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Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
Os novos
portugueses
na rentrée
literária
Os livros que vamos
poder ler na ficção,
poesia e ensaio
ILUSTRAÇÃO DE MIGUEL FERASO CABRAL | ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.011 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Sexta-feira | 15 Setembro 2017 | publico.pt/culturaipsilon
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Flash
Sumário
4: Rentrée literária
Os novos portugueses
24: Exposição Uma das obras é a tela em que Manet pintou o casal Claude-Camille Monet, em 1874, no seu barco-estúdio
Como ver os nossos Mirós
Os novos
portugueses
om a rentrée chega uma voz
nova à literatura portugue-
sa: Carla Pais (n. 1979), com
o romance Mea Culpa (Por-
to Editora). Confirma-se a
de um outro autor, Rodrigo
Magalhães (n. 1975), com o romance
Os Corpos (Quetzal) — antes escreveu
C
Cinerama Peruana (Quetzal, 2013).
Há ainda um outro livro de uma au-
tora estreante a merecer toda a aten-
ção (apesar de ter sido publicado há
cerca de dois meses) pela singulari-
dade da sua escrita: a novela Fábrica
de Melancolias Suportáveis (Elsinore),
de Raquel Gaspar da Silva (n. 1981).
Curiosamente — ou talvez nem tan-
to, porque é um ambiente que vem
surgindo amiúde nos livros da mais
nova geração de autores —, as histó-
rias narradas por ambas as escritoras
têm o mundo rural como cenário. As
suas personagens movem-se num
tempo que parece ser de “outro tem-
po”, num mundo quase atávico, on-
de religião e superstição se mistu-
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MIGUEL MANSO
MIGUEL MANSO
gens, porque habitam territórios que gundo disse a autora, foi a partir da
conheço muito bem. Este Alentejo ideia de construir estas duas perso-
das lendas, do folclore, é a minha nagens que nasceu toda a história.
memória indirecta, sentimental. São “Na altura pensei: se cruzar este ho-
histórias que ouvi em pequena e que mem que nasce do ventre de uma
me definiram também enquanto lei- puta com esta mulher que nasce do
tora, porque a oralidade também é ventre de uma mãe envenenada, o
uma parcela enorme nas minhas re- que irá acontecer? E foi um bocadi-
ferências de ‘leitura’, e consequen- nho a partir desta pergunta que o
temente definiram a minha voz como livro se foi construindo.”
autora. Quis preservar expressões
que entraram em desuso e contar Prémio Agustina
tudo como se acreditava ter aconte- Bessa-Luís
cido.” Fábrica de Melancolias Supor- A este romance de Carla Pais (na al-
táveis é assim uma espécie de depó- tura ainda inédito) foi atribuído em
sito de memórias sentimentais. A 2016 o Prémio Agustina Bessa-Luís,
autora confessa que conhecia muito que acabou por não ser entregue à
bem os alicerces desta história, pois autora por esta ter publicado ante-
começou a trabalhar no livro no iní- riormente uma outra obra de carác-
cio de 2016, sempre com a ajuda do ter ficcional, algo proibido pelo re-
editor, Guilherme Pires, então na El- gulamento. Carla Pais diz que este
sinore, e que foi quem a desafiou a livro demorou cerca de nove meses
escrever o livro. a escrever e que o fez para o enviar
Mea Culpa, o outro livro que tem a concursos de prémios literários,
também a ruralidade portuguesa co- mas que das duas primeiras vezes
mo pano de fundo, embora seja uma que enviou o envelope (por razões
região nortenha, apresenta uma desconhecidas) este nunca chegou
curiosa galeria de personagens que, ao destino. E ela desistiu. Mas um dia
de certa forma, se vêem uns nos ou- ficou desempregada, com necessi-
tros (reflectindo-se), se não na vio- dade de ocupar o tempo, e decidiu
lenta miséria em que vivem, pelo tornar a pegar-lhe de novo. “Corrigi-
menos na culpa que a sociedade lhes o todo à mão” e, desta vez, o original
atira para cima. As histórias aldeãs chegou ao destino.
acumulam-se até se cruzarem, tecen- Para Carla Pais, a vontade de es-
do assim o tecido debaixo do qual crever chegou-lhe por volta dos 13
todos se movem, tentando represen- anos, quando a patroa do pai lhe ofe-
receu um diário, daqueles com cha-
ves, cadeado e folhas perfumadas.
“Como estava a entrar na fase da ado-
“Acontece-me com lescência e nada à minha volta fazia
sentido, agarrei-me àquele bocado
alguma frequência de mundo que podia guardar fecha-
do. Aquele diário era uma espécie de
que os temas me cova, onde enterrava toda a raiva,
angústia e insegurança. Já naquela
apareçam por acaso altura via tudo virado do avesso. Fo-
ram quilómetros e quilómetros de
e que depois me linhas, e ainda bem que assim foi.”
Mea Culpa atesta a segurança da
exercite a moldá-los escrita da autora, a maneira como
conduz as histórias sem nunca as
àquilo que realmente perder da mão, e levando-as até on-
de quer de maneira a que se possam
me interessa” cruzar com outras no ponto certo.
Também as personagens, e apesar
Poesia
DR
Todo o Cesariny e o
Carla Pais,
primeiro Zagajewski
actualmente
a residir em Pela primeira vez, toda a poesia de Cesariny
Paris, diz que
a sua história é e três importantes antologias: de Adam
“uma espécie
de jogo de Zagajewski, Konstantínos Kaváfis e Rui
espelhos, em
que ninguém Costa. Por Hugo Pinto Santos
é o que parece
N
ser” a poesia, o grande Francisco José Craveiro de
destaque da rentrée é Carvalho. A Douda Correria
e entretanto está entre os escolhidos Bolaño de A Literatura Nazi nas Amé- Poesia Completa de Mário continuará a publicar a poeta
para finalista de um festival em Mas- ricas (Quetzal, 2010). Cesariny. A edição, que brasileira Angélica Freitas, com a
sachusetts. O vídeo será também As suas histórias (quase sempre sairá em Novembro, na edição de Um Útero É do Tamanho
exibido em breve na plataforma Po- a encaixarem umas nas outras como Assírio & Alvim, está a de Um Punho, e publicará, ainda,
etry Live Film.” mosaicos) vão tomando forma como cargo do grande especialista na Cavalo Alucinado, de Nuno Moura.
se fossem uma maneira de resistir obra de Cesariny Perfecto E. A Mia Soave lança o livro
Bolaño e Sebald ao esquecimento daquelas persona- Cuadrado. Esta é a primeira vez Contemspoiler, que inclui o CD Livro
Rodrigo Magalhães, autor do roman- gens, que têm como denominador que se publica toda a poesia de de Reclamações do poeta e cantor
ce Os Corpos, livreiro de profissão, comum responderem, de uma for- Mário Cesariny. Antecipando este Luca Argel, radicado há alguns anos
começou a escrever com nove, dez ma ou de outra, ao canto de sedução grande acontecimento editorial, a em Portugal e que publicou, em
anos, porque queria fazer argumen- do mal. Há nelas uma espécie de chancela da Porto Editora reedita Julho passado, a antologia da sua
tos para banda desenhada e, como fascínio pelo bárbaro, ou talvez mais em Outubro dois livros do poeta: poesia 33 Rotações (Averno).
se achava sem talento para o dese- pelo obscuro. É nisto faz lembrar os Primavera Autónoma das Estradas e No mês de Outubro, Daniel Jonas
nho, preferiu começar por escrever livros do chileno Roberto Bolaño e Manual de Prestidigitação, e, ainda publica novo livro de poesia:
umas histórias como tubo de ensaio, Rodrigo Magalhães concorda: “Creio este Outono, a sua tradução de Oblívio, na Assírio & Alvim. Nesse
na esperança de que algum dia apa- que tenho uma dívida visível para Rimbaud: Iluminações - Uma mesmo mês, chegam às livrarias,
recesse um desenhador que se dis- com o Roberto Bolaño, embora não Cerveja no Inferno. por mão da Relógio D’Água, duas
pusesse a colaborar. “Isso acabou seja sequer um dos meus escritores Em Setembro, a Relógio d’Água novas traduções: Poemas
por acontecer, mas por essa altura já favoritos. Mas há na obra dele uma publica O Pangolim e Outros Escolhidos, de W. B. Yeats, com
não era banda desenhada que me vontade de experimentar que me Poemas, de Marianne Moore, com selecção e tradução do poeta
interessava escrever”, diz. interessa muito.” Sobre outras in- tradução e selecção de Margarida Frederico Pedreira; e Poemas, de
Os Corpos parte de um aconteci- fluências acrescenta: “Parece-me Vale de Gato. No ano em que John Donne, escolhidos e
mento real: em 1948, em Somerton, que tudo me influencia. Sejam li- passam duas décadas sobre a traduzidos por Maria de Lourdes
numa praia australiana, foi encon- vros, filmes, música, seja o que morte de Rui Knopfli, a Tinta-da- Guimarães. O grande poeta
trado o corpo de um homem não for. Tudo é uma influência em po- china lança a antologia Nada Tem já metafísico inglês volta, assim, às
identificado. De aparência cuidada, tência, à espera de se manifestar. Encanto. Organizado por Pedro livrarias portuguesas depois das
vestia fato e gravata, e estava calçado. Livros escolho três: Os Anéis de Sa- Mexia, o volume conta com traduções de Helena Barbas, há
As peças de roupa e os sapatos não turno (W.G. Sebald), Almas Mortas posfácio de Eugénio Lisboa. Do muito esgotadas: Poemas Eróticos
tinham quaisquer etiquetas. Havia (Nikolai Gogol) e Bouvard e Pécuchet mesmo poeta, a Do Lado Esquerdo (Assírio & Alvim, 1995) e Elegias
algumas particularidades: um cigar- (Gustave Flaubert). Se tivesse de es- lançara, em Julho passado, Uso Amorosas (Assírio & Alvim, 1997). A
ro atrás da orelha e um pedaço de colher um escritor favorito, diria o Particular, com prefácio de Do Lado Esquerdo publica Oxalá,
papel rasgado num bolso com duas Sebald, embora não me pareça que António Cabrita e selecção de de Pedro Santo-Tirso. A Companhia
palavras escritas. O mistério desse essa preferência se manifeste no Maria Sousa e Nuno Abrantes. das Ilhas lança Cântico do Estuário,
homem de Somerton permanece até produto final. Há demasiado a sepa- Ainda durante este mês, sai, na de Ricardo Pérez Piñero, com
hoje. Rodrigo Magalhães conta que rar-nos.” Assírio & Alvim, uma importante versão portuguesa de Nuno
demorou cerca de três anos a escre- Este romance, tanto como o caso antologia de Rui Costa, Mike Tyson Dempster.
ver este livro. “Escrevo devagar e por resolver de onde parte, é tam- para Principiantes. O poeta, que Em Novembro, sai pela Flop uma
tento que a primeira versão esteja o bém ele um livro misterioso, e ao morreu em 2012, aos 40 anos, em relevante tradução de Konstantínos
mais perto possível da forma final, mesmo tempo inquietante, sem que circunstâncias trágicas, é agora Kaváfis, 145 Poemas. O trabalho,
para que o penoso trabalho de revi- o leitor perceba bem a razão. É uma antologiado numa edição feito directamente a partir do grego,
são seja um pouco mais leve. Encon- obra difícil de categorizar. “Parte de coordenada por André Corrêa de ficou a cargo do poeta e tradutor
trei a história por acaso e quanto um enigma, mas não é um policial. Sá e com organização de António Manuel Resende. Este volume
mais li, mais me interessou este mis- Parece uma peça de conjunto, mas Aguiar Costa, Cláudia Souto e junta-se às traduções de Joaquim
tério. Acontece-me com alguma fre- também não o é. Interessou-me pul- Margarida Vale de Gato. A editora Manuel Magalhães, na Relógio
quência que os temas me apareçam verizar a acção, levá-la a passar por publica também o novo livro de D’Água: Poemas e Prosas (1994) e Os
por acaso e que depois me exercite diversas personagens, para que se Gastão Cruz, Existência, e as Poemas (2005).
a moldá-los àquilo que realmente me obtivesse no final uma ideia do mo- integrais Poesia, de Eugénio de Um dos maiores acontecimentos
interessa.” do como um único evento pode afec- Andrade, com prefácio de José desta rentrée será a publicação, na
Com grande maturidade narrativa, tar em maior ou menor medida um Tolentino Mendonça, e Poemas, de Tinta-da-china, de uma antologia da
e uma riqueza vocabular pouco co- grupo alargado, que neste caso é Almada Negreiros, com edição de poesia de Adam Zagajewski. Nome
mum (e isso era já bastante visível no uma cidade”, diz Magalhães. E con- Fernando Cabral Martins, Luis cimeiro da literatura europeia, o
seu livro anterior, Cinerama Perua- tinua: “Quis que a localização fosse Manuel Gaspar e Mariana Pinto dos poeta polaco será pela primeira vez
na), o autor continua em Os Corpos a tão vaga que se tornasse potencial- Santos. publicado em livro entre nós. A
construir um universo literário que mente universal. Daí também a es- Igualmente em Setembro, a antologia, ainda sem título
nos surpreende pela sua singulari- colha dos nomes das personagens, Editora Exclamação lança a definitivo, terá tradução de Marco
dade na recente literatura portugue- que são todos nomes que se escre- antologia Desaparições, do poeta Bruno e Jorge Sousa Braga. No
sa. A imaginação de Rodrigo Maga- vem do mesmo modo em diversas brasileiro Alexei Bueno, que foi mesmo mês, a Relógio D’Água lança
lhães parece assentar, de alguma línguas e países. Levei a cabo algu- organizada e prefaciada por dois títulos de Maria Mafalda Viana,
forma (e isso também acontecia mas experiências formais, relacio- Arnaldo Saraiva. A Dom Quixote com traduções de Píndaro e estudos
em Cinerama Peruana), na estética nadas com a dimensão dos capítulos publica Antologia de Poesia Erótica dedicados à obra do poeta grego: A
da pequena biografia, com raízes em ou dos segmentos que o compõem, de Bocage, com organização e Quarta Ode Pítica de Píndaro e O
Marcel Schwob (Vidas Imaginárias), umas mais bem sucedidas do que prefácio de Fernando Pinto do Livro das Odes Nemeias de Píndaro.
Jorge Luis Borges (História Universal outras. Mas a forma final, já se sabe, Amaral. Pela Companhia das Ilhas, A Do Lado Esquerdo publica Lonely
da Infâmia) e sobretudo no Roberto é só uma aproximação ao ideal.” sai Quatro Garrafas de Água, de Gigolo, de Pedro Tiago.
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 7
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Ficção
E
la não conseguia lembrar- nomes fundamentais da literatura desumanização no Brasil actual; e romance de Dulce Maria Cardoso
se do resto do poema; dois norte-americana, mas permanece de Espanha chega Baile e Sonho, — com título por revelar. É o
versos e mais nada. E o quase desconhecida em Portugal. O segundo volume da trilogia O Teu primeiro da escritora depois do
esquecimento não livro é um dos destaques deste mês Rosto Amanhã, uma das obras celebrado O Retorno (2012).
melhorava quando ouvia o que marcam o início da rentrée maiores de Javier Marías Também Hélia Correia tem um
riso dos colegas da Igreja literária em Portugal. (Alfaguara). O terceiro, Veneno e romance para publicar: Um
Metodista Episcopal de Pessoas de É tempo de novidades, algumas Sombra, tem saída agendada para Bailarino na Batalha é o regresso
Cor. Ela era assim, esquecia-se esperadas. Chega o romance Novembro. Da escocesa Ali Smith da vencedora do prémio Camões
muito e estava envergonhada no vencedor do Pulitzer de ficção em chega How to Be Both (ainda sem ao grande formato desde 2010,
seu vestido novo de tafetá, feio, 2016, A Estrada Subterrânea, de título em português), livro que na ano em que publicou Adoecer. Sai
que antes achara bonito e viu como Colson Whitehead (Alfaguara), verdade é um romance em duas na Relógio d’Água.
um meio para a sua redenção narrativa que reconstitui os anos de versões e foi finalista de vários Kalaf Epalanga, nome do
pessoal. “Enquanto observava a escravatura nos EUA; a Relógio prémios, entre eles o Man Booker, conhecido cantor do grupo Buraka
Mãezinha a pôr folhos na bainha e d’Água publica Um Deus em Ruínas, e venceu o Costa Award em 2014. É Som Sistema, terá um romance na
umas preguinhas bonitas na da britânica Kate Atkinson (Costa narrada na perspectiva de um Caminho, com título ainda por
cintura, soube que, assim que o Award, 2015); Homens Sem estudante universitário actual e de conhecer, e, na mesma chancela,
vestisse, iria parecer uma estrela Mulheres, contos de Haruki um jovem renascentista. Mais um Sandro William Junqueira publica
de cinema. (Era de seda, o que Murakami (Casa das Letras) chega a notável exemplo da capacidade Quando as Girafas Baixam o
compensava a cor horrorosa.) Eu ia 19, o mesmo dia da primeira edição narrativa de Smith. Pescoço, espécie de fábula
parecer uma daquelas meninas em português de O Escritor Também em Outubro, o mês citadina. Entretanto, a Quetzal
brancas e graciosas, que Fantasma, de Philip Roth (D. com mais lançamentos agendados, continua a republicar a obra de
encarnavam tudo o que havia de Quixote), romance de 1979, o além do terceiro volume das obras José Eduardo Agualusa, a Relógio
bom no mundo, o ideal de toda a primeiro da série que o escritor de Galeano, Mulheres, Antígona d’Água a de Agustina Bessa-Luís e a
gente. Delicadamente pousado em dedicou a um dos seus alter-egos, publica Baleia, uma novela de Paul Porto Editora a de José Saramago.
cima da máquina de costura Singer Nathan Zuckerman. Ainda na D. Gadenne, e Europeana, Uma Breve A Tinta-da-china anuncia um novo
preta, o vestido era mágico, e, Quixote, volta Lisbeth Salander em História do Século XX, de Patrik livro de Ricardo Araújo Pereira.
quando as pessoas me vissem com O Homem que Perseguia a sua Ourednik. E sublinhe-se um título Um dos destaques de Novembro
ele, viriam ter comigo a correr e Sombra, de David Lagercrantz, da Quetzal: O Livro de Emma Reyes vai justamente para a Tinta-da-
diriam: ‘Marguerite [...] por favor quinto volume da saga Millennium, - Memória por Correspondência, da china: na sua colecção de viagens
perdoa-nos, não sabíamos quem iniciada por Stieg Larsson. José pintora colombiana Emma Reyes publica Constantinopla, de
eras’, e eu responderia, Rodrigues dos Santos tem novo (1919-2003). Um livro que quebra Edmondo de Amicis. Será a
generosamente: ‘Não, não podiam livro, a 23, O Reino do Meio, último as regras da memória primeira edição integral em
saber. É claro que vos perdoo.’” Ela livro da Trilogia do Lótus. Ainda a convencional para se contar o que Portugal deste clássico do século
é a personagem central do continuação da publicação da obra descreve como um talento XIX, numa tradução de Margarida
romance autobiográfico Sei Porque de Eduardo Galeano pela Antígona, acidental. Periquito a partir do italiano. É o
Canta o Pássaro, de Maya Angelou, com O Caçador de Histórias, e, na Outro destaque é o livro do mesmo mês em que chega A Sede,
que a Antígona faz chegar à edição Quetzal, O Caminho Imperfeito, francês Emmanuel Bove (1898- do norueguês Jo Nesbo, e A
portuguesa este Setembro quando livro de viagens de José Luís 1945), Os Meus Amigos (Cotovia), e Trégua, de Primo Levi (Dom
passam 47 anos da publicação Peixoto. da Argentina chega Distância de Quixote). A Elsinore traz romance
original. Surpresa de saudar é a Segurança, da escritora Samanta de Paul Beatty que antecedeu O
O volume conta os primeiros 17 publicação de Um Amor Feliz, do Schweblin (Elsinore). O Nobel Vendido. Chama-se A Dança do
anos da vida de Maya Angelou, alemão Hubert Fichte, pela japonês Kenzaburo Oe surge com Rapaz Branco. Na Porto Editora, há
nome literário de Marguerite Ann Cotovia, numa tradução de José uma história autobiográfica, Morte Isabel Allende, Para lá do Inverno,
Johnson, romancista, poeta e Vieira Mendes. É a viagem de dois pela Água (Livros do Brasil), e, na e Veracruz, de Olivier Roland, na
activista que integrou o movimento irmãos, em 1964, a um país Dom Quixote, há o mais recente Sextante. E em Dezembro sai na
dos direitos civis na América ao governado por um ditador. Esse título de John Le Carré, Um Legado Relógio d’Água o mais recente e
lado de Martin Luther King. país é Portugal. Destaque ainda em de Espiões, que marca o regresso celebrado livro de Kamila Shamsie.
Alguém que antes de ser escritora Setembro para Octaedro, de Julio do agente Smiley; Isso Não Pode O título original é Home Fire e é
fez de quase tudo para sobreviver. Cortázar, O Galo de Ouro, de Juan Acontecer Aqui, do Nobel Sinclair uma actualização da Antígona, de
Foi cozinheira, prostituta, até se Rulfo, e A Porta, de Magda Szabó Lewis, e Contos, de Lampedusa. A Sófocles. As relações sociais,
formar em estudos americanos na (Cavalo de Ferro); Rapaz, Neve, Ave, Asa traz um novo de Arturo Pérez- familiares e de fé no mundo
Universidade da Carolina do Norte de Helen Oyeyemi (Elsinore), a Reverte, Falcó, e um dos livros do contemporâneo.
em 1982. Em 1993, declamou o seu reedição de Ébano, de Ryszard mês da Relógio d’Água é A E, não é novo, mas a tradução é
poema On The Pulse of Morning na Kapuscinski (Livros do Brasil). Autobiografia de Alice B. Toklas, de uma novidade: Os Detectives
cerimónia de tomada de posse de Entre os aguardados por muitos Gertrude Stein (também publicada Selvagens, de Roberto Bolaño,
Bill Clinton. Morreu em 2014, aos leitores está Escutai as Nossas pela Ponto de Fuga, este saem numa edição especial,
86 anos, considerada um dos Derrotas, do francês Laurent Gaudé Setembro). É uma memória da revista, aumentada, na Quetzal.
8 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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Chovem
da Cultura Portuguesa, um
empreendimento monumental
coordenado por José Eduardo
Franco e Carlos Fiolhais (Círculo
almôndegas
de Leitores), que nos dará, num
período temporal dilatado, uma
selecção de nada menos do que
80 obras em 30 volumes,
resultado de um projecto levado
a cabo por uma equipa
Na não-ficção, dezenas de títulos. Destaque multidisciplinar de 174
elementos. Esmagador. No
para a história contemporânea, com terreno das memórias, realça-se,
quer pelo seu interesse histórico,
a Revolução Russa e outros temas. quer pelos conhecidos dotes
literários e pela originalidade
Por António Araújo estilística e fina ironia de um dos
nossos maiores diplomatas, Abril
de Outras Transições, de José
Cutileiro (Dom Quixote). Nos
estudos de género, as edições
Orfeu Negro trazem o
clássico Problemas de Género.
Feminismo e subversão da
C
omo acontece todos os contributo mais militante, engagé identidade, de Judith Butler, com
anos, a rentrée editorial e reflexivo, e por isso tradução de Nuno Quintas.
da época 2017/2018 é historiograficamente muito A literatura de viagens, agora
marcada por uma menos interessante, dado pela cultivada com afinco por várias
enorme quantidade de obra colectiva A Revolução Russa. editoras, num movimento que
títulos, que, no domínio 100 Anos Depois (Parsifal), de começou na Tinta-da-china e
dito do “ensaio” ou da “não- vários autores portugueses depressa alastrou a chancelas de
ficção”, se caracterizam por uma (António Louçã, Fernando Rosas, qualidade como a Relógio D’Água
qualidade muito desigual. Este Rui Bebiano, etc.). ou a Sextante, tem o seu apogeu
dilúvio livresco é prova da salutar Já que se reeditará Viagem à outonal em A Conquista do Inútil,
vitalidade dos editores União Soviética, de Urbano de Werner Herzog, da Tinta-da-
portugueses — ou, numa visão Tavares Rodrigues, de 1973, é china, casa livreira que, na
mais cruel, da sua insana pena ninguém se ter lembrado, secção das biografias, faz cair
temeridade. ao que sabemos, de republicar, dos céus O Anjo Pornográfico,
Destacando alguns dos títulos por ocasião dos 100 anos da inultrapassável reconstituição da
mais aconselháveis, salienta-se, revolução de Outubro, os textos trajectória de vida de Nelson
pela Quetzal, o terceiro volume de Jaime Batalha Reis na Rússia Rodrigues pela pena envolvente
da Bíblia (Antigo Testamento - Os dos sovietes, objecto de uma e sedutora de Ruy Castro.
Livros Proféticos), na controversa edição da Afrontamento Na ciência, a Gradiva a
mas — e até por isso — organizada no já longínquo ano pontuar, como é hábito: na
valiosíssima tradução de de 1984 por Joaquim Palminha colecção Ciência Aberta,
Frederico Lourenço. No campo Silva, e, já agora, de um recente e superiormente dirigida por
em que Lourenço se move com (como sempre) excelente artigo Carlos Fiolhais, Tecnologia
mais brilhantismo, os estudos do historiador Ernesto Castro versus Humanidade, de Gerd
clássicos, a Gulbenkian irá em Leal, saído há pouco na Leonhard, e, em Outubro,
breve reunir num único volume revista História Crítica. Viagem ao Infinito, de Martin
os Estudos de História da Cultura Falando de História, novidades Rees. Com A Estranha Ordem das
Clássica, de Maria Helena da de relevo, como o Coisas, António Damásio, na
Rocha Pereira, abrangendo assim polémico Tempo de Raiva. Temas e Debates, que nos traz
a cultura grega e a cultura História do Presente, de Pankaj também A Invenção da Ciência,
romana, até agora alvo de edições Mishra, produto típico da de David Wooton. E, mais para o
separadas. O aniversário da “historiografia global” dos nossos final do ano, a Guerra & Paz
Revolução Russa, por seu turno, é dias, com laivos anti- levará aos escaparates a
assinalado por duas obras de ocidentalistas, o correspondência filosófica e
autores estrangeiros — A importante Holocausto. Uma Nova sentimental de Hannah Arendt e
Revolução Russa, de Sheila História, de Laurence Rees, ou, Martin Heidegger, outra grande
Fitzpatrick (Tinta-da-china), e A centrando-se na realidade notícia.
Tragédia de um Povo. A Revolução nacional, e ambos através da Portugal, Setembro de 2017:
Russa, 1891-1924, de Orlando Figes clarividente Temas e Debates/ tantos livros para tão pouca
(Dom Quixote) —, a par do Círculo de Leitores, o regresso de leitura.
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 9
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A vida de Anne
Frank contra
tempos sombrios
U
Concebida por ma adaptação fiel ao livro.
Descreva-se assim a versão
produção de um filme de animação.
Aos poucos foram reconsiderando. mmmqm
gueto! Hei-de casar com ele!’ E, qua-
tro anos depois, casou. No Diário de
Ari Folman e em banda desenhada de O
Diário de Anne Frank, reali-
“Partilhei as dúvidas com a minha
mãe. Ela tem 95 anos e disse-me que Diário de Anne
Anne Frank a vida também está re-
presentada e é muito bonito o modo
David Polonsky, zada pelo cineasta Ari Fol- ia viver mais uns anos só para assistir Frank como a Anne Frank a observa. Penso
man e o ilustrador David à estreia nas salas de cinema”, contou Ari Folman e que nos envolvemos muito com esse
a mais recente Polonsky, que no próximo dia 21 che- Folman. “Sobreviveu ao Holocausto, David Polonsky lado, atentos as conjunto das perso-
adaptação em ga às livrarias portuguesas com o
selo da Porto Editora. Não aguardem
tal como o meu pai. É um aconteci-
mento que faz parte da história da
(Trad. Elsa T.S.
Vieira)
nagens, ao modo como se vestiam,
àquilo que sentiam, às suas idiossin-
BD de O Diário os leitores grandes experimentações
em termos temáticos ou formais. As
minha família, está entranhado meu
ADN. Acabei por aceitar. Não resisti.”
Porto Editora crasias. Normalmente, quando se lê
o livro, não se pensa nisto, mas no
de Anne Frank sequências, o estilo de desenho, as Polonsky entrou em sintonia com inimigo que aguarda lá fora. E somos
põe as imagens vinhetas e os balões adequam-se à
leitura tradicional de um livro de BD,
amigo, ainda que por outras razões.
“Nasci na antiga URSS, a minha famí-
muito influenciados pelo facto de sa-
bermos como a história acaba.”
em diálogo com procuram ilustrar, sobre o papel,
aquilo que a jovem Anne Frank es-
lia não se confrontou com o nazismo,
mas os tópicos abordados por Anne
A vida de Anne Frank no diário
gráfico de Ari Folman e David Po-
as palavras, creveu, num pequeno caderno, entre Frank continuam a ser muito impor- lonksy acolhe os anseios, as esperan-
12 de Junho de 1942 e 1 de Agosto de tantes e quis ver até onde podíamos ças e medos dos habitantes do anexo
para oferecer 1944. Não há desvios, omissões ou ir na sua tradução para outras lingua- (a irmã e os pais de Anne, a família
o retrato de novidades nesta versão, a primeira
em banda desenhada autorizada pe-
gens. Por outro lado, estou certo que
se não fôssemos nós, outros acaba-
van Daam, o dentista Albert Dussel),
ilustra os desentendimentos domés-
um quotidiano la Fundação Anne Frank. Nas suas
páginas, estão representados o quo-
riam por abraçar o projecto”. ticos, as peripécias provocadas pela
falta de alimentos ou pela ameaça dos
marcado pelo tidiano no anexo secreto de Ames- A beleza contra o terror ladrões e das denúncias. Chega mes-
desespero, o terdão, as relações da jovem com os
pais, os primeiros arroubos da ado-
Em Paris, Folman insistiu várias vezes
na palavra missão. Queria traduzir
mo a enfatizar a dificuldade das rela-
ções interpessoais, o sufoco a que a
humor, a ironia lescência, o humor, o medo, a guer-
ra e a ameaça da morte. Recorrendo
graficamente O Diário de Anne Frank
e levá-lo aos leitores mais jovens. Pa-
vida privada é sujeita sem a liberdade
de uma vida pública (as personagens
e o gosto pela à linguagem da banda desenhada, os ra que ficassem a conhecer o contex- Ouse-se, então, a pergunta: reflectirá vivem sem espaço entre elas). O livro
dois artistas conservaram o retrato to político e histórico em que o diário este livro a concepção que Anne não se furta ao desespero, mas con-
beleza. da intimidade de uma rapariga judia foi escrito, para que se confrontassem Frank nos deixou da beleza? traria-o, ilustrando o humor e a ironia
sob a escuridão da Europa. A fim de com as perseguições nazis, com o “Espero que sim”, diz Ari Folman. da própria Anne Frank, humanizan-
a voltar a lembrar. Holocausto, o terror da guerra, a fo- “Penso, por vezes, que a percepção do o drama das famílias (vejam-se as
Entre as palavras
em Paris cio do mês. A dupla, que já se reuni-
ra em Valsa com Bashir (2008) e em
O Congresso (2013) — Polonksi foi res-
construiu. Acontece que nesta adap-
tação, os dois artistas decidiram res-
saltar os pensamentos, o humor, a
da fotografia da criança de braços no
ar no gueto de Varsóvia. Sabe como
os meus pais se conheceram? A mi-
e as imagens
“Enquanto relíamos o diário, fomos
reparando na qualidade da escrita.
ponsável pela direcção artística dos rebeldia da jovem (no seu inconfor- nha mãe vivia no gueto de Lodz [na Era boa literatura”, conta David Po-
dois filmes de Folman — começou mismo pressente-se já a inquietação Polónia], tinha 16 anos, quando re- lonsky. “Como ilustrador, tenho uma
por rejeitar o desafio da fundação. A que nos anos 60 agitaria a juventude parou num jovem que acabara de regra. Quando o texto é bom, não se
abundância de adaptações (algumas da Europa e dos EUA). Para tal, uma entrar com a sua família. Sabe por- desenha. Por isso, o leitor encontra
pouco recomendáveis), a populari- das estratégias passou por preservar, quê? Porque ele, além de ser bonito tantas machas de texto. Uma das ra-
dade do diário, a presença icónica com frequência, as palavras, como [risos], carregava a sua cama com a ras ocasiões em que não segui a regra
de Anne Frank, a sua apropriação aquelas que podemos ler na página ajuda do porteiro. Ela terá dito a uma aconteceu quando a Anne Frank usa
pela cultura pop desaconselhavam 113, a propósito da permanência da amiga algo como ‘este homem tem a a metáfora para descrever o isola-
a aventura que previa, também, a beleza contra a desgraça e a morte. coragem de trazer a sua cama para o mento no anexo [páginas 86-87]. É
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Música predominantemente
instrumental cada vez mais próxima
da ideia de canção clássica, eis os
Orelha Negra do terceiro álbum,
hoje editado e mostrado ao vivo
no Festival Iminente de Oeiras.
RUI VIEIRA
mmmmm
Orelha Negra
Orelha Negra
IIIEdição
Meifumado
A voz dos
N
ão é um processo rápido “O que vamos apresentar no festi- com rock (A sombra, Parte de mim)
mas os Orelha Negra não val está mais de acordo com o novo ou blues (Ready), ou até evocar mo-
prescindem dele. O primei- disco, num concerto de músicas no- mentos de intimidade (Claire, Santa
ro álbum foi lançado em vas, antigas e medleys, mas ainda não ela), e tudo desembocar numa can-
2010, depois de um concer-
to no MusicBox em Lisboa
e, o segundo, em 2012, depois de um Orelha será o acrescento final que só iremos
dar a conhecer nos próximos meses,
até porque a parte visual, tal como a
ção clássica soul-funk de belo efeito
(Última volta). “Todas as nossas pes-
quisas vão no sentido do hip-hop e
espectáculo no Centro Cultural de
Belém. Ou seja, optam por fazer con-
certos de apresentação dos discos Negra sonora, será um pouco diferente no
final do ano.” Ou seja, é como se o
grupo estivesse a trabalhar em per-
da soul, porque essa acaba por ser a
identidade, mas também existem
referências do rock, principalmente
é cada
ainda antes destes estarem finaliza- manência os novos temas, num tra- dos anos 70 e 80”, explica Fred.
dos. O mesmo aconteceu com o no- balho que parece nunca ter fim. “Neste disco aconteceu juntarmos
vo, editado hoje, e que tal como os Fred Ferreira ri-se. “Para nós aca- ideias de músicas diferentes numa
outros é homónimo. ba por ser confortável essa forma de só. Ou seja, pegar em samples de mú-
Em Janeiro do ano passado, deram
dois concertos (Centro Cultural de
Belém em Lisboa e Hard-Club no Por- vez mais operar. Agrada-nos marcar um con-
certo de apresentação com 90% das
músicas feitas e depois ir para estú-
sicas distintas em que havíamos tra-
balhado e juntar tudo numa só.”
Todos os intervenientes no projec-
to), onde já tocaram os temas agora
disponíveis, embora com roupagens
e opções sonoras diferentes. Agora,
finalmente, eis o terceiro álbum fi-
audível dio compor com tudo o que acháva-
mos que era necessário, da mesma
forma que estamos confortáveis em
tocar depois as músicas mais de
to têm outros afazeres. Sam e Cru-
zfader têm os seus percursos solitá-
rios, além de serem alvo de muitas
colaborações. Fred toca com Slow J,
nalizado. “Foi um processo mais de-
morado do que estávamos à espera, Vítor acordo com o resultado finalizado
em disco.”
integra a Banda do Mar, além de ter
estúdio e editora própria, produzin-
porque inicialmente não havia edi-
toras envolvidas nem prazos. Tam-
bém por outras circunstâncias, como
Belanciano O processo interessa, mas o que
conta no fim de contas é o resultado.
E neste caso é mais do que convin-
do vários nomes. João e Francisco já
se encontraram nos Cool Hipnoise,
fazendo hoje parte de várias forma-
a morte de duas pessoas que nos cente, com o quinteto a devolver- ções, como os Cais do Sodré Funk
eram próximas, além dos afazeres nos mais uma mão cheia de bons Connection ou Fogo-Fogo.
de cada um. As coisas foram-se atra- temas instrumentais, com motivos No entanto, quando se juntam é
sando, mas fizemos tudo com a cal- vocais, alguns deles não muito dis- como se as suas identidades se dilu-
ma necessária, o que acabou por ser tantes da estrutura de canção. Há íssem para fazer sobressair a ideia
bom”, esclarece Fred Ferreira. fragmentos vocais de soul, arranjos Orelha Negra, daí que, das fotografias
Esta sexta-feira, no festival Imi- luminosos que nos transportam pa- à música, fizessem questão de vincar
nente de Oeiras (que decorre até existe recriação do passado, mas não ra a época dourada do funk e um que o que interessa é o colectivo. No
domingo, com arte urbana e, entre apenas para o celebrarem, transfor- envolvimento sonoro global onde novo disco, mais uma vez, alguns
outros, com sessões DJ e concertos mando-o numa excitante aventura as técnicas de corte-e-cola do hip- apontamentos vocais que se ouvem
de Slow J, Scúru Fitchádu, Throes + no presente, numa altura em que a hop se misturam com um edifício são repescados de discos obscuros.
Shine, Capitão Fausto, Branko, Mar- música feita em Portugal já não é do- sónico orgânico que por vezes é en- Mas desta feita essas vozes parecem
fox, Xinobi + Moullinex, Bruno Per- minada de forma hegemónica pelo volvente, outras cósmico e outras ganhar um novo significado, aproxi-
nadas, Capicua, Carminho, Chulla- rock. Os efeitos globais da cultura avizinhando-se do épico. mando a música do grupo, mais do
ge, Rocky Marsiano, DJ Ride ou hip-hop e R&B e as sucessivas vagas Por norma o que desencadeia a que nunca, do sentido clássico da
Halloween), lá estarão Fred Ferreira de miscigenação sonora (do kuduro feitura dos temas é um motivo sono- canção, embora a combustão conti-
(bateria), João Gomes (teclas), Fran- ao afro-house) dos últimos dez anos ro ou vocal, em forma de sample, nua a ser a mesma de sempre, com
cisco Rebelo (baixo), Sam The Kid vieram alterar profundamente o pa- sendo a partir daí que o edifício se elementos soltos de funk, jazz, soul
(samples, sintetizadores) e Cruzfa- norama, como se constata aliás pela vai produzindo. Daí podem resultar e hip-hop, a aliarem-se para compo-
der (gira-discos) para tocar o novo composição do cartaz do festival Imi- temas que parecem captar o espírito rem uma máquina de ritmos e am-
disco e não só. nente, com curadoria do artista Ale- “disco” dos anos 1970 (Skylab, Ost), bientes contemporâneos atingidos
Dir-se-ia que na música do grupo xandre Farto (Vhils). ou procurar cruzamentos de hip-hop pela memória da música negra.
12 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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Um copo H
á uma frase autobiográfica lão] fato de treino? É uma coisa que
de Mário-Henrique Leiria não é nada musical. Mas o desafio
em que ele diz que, num também é um bocadinho esse: tan-
dado período da sua vida, to cantar este tipo de letras quanto
“foi casado e não fez mais cantar pessoas que não têm nada a
de canções
nada”. Pois Marco Rodri- ver com o ambiente fadista.”
gues, fadista, foi pai há um ano e A paternidade, pelo lado mais ca-
fez mais alguma coisa: um disco. ricato, está em Mal dormido. Em
Chamou-lhe Copo Meio Cheio, dedi- conversa com Pedro Silva Martins
ca-o “inteiramente” ao filho e não (dos Deolinda), surgiu um mote.
dentro
minha vida, porque o meu maior tado, mas aquela parte caricata de
desejo era ser pai. E no último ano ser pai, aquela por que todos passa-
o que eu tenho sido mais é pai, an- mos mas de que só falamos entre
tes de ser artista.” amigos. Primeiro, dormíamos a noi-
E que disco é este, assim nascido? te toda, depois temos de nos levan-
Vemos, e ouvimos, três fados tradi- tar a meio da noite e de repente tro-
cionais — Fado Tamanquinhas, Fado peçamos num brinquedo que o ga-
Não é um disco de fado mas Pena, Fado Latino — mas até estes
têm letras de autores de fora do fa-
jo deixou ali. Pedi-lhe um tema que
falasse dessas coisas e passada uma
tem fados e outras canções de do, respectivamente Capicua, Car- semana estava escrito.”
lão e Luísa Sobral. Mas há também Com produção, arranjos e direc-
alma fadista. Copo Meio Cheio Agir, Boss AC, Pedro da Silva Martins ção musical de Tiago Machado
é o novo trabalho de Marco e Luís José Martins (ambos dos De-
olinda), Tiago Pais Dias e Marisa Liz
(piano e acordeão), o disco conta
com Frederico Gato (baixo), Nel-
Rodrigues, que amanhã à noite (Amor Electro), João Direitinho e
Guilherme Alface (ambos dos ÁTOA),
son Aleixo (viola), Pedro Viana
(guitarra portuguesa), Ivo Costa
canta no Festival Caixa Alfama Diogo Piçarra, Maycon Ananias (pro- (percussão) e Gonçalo Sousa (har-
dutor de Maria Gadú) e, excepção mónica). “Deixa-me muito conten-
Os encontros “D
urante as filmagens,
escrevi a uma amiga a
dizer-lhe que tinha a
sensação deste filme
ser o meu canto do cis-
ne. E ela respondeu-
me ‘Pelo amor de Deus não faças
e desencontros
isso! Tens de fazer outro filme!’”
Volker Schlöndorff ri-se do outro
lado da linha, em Berlim. Ri-se por-
que a amiga a quem disse que Revi-
ver o Passado em Montauk (esta se-
mana nas salas portuguesas) tinha
qualquer coisa de “fim de ciclo” en-
tendeu mal a afirmação: “Não que-
ria dizer que este ia ser o meu últi-
de Volker
mo filme, apenas que era um filme
que fecha um capítulo da minha vi-
da. Mas é verdade que não tenho
outro projecto em mãos. Estou à
espera que apareça algo que eu sin-
ta urgência em fazer.”
A urgência é outra coisa quando
se tem os 78 anos de Schlöndorff (n.
Schlöndorff
1939). Uma das figuras centrais da
geração do Novo Cinema Alemão
dos anos 1960 e 1970, contemporâ-
neo de Werner Herzog ou Wim
Wenders, companheiro de vida e
de carreira de Margarethe von Trot-
ta (com quem foi casado 20 anos),
autor de um dos filmes mais acla-
mados do cinema alemão desse pe-
ríodo, O Tambor (1979), Palma de
Ouro em Cannes e Óscar de melhor
Autor de O Tambor ou A Honra Perdida de Katharina Max, filme estrangeiro.
interpretado Apesar desse passado, há uma
Blum, um dos veteranos do novo cinema alemão pelo sueco amargura que interrompe as garga-
Stellan
dos anos 1960 e 1970, assina com Reviver o Passado Skarsgård,
lhadas francas de 30 minutos de
conversa por Skype. Uma amargura
em Montauk, esta semana nas salas, o seu filme mais de viagem a
Nova Iorque
que vem da dimensão pessoal do
novo filme, Reviver o Passado em
pessoal, escrito com Colm Tóibín. para promover Montauk, e da recepção desastrosa
o seu novo que o filme teve no Festival de Ber-
romance,
Jorge Mourinha
lim, em Fevereiro passado. Schlön-
reencontra dorff evoca o mestre Billy Wilder
uma mulher do (1906-2002), o autor de Quanto Mais
seu passado, Quente Melhor e O Apartamento,
Rebecca (Nina com quem conversou longamente
Hoss) em 1988 para uma série televisiva
Antropofágica,
a coreógrafa
uruguaia Tamara
Cubas engole
três peças
de criadores
brasileiros e
digere-as para
tentar descobrir
o quanto pode
ser transformada
pelo outro, o
quanto o seu
corpo está
disponível para
se deixar habitar.
Gonçalo Frota
A Trilogia Antropofágica de
Tamara Cubas, divida em três
actos (Permanecer, Resistir e
Ocupar), marca a abertura de
temporada do Teatro São Luiz
16 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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MARC COUDRAIS
A noite
Le Syndrome Ian,
C
hristian Rizzo (Cannes,
1965) lembra-se até hoje da
que esta sexta-feira primeira vez que entrou
numa discoteca — foi em
chega ao Rivoli, 1979 e só de lá saiu verda-
é o regresso de deiramente em 2008. Noite
após noite após noite após noite, ano
Christian Rizzo após ano após ano após ano, enquan-
será para
to o disco passava a new wave
ao tempo e ao e a new wave passava a house e a
house passava a drum’n’bass e o
lugar em que se drum’n’bass passava a electro, en-
definiu, possuído quanto o sexo se transformava em
sida e as drogas se tornavam sintéti-
por Ian Curtis, cas, o bailarino e coreógrafo francês
foi muitas vezes o último a sair, não
como bailarino e
dançar ou
só dessa discoteca fundadora em
como coreógrafo. Londres onde ouviu pela primeira
vez a voz “eléctrica (e epiléptica)” de
O que acontece Ian Curtis como, depois, nos anos
dourados do mítico Palace, em Paris
noite após noite às (sobre o qual Roland Barthes escre-
veria em 1978, no ensaio Au Palace
escuras na pista, ce soir: “Não era um clube como os
defende, faz parte
não será
outros, reunia num só lugar prazeres
normalmente dispersos: o do teatro,
do ADN da dança que suscita o olhar; a excitação do
moderno (...); a alegria da dança, o
contemporânea. encanto de possíveis encontros (...),
todo um espectro de sensações des-
l’association fragile e ele lá explicará, Rizzo tem outra maneira de encaixar Syndrome Ian que vive desse choque: va lá, lembro-me de quando come-
como explicou ao Ípsilon, que o “e” a noite já bastante distante em que “Toda a minha dança vem da colisão çámos a ver nas discotecas pessoas
está lá “para afrancesar” o nome do viu uma multidão a transfigurar-se, entre esses dois estados corporais. É já doentes, porque apesar de tudo
bar do Bairro Alto onde teve uma vi- e não apenas fisicamente, sob a in- uma autoficção, claro, mas acho que era preciso continuar a dançar. Tam-
da portuguesa...). fluência de Ian Curtis, a mesma noi- me inventei como coreógrafo nesse bém me lembro de certas noites em
Foi lá atrás, esse passado, e no en- te que agora de certo modo recons- momento em que me recusei a esco- Londres em que seguramente mais
tanto está implícito em tudo o que o titui em Le Syndrome Ian: era uma lher entre o disco e a new wave.” de 95% das pessoas estavam em ecs-
actual director do Centre Chorégra- multidão que vinha do brilho incan- Le Syndrome Ian parte desse mo- tasy — embora seja preciso reconhe-
phique National de Montpellier Lan- descente, do groove sem ângulos rec- mento e dos gestos intemporais que cer que as drogas sintéticas também
guedoc-Roussillon veio a fazer de-
pois, das artes visuais à música, da
tos e da frontalidade sexual do disco,
e que o apocalipse intermitente das
“À noite inventamo- o coreógrafo lá foi resgatar (“aquele
balançar dos pés da esquerda para a
nos deram as raves e as festas de 24
horas a dançar sem parar.”
moda à criação de figurinos — tal co-
mo ele quis tornar explícito, todos
luzes strobe e a gravitas daquela voz
acabara de atirar sem grandes preli-
nos — a dimensão da direita, repetidamente, por exem-
plo”), e a que a simples transposição
Também foi disso que se lembrou
quando estava a escrever esta peça:
estes anos depois, em Le Syndrome
Ian, a peça cheia de som e de fumo
minares para um inferno repressivo
e depressivo não menos eléctrico,
metamorfose sempre para um palco desimpedido dá uma
escala que nunca poderiam atingir
sempre dançámos, sempre dançare-
mos. “A Manchester em que uma fi-
(e também cheia da solidão do fim
da noite quando lá fora já é dia, e do
nem menos dançável. “Era a minha
estreia, e eu tinha uma ideia de dis-
foi muito importante numa discoteca, para atravessar, da
euforia à ressaca, todas as vidas e
gura como o Ian Curtis apareceu —
uma figura que não podia verdadei-
pânico da manhã seguinte) que há
um ano estreou na Bienal de Lyon e
coteca que tinha a ver com brilhos e
com dourados, com divertimento e
para mim. E as danças todas as mortes que podem caber
numa noite na pista. Tinha de haver,
ramente dançar, por causa da
epilepsia, mas que fazia dançar os
que esta sexta-feira traz ao Rivoli,
abrindo a temporada do Teatro Mu-
descontracção; de repente entra
aquela música e ouve-se uma voz do
de discoteca sempre e há, fantasmas a assombrar este pal-
co onde os nove bailarinos uniformi-
outros — era uma cidade em profun-
díssima crise social e económica.
nicipal do Porto e fechando o tríptico
que o levou a explorar as relações de
além-túmulo, nada batia certo. Mas
foi como se tivesse ficado possuído
tiveram muito a ver zados pelos figurinos de Laurence
Alquier e intermitentemente ilumi-
Hoje, apesar do avanço ultraliberal,
do negrume geral, do terrível estado
tutela e de contaminação entre as
danças anónimas, vernaculares, e as
desde essa altura: a voz do Ian Curtis
inculcou em mim, de uma forma que
com isso.” nados pelas esculturas de luz de Ca-
ty Olive recriam não uma noite em
do mundo, as pessoas continuam a
dançar”, conclui Christian Rizzo. Tal-
danças de autor. eu diria patológica, esse paradoxo particular mas muitas noites genéri- vez o apesar esteja a mais — porque
Tal como o que lhe aconteceu pes- de ser possível dançar ao mesmo cas, com os seus genéricos (ou não foi exactamente num país em crise
soalmente noite após noite em dis- tempo, com o mesmo corpo, uma tão genéricos) pesadelos cheios de que ele próprio se viu a dançar até
coteca após discoteca não ficou na grande alegria e um grande negru- desaparecidos em combate: “As dis- de manhã pela última vez há dois
pista (no caso de Christian Rizzo, me”, conta ao Ípsilon. cotecas são lugares de vida mas tam- anos, não muito longe do palco onde
inscreveu-se numa biografia pessoal A peça em que quis contar essa bém são lugares de morte, como esta sexta-feira nos mostrará que a
que é paralelamente um corpo de história tão pessoal quanto colectiva ainda recentemente em Paris e em noite será para a dançarmos até ao
trabalho artístico perfeitamente cau- tem ambos. E tem também aquilo Orlando, com os atentados. Eu esta- fim ou não será.
cionado), também colectivamente as que sempre lhe pareceu mais fácil à
práticas desclassificadas, e às vezes noite do que durante o dia: “À noite
quase secretas, do clubbing se infil- inventamo-nos — a dimensão da me-
traram na gramática da dança con- tamorfose sempre foi muito impor-
temporânea — ao ponto de até lingua- tante para mim. E as danças de dis-
gens como o voguing e o twerk, que coteca, por serem uma actividade
nos tempos pré-históricos da segre- nocturna, e portanto escondida, sem-
gação homossexual (foi há quê, 30 pre tiveram muito a ver com isso. No
anos?) pareceram para sempre con- meu caso, a discoteca era também o
denadas à clandestinidade do ball- lugar onde se cruzava tudo o que me
room, se terem tornado mainstream. interessava: a dança, a música, a mo-
Três anos e três peças depois — antes da.” Mas é diferente olhar para ela
de Le Syndrome Ian houve a visita, agora, como bailarino e como core-
para ele muito contranatura, às dan- ógrafo, à procura de um vocabulário
ças comunitárias de raiz folclórica de e de uma gramática que possam pôr
D’après une histoire vraie (2013) e a uma peça com nove bailarinos a falar
visita às danças de casal, com passa- articuladamente em cima de um pal-
gem pelo salão, de Ad Noctum (2015) co: “Há muitas questões em jogo no
—, o coreógrafo francês confirmou a clubbing: questões de comunicação
sua intuição inicial, uma intuição física em espaços muito escuros e
JORGE PALMA
com muitas noites sem dormir em muito reduzidos, questões de afirma-
cima, de que nada separa verdadei- ção pessoal e de relação com o grupo,
ramente as danças vernaculares das questões de gestão do nosso olhar e
danças não-vernaculares: “É uma da recepção do olhar do outro. E tam-
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A
11 de Fevereiro de 2013, nu- cuidados / para outorgá-los a forças meça a minar a natureza humana. O seu leito, e não adoça as palavras,
Maria II. Uma ma reunião com dezenas de
cardeais com vista à apro-
mais jovens / enquanto, aliviados,
rastejamos / para a morte” para fa-
rei quer antes de mais provas de adu-
lação e não de fieldade ou de verda-
fingindo que não haverá outro ho-
mem digno do seu amor senão o pai.
peça jogada no vação da canonização de
três beatos um dia corri-
zer ressoar essa memória recente
de um Papa que não esperou pela
deiro amor. Na verdade, nem exige
provas, mas apenas palavras que lhe
A honestidade vale-lhe ser deserda-
da e proscrita, algo que o encenador
tabuleiro do queiro no Vaticano -, Bento morte para parar. Alguém que ab- inchem a vaidade. Diante de tal pe- resume a uma ideia de que “a verda-
XVI apresentou de surpresa a sua dica do trono e desce voluntaria- dido, Goneril (a mais velha) jura amá- de, no sentido mais puro, mais ino-
poder, infiltrada renúncia ao pontificado. Antes de mente, escolhendo o seu sucessor, lo “não menos do que a vida, a graça, cente e mais razoável é uma zona
pela demência, Bento XVI, é preciso recuar 598 anos
para encontrar o Papa anterior (Gre-
no caso de Lear. Para Bravo, “é uma
coisa sem precedentes, muito mo-
a honra e a beleza, e a saúde, tanto
quanto um filho amou jamais ou pai
que não tem lugar na sociedade e
nas relações humanas”. Para Bruno
pelas traições gório XII) a ter abdicado do lugar derna e muito bonita, de um rei que sentiu”; Regan (a do meio) professa- Bravo, a empatia imediata gerada
máximo da Igreja Católica. Joseph quer largar o reino, um rei que quer se “hostil a qualquer gozo, outro” e por Cordélia decorre, no entanto,
filiais e por Ratzinger, fazendo uso do seu latim, ser homem porque um rei nunca é diz encontrar “felicidade unicamen- de uma postura algo desproposita-
uma relação confessou-se cansado e sem forças
para prosseguir com aquela missão
um homem”.
No processo de escolha do suces-
te em amar [sua] Alteza”; Cordélia (a
mais nova), pelo contrário, dinamita
da, vinda de alguém que “diz o que
lhe vai na cabeça e isso é algo que
conflituosa com aos 85 anos. O fumo branco veio de-
pois com Francisco.
sor, que faz também pensar na pre-
paração da passagem de testemunho
a sua resposta ao cingi-la a um “na-
da”, afirmando-se incapaz de “elevar
não se pode fazer”.
a verdade. É em Bento XVI que o encenador dentro dos grandes grupos económi- o coração até à boca”. Nem déspota
Bruno Bravo, da companhia Primei- cos ou em regimes autocráticos, Lear As duas primeiras serão compen- nem coitado
ros Sintomas, pensa inevitavelmen- pede às suas três filhas uma declara- sadas por Lear com terras e bens, Há algo de profundamente insidioso
R
PHILE DEPREZ
achel, 8 anos: “Acho que
toda a gente merece o seu
lugar no palco, porque de
outra forma não é justo.”
Peter, o único adulto em
cena: “Mas o teatro não é
justo, é cruel.”
Isto é Milo Rau a olhar-se ao es-
pelho. E é Milo Rau a resumir aqui-
lo que anda a fazer desde 2007, ano
em que fundou a companhia de te-
atro documental e cinema IIPM In-
ternational Institute of Political
Murder, com a qual tem construído
espectáculos no mínimo desconfor-
táveis, no máximo fracturantes, a
partir de acontecimentos e teste-
munhos reais, semeando vários ad-
miradores e detractores pelo cami-
nho. “Acho que o teatro é algo que
acontece através da crueldade do
real. Pode mostrar como atravessar
essa injustiça e chegar até algo que
seja, de alguma forma, mais justo,
no sentido de se perceber o que
aconteceu e como se pode fazer di-
ferente”, diz ao Ípsilon, numa con-
versa curtíssima, o encenador, en-
O trauma e o teatro
vistos por dentro
22 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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âmbito do programa de comissões julgamento The Moscow Trials Este espectáculo é encenador suíço. Houve investiga- que aprenderam previamente.
a artistas para trabalharem com (2013), sobre a liberdade da arte (ou protagonizado por crianças ção no terreno, incluindo conversas Milo Rau não esconde que há aqui
crianças — That Night Follows Day a falta dela) no reino de Putin, re- e adolescentes entre os oito com o pai de Marc Dutroux (que um jogo de poder e manipulação,
(2007), de Tim Etchells, foi um dos cusada pelos tribunais da vida real; e os 13 anos e por um adulto curiosamente vivia à frente do teatro que acaba por gerar um confronto
espectáculos que resultaram desta nem de Hate Radio (2011), um dos onde decorriam os ensaios) e alguns com os crimes da narrativa. “Por um
iniciativa (à época intitulada Victo- vários projectos de Milo Rau desen- familiares das vítimas. Sem ceder à lado queres usar a frescura das
ria) e que passou pela Culturgest volvidos na África Central, este so- pornografia emocional, a peça é crianças, por outro lado o teatro —
Lisboa em 2008. Five Easy Pieces, bre a estação de rádio RTLM, uma pautada por momentos de interven- pelo menos a minha forma de o fa-
estreado em 2016, foi uma espécie ferramenta usada no genocídio do ção anticolonial — quando Elle Liza zer — só resulta quando é muito
de alinhamento cósmico. “Desde Ruanda — este espectáculo, em que dá voz a um discurso de Patrice Lu- preciso e quando espelha a história
há 15 anos que faço co-produções
com teatros belgas mas nunca tinha
sobreviventes do massacre puse-
ram em cima da mesa os efeitos Five Easy Pieces mumba, líder independentista do
Congo cujo assassínio foi patrocina-
em questão”, diz o autor. “Foi inte-
ressante trabalhar com uma série
tido oportunidade nem de traba-
lhar nesta história nem de trabalhar
cumulativos do racismo e do neo-
colonialismo, passou pelo Maria é sobretudo “uma do por uma joint venture entre a Bél-
gica e os Estados Unidos — e por
de pequenos anarquistas sobre pre-
cisão.” E essa foi a parte “emocio-
com crianças. Tudo se uniu”, ex-
plica Milo Rau, que irá assumir a
Matos em 2013.
Five Easy Pieces é sobretudo “uma forma de catarse”, momentos humorísticos — quando
Maurice, o miúdo que nasceu no
nalmente mais complicada”. “Foi a
primeira vez que fizeram teatro, tan-
direcção do Teatro Nacional de
Gent na temporada de 2018/ 2019.
forma de catarse”, com muito de
Antonin Artaud lá dentro, diz Milo diz o encenador. banho quando o pai estava a comer
esparguete, diz ter tossido muito na
to o elenco original do espectáculo
como o segundo grupo que entre-
Catarse
Rau. Neste processo, as crianças —
que já conheciam bastante bem a Neste processo, barriga da mãe. Passado uns minu-
tos, está a tossir no papel de um ho-
tanto formámos” (estão ambos em
digressão — os nomes que aqui usa-
Apesar de não ser de fácil digestão,
Five Easy Pieces não é das criações
história de Marc Dutroux — eram
“das poucas pessoas livres do trau- as crianças — que já mem mais velho, o pai de Dutroux.
Porque isto também é um espectá-
mos são do elenco original). Tam-
bém para Milo Rau foi todo um pro-
mais corrosivas de Milo Rau. Goste-
se ou não, é difícil passar ao lado
ma”. “Para elas foi algo que acon-
teceu há muito tempo. Ao longo da conheciam bastante culo sobre teatro.
Dividido em cinco lições orienta-
cesso de aprendizagem. “Aprendi
muito sobre o que é o teatro, do
do seu currículo: num dos últimos
trabalhos levou a palco The 120
peça vês estas pessoas, connosco,
a mostrar o que há por trás do trau- bem a história das por um adulto (Five Easy Pieces
é, originalmente, o título dos exer-
ponto de vista técnico-filosófico.”
Um espectáculo construído por
Days of Sodom, inspirado no livro e
no filme homónimos de Marquês
ma”, refere o encenador, subli-
nhando que as crianças tiveram de Marc Dutroux — cícios de piano de Stravinsky para
crianças), o primeiro capítulo é so-
crianças e adultos, para ser visto por
ambos, é, segundo o encenador, “a
de Sade e de Pier Paolo Pasolini,
respectivamente, e interpretado
acompanhamento de psicólogos.
“Elas sabiam muitas coisas sobre o eram “das poucas bre mimetismo, o segundo sobre
como construir uma personagem,
melhor maneira de experimentar o
que é possível no teatro”.
por actores com síndrome de Down
da companhia suíça Teatro Hora, o
caso. Sabiam detalhes. O que são
testes de ADN, o que fazer depois pessoas livres o terceiro sobre a relação entre o
actor e o encenador, o quarto sobre
No final de Five Easy Pieces há
uma conversa sobre como gosta-
que levantou poeira na apresenta-
ção em Zurique e em alguma im-
de uma violação. Foi algo inespe-
rado para mim, que sou pai”, con- do trauma” como activar sentimentos de empa-
tia, medo e perda em palco (duas
riam de morrer, tiros e música de
Rihanna. O teatro é cruel, dizia-se
prensa. fessa Milo Rau. crianças interpretam pais que per- no início desta história toda, mas
Five Easy Pieces também não é o Este espectáculo conta com o fô- derem os filhos), o quinto sobre também é uma forma de reflexão
embate político perfurante da peça- lego documental característico do como se revoltarem contra tudo o para chegar a outros caminhos.
Como
ver os
nossos
Mirós
O espaço mais flexível
do Palácio da Ajuda
permite mostrar em
Lisboa a Colecção Miró
na íntegra. O Museu de
Serralves está já a pensar
na próxima exposição
do artista e a estudar
como manter esta nova
colecção portuguesa viva
e aberta ao diálogo.
Isabel
Salema
A Festa dos
Pássaros e das
Constelação,
um óleo sobre
tela de 1974
com mais de
quatro metros
de altura
24 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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É
quase inevitável que quem bém para uma guache e tinta-da-
tenha visto a exposição de Jo-
an Miró na Casa de Serralves,
“É importante ter china sobre papel em que a linha
negra do contorno parece infiltrada
no Porto, vá à procura das
obras “novas”, chamemos-
a consciência de pela mancha que ganha contornos
de rizoma. Há duas obras de 1937,
lhes assim, ao percorrer a Ga-
leria D. Luís do Palácio da Ajuda,
que esta colecção uma delas feita sobre cartão, e outra
dos anos 60.
uma vez que em Lisboa é mostrada,
pela primeira vez, a Colecção Miró
precisa de muita Novos parceiros
portuguesa na totalidade — 85 obras,
entre pinturas, desenhos, esculturas,
atenção, há todo um A colaboração com a Fundação Miró
“é uma coisa naturalíssima”, diz ao
tapeçarias (os famosos sobreteixins)
ou colagens. São mais nove.
estudo a fazer sobre PÚBLICO Ana Pinho, presidente da
Fundação de Serralves, quando lhe
Après les constellations, duas pin-
turas feitas em 1976 sobre masonite,
as necessidades perguntamos se o acordo com Bar-
celona já está fechado, lembrando a
um tipo de aglomerado de madeira
em que o pintor explorou a superfície
de conservação exposição Os Mirós de Miró feita em
1990 no museu do Porto em estreita
rugosa, estão entre as novidades mais
interessantes. Estreitas e compridas,
das tapeçarias, colaboração com Barcelona. “Não
está ainda acordado, mas é possível.
com um formato pouco habitual mas
que associamos a Miró (14cmx79cm
dos desenhos, Há todo o interesse em que partes da
colecção sejam mostradas noutros
e 14cmx54cm), paramos obrigatoria-
mente em frente a elas, não só por
das molduras, das sítios.”
Serralves quer voltar a mostrar os
causa deste jogo das novidades, mas
porque o curador desta exposição
obras sobre papel. Mirós no Porto já em 2018, mas ainda
não há uma data definida para a no-
— que é a mesma nos dois espaços
apesar dos pequenos ajustamentos
Isto tem de ser va exposição, esclarece Ana Pinho.
O arquitecto Álvaro Siza, autor do
— está visivelmente entusiasmado
com as obras sobre masonite, um
pensado ao mesmo layout da primeira exposição que
teve lugar na Casa de Serralves de
material industrial surgido na primei-
ra metade do século XX. Robert Lu-
tempo que fazemos Outubro de 2016 a Junho deste ano,
e que atraiu 240 mil visitantes (um
bar prepara uma exposição para da-
qui a quatro anos na Fundação Miró
a programação quarto de milhão, sublinha o cura-
dor), está a preparar a moradia mo-
de Barcelona, de que é administra-
dor, dedicada às obras realizadas so-
de apresentação dernista situada no parque, que é
património classificado, para poder
bre este suporte inusitado explorado
pelo artista catalão (1893-1983).
da colecção” receber os Mirós de uma forma per-
manente. Não se espere, diz Ana Pi-
O curador já tinha parado minutos nho, uma exposição com as mesmís-
antes numa sala a que chamou “a simas obras: “Queremos mostrar
capela” — e que junta meia dúzia de coisas diferentes, em conjunto com
trabalhos sobre masonite —, um dos outras instituições, se não a co-
muitos espaços que compõem os 700
metros quadrados por onde se espa-
lha esta nova versão de Joan Miró:
Materialidade e Metamorfose. O inte-
resse mais demorado não foi só para
elogiar esta luz mais confessional do
espaço de Lisboa, presente em mui-
tas salas da Galeria D. Luís, mas para
o curador sublinhar o potencial de
colaborações que a Colecção Miró
traz a Serralves.
Tal como a exposição portuguesa,
a nova mostra prevista para depois
de 2020 também vai explorar os ma-
teriais e os suportes e a sua relação
com as ideias, mas em Barcelona ha-
verá um enfoque nas 27 obras que o
artista fez sobre masonite e o curador
Concerto
espera conseguir juntar todas as re-
alizadas pelo pintor catalão, incluin-
do as oito de Portugal.
“Estas pinturas são uma metáfora
para um colapso social. Os monstros
de Outono
entram na sua arte”, explica o comis-
sário sobre esta série de pinturas
Orquestra
abstractas que começam a ser feitas
em 1935 como reacção à violência do
Metropolitana de Lisboa
fascismo, durante uma visita com os Direção Artística Pedro Amaral · Piano Miguel Borges Coelho
jornalistas à exposição realizada no Beethoven Abertura Egmont, Op. 84
dia da inauguração. Desafiam o lado Chopin Concerto para Piano e Orquestra N.º 1, Op. 11
poético que conhecemos de outros Brahms Sinfonia N.º 1, Op. 68
trabalhos de Miró e coincidem com
o início da Guerra Civil Espanhola.
“Miró lança o horror contra a sedu-
Sex 29 Setembro
ção”, lê-se num texto assinado pelo
curador incluído no catálogo editado 21h30
por Serralves, nestes quadros “que
constituem as chamadas ‘pinturas Informações e reservas ligue 1820 (24 horas) · maiores de 6 · facebook.com/coliseuporto
selvagens’”. Bilhetes à venda no Coliseu Porto, Blueticket e locais habituais
Livros
Cada um dos textos obedece a lembramos de que existimos?”,
uma mesma estrutura: o autor nestes volumes de textos curtos
começa por descrever (por vezes parece querer deixar à filha por
com uma precisão quase infantil, nascer algumas repostas a essas
ou como se o fizesse para um ser questões, mostrando-se já mais
alienígena) o objecto ou a ideia apaziguado com o mundo,
que titula a pequena narrativa; conformado com a sua
depois tece mais umas quantas tragicidade: “a vida existe por
considerações, e passadas umas teimosia e é trágica na sua
linhas relaciona-o com um natureza. (...) A tragédia trata
sentimento, uma memória da sua apenas de como a revelação do
vida (por vezes da sua infância), inevitável [nos] chega”.
uma situação social, e fá-lo quase A escrita de Karl Ove Knausgård
sempre com aquela singular transforma o tempo em palavras,
intensidade que o caracteriza como se com a sua subtileza de
desde os seis volumes de A Minha narrar, de poder introspectivo e
Luta. É o que acontece em visceral, se libertasse de
Cadeiras, que começa assim: “A incomodidades obscuras; e não
cadeira serve para uma pessoa se apenas ele mas também o leitor é
sentar. Consiste em quatro arrastado neste processo, que já
pernas, sobre as quais assenta não é tanto de emersão catártica,
uma placa, e da extremidade como acontecia nos romances,
desta ergue-se um apoio para as mas que de qualquer forma
costas.” Uma página e meia continua a não deixar que
depois, está a dissertar sobre uma nenhum dos dois saia ileso: por
cena do filme Fanny e Alexandre, vezes o espanto de Knaugård é
de Ingmar Bergman, e sobre a também o do leitor, o espanto da
concepção do cinema do próprio nossa relação com o mundo e
realizador. A profundidade com com nós próprios.
que Knausgård expõe os seus
pensamentos não é, obviamente,
a mesma com que o faz em A
Minha Luta, acabando por nestes Os despojos dos
textos curtos, de certa forma, ser
mais directo e claro. Se nos
dias passados
romances dissertava longamente,
por exemplo, sobre o acto de Nesta colecção de contos,
empurrar um carrinho de bebé Amos Oz, um dos mais
por um parque e como se tornara conhecidos escritores
“transparente” para as mulheres,
israelitas contemporâneos,
o leitor percebia que não era essa
A escrita de Karl Ove Knausgård transforma o tempo em palavras acção, ou esse facto, que lhe relata o ambiente e as
interessava, mas antes reflectir relações dos kibbutzniks,
(quase em jeito de disfarçada quando os sonhos de
de “enciclopédia pessoal”, parábola) sobre a masculinidade; uma sociedade perfeita
Ficção cartografando o mundo em seu em No Inverno ele abrevia essas
redor, desde os objectos aos descrições algo metafóricas e começaram a dar sinais de
Enciclopédia sentimentos e vontades humanas,
passando por alguns
esclarece logo o que quer dizer.
Assim: “Quando Hegel escreveu
desgaste. Helena Vasconcelos
Entre Amigos, Amos Oz,
pessoal do acontecimentos domésticos. Não é que a coruja só levanta voo ao
Tradução do hebraico de Lúcia
um registo diarístico, apesar de o escurecer, era na sabedoria que
quotidiano livro estar dividido por meses. Em pensava. Pode interpretar-se que
Liba Mucznik
Dom Quixote
cada um dos tomos surgem alguns a sabedoria ou o conhecimento se
Mostrando-se mais textos a que chamou Carta a uma segue ao acontecimento como a mmmqm
apaziguado com a filha que vai nascer (apesar de na noite se segue ao dia, mas
última carta deste volume agora também pode interpretar-se que a Em 1954, Amos
tragicidade da vida, publicado, o segundo, No Inverno, sabedoria pertence à noite, ao Oz tinha quinze
Knausgård torna a a menina ter acabado de nascer). escuro, ao oculto, ao adormecido, anos quando
cartografar com minúcia Os outros textos têm títulos como: àquilo que está próximo dos largou a
o mundo em seu redor. Neve, Comboio, Açúcar, O desejo mortos mas que não está morto.” confortável vida
sexual, Fogueiras, Janelas, Cérebro, A sua escrita torna-se assim familiar para ir
José Riço Direitinho Sexo, Sons de Inverno, Peluches… menos ostensivamente reflexiva viver num
No Inverno Neles Knausgård parece querer — a reflexão, de certa forma, kibbutz.
mostrar à filha o que pode esperar passou para a imediatez do Admirador
Karl Ove Knausgård
do mundo, da complexidade da significado dos objectos, dos actos confesso de Ben Gurion, o sionista
(trad. de Pedro Porto Fernandes)
Relógio D’Água natureza, das pessoas e dos seus e sentimentos descritos, em vez e primeiro líder do Estado de
sentimentos, porque todos das longas e pormenorizadas Israel, entregou-se à aspereza da
mmmmm “estamos entregues uns aos divagações a que nos habituara. prática comunitária com a sua
outros” e é preciso aprender a Nos volumes da saga disciplina militar, falta de
Entre o final de lidar com isso. “É estranho que autobiográfica A Minha Luta, privacidade e liberdade sexual.
2013 e o Verão de existas, mas que não saibas nada Knausgård fazia uma tentativa de A criação do primeiro kibbutz,
2014, o escritor de como é o mundo. É estranho recuperar um tempo perdido (o em 1909, ainda na Palestina
norueguês Karl que haja uma primeira vez que se seu, biográfico), ao esboçar o Otomana, visava uma ocupação
Ove Knausgård vê o céu, uma primeira vez que se mapa íntimo de um homem que no sentido de experimentar ideais
(n. 1968) vê o Sol, uma primeira vez que se procura sentido para a sua de vida comunal e de exploração
escreveu quatro sente o ar na pele. É estranho que experiência de vida, contando a agrária, baseados nas teorias do
volumes — haja uma primeira vez que se vê sua história a partir dos socialismo utópico de, por
titulados com os um rosto, Gi, uma árvore, um sentimentos que o foram exemplo, Charles Fourier. Para
nomes das estações do ano — de candeeiro, um pijama, um sapato. moldando e que acabam por o estes colonos, o trabalho era
textos curtos (duas ou três Na minha vida isso já quase não definir. Se nesses romances árduo e não existia espaço para a
páginas), em que usa material da sucede. Mas em breve voltará a tentava responder às perguntas: contemplação, ou mesmo para o
sua vida quotidiana (o dia-a-dia acontecer. Daqui a apenas uns “Quem somos quando não amor. O ensino não era
com a mulher e os filhos na Suécia meses vou ver-te pela primeira sabemos quem somos? Quem particularmente valorizado e as
rural) para compor uma espécie vez.” somos quando não nos mulheres, apesar de trabalharem
30 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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tanto como os homens, não Numa comunidade tão restrita, alunos sair do kibbutz para visitar
tinham acesso a lugares de chefia. não é de admirar que os o pai, encerrado num hospital
O estado das coisas foi-se movimentos e a forma de actuar psiquiátrico.
alterando ao longo do tempo e dos seus habitantes sejam alvo de Amos Oz, assumido admirador Estação Meteorológica
Amos Oz, defensor acérrimo do
estabelecimento de dois estados
(o israelita e o palestiniano) como
escrutínio cerrado por parte da
comunidade, deixando pouco
espaço para os pensamentos mais
de Anton Chékhov — único
escritor com quem gostaria de
passar tempo “à conversa sobre
António Guerreiro
forma de solução para o conflito
naquela região, tem sido o grande
íntimos e para acções mais livres.
O jardineiro Tsvi Provizor, por
vidas banais”, como declarou
numa entrevista — retrata aqui as
Como se reconhece
observador (e crítico) do seu país
e da experiência dos
“kibbutzniks”, a partir da sua
exemplo, ouve religiosamente as
notícias e lê os jornais de ponta a
ponta só para ter o prazer de
histórias de personagens não
heróicas, submetidas a uma série
de árduas experiências
um fascista
própria vivência. comunicar as desgraças, mundo psicológicas, sociais e políticas.
N
Em 1964, publicou uma fora. Único que demonstra Para além de um uso magnífico da o nosso tempo, não é fácil reconhecer um
primeira colecção de contos, Onde interesse por aquilo que acontece linguagem — a chuva, a lama, o fascista: porque eles não ousam dizer o seu
os Chacais Uivam, em que analisa fora do kibbutz, entretém-se a brilho do sol, as casas fumarentas, nome ou nem sequer sabem que o são; porque
o lado positivo da existência nos traduzir para hebreu um escritor os cheiros acres e doces, os risos e um antifascismo demasiado espontâneo
kibbutz, revelando também, de polaco. É um solitário — uma choros, as correrias das crianças, provocou uma inflação demagógica dessa
uma forma franca e directa, o lado condição estranha e impensável, os olhares dos adultos, o desejo classificação e retirou-lhe todo o rigor. Com
mais negativo, de que é exemplo o contrária aos princípios reprimido, os acessos de ternura algumas precauções, confirmei na semana passada a
conto O Nómada e a Víbora, onde comunitários — e rejeita a familiar, o frio e o calor, a existência de um exemplar da espécie: chama-se
os judeus acabam por linchar um aproximação da viúva Luna Blank, segurança e os perigos —, o autor Henrique Raposo e é cronista do Expresso. Na sua
grupo de nómadas que, com receio que se comece a falar revela uma certa ternura coluna, começava por glorificar a caça como ritual de
supostamente, os tinham demais da amizade que constroem desencantada que contrasta com feição mística, remetendo a morte do animal para a
roubado. Em 1966, Oz publicou tão fragilmente. Todos têm medo um realismo acre e implacável. Se, esfera da cerimónia sacrificial, impregnada de
um romance, Noutro Lugar, da língua afiada de Roni Scheidlin por um lado, parece sentir o elementos cultuais. Este discurso é aquele que serviu o
Talvez, que retoma as vivências que, à noite, quando os homens se aguilhão da nostalgia em relação a culto da guerra. Enriquecida com elementos de um
dos kibbutzniks, os seus dramas reúnem no refeitório, está sempre um espaço e a um tempo em que erotismo negro, a cerimónia sacrificial da morte esteve
pessoais e colectivos, o estado de presente para desfiar um rosário homens e mulheres acreditavam no centro de uma estranha comunidade onde se
permanente alerta e as tensões de maledicência e de piadas feitas estar a construir uma sociedade encontraram nos anos 30 do século passado, em torno
físicas e psicológicas a que estão à custa dos outros. Como um bobo melhor e mais justa, por outro, a de uma revista chamada Acéphale, nomes importantes
sujeitos. É um romance incómodo, da corte que mostra impunemente ironia acerba que nunca o da literatura francesa: Bataille, Leiris, Caillois,
cujo título remete para as os “podres” da vida, ele desenterra abandona, serve para colocar Klossowski e outros. Segundo o testemunho deste
frustrações dos idealistas que e faz troça dos mais ínfimos questões incómodas, tais como: último, Walter Benjamin, que tinha acabado de chegar
pretendiam que esse modelo fosse pormenores do quotidiano dos para onde foram estas pessoas ao exílio parisiense, assistiu a uma dessas reuniões do
o espelho de uma sociedade homens e das mulheres que o cheias de coragem e de boa grupo e comentou: “Vous travaillez pour le fascisme.” Na
harmoniosa, alegre, feliz, saudável rodeiam. Mais adiante no livro, vontade? O que aconteceu aos versão kitsch e pindérica de Henrique Raposo (mas não é
e solidária, sendo confrontados, numa outra história, Scheidlin é, ideais comunitários, às acções que o kitsch ideológico uma característica do fascismo?) o
no entanto, com as falhas muito por sua vez, vítima da coscuvilhice pareciam ser as únicas certas e culto da morte exprime-se desta maneira: “Há qualquer
humanas que, mais cedo ou mais da comunidade, com belas, num mundo marcado por coisa de belo num tiro que é o encontro entre a
tarde, destroem um desejo de consequências dramáticas. David desgraças? Porque razão trajectória da bala e a trajectória da presa; colocar a bala
perfeição igualitária, impossível Dagan, o professor cinquentão, é desapareceram os risos, as portas ou chumbo naquele milionésimo de segundo em que as
de manter. outra das presenças recorrentes. sempre abertas, a entreajuda e a duas linhas, a do tiro e a da presa, se encontram é um
Os contos breves contidos neste Parece ser o único a quem não são protecção das famílias e das desafio belo”. O critério de reconhecimento do fascismo,
Entre Amigos (2012) são, mais uma atribuídas tarefas rotativas fora da colectividades? Na última história, disse uma vez Deleuze, é este: “Alguém que diz ‘viva a
vez, o espelho de uma sua esfera de acção — nos campos, um homem está a morrer: é morte!’ é um fascista.” Raposo não satisfaz todos os
comunidade a braços com nos galinheiros, nas vacarias, nas Martin Vandenberg, estudioso de critérios de definição de um fascista, mas está dotado do
contradições insustentáveis entre rondas nocturnas, na esperanto, a língua universal que afecto fascista que encontra beleza na morte. É verdade
o privado e o comunitário, entre o administração — e tanto surge uniria todos os povos e assim, que se trata da morte de animais e não de homens, mas
desejo e a disciplina, entre a paz e como uma espécie de Casanova acabaria com guerras e a máquina antropológica do humanismo (que Raposo
a guerra, entre o dever e a ânsia que, depois de vários casamentos desigualdades. Vandenberg defende de maneira acérrima), aquela que exacerba a
de escapar a um sistema e muitos filhos, leva para casa a acredita que os Estados deveriam diferença zoo-antropológica, é exactamente o mesmo
implacável. muito jovem Edna Ashrov, o que ser abolidos, as fronteiras dispositivo que serviu para exterminar os judeus.
Todas estas histórias acontecem provoca um caos emocional no pai deveriam desaparecer (bem como O melhor vem a seguir. Henrique Raposo desenvolve a
no espaço mais ou menos desta, o seu amigo de longa data o dinheiro) e que a fraternidade sua ideia de uma mística da caça e da morte do animal
circunscrito do kibbutz Ykhat e as Nahum Ashrov (no conto Entre global deveria triunfar. A sua como um sacrifício onde se manifesta a categoria
personagens aparecem em Amigos que dá o título ao livro), agonia e morte — e a sua dureza e estética da beleza. E fazendo o elogio de umas
diferentes narrativas, sempre como se revela um homem cheio intransigência — espelham o declarações do cozinheiro Ljubmir Stanisic, sentencia:
descritas, analisadas e criticadas de compaixão e capaz de quebrar colapso das ideias e o fim das “Ljubmir Stanisic e Anthony Bourdain [são] cozinheiros
por observadores diferentes. regras para deixar um dos seus utopias. que não pedem desculpa por serem homens,
heterossexuais e carnívoros.” Na sequência lógica do
ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES
19 – 2
6 Se
t
19 Ter · 19:30 Sala Suggia 23 Sáb · 18:00 Sala Suggia 24 Dom · 18:00 Sala Suggia 26 Ter · 19:30 Sala Suggia
NOTAS DE HUMOR PIADAS MUSICAIS RRRRRRRIR HUMOR CLÁSSICO
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