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EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema I

Princípios constitucionais e gerais do Processo Penal. Noções. Princípio da dignidade. Proporcionalidade.


Isonomia. Inviolabilidades da personalidade (comunicações em geral). Inviolabilidade do domicílio.
Inadmissibilidade de prova ilícita.

Notas de Aula

1. Princípios: introdução

Miguel Reale conceitua os princípios como as vigas mestras, a base de sustentação


de todo o ordenamento jurídico. Apesar da sua maior abstração e menor grau de
aplicabilidade imediata, quando comparados às regras, a sua violação é muito mais grave,
porque violar um princípio significa violar todo o ordenamento jurídico.
Não existe uma hierarquia entre os princípios. Em tese, há um valor igual a cada
um, e somente na confrontação concreta se poderá, pela aplicação da proporcionalidade
como medida da ponderação, verificar qual princípio terá mais peso (teoria dimension of
weight, de Ronald Dworkin).
Neste universo da ponderação de princípios colidentes, um deles escapa à regra: a
dignidade da pessoa humana, ou humanidade, é considerada imponderável. Isso porque
este princípio é o “tronco” do sistema, do ordenamento jurídico; todos os demais são
desdobramentos deste e, portanto, não podem contra este se voltar a fim de mitigá-lo. Por
conta de sua relevância, é preciso ser realizada uma abordagem mais detalhada dos reflexos
de tal princípio.

2. Dignidade da pessoa humana

Por volta do século XII, o processo penal se configurava, por mais absurdo que soe,
numa justificativa para a tortura e demais barbáries, com o fito de obter a “verdade”. O juiz,
nesta época, era um fiscal de Deus na terra, estando autorizado a tomar qualquer
providência para afastar o domínio do mal, e buscar a verdade real. Vê-se, então,
claramente, a concepção inquisitiva originária do processo penal.
É claro que estas concepções se alteraram, quando o antropocentrismo tornou o
homem o centro das relações: a dignidade da pessoa humana foi a grande responsável por
afastar a perspectiva inquisitiva do processo penal, trazendo ao ordenamento o sistema
acusatório.
Ocorre que o sistema acusatório, nesta época, ainda tinha o réu em uma posição de
inferioridade diante dos demais entes do processo. Por isso, criou-se a teoria dos
pressupostos processuais, a fim de aprimorar ainda mais a proteção à dignidade da pessoa
humana. Seguindo-se a teoria dos pressupostos, o réu se colocaria em pé de igualdade com
a acusação.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 127, estabelece que o promotor
de justiça poderia, ele próprio, aplicar medida sócio-educativa ao menor infrator, quando da
remissão. Veja:

“Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou


comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes,

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podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em


lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.”

Este dispositivo é clara ofensa ao sistema acusatório: o membro do MP não pode se


colocar em uma posição de superioridade no processo, pois o sistema acusatório, permeado
pela dignidade da pessoa humana, demanda paridade entre acusação e acusado. Por isso, o
STF entendeu que este artigo é inconstitucional, no que se refere à aplicação, pelo MP, de
tais medidas.
Na esteira deste entendimento, suscita-se outra questão: poderia o promotor
determinar a condução coercitiva do acusado ao seu gabinete, a fim de tomar-lhe
depoimento?
A doutrina tem entendido que não é possível esta conduta justamente pela
preservação da paridade entre a acusação e a defesa, no processo penal. O MP é parte, e
como tal, não tem ingerência sobre o acusado, não pode pô-lo em posição de subserviência,
pois desnaturaria o sistema acusatório.
Pode o MP exercer atividade investigativa, porém. Nada impede a atividade
investigativa do MP, apesar da polêmica que já se fez notar neste assunto, especialmente
quanto à invasão de atribuições da autoridade policial, presidente do inquérito. Este assunto
será tempestivamente abordado, de forma mais aprofundada.

3. Ampla defesa

Aquele que está submetido ao processo penal deve ter garantida a si a utilização de
todos os meios de prova admitidos em direito, em sua defesa.
A ampla defesa é satisfeita, no processo penal, de duas formas: pela autodefesa e
pela defesa técnica. Autodefesa é aquela realizada pelo próprio réu, e a técnica pelo
advogado.
A autodefesa se divide em direito de presença e direito de audiência. O direito de
presença é o direito do réu de presenciar e participar de toda a instrução probatória. Dito
isto, questiona-se: o réu preso precisa, necessariamente, ser requisitado para presenciar a
oitiva de testemunhas no juízo deprecado?
Há três entendimentos sobre esta questão. O primeiro, majoritário (especialmente
nos tribunais estaduais), defende que não há necessidade da presença do réu: basta a
presença da defesa técnica para não restar violada a ampla defesa. O segundo
posicionamento, de Fernando Capez, estabelece que há nulidade relativa se não estiver
presente o réu, e, como relativa, depende da prova do prejuízo à defesa esta ausência do
réu. E como última tese, a do STF: a Suprema Corte defende que o direito de presença é um
consectário da ampla defesa constitucional, e como tal, precisa ser exercido à mais
completa plenitude – o réu deve estar necessariamente presente, sob pena de nulidade
absoluta.
A interpretação do STF é bastante prejudicial a outros princípios processuais que
teriam, a rigor, tanta importância quanto a ampla defesa, tais como o interesse público, a
celeridade e a economia processual. Destarte, melhor seria uma leitura casuística do
princípio, e não tão radical quanto a do STF.
Outra questão que se suscita é a do réu que, revel em todo o processo, surge quando
já foi prolatada a sentença: deve este réu ser interrogado?

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Há também três correntes disputando esta resposta: a primeira tese, do STF e de


Fernando Capez, defende que o interrogatório só poderá ser dispensado a pedido da defesa
(sendo baixado para que o juiz de primeira instância realize a diligência, quando for feito);
o segundo posicionamento é de Marcellus Polastri Lima, que defende que haja
necessariamente o interrogatório, sob pena de nulidade absoluta; e o terceiro, de Eugênio
Pacelli, defende que a alteração no artigo 185 do CPP não deu ao réu o direito de ser
interrogado quando bem entender, mas sim o direito de ser interrogado no momento
processual correto, qual seja, no início da fase instrutória, após ser citado e antes da defesa
prévia – fora deste momento, só será realizado o interrogatório se o juiz assim o quiser.

“Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do


processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor,
constituído ou nomeado.
§ 1o O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em
que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz
e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a
segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
§ 2o Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista
reservada do acusado com seu defensor.”

Pelo ensejo, surge outra questão: há possibilidade de se realizar o interrogatório por


meio de videoconferência?
Há dois entendimentos: o primeiro posicionamento, amplamente majoritário, é de
que, em apreço à celeridade e economia processual, deve ser permitido este interrogatório
por videoconferência. Em verdade, este método é vantajoso para o réu, pois evita o
deslocamento, a colocação de algemas, longos períodos de jejum, ou seja, toda a penúria
que um dia de depoimento envolve para o réu preso. O segundo entendimento, encampado
pelo STF, defende que esta videoconferência é inconstitucional, pois ofende o devido
processo legal, pois o artigo 792 do CPP determina que as audiências devem ser realizadas
na sede do juízo1:

“Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e


se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do
secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou
previamente designados.
(...)”

Ademais, assevera o STF, há ofensa à ampla defesa, pois o réu tem também o
mencionado direito de audiência, outra vertente da autodefesa, como visto, que consiste na
possibilidade de comparecimento perante o juiz, narrando diretamente a sua versão do fato
que lhe é imputado – a imediatidade do juiz, o acesso direto e pessoal do réu ao juiz.
É importante não se confundir a situação exposta no artigo 217 do CPP, recém
alterado, com uma autorização legal para videoconferência: o réu, retirado da sala de oitiva
naquela hipótese ali narrada, vai acompanhar o testemunho por meio de vídeo, mas isto não
se confunde com uma videoconferência.

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Este argumento não subsistirá por muito tempo, pois a atual onda de reformas pontuais do CPP decerto
retirará esta obrigatoriedade do texto legal.

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“Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir
no ânimo da testemunha, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará
retirá-lo, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Neste
caso deverão constar do termo a ocorrência e os motivos que a determinaram.

3.1. Produção obrigatória de provas pelo réu

O réu poderia ser obrigado a realizar determinadas provas, no curso do processo


penal?
Maria Elizabeth Queijo, autora que tem obra dedicada exclusivamente a este tema
da produção de provas no processo penal (intitulada “O direito de não produzir prova
contra si mesmo”), defende que seria, sim, possível a produção coercitiva de provas pelo
réu. Veja: a ponderação que se tem em mente, nesta discussão, é a da ampla defesa e a
vedação da produção forçada de provas contrárias a si (nemo tenetur se detegere), oriunda
do Pacto de São José da Costa Rica, de um lado, e o interesse público na persecução
criminal, de outro.
Pendendo a balança para o lado da ampla defesa, havendo a vedação à produção
coercitiva de toda e qualquer prova pelo réu, a atividade investigativa restaria quase
inviabilizada, fomentando-se a criminalidade pela impunidade; pendendo para o interesse
público, o réu ficaria realmente desprotegido ante desmandos das autoridades. Por isso, o
meio-termo seria o ideal, e é justamente isso que propõe a autora citada.
A autora classifica as provas que têm relação com condutas do réu de duas formas:

- Intervenções corporais: São as provas obtidas no corpo do acusado. Divide-se esta


categoria em provas invasivas e provas não invasivas. As provas invasivas são
produzidas através da penetração no corpo do indivíduo, por qualquer meio. Como
exemplo, a extração de sangue para comparação de material biológico ou para
medição de dosagem de substâncias quaisquer, como o álcool. Esta prova corporal
invasiva não pode ser coercitivamente imposta ao réu, em nome da ampla defesa e
de seu direito ao corpo.
A intervenção corporal não invasiva, de seu lado, é aquela que é obtida na
superfície do corpo do réu: pêlos, fibras, dejetos, secreções, etc. O STF tende a
admitir a produção desta prova, mesmo contra a vontade do réu (posicionamento
acompanhado por Polastri), mas há corrente contrária, capitaneada pela Defensoria
Pública em geral, que também a entende vedada, em resguardo à ampla defesa e ao
Pacto de São José da Costa Rica.

- Provas que dependem da cooperação do investigado: Esta classe também se


divide em duas espécies: provas que dependem de cooperação ativa, e provas que
precisam da cooperação passiva. A cooperação ativa consiste na realização de
alguma atividade pelo acusado, ou senão a prova não se produz. Como exemplo, a
realização do teste do bafômetro, que depende do sopro do agente, ou o exame
grafotécnico, que depende da escrita pelo investigado. É pacífico que o agente não
pode ser coactado a realizar esta cooperação ativa, prestigiando a ampla defesa.
Já a cooperação passiva consiste na mera tolerância pelo réu que algo seja
realizado. Como exemplo, o reconhecimento, em que basta que o réu quede-se
inerte na linha de pessoas a serem comparadas, ou a realização de exame

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radiográfico, a fim de verificar ocultação de substâncias em cavidades internas do


corpo do agente. Esta prova pode ser forçosamente produzida, contra a vontade do
réu.

Na Alemanha, a concepção é bastante diversa, e, a todo ver, avançada. Lá, se o


crime praticado for grave, o acusado tem diminuídas as suas garantias individuais,
tolerando-se maior invasão a sua dignidade em defesa do majorado interesse público na
persecução do crime.

4. Inadmissibilidade da prova ilícita

O artigo 5°, LVI, da CRFB, estabelece a seguinte vedação:

“(...)
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
(...)”

A prova é ilícita, lato sensu, quando viola o direito penal ou o direito processual
penal. Daí surge a subdivisão em provas ilícitas e provas ilegítimas (para quem reconhece
tal divisão): a ilícita, stricto sensu, é a que viola direito material, e a ilegítima viola apenas
direito processual.
A inadmissibilidade da prova ilícita, porém, não é absoluta. É pacífico, na doutrina,
o entendimento que a prova ilícita, lato sensu, é admissível quando for pró-réu. Há dois
fundamentos que fazem permitida esta prova pró-réu: Paulo Rangel e Afrânio defendem
que o réu, ao produzir esta prova, estaria agindo em excludente de ilicitude, por estado de
necessidade. Assim, a prova não será antijurídica, pois o réu a produz em estado de
necessidade. O segundo argumento, do qual comunga o STF e Polastri, é a necessária
observação ao princípio da proporcionalidade: o artigo 5°, LVI, cede espaço à ampla defesa
e à liberdade individual.
As provas ilícitas pro societatis, contrárias ao réu, porém, contam com dois
entendimentos sobre sua admissibilidade: a primeira corrente, francamente majoritária na
doutrina e na jurisprudência, defende que são absolutamente inadmissíveis, pois a proibição
de provas ilícitas é característica fundamental do sistema acusatório, e nada há que permita
sua produção excepcional quando contrária ao réu (como na pró-réu o há). A segunda
corrente, de Polastri e Capez, e que conta com alguns poucos precedentes no STJ, defende
que, como qualquer outra garantia constitucional, esta também não é absoluta, e por isso, na
casuística, pode ser mitigada em prol de outra que assuma maior relevância – sopesando-se
pela proporcionalidade, quando o caso concreto demandar.
O artigo 157, recém reformado pela Lei 11.690/08, apenas positivou o que sempre
foi assim. Veja:

“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas


ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou
legais.
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não
evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas
puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

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§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites


típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de
conduzir ao fato objeto da prova.
§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta
será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
§ 4o (VETADO)”

4.1. Provas ilícitas por derivação

As provas ilícitas por derivação, the fruits of the poisonous tree, são igualmente
inadmissíveis em processo penal. Estas provas são lícitas em si mesmas, mas obtidas por
meio de um outro fato ou uma outra prova que, estes sim, são ilícitos. Um exemplo: o
agente obtém uma informação do suspeito por meio de tortura, e com esta informação
obtém um mandado judicial de busca e apreensão, de cuja diligência é descoberta uma
prova tal que é relevante ao crime investigado. Esta prova, obtida por meio do mandado de
busca e apreensão, é perfeitamente lícita em si mesma, pois que foi regular a diligência,
judicialmente autorizada. Entretanto, como derivou de conduta ilícita – tortura –, a ilicitude
do ato original contamina a prova que seria lícita, tornando-a ilícita por derivação.
Havia, na verdade, dois posicionamentos sobre esta ilicitude por derivação. Paulo
Rangel e Tornaghi defendiam, minoritariamente, que a CRFB só proibia expressamente a
prova ilícita, e não a ilícita por derivação, motivo pelo qual sua produção seria possível. É
claro que a segunda corrente, que defendia a contaminação, era mais coerente, e por isso
era majoritária.
Hoje, porém, a alteração do CPP trouxe esclarecimento a esta questão, no já
transcrito artigo 157, § 1°, do CPP, pondo fim à discussão: é ilícita a prova que deriva da
ilícita.
Há uma exceção a esta ilicitude por derivação, que sempre vigeu, e hoje pode-se
entender positivada neste § 1° do artigo 157 do CPP: a teoria da prova absolutamente
independente, calcada na descoberta inevitável (inevitable discovery). Veja: se a prova
deriva de ato ilícito, em regra, é ilícita; todavia, se a prova derivada fosse ser revelada de
qualquer forma, por outros meios válidos, não pode ser contaminada pela ilicitude: a
descoberta da prova seria inevitável, sendo irrelevante o ato ilícito que viciou um dos meios
de se alcançar aquela prova.

4.2. Prova produzida em flagrante delito

Outra cogitação que se deve fazer é sobre a ilicitude da prova no momento do


cometimento do crime: existe alguma prova que seja ilícita quando produzida em flagrante
próprio?
Pacelli emite uma assertiva em sua obra que tem bastante contundência, e igual
coerência: diz ele que “no momento em que o indivíduo está praticando o crime, ele não
tem a seu favor nenhum direito ou garantia constitucional”. Entenda: enquanto o agente
está praticando um crime, todos os bens que ordinariamente lhe são garantidos pela CRFB
são-lhe retirados: pode ser morto ou ferido em legitima defesa – a vida ou a integridade
física lhe são tiradas licitamente; pode ser fotografado, filmado, exposto em público sem
que se configure atentado indevido à intimidade; pode sofrer constrangimentos sem que a
dignidade da sua pessoa possa ser oponível ao constritor, etc.

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Sendo assim, qualquer prova produzida neste momento de cometimento do crime, é


absolutamente válida, pois não subsiste nenhuma garantia que a eive de ilicitude.

4.3. Destinatário da vedação à prova ilícita

Outra questão é sobre o destinatário da vedação à produção da prova ilícita: a quem


se destina a proibição da produção de prova ilícita, a todos os indivíduos ou somente aos
órgãos incumbidos da persecução criminal? Suponha-se a seguinte situação: pessoa do
povo suspeita de um crime, e, violando o domicilio do suposto agente, obtém provas do
cometimento da ação típica suspeitada. Esta prova é ilícita?
Pacelli defende que a norma proibitiva da produção de prova ilícita é destinada
apenas às autoridades envolvidas na persecução criminal, funcionando como forma de
desestímulo aos desmandos no jus persequendi. Por isso, a pessoa do povo poderia produzir
esta prova, licitamente. Todavia, esta posição não tem guarida no nosso ordenamento, pois,
tratando-se de uma garantia individual, sua interpretação deve ser a mais ampla possível: é
destinada, portanto, a todo e qualquer indivíduo, toda e qualquer prova2.

4.4. Apreensão de objetos abandonados pelo agente

A apreensão de objetos alheados do domínio do agente suspeito é lícita ou ilícita?


Pode a autoridade produzir prova a partir da apreensão de lixo deixado pelo suspeito, ou de
qualquer coisa por este abandonada?
A prova produzida a partir de itens abandonados, lixo, materiais corporais ou
secreções expelidas pelo suspeito (fios de cabelo, urina, saliva, desde que expelidas do
corpo voluntariamente), todas elas são válidas, perfeitamente lícitas. Se não é produzida
coercitivamente sobre a pessoa, nada obsta sua produção.
Veja: a intimidade não pode ser violada, ou seja, não pode o agente ser coagido a
fornecer este material em questão; contudo, quando expelido voluntariamente, nada estará
sendo violado, e por isso é possível a prova obtida por tal captação.

5. Interceptação telefônica

A prova produzida com a interceptação telefônica não consiste apenas nas fitas de
áudio obtidas, mas sim no laudo de degravação: este é a redução a texto daquilo que se
obteve na gravação.
Seria possível a utilização do laudo de degravação, obtido no processo criminal, em
outros processos, cíveis ou administrativos? Há três correntes disputando o tema: a
primeira, capitaneada por Ada Pellegrini, defende ser impossível este empréstimo, pois o
artigo 5°, XII, da CRFB, só permite este tipo de prova no processo criminal.

“(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial,
nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou
instrução processual penal;

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Ademais, fosse como entende Pacelli, o campo para fraudar tal norma seria enorme: bastaria, à autoridade,
solicitar a uma pessoa do povo que produzisse uma prova que, se a própria autoridade o fizesse, seria ilícita.

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(...)”

A segunda corrente, de Marcellus Polastri, defende que o processo é uno, ou seja,


todo e qualquer processo visa à pacificação de conflitos de interesse, e por conta dessa
unicidade, o processo civil pode se valer de tal prova.
A terceira corrente, do STF, defende que se o Estado já conhece o conteúdo da
prova, em razão do processo criminal, nada impede o uso desta nos demais processos, pois
assim como o processo, lato sensu, é uno, assim o é o Estado: o Estado é um só.
Dito isso, passemos a destrinchar o próprio conceito de interceptação telefônica, que
pode ser tida por expressão genérica, ampla, dividida em diversas espécies. Vejamos.
A interceptação telefônica em sentido estrito é a modalidade em que duas ou mais
pessoas travam um diálogo, e um terceiro grava esta conversação, sem consciência dos
interlocutores. É a esta forma de interceptação que o artigo 5°, XII, da CRFB faz referência,
e que foi regulamentada plenamente pela Lei 9.296/96.
A escuta telefônica, por sua vez, é a modalidade em que duas ou mais pessoas
conversam, e um terceiro, com a ciência de um dos interlocutores, grava a conversação. É
perfeitamente válida. Polastri, isoladamente, defende que, por não ser modalidade de
interceptação telefônica, não está regulamentada na Lei 9.296/96, não seria válida.
A gravação telefônica, por sua vez, consiste na gravação de uma conversação por
um dos próprios interlocutores, sem a ciência dos demais. Esta gravação não é
regulamentada pela Lei 9.296/96, e também não está prevista no artigo 5°, XII, da CRFB.
Por isso, a tendência jurisprudencial é considerar esta prova ilícita por violação ao direito à
intimidade, salvo se produzida em legitima defesa: se a pessoa que realiza a gravação está
sendo vítima de um crime (extorsão, por exemplo), pode se valer da prova, posto que a
ilicitude desta está elidida pela legítima defesa. Ada Pellegrini defende esta situação como o
direito de defesa em sentido amplo.
A gravação ambiental, que não se confunde com a telefônica, consiste na captação
de sons ou sinais produzidos em ambientes abertos ou fechados. Existe previsão legal para
a gravação ambiental na Lei 9.034/95, no artigo 2°, IV:

“Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos
já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de
provas:
(...)
IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou
acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial;
(...)”

A doutrina clássica trata a questão da seguinte forma: se a gravação ambiental for


realizada em local público, não há expectativa de intimidade, e por isso não há violação a
esta, e conseqüentemente a prova é lícita; se o local é privado, há expectativa de intimidade,
e a gravação será ilícita, salvo na hipótese do permissivo legal acima transcrito, Lei do
Crime Organizado.
Ocorre que este critério não pode ser assim estático. A doutrina mais moderna
defende que haja a verificação casuística da presença ou não da intimidade, pois pode haver
expectativa legítima de intimidade em um local público, e não a haver em um local privado.
Daniel Sarmento diz, então, que independentemente do local da gravação, devemos
verificar se na situação concreta há ou não expectativa de intimidade.

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É admissível o encontro fortuito na interceptação telefônica? Encontro fortuito é a


descoberta de uma prova por acaso, quando se buscava uma outra. Como exemplo, na
interceptação em busca de esclarecer um homicídio, se capta conversa que revela tráfico de
drogas. É admissível esta prova em relação ao tráfico?
Há diversos entendimentos. Para Luis Flávio Gomes, este encontro fortuito servirá
apenas como notitia criminis para dar início a uma outra investigação, sobre o crime em
suspeita. Polastri defende que pode ser utilizada desde que haja um nexo entre o crime
alvejado pela investigação e o crime descoberto. O STF entende que desde que o crime
descoberto também seja punido com reclusão, não há qualquer impedimento para sua
utilização, vez que a garantia constitucional da intimidade já foi mitigada.
A comissão parlamentar de inquérito não pode determinar interceptação telefônica,
uma vez que tem vigência a cláusula de reserva de jurisdição: somente é dado ao Judiciário
autorizar esta captação, esta mitigação à intimidade, como deixa claro o próprio artigo 5°,
XII, da CRFB. A cláusula de reserva de jurisdição é meio pelo qual a CRFB autoriza a
mitigação de alguns direitos apenas por ordem judicial. Todavia, a CPI pode determinar a
quebra do sigilo telefônico do investigado: quebrar o sigilo é revelar os dados telefônicos
pretéritos, ou seja, quais ligações foram feitas do número pertencente ao investigado, para
quem ligou, quando e por quanto tempo. A quebra do sigilo não se sujeita à reserva de
jurisdição, e é permitida sua realização pela CPI, de ofício.
Da mesma forma, o sigilo bancário e fiscal pode ser quebrado pela CPI, pois o
artigo 58, § 3°, da CRFB, autoriza expressamente. Tudo o que não estiver neste dispositivo,
é dado à reserva de jurisdição.

“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e


temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo
regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(...)
§ 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação
próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das
respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de
seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas
conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova
a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
(...)”

A CPI municipal, por sua vez, não pode quebrar sigilo telefônico, tampouco os
demais autorizativos constitucionais do artigo 58, § 3°, lhe são pertinentes: o dispositivo
determina que a CPI tem os mesmos poderes investigativos de autoridades judiciais, e
como na esfera municipal simplesmente não existe autoridade judicial, não há paradigma, e
não há esta permissão constitucional. O STF assim já decidiu em diversas oportunidades.

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6. Inviolabilidade de domicílio

O artigo 5°, XI, da CRFB, assim dispõe:

“(...)
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
(...)”

É nas exceções que se concentram os problemas. Vejamos:

- Flagrante delito: O alcance da expressão flagrante delito, nesta seara da


inviolabilidade do domicílio, é controvertido. O primeiro entendimento, minoritário,
representado por Geraldo Prado, determina que, tratando-se de norma excepcional,
interpreta-se restritivamente, o que faz com que a expressão refira-se somente ao
flagrante próprio, aquele em que há um contato visual com a prática criminosa –
artigo 302, incisos I e II do CPP:

“Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:


I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer
pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que
façam presumir ser ele autor da infração.”

O segundo entendimento, que prevalece na jurisprudência, é de que todas as


hipóteses de flagrante do artigo 302 do CPP admitem a violação de domicílio.

- Prestação de socorro: Esta exceção é bem clara, nada havendo de controverso: se


há risco à vida de alguém que será sanado pela violação do domicílio, nada obsta
que esta seja realizada.

- Determinação judicial: Como diz o dispositivo, a determinação judicial – leia-se


mandado de busca e apreensão – é habilitante de incurso no domicílio, durante o
dia. A busca e apreensão genérica, sem domicílio específico, seria possível? Há
dois entendimentos: a doutrina majoritária defende que, como é exceção, é
imprescindível que o local a ser violado, e o objeto da apreensão, sejam bastante
pormenorizados. Por isso, a busca e apreensão genérica, nos moldes “adentrar em
todas as casas de uma comunidade e apreender todo material criminoso encontrado”
é inconstitucional. O segundo posicionamento, pragmático, defende que diante da
dificuldade de se mapear determinadas comunidades, e diante do interesse público
por trás de toda persecução criminal, o óbice à busca e apreensão genérica é
indevido, e, excepcionalmente, esta deveria ser admitida.
O encontro fortuito na busca e apreensão é outro ponto cuja admissibilidade
é controvertida. Suponha-se que, buscando produtos do tráfico, a autoridade
encontre roupas sujas de sangue. Geraldo Prado, minoritariamente, defende que não

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se pode admitir tal apreensão fortuita, devendo a busca ater-se exatamente aos
limites do mandado. O segundo posicionamento, majoritário na jurisprudência,
entende que se a violação ao domicílio já se implementou por conta do mandado,
nenhum prejuízo maior à garantia será causado na utilização de uma prova
fortuitamente encontrada no interior do local, motivo pelo qual é prova
perfeitamente válida.
Veja que se a prova encontrada for ela própria a configuração de uma
atividade típica, o que se dá é a apreensão de objeto em flagrante delito: se, ao
buscar produtos do tráfico, a autoridade encontra uma arma, está incurso em porte
de arma em flagrante delito, sendo a apreensão válida pelo flagrante.

7. Proporcionalidade

O principio da proporcionalidade, em processo penal, traz três subprincípios: a


adequação, a intervenção mínima e a proporcionalidade estrita. vejamo-los.

7.1. Adequação

Segundo este subprincípio, só se admite ataque a um direito individual se o meio


utilizado puder contribuir para o resultado esperado pelo legislador.
Vejamos um exemplo prático: se há ciência de um estelionato, o estelionatário não
poderá sofrer prisão preventiva. A prisão é desproporcional, na vertente da adequação. É
inadequada porque este crime comina pena de um a cinco anos, como se vê no artigo 171
do CP, e por isso, mesmo havendo condenação definitiva, é passível de todas as benesses
que um crime de pena mínima não superior a um ano pode receber. Sendo assim, se o
indiciado não será preso nem mesmo após a condenação transitada em julgado, mantê-lo
preso agora, em momento pré-condenação, é desproporcional, inadequado.
Como curiosidade, Pacelli nomeia este subprincípio de princípio da
homogeneidade.

7.2. Intervenção mínima

Segundo este subprincípio da proporcionalidade, não basta a adequação do meio ao


fim pretendido. Este meio deve ser o mais idôneo e o que cause a menor restrição possível
ao paciente. Significa, portanto, que deve ser imposto o menor gravame possível ao
investigado.
Um exemplo: se uma prova pode ser satisfatoriamente produzida por meio de oitiva
de testemunhas, a intervenção mínima determina que a busca e apreensão não seja válida, e
se comandada, seja desproporcional.

7.3. Proporcionalidade em sentido estrito

Esta vertente significa a necessidade de se comparar, na situação concreta, qual bem


jurídico ou qual princípio deverá prevalecer na solução de uma questão qualquer. É
princípio de alta abstração, sendo preenchido na casuística.

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Casos Concretos

Questão 1

CARLOS, indiciado em inquérito por tráfico de entorpecentes, recebe uma


notificação do Ministério Público, convocando-o para prestar depoimento na sede da
Procuradoria-Geral de Justiça, sob pena de imputação de crime de desobediência, caso
não compareça. CARLOS impetra habeas corpus, postulando a cessação da coação ilegal
representada pela aludida convocação. Decida.

Resposta à Questão 1

Não pode o MP se colocar em posição de superioridade em relação ao acusado, pois


desnaturaria o próprio sistema acusatório.
A ilegalidade é clara: o crime de desobediência só se configura perante ordem
judicial descumprida, e não mera notificação do parquet. O MP não tem poder de coactar
ninguém a fazer alguma coisa, devendo peticionar ao juízo para que este sim, detentor de
poder coercitivo, o faça, sob pena de desobediência.

Questão 2

Em ação penal por tráfico de entorpecentes, o Juiz defere mandado judicial para a
interceptação do fluxo de comunicações de informática. Com base na prova obtida, o MP
oferece denúncia. A defesa requer a inadmissibilidade da prova por violação ao princípio
constitucional que proíbe a interceptação da comunicação de dados. Decida

Resposta à Questão 2

O artigo 5°, XII, da CRFB, apresenta relevância à solução da questão:

“(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial,
nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou
instrução processual penal;
(...)”

Veja que a redação coloca como invioláveis o sigilo de correspondência, das


comunicações telegráficas, dos dados e das comunicações telefônicas, mas faz uma
ressalva: no “último caso”, ordem judicial pode determinar a quebra para fins de
investigação criminal, nos moldes da lei que regulamentar esta quebra. E é na definição de
“último caso” que a doutrina se digladia.
Como o texto coloca entre vírgulas os “dados e comunicações telefônicas”, a
ressalva estaria se dirigindo às comunicações telefônicas, somente, ou aos dados e às
comunicações telefônicas? Há várias teses para explicar o alcance da expressão “último
caso” neste dispositivo.

Michell Nunes Midlej Maron 12


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Luiz Flávio Gomes e Fernando Capez defendem que só se refere às comunicações


telefônicas, mas dentro do conceito de comunicação telefônica se enquadra tudo que for
feito via cabo telefônico – ou seja, tudo que for por via telefônica pode ser alvo de o
interceptação.
Ada Pellegrini e Vicente Greco entendem que, tratando-se de norma excepcional, a
sua interpretação deve ser restritiva, e por isso o termo “último caso” refere-se apenas à
comunicação telefônica, que é exclusivamente a conversação travada via telefone.
Para o STF, e Tourinho, toda a expressão entre vírgulas – dados e comunicações
telefônicas – é passível de interceptação, pois trata-se de mera adequação gramatical da
leitura. O artigo 1°, parágrafo único, da Lei 9.296/96, expressamente admite a interceptação
de dados, parecendo referendar esta tese do STF.

“Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para


prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o
disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob
segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de
comunicações em sistemas de informática e telemática.”

O quarto posicionamento, de Lenio Streck e Polastri, defende que, em 1988, o


constituinte não podia prever o avanço na área de telecomunicações; logo, todas as formas
de comunicação à distância que hoje existem podem ser alvo de interceptação.
Adotando-se a tese do STF, a prova seria lícita, in casu.

Tema II

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Princípios (continuação). Juiz natural. Publicidade e motivação. Contraditório. Ampla defesa.


Intertemporalidade da norma processual. Devido processo legal. Favor rei. Presunção de inocência.

Notas de Aula

1. Presunção de inocência

Até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, presume-se inocente


o réu. Assim se lê no artigo 5°, LVII, da CRFB:

“(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória;
(...)”

É de se salientar que, na maior parte do direito comparado, a presunção de inocência


é afastada na prolação da sentença condenatória: a partir daí, mesmo sem haver o trânsito
em julgado, a presunção não mais subsiste.
O princípio da presunção de inocência tem duas vertentes: estabelece, de um lado,
uma norma probatória, e de outro uma norma de tratamento. Vejamos.

1.1. Presunção de inocência como norma probatória

A norma probatória estabelecida pela presunção de inocência determina que, se há


presunção de inocência do réu, todo o ônus da prova recai sobre a acusação. É daqui que
surge a famigerada diferença que se traça entre a dita verdade real, do processo penal, e a
verdade formal do processo civil: no processo civil, por exemplo, há a presunção de
veracidade na revelia, na ausência de contestação; no processo penal, a ausência de defesa
não provoca presunção de veracidade da acusação, pois esta deve ser materializada pelo
acusador – deve haver real materialidade na tese acusatória, devendo o acusador provar
cabal e substancialmente as suas alegações, mesmo na ausência de impugnação defensiva.
Aqui cabe uma digressão acerca da produção de provas pelo juiz no processo penal.
Há três entendimentos sobre o tema: o primeiro, absolutamente majoritário – STF e
Polastri, inclusive, contando agora com o amparo do recém alterado artigo 156 do CPP
(alterado pela Lei 11.690/08) –, defende que o juiz tem a plena capacidade auto-instrutória,
em prestigio à busca pela verdade real3. Veja:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado
ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de
provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e
proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização
de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

3
Para Elisa Ramos Pittaro Neves, o sistema acusatório é, de fato, incompatível com a verdade real. É
paradoxal defender a busca da verdade real, instituto do sistema inquisitorial (em que para a revelação da
suposta realidade qualquer meio é válido), com o sistema acusatório, que é justamente calcado em limitações
garantidoras da lisura procedimental na persecução. É crítica bastante isolada.

Michell Nunes Midlej Maron 14


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O segundo posicionamento, de Pacelli e Geraldo Prado, defende que o juiz pode,


excepcionalmente, produzir provas pró-réu, com o fito de equilibrar as forças do processo –
pelo que as provas produzidas pelo juízo que sejam pró-acusação nunca serão admissíveis.
Mas surge uma perplexidade: e se a prova que, de origem, intentava favorecer o réu, ao ser
produzida vem a ser-lhe prejudicial? Como os defensores desta corrente não solvem esta
imbricação, esta tese perde um pouco da sua força.
O terceiro posicionamento, de Luigi Ferrajoli e Luiz Gustavo Grandinette, defende
que o juiz não pode ter qualquer atividade probatória no processo penal. Corrente
extremamente garantista, defende que simplesmente não é sua função, e que, a rigor, não
precisa o juiz produzir prova alguma: se há a dúvida sobre a autoria ou materialidade, o juiz
deve ater-se à presunção de inocência, e absolver o réu, com fulcro no artigo 286, II, IV ou
VI, do CPP. Se o juiz pretende produzir qualquer prova, havendo a força da presunção de
inocência para fundear sua decisão, é porque, na verdade, pretende produzir provas
incriminadoras, transformando-se em acusador e desvirtuando o sistema, transformando-o
de acusatório para inquisitorial.

“Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde
que reconheça:
I - estar provada a inexistência do fato;
II - não haver prova da existência do fato;
III - não constituir o fato infração penal;
IV - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;
V - existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18,
19, 22 e 24, § 1o, do Código Penal);
VI - não existir prova suficiente para a condenação.”

Apesar da coerência, é corrente bastante minoritária, esta última.

1.2. Presunção de inocência como norma de tratamento

A presunção de inocência determina uma norma de tratamento, referindo-se


especialmente à prisão.
O CPP tratou do tema prisão baseando-se em um juízo de antecipação da
culpabilidade. Veja: o indivíduo preso em flagrante permaneceria preso até o trânsito em
julgado, salvo se fosse caso que comportasse fiança. Além disso, o CPP sempre permitiu (e
permite, ainda, a depender da concepção adotada) a prisão em razão de meros
acontecimentos processuais, as chamadas prisões automáticas, tais como a prisão
decorrente de condenação em primeira instância, do artigo 393, I, combinado com o artigo
594, ou a decorrente da pronúncia, do artigo 408, § 1°, do CPP (a qual não mais subsiste,
estando a alteração em vias de entrar em vigor).

“Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:


I - ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis,
como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;
II - ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.”

“Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança,
salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença
condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.”

Michell Nunes Midlej Maron 15


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“Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu


seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.
§ 1o Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção
julgar incurso o réu, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as
ordens necessárias para sua captura.
(...)”

Estas concepções anteriores foram severamente impactadas pela CRFB de 1988,


pela necessidade de fundamentação das decisões judiciais e pela presunção de inocência.
Com a nova leitura constitucional, toda e qualquer prisão prévia ao trânsito em julgado da
condenação deve ter natureza cautelar, ou seja, deve atender aos requisitos do artigo 312 do
CPP:

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para
assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e
indício suficiente de autoria.”

Assim, analisando a prisão do artigo 393, I, c/c o artigo 594 do CPP, e a do artigo
408, pode-se entender que haja compatibilidade com a CRFB? Há três correntes
doutrinárias disputando o tema. A primeira, de Rangel, Afrânio e Tornaghi, amparada pela
súmula 9 do STJ, defende que não há natureza cautelar nesta prisão, se tratando de uma
execução provisória da pena, e não há qualquer inconstitucionalidade porque é medida que,
de fato, pode beneficiar o réu com todas as medidas despenalizadoras da Lei de Execuções
Penais.

“Súmula 9, STJ: A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a


garantia constitucional da presunção de inocência.”

Apesar de sedutor, o argumento desta corrente não é coeso, porque continua sendo
uma prisão automática, não sendo realmente favorável ao réu retirar do juiz a
discricionariedade em julgar a necessidade ou não da prisão. E mais, a LEP, Lei 7.210/84,
no artigo 2°, parágrafo único, garante as suas benesses aos presos provisórios, não havendo
qualquer vantagem em receber, esta prisão, a configuração de execução provisória da pena4.

“Art. 2º A jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária, em todo o


Território Nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade
desta Lei e do Código de Processo Penal.
Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao
condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento
sujeito à jurisdição ordinária.”

O segundo posicionamento, de Polastri, STF e TJ/RJ, defende que esta prisão é


válida e foi recepcionada pela CRFB, desde que decretada em bases cautelares. Ou seja: é
prisão automática, mas devem estar presentes os requisitos do artigo 312 do CPP. Apesar de
4
Vale ressaltar que qualquer que seja a interpretação dada a esta prisão, se realizada, será computado o tempo
de cárcere para a pena total final, inclusive para a progressão de regime, ou seja, quer seja prisão cautelar,
quer seja execução provisória da pena. Assim se pode depreender da súmula 717 do STF: “não impede a
progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se
encontrar em prisão especial.”.

Michell Nunes Midlej Maron 16


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ser a posição majoritária, e solucionar o problema na prática, há uma falha na sua


concepção, que é a criação de um requisito que não está presente na lei: o artigo 594 não
remete à observância do artigo 312 para se efetuar a prisão, pelo que é uma criação de
requisito onde a lei não o previu.
Grandinette defende também a não recepção desta prisão, e aduz uma terceira
leitura, com base nesta crítica à segunda corrente: se existe a prisão preventiva, calcada no
artigo 312 do CPP, é esta que deve ser realizada quando da sentença condenatória, e não a
automática.

1.2.1. Prisão para garantir ordem pública

A prisão preventiva decretada como garantia da ordem pública, como autoriza o já


transcrito artigo 312 do CPP, é constitucional? É de natureza cautelar?
Há duas correntes. Fernando Tourinho e Auri Lopes Júnior defendem que a prisão
só é cautelar se apresentar instrumentalidade, ou seja, deve ser útil aos fins do processo. A
prisão preventiva para garantia da ordem pública, para eles, não atende aos fins do
processo, mas sim a algo externo a ele: a segurança pública. Logo, esta prisão, para eles,
não é cautelar, e por isso é inconstitucional.
A segunda corrente, absolutamente majoritária – unânime no direito comparado –,
aqui bem defendida por Pacelli e Polastri, entende que a ordem pública é motivo cautelar
plenamente válido, mas deve-se atentar para o conceito de instrumentalidade hipotética
(conceito de Calamandrei): basta que seja verificada a plausibilidade do direito invocado,
ou seja, que haja potencial para desordem pública, e estará justificada a necessidade
cautelar da prisão. Veja: esta prisão não tem por objetivo defender apenas o processo, mas
sim o Direito como um todo, pois a ordem pública é um bem constitucionalmente
protegido, e presente em quase todas as searas do direito. Na prática, o STF e o TJ/RJ
encampam esta tese, sem maiores conjecturas.

1.2.2. Prisão temporária

Outro assunto a ser abordado, acerca da presunção de inocência como norma de


tratamento, é a prisão temporária. Há quatro teses a explicar quais sejam os requisitos para
esta prisão. A primeira, de Capez e Damásio, defende que devem estar presentes os
requisitos do artigo 1°, III, da Lei 7.960/89, sede do fumus delicti, somado à previsão do
inciso I ou II do mesmo artigo, sedes do periculum in libertatis:
“Art. 1° Caberá prisão temporária:
I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos
necessários ao esclarecimento de sua identidade;
III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na
legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°);
b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);
c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°);
e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo
único);

Michell Nunes Midlej Maron 17


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g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223,
caput, e parágrafo único);
h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo
único);
i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°);
j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal
qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285);
l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;
m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em
qualquer de sua formas típicas;
n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);
o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986).”

Este primeiro entendimento é o majoritário na jurisprudência. O segundo


entendimento, de Vicente Greco, entende que para a decretação da prisão temporária basta a
presença dos requisitos que ensejam a prisão preventiva, do artigo 312 do CPP –
entendimento pífio, pois torna idênticos os institutos. O terceiro entendimento, de Mirabete,
defende que para haver prisão temporária, é necessária a presença de apenas uma das
circunstâncias do artigo 1° da Lei 7.960/89, ou seja, um dos incisos, sendo eles alternativos.
E a última corrente, de Polastri e Pacelli, defende que basta a presença da circunstância do
inciso I somada à do inciso III do artigo em comento, reputando redundante o inciso II, pois
estaria contido no inciso I.

1.2.3. Liberdade provisória

Este tema comporta discussão sobre este instituto, qual seja, seria correta a
proibição de liberdade provisória para crimes hediondos?
Apesar de a Lei 8.072/90 ter sofrido alterações pela Lei 11.464/07, dentre as quais
se retirou a vedação à liberdade provisória, dantes constante do artigo 2°, a discussão ainda
é relevante. Veja:

“Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes


e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II - fiança e liberdade provisória.
§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime
fechado.
§ 2º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o
réu poderá apelar em liberdade.
§ 3º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de
1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de trinta dias, prorrogável por
igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.
II - fiança.
§ 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime
fechado.
§ 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste
artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for
primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
§ 3o Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o
réu poderá apelar em liberdade.

Michell Nunes Midlej Maron 18


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§ 4o A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei n o 7.960, de 21 de dezembro de


1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável
por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.”

Agora, não é mais vedada a concessão de liberdade provisória, pela lei. Todavia, o
STF, em recente decisão, esposou entendimento contrário: para o STF, não pode haver
concessão de liberdade provisória para nenhum crime hediondo ou equiparado, mesmo a
despeito do que dispõe a nova redação da Lei 8.072/90. O Supremo assim entendeu por
interpretação do artigo 5°, XLIII, da CRFB, que dispõe:

“(...)
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
(...)”

Entenda: se o crime é inafiançável, significa que não pode receber a concessão da


liberdade provisória com pagamento de fiança. Ora, se a concessão de medida mais gravosa
é impossível, que dirá a mais branda, que é a concessão da liberdade provisória sem
pagamento de fiança. Pela lógica, então, se a medida menos benéfica é proibida, muito
mais proibida é a medida mais benéfica ao criminoso.
Ocorre que há ainda mais um reforço a esta tese do STF. A CRFB, neste artigo 5°,
XLIII, estabeleceu claramente um tratamento mais severo aos crimes hediondos
equiparados. É norma originária da CRFB, e sinaliza a vontade do constituinte originário
em dar tratamento mais gravoso a quem incorre nestas condutas criminosas. Sendo assim, a
lei que veda liberdade provisória, ou que dá qualquer tipo de tratamento mais severo aos
crimes hediondos e equiparados (tráfico, tortura e terrorismo), está apenas implementando a
exata vontade do constituinte – não há qualquer vício de inconstitucionalidade nesta norma.
Outrossim, prever tratamento mais severo a outros delitos, como a vedação à
liberdade provisória prevista no Estatuto do Desarmamento, ou na Lei 9.034/95, é vedação
inconstitucional, pois os crimes ali previstos não são do rol do artigo 5°, XLIII, da CRFB.
Não estão, tais crimes, sob a égide da excepcionalidade mais gravosa desejada pelo
constituinte, e por isso o tratamento mais severo é inconstitucional. Fossem eles hediondos
ou equiparados, a vedação seria plenamente constitucional; não o sendo, não podem ser
tratados com aquela maior gravidade.

2. Intertemporalidade da norma processual penal

A norma processual penal se aplica imediatamente aos processos em curso, salvo se


esta norma tiver caráter híbrido, ou seja, se tiver previsões de direito penal material, quando
será submetida à anterioridade, à retroatividade da norma mais benéfica, etc.
No artigo 2º, trata o CPP da temporalidade do direito processual penal: as normas de
processo penal não retroagem para alcançar os atos praticados na vigência de norma
anterior – é o princípio da irretroatividade absoluta. Desta forma, o direito processual
penal, instrumental, contrapõe-se ao direito penal material, onde é admitida a retroação – e
ultração – da norma mais benéfica (novatio legis in mellius).

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A lei processual não retroage jamais por dois motivos: por ser meramente
instrumental, não beneficia ou prejudica direito material algum, conseqüentemente não é
relevante em matéria de benefício jurídico, e; se retroagisse, a norma processual que revoga
uma outra determinada tornaria nulos todos os atos praticados dantes da revogação, o que,
evidentemente, tornaria impossível a estabilidade do processo, uma vez que não poderiam,
muitas vezes, ser refeitos os atos invalidados.

“Art. 2o A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade
dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.”

3. Juiz Natural

O princípio do juiz natural não foi adotado de forma plena no Brasil. Este princípio,
surgido no direito anglo-saxão, traz consigo, em sua mais completa extensão, três garantias:
a proibição da criação de tribunais de exceção; a garantia de julgamento diante de juiz
competente; e a vedação da criação de justiças especializadas.
Esta última vertente do princípio claramente não foi adotada no Brasil. Ao contrário,
é tradição nacional a especialização de justiças.
O respeito a este princípio, hoje, tem sido colocado como pressuposto de existência
do processo, quando se refere a regra de competência erigida na própria CRFB, e não mero
pressuposto de validade, como sempre foi.

4. Contraditório e devido processo legal

O princípio do contraditório determina que há a necessidade de informação para que


haja a possibilidade de reação. Justamente por isso, as provas colhidas no inquérito não são
suficientes para determinar uma condenação, pois como o inquérito é inquisitivo, tais
provas não foram passíveis de contraditório.
O devido processo legal no processo penal, por seu turno, determina que ninguém
poderá ser privado de sua liberdade, ou receber qualquer pena, sem que haja a observância
das regras estabelecidas no CPP, para o processo e procedimento. Corolário deste princípio
é o brocardo nulla poena sine judicio.
A transação penal seria mitigação ao devido processo legal? Seria pena aplicada
sem processo? Há dois entendimentos: o primeiro, majoritário, defende que a transação não
é pena, sob o argumento elíptico de que não há pena sem que haja o devido processo legal.
Para esta corrente, é medida de caráter administrativo.
O segundo posicionamento defende que não há qualquer inconstitucionalidade
porque existe o devido processo legal na transação, sem contar que trata-se de medida que,
de fato, prestigia a ampla defesa.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Por ocasião da sentença de pronúncia, o juiz não só afirma autoria e a


materialidade, como também refuta a tese de legítima defesa do réu, ingressando no mérito
das provas. A defesa alega a nulidade da sentença por ofensa ao princípio do devido
processo legal.
Como relator, você decidiria de que forma?

Resposta à Questão 1

O artigo 413, § 1°, do CPP, com nova redação determinada pela Lei 11.689/08,
determina que:

“Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da


materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação.
§ 1o A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do
fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o
juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as
circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.
(...)”

Assim, é correta a tese defensiva. O excesso de fundamentação na pronúncia a torna


nula. Não incumbe ao juiz da pronúncia avaliar questões meritórias, sob pena de nulidade,
uma vez que sua decisão teria potencial influência sobre o julgamento pelo Júri, sendo que
este deve ser feito sem qualquer carga decisória pretérita a lhe influenciar.

Questão 2

Em 2001, MARRENTINHO DA SILVA foi condenado por crime militar próprio


(deserção) à pena privativa de liberdade de 6 meses, além de ter respondido perante a
Justiça Comum por crime de desacato. Atualmente responde a dois processos por tráfico
de entorpecentes.
Em fevereiro de 2007, foi condenado como incurso no artigo 155, caput, do CP,
tendo sido aplicada a pena de 1 ano de reclusão, em regime aberto, e a 10 dias-multa.
Inconformada com a r. sentença, a defesa de MARRENTINHO DA SILVA apelou
pleiteando a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Em contra-razões, o MP afirmou que a sentença não merece reparos, uma vez que
o acusado possui maus antecedentes, haja vista as anotações contidas em sua FAC e, desta
forma, não cumpria os requisitos para a concessão do benefício pretendido.
Pergunta-se: As anotações contidas na FAC, ainda sem resultado, podem ser
consideradas como maus antecedentes? Justifique.

Resposta à Questão 2

As anotações da FAC não configuram maus antecedentes, pois se o fizessem


restaria violada a presunção de inocência. Entretanto, o STF entende que estas anotações na

Michell Nunes Midlej Maron 21


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FAC, mesmo antes do trânsito em julgado da condenação sobre os fatos de que tratam, são
consideradas maus antecedente, contrariando o entendimento mais técnico.

Tema III

Sistemas Processuais. 1. Sistema acusatório individualista (Antigüidade, Roma): - acusação penal privada
(qualquer do povo/ofendido); processo: "coisa das partes"; iudex secundum allegata et probato partium
decidire. 2. Sistema inquisitorial (Idade Média, Europa continental): - interesse do Estado em combater o

Michell Nunes Midlej Maron 22


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crime; - juiz-inquisidor: acusa e julga; parcialidade do juiz; iniciativa das provas na busca da "verdade
real". - relação processual linear (e não triangular); réu objeto de investigação; confissão. - sistema da
prova tarifada, como tentativa de limitar os poderes do juiz. 3. Sistema acusatório atual: - publicização:
acusação a cargo de um órgão público; Ministério Público como garantia da neutralidade do Judiciário; - a
influência da cultura inquisitorialista da Europa continental. O sistema anglo-saxão. - Brasil: CF de 88 x
CPP de 41: Garantismo x Escola Positiva (defesa social); a inspiração fascista do CPP brasileiro (Código
Rocco) e a CF liberal democrática. - resquícios de inquisitorialismo no CPP: artigos 5º, II (requisição da
autoridade judiciária); 13, II; 10, § 3º; art. 28; art. 384. Os artigos 26 e 531 e segs.

Notas de Aula

1. Sistemas processuais: evolução histórica

Em Roma, todos os conflitos de interesse eram resolvidos na esfera privada. Os


praetores, que erroneamente são confundidos com os atuais magistrados, eram os
coordenadores do julgamento, que era feito por juizes eleitos para a solução de conflitos, e
por vezes esta pessoa, este particular eleito, não tinha qualquer relação com o direito, não
sendo um jurista, mas apenas um individuo cuja reputação e respeitabilidade social o
tornava digno de credibilidade para tal posto.
Não sendo este praetor o juiz, era apenas um consultor para que os juizes pudessem
contar com alguma técnica jurídica por trás de seus julgamentos. Esta época é conhecida
como o Direito Formular Romano: o praetor fornecia aos litigantes e aos juizes fórmulas
para o julgamento, algo similares, estas fórmulas, aos quesitos que hoje são o método do
Tribunal do Júri. De acordo com as respostas às fórmulas, o pleito seria julgado procedente,
parcialmente procedente ou improcedente.
Ao angariar complexidade, o sistema começou a apresentar uma série de pequenas
atribulações que precisavam de solução. Como exemplo, o indivíduo que se via julgado
mais de uma vez pelo mesmo fato, ou simultaneamente em dois juízos, o que ocorria,
percebeu que isto não estava correto, e por isso surgiram as exceções. Destarte, as exceções,
que hoje são meios de defesa processual, surgiram nesta época, e sua nomenclatura vem
realmente do sentido vulgar da palavra, do seu sentido etimológico: o fato seria julgado de
tal forma, exceto se já foi julgado (exceção da coisa julgada), ou exceto se houvesse
processo em curso pelo mesmo fato (exceção da litispendência)5.
Caminhando para a Idade Média, este sistema de julgamento privado perdeu força, e
o sistema inquisitivo tomou corpo. Neste momento, o julgamento passou às mãos do
Estado, sendo que a nota característica mais marcante deste sistema é o acúmulo de funções
pelo mesmo órgão, ou seja, o órgão estatal que julgava também acusava, restando apenas a
defesa ao acusado. Os tribunais eclesiásticos eram assim conformados: o juiz-acusador
inquisitorial preparava a acusação e decidia o pleito, sem qualquer tipo de garantia
processual ao acusado (garantias que, apesar de propugnadas pelo Estado à época, eram
absolutamente falaciosas).
Avançando na história, a Revolução Francesa, de 1789, foi o marco do surgimento
real do sistema acusatório. Neste, há o órgão responsável pela acusação especificamente
delineado, e o juiz incumbido apenas do julgamento, como hoje se demonstra. O órgão de
acusação, desde então, é o Ministério Público, o parquet6. Como hoje vige o sistema
acusatório, em nosso ordenamento, passemos a estudá-lo amiúde.
5
A título de curiosidade, a reconvenção do Direito Processual Civil surgiu no Direito Canônico, e não no
Direito Romano.

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2. Sistema acusatório no Brasil e o sistema inquisitório

De início, cumpre deixar claro que o sistema acusatório vigente no Brasil não é
exatamente puro. O hibridismo é latente, sendo esta natureza chancelada claramente pelas
Cortes Maiores, STJ e STF.
Veja: as Cortes Superiores têm grande cautela em rejeitar dispositivos que têm
nítida natureza inquisitiva, motivo pelo qual se entende que há um certo respeito pela
herança inquisitória – pelo que se pode entender que o hibridismo é uma realidade em
nosso sistema acusatório.
Tomemos por exemplo o sistema acusatório que vige na Europa, a exemplo de
Portugal ou Itália: lá, existe a figura do juizado de instrução, que consiste no juízo que atua
exclusivamente na fase investigatória, exaurindo sua competência no momento de receber
ou rejeitar a denúncia – fase que se assemelha um pouco à primeira fase do julgamento no
Júri, e por isso também recebe o nome de judicium accusationis. Na fase investigatória, o
único intento é a reunião de justa causa que habilite o oferecimento de denúncia, tanto que
o recebimento faz iniciada a segunda fase, o judicium causae.
No judicium causae, passa a atuar, no sistema acusatório efetivo, puro, o “juiz
julgador”, expressão pleonástica que se faz necessária para identificar o juiz que,
completamente alheio à fase investigativa, isento da parcialidade que é imanente a esta
fase, realmente vai julgar o pleito.
Veja que este modelo puro de sistema acusatório é perfeito, pois o juízo que vai
efetivamente julgar ingressa no processo de forma realmente imparcial, sem qualquer juízo
de valor pré-concebido sobre a demanda.
Em Portugal, por exemplo, o processo já se inicia com o inquérito, e atua o juiz
instrutor em todas as fases da investigação, concedendo cautelares que se fizerem
necessárias, e tudo o mais que se fizer imposto à jurisdição. O último ato para o qual o juiz
instrutor é competente é o recebimento ou rejeição da denúncia; recebida, passa o processo
à competência do juiz da causa7.
Veja que este sistema acusatório europeu é mais puro que o brasileiro porque
permite ao “juiz julgador” uma ampla isenção diante do trâmite investigativo, pois, não
tendo se envolvido de forma alguma na investigação, sua convicção não sofre
contaminação pelos atos de investigação, resguardando mormente a imparcialidade.
No Brasil, o sistema acusatório é diferente, como já se pôde notar. Por aqui, o juiz
que eventualmente atua na investigação também será julgador da causa, quando denunciado
o acusado.
Analisemos o artigo 5° do CPP:

“Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:


I - de ofício;

6
Outra curiosidade é o surgimento do termo parquet. Este termo, que do francês significa “assoalho”, surgiu
como uma referência um tanto jocosa sobre a posição do membro do MP nos julgamentos, pois a arquitetura
francesa não contemplava assento ao lado do juiz para o MP (pois à época inquisitorial apenas existia o juiz e
o réu), sendo este membro legado ao assoalho do salão de julgamento.
7
O juiz instrutor não se confunde, absolutamente, com o parquet: são órgãos absolutamente diversos, ao
contrário do que fazem entender alguns doutrinadores brasileiros. O juiz instrutor é juiz, entidade passiva no
processo, inerte, sendo provocado pelo MP na fase investigativa.

Michell Nunes Midlej Maron 24


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II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a


requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
§ 1o O requerimento a que se refere o no II conterá sempre que possível:
a) a narração do fato, com todas as circunstâncias;
b) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de
convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de
impossibilidade de o fazer;
c) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência.
§ 2o Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá
recurso para o chefe de Polícia.
§ 3o Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração
penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à
autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará
instaurar inquérito.
§ 4o O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não
poderá sem ela ser iniciado.
§ 5o Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a
inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la.”

O inciso I deste artigo estabelece que a autoridade policial pode iniciar o inquérito
de ofício. Esta previsão é absolutamente condizente com o sistema acusatório, visto que é
da incumbência do delegado justamente proceder à investigação, presidindo-a, instaurando
o processo por meio de portaria ou por auto de prisão em flagrante (ou, no JECrim, pelo
termo circunstanciado).
Ocorre que o inciso II deste artigo estabelece que tanto o MP quanto o juiz poderá
requisitar a instauração do inquérito. Quanto ao MP, nada há a criticar, pois é a ele que se
destina o produto do inquérito, ou seja, o destinatário do inquérito é o MP, a fim de
subsidiar a denúncia, se necessário. É quanto à instauração de inquérito por requisição do
juiz que se apõem críticas: a doutrina mais esclarecida – por todos, Marcellus Polastri –
entende que esta requisição do juízo é uma violação tão severa à imparcialidade que
compromete insanavelmente o sistema acusatório, pelo que não teria sido recepcionada.
Veja: o juiz, ao requisitar o inquérito, está dando início ao procedimento inquisitório
investigativo, estando claramente se imiscuindo nas atividades da polícia judiciária,
conforme o artigo 144, § 1°, IV, e § 4°, da CRFB, e nas atividades exclusivas do MP, como
prevê o artigo 129, I, d CRFB:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de


todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(...)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
(...)
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
(...)
§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares.
(...)”

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:


I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

(...)”

Assim, quando o juiz requisita a instauração de inquérito, não está agindo como
órgão eqüidistante, mas sim como órgão de repressão estatal, comprometendo sua
imparcialidade. Mas e se o juiz o fizer, se realmente requisitar a instauração do inquérito
policial – o que é freqüente na prática –, como resguardar a integridade do sistema
acusatório?
A doutrina defende que o juiz que requisita a instauração do inquérito fica impedido
para todos os atos subseqüentes, nos termos do artigo 252, III, do CPP:

“Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:


(...)
III - tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de
direito, sobre a questão;
(...)”

Veja que, para se chegar a esta conclusão, do impedimento, Marcellus Polastri e a


doutrina que a ele se une fazem uma interpretação ontológica, compreensiva, do artigo 252,
III, do CPP. Isto porque a hipótese expressa deste dispositivo é a manifestação em outra
instância do processo, e o inquérito não é outra instância, sendo as manifestações do juízo
em seu curso manifestações da primeira instância. Alguns autores entendem ser uma
interpretação extensiva, mas não procede este entendimento, porque o rol do artigo em
comento é taxativo, não podendo ser adicionada hipótese a tal rol (para rol taxativo, a
interpretação é sempre restritiva).
A interpretação compreensiva, ontológica, significa revelar o que realmente se pode
entender sob a égide da proteção daquela norma. Veja: ao proibir a manifestação de juiz que
já se manifestara, o legislador pretendeu evitar pré-julgamento no processo; entendendo-se
a incursão na fase investigativa – para além disso, a provocação originária da fase
investigativa – como um caso de pré-julgamento, a hipótese está açambarcada na norma
impeditiva do artigo 252, III, do CPP (está compreendida ali, por isso a terminologia da
interpretação compreensiva).
Este entendimento é absolutamente dominante na doutrina. Todavia, não é acolhido
na jurisprudência das Cortes Superiores. O STJ e o STF não entendem que haja não-
recepção do artigo 5°, II, do CPP, não tendo ainda havido decisão qualquer destes tribunais
contrária ao dispositivo, sob o argumento de que o juiz ordena a instauração do inquérito,
mas, a partir de então, quem o preside é a autoridade policial, sob controle externo do MP,
pelo que o juiz conserva a sua eqüidistância e imparcialidade. De fato, tampouco
consideram impedido o juiz que requisitou a instauração do inquérito, pois entendem que
não houve qualquer violação à inércia e imparcialidade.
Em verdade, este posicionamento cauteloso do STF é mais político do que jurídico,
pois fosse declarada a não-recepção do artigo 5°, II, do CPP, como quer a doutrina, o STF
simplesmente teria que declarar não-recepcionado todo o sistema acusatório como o é hoje.
Entenda: qualquer medida cautelar preparatória a uma ação penal torna prevento o juízo,
bastando para isso a mera distribuição a si do pleito cautelar, se este estiver em uma mesma
circunscrição judiciária em que outros se encontrem – como estabelece o artigo 75 do CPP;
ou, se estiverem os juízos competentes em mais de uma comarca, a prática de um ato
decisório, como determina o artigo 83 do CPP:

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 75. A precedência da distribuição fixará a competência quando, na mesma


circunscrição judiciária, houver mais de um juiz igualmente competente.
Parágrafo único. A distribuição realizada para o efeito da concessão de fiança ou
da decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou
queixa prevenirá a da ação penal.”

“Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo
dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um
deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida
a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts.
70, § 3o, 71, 72, § 2o, e 78, II, c).”

Assim, o mesmo juiz que comanda as cautelares será responsável pelo julgamento
do mérito, após a denúncia. O mesmo juiz que interveio na investigação é quem será
competente por prevenção. E é claro que a propensão de um juízo que vem atuando na
investigação é condenatória, pois do contrário não teria encontrado bases para concessão
das cautelares investigatórias, por exemplo. Se fosse seguido à risca o entendimento da
doutrina, sempre que houvesse uma cautelar haveria o impedimento do artigo 252, III, do
CPP – por isso o STF é tão cauteloso em declarar não recepcionado o artigo 5°, II, ou o
impedimento do artigo 252, III do CPP.
A doutrina, ao fazer estas proposições, está, de fato, tentando implementar, de lege
lata, a figura do juiz instrutor, ao modelo europeu, pois quem atuasse na investigação não
poderia atuar após a denúncia.
O STF defende a integridade do sistema dizendo que o juiz que atuou na
investigação é ainda imparcial, pois todas estas medidas cautelares foram determinadas em
uma cognição sumária, encerrando valoração precária, rebus sic stantibus, em juízo de
probabilidade, revogável, e que portanto não comprometeria a imparcialidade deste juízo.

2.1. Requisição judicial de instauração do inquérito por notícia anônima de crime

Outra questão a se cogitar é a de um inquérito policial instaurado por requisição do


juízo, mas que tem por base única e exclusivamente uma denúncia anônima. A noticia de
crime anônima8, apócrifa, não possui valor algum, nem mesmo indiciário, mesmo porque o
artigo 5°, § 3°, do CPP, já transcrito, é expresso em exigir uma mínima justa causa para a
instauração de um inquérito policial, e, além disso, o artigo 5°, IV, da CRFB, estabelece que
o anonimato é expressamente vedado.

“(...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...)”

Destarte, um inquérito policial instaurado sem indícios concretos do crime é


absolutamente ilegal, inconstitucional. Sendo assim, este inquérito instaurado pelo
delegado, mediante requisição do juiz (ou pelo MP), mas com base apenas em uma
denúncia anônima, é alvo fácil de um habeas corpus. Suponha-se que haja efetiva
impetração deste habeas corpus: quem será a autoridade coatora, juiz ou delegado? E,
decorrendo de quem seja, qual será o juízo competente para conhecer do writ?
8
Não significa que uma denúncia anônima seja inútil: ela é apenas o estopim para que, colhendo-se maiores
indícios em uma verificação preliminar, instaure-se o inquérito.

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Veja: a requisição do juiz para instauração do inquérito é uma ordem. Por isso, um
primeiro entendimento, mais antigo, aponta como autoridade coatora o juiz que a proferiu,
e por isso a competência para o HC seria do TJ, na esfera estadual, e TRF, na esfera federal.
Esta orientação não prevalece mais, sendo o entendimento atual do STJ que a autoridade
coatora é de fato o delegado, e a competência é do juízo de primeira instância, estadual ou
federal. Veja porque: a instauração do inquérito é um ato administrativo, e não
jurisdicional; e neste caso, é um ato complexo, porque concorrem para a sua formação duas
manifestações de órgãos diversos, do juiz (para todos os efeitos, leia-se também MP), ao
requisitar a instauração, e da autoridade policial, o delegado, ao efetivamente instaurar. Ao
se analisar, então, a autoridade a ser eleita como impetrada, se coloca no pólo a autoridade
imediata, que, in casu, é o delegado.
E mais: se houvesse uma relação de hierarquia entre o juiz e o delegado, este não
estaria obrigado a cumprir uma ordem manifestamente ilegal como esta da instauração, em
razão da autotutela da administração publica e da legalidade. Todavia, sabe-se que não há
uma hierarquia entre autoridade judiciária e delegado, havendo mera relação funcional.
Sendo a ordem ilegal, menos ainda haveria o delegado de cumpri-la: se nem mesmo
havendo relação hierárquica havia obrigação, que dirá sem vínculo de subordinação. Por
isso, ao instaurar o inquérito, ao acatar a ordem, o delegado comungou do entendimento do
juiz, aderindo subjetivamente ao entendimento de que era devida a instauração do
inquérito9. Sendo assim, é ele o autor imediato, autoridade coatora que deve figurar no
pólo, e a competência é do juízo de primeira instância10.

2.2. Interrogatório judicial e policial

Outro ponto que merece análise diz respeito ao artigo 6°, V, do CPP:

“Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade


policial deverá:
(...)
V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no
Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado
por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;
(...)”

O CPP é de 1941, o que merece consideração, vez que é contemporâneo ao


fascismo e ao nazismo, e de clara inspiração no processo penal italiano, no Código
Mussolínico. Este dispositivo dispõe que o interrogatório no inquérito sofrerá aplicação,
naquilo que for cabível, dos dispositivos atinentes ao interrogatório judicial – o qual foi
concebido de forma absolutamente inquisitorial. O interrogatório judicial era ato privativo
do magistrado, com presença facultativa do MP e do advogado (obrigatórias apenas se o réu
fosse menor de 21 anos). Importar este modelo, então, para o inquérito policial, em nada
gerava incongruências: era um modelo inquisitivo sendo importado para um rito
inquisitivo.
9
Ao contrário do que se pensa, é claro que o delegado poderá deixar de atender a uma requisição do juiz ou
do MP quando esta ordem for manifestamente ilegal.
10
Sendo o delegado a autoridade coatora, poderia ocorrer de o HC contra o ato ser distribuído para o próprio
juiz que requisitou a instauração do inquérito (lembrando que esta requisição não induz prevenção). Se esta
distribuição ocorrer, haverá o impedimento, com fulcro no artigo 252, II, do CPP.

Michell Nunes Midlej Maron 28


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ocorre que a Lei 10.792/03 reformulou inteiramente o interrogatório judicial. Hoje,


o interrogatório judicial tem natureza híbrida – é meio de prova e meio de defesa, como se
vê dos artigos 185 e seguintes do CPP – insertos no título dedicado às provas. Assim, o
interrogado é mais do que uma pessoa, um objeto de investigação, o que apresenta nota
claramente inquisitorial. Entretanto, o interrogatório hoje é fundamentalmente meio de
defesa, mais do que prova: a Lei 10.792/03 passa esta característica ao ato. Veja:

“Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do


processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor,
constituído ou nomeado.
§ 1o O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em
que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz
e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a
segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
§ 2o Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista
reservada do acusado com seu defensor.”

Três inovações notáveis trazidas ao interrogatório são:

- A presença do defensor técnico ao interrogatório, como dita o caput deste artigo


185, é mandatória, sob pena de nulidade absoluta (posição abraçada pelo STF).
Mesmo por isso, o artigo 194 se tornou inútil, tendo sido revogado por esta lei, pois
nenhuma relevância tem a idade do interrogado para a nulidade: a presença do
defensor é imperativa, qualquer que seja a idade do interrogado.

- O réu tem o direito de se entrevistar pessoal e reservadamente com seu defensor,


previamente à realização do interrogatório, como dita o artigo 185, § 2°, do CPP.
Esta entrevista se presta a burilar tecnicamente a autodefesa do réu, de forma a
possibilitar o uso do interrogatório como meio de defesa.

- O advogado passou a ter uma postura ativa no interrogatório: antes, o ato era
privativo do juiz, sendo dado exclusivamente a este formular e conduzir perguntas.
Hoje, o artigo 188 do CPP transformou o interrogatório judicial em uma audiência
em contraditório, onde, após as perguntas do juízo, dá-se a oportunidade às partes,
acusação e defesa, de formular questionamentos. Através das perguntas, ainda mais
clara resta a natureza de meio de defesa emprestada ao interrogatório judicial.

“Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou
algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o
entender pertinente e relevante.”

É necessário consignar que a fórmula da audiência em contraditório assumida pelo


interrogatório assume a seguinte ordem: primeiro, o juiz formula questões; em seguida, a
acusação, MP ou querelante; em seguida, o eventual assistente de acusação; depois, os
advogados dos eventuais co-réus; e por fim a defesa do interrogando.
Os co-réus não podem estar presentes, mas apenas os seus advogados, a fim de não
viciar os interrogatórios destes co-réus. Assim dispõe o artigo 191 do CPP:

“Art. 191. Havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente.”

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Vistas estas características, fica fácil constatar que a previsão do artigo 6°, V, do
CPP, não tem mais a aplicabilidade de outrora: não há como se buscar no modelo de
interrogatório judicial atual suprimento para as fórmulas do interrogatório pré-processual,
do inquérito. O modelo de interrogatório judicial, hoje, é bastante afeito ao sistema
acusatório, e o sistema inquisitivo do inquérito não comporta as características inovadoras
apresentadas. Por isso, o teor do artigo 6°, V, que dita que só se busca no rito do
interrogatório judicial aquilo que for aplicável – ou seja, muito pouco, hoje. Por isso,
consigne-se: o interrogatório policial segue o modelo original do interrogatório judicial, ou
seja, é ato privativo do delegado de polícia; a presença do advogado é facultativa, e a
possibilidade de que sejam admitidas perguntas por outros participantes é igualmente
facultativa.

2.3. Produção de provas pelo juiz

O sistema acusatório brasileiro, de fato, é bastante impreciso e mal formatado. A


recente reforma do CPP, trazida pelas leis 11.689 e 11.690, ambas de 2008, trouxeram
reformas pontuais que não aprimoraram o sistema acusatório, como poderiam ter feito.
Veja: o artigo 156 do CPP sempre autorizou a produção de provas pelo juízo, sob
fundamento de busca da verdade real, o que já comprometia o sistema acusatório, pois a
produção de provas é incumbência natural das partes. Com a reforma, ao invés de tentar
resguardar o sistema acusatório, incrementou-se o poder oficioso de o juiz produzir provas.
Veja um comparativo entre a redação anterior e a atual:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no
curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências
para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado
ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de
provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e
proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização
de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Seriam constitucionais as medidas cautelares decretáveis de ofício pelo juízo?


A posição mais radical, majoritária na doutrina, já abordada, é de que todas seriam
inconstitucionais, ou não recepcionadas, porque violam a inércia e a imparcialidade, na
medida em que o juiz se antecipa aos próprios órgãos de persecução estatal. E se o fizer,
porque o sistema o autoriza, estará impedido, na forma do artigo 252, III, em interpretação
ontológica.
Em sentido contrário, o STF e o STJ têm postura conservadora, defendendo que os
poderes cautelares de ofício não comprometem a imparcialidade, pois como são rebus sic
stantibus, são emanados de cognição sumária, revogável, sem envolver pré-julgamento da
causa. O STF só salienta que é necessário não se vulgarizar a utilização das cautelares, pois
então, sim, estaria comprometida a imparcialidade.

Michell Nunes Midlej Maron 30


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A terceira corrente, capitaneada por Cláudio Fontelles, tem epicentro na ADI que
discutiu a constitucionalidade do artigo 3° da Lei 9.296/96, dispositivo que trata da
interceptação telefônica de ofício pelo juiz:

“Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo


juiz, de ofício ou a requerimento:
I - da autoridade policial, na investigação criminal;
II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução
processual penal.”

Nesta ADI, foi proposta por Cláudio Fontelles a interpretação conforme a


Constituição deste dispositivo. Na verdade, se esta interpretação conforme for realizada,
todas as cautelares de ofício, preparatórias ou incidentais, cairão por terra, vez que a
fundamentação terá que necessariamente passar pela violação ou não à quebra da
imparcialidade, crítica que é feita em todos os diplomas que contemplam esta possibilidade.
Para o autor da ADI, os poderes cautelares oficiosos teriam sua constitucionalidade
presente apenas quando a medida fosse incidental; enquanto preparatórias, seriam
inconstitucionais, não podendo o juiz decretá-las de ofício, porque seria claro o exercício de
papel ativo em um procedimento inquisitório, imiscuindo-se nas atribuições dos órgãos
repressivos estatais (MP e autoridade policial). Incidentalmente ao processo, tais poderes
cautelares oficiosos seriam constitucionais, pois é o juiz o condutor e presidente do
processo, e o maior interessado em preservar-lhe a efetividade e a eficácia do vindouro
provimento jurisdicional.

2.4. Cautelares inominadas no processo penal

Existem cautelares inominadas, oriundas do poder geral de cautela, em processo


penal? A questão é controvertida, havendo quem defenda que, nesta seara, não é possível a
existência de tais medidas, pois é quebra da legalidade. A prática, porém, admite diversas
medidas desta espécie, e um exemplo é a retenção do passaporte daqueles que estão sob
investigação: mesmo sendo ato cerceatório da liberdade de locomoção, o STF admite tal
medida porque é meio pouco gravoso destinado a inibir a fuga, sendo que, do contrário,
seria necessária a prisão preventiva – restrição muito mais gravosa ao direito de locomoção.
Outro exemplo é a regressão cautelar de regime, que ignora a necessidade de prévia oitiva
do apenado, exigida no artigo 118, § 2°, da LEP:

“Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma


regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando
o condenado:
(...)
§ 2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido
previamente o condenado.”

Em recente julgado, o STF expressou exatamente que a regressão cautelar é


possível justamente em atenção ao poder geral de cautela.

2.5. Envio dos autos ao PGJ

Michell Nunes Midlej Maron 31


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Outra grande reminiscência inquisitória é a do artigo 28 do CPP. Este artigo é


emblemático, tanto pela sua régia aplicação e reiterado reconhecimento de validade pelo
STF e STJ, quanto pela dureza com que a doutrina, em peso, o critica. Veja:

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia,


requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de
informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará
remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá
a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou
insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a
atender.”

Entenda: se o juiz discorda da promoção de arquivamento, e envia os autos para o


PGJ11, é porque entende que o caso é de denúncia, ou no mínimo que novas diligências
devem ser realizadas. Sendo assim, o juiz que aplica tal artigo está claramente antecipando
seu juízo de valor sobre a alegação que fundamentou a promoção do MP pelo
arquivamento, ou seja: se o MP requer arquivamento por atipicidade da conduta, e o juiz
entende que deve aplicar o artigo 28 do CPP, é porque se a tese de atipicidade for mantida,
seu julgamento será contrário – tendo antecipado o julgamento, portanto. Veja que, então, o
juiz se imiscui de forma violenta nas atribuições do MP, saindo da sua eqüidistância de
forma clara. Por isso, a doutrina que entende inconstitucional este artigo defende que, em
sendo aplicado, como é, ao menos seja declarado o impedimento do juiz, na forma do já
mencionado artigo 252, III, do CPP, em interpretação ontológica.
O STF, todavia, tem reiteradamente entendido que o juiz nada mais faz do que
remeter os autos ao PGJ, ou seja, a última palavra sempre incumbe ao natural detentor da
atribuição – o MP –, sendo absolutamente válida a dinâmica apresentada, sem qualquer
comprometimento da imparcialidade e do sistema acusatório, pelo que sequer há
impedimento a ser declarado.

2.6. Aditamento provocado (mutatio libeli)

Outra reminiscência inquisitória é o aditamento provocado, constante do artigo 384


do CPP, sede da mutatio libeli:

“Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato,


em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não
contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo,
a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova,
podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe
aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério
Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido

11
Como informação relevante, na esfera federal não há envio ao PGR, e sim à Câmara de Coordenação e
Revisão do MPF, cujo parecer se sujeita ao referendo do PGR. Inclusive, para o PGR atual, Cláudio Fontelles,
a atribuição é integral da Câmara de Coordenação e Revisão, sequer sendo devido seu aval (não tendo este,
portanto, a possibilidade de discordar), em prestígio ao princípio da especialidade.

Michell Nunes Midlej Maron 32


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo


de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.”

Este artigo deve ser submetido a uma filtragem constitucional. Veja: se sobrevier
fato alterador da situação prevista na denúncia, mas que não sujeite a pena a acréscimo, é
bastante que se submeta a alteração à manifestação da defesa. Como exemplo, uma
denúncia por estupro qualificado depois da instrução se revela um atentado violento ao
pudor qualificado: a escala penal é a mesma, bastando que o juiz abra oportunidade à
defesa de se pronunciar sobre os fatos, podendo arrolar testemunhas em oito dias. Veja que,
aqui, não se faz mister o aditamento pelo MP, o que fará com que a sentença verse sobre
crime não detalhado pela denúncia – ferindo a adstrição, congruência, a inércia, e, quiçá a
imparcialidade.
Note que há uma correlação entre a congruência e a inércia: o juiz, inerte por
natureza, só poderá se manifestar se provocado, e somente dentro dos limites do que for
provocado. Assim, a sentença que decide fatos não postulados na denúncia fere a
congruência, a inércia e, conseqüentemente, o próprio sistema acusatório.
Já o parágrafo único deste artigo 384 do CPP estabelece que é necessário o
aditamento da denúncia quando o fato supervenientemente revelado implicar em
agravamento da pena, bem como a posterior abertura de vista à defesa, por três dias 12. Este
aditamento por fato novo demanda ampla defesa, que, como se sabe, é a síntese da defesa
técnica e da autodefesa, sendo, portanto, necessário o re-interrogatório do réu e a faculdade
de produzir provas à defesa. Mas veja que o juiz, também aqui, imiscui-se em atividade de
acusação, o que não seria próprio do sistema acusatório puro.
Caso o membro do MP não adite a denúncia, o juiz pode remeter os autos ao PGJ,
valendo-se do artigo 28 do CPP por analogia.

2.7. Coleta de dados pelo juiz

Uma reminiscência inquisitória que, de fato, foi declarada inconstitucional pelo


STF, é a que se apresenta no artigo 3° da Lei 9.034/95, que deve ser lido em conjugação
com o artigo 2°, III, do mesmo diploma:

“Art. 3º Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de
violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será
realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
(...)”

“Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos
já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de
provas:
(...)
III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e
eleitorais.
(...)”

12
A doutrina critica veementemente esta incoerência: se no caput não há agravamento da pena e o prazo da
defesa é de oito dias, nada justifica a postura legislativa do parágrafo único, que entrega apenas três dias à
defesa para se manifestar em caso em que a pena se agrava pelo novel fato revelado.

Michell Nunes Midlej Maron 33


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O artigo 2°, III, prevê como mecanismo de combate ao crime organizado a


revelação de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais. O artigo 3° estabelece a
possibilidade de o juiz colher estes dados diretamente. Esta possibilidade, do artigo 3°, foi
declarada inconstitucional em ADI, pois violaria o sistema acusatório. Ocorre que a
inconstitucionalidade se restringiu à colheita de dados eleitorais e fiscais, e não quanto ao
restante – o que é estranho, vez que o sistema acusatório seria igualmente violado pelas
demais iniciativas, quanto a dados bancários e financeiros. Cabe explicar, por isso, o
motivo, estritamente processual, da declaração parcial de inconstitucionalidade: a LC
105/01 veio a disciplinar justamente a quebra de dados bancários e financeiros; por isso, a
declaração de inconstitucionalidade acerca destes aspectos resvalaria sobre esta lei, sendo a
declaração, então, ultra petita, não podendo ser feita. Por isso, deixou-se para outra ADI,
que está em andamento, o julgamento dos aspectos da LC 105/01, referentes a dados
bancários e financeiros.

2.8. Conclusão

A conclusão a que se chega, de toda esta digressão sobre o sistema acusatório


brasileiro, é que há, efetivamente, um hibridismo latente, sendo diversas as situações que
podem ser apontadas como notas inquisitoriais presentes no sistema. Todavia, este sistema
híbrido tem sido veladamente tolerado pelo STF e STJ, pois reconhecê-lo, e invalidar os
institutos inquisitivos nele presentes, causaria um colapso no ordenamento, inviabilizando a
persecução criminal.
É claro que, do ponto de vista do MP ou das autoridades policiais, sempre será
melhor a posição que defende a diminuição, a relativização dos poderes oficiosos do juiz,
por exemplo, ou de quaisquer reminiscências inquisitórias – afinal, quanto mais se entrega
ao juízo, menos importância resta à atividade dos entes de repressão. Ao contrário, em uma
interpretação do ponto de vista do Judiciário, o recrudescimento dos poderes oficiosos é a
melhor posição, pois entrega ao juiz mais incumbências e poderes.

Casos Concretos

Questão 1

A iniciativa instrutória do juiz no processo penal (artigos 156, segunda parte, 168;
176; 181, parágrafo único; 196; 209; 234; 425; 502 parágrafo único e 538, CPP) é
compatível com o sistema acusatório, acolhido pela Constituição Federal de 1988?

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Segundo a doutrina dominante, não é compatível, porque consiste em o juiz se


imiscuindo nas atribuições da acusação, comprometendo a imparcialidade do sistema
acusatório. Todavia, é importante consignar que o STF e o s STJ têm tolerado tais poderes
instrutórios oficiosos ao argumento de que não se pautariam em cognições exaurientes, e
sim sumárias, encerrando valorações precárias, rebus sic stantibus. Logo, não haveria
comprometimento da imparcialidade do juízo.

Questão 2

Analise a constitucionalidade do artigo 3º, da Lei 9034/95, diante dos princípios


constitucionais que conformam o sistema acusatório, com referência expressa a tais
princípios.

Resposta à Questão 2

Este artigo teve sua inconstitucionalidade declarada na ADI 1.570-2, em relação ao


que preconiza na referência ao artigo anterior, no que se refere a dados fiscais e eleitorais.
Veja:

“Art. 3º Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de
violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será
realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
(...)”

“Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos
já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de
provas:
(...)
III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e
eleitorais.
(...)”

Veja a ementa do julgado:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95.


LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA
SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE.
"JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS
PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA
DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO.
OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS
ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E
CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação
da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e
financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação
prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados,
documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de
documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente
pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente
violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor.
Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF,
artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é

Michell Nunes Midlej Maron 35


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente,


em parte.”

Em suma, entendeu o STF que esta conduta do magistrado ofende a inércia, e ao


sistema acusatório como um todo – sendo, por isso, inconstitucional. Restringiu-se apenas
ao que trata dos dados fiscais e eleitorais por conta da previsão específica da LC 105/01,
que trata dos dados bancários e financeiros.

Questão 3

O réu Simplício de Jesus foi denunciado junto ao V Tribunal do Júri, como incurso
nas sanções do artigo 121 c/c 14, II, ambos do Código Penal, narrando o Ministério
Público, em linhas gerais, que, no dia 09 de outubro de 2006, por volta das 20 horas, no
Morro do Alemão, o denunciado efetuou disparos de arma de fogo, com intenção de matar,
contra a vítima Pedro Vasconcelos, policial militar em diligência de repressão ao tráfico
no local, não atingindo a vítima por erro de pontaria.
Em 12 de fevereiro de 2007, o réu foi devidamente pronunciado, nos termos da
denúncia, sendo submetido à Sessão de Julgamento, na data de hoje.
Ao iniciar a sustentação oral, o Promotor de Justiça postula a desclassificação
para o delito de resistência.
A defesa, muito embora concorde com a ausência do animus necandi, alega
cerceamento de defesa, visto que sua tese é a de Negativa de Autoria, e a elementar
referente à descrição do ato legal não encontra narrativa, nem na exordial, tampouco na
decisão interlocutória da pronúncia.
Comente o caso em questão, máxime quanto ao Sistema Acusatório e aos princípios
constitucionais vigentes.

Resposta à Questão 3

Como o réu se defende de fatos, e não da capitulação jurídica, ainda que o conselho
de sentença entenda que o seu dolo era de resistência, opera-se a desclassificação,
remetendo a competência ao juiz-presidente do Tribunal do Júri, que passa a ter total
liberdade de julgamento, até porque, em verdade, o que o conselho de sentença fez foi não
reconhecer o ânimo de matar, devolvendo ao juiz-presidente a competência para sentenciar
o acusado da maneira que entender a mais adequada. Neste sentido, o artigo 492, § 1°, do
CPP, já com a nova redação, é o apoio legal:

“Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:


(...)
§ 1o Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz
singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida,
aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela
lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e
seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
(...)”

O que uma tese defensiva poderia ponderar é que, no plenário do Júri, toda a defesa
foi dirigida ao conselho de sentença, e sobrevindo a desclassificação, não haveria

Michell Nunes Midlej Maron 36


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

oportunidade de se deduzirem as alegações de acusação e defesa ao juiz-presidente. A


proposta, então, seria que, operada a desclassificação, o juiz-presidente a homologaria, mas
convolaria o julgamento em diligências, abrindo à manifestação das partes, para otimizar o
contraditório e a ampla defesa. Prevalece, entretanto, a corrente que dá plena competência
para julgamento pelo juiz-presidente.

Tema IV

Jurisdição: conceito, espécies, princípios e características. Atribuição. 1) Conceito e finalidade. 2)


Características: Concretude (pretensão deduzida), substitutividade, inércia (ne procedat iudex ex officio) e
definitividade. 3) Princípios: - Ne procedat iudex ex officio. Artigo 129, I, CF; - Investidura. Natureza
jurídica e conseqüência de sua inobservância; - Indeclinabilidade (artigo 5º, XXXV, CF); - Indelegabilidade.
Exceções: Artigo 222, 353, 174, IV, 177, 230 e artigo 9º, parágrafo 1º, Lei 8038/90. Hipóteses taxativamente
elencadas e que não alcançam atos decisórios; - Improrrogabilidade (Jurisdição dentro dos limites).
Exceções: artigos 76, 77 e 79 (conexão/continência), artigos 73, 74, § 2º e 85 (exceção da verdade) e 424
(desaforamento), todos do CPP. - Juiz Natural (artigo 5º, XXXVII e LIII, CF); - Unidade; - Nulla poena sine
judicio (artigo 5º, LIII, LIV, LVII e LV, CF).

Michell Nunes Midlej Maron 37


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Notas de Aula

1. Jurisdição

Esta manifestação da soberania estatal apresenta duas características notáveis, além


das óbvias, decerto já abordadas no estudo de processo civil, inevitabilidade e
inafastabilidade: trata-se da substitutividade e da definitividade. Vejâmo-las.

1.1. Substitutividade

A substitutividade é a clara manifestação de soberania do Estado, pois se trata da


entrega ao Judiciário do poder de impor sua vontade sobre a de ambos os litigantes, quando
a lide exsurge. Veja: quando se submete o conflito de interesses ao Judiciário, ocorre a
substituição da vontade das partes pela vontade do Estado, que prevalecerá sobre as
vontades dos litigantes, por mais que dê razão a um deles. Ainda que seja acolhida
integralmente a pretensão de um deles, será a vontade do Estado-juiz que será imposta à
parte contrária.
Ocorre que a substitutividade da jurisdição não é característica absoluta,
conhecendo uma exceção de grande peso: a jurisdição voluntária. Nesta modalidade de
jurisdição, a vontade do juiz não substitui propriamente a vontade das partes, mas sim a
integra, conferindo eficácia jurídica ao pacto celebrado pelas partes.
Hoje, em razão desta exceção, formou-se um conceito designado como justiça
penal consensual, ou campo de consenso no processo penal, criado com o advento dos
Juizados Especiais Criminais, e que se materializa claramente em três institutos: a
composição dos danos; a transação penal; e o sursis processual, suspensão condicional do
processo.
A composição dos danos, chamada impropriamente pela doutrina de composição
civil dos danos (expressão que denota certa adstrição a um caráter indenizatório, o que não
corresponde à realidade do instituto), consiste no acordo que põe fim à punibilidade, devido
à renúncia ao direito de queixa ou representação, com ou sem indenização.
A transação penal consiste em deixar, o MP, de oferecer denúncia em face do
acusado, em troca do cumprimento de determinada regra de conduta e do pagamento de
certa verba pecuniária, extinguindo-se a punibilidade depois de cumprida. Se descumpridas
as cláusulas da transação, restabelece-se à acusação o direito de ação.
A suspensão condicional do processo, o sursis processual, implica no período, de
dois a quatro anos, em que o processo fica suspenso no aguardo do cumprimento de
algumas condições pelo acusado, período ao final do qual a punibilidade é extinta.
Nestas três hipóteses, nestas três modalidades de institutos consensuais
despenalizadores, a vontade do juiz não substitui a das partes, mas apenas chancela um
acordo por estas celebrado, emprestando-lhe força executiva, integrando a vontade das
partes.
O advento deste espaço de consenso no processo penal trouxe uma valiosíssima
conseqüência: a relativização, vez por todas, do famigerado princípio da verdade real. Este
princípio, sempre tido por absoluto, mesmo diante das claras mitigações que sempre se
apresentaram, mas que sempre foram encaradas de forma velada, ignoradas pela
jurisprudência nesta natureza relativizadora, agora encontra franca exceção neste direito

Michell Nunes Midlej Maron 38


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

consensual processual. Em qualquer dos institutos mencionados, a busca pela verdade real é
deixada de lado para dar lugar ao consenso, ou seja, encerra-se a persecução criminal por
força da vontade das partes, desvanecendo a busca pela verdade em prol da solução
pacificadora do evento em litígio.

1.2. Definitividade

A partir do momento em que o Estado é instado a se manifestar sobre a lide,


compondo-a de sorte que sua vontade substitui a dos contendores, esta vontade tem que ser
definitiva, em ordem a promover o que dela se espera, a paz social. Sendo assim, a vontade
estatal ganha dois atributos da maior importância, quais sejam, a preclusão e a coisa
julgada, chamada também de preclusão máxima.
A definitividade também não é absoluta. Comporta exceções, e não se trata da ação
rescisória (em processo civil) ou da revisão criminal, em processo penal. Estas ações têm
por pressuposto o próprio trânsito em julgado da sentença, e, sendo assim, está sendo, de
fato, ratificada a definitividade – é um contraponto à definitividade, um meio de controle, e
não uma exceção.
A exceção à definitividade é a medida cautelar. A jurisdição cautelar é calcada em
premissa justamente oposta à definitividade: é provisória por natureza. Quando o juiz
decreta uma prisão temporária, por exemplo, ou mesmo uma preventiva, não são tutelas
jurisdicionais definitivas, muito ao contrário: são essencialmente provisórias, cautelares.
Mesmo porque, fossem tendentes à definitividade, restaria violado o artigo 5°, LVII, da
CRFB:

“(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória;
(...)”

Ainda que este dispositivo seja interpretado restritivamente como não culpabilidade,
seria violado caso fosse a cautelar tendente à definitividade, por viger a nulla poena sine
culpa, que determina que ninguém pode sofrer pena antes de consagrada sua culpa13.
2. Juiz natural

O artigo 5°, LIII, da CRFB, estabelece que:

“(...)
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente;
(...)”

13
Presunção de inocência e de não culpabilidade são conceitos bem diversos. Para parte da doutrina, que
entende que o princípio vigente é o da presunção de inocência, aquele que não for considerado culpado de um
crime é inocente. Ferrajoli, por exemplo, entende inadmissível qualquer prisão pré-condenação transitada em
julgado. Já para outra parcela, e aí se incluem os tribunais superiores, a não culpabilidade tem vigência, e a
presunção é de que aquele ainda não condenado é não culpado, mas não é inocente a toda prova – valendo a
prisão cautelar, portanto, quando justificada.

Michell Nunes Midlej Maron 39


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O juízo natural é a garantia de que ninguém será processado ou julgado senão pela
autoridade competente, sendo o juiz incumbido determinado por regras de competência,
gerais impessoais e abstratas, que pré-determinam a sua competência.
Há dois aspectos atinentes ao juiz natural que são de suma importância. O primeiro
diz respeito a que, para o STF, desde que haja regras gerais, impessoais e abstratas, fixando
a competência prevalente, ainda que sejam estas normas de fixação normas
infraconstitucionais, a prevalência da competência constitucional sobre outra constitucional
com base nestes critérios não ofende a garantia do juiz natural.
Vejamos um exemplo: um desembargador une-se a um promotor no cometimento de
um crime. Este concurso de agentes, continência, segundo o artigo 77, I, do CPP, importa
em unidade de processo e de julgamento, como dispõe o artigo 79, caput, do CPP.

“Art. 77. A competência será determinada pela continência quando:


I - duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
(...)”

“Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento,


salvo:
(...)”

O desembargador tem como foro especial o STJ, por determinação constitucional,


presente no artigo 105, I, “a”, da CRFB; o promotor, o TJ de seu Estado, de acordo com o
artigo 96, III, da CRFB.

“Art. 96. Compete privativamente:


(...)
III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e
Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de
responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.
(...)”

“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:


I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes
e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos
Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e
do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais
Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
(...)”

Veja que o artigo 78, III, do CPP, determina que, neste caso, deve prevalecer o juízo
de maior graduação.

“Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão


observadas as seguintes regras:
(...)
III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior
graduação;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 40


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ocorre que não se pode conceber que o legislador infraconstitucional seja


incumbido de traçar qual será a prevalência entre duas competências igualmente
constitucionais. Como resultado deste entendimento, seria coerente a cisão da competência,
pois se ambas as competências são constitucionalmente erigidas, não há que se falar em
prevalência de uma sobre outra. E esta é a tese amplamente dominante na doutrina.
O STF e o STJ, todavia, entendem que, mesmo sendo duas competências
constitucionais, o artigo 5°, LIII, da CRFB, estabelece que a autoridade competente deve
ser definida previamente, por regras abstratas e gerais, e nada obsta que o seja em normas
infraconstitucionais – não há qualquer óbice à definição, pelo CPP, de qual será a
competência prevalente, posto que ambas exibiriam aptidão para o julgamento. Ademais, a
própria CRFB estabelece relatividade às competências lá tratadas. Como exemplo, um
crime eleitoral, em regra, é processado e julgado na Justiça Eleitoral, mas se tiver sido
imputado a um Senador, será julgado no STF; crimes dolosos contra a vida são julgados
pelo Tribunal do Júri, mas se o denunciado for um desembargador, o julgamento é pelo
STJ.
Por isso, havendo conexão entre o crime a ser perseguido no STJ e outro da
competência do TJ, como no caso proposto, nada obstaria a prevalência do STJ, nos moldes
do artigo 78, III, do CPP14.
Esta tem sido a posição do STF, como dito. Assim, analisando um outro caso, em
que a conexão se desse entre um processo do Tribunal do Júri e um de competência de um
foro por prerrogativa funcional constitucional, como o do desembargador, seria a
competência dada ao STJ – pois o Júri é órgão da justiça comum, inferior ao STJ, vigendo
o artigo 78, III, do CPP. O STF, no HC 83.583, de 2004, assim se posicionou:

“COMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. ATRACÃO POR


CONEXÃO DO CO-RÉU AO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.
1. Tendo em vista que um dos denunciados por crime doloso contra a vida é
desembargador, detentor de foro por prerrogativa de função (CF, art. 105, I, a),
todos os demais co-autores serão processados e julgados perante o Superior
Tribunal de Justiça, por força do princípio da conexão. Incidência da Súmula
704/STF. A competência do Tribunal do Júri é mitigada pela própria Carta da
República. Precedentes.
2. HC indeferido.”

Ressalte-se que este julgado não foi objeto de informativo, e sequer é comentado na
doutrina, por nenhum autor. Por isso, a cisão do processo, nestes casos, é o que se entende
como tese dominante, posto que a doutrina é unânime neste sentido. Ademais, esta mesma
Segunda Turma do STF já contava com precedentes anteriores em que adotava a tese
doutrinária, pelo que a corrente doutrinária tem força, mesmo havendo este julgado
contrário.

14
Este entendimento é sumulado pelo STF, no enunciado 704: “Não viola as garantias do juiz natural, da
ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro
por prerrogativa de função de um dos denunciados.

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Casos Concretos

Questão 1

X, policial militar, foi denunciado perante o Tribunal do Júri pela prática de


homicídio doloso cometido em serviço contra morador de comunidade de baixa renda. Em
plenário houve por bem o conselho de sentença desclassificar a infração cometida para
lesões corporais seguida de morte.
O Juiz-Presidente então, forte no Art. 492 § 2º CPP, profere sentença condenatória
cominando ao miliciano 6 (seis) anos de reclusão.

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tendo em vista as normas processuais vigente, bem assim os princípios inerentes à


Jurisdição, entende-se por correto o procedimento do Juiz-Presidente?

Resposta à Questão 1

A atuação do juiz-presidente foi incorreta. O artigo 9°, parágrafo único, do Código


Penal Militar, excepciona a competência da Justiça Militar em prol da justiça comum em se
tratando de crime doloso contra a vida de civil, praticado por militar, ainda que em
atividade.

“Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:


(...)
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e
cometidos contra civil15, serão da competência da justiça comum.”

Por conseguinte, se afastado o ânimo de matar, voltamos a ter um crime militar, e


por isso o juiz-presidente deveria ter declinado de sua competência em prol da justiça
Castrense. Esta é a posição do STF.

Questão 2

Assistindo ao noticiário da televisão, o juiz de Vara Única, em determinada


comarca do interior, tomou ciência de que certa pessoa se apropriara de um veículo
automotor integrante da frota da prefeitura.
No dia seguinte, determinou de ofício a expedição de um mandado de busca e
apreensão do veículo, tendo restado positiva a diligência cumprida por oficial de justiça
do juízo, em presença de vários jornalistas.
Vez que todo juiz tem jurisdição, diga do acerto ou desacerto da medida judicial
determinada, com as considerações doutrinárias e jurisprudenciais pertinentes.

Resposta à Questão 2

Atentou-se gravemente contra o sistema acusatório, porque o juiz agiu


oficiosamente, sendo certo que não havia sequer inquérito policial ainda instaurado.
Todavia, o artigo 242 do CPP autoriza a expedição oficiosa de mandado de busca e
apreensão, e o artigo 5°, II, do CPP, autoriza o juiz a requisitar a instauração de inquérito
policial. Portanto, desde que estas medidas tenham sido tomadas e executadas dentro dos
limites da competência do juízo, as Cortes Superiores, discrepando da doutrina majoritária,
têm tolerado tal procedimento.

Questão 3

O Juiz da 2ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE PETRÓPOLIS, durante o


expediente forense, a requerimento do Promotor de Justiça com atribuição junto àquele
juízo singular, deferiu uma medida de busca e apreensão na residência do indiciado JOÃO
15
No conceito de “civil”, posto neste dispositivo, enquadram-se também os militares reformados, e os
militares da ativa que quando vitimados não estavam no exercício de suas funções.

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

LINGSTONE sob o fundamento de que, na referida casa, poderia ser encontrada a arma
de fogo utilizada no homicídio doloso, assim já sabido, que fora praticado contra ALCÉIA
LÚCIA, sua sócia (art. 240, § 1º, c, do CPP).
A busca judicial foi positiva, apreendendo-se uma arma de fogo na residência de
JOÃO LINGSTONE e que se encontrava registrada no seu nome, encerrando-se as
investigações. O exame pericial de confronto balístico concluiu que o projétil retirado do
cadáver da vítima foi disparado da referida arma apreendida.
Obtido esse único indício de autoria contra o indiciado, o Promotor de Justiça da
2ª Vara Criminal da Comarca de Petrópolis reconheceu que lhe faltava atribuição para o
oferecimento da denúncia, isso por se tratar de crime de homicídio doloso, declinando-a,
então, para Promotoria de Justiça junto à 1ª Vara Criminal da mesma Comarca - Tribunal
do Júri. O Promotor de Justiça da 1ª Vara Criminal do Tribunal do Júri aceitou a
declinatória e denunciou JOÃO LINGSTONE, cuja inicial acusatória foi recebida, sendo
determinada a citação e designado o interrogatório do réu.
Citado, JOÃO LINGSTONE impetrou uma ordem de habeas corpus junto ao
Tribunal de Justiça alegando constrangimento ilegal, isto porque a busca e apreensão, que
gerou o isolado indício de autoria, foi determinada por juiz constitucionalmente
incompetente, e o Juiz da 1ª Vara Criminal do Tribunal do Júri da Comarca de Petrópolis
não poderia valer-se da mesma para o juízo de admissibilidade da denúncia.
Posicione-se sobre a possibilidade de concessão da ordem de habeas corpus.

Resposta à Questão 3

Se o mandado de busca e apreensão se destinava a encontrar uma arma de fogo,


estava plenamente lícito e legítimo, tendo ocorrido dentro dos limites da sua competência.
Se o escopo desta apreensão, entretanto, fosse obter instrumento do crime doloso contra a
vida, faleceria competência para o órgão, ratione materiae, vez que adentraria matéria do
Tribunal do Júri.
Mas veja que a irregularidade desta prova diz respeito apenas a critério processual,
ou seja, a prova foi obtida por meio ilegítimo, e não ilícito, segundo a doutrina de Ada
Pellegrini Grinover – e de seu ponto de vista, seria aceitável, por não ser ilícita stricto
sensu. Esta prova seria passível de convalidação, quando posto o processo perante o Júri: os
atos instrutórios repetíveis são plenamente convalidáveis, pois apenas os atos decisórios são
nulificados na incompetência.
O STF, todavia, não faz diferença entre prova ilícita e prova ilegítima, pelo que esta
diferenciação não pode ser invocada, mormente, em razão do entendimento desta Corte de
que as garantias são constitucionais-processuais, e não processuais constitucionais, e o
avilte à fórmula processual é um avilte a garantia constitucional, do devido processo legal –
sendo inadmissível, portanto.

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema V

Competência: conceito, espécies. 1. Jurisdição e competência. 2. Critérios para fixação de competência. 3.


Critério territorial.

Notas de Aula

1. Competência

Competência é o âmbito legislativamente demarcado dentro do qual juizes e


tribunais exercem jurisdição, ou, para alguns, é a delimitação orgânica da jurisdição.
A natureza jurídica da competência é de pressuposto processual de validade.
Rememorando, os pressupostos processuais são de existência ou de validade. Os

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

pressupostos de existência são as partes, o pedido, e o órgão jurisdicional. Quando


violados, o vício é, por óbvio, de inexistência do processo.
Os pressupostos de validade se atrelam aos de existência, sendo as partes capazes, o
pedido juridicamente inédito (e desdobramentos), e o órgão jurisdicional competente.
O vício em um destes pressupostos acarreta invalidade do processo. O STF e Ada
Pellegrini vêm entendendo, porém, que a regra de competência prevista na CRFB é tão
absoluta que, se violado o juiz natural por quebra da regra de competência constitucional, o
vício é de inexistência, e não mera invalidade. A competência constitucional seria
pressuposto processual de existência, cuja inobservância é causa de inexistência jurídica do
processo.
Mas veja que esta regra do STF e desta autora só se atine às competências
constitucionalmente estabelecidas. Na doutrina clássica, por exemplo, se o indivíduo for
processado na Justiça Estadual, sendo o crime de persecução na Justiça Federal, o vício
seria de mera nulidade, pois a competência é pressuposto de validade, mesmo sendo
prevista na CRFB. Assim, se fosse absolvido na esfera estadual, mesmo incompetente, o
julgado seria absoluto, se transitado em julgado, pois não se admite revisão criminal pro
societatis. Admitindo-se a tese do STF, o vício é de inexistência, e como tal, o processo não
pode produzir qualquer efeito jurídico: mesmo após o trânsito em julgado desta sentença
absolutória, o réu seria submetido a um novo processo, agora na justiça competente,
ignorando-se o feito pretérito.
Vale explicar novamente, de forma mais sintética, esta dualidade de entendimentos.
Para a doutrina clássica, competência, qualquer que seja, é pressuposto processual de
validade, cuja inobservância é causa de nulidade do processo. Porém, Ada Pellegrini e STF
vêm entendendo que o princípio do juiz natural, no que se refere a regras de competência
previstas na CRFB, é pressuposto processual de existência, cuja inobservância provoca a
inexistência jurídica do feito.
Vejamos uma hipótese: o indivíduo processado e absolvido, com trânsito em julgado
da absolvição, por um furto à Caixa Econômica Federal, perante a Justiça Estadual – crime
que, ratione personae, é da competência da Justiça Federal. Seria possível uma outra ação
penal, perante a Justiça Federal, para perseguir tal crime? Há três entendimentos:

- Para a doutrina clássica, Pacelli, Tourinho e outros, o vício, nesta hipótese, é de


nulidade absoluta, e como não existem instrumentos para desconstituir esta
absolvição transitada em julgado, nada há a ser feito.
- Para o STF, que adota a posição do direito italiano, o vício neste caso é de
inexistência jurídica, e por isso uma segunda ação penal, perante a Justiça Federal,
não seria impedida.

- Para Ada Pellegrini, que em quase todos os aspectos se une à tese do STF, apesar
de a hipótese retratar inexistência jurídica, o pacto de São José da Costa Rica
impede que haja novo processamento, uma segunda ação penal, pois o pacto proíbe
o bis in idem.

Se for condenado, a discussão perde relevância, pois há instrumentos para


regularizar a situação, qualquer que seja a natureza do vício: há a revisão criminal e o HC.

Michell Nunes Midlej Maron 46

Absoluta
EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

1.1. Classificações

A competência pode ser absoluta ou relativa, e também se classifica,


cumulativamente, em material e funcional. Veja:

Ratione materiae - natureza da


infração
Absoluta
Ratione personae - foro prerrogativado

Material Relativa
Ratione loci - territorial
Competência
Absoluta
Funcional Vertical (recursos)

Absoluta
Horizontal (Tribunal do Júri e JECrim)

A competência funcional, para Tourinho, é aquela em que a distribuição de


competência é feita entre diversos juizes num mesmo processo, para praticarem
determinados atos processuais.
A competência material ratione materiae se fixa pela natureza da infração: crimes
eleitorais são julgados na Justiça Eleitoral; crimes dolosos contra a vida no Tribunal do Júri,
e assim por diante; na ratione personae, se fixa pela natureza do autor do delito, pelo foro
por prerrogativa de função; e na ratione loci, por força do local do cometimento da
infração.
Na competência funcional horizontal, todos os juizes que atuam no mesmo feito são
de uma mesma instância. No Júri, é clara esta divisão, sendo um o juiz responsável pelo
judicium accusationis, primeira fase, e outro o juiz-presidente, e jurados, na segunda fase,
judicium causae. No JECrim, a mesma cisão: no primeiro momento, o juiz conciliador atua;
em seguida, o juiz togado.
Na competência funcional vertical, os órgãos que atuam no mesmo processo são de
graus diversos de jurisdição, e o exemplo natural é o recurso, julgado pela segunda
instância.
Qualquer competência é absoluta quando a distribuição de competência leva em
conta o interesse público, e não o interesse das partes. Pode ser alegada a qualquer
momento, pois não há preclusão, e sua inobservância é causa de nulidade absoluta.
A competência é relativa quando o legislador, em sua fixação, leva em conta o
interesse da parte, e não o interesse público. Deve ser alegada no momento oportuno, sob
pena de preclusão, e a sua inobservância é causa de nulidade relativa.
Veja que ainda que se reconheça a incompetência relativa, apenas os atos decisórios
serão anulados, aproveitando-se os demais, inclusive os instrutórios. E como se vê na
classificação gráfica exposta, apenas a competência territorial, de todas as classificações, é
relativa, no processo penal16.
16
Para Marcellus Polastri, isoladamente, não só a competência territorial é relativa. Ele inclui como tal a
competência em razão da matéria que seja prevista em norma infraconstitucional – mas não há exemplos
citados por este autor, todavia, poderia ser apontada a competência do Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, onde instalado, que trata dos crimes contra a mulher, competência estabelecida pela

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O artigo 109 do CPP é que dá a nota do procedimento para solucionar


incompetência relativa:

“Art. 109. Se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o torne
incompetente, declara-lo-á nos autos, haja ou não alegação da parte, prosseguindo-
se na forma do artigo anterior.”

“Art. 108. A exceção de incompetência do juízo poderá ser oposta, verbalmente ou


por escrito, no prazo de defesa.
§ 1o Se, ouvido o Ministério Público, for aceita a declinatória, o feito será
remetido ao juízo competente, onde, ratificados os atos anteriores, o processo
prosseguirá.
§ 2o Recusada a incompetência, o juiz continuará no feito, fazendo tomar por
termo a declinatória, se formulada verbalmente.”

Este é o fenômeno da declinatoria fori. Para as partes, o momento para alegar


incompetência territorial é na defesa prévia. Se não o fizer, estará preclusa. Para o juiz, não
há esta preclusão, entretanto, como se vê na redação deste artigo 109 do CPP.

1.2. Competência da Justiça Federal

A competência da Justiça Estadual é residual, sendo desta aquilo que não for da
competência da Justiça Federal. E a competência desta se encontra no artigo 109 da CRFB:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:


I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal
forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as
de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça
do Trabalho;
II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou
pessoa domiciliada ou residente no País;
III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro
ou organismo internacional;
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens,
serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas
públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar
e da Justiça Eleitoral;
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a
execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou
reciprocamente;
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;
VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei,
contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;
VII - os "habeas-corpus", em matéria criminal de sua competência ou quando o
constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos
a outra jurisdição;
VIII - os mandados de segurança e os "habeas-data" contra ato de autoridade
federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais;
IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a
competência da Justiça Militar;

Lei Maria da Penha, Lei 11.340/07, ou competências similares ditadas por leis de organização judiciária dos
estados.

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de


carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação,
as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à
naturalização;
XI - a disputa sobre direitos indígenas.
§ 1º - As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde
tiver domicílio a outra parte.
§ 2º - As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária
em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que
deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito
Federal.
§ 3º - Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos
segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de
previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do
juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas
sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.
§ 4º - Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o
Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau.
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da
República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja
parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do
inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça
Federal.”

Façamos uma análise pontual, apenas das questões mais relevantes, a começar pelo
inciso IV deste artigo: os crimes políticos, que não demandam definição, aqui, se
encontram na Lei 7.170/83. O artigo 30 desta lei dispunha que:

“Art. 30 - Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes previstos nesta


Lei, com observância das normas estabelecidas no Código de Processo Penal
Militar, no que não colidirem com disposição desta Lei, ressalvada a competência
originária do Supremo Tribunal Federal nos casos previstos na Constituição.
Parágrafo único - A ação penal é pública, promovendo-a o Ministério Público.”

Este artigo não foi recepcionado pela CRFB de 1988, pois a competência para todos
os crimes desta natureza é da Justiça Federal.
Neste mesmo inciso IV, o constituinte determina que é da Justiça Federal a
competência para processar e julgar infrações penais praticadas em detrimento de bens,
serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas,
excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça
Eleitoral. Por isso, os crimes envolvendo índios, como sujeito ativo ou passivo, seriam da
Justiça Federal? O STJ entende que a competência é da Justiça Estadual, como dita a
súmula 140 do STJ:

“Súmula 140, STJ: Compete à Justiça comum Estadual processar e julgar crime em
que o indígena figure como autor ou vítima.”

Já os crimes contra o meio ambiente, e necessária atenção ao artigo 225 da CRFB:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e


futuras gerações.
(...)”

Este dispositivo pode dar a entender que sejam da competência da Justiça Federal,
por mencionar que o bem é de uso comum do povo (poder-se-ia entender que é de interesse
da União). Todavia, o entendimento pacífico é de que a competência para crimes
ambientais é da Justiça Estadual, salvo se na situação específica houver interesse da União
(como em uma reserva ambiental deste ente federativo, por exemplo).
Como visto, também aqueles crimes que envolvam interesses das entidades
autárquicas e empresas públicas da União serão da competência da Justiça Federal. Note
que o artigo não fala em sociedades de economia mista, pelo que a competência para julgar
crimes contra os Correios, por exemplo, é da Justiça Federal, mas contra o Banco do Brasil
é da Justiça Estadual.
Por fim, este dispositivo trata de excluir da competência federal todas as
contravenções penais, mesmo se praticadas diretamente contra a União. O STJ emitiu a
súmula 38, a este respeito:

“Súmula 38, STJ: Compete à Justiça Estadual comum, na vigência da Constituição


de 1988, o processo por contravenção penal, ainda que praticada em detrimento de
bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades.”

Havendo conexão entre crime da competência da Justiça Federal e uma


contravenção penal, há dois entendimentos sobre a solução para tal impasse: o primeiro,
prevalecente na doutrina, defende que deve haver a disjunção dos processos, pois a CRFB
proibiu expressamente o julgamento das contravenções pela Justiça Federal. O segundo
entendimento, que encontra julgados recentes no STJ, defende que deve ser aplicada,
analogicamente, a súmula 122 do STJ, reunindo-se os processos e o julgamento na Justiça
Federal:

“Súmula 122, STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado


dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do
art. 78, II, “a”, do Código de Processo Penal.”

Veja: o que a CRFB não pretendia é que a Justiça Federal julgasse uma
contravenção de forma isolada, mas em conexão com um crime desta competência, nada
obstaria.
O inciso V deste artigo trata dos crimes à distância, em que há pluralidade de países
envolvidos no cometimento, quer na atividade, quer no resultado. Como é cediço, aplica-se
a teoria da ubiqüidade, e o Brasil processa e julga tais crimes, mas a competência é da
Justiça Federal. Bom exemplo desta competência ocorre no tráfico internacional de drogas:
se a conduta é exportar entorpecentes, como dispõe a súmula 522 do STF:

“Súmula 522, STF: Salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando, então, a
competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e
julgamento dos crimes relativos a entorpecentes.”

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ocorre que esta súmula dá a entender que se o ato for de importação, a competência
é do Estado, e por isso tal previsão sumular é inconstitucional, incompatível com o artigo
109, V, da CRFB. Entretanto, a Lei 11.343/06, no artigo 70, parece ter pacificado a questão:

“Art. 70. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta
Lei, se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal.
Parágrafo único. Os crimes praticados nos Municípios que não sejam sede de vara
federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva”

Assim, a tendência é que a súmula 522 seja cancelada, ou interpretada como


servível à exportação e importação. A questão, porém, ainda é passível de novos
entendimentos.
Se a conduta da importação é seguida por outro verbi criminis qualquer – manter em
depósito, transportar, trazer consigo –, a competência da Justiça Federal cessa, sendo o fato
dado à competência estadual. Se o verbo importar não for o último da cadeia de atos
criminosos, prevalece o último. É por isso que quando se apreende carga de entorpecentes
em um depósito na favela, mesmo sabendo-se importada, a competência é da Justiça
Estadual – restringindo-se a competência federal quase que exclusivamente ao tráfico
apreendido em aduanas.
O inciso V-A deste artigo 109 da CRFB remete ao § 5°, e dispõe sobre um incidente
de deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Federal: havendo grave
violação de direitos humanos – conceito extremamente aberto, diga-se –, a Justiça Federal
haverá para si a competência. O problema é justamente definir o grave avilte a direitos
humanos: haverá crime que não o seja? Por isso, a doutrina mais esclarecida defende que
uma lei venha a regulamentar este conceito, sob pena de, ao deixar à casuística, se
exacerbar a mens do constituinte, ou se tornar inócua tal previsão.
Há um único precedente: no homicídio da freira Dorothy Stang, suscitado este
deslocamento de competência, o STJ entendeu que não era devido, porque não havia
qualquer inércia da Justiça Estadual. Mas veja que, interpretado a contrário senso, este
julgado dá a entender que se houver inércia, deslocar-se-á a competência – precedente
perigoso, porque a alta discricionariedade poderia ensejar a criação de juízos de exceção,
literalmente escolhendo os réus passíveis de deslocamento; além disso, ensejaria mais uma
hipótese da estranha ação penal pública subsidiária da pública. Esta ação é prevista no
artigo 2°, § 2°, do Decreto-Lei 201/67:

“Art. 2º O processo dos crimes definidos no artigo anterior é o comum do juízo


singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal, com as seguintes
modificações:
(...)
§ 2º Se as previdências para a abertura do inquérito policial ou instauração da ação
penal não forem atendidas pela autoridade policial ou pelo Ministério Público
estadual, poderão ser requeridas ao Procurador-Geral da República.
(...)”

Toda a jurisprudência entende inconstitucional este artigo 2°, § 2°, do DL 201/67,


mas o precedente do STJ no caso Dorothy Stang reavivou a discussão, pois entendeu
cabível, por interpretação transversa, a possibilidade de deslocamento da competência para
a Justiça Federal na inércia da Estadual – mutatis mutandis, criando nova hipótese de ação
penal pública subsidiária da pública.

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O inciso VI do artigo 109 da CRFB trata dos crimes contra a organização do


trabalho. Veja que não se trata de crime contra um trabalhador, mas contra a organização do
trabalho como um todo, uma categoria coletivamente considerada de trabalhadores ou um
órgão de classe legalmente constituído. Este entendimento sempre foi pacífico, mas em
recente informativo do STF, esta Corte entendeu que a redução à condição análoga de
escravo (artigo 149, CP) mesmo que dirigida apenas contra uma gama particularizada de
indivíduos, deveria ser julgada pela Justiça Federal, porque a violação à dignidade do
homem, por meio do trabalho escravo, era de tal monta que devia haver a fixação da
competência federal.

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a


trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.
(...)”

No final do inciso VI, dispõe o artigo 109 da CRFB que serão de competência da
justiça Federal, nos casos determinados por lei, os crimes contra o sistema financeiro e a
ordem econômico-financeira. A lei a que se refere este dispositivo deve expressamente
indicar a competência da Justiça Federal, não bastando apenas arrolar os delitos.

Casos Concretos

Questão 1

Na Comarca de Duque de Caxias, Pedro praticou crime de roubo, tendo sido


instaurado inquérito policial em delegacia especializada e, uma vez concluído, restou
remetido a central de inquéritos da Capital. Oferecida a denúncia perante vara criminal
da Capital, restou recebida e foram regularmente desenvolvidos os atos do procedimento,
estando o feito concluso para sentença.
Pergunta-se:
a) A competência territorial ou de foro no processo penal é absoluta ou relativa?
b) Ocorreu prorrogação de competência, eis que não oposta a devida exceção no
prazo do artigo 108, § 1º, CPP?

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

c) Tem incidência na hipótese o artigo 109, CPP, podendo o juiz, nesta fase do
procedimento, reconhecer de ofício sua incompetência?
d) Caso admitido o declínio de competência, uma vez o feito no juízo competente,
seriam válidos os atos instrutórios? E quanto aos atos decisórios, seriam todos
inválidos? Seria válido o recebimento da denúncia?

Resposta à Questão 1

a) É relativa, dada a possibilidade de se prorrogar quando não argüida no prazo de


defesa, quando opera-se a preclusão.

b) Sim, ocorreu, justamente pelo mencionado fenômeno da preclusão, para as


partes.

c) O juiz não sofre preclusão, podendo declinar a qualquer tempo, antes da


sentença, da sua competência.

d) Os atos decisórios são inválidos, mas não os demais (exceto se decorrem


diretamente do decisório nulificado, pela teoria da causalidade das nulidades),
incluindo-se ai os instrutórios. Já os decisórios, inválidos, são salváveis: basta
que o juiz os renove ou re-ratifique.
O recebimento da denúncia, se for entendido como ato decisório, deverá ser
renovado ou re-ratificado para poder ser válido.

Questão 2

Joca está sendo acusado pela prática de homicídio simples consumado.


O crime foi praticado na Comarca de Itaboraí. Entretanto, a vítima foi levada para
um hospital situado na Comarca de Rio Bonito, onde veio a falecer.
A denúncia foi oferecida pelo membro do Ministério Público em exercício na Vara
Criminal do Júri em Rio Bonito, local onde o crime se consumou, mas o Juiz declinou de
sua competência para o Juízo Criminal do Júri de Itaboraí. O Magistrado dessa comarca,
invocando o art. 70 do Código de Processo Penal, suscitou conflito negativo de
competência, asseverando que o Juízo competente seria, sem dúvida, o de Rio Bonito.
Decida o conflito.

Resposta à Questão 2

Assiste razão ao juiz de Rio Bonito. É, de fato, competente a comarca de Itaboraí,


pois, apesar de ser considerada a teoria da atividade do crime na determinação do local
competente, é de se considerar que todas as circunstâncias foram passadas em Itaboraí, bem
como foi ali que se gerou a intranqüilidade social, devendo o crime ser ali perseguido.
Este é o entendimento do TJ/RJ. O STJ, contudo, aplica à risca a teoria do resultado,
e por isso persegue-se o crime onde se consuma, nestes crimes plurilocais – in casu, em Rio
Bonito.

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EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema VI

Competência: espécies (continuação). 1. Critério objetivo (matéria, pessoa e valor). 2. Critério funcional. 3.
Prevenção.

Notas de Aula

1. Critérios de fixação da competência

O artigo 69 do CPP estabelece os critérios existentes para a fixação da competência:

“Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:


I - o lugar da infração:
II - o domicílio ou residência do réu;
III - a natureza da infração;
IV - a distribuição;

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

V - a conexão ou continência;
VI - a prevenção;
VII - a prerrogativa de função.”

Vejamos um a um.

1.1. Competência territorial

A competência será determinada, em regra, pelo lugar que se consumar a infração.


Assim determina o artigo 70 do CPP:

“Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se


consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o
último ato de execução.
§ 1o Se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora
dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no
Brasil, o último ato de execução.
§ 2o Quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional,
será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha
produzido ou devia produzir seu resultado.
§ 3o Quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando
incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de
duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção.”

Quando a ação e a consumação e dão no mesmo local, não há problema nesta regra;
a situação se complica, porém, quando se trata de crime material em que a atividade se
passa em uma comarca, mas o resultado em outra.
Veja o exemplo de um homicídio plurilocal: a conduta do ataque se dá em uma
comarca, e a morte se dá em outra. A regra do artigo 70 do CPP traz a competência para o
local do resultado, que é onde se consumou o crime, mas há dois entendimentos sobre a
fixação desta competência.
A primeira corrente, seguida por Polastri e Weber Martins, entende que a
competência deve ser determinada pelo local da ação, seguindo-se a teoria da atividade,
pois é neste local que se encontram as pessoas afetadas diretamente pelo crime, e é ali que
se concentram os indícios e provas do delito – é lá que se encontram as testemunhas, por
exemplo –, sem contar que a gravidade das lesões não pode ser critério determinante de
competência (pois, fossem leves, ali seriam perseguidas, sem qualquer dúvida). Para esta
corrente, então, não se aplica o artigo 70 do CPP, e sim os artigos 4° e 6° do CP, que
apresentam, respectivamente, o tempo do crime e a teoria da ubiqüidade.
A segunda corrente, do STJ e de Fernando Tourinho, defende que a competência é
do juízo do local da consumação, seguindo-se à risca o artigo 70 do CPP, que é claro.
Segundo eles, não se pode aplicar o artigo 4° do CP, que trata do tempo do crime, tampouco
o artigo 6°, que trata de competência internacional – ambos os temas sem relação com a
competência territorial interna17.
17
Quando o legislador estabeleceu este critério de competência em razão da consumação do crime, e não pela
conduta, partiu de dois critérios: o critério processual, pois é no local da consumação que se encontram os
vestígios, as testemunhas, e tudo o mais necessário à solução do crime; e o critério social, pois no local da
consumação é que normalmente a vítima é conhecida, e o Estado deve se preocupar em demonstrar aos
demais membros daquele grupo social que o crime não restou impune. Entretanto, decorridos hoje mais de
sessenta anos desde a redação do CPP, a situação fática modificou-se: ao redor das grandes metrópoles

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A Lei 9.099/95 estabelece, no artigo 63, que a competência territorial se guia pelo
local da conduta. Assim, ao contrário do artigo 70 do CPP, e da orientação do STJ, nas
infrações de menor potencial ofensivo, esta é a regra:

“Art. 63. A competência do Juizado será determinada pelo lugar em que foi
praticada a infração penal.”

Tourinho, sem maiores explicações, critica este dispositivo da Lei 9.099/95, e


determina que a competência, mesmo ali, é pelo local da consumação, pois entende como
“praticada a infração penal”, como diz o artigo, onde ela se consuma.

1.2. Domicílio ou residência do réu

O segundo critério de fixação, do artigo 69, II, é subsidiário ao critério territorial, e


só será utilizado quando a competência não puder ser fixada nos moldes do artigo 70 do
CPP, por não se conhecer o local da infração. Esta fixação é feita pelo artigo 72 do CPP:

“Art. 72. Não sendo conhecido o lugar da infração, a competência regular-se-á


pelo domicílio ou residência do réu.
§ 1o Se o réu tiver mais de uma residência, a competência firmar-se-á pela
prevenção.
§ 2o Se o réu não tiver residência certa ou for ignorado o seu paradeiro, será
competente o juiz que primeiro tomar conhecimento do fato.”

Aqui cabe uma questão: existiria foro de eleição em processo penal? O artigo 73 do
CPP é exatamente o caso:

“Art. 73. Nos casos de exclusiva ação privada, o querelante poderá preferir o foro
de domicílio ou da residência do réu, ainda quando conhecido o lugar da infração.”

Assim, se existe a opção por um foro diverso, é porque há liberdade para a eleição,
havendo de ser reconhecida aqui uma hipótese de foro eletivo.

1.3. Competência ratione materiae

O artigo 69, III, do CPP estabelece a competência em razão da natureza da infração,


ou seja, em razão da matéria. Vejamos cada hipótese relevante.

1.3.1. Tribunal do Júri

surgiram cidades-satélite, altamente violentas e sem estrutura médica satisfatória, lugares estes onde inúmeras
vezes ocorre a conduta criminosa contra a vida, mas as vítimas são transportadas para os hospitais das
metrópoles próximas, onde vêm a óbito. Nestes casos, como os vestígios, as testemunhas e os conhecidos e
familiares das vítimas encontram-se na comarca da conduta, e não na comarca da consumação, a
jurisprudência tem admitido que o processo se desenvolva na competência do local da conduta, decidindo de
forma contrária ao texto do artigo 70, para premiar a celeridade e a eficiência processual – e mesmo a própria
mens legis do dispositivo –, evitando o excesso de cartas precatórias e a conseqüente morosidade e
ineficiência judiciária.

Michell Nunes Midlej Maron 56


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida,


tentados ou consumados. Até aí, a questão é simples, mas e se se tratar do crime de
genocídio?
A Lei 2.889/56, no artigo 1°, assim define:

“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional,


étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de
ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Será punido:
Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;
Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b;
Com as penas do art. 270, no caso da letra c;
Com as penas do art. 125, no caso da letra d;
Com as penas do art. 148, no caso da letra e;”

A primeira conclusão que se alcança é que o genocídio é um crime amplamente


plurinuclear, e que não só com a morte se consuma. Vejamos uma hipótese que pode trazer
complicações interpretativas, tanto do ponto de vista material quanto processual: indivíduo,
intentando exterminar grupo étnico, mata quatorze pessoas. A definição do crime cometido
é fundamental para a fixação da competência. Há três entendimentos:

- Para Guilherme Nucci, neste caso, há quatorze genocídios praticados em


concurso (formal ou material, dependendo do número de condutas). Sendo como ele
propõe, a competência é da Justiça Federal, pois não se trata de crime doloso contra
a vida, e sim de crime contra a humanidade – não indo a Júri, e sim a juízo comum
federal (de acordo com o já transcrito artigo 109, V-A, da CRFB).

- Para a tese defensiva geral, há apenas um genocídio, pois este crime pressupõe, em
natureza, a pluralidade de vítimas, além do que a Lei 2.889/56 é especial, se
comparada ao CP. O problema é que esta tese torna desproporcional a pena
aplicada, que corresponderá à de um mero homicídio. A competência é da Justiça
Federal, também neste caso.

- Para o STF, o agente responderá por um genocídio em concurso formal com


quatorze homicídios, concurso formal próprio. Como as mortes tiveram por
finalidade o extermínio, está configurado o genocídio; e como o meio foi o
homicídio, há o concurso formal, mas aqui o STF entende que estes crimes, os
homicídios, foram praticados em continuidade delitiva.
Em razão da conexão com os homicídios, de competência do Júri, este
exerce atração, sendo tudo – genocídio e homicídios –, dado à competência do Júri
Federal. Vale a transcrição da ementa do julgado em que o STF tratou do assunto18:
18
Como opinião particular, entendo que seria caso de Júri Estadual, porque se a vis atractiva foi o homicídio,
o crime atraído, o genocídio, não exerce influência alguma sobre a fixação da competência, e por isso o juízo
natural para qualquer homicídio deverá ser observado – sendo dado à Justiça Estadual, portanto. Como

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“EMENTAS: 1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido.


Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que
pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo
ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação
mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a
outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência
do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio,
ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege,
em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado
na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações
que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à
vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc.. 2.
CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante
execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de
normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações
criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70,
caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de
genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius.
Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de
genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no
âmbito de recurso exclusivo da defesa. 3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação
penal. Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados.
Feito da competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal
do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do
Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no
juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete
ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio
ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução.”

Ainda sobre a competência do Tribunal do Júri, o crime de latrocínio não é


perseguido no Júri por não ser doloso contra a vida, e sim crime com escopo patrimonial.
Assim dispõe a súmula 603 do STF:

“Súmula 603, STF: A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do


juiz singular, e não do Tribunal do Júri.”

1.3.2. Justiça Militar

A Justiça Militar Federal está no artigo 124 da CRFB:

“Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares


definidos em lei.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a
competência da Justiça Militar.”

Esta justiça é incumbida do processo e julgamento dos membros das forças


armadas. A Justiça Militar Estadual, por sua vez, encontra-se no artigo 125, §§ 3° a 5°, da
CRFB, e é incumbida do julgamento da polícia militar e dos bombeiros:

contraponto, poderia ser entendida a competência do Tribunal do Júri Federal por conta de outro aspecto, qual
seja, o interesse da União em apurar tais mortes, fundamentando-se esta competência no artigo 109, IV, da
CRFB. O STF, todavia, no julgado transcrito (informativo 434), deixou claro que o Júri é Federal.

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios


estabelecidos nesta Constituição.
(...)
§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça
Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos
Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por
Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a
vinte mil integrantes.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados,
nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares
militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da
graduação das praças.
§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar,
singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais
contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a
presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.
(...)”

Suponha-se a seguinte situação: se um policial militar pratica estupro, qual será a


justiça incumbida de seu julgamento? Há dois parâmetros a serem observados: se o crime
praticado for previsto no Código Penal Militar (in casu, artigo 232, CPM), e se o policial
estiver enquadrado em uma das hipóteses do artigo 9° do CPM, a competência será da
Justiça Militar:

“Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:


I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei
penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição
especial;
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição
na lei penal comum, quando praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma
situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à
administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou
civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza
militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar
contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da
reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a
administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada.
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra
as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no
inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem
administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade
ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar,
no exercício de função inerente ao seu cargo;

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância,


observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função
de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e
preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente
requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Crimes militares em tempo de guerra
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e
cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.”

“Art. 232. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave


ameaça:
Pena - reclusão, de três a oito anos, sem prejuízo da correspondente à violência.”

Estando preenchidos os requisitos acima, cumulativamente, o policial será julgado


na Justiça Militar.
As situações polêmicas, nesta seara, são profícuas, contudo. Vejamos: se o policial
militar pratica homicídio em serviço, a competência é do Tribunal do Júri, porque a Lei
9.299/96 alterou o CPM e o CPPM, estabelecendo esta competência, e a EC 45/04 alterou o
artigo 125, § 4°, da CRFB, para expressamente fazer assim constar, nos termos ali
descritos.
Quando o policial militar pratica abuso de autoridade, ofendendo a integridade
física da vítima, de quem é a competência? A Lei 4.898/65, que trata do abuso de
autoridade, no seu artigo 3°, “i”, assim estabelece:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


(...)
i) à incolumidade física do indivíduo;
(...)”

Daí, surgem três entendimentos:

- O primeiro posicionamento defende que a lesão corporal foi o meio para a prática
do abuso, sendo por este absorvida. A crítica a este raciocínio é que a pena de
qualquer lesão corporal é maior que a pena do abuso, e por isso o crime mais brando
não poderia absorver o mais severo. Esta é a tese prevalente na jurisprudência e
doutrina.
Sendo apenas abuso o crime, a competência é da Justiça Estadual, pois este
não é crime militar. Assim expressa a súmula 172 do STJ:

“Súmula 172, STJ: Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime
de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.”

- O segundo entendimento defende que se a pena da lesão é maior que a do abuso, é


esta que prevalece, ou seja, a lesão absorve ao abuso. Capez critica esta posição
porque ela simplesmente torna inútil o artigo 3°, “i”, da Lei 4.898/65.
Sendo esta a corrente adotada, a competência é da Justiça Militar, porque a
lesão corporal é crime militar, prevista nos artigos 209 e 210 do CPM.

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

- O terceiro posicionamento, de Capez, assevera que simplesmente não haverá


absorção, pois um crime – a lesão – não é meio necessário para a prática do outro –
o abuso. Assim, responde pelos dois, em concurso formal.
Adotando-se esta vertente, o processo não será reunido, havendo julgamento
cindido do abuso e da lesão: na Justiça Comum, julga-se o abuso; na Militar, a lesão
corporal. Assim dispõe a súmula 90 do STJ:

“Súmula 90, STJ: Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial
militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum
simultâneo àquele.”

Outra questão a ser abordada é a possibilidade ou não de se aplicar a Lei 9.099/95


nos crimes de competência da Justiça Militar. O artigo 90-A deste diploma assim dispõe:

“Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.”

Contudo, há que se diferenciar duas categorias de crimes militares: os crimes


militares próprios e os impróprios. São próprios aqueles que somente são previstos na
legislação militar; e são impróprios aqueles que são previstos no CPM, mas também o são
na legislação penal ordinária (a exemplo da lesão corporal, também prevista no CP).
Feita a diferenciação, os crimes militares próprios não podem sofrer a aplicação da
Lei 9.099/95: é a eles que se endereça a previsão do artigo 90-A desta lei. Já os crimes
militares impróprios, segundo Ada Pellegrini e o STF, são passíveis da aplicação da Lei
9.099/95, de forma que não seja afrontado o princípio da isonomia, pois condutas idênticas
não podem receber tratamento diferenciado em razão apenas de regras de competência.

1.3.3. Juizados Especiais Criminais

Segundo a Lei 9.099/95, são de competência do JECrim as infrações penais de


menor potencial ofensivo, quais sejam, aquelas cuja pena privativa da liberdade máxima
não exacerbe dois anos, cumulada ou não com pena de multa, nos termos do artigo 61 desta
lei:

“Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os


efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena
máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.”

Há uma enormidade de questões polêmicas, no entanto, sobre esta competência em


razão da matéria. Primeira: o abuso de autoridade é da competência do JECrim? O artigo
6°, § 3°, da Lei 4.898/65 traz os parâmetros. Veja:

“Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e


penal.
(...)
§ 3º A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do
Código Penal e consistirá em:
a) multa de cem a cinco mil cruzeiros;
b) detenção por dez dias a seis meses;

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública


por prazo até três anos.
(...)”

Em que pese haver pena privativa de liberdade de no máximo seis meses, há a


previsão da alínea “c”, que parece tornar a infração mais severa. Por isso, surgem duas
correntes sobre a natureza deste delito: a primeira defende que não é crime de menor
potencial ofensivo, pois além da pena privativa de liberdade, esta pena acessória da alínea
“c” torna incompatível o crime com a Lei 9.099/95.
O segundo posicionamento, majoritário, entende que, com a reforma penal de 1984,
todas as penas acessórias foram transformadas em efeitos da condenação, e por isso o
crime é de menor potencial ofensivo, de fato.
Os crimes dos artigos 4° a 7° da Lei 8.137/90, crimes contra a ordem econômica e
contra as relações de consumo, são de menor potencial ofensivo? Veja:

“Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:


(...)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”

“Art. 5° Constitui crime da mesma natureza:


(...)
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”

“Art. 6° Constitui crime da mesma natureza:


(...)”

“Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:


(...)
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
(...)”

Veja que em todos os dispositivos a pena é privativa de liberdade, alta, ou multa.


Esta alternatividade entre a prisão e a multa gera dois entendimentos sobre a natureza
destes delitos: Ada Pellegrini defende que o crime é, sim, de menor potencial ofensivo, pois
a previsão desta multa passível de aplicação isolada sinaliza que o legislador não pretendia
aplicar pena privativa de liberdade. O STF encampa esta tese, pois entende que a pena
mínima possível, em tese, em abstrato, é a multa isolada. Fosse acrescida a multa, não
haveria dúvida, pois a pena privativa de liberdade é superior ao máximo tolerado no
conceito.
A segunda corrente defende que o critério deve ser adstrito apenas à pena privativa
de liberdade, que, se superior ao máximo de dois anos, torna o crime alheio às previsões da
Lei 9.099/95.

1.4. Foro por prerrogativa de função

O artigo 69, VII, do CPP, estabelece que este foro é determinante da competência,
quando existente.
As normas de foro por prerrogativa de função foram criadas porque o legislador
levou em conta a relevância de determinados cargos ou funções públicas. Somente a CRFB
pode criar foro por prerrogativa de função, em regra, pois é sempre uma mitigação ao

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

princípio do juízo natural. As Constituições Estaduais podem criar foros prerrogativados,


por simetria – em que pese haver interpretações do STF que diferem desta previsão.
Vale ressaltar que sempre que se estiver tratando de competência por prerrogativa de
função, a regra de competência territorial será afastada. Se o prefeito de um Município
fluminense, por exemplo, praticar crime em outro Estado da Federação, será julgado no
TJ/RJ de qualquer maneira, pois o foro prerrogativado é prevalente.
Vejamos alguns casos polêmicos.

1.4.1. Prefeitos municipais

O foro por prerrogativa de função dos prefeitos municipais, por exemplo, está na
CRFB, no artigo 29, X:

“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o
interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara
Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta
Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
(...)
X - julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça;
(...)”

Note-se que, todavia, a natureza do crime cometido pelo prefeito deverá ser
observada. A súmula 702 do STF é relevante:

“Súmula 702, STF: A competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos


restringe-se aos crimes de competência da Justiça Comum Estadual; nos demais
casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de segundo grau.”

Assim, se o prefeito comete um crime da competência da Justiça Federal, será


perseguido na Justiça Federal, especificamente no TRF correspondente. Da mesma forma,
se o crime for eleitoral, será processado e julgado no TRE.
Se o prefeito desviar verbas da União, por exemplo, a quem incumbe o julgamento?
Dependerá da natureza da verba: se esta foi incorporada ao patrimônio municipal, a
competência é do Tribunal de Justiça Estadual, como assevera a súmula 209 do STJ:

“Súmula 209, STJ: Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por
desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.”

Se esta verba, outrossim, estiver sujeita à prestação de contas perante órgão federal,
a competência é da Justiça Federal, TRF, conforme súmula 208 do STJ:

“Súmula 208, STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal
por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.”

Nos chamados crimes de responsabilidade, a competência para julgamento do


prefeito varia. Os crimes de responsabilidade estão previstos no DL 201/67, e são crimes de
responsabilidade próprios ou impróprios. São próprios aqueles que se configuram como
infrações de natureza político-administrativa, previstos no artigo 4° deste DL, cuja
competência para julgamento é da Câmara de Vereadores do Município; impróprios, são

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

aqueles que se demonstram infrações penais punidas com pena privativa de liberdade
previstos no artigo 1° do DL 201/67, cuja competência para processo e julgamento é do
Tribunal de Justiça do respectivo Estado.

“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao


julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara
dos Vereadores:
I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou
alheio;
II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou
serviços públicos;
III - desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas;
IV - empregar subvenções, auxílios, empréstimos ou recursos de qualquer
natureza, em desacordo com os planos ou programas a que se destinam;
V - ordenar ou efetuar despesas não autorizadas por lei, ou realizá-Ias em
desacordo com as normas financeiras pertinentes;
VI - deixar de prestar contas anuais da administração financeira do Município a
Câmara de Vereadores, ou ao órgão que a Constituição do Estado indicar, nos
prazos e condições estabelecidos;
VII - Deixar de prestar contas, no devido tempo, ao órgão competente, da
aplicação de recursos, empréstimos subvenções ou auxílios internos ou externos,
recebidos a qualquer titulo;
VIII - Contrair empréstimo, emitir apólices, ou obrigar o Município por títulos de
crédito, sem autorização da Câmara, ou em desacordo com a lei;
IX - Conceder empréstimo, auxílios ou subvenções sem autorização da Câmara, ou
em desacordo com a lei;
X - Alienar ou onerar bens imóveis, ou rendas municipais, sem autorização da
Câmara, ou em desacordo com a lei;
XI - Adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de
preços, nos casos exigidos em lei;
XII - Antecipar ou inverter a ordem de pagamento a credores do Município, sem
vantagem para o erário;
XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei;
XIV - Negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir
ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à
autoridade competente;
XV - Deixar de fornecer certidões de atos ou contratos municipais, dentro do prazo
estabelecido em lei.
XVI – deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos prazos
estabelecidos em lei, quando o montante ultrapassar o valor resultante da aplicação
do limite máximo fixado pelo Senado Federal;
XVII – ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites
estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de
crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal;
XVIII – deixar de promover ou de ordenar, na forma da lei, o cancelamento, a
amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de
crédito realizada com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido
em lei;
XIX – deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de
crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e
demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro;
XX – ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de
crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades
da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou
postergação de dívida contraída anteriormente;

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

XXI – captar recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição


cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido;
XXII – ordenar ou autorizar a destinação de recursos provenientes da emissão de
títulos para finalidade diversa da prevista na lei que a autorizou;
XXIII – realizar ou receber transferência voluntária em desacordo com limite ou
condição estabelecida em lei.
§ 1º Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e
II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de
detenção, de três meses a três anos.
§ 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo,
acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o
exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da
reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.”

“Art. 4º São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao


julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do
mandato:
I - Impedir o funcionamento regular da Câmara;
II - Impedir o exame de livros, folhas de pagamento e demais documentos que
devam constar dos arquivos da Prefeitura, bem como a verificação de obras e
serviços municipais, por comissão de investigação da Câmara ou auditoria,
regularmente instituída;
III - Desatender, sem motivo justo, as convocações ou os pedidos de informações
da Câmara, quando feitos a tempo e em forma regular;
IV - Retardar a publicação ou deixar de publicar as leis e atos sujeitos a essa
formalidade;
V - Deixar de apresentar à Câmara, no devido tempo, e em forma regular, a
proposta orçamentária;
VI - Descumprir o orçamento aprovado para o exercício financeiro,
VII - Praticar, contra expressa disposição de lei, ato de sua competência ou emitir-
se na sua prática;
VIII - Omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do
Município sujeito à administração da Prefeitura;
IX - Ausentar-se do Município, por tempo superior ao permitido em lei, ou afastar-
se da Prefeitura, sem autorização da Câmara dos Vereadores;
X - Proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo.”

1.4.2. Magistrados e membros do Ministério Público

O artigo 96, III, da CRFB, dita a regra para os juizes e promotores:

“Art. 96. Compete privativamente:


(...)
III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e
Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de
responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.”

Se o juiz pratica crime de competência da Justiça Federal, a competência ainda


remanesce no TJ, pois a única ressalva deste dispositivo em comento diz respeito à Justiça
Eleitoral, não excepcionando a competência da Justiça Federal.
Os desembargadores são julgados pelo STJ, mesmo se o crime for de competência
da Justiça Eleitoral. Assim dispõe o artigo 105, I, “a”, da CRFB, que não repete a ressalva
do artigo 96, III:

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:


I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes
e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos
Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e
do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais
Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
(...)”

Os procuradores de justiça são julgados também no TJ, pela plana leitura do artigo
96, III, da CRFB.

1.4.3. Deputados Estaduais

O foro por prerrogativa de função do deputado estadual é criado por simetria na


respectiva Constituição Estadual. No Rio de Janeiro, a competência para processamento e
julgamento dos deputados é do TJ/RJ.
Assim, se um deputado pratica um roubo, a competência é do TJ. Mas e se comete
crime de competência da Justiça Federal? Aplica-se, por analogia, a súmula 702 do STF: o
julgamento é no TRF.
Se o deputado estadual cometer crime doloso contra a vida, assim dispõe a súmula
721 do STF:

“Súmula 721, STF: A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece


sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela
Constituição Estadual.”

Há, de fato, três entendimentos sobre o tema. Mirabete entende que a súmula 721 se
aplica de forma límpida, e o deputado será julgado no Júri, pois é exatamente o caso dali: o
foro por prerrogativa, mesmo que por simetria, vem apenas na Constituição do Estado, e
por isso não prevalece sobre o Júri.
Já Polastri defende que não faz sentido se estabelecer tratamento diferenciado entre
deputado estadual e federal. Assim, para que não haja ofensa à isonomia, ambos deverão
ser julgados pelos respectivos Tribunais, pelos respectivos foros por prerrogativa –
simplesmente desconsiderando a súmula 721 do STF.
O STF, no entanto, aduz uma terceira interpretação. Ao julgar duas ADIs, uma do
Maranhão e uma de Goiás, as quais questionavam foros por prerrogativa, uma para
defensor público e procuradores do Estado, e outra para delegados, entendeu correta a
norma que criava prerrogativa para defensores e procuradores, mesmo sem simetria, mas
entendeu que para o delegado não era possível, pois é cargo fiscalizado pelo MP.
Assim, quando entende possível, para os agentes que tiveram o foro por
prerrogativa criado assimetricamente, se porventura houver a prática de crime doloso
contra a vida, aplica-se a súmula 721 do STF, em seus termos. Já para aqueles que tiverem
a prerrogativa criada por simetria, como o deputado estadual, não se aplica a súmula 721
do STF – o deputado será julgado pelo foro por prerrogativa de função.
As correntes de Polastri e do STF tendem a ser aplicadas, mesmo estando longe de
ser pacífica a questão.

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

1.5. Prevenção

O inciso VI do artigo 69 do CPP estabelece a prevenção como um critério de


fixação da competência. Prevenção significa anterioridade de conhecimento, ou seja,
havendo dois ou mais juizes igualmente competentes, aquele que adotou a primeira medida
de caráter processual está prevento. A regra consta do artigo 83 do CPP:

“Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo
dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um
deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida
a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts.
70, § 3o, 71, 72, § 2o, e 78, II, c).”

É claro que para se alcançar esta regra de fixação da competência, é necessário que
os juízos sejam igualmente competentes. Por isso, nunca haverá prevenção entre juízo
estadual e federal, por exemplo (a não ser nas hipóteses excepcionais em que os juizes
estaduais atuam como federais, por não haver Justiça Federal instalada – mas aí é
competência fixada pela competência federal).
A conseqüência da inobservância da regra de prevenção, segundo a súmula 706 do
STF, é a nulidade relativa:

“Súmula 706, STF: É relativa a nulidade decorrente da inobservância da


competência penal por prevenção.”

Os atos que induzem prevenção, no processo penal, são os seguintes: o recebimento


da denúncia; a comunicação da prisão em flagrante (recebimento do auto de prisão em
flagrante); o deferimento ou indeferimento de medida cautelar no curso do inquérito; e, no
Rio de Janeiro, o julgamento de habeas corpus (variando em outros Estados).
As medidas decretadas durante o plantão judicial não fazem prevenção, porque têm
caráter emergencial, e por não terem passado por prévia distribuição, critério objetivo que
deve imperativamente preceder a prevenção. Do contrário, poderia haver a escolha do
juízo, afigurando-se grave violação ao juiz natural.

Michell Nunes Midlej Maron 67


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Casos Concretos

Questão 1

João, Deputado Estadual, é denunciado perante o Tribunal do Júri por ser o


suposto autor de um homicídio. O Juiz recebe a denúncia. O advogado do parlamentar
suscita a incompetência absoluta daquele Tribunal, alegando que seu cliente teria foro por
prerrogativa de função no Tribunal de Justiça. Decida a questão.

Resposta à Questão 1

Na verdade, há três posicionamentos sobre o foro do deputado estadual. O


posicionamento do STF é de que a competência do Tribunal do Júri não vai prevalecer, a
despeito do que diz sua súmula 721, porque o foro por prerrogativa no Tribunal de Justiça
foi criado à simetria da CRFB, para os deputados federais, e a isonomia precisa ser
resguardada.
A corrente de Polastri diz que simplesmente não se aplica esta súmula, e coaduna-
se, em efeitos, à do STF: prevalece o foro prerrogativado.
A última corrente, de Mirabete, defende, ao contrário, que se aplica à risca a súmula
721, e prevalece o Júri.

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Questão 2

Certo Delegado de Polícia, fora do expediente forense, cerca das 19 horas,


procurou o Juiz da 25ª Vara Criminal, que ainda se encontrava no foro, e logrou que este
decretasse a prisão temporária de um indiciado em inquérito que versava sobre extorsão
mediante seqüestro. Terminado o inquérito, o feito foi enviado à Justiça, sendo distribuído
para o Promotor da 3ª Vara Criminal que, com fulcro no art. 83 do CPP, entendeu que o
Juízo que decretou a prisão estaria prevento. Como deve agir o Promotor da 25ª Vara
Criminal?
Resposta objetivamente justificada.

Resposta à Questão 2

Como a medida foi emergencial, não foi observada a distribuição para o feito, pelo
que não se deve interpretar como havida a prevenção. Por isso, o promotor da 25° Vara
Criminal deve entender que não há prevenção, e portanto suscitar o conflito negativo com a
3ª Vara Criminal..

Questão 3

O delegado de polícia que está investigando um homicídio requereu ao juiz de


direito a quebra do sigilo eletrônico da vítima LUCÍOLA e de seu primo EGUIBERTO.
Ambos trabalhavam no escritório do aposentado desembargador X.
O magistrado ao apreciar o pleito de quebra do sigilo eletrônico, decidiu declinar
da sua competência para uma das turmas do Superior Tribunal de Justiça, por entender
que se trata de investigação envolvendo direta ou indiretamente um desembargador
estadual.
Foi correta a decisão do magistrado? Justifique..

Resposta à Questão 3

Incorreta. O desembargador aposentado sequer tem a prerrogativa de função. Mas,


mesmo que não fosse, não é ele quem está sendo investigado, em nada interferindo seu foro
privilegiado. Se o desembargador, ele próprio, fosse indiciado, e mais, se fosse da ativa,
haveria, aí sim, a vis atractiva para o seu foro prerrogativado. Por isso, o juízo declinante é
competente, e deve processar o feito.

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema VII

Competência: causas modificadoras. 1. - Conexão 1. 1. Conceito 1. 2. Espécies e subespécies 1. 3. Efeito 2. -


Continência - Artigo 77, CPP 2. 1. Conceito 2. 2. Espécies 2. 3. Efeito 3. - Perpetuatio jurisdictionis - Artigo
78, CPP.

Notas de Aula

1. Conexão e continência

Como visto, a competência pode ser constitucionalmente prevista ou legalmente


estipulada. Na competência constitucional estão as previsões sobre as justiças
especializadas, as justiças comuns, a competência para as infrações de menor potencial
ofensivo, a competência para crimes dolosos contra a vida e os foros por prerrogativa de
função. Na competência legal estão as normas gerais, as regras especiais e as regras
suplementares de definição de competência. É e justamente nesta última categoria que se
encontram as regras de conexão e continência.
A conexão e a continência estabelecem que, quando for o caso previsto, os
processos, que se fossem seguidas à risca as regras de competência, seriam dados a juízos
diferentes, serão reunidos para processamento e julgamento em um só juízo. O escopo
destas regras suplementares modificativas da competência é evitar decisões contraditórias,
o que poderia acontecer caso os processos corressem em separado.

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Assim, a conseqüência da conexão e da continência é a reunião dos processos, como


dita o artigo 79 do CPP:

“Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento,


salvo:
I - no concurso entre a jurisdição comum e a militar;
II - no concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores.
§ 1o Cessará, em qualquer caso, a unidade do processo, se, em relação a algum co-
réu, sobrevier o caso previsto no art. 152.
§ 2o A unidade do processo não importará a do julgamento, se houver co-réu
foragido que não possa ser julgado à revelia, ou ocorrer a hipótese do art. 461.”

A natureza jurídica da conexão e da continência é, como dito, de causas


modificadoras da competência. Sempre que dois crimes conexos forem reunidos em um
dos juízos, aquele que deixou de processar a infração que ser-lhe-ia incumbida perdeu a
competência, portanto. Como exemplo, se há conexão entre um homicídio e a ocultação do
cadáver, prevalecerá o Júri, competente para o crime doloso contra a vida, sobre a vara
criminal, esta perdendo competência para aquele.

1.1. Conexão

O sentido gramatical da expressão já revela o que este instituto opera: há conexão


quando há uma relação, uma ligação, um elo entre as infrações. A conexão se encontra no
artigo 76 do CPP:

“Art. 76. A competência será determinada pela conexão:


I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo
tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora
diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as
outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias
elementares influir na prova de outra infração.”

Há, portanto, três causas de conexão, uma em cada inciso deste artigo 76. Vejamos
uma a uma.

1.1.1. Conexão intersubjetiva

O inciso I do artigo 76 apresenta a conexão intersubjetiva, a qual, por si, oferece


uma subdivisão hipotética em três espécies:

- Conexão intersubjetiva por simultaneidade, ou ocasional: Na primeira parte da


redação, o dispositivo prevê o cometimento de uma pluralidade de infrações por
várias pessoas reunidas, ao mesmo tempo. Esta conexão ocorre ocasionalmente, não
havendo liame subjetivo qualquer entre os agentes criminosos. Exemplo clássico é
um saque a supermercado: há várias pessoas cometendo furtos autônomos, mas
como a ocasião propicia elementos de identicidade nas condutas, reúnem-se os
processos no mesmo juízo, a fim de que haja uma sentença coesa para todos.

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

- Conexão intersubjetiva por concurso: Seja o concurso de pessoas realizado em co-


autoria ou participação, se há a aderência subjetiva, a unidade de desígnios entre os
agentes que praticam diversos crimes, há a conexão, sendo reunidos para
processamento e julgamento em um só juízo. Como exemplo, a ocorrência de
diversos furtos, praticados pela mesma quadrilha em locais diferentes.

- Conexão intersubjetiva por reciprocidade: Quando os agentes praticam crimes uns


contra os outros, de forma recíproca, há que se reunirem os processos. Como
exemplo, as lesões corporais recíprocas.

1.1.2. Conexão teleológica, ou consequencial

A conexão teleológica, do inciso II deste artigo 76 do CPP, se impõe quando alguma


infração tenha sido praticada com o fito de cometer outro crime, facilitando, ocultando,
tornando impune ou gerando vantagem sobre aspecto de outro crime.
Facilitar o crime é diminuir a dificuldade de cometimento do crime que se tem por
objetivado ao final. Como exemplo, causar lesões ao marido para que este não ofereça
resistência contra o estupro de sua mulher.
Ocultar outra infração, por óbvio, é fazer desaparecer a própria existência do crime
que se tem por objetivo. Exemplo clássico é a ocultação de cadáver, dedicada a ocultar o
cometimento do prévio homicídio.
Tornar impune o crime difere da ocultação, pois, ao contrário desta, não se pretende
obliterar a própria existência do crime, mas apenas impossibilitar a descoberta da sua
autoria. Como exemplo, a coação da testemunha, a fim de impossibilitar a descoberta da
autoria do prévio homicídio.
Assegurar a vantagem de outro crime diz respeito a garantir o proveito do produto
do crime. Como exemplo, o homicídio de um co-autor, a fim de ficar com o produto de um
furto.
Todos os crimes teleologicamente conexos são considerados agravantes no direito
penal, como determina o artigo 61, II, “b”, do CP:

“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem
ou qualificam o crime:
(...)
II - ter o agente cometido o crime:
(...)
b) para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem
de outro crime;
(...)”

1.1.3. Conexão instrumental, ou probatória

O inciso III do artigo 76 do CPP trata da conexão que é induzida quando a prova de
um crime for necessária, for pressuposto à prova de outro crime. Como exemplo, a prova
do roubo de um veículo é pressuposto da prova da receptação deste veículo, pois se restar
comprovado que não houve roubo, não há como se configurar a receptação.

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

1.2. Continência

O artigo 77 do CPP estabelece esta causa de modificação da competência. É


interessante consignar-se que em nenhum outro ordenamento alienígena há diferenciação
entre conexão e continência: só no Brasil há tal diferença, e sem efeitos, porque o resultado
é o mesmo – a reunião dos processos. Veja:

“Art. 77. A competência será determinada pela continência quando:


I - duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
II - no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53,
segunda parte, e 54 do Código Penal.”

No inciso I está a continência subjetiva, quando duas ou mais pessoas cometem um


só crime. Veja que não se confunde com a conexão intersubjetiva, do inciso I do artigo 76:
nesta conexão, há mais de um crime em debate, cometidos por mais de uma pessoa; na
continência subjetiva, são várias as pessoas, mas há um só crime cometido.
O inciso II deste artigo remete a artigos antigos. Hoje, onde consta 51, § 1°, 53 e 54,
leia-se 70, 73 e 74 do CP. Veja:

“Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou


mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é
dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art.
69 deste Código.”

“Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente,
ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde
como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º
do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente
pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”

“Art. 74 - Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na
execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde
por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado
pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”

Destarte, no caso de concurso formal, do artigo 70, em que há uma ação com dois
ou mais crimes, todos os crimes serão julgados em um só juízo, pois se trata de continência.
Por exemplo, dois homicídios dolosos praticados com um só disparo de arma de fogo: em
regra, seria necessária a livre distribuição para cada homicídio, podendo serem julgados
separadamente por dois Tribunais do Júri, mas como é hipótese de continência, são
processados e julgados em conjunto.
Havendo erro na execução, aberratio ictus, se há a hipótese da parte final do artigo
73 do CP, em que um segundo crime não almejado for cometido, não há distribuição de
cada um em separado: há continência. Como exemplo, um disparo de escopeta que
intentava matar uma pessoa, realiza o intento original, mas também, colateralmente, mata
uma segunda pessoa, culposamente: seguindo as regras de competência, a primeira morte

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

seria julgada no Júri, e a segunda na vara criminal, mas como é caso de continência, todos
os resultados, o doloso e o culposo, serão julgados no Júri.
Havendo resultado diverso do pretendido, aberratio criminis, havendo a dualidade
de resultado como determina a parte final do artigo 74 do CP, também há continência. Veja:
o resultado diverso do pretendido assemelha-se ao erro na execução, mas se trata de erro
pessoa-patrimônio, enquanto na aberratio ictus o erro é pessoa-pessoa. Neste caso, se há
tanto o crime almejado, pessoal, quanto o crime patrimonial indesejado (ou vice-versa), há
a continência: ambos serão julgados pelo mesmo juízo. Como exemplo, agente almejando
praticar crime de dano, arremessa pedra que, por erro, além de quebrar o bem alvejado,
acerta pessoa, a qual morre. Seria caso de livre distribuição, tanto para a morte culposa
quanto para o dano doloso, mas a continência impõe distribuição conjunta dos dois para
uma só vara criminal. É, na verdade, mais uma hipótese de concurso formal, só que de
pessoa para patrimônio.
Todas as hipóteses do inciso II do artigo 77 são de continência objetiva, pois há um
só agente e mais de um crime, enquanto no inciso I, como visto, a continência é subjetiva,
pois há pluralidade de agentes.

1.3. Juízo ou foro prevalente

Como se pode deduzir, há sempre mais de um juízo que seriam competentes para os
crimes, se não houvesse conexão ou continência. Havendo estas causas modificativas da
competência, uma delas falecerá em prol da outra: um dos juízos deverá prevalecer. E são
estas regras de definição do juízo prevalente que serão vistas agora.
O artigo 78 do CPP traça as regras:
“Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão
observadas as seguintes regras:
I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição
comum, prevalecerá a competência do júri;
II - no concurso de jurisdições da mesma categoria:
a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave;
b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se
as respectivas penas forem de igual gravidade;
c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos;
III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior
graduação;
IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.”

1.3.1. Prevalência do Tribunal do Júri

No inciso I, este artigo determina que a competência do Júri prevalece sobre o juízo
comum. Surgem algumas questões peculiares a serem enfrentadas: e se a conexão ou
continência for entre um crime doloso contra a vida e uma infração de menor potencial
ofensivo, prevalece o Júri ou o JECrim?
A Lei 9.099/95 foi alterada em 2006, pela Lei 11.313, que pôs fim à controvérsia
nesta hipótese, pela nova redação dada ao seu artigo 60:

“Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e
leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e


continência.
Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do
júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão
os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.”

Assim, prevalece o Júri, mas não deixam de ser aplicáveis os institutos


despenalizadores da Lei 9.099/95: o final do parágrafo único deixa bem claro que, mesmo
sendo processada no Júri, a infração de menor potencial ofensivo é merecedora de tais
institutos.
O Professor Guilherme Nucci, porém, entende inconstitucional esta alteração
promovida no artigo 60 da Lei 9.099/95. Defende que, sendo o JECrim uma regra de
competência constitucional, assim como o Júri, não poderia a lei ordinária – 11.313/06 –
revogar a competência constitucionalmente instituída, do JECrim, pelo que os processos
deveriam correr em separado. Mas sua tese é isolada, o STF entendendo plenamente
aplicável a reunião dos processos.
O mesmo raciocínio pode ser usado na ocorrência de crime contra a mulher, conexo
ao crime que seja doloso contra a vida: homicídio contra a mulher será julgado no Júri, e
não no juizado dos crimes de violência doméstica, pois esta competência foi instituída por
lei ordinária, Lei Maria da Penha, enquanto o Tribunal do Júri é constitucionalmente
instituído.

1.3.2. Órgãos jurisdicionais de mesma categoria

O inciso II do artigo 78 do CPP traz diversas regras sucessivamente aplicáveis, e a


redação das alíneas é bastante clara, auto-explicativa.
A alínea “a” estabelece que, havendo crimes de diferente graduação, prevalece o
juízo do mais grave. Por exemplo, o agente comete roubo em uma comarca, e oferece à
receptação em outra: prevalece o juízo da comarca do roubo, que é mais grave.
Se os crimes são de mesma gravidade, porém, prepondera a comarca onde ocorreu o
maior numero de infrações. Por exemplo, se há três furtos cometidos por uma quadrilha,
sendo dois em uma comarca e um em uma outra, prevalece o juízo da comarca em que
ocorreram dois furtos, em detrimento daquela em que ocorreu um só. Aplica-se a alínea “b”
deste dispositivo.
Mas se nenhuma das hipóteses anteriores solucionar a questão, a solução é oferecida
na alínea “c” do dispositivo: aplica-se a prevenção. Como exemplo, se há um furto em uma
comarca, e um furto em outra, da mesma categoria e gravidade, prevalecerá aquele juízo
que ficar prevento, nos termos do artigo 83 do CPP:

“Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo
dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um
deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida
a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts.
70, § 3o, 71, 72, § 2o, e 78, II, c).”

Rememorando, a prevenção ocorre quando se der o primeiro ato que identifique


conhecimento do processo pelo juízo, pela prática, por este, de algum ato processual em
feito que lhe veio por livre distribuição.

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

1.3.3. Órgãos jurisdicionais de categorias diversas

O inciso III deste artigo 78 do CPP estabelece que, havendo competência


concorrente entre órgãos de diversas categorias, prevalecerá o de maior graduação. O
melhor exemplo de aplicação desta regra é o do foro por prerrogativa de função: se o
prefeito, por exemplo se une a um particular no cometimento de um crime, a conexão
intersubjetiva por concurso concentrará a competência no Tribunal de Justiça, para ambos
os réus, pois prevalece o foro privilegiado do prefeito.
Há aqui uma polêmica, que teve certa pacificação pela edição da súmula 704 do
STF, precisamente no que diz respeito a esta reunião dos processos no foro prerrogativado:

“Súmula 740, STF: Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do
devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu
ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

Tourinho Filho, por exemplo, é um que sustenta a inconstitucionalidade deste artigo


78, III, porque entende que viola a ampla defesa: se há menos instâncias, na verdade o foro
é desprivilegiado, pelo que a ampla defesa do co-réu que não tem prerrogativa seria
atacada. Ocorre que este foro é, de fato, privilegiado: o réu ali julgado conta com a
vantagem de ser, de imediato, julgado por órgão colegiado, e por julgadores mais
experientes, juridicamente mais hábeis, sendo mais segura a apreciação de seu caso. Daí a
posição do STF rejeitar a de Tourinho: o STF entende que se dá o julgamento qualificado
neste foro privilegiado, e o co-réu só teria acesso a este julgamento mais preciso por via
recursal, tendo que se submeter ao juízo de primeira instância, primeiro. Na verdade, a
reunião no foro prerrogativado é um benefício ao co-réu que foi atraído.
1.3.4. Justiça especializada

O artigo 78, IV, do CPP, estabelece que prevalece a justiça especializada, quando o
concurso de competências ocorre entre esta e a comum. Por exemplo, se há crime eleitoral
em concurso com crime comum, prevalece a Justiça Eleitoral.
Se há conexão entre crime de competência da Justiça Federal e outro da
competência da Justiça Estadual, qual prevalecerá? Veja que ambas são integrantes da
justiça comum, pelo que a especialidade não seria critério hábil. Todavia, o STF entende
que a Federal, mesmo integrando a justiça comum, é um tanto mais especializada do que a
Estadual, motivo que a torna prevalente sobre esta: a Justiça Estadual é residual, como dita
a súmula 122 do STJ.

“Súmula 122, STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado


dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do
art. 78, II, “a”, do Código de Processo Penal.”

Tourinho, novamente, sustenta que esta posição é incorreta: entende que a súmula
122 do STJ cria situação inconstitucional. A sua premissa é que, sendo justiças integrantes
da justiça comum, não pode haver prevalência, devendo ser separados os processos. Apesar
de minoritário, Tourinho encontra um forte argumento: há projeto de novo CPP em

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

tramitação, e neste projeto esta hipótese implica, expressamente, em separação dos


processos.
Vale consignar que as contravenções penais neste caso, jamais serão julgadas pela
Justiça Federal: mesmo prevalecendo esta, o artigo 109, IV, da CRFB estabelece que apenas
crimes são perseguidos na Justiça Federal, o que se aplica inclusive havendo conexão entre
contravenções e crime da Justiça Federal – separam-se os processos.

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:


(...)
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens,
serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas
públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar
e da Justiça Eleitoral;
(..)”

1.4. Perpetuatio jurisdictionis

Havendo a reunião de processos, pode haver a seguinte situação: aquele juízo que
atraiu a competência que não seria originalmente sua, porque ali corre a vis atractiva – por
exemplo, o crime da Justiça Federal que atraiu o crime da Estadual –, pode acabar
absolvendo o agente do crime que exerceu a atração.
Veja que, neste caso, o motivo que fez com que o crime de outra competência viesse
para aquela, ali se concentrasse, deixou de existir. Por isso, a normalidade seria que o crime
atraído, cessando o motivo de sua atração, fosse enviado de volta ao juízo originalmente
competente. No exemplo, o crime da Justiça Estadual a esta retornaria, quando o crime da
Justiça Federal, vis atractiva, culminasse em absolvição.
Contudo, esta não é a regra: o juízo prevalente, que atraiu o crime conexo de
alhures, mesmo absolvendo o crime que serviu para a trair o conexo, vai continuar
competente para julgar o crime atraído, singularmente. Esta é a regra da perpetuação da
jurisdição, perpetuatio jurisdictionis.
O artigo 81 do CPP é a sede deste princípio:

“Art. 81. Verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda
que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir
sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua
na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.
Parágrafo único. Reconhecida inicialmente ao júri a competência por conexão ou
continência, o juiz, se vier a desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver
o acusado, de maneira que exclua a competência do júri, remeterá o processo ao
juízo competente.”

Na verdade, esta regra é um corolário da economia processual: aquele juízo cuja


competência agregou os crimes conexos ou continentes vai perpetuar sua competência por
medida de economia e celeridade do processo, pois a segmentação ulterior seria
dispendiosa em atos processuais, e indutora de morosidade desnecessária.
A perpetuatio jurisdictionis só opera seus efeitos quando há a sentença absolutória
ou a desclassificação do crime. Se o crime atraente é excluído antes da sentença, o juiz
prevalente deverá remeter o crime conexo ao juízo originariamente competente, ou seja, sua
competência não se perpetua, neste caso. Um exemplo: suponha que haja denúncia pelo

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ministério Público Federal de um crime federal e um estadual; se o juiz federal, ao realizar


o juízo de admissibilidade, rejeita a denúncia em relação ao crime de competência federal,
deverá declinar da competência para o juízo estadual, enviando a denúncia para a livre
distribuição na Justiça Estadual (ou ao juízo avocado, se já houve prevenção por
distribuição anterior na Justiça Estadual). Da mesma forma ocorre se há a impronúncia do
crime federal, pois não é sentença meritória.
A súmula 224 do STJ assim estabelece:

“Súmula 224, STJ: Excluído do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz
Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não
suscitar conflito.”

Há que se consignar que esta regra da perpetuação não se aplica à dinâmica do


inquérito. Como o próprio nomen do princípio diz, é perpetuação da jurisdição, e não da
atribuição investigativa.
Veja: se a polícia federal porventura concentra em si uma investigação de sonegação
fiscal de tributos federais e estaduais, esta concentração se dá apenas pela existência dos
indícios do crime de competência da Justiça Federal, qual seja, a sonegação de tributo
federal (pois se fosse apenas tributo estadual, a investigação seria atribuição da polícia civil
do Estado). Neste exemplo, se no curso do inquérito ficar evidenciado que não há o crime
de sonegação de tributo federal, mas apenas tributo estadual, a polícia federal deverá
remeter o processo à polícia civil do Estado em questão, ou seja, não se perpetuará a
atribuição investigativa do delegado federal para o crime de competência estadual.
Assim, se no curso do inquérito, o crime principal, vis atractiva, for excluído, não
perpetuará a atribuição do delegado prevalente, devendo a investigação ser retomada pelo
delegado civil.

1.4.1. Avocação e declínio de ofício

O juiz prevalente pode requisitar os autos do juízo que perdeu a competência, em


caso em que deva se produzir a unidade de processamento e julgamento. Esta requisição é a
avocação da competência.
Assim determina o artigo 82 do CPP:

“Art. 82. Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos
diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que
corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva.
Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de
soma ou de unificação das penas.”

Veja que se já houver sentença definitiva, não haverá reunião do processo, pois o
escopo da reunião é justamente evitar sentenças contraditórias, e se já há sentença, a
reunião perde o propósito. A súmula 235 do STJ assim determina:

“Súmula 235, STJ: A conexão não determina a reunião dos processos, se um deles
já foi julgado.”

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Veja que basta a sentença de primeira instância, sequer sendo exigido o seu trânsito
em julgado. Todavia, há que se fazer uma ressalva: havendo sentença, mas vindo esta a ser
anulada (não reformada, mas anulada) pela instância recursal, será o processo retomado do
momento anterior à sentença; sendo assim, considera-se que neste momento não há
sentença, e pode haver a avocação pelo juízo prevalente (ou declínio pelo processante,
como se verá a seguir).
Da mesma forma, se o juiz que processa um feito toma conhecimento que este é
conexo a um outro, e que a reunião deve ser feita no outro juízo, ou seja, que ele não é o
prevalente, deverá remeter de ofício os autos para serem reunidos no juízo que tem a
verdadeira competência. Assim determina o artigo 109, usque 108, do CPP:

“Art. 109. Se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o torne
incompetente, declara-lo-á nos autos, haja ou não alegação da parte, prosseguindo-
se na forma do artigo anterior.”

“Art. 108. A exceção de incompetência do juízo poderá ser oposta, verbalmente ou


por escrito, no prazo de defesa.
§ 1o Se, ouvido o Ministério Público, for aceita a declinatória, o feito será
remetido ao juízo competente, onde, ratificados os atos anteriores, o processo
prosseguirá.
§ 2o Recusada a incompetência, o juiz continuará no feito, fazendo tomar por
termo a declinatória, se formulada verbalmente.”

Casos Concretos

Questão 1

PEDRO ingressa numa residência e de lá furta, mediante arrombamento, diversos


objetos. Percebendo que Antônio a tudo assistiu, PEDRO, a fim de garantir a impunidade
do crime, ameaça verbalmente a testemunha de morte.
Indaga-se:
a) Qual o tipo de conexão existente?
b) Haverá unidade de processo e julgamento?

Resposta à Questão 1

a) Conexão objetiva teleológica, do artigo 76, II, do CPP, em que o agente comete
outro delito a fim de assegurar vantagem ou impunidade sobre o crime já
cometido inicialmente. O crime de ameaça, que seria do JECrim, será reunido
no juízo do crime comum, competente para o furto qualificado cometido, mas
ainda será passível, a ameaça, da transação penal ou da composição dos danos,
como determina o artigo 60 da Lei 9.099/95.

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

b) Sim. Havendo a conexão, há, como regra, a unidade de processo e julgamento


dos crimes conexos. A plana leitura do artigo 79 do CPP assim faz depreender.

Questão 2

Pedro, Caio, João e José, formam uma quadrilha especializada em furtos e roubos
de automóveis importados. Os membros desta quadrilha cometem crime de roubo,
mediante grave ameaça com emprego de arma de fogo, na Comarca da Capital e em razão
deste fato são denunciados junto a 23ª Vara Criminal, tendo sido recebida a denúncia.
Posteriormente são denunciados no Juízo Único da Comarca de Silva Jardim, por
formação de quadrilha e, após o recebimento da denúncia, são devidamente interrogados.
Neste momento o juiz toma conhecimento do processo que tramita na Capital.
Pergunta-se:
a) É caso de conexão?
b) Caso o juiz de Silva Jardim entenda que, em razão da conexão, competente é o
juiz da Capital, como deverá proceder?

Resposta à Questão 2

a) Sim. Trata-se da conexão intersubjetiva por concurso, uma das formas previstas
no artigo 76, I, do CPP, em que os agentes cometem crimes com unidade de
desígnios. Além disso, há também a conexão probatória, do artigo 76, III, do
CPP, pois da prova do roubo depende a própria elementar do crime de formação
de quadrilha.

b) O juiz prevalente é, de fato, o da Capital, pois ali se cometeu o crime mais grave
(artigo 78, II, “a”, CPP). Destarte, o juiz de Silva Jardim deverá declinar da sua
competência de ofício, na forma do artigo 109 do CPP, remetendo os autos no
estado para que o juízo da Capital dê processamento e julgamento uno aos
delitos.

Questão 3

João de Almeida, estando em uma festa na casa de um conhecido seu, na cidade de


Petrópolis, subtraiu um relógio de ouro, um cordão também de ouro e um anel de
brilhantes, os quais estavam em uma gaveta e, dias após, os vendeu na cidade de Três
Rios, respectivamente para Pedro, Cássio e Antônio, que sabiam da origem criminosa dos
bens.
Apurados devidamente os fatos, explicite, justificadamente, a competência para o
julgamento, na hipótese, considerando ser João de Almeida soldado aposentado da Polícia
Militar do Rio de Janeiro, o qual prestava esporadicamente serviços ao Juízo Eleitoral de
Cantagalo.

Resposta à Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Há um furto em Petrópolis, e três crimes de receptação em Três Rios. Como os


juízos têm a mesma categoria, e os crimes têm a mesma gravidade, o critério para fixação
será o da alínea “b” do inciso II do artigo 78 do CPP, qual seja, será competente o juízo
onde ocorreu o maior número de infrações – o de Três Rios.

Tema VIII

Competência: causas modificadoras (continuação). 1. – Questões relevantes e controvertidas. 1.1. Conexão e


continência - crimes eleitorais e os crimes comuns. 1.2. Conexão e continência - crimes eleitorais e os crimes
dolosos contra a vida. 1.3. Conexão e continência - crime doloso contra a vida e o foro por prerrogativa de
função. 1.4. Conexão e continência - infrações penais de menor potencial ofensivo e foro por prerrogativa de
função. 1.5. Justiça Militar e as infrações penais de menor potencial ofensivo. 1.6. Conexão e continência e
competência recursal. 2. – Desmembramento do processo - Artigos 79 e 80 do CPP.

Notas de Aula

1. Disjunção processual

A regra, como se pôde ver, é que na ocorrência de conexão ou continência, haja a


reunião, a unificação de processamento e julgamento. Há casos, porém, em que a reunião
não pode ser feita, mesmo diante de causas que a exigiriam: a separação, a disjunção
processual, será necessária.
Na verdade, há duas espécies de disjunção: a obrigatória e a facultativa. Vejamo-
las.

1.1. Disjunção obrigatória

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O desmembramento obrigatório está previsto nos incisos do artigo 79 do CPP:

“Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento,


salvo:
I - no concurso entre a jurisdição comum e a militar;
II - no concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores.
§ 1o Cessará, em qualquer caso, a unidade do processo, se, em relação a algum co-
réu, sobrevier o caso previsto no art. 152.
§ 2o A unidade do processo não importará a do julgamento, se houver co-réu
foragido que não possa ser julgado à revelia, ou ocorrer a hipótese do art. 461.”

O inciso I determina que havendo conexão ou continência entre crimes comuns e


militares, não haverá reunião, sendo cada um julgado em sua respectiva justiça. Da mesma
forma, o concurso entre jurisdição comum e juízo de menores não proporciona reunião:
segundo o inciso II deste artigo, o ato infracional é julgado no juízo de menores, e a
infração penal na justiça comum.
Há ainda duas outras hipóteses de disjunção obrigatória, alheias ao artigo 79 do
CPP. A primeira é a suspensão do processo e da prescrição, prevista no artigo 366 do CPP:

“Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir
advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo
o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for
o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.
§ 1o As provas antecipadas serão produzidas na presença do Ministério público e
do defensor dativo.
§ 2o Comparecendo o acusado, ter-se-á por citado pessoalmente, prosseguindo o
processo em seus ulteriores atos.”

A suspensão do processo em relação a um dos co-réus, por vezes, não pode fazer
com que o processo se suspenda em relação ao outro, e esta circunstância, de um processo
suspenso e outro em prosseguimento, impõe a disjunção do processo. Para que esta
suspensão ocorra, no entanto, é necessário o preenchimento de três requisitos cumulativos e
subseqüentes, depreendidos do próprio teor deste artigo: que a citação seja por edital; que,
citado por edital, o réu não tenha comparecido; e que, citado por edital e ausente do
processo, o réu não tenha nomeado advogado. Somente havendo estes três elementos, pode
haver a suspensão do processo, por presunção de que o réu não teve ciência do feito (mas,
ao mesmo tempo, suspende-se a prescrição, porque senão haveria impunidade).
Suponha-se que um co-réu esteja nesta situação, e, simultaneamente, outro co-réu
esteja preso. O prosseguimento do processo para este preso é imperativo, mesmo havendo a
suspensão para o co-réu que teve o processo suspenso.
A última situação em que a disjunção é obrigatória trata-se da suspensão
condicional do processo, o sursis processual, presente no artigo 89 da Lei 9.099/95:

“Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um
ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o
acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime,
presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena
(art. 77 do Código Penal).
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

São quatro os requisitos para que haja o sursis processual: infração penal cuja pena
mínima não seja superior a um ano; não haja processo em curso por nenhum outro crime;
não haja condenação por nenhum outro delito; e que estejam preenchidos todos os
requisitos da suspensão condicional da pena, o sursis penal, do artigo 77 do CP19.
Havendo, junto com o oferecimento da denúncia, a proposição da suspensão do
processo para um dos co-réus, porque há o preenchimento das condições para tanto, mas
para o outro co-réu não há, os processos serão desmembrados: correrá em separado o
processo que não foi suspenso, e o que foi ficará sobrestado pelo período de provas, até a
extinção da punibilidade ou a revogação da suspensão.

1.2. Disjunção facultativa

O artigo 80 do CPP apresenta o desmembramento facultativo dos processos:

“Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem
sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo
excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória, ou por
outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação.”

Veja que são três as hipóteses de disjunção facultativa: quando um dos co-réus
estiver preso, mas não o outro, poderá haver a separação; quando a pluralidade de réus for
excessiva, prejudicial ao desenvolvimento hábil do processo; ou quando as infrações forem
praticadas em circunstâncias diversas. O dispositivo em comento, porém, ainda abre
margem à discricionariedade do juiz, que poderá separar o processo sempre que entender
que é conveniente a disjunção.

2. Questões controvertidas sobre conexão e continência

2.1. Crimes eleitorais

A Justiça Eleitoral é especial em relação à Justiça Estadual ou Federal, sendo ali o


foro competente para a reunião dos processos, quando um dos delitos for da competência
da Justiça Eleitoral, e outro for comum, em atenção ao artigo 78, IV, do CPP, já abordado.
Quando a conexão ou continência se der entre crime eleitoral e crime doloso contra
a vida, da competência do Tribunal do Júri, a questão é problemática. O artigo 121 da
CRFB prevê a competência geral da Justiça Eleitoral:

“Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos


tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
(...)”

A Lei Complementar a que alude o artigo é o Código Eleitoral, LC 4.737/65, e a


competência é fixada no artigo 364 deste CE:

19
Havendo a suspensão, e cumprido o período de provas (dois a quatro anos), há a extinção da punibilidade
daquele réu. O período de provas consiste no prazo em que se impõe o cumprimento das condições
estabelecidas pelo § 1° deste artigo 89 da Lei 9.099/95.

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 364. No processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes
forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito,
aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal.”

A competência é clara quanto aos crimes conexos aos eleitorais, então, incluindo-se
aí o homicídio. Ocorre que a competência para os crimes dolosos contra a vida, do Júri, é
constitucionalmente traçada. Daí surge a controvérsia sobre a prevalência.
Tourinho defende que o artigo 364 do CE apenas regulamenta uma competência que
é dada pela CRFB, o que gera um aparente conflito entre duas competências
constitucionais. Sendo assim, sendo da mesma categoria, resolve-se pelo princípio da
especialidade, e sendo a Justiça Eleitoral especializada, esta prevalece sobre o Júri.
Sua posição é minoritária, contudo, pois a competência do Júri é traçada unicamente
na CRFB, e a da Justiça Eleitoral tem tratamento em LC, não sendo admitida a
regulamentação trazida em uma LC derrogar competência exclusivamente constitucional.
Esta é a posição majoritária, de Pacelli, Polastri e STF, por exemplo: a LC que determina a
competência eleitoral para julgar os conexos não tem o condão de versar contrariamente ao
artigo 5°, XXXVIII, da CRFB – não pode uma norma infraconstitucional que regulamenta
uma norma constitucional derrogar uma outra norma exclusivamente constitucional.
“(...)
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,
assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
(....)”
Por isso, a separação dos processos é imperativa, para esta corrente majoritária: o
crime eleitoral vai ser processado e julgado na Justiça Eleitoral, e o crime doloso contra a
vida será julgado no Tribunal do Júri.

2.2. Foro privilegiado e Tribunal do Júri

Havendo cometimento de crime doloso contra a vida em concurso de pessoas, sendo


um dos co-réus pessoa comum, e o outro alguém que tenha foro privilegiado, qual será a
competência para processo e julgamento, o Tribunal do Júri ou o foro por prerrogativa de
função de um dos co-réus?
Suponha que um prefeito cometa homicídio em concurso com um cidadão comum.
A competência para julgamento do prefeito, fosse autor singular, seria claramente do
Tribunal de Justiça, foro privilegiado; e fosse o cidadão comum autor singular, a
competência do Tribunal do Júri seria incontestável. Em concurso, porém, surge esta
questão: o foro por prerrogativa atrai o co-réu que é cidadão comum? o Tribunal do Júri
atrai a competência do prefeito? Ou há a separação dos processos?
Há duas correntes: a primeira, corrente jurisprudencial praticamente pacífica, no
STF e STJ (e, na doutrina, por Rangel), defende que sempre se concentrará a competência
no foro por prerrogativa de função de um dos co-réus, em atenção à especialidade. No
exemplo, será competente o Tribunal de Justiça. Suportando esta tese, há a súmula 704 do
STF, já abordada.

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Súmula 740, STF: Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do
devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu
ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

A doutrina majoritária, de Polastri, Pacelli e Ada Pellegrini, dentre outros,


contrariando a jurisprudência, defende que não é possível adotar uma regra legal de
modificação de competência, a regra de conexão prevista no CPP, para derrogar uma
competência tratada na Constituição, como o é a do Tribunal do Júri. Sendo assim, seria
correta a separação dos processos, e não a reunião, cada co-réu sendo julgado no respectivo
foro.
Há que se ressaltar que a jurisprudência, primeira corrente, entende que quando a
prerrogativa de função for trazida diretamente pela CRFB, prevalece a regra geral por esta
corrente adotada – o foro prevalece sobre o Júri. Entretanto, quando o foro por prerrogativa
for estabelecido não na CRFB, mas na Constituição Estadual, prevalece o Júri. Esta é a
exegese cristalina da súmula 721 do STF, já abordada:

“Súmula 721, STF: A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece


sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela
Constituição Estadual.”

Exemplo recente foi o dos defensores públicos estaduais do Rio de Janeiro: mesmo
que os defensores públicos da União não tenham esta prerrogativa, nada impede que a
Constituição Estadual atribua tal privilégio aos estaduais, mas este foro não prevalecerá
sobre a competência constitucional do Tribunal do Júri, como dita a súmula acima.
Exemplo em que a dinâmica é oposta, é o dos deputados estaduais: estes têm foro
privilegiado traçado na Constituição Estadual, mas em simetria e por força de comando da
CRFB, emitido no seu artigo 27, § 1°:

“Art. 27. O número de Deputados à Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo


da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingido o número de
trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os Deputados Federais acima
de doze.
§ 1º - Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes
as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades,
remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças
Armadas.
(...)”

Assim, a CRFB equipara-os aos deputados federais, e por isso esta exegese está em
consonância com a súmula 721: a competência do foro prerrogativado prevalece, pois não é
exclusivamente trazida pela Constituição Estadual.

2.3. Conexão ou continência entre crime do Júri e infração de menor potencial ofensivo

Esta discussão teve peso antes da alteração promovida pela Lei 11.313/06, como já
se abordou. A Lei 9.099/95 foi alterada em 2006 por esta lei, a qual deu nova redação ao
artigo 60:

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e
leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das
infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e
continência.
Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do
júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão
os institutos da transação penal e da composição dos danos civis.”

Sendo assim, reunir-se-ão os processos no Tribunal do Júri, mas serão aplicados, na


primeira fase, no judicio accusationis, os institutos despenalizadores da transação penal e
da composição civil.

2.4. Conexão ou continência entre infração de menor potencial ofensivo e foro privilegiado

Seguindo-se a mesma regra traçada no artigo 60 da Lei 9.099/95, os processos serão


reunidos no foro privilegiado, este sendo prevalente, mas as infrações não deixam, por isso,
de ser de menor potencial ofensivo, e como tal, merecedoras das medidas despenalizadoras
da transação e da composição civil, qualquer que seja o foro privilegiado em questão – TJ,
STJ, ou mesmo STF.
O STF, no HC 77.303, assim fez-se entender:

“EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE


LESÕES CORPORAIS. DENÚNCIA. PROMOTOR DE JUSTIÇA
PROCESSADO PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECUSA DO
TRIBUNAL EM POSSIBILITAR A COMPOSIÇÃO CIVIL E A TRANSAÇÃO.
ALEGAÇÃO DE INAPLICABILIDADE EM PROCEDIMENTO ESPECIAL.
LEI 9.099/95. I. - Os preceitos de caráter penalmente benéficos da Lei 9.099/95
aplicam-se a qualquer processo penal, inclusive nos Tribunais. Precedentes do
STF: Inq. 1.055-AM (Questão de Ordem), C. de Mello, RTJ 162/483; HC 76.262-
SP, O. Gallotti, "DJ" 29/5/98. II. - HC deferido.”

2.5. Conexão ou continência entre infração de menor potencial ofensivo e crime militar

A disjunção, aqui, é textualmente obrigatória, como assevera o artigo 79, I, do CPP,


já abordado.

“Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento,


salvo:
I - no concurso entre a jurisdição comum e a militar;
(...)”

A infração de menor potencial ofensivo, em regra, é dada à justiça comum, e por


isso esta separação não oferece maiores discussões, sendo clara a sua obrigatoriedade.

2.6. Conexão ou continência e competência recursal

Suponha-se que haja três co-réus julgados em um só juízo, por conexão. Os três são
condenados. Em sede recursal, apenas um deles apela, e consegue reverter a sua
condenação: esta absolvição recursal alcançará os demais?
O artigo 580 do CPP trata do assunto:

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 580. No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do
recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de
caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.”

Assim, a decisão do recurso só aproveitará aos demais, não-apelantes, se não se


fundar em caráter exclusivamente pessoal do apelante. Se o motivo da reforma da
condenação for comum aos demais – reconhece a inexistência do fato, por exemplo –, se
estenderá a absolvição aos demais, não apelantes; se o motivo for pessoal do agente – como
quando reconhece alguma excludente de ilicitude particular –, a absolvição não se estende
aos demais.

2.7. Desclassificação no Tribunal do Júri e crimes conexos

Havendo julgamento pelo Tribunal do Júri que culmine na desclassificação, pelo


conselho de sentença, do crime doloso contra a vida para um crime não doloso contra a
vida, como se fixa a competência para os crimes que só foram postos ao Júri por atração do
crime doloso contra a vida, que foi desclassificado?
O artigo 81 do CPP, sede da perpetuatio jurisdictionis, não açambarca o Júri,
diretamente, dada a redação do seu parágrafo único, que só fala dos efeitos das decisões do
juiz sumariante, e não do conselho de sentença, bem como o caput, que só se refere ao juiz
ou Tribunal de Justiça, não ao Júri:

“Art. 81. Verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda
que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir
sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua
na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.
Parágrafo único. Reconhecida inicialmente ao júri a competência por conexão ou
continência, o juiz, se vier a desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver
o acusado, de maneira que exclua a competência do júri, remeterá o processo ao
juízo competente.”

E o artigo 492, § 2°, do CPP, assim estabelece:

“Art. 492. Em seguida, o juiz lavrará a sentença, com observância do seguinte:


I - no caso de condenação, terá em vista as circunstâncias agravantes ou atenuantes
reconhecidas pelo júri, e atenderá, quanto ao mais, ao disposto nos n os. II a VI do
art. 387;
II - no caso de absolvição:
a) mandará pôr o réu em liberdade, se afiançável o crime, ou desde que tenha
ocorrido a hipótese prevista no art. 316, ainda que inafiançável;
b) ordenará a cessação das interdições de direitos que tiverem sido provisoriamente
impostas;
c) aplicará medida de segurança, se cabível.
§ 1o Se, pela resposta a quesito formulado aos jurados, for reconhecida a
existência de causa que faculte diminuição da pena, em quantidade fixa ou dentro
de determinados limites, ao juiz ficará reservado o uso dessa faculdade.
§ 2o Se for desclassificada a infração para outra atribuída à competência do juiz
singular, ao presidente do tribunal caberá proferir em seguida a sentença.”

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Assim, se o Júri desclassifica, o juiz-presidente ganha a competência para o crime


subsistente, mas nada diz do crime conexo. Não trata da hipótese particular dos efeitos da
desclassificação pelo Júri em relação aos crimes conexos.
Resume-se, a questão, à aplicação ou não do artigo 81 do CPP, por analogia, ao
conselho de sentença: será prorrogada a competência do Tribunal do Júri para os conexos?
Há duas correntes: a primeira entende aplicável o caput do artigo 81 do CPP por
analogia, mantendo-se o Júri competente para os conexos. Esta é a posição de Tourinho
Filho. A segunda corrente, do STF, entende aplicável o artigo 492 do CPP, sendo a
competência para os crimes conexos dada ao juiz-presidente.
A recente alteração no rito do processo no Tribunal do Júri pôs fim a qualquer
discussão nesta seara. A Lei 11.689/08 alterou o artigo 492 do CPP, que passa a existir com
a seguinte redação:

“Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:


I – no caso de condenação:
a) fixará a pena-base;
b) considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates;
c) imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às causas admitidas
pelo júri;
d) observará as demais disposições do art. 387 deste Código;
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra,
se presentes os requisitos da prisão preventiva;
f) estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação;
II – no caso de absolvição:
a) mandará colocar em liberdade o acusado se por outro motivo não estiver preso;
b) revogará as medidas restritivas provisoriamente decretadas;
c) imporá, se for o caso, a medida de segurança cabível.
§ 1o Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz
singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida,
aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela
lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e
seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
§ 2o Em caso de desclassificação, o crime conexo que não seja doloso contra a
vida será julgado pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, aplicando-se, no que
couber, o disposto no § 1o deste artigo.”

Comparando-se a redação anterior do § 2° deste artigo com a redação atual, vê-se


que prevaleceu a jurisprudência do STF, e a competência para os conexos é dada ao juiz-
presidente, sem mais discussões.

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Casos Concretos

Questão 1

Marcus Túlio, cabo eleitoral de determinado candidato a Deputado Federal,


comete crime de homicídio para facilitar a prática de crime eleitoral. Existirá unidade de
processo e julgamento? Se afirmativa a resposta, em que Justiça e em que órgão? Se
negativa a resposta qual a solução?

Resposta à Questão 1

Há duas correntes. Segundo Tourinho, há unidade de processo e julgamento, porque


o artigo 364 do CE assim determina, amparado no artigo 121 da CRFB, regulamentando,
portanto, norma constitucional – a competência atrativa é da Justiça Eleitoral,
especializada.
Já para a corrente majoritária, encampada pelo STF, a competência traçada no CE,
que é lei complementar, não pode derrogar a competência do Tribunal do Júri,
exclusivamente constitucional.
Reunindo-se os processos, estes correrão na Justiça Eleitoral, pois o critério do
artigo 78, IV, estabelece competência de justiça, e o Tribunal do Júri é justiça comum,
falecendo-lhe competência diante da justiça especial. Adotando-se a corrente majoritária,

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

do STF, haverá a disjunção processual, e cada crime correrá na sua respectiva competência
– crime eleitoral na Justiça Eleitoral, e homicídio no Tribunal do Júri.

Questão 2

Caio e Mélvio respondiam a processos em Juízos diferentes pelo mesmo fato


delituoso que praticaram em concurso. Embora distribuído primeiro, em razão da
prevenção, o processo de Caio sofreu retardamento, porque não fora ele inicialmente
localizado para ser citado. O processo de Mélvio, que se encontrava preso, atingira a fase
de alegações finais, enquanto o de Caio não ultrapassara a fase da Defesa Prévia. O
Promotor de Justiça requereu ao Juiz a avocação do processo de Mélvio.
O Juiz deveria atender ao pleito ministerial? Justifique.

Resposta à Questão 2

Há hipótese de continência, e o juízo de Caio é o juízo prevalente, por prevenção.


Ocorre que o processo ali foi lento, pela circunstância enunciada, e, o processo de Mélvio,
que deveria, a rigor, ter sido remetido ao juízo de Caio, ou avocado pelo juízo de Caio.
Entretanto, não houve o declínio, e o juízo que deveria ter declinado, na verdade,
adiantou-se em seus procedimentos, alcançando ponto muito mais adiantado no
processamento. Por isso, apesar de haver a continência, o artigo 80 do CPP permite que
haja a disjunção, facultativa, do processo, justamente por haver réu preso, e para não ser
prejudicado o julgamento deste réu.
Destarte, não deve ser atendido o pleito ministerial, pois é caso de separação
facultativa, mas que deve ser realizada em prol da melhor condução processual.
Tema IX

Investigação penal. Conceito. Características. Prescindibilidade. Início do inquérito. Desenvolvimento das


investigações no inquérito. O inquérito com ou sem auto de prisão em flagrante. Direitos do indiciado. O art.
15 do Código de Processo Penal e o art. 2043 do Código Civil. Termo circunstanciado.

Notas de Aula

1. Investigação criminal

A investigação criminal tem duas espécies, o inquérito policial e as peças de


informação (que podem vir do povo, de uma CPI, etc.). A investigação tem a natureza
jurídica de fase pré-processual, e a sua finalidade é única: amealhar justa causa para a
persecução criminal em uma ação penal.
O conceito de justa causa se desdobra em indícios de autoria e prova da
materialidade do delito. Afrânio Silva Jardim conceitua a justa causa como o suporte
probatório mínimo do indício da autoria e da materialidade do crime.
A investigação é pré-processual em razão da inércia da jurisdição. Sendo inerte, o
poder jurisdicional precisa de provocação, e o meio de provocação da jurisdição é a ação.
Direito de ação é o direito de provocar a jurisdição, tirando o juízo da inércia. No processo
penal, o titular da ação penal pública é o Ministério Público, de acordo com o artigo 129, I,
da CRFB:

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:


I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
(...)”

O direito de ação, então, é um limitador do poder jurisdicional, pois a jurisdição não


pode ser exercida sem o exercício prévio da ação. Sem a denúncia, não existirá sentença
condenatória ou absolutória. Mas o poder acusatório também não é ilimitado: o promotor
de justiça não pode exercer a ação penal de forma irrestrita.
Por isso, o MP só poderá promover a ação penal quando estiver presente o mínimo
probatório da autoria, e a clara presença da materialidade da infração penal. Veja que não é
necessária a prova cabal, incontestável, para que a ação possa ser proposta: estas provas
definitivas serão apuradas no curso do processo judicial, sendo necessário, apenas, que haja
um mínimo indiciário do delito – a justa causa. A autoria deve ser suportada por indícios; a
materialidade, entretanto, deve contar, na justa causa, com provas reais. Veja que, para a
materialidade, indícios não são suficientes: é necessária a prova robusta da existência do
crime, ou não há justa causa; para a autoria, porém, basta a existência de indícios, suspeitas
fundamentadas.
E é para reunir estas condições, estas provas preliminares autorizativas da ação
penal, a justa causa, que existe a investigação criminal. Destarte, o destinatário da
investigação penal – inquérito ou peças de informação – é o MP: é ele quem precisa de tais
informações, da justa causa, para justificar a eventual ação penal.
Como a autoria, para configurar justa causa, depende apenas de indícios, e não de
prova cabal, ou seja, pode haver dúvidas quanto à autoria e mesmo assim configurar-se a
justa causa, entende-se que vige, para tal aspecto, o princípio in dubio pro societatis. De
fato, o in dubio pro reo só existe para a sentença, em atenção à presunção de inocência, ou
não culpabilidade; na fase investigatória, vige o in dubio pro societatis. O MP denuncia
com base em indícios de autoria, e desde então haverá todo o processo, e a respectiva fase
instrutória, para produzir provas cabais do cometimento, ou absolver o réu.
Como dito, investigação criminal é o gênero, do qual fazem parte o inquérito
policial e as peças de informação. Quando a investigação é feita pela polícia, trata-se do
inquérito; quando não for feita pela polícia, mas por outras pessoas, são as peças de
informação. A Comissão Parlamentar de Inquérito é exatamente um exemplo de seara em
que se produzem peças de informação: se há a investigação pela CPI, o seu produto é
enviado para o MP, a fim de que este ofereça ou não a denúncia, se encontrar ou não justa
causa no relatório da CPI. Todavia, como o inquérito policial é a principal forma de
investigação criminal, vejamo-lo amiúde.

2. Inquérito policial

O inquérito policial, por conceito, é a investigação criminal realizada pela polícia,


visando a apuração da justa causa, de forma a viabilizar a propositura da ação penal pela
acusação.
A finalidade do inquérito, como qualquer investigação, é justamente apurar a justa
causa, que se destina a embasar a ação penal a ser oferecida pelo seu titular, MP ou
querelante privado.

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

2.1. Princípios do inquérito policial

2.1.1. Autoritariedade

O inquérito é presidido e conduzido pela autoridade policial, delegado de polícia,


civil ou federal, como estabelece o artigo 144, § 4°, da CRFB. Daí a autoritariedade:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de


todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(...)
§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares.
(...)”

2.1.2. Oficiosidade

O inquérito deve ser instaurado de ofício pelo delegado, não havendo inércia na fase
investigativa. Não é necessário que haja provocação da autoridade policial para instaurar o
inquérito; ao contrário, é uma incumbência oficiosa instaurar a investigação.
O artigo 5°, I, do CPP, assim determina:

“Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:


I - de ofício;
(...)”

2.1.3. Auto-executoriedade

Consectário da oficiosidade, o princípio da auto-executoriedade determina que toda


a investigação tenha curso de forma automática, sem que seja necessária a impulsão por
quem quer eu seja: o delegado determina, ele próprio, as providências que deverá tomar no
desenvolvimento do inquérito. Assim, não só a instauração, mas também o decurso do
inquérito se dá de ofício.
O artigo 6° do CPP é a sede, tendo especial exemplo no inciso III:

“Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade


policial deverá:
(...)
III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas
circunstâncias;
(...)”

O termo “deverá”, do caput deste artigo, identifica que mais do que um poder, é um
dever do delegado conduzir oficiosa e corretamente as investigações.
Há atos investigatórios que, ao contrário, excepcionalmente, não são auto-
executáveis, dependendo de autorização judicial para serem realizados. Tais atos são todos
aqueles que possam, de alguma forma, violar direitos constitucionais dos investigados.
Como exemplo, a quebra do sigilo bancário ou telefônico.

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

2.1.4. Documentariedade

Os atos do inquérito devem ser reduzidos a termo escrito: o inquérito é


essencialmente escrito, como determina o artigo 9° do CPP:

“Art. 9o Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a


escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.”

Até mesmo os atos originalmente orais, como o depoimento de testemunhas, deve


ser reduzido a termo escrito.

2.1.5. Indisponibilidade

A autoridade policial é quem preside o inquérito, mas mesmo assim não tem
disponibilidade sobre este: o delegado não pode arquivar o inquérito. Assim determina o
artigo 17 do CPP:

“Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.”

Apenas o promotor, requerendo ao juízo, poderá arquivar o inquérito, como se verá


adiante.

2.1.6. Inquisitoriedade

O inquérito não contempla a ampla defesa ou contraditório. É fase pré-processual,


não sujeita a estas garantias constitucionais, que são atinentes ao processo.
O inquérito é ato unilateral da autoridade policial, procedimento investigativo que
não sofre interferências obrigatórias pelos investigados. O artigo 5°, LV, da CRFB, que
garante aos litigantes a ampla defesa e o contraditório, não pertine ao inquérito, pela
simples razão de que neste não há litigantes, não há lide, mas apenas investigados. Não há
antagonismo instalado no inquérito, pois não há, ainda, acusação de que se defender. Não
há defesa a ser garantida, se não há ataque.
Paulo Rangel, ao abordar este assunto, deixa claro que ao final do inquérito não
existe punição e, sendo assim, não há o que ser contraditado, ou do que se defender, se o
escopo do inquérito não é culminar em imputação.
Há exemplos claros da natureza inquisitorial do inquérito, presentes no CPP. Veja o
artigo 14:

“Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer


qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.”

Veja que, como dito, não há interferência obrigatória dos supostos interessados no
inquérito: o ofendido e o indiciado podem requerer ingerência, por meio de diligências,
mas se o delegado entender por bem em não realizar tais providências requeridas, nada o

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

impele a fazê-lo, pois como ato unilateral, o inquérito não garante ampla defesa ou
contraditório. Este amplo domínio do delegado ilustra bem a natureza inquisitiva do
inquérito.
Apesar de ser pacificamente aceita a natureza inquisitorial do inquérito, é cediço
que há traços de defesa, resquícios de defesa no curso do inquérito, mas que não são hábeis
a desnaturar o caráter inquisitivo do inquérito. Como exemplo, o direito ao silêncio, trazido
pelo artigo 5°, LXIII, da CRFB, é detido pelo indiciado no interrogatório em sede policial:

“(...)
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
(...)”

No mesmo dispositivo se encontra o direito à presença de um advogado, que,


mesmo não podendo intervir, pode acompanhar o curso do inquérito. O inciso LXII do
artigo 5° da CRFB apresenta também outros direitos do preso, aplicáveis ao inquérito, que
são também traços de uma postura de defesa:

“(...)
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele
indicada;
(...)”

A doutrina aponta ainda uma exceção expressa, um inquérito que admite ampla
defesa e contraditório à plenitude: o inquérito da polícia federal que visa à expulsão do
estrangeiro. Neste procedimento, previsto no Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815/80, é
garantida ao estrangeiro a possibilidade de defesa e contraditório:

“Art. 70. Compete ao Ministro da Justiça, de ofício ou acolhendo solicitação


fundamentada, determinar a instauração de inquérito para a expulsão do
estrangeiro.”

“Art. 71. Nos casos de infração contra a segurança nacional, a ordem política ou
social e a economia popular, assim como nos casos de comércio, posse ou
facilitação de uso indevido de substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, ou de desrespeito à proibição especialmente
prevista em lei para estrangeiro, o inquérito será sumário e não excederá o prazo de
quinze dias, dentro do qual fica assegurado ao expulsando o direito de defesa.”

“Art. 72. Salvo as hipóteses previstas no artigo anterior, caberá pedido de


reconsideração no prazo de 10 (dez) dias, a contar da publicação do decreto de
expulsão, no Diário Oficial da União.”

Na verdade, há quem sustente que não seria, a rigor, uma exceção, porque
tecnicamente este procedimento não é um inquérito: trata-se de um procedimento
administrativo com escopo punitivo, que não investiga crime, mas sim um ato passível de
expulsão – punição aplicada já ao final do procedimento, sem propositura ulterior de ação
penal.

Michell Nunes Midlej Maron 94


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

2.1.7. Sigilo

O inquérito é sigiloso, como determina o artigo 20 do CPP:

“Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do


fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
Parágrafo único. Nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a
autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes a
instauração de inquérito contra os requerentes, salvo no caso de existir condenação
anterior.”

Assim, a regra é que os autos do inquérito sejam inacessíveis a todos, mas há três
exceções: o MP, como destinatário do inquérito, tem clara liberdade de acesso ao inquérito;
o magistrado também pode perscrutar os autos do inquérito; e o advogado da vítima ou do
indiciado também conta com acesso ao inquérito, como dispõe o artigo 7°, XIII, ou XV, da
Lei 8.906/94, o Estatuto da OAB:

“Art. 7º - São direitos do advogado:


(...)
XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da
Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento,
mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a
obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;
(...)
XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em
cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;
(...)”
Há, todavia, um inquérito que o advogado não pode acessar: aquele que corre em
segredo de justiça, segredo este decretado judicialmente. Não pode haver decretação de
segredo pelo delegado, mas apenas pelo juiz.
Há que se consignar que há ainda mais um limite ao acesso aos dados do inquérito
pelo advogado: se há pluralidade de indiciados, o advogado de um deles não pode acessar
os autos na íntegra, ou seja, só tem acesso aos documentos que se refiram a seu cliente.
Quanto às partes do inquérito que versam sobre os demais investigados, que não são seus
clientes, não pode o advogado pretender acesso. Assim se posicionou o STF, no HC 89.930.

2.2. Instauração do inquérito

O inquérito é instaurado nas formas previstas no artigo 5° do CPP:

“Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:


I - de ofício;
II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a
requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
§ 1o O requerimento a que se refere o no II conterá sempre que possível:
a) a narração do fato, com todas as circunstâncias;
b) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de
convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de
impossibilidade de o fazer;
c) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência.

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

§ 2o Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá


recurso para o chefe de Polícia.
§ 3o Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração
penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à
autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará
instaurar inquérito.
§ 4o O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não
poderá sem ela ser iniciado.
§ 5o Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a
inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la.”

O inciso I apresenta a já abordada instauração de ofício do inquérito pelo delegado.


A instauração do inquérito de ofício tem representação na portaria do delegado.
Ressalte-se, porém, que a instauração de ofício pelo delegado só é possível nos
crimes de ação penal pública, como o próprio caput deste artigo 5° deixa claro: na ação
penal privada, a instauração do inquérito depende da representação em delegacia pelo
querelante, como deixa expresso o § 5º deste artigo, porque como a ação penal privada não
é obrigatória, e sim facultativa, não se justifica a instauração do inquérito sem autorização
da vítima. É bastante lógica esta dinâmica, pois do contrário poderia haver investigação
exaustiva de um crime, sem que a vítima viesse a propor a correspondente ação penal ao
final – restando sem sentido o inquérito até então conduzido.
O inciso II deste artigo estabelece a instauração do inquérito por requerimento do
ofendido ou requisição do MP ou do juiz. Veja que requerimento difere de requisição: esta
é uma ordem, enquanto o requerimento é uma solicitação. Como ordem, não pode ser
desatendida a requisição (salvo se manifestamente ilegal); o requerimento, contudo, pode
ser indeferido a critério do delegado.
Se o requerimento for indeferido, o § 2° do artigo 5° do CPP estabelece que o
ofendido pode recorrer administrativamente ao chefe de polícia (leia-se secretário de
segurança pública, no Estado). Todavia, há uma outra providência que pode tomar o
ofendido: pode representar ao MP, e se o parquet encampar a sua tese, emitirá uma
requisição de instauração do inquérito ao delegado, a qual não pode ser livremente
desatendida. Esta possibilidade consta do artigo 27 do CPP:

“Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério


Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito,
informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de
convicção.”

A requisição da instauração do inquérito pelo MP é escorreita, pois se é este o


destinatário final do mesmo, nada impede que haja sua provocação mandatória para seu
início. Já a requisição de instauração de inquérito pelo juiz é um tanto controvertida: como
o inquérito é fase pré-processual, parte da doutrina – Pacelli e Polastri, dentre outros –
sustenta a inconstitucionalidade desta requisição, desta ingerência judicial sobre o
inquérito. Isto porque seria violação ao sistema acusatório, vez que seria quebra da
imparcialidade. Esta tese encontra reforço no artigo 40 do CPP:

“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais


verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público
as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.”

Michell Nunes Midlej Maron 96


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Assim, se é necessário o remetimento dos documentos ao MP para a denúncia,


garantindo a imparcialidade, seria o mesmo o raciocínio na questão do inquérito. Há ainda
outro reforço a esta tese: o projeto do novel CPP, que ora tramita, elide esta possibilidade de
o juiz requisitar instauração do inquérito.
Outra forma de instauração de inquérito é pelo auto de prisão em flagrante
(doravante APF). O APF não é inquérito, mas é um procedimento similar a este, cabível nas
situações flagranciais. A lavratura do APF, então, demanda uma breve incursão no estudo
do flagrante, que parte da análise do artigo 302 do CPP:

“Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:


I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer
pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que
façam presumir ser ele autor da infração.”

Os incisos I e II tratam do flagrante próprio, em que há o imediatismo ao


cometimento do crime.
O inciso III trata do flagrante impróprio, em perseguição, e a situação que enseja a
sua configuração é de definição casuística, ou seja, o conceito de logo após é bastante
variável. A nota invariável deste dispositivo é a perseguição, que deve ser ininterrupta: se a
perseguição cessar, por qualquer motivo, o flagrante expira.
O inciso IV é o mais problemático. Trata-se do flagrante presumido, em que,
mesmo não sendo presenciado o fato criminoso, o encontro do suposto agente do crime,
logo após (outra vez, conceito aberto) o seu cometimento, na posse de materiais ou
quaisquer elementos que façam presumir a autoria do crime, será estendido até ali o
flagrante20.
Assim, qualquer que seja a situação, a lavratura do APF é causa suficiente à
instauração de inquérito, mas não é o próprio inquérito. A princípio, o próprio APF já
confere justa causa, sendo base para uma denúncia, por vezes – dispensado o inquérito
aberto com fulcro no APF. Todavia, se o MP entende que é necessária a produção de mais
provas, requisitará a instauração de inquérito com base no APF.

2.3. Natureza jurídica e atribuição do inquérito

A natureza jurídica do inquérito é de procedimento administrativo e informativo.


Veja: é um procedimento porque não se trata de um ato isolado, mas sim de um conjunto de
atos em busca da finalidade; é administrativo porque quem o preside e executa é a
administração pública, na figura do delegado e seus agentes de polícia judiciária; e é
informativo porque esta é sua finalidade última, qual seja, informar ao MP da existência ou
não da justa causa para denúncia.
A atribuição para o inquérito é dada ao delegado, federal ou civil. Não pode ser
chamada de competência, porque, como se convencionou, este conceito é resguardado ao

20
Tanto no flagrante impróprio como no presumido, o prazo maior que se tem notícia na jurisprudência, para
configurar a situação flagrancial, é de treze horas, prazo admitido no RHC 1798, do STJ.

Michell Nunes Midlej Maron 97


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

limite da jurisdição, ou seja, ao Poder Judiciário. Entretanto, há atribuição ao delegado, que


é a delimitação da sua autoridade, do seu poder investigatório, a certas matérias, certos
crimes, e em certa circunscrição. Atribuição é a área de investigação em que cada
autoridade policial pode exercer seu poder investigatório.
As regras de atribuição assemelham-se, também, às regras de competência. Há duas
regras básicas: a atribuição territorial e a material. As delegacias são estruturadas por área
geográfica, a que se denomina circunscrição, emprestando atribuição sobre crimes
cometidos em determinada localidade. As delegacias que recebem apenas atribuição
territorial são denominadas distritais (distritos policiais, DP). As delegacias, outrossim,
podem receber atribuição material, atinente à natureza do crime: são as delegacias
especializadas, como a DAS, Delegacia Anti-Seqüestro, que não é adstrita a uma
determinada área geográfica, e sim aos crimes de extorsão mediante seqüestro, qualquer
que seja a localidade em que seja este cometido, no Estado.
Há que se consignar situação peculiar, referente à atribuição para o inquérito: a
quem pertine a atribuição para a investigação de pessoa que tenha foro privilegiado?
Suponha que o agente tenha foro por prerrogativa de função no STJ: este inquérito é
presidido pelo Ministro relator incumbido do processo, como determina o artigo 1°, § 1°, da
Lei 8.038/90, pois a autoridade policial não pode investigar prerrogativados21. Veja:

“Art. 1º Nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público terá o prazo de 15
(quinze) dias para oferecer denúncia ou pedir arquivamento do inquérito ou das
peças informativas.
§ 1º Diligências complementares poderão ser deferidas pelo relator, com
interrupção do prazo deste artigo.
§ 2º Se o indiciado estiver preso:
a) o prazo para oferecimento da denúncia será de 5 (cinco) dias;
b) as diligências complementares não interromperão o prazo, salvo se o relator, ao
deferi-las, determinar o relaxamento da prisão.”

A exceção ocorre no MP: o promotor que for réu, tendo como foro privilegiado o
TJ, seguindo-se a regra, seria investigado pelo desembargador relator, mas,
excepcionalmente, é investigado pelo Procurador-Geral de Justiça. Esta previsão vem na
Lei Orgânica do MP, Lei 8.625/93, no artigo 41, parágrafo único:

“Art. 41. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no


exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica:
(...)
Parágrafo único. Quando no curso de investigação, houver indício da prática de
infração penal por parte de membro do Ministério Público, a autoridade policial,
civil ou militar remeterá, imediatamente, sob pena de responsabilidade, os
respectivos autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar
prosseguimento à apuração.”

Há ainda que se mencionar a atribuição da polícia parlamentar. Esta consiste na


polícia que tem por atribuição a investigação das infrações penais cometidas no interior do
Congresso Nacional. Assim dispõe a súmula 397 do STF:

21
Paulo Rangel, isoladamente, defende a inconstitucionalidade deste dispositivo, pois é o relator que investiga
quem fará a condução inicial do processo, relatando-o – o que violaria a imparcialidade.

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Súmula 397, STF: O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado


Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende,
consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do
inquérito.”

2.4. Valor probatório do inquérito

A prova do inquérito tem valor relativo, e por isso não pode embasar, sozinha, uma
sentença condenatória. Assim, o valor probatório do inquérito é meramente relativo,
servindo-se apenas para amealhar justa causa para a denúncia.
Assim o é pela natureza inquisitiva do inquérito: uma prova obtida sem ampla
defesa e contraditório não pode ter valor absoluto, e por isso serve apenas como informação
para a eventual denúncia.
A conseqüência da relatividade da prova do inquérito é a necessidade de sua
reprodução em juízo. Do contrário, não haverá subsídios para a condenação, pois somente
em juízo será produzida esta prova com atenção às garantias constitucionais processuais, e
não de forma unilateral, como no inquérito.
Há exceção em que a prova produzida no curso do inquérito será válida no
processo, com teor absoluto: trata-se da prova pré-constituída, ou prova definitiva, ou ainda
prova irrepetível. Por conceito, é a prova produzida no inquérito, mas que não precisa ser
reproduzida em juízo.
A lógica que autoriza a prova definitiva é que esta é uma prova de caráter científico,
cuja repetição não é capaz de alterar seu resultado. O exemplo mais claro é o do exame de
DNA: se realizado no curso do inquérito, este exame não será repetido no curso da ação,
porque o resultado será o mesmo. As provas periciais, em regra, são pré-constituídas.
Veja que não se questiona a possível alteração do resultado científico da prova, mas
sim a possível má condução da sua colheita: se a formalidade na perícia, por exemplo, for
inobservada, a prova poderá ser repetida em juízo, não porque não tinha valor absoluto,
como prova pré-constituída, mas sim porque eventual erro na produção a viciou.
A prova irrepetivel não se confunde com a prova antecipada: esta é produzida numa
ação cautelar de produção antecipada de prova, e é possível sempre que a prova se
encontre na iminência de perecer, e ser impossível sua produção na época própria. Como
exemplo, a colheita de uma testemunha que está em vias de óbito. Como esta prova se trata
de uma prova produzida em juízo – a cautelar é judicial, por óbvio, contando com todas as
garantias processuais da ampla defesa e do contraditório –, tem plena aplicabilidade no
processo, quando realizada a futura denúncia. Especificamente no caso da testemunha, está
prevista no artigo 225 do CPP:

“Art. 225. Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou


por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o
juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe
antecipadamente o depoimento.”

2.5. Procedimento do inquérito

O inquérito não tem um rito formal: não há ordem de atos a ser seguida, não há
seqüência cronológica de atos estabelecida pela lei. O delegado, como presidente do
inquérito, é quem tem a atribuição para designar quais serão os atos produzidos, a qual

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

tempo o serão, e em qual ordem. Decidirá, a seu critério, qual é a conveniência das
diligências.
A lei apenas exemplifica quais serão os atos investigatórios que a autoridade policial
deverá realizar, consignando-os no artigo 6° do CPP, mas é rol exemplificativo:

“Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade


policial deverá:
I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e
conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;
II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos
peritos criminais;
III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas
circunstâncias;
IV - ouvir o ofendido;
V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no
Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado
por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;
VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;
VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a
quaisquer outras perícias;
VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível,
e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;
IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual,
familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e
depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para
a apreciação do seu temperamento e caráter.”

Alguns destes atos investigatórios merecem olhar mais detalhado. As oitivas de


pessoas, por exemplo: caso as testemunhas ou o acusado não compareçam à delegacia na
data marcada – a chamada testemunha recalcitrante –, pode o delegado determinar sua
condução coercitiva, nos termos dos artigos 218 e 219 do CPP?

“Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem


motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação
ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio
da força pública.”

“Art. 219. O juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453,
sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao
pagamento das custas da diligência.”

A testemunha recalcitrante, que falta em juízo, sofre quatro conseqüências: a


condução coercitiva; o pagamento de multa; o pagamento das custas do oficial; e processo
criminal por crime de desobediência. Já a falta em sede de delegacia, implica nos mesmos
efeitos? A doutrina é pacífica: o delegado não pode, ele mesmo, determinar sequer a
condução coercitiva; deverá requerer ao juiz a expedição de mandado de condução, o qual,
se deferido, embasará a condução – mas não ex officio pelo próprio delegado.
Outra questão relevante é quanto à identificação datiloscópica. O artigo 6°, VIII,
determina que seja feita, mas há que se atentar para o artigo 5°, LVIII, da CRFB:

“(...)

Michell Nunes Midlej Maron 100


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo


nas hipóteses previstas em lei;
(...)”

A regra constitucional é que a identificação civil impede o constrangimento à


identificação criminal, mas abre ressalva às hipóteses em que a lei autoriza. E há duas
exceções: o artigo 5° da Lei 9.034/95, e o artigo 3º da Lei 10.054/00:

“Art. 5º A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por


organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil.”

“Art. 3o O civilmente identificado por documento original não será submetido à


identificação criminal, exceto quando:
I – estiver indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o
patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação
qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de
documento público;
II – houver fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de
identidade;
III – o estado de conservação ou a distância temporal da expedição de documento
apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais;
IV – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes
qualificações;
V – houver registro de extravio do documento de identidade;
VI – o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito horas, sua
identificação civil.”

Este artigo terceiro apresenta tantas exceções que parece tornar regra a identificação
criminal.

2.6. Indiciamento

Consiste na imputação formal da investigação contra uma pessoa. Somente após


este ato formal, o acusado, suspeito, passa a ser identificado como indiciado. É ato escrito,
e subscrito por duas testemunhas, na forma do inciso V do artigo 6° do CPP, já transcrito.
Como já se mencionou, o indiciado terá algumas garantias, resquícios de defesa, a
começar pela assistência da família e de seu advogado, e o direito a quedar-se silente, como
faz constar o artigo 5°, LXIII, da CRFB:

“(...)
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
(...)”

O indiciado menor, no CPP, consta como pessoa entre dezoito e vinte e um anos,
como demonstra o artigo 15. Se for menor de dezoito anos, sequer pode ser indiciado, pois
é civilmente menor, não cometendo crime, mas sim ato infracional. Veja:

“Art. 15. Se o indiciado for menor, ser-lhe-á nomeado curador pela autoridade
policial.”

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Há que se ter atenção a diversos aspectos deste artigo. A menoridade, como já se


disse, é de vinte e um anos, até dezoito; e o curador é aquela pessoa maior e capaz,
habilitada a defender o interesse do curatelado. Há enorme polêmica sobre este dispositivo,
havendo três correntes sobre sua vigência:

- A primeira corrente, majoritária, tendo por defensores o STF, Polastri e Tourinho,


entre outros, entende que este artigo 15 não está em vigor, porque o Código Civil de
2002 teria revogado qualquer menção a menoridade de pessoa maior de dezoito
anos, ao antecipar a maioridade civil de vinte e um para dezoito anos, no artigo 5°:

“Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica
habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
(...)”

- A segunda corrente, por sua vez, também entende revogado o artigo 15 do CPP,
mas não por conta do CC: esta revogação pelo CC seria uma analogia in malam
partem, vedada, pois retiraria uma garantia do indiciado. Sendo assim, não seria
admissível. Assim, esta corrente entende que a revogação pela Lei 10.792/03,
fazendo o seguinte raciocínio: o artigo 15 exige curador no inquérito, e este artigo é
igual ao 194 do CPP, que exigia o curador no processo. Veja:

“Art. 194. Se o acusado for menor, proceder-se-á ao interrogatório na presença de


curador.”

Ocorre que este artigo 194 foi expressamente revogado pela Lei 10.792/03;
se no processo, em que vigem todas as garantias constitucionais, o curador foi
dispensado, nada há que dê coerência à existência de curador na fase do inquérito,
eminentemente inquisitorial – estando revogado implicitamente pela Lei 10.792/03.
Esta corrente é de Pacelli e Capez, entre outros.

- A terceira corrente, tese geral da Defensoria Pública, defende que o artigo 15 do


CPP ainda está em vigor, sob o seguinte argumento: não pode ser usado o CC para
revogação deste artigo, pois como já se viu, é analogia in malam partem. Mas
também a Lei 10.792/03 não pode ser invocada, pelo seguinte: esta lei não só
revogou o artigo 194 do CPP, como também alterou o artigo 185 do CPP, fazendo
imposta, no interrogatório em juízo, a presença do advogado de defesa. Veja:

“Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do


processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor,
constituído ou nomeado.
§ 1o O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em
que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz
e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a
segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
§ 2o Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista
reservada do acusado com seu defensor.”

Michell Nunes Midlej Maron 102


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Destarte, o que esta lei fez foi dispensar o curador porque garantiu ao réu a
presença do defensor, sendo que esta presença não era obrigatória antes: o
interrogatório judicial era ato privativo do juiz.
Ocorre que, no inquérito, a presença do defensor não é obrigatória, mas sim
facultativa. Por isso, a lei não revogou expressamente o artigo 15, tampouco
implicitamente: se não há defensor presente, é necessária a presença do curador –
restando em vigor o artigo, portanto, aplicando-se ao caso em que o indiciado
menor não nomear defensor.

2.7. Trancamento do inquérito

Este ato é uma criação jurisprudencial, não sendo encontrado na lei, mas sendo
pacificamente admitido. O trancamento consiste na paralisação judicial do inquérito, em
razão da ausência de justa causa.
O trancamento pode ser subjetivo ou objetivo. O trancamento subjetivo é aquele em
que se dá a paralisação do inquérito em relação a um dos investigados: se for identificada a
ausência de justa causa contra um dos indiciados, a investigação contra ele é obstada. O
trancamento objetivo, por sua vez, é a paralisação das investigações de um dos crimes, por
ser notada a ausência de qualquer fundamento da sua materialidade, indicando a sua
inexistência.
Havendo pluralidade de crimes investigados, ou de suspeitos, o trancamento contra
um só deles não impede o prosseguimento do inquérito quanto aos demais, crimes ou
indiciados.
O STF tem um julgado bastante elucidativo sobre o tema, no HC 87.654, em que
não concedeu o trancamento:
“CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA (Lei 8.176/91). INQUÉRITO
POLICIAL INSTAURADO COM BASE EM APREENSÃO ILÍCITA DE
DOCUMENTOS. TRANCAMENTO PRETENDIDO. 1. Eventual vício na
primeira apreensão, que foi desconstituída judicialmente, não contamina a segunda
apreensão, que foi precedida de prévia autorização judicial. Discutível, ademais,
cogitar-se de apreensão ilícita, uma vez que a comunicação de possível crime ao
Ministério Público não configura afronta ao sigilo fiscal (CTN, art. 198, § 3º, I ). 2.
Habeas corpus indeferido.”

O trancamento, apesar de ter os mesmos efeitos, não se confunde com o


arquivamento do inquérito, que será mais bem abordado adiante. Na verdade, se trata de um
arquivamento sem necessária promoção do MP.

2.8. Incomunicabilidade do indiciado

O artigo 21 do CPP estabelece:

“Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos


autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência
da investigação o exigir.
Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de três dias, será
decretada por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento da autoridade
policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o

Michell Nunes Midlej Maron 103


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

disposto no artigo 89, inciso III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil
(Lei n. 4.215, de 27 de abril de 1963).”

A CRFB veda a incomunicabilidade, no artigo 5°, LXII e LXIII, motivo pelo qual é
cediço que este artigo não foi recepcionado no novel ordenamento jurídico.

2.9. Conclusão do inquérito

O artigo 10 do CPP estabelece quando e como se conclui o inquérito:

“Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido
preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta
hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30
dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.
§ 1o A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará
autos ao juiz competente.
§ 2o No relatório poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido
inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas.
§ 3o Quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a
autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores
diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz.”

Os prazos dali constantes são para que se remeta o inquérito ao MP. O artigo 16 do
CPP estabelece, porém, que se o parquet entender por bem, poderá comandar novas
diligências à autoridade policial, mesmo após o termo do inquérito, estando claro que o MP
não fica vinculado à opinião da autoridade policial sobre a conclusão do inquérito.

“Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à


autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento
da denúncia.”

De acordo com o § 1° do artigo 10 do CPP, o inquérito é concluído com a produção


de um relatório final, que consiste num minucioso resumo dos atos investigatórios
praticados. Ocorre que este dispositivo apresenta uma previsão um tanto contraproducente:
determina que o relatório do inquérito seja enviado ao juiz, enquanto é mais do que sabido
que o destinatário do inquérito é o MP (providência que também consta do artigo 23 do
CPP). Assim, a dinâmica que este dispositivo impõe é um tanto inútil: o juiz, recebendo o
inquérito, nada mais fará do que remetê-lo ao MP, sem qualquer atuação efetiva (motivo
pelo qual sequer há prevenção do juiz que faz este intermédio). E a situação se repete se o
MP precisar de novas diligências: deverá remeter ao juiz, para que este encaminhe ao
delegado. Pura perda de tempo, nos dias atuais22.
No Rio de janeiro, esta situação foi solucionada pela Portaria 191/88, do TJ/RJ, que
na verdade é um convênio entre o TJ, o MP e a polícia civil: o juiz foi removido da
equação, sendo o inquérito enviado ao MP diretamente pelo delegado. Veja que não se pode
entender que esta portaria esteja revogando o artigo 10, § 1°, do CPP, o que seria

22
Este artigo teve sua razão de ser, quando o MP não tinha autonomia administrativa capaz de possibilitar o
seu bom desempenho no processamento do inquérito – quando então a máquina do Judiciário servia para
ajudar o MP nesta tarefa.

Michell Nunes Midlej Maron 104


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

impossível, mas sim regulamentando a norma constitucional que determina que o MP é o


destinatário do inquérito.
O inquérito que investiga tráfico de drogas tem prazos especiais previstos no artigo
51 da Lei 11.343/06:

“Art. 51. O inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o


indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto.
Parágrafo único. Os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo
juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de
polícia judiciária.”

Veja, então, que o prazo pode alcançar até cento e oitenta dias, se duplicado, sendo
prazo bastante dilatado, portanto.

Casos Concretos

Questão 1

Convencido de não haver o menor indício de sua participação no crime, Marcos


requer sua exclusão do indiciamento, sustentando que houve precipitação da autoridade
policial, que o indiciou fundada em mera suspeita. Acrescentou que existem alguns
julgados trancando o inquérito policial por falta de justa causa para o indiciamento, mas o
que pretende não vai a tanto, até porque o fato-crime é preocupante e seu verdadeiro autor
merece ser punido, o que estaria inviabilizado com o trancamento. Agasalhada que seja a
pretensão do indiciado pelo Ministério Público, como decidiria o magistrado, no controle
do princípio da legalidade?

Resposta à Questão 1

Havendo a absoluta ausência de justa causa contra Marcos, pois a mera suspeita
pessoal do delegado não configura um mínimo indiciário apto a instaurar inquérito contra
Marcos, há que se proceder ao trancamento subjetivo, sem interromper a continuidade do
inquérito, porém, quanto ao crime. Impetrando-se um HC, o efeito seria justamente o
trancamento subjetivo pretendido, impedindo apenas o prosseguimento das investigações
contra Marcos.

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EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Questão 2

Rafael Junqueira, atuando sob o domínio de violenta emoção, que teria sido
provocado por comportamento estranho de sua amásia, fez contra a mesma seis disparos
de revólver, causando-lhe ferimentos e a conseqüente morte. Minutos após, adentra a DP
circunscricional e se entrega à autoridade policial, dizendo-se arrependido e querendo
pagar pelo que fez. Que providência legal poderá adotar a autoridade policial?
Fundamente a resposta em lei, doutrina e jurisprudência dos Tribunais.

Resposta à Questão 2

O delegado deverá instaurar inquérito de ofício, pois não há flagrante: caminhar


adentro da delegacia por vontade própria não configura nenhuma das hipóteses de
flagrante, como determinadas no artigo 302 do CPP. Isto porque, ao se entregar, o agente
não foi encontrado pela polícia, e sendo diversa a situação, não há que se aplicar por
analogia, à situação de apresentação espontânea, a de flagrante – não há analogia in malam
partem no direito penal ou no processo penal. Por isso, há necessidade de se instaurar
inquérito de ofício, mas não APF.
É claro que a prisão preventiva, ou a temporária, seria possível, como estabelece o
artigo 317 do CPP, sendo incabível apenas a prisão em flagrante.

“Art. 317. A apresentação espontânea do acusado à autoridade não impedirá a


decretação da prisão preventiva nos casos em que a lei a autoriza.”

Questão 3

A defesa de JOSÉ ingressou com mandado de segurança contra o delegado de


polícia, alegando que, em razão do artigo 20 do CPP, deve submeter-se ao princípio
constitucional da ampla defesa e, já não pode ser impedida de ter acesso ao inquérito, que
sendo procedimento administrativo, é regido pelo Princípio da Publicidade. Decida.

Resposta à Questão 3

De fato, o sigilo do inquérito não alcança o advogado do investigado. Há recente


julgado do Supremo Tribunal Federal, no HC 82.354/PR, de relatoria do Ministro
Sepúlveda Pertence, em julgamento da Primeira Turma na data de 10/08/2004, cuja ementa
segue transcrita:

“I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial. 1. O


cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial
poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em
condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância
é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas
da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir
indevidamente à liberdade de locomoção do paciente. 2. Não importa que, neste
caso, a impetração se dirija contra decisões que denegaram mandado de segurança

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

requerido, com a mesma pretensão, não em favor do paciente, mas dos seus
advogados constituídos: o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode
substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado - como tal,
questionável mediante mandado de segurança - e ameaça, posto que mediata, à
liberdade do indiciado - por isso legitimado a figurar como paciente no habeas
corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores.
II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista
dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do
contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque
não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa;
existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do
inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar
e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado
- interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é
corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos
respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art.
7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas - não se
excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito
legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os
interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao
princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído
esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe
assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência
técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso
aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar
declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as
informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e
às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às
interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em
conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes
que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial
possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus
deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta
aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição.”

Como resta claro, fica estabelecido no caso em tela que a vista dos autos do
inquérito policial é garantida à defesa, pelo que sua negativa impõe periclitação indevida ao
direito de locomoção, fundeando o writ of habeas corpus que se analisa.
Em que pese o sigilo do inquérito, trazido à ordem pelo artigo 20 do Código de
Processo Penal, este sigilo não se pode estender aos advogados da defesa, vez que, mesmo
não podendo contraditar os atos do rito inquisitivo, a ciência da investigação pode ser
fundamental à futura defesa em juízo. Negar-se acesso ao inquérito, pelos representantes da
defesa técnica, é cercear a defesa do indiciado.
Destarte, apesar de a fundamentação do HC ser errônea – o artigo 20 do CPP é
plenamente constitucional –, a autorização para que o advogado acesse o inquérito está
presente no Estatuto da OAB, e é este autorizativo que demanda a concessão do HC, para
conceder acesso aos autos do inquérito, limitado às peças que façam referência a seu
cliente.

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema X

Investigação penal (continuação). A qualificação do indiciado e sua identidade física (CPP, arts. 5º, § 1º, I,
b, 6º, VIII, 41 e 259; CF, 5º, LVIII). Prisão provisória e inquérito policial. Questões relativas à
incomunicabilidade do indiciado preso. Conclusão do inquérito. Formalidades. A investigação penal extra
policial diante do disposto no art. 144, § 1º, IV, Constituição Federal.

Notas de Aula

1. Peças de informação

As peças de informação consistem em outra modalidade de investigação criminal,


como dito. É a investigação que não é conduzida pela autoridade policial. A lei permite a
investigação por outras pessoas, o que se pode depreender da menção a estas peças no
artigo 28 do CPP:

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia,


requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de
informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará
remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá
a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a


atender.”

Não só as peças de informação existem como são tratadas à semelhança do


inquérito, inclusive para efeitos de arquivamento. Exemplo de peça de informação é a
investigação produzida pela CPI, como dispõe o artigo 58, § 3°, da CRFB:

“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e


temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo
regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(...)
§ 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação
próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das
respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de
seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas
conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova
a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (grifo nosso)
(...)”

Veja que o parlamentar que integra a CPI tem poderes de investigação próprios de
uma autoridade judiciária, o que tem diversas implicações: a CPI pode quebrar sigilo
bancário, por exemplo. Mas há que se atentar à cláusula de reserva de jurisdição, criação
jurisprudencial do STF, que determina que alguns atos investigatórios são dados
exclusivamente ao Judiciário, não podendo a CPI produzi-los, nem mesmo diante da
equiparação que este dispositivo promove. Três são os atos que são dados a esta reserva: a
decretação de prisão; a busca e apreensão; e a interceptação telefônica.
A interceptação telefônica difere da quebra do sigilo de dados telefônicos:
interceptação é a já estudada captura de conversação enquanto ocorre, ou seja, é a revelação
do conteúdo de conversas telefônicas, reduzidas ao laudo de degravação; a quebra do sigilo
de dados consiste na revelação do histórico das ligações, da propriedade da linha, etc: é
dado à CPI compulsar os dados telefônicos, mas é-lhe vedada a interceptação telefônica,
em qualquer modalidade.
Note-se que o artigo 58, § 3°, da CRFB, não traz qualquer reserva, e por isso seria
questionável esta limitação criada pelo STF. A respeito, o MS 25.668, do STF:

“EM E N T A: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - QUEBRA DE


SIGILO BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO - AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO
DE FATOS CONCRETOS - FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA -
INADMISSIBILIDADE - CONTROLE JURISDICIONAL - POSSIBILIDADE -
CONSEQÜENTE INVALIDAÇÃO DO ATO DE "DISCLOSURE" -
INOCORRÊNCIA, EM TAL HIPÓTESE, DE TRANSGRESSÃO AO
POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - MANDADO DE
SEGURANÇA DEFERIDO. A QUEBRA DE SIGILO - QUE SE APÓIA EM
FUNDAMENTOS GENÉRICOS E QUE NÃO INDICA FATOS CONCRETOS E
PRECISOS REFERENTES À PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO - CONSTITUI
ATO EIVADO DE NULIDADE. - A quebra do sigilo inerente aos registros
bancários, fiscais e telefônicos, por traduzir medida de caráter excepcional, revela-
se incompatível com o ordenamento constitucional, quando fundada em
deliberações emanadas de CPI cujo suporte decisório apóia-se em formulações
genéricas, destituídas da necessária e específica indicação de causa provável, que

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

se qualifica como pressuposto legitimador da ruptura, por parte do Estado, da


esfera de intimidade a todos garantida pela Constituição da República.
Precedentes. Doutrina. O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS
PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO
OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. - O Supremo Tribunal
Federal, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para
garantir a integridade e a supremacia da Constituição, neutralizando, desse modo,
abusos cometidos por Comissão Parlamentar de Inquérito, desempenha, de
maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da
República. O regular exercício da função jurisdicional, nesse contexto, porque
vocacionado a fazer prevalecer a autoridade da Constituição, não transgride o
princípio da separação de poderes. Doutrina. Precedentes.”

Outro exemplo de peças de informação é o produto da investigação particular


realizada por qualquer pessoa do povo. O artigo 39 do CPP apresenta esta modalidade:

“Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por


procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao
juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial.
§ 1o A representação feita oralmente ou por escrito, sem assinatura devidamente
autenticada do ofendido, de seu representante legal ou procurador, será reduzida a
termo, perante o juiz ou autoridade policial, presente o órgão do Ministério
Público, quando a este houver sido dirigida.
§ 2o A representação conterá todas as informações que possam servir à apuração
do fato e da autoria.
§ 3o Oferecida ou reduzida a termo a representação, a autoridade policial
procederá a inquérito, ou, não sendo competente, remetê-lo-á à autoridade que o
for.
§ 4o A representação, quando feita ao juiz ou perante este reduzida a termo, será
remetida à autoridade policial para que esta proceda a inquérito.
§ 5o O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação
forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso,
oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias.”

Veja: se o particular trouxer evidências suficientes a produzir a justa causa, o MP


não precisará do inquérito, e oferecerá a denúncia dispensando qualquer atividade da
autoridade policial, como dispõe o § 5° do artigo em comento.
Também o procedimento administrativo de órgãos públicos quaisquer que já
revelem justa causa podem servir de base direta a uma denúncia. Da mesma forma, a
extração e remessa, pelo juiz ao MP, de peças de um processo judicial de outra seara –
processo cível, por exemplo –, que dêem aparentes indícios de crime, podem fundamentar a
denúncia, como identifica o artigo 40 do CPP:

“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais


verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público
as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.”

2. Poder investigatório do Ministério Público

Poderia o MP, sem qualquer intermédio da polícia, produzir provas, colher


depoimentos, efetuar diligências, requisitar documentos a órgãos públicos, ou seja: pode o
MP investigar diretamente?

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Esta questão é de alta indagação. Esta discussão, de fato, está em curso no STF, não
havendo ainda definição da posição do STF. O número nesta Corte é Inquérito Policial
1968.
Não obstante, podem ser identificadas duas correntes: a primeira, defende que não é
possível, ao MP, exercer investigação criminal pelas próprias mãos, girando seus
argumentos em torno do artigo 129 da CRFB: este artigo prevê todas as atribuições do MP,
e em nenhum inciso haveria esta autorização expressa para que o parquet investigue
pessoalmente. Este é o argumento do ex-Ministro do STF Maurício Correia. Se a CRFB
não consigna autorização expressa, esta atribuição não existe, sendo vedada.
O ex-Ministro do STF Nelson Jobim é outro que defende a vedação à atividade
investigativa do MP, mas sob outro argumento: entende que o artigo 129 não deixou de
tratar da função do MP na investigação; na verdade, o inciso VII deste artigo tratou da
atividade investigativa, mas apenas atribuindo ao MP a função de fiscal externo da
investigação, a ser conduzida pela autoridade policial:

“(...)
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
(...)”

Para ele, então, o MP requisita à polícia a realização das diligências que bem
entender, mas não as realiza por si mesmo.
A corrente contrária, que defende que o MP tem atribuição para investigar, refuta o
primeiro argumento dispondo que o inciso IX do artigo 129 é suficiente para autorizar esta
investigação direta:

“(...)
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com
sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de
entidades públicas.
(...)”

Assim, a função de investigar seria compatível com a finalidade acusatória do MP,


mesmo porque há, de fato, relação de condição entre uma e outra atividade: sem
investigação não há acusação legítima.
Quanto ao argumento de que a função do MP no inquérito é de fiscal externo, há
contraponto bastante forte: se o MP pode exigir que sejam realizadas determinadas
diligências, podendo requisitá-las da autoridade policial, poderia igualmente realizá-las ele
próprio, pela aplicação da teoria dos poderes implícitos: “quem pode o mais, pode o
menos”. Não há qualquer lógica em poder o promotor mandar que seja realizada a
investigação, e não poder fazê-la ele mesmo.
O STJ admite a investigação pelo MP, e vai além: sequer há qualquer impedimento
ou suspeição para a denúncia pelo promotor que investigou. Esta Corte sumulou a questão,
no enunciado 234:

“Súmula 234, STJ: A participação de membro do Ministério Público na fase


investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o
oferecimento da denúncia.”

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Há críticas a esta posição também no sentido de que haveria uma concentração de


poder nas mãos do MP, mas este argumento não procede, pois se no curso do processo
penal o juiz pode produzir provas de ofício, e esta produção autônoma pode ensejar
condenação, nada impede que o MP produza provas que, no máximo, fundamentarão uma
denúncia – e não uma condenação.

Casos Concretos

Questão 1

Promotor de Justiça de determinada comarca do interior, invocando o artigo 129,


VI, CR/88, artigos 26, I, a e b, II e IV e 27, parágrafo único, inciso I, artigo 80, da Lei
8625/93 e os artigos 7º e 8º, incisos V e VII da Lei Complementar 75/1993, diante da
suspeita da prática de diversos crimes por policiais civis da comarca, entre os quais
formação de quadrilha armada, extorsão mediante seqüestro e roubos, após ser procurado
por diversos moradores da comunidade, instaurou procedimento administrativo no âmbito
da própria promotoria. Inquiriu várias testemunhas, supostas vítimas e requisitou
documentos, tendo, após coligir material probatório suficiente, oferecido a denúncia. O
juiz recebeu a denúncia. A defesa técnica dos réus impetrou Habeas Corpus pugnando pelo
trancamento da ação penal, sob os seguintes fundamentos:
a) O promotor de justiça que subscreveu a denúncia, por ter participado da
colheita da prova, era suspeito e, por conseguinte, nula é a denúncia.
b) Ao investigar diretamente, o promotor usurpou função constitucional da polícia
judiciária (artigo 144, § 4º, CR/88), sendo ilícita a forma de obtenção da prova.
Como relator, dê o seu voto.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

a) Argumento mais absurdo não há. Alegar que o promotor é suspeito é dizer que a
parte é parcial, ou seja, redundância que se poderia chamar de cretina. Não há
qualquer nulidade na denúncia, portanto. Sobre o tema, apesar de absurdo, o STJ
editou a súmula 234, dispondo:

“Súmula 234, STJ: A participação de membro do Ministério Público na fase


investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o
oferecimento da denúncia.”

b) É certo que sempre houve controvérsia, de extenso raio, sobre esta atuação, mas a
própria súmula 234, acima transcrita, tomou por pressuposto que há esta
possibilidade, e que sequer há suspeição. A tendência é que seja consolidado o
poder investigativo do MP, em atenção à teoria dos poderes implícitos, pois se a
atividade investigativa é dada até mesmo ao cidadão comum, que dirá ao promotor,
que exerce poder de comando sobre as diligências, requisitando aquelas que bem
entender.

Questão 2

O Ministério Público, ao proceder a investigação sobre crime que já havia


denunciado, descobre ser GORPO co-autor do delito e, diante disso, faz um aditamento
àquela denúncia. O juiz recebe o aditamento.
Irresignado com tal situação, GORPO impetra habeas corpus pleiteando o
trancamento da mencionada ação penal, sob o argumento de impossibilidade de se admitir
investigação promovida pelo Ministério Público e que viera a servir de base ao aditamento
da denúncia, a partir do qual o paciente fora envolvido na ação penal.
Comente os fatos acima e diga se é possível tal investigação por parte do
Ministério Público. Fundamente.

Resposta à Questão 2

O tema mais controvertido, em sede de estudo do poder de polícia judiciária, reside


na existência ou não do seu desempenho pelo Ministério Público. Há duas correntes: a
posição dominante, do STJ, inclusive, entende que o MP tem titularidade de exercício de
poder de polícia judiciária, ou seja, pode, o MP, investigar diretamente o que lhe diga
respeito, e a segunda corrente rechaça tal poder de polícia judiciária do parquet.
O argumento da corrente favorável calca-se na previsão do artigo 129, VII e VIII, da
CRFB, que supostamente consolida o brocardo de “quem pode mais, pode menos”:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:


(...)
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar
mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial,
indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Esta seria uma manifestação da teoria dos poderes implícitos: se o MP pode


controlar a atividade policial, e requisitar (não requerer, mas sim exigir) diligências
investigatórias, nada o impediria de, ele próprio, realizar o que pode comandar, sendo
inclusive medida de economicidade processual. O poder de investigação estaria implícito,
compreendido nestas duas prerrogativas.
Há ainda outro argumento a favor do poder investigativo do MP: o artigo 129, III,
da CRFB, poderia ser aplicado por analogia à investigação criminal. Veja:

“(...)
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
(...)”

A diferença entre a ação penal pública e a ação cível pública reside apenas na
matéria que é tratada em cada uma, sendo que ambas são dedicadas à proteção do bem
comum – na penal a segurança pública, e na cível quaisquer outros bens coletivos ou
difusos. Assim sendo, se o MP pode buscar suporte fático para a promoção da ação civil
pública diretamente, porque não o poderia na ação penal? é por isso que este é um
argumento sólido a favor do exercício da polícia judiciária pelo MP.
Há ainda que se mencionar como fundamento a previsão do artigo 129, IX, da
CRFB:

“(...)
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com
sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de
entidades públicas.
(...)”

Este inciso deixa aberta a possibilidade de se ampliar as prerrogativas do MP,


tornando o rol constitucional das prerrogativas em elenco numerus appertus,
exemplificativo. Destarte, ali se incluiria o poder investigativo do MP, pois é plenamente
compatível com a finalidade do parquet: é corolário natural da sua atribuição investigativa
na seara cível a mesma possibilidade na órbita criminal. Todavia, este inciso dependeria de
previsão expressa infraconstitucional que conferisse expressamente tal atribuição ao MP,
sendo matéria tratada na Lei Complementar 75/93 e na Lei Orgânica do MP, Lei 8.625/93,
nesta constando do artigo 26, incisos II e IV:

“Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:


(...)
II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir
procedimentos ou processo em que oficie;
(...)
IV - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de
inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII, da
Constituição Federal, podendo acompanhá-los;
(...)”

Além destes argumentos, é importante demonstrar que o poder investigativo do MP


sempre foi matéria versada na legislação infraconstitucional. Os artigos 27 e 47 do CPP, a
respeito, parecem reforçar esta tese:

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério


Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito,
informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de
convicção.”

“Art. 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e


documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-
los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam
fornecê-los.”

Este artigo 27 dispõe que o MP pode se instruir diretamente junto às fontes, não
sendo necessária a interposição da polícia civil ou federal a fim de providenciar o material
probatório. O artigo 47, por sua vez, dispõe em sentido similar, estabelecendo clara
hipótese de investigação direta pelo MP, requisitando esclarecimentos junto às autoridades
ou funcionários que detenham as informações.
No direito comparado, é profícua a aceitação do poder investigativo do MP.
Portugal e Itália, por exemplo, conferem este poder primariamente ao MP, sendo a
investigação que é realizada pelas polícias feita por delegação do parquet, que é o titular do
poder de polícia judiciária.
Havia um argumento contrário à investigação pelo MP, que era sólido, porém hoje
não mais tem valor: as investigações policiais são controladas externamente pelo MP, como
se lê no artigo 129, VII, da CRFB, transcrito acima. Ponderava-se, então, se a investigação
direta pelo MP não seria uma atividade alheia a qualquer controle, pois estaria o MP
controlando a si mesmo, vez que esta é sua atribuição. Este argumento não persiste pois há,
hoje, a figura do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão com atribuição de
controle sobre o MP, instituído em 2004, com a inserção do artigo 130-A na CRFB, pela EC
nº 45.
Sobre o tema, o STJ editou a súmula 234, que denuncia sua adesão à corrente que
admite a investigação direta pelo MP.
Ressalte-se que o STJ não admite que haja, contudo, exercício de investigação
ministerial paralela à policial. Entende que a investigação pelo MP é sempre complementar
à da polícia, e nunca substitutiva, muito menos impeditivas daquelas realizadas no
inquérito. As atividades investigativas devem ser convergentes, integradas, pois a
presidência do inquérito é constitucionalmente entregue ao delegado.
Há que se fazer menção a um problema, neste ponto. A Resolução de n° 77 do MPF
disciplinou o poder investigatório do MP, nas suas competências. Contudo, o fez de forma a
instituir investigabilidade paralela ao inquérito policial, pelo que esta resolução é tida por
inconstitucional, pela doutrina. É formalmente inconstitucional pois não é dado ao ato
normativo tratar desta matéria, e somente ao legislador federal – processo penal é matéria
de competência legislativa privativa da União, conforme artigo 22, I, da CRFB; e é
materialmente inconstitucional, vez que a investigação ministerial deve ter esta natureza
integrada e suplementar ao inquérito policial, e nunca paralela, presidida por qualquer
órgão que for, que não o delegado de polícia, presidente nato do inquérito.
Voltando ao teor da súmula 234 do STJ, lê-se ali que não há suspeição ou
impedimento do membro do MP que participa da investigação, quando do oferecimento da
denúncia. Isto porque a investigação é um desdobramento de atribuição diretamente
conferida pela CRFB – controle externo da atividade policial –, e por isso não há conflito,

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

vez que este controle já seria, em tese, uma causa de suposta tendência do MP, o que não
ocorre. Todavia, o membro do MP que tenha participado das investigações jamais poderá
ser arrolado como testemunha em eventual ação penal sobre aquele fato, pois em apreço à
teoria do órgão, quem interveio na investigação não foi o membro do MP, mas sim o
próprio MP, pelo princípio da unidade do MP (entendimento do STF).
A corrente que rechaça o poder investigatório do MP conta com uma enorme gama
de precedentes do STF a seu favor. Dispõe, esta corrente, que o brocardo de “quem pode
mais, pode menos”, não pode ser invocado como fundamento ao poder investigativo do MP.
Isto porque parte-se da premissa, quando da análise das atribuições de um órgão e de outro
– no caso, do MP e da polícia civil (ou federal) – de que haja hierarquia entre as entidades:
o órgão superior pode sempre avocar os poderes do órgão inferior. Todavia, a CRFB não
estabeleceu relação hierárquica entre a polícia e o MP. O que há é uma separação
institucional e de atribuições, relacionando-se quando do controle externo do MP sobre a
atividade policial – e só.
Assim sendo, não se aplicaria a avocação de poderes, “quem pode mais, pode
menos”, pois não há hierarquia. Se o fizer, estará o MP avocando atribuições que lhe são
estranhas, o que vai contra a previsão constitucional, quer no artigo 129, quer no 144 da
Carta Magna. De fato, parece que o constituinte pretendeu manter um certo distanciamento
do MP em relação às atividades investigativas, pois contou com duas possibilidades, nestes
dois artigos, de positivar a investigação pelo parquet, e não o fez expressamente.
Para além disso, é de se entender que é justamente este distanciamento que vai
preservar a garantia do promotor natural. Somente o promotor isento das filigranas da
investigação poderá promover de fato a justiça, ou seja, optar pelas promoções que lhe
incumbem com “imparcialidade”, denunciando ou pedindo o arquivamento do inquérito.
Cabe aqui esmiuçar mais um pouco o princípio do promotor natural. Por óbvio, tem
direta correlação conceitual com o princípio do juiz natural, lido no artigo 5°, LIII, da
CRFB:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
(...)”

Este artigo somente contempla o princípio do juiz natural, não guardando o


promotor natural. Este está na previsão do artigo 127, § 1°, da CRFB:

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função


jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a
indivisibilidade e a independência funcional.
(...)”

O promotor natural é um consectário da independência funcional dos membros do


MP, sendo que estes membros contam com as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de salários. É justamente na inamovibilidade que se concentra o promotor

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

natural, pois o promotor que terá atribuição para oficiar no feito já existe previamente ao
alcance da questão ao Judiciário. Tanto quanto o julgador, há, já, o acusador natural, prévio
ao fato, inamovível por princípio, garantindo a isenção da acusação. É quase uma “parte
imparcial” (termo que não deve ser utilizado jamais).
Por isso, admitir-se a investigação direta pelo MP seria retirar-lhe a necessária
isenção pretendida pelo princípio do promotor natural23.
Esta corrente contrária ao poder investigativo do MP ainda refuta diretamente a
invocação do artigo 129, III, da CRFB, como fundamento para tal poder de polícia
judiciária. Veja que a tese pela admissibilidade do poder investigativo invoca este
dispositivo por analogia; contudo, para que haja a analogia pressupõe-se lacuna sobre o
tema, e o que se percebe na questão é o que se denomina silêncio eloqüente do constituinte:
em duas oportunidades, como visto – artigos 129 e 144 da CF –, o constituinte pôde
positivar o MP como titular de polícia judiciária, investigativa, e optou por não fazê-lo, por
não outorgar atribuição investigatória ao MP. Portanto, descaberia analogia, neste caso: a
prerrogativa de promover o inquérito civil não pode ser analogamente transportada para o
inquérito criminal.
Refuta, ainda, a tese da corrente favorável ao poder investigativo do MP que se
calca no artigo 129, IX, da CF: este dispositivo remete à possibilidade dada ao legislador
infraconstitucional em estender as atribuições ministeriais, mas sem jamais subverter os
parâmetros constitucionais. Ocorre que o artigo 144 da CRFB não outorgou diretamente
poder investigatório ao MP, e assim não o poderia fazer, jamais, o legislador
infraconstitucional.
Aqui, então, impõe-se trazer à tona as previsões infraconstitucionais de que se vale
a corrente favorável ao poder investigativo do MP. O artigo 27 do CPP, para tal corrente,
seria autorizativo da colheita direta das fontes fáticas de provas pelo MP, ao que rebate a
corrente refratária dizendo que investigação é uma conduta ativa, proativa: é a busca da
prova, ativamente. O artigo 27, para esta corrente, dispõe apenas que o MP pode,
passivamente, receber provas de forma direta, e não proceder ativamente na colheita das
mesmas, realizando diligências, por exemplo. Este artigo traz tão-somente reforço à
dispensabilidade do inquérito policial, nada mais.
Quanto à alegação de que o artigo 47 do CPP e o artigo 26, II e IV, da Lei 8.625/93
fundamentam a atividade investigativa do MP, defende esta corrente que ter poder de
requisição de investigação não significa, absolutamente, poder investigar diretamente.
Quando se requisita alguma coisa, se determina que alguém faça aquilo que foi requisitado
– e o poder se resume a isto. Se requisitar correspondesse a poder realizar pessoalmente o
que se requisita, o próprio juiz, que tem poder geral de requisição, poderia investigar.
Por fim, quanto aos argumentos buscados no direito comparado, esta corrente
defende que só se pode recorrer ao direito alienígena se houver ponto de contato mínimo
entre os ordenamentos em análise, de forma a possibilitar a comparação, e postulam que
nem na Itália, nem em Portugal, a realidade constitucional é sequer superficialmente
semelhante à brasileira. Lá, o poder investigatório é originariamente detido pelo MP, e
delegado às polícias, enquanto aqui o titular originário da investigação já é a polícia.
Havendo tamanha diferença, não há como se proceder a nenhuma análise comparativa.
23
É importante ressaltar, ainda, que há mesmo quem entenda que este princípio do promotor natural sequer
exista, pois se o promotor é parte, jamais poderá ter isenção, e não há que se falar em promotor natural,
portanto. Mesmo porque o MP não tem poder suficiente para violar qualquer direito do acusado, vez que
quem comanda o processo é o juiz, e só este deve, necessariamente, ser imparcial.

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Não se admitindo o poder investigatório do MP, as peças de informação por ele


colhidas serão, em princípio, provas ilícitas, pois seriam provas colhidas ao arrepio da
norma constitucional. o artigo 5°, XVI, da CRFB, estabelece que são inadmissíveis no
processo as provas obtidas por meios ilícitos, e a contrariedade à norma constitucional é a
maior das ilicitudes – pelo que caberia habeas-corpus sempre que a ação penal contivesse
tais provas.
Há de se ressaltar, aqui, que a proposta doutrinária de se dividir as provas
irregulares em provas ilícitas e provas ilegítimas recentemente foi acolhida pelo STF, pelo
que se faz relevantíssima uma ressalva. Veja: são provas ilícitas aquelas que contrariem
alguma previsão de direito material (como sigilo da correspondência, intimidade e vida
privada, etc), enquanto provas ilegítimas são aquelas que são obtidas em desconformidade
com regras de direito processual (ampla defesa, contraditório, etc). Assim, as provas ilícitas
seriam inadmissíveis, mas as provas ilegítimas seriam admissíveis, a depender da
ponderação in concreto.
A ressalva seria exatamente esta: ainda que se entendesse que o MP não pode
investigar, as peças de informação por ele colhidas seriam meramente provas ilegítimas, e
não ilícitas, e poderiam ser admitidas. Veja que este entendimento, acolhido em voto do
Ministro Gilmar Ferreira Mendes, ainda não está consolidado, pelo que se deve dedicar
atenção ao futuro próximo do assunto no STF24.
Tema XI

Arquivamento e incidência da teoria da substância. O arquivamento explícito e o arquivamento implícito.


Desarquivamento (Lei Complementar Estadual nº 106, de 03/01/2003, artigo 39, XV). Trancamento do
inquérito policial.

Notas de Aula

1. Intróito

Auri Lopes Júnior estabelece que o Direito Penal tem característica que o difere
violentamente do Direito Privado, que é a ausência de coercitividade direta e imediata.
Para ele, as normas incriminadoras de Direito Penal precisam sempre de um processo para
serem concretizadas, não exercendo de forma imediata a sua coerção. No Direito Privado,
ao contrário, todos os destinatários das normas já as executam de plano, fazendo valer o
que delas consta, somente recorrendo ao Judiciário quando há resistência. No Direito Penal,
não há eficácia que não seja por via do Judiciário.
Esta idéia é presente no princípio nula poena sine judicio, ou seja, não há pena sem
que o Judiciário a faça incidir, não há pena sem processo. A norma penal incriminadora
precisa do processo para se implementar, e por isso se tem que o Direito Processual Penal é
um alto limitador do poder de punir do Estado, do jus puniendi estatal. O processo penal é
inevitavelmente presente na seara criminal.

24
A crítica a esta separação entre provas ilícitas e provas ilegítimas é que não há embasamento legal para
tanto, o que seria atividade legislativa do intérprete e, o que é pior, in malam partem, pois restringe a garantia
individual contra provas irregulares no processo penal. Estar-se-ia diferençando onde a CRFB não o fez.
Outra crítica é de que as garantias processuais, em regra, são constitucionais, e admitir-se prova contrária à
previsão constitucional é a maior das ilicitudes.

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ora, se o processo é inevitável, não há como se perseguir alguém sem que haja o
mínimo de fundamentos incriminadores, um mínimo de prova. E esta prova é buscada na
investigação criminal, gênero do qual fazem parte as espécies inquérito policial, as peças
de informação, e outras formas quaisquer de investigação, como a que é envidada na CPI,
ou o procedimento de investigação criminal que é passado no âmago do próprio MP – o
chamado PIC (criado na Resolução 13 do CNMP, e na Resolução 77 do CS-MPF, debalde
as discussões ainda em curso sobre a atribuição investigativa do MP). A investigação
criminal é o escudo contra acusações criminais infundadas. Se o processo é sempre
necessário, há de existir um mínimo probatório para que se instale a persecução.
Sintetizando as idéias: o Direito Penal não tem coercitividade direta e imediata, de
modo que o processo penal é indispensável e necessário para a concretização do poder de
punir do Estado. Deste modo, a investigação criminal é um filtro contra acusações
infundadas. Geraldo Prado ainda aduz que esta exigência do mínimo probatório prévio ao
processo penal, conhecido como justa causa, é uma projeção da dignidade da pessoa
humana, cuja atenção é necessária à legitimidade do processo. Para ele, o suporte
probatório mínimo necessário para legitimar o processo criminal, que é inevitável, ostenta
esta natureza de reflexo processual do princípio da dignidade da pessoa humana.
É claro que esta exigência de mínimo probatório não demanda a instauração do
inquérito, ou dos demais instrumentos de investigação criminal: serão necessários apenas se
já não existir a base probatória suficiente à propositura da ação penal, ou seja, o que é
imprescindível é a justa causa, e não o procedimento investigatório, dispensado se a justa
causa já se encontra presente.
É claro que a denúncia não é consectário obrigatório da investigação. A investigação
criminal pode culminar na propositura da ação penal ou no seu arquivamento, a critério do
MP, de acordo com os fatos apurados.

2. Arquivamento do inquérito policial

O inquérito é arquivado com base no artigo 28 do CPP:

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia,


requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de
informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará
remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá
a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou
insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a
atender.”

No arquivamento do inquérito, o juiz exerce o papel de fiscal do princípio da


obrigatoriedade da ação penal pública. Sempre que o MP constata a presença de
determinadas condições, não poderá se furtar à promoção que dele se espera. O principio da
obrigatoriedade, segundo Calamandrei, impõe que sempre que o MP verificar hipóteses em
que sua atuação é possível, ela é obrigatória. Ao contrário do que se comumente pensa, não
significa apenas que a denúncia seja obrigatória; esta será obrigatória quando for caso de
denúncia. Quando for caso de arquivamento, será obrigatório o requerimento deste, da
mesma forma.
As determinadas circunstâncias que tornam a ação penal pública obrigatória são as
condições para seu regular exercício, e são quatro: legitimidade, interesse de agir,

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

possibilidade jurídica do pedido, e a justa causa. Ausente alguma destas condições, o


arquivamento é que se torna mandatório.
Sintetizando: tanto o requerimento de arquivamento pelo MP, quanto o
oferecimento de denúncia, decorrem do princípio da obrigatoriedade da ação penal, que,
segundo Calamandrei, impõe que o MP aja, desde que verifique a presença de determinadas
condições necessárias para conferir idoneidade à acusação.
A sistemática do artigo 28 do CPP estabelece que o MP pode requerer o
arquivamento, ao invés de denunciar; as hipóteses em que o arquivamento é cabível
coincidem com as que induzem à rejeição da denúncia, e são apresentadas no artigo 43 do
CPP:

“Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:


I - o fato narrado evidentemente não constituir crime;
II - já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa;
III - for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o
exercício da ação penal.
Parágrafo único. Nos casos do no III, a rejeição da denúncia ou queixa não obstará
ao exercício da ação penal, desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a
condição.”

E o artigo 28, como dito, exige a atuação do juiz como fiscal da obrigatoriedade da
denúncia, quando esta o for. Aponta-se, portanto, este dispositivo, como um exemplo de
função anômala do juiz no processo penal.
Requerido o arquivamento, com base em uma das hipóteses que são presentes no
artigo 43 do CPP, se o juiz crê na sua correção, encampando a tese do MP, simplesmente
arquiva o inquérito. Contudo, se o juiz entende que não é caso legítimo para arquivamento,
remeterá os autos ao PGJ, a fim de que ele se manifeste sobre o impasse.
No MPF, a dinâmica é um pouco diferente: ao invés de remeter os autos ao PGR,
como se pode pensar, o juiz que entende não ser caso de arquivamento vai remeter os autos
à Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, órgão que tem esta atribuição revisora no
MPF, constante do artigo 62, IV, da LC 75/93, Lei Orgânica do MPU:
“Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão:
(...)
IV - manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito
parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária
do Procurador-Geral;
(...)”

Da decisão da Câmara, neste caso, não há qualquer recurso cabível: se esta entender
que o arquivamento é devido, o juiz deverá acolher tal decisão. Esta decisão é sujeita a um
mero visto do PGR, visto este que não tem qualquer carga decisória, nenhum peso de
decisão.
Note-se que, tanto no MPE quanto no MPF, a decisão sobre o arquivamento, em
última instância, é sempre do parquet: o juiz exerce a função de fiscal, mas se a instituição
do MP reiterar na sua posição, esta será observada imperativamente.
Se o juiz discorda da promoção de arquivamento, o STF tem entendido que não só o
encaminhamento ao PGJ (ou CCR) é a solução: poderá devolver ao membro do MP para
que alguma nova diligência seja realizada, alguma outra prova produzida. O STF entende

Michell Nunes Midlej Maron 120


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

que esta providência não viola o sistema acusatório, nem a imparcialidade 25. A respeito,
veja o seguinte julgado:

“ARQUIVAMENTO. SUGESTÃO DE MEDIDAS APURATÓRIAS PELO JUIZ.


POSSIBILIDADE SEM OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO.
A Turma deferiu, em parte, habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que
negara provimento a recurso especial, em que se sustentava a ofensa aos arts. 28 e
252, II, do CPP e a omissão da aplicação do art. 9º da Lei 10.648/2003. No caso
concreto, o juiz de primeira instância, em razão do pedido do Ministério Público de
arquivamento do inquérito policial, solicitara nova manifestação do parquet sobre a
possibilidade de realizar nova tentativa de elucidação do ilícito noticiado, o que
fora acolhido, tendo sido, posteriormente, oferecida denúncia apta, com base em
novas provas e fatos, que originaram ação penal e conseqüente condenação da
paciente pela prática de crime contra a ordem tributária. Entendeu-se correto o
acórdão recorrido na parte em que afastara a alegação de violação aos arts. 28 e
252, II, do CPP, tendo em vista que a hipótese descrita nos autos não configurara
iniciativa probatória exercida pelo juiz, mas mera sugestão de medidas apuratórias,
não tendo havido, outrossim, colisão com o entendimento do STF no sentido de
que, requerido o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público perante o juiz
de primeiro grau, este só poderá acatar ou remeter ao Procurador-Geral.
Considerou-se, no entanto, ocorrida a omissão alegada. HC deferido, em parte,
para que o STJ, completando seu julgamento, examine a alegação do paciente no
sentido da aplicação do art. 9º da Lei 10.684/2003. HC 84051/PR, rel. Min. Gilmar
Mendes, 17.8.2004. (HC-84051) (INF. 357, Rel. Min. Gilmar Mendes – 2 Turma).”

Outro julgado relevante é um do STJ, em que suscitou-se a discussão existente


sobre a incidência dos artigos 1° e 2° da Lei 8.137/90. o MP, neste caso, requereu
arquivamento por entender que a conduta lá praticada se amoldava ao artigo 2°, e como a
pena deste é menor, estaria prescrito. Todavia, o juiz entendeu que a conduta se enquadrava
no artigo 1°, que é bem mais grave, e não estaria, portanto, prescrito. Devolvendo ao MP
com menção ao seu entendimento, o parquet concordou com a interpretação dada pelo juiz,
e ofereceu a denúncia com o novo enquadramento. Questionada pela defesa esta dinâmica,
o STJ entendeu que nada obstava esta conduta do juiz, tampouco a do MP. Trata-se do HC
72.384:

“HABEAS CORPUS – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – PEDIDO


DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO – VINCULAÇÃO DO JUIZ –
INEXISTÊNCIA QUANDO REFERENTE A ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE
DO FATO, OU DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE – NULIDADE –
INEXISTÊNCIA – TRANCAMENTO – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA –
PENDÊNCIA DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA
LANÇAMENTO DO DÉBITO – ORDEM CONCEDIDA. 1. O pedido de
arquivamento do inquérito policial, feito pelo representante do Ministério Público,
não vincula o Juiz quando se basear em alegação de atipicidade do fato ou de
extinção de punibilidade, dada a possibilidade de formação de coisa julgada
material.
2. O trancamento de ação penal somente é viável ante a cabal e inequívoca
demonstração da atipicidade do fato ou da completa inexistência de qualquer
indício de autoria em relação ao paciente.

25
A doutrina critica duramente esta postura. Geraldo Prado assevera que “o juiz, na fase de investigações,
deve ficar imune ao preconceito que a formulação antecipada de uma tese produz”. A atuação do juiz, neste
sentido, na fase pré-processual, é de fato um indício de tendência condenatória.

Michell Nunes Midlej Maron 121


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

3 . Consoante recente orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal,


seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua
caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade
administrativa.
4 . Ordem concedida, sendo determinado o trancamento da ação penal.”

Voltando ao artigo 28, este estabelece que o PGJ, quando entende de forma diversa
da que entendeu o membro que promoveu o arquivamento, vai oferecer ele próprio a
denúncia, ou vai designar um outro membro para fazê-lo (designação que, de fato, é
verdadeira delegação). Não poderá, contudo, designar o mesmo que oficiou pelo
arquivamento, pois seria crassa violação à independência funcional do promotor.
O PGJ pode escolher o membro, ao designar, pelo simples motivo de que quem for
escolhido atuará por delegação do PGJ. O STF julgou esta questão no processo que
decorreu da “Operação Anaconda”, da Polícia Federal.
Ao designar um outro membro para promover a ação penal, este não poderá se
negar a fazê-lo, mesmo se entender de forma diversa: a atuação do membro designada
decorre de delegação da atribuição do PGJ, ou seja, é como se o próprio PGJ estivesse
promovendo a denúncia. Este entendimento é praticamente unânime, apenas Paulo Rangel
levantando voz contra esta obrigatoriedade, por entender que também viola a independência
funcional.
Esta atribuição do PGJ é legal. No âmbito do MPF, porém, há que se considerar: a
CCR pode designar outro membro, mas esta designação não é de observância obrigatória,
para parte da doutrina. Isto porque a CCR não tem a mesma atribuição que o PGJ tem no
Estado, ou seja, a CCR não tem atribuição originária para promover, ela própria, a ação
penal; assim, a designação não é delegação, se não há o que delegar, simplesmente por não
haver tal atribuição (é o mesmo raciocínio que se aplica à ação civil pública).
Como a dinâmica do MPF é bastante diferente, vale traçar uma breve suma do
funcionamento nas diversas instâncias da Justiça Federal. O procurador da República
oficia, em primeira instância, perante o juiz federal. Este discordando da promoção de
arquivamento, remeterá para a CCR. Em segunda instância, a Procuradoria Regional da
República oficia junto ao TRF, e se o desembargador federal discorda da sua promoção,
remete os autos também à CCR. É na instância superior que a situação se modifica: a Sub-
Procuradoria-Geral da República atua perante o STJ, mas apenas nas ações cíveis, e não
nas ações penais: quem oficia perante o STJ, em ações penais, originalmente, é o PGR,
mas ele delega esta atribuição aos sub-procuradores. Da mesma forma se dá no STF.
Destarte, o requerimento de arquivamento pelo sub-procurador perante o STJ ou
STF não pode ser rejeitado por estas Cortes: simplesmente não há para quem remeter os
autos, pois os sub-procuradores já estão oficiando em nome do PGR, e o requerimento do
PGR é irrecusável, unilateral e irretratável, pois não há instância de controle, superior ao
PGR, no âmbito do MPF. Atuando o PGR, ou os sub-procuradores em seu nome, o
requerimento é, deveras, uma ordem. Veja:
“A manifestação formulada pelo Procurador-Geral da República, no sentido do
arquivamento de inquérito penal, possui caráter irretratável, não sendo, portanto,
passível de reconsideração ou revisão, ressalvada, no entanto, a hipótese de
surgimento de novas provas (INF. 345, INQ 2028, Pleno, por maioria).”

“O pedido de arquivamento de inquérito, fundado na ausência de elementos


informativos para o oferecimento da denúncia, requerido pelo Procurador-Geral da

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

República, é irrecusável pelo órgão judiciário. (HC 82.507-SE, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, 10.12.2002. (HC-82507).”

“Inquérito policial: arquivamento. Diversamente do que sucede no arquivamento


requerido com a anuência do Procurador-Geral da República e fundamento na
ausência de elementos informativos para a denúncia - cujo atendimento é
compulsório pelo Tribunal -, aquele que se lastreia na atipicidade do fato ou na
extinção da sua punibilidade - dados os seus efeitos de coisa julgada material - há
de ser objeto de decisão jurisdicional do órgão judicial competente: precedentes do
STF: prescrição consumada. (STF – INQ 1538/PR – Plenário, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence).”

No MPE, ao contrário, há diferenças. O requerimento do PGJ não tem força


obrigatória, não é irrecusável, porque o juiz poderá, aplicando o artigo 28 do CPP, remeter a
promoção ao controle do Colégio de Procuradores, órgão que tem esta atribuição revisora
sobre atos do PGJ, e que não existe no MPF. O artigo 12, XI, da Lei 8.625/93 apresenta esta
atribuição:

“Art. 12. O Colégio de Procuradores de Justiça é composto por todos os


Procuradores de Justiça, competindo-lhe:
(...)
XI - rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei
Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informações
determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição
originária;
(...)”

E como o MPE não atua nas instâncias superiores, STF e STJ, não há qualquer
problemática a ser resolvida, pois o controle é feito nos exatos termos do artigo 28, e
quando a promoção for originária do PGJ, o controle é dado ao Colégio de Procuradores.

2.1. Arquivamento do PIC – Procedimento Investigatório Criminal

O PIC, procedimento investigatório criminal no âmbito do MP, é arquivado de


forma diferente, semelhante ao arquivamento do inquérito civil: não há requerimento ao
juízo, e sim arquivamento direto pelo próprio membro do MP oficiante, sendo esta decisão
interna submetida a uma instância revisora também interna do MP (a CCR) –
diferentemente do inquérito, em que o controle da promoção é feita pelo juiz.

2.2. Hipóteses de arquivamento

A doutrina define três espécies de arquivamento: o expresso, o implícito e o


indireto. O arquivamento expresso é aquele em que o parquet expressamente o requer ao
juiz, e este pode acolhê-lo ou rejeitá-lo, aplicando o artigo 28 do CPP, sem mais
complicações. Os demais, contudo, merecem atenção especial.

2.2.1. Arquivamento implícito

Sobre o arquivamento implícito, de início, cabe ressaltar que este não é admitido,
quer pelo STJ, quer pelo STF. Todavia, em conceito, deve ser abordado. O arquivamento

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

implícito pode decorrer de uma denúncia ou mesmo de um arquivamento expresso. Decorre


de um arquivamento expresso na seguinte hipótese: suponha-se que há dois indiciados em
um inquérito. Se o MP requer, expressamente, o arquivamento para um deles, mas queda-se
silente em relação ao outro, para este indiciado que não foi mencionado terá ocorrido o
requerimento de arquivamento implícito: o juiz poderá aplicar o artigo 28 para ambos, se
entender necessário. Este se trata do arquivamento implícito subjetivo.
O arquivamento implícito é objetivo quando o silêncio do MP recair sobre fatos:
havendo mais de um fato criminoso em inquérito, se o MP pede arquivamento em relação a
um dos crimes, mas nada fala em relação ao outro, dar-se-ia o arquivamento implícito
objetivo.
O arquivamento implícito poderia decorrer também de uma denúncia: havendo
pluralidade de indiciados, se o MP oferece denúncia apenas em face de um deles, haveria o
arquivamento subjetivo implícito em relação ao outro, em face do qual o MP se omitiu. Em
relação a estes indiciados omitidos pelo MP, o juiz aplicaria o artigo 28 do CPP. Da mesma
forma, se o MP denuncia apenas um de vários crimes investigados, ficando inerte em
relação aos demais, haveria o arquivamento implícito objetivo.
Caberia queixa subsidiária em relação aos fatos ou indiciados que foram alvo de
omissão pelo MP? Veja, se há inércia do MP, haveria o surgimento da possibilidade de
queixa-crime para provocar a ação penal privada subsidiária da pública. e este é o
entendimento de Ada Pellegrini.
A consideração que deve ser feita é sobre a natureza rebus sic stantibus da decisão
de arquivamento do inquérito. Tornaghi traz esta definição, determinando que esta decisão
é eminentemente provisória, ou seja, se novas provas puderem alterar substancialmente a
conjuntura fática que até então, até o arquivamento, era vigente, poderá haver denúncia.
Sendo assim, se o arquivamento implícito fosse aceito, ocorreria a seguinte situação: sendo
arquivado implicitamente o inquérito, se o MP viesse a pretender aditar a denúncia para
suprir aquilo em que foi omisso, só poderia fazê-lo se provas materialmente novas
surgissem – pois o aditamento, de fato, é uma nova denúncia contra aquilo não constante
originalmente, e por isso deve seguir esta regra da teoria da substanciação, depreendida da
súmula 524 do STF, que será detalhada adiante.
Se, ao contrário, não se admitir o arquivamento implícito, o aditamento da denúncia
seria possível, mesmo que não houvesse prova materialmente nova – pois simplesmente
não houve arquivamento.
O STF e o STJ entendem que não pode existir arquivamento implícito, com base no
princípio da obrigatoriedade da ação penal. Como a ação penal é obrigatória, quando
fundamentada, deve ser promovida para todos. Se a denúncia exclui algum dos indiciados,
sem deles tratar em requerimento de arquivamento, o MP estará cindindo a ação, mas não
arquivando implicitamente. Por isso, pode-se dizer que, para o STF e o STJ, a ação penal
pública não é indivisível: a denúncia poderá ser aditada para fazer constar os demais
indiciados, por exemplo. Fosse indivisível, e a denúncia contra parte dos indiciados
implicaria em renúncia quanto aos demais, e a renúncia se estenderia a todos. Por isso, os
Tribunais superiores não admitem o arquivamento implícito – e na prática ele não ocorre.
Como já se asseverou, o fenômeno do arquivamento implícito não tem sido
reconhecido pelo STF ou STJ. Em sede doutrinária, quem melhor defendeu sua existência
foi Afrânio Silva Jardim, e Geraldo Prado e Polastri acolhem sua tese. O fundamento da
inaplicabilidade do arquivamento implícito decorre da incidência da obrigatoriedade da

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EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

ação penal pública. Segundo Ada Pellegrini, em relação ao fato omitido da denúncia ou do
requerimento expresso de arquivamento, caberia a queixa subsidiária, na forma do artigo 29
do CPP. E a súmula 524 do STF, segundo Afrânio, configura uma nova condição da ação,
quando o inquérito tiver sido arquivado com base em falta de provas suficientes à denúncia.

2.2.2. Arquivamento indireto

O arquivamento indireto ocorre na seguinte circunstância: o inquérito, ao ser


instaurado, é distribuído em juízo, fazendo prevento aquele em que cair, e fazendo oficiante
no feito o promotor lá vinculado. Suponha-se que este inquérito visa a apurar um crime de
adulteração de combustível, da Lei 8.176/91. Este crime, pacificamente tido por crime de
competência estadual, até pouco tempo tinha controvérsia sobre ser de competência da
Justiça Federal. Se, nesta época controvertida, o promotor estadual fosse partidário da
corrente que entende que a competência pertencia à Justiça Federal, faria uma promoção
requerendo ao juízo estadual processante que declinasse de sua competência para a Justiça
Federal. Este pedido de declínio é um pedido de arquivamento indireto (pois não requer o
arquivamento, e sim que seja dada a persecução a quem de direito).
Se o juiz estadual discorda do promotor, entendendo-se competente, surge um
dissenso entre eles, dissenso que além de ser sobre a competência, é também sobre a
atribuição daquele órgão do MP: o promotor se entende carente de atribuição, e o juiz
entende que o promotor tem tal atribuição. Neste caso, há o entendimento de que o
promotor promoveu o arquivamento indireto, e o juiz, discordando, aplica o artigo 28 do
CPP. É simples: o arquivamento indireto é uma criação pretoriana, decorrente de uma
integração analógica do artigo 28 do CPP. A solução do conflito entre o juiz que se achar
competente e o promotor que se achar sem atribuição para o processo, é aplicar o artigo 28,
remetendo a discussão ao PGJ, como já se abordou exaustivamente.
Mas suponha-se que o juiz concorde com o promotor, e decline de sua competência,
remetendo os autos para o juiz federal. Ao alcançar o juízo federal, o MPF é instado a se
manifestar. Suponha que, então, o procurador da República entenda que, ao contrário, a
competência é estadual, e promove igualmente o arquivamento indireto. O juiz federal,
acatando o manifesto do MP, declina de sua competência. Este é um conflito virtual de
jurisdição (sendo que, em essência, é um conflito de atribuição), pois o STF entende que os
respectivos juízos encamparam as teses dos membros do MP, e por isso será responsável
por resolvê-lo o STJ, órgão competente para dirimir conflitos entre Tribunais diversos.
Sintetizando: sempre que houver conflito virtual de jurisdição, decorrente do
requerimento de arquivamento indireto do inquérito por órgãos do MP vinculados a
Tribunais diversos, a solução incumbe ao STJ. Esta é a tese do STF26.
Vejamos outra hipótese: o promotor requer o declínio de competência ao juiz
estadual, entendendo-se sem atribuição; o juiz, discordando deste, entende que o MP
promoveu o arquivamento indireto e, aplicando o artigo 28 do CPP, remete ao PGJ; este, ao
invés de solucionar o conflito, remete os autos ao juiz federal, que por sua vez abre ao
MPF. O parquet federal, contudo, discorda do promotor estadual, e concorda com o juiz do
Estado que a competência é, de fato, estadual. Nesse caso, há um conflito real de
atribuição: o promotor estadual entende que não tem atribuição, e o MPF, igualmente,

26
Pode-se criticar a própria existência deste conflito virtual de jurisdição, o qual, na verdade, se trata mesmo
de um conflito de atribuição, sempre.

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

entende que não tem atribuição, e, a reboque, não se apresenta qualquer conflito virtual de
competência, pois o MPF, e no seu esteio o juiz federal, concordam com o juiz estadual.
Quem soluciona o conflito real de atribuição é o STF. Assim se manifestou o STF na
Petição 3.528/BA.
Resumindo: se há conflito real de atribuição, a solução incumbe ao STF; se há
conflito virtual de jurisdição, incumbe ao STJ. Para Fontelles, atual PGR, quem resolve o
conflito, qualquer que seja, é o próprio PGR, mas seu entendimento não tem base legal
(Afrânio defende que seria mesmo recomendável esta atribuição para o PGR, mas sabe-a
de lege ferenda).
É claro que se o conflito de atribuição for entre órgãos do mesmo MP – dois
promotores estaduais, por exemplo –, a solução fica dentro do órgão: no MPF, vai para a
CCR27; no MPE, para o PGJ.
Se o conflito for entre órgãos integrantes do MPU – MPF e MP do Trabalho, por
exemplo, a solução incumbe diretamente ao PGR.
Vale traçar um quadro esquemático:
Órgãos em conflito real de atribuição Solução

MPE vs. MPE de outro Estado STF

MPE vs. MPF STF

MPU vs outro órgão do MPU PGR

MPF vs. MPF CCR

Conflito virtual de jurisdição Solução

MPU vs MPE de outro Estado STJ

MPE vs. MPF STJ

2.3. Efeitos da decisão de arquivamento

A decisão de arquivamento, como dito, é rebus sic stantibus: esta decisão é sempre
contida estritamente pelas circunstâncias que a ensejaram. Por isso, supondo-se que a
decisão foi prolatada por ser entendida presente a falta de justa causa, se porventura ocorrer
alteração substancial nesta conjuntura, poderá haver denúncia posterior a esta decisão de
arquivamento. Este raciocínio provém da construção feita com base no artigo 18 do CPP, e
na súmula 524 do STF. Veja:

“Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade


judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder
a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.”
27
A decisão da CCR que se manifesta sobre conflito de atribuição é a única que é passível de recurso para o
PGR.

Michell Nunes Midlej Maron 126


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Súmula 524, STF: Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a


requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem
novas provas.”

As “novas pesquisas” a que se refere o artigo 18 do CPP são justamente para


verificar se as provas que são ligadas à situação que foi alvo de arquivamento são realmente
novas, substancialmente novas. Como já se mencionou, esta é a teoria da substância, da
substanciação da prova. Afrânio defende que esta súmula, de fato, cria uma nova condição
da ação para a ação penal que sobrevier a uma decisão de denúncia sobre o mesmo fato.
Há um outro ponto de vista sobre a teoria da substância, que diz respeito ao alcance
da decisão de arquivamento: determina que a decisão de arquivamento não atinge os fatos
que sequer foram investigados. Esta ótica parece bastante óbvia.
A diferença entre a súmula 524 do STF e o artigo 18 do CPP é que neste há expressa
autorização para que seja procedida investigação sobre a natureza da prova pretendida. Se
esta prova se demonstrar hábil para a propositura da ação, a súmula 524 consolida o
cabimento da ação.
Repare que, se fosse adotada a tese do arquivamento implícito, o aditamento só
poderia ser feito se novas provas surgissem, mas se não existir este arquivamento, a
obrigatoriedade da ação penal permite o aditamento.
Veja o entendimento do STJ:

“ESTELIONATO. UTILIZAÇÃO FRAUDULENTA DE CHEQUE.


DUPLICIDADE DE PROCEDIMENTO, ATRAVÉS DE DOIS INQUÉRITOS
POLICIAIS, UM DELES ARQUIVADO, OUTRO ENSEJANDO
OFERECIMENTO DE DENÚNCIA, SEM FATO NOVO. O arquivamento do
inquérito, a requerimento do Ministério Público, faz coisa julgada formal, somente
ensejando a reabertura do caso com novas provas (Súmula 524 do STF). Não
constitui fato ensejador da denúncia, após o arquivamento, a mera qualificação
diversa do crime, que permanece essencialmente o mesmo. Recurso de habeas
corpus provido para deferir-se a ordem e determinar-se o trancamento da ação
penal (STJ – RHC 3111/RJ – 5ª Turma, Rel. Min. Assis Toledo).”

“(...) novas provas são aquelas que produzem alteração no panorama probatório
dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento, e não aquelas,
apenas, formalmente novas” (STJ – APN 15/MS – Corte Especial, Rel. Min. Ciq
Flaquer Scartezzini).”

“RHC. PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO PARA


APURAR SUPOSTO CRIME DE ESTELIONATO. ARQUIVAMENTO DE
INQUÉRITO ANTERIOR, SOBRE OS MESMOS FATOS. NOTÍCIA DE NOVAS
PROVAS. REABERTURA DAS INVESTIGAÇÕES. POSSIBILIDADE (ART. 18
do CPP). O enunciado de n° 524 da Súmula do Col. Supremo Tribunal Federal
preconiza não ser possível o oferecimento da denúncia com base em inquérito
arquivado e desarquivado sem novas provas. Não se confunde, pois, com a
hipótese versada no art. 18 do CPP, que autoriza o desarquivamento de inquérito
policial, sendo suficiente para tanto a simples notícia de outras provas. Essa a
hipótese dos autos. Precedentes do STF e deste STJ. Recurso desprovido. (STJ –
RHC 10505/SP – 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca).”

Vale colacionar também julgado do STF que se presta a elucidar a questão:

Michell Nunes Midlej Maron 127


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Em se tratando de aplicação do art. 18 do CPP, não há necessidade da


apresentação de novas provas, mas visa esse dispositivo legal a possibilitar que se
efetuem diligências policiais pela notícia da existência de outras provas, ainda que
indiciárias, a fim de que, produzidas novas provas que modifiquem a matéria de
fato, se possa desarquivar o inquérito para o oferecimento da denúncia ou queixa
(STF – HC 79765/RJ – 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves).”

Quando o membro do MP, ao requerer arquivamento, o faz por entender que a


situação é atípica, ou seja, o fundamento da decisão de arquivamento pelo juiz é a
atipicidade da conduta, a situação é bem diferente. Esta decisão de arquivamento, ao invés
de ser rebus sic stantibus como a que arquiva por falta de provas, faz coisa julgada
material.
O STF assim entende, porque crê que há a incursão no mérito quando se pode
identificar claramente a atipicidade, e por isso estar-se-ia realizando um julgamento
antecipado da questão, já no cerne meritório – assim como a decisão que rejeita a denúncia
por atipicidade. Sendo este o caso, nem mesmo com novas provas poderia ser reaberta a
investigação pelos mesmos fatos. Vale lembrar que também quando a rejeição da denúncia
ou a decisão de arquivamento for por reconhecimento de excludente da ilicitude, a situação
é idêntica, e a coisa julgada é material. Veja:

“Não é possível a reabertura de inquérito policial quando este houver sido


arquivado a pedido do Ministério Público e mediante decisão judicial, com apoio
na extinção da punibilidade do indiciado ou na atipicidade penal da conduta a ele
imputada, casos em que se opera a coisa julgada material.” (HC 84156/MT, rel.
Min. Celso de Mello, 26.10.2004. HC-84156. (o arquivamento, nessa hipótese,
pressupõe decisão de mérito, capaz de gerar coisa julgada material).”

Outro aspecto a ser considerado é a decisão de arquivamento que foi prolatada por
juízo que depois se demonstrou constitucionalmente incompetente: seria esta decisão nula,
ou seria inexistente?
Ada Pellegrini defende que é inexistente, pois é uma hipótese de atipicidade
constitucional: trata-se de um ato praticado por quem não tem o permissivo constitucional
para tanto. Sendo assim, sendo inexistente a decisão de arquivamento, nada impediria que o
MP promovesse uma ação penal pelo mesmo fato.
O STF, de seu lado, entende que se a decisão prolatada por juiz incompetente
constitucionalmente versar sobre atipicidade ou extinção da punibilidade, será formada a
coisa julgada material, como visto, sem qualquer menção à inexistência.

2.4. Trancamento do inquérito

O STF entende que estas hipóteses de arquivamento por atipicidade ou exclusão da


ilicitude, se percebidas antes do efetivo requerimento do arquivamento, são casos em que se
admite o trancamento do inquérito. Este instituto do trancamento, mesmo não existindo
formalmente, tem os mesmos efeitos do arquivamento do inquérito, mas operados antes do
requerimento deste pelo MP. Em verdade, o trancamento seria uma afronta ao sistema
acusatório, porque retira do MP a possibilidade de manifestar-se sobre os fatos na
promoção de arquivamento, se assim entendesse: trata-se de verdadeira usurpação da
atribuição para o requerimento de arquivamento.

Michell Nunes Midlej Maron 128


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A decisão do trancamento faz coisa julgada material, pois que calcada nos motivos
que geram este efeito sobre o arquivamento – atipicidade ou excludente da ilicitude. Há um
caso particular em que, todavia, não se produziu esta coisa julgada material, e não se tratou,
no caso concreto, de trancamento, e sim de arquivamento: o advogado do réu apresentou ao
MP certidão de óbito do acusado, e, por isso, o MP requereu o arquivamento por excludente
(morte). Ocorre que sobreveio a ciência de que o atestado era falso: nesta hipótese, o STF
entendeu que não se fez coisa julgada, pois se tratou de valoração correta feita sobre
aspecto falso, ou seja, o inquérito foi indevidamente arquivado e não se pôde imprimir
coisa julgada material à decisão.

Casos Concretos

Questão 1

O Promotor de Justiça com atribuição requereu o arquivamento do inquérito


policial, em razão da atipicidade, com fundamento no artigo 43, I, CPP. O juiz concordou
com as razões invocadas e determinou o arquivamento do IP. Um mês depois, o próprio
promotor de justiça toma conhecimento de prova substancialmente nova, indicativa de que
o fato realmente praticado era típico. Poderá ser instaurada ação penal? Responda
fundamentando, inclusive, na Lei Orgânica do Ministério Público/RJ.

Resposta à Questão 1

A coisa julgada material que é formada na decisão de arquivamento do inquérito por


atipicidade impede a instauração.
Mas há que se consignar uma situação especial: a promoção de arquivamento por
atipicidade remonta aos fatos sobre os quais foram amealhadas provas até o momento da
promoção. Se, doravante, novas provas identificarem novos fatos, os quais forem
substancialmente diversos dos primeiros – ou seja, sequer foram investigados –, e for
identificada, agora, tipicidade em relação a estes novos fatos, nada obsta a propositura da
ação penal. É que a decisão exarada em apreço à atipicidade apenas fez coisa julgada em
relação aos fatos até então apurados, às provas até então encontradas, mas não sobre todos
os fatos ainda obscurecidos pela realidade. É uma outra forma de se encarar a teoria da
substanciação, mas, em verdade, se trata de um novo inquérito, e uma ação penal
absolutamente desvencilhada daquele inquérito outrora arquivado.

Questão 2

Determinado Promotor, valorando de forma equivocada fato praticado por dois


indiciados, ao examinar o inquérito, só denuncia um deles. Posteriormente, já em fase

Michell Nunes Midlej Maron 129


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

processual, outro Promotor, melhor examinando o feito, adita a denúncia para incluir
aquele não denunciado. O Juiz rejeitou o aditamento com base na Súmula 524 do STF.
Como deveria agir o Promotor e com que fundamento?

Resposta à Questão 2

Sendo inadmissível a tese do arquivamento implícito, o juiz errou ao aplicar a


súmula 524 do STF, que trata do arquivamento, em qualquer modalidade. O promotor
poderia, sim, aditar a denúncia, em atenção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal
pública.
Destarte, o promotor deveria recorrer da decisão de rejeição, e este recurso poderia
ser o da apelação supletiva, ou substitutiva, do artigo 593, II, do CPP, ou o recurso em
sentido estrito, se se entender que a decisão de não recebimento do aditamento é similar à
de não recebimento da denúncia, e que portanto consta do rol do artigo 581, I, do CPP, em
interpretação ontológica:

“Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença:


I - que não receber a denúncia ou a queixa;
(...)”

“Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:


(...)
II - das decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz
singular nos casos não previstos no Capítulo anterior;
(...)”

O STJ, no REsp 254.494, comungou do entendimento que defende o cabimento do


recurso em sentido estrito.

Michell Nunes Midlej Maron 130


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema XII

Ação penal condenatória. 1. Jus Puniendi em abstrato / em concreto. 2. Limitação à auto-executoriedade do


poder de punir do Estado (nulla poena sine iudicio). Fundamento constitucional da ação penal: artigo 5º,
XXXV e LIV, CF. 3. Artigo 98, I, da CF, Lei nº 9.099/95 (Juizados Especiais) e ação penal. 4. Conceito de
ação penal. Autonomia. Abstração. Condições da ação penal. Justa causa: Aspectos constitucionais. 5.
Classificação subjetiva da ação penal: 5.1. Ação penal pública: 5.1.1. incondicionada; 5.1.2. condicionada
à: a) representação do ofendido: b) requisição do Ministro da Justiça; 5.2. Ação penal privada.

Notas de Aula

1. Ação penal

A ação penal, assim como a ação cível, pode ser exercida de forma legítima e
regular, ou ilegítima e irregular. Será regular quando forem observadas as chamadas
condições para o regular exercício da ação.
Quando o MP constatar que estão presentes as condições da ação, promoverá a
denúncia, que é a peça exordial da ação penal pública. Ocorre que as categorias da teoria
geral do processo nem sempre são plenamente aplicáveis em processo penal, e pode-se dar
como exemplo as decisões que rejeitam a denúncia: poderiam ser semelhantes às decisões
de extinção sem resolução do mérito, do artigo 267 do CPC, mas há algumas, como já se
viu, que enfrentam o mérito – como a que rejeita por atipicidade da conduta 28. Mesmo por
isso, há quem defenda que o processo penal teria uma teoria geral própria, mas é corrente
sem muita expressão prática.
O que é essencial no estudo do direito de ação, em processo penal, é saber os
critérios de exercício legítimo, regular, e ilegítimo, irregular, e, quando irregular, saber que
se trata de um abuso do direito de agir.
As condições da ação penal são as mesmas do processo civil – legitimidade,
interesse jurídico e possibilidade jurídica –, mas há uma quarta: a justa causa. Para parte da
doutrina, entretanto, a justa causa se insere no interesse jurídico.

1.1. Classificações das ações penais

Há uma classificação pouco conhecida, que diz respeito à pretensão deduzida no


processo: em regra, as ações penais são condenatórias, pois o que se pretende é a aplicação
de uma pena, mas há ações penais não condenatórias: o HC e a revisão criminal, por
exemplo, cuja pretensão não é a aplicação de pena, mas sim a cessação da restrição
28
Há quem faça diferença entre a rejeição da denúncia e o não recebimento da denúncia: rejeição é termo que
deve ser empregado para a decisão que enfrenta o mérito – na atipicidade e excludente de ilicitude, portanto –,
e que desafiaria apelação; o não recebimento é a decisão que não enfrenta o mérito, apenas verificando as
condições da ação, e portanto desafiaria recurso em sentido estrito.

Michell Nunes Midlej Maron 131


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

supostamente indevida à liberdade, e a correção de uma condenação supostamente


indevida, respectivamente.
Outra classificação, esta sim bastante conhecida, é quanto à legitimidade para sua
propositura: a ação penal pública é incumbida ao MP, e a ação penal privada incumbe ao
ofendido, ou a quem o possa representar.

A queixa subsidiária, que dá inicio à ação penal privada subsidiária da pública,


poderia ser tida por inconstitucional, pois passa legitimidade a pessoa diversa do MP,
legitimado natural e exclusivo para a persecução de tais crimes, pelo artigo 129, I, da
CRFB, já transcrito. Todavia, a possibilidade desta ação foi eleita como hipótese
constitucionalmente admitida, pelo que não há inconstitucionalidade, se a norma que a
autoriza é oriunda do constituinte originário, no artigo 5°, LIX, da CRFB:

“(...)
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal;
(...)”

Assim, o artigo 29 do CPP, que trata desta ação, é constitucional, amparado nesta
norma do artigo 5°, LIX, da CRFB.
Veja que Sérgio Demoro entende que esta ação penal subsidiária, na verdade, é
impropriamente chamada de ação penal privada. Na verdade, ela continua sendo pública, na
essência, pois toda a principiologia que atine à ação pública continua incidente sobre ela:
apenas, e tão-somente, a legitimidade é passada ao particular, pela inércia do MP.
Justamente por isso, o querelante não pode portar-se contrariamente às normas
principiológicas das ações penais públicas: como exemplo, não pode dispor da ação, pois o
MP a tomará para si, se o fizer. Da mesma forma, se o querelante, em alegações finais,
pedir a absolvição do réu, e não a condenação, não ocorrerá perempção, e o juiz poderá
condenar, mesmo assim.
Não existe ação penal pública subsidiária da privada, porém. A persecução criminal,
neste caso, privilegia o interesse da vítima ou de quem a possa representar, não sendo dado
ao Estado, por via do MP, se imiscuir na legitimidade.
Há ainda a ação penal privada personalíssima, que só pode ser promovida pelo
próprio ofendido, não admitindo qualquer tipo de representação, e extinguindo-se com sua
morte. Hoje, apenas o crime de indução a erro essencial e ocultação de impedimento, do
artigo 236 do CP, é assim perseguido:

“Art. 236 - Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou


ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não
pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo
de erro ou impedimento, anule o casamento.”

Existe ainda a denominada ação penal pública subsidiária da pública, que consiste
na denúncia oferecida pelo MPF quando o MPE quedar-se inerte. Esta possibilidade consta
tanto do DL 201/67, já transcrito, quanto da Lei 7.492/86, no artigo 27:

Michell Nunes Midlej Maron 132


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 27. Quando a denúncia não for intentada no prazo legal, o ofendido poderá
representar ao Procurador-Geral da República, para que este a ofereça, designe
outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou determine o arquivamento
das peças de informação recebidas.”

Este dispositivo é altamente criticável, pois além de violar a independência e


autonomia funcional do MP, o PGR não tem ingerência na primeira instância, mas apenas
nas superiores, em relação ao crime de persecução estadual.

1.2. Ação penal nos crimes sexuais

A questão é complexa, e para solucioná-la, é necessária a atenção ao artigo 225 do


CP:

“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores (crimes contra os
costumes), somente se procede mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-
se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto,
tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende
de representação.” (parêntese nosso)

Assim, partamos da análise exemplar do estupro, do artigo 213 do CP, e de cada


hipótese de ação pena cabível em sua persecução.

- Se do estupro decorre lesão grave ou morte, o artigo 225 não o alcança, pois só se
refere aos delitos mencionados no capítulo anterior, como a forma qualificada está
no artigo 223 do CP, que se encontra dentro do mesmo capítulo do artigo 225, a
ação penal é pública incondicionada, pois é regra geral:

“Art. 223 - Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave:


Pena - reclusão, de oito a doze anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta a morte:
Pena - reclusão, de doze a vinte e cinco anos. “

- Se do estupro resulta lesão corporal leve, ou se há grave ameaça, se fosse adotado


o artigo 225 do CP literalmente, a ação penal seria privada, em atenção ao caput.
Mas o STF editou a súmula 608, que determina que:

“Súmula 608, STF: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação
penal é pública incondicionada.”

Assim, segundo a súmula, se houver lesão corporal de natureza leve, a ação


penal será pública incondicionada. O STF desenvolveu este raciocínio com base no
artigo 101 do CP, que trata da ação penal no crime complexo. Veja:

“Art. 101 - Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal
fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele,

Michell Nunes Midlej Maron 133


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do


Ministério Público.”

Exemplo claro de crime complexo é o roubo, que envolve violência ou grave


ameaça no antecedente, e subtração no conseqüente – ambas as condutas sendo
também crime, se isoladamente consideradas –; ou o latrocínio, que é a soma de um
roubo e um homicídio.
Para o STF, o estupro consiste em um tipo complexo, praticado mediante
violência ou grave ameaça, no antecedente, e a conjunção carnal no conseqüente.
Ocorre que há uma falha de concepção do STF: o segundo ato do estupro, a
conjunção carnal, não é um tipo penal se isoladamente considerado – e por isso não
seria crime complexo, não sendo sujeito ao artigo 101, e sim ao 225 do CP.
Surgiu outra discussão no STF: se o crime for cometido por coação moral,
sem violência real, a ação será privada. Note-se a desproporção: a mera lesão leve
transforma a natureza da ação.
E há ainda uma outra questão a ser abordada: após a súmula 608 do STF, a
Lei 9.099/95, no artigo 88, estabeleceu que as lesões leves e culposas são
perseguidas em ação penal pública condicionada. Sendo assim, a súmula 608,
quando aplicável, deveria ser relida, e ao estupro com violência real – lesão leve –,
conjugar com a previsão do artigo 88 desta lei, a fim de que a ação seja pública
condicionada à representação.

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

O STF, afinal, fez uma interpretação culminando no seguinte raciocínio: o


crime de estupro é tão grave para a vítima que seu cometimento sempre implica em
uma lesão grave, pois o trauma mental é tão severo, que desestabiliza a condição
física da mulher. Sendo assim, sempre que houver estupro, inclusive mediante
ameaça, a ação penal é pública incondicionada. Este é o entendimento exposto por
Ellen Gracie, no HC 81.360.

- Se a violência for presumida (presunção absoluta, segundo o STF29), nas hipóteses


do artigo 224 do CP, o crime se torna hediondo, e, segundo uma corrente
jurisprudencial, a ação é pública incondicionada, posto que o artigo 225 menciona
que a ação penal é privada apenas nos crimes previstos nos capítulos anteriores – e
o artigo 224 está no mesmo capítulo do artigo 225. Há outra corrente que, ao
contrário, entende que a ação penal é privada, simplesmente porque a violência não
é real, e sim presumida, e o argumento meramente topográfico não é suficiente para
fazer não incidir o artigo 225.

“Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:


a) não é maior de catorze anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.”
29
O que o STF admite é a possível ocorrência de erro de tipo, quando a vítima aparenta ser maior, por seus
atos e aparência física. Excluído o dolo, exclui-se a tipicidade.

Michell Nunes Midlej Maron 134


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Em resumo, o crime de estupro é de ação penal pública incondicionada, em


qualquer caso, para o STF; a doutrina, entretanto, se divide. Uns, como Tourinho
defendendo que não é crime complexo, e que por isso se aplica apenas o artigo 225; e
outros, como Ada Pellegrini, defendendo que deve haver leitura conjunta do artigo 88 da
Lei 9.099/95, se a lesão for leve.
Outro aspecto desta seara é a previsão do artigo 225, § 1°, I, do CP: se a vítima e
sua família forem hipossuficientes, a ação será pública condicionada à representação. A
Defensoria Pública entende que se trata de uma usurpação de atribuição sua, e por isso
defende a inconstitucionalidade deste dispositivo. A tendência, entretanto, é que não haja re
conhecimento de qualquer inconstitucionalidade, aqui, pois a publicização desta ação serve
para evitar ardis que poderiam ocorrer se a ação fosse privada.

1.3. Ação penal nos crimes contra a honra

Os crimes contra a honra, em regra, são de ação penal privada, como dita o artigo
145 do CP, ressalvando-se a legitimidade concorrente do ofendido e do MP, nos crimes
contra a honra de servidor público em razão de suas funções, como determina a súmula 714
do STF:

“Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante
queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Parágrafo único - Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do n.º I do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do
mesmo artigo.

“Súmula 714, STF: É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e


do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação
penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.”

Valendo-se dessa súmula, se o ofendido, ao invés de oferecer queixa, representa


para que o MP promova a ação, ele poderá se habilitar como assistente. Todavia, ao fazê-lo,
sua posição no processo seria, em regra, subordinada à atuação do MP, como deixa clara a
súmula 208 do STF:

“Súmula 208, STF: O assistente do Ministério Público não pode recorrer


extraodinariamente, de decisão concessiva de habeas corpus.

Ocorre que, neste caso particular, o assistente não é a figura típica: se havia
legitimidade concorrente para promover a ação penal privada, e se nesta ação poderia
recorrer, não poderia, por ter escolhido a via pública, sofrer prejuízo pela sua opção. Por
isso, o STF entende que, neste caso, o assistente poderá recorrer (posto que está sujeito a
uma especial sucumbência reflexa, aqui).

1.4. Ação penal nos crimes contra a ordem tributária

Nos crimes contra a ordem tributária, previstos no artigo 1° da Lei 8.137/93, o STF
entendeu que o exaurimento da via administrativa é uma condição objetiva de

Michell Nunes Midlej Maron 135


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

procedibilidade. Já no artigo 2° deste diploma, os crimes são formais, e por isso não seria
aplicável esta condição objetiva. Veja:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou


contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo
operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer
outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva
saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento
equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente
realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10
(dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor
complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência,
caracteriza a infração prevista no inciso V.”

“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:


I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou
empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de
tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria
recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer
percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição
como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou
parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao
sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela
que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”

O STF tratou da questão no HC 81.611, e assim se posicionou por entender que se a


discussão administrativa versa justamente sobre a existência da matéria do delito – o
crédito em si –, é razoável que seja exaurida a discussão antes de iniciada a ação penal.
Veja:

“EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º):
lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo:
falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição
enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora
não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571),
falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L.
8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do
processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo
uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por
outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do
tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e

Michell Nunes Midlej Maron 136


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura


da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para
questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se
devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo
criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo
administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a
ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.”

Diversas ações carentes desta condição de procedibilidade têm sido propostas, e


alvejadas por HC. Ocorre que, quando este HC é negado, sucede um novo writ, agora
contra a última decisão, denegatória do HC original. E esta dinâmica se repete até o STF.
Lá chegando, há que se atender ao que dita a súmula 691 da Magna Corte:

“Súmula 691, STF: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas
corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a
Tribunal Superior, indefere a liminar.”

Entretanto, nada obsta que se o STF verificar, ao julgar este HC, que a ilegalidade é
flagrante – como o é, quando carece da condição de procedibilidade –, conceda um HC de
ofício, o que tem sido a saída muitas das vezes.
De fato, este precedente – a exigência de esgotamento administrativo antes da ação
penal – foi estendido pelo STF à instauração de inquérito: agora, não só por flagrante
atipicidade ou excludente de ilicitude o inquérito pode ser trancado, mas também quando,
nos crimes tributários, o crédito não tiver sido constituído irrecorrivelmente na esfera
administrativa.
Como curiosidade, a mesma situação se repete para o crime de apropriação
indébita previdenciária, do artigo 168-A do CP: o exaurimento da via administrativa é
imperativo.

“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas


dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à
previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a
terceiros ou arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado
despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de
serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já
tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e
efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as
informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou
regulamento, antes do início da ação fiscal.
§ 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o
agente for primário e de bons antecedentes, desde que:
I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o
pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou
II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior
àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o
mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.”

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ocorre que, para fazer sentido, o STF entendeu que este crime omissivo é uma
espécie extremamente peculiar de crime omissivo de resultado. A Justiça Federal tem
julgados que ignoram esta posição do STF, por crê-la absurda: as vias administrativa e
judicial não podem se comunicar jamais, para esta vertente.
O pagamento do débito que enseja a ação extingue a punibilidade a qualquer tempo.
Mas e se o réu parcelar a dívida? Se já há denúncia, a ação ficará suspensa até a quitação;
mas se não há denúncia, o inquérito ficará obstado: será trancado, assim como se faz
quando há o pagamento.

1.5. Ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça

Tanto a representação do ofendido quanto a requisição do Ministro da Justiça


servem como limitador objetivo da atuação do MP: o parquet fica vinculado aos fatos, e
não às pessoas contra quem se representou ou requisitou.
A diferença é que a requisição não tem prazo decadencial, e é um ato
eminentemente político; e, além disso, tem uma seriedade tal que não é admitida a
retratação. Na representação, há prazo decadencial de seis meses; o ato é de interesse
privado; e a retratação é admitida.

Michell Nunes Midlej Maron 138


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Casos Concretos

Questão 1

ELESBÃO é rico industrial e vive, há quinze anos, portanto em união estável, com
Polifênia, que tem uma filha de seu anterior casamento, a qual está com dezessete anos de
idade. Elesbão sempre zelou pela filha da companheira, provendo, desde que ela era
criança, sua educação e demais necessidades materiais, além de orientá-la moralmente.
Entretanto, Elesbão, há dois meses, estuprou a jovem, a qual, desesperada e sem o apoio
da mãe, pediu providências à autoridade policial, sendo atendida. Encerradas as
investigações, o Ministério Público, convencido da existência de justa causa, propôs a
ação penal com total observância do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal.
Você é o juiz. Profira a decisão que reputar adequada.

Resposta à Questão 1

A ação penal é pública incondicionada, porque se subsume à exata previsão do


artigo 225, II, do CP, sequer sendo necessária a presunção da violência: a violência foi real.

Questão 2

Na Comarca de Casimiro de Abreu, a menina Maria, filha de rico fazendeiro, com


onze anos de idade, é vítima de atentado violento ao pudor, tendo como autor seu vizinho
Renato, com dezenove anos de idade, sendo certo que a menina consentiu com a prática
dos atos libidinosos, não tendo Renato se utilizado de grave ameaça ou violência real.
Após regular inquérito policial, o Promotor de Justiça oferece denúncia e ao final o réu é
condenado. Em tempestivo recurso de apelação, como preliminar, alega o apelante
nulidade por ilegitimidade ativa do Ministério Público, pois o caso seria de ação penal
privada.
Como relator, decida.

Resposta à Questão 2

Se não se aplica a súmula 608 do STF, dada a inexistência de violência real. A regra
a ser observada é a dos artigos 224 e 225 do CP: a norma determina que os crimes contra os
costumes são, regra geral, perseguidos em ação penal privada. Há um argumento, porém,
que diz que a alocação topográfica do artigo 224 faria não incidir o artigo 225 do CP, pois
que menciona que os crimes dos capítulos anteriores são perseguidos em ação penal
privada – e o artigo 224 está no mesmo capítulo, furtando-se à incidência do artigo 225.
Outrossim, o TJ/RJ tem manifestado entendimento de que a combinação dos artigos
213 e 224 traduz a formação de um novo tipo penal especial, e que, este tipo sendo alheio
aos capítulos anteriores – e sendo hediondo – a ação penal é pública incondicionada.
Desasiste, portanto, razão ao apelante: o MP é legitimado.

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Questão 3

João, operário da construção civil, agride sua mulher, Maria, causando-lhe lesão
grave. Instaurado inquérito policial, este é concluído após 30 dias, contendo a prova da
materialidade e da autoria, e remetido ao Ministério Público. Maria, então, procura o
Promotor de Justiça e pede a este que não denuncie João, pois o casal já se reconciliou, a
lesão já desapareceu e, principalmente, a condenação de João (que é reincidente) faria
com que este perdesse o emprego, o que deixaria a própria vítima e seus oito filhos
menores em situação dificílima, sem ter como prover sua subsistência. Diante de tais
razões, pode o MP promover o arquivamento?

Resposta à Questão 3

A ação penal é indisponível, e a isto se resume a questão: o MP não poderá dela


desistir, debalde os efeitos que a condenação do réu-provedor poderá ter na família.

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Tema XIII

Ação penal pública incondicionada e condicionada - princípios: 1. Legalidade ou obrigatoriedade. Juizados


Especiais: mitigação? 2. Indisponibilidade. 3. Oficialidade. 4. Intranscendência. 5. Indivisibilidade. 6.
Denúncia.

Notas de Aula

1. Ação penal pública

As condições para o regular exercício da ação penal são as já consabidas


legitimidade, interesse e possibilidade, somadas à justa causa e às condições especiais de
procedibilidade, quando exigidas – a representação do ofendido e a requisição do Ministro
da Justiça.
A ação penal se divide, como se sabe, em dois grandes grupos – as privadas e as
públicas. O objeto do estudo, aqui, concentra-se na ação penal de natureza pública.
A ação penal é o direito de provocar a jurisdição, que é inerte até então. É o direito
de provocar o Judiciário para a prestação da jurisdição. A ação penal se classifica,
tradicionalmente, de acordo com o critério subjetivo, acerca do sujeito ativo da ação penal:
quando o domino litis for um órgão público – o MP –, a ação penal é pública; quando o
titular da ação for o particular, a ação penal é privada.
O artigo 100 do CP determina que a regra é que a persecução dos crimes seja feita
em ação penal pública. Quando a lei consignar expressamente que a ação penal é de outra
natureza, assim será; do contrário, em nada dizendo, a ação penal é pública.

“Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara
privativa do ofendido.
§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a
lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.
§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de
quem tenha qualidade para representá-lo.
§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o
Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.
§ 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão
judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão.”

A opção por dar a persecução à ação penal privada ou pública é uma questão de
política criminal: aquelas infrações penais que têm maior relevo à sociedade são dadas à
regra geral; aquelas em que se sobressai o interesse privado, são dadas à persecução
privada; àquelas em que se equivalem interesse público e privado, compartilha-se a
iniciativa: é pública condicionada à representação privada.
Assim, já se nota a divisão que existe dentro da própria ação penal pública: pode ser
incondicionada ou condicionada à representação. A ação penal pública incondicionada é
aquela que não demanda nenhuma das condições especiais que se mencionou –
representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça – bastando as demais

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

condições genéricas, atinentes a todos os casos de ação penal pública (interesse,


legitimidade, possibilidade e justa causa).
A ação penal pública condicionada, ao contrário, demanda uma das mencionadas
condições especiais de procedibilidade.
A doutrina ainda admite a chamada ação penal pública popular: trata-se da
denúncia que pode ser proposta por qualquer pessoa do povo, contra crime de
responsabilidade praticado por autoridades federais, estaduais ou municipais. Esta ação está
prevista na Lei 1.079/50, no artigo 14:

“Art. 14. É permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou


Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos
Deputados.”

Há quem defenda, como Guilherme Nucci, que não se trata propriamente de uma
denúncia, o termo tendo sido empregado com a conotação de notitia criminis, noticia do
crime. Parece tese coerente.
Há ainda a ação penal pública subsidiária da pública: nesta ação, o MPF pode
promover a denúncia, quando o MPE se quedar inerte, e é prevista no artigo 2°, § 2°, do DL
201/67 – nos crimes de responsabilidade praticados por prefeito:

“Art. 2º O processo dos crimes definidos no artigo anterior é o comum do juízo


singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal, com as seguintes
modificações:
(...)
§ 2º Se as previdências para a abertura do inquérito policial ou instauração da ação
penal não forem atendidas pela autoridade policial ou pelo Ministério Público
estadual, poderão ser requeridas ao Procurador-Geral da República.
(...)”

1.1. Princípios da ação penal pública

1.1.1. Oficialidade

O princípio da oficialidade nada mais é do que a necessária entrega da ação penal


pública a um órgão oficial, qual seja, o MP. Assim, é por conta do princípio da oficialidade
que o MP é o domino litis da ação penal pública.

1.1.2. Obrigatoriedade

A obrigatoriedade, ou legalidade da ação penal pública, determina que, preenchidas


as condições da ação penal pública, o MP estará obrigado a oferecer a denúncia, não
contado com qualquer discricionariedade nesta promoção.
Não estando presentes as condições – uma delas, ao menos –, será caso de
arquivamento, que também se rege ela obrigatoriedade, só que na via oposta: se as
condições não estão presentes, o arquivamento é mandatório.
A fiscalização da obrigatoriedade é incumbência do juiz: é ele quem vai, de forma
anômala, funcionar como fiscal da obrigatoriedade da ação penal pública, pela norma que

Michell Nunes Midlej Maron 142


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

permite que discorde da promoção de arquivamento, contida no já dissecado artigo 28 do


CPP.
Verificando o MP que há manifesta excludente de ilicitude, será obrigatória a
denúncia? Melhor dizendo, é bastante a presença de um fato típico para tornar a denúncia
obrigatória, ou é necessária a existência de um fato criminoso, de um injusto penal (fato
típico e antijurídico)?
É pacífico o entendimento doutrinário, hoje, de que a excludente de ilicitude é
suficiente para fundamentar um pedido de arquivamento, ou seja, para que haja a
obrigatoriedade da denúncia, é necessário o injusto penal, e não o mero fato típico. Este
entendimento decorre de uma leitura literal do artigo 43, I, do CPP:

“Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:


I - o fato narrado evidentemente não constituir crime;
(...)”

Havendo dúvida acerca da formação do injusto penal, ou seja, havendo dúvida sobre
a existência ou não de uma excludente da ilicitude, o promotor deverá denunciar: aqui vige
o princípio in dubio pro societatis, que pode ser percebido na utilização, pelo legislador, do
termo “evidentemente” neste dispositivo transcrito.
Da mesma forma, se for percebida alguma excludente de culpabilidade, tal como
uma inexigibilidade de conduta diversa, o crime se desnatura; não havendo o
preenchimento do crime, não pode haver denúncia: é necessário que haja o fato criminoso,
e não o fato meramente típico.
Este raciocínio não pode ser transportado para o inquérito policial: o delegado
deverá instaurá-lo, mesmo percebendo uma excludente da ilicitude, pois a mensuração da
sua existência é dada ao MP e ao juiz. Assim se pode depreender do artigo 310 do CPP:

“Art. 310. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente
praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá,
depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória,
mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de
revogação.
Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo
auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que
autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).”

Esta regra poderia criar uma situação absurda: o agente policial, em franco combate
com criminosos, ao balear um deles e matá-lo, teria contra si instaurado inquérito policial,
pois mesmo sendo flagrante a excludente da ilicitude – legítima defesa –, a regra geral
apresentada não dá esta valoração ao delegado. Todavia, salvaguardando esta atuação
policial em enfrentamentos, há regra expressa, constante do artigo 292 do CPP:

“Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em
flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que
o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer
a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
(grifo nosso)”

Michell Nunes Midlej Maron 143


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Sendo este o caso, não será instaurado o inquérito, mas sim o instrumento chamado
auto de resistência, em que se consignarão as exatas circunstâncias em que se deu a atuação
policial em excludente.
1.1.3. Indisponibilidade

Este princípio, na verdade, é um consectário da obrigatoriedade, e diz respeito à


impossibilidade de que a ação penal pública, uma vez iniciada, venha a sofrer desistência
por parte do MP. Oferecida a denúncia, o MP não pode desistir da ação penal. O artigo 42
do CPP dita a regra:

“Art. 42. O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.”

Não fosse assim, a obrigatoriedade não teria qualquer sentido: proposta a ação
penal, bastaria ao MP dela desistir logo em seguida, e a obrigatoriedade não teria tido
qualquer efeito.

1.1.4. Divisibilidade

A ação penal pública pode ser dividida em relação aos co-autores do crime, ou seja,
nada impede que haja uma denúncia para cada co-autor.
Esta é a posição majoritária, do STF e Pacelli, inclusive, mas é polêmica. O STF, no
HC 74.661, assim se manifestou:

“HABEAS CORPUS - TRÁFICO DE ENTORPECENTES - EXECUÇÃO DA


PENA EM REGIME FECHADO - CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, §
1º, DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS - TARDIA ARGÜIÇÃO DE INÉPCIA
DA DENÚNCIA - REEXAME DE PROVA - INIDONEIDADE DO WRIT
CONSTITUCIONAL - PEDIDO INDEFERIDO. TRÁFICO DE
ENTORPECENTES - CUMPRIMENTO INTEGRAL EM REGIME FECHADO -
LEI Nº 8.072/90 (ART. 2º, § 1º) - CONSTITUCIONALIDADE. - O Plenário do
Supremo Tribunal Federal proclamou a inteira validade jurídico-constitucional da
norma inscrita no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90 que impõe ao traficante de
entorpecentes, sem qualquer exceção, o cumprimento integral da pena em regime
fechado. O traficante de entorpecentes está sujeito, em face da natureza da infração
que praticou, ao regime penal fechado imposto pela Lei nº 8.072/90.
ENTORPECENTE - PEQUENA QUANTIDADE - CONFIGURAÇÃO PENAL
DO DELITO. - Não descaracteriza o delito de tráfico de substância entorpecente o
fato de a Polícia haver apreendido pequena quantidade de tóxico em poder do réu.
Precedentes. INÉPCIA DA DENÚNCIA - MOMENTO DE SUA ARGÜIÇÃO. -
Eventuais defeitos da denúncia devem ser argüidos pelo réu antes da prolação da
sentença penal, eis que a ausência dessa impugnação, em tempo oportuno,
claramente evidencia que o acusado foi capaz de defender-se da acusação contra
ele promovida pelo Ministério Público. Doutrina e Precedentes. DEFESA DO RÉU
- IMPUTAÇÃO DE FATO PRECISA E DETERMINADA - IRRELEVÂNCIA DA
CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA. - O réu se defende da imputação de fato contida
na denúncia, e não da classificação jurídica eventualmente incorreta feita pelo
Ministério Público na peça acusatória. - A possibilidade de ocorrência de nova
definição jurídica do fato delituoso não justifica a aplicação da norma inscrita no
art. 384, parágrafo único, do CPP, desde que essa nova definição encontre apoio
em circunstância elementar contida, explícita ou implicitamente, na própria
denúncia. O PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE NÃO SE APLICA À AÇÃO

Michell Nunes Midlej Maron 144


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

PENAL PÚBLICA. - O princípio da indivisibilidade - peculiar à ação penal de


iniciativa privada - não se aplica às hipóteses de perseguibilidade mediante ação
penal pública. Precedentes. REEXAME DA PROVA - MATÉRIA ESTRANHA
AO HABEAS CORPUS. - O habeas corpus constitui remédio processual
inadequado para a análise da prova, para o reexame do material probatório
produzido, para a reapreciação da matéria de fato e, também, para a revalorização
dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento.
Precedentes.” (grifo nosso)

Parte da doutrina, porém, entende que a ação penal pública é indivisível, pois a
denúncia é obrigatória contra todos os co-autores, pois o que se passa quando o MP deixa
de oferecer a denúncia contra um dos co-autores do crime é o chamado arquivamento
implícito, já estudado.
Assim, a correlação é clara: quem entende que não existe o arquivamento implícito,
defende que há divisibilidade, pois se oferecida denúncia contra alguns co-réus, e não
oferecida contra outros, nada impede que esta seja, posteriormente, oferecida contra os
remanescentes – pois não se deu arquivamento; e para quem entende que a denúncia que
exclui alguns dos co-autores do crime representa arquivamento implícito, entende que a
ação penal é indivisível, portanto, sendo impossível nova denúncia contra os que não foram
denunciados. E a absoluta maioria dos juristas, e inclui-se aí o STF, entende inexistir
arquivamento implícito – e portanto adota a divisibilidade da ação penal pública.
O arquivamento implícito, de fato, é teoria pouco factível, tanto que o próprio artigo
28 do CPP exige que o juiz, ao valorar o pedido de arquivamento, o faça com base nas
razões deste – e não há razões em arquivamento implícito. Conseqüentemente, o juiz que
arquiva ou rejeita o arquivamento estará prolatando decisão não fundamentada, o que e
inconstitucional. E Ada Pellegrini ainda aduz um outro argumento: no arquivamento
implícito, o que se passa é uma inércia do promotor, pois ele não oferece denúncia, nem
arquiva expressamente, nem comanda diligências – e desta inércia surge o direito à queixa
subsidiária pelo ofendido. Entender que há arquivamento implícito é retirar o direito a esta
queixa subsidiária.

1.1.5. Intranscendência

Este é um princípio comum a qualquer tipo de ação penal: todas as ações penais são
intranscendentes, e não somente a pública. Todos os princípios até agora vistos são opostos
quando vistos na ação penal privada, mas a intranscendência é comum.
Ser intranscendente significa que a ação penal não pode ultrapassar a pessoa do réu:
caso este venha a falecer, não poderá a ação penal prosseguir contra seus herdeiros: a ação
morre com o réu.
As ações civis, ao contrário, como se sabe, são transcendentes, em regra: os direitos
ali reclamados são transferidos aos herdeiros.
O artigo 5°, XLV, da CRFB, assim estabelece:

“(...)
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de
reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei,
estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do
patrimônio transferido;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 145


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A pena de multa penal é igualmente intranscendente, pois não se subsume ao


critério da intranscendência ali traçado: não se trata de reparação de dano, tampouco de
decretação de perdimento de bens – é sanção penal.

2. Denúncia

A denúncia é a petição inicial da ação penal pública. Seu conteúdo é descrito no


artigo 41 do CPP:

“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas
as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se
possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das
testemunhas.”

Estes são os requisitos essenciais da denúncia, mas este rol é exemplificativo,


podendo haver outros elementos a preencher esta peça.
As circunstâncias a serem descritas são de meio, lugar, modo de execução,
qualidade da vítima, e tudo o mais que for atinente ao crime. É a isso que se refere a
exposição do fato com todas as suas circunstâncias. Esta exigência faz atendido um
princípio basilar: o da ampla defesa.
Veja: como o réu se defende de fatos, é fundamental que haja a exaustiva descrição
dos fatos a si imputados, para que ele possa exercer a correta defesa. A imputação genérica,
se fosse possível, tornaria praticamente impossível a ampla defesa e o contraditório, pois o
réu não saberia ao certo quais as circunstâncias fáticas a si imputadas.
A denúncia que não contiver um destes requisitos do artigo 41 do CPP, um destes
elementos essenciais, é tida por inepta, não sendo hábil a provocar a jurisdição.
Havendo concurso de pessoas, a denúncia deverá individualizar precisamente a
conduta e os fatos referentes a cada um dos acusados. Não pode haver a descrição genérica
do ocorrido, devendo ser especificada a exata participação de cada um dos agentes
imputados. Mas existe uma exceção: no crime multitudinário, em que há uma grande gama
de pessoas envolvidas, a delimitação precisa de cada conduta pode ser impossível, mas não
por isso haverá impunidade. Um bom exemplo e nos crimes societários, em que no cerne
de uma pessoa jurídica há envolvimento de uma grande gama de pessoas, sócios e
administradores. Neste caso, o STF admite a denúncia genérica, com detalhamento geral
dos fatos, sem exigir particularização a cada um dos imputados.

2.1. Imputação alternativa

Consiste na descrição de fatos que podem ensejar a condenação em uma ou outra


imputação penal. Veja: os mesmos fatos narrados podem configurar um ou outro crime, e a
denúncia, para açambarcar todas as hipóteses, fará constar ambas as classificações, pedindo
que haja condenação em uma ou outra.
Afrânio Silva Jardim defende a possibilidade desta imputação alternativa, mas é
posição minoritária. O STF refuta seu cabimento porque seria avilte direto à ampla defesa,
na medida em que a imprecisão da imputação dificultaria a identificação das teses de ataque
da denúncia.

Michell Nunes Midlej Maron 146


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O argumento de Afrânio, porém, é forte: para ele, o sistema admitiria a imputação


alternativa, mesmo porque a mutatio libeli, do artigo 384, parágrafo único, seria um claro
exemplo de imputação alternativa superveniente: se o promotor adita a denúncia, surge a
imputação aditada e a original, uma ao lado da outra, e o juiz poderá condenar por uma ou
por outra.
A imputação alternativa será objetiva quando a variação se der de um para outro
crime; quando se der de um para outro réu, ou seja, condenação de um ou outro réu, a
imputação alternativa é subjetiva. Exemplo de imputação subjetivamente alternativa é o das
lesões recíprocas: aquele que primeiro for constatado como agressor estará incurso na lesão
corporal, e o segundo será absolvido por legítima defesa.

2.2. Pedido

O pedido na denúncia, em regra, é pela condenação do acusado. Há duas exceções:

- Na denúncia por crime doloso contra a vida, o pedido é pela pronúncia, pois a
condenação só será pedida ao Júri, quando do libelo.

- Na denúncia de acusado inimputável, o pedido é pela absolvição imprópria, pois a


narrativa identifica um fato típico e antijurídico, mas como não é culpável, não se
pede condenação, mas sim a aplicação de medida de segurança, na sentença que
será absolutória imprópria.

2.3. Prazo

O prazo para oferecimento de denúncia consta do artigo 46 do CPP:

“Art. 46. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5
dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do
inquérito policial, e de 15 dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso,
se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo
da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos.
§ 1o Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o
oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de
informações ou a representação
§ 2o O prazo para o aditamento da queixa será de 3 dias, contado da data em que o
órgão do Ministério Público receber os autos, e, se este não se pronunciar dentro
do tríduo, entender-se-á que não tem o que aditar, prosseguindo-se nos demais
termos do processo.”

2.4. Aditamento à denúncia

Aditar é acrescentar, incluir novos fatos ou novas pessoas, e por isso o aditamento
pode ser objetivo, quando se refere a fatos, ou subjetivo, quando se refere a pessoas.
O aditamento deve ser tratado, para todos os efeitos, como uma nova denúncia.
Assim, deve preencher todos os requisitos essenciais da denúncia, previstos no já abordado
artigo 41 do CPP.
O aditamento pode ser provocado ou espontâneo: será espontâneo quando o MP,
tomando ciência do fato novo ou da nova autoria, promove a suplementação, fazendo o

Michell Nunes Midlej Maron 147


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

aditamento por sua conta. De outra forma, o aditamento provocado será aquele que for
realizado mediante requerimento ou notificação, como no caso da mutatio libeli, do artigo
384, parágrafo único, do CPP. Veja:

“Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato,


em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não
contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo,
a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova,
podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe
aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério
Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido
instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo
de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.”

Auri Lopes Júnior, isoladamente, defende a inconstitucionalidade deste dispositivo,


da mutatio libeli, por entender que é violação ao sistema acusatório, é imparcialidade do
juiz, que ao provocar o aditamento está claramente dando a entender que sua decisão será
condenatória.
Apesar de o STF não entender que haja inconstitucionalidade, a regra, entretanto é
que o aditamento seja espontâneo, pois é o que mais se adequa ao sistema acusatório. Por
isso, quando o MP verificar necessidade de aditamento, não deverá solicitar ao juiz que
abra vista para aditamento: deverá aditar por sua conta.

Casos Concretos

Michell Nunes Midlej Maron 148


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Questão 1

Ana, com dezoito anos de idade, é vítima de crime de estupro praticado mediante
grave ameaça, exercida com emprego de arma de fogo. Logo após o crime, chegando em
sua humilde casa, narra o fato a seu pai João, operário da construção civil, e este vai
imediatamente a DP local comunicar o fato. Ali a autoridade policial reduz a termo a
representação oferecida por João. Instaurado o inquérito policial e colhido o acervo
probatório necessário, resta oferecida a denúncia.
Pergunta-se:
a) Qual a espécie de ação penal?
b) Diante da redação do artigo 5º da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código
Civil), poderia João oferecer representação?
c) Como deve proceder o juiz caso entenda que João não poderia oferecer a
representação. Indique o fundamento legal.

Resposta à Questão 1

a) A ação é pública condicionada à representação, como dispõe o artigo 225, I, do


CP. Houve apenas grave ameaça, e não a violência real, que faria incidir a
súmula 608 do STF.

b) Não. A representação deve ser de Ana, que é civilmente capaz aos dezoito anos,
não mais vigendo a menoridade de vinte e um anos, como dantes: a legitimidade
do pai, trazida pelo artigo 34 do CPP, não mais está em vigor.

c) O juiz deverá rejeitar a denúncia que foi oferecida, por carência da condição
especial de procedibilidade consistente na representação da vítima – artigo 43,
III, do CPP, parte final. Se a representação for suprida, pode haver nova
denúncia.

“Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:


I - o fato narrado evidentemente não constituir crime;
II - já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa;
III - for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o
exercício da ação penal.
Parágrafo único. Nos casos do no III, a rejeição da denúncia ou queixa não obstará
ao exercício da ação penal, desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a
condição.”

Questão 2

MARIA, mãe de ANTÔNIA, com 13 anos de idade, apresenta-se ao Defensor


Público da 36ª Vara Criminal e narra que JOÃO, com 19 anos, namorado de sua filha,
estava preso na 1ª Delegacia Policial porque, dois dias antes, ao chegar em casa, flagrou-
o praticando coito anal com sua filha, tendo chamado a Polícia, que lavrou o flagrante e o
encaminhou para aquela vara criminal. Dizia MARIA que estava arrependida de ter dado
"queixa" contra JOÃO, que fizera bobagem, mas sua filha também era "culpada" e eles
queriam morar juntos, até a vida melhorar e depois casariam. Narrou, igualmente, que

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

tinha ido à Delegacia pedindo para soltar JOÃO, mas os policiais lhe disseram que "era
tarde" porque o flagrante já estava em juízo, e por isso ela estava ali. Diligenciando,
verificou o defensor que em juízo havia apenas a comunicação da prisão e a respectiva
cópia do flagrante.
O que deve fazer o Defensor Público para atender o pedido da mãe aflita?

Resposta à Questão 2

A ação penal é pública condicionada à representação, pois a vítima é pobre, e se


aplica o artigo 225, § 1°, I, do CP. Assim, a mãe da vítima, representante legal, idoneamente
representou pela persecução do crime na delegacia. Antes do oferecimento da denúncia,
como se encontra o caso, nada obsta, então, que a mãe da vitima se retrate da representação
feita, e por isso, sendo feita esta retratação, a manutenção da prisão se torna ilegal: por
conta desta ilegalidade superveniente na prisão, o autor do delito deve ser imediatamente
solto, sua prisão devendo ser relaxada, como determina o artigo 5°, LXV, da CRFB.

Questão 3

João, dono de um hotel numa cidade do interior do Estado, comparece à delegacia


de polícia informando ao delegado que, na noite anterior, José, morador da cidade, teria
se hospedado em seu estabelecimento, pernoitando e realizando 2 refeições. Por fim,
informou João que, pela manhã, seus empregados, ao realizarem a vistoria nos quartos,
constataram que José, não tendo dinheiro para pagar as despesas, abandonou o local
normalmente, sem nem mesmo cumprimentar os porteiros. Diante da expressa
manifestação de João no sentido de ver os fatos serem apurados, o delegado instaura
inquérito e descobre que, na verdade, havia mais 3 pessoas naquela noite no quarto com
José, sendo estas, Maria, Ana e Pedro. O Promotor de Justiça da comarca denuncia os
quatro como incursos nas penas do art. 176 do CP. Os advogados de Maria, Ana e Pedro
impetram HC alegando ausência de justa causa, já que tal crime é de ação penal pública
condicionada à representação e João só representou contra José. Procedem as alegações
dos advogados?

Resposta à Questão 3

Não. Além de não se tratar de falta de justa causa, e sim de suposta falta de
condição especial de procedibilidade, a representação delimita o alcance da ação penal em
relação aos fatos narrados. Se no curso da investigação de tais fatos houver a revelação de
mais pessoas implicadas no crime, além da identificada ela vítima inicialmente, nada obsta
que estas sejam alvo da persecução: trata-se da eficácia objetiva da representação. O HC
não deve prosperar.
A respeito, veja os seguintes julgados:

“A Turma indeferiu habeas corpus no qual se alegava a extinção da punibilidade do


suposto crime de ameaça imputado ao paciente devido à falta de representação da
vítima. Considerou-se que a representação prescinde de fórmula sacramental a ser
observada, sendo que, na espécie, a vítima dirigiu-se, tão logo ameaçada, à
autoridade policial, solicitando que se fizesse lavrar o boletim de ocorrência, com

Michell Nunes Midlej Maron 150


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

manifesto desejo de ver o paciente processado e punido. HC 80.618-MG, rel. Min.


Celso de Mello, 18.12.2001.(HC-80618).”

“HC 57.20, STJ: CRIMINAL. HC. CALÚNIA. REPRESENTAÇÃO. AUSÊNCIA


DE MENÇÃO DOS ENVOLVIDOS. DESNECESSIDADE. ATO INFORMAL.
DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
IMPROPRIEDADE DO MEIO ELEITO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO-
EVIDENCIADA DE PLANO. MATÉRIA FÁTICA. ORDEM DENEGADA.
I. Hipótese em que a representação omite um dos envolvidos no evento delituoso.
II. A doutrina e a jurisprudência são uníssonas no sentido de não se exigir
formalidades ao exercício do direito de representação, predominando a idéia de
informalidade do ato, sendo bastante a manifestação do desejo de processar,
conforme ocorrido in casu.
III. No momento em que se exerce o direito de representação, não se exige a
narrativa completa do fato e nem a indicação de todos os envolvidos no evento,
dada a sua eficácia objetiva e subjetiva.
IV. "Se a representação é instituída em benefício da vítima e independe de
formalidades, vale ela contra todos os autores do ilícito, ainda que não constem
seus nomes da peça, salvo se houve restrição expressa do ofendido."
V. Ausência de decadência do direito de representação, dada a regularidade da
promoção exercida dentro do prazo fatal de seis meses.
VI. Denúncia que imputou ao paciente a prática do delito de calúnia cometido
contra Promotor de Justiça.
VII. A falta de justa causa para a ação penal só pode ser reconhecida quando, de
pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório,
evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a
acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, hipóteses não verificadas in casu.
VIII. O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de alegações
que exijam o reexame do conjunto fático-probatório, se não demonstrada, de
pronto, qualquer ilegalidade nos fundamentos da exordial acusatória.
IX. Ordem denegada.”

Tema XIV

Michell Nunes Midlej Maron 151


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ação penal pública condicionada à representação: 1. Natureza jurídica e conteúdo da representação. Prazo
(artigo 38). 2. Ofendido menor de 18 anos 3. Curador especial (artigos 33 do CPP e 148, parágrafo único, f,
do ECA). Colidência de interesses. 4. Morte do ofendido: artigo 24, § 1º. 5. Retratação da representação.
Retratação da retratação. 6. Eficácia objetiva da representação. Ação penal pública condicionada à
requisição do Ministro da Justiça 1. Natureza jurídica da requisição do Ministro da Justiça. Conteúdo
político. 2. A requisição é retratável? 3. A requisição vincula o MP?

Notas de Aula

1. Representação do ofendido

Em termos simples, é a autorização da vítima para que o MP proponha a ação penal.


Como dito, o legislador percebe que há crimes que ofendem ao mesmo tempo a
coletividade e o particular, e por isso quem propõe a ação penal é o MP, mas depende de
autorização do ofendido. Mesmo por isso, por sua peculiar formação, esta ação é deveras
excepcional.
Um exemplo de crime que tem sua persecução em ação penal pública condicionada
à representação é a lesão corporal leve ou culposa, do artigo 129 do CP. O dispositivo que
estabelece esta natureza de ação é o artigo 88 da Lei 9.099/95:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

Até 1995, então, a ação era incondicionada, pois o CP nada dizia, e esta é a regra
geral.
Como já se anteviu, a natureza jurídica desta representação é de condição especial
de procedibilidade para as ações que dela dependem.

1.1. Eficácia da representação

A eficácia da representação merece atenção especial: é subjetiva ou objetiva? Veja:


ao representar, o ofendido, estará este autorizando o MP a perseguir todos os fatos
relacionados ao representado, e contra todas as pessoas possíveis, de que o MP suspeitar?
Suponha-se a seguinte situação: se duas pessoas cometem um crime de lesão leve, e
o ofendido representa apenas contra um dos agressores, poderá o MP perseguir ambos? Se
se entender que a eficácia da representação é subjetiva, somente poderá o MP atuar contra o
agente contra quem foi representado – o que não procede.
Por isso, é seguro dizer que a eficácia da representação é objetiva: o ofendido
representa contra os fatos criminosos contra si praticados. Feita a representação contra o
crime, o MP estará autorizado a perseguir qualquer pessoa que porventura revelar-se
envolvido no delito. Assim se manifestou o STF, no HC 80.618.
Há um outro lado desta questão: se a vítima porventura sofre dois ataques, causando
cada um uma lesão corporal leve, mas representa apenas contra um deles, não poderá o MP
perseguir quem quer que seja o autor daquele que não foi representado.

1.2. Prazo decadencial

Michell Nunes Midlej Maron 152


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O artigo 38 do CPP estabelece o prazo decadencial do direito de representação:

“Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal,


decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo
de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no
caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação,
dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.”

O prazo de seis meses começa a contar da data da descoberta da autoria, e não da


data do crime. Sedo a descoberta da autoria em data diversa da descoberta do crime, a boa-
fé da vítima deverá ser por esta comprovada; do contrário, entender-se-á que o ofendido
sabia da autoria quando da ocorrência do crime, ou seja, a presunção é invertida. Assim, só
se posterga o dies a quo se a vítima comprovar que não teve realmente ciência da autoria na
data do crime.
A natureza deste prazo de seis meses é de prazo penal. Veja: o prazo processual
começa a contar desde o primeiro dia útil seguinte ao evento que o determina; o prazo penal
começa a contar desde o próprio dia do fato que o determina.
A representação é um instituto eminentemente processual, mas o prazo é penal
porque o que está sendo posto em xeque é a liberdade do processado, o que cria uma
natureza híbrida ao instituto, e, quando há esta hibridez, prevalece o conteúdo material.
Sendo assim, rege-se pelo artigo 10 do CP:

“Art. 10 - O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os


meses e os anos pelo calendário comum.”

Esta questão pode ser relevante, em casos concretos, a fim de estabelecer a data
limite para representar validamente.
Existe um prazo decadencial trimestral, previsto no crime de imprensa, constante do
artigo 41, § 1°, da Lei 5.250/67:

“Art . 41. A prescrição da ação penal, nos crimes definidos nesta Lei, ocorrerá 2
anos após a data da publicação ou transmissão incriminada, e a condenação, no
dôbro do prazo em que fôr fixada.
§ 1º O direito de queixa ou de representação prescreverá, se não fôr exercido
dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão.
§ 2º O prazo referido no parágrafo anterior será interrompido:
a) pelo requerimento judicial de publicação de resposta ou pedido de retificação, e
até que êste seja indeferido ou efetivamente atendido;
b) pelo pedido judicial de declaração de inidoneidade do responsável, até o seu
julgamento.
§ 3º No caso de periódicos que não indiquem data, o prazo referido neste artigo
começará a correr do último dia do mês ou outro período a que corresponder a
publicação.”

1.3. Retratação

Michell Nunes Midlej Maron 153


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Consiste no arrependimento do ofendido que representou, retirado a autorização


para a persecução criminal. Esta retratação é possível até o oferecimento da denúncia, como
dispõe o artigo 25 do CPP:

“Art. 25. A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia.”

Há uma exceção, em que a retratação pode ser feita depois do oferecimento da


denúncia: consta da Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06, no artigo 16:

“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de


que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em
audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público.”

Veja que a retratação é possível, nos crimes sujeitos a esta lei, até o recebimento da
denúncia pelo juiz, e não até o oferecimento, o que na prática pode significar uma diferença
de alguns dias. Destarte, a lei acabou por favorecer o meliante, neste caso.
Existe ainda outro caso em que a retratação pode ocorrer após a denúncia: no
JECrim, na AIJ, que ocorre ao final, o juiz é obrigado a tentar nova conciliação, e se ocorre
a composição dos danos, entende-se que a representação é retratada. Consta do artigo 79,
usque 74, parágrafo único, da Lei 9.099/95:

“Art. 79. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se


na fase preliminar não tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de
oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos
arts. 72, 73, 74 e 75 desta Lei.”

“Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo
Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo
civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal
pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou representação.”

O TJ/RJ ainda criou nova exceção, bastante interessante, no caso em que a vítima
for hipossuficiente. Veja: o artigo 225, § 1°, I, combinado com o seu § 2°, estabelece que se
a vítima for pobre, a ação penal, ao invés de privada, é pública condicionada à
representação. Ocorre que uma situação de desigualdade pode se instalar: se a vítima for
rica, a ação será privada, e desta caberá desistência a qualquer tempo, no seu curso; já
sendo pobre, a ação será pública condicionada, e uma vez oferecida a denúncia, não mais
poderá haver retratação, e não cabe desistência. Por esta quebra da isonomia, o TJ/RJ
entendeu que é possível a retratação após a denúncia, no caso da vítima ser hipossuficiente,
a fim de evitar violação da igualdade.

1.3.1. Retratação da retratação da representação

Michell Nunes Midlej Maron 154


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Pode o ofendido que representou retratar-se da sua representação, como se viu. Mas
poderia ele retratar-se da retratação, ou seja, representar novamente?
Há duas correntes disputando o tema: a minoritária admite esta retratação da
retratação, quantas vezes for, desde que não tenha se expirado o prazo decadencial. Por
todos que a defendem, Guilherme Nucci. A segunda corrente, encabeçada pelo STF, alega
que quando a vítima se retrata da representação, a punibilidade estará extinta, e por isso não
poderá haver nova representação.
O STF entende que a hipótese enquadra-se no artigo 107 do CP:

“Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:


(...)
VI - pela retratação do agente, nos casos em que a lei a admite;
(...)”

Ocorre que parece haver um erro de concepção: esta retratação a que se refere o
artigo 107, VI, é realizada pelo autor do crime, que é possível, por exemplo, no crime de
falso testemunho, do artigo 342 do CP, como estabelece o seu § 2°:

“Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha,
perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo,
inquérito policial, ou em juízo arbitral:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
§ 1o As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado
mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir
efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da
administração pública direta ou indireta.
§ 2o O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o
ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.”

Assim, não poderia ser referente à retratação realizada pela vítima, como é o caso.
Todavia, o STF insiste na posição, explicando que se trata de aplicação por analogia deste
inciso VI do artigo 107 do CP à retratação do ofendido quanto à representação, analogia
que seria admissível por ser in bonam partem (em que pese ser praticamente pacífico o
entendimento, na doutrina penal, de que estas causas de extinção da punibilidade são
dispostas em rol taxativo).

1.4. Forma

A representação é um ato informal, não sendo imposta qualquer formalidade


mínima. Inclusive, a jurisprudência admite a representação implícita, tal é a informalidade
do ato: basta que o ofendido, comparecendo aos atos investigativos, não se oponha
expressamente à persecução do crime.

1.5. Sucessão ou substituição processual

No caso da morte do ofendido, a representação pode ser realizada por uma das
pessoas constantes do artigo 31 do CPP:

Michell Nunes Midlej Maron 155


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão
judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão.”

Este rol é preferencial, e não solidário: havendo mais de um dos indivíduos ali
previstos, a ordem ali estabelecida deve ser respeitada: se o cônjuge for vivo, somente a ele
se passa a habilitação para representar. Se não há cônjuge, mas há ascendente, somente a
este é passada a representação, e assim por diante.
Mas há corrente contrária, bastante minoritária, tendo como representante
Guilherme Nucci, que defende que o rol é solidário: qualquer um poderia representar.
Poderia o companheiro, a pessoa em união estável com o ofendido falecido, herdar
aptidão para representar contra o crime? A maior doutrina entende que o companheiro vai
se equiparar ao cônjuge, e por isso poderá representar. É a leitura mais moderna do artigo
226, § 3°, da CRFB:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
(...)”

Todavia, há quem, minoritariamente, como Tourinho, defenda que não é possível


esta equiparação, pois se trata de uma analogia in mallam partem, pois se não se fizesse
este enquadramento, o rol de possibilitados a representar seria menor. E outro argumento
desta tese é que esta equiparação constitucional refere-se apenas ao Direito de Família, e
não ao Direito Penal.

1.6. Idade do representante

A partir de dezoito anos, o ofendido pode exercer a representação. Mas é preciso se


atentar para o artigo 34 do CPP:

“Art. 34. Se o ofendido for menor de 21 (vinte e um) e maior de 18 (dezoito) anos,
o direito de queixa poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal.”

Este dispositivo prevê uma espécie de legitimidade concorrente, porque estabelece


que tanto o ofendido quanto seu representante legal têm aptidão para representar, a partir
dos dezoito e antes dos vinte e um anos completos.
É cediço que o CC revogou este artigo 34 do CPP, e não se aplica aqui a mesma
discussão que se mencionou sobre a vigência ou não do artigo 15 do CPP. Veja que, neste
caso do artigo 34 do CPP, a limitação da legitimidade para representar apenas à pessoa da
vítima é um caso de aplicação analógica da maioridade civil in bonam partem, o que é
permitido. Este artigo 34 está, de fato, revogado.

1.7. Conflito de interesses entre o ofendido e seu representante legal

Michell Nunes Midlej Maron 156


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Quando o ofendido menor de dezoito anos for vítima de crime que demande
representação, esta incumbirá ao seu representante legal. Ocorre que pode acontecer de
haver conflito de interesses entre o representante legal e o ofendido, como no exemplo mais
clássico de ser o representante o próprio autor do delito. Como solucionar este impasse?
O artigo 33 do CPP estabelece a solução:

“Art. 33. Se o ofendido for menor de 18 (dezoito) anos, ou mentalmente enfermo,


ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses
deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial,
nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente
para o processo penal.”

O curador especial a que alude o texto legal é a Defensoria Pública. Assim prevê o
artigo 4°, VI, da Lei Orgânica da Defensoria Pública, LC 80/94:

“Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:


(...)
VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei;
(...)”

O juiz criminal é quem nomeia o defensor para atuar como curador, mas esta
competência também é dada ao juiz do Juizado da Infância e da Juventude, como determina
o artigo 142 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

“Art. 142. Os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de


dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos por seus pais, tutores ou
curadores, na forma da legislação civil ou processual.
Parágrafo único. A autoridade judiciária dará curador especial à criança ou
adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais ou
responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que
eventual.”

1.8. Vinculação do MP à representação

A representação do ofendido não obriga o MP a oferecer denúncia, de forma


alguma. A representação apenas preenche uma das cinco condições desta ação, e as demais
deverão ser apuradas pelo MP a fim de que seja possível a denúncia.
Rememorando, as cinco condições para esta denúncia em ação penal condicionada à
representação são: legitimidade, interesse, possibilidade, justa causa e representação do
ofendido.

2. Requisição do Ministro da Justiça

O termo requisição, tecnicamente, significa ordem. Por isso, pode-se dizer que este
termo foi empregado no sentido errado, ao identificar a necessária manifestação do
Ministro da Justiça para que se proceda na ação penal em que se lha exige. Trata-se, assim
como a representação do ofendido, de uma autorização, e não de uma ordem para a ação
penal.

Michell Nunes Midlej Maron 157


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Esta figura só existe porque existem crimes que têm severa carga política em sua
persecução. Por isso, é dado a um agente político de alta escala avaliar a conveniência ou
não de sua persecução.
O exemplo são os crimes contra a honra do Presidente da República ou chefe de
governo estrangeiro, e a condicionante vem apresentada no artigo 145, parágrafo único,
referindo-se ao inciso I do artigo 141 do CP:

“Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante
queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Parágrafo único - Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do n.º I do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do
mesmo artigo.”

“Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se


qualquer dos crimes é cometido:
I - contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro;
(...)”

A requisição do Ministro da Justiça tem algumas características próprias, diferentes


da representação do ofendido. Esta requisição não está sujeita à decadência, e tampouco é
pacífica de retratação. A doutrina e a jurisprudência entendem que não há prazo decadencial
cominado, nem há previsão de retratação expressa, pelo que, diante de tais omissões
legislativas, não poderá o intérprete criar prazo decadencial, ou admitir possibilidade de
retratação.
Assim como a retratação, porém, a requisição do Ministro da Justiça não vincula o
MP a denunciar – é só uma das cinco condições da ação, como visto –, e só diz respeito aos
fatos criminosos, ou seja, é objetiva: o MP poderá exercer a persecutio criminis contra
quem se apresentar suspeito.

3. Ação penal nos crimes contra os costumes

A regra é expressa no caput do artigo 225 do Código Penal: os crimes de natureza


sexual são perseguidos em ação penal privada. Veja:

“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores (crimes contra os
costumes), somente se procede mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-
se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto,
tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende
de representação.” (parêntese nosso)

Há três claras exceções, para a corrente majoritária:

- A jurisprudência traz como exceção a previsão da súmula 608 do STF:

“Súmula 608, STF: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação
penal é pública incondicionada.”

Michell Nunes Midlej Maron 158


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Sendo assim, se há a violência real no cometimento do crime de estupro –


raciocínio que se estende aos demais crimes contra os costumes –, a ação penal é
pública e incondicionada.
O histórico desta súmula é o seguinte: Nelson Hungria, seu relator, entendia
que o crime de que esta trata era composto por duas condutas, a conjunção carnal
forçada e o meio de coerção utilizado para consegui-la, que é a constrição física
com lesão corporal leve (pois se a lesão corporal fosse grave, ou gravíssima, ou
mesmo se houvesse a morte, a ação seria pública incondicionada por expressa
consignação legal, no artigo 223 do CP). Assim sendo, a súmula apenas fez valer a
previsão da ação penal que seria devida em caso de lesão corporal leve
singularmente cometida: pela proporcionalidade, não pode a ação penal para a lesão
leve ser pública incondicionada, e a ação penal para a lesão leve seguida da
conjunção carnal forçada – delito claramente mais grave – ser perseguida em ação
penal privada.
Sendo que o raciocino desta súmula gira em torno do conceito de crime
complexo, é necessário que se adentre em breve explanação sobre este tipo de
delito. O crime complexo pode ser conceituado de duas formas: para uns, é aquele
em que ambas as elementares são tipos penais autônomos, se isoladamente
considerados – é o conceito stricto sensu de crime complexo; e para outra parte da
doutrina, basta que uma das elementares seja crime, se isoladamente considerada,
para que haja tal delito – é o crime complexo lato sensu. E é somente deste ponto de
vista que o estupro se torna crime complexo. E Nelson Hungria adotou, na súmula
608, o conceito de crime complexo lato senso, pois conjunção carnal, isoladamente,
não é crime.
Observando-se o artigo 101 do CP, parece que o sistema penal adotou o
conceito stricto sensu de crime complexo:

“Art. 101 - Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal
fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele,
desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do
Ministério Público.”

Nelson Hungria, todavia, redigiu a súmula antes da reforma penal de 1984, e


na sua época, a teoria adotada pelo CP era do crime complexo lato sensu.
A Lei 9.099/95 adicionou um outro complicador à interpretação da súmula
608 do STF: a previsão do artigo 88. Veja:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

Assim, as lesões corporais simples leves passaram a ser perseguidas em ação


penal pública condicionada à representação, desde então. Desta forma, se a súmula
se pautou pela ação penal da lesão corporal leve, que era incondicionada, deveria ter
acompanhado a alteração trazida em 1995, ou seja, deveria ser relida à luz deste
dispositivo, e tida por condicionada à representação. E esta é a posição de Polastri e

Michell Nunes Midlej Maron 159


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ada Pellegrini, mas não é a posição do STF: este mantém intocada a súmula 608,
mesmo após a Lei 9.099/95.
O raciocínio do STF para manter esta posição é o seguinte: não mais se trata,
o crime de estupro, da combinação de lesão corporal leve e da conjunção carnal
forçada: se trata, sim, do constrangimento ilegal somado à conjunção carnal
forçada30. E o constrangimento ilegal, do artigo 146 do CP, é de persecução em ação
penal pública incondicionada:

“Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de


lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

Como último tema no estudo desta súmula, a Ministra Ellen Gracie, em


posição particular e isolada, que pode ser vista no HC 81.360 do STF, entende que a
violência real de que trata a súmula não se resume à violência física praticada como
meio de cometimento do estupro, e sim qualquer violência psíquica que
desestabilize a harmonia física da vítima. Seguindo este raciocínio, então, para ela,
todo e qualquer estupro é violento, inclusive aqueles praticados mediante grave
ameaça, e por isso a ele se aplica a súmula 608 do STF, sendo a ação penal pública
incondicionada. Veja:

“HABEAS CORPUS. ESTUPRO. CRIME HEDIONDO. INTELIGÊNCIA DOS


ARTS. 1º, V E 2º, § 1º, AMBOS DA LEI Nº 8.072/90. CUMPRIMENTO DA
PENA EM REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. IMPOSSIBILIDADE DE
PROGRESSÃO. FORMAS SIMPLES E QUALIFICADA. ANÁLISE
SISTÊMICA E GRAMATICAL. VIOLÊNCIA DE GÊNERO.
CONSEQUÊNCIAS BIOLÓGICAS, PSICOLÓGICAS E SOCIAIS DO
ESTUPRO QUE FAZEM DELE UM COMPLEXO PROBLEMA DE SAÚDE
PÚBLICA. CIRCUNSTÂNCIAS QUE LEVAM À CONCLUSÃO DE QUE NÃO
EXISTE ESTUPRO DO QUAL NÃO RESULTE LESÃO DE NATUREZA
GRAVE. ESTATÍSTICAS. CONCEITO DE LESÃO CORPORAL. 1. A Lei nº
8.072, de 25 de julho de 1990, ao relacionar quais os delitos considerados
hediondos, foi expressa ao referir o estupro, apondo-lhe, entre parênteses, a
capitulação legal: art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo
único. Pretendeu o legislador, atento à efetiva gravidade do crime, ao utilizar-se da
conjunção coordenativa aditiva, significar que são considerados hediondos: (1) o
estupro em sua forma simples que, na definição legal, corresponde a: constranger
mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; (2) o estupro de
que resulte lesão corporal de natureza grave e (3) o estupro do qual resulte a morte
da vítima. 2. Revogação tácita, pela Lei nº 8.072/90, que impôs penas mais severas
ao crime de estupro, do parágrafo único incluído no art. 213 do Código Penal pela
Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). 3. Estupro: crime que, por
suas caractéristicas de aberração e de desrespeito à dignidade humana, causa
tamanha repulsa que as próprias vítimas, em regra, preferem ocultá-lo, bem como
que a sociedade, em geral, prefere relegar a uma semiconsciência sua ocorrência,
os níveis desta ocorrência e o significado e repercussões que assume para as
vítimas. Estatísticas de incidência que, somadas às consequências biológicas,
psicológicas e sociais que acarreta, fazem desse crime um complexo problema de
saúde pública. Circunstâncias que levam à conclusão de que não existe estupro do
30
Há ainda uma nova concepção, uma evolução do pensamento do STF, que será abordada adiante, em um
recente precedente alterando este raciocínio mais uma vez.

Michell Nunes Midlej Maron 160


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

qual não resulte lesão de natureza grave. 4. O conceito de lesão corporal, na lição
de Nelson Hungria, não abrange apenas consequências de ordem anatômica, mas
compreende qualquer ofensa à normalidade funcional do corpo ou organismo
humano, seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou
psíquico, o que abrange a desintegração da saúde mental. 5. Ordem denegada.”

Vale consignar que este acórdão não se prestou a discutir a ação penal, mas
sim a hediondez das modalidades do crime de estupro. Todavia, revela o
pensamento da Ministra sobre a causação de dano pelo crime, o que ensejaria a
aplicação da súmula 608 do STF.

- Outra exceção está no inciso I do § 1° do artigo 225 do CP: se a vítima for


hipossuficiente, a ação penal será pública condicionada à representação, como
determina o § 2° deste mesmo artigo.
A hipossuficiência pode ser presumida, não precisando ser comprovada, e
sequer precisando ser alegada, pois há condições sociais que são notoriamente
hipossuficientes, dada a conhecida má remuneração de um trabalho, ou o próprio
desemprego, por exemplo. Se o juiz percebe esta condição, pode considerar que há a
circunstância do inciso I do § 1° do artigo 225 do CP. A respeito, veja o HC 85.556
do STF:

“HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR.


ATIPICIDADE E CONDENAÇÃO DESMOTIVADA. ILEGITIMIDADE DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. ORDEM DE PRISÃO CONDICIONADA AO
TRÂNSITO EM JULGADO. Sob a invocação de atipicidade e condenação
desmotivada, o que na verdade pretende o impetrante é o reexame inadmissível do
conjunto probatório. O comparecimento da vítima, auxiliar de cozinha, perante a
repartição policial, no dia seguinte ao cometimento dos crimes, manifestando o
desejo de providências policiais, dispensa a representação formal e o atestado de
pobreza. Condenação que já transitou em julgado. Habeas corpus indeferido.”

Há ainda que se mencionar a discussão, hoje incipiente, sobre a proteção


desta vítima ser incumbência da Defensoria Pública, a exemplo do artigo 68 do
CPP:

“Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e
2o), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será
promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.”

A atribuição para a persecução da ação civil ex delicto, de fato, incumbe à


Defensoria Pública, pelo que este artigo 68 foi declarado sob inconstitucionalidade
progressiva pelo STF: é dispositivo “ainda” constitucional, enquanto houver Estado
em que não haja Defensoria Pública instalada, deixando de sê-lo quando houver esta
instalação em todos os Estados-membros.
Ocorre que este raciocínio não pode ser transportado para a ação penal para
persecução do crime sexual praticado contra vítima hipossuficiente, apesar de haver
quem o faça, como Tourinho. O STF já declarou constitucional este artigo 225, § 1°,
I, do CP, sob o seguinte raciocínio: na ação civil ex delicto, o MP seria advogado da
parte em juízo, o que é claro que não lhe incumbe, e sim à Defensoria; na ação
penal pelo crime sexual, o MP é parte, e não advogado da vítima pobre: estaria

Michell Nunes Midlej Maron 161


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

apenas encampando uma ação que, de fato, originalmente, já lhe pertine. Assim se
pode depreender do HC 86.122, do STF:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTUPRO CONTRA MENOR DE


QUATORZE ANOS. AÇÃO PENAL PÚLICA CONDICIONADA.
EXAURIMENTO DO PRAZO DECADENCIAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO
PENAL. MISERABILIDADE. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DA
REPRESENTANTE DA OFENDIDA. A declaração de miserabilidade feita pela
representante legal da ofendida e a vontade inequívoca de processar o autor do
crime de estupro, manifestada à autoridade policial imediatamente aos fatos, elide,
por completo, a tese de expiração do prazo decadencial, do que decorreria o
trancamento da ação penal. É da jurisprudência desta Corte que a representação
nos crimes de ação penal pública condicionada prescinde de qualquer formalidade,
bastando o elemento volitivo, ainda que manifestado na fase policial. Ordem
denegada.”

- A última exceção é a do inciso II do artigo 225, § 1°, do CP: quando há abuso de


pátrio poder, da condição de padrasto, tutor ou curador, a ação penal é pública
incondicionada, porque não está esta situação açambarcada na condicionante
prevista no § 2° deste artigo, como no caso da vítima hipossuficiente, do inciso I do
mesmo dispositivo.
A primeira questão a ser abordada é a equiparação ou não do companheiro
aos indivíduos previstos neste artigo. O companheiro não é padrasto, pois não é
casado com a mãe da vítima, mas deve ser equiparado ao padrasto, como entende a
jurisprudência, mas Tourinho, como já se viu, entende que se assim se fizer estar-se-
á aplicando analogia in malam partem, o que não é admissível.
Outro detalhe a que deve se atentar é que não basta o enquadramento do
autor em uma das categorias: não basta que seja pai, padrasto, tutor ou curador; é
necessário que abuse desta condição para o cometimento do crime. O pai que
estupra a filha, mas não o faz abusando do pátrio poder, não faz o crime incurso
nesta hipótese. Como exemplo bem claro, o pai que fora destituído civilmente do
pátrio poder não poderá deste abusar, e não poderá o crime ser enquadrado neste
artigo.

Casos Concretos

Questão 1

WILSON constrangeu o menor PEQUETITO (9 anos de idade), mediante violência


consistente em agarrá-lo à força pelas costas na região dos ombros, a praticar ato
libidinoso diverso da conjunção carnal, qual seja, a introdução de seu pênis no ânus do
menor até a ejaculação.
Diante do exposto, a genitora de PEQUETITO (pessoa humilde e com parcos
rendimentos), apavorada, dirigiu-se até a delegacia mais próxima com a finalidade de
relatar o ocorrido à autoridade policial, para que fossem tomadas as providências

Michell Nunes Midlej Maron 162


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

cabíveis. WILSON foi então denunciado e condenado como incurso no art. 214 do Código
Penal a 8 anos de reclusão em regime integralmente fechado.
Inconformado, o réu interpôs o recurso de apelação, aduzindo, preliminarmente a
inconstitucionalidade do art. 225 do Código Penal, tendo em vista o disposto no art. 5º,
LXXIV da CRFB, uma vez que caberia à Defensoria Pública promover os interesses
daqueles que não podem custear as despesas do processo.
Pergunta-se:
a) O Ministério Público tinha legitimidade para o ajuizamento da ação penal?
b) É aplicável à hipótese em tela a súmula 608 do STF?

Resposta à Questão 1

a) Há que se consignar que, a princípio, não há violência real: não houve lesão
corporal leve ao menor, ao que tudo indica. Desta forma, a ação penal seria
pública condicionada à representação, dada a hipossuficiência da vítima e da
família – e para esta ação o MP tem legitimidade, a despeito da tese da DPGE
ter certa coerência. A atribuição da persecução do crime pertine ao MP, elo que
se vê do artigo 225, § 1°, I, e § 2°, mesmo que a DP seja incumbida da proteção
judicial dos hipossuficientes.
Não seria errado, entretanto, entender que houve violência real nesta
atitude, e se assim for, deverá ser aplicada a súmula 608 do STF – e a ação penal
seria pública incondicionada.

b) Como dito, se se entender que não houve lesão corporal, não se aplica a súmula,
mas como a interpretação fática deste mesmo evento pode variar, se for
entendida a atividade como violência real – como o faria a vertente que se
coaduna à tese da Ministra Ellen Gracie – a súmula seria aplicável.

Questão 2

MARICOTA, com apenas 13 anos de idade, foi vítima do crime de estupro


praticado pelo amante de sua mãe. O meliante foi preso em flagrante, após ter sido visto
por um transeunte, que comunicou o fato à autoridade policial.
Ocorre que a genitora de MARICOTA dirigiu-se à delegacia com a finalidade de
renunciar ao seu direito de queixa, para que seu amante não sofresse as conseqüências de
uma futura ação penal.
Todavia, ao receber o auto de prisão em flagrante, o magistrado nomeou curador
especial (Ministério Público) à vítima, tendo em vista a renúncia ao direito de queixa
efetuada pela mãe de MARICOTA. O juiz justificou a nomeação com base no fato de ter
sido a menor assistida pelo Conselheiro Tutelar quando de depoimento em sede policial,
uma vez que a mãe estava totalmente embriagada. Havia nítido conflito de interesses entre
a menor e sua mãe.
Diante dos fatos, o Ministério Público ofereceu denúncia em face do meliante.
Inconformado com o recebimento da denúncia, o réu impetrou habeas corpus objetivando
o trancamento da ação penal por ilegitimidade do Ministério Público, haja vista se tratar
de ação penal privada.

Michell Nunes Midlej Maron 163


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Deve ou não ser concedida a ordem de habeas corpus? Justifique.

Resposta à Questão 2

Analisando por partes, não há nada que indique violência real, e sim presumida; e
não há abuso de pátrio poder. Por isso, deve ser seguida a regra do artigo 225, caput, do CP,
e a ação penal é privada. Infelizmente, portanto, tem razão o impetrante, e a ordem de HC
deve ser concedida.
Todavia, há que se apontar um erro: o curador especial nomeado foi erroneamente
escolhido pelo juiz, pois deveria ter nomeado defensor público.

Tema XV

Ação Penal Privada. 1. Introdução. Ius puniendi e ius persequendi. 2. Princípios da ação penal privada. 2.1.
Oportunidade e conveniência (decadência e renúncia) 2.2. Disponibilidade (perdão do ofendido e
perempção) 2.3. Indivisibilidade e exceções. O Ministério Público e o aditamento à queixa. 2.4.
Intranscendência. 3. A sucessão processual. 4. Ação penal privada personalíssima - Impossibilidade de
sucessão (extinção da punibilidade). 5. Ofendido menor: decadência e perdão. 6. Aditamento da queixa pelo
MP.

Notas de Aula

1. Ação penal privada

Michell Nunes Midlej Maron 164


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Os critérios de que se vale o legislador para estabelecer se um crime será de


persecução penal em ação pública ou privada são: a gravidade da lesão, ou seja, quanto
mais grave mais interesse público há em sua persecução; o caráter do bem jurídico
tutelado, que se for eminentemente privado, merecerá persecução privada, e vice-versa; e o
potencial prejuízo com a publicidade do processo, que, em alguns crimes, é tamanho, que é
dada à vítima a discricionariedade em deixar as coisas na quietude ou deixar haver o alarde
que a ação penal acarreta.
É por isso que os crimes contra a honra, e boa parte dos crimes contra os costumes,
são perseguidos em ação penal privada: os critérios acima expostos fazem tender à escolha
pela vítima em ajuizar ou não a ação como domino litis.
Há quem critique a própria ação penal privada, entendendo-a inconstitucional. Para
esta corrente, o que move a vítima, de fato, é um sentimento de vingança, o que seria
incompatível com a finalidade da pena, e do Direito Penal como um todo. E mais: como o
Direito Penal é a ultima ratio da situação em questão, não existe motivo para que haja ação
penal privada, todas elas devendo ser públicas. São críticas de uma minoria da doutrina,
porém.

1.1. Princípios

1.1.1. Oportunidade ou conveniência

Este princípio determina que a vítima proporá a queixa se for de seu interesse. É um
critério absolutamente discricionário do ofendido. Os institutos que materializam este
princípio são a renúncia e a decadência.
A renúncia é um ato unilateral, que não precisa da aceitação da outra parte, e é
comunicável, ou seja, a renúncia dirigida a um co-autor do crime se estende aos demais.
Pelo CPP, a renúncia só existiria nos crimes de ação penal privada, mas a Lei 9.099/95, no
artigo 74, trouxe uma outra previsão:

“Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo
Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo
civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal
pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou representação.”

Mas repare que há quem entenda que, apesar da literal expressão “renúncia”, este
artigo 74 estabeleça uma espécie excepcional de retratação posterior à denúncia, e não
renúncia à queixa ou à representação (pois se já foi realizada, não há o que renunciar –
renúncia é ato prévio à feitura de algum ato).
Veja que pode haver a seguinte situação: havendo dois co-réus, um deles realiza a
composição civil a que alude este artigo 74. Se há a composição por este, se extingue sua
punibilidade pela renúncia; seria esta extinção comunicada àquele que não realizou a
composição civil dos danos?
Há duas correntes: a primeira defende que a renúncia é tratada pelo CPP como
causa de extinção da punibilidade comunicável entre os co-réus, e como não existe nenhum
dispositivo em sentido contrário, aqui também seria comunicável – o co-réu que não
compôs os danos será beneficiado pela composição do outro.

Michell Nunes Midlej Maron 165


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O segundo entendimento, porém, estabelece que a renúncia, na Lei 9.099/95, exige


a prévia composição civil dos danos, ou seja, é condicional, e sem a composição não se
extingue a punibilidade. Por isso, não se comunicará ao que não compôs os danos.
Tratando da decadência, agora, há algumas situações peculiares. O primeiro é o da
Lei de Imprensa, Lei 5.250/67, que estabelece prazo trimestral de decadência da queixa e
da representação no seu artigo 41, § 1°, contra os seis meses que são a regra geral:

“Art . 41. A prescrição da ação penal, nos crimes definidos nesta Lei, ocorrerá 2
anos após a data da publicação ou transmissão incriminada, e a condenação, no
dôbro do prazo em que fôr fixada.
§ 1º O direito de queixa ou de representação prescreverá, se não fôr exercido
dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão.
§ 2º O prazo referido no parágrafo anterior será interrompido:
a) pelo requerimento judicial de publicação de resposta ou pedido de retificação, e
até que êste seja indeferido ou efetivamente atendido;
b) pelo pedido judicial de declaração de inidoneidade do responsável, até o seu
julgamento.
§ 3º No caso de periódicos que não indiquem data, o prazo referido neste artigo
começará a correr do último dia do mês ou outro período a que corresponder a
publicação.”

Veja que este prazo é decadencial, pois se refere aos direitos de queixa ou
representação, que são direitos potestativos; mas é um prazo decadencial sujeito às causas
de interrupção do § 2° deste mesmo artigo.
Outro aspecto peculiar diz respeito à vítima menor. A vítima de crime sujeito a ação
penal privada que seja menor de dezoito anos será representada por seu pai, em regra.
Assim, o direito de queixa é detido pelo representante legal do menor. Suponha-se,
entretanto, que o representante não oferece a queixa: a vítima, ao completar a maioridade,
terá a seu favor o direito de queixa? Poderá esta vítima deflagrar a ação penal quando
completar dezoito anos, ou o direito de queixa sofreu decadência?
Há dois entendimentos: Damásio defende que a vítima não poderá oferecer queixa,
pois a decadência se operou, extinguindo a punibilidade. O segundo posicionamento,
sumulado pelo STF na súmula 594, diz que os prazos decadenciais são autônomos,
contados separadamente para a vítima e para seu representante (o que é bem coerente, pois
do contrário a vítima, que não podia representar em nome próprio, perderá direito que
sequer detinha, por inércia que não podia suprir). Veja:

“Súmula 594, STF: Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos


independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal.”

Ainda dentro da oportunidade ou conveniência, é cabível a realização de transação


penal em ação penal privada? Há também dois entendimentos: o primeiro, do STJ e de Ada
Pellegrini, reputa cabível a transação, porque se o querelante pode até mesmo perdoar ou
renunciar, nada obsta que possa transacionar – é uma espécie de poder implícito, pois se
pode o mais, pode o menos. Além disso, seria quebra da isonomia obstar a incidência de um
instituto despenalizador simplesmente em razão da natureza da ação penal.
O segundo entendimento, de Polastri e Geraldo Prado, dentre outros, defende que
não pode haver esta transação, pois todos os institutos que deram ao querelante a
possibilidade de dispor da ação penal são de natureza processual, nunca tendo sido dado ao

Michell Nunes Midlej Maron 166


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

querelante, em qualquer ordenamento comparado, inclusive, o poder de negociar sobre o


direito material, sobre a pena – seria uma ofensa à dignidade da pessoa humana, legando ao
particular a estipulação de pena sobre outro particular.

1.1.2. Disponibilidade

Consectário lógico da oportunidade, significa que o querelante pode desistir da ação


penal privada, pode dispor do andamento da ação penal. Este princípio é materializado
pelos institutos da perempção, cujas hipóteses constam do artigo 60 do CPP, e o perdão do
ofendido, que é manifesto no artigo 51 e seguintes do CPP:

“Art. 51. O perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos, sem que
produza, todavia, efeito em relação ao que o recusar.”

“Art. 60. Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á
perempta a ação penal:
I - quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do
processo durante 30 dias seguidos;
II - quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não
comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de 60
(sessenta) dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto
no art. 36;
III - quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer
ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de
condenação nas alegações finais;
IV - quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar
sucessor.”

O perdão é um ato bilateral, que depende da aceitação do acusado, e é comunicável:


o perdão oferecido a um dos co-autores se estende obrigatoriamente aos demais.
Na queixa, que é a peça inicial da ação penal privada, não é necessária a
consignação expressa do pedido de condenação: se a ação penal privada foi proposta, o
pedido possível, ao final, é um só – a condenação. Sendo assim, a não consignação
expressa de tal pedido não torna inepta a queixa, e, diga-se, também na denúncia este
raciocínio se aplica, pois o pedido penal é um só, e por isso pode ser implícito. Na ação
penal privada, o querelante deverá afirmar, contudo, o pedido de condenação nas alegações
finais, como forma de reforço do seu entendimento de que o crime e a autoria existem, após
a instrução criminal.
Veja: o princípio da correlação, na ação penal condenatória, não é como no
processo civil: não se adstringe a sentença ao pedido, mas sim à imputação dos fatos que
for realizada, pois o pedido é um só.
Seria possível a prisão em flagrante em crimes de ação penal privada? A fim de
responder esta questão, é necessário que se faça um breve estudo do flagrante. Qualquer
flagrante tem três fases: a captura, a elaboração do APF, e a análise judicial.
Dito isto, surgem duas correntes sobre seu cabimento em ações penais privadas: o
primeiro, majoritário na jurisprudência e na doutrina, defende que a prisão-captura,
primeira fase do flagrante, é sempre possível, mas para elaborar o APF será indispensável a
manifestação da vítima. O segundo entendimento, tese defensiva de Paulo Rangel, defende
que mesmo a prisão-captura só pode ser realizada com a prévia manifestação da vítima, que

Michell Nunes Midlej Maron 167


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

é titular natural da persecução penal privada, e trata-se, esta manifestação, de uma condição
especial de procedibilidade.
Outro questionamento seria sobre a prisão temporária: é possível este tipo de prisão
em crimes de ação penal privada? A Lei 7.960/89, Lei da Prisão temporária, não estabelece
expressamente este cabimento, pelo que surgem dois entendimentos: para Paulo Rangel,
não é possível esta prisão, porque ela é incompatível com os princípios norteadores da ação
penal privada – oportunidade e disponibilidade –, e por isso não foi dada legitimidade ao
querelante no artigo 2° da lei em comento:

“Art. 2° A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da


autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5
(cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada
necessidade.
(...)”

Para Rangel, no estupro e no atentado violento ao pudor, a prisão temporária,


então,m só será admissível nas hipóteses em que a ação for pública – sabendo-se que a
regra é privada, como dita o artigo 225 do CP.
Já para os Tribunais, para a jurisprudência em geral, a prisão temporária é possível,
justamente porque o estupro e o atentado violento ao pudor, em regra, são de ação penal
privada, e constam expressamente do rol do artigo 1° desta Lei 7.960/89:

“Art. 1° Caberá prisão temporária:


(...)
III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na
legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:
(...)
f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo
único);
g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223,
caput, e parágrafo único);
(...)”

Nestes casos, porém, mesmo a jurisprudência entende que quem terá legitimidade
para representar pela prisão temporária será o delegado, pois o artigo 2° desta lei realmente
não deu legitimidade ao querelante, como visto.
1.1.3. Indivisibilidade

A ação penal privada deverá ser proposta em face de todos os co-autores do crime.
Destarte, se o querelante se omite, na queixa, sobre um dos co-autores, o que
significará esta omissão? Será considerada renúncia em favor do que não foi querelado, e
conseqüentemente se estenderá a todos os que o foram – pois a renúncia se comunica, como
dispõe o artigo 49 do CPP –, ou poderá o MP, como custos legis, aditar a queixa
subjetivamente, fazendo constar o querelado omitido, com amparo no artigo 45 do CPP?

“Art. 45. A queixa, ainda quando a ação penal for privativa do ofendido, poderá
ser aditada pelo Ministério Público, a quem caberá intervir em todos os termos
subseqüentes do processo.”

Michell Nunes Midlej Maron 168


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 49. A renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos


autores do crime, a todos se estenderá.”

Há diversas correntes disputando o tema. O primeiro entendimento, de Polastri e


Damásio, defende que o CPP não deu ao MP poderes para aditar a queixa, neste caso, e o
promotor velará pela indivisibilidade da ação requerendo a extinção da punibilidade em
relação a todos os autores, pela comunicação da renúncia.
Para Tourinho e Pacelli, o membro do MP poderá aditar a queixa, na qualidade de
fiscal da lei, tendo por autorizativo legal expresso o artigo 45 do CPP, pois existem
situações onde o querelante pode discordar do rumo das investigações, ou mesmo do
indiciamento feito pelo delegado, e nestes casos, o MP deverá zelar pela indivisibilidade,
atuando como custos legis.
Mirabete, por sua vez, defende que deverá ser analisada a razão da omissão, ou seja,
se houve um erro material, ou se houve a discordância quanto ao indiciamento, o promotor
poderia aditar; mas se houve clara renúncia, esta se estenderá aos demais co-autores,
extinguindo-se a punibilidade para todos.
Por fim, Sérgio Demoro Hamilton defende que existe um conflito entre os artigos
45 e 49 do CPP, e a solução é interpretá-los in dubio pro reo, ou seja, aplica-se a renúncia
para todos os envolvidos.
Pelo ensejo desta discussão, é relevante traçar algumas linhas sobre o aditamento da
queixa pelo MP.

1.1.3.1. Aditamento da queixa pelo MP

O aditamento subjetivo, a inclusão de co-autores na queixa pelo MP, perpassa as


quatro correntes apresentadas, sendo certo que a solução jurisprudencial tende a ser pela
impossibilidade, em razão de se adotar a renúncia comunicada a todos.
O aditamento objetivo, em que se dá a inclusão de crimes de ação penal privada à
queixa já oferecida, este não oferece qualquer discussão: a ofensa ao princípio da
oportunidade é clara, e por isso não pode o MP promover este aditamento.
Poderá, entretanto, haver aditamento pelo MP que se dedica a incluir crimes de
ação penal pública? A resposta é igualmente negativa: o MP deverá oferecer denúncia por
este crime, que correrá paralelamente à queixa, compartilhando os autos – mesma
instrução, mesmo rito, etc. Forma-se, então, um litisconsórcio ativo facultativo, pela
conexão.

1.1.4. Intranscendência

Este princípio determina que a ação penal só pode ser proposta em face do autor do
crime. Apesar de óbvio, no direito comparado há casos em que a ação penal pode ser
proposta em face do responsável legal pelo agressor, ou seja, este princípio não vige de
forma onipresente, alhures.

1.2. Espécies de ação penal privada

Há quatro tipos de ação privada: a propriamente dita, a personalíssima, a


subsidiária da pública e a adesiva. Vejamo-las.

Michell Nunes Midlej Maron 169


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

1.2.1. Ação penal privada subsidiária da pública

O artigo 5°, LIX, da CRFB,e o artigo 29 do CPP, trazem a previsão desta ação:

“(...)
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal;
(...)”

“Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la
e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer
elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do
querelante, retomar a ação como parte principal.”

Esta ação só pode ser admitida quando houver inércia do MP em promover qualquer
manifestação em relação a crime que seja originalmente de persecução em ação penal
pública.
O pedido de arquivamento absolutamente infundado permitiria este tipo de ação
penal privada? Grandinette e Barbosa Moreira admitem esta propositura, pois o direito de
ação, neste caso, tem natureza constitucional expressa. Todavia, o posicionamento
amplamente majoritário defende que não é possível esta ação subsidiária, pelo seguinte
motivo: não há, aqui, inércia do MP, e a valoração sobre a procedência do arquivamento
não é dada ao particular, e sim ao juiz e ao PGJ, nos moldes do artigo 28 do CPP.
Outra questão bastante intrincada diz respeito à seguinte situação; havendo dois co-
autores de um crime, o promotor somente denuncia um deles, sem se manifestar sobre o
outro, não denunciando-o nem pedindo o arquivamento do inquérito. Caberá a queixa
subsidiária contra o co-autor omitido na denúncia?
O entendimento corrente é que não houve, aqui, inércia: bem ou mal, o MP ofereceu
denúncia. Não pode, a omissão, ser interpretada como uma inércia parcial, ensejadora da
queixa subsidiária contra um dos co-autores.
A ação desta natureza não admite perdão ou perempção. Mesmo sendo dada
legitimidade subsidiária ao querelante, o crime que é ali perseguido é de ação penal pública,
e a ação subsidiária não perde esta natureza pública, sendo a ela atinentes todos os
princípios das ações públicas. Mirabete, isoladamente, defende que são possíveis estes
institutos, mas não surtem qualquer efeito em relação ao MP, que deverá retomar o feito e
prosseguir na ação (pois é indisponível).
A natureza jurídica do promotor, nesta ação penal, é de interveniente adesivo
obrigatório, ou seja, é sua incumbência manifestar-se em todos os termos da ação, sob pena
de nulidade relativa. A sua atuação é regida pelo artigo 29 do CPP, já transcrito. Assim, o
MP poderá aditar a queixa, tanto subjetiva quanto objetivamente; poderá repudiar a queixa,
se a entender mal formulada, caso em que oferecerá denúncia substitutiva (sem significar
retomada da ação, entretanto, tampouco juízo de admissibilidade da queixa, que incumbe
apenas ao juizo), etc. Também poderá o promotor retomar a ação, quando perceber que há
qualquer desídia processual por parte do querelante, qualquer negligência ou ato ímprobo
por parte do querelado.

Michell Nunes Midlej Maron 170


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O prazo para oferta da queixa subsidiária é de seis meses, e começa a contar desde o
término do prazo para denúncia, que é de cinco dias desde o dia em que o promotor receber
o inquérito, para indiciado preso, e quinze dias para o indiciado solto, como dispõe o artigo
46 do CPP, já transcrito. Note-se que o direito de queixa só surge no dia seguinte ao
término do prazo do MP, mas não implica em substituição da legitimidade: o MP continuará
incumbido de ofertar denúncia, mesmo após perder seu prazo, sendo impedido apenas
quando o querelante o fizer primeiro.
Passados os seis meses do querelante, prazo decadencial que é constante do artigo
38 do CPP, na verdade, tecnicamente, é um prazo preclusivo nestas ações penais privadas
subsidiárias: ele não extingue a punibilidade, pois o MP, até a prescrição do crime, ainda
poderá oferecer denúncia, apenas estando precluso o direito de queixa do particular.

“Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal,


decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo
de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no
caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação,
dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.”

1.2.2. Ação penal privada personalíssima

Consiste na ação penal privada que somente pode ser ajuizada por uma pessoa em
particular. Subsiste apenas um crime cuja ação penal é desta espécie, o crime de
induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento, do artigo 236 do CP:

“Art. 236 - Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou


ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não
pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo
de erro ou impedimento, anule o casamento.”

Note que apenas o ofendido pode deflagrar a ação, e somente ele pode dar
andamento, o que significa que, falecendo o ofendido, haverá a extinção da punibilidade
pela perempção, pois não se admite a sucessão processual.
Esta ação é tão pessoal, que se a vítima for incapaz, por doença mental ou qualquer
outro motivo, a ação penal simplesmente não poderá ser deflagrada, diante da
impossibilidade de que o representante legal a promova.

1.2.3. Ação penal privada adesiva

Ocorre quando há conexão entre um crime de ação penal pública e outro de ação
penal privada, onde a vítima oferta a queixa ao lado da denúncia.
Na verdade, então, não se trata de uma outra espécie de ação penal, mas sim de uma
terminologia empregada para identificar esta situação peculiar.

1.2.4. Ação penal privada propriamente dita

Michell Nunes Midlej Maron 171


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Esta é a ação exclusivamente privada, ou seja, é aquela cujo exercício compete ao


ofendido, ou a quem legalmente o represente, desde o início, desde sempre, e com
possibilidade de sucessão processual. É a regra geral, a ação penal privada comum, por
assim dizer.

1.3. Queixa

Queixa é a exordial da ação penal privada, assim como a denúncia o é da pública.


Há quem diferencie a rejeição e o não recebimento da queixa (diferenciação que
também se aplica para a denúncia): o não recebimento envolve questões de natureza
processual, a exemplo dos pressupostos processuais ou condições da ação, e neste caso, o
recurso correto seria o recurso em sentido estrito, com base no artigo 581, I, do CPP:

“Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença:


I - que não receber a denúncia ou a queixa;
(...)”

A rejeição da queixa, por sua vez, implicaria em incursão na resolução do mérito,


desafiando o recurso de apelação, com base no artigo 593, II, do CPP:

“Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:


(...)
II - das decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz
singular nos casos não previstos no Capítulo anterior;
(...)”

O STF, bem como Polastri, faz esta distinção.


Outra questão diz respeito à possibilidade ou não de julgamento antecipado da lide
no processo penal, ou seja, se é cabível ou não a apreciação preliminar de mérito, fazendo
coisa julgada material, em decisão de arquivamento de inquérito ou rejeição de denúncia ou
queixa.
Várias são as correntes em disputa sobre o tema. Para o STF, decisão de
arquivamento não faz coisa julgada, salvo se houver atipicidade ou extinção da
punibilidade. Para Fauzi Hassan Choukr, como não houve ação, nem processo, não se
poderia falar em coisa julgada. Polastri, por seu turno, entende que é comum no processo
penal que determinadas decisões tangenciem o mérito, sem no entanto fazer coisa julgada.
Porém, nas hipóteses de atipicidade e extinção da punibilidade, a decisão tem força
preclusiva típica de coisa julgada. Ada e Afrânio Silva Jardim, por fim, entendem que estas
decisões preliminares que invadem o mérito equiparam-se a um julgamento antecipado da
lide, no processo penal.

1.3.1. Requisitos da queixa

A queixa deve conter, obrigatoriamente: a exposição do fato criminoso; a


qualificação do acusado, salvo a hipótese do artigo 259 do CPP; a capitulação do crime; e o
rol de testemunhas.
Poderia o juiz aditar a queixa, quando ausente algum requisito? É exatamente o caso
da mutatio libeli, do artigo 384 do CPP:

Michell Nunes Midlej Maron 172


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

“Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato,


em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não
contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo,
a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova,
podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe
aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério
Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido
instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo
de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.”

Veja que, na hipótese do caput, quem adita a queixa é o juiz, mudando a imputação
de ofício, o que é possível tanto em ação penal publica como em ação penal privada.
A mutatio consiste na alteração da imputação pelo juízo, pois os fatos revelados
durante a instrução denotam a prática de infração penal diversa daquela que foi imputada na
exordial. A fim de evitar uma absolvição penal injusta, o CPP autorizou esta alteração
diretamente pelo juiz: este formulará uma imputação alternativa ele mesmo, mesmo sem
que a parte se manifeste.
E ressalte-se circunstância ainda mais significativa: o juiz poderá alterar a
imputação, de ofício, mesmo se no curso da ação penal privada for identificado o
cometimento de um crime que é de persecução em ação penal pública: mesmo assim, a
mutatio é admissível.

1.4. Ação penal privada nos crimes contra a honra

A regra está no artigo 145 do CP:

“Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante
queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Parágrafo único - Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do n.º I do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do
mesmo artigo.”

A regra geral, então, é que o crime contra a honra seja perseguido em ação penal
privada. Mas são as exceções que merecem atenção especial.
Na injuria real praticada com lesão corporal, como indica o caput deste artigo, o
crime será perseguido em ação penal pública condicionada à representação:

“Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:


(...)
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à
violência.”

A injúria real difere da lesão corporal e da contravenção de vias de fato em razão da


natureza do dolo da conduta: na injúria real, o ato de violência ou vias de fato é praticado
com dolo de humilhar o ofendido. Na contravenção penal das vias de fato, o agente não
pretende humilhar ou ofender a integridade física da vítima. Na injúria real, a intenção é de

Michell Nunes Midlej Maron 173


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

humilhar, mas haverá contato físico com a vítima para tal ofensa moral (bom exemplo seria
lançar objetos com o fim de deixar a vítima em estado vexatório, como arremessar ovos ou
tomates). Na lesão corporal, o dolo é de ofender a integridade física da vítima.
Outra exceção é o crime contra a honra do Presidente da República ou do chefe de
governo estrangeiro, que, segundo o parágrafo único do artigo 145 do CP, é perseguido em
ação penal pública condicionada á requisição do Ministro da Justiça.
A última exceção é o crime contra a honra do funcionário público em razão de suas
funções, caso em que a ação é pública condicionada à representação. O STF editou a
súmula 714, que dá legitimidade concorrente à vítima, para propor a ação penal de natureza
privada. Veja:

“Súmula 714, STF: É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e


do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação
penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.”

1.4.1. Procedimento

Nos crimes contra a honra, antes de ser deflagrada a ação penal, pode haver o
pedido de explicações, como estabelece o artigo 144 do CP:

“Art. 144 - Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou


injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se
recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.”

Trata-se de medida facultativa, que tem como objetivo dar ao querelante a justa
causa para deflagrar a ação penal. Este pedido de explicações não interrompe o prazo
decadencial, e sua única conseqüência processual é a prevenção do juízo.
Quando o crime contra a honra tiver ação penal pública, o promotor está legitimado
a pedir explicações? O artigo 144 do CP é literal: apenas o ofendido pode pedir estas
explicações, e não o membro do MP.
Com ou sem o pedido de explicações, o querelante oferece a queixa; oferecida esta,
antes de recebê-la, o juiz abrirá vistas ao MP, o qual realizará uma análise sobre as
condições da ação, e devolverá ao juízo com o seu parecer. Então, o juiz marcará a
audiência de conciliação, prevista no artigo 520 do CPP, ainda antes de receber a queixa:
“Art. 520. Antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes oportunidade para
se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente,
sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo.”

Quando o crime contra a honra for de ação penal pública, é claro que esta audiência
não será realizada, pois o artigo acima transcrito é expresso, e porque vige, na ação pública,
a obrigatoriedade que lhe é inerente, não cabendo esta conciliação.
O juiz poderá rejeitar a queixa antes da audiência de conciliação? O momento
natural para esta rejeição ou recebimento é após a frustração da intentada conciliatória, mas
há dois entendimentos sobre a possível rejeição antes da audiência do artigo 520 do CPP: a
primeira corrente defende que não é possível, pois a audiência de conciliação tem natureza
jurídica de condição de procedibilidade imprópria, cuja inobservância é causa de nulidade

Michell Nunes Midlej Maron 174


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

absoluta. A segunda vertente defende que é possível, pois evitar-se-ia um constrangimento


ilegal do querelado, e até mesmo por questão de economia processual.
A ausência do querelante na audiência de conciliação é causa de perempção? Há,
também, dois entendimentos: para o STJ, há perempção, pois esta ausência demonstra
desinteresse pelo querelante na ação penal; para Mirabete, não há perempção pois ainda não
há processo, sem contar que o desinteresse, se presente, é na realização de um acordo, e não
na própria ação penal.
Realizada a audiência, e frustrada a conciliação, o juiz fará o juízo definitivo da
admissibilidade, recebendo ou rejeitando a queixa.

Casos Concretos

Questão 1

Caio, ofendido, requer a instauração de inquérito policial para apurar a prática de


crime de ação penal privada. Concluída a apuração, esta aponta unicamente Tício como
autor da infração penal. Caio, então, propõe, tempestivamente, ação penal privada em
face de Tício, sendo a queixa-crime recebida pelo juízo da vara criminal.
Ocorre que, no curso da instrução criminal, surgem fortes elementos a indicar que
Mévio, que até então não havia sido mencionado nas investigações, também praticara o
crime juntamente com Tício, aderindo sua conduta à dele.
Pergunta-se:
Pode o ofendido aditar a queixa-crime para nela fazer incluir Mévio?
E o Ministério Público pode aditar a queixa-crime subjetivamente no curso da
ação, velando pelo princípio da indivisibilidade da ação penal privada?

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 175


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

A questão trata da indivisibilidade da ação penal privada, e exsurge a discussão


sobre a ocorrência de renúncia ou não quando um dos co-autores do crime não for incluído
na queixa.
Apesar de ser corrente majoritária a que entende que sempre deve ser reconhecida a
renúncia, a posição ponderada de Mirabete, aqui, parece ser a mais razoável: a renúncia,
para ele, não pode ser automática, pois do contrário ocorreriam situações incongruentes,
como in casu: Mévio sequer era conhecido do querelante, e sua exclusão não pode afigurar
renúncia. Sendo assim, nada impede que o querelante possa aditar a queixa, ele mesmo.
Já quanto à possibilidade de o MP aditar a queixa, a discussão é ferrenha. Há,
basicamente, quatro correntes: Polastri e Damásio defendem que o CPP não deu ao MP
poderes para aditar a queixa, neste caso, e o promotor velará pela indivisibilidade da ação
requerendo a extinção da punibilidade em relação a todos os autores, pela comunicação da
renúncia; Tourinho e Pacelli entendem que o membro do MP poderá aditar a queixa, vez
que é custos legis, fundamentando-se no artigo 45 do CPP, zelando pela indivisibilidade;
Mirabete, como dito, defende que deverá ser analisada a razão da omissão, e somente se
houve clara renúncia esta se estenderá aos demais co-autores, extinguindo-se a punibilidade
para todos; e por último, Sérgio Demoro Hamilton defende que existe um conflito entre os
artigos 45 e 49 do CPP, e a solução é interpretá-los in dubio pro reo, ou seja, aplica-se a
renúncia para todos os envolvidos.

Questão 2

Mário era casado com Maria, cuja interdição fora decretada, nomeado curador seu
pai, João. Nessa qualidade de curador, João promoveu a prisão em flagrante de Mário,
por crime de adultério e, em seguida, contra ele ajuizou ação penal privada, oferecendo a
necessária queixa, que foi recebida.
Pergunta-se:
O ato de recebimento da queixa foi correto ou incorreto? Por quê?
Resposta à Questão 2

Hoje, adultério não é crime, pelo que a questão perdeu o sentido. Todavia,
admitindo-se que ainda fosse crime, apenas para adentrar o que parece ser o cerne da
questão, João não poderia ajuizar a ação: esta é personalíssima, sequer sendo transferida ao
curador a sua titularidade.

Questão 3

MÁRIO ofereceu queixa-crime contra HAROLDO pela suposta prática dos crimes
de calúnia, difamação e injúria, previstos nos artigos 138, 139 e 140 do CP, mas deixou de
comparecer à audiência preliminar, sem motivo justo aparente. O Juiz, então, julgou o feito
extinto por força da perempção. Agiu corretamente? Fundamente.

Resposta à Questão 3

Há dois entendimentos: há quem defenda que a falta do querelante à audiência


preliminar representa desinteresse na ação, e por isso ocorre a perempção; e há quem

Michell Nunes Midlej Maron 176


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

defenda que o desinteresse é na realização do acordo, e não na ação, e que se o processo


sequer foi instaurado, não pode haver perempção.
A norma expressa no artigo 60, III, do CPP assim dispõe:

“Art. 60. Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á
perempta a ação penal:
(...)
III - quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer
ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de
condenação nas alegações finais;
(...)”

Tema XVI

Ação Penal nos Crimes Complexos.

Notas de Aula

1. Ação penal nos crimes contra os costumes

A questão é complexa, e gira, basicamente, em torno de dois dispositivos: o artigo


225 do CP, que trata da suposta regra geral para as ações penais nos crimes contra os
costumes, e a súmula 608 do STF, que trata do estupro, mas se estende também para os
demais crimes contra os costumes. Mesmo já tendo sido transcritos anteriormente, vale
revê-los mais uma vez:

“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores (crimes contra os
costumes), somente se procede mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-
se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;

Michell Nunes Midlej Maron 177


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto,


tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende
de representação.” (parêntese nosso)

“Súmula 608, STF: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação
penal é pública incondicionada.”

Em princípio, deve ser traçado um conceito para o que seja “violência real”, da
súmula 608: não é a violência presumida, por óbvio; e não é a lesão corporal grave,
gravíssima ou morte, pois estas já transformam claramente a ação penal em pública
incondicionada, como a própria lei o consigna, sendo despicienda súmula para atestar o que
a lei já deixa claro. Assim resta claro que se trata da lesão corporal leve. Destarte, a
violência real deve ser assim interpretada.
Ocorre que, sendo assim, a súmula vai de encontro à letra da lei: o CP, no artigo
transcrito, é cristalino em estabelecer que a natureza da ação é privada, em caso de estupro
com lesão corporal leve. O STF assim justifica a previsão aparentemente contraditória da
súmula 608: o estupro é um crime complexo, resultante da prática de duas condutas
dissociadas, quais sejam, a lesão corporal leve, fato típico, e a conjunção carnal, fato
naturalmente atípico, adotando o STF a tese do crime complexo lato sensu, portanto,
conceito do jurista italiano Francesco Antolisei, claramente esposado no seu informativo
456, no julgado do HC 86.058, que seguirá transcrito adiante. Sendo crime complexo,
então, o STF entende aplicável o artigo 101 do CP, que dispõe que:

“Art. 101 - Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal
fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele,
desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do
Ministério Público.”

A ação penal no crime complexo, então, respeita a natureza da ação penal que se
impõe a um dos crimes autônomos que compõe o crime complexo, o que no caso de
estupro se refere à lesão corporal leve. E esta é a explicação da súmula: à época de sua
formulação, o crime de lesão corporal leve era de persecução em ação penal pública
incondicionada, e por isso o crime complexo de estupro de que faz parte assim também o
seria.
A doutrina sempre criticou esta construção, fazendo o seguinte raciocínio: em
primeiro plano, o estupro não é crime complexo, porque o segundo ato não é típico, sendo
que o conceito de crime complexo reinante é o stricto sensu, que pede cumulação de duas
condutas típicas; e como segundo argumento, mesmo se o estupro for considerado crime
complexo, o artigo 225 do CP é norma especial em relação ao artigo 101, e por isso deveria
prevalecer. Debalde as críticas, o STF sempre manteve a aplicação da súmula 608.
Em 1995, a Lei 9.099 adicionou um elemento complicador: alterou, em seu artigo
88, a natureza da ação penal para as lesões corporais leves e culposas, transformando-a em
ação penal pública condicionada à representação:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

Michell Nunes Midlej Maron 178


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Quando surgiu esta norma, imaginou-se que, seguindo-se o raciocínio do STF, a


súmula seria relida, pois se o crime integrante do complexo – a lesão corporal leve –,
determinante da ação penal, agora não mais era perseguido em ação pública
incondicionada, a súmula deveria adaptar-se, e o crime de estupro seria perseguido em ação
penal pública condicionada à representação. Mas o STF, ainda outra vez desejoso de
preservar a validade da súmula 608, propôs nova explicação: na verdade – dizia o STF
neste segundo momento interpretativo desta problemática –, este crime complexo do
estupro não é a combinação de lesão corporal leve e conjunção carnal forçada: é a
combinação do constrangimento ilegal com a conjunção forçada. Assim sendo, o
constrangimento ilegal determinaria a natureza da ação penal do estupro, e como a sua
persecução é em ação penal pública incondicionada, assim o seria o estupro –
salvaguardada a súmula 608, portanto.
Assim solucionou-se a questão durante muito tempo, até que, no informativo 456, já
mencionado, o STF novamente reviu sua interpretação do crime de estupro. Veja:

“EMENTA: I. Habeas corpus: conhecimento. Não se sujeita o recurso ordinário de


habeas corpus nem a petição substitutiva dele ao requisito do prequestionamento
na decisão impugnada: para o conhecimento deles, basta que a coação seja
imputável ao órgão de gradação jurisdicional inferior, o que tanto ocorre quando
esse haja examinado e repelido a ilegalidade aventada, quanto se omite de decidir
sobre a alegação do impetrante ou sobre matéria sobre a qual, no âmbito de
conhecimento da causa a ele devolvida, se devesse pronunciar de ofício.
II - Estupro ou atentado violento ao pudor praticados com violência real: delitos
complexos (C.Penal, art. 101).
1.Dispõe o §2º do art. 147 do C.Penal, que além das penas cominadas ao
constrangimento ilegal, se este for praticado com violência, devem ser aplicadas as
penas correspondentes (vias de fato, lesões corporais ou morte).
2.O fato constitutivo da violência real, pois, não se inclui na tipificação do
constrangimento ilegal (C.Penal, art. 146, caput), como aliás se infere da
objetividade jurídica deste; mas se inclui ela, ao contrário, no de estupro ou
atentado violento ao pudor mediante violência real: quando praticados com
violência real, portanto, não se trata de mero constrangimento ilegal com
finalidade específica, mas de delitos efetivamente complexos.
3.Daí que, comprovada a ausência de finalidade específica de conjunção carnal ou
ato libidinoso diverso, restam, no caso de violência real, duas infrações penais em
concurso material: (a) constrangimento ilegal e homicídio; (b) constrangimento
ilegal e lesões corporais; ou ainda, (c) constrangimento ilegal e vias de fato; assim,
só a concorrência do especial fim de agir é que os converte em crime diverso
contra a liberdade sexual.
III - Estupro ou atentado violento ao pudor praticado mediante violência que - sem
resultar em lesões, como lhe é próprio -, se amolda à contravenção de vias de fato
(LCP, arts. 17 e 21): não-incidência da Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal.
1. A regra do art. 17 LCP - segundo a qual a persecução das contravenções penais
se faz mediante ação pública incondicionada - não foi alterada, sequer com relação
à de vias de fato, pelo art. 88 da L. 9.099/95, que condicionou à representação a
ação penal por lesões corporais leves (HC 80.617, Pertence, RTJ 177/866).
2. Ocorre que, embora constituam delitos complexos, não se aplica o art. 101 do
C.Penal quando a violência mediante a qual foram praticados se amolde à
contravenção de vias de fato e não a crime.
3. Para ampliar a incidência do art. 101 do C.Penal às contravenções penais, não
cabe a invocação do art. 3º do C.Pr. Penal: a ampliação cogitada teria reflexo nas
causas de extinção da punibilidade, o que imprime à regra conteúdo materialmente
penal.

Michell Nunes Midlej Maron 179


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

IV - Incidência do art. 255, §1º, I, do C.Penal: hipossuficiência da vítima: não


basta, para infirmá-la a constituição de advogado pelo assistente da acusação
(Precedentes).
1.Além de dispensável, para a comprovação da hipossuficiência da vítima, a
declaração ou atestado de miserabilidade formalizado, não basta, para infirmá-la, a
constituição de advogado pelo assistente da acusação. Precedentes.
2.Inviabilidade do habeas corpus, ademais, para verificar a efetiva hipossuficiência
econômica da vítima, questão não acertada nas instâncias de mérito.
V - Ausência de representação: suficiência da demonstração inequívoca do
interesse na persecução criminal.
1.A satisfazer a exigência da representação é suficiente a demonstração inequívoca
do interesse na persecução criminal: precedentes.
2.Tratando-se de notícia crime coercitiva, qual a prisão em flagrante, basta a
ausência de oposição expressa ou implícita da vítima ou de seus representantes, de
tal modo que se verifique, que a intenção sempre foi a de que se prosseguisse na
persecução criminal do fato, propósito que se reforça, no caso, com a
superveniente habilitação do menor como assistente de acusação.
VI. Habeas corpus indeferido.”

Vale ainda transcrever um curto segmento do voto do Ministro relator, Sepúlveda


Pertence, que é de alta relevância:

“(...)
Já no estupro de que resultem lesões corporais, ainda que leves, embora
enfrentando cerrada crítica doutrinária, é certo que se sedimentara no Tribunal o
entendimento da Súmula 608, no sentido de ser a hipótese da ação pública
incondicionada.
Estou, porém, em que a jurisprudência sumulada ficou prejudicada pela
superveniência do art. 88 da L. 9099/95, que passou a condicionar à representação
do ofendido a ação penal por lesões corporais leves ou lesões culposas: premissa
fundamental da Súmula 608, com efeito, era ser o delito de lesões corporais
persequível mediante ação pública incondicionada, o que a lei nova derruiu.
(...)”

Em síntese, neste julgado, o STF sugere que a súmula 608 deve mesmo ser relida à
luz da norma da Lei 9.099/95, ou seja, retornou ao entendimento de que o crime complexo
que se desenha no estupro é o de lesões corporais leves somado à conjunção carnal forçada
e não o constrangimento ilegal – quando ocorrida a lesão, por óbvio; e que a ação penal,
quando assim o for, deve respeitar a novel disposição do artigo 88 da Lei 9.099/95, que
estabelece que a ação penal para os crimes de lesão leve e culposa é pública condicionada
à representação do ofendido. Polastri também adota esta releitura da súmula, à forma deste
artigo 88.
Para todos os efeitos, esta deve ser considerada a visão mais moderna do STF sobre
tema: havendo estupro com lesão corporal leve, a súmula 608 do STF deve ser relida, e a
ação penal será pública condicionada à representação.

1.1. Estupro praticado com vias de fato

Vale consignar que se a violência praticada no cometimento do estupro for vias de


fato, do artigo 21 da Lei das Contravenções Penais, Lei 3.688/41, o STF entende que não se
trata de crime complexo, pois não se trata de crime, e sim contravenção, não sendo
aplicável o artigo 101 do CP: a ação penal é privada. Veja que a ação penal nas

Michell Nunes Midlej Maron 180


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

contravenções é sempre pública incondicionada, como estabelece o artigo 17 da Lei


3.688/41:

“Art. 17. A ação penal é pública, devendo a autoridade proceder de ofício.”

“Art. 21. Praticar vias de fato contra alguem:


Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um
conto de réis, se o fato não constitue crime.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é
maior de 60 (sessenta) anos.”

Veja que surge natural desproporção: se o crime for de lesão corporal leve, a ação é
pública condicionada; se ocorre mera contravenção de vias de fato, a ação é pública
incondicionada. O STF assim continua entendendo, mesmo diante desta disparidade, como
se pode ver neste mesmo julgado do informativo 456, entendendo que o artigo 88 da Lei
9.099/95 não se estende às contravenções penais, por interpretação literal do seu texto. Os
juízos estaduais, porém, criticam este entendimento, e diante da desproporção, o JECrim,
também nas contravenções de vias de fato, condiciona a ação à representação 31 do ofendido,
contrariando o STF em prol da lógica e da razoabilidade.

1.2. Vítima hipossuficiente

O STF manifestou-se, em julgado constante do informativo 464, sobre a


legitimidade do MP para propositura da ação quando a vítima do crime contra os costumes
for pobre. Entendeu que há legitimidade do parquet, pois o artigo 225, § 1°, I, do CP, assim
o prevê, e para que não haja risco de que, por manobras ardilosas, ocorra a disposição do
conteúdo material da persecução, ou seja, que a vítima, por ser pobre, ceda à eventual
pressão financeira do seu agressor, desistindo da ação penal, caso fosse privada. Por conta
disso, não há que se falar em inconstitucionalidade progressiva, como é o caso do artigo 68
do CPP, já abordado (que trata da ação civil ex delicto).
O julgado é o RHC 88.143, da Segunda Turma. Veja:

“A Turma negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus em que a


Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro alegava a ilegitimidade do
Ministério Público para propor ação penal pública condicionada à representação
pela suposta prática dos delitos de estupro (CP, art. 213) e atentado violento ao
pudor (CP, art. 214) quando, não obstante a pobreza da vítima, o ente da federação
possui Defensoria Pública devidamente aparelhada. Rejeitou-se o argumento de
inconstitucionalidade do art. 225, §§ 1º e 2º, do CP pelo simples fato de o Estado-
membro ser provido de Defensoria Pública estruturada. Asseverou-se, no ponto,
ser distinto o dever de o Estado prestar assistência judiciária às pessoas menos
favorecidas e as condições estabelecidas no Código Penal para a propositura da
ação penal. Desse modo, considerou-se despropositada a construção da recorrente
no sentido de invocar, para a espécie, a norma do art. 68 do CPP e a jurisprudência
fixada pela Corte quanto a esse dispositivo - até que viabilizada, em cada Estado, a
31
A representação do ofendido, como visto, é bastante informal, servindo até mesmo o mero comparecimento
à delegacia para narrar o fato como representação. O STF ainda vai além: o simples fato de a vítima não
manifestar oposição às investigações já se considera representação presumida do ofendido.

Michell Nunes Midlej Maron 181


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

implementação da Defensoria Pública, o parquet deteria legitimidade para o


ajuizamento de ação civil ex delicto, quando o titular do direito à reparação do
dano for pobre -, a fim de converter a ação penal pública condicionada em ação
penal privada, que passaria a ter como parte legitimada ativa a Defensoria Pública.
Aduziu-se que a opção do legislador pela convivência entre os artigos 32 do CPP
(autoriza o juiz, comprovada a pobreza da parte, a nomear advogado para a
promoção da ação penal privada) e 225 do CP (concede titularidade ao Ministério
Público para a propositura de ação penal pública condicionada) tem como
conseqüência impedir que, na hipótese do art. 225, § 1º, I, do CP (vítima pobre),
depois de formalizada a representação, possa haver concessão de perdão ou
abandono da causa. Por fim, entendeu-se que tal eleição não fora alterada com a
criação e instalação das defensorias públicas nos Estados, pois a norma visa
impedir que, nas hipóteses de pobreza declarada da ofendida, após a representação
formalizada, não haja disposição de conteúdo material do processo.”

1.3. Conflito de interesses entre representante legal e vítima menor

Se o crime contra os costumes for praticado contra menor, e o seu representante


legal aparecer como pessoa que tem interesses conflitantes – quando for o autor do crime,
por exemplo –, será nomeado curador especial a esta vítima, como determina o artigo 33
do CPP. Veja:

“Art. 33. Se o ofendido for menor de 18 (dezoito) anos, ou mentalmente enfermo,


ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses
deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial,
nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente
para o processo penal.”
O curador especial a que é membro da Defensoria Pública, como prevê o artigo 4°,
VI, da Lei Orgânica da Defensoria Pública, LC 80/94, e o artigo 148, parágrafo único, “f”,
do ECA, Lei 8.069/90:

“Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:


(...)
VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei;
(...)”

“Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:


(...)
Parágrafo único. Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art.
98, é também competente a Justiça da Infância e da Juventude para o fim de:
(...)
f) designar curador especial em casos de apresentação de queixa ou representação,
ou de outros procedimentos judiciais ou extrajudiciais em que haja interesses de
criança ou adolescente;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 182


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Casos Concretos

Questão 1

CIBELE estava no quintal da casa de sua mãe com seu filho HERMES quando,
ASTOLFO, aparecendo de repente, a jogou ao chão e se colocou sobre ela, começando a
rasgar a sua roupa, com o fim de com ela praticar conjunção carnal.
HERMES, apavorado, correu para chamar a sua avó, o que fez com que ASTOLFO
saísse correndo, deixando CIBELE no chão, com a roupa rasgada e leves arranhões em
seus braços.
Indaga-se:
a) Qual o tipo de ação penal neste caso? Por quê?
b) A resposta seria diferente se ASTOLFO, ao invés de leves arranhões, houvesse
causado graves lesões em CIBELE? Fundamente.

Resposta à Questão 1

a) O crime foi estupro tentado, em concurso com lesões corporais leves, e como há
violência real, a ação penal é pública incondicionada, por força da súmula 608
do STF. Todavia, seguindo recente releitura do próprio STF, a ação seria pública
condicionada à representação, em atenção ao artigo 88 da Lei 9.099/95.

Michell Nunes Midlej Maron 183


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

b) Sim, pois a própria lei, o CPP, no artigo 223, determina que a ação é pública
incondicionada, e além disso o STF aplica a súmula 608 à literalidade.

Tema XVII

Ação penal privada subsidiária da pública. Aditamento da queixa pelo M.P. Ação Civil ex delicto. O M.P. e a
D.P. (CPP, art. 68).

Notas de Aula

1. Ação penal privada subsidiária da pública

Toda ação penal, na verdade, é de natureza pública. Há um erro de nomenclatura,


que induz a um erro de concepção, de que as ações penais privadas sejam diferentes das
públicas em natureza. Isto porque o direito de ação é público, abstrato, e a função
jurisdicional é pública, sendo todo processo dotado de publicidade, em regra (salvo as
exceções do sigilo).
De qualquer forma, esta diferenciação é bastante correta quando se trata a
nomenclatura da ação privada como deve ser tratada: como uma classificação quanto à
legitimidade para a propositura. Assim, o nomen correto seria, em verdade, “ação penal
pública de legitimidade privada”, para as chamadas ações privadas.
Debalde esta consideração perfunctória sobre a nomenclatura, é fato que esta é
pacificamente adotada. Dito isso, passemos à análise do tema realmente em debate, que é a
ação penal privada subsidiária da pública.

Michell Nunes Midlej Maron 184


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Esta ação se trata, em termos, de uma aberração jurídica. Tem um caráter


absolutamente excepcional, diante de toda a sistemática do processo penal, mas é
necessária, e é constitucionalmente garantida, como se vê no artigo 5°, LIX, da CRFB32:

“(...)
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal;
(...)”

As ações penais públicas, como se viu, seguem regidas pelo princípio da


obrigatoriedade, ou seja, se há o preenchimento dos requisitos, o MP deve formar sua
opinio delicti e oferecer a denúncia – ou, da mesma forma, se não preenchidas as condições
da ação, formar sua opinio no sentido contrário, promovendo o arquivamento do inquérito
ou a continuidade da investigação.
Esta atuação do MP, em apreço à obrigatoriedade, deve respeitar um lapso temporal
estabelecido em lei, qual seja, a previsão do artigo 46 do CPP:

“Art. 46. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5
dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do
inquérito policial, e de 15 dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso,
se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo
da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos.
§ 1o Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o
oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de
informações ou a representação
§ 2o O prazo para o aditamento da queixa será de 3 dias, contado da data em que o
órgão do Ministério Público receber os autos, e, se este não se pronunciar dentro
do tríduo, entender-se-á que não tem o que aditar, prosseguindo-se nos demais
termos do processo.”

Assim, o prazo para que o MP aja é de cinco dias para indiciado preso, e quinze dias
quando solto. Veja que o prazo é para o MP agir, formar sua opinio delicti, e não para
denunciar, obrigatoriamente. Assim, é mais do que assentado o entendimento que a ação
penal privada subsidiária da pública não é possível se o MP promove o arquivamento.
A grande perda do MP, quando o ofendido ajuíza a queixa subsidiária, é a detenção
da opinio delicti: o MP não será mais o dono da ação, e por isso a opinião do querelante
será a que guiará o processo.
O prazo para o MP é impróprio, contudo. Significa que, mesmo que expirado, não
preclui: o MP poderá ainda efetuar uma das três promoções possíveis – arquivamento,
requisição de diligências ou denúncia. No entanto, deixa de ser o único legitimado para o
exercício do direito de ação: expirado o prazo, surge a legitimação extraordinária para o
particular ofendido.
No processo penal, a legitimidade extraordinária exclui a ordinária. Veja: a
legitimidade extraordinária pode ser originariamente detida pelo ofendido, ou ser
subsidiária à legitimidade ordinária do MP. No primeiro caso, em que a legitimidade
extraordinária é originária, trata-se da ação penal privada exclusiva; no segundo caso, em

32
Crítica que se faz à ação penal privada subsidiária da pública é justamente sua colocação topográfica na
CRFB: ao fazer constar do artigo 5°, passa-se a idéia de que é um direito fundamental, enquanto na verdade
não teria este peso axiológico tão asseverado.

Michell Nunes Midlej Maron 185


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

que a legitimidade extraordinária é subsidiária, trata-se da ação penal privada subsidiária da


pública.
Pelo ensejo, vale traçar algumas linhas definidoras de conceitos fundamentais a este
estudo. Vejamos.
O direito de punir, o jus puniendi, pertence ao Estado. Na teoria geral do processo,
sabe-se que o critério mais primário para identificar quem tem o direito de ação é analisar
quem tenha o direito material: em tese, quem detém direito material, detém o direito de
ação, e a legitimidade para agir. No processo penal, então, quem teria o direito de ação seria
o Estado, detentor do direito material de punir. Por isso, a legitimidade do Estado é
ordinária, e este se faz manifestado através do MP, presentante do Estado.
Todavia, como se sabe, o direito de ação nem sempre é exercido apenas pelo
detentor do direito material. Quando se vai a juízo pleitear direito material alheio em nome
próprio – e em processo civil as hipóteses ocorrem em profusão –, se está diante da
legitimidade extraordinária.
No processo civil, o legitimado extraordinário, via de regra, tem legitimidade
concorrente com o legitimado ordinário (salvo poucas exceções). No processo penal,
contudo, a legitimidade extraordinária, como dito, exclui a ordinária: o MP, presentando o
Estado, é o legitimado ordinário; na ação penal privada exclusiva, a legitimidade do
ofendido, originária, é extraordinária – pois o direito de punir, direito material, continua
pertencendo ao Estado –, e exclui a do MP, legitimado ordinário: somente o legitimado
extraordinário, o ofendido, é legitimado para agir. O MP, o Estado, não pode oferecer
denúncia contra o crime de ação penal privada.
Na ação penal privada subsidiária da pública, o ofendido também tem a
legitimidade extraordinária, pos mesmo ali a pretensão punitiva continua sendo do Estado.
Todavia, o que se passa é que esta ação representa a única exceção à máxima da exclusão
do legitimado ordinário pelo extraordinário: após o prazo do MP, na sua inércia, surge para
a vítima a legitimação extraordinária, pelo prazo decadencial de seis meses, mas esta
legitimidade extraordinária não exclui a legitimação do MP. Assim, trata-se de um caso
excepcional em que, por seis meses, haverá legitimidade concorrente entre o legitimado
extraordinário e o ordinário, ofendido e MP.
Mas repare que o prazo decadencial só opera efeitos para o legitimado
extraordinário. Apenas para o ofendido terá efeito tal prazo. Isto porque, como se sabe, a
regra é que a decadência cause a extinção da punibilidade, como determina o artigo 107, IV,
do CP – como de fato ocorre na ação penal privada exclusiva –, mas, na subsidiária, a
existência de outro legitimado concorrente – o MP, legitimado ordinário –, impede que a
punibilidade seja extinta.

“Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:


(...)
IV - pela prescrição, decadência ou perempção;
(...)”

Outra lógica que deve ser observada é a não obrigatoriedade do oferecimento pela
vítima da queixa subsidiária: é claro que quando ganha legitimidade subsidiária, a vítima
não estará, por isso, obrigada a agir, pois seu exercício de ação continua sendo um direito, e
não um dever.

Michell Nunes Midlej Maron 186


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

No momento em que o ofendido oferece a queixa subsidiária (que é mais


tecnicamente uma queixa substitutiva), a legitimidade do MP se desvanecemas não
desaparece. Ao contrário, se a vítima nada faz, e o seu prazo decadencial corre in albis, a
decadência se opera, mas, como dito, apenas para o ofendido: a punibilidade não resta
extinta. E como o MP ainda é legitimado ordinário, continua tendo a possibilidade de
oferecer denúncia, mesmo após a decadência do direito de queixa do ofendido: enquanto o
crime não prescrever, ou sobrevier qualquer outra causa de extinção da punibilidade, o MP
continua legitimado à ação penal pública.
Destarte, em síntese, percebe-se que o ofendido é o legitimado extraordinário,
sempre, que puder ajuizar ação penal em seu nome – o que só ocorre nas ações penais
privadas, exclusivas ou subsidiárias da pública. É por isso que a expressão substituto
processual, sinonímica de legitimado extraordinário, se aplica bem a qualquer ação penal
privada, para descrever a situação jurídica do particular, ofendido, querelante na ação penal.
Quando a vítima for legitimada para a ação penal, e porventura for civilmente
incapaz – por menoridade ou patologia –, será possível se utilizar das expressões
legitimidade ad causam e ad processum, tecnicamente?
No processo civil, aquele que tem legitimidade para agir, pois detém o direito
material correspondente à ação, mas não pode atuar no processo em nome próprio, tem
legitimidade ad causam, mas não tem a legitimidade ad processum. É precisamente o caso
do incapaz. Esta pessoa dependerá de um representante legal, ou um assistente, que, em
seu nome, o represente no processo, suprindo sua incapacidade civil.
Na ação penal privada, a vítima que não tem capacidade civil plena, e por isso
depende de um representante ou assistente, claramente não tem a legitimidade ad
processum – não pode estar em juízo desacompanhada. Todavia, a terminologia
legitimidade ad causam não pode ser utilizada, simplesmente porque a titularidade do
direito material não lhe pertence jamais: o direito material, direito de punir, pertence
exclusivamente ao Estado – só este tem legitimidade ad causam, tecnicamente.
Alguns autores entendem que esta nomenclatura é aplicável, porém, às ações penais
públicas, e constroem o raciocínio defendendo que é o Estado, na figura do MP, quem
detém a legitimidade ad causam, e que há alguns membros do MP que não teriam a
correspondente legitimidade ad processum, pois não seriam os promotores naturais do
feito. Assim, o princípio do promotor natural determina que apenas alguns membros do MP
têm legitimidade ad processum, mesmo que todo o MP tenha a legitimidade ad causam,
presentante do Estado que o é. Outros autores não questionam esta legitimidade ad
processum de membros do MP, pois se a instituição é una, todos os membros,
indistintamente, têm legitimidade ad causam e ad processum, havendo apenas regras
internas de partição de atribuições.
Voltando à carga da ação penal privada, quando a vítima tem legitimidade
extraordinária, mas não tem legitimidade ad processum por sua incapacidade, será
necessária a presença da figura do representante ou do assistente. Este representante legal é,
por conceito, a pessoa que em nome alheio defende direito alheio. E no processo penal, este
conceito se aplica perfeitamente: o representante, em nome da vítima, defende direito que
pertence ao Estado – em nome alheio, pleiteia direito alheio.
Há que se salientar um aspecto fundamental de toda legitimidade extraordinária
penal, ou seja, um detalhe crucial para que haja qualquer ação penal privada: por mais
óbvio que possa parecer, é necessário que o crime tenha vítima particular bem definida.

Michell Nunes Midlej Maron 187


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Ora, se o crime não tem vítima, não há quem assuma a legitimidade extraordinária. E são
crimes sem vítima aqueles denominados crimes vagos, que não têm ofendido. Alguns
exemplos: crimes ambientais, tráfico de entorpecentes, quadrilha ou bando – todos eles não
têm um particular por vítima, por sujeito passivo, e por isso não há quem tenha a
legitimidade extraordinária para propor a ação penal privada subsidiária. Assim, nestes
crimes, se o MP quedar-se inerte, a legitimidade subsidiária incumbirá à sociedade, de
forma difusa, e por isso ninguém poderá assumir a legitimidade extraordinária, e a ação
penal privada subsidiária da pública que dali decorreria. Em síntese, simplesmente não
cabe ação penal privada subsidiária da pública nos crimes vagos33.
Da inércia do MP, surge a legitimidade para que o ofendido ajuíze a ação penal
privada se for de seu interesse. Assim, a ação penal privada subsidiária da pública rege-se
pelo princípio da oportunidade ou conveniência.
O prazo de seis meses flui desde quando expira-se o prazo para a promoção do MP,
configurando sua inércia – o que ocorre após cinco ou quinze dias, como visto, para
indiciado preso ou solto, respectivamente. Mas atente-se que este prazo do MP começa a
contar desde o recebimento do inquérito pelo promotor a quem for destinado, em seu
gabinete. Vale consignar que considera-se recebido o inquérito quando chega ao gabinete,
como dito, e não quando o promotor o recebe em mãos.
O artigo 29 do CPP é a sede desta ação, e vale ser detalhado em suas previsões:

“Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la
e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer
elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do
querelante, retomar a ação como parte principal.”

O MP, quando recebe a queixa para dar o parecer sobre a queixa, não poderá
pretender assumir o processo, pois sua inércia deu à vítima a titularidade com a queixa
substitutiva. Desde então, o MP atuará como custos legis, intervindo em todos os atos do
processo, podendo propor provas, recorrer se a vítima não o fizer, e manifestar-se a
qualquer tempo.
Se a queixa, no entanto, for inepta, inábil a provocar corretamente a jurisdição –
estando todas as condições da ação presentes, porém –, o MP irá opinar pelo não
recebimento da queixa, e oferecerá denúncia substitutiva. O juiz, então, poderá exercer um
juízo de admissibilidade conjunto, tanto da queixa quanto da denúncia substitutiva. Se o
juiz não recebe a queixa, por considerá-la inepta, a vítima sequer terá interesse em recorrer,
porque o MP, oferecendo a denúncia como o fez, não mais se encontra na inércia que fez
surgir a legitimidade para a queixa. Todavia, este recurso poderá ser interposto, e se
porventura vier a ser procedente no Tribunal, haverá litispendência, se o juiz já recebera a
denúncia. Por isso, recomenda-se que, havendo a rejeição da queixa, que se aguarde o
trânsito em julgado da decisão, para então receber a denúncia substitutiva.
Estando ausente alguma condição da ação na queixa subsidiária, o MP não ofertará,
necessariamente, a denúncia substitutiva, de imediato. O parquet repudiará a queixa,
opinando por seu não recebimento, e, sendo esta repudiada, poderá promover
arquivamento, novas diligências, ou a denúncia substitutiva.
33
Tampouco caberia assistente de acusação, porque não há vítima diretamente interessada na condenação para
o fim da reparação civil ex delicto.

Michell Nunes Midlej Maron 188


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Sendo recebida a denúncia substitutiva, o que se instaura é uma ação penal pública,
desde o nascedouro do processo. Nada impede, porém, que o ofendido, como se viu,
pleiteie sua incursão no processo como assistente de acusação.
Mas veja que se a retomada do processo pelo MP se der em razão de algum ato de
desídia do querelante, já no curso do processo que foi iniciado por queixa substitutiva, o
querelante que foi excluído pela retomada do MP não poderá se habilitar como assistente
de acusação, pois não demonstrou o interesse processual necessário quando teve
oportunidade (sendo claro que se ele não se habilita, mesmo assim poderá buscar a
reparação civil ex delicto).
Nas ações penais privadas exclusivas, a vítima pode desistir, como se sabe: pode
dispor da ação penal, pelos diversos meios possíveis. Na ação penal privada subsidiária da
pública, se o querelante realizar algum ato de disposição, ou qualquer ato de desídia
processual – como faltar a alguma audiência –, o MP deverá retomar a ação desde então. A
ação penal privada subsidiária não é disponível, como se pôde notar, pelo que a perempção
e o perdão não são cabíveis. Exemplo bem claro de retomada pelo MP seria o pedido de
absolvição, consignado pela vítima nas alegações finais: o MP toma para si o processo,
mesmo que vá também requerer a absolvição nas alegações finais.
Pode acontecer de a queixa não ser inepta, mas não ser perfeita: pode faltar-lhe
precisão na descrição dos fatos, ou da capitulação das qualificadoras, por exemplo. Poderá
o MP aditar tal queixa?
O artigo 29 do CPP é claro: pode haver este aditamento, e quem definirá o que será
recebido – se só a queixa, ou se receberá a queixa e o aditamento. Sabe-se que nas ações
penais privadas existe uma discussão sobre a possibilidade de aditamento pelo MP, dada a
aparente antinomia criada pelos artigos 45 e 49 do CPP, já abordados. Esta divergência não
tem qualquer sentido na ação penal privada subsidiária da pública, pois o MP é o
legitimado ordinário da ação para aquele crime – e por isso toda forma de aditamento é
possível.
Se o MP adita a queixa, e o juiz recebe ambos – queixa e aditamento –, para a
integralização da petição inicial, então, participaram ambos os legitimados. Por isso, surge
um litisconsórcio ativo, que Tourinho chama sui generis.
Este litisconsórcio é sui generis porque o pedido é um só, a pretensão punitiva, e
porque o legitimado extraordinário é o primeiro autor, e o ordinário é o segundo autor, e,
embora a ação seja pública, o titular original do direito material assume esta posição
secundária. A doutrina normalmente identifica o MP como assistente litisconsorcial, e não
como custos legis, como é sua atuação normal nesta ação. O assistente litisconsorcial é
parte.
Vale ressaltar que o assistente de acusação jamais pode ser confundido com parte da
demanda. O assistente de acusação é parte dispensável, pois integra o processo, mas sua
atuação é dispensável. Tanto que se o assistente de acusação tiver negada sua habilitação,
não cabe recurso – mas cabe mandado de segurança.
A ação civil ex delicto só será obstada se houver prova da inexistência do fato. Em
qualquer outro caso de absolvição ou condenação, esta ação será possível. A negativa de
autoria, por exemplo, impede a ação contra quem foi processado penalmente, mas não
contra quem se reputar verdadeiro infrator.

Michell Nunes Midlej Maron 189


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Casos Concretos

Questão 1

Diante da inércia do Ministério Público, que deixou expirar o prazo para oferecer
denúncia, o ofendido oferta queixa substitutiva. Em determinado momento processual, o
réu faz transação com o acusador particular, ressarcindo-o de todos os prejuízos
decorrentes da infração penal, com o compromisso assumido por este último de pugnar
pela absolvição. Isto considerado, ocorrerá perempção da ação penal e a conseqüente
extinção da punibilidade? Fundamente a resposta, utilizando suplementos de doutrina e
jurisprudência.

Resposta à Questão 1

A ação penal privada subsidiária da pública, apesar de ser assim denominada, é de


fato regida por todas as normas e princípios atinentes à ação penal pública, pois o delito que
nela é perseguido é de persecução pública.
A transação a que alude o enunciado é um acordo qualquer, e não o instituto da
transação penal. Mesmo assim, é impossível esta conduta, pois se trata de uma espécie de
perdão tácito, que só é admissível em ações penais exclusivamente privadas, mas jamais na

Michell Nunes Midlej Maron 190


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

ação penal privada subsidiária da pública. Ocorrendo esta situação, o MP retomaria o


processo, e este teria curso como ação penal pública.

Questão 2

Desembargador, sentindo-se injuriado, na imprensa, por promotor de justiça, em


razão de sua função, representa ao Procurador-Geral pela instauração da ação penal
pública. Diante da inércia do Procurador-Geral que não determinou o arquivamento nem
ofereceu a denúncia, o Desembargador propôs ação penal privada subsidiária da pública.
Manifesta-se nos autos a defesa do promotor, requerendo a inadmissibilidade da queixa
por ilegitimidade ativa ad causam.
Tem razão o promotor ou o desembargador?

Resposta à Questão 2

Tem razão o desembargador. A ação penal privada subsidiária da pública é cabível


quando há esta inércia do MP, exatamente o que se passou no caso concreto. Não ofertando
a denúncia, nem promovendo arquivamento, o MP se fez inerte, fazendo surgir o direito do
desembargador.
O STF já decidiu que é possível esta queixa, sendo precedente o RHC 68.430.

Questão 3

CARLINDO, suspeito do roubo de um veículo, foi perseguido, apreendido e, após,


executado sumariamente por quatro policiais militares.
Diante disso, o Ministério Público ajuizou ação contra o Estado em favor dos pais
de CARLINDO - CLARICE E CLARIMUNDO, pessoas pobres - para reparação dos danos
causados pelos policiais militares com a morte do mesmo.
Em primeira instância, o pedido foi julgado procedente.
Os autos subiram em reexame necessário e com recurso de apelação do Estado.
Nas suas razões de apelação, a Fazenda Pública pleiteou a inadmissibilidade da
legitimação extraordinária do Ministério Público na hipótese, com esteio na tese da não-
recepção do artigo 68 do CPP pela CR/88, e a reforma total do julgado.
O recurso interposto deve ser provido? Fundamente.

Resposta à Questão 3

Este dispositivo já foi declarado progressivamente inconstitucional, pois a


atribuição para a ação civil ex delicto em favor dos hipossuficientes é da Defensoria
Pública, e não do MP, pelo que, sempre que houver DP instalada, o MP perderá esta
atribuição.
Sendo assim, se no Estado em questão há DPGE instalada, o artigo já se tornou
inconstitucional, e o MP não tem legitimidade; se não há defensoria, o MP pode ajuizar a
ação civil, pois a norma é “ainda” constitucional.
A respeito, vide REsp 475.010.

Michell Nunes Midlej Maron 191


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Tema XVIII

Sujeitos processuais e auxiliares da justiça. Conceito. Juiz. Conciliadores do Juízo. Ministério Público.
Assistentes. Acusado e defensor. Curador.

Notas de Aula

1. Crime contra a honra do servidor no exercício da função

Como se disse, em processo penal, a legitimidade extraordinária exclui a ordinária,


havendo apenas a exceção consistente na ação penal privada subsidiária da pública. Surge
então a súmula 714 do STF, e traz previsão deveras anormal:

“Súmula 714, STF: É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e


do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação
penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.”

Os crimes contra a honra do servidor público, a princípio, são de ação penal pública
condicionada à representação, e por isso não existiria legitimidade concorrente alguma – a
legitimidade é do MP. Somente surgiria a legitimidade concorrente se o MP se quedasse
inerte, quando então, por seis meses, a vítima teria legitimidade extraordinária. Esta súmula
estaria legislando, criando uma nova exceção à dinâmica da legitimidade penal.

Michell Nunes Midlej Maron 192


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O MP, interpretando esta súmula, define que é como se o texto omitisse a expressão
completa, que seria redigida iniciando por “No caso de inércia do MP”. Ocorre que esta
súmula seria apenas a reafirmação do óbvio, vez que a regra geral é mesmo esta.
Assim, a súmula demanda melhor explicação. Suponha-se um crime de injúria: esta
pode ter sido cometida contra o servidor público, em razão de suas funções, ou, mesmo em
seu horário de trabalho, em razão de sua pessoa. Neste primeiro momento, cabe ao
ofendido definir se a agressão se dirigiu às funções que desempenha ou a sua pessoa. Se
ficar definido que o crime é contra si, como pessoa, caberá queixa; se definir que o crime
foi injúria em razão da função, caberá representar para que o MP promova a ação penal
pública. Este é o alcance desta súmula.
Há que se consignar que a probabilidade de se confundir a natureza da agressão, ou
seja, se destina-se à função ou à pessoa, é muito grande, e por isso a aplicação da súmula
seria bastante dificultosa. O fato é que, independentemente das críticas, a posição do MP
não é aceita, sendo, realmente, concorrente a legitimidade de ambos, e à vítima cabe
escolher entre oferecer a queixa ou representar.
A respeito, vide o RHC 82.549, do STF:

“EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS-CORPUS. AÇÃO PENAL


PRIVADA. CRIMES CONTRA A HONRA. OFENSA PROPTER OFFICIUM.
LEGITIMIDADE CONCORRENTE. A legitimidade para a propositura da ação
penal privada nos crimes contra a honra é, via de regra, do ofendido. Essa regra
sofre exceção quando o crime é praticado contra servidor público, em razão do
exercício do cargo, dada a necessidade de tutelar outro bem jurídico, que é o
prestígio da Administração Pública. Nessa circunstância a ação penal passa a ser
pública condicionada à representação. Contudo, para dar efetividade ao preceito
constitucional que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, a legitimidade deve ser concorrente, cabendo tanto a ação penal privada,
quanto a ação penal pública condicionada à representação do funcionário. Recurso
ordinário em habeas-corpus ao qual se nega provimento.”

2. Desdobramento recursal da legitimidade extraordinária subsidiária

Na ação penal pública, a vítima não tem legitimidade, como é cediço; todavia, pode
se habilitar como assistente de acusação, a fim de, auxiliado o MP (sem ser parte, diga-se),
favoreça seu interesse em adquirir um título executivo condenatório que vá fundamentar a
ação civil ex delicto.
Assistindo o MP ou não, surge uma situação bastante peculiar. Suponha-se que em
sede recursal, após a sentença criminal de primeira instância, o MP quede-se inerte, e a
vítima, amparada no artigo 598 do CPP, poderá, em regra, interpor apelação:

“Art. 598. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, ou do juiz singular, se


da sentença não for interposta apelação pelo Ministério Público no prazo legal, o
ofendido ou qualquer das pessoas enumeradas no art. 31, ainda que não se tenha
habilitado como assistente, poderá interpor apelação, que não terá, porém, efeito
suspensivo.
Parágrafo único. O prazo para interposição desse recurso será de quinze dias e
correrá do dia em que terminar o do Ministério Público.”

Esta seria a apelação subsidiária, uma extensão do direito de agir da vítima à seara
recursal, quando da inércia do MP. Ocorre que esta apelação é muito combatida na

Michell Nunes Midlej Maron 193


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

doutrina, por diversos motivos, cujo estudo amiúde tem sede no tópico próprio dos recursos
criminais.

3. Suspeição e impedimento

São sujeitos do processo todos aqueles que se envolvem no processo, em algum


nível, sejam as partes, sejam os integrantes da justiça, inclusive os auxiliares do juízo
(peritos, intérpretes).
Aos auxiliares da justiça e ao MP, se impõem todas as regras de suspeição e
impedimento que se impõem aos juizes. Vale consignar que a autoridade policial, o
delegado de polícia, não é jamais suspeito ou impedido. O delegado pode, se ele entender
que é melhor, se afastar da investigação, por motivo de foro intimo – mas nunca pode ter
argüida suspeição ou impedimento.
Há uma certa divergência sobre o princípio do promotor natural que deve ser
mencionada: o STJ entende que ele existe de forma autônoma, e não por analogia ao juiz
natural, e está contido nas prerrogativas do membro do MP, especialmente na vitaliciedade
e na inamovibilidade. A imparcialidade é exigível porque o MP, além de parte, é custos
legis.
O STF, especialmente a Ministra Ellen Gracie, é contrário à vigência de tal
princípio, pois o órgão é uno e indivisível, não havendo qualquer lógica em se limitar a
atuação por meio de tal princípio. Apenas não poderia haver designação contrária aos
critérios traçados na Lei Orgânica do MP.

Casos Concretos

Para investigar a participação de policiais militares no tráfico de armas, o


Procurador-Geral de Justiça designa um promotor de uma das varas criminais. Terminada
a investigação e chegando-se às identidades dos policiais, oferece a denúncia este mesmo
promotor. Distribuída a ação penal para uma vara criminal diferente da sua, o
Procurador-Geral o designa para auxiliar o promotor titular da vara para a qual a ação
penal fora distribuída. A defesa dos policiais militares alega a nulidade da denúncia por
ofensa ao princípio do promotor natural, bem como a nulidade dos atos processuais que
tiveram a sua participação. Decida.

Resposta à Questão 1

Não há ofensa ao alegado princípio. A distribuição foi respeitada, e o promotor da


vara de destino será o oficial do feito; nada há que se argumentar contra a prestação de
auxílio pelo promotor que atuou na investigação, pois é ele quem tem maior conhecimento
sobre o fato, bem como é o próprio autor da denúncia. Nenhuma nulidade deve ser
reconhecida, portanto.
Assim se manifestou o STJ no HC 17.106.

Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 194


EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

O Ministério Público denunciou Fábio Goulart, sócio-gerente do "Grupo Goulart


S.A.", pela prática da conduta prevista no art. 177, § 1º, inciso III, do Código Penal
porque, segundo o Promotor de Justiça, o acusado teria usado bens da sociedade em
proveito próprio, sem autorização da assembléia-geral.
Surpreendido pela acusação, Fábio impetrou habeas corpus requerendo,
liminarmente, o trancamento da ação penal. O impetrante argumentou que era inexistente
a justa causa ensejadora da ação penal e, portanto, ilegal a coação.
Atento ao caso, João Aguiar, acionista da sociedade e assistente da acusação na
ação penal acima referida, peticionou no HC com o objetivo de que a liminar fosse
indeferida e, posteriormente, denegada a ordem.
A defesa de Fábio, irresignada com a intervenção de João, requer sua inadmissão
no mandamus e, para tanto, alega que, nessa espécie de ação, somente podem se
manifestar a autoridade-coatora e o MP.
Decida a questão.

Resposta à Questão 2

O HC é um processo completamente distinto do processo original, e dele independe:


é uma ação autônoma de impugnação. Seu efeito é o trancamento da ação penal em que a
suposta constrição ilegal da liberdade está sendo praticada.
Todavia, o assistente de acusação não pode, de fato, intervir no mandamus, porque
sua atuação é adstrita única e exclusivamente à ação penal condenatória – seu interesse é na
sentença condenatória que facilite a ação civil ex delicto. Mesmo porque, o que se discute
no HC é a ilegalidade da coação, e isto não tem qualquer pertinência ao assistente de
acusação. O limite da atuação do assistente é o artigo 271 do CPP:
“Art. 271. Ao assistente será permitido propor meios de prova, requerer perguntas
às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar
os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos
arts. 584, § 1o, e 598.
§ 1o O juiz, ouvido o Ministério Público, decidirá acerca da realização das provas
propostas pelo assistente.
§ 2o O processo prosseguirá independentemente de nova intimação do assistente,
quando este, intimado, deixar de comparecer a qualquer dos atos da instrução ou
do julgamento, sem motivo de força maior devidamente comprovado.”

Está correta a tese do impetrante, portanto. Assim se manifestou o STF, no RHC


65.781.

Questão 3

Ivonete está sendo processada pela prática do crime de estelionato.


Ao constituir seu patrono, o Dr. Vilaça da Silva, foi intimada pelo Juízo por onde
tramita o processo para que constituísse outro advogado ou, caso contrário, passaria a ser
defendida pela defensoria pública.
Ivonete nomeou aquele advogado com o intuito de afastar do processo o Juiz, pois,
sabendo de seu entendimento contrário à tese defensiva, temia uma sentença desfavorável.

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EMERJ – CP I Direito Processual Penal I

Assim, ciente da relação de compadrio do Magistrado com aquele causídico,


induziu, segundo fundamentou o Juiz, a situação de suspeição.
A defesa, diante da decisão, impetrou mandado de segurança para que o direito da
acusada de nomear livremente seu patrono fosse preservado. Argumentou que o decisum
violou o princípio constitucional da ampla defesa.

Resposta à Questão 3

Absolutamente absurda a decisão do magistrado. É, de fato, direito líquido e certo


do réu nomear quem quer que seja habilitado para sua defesa, e é cediço que o mero
conhecimento entre juiz e advogado não induz suspeição.
O juiz só poderia destituir a defesa se esta se demonstrasse ineficiente, causando
deficiência da defesa técnica, ou se o advogado for parente do juiz, na forma do artigo 267
do CPP:

“Art. 267. Nos termos do art. 252, não funcionarão como defensores os parentes
do juiz.”

Como não é o caso, nada há que sustente a decisão do juiz, devendo esta ser
reformada. Se o juiz se considerar suspeito, ele que assim se declare, e se afaste do feito. A
ordem deve ser concedida.
A respeito, vide o MS 2002.078.00022, do TJ/RJ.

Michell Nunes Midlej Maron 196

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