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Dezembro 2012

A FORÇA DA MULHER INDÍGENA

Mulheres Indígenas em Pernambuco


Afirmando Tradições, Identidades e Protagonismos
APOIO

REALIZAÇÃO

Dona
Pacífica
Pipipã, 2011
Sumário

www.cclf.org.br Editorial Guerreiras – a força da mulher indígena


O caminho se faz
Endereço: Rua 27 de Janeiro, 181,
Carmo, Olinda, PE, Brasil, 53.020–020
Tel.: 55 (81) 3301-5241 Algumas considerações
55 (81) 3301-5242
ao caminhar 5
sobre o vivido
............................
Fax: 55 (81) 3429-4881
E-mail: cclf@cclf.org.br 6 ....................................................

Conselho Diretor
Presidente: Aldenice Rodrigues Teixeira
Vice-Presidente: Sonia Jay Wright
Secretário: Jayme Benvenuto Lima Júnior

Conselho Fiscal
Edvaldo Martiniano de Luna
Roberto Franca
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Coordenação Executiva
Cida Fernandez

Tesouraria:
Janete Santiago de Souza

Coordenação Programática
Comunicação: Ivan Moraes
Educação: Patricia Freire Descida da Serra do Ororubá. Povo Xukuru, Pesqueira (PE)
Política de Leitura: Rogério Barata
Orçamento Público –
Democratização da Gestão Pública: Entrevista cacique Hilda Entre Serras Pankararu
Ana Nery dos Santos
“A gente tem aquela fé que sai da terra
e dos espíritos da mata”
Manuela Schillaci...................................................................................... 38
Organização
Um pouco da história do
nosso movimento
Caroline Leal
Heloisa Eneida
Lara Erendira Andrade
Francisca Kambiwá............................................. 32 Educar para transformar:
a mulher como tema na sala de aula
– o relato de uma experiência
Edição
Renato Santana da Silva
O que há em comum: a Entrevista de Heloisa Eneida com a professora Edilene Pankará.......................... 41
Editoração eletrônica
Licurgo S. Botelho
participação das mulheres
nos movimentos sociais POEMAS
Fotos
Arquivo Cimi, Caroline Leal, Éden
Elisa Entre Serras Pankararu............................... 33 Xukuru, Atikun e Truká........................................................ 42
Magalhães, Elizabeth Leal, Lara Erendira,
Manuela Schillaci, Priscila D. Carvalho e
Entrevista Dona Zenilda Xukuru do Ororubá
Gênero e
Renato Santana da Silva.
Água: Fonte de Vida
Mapas e gráficos Silvinha Xukuru................................................... 35 “Quem nasceu lutando não vai morrer
Lula Marcondes (O Norte – Oficina de
Criação), Conselho Indigenista Missionário
Mulheres de braços cruzados”
Renato Santana......................................................................................... 44
(Cimi), Fundação Nacional do Índio
(Funai) e Ministério do Meio Ambiente. A importância da mulher na
Indígenas no
Tiragem: 2 mil exemplares. luta do povo Kapinawá Nordeste POEMA
ISBN 978-85-87433-05-3 Socorro Kapinawá............................................... 36 Jurema Machado.................... 30 Pipipã................................................................................................... 48

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Editorial

O caminho se faz
ao caminhar
Equipe Indigenista do Centro de Cultura Luiz Freire

D
esde 1995 o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
acompanha a luta dos povos indígenas no estado
de Pernambuco. Nessa caminhada de denúncia e
anúncio, a equipe indigenista do CCLF percebeu que todo
trabalho de assessoria junto às comunidades tinha um
importante eixo de mobilização: a Mãe Terra.
Ente feminino, a terra acaba por ser a mãe que fornece a vida e que garantiu,
garante e garantirá a articulação histórica de resistência de uma causa invencível, a
causa indígena. A mulher, portanto, é parte integrante e mítica da condição de povos
resistentes ao processo colonizador e colonial/capitalista, que historicamente as oprime.
Porém, o próprio movimento indígena fez a equipe indigenista do CCLF
perceber que dentro dele existia outro movimento importante, que o alimentava e
se mostra fundamental à luta dos povos indígenas pernambucanos. Esse movimento
é o de mulheres indígenas. Na atuação ao lado da APOINME e COPIPE, ficou claro
que era preciso fortalecer a organização das mulheres.
Nesse contexto, entre 2011 e 2012, o CCLF desenvolveu o projeto Mulheres
Indígenas em Pernambuco: Afirmando Tradições, Identidades e Protagonismos. A
presente publicação é resultado desse trabalho, com ações de formação durante
três encontros envolvendo 12 povos. Na mesma medida, realizou-se também um
diagnóstico participativo sobre a realidade das mulheres indígenas.
Na publicação levamos ao público o resultado dos encontros de formação,
por intermédio de produções das próprias indígenas, bem como um apanhado geral
do diagnóstico realizado. Pretendemos assim subsidiar outros encontros, reuniões,
reflexões e lutas das mulheres indígenas, além de fortalecer o próprio movimento.
Como as próprias mulheres defendem a intenção não é estar atrás ou à frente dos
homens, mas ao lado.
Como os grandes empreendimentos afetam as mulheres indígenas? Quais
as contradições que elas enfrentam dentro do movimento indígena? De que forma
as mulheres transformam o dia a dia das comunidades? Quais os medos e angústias
presentes no cotidiano? As respostas, apresentadas nessa publicação, seguirão moti-
vando novas perguntas e ações.
Por fim, a revista traz a história de importantes lideranças femininas e
entrevistas com Dona Zenilda Xukuru e Dona Hilda Entre Serras Pankararu. Eis a
Assembleia da Copipe, junho de 2011, Território Entre Serras Pankararu Guerreiras – A Força da Mulher Indígena.

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Guerreiras – a força da mulher indígena
Algumas considerações
sobre o vivido
Caroline Leal
Heloisa Eneida
Lara Erendira Andrade*

A
autoatribuição Guerreiras, contornos diferenciados, atualizados, mas tendo o
mesmo conteúdo: machista, racista e eurocêntrico.
utilizada pelas mulheres A partir do século XX, os povos indígenas em Pernam-
indígenas em Pernambuco, buco surgem no cenário nacional reivindicando seus
é tanto uma valorização da força direitos territoriais ao Estado brasileiro. Entre os vários
movimentos políticos e rituais para a reconquista de
feminina no presente, como um seus territórios tradicionais destacam-se a participação
enunciado mítico da condição na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 e
de povos resistentes ao processo a luta pela retomada de suas terras, que tem como
importante líder o cacique Xicão Xukuru, assassinado
colonizador e colonial/capitalista, em 1998 a mando de fazendeiros interessados nas
que historicamente as oprime. terras indígenas.
As mulheres indígenas tiveram um papel fundamental
Pernambuco é uma das regiões mais antigas do como líderes religiosas e políticas nesse movimento
contato com o colonizador, entretanto, registra a quarta de retomada. Detentoras de saberes ancestrais, elas
maior população indígena do país! Existem atualmente têm tido grande influência na condução tanto do
12 povos, localizados nas regiões do agreste e sertão, movimento indígena, como das lutas específicas de
totalizando 53.284 indivíduos (IBGE, 2010). seus povos. Participam ativamente nas duas principais
A história desses povos pode ser observada e compre- organizações indígenas no estado: a Articulação dos
endida a partir do processo de resistência indígena no Povos Indígenas no Nordeste, Minas Gerais e Espírito
período colonial, contra a invasão dos portugueses - e Santo (APOINME) e a Comissão de Professores Indí-
também dos holandeses - na faixa litorânea para a explo- genas em Pernambuco (Copipe). Importante destacar
ração do solo e da mão de obra dos povos originários que a criação da Apoinme contou com a participação
para o cultivo da cana de açúcar, e, posteriormente, feminina, a da guerreira Maninha Xukuru-Kariri.
contra a exploração do sertão, onde os colonizadores A luta dos povos indígenas em Pernambuco está
se colocaram atrás do ouro, do salitre, e de grandes centrada no Ente feminino, que é a luta pela Mãe Terra.
Da esquerda para a direita: Dona Ana Atikum, Dona Emília e Dona Senhora Pankará, 2012
porções de terras para a criação do gado. A Terra Mãe é que garante a vida a esses povos e os
O desenvolvimento do capitalismo colonial se deu a articula historicamente. Também sustenta um interes-
partir da exploração do trabalho dos/as indígenas, dos sante fluxo cultural e epistemológico baseado na ideia
A luta dos povos indígenas em Pernambuco está
negros e negras, da usurpação da terra e das riquezas da construção do Bem Viver como projeto societário
naturais. Males que perduram até os dias atuais, com de descolonização, que se pauta por outra ética que centrada no Ente feminino, que é a luta pela Mãe Terra.
A Terra Mãe é que garante a vida a esses povos e os
* Heloisa Eneida e Lara Erendira Andrade coordenaram o projeto Mulheres Indígenas em Pernambuco.
Caroline Leal é antropóloga e assessorou o projeto como colaboradora. articula historicamente.

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valoriza os saberes dos anciãos e das anciãs, o cuidado Mulheres de cada um desses doze povos iniciaram (SEGATO 11, 2003). Com esse desejo de comparti- externa do processo de mobilização e organização do
com a Natureza Sagrada, os princípios da reciprocidade seu processo de mobilização coletiva mais recente, lhar suas lutas, histórias, projetos e desejos, que a movimento de mulheres indígenas que trazemos aqui.
e da organização do trabalho coletivo e a construção no formato de “movimento de mulheres”, acionadas organização do movimento de mulheres indígenas de Trata-se também da nossa contribuição e do nosso
de saberes e conhecimentos coletivos, sendo estes um pelo próprio movimento indígena por intermédio da Pernambuco desencadeia um processo de articulação comprometimento com as variadas demandas desses
conjunto de ideias e de práticas que aproximam esses Apoinme. Mesmo que majoritariamente formado por entre os povos e passam a realizar, nas comunidades, povos. É nesse contexto que o leitor/leitora deve situar
12 povos e os distinguem da sociedade nacional. lideranças masculinas, a Apoinme compreendeu que a encontros estaduais e locais. essa publicação no intento de evidenciar, junto com as
história do movimento indígena não poderia caminhar à Nesses encontros buscam debater acerca de demandas indígenas, os avanços da participação feminina na vida
Vejamos quem são: margem da realidade política da aldeia e do mundo. As relacionadas ao seu cotidiano, como também discussão de política dos povos indígenas, bem como os desafios a
Povo População Localização mulheres indígenas passam a ter cada vez mais presença temas gerais, sejam assuntos pautados pelo movimento serem enfrentados por essas coletividades.
pública e com demandas e reivindicações próprias. indígena ou aqueles do movimento de Ao longo desses anos de parceria
Buíque, Tupanatinga e Diante de tal conjuntura foi criado o departa- mulheres em geral. A mobilização e com os povos indígenas, temos obser-
Kapinawá 3.283
Ibimirim
mento de mulheres na organização, o que ampliou a organização das mulheres indígenas em O Centro de Cultura vado as várias dimensões da vida que
Xukuru 12.000 Pesqueira mobilização das mulheres nos diversos povos, o apoio Pernambucano, embora tenha criado Luiz Freire (CCLF) tem são desempenhadas em cada povo
Fulni-ô 4.260 Águas Belas político-institucional às formas de organização e ao um departamento próprio, continua por homens e mulheres. Grande parte
protagonismo dessas líderes e, consequentemente, sua caminhando conjuntamente com as
buscado compreender e das mulheres ocupa em suas aldeias
Tuxá 261 Inajá
articulação com o movimento de mulheres. lideranças indígenas masculinas na sistematizar o processo de espaços domésticos, do plantio, do
Kambiwá 2.911 Ibimirim e Inajá
Pipipã 1.195 Floresta
Como afirma a antropóloga Rita Segato, as mulheres defesa dos direitos fundamentais dos mobilização das mulheres artesanato, do ritual, entre outros.
de todo mundo, de todas as culturas, “se associam povos indígenas. Algumas dessas mulheres indígenas
Petrolândia, Tacaratu e por compartilharem de uma história de sofrimento, Para pensar no direito das mulheres indígenas em Pernambuco, chegam a ocupar espaços de maior
Pankararu 5.500
Jatobá como a violência, reconhecendo-se e construindo uma indígenas é necessário considerar que, a partir do trabalho de “visibilidade” política, quase sempre
identidade comum, apesar das imensas diferenças” por um lado, elas são parte de povos
Pankararu
1.500 Petrolândia acompanhamento das lutas reservadas aos homens, como o
Entre Serras originários e, por outro, fazem parte cacicado e etc. Entretanto, o espaço
Pancaiuká 150 Jatobá também do contingente de mulheres e do cotidiano político, doméstico e comunitário são espaços
Carnaubeira da Penha
da nação. Importante destacar que religioso e socioeconômico políticos importantes, decisórios nas
Atikum 4.631 os direitos humanos servem a essas aldeias, que convivem com os demais
e Salgueiro
mulheres nos dois campos em que
desses povos desde 1995. espaços de poder na comunidade e
Carnaubeira da Penha elas atuam: para sustentar suas reivin- fora dela.
Pankará 5.000 e 300
e Itacuruba
dicações enquanto grupo étnico e para ampará-las Um exemplo que deve ser destacado é o caso Pankará,
Truká 5.986 e 250 Cabrobó e Orocó enquanto sujeitos de direito na sociedade nacional. povo indígena localizado no sertão pernambucano,
Ao analisar a atuação do movimento de mulheres na região do polígono da maconha, onde a principal
indígenas de Pernambuco, estamos adotando a pers- liderança política desse povo, a cacique Dorinha, acaba
pectiva de relações de gênero de Segato (2003), como de ser eleita a primeira vereadora mulher na cidade
“práticas e ideias referentes às relações dos homens e de Carnaubeira da Penha. O inicio da transformação
mulheres nos diferentes grupos, as experiências que de um espaço político que sempre foi dominado pelo
dessas interações resultam, e as noções e valores que gênero masculino. A firmeza e a sabedoria - adquiridas
orientam os papéis femininos e masculinos em cada através da religião de seu povo - nas posições políticas
sociedade”, considerando as dimensões políticas da de Dorinha Pankará, em defesa dos direitos do seu
aldeia em que a mulher tem um papel definido. povo, passam agora a desafiar o machismo nas relações
Nesse sentido, o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) políticas/partidárias.
tem buscado compreender e sistematizar o processo de Outro caso de destaque é o da mobilização das
mobilização das mulheres indígenas em Pernambuco, a mulheres indígenas Kapinawá, povo indígena locali-
partir do trabalho de acompanhamento das lutas e do zado entre os municípios de Buíque, Tupanatinga e
cotidiano político, religioso e socioeconômico desses Ibimirim. Em meados de 2011 os Kapinawá retomam
povos desde 1995. Trata-se, portanto, de uma análise a mobilização pela ampliação do seu território tradi-
cional a partir da ameaça de construção de um hotel
1 SEGATO, Rita Laura. Uma agenda de ações afirmativas para as mulheres fazenda nesta mesma área, o que poderia acarretar na
indígenas do Brasil. Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.
1. Xukuru – 2. Kapinawá – 3. Kambiwá – 4. Pipipã – 5. Atikum – 6. Pankará agende.org.br/docs/File/dados_pesquisas/outros/Acoes%20para%20
expulsão de famílias indígenas que utilizam as terras
7. Pankararu – 8. Entre Serras Pankararu – 9. Pankaiuká – 10. Fulni-ô – 11. Truká – 12. Tuxá mulheres%20indigenas.pdf > Acesso: 06/10/2012. da fazenda para agricultura e pecuária.

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Nesse contexto, as mulheres Kapinawá despontam Apesar dos avanços no protagonismo
como lideranças do movimento numa das mais bem
sucedidas retomadas de terra. Destacamos a organi-
da mulher na luta política do movimento
zação, o revezamento das equipes, o provimento do indígena de Pernambuco, a dominação
povo, a “ordem” do povo, de forma que sustentaram e a subordinação ainda predominam,
diariamente na retomada aproximadamente 300 pessoas
durante quase quatro meses, até que a ameaça fosse embora possa variar conforme a cultura
eliminada. Pela primeira vez na história desse povo as de cada povo. Esse é um desafio a ser
mulheres participam do processo de negociação com
enfrentado não apenas pelo movimento de
os órgãos estatais para garantir o direito à terra tradi-
cionalmente ocupada pelo grupo. Isso sem descuidar mulheres indígenas, mas por cada povo em
da manutenção da alimentação dos acampados na particular, especialmente se consideramos
retomada, da casa, dos filhos.
Segato (2003) destaca a importância de se considerar
a dinamicidade das culturas.
na divisão do trabalho social papéis menos aparentes,
e, em geral, descuidados por pesquisadores: divisão do Apesar dos avanços no protagonismo da mulher na
trabalho afetivo, sexual, moral, espiritual. Um exemplo luta política do movimento indígena de Pernambuco, a
paradigmático disto na realidade das populações indí- dominação e a subordinação ainda predominam, embora
genas que lutam pela terra é a administração da cozinha possa variar conforme a cultura de cada povo. Esse é um
num movimento de retomada. Função fundamental e desafio a ser enfrentado não apenas pelo movimento de
decisiva no provimento da alimentação que garante a mulheres indígenas, mas por cada povo em particular, Elisa Entre Serras Pankararu, Assembleia da Copipe, junho de 2011
permanência das famílias no movimento, e que geral- especialmente se consideramos a dinamicidade das
mente é atribuído à mulher. culturas. Ou seja, se a cultura é modificada nas relações que se estabelecem historicamente, não é Um dos grandes negociação. Com esse tipo de reflexão
possível afirmar que o espaço da mulher elas têm empreendido uma série de
sempre foi de subalternidade em relação
desafios atuais para debates que levou a realização do diag-
aos homens e que isso deverá permanecer. o Movimento de nóstico que apresentamos a seguir.
O diálogo entre culturas diversas Mulheres Indígenas Durante um ano estivemos junto
poderá suscitar transformações na às mulheres indígenas de Pernambuco
vida da comunidade que conduzam em Pernambuco é desenvolvendo o projeto, financiado
ao reconhecimento da importância o enfrentamento pela ONU Mulheres, que resultou nesta
da mulher na vida política dos povos publicação. Foi um processo intenso de
da violência, tanto
indígenas. Segato (2003) afirma que as encontros com as mulheres indígenas
mulheres indígenas enfrentam o desafio a praticada pelos de cada um dos 12 povos do estado de
entre manter a lealdade a seu povo e agentes do Estado e Pernambuco. A principal questão que
reclamar direitos individuais, apareceu durante os diversos encontros,
“Se reclamam seus direitos baseados
fazendeiros invasores específicos nas comunidades e gerais,
na ordem individualista, elas parecem das terras indígenas, são as consecutivas formas de violência
ameaçar a permanência dos direitos como a violência às quais mulheres indígenas e os povos
coletivos nos quais se assentam o são submetidos. Tanto é que durante
direito comunitário à terra e à divisão doméstica. os encontros elas sempre repetiam que
do trabalho tradicional na unidade um dos grandes desafios atuais para o
doméstica como base da sobrevivência.” Movimento de Mulheres Indígenas em Pernambuco é
Desse modo, acreditamos que são as próprias indí- o enfrentamento da violência, tanto a praticada pelos
genas que terão que avaliar o que vale a pena resguardar agentes do Estado e fazendeiros invasores das terras
da estrutura de gênero tradicional e que aspectos podem indígenas, como a violência doméstica.
mudar, sem tornar vulneráveis os laços afetivos com a A violência doméstica é uma questão que emergiu
sua comunidade, a coesão do povo, sua contribuição e a cada encontro ganhou maior visibilidade. No geral,
Cozinha da Retomada dos Pankará no Serrote dos Campos, Itacuruba, 2011. Na foto, a cacique Lucélia e sua mãe econômica, sua riqueza cultural e sua força política de as violências relatadas foram as mais diversas, elas

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falam de situações de violência e opressão em espaços
públicos e privados, violências físicas, psicológicas
b A violência
e moral. Vamos apresentar agora uma síntese das doméstica, o
questões mais importantes que elas trouxeram, um
pouco do que vimos e ouvimos das suas denúncias e
alcoolismo e a Lei
visões de mundo. Maria da Penha
Os principais temas abordados foram: a) a violência
praticada por agentes do Estado e fazendeiros; b) a
violência doméstica, o alcoolismo e a Lei Maria da
Penha; c) as obras do Programa de Aceleração do
O que nos pareceu mais difícil e doloroso é tratar
da violência sofrida em âmbito doméstico. São
marcantes na vida comunitária indígena, e da própria
Crescimento (PAC) do governo federal e os impactos identidade étnica, os laços de solidariedade e harmonia.
nos territórios indígenas e em suas vidas; d) a questão da Como pode justamente neste espaço coexistir cumpli-
sobreposição de unidades de conservação da natureza cidade conjugal e de identidade com a violência? As
e terras indígenas. Vamos a cada um deles. mulheres relatam vários casos da violência doméstica,
de perseguições dos maridos às mulheres que começam
a participar do movimento, e o não reconhecimento do
a A violência praticada trabalho doméstico e do trabalho feito na roça por elas.
por agentes do
Estado e fazendeiros

A s mulheres denunciam o preconceito que sofrem


nos espaços públicos, por agentes do Estado, que
negligenciam o atendimento, negam a prestação de Cozinha de retomada Truká
serviços de assistência, segurança e proteção. Os casos
são inúmeros, e vão desde a negligência e desrespeito “Muitas lideranças falam da importância da parti- O alcoolismo não é o que ocasiona a
nos atendimentos das equipes de saúde nas aldeias, cipação das mulheres no movimento, mas não deixam
que aparecem pouquíssimas vezes durante o mês para as mulheres de sua casa participar”
violência (mas a agrava), as indígenas
prestar atendimento e não fazem uma interlocução “Nós mulheres indígenas também queremos auto- apontam que esta é uma questão que tem
com os saberes tradicionais de saúde. nomia política. Precisamos reconhecer que existe sim que ser reconhecida como um problema
As indígenas relatam também, em alguns casos, uma hierarquia entre homens e mulheres. Nosso trabalho
o constrangimento a que são submetidas quando é sempre desvalorizado. O exemplo são as mulheres de saúde pública em todos os povos
vão fazer exames específicos de prevenção e que são que ajudam nas despesas de casa, porque ajudam na indígenas, não apenas um caso de polícia.
roça. Ajuda não. A mulher trabalha na roça.” (Relato
atendidas nas salas de aula pela falta de estrutura. Até Afirmam que o combate à violência contra
ofensas pessoais e preconceitos vividos nos hospitais das indígenas durante os encontros)
da cidade. Elas sempre lembram Maninha Xukuru-Ka- Nos encontros a forma de violência mais abordada é as mulheres passa pelo combate ao
riri, uma das primeiras mulheres indígenas a se tornar aquela que acontece nas aldeias associadas ao consumo alcoolismo, e o estabelecimento de medidas
liderança no Nordeste, e que morreu na frente de um de bebidas alcoólicas. Desde o início do processo
de mobilização das mulheres no estado que esta é
de saúde que consigam tratar o problema
hospital no município onde morava, vítima da falta de
atendimento médico. Maninha Xukuru-Kariri uma questão recorrente. Mesmo com a campanha como uma questão central.
Por vezes, esta violência cometida pelo Poder Público feita pelo movimento indígena em 2006 e 2007, para
se soma aos interesses dos fazendeiros locais. Questiona fechar os bares/bodegas nas aldeias, o número desses também da violência doméstica de que são vítimas,
Maninha Xukuru-Kariri, uma das estabelecimentos ainda é grande e são frequentados praticadas por familiares alcoolizados, principalmente
ainda a legitimidade da identidade indígena. É o caso,
por exemplo, do poder municipal da cidade de Carnau- primeiras mulheres indígenas a se tornar principalmente pelos homens. os maridos.
beira da Penha com a cacique Dorinha Pankará. São liderança no Nordeste, morreu na frente Não é raro ouvir depoimentos sobre brigas que A bebida alcoólica foi utilizada desde o início da
inúmeros os relatos que tratam do prefeito da cidade terminam em mortes nestas mesas de bar, de adoles- colonização como uma moeda de troca com os indí-
questionando o cacicado desta indígena e as tentativas
de um hospital no município onde morava, centes bêbados e jovens alcoolizados frequentando a genas, tornando-se uma das principais ferramentas
de interferir na autonomia do povo. vítima da falta de atendimento médico. escola. Dentro destas narrativas, as mulheres tratam no processo de dominação das populações nativas.

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São inúmeros os relatos de como o As mulheres indígenas A antiga Funasa (Fundação Nacional de cestas básicas, ou o desenvolvimento de serviços resolvidas dentro da organização social do próprio povo.
invasor embriagava os indígenas para de Saúde), órgão responsável pelo aten- comunitários. O exemplo é de alguns casos de brigas ou roubos, onde
poder roubar a terra. O resultado é que
reconhecem o avanço dimento à saúde dos povos indígenas no As mulheres indígenas reconhecem o avanço da as pessoas envolvidas geralmente são chamadas pelas
os/as indígenas viram-se expropriados da criação da Lei país até 2011, tampouco a Sesai (Secre- criação da Lei Maria da Penha, o que colocam em lideranças - que encaminham o processo de resolução
de seus territórios e no decorrer da Maria da Penha, o que taria Especial de Saúde Indígena), que questão é como fazer dialogar os direitos indígenas e do conflito sem chamar a “polícia branca”. Isto quer
história trabalhando para fazendeiros hoje é o órgão do Ministério da Saúde o direito das mulheres, como adequar a lei às respec- dizer que os povos, por serem diferentes, constroem
em terras que ancestralmente eram colocam em questão é responsável pela saúde indígena, apontou tivas realidades? na convivência suas formas próprias de administrar,
de seus povos, com condições de vida como fazer dialogar os e aponta para a execução de políticas “Eu não sabia que em 2012 ainda tem mulher que encaminhar, punir.
precárias faltando-lhes saúde, terra,
direitos indígenas e o públicas que tratem de forma profunda e é proibida de fazer o preventivo. É um absurdo. São Nesse sentido, no caso da violência doméstica, as
incentivo para o trabalho agrícola, os concreta a questão do alcoolismo como mulheres ainda arrastadas pelos cabelos. Têm coisas mulheres relatam que o mais comum é que o caso seja,
limites urbanos cada vez mais próximos. direito das mulheres, um dos principais problemas de saúde que são negadas às mulheres, por isso que tem tanto inicialmente, comunicado às lideranças do povo para
Ocorreu, assim, a desestruturação na vida como adequar a pública nas comunidades. movimento de mulheres, e mulheres organizadas... O tratar da questão. Porém, comumente estes casos ficam
comunitária, dos laços de solidariedade, Nos encontros era quase comple- que a gente faz para ir atrás da Lei Maria da Penha? O sem resolução (e tendem a se repetir) ou são encami-
dos valores do grupo, o que levam os
lei às respectivas mentar falar do álcool, da violência que a gente faz para ir atrás do nosso direito? Que em nhados para as delegacias da cidade, que também têm
sujeitos a uma série de vícios, inclusive realidades? gerada por ele, e da Lei Maria da Penha, 2012, o Movimento de Mulheres Indígenas avance, para sido pouco eficazes nos encaminhamentos dos processos
a dependência ao álcool. principal referência para essas mulheres marcarmos a nossa história, as nossas nações, e que de agressão. Há um grande vazio na efetivação das polí-
Mesmo reconhecendo que o alcoolismo não é o que tratam diretamente com o problema. A Lei Maria ajudemos a contribuir no projeto de futuro dos nossos ticas públicas de enfrentamento à violência contra as
que ocasiona a violência (mas a agrava), as indígenas da Penha foi uma grande conquista do movimento povos.” (Relato das indígenas durante os encontros) mulheres e de delegacias especializadas da mulher para
apontam que esta é uma questão que tem que ser de mulheres como um todo. Antes dela, a violência A aplicação dessa lei às populações indígenas requer as áreas rurais. E nas delegacias comuns nem as mulheres
reconhecida como um problema de saúde pública doméstica cometida contra as mulheres era de tal um direcionamento diferente para combater esse tipo indígenas, tampouco as não indígenas, conseguem dar
em todos os povos indígenas, não apenas um caso de forma considerada inferior, um crime de menor teor de violência nas aldeias. O Artigo 231 da Constituição prosseguimento aos casos de violência doméstica.
polícia. Afirmam que o combate à violência contra ofensivo, que um homem que agredisse a outro num Federal garante o respeito à “organização social, aos usos, Retomamos aqui a fala de Mocinha, liderança Kapi-
as mulheres passa pelo combate ao alcoolismo, e o bar, por exemplo, poderia ser preso, mas a pena de costumes e tradições” dos povos indígenas. A Convenção nawá, sobre a presença policial na aldeia: “Acalmou, pois
estabelecimento de medidas de saúde que consigam um marido que agredisse a mulher poderia ser no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, tinha muita violência. Por um lado é bom, e por outro
tratar o problema como uma questão central. máximo uma pena educativa como o pagamento da qual o Brasil é signatário, também determina que invade nossa privacidade”. Mas não é só a privacidade
“ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados que é invadida, como tratar com a polícia se muitas
deverão ser levados em consideração seus costumes vezes os policiais são os principais agentes no processo
ou seu direito consuetudinário”. de criminalização das lideranças indígenas e os agentes
Durante o diagnóstico, uma das questões que traba- na violência contra os povos, sendo responsáveis pelos
lhamos foi como os povos tratavam da violência, crimes processos de repressão às retomadas de terras? Esta é
e também da violência doméstica. A questão era se uma questão central na discussão da necessidade da
existiam normas internas para o trato dessas questões. presença policial e da aplicação da Lei Maria da Penha
Percebemos que é comum que determinadas atividades para a realidade indígena.
consideradas criminosas pela Justiça comum sejam E agora, o que farão as mulheres agredidas? Ao que
parece, a violência doméstica contra as mulheres, antes
considerada um problema do âmbito privado, vem
A violência doméstica contra as sendo colocada como questão de interesse e reflexão
mulheres, antes considerada um comunitária, em grande parte provocada pela criação
da Lei Maria da Penha, em 2006, e pelo processo de
problema do âmbito privado, vem organização das mulheres indígenas nas aldeias. Não
sendo colocada como questão de há consenso, nem acúmulos suficientes do Movimento
interesse e reflexão comunitária, em de Mulheres Indígenas apontando sobre o que fazer
nestes casos de agressão. Resolve-se internamente
grande parte provocada pela criação ou se leva para a Justiça comum? Como resolver isso
da Lei Maria da Penha, em 2006, e internamente? Se levar para a justiça, como adaptar a
lei à realidade indígena? Ainda há um caminho a ser
pelo processo de organização das percorrido neste assunto, mas os primeiros passos já
Reunião de trabalho durante Assembleia da COPIPE, junho de 2011 mulheres indígenas nas aldeias. foram dados e o tema está na pauta.

14 15
c As obras do PAC e
os impactos nos
territórios indígenas
e em suas vidas

I niciamos nesse trecho outro bloco de questões que


mobilizou as mulheres indígenas nesse processo: as
“grandes obras” e seus impactos. Para esta explanação
optamos por colocar em diálogo os relatos apresen-
tados pelas indígenas e alguns dados que ilustrarão o
contexto no qual estas obras estão inseridas para se
ter a concreta dimensão da questão.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), o PAC é a ação do governo brasileiro responsável
pelo maior número desses “grandes projetos”. Ele conta
hoje com cerca de 450 projetos. Dos quais, cerca de
100 impactam de forma direta e indireta os territórios
indígenas em todo o país. Os impactos denunciados pelo Impactos da obra de Transposição do Rio São Francisco no sertão nordestino Canal do Eixo Leste sendo construído para a Transposição do Rio São Francisco
movimento são diversos, desde a intrusão e degradação
de seus territórios tradicionais, até a não regularização O governo tenta vender a imagem de que a sede” e apontam cerca de 12 milhões de beneficiados. Mas, ainda assim, estes números podem ser contes-
fundiária de algumas terras indígenas. Porém, os especialistas que estudam a obra demonstram tados. Devido o tipo de manejo que será necessário
Na região Nordeste, Pernambuco é um dos principais
finalidade da transposição do rio é “levar que estes números não são reais, e que apenas cerca de para manter os canais da transposição funcionando –
estados no processo de construção dessas “grandes água para quem tem sede” e apontam cerca 5,7 milhões de pessoas é que poderão vir a ter acesso a como, por exemplo, estações para a elevação da água
obras”. Citamos as de maior porte: a Transposição do de 12 milhões de beneficiados. Porém, esta água para consumo humano, uso animal (gado) e onde há desnível de relevo – a água terá altos custos,
Rio São Francisco, a Ferrovia Transnordestina – já bem agricultura familiar, sendo que a água em maioria será e a população mais pobre dificilmente poderá pagar
adiantadas em sua construção -, e as barragens de Pedra
os especialistas que estudam a obra destinada ao agronegócio, complexos industriais em por ela. As indígenas que moram nos povos afetados já
Branca, Riacho Seco e a Usina Nuclear. Todas as obras demonstram que estes números não são portos e turismo (Suassuna, 2007a). estão bem conscientes deste contexto, como ilustrado
“Esse número vem sendo questionado, inclusive, pelo abaixo na fala de uma professora Truká
citadas impactam de forma direta as terras indígenas reais, e que apenas cerca de 5,7 milhões
e o convívio comunitário dos povos. Vejamos as obras Tribunal de Contas da União. Não podia ser diferente: “A gente sabe quem vai ser beneficiado pela trans-
que estão afetando diretamente a vida das mulheres de pessoas é que poderão vir a ter acesso conforme estatísticas da  SUDENE (2003), os estados posição não vai ser os pequenos agricultores, e sim os
indígenas em Pernambuco: a esta água para consumo humano, uso do Nordeste Setentrional (Ceará, Rio Grande do Norte, latifundiários. Quando a água chegar, os humildes não
Paraíba e Pernambuco) possuem uma população esti- vão ter condições de pagar pela água. Lá em Petro-
animal (gado) e agricultura familiar, sendo
A obra de Transposição das Águas mada em cerca de 21,5 milhões de pessoas, sendo 10,3 lina, naqueles projetos Nilo Coelho, Bebedouro (que
do Rio São Francisco que a água em maioria será destinada ao milhões residentes em região semi-árida, com sérios são vilas produtivas irrigadas), muitos agricultores
agronegócio, complexos industriais em problemas de abastecimento. Segundo o Comitê da Bacia venderam os lotes, porque não tinham condições de
Para entender a Transposição comecemos com Hidrográfica do São Francisco, o Projeto de Transposição pagar pela água. Eu duvido que essa água passe no
alguns dados sobre o empreendimento. A obra de portos e turismo (Suassuna, 2007a). atende a menos de 20% da área do Semi-árido e 44% pé da porta dos humildes”. (Professora Sônia Truká
Transposição das Águas do Rio São Francisco é um de sua população continuarão sem acesso ao precioso / CIMI, 2011, p. 44)
projeto desenvolvido pelo governo brasileiro, denomi- líquido. Isto significa dizer que apenas 5,7 milhões de Desta forma, o projeto é também contestado por
nado de “Projeto de Integração do Rio São Francisco O projeto, aprovado em 2005, é contestado por pessoas dos quatro estados é que serão beneficiadas, sua eficácia técnica, pois além dos altos custos da
com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”. O diversos setores da sociedade civil, desde especialistas portanto, muito diferente daquele anunciado pelo água, especialistas apontam os astronômicos gastos
projeto prevê a construção de cerca de 600 quilômetros na questão hídrica no semiárido brasileiro, até às popu- projeto, de 12 milhões de pessoas.” (Suassuna, 2007a2) com as obras. Com montantes de dinheiro muito
de canais em concreto, divididos em dois eixos – norte lações que serão diretamente afetadas pelo projeto, menores investidos em projetos de convivência com
e leste – para o desvio das águas do São Francisco, que entre elas os povos indígenas. 2 SUASSUNA, João. Caravana do São Francisco: revelando uma mentira o semiárido o problema da água, no sertão, poderia
percorrerão os estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba O governo tenta vender a imagem de que a finalidade histórica. 2007a. Disponível em: http://www.remaatlantico.org/ ser combatido de forma mais eficaz. O problema não
Members/suassuna/artigos/caravana-do-sao-francisco-revelando-
e Rio Grande do Norte. da transposição do rio é “levar água para quem tem -uma-mentira-historica/. Acesso agosto de 2012. é necessariamente a falta de água no sertão, mas a

16 17
concentração dela e da terra. A água, principalmente As Truká relatam ainda outra área de seu povo que Ao saber destas informações diversas organizações,
distribuída em carros-pipa, é usada como “moeda de será afetada diretamente pela construção de uma obra entre elas indígenas, setores das universidades federais
troca” para manter o povo no “cabresto”. anexa a Transposição – a barragem de Pedra Branca. A de Pernambuco, Bahia e Alagoas, sindicatos rurais,
As mulheres indígenas nos apontam que as maiores Ilha da Tapera, território tradicional desse povo indígena, ambientalistas e pastorais, começaram a se organizar
prejudicadas com essa concentração da água são elas, que ainda está em processo de regularização fundiária, para contestar os planos do governo em investir em
afinal, assim como as demais mulheres do contexto rural, será completamente inundada para o funcionamento energia nuclear. Em outubro de 2011 acontece nos
elas são as responsáveis pela água da casa, andando da barragem. municípios de Belém do São Francisco, Itacuruba,
muitas vezes longos percursos para pegar água para Além das Truká, as Pipipã também relataram o que Floresta e Jatobá a Caravana Antinuclear que buscou
beber, lavar, cozinhar. está acontecendo ao seu povo, pois o canal do eixo alertar as populações locais para os riscos da instalação
Fica claro que a finalidade da Transposição das leste corta seu território ao meio, também está em dessa usina.
Águas do Rio São Francisco, não é a satisfação hídrica processo de regularização fundiária. As obras já foram As indígenas nos relatam que as principais questões
da população – que dificilmente terá acesso a ela – mas iniciadas e há aldeias que estão totalmente destruídas levantadas pelo movimento foram os riscos de acidentes
o abastecimento do agronegócio (irrigação e carcini- com seu avanço. nucleares e o problema do lixo tóxico, além da deses-
cultura e da indústria. Isso demonstra as prioridades tabilização de comunidades indígenas e quilombolas,
que o governo vem definindo, consolidando assim Pretinha Truká, 2011 Uma Usina Nuclear no sertão que possivelmente terão problemas na regularização
um modelo de desenvolvimento do país que prioriza pernambucano de seus territórios.
o investimento no grande capital, aqui representado “A medida em que ele (o governo) vai As mobilizações ainda apontaram as alternativas
pela agroindústria. de energia limpa, como a energia solar e dos ventos,
enrolando os Truká, e o povo sofrendo, ele vai Outra obra constantemente denunciada pelos indí-
“Por outro lado, o referido projeto que visa, priori- genas e que vem causando muitas dúvidas sobre seu que não destroem a natureza. O movimento contestou
tariamente, a satisfação das necessidades hídricas da tocando a obra. Colocou um pano quente no também o fato de não ter ocorrido diálogo com a
processo é a Usina Nuclear que está para ser construída
população do Semiárido, terminou por não alcançar processo territorial. A demarcação da terra no município de Itacuruba. população local para tratar dos riscos, principalmente
os seus objetivos, pelo simples fato de o mesmo à saúde e ao meio ambiente.
concentrar terra e água; diminuir a oferta hídrica
não é prioridade para o governo [...], o projeto O plano de investimento em energia atômica do
Neste mesmo ano ocorreu um acidente nuclear em
governo brasileiro foi fartamente divulgado nos meios
das populações – pois apenas transfere água de uma da transposição é grandioso e reconhecer de comunicação em meados de 2011, justamente no Fukushima, no Japão, após um Tsunami. Este fato gerou
bacia para outra, deixando essa água ao ar livre, que ele passa pelo território Truká vai ser período em que estava sendo desenvolvido o projeto uma série de debates internacionais que questionaram
sujeita à evaporação - e levar água para as grandes a energia nuclear e seus perigos. Os acontecimentos
represas já abastecidas com muita água -  suscitando um impedimento para a obra.” (Professora com as mulheres indígenas. Naquela ocasião sobravam
fizeram o governo brasileiro recuar no processo de
dúvidas entre elas. Destaque também, nesta época,
enormes dúvidas com relação à salinização dos Pretinha Truká / Cimi, 2011, p.42) foi dado aos locais cogitados para a construção das divulgação das decisões acerca do tema. Integrantes
solos e ao aumento de desperdícios. Estes aspectos, usinas nucleares que fariam parte deste projeto. Entre do governo passaram a desdizer o que teria sido dito
somados à ausência de uma política que garanta o É dentro desse complexo contexto que surgem quanto aos locais para a construção da usina. Porém,
as cidades estava Itacuruba, no sertão pernambucano,
abastecimento das populações difusas da região, têm as diversas denúncias das mulheres indígenas e de é bom salientar, que o governo federal recuou na
mesmo município em que habitam parte dos indígenas
resultado em benefícios diretos ao grande capital, seus povos acerca dos impactos dessas obras em seus divulgação, mas não na execução do projeto.
Pankará.
principalmente em atividades econômicas do agro- territórios e em suas vidas. As mulheres Truká, por
negócio (irrigação e carcinicultura) e da indústria.” exemplo, denunciaram durante os encontros que a

Fonte: Cimi, 2011, p.53


(SUASSUNA, 2007b 3) obra de construção do ponto de captação das águas
Este modelo de desenvolvimento, que prioriza a do Rio São Francisco para o eixo norte da Transposição
construção de obras de grande porte, também é denun- está situada dentro do território tradicional do povo,
ciado pelos impactos que causa ao meio ambiente. nas proximidades do Serrote do Tucurutu, município
Para a construção das obras haverá uma grande parte de Cabrobó. As obras já foram iniciadas, e os impactos
da Caatinga devastada, e o rio São Francisco, que já sentidos pelo povo.
fora impactado pela construção de uma série de barra- “A medida em que ele (o governo) vai enrolando
gens ao longo do seu leito, ameaçado pela poluição os Truká, e o povo sofrendo, ele vai tocando a obra.
e assoreamento, terá parte do seu fluxo transposto Colocou um pano quente no processo territorial. A
para os canais. demarcação da terra não é prioridade para o governo
[...], o projeto da transposição é grandioso e reco-
3 SUASSUNA, João. Transposição do São Francisco: Reféns do equívoco. nhecer que ele passa pelo território Truká vai ser um
2007b. Disponível em: http://www.remaatlantico.org/Members/suas- impedimento para a obra.” (Professora Pretinha Truká
suna/artigos/transposicao-do-sao-francisco-refens-do-equivoco/,
acesso agosto de 2012. / Cimi, 2011, p.42) Região afetada em caso de acidente nuclear

18 19
Denunciar e anunciar – cultura, e aí o movimento de mulheres
indígenas que discutem essa questão de
os impactos das grandes barragens, que discute a Transposição do
Rio São Francisco, e que é solidário aos
obras nas áreas indígenas* demais movimentos sociais, às mulheres
agricultoras, mulheres e homens, porque
Elisa Entre Serras Pankararu uma das palavras da coordenação de
mulheres indígenas da Apoinme é que as

A
história dos indígenas em Pernambuco e no Nordeste mulheres indígenas não vieram para ficar
é marcada, num passado não tão distante, pela cons- atrás dos homens, tampouco à frente,
trução de barragens e atualmente não só barragens, mas lado a lado. É para trazer consigo
mas também as obras da Transposição do Rio São Francisco, a discussão da saúde, da educação, da
e elas têm um impacto triste. Os impactos que as construções sustentabilidade, da vivência das mulheres.
de barragens deixam para os povos indígenas são um o rastro Então, eu estou tratando de um
Detalhe de camisa da campanha contra Usina Nuclear de destruição. Não é apenas a destruição do meio ambiente, contexto histórico, do passado, do
ela vai além do espaço onde vivem as pessoas, onde vivem presente, e que não deixa da gente visua-
Mesmo depois de finalizado o trabalho com as as árvores, onde vivem os animais. lizar o que é que tem o futuro. Mas a gente,
mulheres indígenas em Pernambuco, continuamos Então, eu destaquei alguns aspectos de impacto. O primeiro eu, como as companheiras, vemos que
acompanhando seus povos. Em julho de 2012 os Pankará é um impacto ambiental, que é a destruição da vegetação, a existem realidades que a gente imagina - e
denunciaram em matéria para o jornal O Estado de destruição dos animais. A construção de barragens, e aí eu num evento como esse a gente conhece.
S. Paulo4 a construção de uma estrada no território não estou falando apenas do meu povo – que o impacto foi Talvez a gente aprenda mais, saia mais
Cícera Pankará de Itacuruba, 2010
reivindicado por eles que daria acesso ao local de a alguns quilômetros do nosso território, cerca de 8 km, 6 informada do que a gente possa informar.
construção da Usina. Em agosto do mesmo ano, a km –, mas eu estou falando também daquelas populações e quantos indígenas mudaram para as periferias, em especial Pensando nas propostas do amanhã, existe o grande mestre
presidente Dilma Rousseff sanciona lei que autoriza a em que o impacto foi direto e que o território indígena foi as favelas de São Paulo. Tudo isso a partir das barragens. educador, Paulo Freire: ele fala de denunciar e anunciar.
criação de uma estatal para desenvolver atividades do mudado, e que o espaço sagrado, que é a velha aldeia, foi Tem outro prejuízo maior do que todos os que eu citei Então tudo que eu ouvi aqui foram denúncias, mas também
Programa Nuclear da Marinha. simplesmente engolido pelas águas. Quando eu cito isso, foi agora, que é a destruição dos espaços sagrados, a destruição anúncios. Então na medida em que a gente denuncia, a
Segundo dados do Cimi (2011), caso a Usina Nuclear o que aprendi com as assembleias, com o contato, com a do meio ambiente como o meio em que vivemos. Não é o gente também propõe, a gente anuncia. E penso que não
seja construída e ocorra um acidente nuclear, a região troca de experiência que a gente tem com outros parentes. meio ambiente que traduz as árvores, os rios, as águas. Não é apenas anunciar, denunciar a esse grupo que conhece as
terá 11 municípios afetados. Em Pernambuco, as cidades É uma destruição da vegetação, é uma destruição de animais, é um meio ambiente romântico que falam quando se trata problemáticas, mas a gente de fato denunciar à sociedade
afetadas serão: Belém do São Francisco, Carnaubeira mas é uma destruição cultural. É você tirar uma população de ecologia. Eu estou falando da vida, do meio, das casas, civil, às autoridades, a todos aqueles que podem nos ajudar;
da Penha, Itacuruba, Floresta e Petrolândia, nos quais do seu lugar de origem, do lugar dos seus antepassados, do das pessoas, um meio ambiente em um contexto bem maior. ajudar nessa diversidade de lutas, porque as conquistas dos
estão situados territórios indígenas, conforme demons- seu lugar sagrado, do seu território, das suas crenças, da sua Quando a gente cita tudo isso não pode deixar de fora a movimentos sociais desse país nunca foram de graça; não
tramos no quadro. religiosidade, dos seus rituais sagrados. Então não é apenas o questão da territorialidade, e o território indígena não é é de graça: é através da luta. Nunca nenhuma conquista
impacto da destruição cultural, de mudar de um lugar para apenas terra para plantar e para colher, mas é terra para veio em um pacote de presente com laço cor de rosa, nem
Município Povo outro. É a relação de contato. E a história dos povos indígenas viver, para viver a cultura, para viver as crenças, para viver desse tamanho ou daquele tamanho. Veio através da luta,
desse país tem uma destruição enorme, sem tamanho, a os costumes, para viver a tradição, a educação que os mais e muitas das lutas com o sangue dos excluídos e excluídas
Belém do São Francisco Atikum partir do contato. E esse contato tem todo um contexto de velhos nos deixam. É um território para dar continuidade à desse país.
Carnaubeira da Penha, Atikum e Pankará prejuízo, tem a exploração do trabalho doméstico, aí eu falo
diretamente relacionado às mulheres.
Itacuruba Pankará
Então, eu fui criança, adolescente, eu cresci vendo as
Floresta Pipipã e Kambiwá mulheres caminhando todos os dias 10 km para ir trabalhar Uma história antiga
de doméstica nas casas da cidade, ganhando menos que meio
Pankararu e Entre Serras Mas esta história de impactos com a construção de barragem de Itaparica, construída pela Chesf, em 1988.
Petrolândia salário mínimo. Então hoje, 20 anos depois, 25 anos depois, 30
Pankararu “grandes obras” não é novidade para os povos indígenas. Até hoje o povo sofre com os impactos. As famílias foram
anos depois, esse contexto continua; o êxodo rural. Quantas
Os Tuxá que hoje vivem na Fazenda Funil, município de separadas e realocadas em terras distintas, seus lugares
4 NOSSA, Leonencio. Usina nuclear no sertão ameaça índios pankarás. * Depoimento de Elisa Entre Serras Pankararu durante o Seminário: Mulheres,
Inajá (PE), tiveram que sair de seu território tradicional, sagrados foram submersos: as terras às quais seus ante-
Jornal Estadão, 15 de julho de 2012. Disponível em http://www. Trabalho e Justiça Socioambiental, realizado pelo SOS Corpo – Instituto Femi- a Ilha da Viúva, que foi inundada com a construção da passados resistiram durante séculos lhes foram tomadas.
estadao.com.br/noticias/impresso,usina-nuclear-no-sertao-ameaca-in- nista para a Democracia e a AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras. Reali-
dios-pankaras-,900360,0.htm. Acessado em agosto de 2012. zado em Recife, entre os dias 21 e 23 de outubro de 2009.

20 21
Grandes empreendimentos
em terras indígenas (PE)

Terras Indígenas
1. Atikum Umã 8. Entre Serras Pankararu
2. Fulni-o 9. Pankaiuká
3. Kambiwá 10. Pipipã
4. Kapinawá 11. Truká - Ilha Nossa Senhora de Assunção
5. Pankará da Serra do Arapuá 12. Truká - Ilhas da Tapera e São Félix e Porto Apolônio Sales
6. Pankará de Itacuruba 13. Tuxá - Fazenda Funil
7. Pankararu 14. Xukuru

22 23
GRANDES OBRAS E IMPACTOS EM TERRAS INDÍGENAS – PE Grandes obras, grandes problemas sentava altos índices de violência gerados pelo plantio
e o tráfico da maconha, vê-se ainda mais afetada pela
Terra Localização Situação Os impactos provocados por essas obras são inúmeros, inserção do crack nesse sistema, e a utilização da droga
Obra Impactos
Indígena (município) Fundiária como já citamos anteriormente. A situação territorial não principalmente pelos jovens. Se as bebidas alcoólicas
Carnaubeira é regularizada, o meio ambiente é afetado, as pessoas foram apontadas como um dos agravantes da violência
Atikum da Penha e Homologada Usina nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear são deslocadas de seus territórios ancestrais, os modos nas aldeias, e da violência doméstica contra as mulheres,
Salgueiro de vida são novamente invadidos como há 500 anos. o crack tornou a questão ainda mais séria pelo alto teor
Esse processo também nos levou a lançar olhar para destrutivo, seja humano quanto social, no indivíduo
Usina nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear que faz uso da droga.
as cidades em que se desenvolvem as “grandes obras”
Inajá, Ibimirim Construção da de infraestrutura. As indígenas que estão localmente Nesse contexto as mulheres indígenas por muitas
Kambiwá Homologada
e Floresta BR 110 Assaltos constantes sofrendo com isso nos relataram os sérios impactos vezes também acabam dependentes da droga, e o grau
(Década de 70) sociais, gerados principalmente pelo deslocamento da de vulnerabilidade social das famílias, desta forma, vai
massa de trabalhadores vindos atrás das promessas de se agravando.
Pankará da
Carnaubeira da Em emprego e desenvolvimento. Em sua maioria homens, “Antes era a maconha, depois foi a cocaína, agora
Serra do Usina Nuclear Região afetada em caso de acidente nuclear
Penha Identificação sem suas famílias, vindos de outras regiões – pois não é o crack, que pegou muita gente. Aqui nesta escola
Arapuá
há mão de obra local suficiente, nem qualificada para (na área indígena), têm umas crianças cujas mães
Região afetada em caso de acidente nuclear tal – e que ficam pouco tempo. Desta forma, além dos usam crack. Um aluno, que estava com problemas na
Pankará de problemas da obra em si, “chegam” também o crack, o escola, me falou: ‘Professora, você nem sabe o que está
Itacuruba - Usina Nuclear Construção de estrada que corta o território aumento da violência de forma geral, dos números de acontecendo na minha casa’. Depois descobrimos que
Itacuruba
para dar acesso ao local de onde será a
estupros, da exploração sexual de mulheres, crianças a mãe dele é usuária de crack, era uma mãe de família,
Usina Nuclear
e adolescentes, além do aumento do número de mães que cuidava dos seus filhos direitinho. Hoje você olha
Petrolândia, Usina Nuclear solteiras. para ela, é triste você ver a situação daquela mãe, não
Pankararu Jatobá e Homologada Região afetada em caso de acidente nuclear As indígenas denunciam que são extremamente toma banho, vendeu tudo o que tinha para comprar
Tacaratu Construção da afetadas por estes problemas. A região, que já apre- crack, não cuida dos filhos para usar a droga. O pessoal
Inundou parte do território tradicional e
Entre Serras Petrolândia e Barragem de
Homologada dificultou a demarcação de suas terras
Pankararu Tacaratu Itaparica (1988)

Canal do eixo leste cortando o território


Transposição Demora no processo de regularização
Em
Pipipã Floresta fundiária do território
Identificação
Usina Nuclear
Região afetada em caso de acidente nuclear

Truká - Ilha Declarada/


Transposição do Obras do eixo norte da captação das águas
Nossa Senhora Cabrobó Em
São Francisco do Rio São Francisco
de Assunção Identificação

Truká - Ilhas
da Tapera
Em Barragem de Terão que ser realocados – a Ilha da Tapera
e São Félix Orocó
Identificação Pedra Branca será inundada
e Porto
Apolônio Sales

Construção da Tiveram que ser realocados na Fazenda


Tuxá - Fazenda Adquirida
Inajá Barragem de Funil/Inajá/PE, pois a Ilha da Viúva/Rodelas/
Funil /CHESF
Itaparica (1988) BA foi inundada

A Transnordestina passa a cerca de 100


metros da área indígena, próximo a aldeia
Xukuru Pesqueira Homologada Transnordestina
Guarda em um núcleo de moradia
chamado Canaã. Trecho de obra da Ferrovia Transnordestina

24 25
começa a emagrecer, começa a andar sujo, começa a se truturação social nos municípios e aldeias, sem grandes d A sobreposição Ora, não é de se estranhar que UC’s e Terras Indígenas
prostituir.” (Professora Sônia Truká / Cimi, 2011, p. 44) perspectivas de soluções, e que afetam principalmente se sobreponham, afinal de contas os povos indígenas
Mas não é apenas o crack que gera violência. O o lado mais vulnerável da corda que, neste caso, são de Unidades de são os próprios agentes nesse processo de preservação
número de casos violência sexual contra as mulheres
aumentou nas cidades, e consequentemente afeta as
as mulheres. Os governos transformam-se desta forma
em corresponsáveis por tais acontecimentos.
Conservação da da natureza. Mas quando é que isso vira um problema?
Vejamos o que as mulheres indígenas nos trouxeram
indígenas. Outro aumento é o do número de mulheres Natureza e Terras durante o projeto.
que se prostituem, e dos casos de abusos e exploração
sexual de menores, que viraram uma realidade nos E como ficam os direitos dos Indígenas em No estado, os territórios dos povos Kapinawá, Pipipã
e Kambiwá conflitam com as unidades, além das UC’s
municípios e nas aldeias. Povos Indígenas? Pernambuco da Reserva Biológica (Rebio) da Serra Negra e o Parque
Também é importante mencionar a elevação dos Nacional (Parna) do Catimbau.
casos de mulheres que se tornam mães solteiras, devido
a rotatividade de homens que chegam para as obras e
vão embora com os términos dos contratos.
Desde o estabelecimento do Decreto nº 5.051, de 19
de abril de 2004, que promulga a Convenção n°169 da
OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, o Estado brasileiro
P ara finalizar o texto trazemos uma última inquie-
tação que rondou os encontros. Trata-se da sobre-
posição de alguns territórios indígenas no estado de
O que acontece?
As mulheres indígenas, geralmente responsáveis compromete-se com a efetivação de alguns direitos Pernambuco com duas Unidades de Conservação da A Serra Negra foi o local de resistência de muitos
pela educação diária dos filhos, enfrentam o aumento indígenas acordados internacionalmente. Porém, esses Natureza. Como já tratamos anteriormente, nos últimos grupos no sertão nordestino. A altitude (que chega
do estresse gerado pela constante ameaça dos filhos direitos vêm sendo seguidamente desrespeitados com tempos o governo brasileiro tem implantado uma série a 1000m) torna o acesso difícil às regiões da Serra.
serem vítimas da violência ou virarem usuários da droga; a construção destas grandes obras, que, como no de obras de grande porte que geram diversas reações Dessa forma constituiu-se como o refúgio de um
ou então das filhas serem exploradas sexualmente e caso da transposição, buscam beneficiar uma parcela contrárias do movimento indígena e de outros setores grande número de grupos fugidos das “guerras justas”
vítimas de violência sexual: a responsabilidade materna da população que sempre lucrou com a violação dos da sociedade civil. Porém, em contrapartida, só que em e dos aldeamentos indígenas. O local é símbolo da
pesa como nunca. direitos indígenas: os ruralistas. passos lentos, o governo investe também na criação resistência indígena no Nordeste, principalmente no
“Essas obras trazem muitos homens de fora, que Segundo a Convenção da OIT, os povos indígenas de Unidades de Conservação (UC’s) da natureza que século XIX, e é por isso que vários grupos indígenas
ficam ali alojados na cidade. Nós temos muitos adoles- teriam direitos que vão desde “escolher suas próprias buscam minimizar a degradação ambiental. Em alguns do sertão pernambucano fazem referência a Serra
centes, meninos e meninas, que vão estudar na cidade. prioridades no que diz respeito ao processo de desen- casos, o governo vem criando estas UC’s sobrepostas Negra como um local de origem comum, de encontro
Acaba que o que tem muito é a história da prostituição, volvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, a territórios tradicionais indígenas, causando diversos dos antepassados.
e a droga. O crack, por exemplo, não existia, acontece crenças, instituições e bem-estar espiritual”, como conflitos, principalmente aqueles ligados às terras indí- Com esta resistência, a Serra protegeu-se do processo
morte, estupro, a gente teme muito, tenho filhos jovens garante o Art. N°7, até o direito a consulta prévia, genas que ainda não estão regularizadas juridicamente. de avanço das fronteiras agrícolas na região e é um local
que estudam fora. Tenho muito medo.” (Mulheres Truká livre e informada às suas organizações representativas
durante o encontro de mulheres indígenas, território “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
Kapinawá, setembro de 2011) administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”,
Estes impactos gerados pelo deslocamento de grandes conforme consta no Art. N°6.
massas de trabalhadores não são novidade para os Inúmeras denúncias nacionais e internacionais foram
governos, mas são impactos que comumente acometem feitas tratando desta questão, mas ao que parece o
as localidades que recebem tais empreendimentos. governo brasileiro não tem interesse no diálogo. Ao
Porém, mesmo sabedor de tais fatos o governo não contrário, tem como prioridade o atual modelo de
desenvolve medidas educativas, de assistência social, desenvolvimento, tendo os custos que tiverem para
e coercitivas eficazes para o controle da situação dos diversas comunidades, entre elas as que abrigam os
locais afetados. Como vimos, há um processo de deses- povos indígenas.

Art n°7 – “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher Art n°6 – “1. Ao aplicar as disposições da
suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de presente Convenção, os governos deverão:
desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, a) consultar os povos interessados,
instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam mediante procedimentos apropriados
ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, e, particularmente, através de suas
o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além instituições representativas, cada vez que
disso, esses povos deverão participar da formulação,aplicação e sejam previstas medidas legislativas ou
avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e administrativas suscetíveis de afetá-los
regional suscetíveis de afetá-los diretamente.” diretamente (...)”
Mulheres indígenas de Pernambuco durante Encontro Estadual, em setembro de 2011, no território Kapinawá

26 27
que tem o ambiente em bom estado de conservação. Durante muitos anos os índios tiveram pequenos A população sob a constante ameaça de
As mulheres indígenas, que durante séculos ocupavam conflitos com os funcionários dos órgãos governamentais terem que sair das terras que
a região da Serra Negra, denunciam que hoje o acesso responsáveis pela unidade. Para a resolução do caso, dessas ocupam, pois como consta no
a Serra é restrito justamente por ser uma Reserva as organizações indígenas Kambiwá e Pipipã, junto ao comunidades vive decreto de criação do parque
Biológica – criada em 1982, pelo Decreto nº 87.591. Ministério Público Federal (MPF), fizeram uma série de este tipo de UC não permite
Essa restrição impede que as mulheres indígenas benze- acordos com o ICMBio/MMA (Instituto Chico Mendes/
sob a constante a permanência de residências
deiras, parteiras, as donas da “ciência”, conhecedoras da Ministério do Meio Ambiente) para realizarem seus ameaça de em seu perímetro.
medicina tradicional, dos remédios da mata, tenham rituais na Serra Negra. Esses casos de UC’s, criadas
terem que sair
acesso a estes locais para a colheita de plantas do mato A situação é tão grave que chegou a tal ponto do em áreas de ocupação tradi-
e para a realização dos seus rituais. ritual do Ouricuri, praticado pelo povo Pipipã, tradi- das terras que cional dos povos indígenas,
cionalmente realizado na Serra Negra e com restrição a ocupam, pois configuram um exemplo de
participação de não índios, acontecer com os fiscais do sobreposição não apenas
As mulheres indígenas, que durante ICMBio monitorando o uso que os indígenas estavam como consta jurídica, mas de valores, de
séculos ocupavam a região da Serra Negra, fazendo dos recursos da Serra Negra. No caso, é flagrante no decreto de tradições e concepções de
o desrespeito a Constituição. mundo. Por um lado, a pers-
denunciam que hoje o acesso a Serra é criação do parque
Outra questão que se coloca é a sobreposição de pectiva que entende a natu-
restrito justamente por ser uma Reserva interesses jurídicos federais. Dentro dos limites reivindi- este tipo de UC reza como algo intocável, e
Biológica. Essa restrição impede que as cados pelas lideranças Pipipã para a demarcação da terra
não permite a
que não deve sofrer a ação dos
indígena, em processo administrativo de demarcação, seres humanos. Ou ainda da
mulheres indígenas, conhecedoras da está a Serra Negra. Este fato, somado a construção do permanência de concepção presentes nessas
medicina tradicional e dos remédios da canal da transposição do rio São Francisco, que corta o UC’s, que servem ao ecotu-
Parque Nacional do Catimbau residências em
mata, tenham acesso a estes locais para território, configuram-se como entraves ao processo de (em verde) rismo e a pesquisa científica.
regularização fundiária do território tradicional Pipipã. Município: Buíque, Tupanatinga e Ibimirim seu perímetro. Do outro, os povos que
a colheita de plantas do mato e para a Caso semelhante vive o povo Kapinawá. Regularizado Extensão: 62.300, 0000 hectares ocupam tradicionalmente
realização dos seus rituais. na década de 1990, parte do território foi demarcado Situação Jurídica: Decreto de 13 de dezembro de 2002 aqueles territórios; territórios que não estão regu-
larizados por negligência do Estado brasileiro, e que
Terra Indígena Kapinawá
(em amarelo) por muitas vezes são os responsáveis por seu estado
Reserva Biológica da Serra Negra Município: Buíque, Tupanatinga e Ibimirim de preservação. Para esses povos, os territórios são
(em verde) Extensão: 12.403 hectares imprescindíveis não apenas para o bem estar econô-
Municípios: Floresta, Inajá e Tacaratu Situação Jurídica: Decreto de 11/12/1998 mico, mas também para a manutenção de suas culturas
Extensão: 1.100 ha e tradição.
Situação Jurídica: Decreto nº 87.591,
de 20 de Setembro de 1982. com base em estudos da década de 1980. Porém, a

Terra Indígena Kambiwá


terra indígena regularizada não englobou uma série
de núcleos habitacionais indígenas. Os indígenas
Considerações finais
(em amarelo) residentes nestes agrupamentos, situados principal- No decorrer deste relato de experiência e síntese do
Município(s): Inajá, Ibimirim e mente mais ao norte da terra indígena, começam a se diagnóstico, demonstramos que são diversos os fatores
Floresta mobilizar na década de 1990 pela regularização desta que motivam a organização dos povos indígenas. Vai
Extensão: 31.495 ha parte do território. No início de 2001 são pegos de desde a vida doméstica e os direitos individuais, até
Situação Jurídica: Homologada/ surpresa com a criação de uma Unidade de Conser- a vida na comunidade, solidariedade com os demais
Registrada – Decreto de 11/12/1998 vação, o Parque Nacional do Catimbau, incorporando povos do estado e os direitos coletivos.
o território que ocupam. Este processo de encontros e formação pode contri-
Terra Indígena Pipipã Diferente do caso Pipipã/Serra Negra, a área reivindi- buir na sistematização das reivindicações acerca destes
Município(s): Floresta cada pelos Kapinawá está em quase toda sua totalidade direitos. Esperamos que esta publicação, que fez um
Situação Jurídica: Em Identificação situada dentro dos limites do Parque do Catimbau, exercício de síntese dos debates, possa contribuir nos
(Ports. Nº 802 PRES/FUNAI de
20.07.05 e Nº 1177 PRES/FUNAI de
que fica situado ao norte do território indígena, sendo encontros das mulheres indígenas em suas comunidades
07.10.2008). contíguo a ele. Nesse espaço tem mais de dez núcleos e no acúmulo teórico e organizativo do Movimento de
habitacionais. A população dessas comunidades vive Mulheres Indígenas em Pernambuco.

28 29
Gênero e Mulheres
Indígenas no Nordeste
Jurema Machado*

O
importante papel desempenhado sempre ocorreu. Contudo, a organização e capacitação
pelas mulheres indígenas no das mulheres - tanto escolar, quanto política - cola-
cotidiano das aldeias e na luta bora para a valorização de tarefas que antes eram
consideradas como menores, ou inferiores ao trabalho
dos povos nunca foi negligenciado,
realizado pelos homens.
mas sim, em alguns momentos, No nordeste e leste do Brasil, vários povos têm
forçadamente invisível. As mulheres destinado atenção a essa questão, seja em âmbito
indígenas do Nordeste sempre estiveram regional, como é o caso do Departamento de Mulheres
atentas às relações entre homens e da APOINME, ou algumas associações locais, específicas
mulheres. Entretanto, a apropriação para geração de renda através do trabalho feminino.
ou discussão do conceito de gênero é Vale lembrar que apesar da motivação oriunda das
diversas agências de fomento no sentido de suscitar uma
algo relativamente recente, fruto de
maior participação das mulheres indígenas nas instâncias
uma articulação maior com outros decisórias, percebemos que isso apenas formalizou um
movimentos de mulheres e da circulação Jovens Kapinawá no II Encontro de Mulheres, em 2011
movimento que já ocorria por iniciativa delas próprias.
em espaços de poder que antes eram Antes mesmo da criação do Departamento de Mulheres
destinados principalmente aos homens. na APOINME, essa mesma organização já havia contado Nos diversos encontros e assembleias de mulheres. Participar da coordenação de uma organi-
zação indígena, por exemplo, exige certo afastamento
no seu campo de coordenação com uma grande líder, mulheres indígenas temos observado que da aldeia, da família, e, por isso, as mulheres têm sido
Neste sentido, a luta das mulheres indígenas, ou Maninha Xukuru-Kariri, e outras tantas mulheres que existem desafios a serem enfrentados. instadas a desenvolver mecanismos que garantam a sua
a participação de mulheres na luta dos seus povos exerceram o papel de caciques de seus povos. Pode-se
recebeu incremento com os espaços conquistados nas lembrar de exemplos como Maria, cacique da aldeia A expectativa de gênero que recai sobre participação nas lutas, aliada ao cumprimento dessas
expectativas. Essa equação não é fácil, e exige flexibi-
instâncias de direção das organizações indígenas e na Kiriri no município de Ibotirama, Bahia; Marilene e as mulheres indígenas, como o próprio lidade e relativização dos compromissos assumidos.
formalização de conselhos e organizações próprias Ilza, ambas caciques do povo Pataxó Hã-hã-hãe, no
das mulheres. sul da Bahia, e Dorinha, cacique do povo Pankará, no
casamento e a procriação, de certa forma Portanto, a discussão do conceito de gênero traz à
tona uma série de reflexões outras, o que demonstra a
A conquista desses espaços tem possibilitado o estado de Pernambuco. Além de outras mulheres, que inibe uma maior participação nas distintas
capacidade das mulheres indígenas de utilizarem um
reconhecimento de trabalhos e tarefas, que antes não chegaram a ser caciques, mas que exerceram, ou etapas dos movimentos de mulheres. conceito externo como ferramenta para pensar seus
estavam circunscritos ao ambiente familiar e interno exercem, grande influência nas decisões relativas a seus
cotidianos. Assim, gênero não se apresenta como algo
das aldeias, como fundamentais para o fortalecimento povos, seja por sua grande força política, ou por terem
“gênero não é só coisa de mulher”. Os conselhos de abstrato ou adverso; ele está sempre articulado a noções
de suas culturas e identidades. Um exemplo forte disso protagonizado eventos críticos nas suas trajetórias.
professores indígenas têm proporcionado espaços como identidade, território, cultura, tradição e luta.
é o trabalho com as crianças, que aprendem com suas Lembramos ainda de Dona Zenilda Xukuru e Dona
de discussão e reflexão sobre o tema, exemplo disso Apesar das enormes dificuldades e desafios, as
avós, mães e professoras a circular em seu território, a se Minervina Pataxó Hã-hã-hãe.
é o recente trabalho desenvolvido pela Comissão de mulheres indígenas do nordeste têm ensinado aos
apropriar dos recursos naturais, a valorizar a história e a O nordeste indígena traz uma peculiaridade, que
Professores Indígenas de Pernambuco (Copipe). movimentos de mulheres em geral, e ao próprio femi-
luta, e a se sentirem responsáveis pela sua continuidade. talvez esteja presente, também, em outros contextos,
Nos diversos encontros e assembleias de mulheres nismo, que a casa é, também, um espaço de poder. E
Sabe-se do papel fundamental que as mulheres é que o lugar de discutir “gênero” não se restringe às
indígenas temos observado que existem desafios a se nas nossas habitações ocidentalizadas o “espaço do
exercem na formação das/dos futuros líderes. Isso reuniões de mulheres especificamente, ou melhor,
serem enfrentados. A expectativa de gênero que recai fogão” é menor ou pejorativo, nas aldeias indígenas do
sobre as mulheres indígenas, como o próprio casa- nordeste ele pode significar um local privilegiado de
* Jurema Machado de Andrade Souza. Antropóloga, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, pesquisadora do Programa de Pesquisas
sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), do Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos (LEME), e sócia da Associação Nacional de mento e a procriação, de certa forma inibe uma maior decisão, afeto e partilha que pode refletir o mundo:
Ação Indigenista (ANAI). participação nas distintas etapas dos movimentos de este daqui e além!

30 31
Um pouco Pitaguary para conduzir a função de coordenadora do
departamento de Mulheres Indígenas da APOINME.
Nós, guerreiras indígenas aqui em Pernambuco,

da história com muita dificuldade e contando mais uma vez com


o apoio do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), conse-

do nosso guimos fazer quatro assembleias de mulheres no estado,


discutindo vários temas: educação, saúde, território,
violência, educação, subsistência e fortalecimento do

movimento nosso movimento.


No último encontro, realizado no território do povo
Pipipã, em dezembro de 2011, escolhemos as atuais
Francisca Kambiwá representantes das mulheres indígenas aqui no nosso
estado: Dorinha Pankará e Silvinha Xukuru.

O
movimento de mulheres As mulheres têm uma grande importância no campo
do movimento indígena como um todo. Além de suas
indígenas foi provocado pela
atribuições dentro de casa, no convívio familiar, também
APOINME – Articulação dos contribuímos com o movimento indígena nas reuniões
Povos e Organizações Indígenas do e retomadas. Temos um importante papel de cuidar
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. da alimentação das lideranças e dos/as parentes que Debate durante Encontro Estadual, em setembro de 2011, em Furna, aldeia Mina Grande, território Kapinawá
O momento que marca esse início foi se encontram à frente do movimento. Trabalhamos
um encontro com representantes dos
povos indígenas ocorrido em Salvador.
juntos com nossos companheiros e parentes. Além
de todas essas funções também cuidamos da parte
O que há em comum:
A organização do movimento foi a
realização de um sonho da grande
religiosa, participando ativamente dos rituais dentro
dos nossos povos.
Enfrentamos muitos preconceitos e violência dentro
a participação das mulheres
guerreira Maninha Xukuru-Kariri, que
por muito tempo esteve à frente dessa
e fora do nosso povo. Temos tentado combatê-los
através de conversas e palestras sobre a violência contra nos movimentos sociais
organização. a mulher, estudamos a lei Maria da Penha e temos
formas próprias, ou seja, em cada povo, de combater Elisa Entre Serras Pankararu

H
A partir daí, nós, mulheres indígenas, começamos a violência.
a fazer, aqui em Pernambuco, encontros em cada povo Toda essa história, esse processo de mobilização á um contexto histórico geral No entanto, uma mudança de mentalidade, uma
e encontros estaduais. Neles todas nós nos encontrá- nosso são frutos da semente plantada pela guerreira sobre o papel da mulher na consciência coletiva vem germinando mundialmente.
vamos, formando uma grande aliança na luta pelos Maninha Xukuru-Kariri. Temos também grandes mulheres sociedade, uma criação social que Eis porque surgem as organizações de mulheres e
direitos indígenas. Participamos também dos encontros que merecem ser lembradas e que nesta publicação movimentos sociais, que vêm a partir da reflexão sobre
culturalmente vem se perpetuando ao
da macrorregional da APOINME. temos a oportunidade de contar um pouco de suas as desigualdades de gênero em todos os espaços da
Nesse período realizamos uma assembleia que vidas dedicadas à luta. Cada povo tem aquelas que
longo dos séculos até os dias de hoje. sociedade.
aconteceu em Belo Horizonte (MG), onde escolhemos desempenham um papel fundamental. Esse comportamento exclui o gênero Então, vamos tratar da participação das mulheres
uma representante mulher para nos representar na Homenageamos neste livro todas as mulheres guer- feminino dos direitos humanos desde a indígenas nesses outros espaços coletivos, mas a partir
APOINME. Ceiça Pitaguary foi a escolhida e perma- reiras do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, sua convivência até no que diz respeito de uma ótica que começa obviamente do convívio na
neceu por dois anos no cargo. Durante a assembleia, mulheres que se doaram para a luta de um povo e às políticas públicas. velha aldeia e suas atividades coletivas que envolvem a
também nos mobilizamos em ato público e passeata que Pai Tupã abençoe a todas para que possamos relação de pessoas e organizações sociais das diversas
protestando contra a obra da Transposição do rio São continuar a luta por nossa autonomia e contra toda Essa cultura, de cunho colonizador, afeta também naturezas.
Francisco. discriminação às mulheres. as populações indígenas quando muda o perfil de Podemos destacar que o relacionamento das
Após esse período, foi escolhida a companheira Às que se foram fica a nossa gratidão e as que costumes tradicionais relacionados às mulheres, e são lideranças com os membros da comunidade a qual
Joseane Tupiniquin para suceder Ceiça, que ficou no chegam, sejam bem vindas! Força e coragem para introduzidas dentro do nosso cotidiano ideias ditas do pertencem ocorre nas várias dimensões da vida. Um
cargo até a segunda Assembleia de Mulheres Indígenas continuar a luta, fortalecidas pelas forças encantadas e mundo ocidental machista, que em suas culturas, na aspecto primordial e de importância singular é que
em Rodelas (BA), território do povo Tuxá, no início do assim fazendo e escrevendo história, pois nós também maioria das vezes, excluem e violentam a liberdade das trazem consigo uma iluminação da natureza, ou seja,
ano de 2011. Na ocasião foi escolhida novamente Ceiça somos parte dela. mulheres no campo dos direitos humanos. têm uma habilidade de conduzir seu povo nas diversas

32 33
situações cotidianas. São líderes comunitárias, o que
nesse sentido estão sempre participando de questões
diversas.
Nesse sentido, querem se organizar, formar associações
e cooperativas. Ou seja, participar de forma paritária
nos diversos movimentos, dentro e fora da aldeia.
Água: Fonte de alimentos, para lavar roupas. Essa realidade atinge
a todos que vivem nas comunidades, mas é ainda pior
para as mulheres indígenas.
Sendo lideranças, num momento imediato são
conselheiras e interlocutoras no auxílio da resolução de
Diante dessa realidade, queremos ressaltar que
a vivência da mulher indígena, que também passa de Vida Nós ainda somos consideradas responsáveis pelo
trabalho em casa e nos seus arredores, o trabalho domés-
problemas, tendo um destaque diferente entre os demais. pelo enfrentamento a violência, o preconceito por tico, cuidar dos filhos, enfim, são diversas atribuições.
Silvinha Xukuru
Essa participação, por intermédio de suas atitudes, são ser mulher e consequentemente por ser indígena. Além de todas essas questões, somos responsáveis

D
portas para representar o coletivo em questões públicas Assim luta contra as desigualdades sociais com a também por lavar roupas nas cisternas ou rios muitas
como também diante do poder público. força que sua natureza permite. Estão presentes nos
esde muito tempo nós, povos vezes distantes de nossas casas, e trazê-las na cabeça,
Ao se destacar dentro da comunidade, que congrega conselhos, representantes ou trabalhadoras nas insti- indígenas de Pernambuco, de trazer água para beber, para usar nas tarefas domés-
o conjunto de lutas, como as questões da terra, saúde, tuições públicas. sofremos com a escassez da água e ticas e ainda água para o banho dos que residem em
educação, cultura e sustentabilidade, Nesse sentido, ao encontrar com a falta de ações que viabilizem a chegada nossas casas. É um trabalho árduo e cansativo, que faz
expande a representatividade para outros outros coletivos mistos ou de mulheres, dela até nossas comunidades. Essa com que as histórias de vida das mulheres se resumam
espaços políticos, seja dentro do movi- Ao trazer para esses nossas líderes vão trazendo a questão nessa vida de dona de casa.
dificuldade é gritante, pois na maioria
mento indígena como na relação com espaços o ser humano indígena como algo específico, dando dos casos as aldeias são em lugares secos, As parentes Pipipã da aldeia Travessão do Ouro,
o Estado. mulher de natureza ênfase ao nosso modo de viver em por exemplo, desde muito tempo, sofrem com a falta
Nesse primeiro contexto dos espaços sociedade e de uma cultura singular
o que inviabiliza o acesso a ela. de água. Essa dificuldade faz com que elas tenham que
políticos externos, trata em especial de materna, que lida com enquanto particularidade de um povo. fazer o trabalho manual, indo ate os recintos pegar a
Cada povo possui sua especificidade e modo de vida
questões específicas para populações o trabalho doméstico, Vão firmando o papel e o protagonismo
e tem em comum uma luta constante para exigir dos
lata d’água na cabeça por não ter ações que viabilizem
indígenas. Após essas experiências é da mulher nos espaços públicos que esse direito: “A gente tirava água da batata do umbu
que vão encontrando outras mulheres,
na agricultura, requerem um posicionamento junto
órgãos competentes ações para que nossas comuni-
para fazer café e para beber por falta d’água”, dizem.
de outros movimentos, que militam em conhece a natureza aos coletivos.
dades sejam beneficiadas com esse bem que é direito
Isso acontece com as Pankaiwka. Elas sofrem com essa
de todos e fundamental para as nossas vidas.
causas sociais. das ervas medicinais É no encontro e no diálogo com
Esse problema da falta de acesso à água faz com que
falta de água e precisam buscá-la na caixa d’água. O dia
Ao trazer para esses espaços o ser outros movimentos sociais que também a dia torna-se cansativo. As mulheres do povo Kapinawá
humano mulher de natureza materna,
e o cuidado com acontece o fortalecimento e a valori-
nossos povos vivam ainda com severas dificuldades,
contam que pegam água em uma bomba que só existia
tais como a falta de água potável, água para produção
que lida com o trabalho doméstico, o meio ambiente, zação da nossa cultura. Então vamos em uma das aldeias, a Mina Grande, e que quando essa
na agricultura, conhece a natureza naturalmente sabe ocupando espaços de direito, mesmo bomba quebra precisam enfrentar longos caminhos para
das ervas medicinais e o cuidado com que timidamente. Mas já podemos citar buscarem água na lata ou ir lavar roupa longe.
o meio ambiente, naturalmente sabe trazer o equilíbrio a Copipe, nossa Comissão de Professores/ É importante que os órgãos competentes resolvam
trazer o equilíbrio na condução de suas na condução de suas as Indígenas de Pernambuco, que majo- o problema da falta de água nas regiões secas do nosso
reivindicações nos espaço políticos pela ritariamente é composta por mulheres, o estado e que seja efetivada a garantia dos direitos
reivindicações nos
garantia da qualidade de vida. Conselho Estadual de Educação Escolar humanos. Todos têm direitos iguais. Que o governo crie
Se refletirmos que em Pernam- espaço políticos pela Indígena, o Departamento de mulheres e coloque em prática políticas públicas que estejam
buco as lideranças, em sua maioria, garantia da qualidade na APOINME, a participação de mulheres de acordo com as carências das mulheres indígenas,
são homens e que as mulheres apenas indígenas na Comissão Permanente nos proporcionando vida digna e livre.
participavam das reuniões e assem-
de vida. de Mulheres Rurais de Pernambuco e Faz-se necessário a disponibilidade aos povos indí-
bleias próprias dos povos de forma tantos outros espaços. genas não de políticas que fiquem apenas no papel,
indireta, ou seja, na cozinha e demais trabalhos “ditos Os desafios estão postos, reflexões e propostas, mas sim que aconteçam de forma concreta. Em ações
femininos”, concluímos que as mulheres indígenas estratégias de formação e ação para as lutas indígenas que sejam visíveis, e que mudem nossas vidas. Por
não tinham espaços de participação e próprio para no Brasil. Embora a mulher indígena passe por todas exemplo, construindo mais cisternas com condições de
o debate de suas questões. as desigualdades que vivenciam as demais mulheres de armazenar água sem que ela desapareça com o calor,
Os processos de resistência indígena e popular nas outras sociedades, as indígenas trazem suas especifici- cisternas que sejam próximas às casas, e com muito mais
Américas é o retrato da luta pelo direito universal dades, sejam culturais ou de caráter ancestral. eficiência providenciar saneamento básico, casas com
a vida, que pressupõe direito a educação, moradia, água encanada. Esse é um direito de todos, e que precisa
saúde, sustentabilidade, cultura e outros. Embora as A EXPERIÊNCIA E O CAMINHAR NA LUTA REQUER ser respeitado, e efetivado pelo o governo. Precisamos
mulheres venham se afirmando como professoras, O COMBATE A DISCRIMINAÇÃO, POIS É UMA CONS- que o Poder Público tenha um olhar mais profundo
agricultoras, donas de casa, artesãs, tias, avós, mães e TRUÇÃO DE GRUPOS HUMANOS. PORTANTO, PODE sobre a falta da água na zona rural, pois a água é um
jovens, identificam a ausência de apoio dos homens. HAVER UMA DESCONSTRUÇÃO. Criança Kapinawá, aldeia Mina Grande, território Kapinawá elemento fundamental para termos a garantia da vida.

34 35
A importância Dona Maria casou-se com vinte anos. Seu esposo
chamava-se João Mariano, com quem teve dez filhos:
Lilia, Óciça, Rosineide, Joselina, Lourival, José, Siríaco,

da mulher na Antonio, Zuzinha e um que faleceu ainda pequeno.


Ela era a parteira da aldeia local, mas também era

luta do povo chamada para outras aldeias. Passava até oito dias na
casa das mulheres, dependendo da necessidade, e nunca
morreu nenhuma mulher de parto, que ela cuidava.

Kapinawá Dona Candinha Maria de Zé Vidal Mocinha Zé de Caetano Terezinha de Vidal Lilia
Era uma pessoa vivida, rezadeira, uma das principais
no Toré porque estava sempre à frente, incentivando
o povo, por isso lhe deram o nome de Rainha do Toré!
Socorro Kapinawá de sua avó as noticias do que estava acontecendo a seu (conhecida como Totonha). Seu pai era natural da Também era liderança e quando era preciso as pessoas
povo, ao retornar toma para si as dores e sofrimentos Mina Grande e sua mãe de Lagoa do Teixeira, Manarí.

A
a consultavam para pedir conselhos.
s mulheres têm forte influência dos seus parentes e familiares, por ver e sentir junto Devido à falta de condições financeiras e a perse- O que tornou ela liderança, como mulher, foi por
e participação nas lutas de com eles as crueldades e humilhações com as quais guição dos coronéis, o pai de Maria foi trabalhar em ser rezadeira, parteira, guerreira. Chegando ao terreiro,
seus povos. Parte das grandes eram tratados. Manarí onde conheceu sua mãe, onde para chamar o povo, balançava o maracá
Assim sendo, sua volta foi pautada de trabalho e se casaram e depois retornaram para e gritava: Vamos, vamos! Então começava
estratégias e tomadas de decisões são O chapéu para os
luta para sobreviver tendo que fazer chapéu de palha a Mina Grande. a cantar uma linha, que diz assim:
pensadas e traçadas nas caladas das para poder comprar uma roupa a cada ano. Foi profes- Dona Maria nasceu na Mina Grande. Kapinawá tornou-se Olha o tombo no balanço do
noites e depois repassadas aos seus sora no antigo Mobral lecionando a jovens e adultos Quando criança brincava de roda e símbolo uma vez vento mana,
parceiros. No meu povo, os Kapinawá, há da Aldeia, também foi professora pelo município, mas outras brincadeiras nas noites de lua Vem brincar mais eu mana,
várias guerreiras, mas existem aquelas que parou de lecionar e hoje trabalha na saúde. clara. Porém, sua infância não foi só
que no passado ele Vem brincar mais eu mana,
se destacaram durante a história, tanto Casou cedo. Seu esposo foi uma das lideranças de flores! Na seca era muita fome e era a única fonte Vem brincar mais eu mana. (bis).
nas lutas, quanto nos momentos que são que muito contribuiu com a luta pelo corte do arame. só comia bró e palmito de coqueiro. de renda daquela As pessoas começavam chegar, então
Foi assassinado deixando uma filha de dois anos de No tempo bom tirava alimentos da ela puxava uma linha de Toré, que aprendeu
procuradas para informar sobre algo do
idade, que ela criou com muita dificuldade. Casou-se roça. Quando jovem comprava roupa comunidade. Por isso com sua mãe:
passado, ou do presente. É por isso que pela segunda vez e seu atual esposo é presidente do e calçado só uma vez ao ano com todos sabiam fazer Ou dandeia, ou dandeia, ou dandeia,
vou falar aqui de duas grandes guerreiras: Conselho de Saúde Indígena Kapinawá, desse novo dinheiro da venda de chapéu. [usar
Mocinha e Maria de João Mariano.
chapéu, até mesmo dandeia, dandôa. (bis)
casamento teve três filhos. a foto da senhora fazendo o chapéu Rei dandeia, rei dandôa. (bis)
Mocinha é uma grande Guerreira, conhecedora da kapinawá] as crianças. O chapéu O caminho da Serra Grande
Vou começar falando de Mocinha, que ainda hoje luta e da cultua de seu povo, e foi ela quem me ajudou O chapéu para os Kapinawá tornou- era vendido em Vou mandar é ladrilhar,
é uma guerreira muito importante para o nosso povo. a falar da segunda guerreira Kapinawá aqui homena- se símbolo uma vez que no passado Só com ouro e prata fina
Mocinha tem 47 anos, e se chama Maria Bezerra da Silva, geada, Maria de João de Mariano (Maria Antonia da ele era a única fonte de renda daquela
Buíque e Tupanatinga, Pros caboclos caminhar.
mãe de quatro filhos. Filha de José Vicente Moises e de Conceição), a rainha do Toré. Ela nasceu em 1916 e comunidade. Por isso todos sabiam pois, apesar do Ou dandeia, ou dandeia, ou dandeia,
Maria de Lourdes Bezerra da Silva, Mocinha nasceu na morreu no ano de 2002. Infelizmente eu não a conheci fazer chapéu, até mesmo as crianças. preço baixo, esse dandeia, dandôa. (bis)
Aldeia Mina Grande, povo Kapinawá, mas aos quatro de perto, só a vi algumas vezes, então o que vou contar O chapéu era vendido em Buíque e Rei dandeia, rei dandôa. (bis)
anos foi com seus pais morar na Bahia, por falta de aqui é resultado de pesquisa para o Curso de Licencia- Tupanatinga, pois, apesar do preço artesanato lhes Deixou para o nosso povo muitos
condições financeiras. Na Bahia permaneceram por tura Intercultural do Centro Acadêmico do Agreste da baixo, esse artesanato lhes rendia um rendia um dinheirinho conhecimentos, pois nos ensinou coisas
nove anos. Frequentou a escola cursando até a 4ª série: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). dinheirinho para comprar algo. para comprar algo. maravilhosas. Por exemplo: as rezas, a
época em que andava a pé por 5 km até a sala de aula. Quem me deu as informações sobre ela foram: Lilia, Não havia escola na comunidade. determinação nas lutas, Toré, samba de
Além de estudar longe, precisava ajudar seus pais nos sua filha; Dona Candinha, cunhada; Zé de Caetano, Talvez por isso criou-se sem estudar. coco. Hoje quem se espelha nela é também
afazeres de casa e da roça. sobrinho; Terezinha; Maria de Zé Vidal; e Mocinha, A festa que havia era o samba de coco nas tapagens guerreiro/a como ela foi.
Já jovem Mocinha volta para seu lugar de origem, e que conviveu muito com ela. de casa, em casamentos e batizados. O Toré só era Na luta do corte do arame ela estava presente como
encontra um contexto em que seu povo está lutando Dona Maria era filha de Salustriano Brás (conhe- dançado por Dona Antonia, mãe de Maria, na Lagoa guerreira que era. Depois da tarefa de todos os dias -
pelo território*. Mocinha, mesmo distante, sempre ouviu cido como Salú) e de Antonia Joaquina da conceição do Teixeira. No samba de coco ela era uma das maiores arrancar as estacas da cerca do Velho Zuza Tavares - ela
participantes! Cantava e dançava o samba de coco nas dizia: “Agora vou quebrar as estacas, fazer um feixe de
* Na luta pelo território meu povo cortou várias vezes o arame das cercas dos fazendeiros, que tentavam tomar nossas terras. Por isso chamamos esse
tapagens de casa, nos casamentos e em todo lugar lenha, e vou levar para casa para cozinhar meu feijão
momento do “corte dos arames”. que onde era chamada. que é para ter força de estar aqui amanhã”.

36 37
Entrevista cacique Hilda Entre Serras Pankararu A senhora pode contar como começou a luta pelo
território de Entre Serras Pankararu?
homologada a terra deles, mas os 8.100 ficaram de fora
mesmo sendo tradicionais nosso. Cada lugar destes tem
A nossa terra era de 14.294 hectares e aí os Panka- um marco de antigamente. Ali em cima tem um lugar

“A gente tem raru, 33 lideranças, abriram mão de 8.100. Quando eu


descobri que eles tinham aberto mão da terra, fui na
com nome da Cruz da Velha, tem imburana, ferrada
e assim continua. Por cada lugar onde é demarcada a

aquela fé que
casa do finado João Tomaz e nós começamos a trabalhar terra a Funai finca um marco e bota uma placa que é
pela terra. A gente resolveu mandar seis índios para terra indígena. Do marco para cá a gente sabe que á
Recife, que era a nossa Diretoria Regional. Eu entrei na terra indígena, do marco para lá a gente sabe que não

sai da terra e ação abrindo as picadas pelos limites da terra. Depois


que abrimos os limites da terra pelas picadas, fomos
é. Aqui é uma terra sagrada, mantemos nossa tradição,
nossos terreiros sagrados. Terra indígena é aquela terra

dos espíritos
para Brasília, falamos com o presidente onde nós nascemos e se criamos; era de
da Funai e ele mandou a equipe para nossos antepassados, bisavós, avós, pais
identificar a área. Depois que a equipe Nós nunca entramos e até hoje é.

da mata” veio e identificou a área, o presidente


da República assinou a portaria da terra.
Depois veio a demarcação e a homo-
numa área
retomando. O que nós
Quais as principais dificuldades
que o povo de Entre Serras Pankararu
está enfrentando?
logação da terra. Na sequência come- fizemos foi abrir as A maior dificuldade que a gente
Manuela Schillaci* çaram a tirar os posseiros, mas ainda picadas pelos limites enfrenta é que não terminou de tirar o
falta a maioria. Meu povo hoje possui resto dos posseiros. A Funai mandou uma
da terra. Pode se

H
ilda Bezerra Barros, ou cacique 300 famílias. Então, antes de iniciar a equipe para pagar 380 posseiros, mas
luta, nós não tínhamos terra. A terra era dizer que foi uma os posseiros se recusaram a receber. Só
Hilda, nasceu na Terra Indígena
Entre Serras, em Petrolândia,
muito pouca para tanta gente e cada retomada porque nós três deles receberam. Esta é uma dificul-
dia aumenta mais o número de famílias. dade muito grande e estamos passando
sertão pernambucano, aldeia Serrinha, Essa terra é de ocupação tradi- abrimos as picadas por ela. É difícil porque não querem
há 73 anos. Como cacique de seu cional. Conta um pouco da história sem a autorização de entender algumas coisas. Aqui sempre
povo protagonizou uma das mais da ocupação dela. ninguém. Se a gente teve a presença indígena. Moravam uns
emblemáticas lutas pela retomada de Chama de terra tradicional indígena índios e outros estão reassentados agora
porque era dos índios de antigamente, fosse esperar para porque aqui tudo era cheio de posseiro,
terras tradicionais na história recente Dona Hilda Pankararu
do movimento indígena. Liderando 100
já era terra indígena de verdade. Nós a Funai abrir estas mesmo Mundo Novo, Lagoinha, Piancó,
temos nossa tradição, nós temos nosso
indígenas, abriu, em 1978, uma picada
a continuação do tempo, 33 lideranças Pankararu
terreiro sagrado e é uma terra indígena
picadas nunca que ia Salão, Vilanova, Folha Branca. Na Folha
Branca mesmo tem um pouco de índio
abriram mão dos 8.100 hectares, que era do Entre
para dentro de 8.100 hectares de terras, Serras. Quando eles abriram mão eu comecei na luta. de verdade. É terra indígena que foi sair. também. No Olho D’água do Leão quase
enfrentando a ira de fazendeiros e Tinha muita gente minha sem terra pagando a renda demarcada e homologada porque é terra tudo é índio, na Carrapateira a maioria
pistoleiros. em cima das serras”, lembra cacique Hilda. indígena desde 500 anos para trás. Não é aquela terra também é toda de índio. Nós já temos mais de 300
Durante o ano de 2012, os indígenas de Entre Serras que a gente vai chegar aqui e fazer uma área indígena famílias reassentadas depois que tirou os posseiros.
“Comecei eu mais o finado João Tomaz essa luta. passaram por momentos difíceis em confrontos com sem ser porque nem o índio tem direito de fazer uma Como foram os primeiros tempos depois que
A área foi identificada e agora a maioria dos posseiros posseiros que tentaram invadir a terra indígena. Cacique aldeia dentro de uma terra que não é indígena, tem começaram a retomar as terras?
já saiu e eu ainda estou nessa luta”, diz. Mesmo com Hilda, há 40 anos liderando seu povo, foi criminalizada que fazer dentro da terra indígena. Nós nunca entramos numa área retomando. O
a terra de Entre Serras homologada, cacique Hilda em rede nacional pela TV Record, sendo chamada de Como foi o processo de definir os limites da área que nós fizemos foi abrir as picadas pelos limites da
segue na luta: restam ainda 400 não indígenas dentro ‘cangaceira’ – por outro lado, a reportagem acabou indígena? Os mais velhos orientaram vocês nesse terra. Pode se dizer que foi uma retomada porque nós
do território tradicional. Porém, não é só isso: cacique alcunhando ao cangaço uma simbologia pejorativa. processo? abrimos as picadas sem a autorização de ninguém. Se
Hilda ainda segue sendo criminalizada por pessoas Apesar dos conflitos e criminalizações, cacique Nós abrimos as picadas pelos limites da terra indígena a gente fosse esperar para a Funai abrir estas picadas
interessadas nas terras do povo Entre Serras Pankararu. Hilda reforça sua fé nas forças da natureza e na mobi- porque cada ponto tem um limite da terra. Os mais nunca que ia sair. E não dava mesmo. Tenho quantos
“Entrei na luta porque a nossa terra aqui de Entre lização de seu povo para seguir adiante. Leia a íntegra velhos já eram da área indígena Pankararu, a dos 14.294 anos? Eu tenho 40 e poucos anos que estou nessa luta,
Serras e de Pankararu toda dava 14.294 hectares. Com da entrevista. hectares, e eles abriram mão das 8.100 e foi quando não é dois dias, e até hoje ainda não venci a luta toda
eu comecei a lutar mais o finado João Tomaz por esta porque não tirou o resto dos posseiros, mas eu tenho
terra que é indígena, porque eles deixaram uma terra fé em Deus que vai tirar. Acho que deve ter ainda na
* Manuela Schillaci é missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Nordeste. indígena do lado de fora. Negociaram com a Funai e foi faixa de 400 - ou mais.

38 39
Educar para
Como é a relação com estes não índios que ainda razão assim, mas eu confio muito nos espíritos das matas Carnaubeira da Penha, mulher e indígena (Dorinha
permanecem na terra? Quantos já saíram? e tenho muita fé. Eu acho que ainda sou viva porque Pankará), nossa cacique que assumirá em janeiro de 2013.”
Quando eles me veem falam que estou na mira. Eu confio em Deus e nos espíritos das matas, porque eu A professora aplicou o projeto em turmas do 6º ao

transformar:
nestes tempos me recuso até a ir à feira, porque eles sou mal vista em todo o lugar, o pessoal não me olha 9º ano nas disciplinas de filosofia e sociologia e expressa
não me olham com bons olhos, mas a gente se fala. com bons olhos e quem me defende é só Deus e os a dimensão que tomou o tema na aldeia.
Só sei que eu estou na mira e que não querem nem bons espíritos das matas, nossos Encantados. Eu vivo “No começo previ o tempo, mas depois tudo foi se
saber se eu tenho comigo 3.022 índios. Acham que nos pés da Mãe de Deus rogando por nós todos e a mulher como tema na tornando muito maior, cada biografia que levava, dava
apenas eu estou na luta. Falei com um funcionário até por vocês porque eles até rogam pelos que não é o maior debate, tornou-se um tema interdisciplinar
da Funai que disse que no segundo semestre (2012) índio. Quando o pajé e o cacique morreram, as pessoas sala de aula – o relato de como tudo na nossa aldeia. Também observamos várias
vai mandar o restante do dinheiro para pagar todo o
mundo e quem quiser receber vai receber; quem não
escolheram os novos pajé e cacique. O pajé é Cicinho
e eu sou a cacique, escolhida pela comunidade.
uma experiência propagandas que utilizam a mulher para apelar para a
venda de produtos que não relação conosco, muitas
quiser vai acabar na Justiça. Da área já saíram uns 500 e Como o povo Pankararu vive a espiritualidade? vezes vulgarizando nosso papel, como propagandas
tantos. Agora tenho toda a certeza Eu acho que é uma coisa muito impor- Entrevista de Heloisa Eneida de carro, bebidas. Depois de cada apresentação conti-
que quando vier o pagamento tante para nós, porque através de nossos com a professora Edilene Pankará nuávamos com o debate e todo mundo se informou,
Eles são ligados ao

A
(indenização) eles não vão querer Encantados são curadas as crianças, os pesquisou e participou.”
receber. Será depositado em juízo. Sindicato Rural, adultos, nós temos nossa medicina e não professora Edilene Pankará, A experiência se desenvolve na Escola Especiosa
Eles são ligados ao Sindicato Rural, ao governador, aos precisa ir ao médico. Com nossa medicina estudante do curso de licenciatura Benigna de Barros, na aldeia Brejinho, território do
ao governador, aos prefeitos e que nossos Encantados ensinam para nós intercultural do Centro Acadêmico povo Pankará, município de Carnaubeira da Penha,
tudo, são todos políticos. Tentaram prefeitos e tudo, são curados nossos doentes. Isso é muito sertão pernambucano.
do Agreste / UFPE, decidiu desenvolver
me criminalizar pela televisão. Os são todos políticos. importante para nós. O ritual é o Deus “Agora estamos numa fase em que os/as alunos/as
interesses são que eles querem me nosso. Porque a fé que nós temos no nosso
um projeto em seu estágio de conclusão
Tentaram me de curso sobre A mulher no Brasil. Sobre
estão pesquisando e produzindo vídeos e apresentações
sujar para me esmorecer e não ritual é muito importante, é uma fé bonita sobre as mulheres importantes do nosso povo, como
resolver mais nada com a terra. criminalizar pela mesmo. Porque abaixo de Deus tem os a escolha do tema ela revela: “É um tema nossa cacique Dorinha, nossas anciãs, nossas artesãs,
Eles querem tomar minha força televisão. Os interesses nossos Encantados que nos protegem. A tratado com preconceito na mídia e em nossas rezadeiras, nossas coordenadoras das escolas.”
para eu não ter mais força para maior fé que nós temos é em Deus e neles. outros lugares que eu observo”. A educação no povo Pankará apresenta na sua gestão
resolver o problema da nossa terra.
são que eles querem Nossa força vem dos pés da Mãe de Deus e seis núcleos, conforme se organizam socialmente, ou
Como a senhora foi escolhida me sujar para me da terra. Porque a gente tem aquela fé que Ela conta que iniciou levando músicas que falam de seja, baseada na própria cultura, geografia e história
para ser cacique? esmorecer e não sai da terra e de nossos espíritos da mata. mulheres, história de mulheres importantes, promovendo do povo. São 1300 alunos e alunas e 106 professores e
Eu fui escolhida pela comuni- É muita fé. Eu tenho 73 anos e 40 de luta e debates e pesquisas com as crianças e adolescentes. professoras atuando em todo território.
dade. Eu fui escolhida pela comu- resolver mais nada com tenho fé em Deus de que nós vamos vencer. “Comecei levando algumas
nidade todinha. Eu não tenho esta a terra. Como é ser mulher nessa luta? músicas que exaltam as mulheres
Eu confio em Deus e em mim e luto pelo e também aquelas que rebaixam as
meu povo com muita fé e eu acho que se mulheres, como a que nos comparam
fosse um cacique era bom, mas quem foi a cachorras. Também levei biografia de
escolhida fui eu e acho que eles (comuni- mulheres importantes e suas contri-
dade) têm muita confiança em mim e eu buições para o mundo como Madre
vou viver até resolver o problema deles. Não Tereza de Calcutá, a presidente Dilma
é fácil ser cacique. É muito difícil, porque Rouseff, Anita Garibaldi, Cora Cora-
todo o dia tem cobrança dos índios princi- lina, Maria da Penha, Chica da Silva,
palmente pela terra. O que os índios mais destacando o papel na história, na
pedem aqui é a terra. Os índios querem a poesia, em pastorais, na legislação, no
terra para trabalhar, para plantar, para criar comando, enfim, em tudo. Fizemos
e aí a gente fica muito perturbada nesta paralelos de funções que as mulheres
parte, mas eu estou feliz com isso. Meu não desenvolviam e hoje desenvolvem.
povo confiou em mim e se eles achassem Hoje existem mulheres policiais, juízas.
que era melhor um cacique homem, teriam Também não votávamos e hoje não
escolhido um cacique homem, mas eles somente votamos como somos eleitas.
Ritual Praiá, povo Pankararu Assembleia da Copipe, junho de 2011
confiaram em mim. Temos hoje a primeira vereadora de

40 41
Xukuru TRUKÁ

A mulher Truká vive sempre em movimento


Somos mulheres guerreiras E participa de tudo bem junto de sua gente
Nascemos para lutar
Apesar dos homens machistas Cuida dos filhos e da casa, conversa, aconselha e educa
Somos mulheres fortes, nascemos para brilhar. Prepara-os para seguir nesta sociedade injusta

Nós, mulheres Xukuru, somos realmente porretas Ainda trabalha fora, vive sempre em correria
Participamos de tudo Trabalha na agricultura e no rio faz pescaria
Nos rituais, reuniões de educação, saúde e Também dança o Toré com muita dedicação
comunidade Fortalecendo a cultura dos índios da Assunção
Pensem que mulheres guerreiras!
Dentro da religião a função é diferente
Nós mulheres somos mil utilidades, Apenas o juremeiro é quem prepara a jurema
Depois de tudo isso E corre a cuia de mão em mão pra servir a sua gente
Ainda conseguimos ser donas de casa
E ter responsabilidade. ATIKUM A relação entre homem e mulher também tem suas diferenças
Mesmo contribuindo nas lutas com os homens
Mulheres Xukuru precisam se conscientizar Sentimos que há resistência
Deixando de ser oprimidas pela violência Desvalorizam a mulher com desrespeito inconsequente
E consultar a natureza sagrada As mulheres Atikum se encontram no dia a dia
Para nos iluminar Debatendo assuntos para sua melhoria. Mas as mulheres estão lutando contra a desigualdade
Para acabar com o machismo que está impregnado
Mulheres Xukuru, quando pegam o maracá na mão, No povo Atikum há muita organização E assumir o seu papel de cidadã com igualdade
Chamam os Encantados Mas há também violência e muita discriminação
Pedem força e proteção aos encantos Nos lares das mulheres Truká a harmonia vai acontecer
Para as mulheres Xukuru do Ororubá! A saúde do nosso povo precisa melhorar O alcoolismo que devasta a aldeia vai ter que desaparecer
Para termos um bom atendimento precisamos Pois com a força de Tupã iremos isto combater
batalhar
Os homens do nosso povo saem para se divertir
Nós mulheres de Pernambuco aprendemos a lutar E também para beber
Aprendemos a se organizar e juntas podermos Depois chegam em casa e na mulher querem bater
trabalhar Mas ela não lhe submete e bota ele é para correr!

As mulheres se reúnem para tomarem decisões


Para lutar por políticas públicas que respeite nossas
opiniões

Terminamos essa poesia com muita satisfação


Pra dizer que somos guerreiras, e força como a nossa
não há não!

42 43
Entrevista Dona Zenilda Xukuru do Ororubá

“Quem nasceu lutando não vai


morrer de braços cruzados”
Renato Santana*

N
a mata da Serra do Ororubá, em Para Dona Zenilda o medo sempre ficou abaixo
Pesqueira, agreste pernambucano, da coragem. Assim, encarou com tranquilidade a
Dona Zenilda Xukuru busca escolha de seu filho para substituir o pai na missão
de cacique do povo Xukuru. O momento era de
a Natureza Sagrada para renovar as
grande tensão: com a morte de Xikão, a luta do povo
forças e seguir na luta de seu povo. A ganhou repercussão internacional e os conflitos em
fala calma e os gestos curtos destoam Pesqueira se acirraram. “(As mulheres) Elas diziam:
de uma vida marcada pela fúria de “Dona Zenilda, é perigoso”. Eu dizia que não, porque
fazendeiros, policiais e políticos contra o se ele nasceu com o dom de ser liderança, ele vai ser
povo Xukuru, que a partir dos anos 1980 porque foi a natureza que escolheu”, explica Dona
passou a reivindicar as terras de ocupação Zenilda, que hoje em dia prepara outras mulheres
para a liderança do povo.
tradicional - até a homologação definitiva
“O movimento indígena precisa entender a impor-
do território, em 2002. tância das mulheres organizadas, mas é desafio das
mulheres superar isso e se impor, se colocar como mulher
Foram anos de chumbo, com assassinatos de indígenas mesmo. Os maridos reclamam muito das mulheres irem
e apoiadores. Depois de passar quase duas décadas viajar, mas eu digo: onde tem confiança, tem cumplici- Dona Zenilda Xukuru do Ororubá
sofrendo os mais diversos tipos de violência e crimi- dade”, defende a mulher que ao lado de cacique Xikão
nalização, como o assassinato do marido, o mítico escreveu uma das histórias de luta do movimento Agora aqui essa luz nunca se apagou Coragem para lutar, vontade de lutar. Então, esse
cacique Xikão, além da posterior acusação de ser a indígena brasileiro. processo de criminalização fica mais forte quando
mandante do crime, Dona Zenilda confia que a força
e como os fazendeiros viram que começamos a lutar por nossas terras. Veio a perseguição,
da mulher indígena para enfrentar tamanhos desafios Como a criminalização repercute na vida da não adiantava matar, passaram a principalmente dos posseiros. Começaram a matar para
do movimento indígena vem da fé na Natureza Sagrada mulher Xukuru? criminalizar. Na morte de Xikão, todos nos intimidar, mas isso não aconteceu. Eu como mulher,
e na Mãe Terra. A partir do momento em que começa a luta pela depois de ter tido um marido assassinado, entreguei
“Estar com a Mãe Terra, sobre ela, é uma sustentação. terra vem esse tipo de perseguição. É uma forma de sabiam quem eram os mandantes, um filho. Quando a gente nasce recebemos uma luz.
A energia que ela libera para o nosso corpo é muita paralisar a luta mexendo com o psicológico das pessoas. mas inverteram todo o processo. Não podemos deixar essa luz apagar. Como mulher, é
e chega até a mente”, diz Dona Zenilda com o olhar Quando Xikão assumiu a luta, eu como mulher fiquei isso que eu tenho dentro de mim.
Colocaram-me como mandante e dois
afastado do interlocutor, mirando para além das paredes ao lado dele. Foi difícil? Muito, porque enfrentar 281 Agora aqui essa luz nunca se apagou e como os
da casa em que vive o filho, cacique Marcos Xukuru, posseiros não é fácil. Mas quem tem fé na Natureza Xukuru como executores. fazendeiros viram que não adiantava matar, passaram
na aldeia Santana. Dessa maneira, nunca esmoreceu, Sagrada, no criador, não teme o que vem pela frente. a criminalizar. Na morte de Xikão, todos sabiam quem
mesmo diante dos momentos mais duros: “Foram três Estar com a Mãe Terra, sobre ela, é uma sustentação. eram os mandantes, mas inverteram todo o processo.
mandados de prisão. Quatro anos de sofrimento, mas A energia que ela libera para o nosso corpo é muita e Colocaram-me como mandante e dois Xukuru como
eu sempre encorajava o meu povo para não desistir”. chega até a mente. executores. Toinho porque possuía interesses políticos,
sendo que Xikão era um entrave para ele, e Zé de
* Renato Santana é jornalista e editor do jornal indigenista Porantim, veículo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Santa queria ser o cacique. Comigo foi algo bem sujo:

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ciúmes. Diziam que Xikão tinha uma amante e eu por apoiá-lo. Também tenho o meu dom e dom a gente tão grande que quem está ligado na natureza, em tudo, como as mulheres conseguiram conquistar esse papel
ciúmes mandei matá-lo. Diziam isso nos depoimentos. distribui, semeia. Cacique Marcos era uma sementinha não tem medo de enfrentar nenhuma luta. Xikão dizia: de destaque num ambiente tipicamente machista?
Falaram isso para mim e eu dizia que não acreditava e o joguei ao meio do povo, para semear. Assim ele foi em cima do medo, coragem. No momento em que começou a luta pela terra
e que era mentira. para a luta. A vontade de ver meu povo crescendo é maior. Quando no estado, não era só o homem que ia para a luta. Era
Foram três mandados de prisão. Quatro anos de São 26 anos de luta. Foram tempos de perseguição, a minha matéria repousar na Mãe Terra, espiritualmente um movimento para defender quem nos criou a Mãe
sofrimento, mas eu sempre encorajava o meu povo assassinatos e criminalização. Se um dia eu for chamada vou continuar no meio do meu povo. Isso é ser eterno. Terra. Assim, a natureza trouxe isso para as mulheres. As
para não desistir. Xikão deixou algo muito importante: pelo pai eterno essa luz continuará no meu povo, mas Quais as principais marcas que o processo de mulheres caciques são iluminadas. É assim também com
nos ensinou a caminhar. Até que o pajé viu uma luz como uma luz encantada, que são os Encantados que criminalização deixou? as quilombolas. Quem não conhece nossa relação com
no Marcos (atual cacique e filho de Xikão), que tinha nosso povo acredita. Quando me acusaram de ter matado Xikão, a minha a natureza não entende e não aceita esse protagonismo
de 11 para 12 anos. Por segurança, depois do assassi- Como a senhora relaciona a Mãe Terra e a mulher? fé nos Encantados e na Mãe Terra não deixou que eu me das mulheres. Todas essas mulheres possuem um dom.
nato de Xikão, ficamos dois anos sem cacique. Marcos A terra é uma mãe. Diferente de nós mulheres, que abalasse. Quem tem fé é mais forte que a mentira. Claro, Porém, existem mulheres que desempenham um
acompanhava as reuniões, o Conselho de Lideranças, somos mãe. Para o mundo a mãe humana é visível, existe um constrangimento no período de pressão, mas papel importante dentro da comunidade sem se
as discussões dos mais velhos. No dia 6 mas a terra não é vista assim. Precisa se você tiver com a luz acessa nada pode te derrubar. tornarem caciques. Por exemplo, cuidar da cozinha
de janeiro de 2000 entreguei meu filho A terra é um ser mudar. A terra nós dá árvores, alimentos, Cacique Marcos, quando ficou sabendo que estavam é algo fundamental. É preciso alimentar quem está
para a luta depois de ter entregue meu humano invisível e tem água e nos acolhe como a mãe abraça me acusando da morte de Xikão, escutou lutando e a cozinha então passa a ser
marido para a vida eterna.
uma força tão grande
seus filhos. As árvores que possuem de mim: meu filho, se a gente nasceu A força dos Encantados instrumento da luta.
E as outras mulheres... ‘sangue’, ‘ossos’. para passar uma provação, temos que O que é mais difícil para a mulher
Elas diziam: “Dona Zenilda, é peri- que quem está ligado na A terra não é diferente da mãe estar forte e preparado. Você confie também é uma em lutas como essas dos povos indí-
goso”. Eu dizia que não, porque se ele natureza, em tudo, não humana, porque a mãe cuida do seu na sua Mãe Terra e na sua mãe do céu. corrente entre os genas?
nasceu com o dom de ser liderança,
tem medo de enfrentar
filho e cuida de tudo ao seu redor. A Não desanime. Disse para minhas filhas. povos indígenas. Isso Difícil mesmo é a perseguição da
ele vai ser porque foi a natureza que Mãe Terra não é assim? A terra é um A força dos Encantados também é Justiça. Vem para destruir, um verdadeiro
escolheu. Eu como mãe estou para nenhuma luta. ser humano invisível e tem uma força uma corrente entre os povos indígenas. é muito importante massacre psicológico. Não mata fisica-
Isso é muito importante de dizer. Depois de dizer. Depois que mente, mas tortura a alma. Porém, como
que me acusaram de ter mandado matar somos fortes, caso de Dona Hilda (Entre
me acusaram de ter
Xikão e não deu certo, tentaram me Serras Pankararu) e cacique Dorinha
envolver na morte de Chico Quelé, mas mandado matar Xikão e (Pankará) que foram perseguidas,
não deu certo. Eu pertenço à natureza não deu certo, tentaram ameaçadas. Nunca elas desistiram e eu
e por isso sou mais forte. também não. Muitos povos tão em fase
Tivemos essas mortes, marca que
me envolver na morte de demarcação e não podem desistir,
temos, mas quem morreu está entre nós. de Chico Quelé, mas esmorecer. Quem nasceu lutando não
Dentro dos desafios colocados hoje não deu certo. Eu vai morrer de braços cruzados.
para o povo Xukuru, como a senhora Quais os principais desafios para as
enxerga a mulher no contexto? pertenço à natureza e mulheres hoje no movimento indígena?
A participação da mulher Xukuru por isso sou mais forte. O desafio maior é unir para esse
é muito forte, em todas as instâncias movimento seguir mais forte. O tempo
de organização. Na educação, saúde, subsistência. Por é outro desafio, porque muitas vezes os afazeres e os
sinal, temos mulheres agricultoras que são um exemplo maridos acabam não permitindo que a mulher vá para
no fornecimento de alimentos para nossas escolas. Ou a luta. Internamente eu busco discutir isso e estou
seja, a alimentação vem pela mão da mulher e vai para preparando outras mulheres, sobretudo para que elas
a boca de nossas crianças. Elas recebem o dinheiro e me substituam nas caminhadas, nas lutas. O que eu
assumem as responsabilidades de casa. Esse envolvimento digo é que não podemos desistir: enquanto duas ou
é essencial e está em tudo mesmo, inclusive na religião. três estiverem reunidas, discutindo, os Encantados
A mulher é multiplicadora, pois ela transmite esses estarão ali.
valores para a nova geração. Então, elas são educadoras, O movimento indígena precisa entender a importância
professoras; dentro e fora da sala de aula. No nosso das mulheres organizadas, mas é desafio das mulheres
meio a mulher é isso, uma multiplicadora. superar isso e se impor, se colocar como mulher mesmo.
As mulheres indígenas exercem um papel de Os maridos reclamam muito das mulheres irem viajar,
Dona Zenilda Xukuru ao lado do filho, cacique Marcos, durante Assembleia do Povo Xukuru, em Vila de Cimbres destaque aqui em Pernambuco. Na opinião da senhora, mas eu digo: onde tem confiança, tem cumplicidade.

46 47
PIPIPÃ

Bom dia para todas


Que aqui estão presentes
Viemos transmitir
Como é nosso lugar
Deixando de maneira clara
Como é bom se encontrar
E as mulheres Pipipã
Vão agora contar
Como é seu dia a dia
Sem sequer desmoronar
Muitas trabalham nas roças
Outras são donas do lar
Outras são professoras
Ensinam para melhorar
O futuro das crianças
Para guerreiros formar

Tão pouco é composto


O tempo, para gente conversar
Mas quando encontra um tempinho
Vamos em pauta colocar
Que o dia da mulher
Vai sempre revigorar

Muitas mulheres que sofrem


Na mão de quem não lhe dá valor
A mulher tem que ser amada
Não sofrimento e dor
Pois Maria foi a mãe
Do nosso Cristo Senhor.

Aqui vamos esclarecer Pipipã é povo forte


Como se faz um conto Guerreiro e trabalhador
Embora que na verdade Com a força do Encanto
Mostra o grande encanto Do nosso pai criador
Que o povo Pipipã luta Vamos sempre estar contentes
Por um dia de descanso Mostrando nosso valor
Quando ver as nossas terras demarcadas Que a nossa Serra Negra
E brilhando como ouro Repassa nosso valor
Com vastos riachos transbordantes É com força em Tupã
Que vamos ser vencedor

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www.cclf.org.br
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55 (81) 3301-5242
Fax: 55 (81) 3429-4881
E-mail: cclf@cclf.org.br

ISBN 978-85-87433-05-3

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