensador que não se es­
duzido, quanto ao poblema de sua origem, à "expérience journa­ forçaria nem por analisar teoricamente o belo nem por reduzi-lo
l i è r e ao cotidiano, ao útÜ, mas também de ser finalmente a regras, nem por descrevê-lo psicologicamente e explicá-lo ge­
confinado nessa esfera? É assim que Diderot só enxerga na neticamente: um pensador que viveria inteira.nente na contem­
beleza do corpo humano a aptidão para cumprir com a máxima plação da beleza, em seu poder e sob o seu jugo. Tal pensador
eficiência as funções essenciais da vida. “Le bel homme est celui só apareceu no século X V Ilt com Shaftesburyi por isso coube
que la nature a formé pour remplir le plus aisément qu'il est à sua doutrina a tarefa de fundar a primeira filosoftu verda­
possible deux grandes fonctions: la conservation de Í’individu, deiramente completa e autônoma da beleza.
qui s'étend à beaucoup de choses, et la propagation de l’espèce,
qui s'étend à une.” 17 Vê-se aqui que esse empirismo não con­ A estética da intuição e o problema do gênio
seguiu derrotar o perigo que queria superar e que não evitou os
escolhos contra os quais a estética racionalista arriscara-se a A estética inglesa do século X V III não enveredou pelo ca­
naufragar. Quando já não se trata apenas de descrever a beleza minho do classicismo francês nem pelo de Hume. Ê evidente a
mas também de fundamentá-la, isso só pode ser conseguido influência constante dessas duas correntes de pensamento na po­
apoiando-se no "verdadeiro", considerando-se o belo uma forma sição e no desenvolvimento dos problemas. Como toda a lite­
encoberta do verdadeiro. A norma da verdade, simplesmente, ratura inglesa setecentista, a estética também tem os olhos vol­
deslocou-se: o seu conteúdo não se baseia mais em proposições tados para o modelo, para o ideal prestigioso oferecido pela tra­
a priori, em princípios universais e necessários, mas em expe­ gédia francesa clássica; em muitos detalhes, ela ainda é deter­
riências práticas, no cotidiano e no útil. Mas o sentido e o valor minada por esse modelo. E, no que se refere ao movimento
próprios do belo não são afetados pela mudança de definição; empirista, era-lhe tão mais diíícil desprender-se dele porque

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seus temas essenciais já estavam contidos nas primeiras abor­ Aristóteles, como Plotino, Sêneca, Marco Aurélio e Epiteto. que
dagens do problema estético. De um modo geral, esse problema Shaftesbury reinicia diretamente o diálogo em seu diário. Nadti
vinha sendo abordado e tratado sob o ponto de vista psicoló­ repugna mais ao seu pensamento do que reduzir a filosofia u
gico. Na Inglaterra do século X V III, parecia não poder haver a um sistema de conceitos lógicos ou a um conjunto heteróclito
menor hesitação nem vacilação no tocante ao verdadeiro método, de idéias científicas. Ele quer restaurar e encarnar o seu ideal
o único "natural", a aplicar a essas investigações. Tudo indicava original, o ideal da pura doutrina da sabedoria, ê por esse ca­
que Locke, Berkeley e Hume tinham vencido defini li vãmente a minho, não pelo da especulação abstrata ou da observação em­
batalha do empirismo radical; agora, já não se tratava mais de pírica, que Shaftesbury aborda os problemas da estética. Para
discutir-!he os princípios, mas de dar a esses mesmos princípios ele, são problemas de vida pessoal muito antes de tornarem-se
a maior extensão, de aplicá-los progressivamente a novos domí­ problemas da estética. Shaftesbury não vê a estética exclusiva­
nios e a fenômenos cada vez mais complexos da vida da alma. mente, nem mesmo primordialmente, na perspectiva da obra de
Entretanto, se a estética inglesa logrou libertar-se e afastar arte, mas tem necessidade de uma estética como de uma ver­
progressivamente a sua problemática do fascínio do empirismo, dadeira regra de vida, como uma lei regendo a orgtmi?ação do
é porque ela tinha a possibilidade de vincular-se diretamente e universo íntimo, da personalidade espiritual. A filosofia, con­
alimentar-se regularmente numa doutrina filosófica que não se cebida como pura doutrina da sabedoria, permanece intrinse­
constituíra sob a influência do pensamento empirista. Os verda­ camente imperfeita enquanto não tiver encontrado numa doutrina
deiros mestres da estética inglesa são discípulos e sucessores de do belo a sua conclusão e a sua realização concreta. Pois não
Shaftesbury. Contudo, o próprio Shaftesbury não formou a sua pode existir verdade autêntica sem beleza nem beleza sem ver­
dade. A verdadeira chave da filosofia dc Shaftesbury rcveia-se
visão do mundo a partir deste ou daquele modelo a que podia
com toda a clareza; “ All beauty is truth* (Toda beleza é ver­
recorrer facilmente em sua época. Foi aluno e depois discípulo
dade). Tomada à letra, essa tese em nada se distingue da exi­
de Locke, mas somente lhe deve certos conteúdos do seu pensa­
gência de objetividade que a estética francesa clássica tinha re­
mento, ao passo que a forma do seu espírito e de sua doutrina
presentado: quase não parece scr mais do que uma tradução, um
só a ele mesmo pertence. Não sente nenhuma afinidade nem pa­
decalque da tese de Boileau; ‘ Rien n’est beau que le vrai" (Só o
rentesco com a filosofia do seu tempo; procura para a sua dou­
verdadeiro é belo). Contudo, essa concordância SÓ é aparente; as
trina outros modelos intelectuais e outras fontes históricas. Basta
mesmas palavras exprimem aqui e ali pensamentos inteiramente
folhear o Diário filosófico de Shaftesbury para perceber-se de diferentes. Ao proclamar que a beleia é verdade, Shaftesbury
imediato como ele está longe do seu tempo. Dificilmente se sur­ não entende a verdade no sentido de um conjunto de conheci­
preenderá nesse diário uma ressonância, um eco remoto dos mentos tcóricos, de leses e de juízos redutíveis a regras lógicas
problemas que agitam essa época, dos dilemas intelectuais e prá­ fixas, a conceitos e princípios fundamentais. "Verdade", para ele,
ticos que cia enfrenta. Seu pensamento paira acima de todas as significa acima de tudo a harmonia interna do universo: harmo­
questões que agitam a época para retomar um contato direto com nia que não se pode conhecer através de simples conceitos nem
a Renascença e o mundo antigo, é com os antigos, com Platão e apreender intuitivamente colecionando e acumulando experiên­

M2 413
cias particulares, mas com a qual c possível adequar diretamente Com o pensamento de Shaftesbury, a estética, sc a cmnpii
nossas yidas compreendendo-a intuitivamente, Essa espécie de icirmos à forma que lhe tiniiam dado 0 sistema clássico c n.s teo­
adequação da vida e da compreensão interior nos é propiciada rias empiristas, vê-se transferida para um outro plano. Na vci
pelo fenômeno do belo. Nesse fenômeno, é abolida toda fronteira dade, atingimos aí um ponto crítico do seu desenvolvimento,
entre o mundo “interior" c o mundo “exterior”; descobre-se que um ponto em que os espíritos, tal como os problemas, devem
a mesma lei universal rege os dois mundos e que e essa lei que repartir-se. Bem entendido, essa separação não se estabelece de
eles expressam, cada um a sua maneira. Os “números inkriores" imediato e, uma vez consumada, não se impõe com todo o rigor,
(.interior numbers) que encontramos em cada fenômeno do belo Nos sucessores de Shaftesbury -— em ríuicheson, em Ferguson,
desvendam-nos, ao mesmo tempo, os mistérios da natureza e do em Home — os princípios originários não se apresentam, em
mundo físico, que só na aparência é um “mundo exterior”, ou absoluto, numa perfeita pureza, uma vez que se misturaram e
seja, uma simples cotsa dada. um efeito material. A verdade au­ acomodaram, à sua revelia, a uma série de idéias provenientes
têntica e mais profunda desse mundo reside no principio opera­ de outras fontes. Trata-se, porém, de um tema que conservou
tivo que nele vive, encarnado e refletido, em certa medida e com Ioda a sua força na insipidez dessa mistura eclética. Sob a in­
uma força diferente, por cada uma de suas criaturas Ê essa es­ fluência da doutrina de Shaftesbury, deslocara-se o próprio cen­
pécie de "reflexão”, despojada de toda e quatquei modiação ló­ tro da problemática estética, o seu foco especulativo. Na estética
gica, revelando-nos, pelo conlrário, o mundo interior ; o mundo clássica, a questão inicial estribava-se na obra de arte, que se
exterior estreitamente entrelaçados, que nos é proporcionada na tratava como uma obra da natureza e tinha que ser conhecida
intuição do belo. Toda beleza fundamenta-se na verdade c a ela por meios análogos. Procurava-se uma definição da obra de arte
remete-se, mas, por outro lado, o sentido pleno, o sentido con­ que fosse comparável à definição lógica, capaz como esta última
creto da verdade não poderia manifestar-se em nenhum domínio de definir tai ou tal dado por sua espécie, indicando o seu genus
senão o da beleza. Assim, Shaftesbury transpõe o impera tive proxifnum e a sua differentia specifica. A doutrina da tnvaria-
estóico — “ ô/toXoyov/Uvati rjj ipóaet Çf/v ” — da ética pan bilídadc dos gêneros e das regras estritamente objetivas, impon­
a estética, É jior mediação do bdo que o-humem alcança a mais do-se a cada um dentre eles, nasceu desse esforço para se chegar
perleiJa harmonia enlrc si e o mundo, porque nào só compreen­ a ta! definição, A estética empirista distingue-se desse ripo de
de mas experimenta, sabe que toda urdem e toda regularidade, investigações nào só por seu método mas também por seu objeto.
toda unidade e toda lei repousam na mesma forma originária, Com efeito, ela não se ocupa diretamente das obras, de seu
que i i m í ó c mesmo todo exprime-se imediatamente tanto cm st ordenamento, de sua classificação e suhsunção, mas do sujeito
mesmo quanto em todo ser. A verdade do cosmo toma a palavra, da fruição artística, cujo estado interior ela quer conhecer c
por assim dizer, no fenômeno do belo; em vez de manter-se fe­ descrever por seu meios. Não é a elaboração, a simples forma
chada em sí mesma, ela ganha expressão e discurso, esse dis­ da obra como tal que retém aqui a «tenção mas o conjunto de
curso no qual o seu sentido, o seu togos próprio, revela-se ple processos psíquicos nos quais se realizam a experiência e a apro­
namente pela primeira vez. priação íntima da obra de art? i-sses processos devem ser en­

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fatizados até em seus mínimos detalhes e reduzidos a seus ele­ preciso que ele crie esse modelo interior que é o ponto de par­
mentos primordiais. Em Shaftesbury, em contrapartida, se ques­ tida de toda obra de arte aulêníica. Descobre-sc então no homem
tões dessa ordem nâo são descartadas de fornia nenhuma, pelo a sua verdadeira natureza prometéica: ele torna-se "segundo cria­
menos nunca se encontram no centro do seu interesse pessoal, dor depois de )úpiter".ís O caminho que leva à contemplação c
filosófico. Nunca se preocupa com a classificação nem com a à compreensão da essência divina passa necessariamente por essa
análise das obras, muito menos ainda com os estados de alma mediação. É ao artista, em primeiro lugar, que dá incessante­
que se desenrolam no indivíduo que as contempla; seu obietivr mente o mundo à Luz em pequeno, que o gera, o produz sob
não é a elaboração lógica de conceitos nem a descrição psicoló­ forma objetiva, é a ele que 0 universo torna-se inteligível como
gica. O belo, para ele, é uma revelação de uma ordem muito obra daquelas mesmas forcas que sente em si mesmo. Todo ser
diferente, brotando de uma outra fonte e visando a uma fina­ singular nada mais é para ele do que um signo, um hieroglifo do
lidade fundamentalmente diversa. Na intuição do belo cumpre- divino: ele lê "a alma do artista no seu A po loV l>
se, para os homens, a passagem do rnundo das criaturas para o Doravante, a par do raciocínio e da experiência, uma
mundo da criação, do universo como soma dc toda a realidade terceira e fundamental força entra em cena, a qual, segundo
objetiva para as forças criadoras que o constituíram e susten­ Shaftesbury, supera todas as outras e oferece-nos, enfim, as
tam-no interiormente, Essa intuição nada deve à simples análise verdadeiras profundidades da estética, Nem o pensamento dis­
da obra de arte nem â introspecção do processo imilaíivo que se cursivo”, tateando pesadamente dc um conceito a outro, nem a
realiza no sujeito senciente quando da contemplação e da frtiíção observação lúcida e paciente de fenômenos particulares permi-
artísticas. Com tudo isso, ainda estamos apenas, segundo Shaftes­ iem atingir essas profundezas. Elas só sao acessíveis a um 'en­
bury, na periferia e não no centro do belo. Não se procurará esse tendimento intuitivo” que não vai do indivíduo ao todo mas do
centro na fruição e na sensação mas na elaboração e na criação. todo ao indivíduo. A idéia de um entendimento intuitivo, de um
A simples receptividade continuo sendo insuficiente e impotente, intellectus archeíypus, foi tomada por Shaftesbury do seu verda­
porquanto nlo nos conduz à espontaneidade que é fonte pró­ deiro modelo filosófico, que é a doutrina plotiniana do “belo
pria e original do belo. Mas uma vez descoberta essa fonte, rea- inteligível". Mas ele aplica esse pensamento num sentido novo
liza-se a verdadeira, a única sfnlese possível, não só entre su­ c confere-lhe um ímpeto e uma ênfase que não possuía em
jeito e objeto, entre o eu e o mundo, mas também entre o homem Platão nem eti Plotino. Com efeito, ele quer, precisamente, de­
e Deus. Pois a oposição entre o homem e Deus é abolida desde sarmar a mai; grave objeção levantada por Platão contra a arte
que pensemos o homem não mais simplesmente cm sua existên­ pira desqualificá-la num sentido filosófico. A arie não é, de ma­
cia de “criatura" mas segundo a força criadora originária que o neira nenhuma, mimesis no semido em que se ateria ao aspecto
habita, não como ser criado mas como criador. Para que o ho­ exiericr das coisas, à sua simples aparência, procurando copiá-las
mem revele-se verdadeiramente criado à imagem de Detis não tão fielmente quanto possível. A forma ds "imitação1' que lhe
basta que, demorando-se no círculo das coisas criadas, da rea­ é própria pertence a uma outra esfera e, por assim dizer, a uma
lidade empírica, lente copiar-lhe a ordem e os contornos; é outra dimensão, porquanto não imiia simplesmente o produto

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mas o ato de produção, não o que é engendrado mas a própria na metáfora e nu figura.*1 Mesmo nesse processo diverskmhta,
gênese, Poder mergulhar direlamente nessa gênese e participar entretanto. o £Ínio nem sempre sai da esfera da intelectualidade,
nela intuitivamente, eis a verdadeira natureza c o mistério do na verdade, da do “espírito", muito simplesmente. Todo o acen­
gênio, segundo Shaftesbury. E foi assim que o problema do gê­ to recai então sobre a sutileza, a penetração e a presteza do
nio se converteu no genuíno problema fundamental da estética. espírito, todas essas virtudes combinadas na idéia dc delicadeza.
Nem a análise lógica nem a observação empírica podiam con­ Shaftesbury está igualmente distanciado dessas duas concepções:
duzir a esse problema; só uma "estética da intuição” podia ele eleva, com efeito, com a maior lucidez e a mais nítida cons­
dar-lhe todo seu peso e seu verdadeiro conteúdo. Uma vez mais, ciência, a noção de gênio acima do plano da simples sensação e
é prudente abster-se de querer decifrar o desenvolvimento das do simples juízo, acima da precisão, do sentimento, da delicade­
idéias e das doutrinas partindo muito simplesmente da história za, a fim de reservá-la para o domínio das forças produtivas,
de uma palavra. Shaftesbury não criou a palavra “gênio"; ser­ constitutivas e criadoras. Desse modo, Shaftesburj deu ao desen­
ve-se dela como de um (ermo já conhecido e há muito familiar volvimento futuro do problema do gênio um centro filosófico
em estética, Mas foi o primeiro que, não comente em usar bólido, conferiu-lhe uma orientação fundamental claramente defi­
esse termo, liberlou-o da confusão e da ambigüidade de que vinha nida. que depois será conservada, de um modo lúcido e firme,
sofrendo até então para dar-lhe um sentido muito nítido e espe­ pelos verdadeiros fundadores da teoria estética, apesar de todas
cificamente filosófico. Na estética clássica, sente-se e ressalui-sc as flutuações dos debates de filosofia e de psicologia populares. £
em primeiro lugar o parentesco do conceito de gênio com inge- daí que parte o caminho direto que leva ao problema fundamen­
nium, termo este que equivale à "razão", ou seja, à faculdade tal da história do pensamento alemão do século X V I11: ít Drama­
fundamental e verdadeiramente determinante da vida intelee* turgia de Hamburgo, de Lcssing, e à Crítica do juízo, de Kant,32
tual. O gênio é a sublimação suprema da razão, a própria essên­ A doutrina da espontaneidade da criação artística postu­
cia de todos os seus poderes e aptidões: "O gênio é a razão lada por Shaftesbury não teria podido, entretanto, exercer a
sublime."30 O desenvolvimento ulterior da teoria realizado por influência que se conhece, precisamente nesse momento, se o
Bouhours e que conduziu a uma nova orientação da estética, desenvolvimento imelectual puramente teórico que se realizava
ü estí'ica da déücaiesse, pretende superar essa unilateral idade. nela não tivesse encontrado um complemento e um apoio muito
Ele não vê no gênio a simples promoção, o prolongamento di­ firme num outro movimento de idéias. A partir do instante em
reto do "bom senso”; a função que lhe atribui é diferente e que. na literatura inglesa do século X V II t, irata-se do problema
nitidamente mais complexa. O seu poder não está tanto em do gênio e procura-se determinar a posição do gênio em relação
apreender a simples verdade tfas coisas, para exprimi-las de ás “ regras", o curso abstrato do pensamento logo retorna ao
maneira tão precisa quanto possível, quanto em saber pressen­ concreto. Dois nomes, os de Shakespeare e Milton, apresentam-
tir as relações obscuras e escondidas. O pensamento "genial” se incessantemente ao nosso espírito, determinando de eerto
(pensamento engenhoso) é aquele q’ie, abandonando o caminho modo os eixos fixos em torno dos quais giram todos os deba­
do hábito e do cotidiano., chega a uma visão nova e surpreen­ tes teóricos que envolvem o problema do "gênio". Ê com a
dente das coisas e compraz-se na expressão "imprópria", a saber, ajuda desses dois grandes exemplos que se procura apreender

418 41.9
a verdadeira e profunda CiSér.^-j J,i genialidade; é neles que nossas almas, ao mesmo tempo em que nos oferecem tambem
se vê realizada o que a tecrii. desuevia como pura potenciali­ o meio de conjurá-!a e apajiguá-la.
dade. Essa referência, esse retorno constante a Shakespeare c a Ê, antes de tudo, uma elaboração, uma paciente realização,
Milton, apresenta i da maneira mais convincente em Conjec­ uma discussão progressiva, metódica, e um esclarecimento dos
turei o« original composition. de Young. Da meditado das princípios estéticos proclamados por Shaftesbury no seu estilo
tragédias shakespearianas c de sua admiração pelo Pun/iso per' rapsódico-invocatório, tal como nos é oferecido por Hutcheson
ãido, extrai Young a convicção de que a criatividade do gênio em seu Inquiry into the original 0} our ideas of beauty and
pochco é indcsciitivcl e ainda menos analisável, segundo os virlue (1726). Foi através desse livro que as idéias dc Shaftes­
habituai? critérios puramente intelectuais, os critérios por assim bury fizeram sua entrada na cultura geral dos letrados da época,
dizer aritméticos do entendimento. Desse modelo de entendi* embora nlo conservassem intatas, evidentemente, no decorrer
mento, o gênio está tão distante quanto o mágico do arquiteto. dessa transfusão, o seu verdadeiro sentido e a sua penetração
Young resume, eum essa palavra, o conjunto da sua doutrina, original. Com efeito, em Hutcheson, as fronteiras que Shaftes­
dc maneira muitü densa e caractcnMiua, Ele tem o sentimento bury tinha tão cuidadosamente estabelecido entre “receptivi­
forte e profundo dessa magia que se mantém oeuha em roda dade*' e “espontaneidade*', entre "sensação" e "intuição", co­
grande obra de aite: é esse sentimento que a sua doutrina pro­ meçam a apagar-se. A expressão por ele escolhida para caracte­
cura vestir de palavras e converter em conhecimento conceptual. rizar a natureza do belo já é por si mesma significativa: ele
Essa magia da poesia mio exige nem tulera 3 mediação das não vé melhor comparação, a fim de expressar o imediatismo
idéias, pois sua verdadeira iorça repousa, justamente, em seu da percepção do belo, que a da percepção sensível. Existe um
imediaiísmo. Shakcspeure não tinha recebido nenhuma forma­ sentido especifico, o qual não é definível ou redutível de outro
ção de letrado, ao passo que dois livros estavam permanente­
modo, para a percepção do belo, da mesma maneira que o
mente abertos diante de seus olhos, di>is livros que ele Mtbia
olho é o sentido específico da percepção das cores, o ouvido o
decifrar melhor do que ninguém: o livro da natureza e o livro
senüdo específico da percepção de sons. A quem não o possui
dos homens.** Essa força elementar donde provinham as tra­
não existe nenhum outro meio de comunicar-lhe 0 objeto por
gédias de Shakespeare parecia estar há muito tempo extinta na
via indireta ou por demonstração, da mesma forma que a exis­
literatura dramáliea inglesa do século X V III, c o supro de vida
tência de cores e de sons só é demonstrável pela consciência
que ele lhe insuflara parecia apagado: mas a teoria procura
efetiva de sua presença.34 O fato de que Hutcheson vincula o
sempre conjurar as grandes sombras e dar-lhes a palavra, pois
sentimento do belo, da harmonia e da regularidade a um “sen­
está persuadida de que a verdadeira nuture/.a do belo só é aces­
sível a uma exploração das verdadeiras "obra:, originais", as tido interno", diferente dos sentidos externos, contrapondo a
quitis são as únicas a deter um poder mágico autêntico, e de estes últimos sua especificidade e sua independência, não per­
que nada há a aprender com imitadores c epígonos. Essas obras mite alimentar ilusões quanto ao nivelamento e à confusão de
não Falam simplesmente ao nosso entendi mento e ao nosso gosto: que o pensamento de Shaftesbury começa sendo objeto. Pois o
eias permitem à tempestade das paixões dar-se livre curso em “genio" pode ser agora definido, de novo, como 0 simples dom

42 í
de um tipo de sensibilidade e assimilado à "delicadeza do Shaftesbury representa, portanto, na sua concepção tanto
gosto (Jeinen Geschmack), Como, por outra parte, Hutcheson da arte quanto da natureza, uma perspectiva puramente dinâ­
mostra-se fiel aos princípios fundamentais de Shaftesbury, de­ mica. Mas cumpre distinguir com extremo rigor esse "dina­
para-se, em sua teoria do “sexto sentido", cora um dilema mismo’’ de outras perspectivas com as quais poderia ocorrer a
aifrcil, de um simples ponto de vista de métode. Heinrich von tentação de aproximá-lo. À primeira vista, parece existir a mais
Stem, em seu Entstehung der neueren Aestheíik [Origem da estreita concordância entre Shaftesbury e Dubos, porquanto
nova estéticaJ, disse da doutrina de Hutcheson que ela sofria, as Réjlexions critiques sur la poésie et ia peinture, de Dubos,
de certo modo. da contradição de um "sentido apriorístico” apenas pretendem justificar e desenvolver plenamente a tese de
uma vez que fundamentava o belo na sensação, ao mesmo tem­ que o valor e o encanto do belo consistem simplesmente na
po em que, por outro lado, descartava toda conseqüência cm- estimulação e elevação dos poderes da alma. Entretanto, Du­
pirista e mantinha a validade universal dessa mesma sensação. bos, ao considerar essa “vivacidade" estética (aesthetische “Reg-
Mas a objeção que é aqui levantada aplica-se ainda mais, evi­ samkeit") somente do ponto de vista do observador e não do
dentemente, à expressão que Hutcheson deu ao seu pensamento ponto de vista do artista, ao ponderar sobre a atividade de
do que ao seu próprio conteúdo. Essa expressão é deficiente e contemplação mas não sobre a de criação, subverte todas as
ambígua uma vez que procura revestir com a linguagem do medidas e todos os valores em relação a Shaftesbury. Ambos
empirismo uma intuição oriunda da estética intuicionista de eslão de acordo apenas na parte negativa c não na parte posi­
Shaftesbury. O que caracteriza o conceito de intuição estética tiva de suas respectivas teses, no que refutam e rejeitam mas
de Shaftesbury í, justamente, o fato de ele recusar toda e qual­ não no que afirmam. Opõem-se a toda tentativa de submissão
quer alternativa entre "razão" e "experiência", entre o a priori do belo a regras precisas, estabelecidas em termos definitivos:
e o a posteriori. A intuição do beío deve abrir o caminho para concedem ao gênio o direito e o poder de quebrar todas essas
a superação desse conflito esquemático que domina toda a (eo- Tábuas da Lei a fim de criarem outras novas, emanadas de sua
na do conhecimento no século X V lll; ela deve colocar o es­ própria autoridade. OpÕem-se a toda tentativa de apreensão da
pírito em posição de arbitrar esse conflito. Para Shaftesbury essência do belo pelo simples "raisonnement", por definições
o belo não é, com efeito, uma idea hrnala. no sentido carte­ conceptuais puramente discursivas e pela decomposição analí­
siano, nem um conceito abstrato da experiência, na acepção de tica dos conceitos. Eles ensinam um outro conhecimento ‘'ime­
Locke. G autônomo e originário, "inato" e necessário, no sen­ diato'' do belo, mas a jonie desse tmediatismo é inteiramente
tido de que não se trata de um simples acidente mas de que diferente em Shaftesbury e em Dubos. Para o primeiro reside
pertence à própria substância do espírito e exprime-o segundo no processo da criação pura, enquanto, para o segunda, deve
um modo perfeitamente específico. O belo não é um conteúdo ser procurada em ccrtos modos do perceber e do conceber que
adquirido por experiência nem uma representação ( Vorstellung) não comporiam outra dedução. Toda a fruição estética deve
que sena, desde o começo, confiada ao espírito em moeda seu nascimento a certas reações que a visão da obra de arte
sonante: é uma direção essencial, específica, uma energia pura e produz no espectador, que se sente arrebatado e extasiado pela
uma função original do espírito.
ebrn, empolgado pelo seu movimento. Quanto mais possante é

422 423
esse movimento, mais intensamente o sentimos e melhor se atin­ frimento e das paixões. Ele não desenvolve, como Shaftesbury,
ge o objetivo a que o artista se propôs. Uma vez que Dubos uma estética intuitiva que se insere no centro do processo ar­
procura assim o movimento peio movimento, faz da intensi­ tístico e tenta revelar seu modo de ser, suas regras e suas me­
dade de excitação que a obra de arte provoca em nós quase a didas interiores, seu ritmo próprio. Propõe uma estética do
uruca medida de valor estético. A qualidade da obra sua na­ “patético'' que examina e confronta os estados interiores, os
tureza e sua maneira de ser própria passam. para ele, a se­ puros pathe suscitados no homem pelas obras poéticas e plásticas.
gundo plano, quando não perdem toda a importância. E ca­ A exigência suprema que devemos fazer ao artista, a regra por
racterístico que Dubos, desde o início de sua obra, ao justi­ excelência, quando não a única, que podemos impor ao gênio
ficar a tese de que o espírito tem suas necessidades, tal como não é a ‘de submeter-se, naquilo que produz, a certas normas
o corpo, e de que o seu instinto mais potente é o de permanecer objetivas, mas a de estar, como sujeito, em tudo 0 que cria, cons­
em constante movimento, não coloca em desíaque fenômenos tante e inteiramente presente, comunicando e impondo aos es­
puramente írrífs/icos mas dá a essa tese uma diferente e mais pectadores suas comoções interiores. "Sejam sempre patéticos e
vasta penetração, Ele não hesita em colocar lado a lado a im ­ nunca deixem os vossos espectadores nem os vossos ouvintes
pressão que nos d causada à vista de uma pintura ou à audição ficar impacientes'1, tal é, segundo Dubcs, a primeira máxima de
de uma tragédia e essas outras emoções que sentimos diante, que 0 esteta deve persuadir o artista. O "paiético das imagens",
igamos, da bárbara execução de um criminoso, de combates não a sua semelhança com os objelos exteriores, eis onde reside
de gladiadores ou de espetáculos de tauromaquia. Em um ou o valor dos quadros ou das pinturas poéticas. Ao retornar à força
outro caso. o homem é movido pelo mesmo impulso: não só primordial da paixão, a estética de Dubos exerceu, sem dúvida,
ele suporta a visão do pior sofrimento mas chega mesmo a uma influência tonificante e fecunda mas cujos limites não são
procurar tal vislo, porque essa o alivia do peso da inatividade, claramente perceptíveis. Uma doutrina tão exclusivamente orien­
da ociosidade. "O tédio que não tarda em acompanhar a ina­ tada para o espectador quanto a de Dubos corre constantemente
ção da alma é um mal tão doloroso para o homem que esse o risco de só medir o conteúdo estético da obra de arte pelo
empreende às vezes trabalhos sumamente penosos a fim de efeito que ela produz sobre o espectador, ate acabar por con-
evitar que o tédio o sufoque e atormente f . ..] Assim, acorremos fundi-los- A obra de arte ameaça então converter-se em simples
por instinto aos objetos que podem excitar as nossas paixões, espetáculo. Que e’a satisfaça a curiosidade, que ela desperte a
embora esses objetos nos causem impressões que nos custam' simpatia do ouvinte, que entretenha e instigue a sua excitação, e
com frequência, noites inquietas e dias dolorosos: mas, cm ge- pouco importa, em definitivo, por que meios é alcançado esse
resultado. A simples força do efeito produzido é um critério
ra 1 05 homcn£ sofrem ainda mais ao viver sem paixões do que
por causa das paixões que os fazem sofrer." w estético válido; o grau de excitação atingido decide do seu valor.
Poesia e pintura nada mais se propõem senão a agradar e como­
Assim, a dinâmica que Dubos quer fundar para compreen­
ver, está aí sua verdadeira grandeza: “ Le sublime de Ia poésie
der a natureza e os efeitos da obra de arte não é, como em
et de la peinture est de ioucher et de plaire." ™ Kant objetou um
Shaftesbury, a da criação de imagens e de formas; é a do so­
dia à ética do eudemonismo quando disse que ela nivelava todos

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os valores morais e finalmente os destruía: aquele que mede o que vive sob o poder da estimulaçao e nem por um instante pode
valor moral de um ato apenas pelo prazer que ek Ibe propor­ escapar a esse poder absoluto, o mundo das formas puras per­
ciona não se interroga sobre a natureza e a origem dc prazer, do manece justamente fechado, pcis nunca a forma poderá ser per­
mesmo modo que ao que quer possuir ouro tanto faz que ele cebida e compreendida no seu sentido próprio e assimilada se não
seja extraído de ums mina ou da areia lavade. Poder-se-ia fazer sc distinguir oo efeito que ela excrce e promove no âmbito de um
uma objeção comparável contra a estética de Dubos que resolve objeto autônomo da reflexão, da pura contemplação estética. A
no sentimento todo conteúdo estético, e todo sentimento na exci­ intuição do beio, que cumpre distinguir cuidadosamente da sua
tação e emoção. O simpies fato dessa emoção torna-se aqui o simples sensação, só é despertada nessa contemplação que não e
único critério seguro que decidc sobre o valor cu o naovalor de uma simples paixão da alma e sim o seu mais puro modo de
uma obra de arte: "Le véritable moyen de connaUre te mérile agir, a sua atividade própria.
d ’un poèmesera (oujours de consulter I'impression qu'il lait." ar A relação da "beleza" e da "verdade", da arte e da na­
Comparada com a de Shaftesbury, a doutrina do gosto de tureza", também recebe dessarte uma nova definição. Shaftes-
Dubos manifesta a mesma diferença característica, fio começo, bury exige mais do que um completo acordo entre esses termos:
ele parece estar inteiramente dc acordo com Shaftesbury ao insis­ ele parece querer aprofundar esse acordo até o ponto de apagar
tir sobre o imediatismo do gosto e ao explicar que se deve julgar todas as distinções, até afirmar sua completa identidade. E, no
a obra de arte "pela via do sentimento’' e não "pela via da dis­ entanto, equivocar-se-ia redondamente a respeito da fórmula:
cussão".38 Mas depois situa o imediatismo em outra parte e jus- "Alt beauty is truth" [Toda beleza é verdade] quem pensasse
iifica-o por uma via inteiramente diferente. Enquanto Shaftes­ que ela ofende a "imanência" do belo e sua autonomia, pois a
bury procura-o no princípio da intuição estética pura, Dubos harmonia que Shaftesbury afirma existir ectre verdade e beleza
limita-se à comparação com a simples sensação. O "gosto" cai não significa, em absoíuto, dependência de uma em relação &
assim para o nível da atividade sensorial que tem o mesmo r.oroe: outra; ela deve, pelo contrário, abster-nos de aceitar uma tal de­
0 nosso sentimento, diz Dubos a certa altura, julga a obra de pendência, uma dependência unilateral. A relação é substancial,
yrie como a nossa língua julga a qualidade e a excelência de um não causal; trata-se õe determinar a essência da natureza e da
ensopado de vitela. A esse fundamento da estética falta todo arte, não a ordem do antes e depcis para suas criações respecti­
princípio seguro para garantir uma distinção entre ''sentimento'’ vas. Segundo Shaftesbury, a arte está ligada muito intimamente à
e mera “sensação", entre "belo" e o simplesmente "agradável". natureza, nada pode atingir e nada deve tentar que ultrapasse os
Píira Shaftesbury, em contrapartida, essa distinção eslá no centro limites da natureza. Mas o íntimo acordo com a natureza que é
de sua meditação, e sua doutrina do "prazer desinteressado" — exigido da arte não significa que ela esteja envolvida na reali­
o mais importante resultado particular com que eie enriqueceu a dade das coisas empíricas e que deva contentar-se em copia-las.
estética — dela proveio. A essência e o valor da beleza não re­ Ê na criação, não na imitação, que se atingirá a "verdade” da
sidem, para ele, na estimulação que ela exerce sobre os homens, natureza, no seu sentido mais profundo; não é a totalidade das
nias no fato de que lhes abre o mundo da forma. Para o animal criaturas mas a força criadora donde promanam a forma e a

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ordem do universo. É nesse único domínio que a beleza deve
nvBjzar com 8 verdade, o artista com a natureza. O verdadeiro jetividade das coisas e dos fatos, que tende a exigência de ver­
artista nao se dedica a recolher laboriosamente «a natureza os dade shaftesburiana, e é dessa natureza que ele faz a norma da
elementos de sua obra: ele imita um exemplo, um modelo pura­ beleza. Quando Kant, na Crítica do juízo, definiu o gênio como o
mente interior que se lhe apresenta como um todo original e talento (o dom natural) que dá sua regra à arte, ele empreendeu,
indivjs.vel, Esse mesmo modelo não é, porém, simples aparência- sem dúvida, o seu próprio caminho para a fundação transcen­
cie harrnonmi.se, por certo, se não com a realidade efetiva das dental dessa proposição, mas o próprio conteúdo dessa definição
coisas, pelo menos com a sua verdade essencial. A criação do concordará perfeitamente com Shaftesbury e os princípios e hi­
artista nao e o simples produto de sua imaginação subjetiva póteses da sua "estética intuitiva”.
um fantasma vazio; o ser que d a exprime c um ser verdadeiro Em meados do século X V III uma nova etapa foi cumprida
ou seja, uma necessidade, uma lei verdadeiramente interior. O no sentido de uma nova e mais profunda concepção da "subjeti­
gemo nao recebe essa lei do exterior, extrai-a, pelo contrário de vidade” estética, quando os problemas estéticos adquiriram ainda
sua própna espontaneidade. Ora, verifica-se que essa lei, que não maior amplitude com o surgimeto, a par da "analítica do belo",
e adotada da natureza, nem por isso deixa de estar em perfeita de uma "analítica do sublime” que rapidamente ganhará contor­
armonia com ela, nao contradiz absolutamente suas formas es­ nos claros e consistentes. Sem dúvida, essa disciplina não trouxe
sences mas, pelo contrário, revela-as e confírnia-as. ''A nalureza nenhum enriquecimento de conteúdo, porquanto se limitou a des­
está para sempre ligada ao gênio. O que um promete, a outra tacar um elemento cujos traços podemos encontrar até nos pri­
certamente o realiza": com essas palavras Schiller talvez tenha mórdios da estética filosófica. A própria doutrina clássica já
dado a mais densa e mais tópica fórmula da concepção de Shaf- o fora buscar à tradição antiga. Boileau traduziu e comentou
tesbury das relações da arte e da natureza. O gê„io não tem que em 1674 o tratado Sobre o sublime, de Dionísios Lcnginos.w
* busca da natureza e da verdade; tem-nas em si mesmo e Mas não se encontra nesse comentário a menor sugestão no sen­
se se mantiver sempre fiel a si mesmo, pode estar certo de que’ tido das novas aplicações e da importância teórica que 0 pro­
e as jamais lhe faltarao. O princípio de "subjetividade”, ao invés blema do sublime encontrará na estética do século X V III, A
dessa forma de imitação da natureza que a estética clássica exi­
philosophical inquiry into lhe origin oj our ideas o{ the sublime
gia conserva, portanto, a sua validade mas. por outro íado, essa
and beuutijul (1756) [Uma investigação filosófica sobre a ori­
subjetividade significará agora algo muito diferente do que é des­
gem de nossas idéias do sublime e do belo], de Burke, constitui
crito nos sistemas empiristas e psicológicos. Se o Eu se resume
a primeira abordagem decisiva do problema. Em primeiro lugar,
nessas teorias num simples "feixe de representações", para Shaf-
a obra de Burke não é sistemática; sua orientação é, sobretudo,
tesbury ele é uma totalidade originária e uma unidade indisso'u-
psicológica. Eíe não apresenta uma doutrina estética pronta e
ve , essa unidade onde discernimos, correta e imediatamente a
acabada mas dedica-se a tratar de certos fenômenos estéticos a
estrutura fundamental e o sentido do cosmo, onde apreendemos
por intuição e simpatia o "gênio do Todo” {Genius des Mis) É cuja análise procede com clareza metódica, descrcvendo-os com
para essa natureza interior ao sujeito", não para a simples ob­ escrupulosa fidelidade. Mas foi justamente essa simples descrição
que o levou a descobrir uma das lacunas da estética teórica, tal
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como vem sendo considerada desde então. Embora se tenha o trário. afirmarmo-nos na sua presença, chegar à exaltação e ao
costume de considerar a ordem, a proporção, a delimitação fixa recrudesci mento de todas as nossas forças: tais são os fatos que
e a simplicidade do contorno como as marcas do objeto belo, se oferecem no fenômeno do sublime e sobre os quais repousa a
essas características não tardam em revelar-se insuficientes para mais profunda estimulação estética. O sublime rompe as fron­
abranger a totalidade dos elementos que constituem o valor es­ teiras da finitude; entretanto, essa ruptura não é vivenciada pelo
tético e a eficáca da arte. Falto a essa definição englobar toda Eu como uma destruição mas como uma espécie de exaltação e
uma classe de fenômenos cuja realidade impõe-se a cada passo de libertação. Pois o sentimento de infinito que o Eu descobre
a toda observação independente que nâo ofusque nenhurr. pre­ em si mesmo fornece-lhe uma nova experiência de sua própria
conceito teórico. Os mais profundos movimentos da alma, as infinidade. Essa concepção, essa definição do sublime ultrapas­
experiências artísticas mais intensas não são despertados em nós sa. portanto, não só os limites da estética clássica mas também o
pela contemplação da ‘'beleza" como proporção serena e cons­ pensamento de Shaftesbury, porque, para este último, mesmo se
trução rigorosa. Uma excitação mais viva manifesta-se q-jando no hino à natureza de The tnorciUsls proclama sua profunda sen­
estamos em presença não da exata delimitação da forma mas, sibilidade a todos os encantos do sublime, a idéia da forma
pelo contrário, da sua discordância, inclusive da sua dissolução subsiste como o princípio estético verdadeiramente fundamental.
completa. Tanto quanto a forma, no sentido do classicismo es­ E a ‘'subjetividade'', no âmbito da estética, também recebe, por­
trito, também o informe (Unfom) possui seu valor e sua legi­ tanto, um novo sentido e íiga-se a novas finalidades. A impor­
timidade estéticos; tanto quanto o ordenado, o desordenado tância da doutrina do subiime para a história das idéias está, do
(Ungeregette), tanto quanto o mensurável, segundo certos cri­ ponto de vista da arte, em sublinhar os limites do eudemonismo
térios, o incomensurável (Masstose). Esse fenômeno, que des- e em escapar à sua estreiteza. O resultado que toda a ética sete­
trói o quadro conceptual da estética de então, recebeu de Burke centista se esforçara em vão por alcançar cai aqui como um fruto
a designação de sublime. O sublime escarnece da exigência esté­ maduro por obra e graça da estética. Para desenvolver a sua dou­
tica da proporcionalidade, visto que a transcendência, a supe­ trina do sublime, Burke deve efetuar uma rigorosa distinção
ração da siniples proporcionalidade, constitui o seu verdadeiro entre dois aspectos do conceito de “prazer estético. Ele reco­
caráter. Ele consiste nessa mesma transcendência, age através nhece c descreve uma espécie de prazer que nada tem a ver com
dela e por meio dela. O que formamos e delimitamos interior­ a simples fruição sensível, nem com essa alegria que experimen­
mente na intuição pura não age somente sobre nós; também tamos na contemplação do belo, experiência que é de uma natu­
existe aquilo que escapa, justamente, a um tal esforço, aquilo reza especificamente diferente. O sentimento de sublime não
que nos submerge em vez de ser modelado e regido pela nossa constitui um grau superior desse prazer ou dessa alegria: opõe-
própria experiência. Em nenhum momento somos mais vivamen­ se tanto □ um quanto à outra. Não se pode caracterizá-lo como
te agarrados do que por esse impalpável, em nenhum momento um simples "prazer'1 (plcasure), porquanto é a expressão de uma
sentimos a força da natureza e da arte do que quando nos apre­ emoção dc nmilo diferente espécie, de um arrebatamento, dc um
sentam c "terrível", Não sucumbir diante do terrível, pelo con­ deleite (ãdighi) singular que não exclui o temor e o tremor mas.

430 431
pelo contrário, os exige e envolve. Existe, portanto, uma fonte de estética clássica jamais realizara plenamente, é verdade, 0 seu
prazer estético puro que se mantém rigorosamente distinto de ideal teórico: em vez da “ verdade da natureza" procura la, sur­
uma simples exigência de felicidade, do instinto de fruição e da gira uma verdade social, relativa e contingente; <vea vez 3as leis
satisfação de necessidades limitadas: " A sort of delight jull of univeisais da razão, certas convenções sociais.42 A teoria do su­
horror, a sort of tranquillity tinged with terror" 41 E há ainda blime reconhece esse perigo. Ela distingue, mais estritamente do
uma outra exaltação e uma outra libertação que se realizam que antes, a "essência” da "aparência", a natureia do hi.bito, a
graças à problemática do sublime. )á não se trata apenas da li­ substância do Eu e suas verdadeiras profundidades dos seus ele­
berdade interior do homem em relação aos objetos da natureza mentos meramente relativos e acidentais. O probema do gênio
e da potência do destino: o sentimento do sublime liberta além e 0 do sublime agem aqui na mesma direção: v3o 'tornar-se os
disso o indivíduo desses milhares de vínculos que fazem dele temas intelectuais do desenvolvimento e da progressiva elabora­
um membro da comunidade e da ordem social burguesa. Na ção de uma nova e mais profunda concepção da individualidade.
experiência do belo também caem essas barreiras: o Eu possui
seus próprios alicerces, sobre os quais se apóia, e deve afirmar-se
em sua independência e em sua espontaneidade contra o univer­ Entendimento e imaginação. Gottsched e os sníços
so, tanto físico quanto social. Burke insiste expressamente em
que existem no homem dois instintos básicos: um que o incita Quando sc compara o desenvolvimento da estética alemã do
a realizar sua própria natureza individual e o outro que o torna século X V III com o das estéticas francesa e inglesa, logo surge
propenso a viver em comunidade. No primeiro reside, segundo uma diferença característica nas tendências profundas e no am­
ele, o sentimento do sublime, no segundo o sentimento do belo, biente intelectual. È impossível, por certo, se considerarmos sim­
O belo une, o sublime isola, Um civiliza, modelando as fo.-mas plesmente o conteúdo dos problemas particulares assim como a
convenientes das trocas e das relações sociais e servindo para o análise e a definição dos conceitos fundamentais, (raçar uma
fronteira precisa entre as diversas culturas nacionais. Como é o
refinamento dos costumes: o outro mergulha até as profundezas
caso geral no século X V III, produziu-se nesse domínio uma inin­
do Eu e coloca-as pela primeira vez à sua plena disposição. Não
terrupta troca de ídétas. Os fios correm por aqui e por ali e
existe nenhuma outra experiência estética que proporcione ao
entrelaçam-se tão bem que é quase impossível isolá-los da tes­
homem na mesma escala que o sentimento do sublimo a coragem
situra acabada c remontar à sua origem. F. por essa razão que
de ser ele mesmo, a coragem de sua própria ''originalidade", de
não existe nenhum tema intelectual, nenhum princípio ou teo­
sua natureza profunda. Assim é transposto um obstáculo que,
rema especial sobre os quais assentaria uma atitude original da
como vimos, manifestara-se ao longo do desenvolvimento da es­
estética alemã. Não há. por assim dizer, nenhum conceito ou
tética clássica e que consistia em crer que as regras apenas ex­
teorema do qual não se possa encontrar o análogo ou o paralelo
primiam a pura e simples verdade" da obra de arte e não lhe nas literaturas francesa e inglesa. E, no entanto, todas as in­
impunham outros vínculos senão aqueles atinentes à própria fluencias franco-inglesas que se exercem na Alemanha af adqui­
coisa, à natureza dos diversos gêneros artísticos. A práxis da rem logo um novo sentido e outra finalidade: vê-se pela primeira

412 433
vez os problemas estéticos, fim seu conjunto, colocarem-se, por 0 verdadeiro fundador e instigador do seu futuro desenvolvi­
assim dizer, sob a direção e a égide da filosofia sistemática. Ne­ mento, quem menosprezou e repeliu a coação de lodo sistema
nhum dos grandes mestres da estética alemã decidiu atcr-se à filosófico. Shaftesbury tinha lançado esta mordaz sentença: O
observação e descrição nem encerrar-se no círculo dos fenômenos caminho mais razoável para endoidecer é passar por um siste­
estéticos. A questão que, pelo contrário, é incessantemente ven­ ma." Na Alemanha, porém, mesmo ao travar a batalha por
tilada é a das relações entre a arte e os outros domínios da vida direitos e independência da imaginação, a estética nunca se er­
espiritual. Procura-se especificar constantemente as faculdades gueu conlra o domínio da lógica. Não combatia contra a lógica
estéticas em face das outras (acuidades, em face do entendimen­ mas em estreita união com ela; não queria libertar a imaginação
to, da razão, da vontade, estabelecer fronteiras claras e precisas da supremacia da lógica e exigia e procurava uma "lógica da
de modo a inferir dessas distinções e delimitações o traçado de imaginação" específica. Quando os suíços, defensores da ima­
um quadro de conjunto do espírito em sua unidade interior, em ginação no conflito entre ‘'razão" e "imaginaçao", voltaram-se
sua diversidade e em seus níveís de ser. Esse espírito de sistema contra GoUsched, eles não pretendiam com isso renunciar ao
é o que foi implantado por Leibniz na filosofia alemã, depois rigor lógico de Wolff. A obra de Bodmcr, Von dem Einjlusse
elaborado e ensinado em toda a sua rigidez pela escola de und dem Gebraucfie der Einbildungskrajt, zur Ausbesserung des
Christian W olff. Nem a França nem a Inglaterra conheceram Geschmackes [Da influência e do uso da imaginação no aper­
nunca um tão estrito rigor, tamanha “disciplina" teórica em es­ feiçoamento do gosto], é dedicada a Wolff e, de certo modo,
tética. Na França, desde o começo do século X V III, com a in­ coloca-se expressamente sob sua égide: foi a sua "maneira de­
fluência das obras de Bouhours e de Dubos, o espírito estrita­ monstrativa de filosofar" que permitiu, declara Bodmer, esta­
mente racional da filosofia cartesiana tinha sido progressivamente belecer finalmente as artes sobre fundações seguras. De Wolff,
rechaçado. No desenvolvimento ulterior, uma estreita ligação sub­ portanto, os suíços retornam então a Leibniz e é ainda à obra
sistiu, sem dúvida, entre a filosofia e a crítica estético-literária, do Leibniz lógico que eles se referem em primeiro lugar. Com
mas é a própria filosofia que rejeita agora, de maneira expressa, efeito, eles declaram que o maior serviço prestado à causa da
a forma sistemática. Depois do Tratado dos sistemas de Con­ fundação de uma filosofia da arte foi ter desferido um golpe
dillac, travou-se uma batalha generalizada contra o "espírito de mortal na sensação” pelo sistema da harmonia preestabelecida:
sistema".43 Falando de Diderot, considerou-o Lessing o primeiro "Ele despojou-a de sua jurisdição por tanto lempo usurpada,
espírito filosófico desde Aristóteles a debruçar-se sobre o teatro. reduzindo-a a ser apenas uma causa ministrans e occasionalis do
E, não obstante, a filosofia do drama segundo Diderot, conforme julgamento da alma.” 15 Pela posição central que o problema do
ek- mesmo declara em seus diólogos sobre a arte dramática, é julgamento adquire nos suíços, vê-se claramente que eles não
nada menos do que sistemática. Não é logicamente construtiva, têm a menor intenção de desfazer o vínculo que une lógica e
não está permanentemente ocupada em deduzir e concluir; não estética. Ocupam uma posição média num desenvolvimento que
se move numa seqüência de observações sumárias (aporçus), é conduz a uma síntese e a uma sólida associação entre lógica e
espontânea e eclética. E também na Inglaterra foi justamente o estética, desenvolvimento que encontrou seu ápice e sua con­
pensador mais profundo e o mais fértil no domínio da estética. clusão na Crítica do juízo, de Kant.

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Se se considera todo esse conjunto, 6 evidente que fica ain­ ele cita Shaftesbury e Addison, tendo tomado deste último, ex­
da mais difícil definir o verdadeiro lema do conflito que opôs plicitamente, a forma de suas crónicas semanais — e, por cutro
Gottsched aos suíços. O próprio conflito agitou apaixonadamente lado, as teorias suíças estão repletas de sugestões proveiuentes
os espíritos na Alemanha do século X V III e temos um teste­ da estélica francesa. No prefácio de Critischen Dichtkunsl [Arte
munho da profunda marca que deixou no conjunto da vida es­ poctica crítica], de Brcitinger. Bodmer recorre explicitamente a
piritual alemã, de sua poderosa influência sobre o desenvolvi­ Dubos para mostrar que “os melhores escritos não nasceram das
mento interno da poesia alemã, graças à Poesia e verdade, de regras mas que, pelo contrário, as regras é que são extraídas dos
Goethe. Entretanto, os próprios contemporâneos tinham dificul­ escritos", A verdadeira diferença entre Gottsched e os suíços
dade em separar o verdadeiro cerne do problema do estardalhaço não poderia ser caracterizada desde o exterior mas só de dentro,
das polêmicas. "Parecc-nos" — escrevem Mylius e Cramer no não pelo tipo de influência a que eles são submetidos mas pela
prefácio dos Halíischen Bemühungen zur Beförderung der Kritik maneira diversa como elaboraram suas respectivas problemáticas,
und des guten Geschmacks [Ensaios de Halle para a promoção E essa diferença só é plenamente esclarecida se lançarmos um
da crítica e do bom gosto] — "que os escritos suíços sobre a olhar para além do círculo dos problemas puramente literários e
poesia teriam podido ser arrumados num armário ao lado da arte puramente estéticos, se nos apercebermos de que o conflito que se
poética de Gottsched sem que se desencadeasse uma batalha, reflete aqui constitui apenas tim momento particular, uma ação
como escreve Swift a respeito dos livros dos antigos. Não esta­ local num raundo intelectual muito mais vasto. Só se pode com­
mos em condições de responder, quanto ao fundo, àqueles que preender no âmbito da situação intelectual de conjunto do sé­
nos interrogam sobre as verdadeiras causas dessa dissensão crí­ culo X V III a tese que Gottsched e os suíços devem fazer triun­
tica. O poeta que algum dia cantará esta guerra terá necessidade far no interior da poética. Por bizarro que isso possa parecer nu
de tanta inspiração, sem nenhuma dúvida, quanto Homero quan­ começo, não sc pode deixar de considerar, para fazer historica­
do quis descrever a briga de Aquiles e Agamenon.” w Não pa­ mente toda a luz sobre o antagonismo entre Goltsclicd e os suí­
rece que as análises de história literária e filosófica que vimos ços, não só o estado do problema da lógica mas também da física,
surgir depois tenham sido motivadas pela dita “ inspiração”, Uma nova forma de lógica tinha começado, com efeito, a desen­
porquanto as opiniões ainda se opõem diametralmente no tocante volver-se no século X V I I I na física e graças a esta. Ao ideal de
aos verdadeiros motivos du conflito e às forças que nele inter­ uma lógtca puramente dedutiva, progredindo do geral para o par­
vieram. Hettner declara que a questão decisiva que está em de­ ticular, inferindo este daquele, opusera-se o ideal da análise em­
bate sob o véu das querelas pessoais é facilmente apontada: tra- pírica. Esta não renuncia, de maneira nenhuma, aos axiomas e
tar-se-ia do "primeiro choque realmente sério na guerra entre as princípios universais mas, em vez de afirmá-los como inabaláveis
influências francesa e inglesa". Gottsched seria o partidário fer­ proposições a priori, estabelecidas de uma vez por iodas, quer
voroso, parcial até o exclusivismo passional, do classicismo fran­ extraí-los da consideração dos fenômenos e aí fundamentar sua
cês. Daí seus acertos e seus equívocos históricos. Mas os papéis validade. A correlação entre "fenômeno” e “principio" é assim
não se repartem assim tão facilmente porque, por um lado, mantida mas a ênfase foi deslocada. Os fenômenos não devem
Gottsched não rechaçou as influenciar da literatura inglesa — ser deduzidos de certos princípios aceitos e fixados de antemão;

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são os princípios que devem ser extraídos e ser sempre demons­ doutrina do "primado do evento sobre o julgamento". Ê evidente
trados por seu intermédio.17 Na explicação da natureza, é na que não renunciaram à intenção didática, insistindo até incan­
passagem dç Descartes a Newion que se manifesta com maior savelmente nessa intenção; contudo, essa deve ser realizada por
clareza essa mudança de espírito metódico; em estética, o seu um outro caminho, não pelo caminho do entendimento mas pelo
aparecimento mais nítido e mais ceno está na oposição entre da imaginação, A tareia da poesia — os suíços, nesse ponto,
Gottsched e os suíços. A ligação surpreendente que se manifesta concordam com Dubos — consiste em impressionar e comover;
aí entre dois domínios tão distanciados um do outro corrobora o ‘'patético" não é, porem, o seu fim único e supremo. A emoção
uma vez mu rs essa unidade de estrutura intelectual que caracte­ imaginativa deve, antes, abrir o caminho à intuição racional,
riza o século X V U I. Descartes tinha colocado o plano de sua fazê-la penetrar no espírito do ouvinte. Aquilo que o simples
física, tal como foi traçado no Tratado do mundo, sob a divisa: conceito e a doutrina abstrata não permitem deve ser adquirido
"Dêem-me a matéria e construirei um mundo." Como físico e pela escolha correta de metáforas, de "imagens" poéticas (poe­
filósofo da natureza, ele pode e deve tentar uma tal construção, tischen "Gleichnisse’'). Ê por isso que a imagem adquire agora
porquanto 0 plano do universo está claramente exposto nas leis uma importância decisiva e converte-se no verdadeiro centro da
universais do movimento. Ele não tem a menor necessidade de poética. O próprio Breitinger compôs um Kritische Abhandlung
ir buscar essus leis à experiência: elas são de espécie matemática von der Natur, den Absichten und dem Gebrauche der Gleich­
e, por conseguinte, estão envolvidas nas regras fundamentais da nisse [Tratado crítico da natureza, das intenções e do uso das
mathesis universalis que o espírito apreende de si mesmo e per­ imagens] At a fim de explicar esse uso por exemplos extraídos
cebe na sua necessidade. Gottsched. discípulo de Descartes c de de textos dos mais célebres autores antigos e modemos. Mas, uma
Wolff, acredita poder introduzir a mesma exigência na área da vez mais, a imagem não tera sentido nem valor autônomo1 , ela
poesia e submetê-la ao donifn io da "ra /ã o ', "Dúenwne uma ma­ constitui apenas a preparação de outra coisa, o invólucro que
téria qualquer, um tema determinado, e eu lhes mostrarei como reveste essa outra coisa. "Assim como um médico hábil sabe
se forma a partir daí, segundo as regras universais da poctica, açucarar ou dourar as pílulas amargas, assim devem proceder
uma poesia perfeita." Ê mais ou menos nesses termos que se também todos aqueles que querem usar da verdade como de
pode transcrever o conteúdo c as intenções profundas de sua um medicamento para alcançar a felicidade humana." Em sua
Critischen Dichtkunst. "Em primeiro lugar, escolha-se um juízo Critischen Dichtkunst, Breitinger proclamará, portanto, que a
moral instrutivo correspondente às intenções que uma pessoa fábula de Esopo é o gênero poético mais perfeito, porquanto
propõe*se a realizar; em seguida, imagine-se um evento muito cumpre com perfeição essa dupla tarefa. Ela foi inventada para
geral cm que sobrevêm uma ação na qual a máxima escolhida assegurar u certas "verdades secas demais e amargas demais" um
tem o seu sentido claramente pronunciado," O "juízo", a ver­ acesso ao coração humano, graças ao invólucro artístico de uma
dade teórica ou moral, vem, portanto, em primeiro lugar; o even­ máscara sorridente, de tal modo que ele não possa recusar sua
to poético segue-se, simplesmente, para ilustrá-la, torná-la per­ concordância,'1” O conceito de “maravilhoso”, muito caracterís­
ceptível graças a um exemplo concreto. Nos suíços, pelo con­ tico da poética dos suíços, também adquire desse modo, pela
trário, é a relação inversa que prevalece: eles representam a primeira vez, um sentido bem definido. O valor do maravUhoso

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não decorre de que nasce do livre jogo da imaginação nem dc o fruto do arbitrário ou do cego acaso, que elas nasceram, pelo
que transgride iodas as leis da razão. A invenção mais maravi­ contrário, da observação atenta do que é verdadeiramente cons­
lhosa pode não estar ligada a nenhuma realidade dada e sujeitar- tante na impressão estética, do que exerce uma influência deter­
se unicamente às leis do “ possível", mas nem por isso estará minada sobre o espirito. A ciência da natureza do século X V III
menos ligada, para ser verdadeiramente poéiicu, às suas inten­ une experiência e geometria, relacionando-as constantemente en­
ções. Por ludo o que ela comporta de novo e de surpreendente, tre si, do mesmo modo que parte da experiência e da observação
quer produzir um movimento de alma que conduzirá até o fim sensível para procurar por outra parte, no domínio do próprio
pretendido pelo poeta — uma finalidade moral. Um mesmo observável, a necessidade matemática: os suíços exigem do ver­
conflito de tendências, que não corresponde a uma incompatibi­ dadeiro crítico de arte que ele satisfaça essa dupla obrigação.
lidade absoluta, surge igualmente no debate em tomo das rela­ Ele deve subscrever a experiência que se lhe apresenta sob a
ções entre o “gênio" e as "regras”. Os suíços, já para não falar forma das grandes obras de arle e deixar-se guiar por ela. Mas
de Gottsched, estão bem distantes da concepção do gênio que: essa direção não significa uma submissão absoluta. Assim como
conhecemos na "estética intuitiva'' de Shaftesbury. Bodmer e o físico descobre o rigor matemático no seio do sensível, o crí­
Breitinger não têm a menor intenção de libertar o gênio da se­ tico procura nas obras de imaginação uma verdade necessária,
vera disciplina das regras: eles também querem estabelecer nor­ ultrapassando todo o arbitrário. Começa pela intuiçãc c perma­
mas. Procuram, entretanto, descobrir essas normas nos fenôme­ nece-lhe ftel, mas descobre nela as formas específicas de deter­
nos, nos dados da arte poética, em vez de lhas impor. Partem da minação e a "certeza demonstrativa" de que ela é suscetível.
intuição poética para reconduzi-la em seguida, bem entendido,
aos conceitos e aos "princípios especulativos”. A principal supe­
rioridade deles, em relação a Gottsched, apóia-sc no fato de que Ftutdação da estética sistemática — Bairnigarten
eles são capazes dessa intuição num grau incomparavelmente
mais elevado e num sentido muito mais profundo. Homero, Quando Kant fala de Alexander Baumgarien, a quem con­
Dante e Milton representam para eles verdadeiras experiências fere um lugar particularmente elevado entre os pensadores ale­
poéticas. Para o crítico, entretanto, essas experiências represen­ mães do seu tempo, tem o coslume de mcncioná-lo como um
tam apenas um começo e não um fim. As regras que aí se en­ "excelente analista” ( vortrefflichen Analysteri). Caracteriza des­
contram implicitamente contidas, compete-lhe transportá-las para se modo conciso e pertinente um traço essencial de sua índole
a claridade da consciência; o que a natureza operou pelo gênio espiritual e de sua obra científica. As obras de Baumgarten rea­
poético, a arte do crítico deve "extraí-lo do texto" e convertê-lo lizam no mais alto grau a arte da definição e da análise con­
numa sólida e segura possessão. Ê assim que a força e a origina­ ceptual vigorosa. Entre todos os discípulos de Wolff, ele é aquele
lidade dessa "análise empírica", extraindo do particular o geral, que domina com a maior segurança a técnica lógica ensinada
da imagem concreta, do fenômeno concreto, a regra escondida, pelo mestre que deu assim à filosofia alemã a sua espinha dorsal
deram uma vez mais suas provas. No prefácio dc Critischen e a firmeza de seu conteúdo. Pela precisão dc suas formulações,
Dichikunst, de Breitinger, Bodmer declara que as regras aão são pelo cuidado e minúcia de suas definições, pelo rigor das provas,

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a Metafísica de Baumgarten continuará >endo por muito tempo dc empirisme q»» ^ opõe diametralmente à intuição autCtilic»,
um modelo admirado. O própriu Kant releriu-se constantemente verdadeiramente filosófica, e que forma com ela o mais perfeito
a essa obra e nela baseou suas lições de metafísica. Entretanto, contraste metodológico que se possa imaginar. Uma ciência re­
o verdadeiro mérito de Baumgarten, sua importância histórica cebe o seu conteúdo e o seu sentido filosófico quando com­
decisiva, está em outro ponto. Ele não é somente o mestre da preende o que representa na totalidade do saber, o lugar c a po­
lógica escolástica, que dominou com brilho era todas as suas sição que lhe competem nesse conjunto. Ela deve situar-se no
partes e que levou ao seu mais alto grau de perfeição formal; gênero universal do saber e deve, ao mesmo tempo, no interior
o seu pape! intelectual próprio foi o de ter tomado uma forte desse gênero, dedicar-se a uma tarefa específica e cumprir essa
consciência dessa mesma perfeição, dos limites internos e neces­ tarefa de maneira característica. O gênero, o conceito específico
sários dessa lógica. Foi pela consciência que adquiriu desses do saber corresponde ao conceito de conhecimento que deve, por­
limites que Baumgarten desempenhou seu papel original e deu à tanto, figurar no ápice e é o único que pode constiiuir-se em
estética seus fundamentos filosóficos. É justamente desde que conceito supremo da definição procurada para a estética. Mas o
domina a sua tarefa de lógico que ele descobre a sua nova que é mais importante do que esse genus proximum que somente
tarefa e que, ao abordá-la em função de suas premissas intelec­ deve fornecer o quadro para a definição é o preenchimento desse
tuais, traz para a luz a determinação dessas premissas. £ assim quadro, a diferença específica a precisar. Baumgarten encontra
que a estética desenvolve-se a partir da lógica e que esse mesmo essa diferença quando determina a estética como a teoria da sen­
desenvolvimento revela simultaneamente os limites imanentes da sibilidade, do “conhecimento sensível". Parece, nesse caso, para
lógica escolástica tradicional. Liaumgarten não se restringe a ser julgar a questão apenas do ponto de vista da escola e segundo os
um "artista da razão": nele se realiza de novo esse ideal da filo­ seus critérios tradicionais, que ele teria criado um ser logica­
sofia que Kant caracterizou como o ideal do “autoconheeimento mente híbrido, que retira com uma das mãos à estética o que
da razão" (Selbsterkcnnlnis der Vernunft). Ele é e continua sen­ lhe dá com a outra. Com efeito, o sensível não é justamente —
do um mestre da análise; e essa mestria não o leva a superestimar de acordo com a terminologia que é também a de Baumgarten
o valor mas a definir claramente e a distinguir com segurança seus — o domínio do confuso, do indistinto, o domínio, portanto, que
meios c seus fins. Essa elaboração superior da análise fomece-lhe se opõe ao conhecimento e que este tentaria em vão penetrar? A
uma nova fecundidade, ao conduzi-la até um ponto onde surge, estética poderia afirmar seu status e sua dignidade de ciência
como de si, um novo começo, onde se revela uma nova síntese ligando-se a essa esfera inferior, constituindo-se como gnoseologia
intelectual. itiferior7 São considerações desse gênero que impediram o reco­
£ essa síntese conceptual que dá sua força e sua importân­ nhecimento fácil da estética de Baumgarten e que retardaram
cia à definição da estética como ciência, segundo Baumgarten. por muito tempo a sua influência. Bodmcr registra a definição dc
A estética não seria uma ciência nem poderia chegar a ser uma Baumgarten com espanto e mau humor, com uma contrariedade
se se limitasse a fornecer um conjunto de regras técnicas para a pessoal a muito custo dissimulada. Em seu comentário crítico da
produção da obra de arte ou um conjunto de observações psico­ obra de Baumgarten, escreve ele: "Parece querer disseminar-se
lógicas sobre os seus efeitos. Tudo isso faz parte dessa espécie a opinião de que o gosto é um julgamento inferior pelo qual só

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conhecemos o obscuro e o confuso. Nesse pensamento, não cons­ ç3o. E preciso que ele estabeleça aí uma certa escala, uma ordem
tituirá grande mérito possuir um gosto a que falta a tal ponto um de valores dos conhecimentos, e à estética, conhecimento do sen­
sentimento de certeza e quase não vaíe a pena esforçar-se por sível, será atribuído o último lugar. Ela é começo, mas esse co­
tê-lo. 30 Mas nesse julgamento, a intenção profunda de Baum­ meço parece não ser mais do que uma preliminar. “Pela aurora
garten eslá provavelmente entendida às avessas. O contra-senso da Beleza peneiraste na terra do Conhecimento": -— mas não
lógico de um conhecimento confuso e obscuro está muito longe parece que a aurora da beleza deve empalidecer do resplendor
do pensamento do "excelente analista" que é Baumgarten; o que do pleno dia? Em face da estrita e pura verdade que, em vez dc
cie procura e exige é, antes, um conhecimento de o obscuro, de o nos ligar h simples aparência das coisas, nos coloca na posse de
confuso. O predicado designa o tema, o domínio objetivo, não o sua natureza profunda, dissipa-se a beleza que só existe e vive
modo de intuição e o tipo de investigação. A ciência não deve nu aparência. Baumgarten, o metafísico, nunca abandonou com­
ser rebaixada para o domínio da sensibilidade, é o sensfve! que pletamente essa perspectiva fundamental mas o analista, o puro
deve ser elevado ao status do saber, que deve ser penetrado e "feuomenologista", transpôs, é claro, essa barreira. E ao quebrar,
dominado por uma forma específica do saber. Com o pretexto ao dcsvencilhar-se dos grilhões da lógica e da metafísica tradicio­
de que o sensível, de acordo com a sua matéria simples, é obs­ nais, cie realiza as condições históricas e racionais indispensáveis
curo de nome e de natureza, deverá a forma pela qual o conhe­ à estética para conquistar um "lugar ao sol" — para constituir-
cemos e à qual nos adaptamos permanecer igualmente obscura se como disciplina filosófica, em sua posição e com seus direitos
e confusa? Ou não se apresenta nessa forma, justamente, uma próprios.*1
certa maneira de conceber a matéria, uma nova e sumamente A doutrina de Leibniz dos graus do conhecimento, exposta
penetrante maneira de compreende la? Tal é a questão com em Meditationes de veritate, cognitíone et ideis, constituí o ponto
que Baumgarten encabeça a sua estética para responder-lhe sem de partida e o quadro das investigações de Baumgarten. Mas não
reservas pela afirmativa. Ele estabelece para a sensibilidade um basta relembrar a letra da doutrina para expor as intenções pro­
novo critério que nlo deve privá-la do seu valor mas, pelo con­ fundas de Baumgarten. Leibniz opõe representação "clara" e re­
trário, assegurá-lo. Confere-lhe uma nova perfeição mas essa é presentação "distinta", atribuindo a cada um a um sentido e um
condicional, porquanto deve ser entendida como. um privilégio fim particular, "ClaTa" é a representação que basla às neces­
puramente imanente, como perfectto phaettonienon. Essa perfei­ sidades da vida cotidiana e convém-lhes, que permite em pri­
ção fenomenal não coincide, de maneira nenhuma, com aquela meiro lugar dirigirmo-nos no nosso meio ambiente sensível. Para
realização para que tendem a lógica e a matemática na elaboração dirigirmo-nos 6 apenas necessário que façamos uma distinção se­
de suas idéias claras c distintas”, mas afirma-se conjuntamente, gura entre os objetos que encontramos e que conformemos a
subsiste como um valor próprio c irredutível. Não foi certa­ nossa conduta a essas distinções. Para aquele que só vê no ouro
mente sem dificuldades que Baumgarten estabeleceu essa coor­ um objeto de tiso, basta possuir certos sinais sensíveis graças aos
denação, e na expressão de seu pensamento, na terminologia que quais poderá distinguir o ouro "verdadeiro" do ouro falso ou
ele não criou mas foi buscar em grande pane à Escola, sucumbe falsificado. Deve atentar para a cor do ouro, sua dureza, malea­
incessantemente â tentação da subordinação e da simpies subsun- bilidade etc.; pela observação precisa dessas determinações pu

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ramente empíricas vai encontrar finalmente critérios suficientes conhecimento cientifico. Adere à exigência leibniziana de um
para impedi-lo de confundir entre o ouro legítimo e a imitação ‘'alfabeto do pensamento", tanto mais vigorosamente porquanto
de ouro. Mas essa verdade não é, para Leibniz, a verdade au* esse ideal tinha dado, nesse meio tempo, um grande passo adiante
têntíca e perfeita que o conhecimento científico esforça-se por no sentido de sua concretização, graças ao trabalho de pioneiru
alcançar e que se impõe por si mesmo. Pois o verdadeiro saber, realizado pertinazmente p o t Wolff e sua escola. Existe, porém,
o saber supremo, não é o do simples "quê" mas o saber cío segundo Baumgarten, um domínio em que a redução do fenô­
"porquê”. A ciência não quer colecionar simples fatos; tam­ meno â sua “causa” enfrenta um obstáculo. Quando, aplicando-
pouco se contenta em distinguir os objetos por seus "sinais”, lhe o método das ciências exatas, explicamos o fenômeno da cor
por suas marcas sensíveis e em classificá-los segundo essas dis­ reduzindo-a a um certo tipo de movimento, nao só suprimimos
tinções. Ela tem por finalidade reduzir a multiplicidade das pro­ a impressão sensível mas privamo-la também de sua significa­
priedades à unidade da essência: e só pode descobrir essa essên­ ção estética. Tudo que a cor representa como meio de expressão
cia reconduzindo-nos à razàa última donde essa pluralidade e da arte, todo o papel que ela desempenha na pintura, fica des­
essa multiplicidade provêm. O "princípio de razão" torna-se, truído por essa redução ao seu conceito ffsico-mateniátíco: tudo
portanto, a par do princípio de identidade e de contradição, a é reduzido de uma assentada a zero. Não só toda memória da
norma verdadeira de toda ciência rigorosa: compreender as coi­
experiência sensorial da cor mas também toda memória de sua
sas não quer dizer percebe-!as a posteriori, segundo suas formas
função estética desaparecem desse conceito. Será essa função, na
fenomenais, mas aprendê-las a priori por suas causas. "Conheci­
verdade, algo de insignificante, de totalmente indiferente? Ou
mento a priort" e “conhecimento pela causa” significam para
não possuirá também um valor próprio, não pretenderá, em vez
Leibniz a mesma coisa: a definição "causal1' é a única expressão
de ser simplesmente rejeitada, conservar sua especificidade e seu
satisfatória de toda verdadeira "definição real”. O caminho do
caráter próprio? A nova ciência da estética esforça-se por essa
"conhecimento distinto” nada mais seria, portanto, da que a re­
manutenção. Mergulha no fenômeno sensível e abandona-se-lhe
solução de todo Fenômeno complexo em seus elementos sim­
sem fazer a menor tentativa para chegar por si mesma a algo de
ples, ou seja, nos eiementos singulares que o determinam c o
fundamentam. Enquanto essa resolução não se consumar, en­ uma natureza muito diversa, âs "causas" do fenômeno. Com
quanto encontrarmos ainda num desses momentos uma multipli­ efeito, essa passagem às causas, longe de explicar o conteúdo
cidade não analisada, o objetivo próprio da concepção “adequa­ estético do fenômeno, não faz mais do que aniquilá-lo. Aquele
da" não terá sido ainda atingido. A nossa concepção só está que queria comunicar-nos a impressão que recebe de uma pai­
verdadeiramente em harmonia com o seu objeto quando logra sagem decompondo o espetáculo em seus eiementos essenciais e
não apenas reproduzir esse objeto mas fazê-lo aparecer sob os procurando para cada um desses elementos um conceito distinto,
nossos olhos, acompanhá-lo até a sua origem e reconstruí-lo a deswevendo, portanto, se se quiser, a paisagem no idioma e com
partir daí. os rceursos científicos da geologia, chegaria, sem dúvida, a uma
Baumgarten reconheceu esse ideal em toda a sua amplitude nova visão científica, mas, nessa yisão, não subsistiria o menor
e jamais contestou sua significação no interior do domínio do vestígio da "beleza” da paisagem. Essa beleza só se oferece à

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intuição indivisa, à pura contemplação da paisagem como um [Volteia em toniw íonte
todo. E somente ao artista, pintor ou poeta é dado salvar essa A cambiante libélula,
totalidade, torná-la viva para nós em todos os traços da sua re­ Por largo tempo alegiu o meu olhar;
presentação. Uma paisagem pictórica ou poética evoca magica­ Ora escura, ora clara,
mente, num relance, a imagem pura e, na contemplação e fruição Tal qual o camaleão;
dessa iniagero, toda a questão de "causa", como a que a reflexão Ora vermelho, ora azul,
artísúca e a investigação conceptual formulam, é prontamente Ora azul, ora verde:
esquecida. Devemos abandonar-nos à impressão que o fenômeno Oh, que de bem perlo
como tal exerce sobro nós, demorar-nos nela, prender-nos a ela Percebo agora as tuas cores!
para que não se volatilize, não se dissipe entre as nossa; mãos. Ela adeja e plana, nunca pousa!
As impressões fenomenais não constituem, evidentemente, a es­ Sim, eí-la pousada agora no prado.
sência metafísica, mas a essência estética pura está vinculada a Agarrei-a! Agarrei-a!
essas impressões.53 A observação de um objeto ao microscópio Desta vez observo-a de bem perto
pode permitir ao cientista descobrir sua composição e, assim, a E tudo o que vejo á um azul funéreo —
sua verdadeira constituição objetiva mas a impressão estética está Eis o que te espera, tu, que dissecas teu prazer!]
desse modo irremediavelmente perdida. Goethe, num poema do
Leipziger Liederbuchs, deu a essa idéia uma forma poética; De pleno acordo com 0 ensinamento de Baumgarten, teó­
rico da estética, eis o conteúdo essencial da sua própria doutrina
Es flattert um die Quelle convertida numa imagem pura, numa visão poética que a expri­
Die wechselnde Libelle, me imediata e cone reta mente. Abre-se-nos agora um domínio so­
Mich freut sie lange schon- bre o qual o "princípio de razão", princípio e condição de todo
Bald dunkel und bald helle. conhecimento "distinto", não tem nenhum poder. Esse princípio
Wie der Chamaeleon: é o fio de Ariadne que foi colocado cm nossas mãos para nos
Bald rot, bald blau, conduzir para fora do labirinio da realidade aparente e fazer-nos
Bald blau, bald grün; ascender até h região do "inteligível", ao reino dos "números ■
O dass ich in der Nähe Mas a arte não alcança uma tal transcendência, da qual seria,
Doch ihre Farben sähet de resto, incapaz. Seu objetivo não é trascender os fenômenos
Sie schwirrt und schwebet, rastet nie! mas. pelo contrário, permanecer entre eles, não remontar até as
Doch still, sie setzt sich an der Weiden. suas causas mas apreendê-los como dados imediatos e produzir,
Da hab’ ich sie! Da hab' ich sie! diame dos nossos olhos, seu ser e seu modo de ser. E não temos
Und nun betracht' ich sie genau que temer, ao abandonar o fio condutor que o "principio dc ra­
Und seh' ein traurig dunkles Blau — zão" fornece-nos, que o nosso mundo intelectual volte a cair
So geht es dir, Zergliedrer deiner Freuden! no caos. A realidade intuitiva, com efeito, não é — de maneira

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nenhuma — confusão pura e possui cm si mesma um critério estera da tei : ~~ equivale à do conceito lógico mas extravasa-a
especifico. Toda obra de arte verificável coloca esse critério ime­ largamente, qy.. c.- ;sie uma legalidade que se eleva acima de todo
diatamente sob os nossos olhos; ela não expõe somente diante arbitrário »’ ?\n li toda preferOncia subjetiva que não se deixa
de nós uma multidão de intuições — clii domina essa multidão, apresentar áob a forma de sirnples conceitos. E □ razão como
modela-a e assim nos faz perceber sua unidade interior na fonna totalidade recebe nela esses dois momentos. Ela não se limita
imposta- Toda intuição verdadeiramente estética nos mostra não ao conceptual puro, dirigi-se absolutamente a toda ordem c a
apenas a multiplicidade e a diversidade mas também a regra e toda legalidade, seja qual for a matéria onde a ordem e a lega­
a ardem que aí se escondem. Se se pode designar o domínio da lidade encontrem sua ilustração e sua realização S1 A razão con­
estética pela expressão perceptio confusa, é na cortdiçãa de cn- tinua senhora desse conjunto sem que essa dominação lenha ja­
tender-se essa expressão segundo o seu significado estritamente mais o rigor de um jugo, de uma coerção puramente externa.
etimológico. O que quer dizer que em toda intuição estética se Baumgarten tem esta frase feliz e expressiva de que a razão
produz uma "confluência" de elementos e que não podemos tem direito ao poder soberano sobre todas as faculdades infe­
abstrair os elementos singulares da lotiilidade dessa intuição, co­ riores sem que esse poder possa adquirir unicamente a forma
locá-los isoladamente em destaque nem explorá-los um por um. de ume tirania.63 As faculdades sujeitas não devem ser despoja­
Mas essa confluência não produz "confusão“ nenhuma, porquan­ das de sua natureza própria nem abdicar de nenhuma de suas
to é justamente o todo o que se nos oferece sob o seu aspecto características; devem, pelo contrário, ser compreendidas, man­
imediato, como um todo inteiramente determinado e organizado. tida; e preservadas em sua especificidade. A legitimação das fa­
Essa organização — taJ é a tese fundamental da estética de Baunn- culdades inferiores da alma, não a sua opressão e destruição,
garten — não é acessível, de maneira nenhuma, pelo caminho e tal é o objetivo a que a estética se propõe.1*6
desvio do conceito, Ela pertence à esfera pré-conceptual, a qual
Todos os detalhes da doutrina de Baumgarten já estão im­
não tem que ser conhecida pela simples lógica como tal. uma vez
plícitos nessa primeira abordagem do problema; todas as carac­
que a considera, do seu próprio ponto de visla, oriunda das
terísticas da obra de arte que ele demonstra, em particular 0
faculdades "inferiores" da alma e do conhecimento. Mas essas fa­
modo e o mecanismo da produção poética em todos os seus mo­
culdades inferiores do conhecimento também têm seu lagos
mentos, deduzem-se daí. Em seu esforço para ir ao fundo das
— têm direito, portanto, a uma leoria do conhecimento especial,
coisas e não deixar escapar nada, ele compraz-se em acumular
a uma gtioseologia inferior. Baumgarten ainda se inclina intei­
as fórmulas que designam as características que distinguem a
ramente perante a autoridade rigorosa do racional, não conce­
dendo a menor exceção nem procurando subtrair a mínima coisa expressão poética da expressão lógico-científica. Desta última
às normas puras da lógica. Mas sustenta a causa da intuição exige luz e claridade, plenitude c veracidade, riqueza e limpidez;
estética pura perante o próprio tribunal da razão. Quer salvar ç quanto às representações de que o pueta faz uso, é necessário
a intuição provando que uma lei interior governa-a igualmente, que elas contenham gravidade, força de convicção e vivacidade.
Se essa lei rtão coincide com a razão, constitui, não obstante, Mas todas casas determinações, ubertas e magnitudo, veritas e
um "(itiaiogon" dela. Esse analogon rationis05 prova-nos que a çlaritas. !ux e certiiudo, reduzem-se em definitivo a uma única

450 451
exigência, para a qual Baumgarten encontrou 3 designação ca­
didade de visão, a dispositio naturalís ad perspicaciam.M Entre­
racterística de vita cognitionis. Baumgarten não pensa, portanto,
tanto, essa perspicácia distingue-se da penetração analítica do
em cortar de forma alguma a poesia da fonte primordial do
pensador científico uma vez que não olha para além das apa­
pensamento, pois definirá, desde o início, a estética como “a
rências mas permanece nestas; pelo contrário, não tem a intenção
arte de pensar em beleza" fars puicre cogitaruii).^7 Mas exige
dc reduzi-las ás suas "causas" mas lenta abrangc las em st mes­
que o pensamento tenha não só Forma mas também cor, que
mas — em sua totalidade e modo de ser imanente — e unífí-
nos forneça, com a verdade objetiva, a penetração "sensitiva";
cá-las numa imagem intuitiva completa.
com a intuição jusla. a intuição viva. Essa intuição viva quer
que, não contentes em elevar-nos do particular ao gera!, de Se Baumgarten soube descrever a oposição do espírito artís­
acordo com as regras da conceptualização lógica, apreendamos tico e do espírito científico e dar-lhe. pela primeira vez, uma
também o geral no particular e 0 particular no geral. A abstra­ expressão rigorosamente filosófica, foi porque pôde apoiar-se,
ção que nos abre logicamente 0 caminho para as espécies mais para essa descrição, numa experiência pessoal íniinta e viva. H.
altas significa sempre, aos olhos da intuição, empobrecimento von Stein mostrou muito bem em Entsfelmng der neueren
e dissecação. Ê que o processo de abstração é, ao mesmo tempo, Aesthetik como é falsa e enganadora a idéia de um Baumgarten
processo de subtraçao: para atingir 0 geral "negligencia" o descobrindo e fundando a estética sistemática movido exclusiva­
particular e, em definitivo, "esquece-o” cada vez mais. Portanto, mente pelo interesse de um teórico do conhecimento e por uma
a generalidade só pode ser alcançada à custa da riqueza das espécie de pedantismo lógico. Baumgarten parte da contempla­
determinações; o caminho da generalidade e o da determinação ção direta das obras de arte e tenta a poesia. No prefácio das
são em sentido inverso.6* A estética é um remédio para essa suas Meditationes, declara não ter quase passado um dia sem
laceração, no sentido de que n3o pode atingir a sua "verdade", compor um poema. Por escassos que fossem os seus reais dotes
nem para além da determinação nem contra ela: ela só se rea­ poéticos, isso demonstra, pelo menos, que ele sabia perfeitamen­
liza no seio e por meio dessa determinação. A beleza não exige te, graças a essa ocupação, o que é um "tema" poético e no
apenas, como o conceito científico, a claridade "intensiva", ela que esse difere de um tema lógico. Ele só tinha que considerar a
quer também a claridade "extensiva". A primeira, a claridade sua própria atividade para descobrir imediatamente cs-sa dife­
intensiva, é atingida quando se consegue reduzir a totalidade dc rença. E, do ponto dc vista da filosofia da linguagem e da esté­
urna intuição a um pequeno número de determinações funda­ tica, também foi um grande passo, por parle de Baumgarten,
mentais que revelam sua própria natureza. Quanto à claridade ’ ler-se apoiado, em primeiro lugar, para fixar aquela diferença,
estética, extensiva, não sofre essa redução e essa concentração. na forma e na direção própria da jala poética. A fala é o meio
O artista, com efeito, quer percorrer a realidade intuitiva em onde se encontram as produções científicas e poéticas. Os pen­
toda a sua extensão, abarcar nutfí único olhar o seu centro e samentos que 0 lógico ou o cientista desenvolvem, assim como
a sua periferia.1’“ O gênio artístico possui, na doutrina de Batim-
Os sentimentos e as idéias que 0 poeta quer despertar cm nós,
garfen, não só unia extrema receptividade, a força e a amplitude
também reclamam a mediação da palavra. Mus um mesmo veí­
da imaginação, mas também a perspicácia intelectual, a profun­
culo serve num caso e no outro a objetivos muito diferentes.

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453
Para tratar um tema científico, utiliza-se a palavra corno signo desse "discurso'’ logo evita o perigo. O ratio sensitiva perfecta
conceptual e todo o seu conteúdo reduz-se à sua significação est poema:0- só merece O nome de poema o discurso que possui
abstrata. As palavras apenas desempenham nesse caso, segundo o poder de uma perFeíta expressão sensível, que suscita ü apa­
a expressão dc Hobbes para designar essa relação, o papel de recimento de uma intuição viva e nos retém constantemente na
uma "moeda dc conta" do espírito; e, nas formas superiormente sua presença.
elaboradas da língua científica, chegamos a um nívei onde são Desse modo encontra-se enunciado, na rigorosa forma do
eliminados os últimos vestígios indutivos que ainda se prendem pensamento sistemático, um problema que a estética do século
infalivelmente à palavra. O mundo em que nos movimentamos X V III agitou incansavelmente. Essa estética sempre insistira,
já não é mais o das palavras mas o dos signos, e todo o nosso desde Dubos e os suíços, no caráter intuitivo de toda obra auten­
esforço tende a dor, a cada uma das operações do nosso pensa­ ticamente poética. Mas só conseguiu dar a esse pensamento uma
mento, uma expressão unívoca tomada nessa simbólica. A scien- forma determinada com a ajuda da pintura. O emprego da fór­
tia genera! is só se aperfeiçoa, como sempre foi sustentado por mula tit pictura poesis, tão universalmente divulgada antes do
Leibniz, pela instauração e desenvolvimento da characteristica l.accoonte, de l.essing, encontra aí sua causa e sua verdadeira
generalis. O que seria para a ciência, entretanto, o auge de sua raiz. Bodmer escreve suas considerações críticas sobre os qua­
perfeição, significaria antes a morte da arte se pensassem em dros poéticos”, e Breitinger, em Crítischen Dkhtkunst. impõe-se
aplicar-lhe esse ideal esvaziando-o de todo conteúdo intuitivo expressamente o objetivo de "penetrar a fundo na pintura poé­
comreto. A nova ciência estética quer evitar o perigo desse em­ tica levando em conta a invenção” e de elueidá-Ia mediante
pobrecimento; não visa. em absoluto, à perfeição do conheci­ exemplos extraídos dos antigos e dos modernos. Mas uma nova
mento mas, mais exatamente, à perfeição do conhecimento "sen­ queslão apresenta-se então. Será verdadeiramente possível ao
sitivo", do conhecimento intuitivo cowo tal. Aesthetices finís poeta rivalizar com o pintor, lentai-nos comunicar com os seus
est perfectio copiitkmis sensitivae, qua talis. llaec ati tem est "sinais artificiais" aquilo que o pintor apresenta-nos com a ajuda
pitlcritudo.01 A força e a grandeza do artista, do verdadeiro poeta, dos "sinais naturais"? Semelhante rivalidade não se encaminha
estão em insuflar vida na "frialdade dos signos simbólicos", na
mais no sentido de uma mistura arbitrária das artes, de uma
qual se movem tanto a língua da vida cotidiana quanto a língua
negação e de uma destruição dos meios estilísticos propriamente
conceptual da ciência, em conferir-lhe, em suma, a vita cogni-
poéticos? Baumgarten previne essa confusão ao sublinhar em
tioríis. As palavras de que ele se serve, não há uma que perma­
termos precisos que é por força de um mal-entendido que se
neça morta ou vazia; cada uma delas é vivificada, animada do
exige de uma expressão que ela seja "pictórica", mal-entendido
interior, alimentada de um conteúdo inluitivo imediato. Tudo
que consiste em tomar a parte pelo lodo. Essa exigência é me­
o que é formal desaparece do discurso poético para dar lugar ao
nos filosófica e racional do que metafórica. Em vez do verda­
figurado da expressão. Vé-se que flaumgarten concebe ainda o
deiro gênero, do conceito superior de cognitio sensitiva, apenas
poema sob o conceito genérico de "discurso", mas não é para
trair o seu pensamento estético fundamental, para voltar a cair foi estabelecida uma de suas espécies, a espécie da plástica pic­
na acusação dc retórica: a definição mais exata que e!e dá tórica. O pOela não pode nem deve “pintar” com palavras: ele

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pode c deve despertar no ouvinte, por palavras, representações homines, neque bene tantam humanae cognitionis partem alie­
claras, vivas, baseadas na intuição sensível. Eis o dom poético nam a se putai.™ A aquisição de talentos particulares, sobretudo
fundamental: o dom do ingenium venusttim, como escreve Baum- o talento de decompor analiticamente os conceitos, pode convir
garten. Do ponto de vista da história das idéias, essa fórmula ao erudito, seduzir o especialista, mas não pode servir em nada
lé-se com,, uma profecia: ela animei a, 40 anos ames da Crítica ao filósofo para a realização da tarefa que ele se impóe. Essa
do juízo e do tratado de Karl Philipp Moritz, Über die bildende tarefa exige que não se deixe nenhuma terra sem cultivar no
Nachahmung des Schönen (Da imitação plastica do belo), o campo do saber e que não se deixe secar nenhum dos dons do
"pensamento objetivo" de Goethe, O ingenium vertustum não espírito. O espírito filosófico não deve crer-se acima dos dons
quer somente apreender os objetos, classificados em espécies e da intuição e da imaginação; deve, pelo contrário, impregnar-se
gêneros; ele vive na intuição dos objetos, Essa plenitude (vemista deles e colocá-los no mesmo plano que o talento de julgar e
pleniludo) jamais poderá resultar de uma simples montagem de argumentar. Só essa harmonia pode produzir um sistema filo­
(Zusammensetzung) e jamais se deixará resolver em suas partes. sófico completo e interiormente unificado e, sobretudo, o espírito
O que se exprime nessa espécie de ingenium é, antes, uma ati­ filosófico superiormente encarnado num indivíduo. Sob a sua
tude, uma impressão espiritual de conjunto que comunica suas forma mais alta e mais pura, esse espírito não poderia adquirir-
próprias cores a tudo o que capta ou absorve. Essa disposição se cultivando somente as faculdades do entendimento, cuja ri­
da alma entendida como um todo é a marca do espírito artístico queza elas não esgotam.60 O filósofo, por um dos traços mais
como tal; ela comunica-lhe esse caráter, que não se aprende nem profundos do seu pensamento, sua vontade de totalidade, apa­
se adquire mas que nasce com o artista. "Ad characterem fclicis renta-se ao artista.67 E se não poderia rivalizar com ele para a
aesthetic! generalem requirttur Acsthetíca naturalis connata produção do belo, pode-se arriscar, entretanto, a obter o conhe­
( (pvoiç, natura. trixpvla ). dispostitio naturalis animae cimento do belo e, graças a esse conhecimento, graças à estética
totius ad puicre cogitandum, quacum nascitur ” w teórica, realizar a sua própria visão do mundo. A nova disciplina
A estética de Baumgarten supera, portanto, uma vez mais é assim não só legitimada pela lógica mas, de certo modo, im­
o âmbito da simples lógica. Ela quer ser uma lógica das "facul­ posta e justificada moralmente. As "belas ciências" não mais
dades de conhecimento inferiores" e quer servir por esse meio constituem, doravante, uma fração do saber mais ou menos autô­
não somente a um sistema de filosofia mas, antes de tudo, a nomo: elas “dão vida ao homem total", fazem dele tudo o que
uma "doutrina do homem1', uma antropologia. Não é um acaso pode e deve ser.88
se Herder reconhece cm Baumgartcn o "verdadeiro Aristóteles £ assim que o problema do belo já não conduz apenas à
do nosso tempo".’11 E que encontrou nele a marca desse novo fundamentação sistemática da estética mas também à de uma
ideal de humanidude a que ele próprio consagrou iodos os seus nova “antropologia filosófica", e uma idéia muito característica
esforços. Desde o começo da estética encontramos esse novo da cultura setecentista viu-se desse modo corroborada. Verifica-se
imperativo humanista que Baumgarten atribui à filosofia enten­ uma vez mais, embora de um outro ponto de vista muito dife­
dida como doutrina da sabedoria Philosophus homo est inter rente, que uma mudança radical está prestes a consumar-se, no

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tocante à ordem dos valores no pensamento do século X V III. Mendeissohn pode valer-se do próprio Baumgarten. Mas neste
£ nas relações do entendimento humano com o entendimento último, essa incompatibilidade está investida numa outra lendên*
divino, do iriteUectus ectypus ao iníeilectus archetypus, que essa cia dc pensamento e acentuada de um modo diferente. Baum­
mudança se impõe com superlativa nitidez. Já não se trata, como garten fixa ao beEo seus limites mas trata-se dos limites em que
nos grandes sistemas filosóficos seiscentistas, como em Maíebran- cíe entende reter o homem. Não se trata, em absoluto, de esca­
che ou Spinoza, de relacionar simplesmente o finito com o in­ par à finitude mas, pelo contrário, de chegar ao finito em todos
finito e dc eiminar assim, de um certo modo, a finitude. A os sentidos. Ao manter-se aquém do ideaí do conhecimento di­
tarefa que doravante se impõe ao finito é a de afirmar-se no vino, adequado, ele realiza precisamente, portanto, sua natureza
seu próprio ser em relação a esse valor supremo, de sustentar e seu destino. Assim se elucida, através da estética de Baum­
a sua natureza específica como tal, conhecendo-a como tal. Desde garten, nos vínculos estreitos com a filosofia acadêmica alemã,
que a fundação da estética teórica sustenta a causa da autonomia essa mesma idéia que já encontramos por toda parte agindo na
do belo, ela anuncia implicitamente, desse modo, que a natureza constituição da ética, da filosofia da religião, da filosofia do
finita tem fundamentalmente direito ao sen modo de ser autô­ direito e da filosofia política do Século do Iluminismo. Cada
nomo. Entre as posições de princípio que a filosofia alemã her­ vez mais, a época iluminista aprende a renunciar ao “absoluto'’,
dou da doutrina leibniziana, existe uma que nos ensina que o no sentido estritamente metafísico, ao ideal de um conhecimento
ser divino como tal está essencialir.cnte situado acima da esfera “à imagem do conhecimento divino”, para substituí-lo por um
onde devemos investigar o fenômeno do belo, a única onde e!e ideal puramente humano, que ela procura constantemente definir
encontra sua residência. Segundo Leibníz, é da essência do co­ com maior exatidão e preencher com mais perfeição.
nhecimento divino jamais se mover no mundo das representa­
Com essa "humanização" da sensibilidade, uma outra ques­
ções sensíveis mas unicamente no das idéias adequadas, ou seja.
tão que o século X V III debateu longamente encontrou também
compreender inteiramente o conjunto que esse conhecimento
resposta. A filosofia setecentista não defende apenas os direitos
percebe e, ao mesmo tempo, resolvê-lo em seus últimos elemen­
da "imaginação” mas também os direitos dos sentidos e da pai­
tos constitutivos.*® Para um modo de conhecimento dessa espé­
cie, o fenômeno do belo deve reduzir-se a nada. Segundo a xão. A doutrina cartesiana, para a qual as paixões eram apenas
expressão de Mendelssohn. em Bríefen über die Empfindungen perturbações da alma (periurbationes animi) marca um nítido
(Cartas sobre as sensações), evitemos confundir a “Vênus celeste" recuo; as paixões apresentam-se agora como impulsos vitais,
que consiste na perfeição, na adequação perfeita de todos os as verdadeiras forças instintivas que estimulam a totalidade da
conceitos, com a "Vênus terrestre", com a beleza. Em suma, o vida da alma e mantêm-na constantemente em atividade.71 Lan­
belo, de um ponto dc vista puramente metafísico, repousa menos ça-se um apelo geral em prol da emancipação da sensibilidade,
num poder do que numa impotência da alma humana; a um sobretudo entre os psicólogos e os moralistas franceses, cuja voz
poder cognoscitivo mais perfeito do que o nosso, a experiência se eleva com uma força crescente. O estoicismo do século X V II
do belo não seria acessível nem comunicável.70 Para essa incom­ que, longe dc subsistir como simples doutrina filosófica, surgira
patibilidade rigorosa da beleza sensível e da perfeição intelectual, na tragédia clássica como tema de criação artística, cede agora

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o lugar a uma atmosfera puramente epicurista. Esse epicurismo pouco uma perspectiva para a antropologia de Herder, permi­
recebe as mais diversas formas e mostra as mais variadas tona* te-nos agora apreender a importância das Cartas para a edu­
Iidades. Pode deleitar-se, como em Vart de jouir, de La Mettrie, cação estética de Schiller. Baumgarten é o primeiro pensador que
por exemplo, em exaltar o prazer do sentidos em sua nudez ou se libertou do dilema do “sensualismo" e do " racionalismo'’, ao
em elaborar uma técnica sulil de refinamento intelectual e de criar uma nova e produtiva síntese entre "razão" e “sensibi­
sublimação contínua das alegrias da existência. Os "libertinos” lidade".
do século X V II, esse círculo de gente do mundo que se reunia Mas o próprio Baumgarten não atingiu, sem dúvida, de ma­
no "Templo" ou nos salões de Ninon de 1’Enclos, em Paris, ou neira completa, o objetivo teórico que se impusera; nlo foi até
nos de Madame de Mazarin, em Londres, tinham tentado levar o fim da estrada que tinha claramente diante dos olhos. É ver­
essa arte à sua perfeição. Encontraram em Saint-Évremond seu dade que anunciou, desde o começo da sua Estética, que sua
representante mais refinado e mais significativo.72 Saiu desse obra tinha apenas a ambição de rasgar o caminho para a nova
círculo toda uma série de manuais que pretendia ser uma ver­ ciência, não o de percorrê-lo inteiramente.7'* Mas, além disso,
dadeira escola do prazer, que queria, num sentido também pu­ de um ponto de vista puramente subjetivo, ele devia inevita­
ramente teórico, ensinar o modo como o prazer pode ser alcan velmente enfrentar certos obstáculos, porquanto sua obra foi
çado, como pode ser indefinidamente intensificado e como composta no estilo da Escola e permaneceu-lhe fie!, O pensa­
esgotá-lo até a última gota.73 O refinamento da volúpia que é mento novo que Baumgarten representa não encontrou nele uma
assim ensinado possui também, sem a menor duvida, importân­ forma adequada. Teve que conformar-se em ser comprimido em
cia estética; mas a estética que se desenvolveu nessa base cons­ parágrafos, à maneira das botas espanholas, e parece às vezes
titui uma simples estética da excitação. Ela aguça ao máximo ter perdido toda a sua liberdade de movimento nesse aperto.
a receptividade à cxicitação sensível mas falta-lhe totalmente o Bem entendido, aquele que sabe ler Baumgarten de modo per­
acesso à fonte autêntica da vida artística, ao domínio da espon­
tinente acaba descobrindo, sob a dura casca, o cerne do seu
taneidade. é a esse defeito fundamental que responde, precisa­
verdadeiro pensamento, com uma apresentação original que lhe
mente, a estética de Baumgarten. Embora defendendo os direitos
é muito própria. Quando Herder, cm suas Schuíreden. passa a
da sensibilidade, ela não concebe a libertação pura e simples
tratar "da idéia de graça nas escolas", quem menciona ele em
da sensibilidade dc seus vínculos e de seus grilhões: quer levá-la
primeiro lugar a fim de ilustrar esse tema senão Baumgarten?
à sua perfeição espiritual. Essa perfeição não se encontra, por
Foi a própria graça que compôs a estéíica do seu bem-amado,
certo, no prazer mas na beleza, A beleza é fruição, mas fruição
o imortal Baumgarten: "fim sua elegante simplicidade e repletu
especificamente distinta daquela que provém dos instintos vitais.
desses traços minúsculos que escapam aos olhos da gente comum
Não é governada pelo poder exclusivo do descio mas pelo im­
e que para os profanos não parecem mais do que nuvens obs­
pulso anímico no sentido da intuição e do conhecimento puro.
É ela quem nos abre o caminho, movimento interior e esponta­ curas."7,1 De fato, a influência de Baumgarten ficuu limitada a
neidade pura; graças a ela, penetramos na verdadeira vila cogrti- um círculo muito reduzido e dificilmente deixou sua marca na
tionís sensitivae. A estética de Baumgarten, que nos abriu há história viva da nova poesia alemã. Lessing foi o primeiro a

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quebrar o tabu. Estava-lhe reservado fazer a síntese do pensa­ lógicas dos conceitos como tais, porquanto ele possui 0 dom de
mento e da ação, da teoria e da vida, e realizar assim píenamente reconduzir cada conceito às suas fontes vivas, dc compreendê-lo
a exigência da vita cognitionis de Bauragarten. Tudo o que este c dc explicá-lo a partir delas. Foi a tarefa que Lessing realizou
considerava pertinente ao caráter do verdadeiro esteta (ad cha- para os principais conceitos da estética do seu tempo. Os con­
racterem felicis Acslhétiçj pertinens) enconIra-se realizado no ceitos assim tratados e considerados perdem tudo o que podem
espírito de Lessing. Ne!e reencontram-se todos os elementos da comportar de formal; eles enchem-se e impregnam-se de um con-
ubertas, da magnitudo, da verilas, da clariias. da certitudo. de ictído concreto e intuitivo. E graças a esse conteúdo estão em
copia e da nobilitas encarnados num único ser; nele encontra-se condições de intervir diretamente no processo de criação artística.
a roais feliz mistura de dispositio acute semiendi e de dispositio O que é decisivo, na obra de Lessing, não é a matéria dos con­
naturaiis üd intaginandum, assim como de dispositio ad saporem ceitos como tais mas sua forma, não o seu quid no sentido da
non publicum, immo delicatum e de dispositio natural is ad definição mas sua transformação intelectual, No cadinho de seu
perspicaciam. É essa síntese que dá à obra de Lessing o seu espírito realiza-se passa a passo esse processo de mutaçSo, de
caráter incomparável e que lhe garantiu uma influência igual­ metamorfose, de metempsicose dos conceitos. Lessing renunciou
mente incomparável. Quando se tem somente sob os oihos o
ao título de poeta no sentido superior e estrito do termo porque
conteúdo de todos os conceitos estéticos fundamentais de Les­
estava consciente de não possuir esse poder mágico originário
sing, nada se enxerga que explique suficientemente essa influên­
por meio do qual o poeta, não contente em inventar ou imaginar
cia, £ que esse conteúdo não foi criado por Lessing mas foi-lhe
as formas, confere-lhes uma existência e uma vida próprias, Ele
quase inteiramente preparado. Será difícil encontrar em Lessing
sentia e sabia que esse modo de criação, cujas maiores obras
um único conceito ou uma unica tese que não tenha seu para­
épicas ou dramáticas tinha diante dos olhos, as de Homero ou
lelo exato na literatura do seu tempo, que não possa extrair-se
de Shakespeare, estava-lhe vedado. Mas se Lessing não é pos­
de alguma maneira dos textos de Baumgarten ou dos suíços, de
Shaftesbury, Dubos ou Diderot. Mas seria um equívoco e um suidor da magia pessoal e profunda de um grande poeta, toca-
desconhecimento total do problema pretender inferir dessa indi­ lhe em contrapartida a magia de um pensamento tal como ja­
cação das fontes de Lessing alguma objeção contra a originali­ mais, por assim dizer, houve outro com essa força e essa
dade do seu pensamento profundo. A originalidade de Lessing segurança. Todo conceito, ao penetrar no círculo desse pensa­
revela-se menos na "invenção" de novos temas de pensamento, mento, logo inicia sua mutação. De simples produtos que eram,
desconhecidos até então, do que na ordem e na conexão, na os conceitos voltam a ser forças criadoras originais e impulsos
mestria soberana, na distribuição lógica e na escolha desses espontâneos, Percebemo-fos mais como seres acabados, como
temas. A esse respeito, Lessing ê um lógico de primeira ordem; somatórios de signos determináveis e fixados; percebemos o seu
mas o seu tipo de análise e de seleção, dc crítica e de arquite­ devir e reconhecemos na modalidade desse devir, nn maneira
tônica, representa muito mais, evidentemente, que as conclusões como intervêm e nos objetivos longínquos, ainda indecifráveis,
e^as deduções de um processo de lógica formal. S i í s s atenções que rumo adoiam seu valor e sentido próprios. A doutrina de
não se dirigem exclusiva ou seletivamenente para as relações Lessing sobre as relações do génio e das regras, sobre as fron-

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teiras da pintura e da poesia, sobre as "sensações mistas", sobre mergulhara com todas as suas forças na ordem dos fatos, no
a importância dos signos para a classificação e o sistema das único, no regular, sem sucumbir nunca diante da força material
artes; tudo isso reencontramos, sob uma forma puramente dou­ da realidade dos fatos, da pura matter of fact. O talento funda­
trinal, em várias obras fundamentais da estética do século X V III. mental que ele sente e proclama era Herder é o da "palingene-
Mas a doutrina não encontra em nenhuma outra parte uma ver­ sia, a arte de fazer da poeira da história uma planla vicejante”.7T
dadeira força viva, em nenhuma outra parte ela se incorpora e Essa frase tem a mesma validade a respeito de Lessing e do
se assimila assim à vida da arte. A crítica de Lcssing não pre­ caráter próprio de sua obra crítica e estética. Ele possui em
tende apenas agir positivamente ao incentivar e "excitar" a cria­ relação aos conceitos e teoremas a mesma aptidão que Herder
ção artística, a qual só receberia, em todo caso, essa excitação a respeito do mundo da realidade histórica. Basla que lhes toque
e esse incitamento do exterior: ela é, na sua própria essência, para que sc lhes refira ou critique; distinga-os ou ordene-os,
um momento e um estada imanente dessa criação. Ela é "crítica para que nasça espontaneamente do processo lógico uma vida
criadora" no sentido de que está intimamente ligada â criação nova, para que os pensamentos passem por uma palingenesia
artística. Por esse caminho Lessing conduz a estética do Ilumi- específica. Lessing não procura deliberadamente, de maneira
nísmo, embora ele parece recolher-lhe a herança intelectual, nenhuma, essa novidade; jamais se esforça por obter a origina­
muito além dos objetivos e dos limites que ela até então se fixara. lidade pela originalidade. Pelo contrário, agarra-se com todas as
Só ele podia ter êxito onde tinham falhado Gottsched e os suí­ suas forças à tradição; dela possui um conhecimento completo,
ços, Voltaire e Oiderot, Shaftesbury e seus discípulos e suces- -f, gosta de seguir-lhe os indícios e os vestígios mais longínquos,
sores. Não só ele encerra a estética de uma época mas descobre, de enveredar pelos caminhos mais difíceis e mais obscuros. Mas
projetando-se para além de todos os dados e realidades da arte, nem por isso deixa de considerar que a aquisição é ^a is pre­
as novas "possibilidades" da arte poética. O maior serviço que ciosa do que a possessão. E é por isso que ele detém, como
ele prestou à literatura alemã foi o de ter reconhecido a legiti­ nenhum outro em sua época, esse poder criador que não vem de
midade dessas "possibilidades" e de ter-lhes preparado o cami­ uma oposição aos dados do passado mas sente em si mesmo a
nho. Entretanto, é subestimar profundamente o papel de Lessing força e a necessidade de recriar incessantemente a criação “para
despojar sua obra do seu verdadeiro sentido histórico, conside­ que ela nSo se refugie na rigidez". Lessing liberta as idéias e
rá-la — como fez uma obra recente sobre a teoria estética de as teorias da estética do século X V III desse perigo de rigidez,
LessingT® — um empreendimento nacional, não "europeu". As de inflexibilidade: é esse o mérito que lhe reconheceu de ime­
relações entre os conceitos gerais de Lessing e as formas e pro­ diato a jovem geração. Sabe-sc como Goethe descreve a influên­
blemas da literatura alemã do século X V III são inegáveis; mas cia do Laocoonte, de Lessing, cm Poesia e verdade: ele vê-se de
foi justamente nesse quadro que Lessing descobriu uma nova súbito, pela majestade das "grandiosas e profundas idéias” de
visão, um novo aspecto e um novo horizonte do mutido da arte Lessing, "arrebatado da região da indigente contemplação para
cm geral. Goethc disse de Herder que sua importância como o campo livre do pensamento". Essa força de arrebatamento
historiador e como filósofo da história estribava-se em que ele que Lessing possui no domínio da poesia, ele a transmitiu a toda

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a filosofia do século. Embora o século X V íI I se defina em
NOTAS
grande parte pelo dom ds crítica que o impulsiona e o domina,
e3e deve a Lessing não ter caído numa interpretação puramente
1 Le Bossu, Traité du poème épique, 1675; para aprofundar as teorias
negativa da crítica, ter sabido reconduzir a crítica à vida, tê-la de D 'A u b ig n a c e Le Bossu, cf. H einrich von Stein, Die Eniste'uung der
amoldado e manejado como ferramenta indispensável à vida, neueren Aesthetik, Stuttgart, 1886, pp. 25 e ss., 64 e ss.
assim como ao desenvolvimento e à constante renovação do 2 Cf. acim a pp. 324 e ss.
3 Cf. Descartes a Mersenne, julho de 1641: "T oda essa ciência que
espírito.
talvez se pudesse supor a mais submissa à nossa im aginação, porque ela
só considera as grandezas, as figuras e os movimentos, não está de m a ­
neira nenhum a baseada em seus fantasmas mas somente nas noções claras
e distintas de nosso espírito: o que é sobejamente sabido mesHio por aque­
les que pouco a aprofundaram ” . Oeuvres, ed. Adam-Tannery, III, p. 395.
4 Cf. acima op. 138 e ss.
5 Boileau, Epístola IX , Oeuvres, com t m comentário de Saint-Surin.
Paris, 1821, vol. II, pp. 111 e ss.
6 Tal é a opinião, por exemplo, de A lfred Baeumler, Kants Kritik
der Urteilskreft, ihre Gcschichte und Systematik, H alle, 1923, I, p. 43.
Baeumler comete um erro ao dizer que Crottsaz foi o primeiro, no seu
Traité du beau (1715) a utilizar a form ula: “ variedade reduzida a alguma
unidade" num contexto estético. 0 ser lido filosófico dessa fórm ula foi
inteiramente desenvolvido por Leibniz e estabelecido sistematii.\irin.-!ite em
referência expressa aos problemas estéticos. Cf. Leibniz, Von der Weisheit,
acima pp. 162 e ss.
7 N o tocante à lim itação da “ originalidade” à novidade da "expressão'1
na estética clássica, cf, por exemplo o tivro de Gustave Lanson, Boileau,
Paris. Í892, em particular pp. [31 e ss.: “ O artista tem sempre que criar
um a form a, a mais verdadeira, a mais expressiva, a mais bela, enfim ,
que puder.”
,s Cf. Condiílac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, e seu
artigo “L a langue des calculs’'.

’>Para o desenvolvimento histórico da doutrina das três unidades,
cf. por exemplo a exposição de Lanson, Histoire de ia littérature fran­
çaise, 22.a edição, Paris, 1930, pp. 420 e ss.
10 Boileau, Arte poética, Canto III.
11 Arte poética, C anto I II .
13 Goethe, Weimarer Ansgabe, vol. 45, p. 174.
i 3 D ubos, op. cit.. vol, II, sec. X I X : para o conjunto, cf. vol. II,
sec. X I I e ss.
14C f. acima pp. 81 e ss.
13 Diderot, Essai sur la peinture, cap. V II, Oeuvres (Assézat), X
pp. 517 e ss.

466 467
Para roais detalhes, ver H. v. Sicin, D le Bntsíehung der neueren M Cf. acima p. 374.
Aesthttik, pp. 87 c ss.
3» Cf. »cima pp, 39$ e *s
w [£m francês no original " O alegórico não c faiwi e a metáfora w Nas penetrantes e meticulosas anilisc* de A lfr. Baeumler sobre a
iem sua verdade, do mesmo modo que a ficção.*’ N. do T-] Bouhours, pré-história da Critica do itiíza, esse elemento, por estranho que pareça,
Manter# de bicn penser dons Ir* uuvroçcs dc Yesprit. p. 12; cf. Baeumler, passou quase inteiramente despercebido; a doutrina de Shaftesbury ficou
Kants K rilik der U ritilskra}it I, pp. 36 e w, om segundo plano e sua importância decisiva nunca foi reconhecida t
18 Cf. Baeumler, op. cit, p. 53. apreciada nos estudos de Baeumler que. ao m u m o tempo, deve confundir
!0 Dubos. R tfitx so nj critiques sur la poéiie et Iti peintnrt, parle I. e desordenar a« perspectivas históricas e sublinhar os valores segundo um
w Dubos, op, cilM vol II, sec. 23. sistema m uilu especial. N ão só a lese dc Baeumler apresenta, em termos
gerais, a e&téiica alemã do sccuEo X V ÍII como orientada mais para a
« [Em inglês no originai: "A beieí* não é uma quaTitfade nas pró­ França que para n Inglaterra mas. alfm disso, procura introduzir essa
prias coisas: existe meramcnle na mente que as comempta. e cada mente
tese até na coirenlc de pensamento que culmina com o conceito de gênio
percebe um* beleza diferente.” N. du T.J Hume. "O f tbe standard of de l.essing e dt; Kant. ''Muito anies que a influência inglesa se tornasse
laite”, cm Bssay* m oral p o litk a l and titerary, ed. Greeo A Grose, mais sensível na Alemanha, prccisn ele. o conceito de génio era popular
Londres. 189$, p. 269.
entre os -seguidores da escola dc W ulíf. Quando uma influência estran-
32 Hume, op. cil., p. 26J», geira entrou em jogo. ela veio da França 11 Tio da Tnglnterra. O livro dc
» t E m inglês no original: MA ri«óie |« e Platão. Epfcuro e Descartes Hclvéttus, De Pesprlt (1759), foi unui das obras mnis lida» e mais citadas
podem sucessivamente superar-se uns aos outros: mas Terênciõ e Virgílio da segunda metade do século. Aí se encontra a dcíiniçdo: 'O espirito é a
mantém um domínio Universal e indiscuiíveJ sobre as mentes dos homens. capacidade de produçSo criadora dos nossus pensamentos', e a frase: 'Gê­
A filosofia abstrata de Cícero perdeu m u crédito: a veemência de sua nio supõe sempre invençáoY' (op. cit,, p. 162) Mas se verdadeiramente
oratória ainda 6 objeto dc nossa admiraçõo/' N. do T.J Op. cil., p. 280. essa infFucncia histórica proveio do livro de Hclvétius. dever-se-ia. de
^ Djilerot, Cortas p&ra Sophte VoIEand de 2 dc setembro de 1762 um pOn*n dc vista teórico. lê-la na conta de quase um milagre. Se, com
c 4 de owiubro de 1767; quanto à estética de Dideroi. consultar cie pre­ efeito, em vez de atermo-nos à letra da definição do gênio por Helvélius,
ferência a nova e penetrante exposiçfio que dela faz Folkier^ki. Entre le tomarmos em consideração o sentido dc sua obra como um todo. veri­
Ciíifstdsm e el íe Rontam itrne, éluãe sur 1’esthétiqué * l les eslhéticiens du fica-se que a sua "doutrina do espírito” vai inteiramente na contracorreate
X V tH * siècíe. Paris, 1925, pp. 3 5 5 e *5 . das idéias essenciais e das premissas tôgicas e históricas da estética do
“ tEm francís no original: " O que é. pois. o gosto? Uma facilidade génio. A obra de Helvétius é escrita num espírito perfeitamente sensualista
adquirida por reiteradas experiíncias para captar o verdadeiro ou o bom. e explora a tese sensualista a fundo, até o ponto de afirmar que o ieco-
com a circunsiRnda que o torna bom e de ser pronta e vivamente afetado nhecimcEto da c\bt£ncia de faculdades intelectuais ‘‘superiores’’, oriundas
por ele,” N. do T.| Diderot, E u a i tu r ta ptinture, cap. V II. Oeuvres do quadro da scr.saçSo. assenta numa ilusão, auma presuaçáo de enten­
(Assézai), X , p. 519. dimento, Todas essas pretensas faculdades superiores são definitivamente
2 QDiderot, op. cit.. X . p. 519. reduzidas à sensação, elemento primitivo d<* vida anímica. Nenhum es­
(Em francês no origina]! " O homem belo é aquele a quem a na­ critor do scculo X V ltl foi tão longe quanto Hclvétiiu nesse nivelamento
tureza formou para cumprir com a maior desenvoTtura possível duas sensualista que suprime toda espontaneidade verdadeira do pensamento
grande# funções: a conservaçãu do indivíduo, a qual se estende a muitas e toda autonomia do querer, e c precisamente sobre esse ponto que, mes­
coisas, e a propagação da espécie, que se estende apena«) a uma.'* N. do mo na França e no círculo de setii amigoa mais próximos, a crír>ca atacou
T.] Sobre 0 "utilitarismo" e&tético de Diderot, cf. Folkiçrski, op. cit., sua obro. Isso torna ainda mais inconcebível que c m obra tenha influen­
pp. 383 e sa. ciado a doutrina alcmâ do genio c a tenha marcado mais fortemente que
28 Cf. acima pp. 121 e ss. os modelu-b inglese». Ewe movimento n io poitía. com efeito, desenvolver-
34 Ver, a esse propásim, a exposição do pcnuamento de Shaftesbury se e preparar o [ujjar parti « u s tema» principies e as grandeâ ImLas de
nas Pliilosop/tlschen fítiefen (Carla «1 filosóficas), de ScbilJcr; Werke «na ;cflexào sem quebrar todo o apurelho de pensamento teórico sobre o
(Cottasche Sifriilar-Ausgabe) X I, p. UB. quitl s* funJamíniviva a obra de l lílvétius. Sem dúvida. Helvéúus definiu

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o génio pela invenção mas sublinha sempre, cm termos precisos, n!ío <9 Bodmcr. Oriefwecliset von der NtUur ilex Poetischen (í<Mc(rmnef i
existir na homem nenhuma faculdade inventÍYa verdadeira, realmente (1736V Para mais ampla informação sobre as relações da escola suíça
expontânea e originária, e que aquilo a que chamamos invenção {Erfin- com a filosofia leibniz-wolffiana. ver H. v, Slein. Op. cit., pp. 279 e
dtinsf) consiste apenas numa cotnbinução, a a cscolhu e hábil associarão de ss.. 295.
elementos dados. Uma tal associação produz a aparência da novidade. <n Citado por Hettner, Lileraturgesch, des aehneluilvn Jahrhunderts,
Nada de essencialmente nova podia nascer dai. pois tudo o que aparece edição. Parte H l, Livro I. p. 359.
dessa maneira nada mais é que um disfarce, a metamorfose do dado da Cí. acima pp. 60 ss.
sensação. Discerne-se aí 0 rigoroso oposto. O contrapé exato de iodas
Zurique, 1740,
as idéias que representam a filosofia alemã do gênio, de todas as exi­
*9 Breilinfier. Critischen Dichtktinst, Zurique, 1740, p. 166; cf.
gências que ela quer fazer valer. Nenhuma idéia conduz de Helvétius
à idéia de "heautonomia do belo", ao nasso que na doutrina dc Shaf­ Hettner, op, cit., p. 3S2.
»0 Nos Prryntüthiitrn Xie* nchteif. cf. H. v. Stein, op, cit-, p. 281.
tesbury do “entusiasmo", do "prazer desinteressado", do genio do ho­
mem parente do "gênio do mundo" e seu igual, vamos encontrar, ** À ireqüeniementc cit.;i'.< e não menos frequentemente repetida,
indubitavelmente, os germes nova concepção que encontrou seu desen­ sem o menor sem ido crítico, frase dc Lotw, segundo a qual "a estética
volvimento e seu fundamento sistemático em Lessing, Herder e Kant, alemã começou com um explicito desdém de seu objeto” ( Gesch. der
Aesthctik in Deutsrhtand. P. 12) falta, portanto, a intenção profunda da
3* Young, Gedanken über die Originalwerkt (ed. alemã, Leipzig,
doutrina de Baumgarten. lá no prefácio do seu primeiro tratado Medt-
1760); para uma exposição mais detalhada da doutrina de Young, ver
tmlonts PhUnsophUüt áv nonnullis aã poema ptrlinentibtts (Hnlle, 173. ).
H. von Stein, op. cil„ pp. 136 e ss.
fiaumgarten levanta-se contra o preconceito de que c indigno do filósofo
-M C f. Hutcheson, op. cit., sec. 12 e passim.
0ttipar.se de queslõcs de arte. "Ntm c anttm [ . .1 mnterinm eam elegi,
an Dubos. op. cit., sec. I. qiiitr mullis quidetn habetitur tenuis rt a phUosophorum acunune reniir-
francês no original: " 0 sublime da Poesia e da Pinlura reside
íixsinta. m ihi videtur U I X™ ™ Ul enin' 1 * 1 hoc ^ .p . .
na emoção e no prazer que causam." N, do T.J Dubos, op. cit., parte 11, sophiait: et pM/nalis prtngendi scientiam habita.'; wepe pro dtsstíissimis
sec. 1. amicíssimo juncias ronnubio ponenm ob otuios, itsqtte w M H , in cvol-
,1 [Em francês no original: “O verdadeiro meio de conhecer-sc o vfnda piiematis et axtteiorum terminom») idea teneor e1c‘
mérito de um poema será sempre consultar a impressão que ele causa” , «-Cf por exemplo Baumgarten, Áeslhetica. S Ífi8‘ "Nec est analogi
N. do T.J Dubos, op. cit., pane II, see. 24. ratiom.t ordinário primas « r n W cansas, elemento et sMmintt prima pe-
8? Ibid., parte II, sec. 23; ver acima pp. 426 e ss. nititis exttminare. dum harrti in effectis phttrnomrnis? ,
3,1 Shaftesbury. The moralists, parle 3. see. 2, “Characteristics"; na A estítica é definida por Baumgarten desde O começo dc sua obra
2 * ed., Londres, 1714. It, p. 424. como a rs analogi rntimis, ver ProU-gontcna í 1.
Sobre essa tradução, ver H. v. Stein, op, cit., pp. 4 c ss. j i Cf. Acstlteiica 5 18: “ Pulcritiido cognitionii sensitivae eril univer­
41 IEm inglês no original: “ Uma espécie de deleite pleno de horror, salis coilirnsus cogitntionuni, quotenits Oiihuc tih rarum ordine et signa
uma espccie de tranqüilidade impregnada de terror”. N. do T.] Para o ahstrohimus, inlcr se ad nnum , qul phtienotnenon sit.
problema como um ludo, cf. Burke. A philosophical inquiry into the M “hiiptrium in luíiillatfs inl.-nvns posctíitr, non tyrow is’, Aesth.
origin of our ideas of tit e siiblinw and beau itfit I, Londres, 1756, espe­ i 12.
cialmente pp. 208 e ss.; para a dislinçâo que Burke faz enire pleasure e :,fl bssa tendência funda me tilai da nova ciência aparece com especial
delight, ver a exposição de Foikierski. Entre If Cla.tshistne et le Roman* clareia na expos.ii;no dc íieorg pricvintíh Meicr: cf. " A ufanaiftriindL- aller
tisme, pp, 59 c sS. sihãxrn Wisscnsi haftr-n", Parte L Halle, 1748. H 5, 13, 16 e ss., e
43 Cf. acima pp. 388 e ss. passim
*;l Cf. acima pp. 25 e ss. í-.f Aesthctica 1 I* Aeiihetiea (theorio UbcraUum artium, gnu^ologia
14 Soliloquy or advice ta an author, p;iric 3, see, I (“ Characteristics" mfenor ars p u hr t cogitandi. tíM analogi ralionts) « f scienlia cognltonu
I. 290). Sitniitivae.

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I
as A resp«iiD da oposição que subsiste entre a '‘conceptualização in­
dividualiza nie" de Baumgarten e a “contepluaLizaçfio abstralivaJ' de Wolff. i
cf. tm particular a exposição de Bat um 1er, op. cil-, pp. 198 c Ss.
au Sobre a distinção entre claridade “ intensiva" e “extensiva", ver
cm especial a* Medltatiunes de nornullis ad poema pertinentibus, Í î
13 c u .
M Aesthetica, § 14.
H1 Aesthctica, § 14.
1,2 Méditations Philosophien? de nonnullis ad poema pertinentibus, i 9.
*» Aesthetica, £ 28.
B,t Herder, Fragment über dit Ode, Werke (Suphan), X X X II. p. 83;
em especial: "Von Baum garten ä Denkart in seinen Schriften”, Werke,
XXX11. pp, 178 t ss., e “ Entwurf zu einer Denkschrift auf A. G. Baum­
garten. Í. D. Heitmann und Th. Abbt”, Werke, X X X II, pp. 175 e ss.
Acsthetica, 5 6
*** Ver, em especial, Aesthetica. SS 41 e ss.
0T Ci, os comentários característicos de Baum garlen. Meditationei
S XJV; "4V quLi ( . . . I In utraqite facultatif cognoxcitivae parte excellai et
qua/iilibet suo adhiberc loco duticerit, nae, itli sine al! crins detrimento
ad alteram exasclandam Incumbrt, et Aristotelem, Leibnitium cum ser-
l'enti.t alih pallium latiro jungentlbus fuhse sentiet prixligia, non miracula.0
**Cf, G. F, Meicr, Anjangsgründr «Her schönen Wissenschaften,
Vol. I. SS 5, 13, l î , 20 e passîm.
0B Cf. Leibniz. Mediiationes de coftnitione. veritate et ideis, Philos.
Schriften (Gerhard!), IV, p. 423.
T0 Mendelssohn, Briefe über die Empfindungen (1755), Quinta Carta.
11 Cf. acima pp. 149 c ss.
T3 Para mais detalhes sobre esse círculo dos “ libertinos'', ver Mornet,
La pensée française au X V IIIe siècle, Paris, 1929, p. 2S.
TÎCf. Sainl-Êvremond. Oeuvres ou'slées, Amsterdã, 1706; Rémond
le Grec, Aÿathon ou Dialogue de f<i volupté (1702); incluído no Recueil
de divers écrits, publicado por Saint-Hyaeinlhe; Baudot de Juilly, Dialogue
entre M. M. Patru et D ’A blancottrt sur les plaisirs (1700); G. I^anson
apresentou uma análise penetrante desses escritos no seu artigo: “Le rôle
de 1'espírience dans la formation de la philosophie du XVI[Ie siècle en
France" ( Études tf histoire littéraire, Paris. 1930, pp. 164 e ss.).
71 Cf. acima pp. 149 e Si.
Herder, Werke (Suphan), X X X , pp. 32 e ss.
T" Cf. Folkierski, Entre le Classicisme et le Romantisme. “O mérito
de Lessing*' — assim julga Folkierski (op. cit.. p, 578) — "è nacional e
não europeu.”
'■> Üoetbe a Herder, maio de 1775.

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