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Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público.

Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.

Os novos
portugueses
na rentrée
literária
Os livros que vamos
poder ler na ficção,
poesia e ensaio
ILUSTRAÇÃO DE MIGUEL FERASO CABRAL | ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.011 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Sexta-feira | 15 Setembro 2017 | publico.pt/culturaipsilon

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Flash
Sumário
4: Rentrée literária
Os novos portugueses

10: Diário de Anne Frank


A vida de Anne Frank
contra tempos sombrios

14: Volker Schlöndorff


Encontros e desencontros
no cinema

16: Tamara Cubas


Três peças para engolir
e regurgitar

18: Syndrome Jon


A noite será para dançar
ou não será

22: Five Easy Pieces


O trauma e o teatro vistos
por dentro

24: Exposição Uma das obras é a tela em que Manet pintou o casal Claude-Camille Monet, em 1874, no seu barco-estúdio
Como ver os nossos Mirós

Ficha Técnica Monet, um coleccionador


Director David Dinis
Editor Vasco Câmara
Design Mark Porter,
de mente aberta
Simon Esterson Quem, pelas próximas semanas, se secreto. Um segredo que o Museu década de 1850 pelo seu amigo
Directora de Arte Sónia Matos deslocar ao Museu Marmottan Marmottan Monet decidiu agora Charles Lhuillier. Édouard Manet
Designers Ana Carvalho, Monet, em Paris, não vai poder desvendar, após uma investigação (1832-1883) e Jean-Pierre Renoir
Ana Fidalgo e Mariana Soares admirar a tela Impressão, nascer do que quase teve contornos (1841-1919) tornaram-se também
E-mail: ipsilon@publico.pt sol (Impression, soleil levant, 1872), “policiais”, como disse à imprensa a amigos chegados de Monet desde
com que Claude Monet (1840-1926) curadora da exposição, Marianne que ele se fixou em Paris. Uma das
fez nascer o movimento mais tarde Mathieu, da equipa do Museu obras-primas da mostra é, de resto,
designado impressionismo. Esta d’Orsay — o outro “templo” a tela em que Manet pintou o casal
obra seminal encontra-se em parisiense da pintura Claude-Camille Monet, em 1874, no
exposição, até 8 de Outubro, no impressionista. seu barco-estúdio. E entre os vários
Museu de Arte Moderna André “Monet não falava da sua vida retratos individuais e familiares que
Malraux (MuMa) em Le Havre, a privada. A sua colecção de arte, Renoir lhe dedicou — e ofereceu —
cidade na foz do Sena onde como a sua vida familiar, manteve- está Madame Monet e o seu
precisamente Monet se inspirou as sempre profundamente filho, também de 1874 (uma obra de
para pintar o seu famoso quadro — privadas”, disse a comissária, citada Renoir que, no entanto, não está na
durante cerca de um mês, o MuMa pelo New York Times, que também exposição é Retrato de Madame
coloca Impression, soleil levant em ouviu a curadora da Royal Academy Claude Monet, de 1872-74, da
diálogo com inúmeras outras of Arts, de Londres, Ann Dumas, Colecção Gulbenkian, e que foi
representações do sol, na mostra realçar a importância da nova adquirida por Calouste Gulbenkian
Impression(s), soleil, iniciativa exposição em Paris. em 1937 ao filho do pintor, Michel
integrada na comemoração do 5.º “Há uma diferença muito grande Monet) .
centenário daquela cidade entre ser um artista ou ser um Além destes nomes, há obras de
portuária. homem rico a coleccionar arte”, diz Delacroix, Corot, Boudin, Cézanne,
A partir de Em contrapartida, o Marmottan esta curadora. E nota que era então Morisot, Pissarro, Signac, Toulouse-
Shakespeare, Monet, que é maior depositário de “muito raro artistas comprarem Lautrec e também Rodin — uma
Bruno Bravo e os obras do pintor francês, mostra arte como um investimento”. “A sua relação que na exposição no Museu
Primeiros agora — e até 14 de Janeiro — uma principal preocupação era ver o Marmottan Monet está
Sintomas levam faceta bem menos conhecida do que outro artista tinha feito. Muitas documentada com o bronze Jovem
Lear ao Teatro autor dos nenúfares: a de vezes, eles admiravam realmente o mãe na gruta e com um gesso
Nacional D. Maria coleccionador. Monet. trabalho dos outros artistas e representando Bacantes
II. Págs 20 e 21 Collectionneur, inaugurada esta usavam-no como uma inspiração. abraçadas, com a seguinte
quinta-feira, desvenda mais de sete Era algo muito mais pessoal, e que dedicatória na base: “Ao grande
dezenas de pinturas, aguarelas e estava ligado ao seu próprio mestre C. Monet, do seu amigo
esculturas, além da colecção de processo criativo”, acrescenta Ann Rodin”.
gravuras japonesas, que o pintor foi Dumas, citando o caso de Edgar “A colecção parece-se com o
reunindo ao longo de grande parte Degas (1834-1917), outro grande próprio Monet: é o seu olhar, a sua
da sua vida. pintor-coleccionador da época. selecção”, diz Marianne Mathieu,
Se a admiração que Monet No caso de Monet, o pintor acrescentando que esta colecção
dispensava à arte japonesa é um começou a adquirir telas de amigos — que o Marmottan reuniu com
dado conhecido da sua biografia, já — algumas delas, resultado de empréstimos dos principais museus
a de coleccionador de obras dos ofertas pessoais — quando era ainda internacionais e também de acervos
artistas seus contemporâneos, jovem. O quadro mais antigo na privados — “revela um artista com
muitos deles amigos pessoais, exposição Monet. Collectionneur é uma mente muito aberta”.
permaneceu durante longo tempo uma caricatura sua feita no final da Sérgio C. Andrade
2 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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(Reino Unido), Joachim Schmid e colecciona obras em que eles se


(Alemanha), John Smith (Reino intersectam.

Rir com a arte Unido), Kara Hearn (EUA), Maurice


Doherty (Irlanda), Olav
“Thinking Machines reenquadra
uma corrente de relações estéticas

contemporânea Westphalen (Alemanha), Paul


McCarthy (EUA), Peter Finnemore
e culturais” que simboliza em
parte a era que se seguiu à II
(Reino Unido), Pilvi Takala Guerra Mundial, diz o museu na
Com Mimic Gimmick - Playing ‘Air (Finlândia), Richard Hughes (Reino nota que anuncia a exposição, que
Guitar’ to Derek Bailey, uma Unido), Richard Wentworth (Reino inclui obras produzidas entre 1959
criação de 2008, o músico e Unido) e Thomas Geiger e 1989. Haverá exemplos da Arte
artista visual João Paulo Feliciano (Alemanha). Programmata italiana, obras
marca a presença portuguesa na cinéticas, claro, sobreposições
exposição colectiva O Risível entre a arte conceptual e a arte
Enigma da Vida Normal, com que feita com computadores. E um
o Arquipélago Centro de Artes vídeo central, de Beryl Korot, Text
Contemporâneas, na ilha de São
Miguel, nos Açores, assinala a sua Máquinas and Commentary (1976-77), em que
a artista tece num tear — a norte-
rentrée cultural. Neste vídeo,
Feliciano homenageia o grande pensantes: como americana considera mesmo que o
tear é “o primeiro computador à
guitarrista britânico Derek Bailey
(1930-2005), um dos nomes do os computadores face da Terra” — que a instalação
ilustra como parte da intrincada
free jazz, mimando-o na
interpretação de uma peça ao mudaram a influência da computação na
história e nas artes.
longo de cerca de cinco minutos.
É uma das mais de meia centena estética de O uso da computação, seja da sua
prática seja do seu pensamento,
de obras que vão poder ser vistas
a partir desta sexta-feira artistas, designers reposicionou “a produção
artística, industrial e económica”,
(inauguração às 18h), numa
mostra colectiva comissariada e arquitectos com artistas como Vera Molnár,
Lejaren Hiller ou Stan VanDerBeek
pelos britânicos David Campbell e a explorar o seu potencial através
Mark Durden. Desenhar, filmar, arquitectar e até de parcerias com unidades de
“O Risível Enigma da Vida Normal tecer e pensar o contexto social — investigação ou empresas do
explora a importância da comédia tudo com ou por causa dos sector. Como a sugestiva Thinking
na nossa forma de dar sentido às computadores. A influência da Machines Corporation ou a
coisas, ajudando-nos a navegar computação na produção artística, Universidade de Illinois, que lhes
através das dificuldades da vida na arquitectura e no design é o deram acesso a máquinas especiais
quotidiana. As coisas a que tema da grande exposição de ou à ponta da lança do
achamos piada podem ser cruéis Outono do Museum of Modern Art desenvolvimento da tecnologia.
e odiosas, estabelecendo (MoMA) de Nova Iorque, intitulada Foi com esta última que John Cage
fronteiras simbólicas que dividem Thinking Machines. Estas máquinas e Lejaren Hiller fizeram a obra
as pessoas em grupos distintos, pensantes aliam obras de John HPSCHD (1967); o artista Richard
colocando aqueles que têm poder Cage, Cedric Prince ou Lee Hamilton criou um computador
contra os que não têm e vice- Friedlander, mas também do em si mesmo, o DIAB DS-101 (1985-
versa. Mas a comédia é também brasileiro Waldemar Cordeiro ou 89).
uma forma de unir as pessoas: dos italianos Enzo Mari e Gianni Thinking Machines é comissariada
dando-lhes consolo, a sensação de Colombo à tecnologia da Olivetti, por Sean Anderson, do
uma vivência partilhada e uma da IBM ou da Apple. Departmento de Arquitectura e
poderosa arma de resistência”, A inauguração é só a 13 de Design, e Giampaolo Bianconi, do
escrevem os curadores na Novembro e a mostra estende-se Departmento de Média e Artes
apresentação da mostra, que vai até 8 de Abril de 2018 e destina-se, Performativas do MoMA, e quer
poder ser visitada até 31 de partindo da rica colecção do mostrar “como os computadores
Janeiro. MoMA, a “sublinhar a história transformaram as hierarquias
Além de curadores, Campbell e transformadora e a influência dos estéticas” mas também contar um
Durden são também artistas computadores nos artistas, pouco da história da própria
representados na exposição arquitectos e designer do pós- evolução desta maquinaria e da
através de duas criações do guerra”, como resume o museu forma como nós, que pusemos o
colectivo Common Culture (que em comunicado. Há a roda, a “pessoal” no “computador
partilham com Ian Brown): os electricidade, a penicilina — mas o pessoal”, mudámos com ela.
vídeos The New El Dorado (2010), computador pessoal, e a Um abalo tectónico retratado
uma encomenda para a bienal computação em geral e a internet, por Friedlander na sua série At
espanhola Manifesta, realizada mais tarde, em particular, estão Work, fotografias de uma América
em Múrcia, a parodiar os entre as mais importantes na fábrica, na padaria, na forja
chamados artistas invenções da humanidade cujo mecânica, mas também no
“paraquedistas” com pretensões reflexo na produção cultural mais escritório, como uma sequência de
de comunicarem com culturas têm interessado o MoMA, que rostos congelados, e algo
alheias; e Trial by Media, uma desde os anos 1930 (foi fundado sorumbáticos, frente a um ecrã.
nova criação com canções em 1929) se debruça sobre o tema Joana Amaral Cardoso
populares a coreografar
“movimentos de dança para
músicas com letras baseadas nas
vidas narcisistas e indulgentes das
celebridades contemporâneas”.
Muitas outras formas de rir, e de
intervir política e socialmente
através da comédia, fazem o
catálogo de O Risível Enigma da
Vida Normal, que contém criações
de outro colectivo britânico,
Bank, e outras de artistas
provenientes de vários países:
Carla Garlaschi (Chile), David
Sherry (Irlanda), Erica Eyres
(Canadá), Gemma Marmalade
(Reino Unido), Gilliam Wearing Boston, Massachusetts (1985)
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 3
Há vozes novas na literatura portuguesa: Carla Pais e Raquel
Gaspar Silva. O cenário de ambas é o Portugal rural, onde as
histórias parecem crescer da terra e onde os mortos continuam
tão vivos como os vivos. E há ainda a confirmação de um
universo literário muito singular, o de Rodrigo Magalhães.

4 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017


José Riço Direitinho

Os novos
portugueses
om a rentrée chega uma voz
nova à literatura portugue-
sa: Carla Pais (n. 1979), com
o romance Mea Culpa (Por-
to Editora). Confirma-se a
de um outro autor, Rodrigo
Magalhães (n. 1975), com o romance
Os Corpos (Quetzal) — antes escreveu
C
Cinerama Peruana (Quetzal, 2013).
Há ainda um outro livro de uma au-
tora estreante a merecer toda a aten-
ção (apesar de ter sido publicado há
cerca de dois meses) pela singulari-
dade da sua escrita: a novela Fábrica
de Melancolias Suportáveis (Elsinore),
de Raquel Gaspar da Silva (n. 1981).
Curiosamente — ou talvez nem tan-
to, porque é um ambiente que vem
surgindo amiúde nos livros da mais
nova geração de autores —, as histó-
rias narradas por ambas as escritoras
têm o mundo rural como cenário. As
suas personagens movem-se num
tempo que parece ser de “outro tem-
po”, num mundo quase atávico, on-
de religião e superstição se mistu-
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ram, onde vozes ecoam nas ruas e


nas casas, onde tudo se diz e onde
quase nada pode ser dito. Um mun-
do onde as histórias parecem crescer
da terra, das pedras dos muros, das
brenhas e canelhas, dos currais e das
capelas, dos lameiros e das searas
ainda por ceifar, e onde os mortos
continuam quase tão vivos na me-
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mória da cal e do granito como os
vivos que habitam essas casas.
Raquel Gaspar Silva, nascida em
Évora, e actualmente desempregada,
diz que esta é “uma novela sobre o
Alentejo, um Portugal profundo que
está em vias de extinção”. E acres-
centa: “É este Alentejo que se canta
na voz dos que trabalhavam o cam-
po, uma terra mítica e onírica, rude
e bela.” Ao escrever sobre os campos
alentejanos, Raquel Gaspar Silva diz
que foi como “acalmar as vozes ex-
tenuadas da labuta que habitavam
as casas caiadas, oferecer-lhes
uma espécie de paz, aquela paz do
meio-dia, a hora santa do Dia da Es-
piga em que, como se dizia, as águas
dos ribeiros não correm, o leite não
coalha, o pão não leveda e as folhas
se cruzam”. A história narrada
tem no centro uma família da classe
trabalhadora num contexto social de
natureza rural e que habita uma fá-
brica de cortiça. Uma das persona-
gens, Carlota, que se destaca dos
cinco irmãos, é quem parece fazer
girar a história, que por sua vez a
acompanha e a abandona. A fábrica
que titula o livro é assim uma espécie
de epicentro deslocado da vida da
aldeia e do seu imaginário. É nela que
nascem as histórias, as lendas, os
medos, fazendo dela uma “fábrica
de possibilidades”.
Para a autora, esta é uma história
que em parte lhe define a identidade:
“[Embora] seja ficção, é fácil projec-
tar-me na vida destas persona-
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MIGUEL MANSO

ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 5


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MIGUEL MANSO
gens, porque habitam territórios que gundo disse a autora, foi a partir da
conheço muito bem. Este Alentejo ideia de construir estas duas perso-
das lendas, do folclore, é a minha nagens que nasceu toda a história.
memória indirecta, sentimental. São “Na altura pensei: se cruzar este ho-
histórias que ouvi em pequena e que mem que nasce do ventre de uma
me definiram também enquanto lei- puta com esta mulher que nasce do
tora, porque a oralidade também é ventre de uma mãe envenenada, o
uma parcela enorme nas minhas re- que irá acontecer? E foi um bocadi-
ferências de ‘leitura’, e consequen- nho a partir desta pergunta que o
temente definiram a minha voz como livro se foi construindo.”
autora. Quis preservar expressões
que entraram em desuso e contar Prémio Agustina
tudo como se acreditava ter aconte- Bessa-Luís
cido.” Fábrica de Melancolias Supor- A este romance de Carla Pais (na al-
táveis é assim uma espécie de depó- tura ainda inédito) foi atribuído em
sito de memórias sentimentais. A 2016 o Prémio Agustina Bessa-Luís,
autora confessa que conhecia muito que acabou por não ser entregue à
bem os alicerces desta história, pois autora por esta ter publicado ante-
começou a trabalhar no livro no iní- riormente uma outra obra de carác-
cio de 2016, sempre com a ajuda do ter ficcional, algo proibido pelo re-
editor, Guilherme Pires, então na El- gulamento. Carla Pais diz que este
sinore, e que foi quem a desafiou a livro demorou cerca de nove meses
escrever o livro. a escrever e que o fez para o enviar
Mea Culpa, o outro livro que tem a concursos de prémios literários,
também a ruralidade portuguesa co- mas que das duas primeiras vezes
mo pano de fundo, embora seja uma que enviou o envelope (por razões
região nortenha, apresenta uma desconhecidas) este nunca chegou
curiosa galeria de personagens que, ao destino. E ela desistiu. Mas um dia
de certa forma, se vêem uns nos ou- ficou desempregada, com necessi-
tros (reflectindo-se), se não na vio- dade de ocupar o tempo, e decidiu
lenta miséria em que vivem, pelo tornar a pegar-lhe de novo. “Corrigi-
menos na culpa que a sociedade lhes o todo à mão” e, desta vez, o original
atira para cima. As histórias aldeãs chegou ao destino.
acumulam-se até se cruzarem, tecen- Para Carla Pais, a vontade de es-
do assim o tecido debaixo do qual crever chegou-lhe por volta dos 13
todos se movem, tentando represen- anos, quando a patroa do pai lhe ofe-
receu um diário, daqueles com cha-
ves, cadeado e folhas perfumadas.
“Como estava a entrar na fase da ado-
“Acontece-me com lescência e nada à minha volta fazia
sentido, agarrei-me àquele bocado
alguma frequência de mundo que podia guardar fecha-
do. Aquele diário era uma espécie de
que os temas me cova, onde enterrava toda a raiva,
angústia e insegurança. Já naquela
apareçam por acaso altura via tudo virado do avesso. Fo-
ram quilómetros e quilómetros de
e que depois me linhas, e ainda bem que assim foi.”
Mea Culpa atesta a segurança da
exercite a moldá-los escrita da autora, a maneira como
conduz as histórias sem nunca as
àquilo que realmente perder da mão, e levando-as até on-
de quer de maneira a que se possam
me interessa” cruzar com outras no ponto certo.
Também as personagens, e apesar

Rodrigo Magalhães de resultarem de relações envenena-


das e quase sempre à beira do abis-
mo, mostram a fiabilidade necessá-
ria. Carla Pais fala com entusiasmo
tar os papéis que a sociedade espera das suas leituras e sobretudo da des- 2016, criou a página Travessa de San- Logo nas primeiras páginas do li- Raquel Gaspar
deles (quase nenhum o consegue, é coberta de uma autora romena, Her- ta Marta. Conta como aquele que viria vro de Raquel Gaspar da Silva se per- Silva, nascida
certo). Carla Pais, actualmente a re- ta Müller. “A escritora que mais me a ser seu editor leu os posts dessa pá- cebe a sua apetência por uma escri- em Évora, diz
sidir em Paris e a trabalhar numa marcou, não só pelas histórias mas gina, escreveu-lhe e lançou o desafio: ta mais poética. De facto, paralela- que Fábrica de
repartição pública, confessa: “[A his- essencialmente pela escrita, a beleza “Achas que há espaço em ti para trans- mente ao exercício da prosa, ela Melancolias
tória é] uma espécie de jogo de espe- com que narra o terror, foi Herta Mül- formar esta Travessa de Santa Marta criou “um escape poético para exer- Suportáveis é
lhos, em que ninguém é o que pare- ler. Quando a li pela primeira vez, num livro, dar mais corpo ao texto, à citar a linguagem”, que se chama “uma novela
ce ser, porque todos nós temos esta durante umas férias de Verão, a pri- ficção dessas memórias? Respondi #domesticliteraturemovement e foi sobre o
capacidade de nos dissimularmos no meira coisa que me veio logo à cabe- que sim, embora com noção de que criado também no Facebook. “Quis Alentejo,
meio de uma sociedade condenató- ça foi: ‘Mas isto é deslumbrante!’” não seria fácil, mas cheia de vontade.” separar a poesia completamente e um Portugal
ria.” E continua, ainda: “Podemos De outros escritores menciona os Depois foi quase um ano de trabalho comecei a escrever em inglês. Publi- profundo
interpretar este disfarce como uma nomes de Rui Nunes, Maria Velho da até o livro estar terminado. co no Facebook e defini uma estra- que está em
protecção que o indivíduo encontra Costa, Almeida Faria e Philip Roth: Os autores de que gosta são Clari- tégia de divulgação dos poemas fora vias de
para conseguir sobreviver. É como “[São] escritores que nos embalam ce Lispector, Lygia Fagundes Telles de todas as fronteiras de Portugal”, extinção”
ser uma formiga e tentar a todo o de uma forma estranha, [autores que e García Márquez. E acrescenta que diz. “Comecei por fazer parte de um
custo fugir da pata do elefante. Há nos] dizem ‘Tens de trabalhar muito, “pontualmente” descobre um autor colectivo de Berlim, a Curated by
pessoas que escondem a essência e penar mesmo, para conseguires es- novo, que a cativa pela diferença, Girls, ligada a conceitos artísticos fo-
a sensibilidade toda uma vida com crever alguma coisa que valha a pe- como há pouco tempo aconteceu ra do normativo e do canónico e pu-
medo de se mostrarem.” na’, porque temos sempre aquela com Joanna Ruocco. Diz ainda que bliquei em revistas online mais indie:
Uma das suas personagens é filho ideia de que ainda estamos muito entre os autores portugueses lê mais Visceral8, After the Pause (um stan-
de uma prostituta, e esse facto é uma longe da qualidade.” poesia do que prosa, pois encontra dalone), Tip of the Knife. Depois trans-
marca que carregará durante a vida aí “mais conexão, mais referências formei alguns poemas em vídeo e
aos olhos dos outros. Há ainda, entre Nascido no Facebook comuns, lugares conhecidos”. “Mas enviei-o para festivais. Aprendi mui-
outras, uma mulher a quem a mãe, Para Raquel Gaspar Silva, o livro que são pontos de contacto, e não tanto to, vou recebendo feedback, apresen-
cheia de ódio, confiscou a vida. Se- publicou nasceu no Facebook. Em afinidades.” tei o vídeo na instalação Casa-Animal
6 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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Poesia

DR
Todo o Cesariny e o
Carla Pais,
primeiro Zagajewski
actualmente
a residir em Pela primeira vez, toda a poesia de Cesariny
Paris, diz que
a sua história é e três importantes antologias: de Adam
“uma espécie
de jogo de Zagajewski, Konstantínos Kaváfis e Rui
espelhos, em
que ninguém Costa. Por Hugo Pinto Santos
é o que parece

N
ser” a poesia, o grande Francisco José Craveiro de
destaque da rentrée é Carvalho. A Douda Correria
e entretanto está entre os escolhidos Bolaño de A Literatura Nazi nas Amé- Poesia Completa de Mário continuará a publicar a poeta
para finalista de um festival em Mas- ricas (Quetzal, 2010). Cesariny. A edição, que brasileira Angélica Freitas, com a
sachusetts. O vídeo será também As suas histórias (quase sempre sairá em Novembro, na edição de Um Útero É do Tamanho
exibido em breve na plataforma Po- a encaixarem umas nas outras como Assírio & Alvim, está a de Um Punho, e publicará, ainda,
etry Live Film.” mosaicos) vão tomando forma como cargo do grande especialista na Cavalo Alucinado, de Nuno Moura.
se fossem uma maneira de resistir obra de Cesariny Perfecto E. A Mia Soave lança o livro
Bolaño e Sebald ao esquecimento daquelas persona- Cuadrado. Esta é a primeira vez Contemspoiler, que inclui o CD Livro
Rodrigo Magalhães, autor do roman- gens, que têm como denominador que se publica toda a poesia de de Reclamações do poeta e cantor
ce Os Corpos, livreiro de profissão, comum responderem, de uma for- Mário Cesariny. Antecipando este Luca Argel, radicado há alguns anos
começou a escrever com nove, dez ma ou de outra, ao canto de sedução grande acontecimento editorial, a em Portugal e que publicou, em
anos, porque queria fazer argumen- do mal. Há nelas uma espécie de chancela da Porto Editora reedita Julho passado, a antologia da sua
tos para banda desenhada e, como fascínio pelo bárbaro, ou talvez mais em Outubro dois livros do poeta: poesia 33 Rotações (Averno).
se achava sem talento para o dese- pelo obscuro. É nisto faz lembrar os Primavera Autónoma das Estradas e No mês de Outubro, Daniel Jonas
nho, preferiu começar por escrever livros do chileno Roberto Bolaño e Manual de Prestidigitação, e, ainda publica novo livro de poesia:
umas histórias como tubo de ensaio, Rodrigo Magalhães concorda: “Creio este Outono, a sua tradução de Oblívio, na Assírio & Alvim. Nesse
na esperança de que algum dia apa- que tenho uma dívida visível para Rimbaud: Iluminações - Uma mesmo mês, chegam às livrarias,
recesse um desenhador que se dis- com o Roberto Bolaño, embora não Cerveja no Inferno. por mão da Relógio D’Água, duas
pusesse a colaborar. “Isso acabou seja sequer um dos meus escritores Em Setembro, a Relógio d’Água novas traduções: Poemas
por acontecer, mas por essa altura já favoritos. Mas há na obra dele uma publica O Pangolim e Outros Escolhidos, de W. B. Yeats, com
não era banda desenhada que me vontade de experimentar que me Poemas, de Marianne Moore, com selecção e tradução do poeta
interessava escrever”, diz. interessa muito.” Sobre outras in- tradução e selecção de Margarida Frederico Pedreira; e Poemas, de
Os Corpos parte de um aconteci- fluências acrescenta: “Parece-me Vale de Gato. No ano em que John Donne, escolhidos e
mento real: em 1948, em Somerton, que tudo me influencia. Sejam li- passam duas décadas sobre a traduzidos por Maria de Lourdes
numa praia australiana, foi encon- vros, filmes, música, seja o que morte de Rui Knopfli, a Tinta-da- Guimarães. O grande poeta
trado o corpo de um homem não for. Tudo é uma influência em po- china lança a antologia Nada Tem já metafísico inglês volta, assim, às
identificado. De aparência cuidada, tência, à espera de se manifestar. Encanto. Organizado por Pedro livrarias portuguesas depois das
vestia fato e gravata, e estava calçado. Livros escolho três: Os Anéis de Sa- Mexia, o volume conta com traduções de Helena Barbas, há
As peças de roupa e os sapatos não turno (W.G. Sebald), Almas Mortas posfácio de Eugénio Lisboa. Do muito esgotadas: Poemas Eróticos
tinham quaisquer etiquetas. Havia (Nikolai Gogol) e Bouvard e Pécuchet mesmo poeta, a Do Lado Esquerdo (Assírio & Alvim, 1995) e Elegias
algumas particularidades: um cigar- (Gustave Flaubert). Se tivesse de es- lançara, em Julho passado, Uso Amorosas (Assírio & Alvim, 1997). A
ro atrás da orelha e um pedaço de colher um escritor favorito, diria o Particular, com prefácio de Do Lado Esquerdo publica Oxalá,
papel rasgado num bolso com duas Sebald, embora não me pareça que António Cabrita e selecção de de Pedro Santo-Tirso. A Companhia
palavras escritas. O mistério desse essa preferência se manifeste no Maria Sousa e Nuno Abrantes. das Ilhas lança Cântico do Estuário,
homem de Somerton permanece até produto final. Há demasiado a sepa- Ainda durante este mês, sai, na de Ricardo Pérez Piñero, com
hoje. Rodrigo Magalhães conta que rar-nos.” Assírio & Alvim, uma importante versão portuguesa de Nuno
demorou cerca de três anos a escre- Este romance, tanto como o caso antologia de Rui Costa, Mike Tyson Dempster.
ver este livro. “Escrevo devagar e por resolver de onde parte, é tam- para Principiantes. O poeta, que Em Novembro, sai pela Flop uma
tento que a primeira versão esteja o bém ele um livro misterioso, e ao morreu em 2012, aos 40 anos, em relevante tradução de Konstantínos
mais perto possível da forma final, mesmo tempo inquietante, sem que circunstâncias trágicas, é agora Kaváfis, 145 Poemas. O trabalho,
para que o penoso trabalho de revi- o leitor perceba bem a razão. É uma antologiado numa edição feito directamente a partir do grego,
são seja um pouco mais leve. Encon- obra difícil de categorizar. “Parte de coordenada por André Corrêa de ficou a cargo do poeta e tradutor
trei a história por acaso e quanto um enigma, mas não é um policial. Sá e com organização de António Manuel Resende. Este volume
mais li, mais me interessou este mis- Parece uma peça de conjunto, mas Aguiar Costa, Cláudia Souto e junta-se às traduções de Joaquim
tério. Acontece-me com alguma fre- também não o é. Interessou-me pul- Margarida Vale de Gato. A editora Manuel Magalhães, na Relógio
quência que os temas me apareçam verizar a acção, levá-la a passar por publica também o novo livro de D’Água: Poemas e Prosas (1994) e Os
por acaso e que depois me exercite diversas personagens, para que se Gastão Cruz, Existência, e as Poemas (2005).
a moldá-los àquilo que realmente me obtivesse no final uma ideia do mo- integrais Poesia, de Eugénio de Um dos maiores acontecimentos
interessa.” do como um único evento pode afec- Andrade, com prefácio de José desta rentrée será a publicação, na
Com grande maturidade narrativa, tar em maior ou menor medida um Tolentino Mendonça, e Poemas, de Tinta-da-china, de uma antologia da
e uma riqueza vocabular pouco co- grupo alargado, que neste caso é Almada Negreiros, com edição de poesia de Adam Zagajewski. Nome
mum (e isso era já bastante visível no uma cidade”, diz Magalhães. E con- Fernando Cabral Martins, Luis cimeiro da literatura europeia, o
seu livro anterior, Cinerama Perua- tinua: “Quis que a localização fosse Manuel Gaspar e Mariana Pinto dos poeta polaco será pela primeira vez
na), o autor continua em Os Corpos a tão vaga que se tornasse potencial- Santos. publicado em livro entre nós. A
construir um universo literário que mente universal. Daí também a es- Igualmente em Setembro, a antologia, ainda sem título
nos surpreende pela sua singulari- colha dos nomes das personagens, Editora Exclamação lança a definitivo, terá tradução de Marco
dade na recente literatura portugue- que são todos nomes que se escre- antologia Desaparições, do poeta Bruno e Jorge Sousa Braga. No
sa. A imaginação de Rodrigo Maga- vem do mesmo modo em diversas brasileiro Alexei Bueno, que foi mesmo mês, a Relógio D’Água lança
lhães parece assentar, de alguma línguas e países. Levei a cabo algu- organizada e prefaciada por dois títulos de Maria Mafalda Viana,
forma (e isso também acontecia mas experiências formais, relacio- Arnaldo Saraiva. A Dom Quixote com traduções de Píndaro e estudos
em Cinerama Peruana), na estética nadas com a dimensão dos capítulos publica Antologia de Poesia Erótica dedicados à obra do poeta grego: A
da pequena biografia, com raízes em ou dos segmentos que o compõem, de Bocage, com organização e Quarta Ode Pítica de Píndaro e O
Marcel Schwob (Vidas Imaginárias), umas mais bem sucedidas do que prefácio de Fernando Pinto do Livro das Odes Nemeias de Píndaro.
Jorge Luis Borges (História Universal outras. Mas a forma final, já se sabe, Amaral. Pela Companhia das Ilhas, A Do Lado Esquerdo publica Lonely
da Infâmia) e sobretudo no Roberto é só uma aproximação ao ideal.” sai Quatro Garrafas de Água, de Gigolo, de Pedro Tiago.
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Ficção

47 anos depois chega


Maya Angelou (Sextante), romance centrado na relação da escritora americana
Novos romances de Hélia Correia, Dulce guerra como uma constante com a sua companheira de toda a
civilizacional ao longo dos tempos. vida. Rosa Mantero tem um
M. Cardoso, António Lobo Antunes e Mário Como acontece quase todos os romance novo na Porto Editora, A
anos, em Outubro há um novo Carne, e de outro espanhol, Javier
de Carvalho marcam a ficção nacional. romance de António Lobo Cercas, temos O Monarca das
Antunes. Chama-se Até que as Sombras (Assírio & Alvim). Cercas
Chega a Portugal uma grande memorialista: Pedras se Tornem Mais Leves que a pega numa história familiar para ir
Água (D. Quixote). Também em até à Guerra Civil Espanhola.
Maya Angelou. Por Isabel Lucas português, saliente-se a publicação Para Novembro reservam-se
pela Cotovia do romance Tempo de algumas das obras mais
Espalhar Pedras, de Estevão aguardadas em português desta
Azevedo, um retrato pungente da rentrée. Na Tinta-da-china, o novo

E
la não conseguia lembrar- nomes fundamentais da literatura desumanização no Brasil actual; e romance de Dulce Maria Cardoso
se do resto do poema; dois norte-americana, mas permanece de Espanha chega Baile e Sonho, — com título por revelar. É o
versos e mais nada. E o quase desconhecida em Portugal. O segundo volume da trilogia O Teu primeiro da escritora depois do
esquecimento não livro é um dos destaques deste mês Rosto Amanhã, uma das obras celebrado O Retorno (2012).
melhorava quando ouvia o que marcam o início da rentrée maiores de Javier Marías Também Hélia Correia tem um
riso dos colegas da Igreja literária em Portugal. (Alfaguara). O terceiro, Veneno e romance para publicar: Um
Metodista Episcopal de Pessoas de É tempo de novidades, algumas Sombra, tem saída agendada para Bailarino na Batalha é o regresso
Cor. Ela era assim, esquecia-se esperadas. Chega o romance Novembro. Da escocesa Ali Smith da vencedora do prémio Camões
muito e estava envergonhada no vencedor do Pulitzer de ficção em chega How to Be Both (ainda sem ao grande formato desde 2010,
seu vestido novo de tafetá, feio, 2016, A Estrada Subterrânea, de título em português), livro que na ano em que publicou Adoecer. Sai
que antes achara bonito e viu como Colson Whitehead (Alfaguara), verdade é um romance em duas na Relógio d’Água.
um meio para a sua redenção narrativa que reconstitui os anos de versões e foi finalista de vários Kalaf Epalanga, nome do
pessoal. “Enquanto observava a escravatura nos EUA; a Relógio prémios, entre eles o Man Booker, conhecido cantor do grupo Buraka
Mãezinha a pôr folhos na bainha e d’Água publica Um Deus em Ruínas, e venceu o Costa Award em 2014. É Som Sistema, terá um romance na
umas preguinhas bonitas na da britânica Kate Atkinson (Costa narrada na perspectiva de um Caminho, com título ainda por
cintura, soube que, assim que o Award, 2015); Homens Sem estudante universitário actual e de conhecer, e, na mesma chancela,
vestisse, iria parecer uma estrela Mulheres, contos de Haruki um jovem renascentista. Mais um Sandro William Junqueira publica
de cinema. (Era de seda, o que Murakami (Casa das Letras) chega a notável exemplo da capacidade Quando as Girafas Baixam o
compensava a cor horrorosa.) Eu ia 19, o mesmo dia da primeira edição narrativa de Smith. Pescoço, espécie de fábula
parecer uma daquelas meninas em português de O Escritor Também em Outubro, o mês citadina. Entretanto, a Quetzal
brancas e graciosas, que Fantasma, de Philip Roth (D. com mais lançamentos agendados, continua a republicar a obra de
encarnavam tudo o que havia de Quixote), romance de 1979, o além do terceiro volume das obras José Eduardo Agualusa, a Relógio
bom no mundo, o ideal de toda a primeiro da série que o escritor de Galeano, Mulheres, Antígona d’Água a de Agustina Bessa-Luís e a
gente. Delicadamente pousado em dedicou a um dos seus alter-egos, publica Baleia, uma novela de Paul Porto Editora a de José Saramago.
cima da máquina de costura Singer Nathan Zuckerman. Ainda na D. Gadenne, e Europeana, Uma Breve A Tinta-da-china anuncia um novo
preta, o vestido era mágico, e, Quixote, volta Lisbeth Salander em História do Século XX, de Patrik livro de Ricardo Araújo Pereira.
quando as pessoas me vissem com O Homem que Perseguia a sua Ourednik. E sublinhe-se um título Um dos destaques de Novembro
ele, viriam ter comigo a correr e Sombra, de David Lagercrantz, da Quetzal: O Livro de Emma Reyes vai justamente para a Tinta-da-
diriam: ‘Marguerite [...] por favor quinto volume da saga Millennium, - Memória por Correspondência, da china: na sua colecção de viagens
perdoa-nos, não sabíamos quem iniciada por Stieg Larsson. José pintora colombiana Emma Reyes publica Constantinopla, de
eras’, e eu responderia, Rodrigues dos Santos tem novo (1919-2003). Um livro que quebra Edmondo de Amicis. Será a
generosamente: ‘Não, não podiam livro, a 23, O Reino do Meio, último as regras da memória primeira edição integral em
saber. É claro que vos perdoo.’” Ela livro da Trilogia do Lótus. Ainda a convencional para se contar o que Portugal deste clássico do século
é a personagem central do continuação da publicação da obra descreve como um talento XIX, numa tradução de Margarida
romance autobiográfico Sei Porque de Eduardo Galeano pela Antígona, acidental. Periquito a partir do italiano. É o
Canta o Pássaro, de Maya Angelou, com O Caçador de Histórias, e, na Outro destaque é o livro do mesmo mês em que chega A Sede,
que a Antígona faz chegar à edição Quetzal, O Caminho Imperfeito, francês Emmanuel Bove (1898- do norueguês Jo Nesbo, e A
portuguesa este Setembro quando livro de viagens de José Luís 1945), Os Meus Amigos (Cotovia), e Trégua, de Primo Levi (Dom
passam 47 anos da publicação Peixoto. da Argentina chega Distância de Quixote). A Elsinore traz romance
original. Surpresa de saudar é a Segurança, da escritora Samanta de Paul Beatty que antecedeu O
O volume conta os primeiros 17 publicação de Um Amor Feliz, do Schweblin (Elsinore). O Nobel Vendido. Chama-se A Dança do
anos da vida de Maya Angelou, alemão Hubert Fichte, pela japonês Kenzaburo Oe surge com Rapaz Branco. Na Porto Editora, há
nome literário de Marguerite Ann Cotovia, numa tradução de José uma história autobiográfica, Morte Isabel Allende, Para lá do Inverno,
Johnson, romancista, poeta e Vieira Mendes. É a viagem de dois pela Água (Livros do Brasil), e, na e Veracruz, de Olivier Roland, na
activista que integrou o movimento irmãos, em 1964, a um país Dom Quixote, há o mais recente Sextante. E em Dezembro sai na
dos direitos civis na América ao governado por um ditador. Esse título de John Le Carré, Um Legado Relógio d’Água o mais recente e
lado de Martin Luther King. país é Portugal. Destaque ainda em de Espiões, que marca o regresso celebrado livro de Kamila Shamsie.
Alguém que antes de ser escritora Setembro para Octaedro, de Julio do agente Smiley; Isso Não Pode O título original é Home Fire e é
fez de quase tudo para sobreviver. Cortázar, O Galo de Ouro, de Juan Acontecer Aqui, do Nobel Sinclair uma actualização da Antígona, de
Foi cozinheira, prostituta, até se Rulfo, e A Porta, de Magda Szabó Lewis, e Contos, de Lampedusa. A Sófocles. As relações sociais,
formar em estudos americanos na (Cavalo de Ferro); Rapaz, Neve, Ave, Asa traz um novo de Arturo Pérez- familiares e de fé no mundo
Universidade da Carolina do Norte de Helen Oyeyemi (Elsinore), a Reverte, Falcó, e um dos livros do contemporâneo.
em 1982. Em 1993, declamou o seu reedição de Ébano, de Ryszard mês da Relógio d’Água é A E, não é novo, mas a tradução é
poema On The Pulse of Morning na Kapuscinski (Livros do Brasil). Autobiografia de Alice B. Toklas, de uma novidade: Os Detectives
cerimónia de tomada de posse de Entre os aguardados por muitos Gertrude Stein (também publicada Selvagens, de Roberto Bolaño,
Bill Clinton. Morreu em 2014, aos leitores está Escutai as Nossas pela Ponto de Fuga, este saem numa edição especial,
86 anos, considerada um dos Derrotas, do francês Laurent Gaudé Setembro). É uma memória da revista, aumentada, na Quetzal.
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Valentim Alexandre e da sua


habitual solidez, com Contra o
Vento Portugal, o Império e a
Maré Anticolonial (1945-1960), e,
num registo interventivo e
polémico já presente em artigos
neste jornal, Irene Flunser
Pimentel pergunta: O Caso da
PIDE/DGS - Foram julgados os
principais agentes da polícia
política?
A memória da 2ª Guerra, por
sua vez, é recuperada por
Svetlana Alexievich em As
Últimas Testemunhas, publicado
pela primeira vez em 1985 e
agora dado à estampa pela
Elsinore. Histórico, em vários

Não-ficção sentidos, é também o


lançamento das Obras Pioneiras

Chovem
da Cultura Portuguesa, um
empreendimento monumental
coordenado por José Eduardo
Franco e Carlos Fiolhais (Círculo

almôndegas
de Leitores), que nos dará, num
período temporal dilatado, uma
selecção de nada menos do que
80 obras em 30 volumes,
resultado de um projecto levado
a cabo por uma equipa
Na não-ficção, dezenas de títulos. Destaque multidisciplinar de 174
elementos. Esmagador. No
para a história contemporânea, com terreno das memórias, realça-se,
quer pelo seu interesse histórico,
a Revolução Russa e outros temas. quer pelos conhecidos dotes
literários e pela originalidade
Por António Araújo estilística e fina ironia de um dos
nossos maiores diplomatas, Abril
de Outras Transições, de José
Cutileiro (Dom Quixote). Nos
estudos de género, as edições
Orfeu Negro trazem o
clássico Problemas de Género.
Feminismo e subversão da

C
omo acontece todos os contributo mais militante, engagé identidade, de Judith Butler, com
anos, a rentrée editorial e reflexivo, e por isso tradução de Nuno Quintas.
da época 2017/2018 é historiograficamente muito A literatura de viagens, agora
marcada por uma menos interessante, dado pela cultivada com afinco por várias
enorme quantidade de obra colectiva A Revolução Russa. editoras, num movimento que
títulos, que, no domínio 100 Anos Depois (Parsifal), de começou na Tinta-da-china e
dito do “ensaio” ou da “não- vários autores portugueses depressa alastrou a chancelas de
ficção”, se caracterizam por uma (António Louçã, Fernando Rosas, qualidade como a Relógio D’Água
qualidade muito desigual. Este Rui Bebiano, etc.). ou a Sextante, tem o seu apogeu
dilúvio livresco é prova da salutar Já que se reeditará Viagem à outonal em A Conquista do Inútil,
vitalidade dos editores União Soviética, de Urbano de Werner Herzog, da Tinta-da-
portugueses — ou, numa visão Tavares Rodrigues, de 1973, é china, casa livreira que, na
mais cruel, da sua insana pena ninguém se ter lembrado, secção das biografias, faz cair
temeridade. ao que sabemos, de republicar, dos céus O Anjo Pornográfico,
Destacando alguns dos títulos por ocasião dos 100 anos da inultrapassável reconstituição da
mais aconselháveis, salienta-se, revolução de Outubro, os textos trajectória de vida de Nelson
pela Quetzal, o terceiro volume de Jaime Batalha Reis na Rússia Rodrigues pela pena envolvente
da Bíblia (Antigo Testamento - Os dos sovietes, objecto de uma e sedutora de Ruy Castro.
Livros Proféticos), na controversa edição da Afrontamento Na ciência, a Gradiva a
mas — e até por isso — organizada no já longínquo ano pontuar, como é hábito: na
valiosíssima tradução de de 1984 por Joaquim Palminha colecção Ciência Aberta,
Frederico Lourenço. No campo Silva, e, já agora, de um recente e superiormente dirigida por
em que Lourenço se move com (como sempre) excelente artigo Carlos Fiolhais, Tecnologia
mais brilhantismo, os estudos do historiador Ernesto Castro versus Humanidade, de Gerd
clássicos, a Gulbenkian irá em Leal, saído há pouco na Leonhard, e, em Outubro,
breve reunir num único volume revista História Crítica. Viagem ao Infinito, de Martin
os Estudos de História da Cultura Falando de História, novidades Rees. Com A Estranha Ordem das
Clássica, de Maria Helena da de relevo, como o Coisas, António Damásio, na
Rocha Pereira, abrangendo assim polémico Tempo de Raiva. Temas e Debates, que nos traz
a cultura grega e a cultura História do Presente, de Pankaj também A Invenção da Ciência,
romana, até agora alvo de edições Mishra, produto típico da de David Wooton. E, mais para o
separadas. O aniversário da “historiografia global” dos nossos final do ano, a Guerra & Paz
Revolução Russa, por seu turno, é dias, com laivos anti- levará aos escaparates a
assinalado por duas obras de ocidentalistas, o correspondência filosófica e
autores estrangeiros — A importante Holocausto. Uma Nova sentimental de Hannah Arendt e
Revolução Russa, de Sheila História, de Laurence Rees, ou, Martin Heidegger, outra grande
Fitzpatrick (Tinta-da-china), e A centrando-se na realidade notícia.
Tragédia de um Povo. A Revolução nacional, e ambos através da Portugal, Setembro de 2017:
Russa, 1891-1924, de Orlando Figes clarividente Temas e Debates/ tantos livros para tão pouca
(Dom Quixote) —, a par do Círculo de Leitores, o regresso de leitura.
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A vida de Anne
Frank contra
tempos sombrios
U
Concebida por ma adaptação fiel ao livro.
Descreva-se assim a versão
produção de um filme de animação.
Aos poucos foram reconsiderando. mmmqm
gueto! Hei-de casar com ele!’ E, qua-
tro anos depois, casou. No Diário de
Ari Folman e em banda desenhada de O
Diário de Anne Frank, reali-
“Partilhei as dúvidas com a minha
mãe. Ela tem 95 anos e disse-me que Diário de Anne
Anne Frank a vida também está re-
presentada e é muito bonito o modo
David Polonsky, zada pelo cineasta Ari Fol- ia viver mais uns anos só para assistir Frank como a Anne Frank a observa. Penso
man e o ilustrador David à estreia nas salas de cinema”, contou Ari Folman e que nos envolvemos muito com esse
a mais recente Polonsky, que no próximo dia 21 che- Folman. “Sobreviveu ao Holocausto, David Polonsky lado, atentos as conjunto das perso-
adaptação em ga às livrarias portuguesas com o
selo da Porto Editora. Não aguardem
tal como o meu pai. É um aconteci-
mento que faz parte da história da
(Trad. Elsa T.S.
Vieira)
nagens, ao modo como se vestiam,
àquilo que sentiam, às suas idiossin-
BD de O Diário os leitores grandes experimentações
em termos temáticos ou formais. As
minha família, está entranhado meu
ADN. Acabei por aceitar. Não resisti.”
Porto Editora crasias. Normalmente, quando se lê
o livro, não se pensa nisto, mas no
de Anne Frank sequências, o estilo de desenho, as Polonsky entrou em sintonia com inimigo que aguarda lá fora. E somos
põe as imagens vinhetas e os balões adequam-se à
leitura tradicional de um livro de BD,
amigo, ainda que por outras razões.
“Nasci na antiga URSS, a minha famí-
muito influenciados pelo facto de sa-
bermos como a história acaba.”
em diálogo com procuram ilustrar, sobre o papel,
aquilo que a jovem Anne Frank es-
lia não se confrontou com o nazismo,
mas os tópicos abordados por Anne
A vida de Anne Frank no diário
gráfico de Ari Folman e David Po-
as palavras, creveu, num pequeno caderno, entre Frank continuam a ser muito impor- lonksy acolhe os anseios, as esperan-
12 de Junho de 1942 e 1 de Agosto de tantes e quis ver até onde podíamos ças e medos dos habitantes do anexo
para oferecer 1944. Não há desvios, omissões ou ir na sua tradução para outras lingua- (a irmã e os pais de Anne, a família
o retrato de novidades nesta versão, a primeira
em banda desenhada autorizada pe-
gens. Por outro lado, estou certo que
se não fôssemos nós, outros acaba-
van Daam, o dentista Albert Dussel),
ilustra os desentendimentos domés-
um quotidiano la Fundação Anne Frank. Nas suas
páginas, estão representados o quo-
riam por abraçar o projecto”. ticos, as peripécias provocadas pela
falta de alimentos ou pela ameaça dos
marcado pelo tidiano no anexo secreto de Ames- A beleza contra o terror ladrões e das denúncias. Chega mes-
desespero, o terdão, as relações da jovem com os
pais, os primeiros arroubos da ado-
Em Paris, Folman insistiu várias vezes
na palavra missão. Queria traduzir
mo a enfatizar a dificuldade das rela-
ções interpessoais, o sufoco a que a
humor, a ironia lescência, o humor, o medo, a guer-
ra e a ameaça da morte. Recorrendo
graficamente O Diário de Anne Frank
e levá-lo aos leitores mais jovens. Pa-
vida privada é sujeita sem a liberdade
de uma vida pública (as personagens
e o gosto pela à linguagem da banda desenhada, os ra que ficassem a conhecer o contex- Ouse-se, então, a pergunta: reflectirá vivem sem espaço entre elas). O livro
dois artistas conservaram o retrato to político e histórico em que o diário este livro a concepção que Anne não se furta ao desespero, mas con-
beleza. da intimidade de uma rapariga judia foi escrito, para que se confrontassem Frank nos deixou da beleza? traria-o, ilustrando o humor e a ironia
sob a escuridão da Europa. A fim de com as perseguições nazis, com o “Espero que sim”, diz Ari Folman. da própria Anne Frank, humanizan-
a voltar a lembrar. Holocausto, o terror da guerra, a fo- “Penso, por vezes, que a percepção do o drama das famílias (vejam-se as

José O reencontro de Ari Folman e


David Polonksy com O Diário de An-
ne Frank não se deu sem dúvidas e
me e a violência na Europa. Não fal-
tam pranchas que ilustram estas re-
alidades como Anne Frank as imagi-
geral das pessoas em relação à Segun-
da Guerra Mundial e ao Holocausto
é a de que nesses tempos não havia
páginas 80-81 ou 127). E para o equi-
líbrio desta relação, muito contribuiu
a sensibilidade de Folman e de Po-

Marmeleira, redescobertas, como ambos revela-


ram na apresentação do livro em
Paris, na Maison de la Poésie no iní-
nou e relatou nos anos que viveu
separada do mundo, em reclusão no
anexo que o seu pai, Otto Frank,
vida. Quando pensamos na vida nos
guetos judeus, só a concebemos par-
tir de imagens de corpos nas ruas ou
lonsky à escrita da jovem.

Entre as palavras
em Paris cio do mês. A dupla, que já se reuni-
ra em Valsa com Bashir (2008) e em
O Congresso (2013) — Polonksi foi res-
construiu. Acontece que nesta adap-
tação, os dois artistas decidiram res-
saltar os pensamentos, o humor, a
da fotografia da criança de braços no
ar no gueto de Varsóvia. Sabe como
os meus pais se conheceram? A mi-
e as imagens
“Enquanto relíamos o diário, fomos
reparando na qualidade da escrita.
ponsável pela direcção artística dos rebeldia da jovem (no seu inconfor- nha mãe vivia no gueto de Lodz [na Era boa literatura”, conta David Po-
dois filmes de Folman — começou mismo pressente-se já a inquietação Polónia], tinha 16 anos, quando re- lonsky. “Como ilustrador, tenho uma
por rejeitar o desafio da fundação. A que nos anos 60 agitaria a juventude parou num jovem que acabara de regra. Quando o texto é bom, não se
abundância de adaptações (algumas da Europa e dos EUA). Para tal, uma entrar com a sua família. Sabe por- desenha. Por isso, o leitor encontra
pouco recomendáveis), a populari- das estratégias passou por preservar, quê? Porque ele, além de ser bonito tantas machas de texto. Uma das ra-
dade do diário, a presença icónica com frequência, as palavras, como [risos], carregava a sua cama com a ras ocasiões em que não segui a regra
de Anne Frank, a sua apropriação aquelas que podemos ler na página ajuda do porteiro. Ela terá dito a uma aconteceu quando a Anne Frank usa
pela cultura pop desaconselhavam 113, a propósito da permanência da amiga algo como ‘este homem tem a a metáfora para descrever o isola-
a aventura que previa, também, a beleza contra a desgraça e a morte. coragem de trazer a sua cama para o mento no anexo [páginas 86-87]. É
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FUNDAÇÃO ANNE FRANK


O livro não se furta ao
desespero, mas contraria-o,
ilustrando o humor e a ironia
da própria Anne Frank,
humanizando o drama
das famílias

uma imagem com tal pathos que não


lhe resisti. Andei à volta dela duran-
te dias, modifiquei o desenho inúme-
ras vezes. No fim, fiz uma ilustração
que noutras condições não faria”.
Embora se vislumbrem referências
familiares no estilo de desenho e na
planificação das páginas, a banda
desenhada é uma arte recente no
percurso do ilustrador. “Há autores
que considero incontornáveis, e que
me influenciaram, como o Chris Wa-
re, o Daniel Clowes, os autores do
grupo Actus [fundado em 1995 em
Israel por Rutu Modan, autora de BD
premiada internacionalmente], mas
não é a área em que trabalho habitu-
almente. Fazer banda desenhada
ainda é para mim uma actividade
difícil, considero-a uma linguagem
muito complexa. Quando fiz a adap-
tação gráfica de Valsa com Bashir
apercebi-me disso. No cinema de
animação, existem várias imagens,
nenhuma é definitiva. Na banda de-
senhada, procura-se uma imagem
que congele um momento no tempo.
Também, por isso, decidimos expe-
rimentar menos com O Diário de An-
ne Frank. Optámos por pranchas
muito tradicionais e por uma abor-
dagem o mais despretensiosa possí-
vel. Já era um grande desafio traduzir
um texto preexistente em banda de-
senhada. Tentámos não ser muito
criativos com as imagens.”
A propósito de outras referências,
David Polonsky evoca os ilustradores
da revista satírica alemã Simplicissi-
mus, que entre os finais do século
XIX e a ascensão do nazismo não
poupou a hipocrisia da sociedade
alemã. E, entretanto, Ari Folman
junta-se à conversa sobre BD: “Tenho
tantas ideias. Gostava muito de fazer
a história dos refugiados palestinia-
nos em banda desenhada. E se esta
colaboração se mantiver, creio que
é possível desenvolver esse projecto.
A banda desenhada é uma grande
forma de arte. Como argumentista,
obrigou-me muito a pensar naquilo
que devia integrar ou excluir. E no
caso do diário de Anne Frank, em
que todas palavras são essenciais, foi
um grande desafio”. Sobre a versão
cinematográfica, cuja estreia está
prevista para 2019, o cineasta não
adianta muito: “A Kitty, a amiga ima-
ginária de Anne Frank, é a narrado-
ra. Ela acha que a Anne ainda está
viva e parte à sua procura. Nessa via-
gem, descobre o diário e lê-o num
museu. Nesse preciso momento, re-
gressa ao passado e o que veremos
nas imagens seguintes é o que está
neste livro. Tentámos manter no fil-
me essa apologia da vida de que já
falamos e que a Anne Frank conser-
vou no seu diário. Vai ser um filme
de animação para crianças”. Assim,
e até ao dia de estreia, Ari Folman,
na companhia de David Polonksy,
continuará firme na sua missão.

O PÚBLICO viajou a convite


da Porto Editora
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Música predominantemente
instrumental cada vez mais próxima
da ideia de canção clássica, eis os
Orelha Negra do terceiro álbum,
hoje editado e mostrado ao vivo
no Festival Iminente de Oeiras.
RUI VIEIRA

mmmmm

Orelha Negra
Orelha Negra
IIIEdição
Meifumado

A voz dos
N
ão é um processo rápido “O que vamos apresentar no festi- com rock (A sombra, Parte de mim)
mas os Orelha Negra não val está mais de acordo com o novo ou blues (Ready), ou até evocar mo-
prescindem dele. O primei- disco, num concerto de músicas no- mentos de intimidade (Claire, Santa
ro álbum foi lançado em vas, antigas e medleys, mas ainda não ela), e tudo desembocar numa can-
2010, depois de um concer-
to no MusicBox em Lisboa
e, o segundo, em 2012, depois de um Orelha será o acrescento final que só iremos
dar a conhecer nos próximos meses,
até porque a parte visual, tal como a
ção clássica soul-funk de belo efeito
(Última volta). “Todas as nossas pes-
quisas vão no sentido do hip-hop e
espectáculo no Centro Cultural de
Belém. Ou seja, optam por fazer con-
certos de apresentação dos discos Negra sonora, será um pouco diferente no
final do ano.” Ou seja, é como se o
grupo estivesse a trabalhar em per-
da soul, porque essa acaba por ser a
identidade, mas também existem
referências do rock, principalmente

é cada
ainda antes destes estarem finaliza- manência os novos temas, num tra- dos anos 70 e 80”, explica Fred.
dos. O mesmo aconteceu com o no- balho que parece nunca ter fim. “Neste disco aconteceu juntarmos
vo, editado hoje, e que tal como os Fred Ferreira ri-se. “Para nós aca- ideias de músicas diferentes numa
outros é homónimo. ba por ser confortável essa forma de só. Ou seja, pegar em samples de mú-
Em Janeiro do ano passado, deram
dois concertos (Centro Cultural de
Belém em Lisboa e Hard-Club no Por- vez mais operar. Agrada-nos marcar um con-
certo de apresentação com 90% das
músicas feitas e depois ir para estú-
sicas distintas em que havíamos tra-
balhado e juntar tudo numa só.”
Todos os intervenientes no projec-
to), onde já tocaram os temas agora
disponíveis, embora com roupagens
e opções sonoras diferentes. Agora,
finalmente, eis o terceiro álbum fi-
audível dio compor com tudo o que acháva-
mos que era necessário, da mesma
forma que estamos confortáveis em
tocar depois as músicas mais de
to têm outros afazeres. Sam e Cru-
zfader têm os seus percursos solitá-
rios, além de serem alvo de muitas
colaborações. Fred toca com Slow J,
nalizado. “Foi um processo mais de-
morado do que estávamos à espera, Vítor acordo com o resultado finalizado
em disco.”
integra a Banda do Mar, além de ter
estúdio e editora própria, produzin-
porque inicialmente não havia edi-
toras envolvidas nem prazos. Tam-
bém por outras circunstâncias, como
Belanciano O processo interessa, mas o que
conta no fim de contas é o resultado.
E neste caso é mais do que convin-
do vários nomes. João e Francisco já
se encontraram nos Cool Hipnoise,
fazendo hoje parte de várias forma-
a morte de duas pessoas que nos cente, com o quinteto a devolver- ções, como os Cais do Sodré Funk
eram próximas, além dos afazeres nos mais uma mão cheia de bons Connection ou Fogo-Fogo.
de cada um. As coisas foram-se atra- temas instrumentais, com motivos No entanto, quando se juntam é
sando, mas fizemos tudo com a cal- vocais, alguns deles não muito dis- como se as suas identidades se dilu-
ma necessária, o que acabou por ser tantes da estrutura de canção. Há íssem para fazer sobressair a ideia
bom”, esclarece Fred Ferreira. fragmentos vocais de soul, arranjos Orelha Negra, daí que, das fotografias
Esta sexta-feira, no festival Imi- luminosos que nos transportam pa- à música, fizessem questão de vincar
nente de Oeiras (que decorre até existe recriação do passado, mas não ra a época dourada do funk e um que o que interessa é o colectivo. No
domingo, com arte urbana e, entre apenas para o celebrarem, transfor- envolvimento sonoro global onde novo disco, mais uma vez, alguns
outros, com sessões DJ e concertos mando-o numa excitante aventura as técnicas de corte-e-cola do hip- apontamentos vocais que se ouvem
de Slow J, Scúru Fitchádu, Throes + no presente, numa altura em que a hop se misturam com um edifício são repescados de discos obscuros.
Shine, Capitão Fausto, Branko, Mar- música feita em Portugal já não é do- sónico orgânico que por vezes é en- Mas desta feita essas vozes parecem
fox, Xinobi + Moullinex, Bruno Per- minada de forma hegemónica pelo volvente, outras cósmico e outras ganhar um novo significado, aproxi-
nadas, Capicua, Carminho, Chulla- rock. Os efeitos globais da cultura avizinhando-se do épico. mando a música do grupo, mais do
ge, Rocky Marsiano, DJ Ride ou hip-hop e R&B e as sucessivas vagas Por norma o que desencadeia a que nunca, do sentido clássico da
Halloween), lá estarão Fred Ferreira de miscigenação sonora (do kuduro feitura dos temas é um motivo sono- canção, embora a combustão conti-
(bateria), João Gomes (teclas), Fran- ao afro-house) dos últimos dez anos ro ou vocal, em forma de sample, nua a ser a mesma de sempre, com
cisco Rebelo (baixo), Sam The Kid vieram alterar profundamente o pa- sendo a partir daí que o edifício se elementos soltos de funk, jazz, soul
(samples, sintetizadores) e Cruzfa- norama, como se constata aliás pela vai produzindo. Daí podem resultar e hip-hop, a aliarem-se para compo-
der (gira-discos) para tocar o novo composição do cartaz do festival Imi- temas que parecem captar o espírito rem uma máquina de ritmos e am-
disco e não só. nente, com curadoria do artista Ale- “disco” dos anos 1970 (Skylab, Ost), bientes contemporâneos atingidos
Dir-se-ia que na música do grupo xandre Farto (Vhils). ou procurar cruzamentos de hip-hop pela memória da música negra.
12 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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Um copo H
á uma frase autobiográfica lão] fato de treino? É uma coisa que
de Mário-Henrique Leiria não é nada musical. Mas o desafio
em que ele diz que, num também é um bocadinho esse: tan-
dado período da sua vida, to cantar este tipo de letras quanto
“foi casado e não fez mais cantar pessoas que não têm nada a

de canções
nada”. Pois Marco Rodri- ver com o ambiente fadista.”
gues, fadista, foi pai há um ano e A paternidade, pelo lado mais ca-
fez mais alguma coisa: um disco. ricato, está em Mal dormido. Em
Chamou-lhe Copo Meio Cheio, dedi- conversa com Pedro Silva Martins
ca-o “inteiramente” ao filho e não (dos Deolinda), surgiu um mote.

com fados é preciso ele explicar muito para se


perceber porquê. “Estou a passar
por uma fase muito leve, muito fe-
liz, provavelmente a mais feliz da
Disse-lhe Marco: “O mote vai ser,
não o amor incondicional de um
rapaz que acabou de ser pai, porque
isso já foi muito bem escrito e can-

dentro
minha vida, porque o meu maior tado, mas aquela parte caricata de
desejo era ser pai. E no último ano ser pai, aquela por que todos passa-
o que eu tenho sido mais é pai, an- mos mas de que só falamos entre
tes de ser artista.” amigos. Primeiro, dormíamos a noi-
E que disco é este, assim nascido? te toda, depois temos de nos levan-
Vemos, e ouvimos, três fados tradi- tar a meio da noite e de repente tro-
cionais — Fado Tamanquinhas, Fado peçamos num brinquedo que o ga-
Não é um disco de fado mas Pena, Fado Latino — mas até estes
têm letras de autores de fora do fa-
jo deixou ali. Pedi-lhe um tema que
falasse dessas coisas e passada uma
tem fados e outras canções de do, respectivamente Capicua, Car- semana estava escrito.”
lão e Luísa Sobral. Mas há também Com produção, arranjos e direc-
alma fadista. Copo Meio Cheio Agir, Boss AC, Pedro da Silva Martins ção musical de Tiago Machado
é o novo trabalho de Marco e Luís José Martins (ambos dos De-
olinda), Tiago Pais Dias e Marisa Liz
(piano e acordeão), o disco conta
com Frederico Gato (baixo), Nel-
Rodrigues, que amanhã à noite (Amor Electro), João Direitinho e
Guilherme Alface (ambos dos ÁTOA),
son Aleixo (viola), Pedro Viana
(guitarra portuguesa), Ivo Costa
canta no Festival Caixa Alfama Diogo Piçarra, Maycon Ananias (pro- (percussão) e Gonçalo Sousa (har-
dutor de Maria Gadú) e, excepção mónica). “Deixa-me muito conten-

Nuno Pacheco mais fadista, Jorge Fernando. “São,


assumidamente, músicas que nada
têm a ver com o fado”, diz Marco
te poder contar com os músicos
que estão comigo em estrada. Te-
mos feitos concertos incríveis e eu
Rodrigues ao Ípsilon. “Só que, es- queria muito que eles fizessem
tando eu há 17 anos no meio do fado, parte deste disco também.”
nas casas de fado, a minha interpre-
tação é fadista. E é esse o desafio: A matriz chama-se fado
cantar coisas que não têm estrutura Marco está satisfeito com o resul-
de fado nem são compostas por pes- tado. “Não mudei nada na minha
soas do meio, sem nunca deixar de forma de cantar. Porque se mudas-
se perceber que é um fadista que se já não seria eu a cantar. A matriz
está a cantar. Continuo a ser um fa- da música que eu faço chama-se
PEDRO FERREIRA

dista, ponto final.” fado. E lá por eu gravar agora um


Parte dos compositores ele já co- disco que só tem três fados tradi- mmmqm
nhecia. Luísa Sobral ou Boss AC já cionais, não deixei de ser o fadista
tinham colaborado com ele em dis- Marco Rodrigues. Já fiz outras in-
cos anteriores. Outros foram suges- cursões fora do fado, até com a
tão da editora, como Diogo Piçarra [cantora brasileira] Maria Gadú, e
ou Agir. “Eu já conhecia os miúdos achei que esta era a altura para ar-
dos ÁTOA, o Guilherme e o João, riscar noutro tipo de coisas.”
eles iam à Adega Machado ouvir- No Festival Caixa Alfama, que ho-
me. Um deles, o João, já tocou vio- je começa, ele está no cartaz do pal- Marco
la de fado, a avó dele era fadista, e co principal, onde cantará amanhã. Rodrigues
foi até por aí que ele começou a “Tinha obrigação de ter um cuidado Copo Meio
aprender o instrumento. Fiquei especial para apresentar este disco Cheio
muito contente com o Fado do co- no maior festival de fado. Vou apre- Universal
barde, que eles escreveram, porque sentá-lo, sim, mas num alinhamento
no fundo foi o tema que melhor po- muito especial. Começo num primei-
dia fazer a ponte entre um disco de ro bloco a cantar fados do meu re-
clássicos do fado, o meu anterior, pertório, como O homem do Salda-
para um disco como este.” nha (vou ter como convidado o Boss
AC, que o vai cantar comigo, foi ele
O “biscuit” de Capicua que o escreveu) ou A rima mais bo-
O disco abre com Não podia estar nita, vou buscar do disco anterior a
melhor, de Boss AC, cujo remate do Rosinha dos Limões, tudo isto com o
refrão faz lembrar certas rítmicas trio tradicional de fado. Num segun-
de Fausto Bordalo Dias. “Exacta- do bloco apresentarei este disco,
mente. E tem também uma parte especificando como é que aparece-
muito tradicional, de chula, acentu- ram alguns dos temas, e num tercei-
ada na bateria. Esse foi o primeiro ro bloco haverá mais um ou dois
tema e tinha de ser o primeiro do temas do novo disco mas irei acabar
disco. Porque eu queria que fosse com fado, e provavelmente com um
um disco feliz, up, alegre.” Mais dos mais tradicionais. Não quero
adiante, Capicua assina, de forma deixar de mostrar a minha música,
bem reconhecível, A tua estátua, e não tenho qualquer tipo de proble-
Carlão retrata um rufia transmuta- ma ou preconceito em relação a es-
do, em Vapores. “Essas letras têm te disco, mas tenho muito respeito
palavras que não estão sequer no por aquilo que as pessoas do fado
imaginário das pessoas do fado. Ini- querem ouvir. Só que, paralelamen-
cialmente estranhei, principalmen- te, quero mostrar-lhes também este
te a da Capicua, quando fala em novo desafio que decidi arriscar com
‘biscuit’ e em ‘croqui’. E [na de Car- este novo trabalho.”
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 13
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Os encontros “D
urante as filmagens,
escrevi a uma amiga a
dizer-lhe que tinha a
sensação deste filme
ser o meu canto do cis-
ne. E ela respondeu-
me ‘Pelo amor de Deus não faças

e desencontros
isso! Tens de fazer outro filme!’”
Volker Schlöndorff ri-se do outro
lado da linha, em Berlim. Ri-se por-
que a amiga a quem disse que Revi-
ver o Passado em Montauk (esta se-
mana nas salas portuguesas) tinha
qualquer coisa de “fim de ciclo” en-
tendeu mal a afirmação: “Não que-
ria dizer que este ia ser o meu últi-

de Volker
mo filme, apenas que era um filme
que fecha um capítulo da minha vi-
da. Mas é verdade que não tenho
outro projecto em mãos. Estou à
espera que apareça algo que eu sin-
ta urgência em fazer.”
A urgência é outra coisa quando
se tem os 78 anos de Schlöndorff (n.

Schlöndorff
1939). Uma das figuras centrais da
geração do Novo Cinema Alemão
dos anos 1960 e 1970, contemporâ-
neo de Werner Herzog ou Wim
Wenders, companheiro de vida e
de carreira de Margarethe von Trot-
ta (com quem foi casado 20 anos),
autor de um dos filmes mais acla-
mados do cinema alemão desse pe-
ríodo, O Tambor (1979), Palma de
Ouro em Cannes e Óscar de melhor
Autor de O Tambor ou A Honra Perdida de Katharina Max, filme estrangeiro.
interpretado Apesar desse passado, há uma
Blum, um dos veteranos do novo cinema alemão pelo sueco amargura que interrompe as garga-
Stellan
dos anos 1960 e 1970, assina com Reviver o Passado Skarsgård,
lhadas francas de 30 minutos de
conversa por Skype. Uma amargura
em Montauk, esta semana nas salas, o seu filme mais de viagem a
Nova Iorque
que vem da dimensão pessoal do
novo filme, Reviver o Passado em
pessoal, escrito com Colm Tóibín. para promover Montauk, e da recepção desastrosa
o seu novo que o filme teve no Festival de Ber-
romance,

Jorge Mourinha
lim, em Fevereiro passado. Schlön-
reencontra dorff evoca o mestre Billy Wilder
uma mulher do (1906-2002), o autor de Quanto Mais
seu passado, Quente Melhor e O Apartamento,
Rebecca (Nina com quem conversou longamente
Hoss) em 1988 para uma série televisiva

14 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017


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FOTOS DE FRANZISKA STRAUSS


(Billy Wilder, How Did You Do It?), e cista irlandês Colm Tóibín (Brooklyn, alização de Louis Malle, Jean-Pierre e sobre o facto de nem sempre nos
as suas perguntas sobre o fracasso.
“Durante todos os meus anos de
Nora Webster, Mães e Filhos...). Mais
um escritor para juntar a uma longa
“A minha natureza é Melville e Alain Resnais. “Eu podia
perfeitamente ter sido um cineasta
comportarmos como deve ser na
vida real.”
amizade com ele, íamos sempre dar
ao mesmo: porque é que às vezes
lista de autores que Schlöndorff fil-
mou - Robert Musil em O Jovem Tör-
sempre a de olhar da Nouvelle Vague e nunca ter re-
gressado à Alemanha,” explica,
Apesar disso, Schlöndorff está
longe de se esquivar às responsabi-
não conseguíamos contar uma his-
tória de maneira a que as outras
less (1966), Heinrich von Kleist em
Michael Kohlhaas (1969), Bertolt
para a história, para o “mas foram literalmente os meus
amigos, e mestres, franceses a em-
lidades. Definindo-se ainda hoje
como “animal político” empenhou-
pessoas se interessassem, apesar de
a querermos contar por ser uma
Brecht em Baal (1970, com Rainer
Werner Fassbinder no papel prin-
passado. Tudo na purrarem-me de regresso, a dize-
rem-me que eu tinha de ir fazer fil-
se, por exemplo, no salvamento dos
lendários estúdios Babelsberg do
história interessante? Às vezes, é só
uma questão de comunicação. E
cipal), Heinrich Böll em A Honra
Perdida de Katharina Blum (1975),
vida é sempre mes no meu país natal. “Já cá temos
cineastas franceses que cheguem!”,
camartelo na década de 1990 (ser-
viu até como director-geral do com-
tenho a sensação que as pessoas
não conseguiram perceber, com
Marguerite Yourcenar em Golpe de
Misericórdia (1976), Günther Grass
consequência de diziam, recorda entre risos. “Mas
ainda hoje me sinto em grande par-
plexo durante cinco anos e é actu-
almente presidente do conselho de
Montauk, do que é que eu queria
falar. No fundo, isto não tem nada
em O Tambor, Marcel Proust em A
Paixão de Swann (1984), o próprio
alguma coisa que te francês. Aliás, se pensarmos bem
nas coisas, o Werner Herzog é com-
administração), e tem apoiado a
chanceler Angela Merkel nas cam-
a ver com ter sucesso. É só sobre
comunicar com as pessoas.”
Max Frisch em Homo Faber (1991).
O desafio da literatura é uma
aconteceu antes. pletamente teutónico mas vive na
América há mais de 30 anos, o Wim
panhas eleitorais desde 2005. “Ago-
ra quando me ligou, apanhou-me a
É a comunicação, aliás, que está
no centro deste novo filme — uma
constante para o cineasta: “Sempre
me interessei muito por literatura,
Mas nunca olhei para Wenders é fascinado pela cultura
americana, eu sou meio francês, a
escrever cartas a amigos para colo-
carmos um anúncio no jornal em
história sobre desencontros român-
ticos e emocionais, sobre pessoas
e trabalhei muito com escritores vi-
vos, travei amizade com muitos de-
trás desta maneira. E Margarethe von Trotta ainda vive
em Paris. Talvez fosse por isso que
apoio a Angela Merkel. Não é que
ela precise, porque acho que vai
que “não podem mudar quem são”,
sobre um escritor que se passa o
les. Os escritores são muito seme-
lhantes uns aos outros, são extre-
é também por isso tínhamos tanto distanciamento ao
olhar para o nosso próprio país, tí-
ganhar na mesma, mas não tenho
medo nenhum de assumir publica-
tempo a castigar e que é “o seu pior
inimigo”.
mamente voltados para si próprios.
Forçosamente, tudo o que lhes acon-
que sinto que se nhamos todos um pé noutros paí-
ses, noutras culturas.”
mente o meu apoio, embora eu ve-
nha da esquerda e dos social-demo-
Max, interpretado pelo sueco
Stellan Skarsgård, de viagem a Nova
tece na vida acaba por ser matéria-
prima para o próximo livro. Achei
fecha um capítulo.” Não por acaso, Reviver o Passado
em Montauk é o exemplo típico de
cratas. Sempre fui assim desde mi-
údo. Quando estava na escola e via
Iorque para promover o seu novo que, agora, depois de ter conhecido uma moderna produção europeia: alguma injustiça a ter lugar, come-
romance, reencontra uma mulher tantos escritores, já podia retratar rodada em parte em Nova Iorque e çava logo a organizar movimentos”,
do seu passado, Rebecca (Nina Hoss), um autor como deve ser. Foi uma falada em inglês, com financiamen- diz entre risos. “Não tinha ainda
a paixão de uma vida que lhe fugiu das rodagens mais fáceis que já tive, tos franceses, alemães e irlandeses. nenhuma ideia de esquerda ou di-
por entre as mãos. É uma história porque sentia, finalmente, que sabia “O filme tinha de ser em inglês, por- reita, acho apenas que é um instin-
que foi buscar inspiração ao escritor do que estava a falar.” Ri-se. “Às tan- que a história teve realmente lugar to que é mais pessoal para algumas
suíço Max Frisch (1911-1991), cujo ro- tas, pensei que este é que devia ter em Nova Iorque,” aponta o realiza- pessoas, mais público noutras.”
mance veladamente autobiográfico sido o meu primeiro filme, não O dor, que dirigiu vários filmes nos Agora, enquanto não tem ne-
Montauk fala de um escritor que re- Jovem Törless! Se em vez de adaptar EUA (incluindo uma versão para nhum projecto em mãos, Schlön-
encontra a mulher que deixou fugir. Musil, tivesse escrito a história de televisão da Morte de um Caixeiro dorff vai fazendo a promoção de
Mas que é também uma história que um jovem alemão que chegava a Viajante de Arthur Miller com Dus- Reviver o Passado em Montauk, que
vem da vida do próprio Schlöndorff, França dez anos depois da guerra e tin Hoffman no papel principal e a define como o seu filme mais pes-
“cuja origem desvendei em parte na ia para um internato em plena guer- primeira adaptação da História da soal, olhando para o passado de
autobiografia que publiquei há 10 ra da Argélia, teria sido uma história Aia de Margaret Atwood). “E logo uma maneira que não é habitual
anos. Muitos anos depois de a ter fantástica e talvez nunca me tivesse após a primeira leitura do guião, o nele. “É porque me apanhou na ve-
perdido, reencontrei [essa mulher]. virado para as adaptações literárias. Stellan diz-me que ‘vou ter de ex- lhice!”, ri. “A minha natureza é sem-
Foi um evento muito forte na minha Mas dá-se um passo numa direcção, piar todos os pecados da minha vi- pre a de olhar para a história, para
vida, e fui confrontado com uma ima- e pronto...” da’”, ri-se Schlöndorff. “Ele queria o passado. Tudo na vida é sempre
gem de mim próprio muito diferente A direcção poderia mesmo ter dizer na sua própria vida, mas que- consequência de alguma coisa que
da que eu tinha.” sido muito diferente. Schlöndorff ria também dizer que tinha compre- aconteceu antes. Mas nunca olhei
Começou aí o guião de Reviver o estudou Ciências Políticas na Sor- endido perfeitamente que esta não para trás desta maneira. E é tam-
Passado em Montauk, assinado a bonne e cursou Cinema na escola Volker Schlöndorff é uma figura era uma história apenas sobre o re- bém por isso que sinto que se fecha
meias pelo realizador e pelo roman- IDHEC, tendo sido assistente de re- central do Novo Cinema Alemão morso, mas também sobre a culpa, um capítulo.”

ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 15


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Três peças para Tamar


Em Trilogia NACHO CORREA

Antropofágica,
a coreógrafa
uruguaia Tamara
Cubas engole
três peças
de criadores
brasileiros e
digere-as para
tentar descobrir
o quanto pode
ser transformada
pelo outro, o
quanto o seu
corpo está
disponível para
se deixar habitar.

Gonçalo Frota

A Trilogia Antropofágica de
Tamara Cubas, divida em três
actos (Permanecer, Resistir e
Ocupar), marca a abertura de
temporada do Teatro São Luiz
16 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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ara engolir e regurgitar


F
oi o desejo que primeiro lan- também uma relação de admiração obra. Por outro lado, o rewind acon-
çou a coreógrafa Tamara ou que reconhece no outro algo com tece à boleia dos materiais com que
Cubas na direcção das três potencial transformador.” os intérpretes criam uma relação em
peças que compõem a sua Era precisamente disso que Tama- cada acto: se na última peça o muro
Trilogia Antropofágica. O de- ra andava à procura. Não uma inspi- é a presença que medeia todos os
sejo porque era um imperati- ração pura e simples em costumes gestos, ao recuar-se para a etapa an-
vo físico de se envolver com as cria- canibais, mas uma ritualização e uma terior esse muro aparece destruído,
ções de Marta Soares, Marcelo Evelin forma de deglutir três obras marcan- caído, reduzido a um amontoado de
e Lia Rodrigues. Tanto assim que a tes na sua vida e permitir que vives- tábuas, enquanto em Permanecer as
vontade de Tamara era comê-las. sem dentro de si, a transformassem, tábuas já não existem, são substitu-
Entregou-se tanto a cada uma dessas passassem a circular no seu organis- ídas por um chão de carvão que su-
três peças/performances que queria mo como algo seu, para depois serem gere mais um passo na destruição.
tragá-las, carregá-las consigo, que fi- devolvidas ao mundo já digeridas e “De trás para a frente”, reconhece
zessem realmente parte de si. ruminadas, alteradas, provavelmente Tamara, “há um processo que vai
Esse impulso e o desenho em bru- irreconhecíveis. Daí a decisão de avan- desarmando espaço, estrutura e co-
to do gesto já lhe estavam entranha- çar com uma trilogia. Uma única peça lectivo. Da frente para trás o colecti-
dos no corpo quando começou a
pesquisar as formas de aproximação
não permitiria a Tamara concluir se
é, de facto, possível ser modificado Não é uma inspiração vo vai crescendo, mas acabamos por
só poder assistir de longe ao corpo
a Vestígios (Marta Soares), Matadou-
ro (Marcelo Evelin) e Pororoca (Lia
por outro de acordo com o enunciado
artístico que definiu. E daí que afirme pura e simples em em fúria de Ocupar.”
Nessa perspectiva de Ocupar (ver-
Rodrigues). Já em Multitud (2011) e
em Puto Gallo Conquistador (2014),
que “não tem tanto que ver com as
peças em si”. Cada uma das três para- costumes canibais, bo encontrado para traduzir avas-
sallar, que Tamara descreve como
o olhar de Tamara Cubas era atraído
pela “relação com o poder, a relação
gens da Trilogia Antropofágica é mais
uma estocada nessa investigação pes- mas uma ritualização algo que “tem que ver também com
a ideia de um rio que galga as suas
com o outro, a possibilidade de he-
terogeneidade no colectivo”, a “de-
soal ainda por terminar. Não arrisca
ainda assumir uma resposta final, em- e uma forma de margens e arrasta tudo consigo”), o
afastamento sabota a possibilidade
socidentalização” e o escarafunchar
nas feridas do colonialismo. E anda-
bora não esconda que a tentação, an-
tes de estrear em Lisboa o terceiro e deglutir três obras de o público se deixar afectar por
qualquer fúria ou qualquer outra
va então a rodear-se das palavras de
Espinosa e sobre a capacidade de
derradeiro objecto de regurgitação
artística, é a de se declarar transfor- marcantes na sua vida emoção. É como “com os corpos que
vemos na televisão, do Médio Orien-
afectar o outro, a primeira das pistas mada pelo processo. “Mas é ainda te, sempre longe de mais”, diz a co-
que queria desenvolver na sua trilo- uma especulação”, ressalva. reógrafa. O espanto e o horror po-
gia. Faltava-lhe, no entanto, a porta Será sempre uma especulação até dem até infiltrar-se na pele de quem
de entrada para as peças, o motor que Tamara Cubas assista ao terceiro assiste, mas a probabilidade de ser
conceptual que pudesse emprestar capítulo a acontecer diante do seu verdadeiramente afectado por algo
uma forma e sugerir um método. público. Por muito que, relata num que acontece “muito longe de nós,
E foi essa porta de entrada que des- português cheio de um balanço apre- cultural e geograficamente”, é escas-
cobriu numa conferência e no poste- endido em terras brasileiras, ao ter- sa. Enquanto em Resistir a vibração
rior contacto com a investigadora minar o último ensaio da residência daquilo que os performers fazem em
brasileira Suely Rolnik. E foi pela mão em que ficou fechada a revisitação palco é sentida fisicamente pelos es-
de Rolnik que Tamara chegou à boca. de Pororoca se tenha espantado a pectadores e em Permanecer o espec-
Ou seja, através do trabalho da inves- pensar: “Nossa, como é que a gente táculo nunca existirá se o público
tigadora, a coreógrafa foi empurrada chegou até aqui?” Como se, subtraí- não cumprir com a sua parte.
até esbarrar com a antropofagia, tal do todo o caminho entre os dois pon- Os verbos que Tamara Cubas asso-
como recuperada pelos artistas bra- tos, olhando para a partida e a che- cia aos três movimentos da Trilogia
sileiros que na década de 1920 se ena- gada, fosse impossível relacionar as cinco horas em que o espectáculo Antropofágica fornecem uma outra
moraram com o modernismo e des- duas obras. acontece (sem qualquer obrigação ordem de pistas. Mas reflectem so-
cobriram nos índios tupinambás e de “permanecer” na sala durante a bretudo uma escala íntima, da sua
nas suas práticas autofágicas um mo- Zoom out e rewind totalidade da apresentação), cada própria relação com as três peças
te teórico capaz de sustentar a arte A Trilogia Antropofágica de Tamara elemento do público foi convidado, originais, pelas quais Tamara Cubas
que queiram produzir e lançar para Cubas, divida em três actos (Perma- à vez, a colocar-se em frente à ban- diz ter um intenso amor — sendo que
o mundo — inspirada no que aconte- necer, Resistir e Ocupar), marca a cada e a deixar-se ficar um pouco cada uma das criações dialoga tam-
cia na Europa, mas engolindo-a e abertura de temporada do Teatro São naquele território, num jogo de reve- bém com o interior da trilogia. E dei-
desenvolvendo-a de acordo com um Luiz, em Lisboa, com as três peças a lação mútua. xam transparecer, por exemplo, o
contexto local. “Suely plantou em serem apresentadas de forma fasea- Em Resistir, a partir de Marcelo quanto Tamara estava embrenhada
mim as noções de antropofagia como da (15 e 16 de Setembro, 19 e 20, 23 e Evelin, Tamara Cubas coloca em ce- na investigação artística dos desapa-
uma solução, como um ponto de vis- 24) e integradas na programação da na cinco bailarinos que se deslocam recidos durante a ditadura no Uru-
ta para pensar as relações entre as Capital Ibero-Americana 2017. E po- sobre um monte de tábuas de ma- guai na altura em que viu Vestígios
pessoas”, conta Tamara Cubas ao Íp- dem ser observadas a partir de dois deira espalhadas pelo chão, enquan- pela primeira vez. Permanecer, Resis-
silon. Em grande parte porque “os movimentos distintos: zoom out e to o público assiste a partir da ban- tir e Ocupar são, por isso, um monó-
índios tupinambás têm uma relação rewind. Zoom out porque o lugar des- cada montada no palco mas não tem logo de Tamara Cubas com as ques-
muito interessante com a antropofa- tinado ao espectador se afasta cada qualquer intervenção directa no es- tões fundamentais que a preenchem,
gia — eles comem o outro porque re- vez mais do palco. Em Permanecer, pectáculo. No terceiro acto, inspira- um diálogo colectivo que empreende
conhecem que o outro pode modifi- primeiro acto criado a partir de Mar- do por Lia Rodrigues, os bailarinos com os bailarinos à procura da trans-
cá-lo, reconhecem a qualidade de ta Soares, a instalação depende da são já 11 e vêem-se diante de um mu- formação operada por cada obra e
afectação do outro em si”. “Então há passagem dos espectadores pelo ce- ro, enquanto os espectadores estão uma tentativa de enfiar pela goela
uma relação com esse outro, normal- nário. Em Montevideu, quando se já numa grande sala, num afastamen- abaixo do público uma obra que cada
mente o colonizador, mas em que há estreou em Maio de 2016, durante as to progressivo do epicentro de cada um digerirá por sua conta e risco.
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 17
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MARC COUDRAIS
A noite
Le Syndrome Ian,

C
hristian Rizzo (Cannes,
1965) lembra-se até hoje da
que esta sexta-feira primeira vez que entrou
numa discoteca — foi em
chega ao Rivoli, 1979 e só de lá saiu verda-
é o regresso de deiramente em 2008. Noite
após noite após noite após noite, ano
Christian Rizzo após ano após ano após ano, enquan-

será para
to o disco passava a new wave
ao tempo e ao e a new wave passava a house e a
house passava a drum’n’bass e o
lugar em que se drum’n’bass passava a electro, en-
definiu, possuído quanto o sexo se transformava em
sida e as drogas se tornavam sintéti-
por Ian Curtis, cas, o bailarino e coreógrafo francês
foi muitas vezes o último a sair, não
como bailarino e

dançar ou
só dessa discoteca fundadora em
como coreógrafo. Londres onde ouviu pela primeira
vez a voz “eléctrica (e epiléptica)” de
O que acontece Ian Curtis como, depois, nos anos
dourados do mítico Palace, em Paris
noite após noite às (sobre o qual Roland Barthes escre-
veria em 1978, no ensaio Au Palace
escuras na pista, ce soir: “Não era um clube como os
defende, faz parte

não será
outros, reunia num só lugar prazeres
normalmente dispersos: o do teatro,
do ADN da dança que suscita o olhar; a excitação do
moderno (...); a alegria da dança, o
contemporânea. encanto de possíveis encontros (...),
todo um espectro de sensações des-

Inês Nadais tinadas a fazer as pessoas felizes no


espaço de uma noite”), e, ainda mais
perto, no lugar onde a noite de Lis-
boa mudou para sempre (pergun-
tem-lhe porque é que a companhia
que fundou em 1996 se chama
18 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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São nove bailarinos


uniformizados pelos figurinos
de Laurence Alquier e
intermitentemente
iluminados pelas esculturas
de luz de Caty Olive

l’association fragile e ele lá explicará, Rizzo tem outra maneira de encaixar Syndrome Ian que vive desse choque: va lá, lembro-me de quando come-
como explicou ao Ípsilon, que o “e” a noite já bastante distante em que “Toda a minha dança vem da colisão çámos a ver nas discotecas pessoas
está lá “para afrancesar” o nome do viu uma multidão a transfigurar-se, entre esses dois estados corporais. É já doentes, porque apesar de tudo
bar do Bairro Alto onde teve uma vi- e não apenas fisicamente, sob a in- uma autoficção, claro, mas acho que era preciso continuar a dançar. Tam-
da portuguesa...). fluência de Ian Curtis, a mesma noi- me inventei como coreógrafo nesse bém me lembro de certas noites em
Foi lá atrás, esse passado, e no en- te que agora de certo modo recons- momento em que me recusei a esco- Londres em que seguramente mais
tanto está implícito em tudo o que o titui em Le Syndrome Ian: era uma lher entre o disco e a new wave.” de 95% das pessoas estavam em ecs-
actual director do Centre Chorégra- multidão que vinha do brilho incan- Le Syndrome Ian parte desse mo- tasy — embora seja preciso reconhe-
phique National de Montpellier Lan- descente, do groove sem ângulos rec- mento e dos gestos intemporais que cer que as drogas sintéticas também
guedoc-Roussillon veio a fazer de-
pois, das artes visuais à música, da
tos e da frontalidade sexual do disco,
e que o apocalipse intermitente das
“À noite inventamo- o coreógrafo lá foi resgatar (“aquele
balançar dos pés da esquerda para a
nos deram as raves e as festas de 24
horas a dançar sem parar.”
moda à criação de figurinos — tal co-
mo ele quis tornar explícito, todos
luzes strobe e a gravitas daquela voz
acabara de atirar sem grandes preli-
nos — a dimensão da direita, repetidamente, por exem-
plo”), e a que a simples transposição
Também foi disso que se lembrou
quando estava a escrever esta peça:
estes anos depois, em Le Syndrome
Ian, a peça cheia de som e de fumo
minares para um inferno repressivo
e depressivo não menos eléctrico,
metamorfose sempre para um palco desimpedido dá uma
escala que nunca poderiam atingir
sempre dançámos, sempre dançare-
mos. “A Manchester em que uma fi-
(e também cheia da solidão do fim
da noite quando lá fora já é dia, e do
nem menos dançável. “Era a minha
estreia, e eu tinha uma ideia de dis-
foi muito importante numa discoteca, para atravessar, da
euforia à ressaca, todas as vidas e
gura como o Ian Curtis apareceu —
uma figura que não podia verdadei-
pânico da manhã seguinte) que há
um ano estreou na Bienal de Lyon e
coteca que tinha a ver com brilhos e
com dourados, com divertimento e
para mim. E as danças todas as mortes que podem caber
numa noite na pista. Tinha de haver,
ramente dançar, por causa da
epilepsia, mas que fazia dançar os
que esta sexta-feira traz ao Rivoli,
abrindo a temporada do Teatro Mu-
descontracção; de repente entra
aquela música e ouve-se uma voz do
de discoteca sempre e há, fantasmas a assombrar este pal-
co onde os nove bailarinos uniformi-
outros — era uma cidade em profun-
díssima crise social e económica.
nicipal do Porto e fechando o tríptico
que o levou a explorar as relações de
além-túmulo, nada batia certo. Mas
foi como se tivesse ficado possuído
tiveram muito a ver zados pelos figurinos de Laurence
Alquier e intermitentemente ilumi-
Hoje, apesar do avanço ultraliberal,
do negrume geral, do terrível estado
tutela e de contaminação entre as
danças anónimas, vernaculares, e as
desde essa altura: a voz do Ian Curtis
inculcou em mim, de uma forma que
com isso.” nados pelas esculturas de luz de Ca-
ty Olive recriam não uma noite em
do mundo, as pessoas continuam a
dançar”, conclui Christian Rizzo. Tal-
danças de autor. eu diria patológica, esse paradoxo particular mas muitas noites genéri- vez o apesar esteja a mais — porque
Tal como o que lhe aconteceu pes- de ser possível dançar ao mesmo cas, com os seus genéricos (ou não foi exactamente num país em crise
soalmente noite após noite em dis- tempo, com o mesmo corpo, uma tão genéricos) pesadelos cheios de que ele próprio se viu a dançar até
coteca após discoteca não ficou na grande alegria e um grande negru- desaparecidos em combate: “As dis- de manhã pela última vez há dois
pista (no caso de Christian Rizzo, me”, conta ao Ípsilon. cotecas são lugares de vida mas tam- anos, não muito longe do palco onde
inscreveu-se numa biografia pessoal A peça em que quis contar essa bém são lugares de morte, como esta sexta-feira nos mostrará que a
que é paralelamente um corpo de história tão pessoal quanto colectiva ainda recentemente em Paris e em noite será para a dançarmos até ao
trabalho artístico perfeitamente cau- tem ambos. E tem também aquilo Orlando, com os atentados. Eu esta- fim ou não será.
cionado), também colectivamente as que sempre lhe pareceu mais fácil à
práticas desclassificadas, e às vezes noite do que durante o dia: “À noite
quase secretas, do clubbing se infil- inventamo-nos — a dimensão da me-
traram na gramática da dança con- tamorfose sempre foi muito impor-
temporânea — ao ponto de até lingua- tante para mim. E as danças de dis-
gens como o voguing e o twerk, que coteca, por serem uma actividade
nos tempos pré-históricos da segre- nocturna, e portanto escondida, sem-
gação homossexual (foi há quê, 30 pre tiveram muito a ver com isso. No
anos?) pareceram para sempre con- meu caso, a discoteca era também o
denadas à clandestinidade do ball- lugar onde se cruzava tudo o que me
room, se terem tornado mainstream. interessava: a dança, a música, a mo-
Três anos e três peças depois — antes da.” Mas é diferente olhar para ela
de Le Syndrome Ian houve a visita, agora, como bailarino e como core-
para ele muito contranatura, às dan- ógrafo, à procura de um vocabulário
ças comunitárias de raiz folclórica de e de uma gramática que possam pôr
D’après une histoire vraie (2013) e a uma peça com nove bailarinos a falar
visita às danças de casal, com passa- articuladamente em cima de um pal-
gem pelo salão, de Ad Noctum (2015) co: “Há muitas questões em jogo no
—, o coreógrafo francês confirmou a clubbing: questões de comunicação
sua intuição inicial, uma intuição física em espaços muito escuros e

JORGE PALMA
com muitas noites sem dormir em muito reduzidos, questões de afirma-
cima, de que nada separa verdadei- ção pessoal e de relação com o grupo,
ramente as danças vernaculares das questões de gestão do nosso olhar e
danças não-vernaculares: “É uma da recepção do olhar do outro. E tam-
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dupla história, a da dança contem- bém questões artísticas, porque as


porânea — como na molécula do danças de discoteca são uma activi- BERNIE & THE ROOSTERS, BOCA DOCE
ADN, são duas hélices que se cruzam dade criativa, mesmo que não te- DJ B.R.O.S., DUPLO SENTIDO, SMOOTH
ORQUESTRA, INFANTUNA CIDADE DE
constantemente e avançam em para- nham por trás a vontade consciente
lelo. Para mim, a diferença não é de de montar um espectáculo.”
hierarquia, é só de contexto.” Para fazer raccord com o tempo e VISEU, ST. DOMINIC'S GOSPEL CHOIR
Mas talvez ainda seja cedo para com o lugar em que esta história co-
essas epifanias (até porque houve meçou, Christian Rizzo foi buscar EXPOCENTER VISEU INFO 925981875 osmelhoresanos.com
outra antes): é 1979, estamos em Lon- praticamente tudo — menos a banda-
dres, e um Christian Rizzo de 14 anos sonora propulsora dos Cercueil (Pé-
entra pela primeira vez numa disco- nèlope Michel e Nicolas Devos) — a
teca para nunca mais querer de lá essa noite de 1979 em que assistiu ao
sair. Entremos com ele. choque entre “as formas redondas e
PATROCINADORES

hiper-sexualizadas” do disco e “os


Alegria e negrume corpos mais eléctricos, muito que-
Agora que aprendeu a viver de dia brados, quase abstractos” da new
“e não é nada mau” — mas até se tor- wave, corpos que dançavam a partir
nar no prazer que é hoje, admite, “foi da exposição da sua própria fragili-
um grande choque...” —, Christian dade. Na verdade, diz, não é só Le
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 19
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Lear O rei que


foi velho
antes
A partir de
Shakespeare,
Bruno Bravo
de sábio
e os Primeiros
Sintomas levam
Lear ao Teatro
Nacional D.

A
11 de Fevereiro de 2013, nu- cuidados / para outorgá-los a forças meça a minar a natureza humana. O seu leito, e não adoça as palavras,
Maria II. Uma ma reunião com dezenas de
cardeais com vista à apro-
mais jovens / enquanto, aliviados,
rastejamos / para a morte” para fa-
rei quer antes de mais provas de adu-
lação e não de fieldade ou de verda-
fingindo que não haverá outro ho-
mem digno do seu amor senão o pai.
peça jogada no vação da canonização de
três beatos um dia corri-
zer ressoar essa memória recente
de um Papa que não esperou pela
deiro amor. Na verdade, nem exige
provas, mas apenas palavras que lhe
A honestidade vale-lhe ser deserda-
da e proscrita, algo que o encenador
tabuleiro do queiro no Vaticano -, Bento morte para parar. Alguém que ab- inchem a vaidade. Diante de tal pe- resume a uma ideia de que “a verda-
XVI apresentou de surpresa a sua dica do trono e desce voluntaria- dido, Goneril (a mais velha) jura amá- de, no sentido mais puro, mais ino-
poder, infiltrada renúncia ao pontificado. Antes de mente, escolhendo o seu sucessor, lo “não menos do que a vida, a graça, cente e mais razoável é uma zona
pela demência, Bento XVI, é preciso recuar 598 anos
para encontrar o Papa anterior (Gre-
no caso de Lear. Para Bravo, “é uma
coisa sem precedentes, muito mo-
a honra e a beleza, e a saúde, tanto
quanto um filho amou jamais ou pai
que não tem lugar na sociedade e
nas relações humanas”. Para Bruno
pelas traições gório XII) a ter abdicado do lugar derna e muito bonita, de um rei que sentiu”; Regan (a do meio) professa- Bravo, a empatia imediata gerada
máximo da Igreja Católica. Joseph quer largar o reino, um rei que quer se “hostil a qualquer gozo, outro” e por Cordélia decorre, no entanto,
filiais e por Ratzinger, fazendo uso do seu latim, ser homem porque um rei nunca é diz encontrar “felicidade unicamen- de uma postura algo desproposita-
uma relação confessou-se cansado e sem forças
para prosseguir com aquela missão
um homem”.
No processo de escolha do suces-
te em amar [sua] Alteza”; Cordélia (a
mais nova), pelo contrário, dinamita
da, vinda de alguém que “diz o que
lhe vai na cabeça e isso é algo que
conflituosa com aos 85 anos. O fumo branco veio de-
pois com Francisco.
sor, que faz também pensar na pre-
paração da passagem de testemunho
a sua resposta ao cingi-la a um “na-
da”, afirmando-se incapaz de “elevar
não se pode fazer”.

a verdade. É em Bento XVI que o encenador dentro dos grandes grupos económi- o coração até à boca”. Nem déspota
Bruno Bravo, da companhia Primei- cos ou em regimes autocráticos, Lear As duas primeiras serão compen- nem coitado
ros Sintomas, pensa inevitavelmen- pede às suas três filhas uma declara- sadas por Lear com terras e bens, Há algo de profundamente insidioso

Gonçalo te ao ver-se diante do Rei Lear que


Shakespeare escreveu em 1606. Bas-
tariam algumas das suas primeiras
ção do seu amor por ele, prometendo
compensar aquela que mais o amar.
E é aí, logo nos primeiros minutos do
Cordélia será castigada por dizer a
verdade, por acreditar que, ao con-
trário das suas irmãs casadas, ante-
nisto que Shakespeare, quatro sécu-
los antes, nos propõe: se a empatia
com Cordélia é inevitável e instantâ-

Frota palavras “(.) e é nosso firme intento


sacudir / da nossa idade afazeres e
20 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
clássico de Shakespeare, que o seu
texto devastador sobre o poder co-
cipa um futuro em que dividirá o seu
amor com quem vier a partilhar o
nea pela recusa em jogar o jogo da
adulação e em ousar verbalizar a ver-
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É em Bento XVI que o encenador


Bruno Bravo, da companhia
Primeiros Sintomas, pensa
inevitavelmente ao ver-se
diante do Rei Lear que
Shakespeare escreveu em 1606

ga carreira n’O Bando, fazendo-se


corpo e voz do monarca que Bruno
Bravo resiste a ver quer como déspo-
ta, quer como pobre coitado aban-
donado pelas filhas: “Acho o Lear
terrível, ele diz coisas absolutamen-
te incríveis às filhas.” Indiferente ao
género, Bruno estava mais interessa-
do na idade do/a protagonista e nu-
ma escolha que sublinhasse a hipó-
tese de “Lear poder ser entendido
como uma figura ou um signo fun-
dador, a primeira grande figura de
poder europeia”. Ainda assim, reco-
nhece, não será despicienda a possi-
bilidade de curto-circuitar uma per-
sonagem cujas falas raiam, por vezes,
a misoginia, cavando ainda mais fun-
do um nítido conflito interior.
Numa anterior incursão em
Shakespeare, ao dirigir o Teatro Griot
em Tempestade, Bruno Bravo expe-
rimentara já este namoro com as pa-
lavras que, então, se entregavam a
um inebriante onirismo. Em Lear,
peça que no seu entender concentra
“carne, sangue, emoções maiores do
que o homem e poesia”, e é de uma
complexidade extremamente exigen-
te, também vê Lear “desvairado na
tempestade” é ele que “ao falar da
tempestade a provoca”. Mas é neste
torvelinho de “loucura não demen-
cial” em que a personagem se vê me-
tida que o encenador detecta a emer-
gência da verdade e da clarividência.
Da mesma forma que é apenas ao
cegar que Gloucester, um dos seus
súbditos, vê finalmente, depois de
lhe arrancarem os olhos.
Lear, a versão traduzida por João
Paulo Esteves da Silva que os Primei-
ros Sintomas levam ao Nacional de
FILIPE FERREIRA

16 de Setembro a 15 de Outubro, de-


sembaraça-se de parte do enredo de
leitura mais política, não explorando
a retirada de Cordélia para França e
dade, consciente ou inconsciente das uma decisão afectiva e narcisista, Antes de Lear, o texto canónico o seu posterior regresso a Inglaterra
consequências que daí advirão, esse pode também entender-se a desilu- que Bruno Bravo tinha imaginado para salvar o pai encarado como
acto será mais espelho do desejo de são com Cordélia por não aceitar apresentar no Teatro Nacional D. uma invasão dos gauleses. E elimina
cada espectador gostar de se imagi- encaixar no perfil de líder que Lear Maria II era Os Persas, tragédia clás- também os duques e maridos de Go-
nar assim do que de o ser realmente. desenhou à sua medida. “E acho que sica de Ésquilo. Mas os sucessivos neril e Regan, preferindo centrar as
Afinal, quantos de nós não dirão as
palavras que de nós se espera, con-
“Lear poder ser é por isso que esta é, para mim, uma
das peças mais pessimistas de sem-
adiamentos do projecto obrigaram
a pensar num outro espectáculo e,
cenas nas três irmãs. Tudo isto tem
implicações na forma como a peça
tornando a verdade, se souberem
que, no final, haverá uma compen-
entendido como pre”, diz Bruno Bravo. “Talvez ele
esteja certo, porque a verdade não
mais tarde, a aproximação que se
deu entre os Primeiros Sintomas e a
caminha para o fim, um fim marcado
por mortes, mas mortes pouco cla-
sação por essa habilidade?
Talvez a honestidade não seja tam-
uma figura ou um pode entrar no jogo político.”
Mesmo quando Edgar, nos últimos
decana actriz Eunice Muñoz foi su-
gerindo o Rei Lear com que Bruno
ras, ficando a mais essencial num
limbo de dúvida e incerteza que re-
bém uma qualidade valorizada por
Lear para um ocupante do trono.
signo fundador, instantes, apela à verdade no seu
discurso (“Obedeçamos à triste es-
Bravo convivia há muito na tradução
que Álvaro Cunhal fez durante os
cordam a Bruno o cair do pano no
western Shane.
Escolhendo a sua sucessão, Lear não
escolhe necessariamente qualidades
a primeira grande tação / dizendo o que nos vai no co-
ração”), o encenador vê nessas pa-
anos 50 no cárcere. “Andava à pro-
cura de que texto poderia ser inte-
Em Shane, filme de George Stevens
de 1953, os últimos planos mostram
humanas, mas virtudes políticas que
possa reconhecer como essenciais
figura de poder lavras um prenúncio de tempos ter-
ríveis, um futuro que se matará a si
ressante e lembrei-me do Lear e da-
quilo que poderia ser a Eunice dizer
um cowboy que segue no cavalo,
cambaleia um pouco e não é claro se
para presidir aos destinos do reino.
E é possível que, na sua cabeça que
europeia” mesmo. Talvez por Edgar assumir a
cartilha de um cinismo político que
estas palavras”, conta. “Só que à me-
dida que o projecto se foi desenvol-
foi ou não atingido por um tiro. Tam-
bém em Lear a morte se instala como
se perde em tempestades e voga em
direcção à loucura “Não devias ter Bruno Bravo (muitas vezes) assiste aos sobrevi-
ventes deste mundo; quem sabe se
vendo chegámos à conclusão de que
poderia ser demasiado para o estado
algo que não é totalmente líquido,
entre o sonho, o delírio e a verdade.
sido velho antes de seres sábio”, diz- por o encontrarmos num ponto ain- de saúde da Eunice, apesar de se en- A verdade que, durante toda esta
lhe o Bobo -, haja um pensamento da anterior a ser vergado e esmaga- contrar bem.” peça, é posta em causa e manobrada
frio de premiar a gestão e cumpri- do pela crueza das funções em que Em vez de Eunice, é Paula Só que enquanto ferramenta do poder. Até,
mento de expectativas. Mais do que será investido. vemos no palco, actriz com uma lon- por fim, já não ser necessária.
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 21
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R
PHILE DEPREZ
achel, 8 anos: “Acho que
toda a gente merece o seu
lugar no palco, porque de
outra forma não é justo.”
Peter, o único adulto em
cena: “Mas o teatro não é
justo, é cruel.”
Isto é Milo Rau a olhar-se ao es-
pelho. E é Milo Rau a resumir aqui-
lo que anda a fazer desde 2007, ano
em que fundou a companhia de te-
atro documental e cinema IIPM In-
ternational Institute of Political
Murder, com a qual tem construído
espectáculos no mínimo desconfor-
táveis, no máximo fracturantes, a
partir de acontecimentos e teste-
munhos reais, semeando vários ad-
miradores e detractores pelo cami-
nho. “Acho que o teatro é algo que
acontece através da crueldade do
real. Pode mostrar como atravessar
essa injustiça e chegar até algo que
seja, de alguma forma, mais justo,
no sentido de se perceber o que
aconteceu e como se pode fazer di-
ferente”, diz ao Ípsilon, numa con-
versa curtíssima, o encenador, en-

Mariana saísta e realizador suíço.


Para ele, “isto é o teatro” — e é,
sobretudo, Five Easy Pieces, “peça

Duarte justa onde o justo é muito cruel”,


que traz este sábado e domingo ao
Teatro Maria Matos, em Lisboa, su-
bindo depois ao Teatro Campo Ale-
Em Five Easy gre, Porto, nos dias 22 e 23. Este
espectáculo, protagonizado por
Pieces, um grupo crianças e adolescentes entre os oi-
de crianças to e os 13 anos e por um adulto, é
uma exumação do caso do pedófilo
reflecte sobre e assassino belga Marc Dutroux, que
nos anos 90 pôs a Bélgica e outros
o caso real do países da Europa em sobressalto,
pedófilo belga colados à televisão. Milo Rau tam-
bém estava lá. “Eu era adolescente
Marc Dutroux. na altura. Há uma geração de uma
parte da Europa que cresceu com
O teatro este caso”, conta o encenador.
“Lembro-me de que era o início da
documental de paranóia pedófila trazida a público
Milo Rau chega e, ao mesmo tempo, o começo de
uma certa filosofia anti-elitista. No
este fim-de- caso do Dutroux as pessoas viram
que havia uma rede infiltrada no
-semana ao Maria governo e corrupção na polícia.”
Matos, e uma Há muito que Milo Rau, sociólogo
feito encenador, queria pegar nes-
semana depois ta “história traumática”. O passo
foi dado finalmente a convite do
ao Campo Alegre. centro de artes belga CAMPO, no

O trauma e o teatro
vistos por dentro
22 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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âmbito do programa de comissões julgamento The Moscow Trials Este espectáculo é encenador suíço. Houve investiga- que aprenderam previamente.
a artistas para trabalharem com (2013), sobre a liberdade da arte (ou protagonizado por crianças ção no terreno, incluindo conversas Milo Rau não esconde que há aqui
crianças — That Night Follows Day a falta dela) no reino de Putin, re- e adolescentes entre os oito com o pai de Marc Dutroux (que um jogo de poder e manipulação,
(2007), de Tim Etchells, foi um dos cusada pelos tribunais da vida real; e os 13 anos e por um adulto curiosamente vivia à frente do teatro que acaba por gerar um confronto
espectáculos que resultaram desta nem de Hate Radio (2011), um dos onde decorriam os ensaios) e alguns com os crimes da narrativa. “Por um
iniciativa (à época intitulada Victo- vários projectos de Milo Rau desen- familiares das vítimas. Sem ceder à lado queres usar a frescura das
ria) e que passou pela Culturgest volvidos na África Central, este so- pornografia emocional, a peça é crianças, por outro lado o teatro —
Lisboa em 2008. Five Easy Pieces, bre a estação de rádio RTLM, uma pautada por momentos de interven- pelo menos a minha forma de o fa-
estreado em 2016, foi uma espécie ferramenta usada no genocídio do ção anticolonial — quando Elle Liza zer — só resulta quando é muito
de alinhamento cósmico. “Desde Ruanda — este espectáculo, em que dá voz a um discurso de Patrice Lu- preciso e quando espelha a história
há 15 anos que faço co-produções
com teatros belgas mas nunca tinha
sobreviventes do massacre puse-
ram em cima da mesa os efeitos Five Easy Pieces mumba, líder independentista do
Congo cujo assassínio foi patrocina-
em questão”, diz o autor. “Foi inte-
ressante trabalhar com uma série
tido oportunidade nem de traba-
lhar nesta história nem de trabalhar
cumulativos do racismo e do neo-
colonialismo, passou pelo Maria é sobretudo “uma do por uma joint venture entre a Bél-
gica e os Estados Unidos — e por
de pequenos anarquistas sobre pre-
cisão.” E essa foi a parte “emocio-
com crianças. Tudo se uniu”, ex-
plica Milo Rau, que irá assumir a
Matos em 2013.
Five Easy Pieces é sobretudo “uma forma de catarse”, momentos humorísticos — quando
Maurice, o miúdo que nasceu no
nalmente mais complicada”. “Foi a
primeira vez que fizeram teatro, tan-
direcção do Teatro Nacional de
Gent na temporada de 2018/ 2019.
forma de catarse”, com muito de
Antonin Artaud lá dentro, diz Milo diz o encenador. banho quando o pai estava a comer
esparguete, diz ter tossido muito na
to o elenco original do espectáculo
como o segundo grupo que entre-

Catarse
Rau. Neste processo, as crianças —
que já conheciam bastante bem a Neste processo, barriga da mãe. Passado uns minu-
tos, está a tossir no papel de um ho-
tanto formámos” (estão ambos em
digressão — os nomes que aqui usa-
Apesar de não ser de fácil digestão,
Five Easy Pieces não é das criações
história de Marc Dutroux — eram
“das poucas pessoas livres do trau- as crianças — que já mem mais velho, o pai de Dutroux.
Porque isto também é um espectá-
mos são do elenco original). Tam-
bém para Milo Rau foi todo um pro-
mais corrosivas de Milo Rau. Goste-
se ou não, é difícil passar ao lado
ma”. “Para elas foi algo que acon-
teceu há muito tempo. Ao longo da conheciam bastante culo sobre teatro.
Dividido em cinco lições orienta-
cesso de aprendizagem. “Aprendi
muito sobre o que é o teatro, do
do seu currículo: num dos últimos
trabalhos levou a palco The 120
peça vês estas pessoas, connosco,
a mostrar o que há por trás do trau- bem a história das por um adulto (Five Easy Pieces
é, originalmente, o título dos exer-
ponto de vista técnico-filosófico.”
Um espectáculo construído por
Days of Sodom, inspirado no livro e
no filme homónimos de Marquês
ma”, refere o encenador, subli-
nhando que as crianças tiveram de Marc Dutroux — cícios de piano de Stravinsky para
crianças), o primeiro capítulo é so-
crianças e adultos, para ser visto por
ambos, é, segundo o encenador, “a
de Sade e de Pier Paolo Pasolini,
respectivamente, e interpretado
acompanhamento de psicólogos.
“Elas sabiam muitas coisas sobre o eram “das poucas bre mimetismo, o segundo sobre
como construir uma personagem,
melhor maneira de experimentar o
que é possível no teatro”.
por actores com síndrome de Down
da companhia suíça Teatro Hora, o
caso. Sabiam detalhes. O que são
testes de ADN, o que fazer depois pessoas livres o terceiro sobre a relação entre o
actor e o encenador, o quarto sobre
No final de Five Easy Pieces há
uma conversa sobre como gosta-
que levantou poeira na apresenta-
ção em Zurique e em alguma im-
de uma violação. Foi algo inespe-
rado para mim, que sou pai”, con- do trauma” como activar sentimentos de empa-
tia, medo e perda em palco (duas
riam de morrer, tiros e música de
Rihanna. O teatro é cruel, dizia-se
prensa. fessa Milo Rau. crianças interpretam pais que per- no início desta história toda, mas
Five Easy Pieces também não é o Este espectáculo conta com o fô- derem os filhos), o quinto sobre também é uma forma de reflexão
embate político perfurante da peça- lego documental característico do como se revoltarem contra tudo o para chegar a outros caminhos.

ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 23


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Como
ver os
nossos
Mirós
O espaço mais flexível
do Palácio da Ajuda
permite mostrar em
Lisboa a Colecção Miró
na íntegra. O Museu de
Serralves está já a pensar
na próxima exposição
do artista e a estudar
como manter esta nova
colecção portuguesa viva
e aberta ao diálogo.

Isabel
Salema
A Festa dos
Pássaros e das
Constelação,
um óleo sobre
tela de 1974
com mais de
quatro metros
de altura
24 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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É
quase inevitável que quem bém para uma guache e tinta-da-
tenha visto a exposição de Jo-
an Miró na Casa de Serralves,
“É importante ter china sobre papel em que a linha
negra do contorno parece infiltrada
no Porto, vá à procura das
obras “novas”, chamemos-
a consciência de pela mancha que ganha contornos
de rizoma. Há duas obras de 1937,
lhes assim, ao percorrer a Ga-
leria D. Luís do Palácio da Ajuda,
que esta colecção uma delas feita sobre cartão, e outra
dos anos 60.
uma vez que em Lisboa é mostrada,
pela primeira vez, a Colecção Miró
precisa de muita Novos parceiros
portuguesa na totalidade — 85 obras,
entre pinturas, desenhos, esculturas,
atenção, há todo um A colaboração com a Fundação Miró
“é uma coisa naturalíssima”, diz ao
tapeçarias (os famosos sobreteixins)
ou colagens. São mais nove.
estudo a fazer sobre PÚBLICO Ana Pinho, presidente da
Fundação de Serralves, quando lhe
Après les constellations, duas pin-
turas feitas em 1976 sobre masonite,
as necessidades perguntamos se o acordo com Bar-
celona já está fechado, lembrando a
um tipo de aglomerado de madeira
em que o pintor explorou a superfície
de conservação exposição Os Mirós de Miró feita em
1990 no museu do Porto em estreita
rugosa, estão entre as novidades mais
interessantes. Estreitas e compridas,
das tapeçarias, colaboração com Barcelona. “Não
está ainda acordado, mas é possível.
com um formato pouco habitual mas
que associamos a Miró (14cmx79cm
dos desenhos, Há todo o interesse em que partes da
colecção sejam mostradas noutros
e 14cmx54cm), paramos obrigatoria-
mente em frente a elas, não só por
das molduras, das sítios.”
Serralves quer voltar a mostrar os
causa deste jogo das novidades, mas
porque o curador desta exposição
obras sobre papel. Mirós no Porto já em 2018, mas ainda
não há uma data definida para a no-
— que é a mesma nos dois espaços
apesar dos pequenos ajustamentos
Isto tem de ser va exposição, esclarece Ana Pinho.
O arquitecto Álvaro Siza, autor do
— está visivelmente entusiasmado
com as obras sobre masonite, um
pensado ao mesmo layout da primeira exposição que
teve lugar na Casa de Serralves de
material industrial surgido na primei-
ra metade do século XX. Robert Lu-
tempo que fazemos Outubro de 2016 a Junho deste ano,
e que atraiu 240 mil visitantes (um
bar prepara uma exposição para da-
qui a quatro anos na Fundação Miró
a programação quarto de milhão, sublinha o cura-
dor), está a preparar a moradia mo-
de Barcelona, de que é administra-
dor, dedicada às obras realizadas so-
de apresentação dernista situada no parque, que é
património classificado, para poder
bre este suporte inusitado explorado
pelo artista catalão (1893-1983).
da colecção” receber os Mirós de uma forma per-
manente. Não se espere, diz Ana Pi-
O curador já tinha parado minutos nho, uma exposição com as mesmís-
antes numa sala a que chamou “a simas obras: “Queremos mostrar
capela” — e que junta meia dúzia de coisas diferentes, em conjunto com
trabalhos sobre masonite —, um dos outras instituições, se não a co-
muitos espaços que compõem os 700
metros quadrados por onde se espa-
lha esta nova versão de Joan Miró:
Materialidade e Metamorfose. O inte-
resse mais demorado não foi só para
elogiar esta luz mais confessional do
espaço de Lisboa, presente em mui-
tas salas da Galeria D. Luís, mas para
o curador sublinhar o potencial de
colaborações que a Colecção Miró
traz a Serralves.
Tal como a exposição portuguesa,
a nova mostra prevista para depois
de 2020 também vai explorar os ma-
teriais e os suportes e a sua relação
com as ideias, mas em Barcelona ha-
verá um enfoque nas 27 obras que o
artista fez sobre masonite e o curador
Concerto
espera conseguir juntar todas as re-
alizadas pelo pintor catalão, incluin-
do as oito de Portugal.
“Estas pinturas são uma metáfora
para um colapso social. Os monstros
de Outono
entram na sua arte”, explica o comis-
sário sobre esta série de pinturas
Orquestra
abstractas que começam a ser feitas
em 1935 como reacção à violência do
Metropolitana de Lisboa
fascismo, durante uma visita com os Direção Artística Pedro Amaral · Piano Miguel Borges Coelho
jornalistas à exposição realizada no Beethoven Abertura Egmont, Op. 84
dia da inauguração. Desafiam o lado Chopin Concerto para Piano e Orquestra N.º 1, Op. 11
poético que conhecemos de outros Brahms Sinfonia N.º 1, Op. 68
trabalhos de Miró e coincidem com
o início da Guerra Civil Espanhola.
“Miró lança o horror contra a sedu-
Sex 29 Setembro
ção”, lê-se num texto assinado pelo
curador incluído no catálogo editado 21h30
por Serralves, nestes quadros “que
constituem as chamadas ‘pinturas Informações e reservas ligue 1820 (24 horas) · maiores de 6 · facebook.com/coliseuporto
selvagens’”. Bilhetes à venda no Coliseu Porto, Blueticket e locais habituais

As outras sete obras que não foram CONCERTO


PATROCINADO

expostas no Porto também são qua- www.coliseu.pt


Programação Coliseu Porto
se todas dos anos 70 e a maioria exe- © 2017

cutada sobre papel — destaque tam-


ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 25
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tes. Para mim, isso é o bonito de


comissariar uma exposição, porque,
de cada vez, descubro coisas novas
na relação que estabeleço com o es-
paço.”
Suzanne Cotter e Ana Pinho dizem
que há ainda muito para descobrir
em relação às possibilidades da Casa
de Serralves para mostrar os Mirós.
Não está em causa, para já, procurar
outro espaço, ou fazer outro edifício
de raiz no parque, tendo em conta a
pressão (palavras nossas) que esta
opção coloca sobre um edifício tão
particular como a moradia moder-
nista mandada construir pelo conde
de Vizela no início do século XX, um
exemplar raro do espaço doméstico
de luxo daquela época.
“Estamos a fazer um trabalho com
o arquitecto Siza para ver como de-
vemos abordar o espaço, conservar
as características da casa e a sua re-
lação com os jardins. Temos muitas
salas nesta casa. Para a exposição
anterior, tomámos a decisão de uti-
lizar de não utilizar a casa toda. Fe-
chámos salas”, afirma ao Ípsilon Su-
zanne Cotter, à margem da apresen-
tação da exposição em Lisboa.
Se a exposição de Miró na Casa de
Serralves ocupou 680 metros qua-
drados, a área total disponível para
exposições é de 870 metros quadra-
dos. Sobram, assim, mais 200 metros
quadrados, espalhados pelo quarto
da condessa, o escritório do conde
A directora lecção morre. Queremos entrar em de apresentação da colecção.” e a biblioteca, se não incluirmos es-
do Museu de
Serralves,
diálogo com outros artistas.”
As 85 obras de arte — um conjunto
Este segundo momento é também
a altura para o museu, em paralelo,
Há muitas paços como casas de banho, adega
ou sala das caldeiras.
Suzanne
Cotter, à
construído por Pierre Matisse, filho
do pintor e galerista de Miró em No-
iniciar conversas com eventuais par-
ceiros detentores de acervos signifi-
possibilidades “Temos a possibilidade, estudando
aquilo em que não se pode tocar a
esquerda,
e o comissário
va Iorque — estiveram escondidas
nos cofres do BPN até o Governo so-
cativos de Miró. “Estão já a começar.
Esta é uma boa colecção, como diz o
na Casa de Serralves nível patrimonial, de usar mais salas
para uma apresentação permanen-
da exposição,
Robert Lubar
cialista ter decidido este ano impedir
a sua venda num leilão em Londres,
curador, mas todos concordamos
que, com o tempo, vai precisar de di-
para mostrar os te”, continua Cotter. “Com toda a
área da casa, há ainda a possibilidade
que prometia 35 milhões de euros
para abater parte dos créditos do
namização. É necessário compreen-
dê-la num contexto mais alargado.”
Mirós. Não está de fazer exposições diferentes, com
uma escala maior, e também de fazer
banco. Foram entregues à Câmara
Municipal do Porto para serem mos-
A obra de Miró, que morreu com
90 anos e é um dos artistas mais im-
em causa, para já, intervenções contemporâneas, seja
em diálogo com uma obra de Miró,
tradas na cidade, que por sua vez
decidiu pôr a sua exploração nas
portantes do século XX, cobre um
impressionante arco temporal, como
procurar outro várias obras de Miró, ou ainda com
o seu pensamento. Ou fazer, somen-
mãos de Serralves.
A Suzanne Cotter, directora do Mu-
escreve Cotter no catálogo. E se a
colecção portuguesa se alarga por
espaço ou fazer te, intervenções contemporâneas em
diálogo com a casa. A ideia é manter
seu de Serralves, perguntamos se
esta segunda oportunidade para ver
seis décadas de produção artística,
Suzanne Cotter ambiciona enquadrá-
um edifício de raiz todas estas possibilidades e com o
tempo vamos ver o resto.”
a exposição, numa galeria flexível la, “quer no contexto da obra total A directora do museu sublinha que
que permite adaptar os espaços à de Miró, que é enorme, quer em di- para onde se vêem três desenhos de Serralves está a começar o projecto
narrativa expositiva, lhe pode ensi- álogo com outros movimentos artís- 1966, feitos em tinta-da-china sobre da Casa do Cinema Manoel de Olivei-
nar algo em relação a modelos futu- ticos ou com outros artistas”. papel japonês. Só há linhas, alguns ra, também com desenho de Siza,
ros de exibição, e se a Casa de Serral- pontos e um ou outro círculo, um para instalar na antiga garagem da
ves, com os seus constrangimentos Muito para descobrir deles incompleto. A pintura como residência do conde de Vizela o es-
patrimoniais, é o melhor sítio para Logo na segunda sala do Palácio da mínimo, “uma linguagem aberta”, pólio do realizador português desa-
mostrar a colecção. Ajuda, a exposição coloca a obra Sem onde já nem os signos são concretos parecido em 2015. Suzanne Cotter
Segundo os números esta semana Título (Dançarina), a mais antiga da mas estão em potência. A pintura reconhece que Serralves está a testar,
fornecidos por Serralves e pelo Pa- colecção, datada de 1924. Aqui o ar- liberta-se da sua função significante, cada vez mais, “a mentalidade de
lácio da Ajuda, as duas exposições tista, como nos explica o curador, conseguindo Miró “uma poesia sem campus no seu terreno”, como se viu
ocupam mais ou menos a mesma reduz todos os objectos a signos: “Há paralelo na exploração do vazio”, com a construção de cinco pavilhões
área: na Casa de Serralves, Joan Miró: uma roda que parece uma roda, mas escreve Robert Lubar no catálogo a efémeros, encomendados a jovens
Materialidade e Metamorfose esten- também é o sexo da bailarina. Há propósito dos três desenhos. arquitectos portugueses, para mos-
deu-se por 680 metros quadrados, uma ambiguidade entre signos, mas Para o curador, não vale a pena trar obras da 32.ª Bienal de São Pau-
enquanto na Galeria D. Luís ocupa também entre conceitos. Os signos, perguntar o óbvio: “A mesma expo- lo, que estão instalados no parque
700 metros quadrados. não as obras, são abstractos.” sição em dois espaços diferentes mu- até Outubro. “Estamos aqui em 2017
“Por agora, a ideia é a adaptação A linha de Miró, um dos seus ele- da sempre. E às vezes, para manter e em 2020 quem sabe? Se pensarmos
da Casa de Serralves”, explica ao Íp- mentos mais expressivos, já está aqui o sentido num determinado espaço, na Colecção Menil, em Houston, no
silon a directora. “É importante tam- bem visível, lembrando o curador no temos de fazer sacrifícios.” Quem viu Texas, tem vários edifícios diferentes
bém ter a consciência de que esta catálogo que Miró queria “partir” a a exposição do Porto vai aqui desco- espalhados pelo seu campus. É ver-
colecção precisa de muita atenção, guitarra cubista, “modo de expressar brir outras coisas, perspectivas dife- dade que por aqui está tudo em gran-
há todo um estudo a fazer sobre o seu esforço para escapar à tradição rentes: “É outra exposição aqui. Se de movimento. Esta possibilidade de
as necessidades de conservação renascentista do ilusionismo [na re- em Lisboa pude incorporar as duas pensar dinamicamente é uma das
das tapeçarias, dos desenhos, das presentação da realidade], que atin- obras sobre masonite, em Serralves vantagens de Serralves, juntamente
molduras, das obras sobre papel. giu o seu apogeu com a pintura cubis- a sala dos desenhos dos anos 50 es- com a sua independência, o que lhe
Isto tem de ser pensado ao mesmo ta”. “Esta parede é genial”, diz o tava, em minha opinião, muito me- dá uma vitalidade e uma energia pa-
tempo que fazemos a programação curador aos jornalistas, apontando lhor. É sempre uma questão de ajus- ra o futuro.”
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FOTOS DE FRANZISKA STRAUSS


compreensão para com as suas o novo Detroit deu por si no
personagens que deitaram tudo a centro de uma polémica sobre a
perder. Será, quando muito, um representação da comunidade
belo filme de maturidade, que negra americana no cinema.
não se dá com os ritmos Sendo um filme sobre os motins
frenéticos dos nossos dias. Talvez raciais que abalaram Detroit em
por isso pareça velho. Mas não é. 1967, e sobre a violência policial e
o racismo institucionalizado, não
faltou quem viesse acusar
Bigelow de se estar a apropriar
Preto no branco de uma narrativa que não era
sua, por ser uma realizadora
Ao filmar um caso verídico branca a contar uma história
da história dos conflitos negra. Mas esse não é
verdadeiramente o problema do
raciais dos EUA, a autora filme.
de Estado de Guerra É inegável que Detroit é
não consegue imprimir pensado em articulação com o
legenda Ad magniseliquat ex euguera estrud tet lovenisl ambiguidade às convenções momento actual da sociedade
americana, em que, 50 anos
do filme de denúncia social.
depois dos motins, a questão da
Jorge Mourinha violência policial parece
Detroit continuar na mesma. É ainda
mais difícil negar que Bigelow e o
Detroit
seu argumentista, o jornalista
de Kathryn Bigelow, com John
Mark Boal, têm a ambição de,
Boyega, Will Poulter, Algee Smith
O que Schlöndorff filma, com paciência e delicadeza, é um homem a medir a extensão do mal que fez mais do que dar respostas,
mmmmm levantar questões. O mais
perturbante de Detroit é o
Cinema
não está nem anquilosado nem Muito se falou do Óscar que “limbo” em que, depois da
Estreiam conformado. Sim, é verdade que Kathryn Bigelow levou para casa violência, da injustiça, da
o filme se instala num subgénero com o soberbo Estado de Guerra indignação, da revolta, tudo fica.
O grande amor perfeitamente delimitado — o
drama adulto literário que terá
como “sinal” de qualquer coisa
que estaria a mudar em
Como se tudo tivesse sido varrido
para debaixo do tapete e a vida
da vida dele tido o seu “momento alto” nos Hollywood. E depois nada continuasse como se nada tivesse
anos 1970. (Nem por acaso, o mudou: 00:30 - A Hora Negra, acontecido, numa repetição
Nem filme de velho, nem filme foi co-escrito com o sobre a perseguição dos serviços eterna da história. Desse ponto
romancista irlandês Colm Tóibín, secretos americanos a Osama bin de vista, Detroit é um “caso
filme de velhinho moderno:
e cita um romance do alemão Laden, dividiu tanto quanto exemplar”, usado como
o veterano alemão Volker Max Frisch.) Sim, é verdade que é Estado de Guerra fora unânime, e ilustração da contínua
Schlöndorff assina um daqueles filmes que transpiram
sereno drama clássico à todo um conforto burguês,
moda antiga. Jorge Mourinha levantando aquela questão
eternamente lançada por Aviso de Prescrição do Prazo de
Reviver o Passado em Montauk Morrissey, “isto não tem nada a
Return to Montauk
ver com a minha vida!”. Mas até Reclamação do Pagamento de Direitos
de Volker Schlöndorff, com
tem, porque Reviver o Passado em Conexos dos Artistas
Montauk é um filme subterrâneo
Stellan Skarsgård, Nina Hoss,
sobre o remorso e a culpa, sobre A distribuição ordinária de fonogramas de
Susanne Wolff
a tentação do abismo que nos
mmmmm atrai a todos — como poderia ter 2010 prescreve a 30 de setembro de 2017
sido o caminho que nunca
Faz parte da ironia do tempo que tomámos? No caso, conta-se a
passa que aquilo que foi ontem história de um escritor que, de
A GDA – Direitos dos Artistas torna público que
aclamado como inovador ou passagem por Nova Iorque para no próximo dia 30 de setembro de 2017 se contarão
vanguardista é hoje considerado lançar um livro, procura cinco anos volvidos desde a distribuição respeitante
bafiento: as “novas vagas” de reencontrar o grande amor da
ontem são os convencionalismos sua vida que deixou escapar; Max
aos direitos de comunicação pública e de cópia
anquilosados de amanhã. Ainda quer perceber se há hipótese de privada de fonogramas relativos ao ano de 2010.
não há muito tempo, Bertrand reparar esse mal, mas Rebecca Termina assim nessa data o prazo aprovado pela
Tavernier, na sua belíssima sabe que não é esse exactamente
Viagem pelo Cinema Francês, o verbo certo.
Assembleia Geral para reclamar os direitos em
demonstrava como tudo isso não O que Schlöndorff filma, com referência.
passa de uma etiqueta fugaz ou precisão, paciência e delicadeza,
prática que serve para “arrumar” é um homem (o sueco Stellan
A distribuição ordinária de audiovisual de 2008
filmes em gavetas sem prestar Skarsgård, a ferrar o dente num prescreve a 31 de outubro de 2017.
necessariamente atenção ao que papel como raramente tem) a A GDA – Direitos dos Artistas torna público que
os singulariza. O veterano Volker medir a extensão do mal que fez
Schlöndorff (O Tambor, 1979) enquanto toma consciência que, no próximo dia 31 de outubro de 2017 se contarão
começou precisamente como por muito que a sua arte e a sua cinco anos volvidos desde a distribuição respeitante
assistente de realizadores vida se entrelacem, uma não aos direitos de comunicação pública e de cópia
franceses como Louis Malle ou substitui a outra. Schlöndorff fá-
Alain Resnais, foi um dos nomes lo sem nunca ceder privada de audiovisual relativos ao ano de 2008.
de ponta do jovem cinema excessivamente ao bafio Termina assim nessa data o prazo aprovado pela
alemão dos anos 1960 e 1970 a preguiçoso, nem inventar Assembleia Geral para reclamar os direitos em
par de Herzog ou Wenders, mas truques narrativos ou formais
hoje é visto como um cineasta para modernizar referência.
menor que se deixou seduzir desnecessariamente (à excepção, Os artistas que reúnam as condições para se
pelo exacto conformismo contra talvez, do infeliz genérico de
o qual se erguia. abertura). Não é um filme de inscrever na GDA, deverão contatar o serviço de
Depois de um já muito velhinho moderno, nem é um Apoio ao Cooperador antes do prazo terminar, pois
recomendável Diplomacia (2014), filme de velhinho: é um filme caso contrário os seus direitos irão prescrever.
Reviver o Passado em Montauk é a clássico, pausado, seguro, de
melhor prova de que Schlöndorff uma surpreendente serenidade e
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 27
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opressão de uma comunidade Cidade Pequena é a história de


sem outro motivo que não seja a As fábulas um “belo adormecido”, a
cor da pele, do constante abuso criança que começamos por ver
do poder por parte daqueles que da realidade: deitada a toda a extensão
dão por si autorizados a usá-lo.
É esse o problema do filme.
três curtas- horizontal do enquadramento e
que voltaremos a ver inúmeras
Que, embora seja ambientado metragens vezes, quase sempre de olhos
numa cidade literalmente em fechados. Como, por exemplo,
estado de guerra, com bairros portuguesas no mais notável plano do filme
devastados e a presença de de Costa Amarante, espécie de
tropas para manter a paz, é Três curtas-metragens bailado feito de uma harmonia
muito mais um filme de cerco e portuguesas, com passagens entre humanos e a natureza,
reacção, do que um filme de com a ajuda da arte do
movimento e acção, que é aquilo marcantes em festivais enquadramento que o cinema
onde Bigelow costuma brilhar. internacionais, que atestam, também é (e que o realizador
Aqui, há uma estrutura em três através dos universos domina muito bem): um interior
actos que cede à pessoais dos seus autores, a dum carro, um espelho
demonstratividade do “filme de retrovisor (no qual se reflecte o
problema”. Primeiro: a subida da
vitalidade e a diversidade da Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante, trouxe um Urso de Ouro rosto adormecido da criança, no
tensão, à medida que a cinematografia portuguesa. banco de trás), à frente uma
perseguição policial desregrada à Luís Miguel Oliveira árvore, vegetação, uma vaca,
comunidade negra a leva a uma mulher, e dois GNR que
revoltar-se contra os poderes Cidade Pequena dançam ao som duma canção,
instituídos brancos. Segundo: a Words (F.R. David), do princípio
De Diogo Costa Amarante
explosão, com três polícias a dos anos 80. Será a
aterrorizarem os hóspedes do mmmmm recomposição onírica e
motel Algiers em busca de um obliquamente memorialista (o
atirador inexistente, num longo, Coelho Mau texto da voz off, ou certos
claustrofóbico e violento huis- fragmentos) da infância numa
De Carlos Conceição
clos. Terceiro: o rescaldo do “cidade pequena” e noutro
incidente e as repercussões que mmmmm tempo, um interior português
ele teve nas vidas de quem dele que o cinema tem tendência a
foi vítima. Farpões, Baldios descobrir como um
É verdade que os filmes caleidoscópio feérico (veremos
De Marta Mateus
anteriores já tinham algo dessa também carrocéis de feira e
demonstração, mas ela era mmmmm foguetes a rebentarem contra
submergida no puro movimento um céu nocturno) e um
da acção, da perseguição, do Estreia conjunta de três curtas- reservatório inesgotável de uma
dever a cumprir. Eram filmes metragens portuguesas que Coelho Mau é porventura o melhor filme de Carlos Conceição natureza vitalista (os muitos
ambíguos, nas zonas cinzentas, muito recentemente, já neste planos com animais e
humanas, entre o dever e a ano de 2017, se fizeram notar animaizinhos), antes de tudo
liberdade; aqui, embora Bigelow pela sua passagem por alguns aparentemente voltar, embora
esteja permanentemente em dos mais importantes festivais sempre sob o signo do son(h)o, à
busca dessa ambiguidade de cinema internacionais: “cidade grande”, na forma do
(através da figura de Melvin Cidade Pequena, de Diogo Costa edifício moderno que vem
Dismukes, o segurança negro que Amarante, trouxe um Urso de ocupar os últimos instantes do
procura o impossível meio-termo Ouro de Berlim, e os filmes de filme. Mas a presença da
da coabitação), a própria Carlos Conceição e Marta Mateus natureza, de resto, vem reforçar
história, passe a expressão integraram a selecção oficial da a dimensão sensual de Cidade
literalmente a preto e branco, última edição do Festival de Pequena, sobretudo pela sua
não lho permite. Detroit não é Cannes (Coelho Mau, na Semana finta a um “impressionismo”
um mau filme — longe disso — da Crítica, Farpões, Baldios, na muito partie de campagne que
mas sentimos que, para lá do Quinzena dos Realizadores), nalguns momentos (aqueles
nervo e da garra que Bigelow onde colheram, sobretudo o planos com as janelas a criarem
imprime à narrativa, da sua segundo, amplos elogios da enquadramentos dentro do
vontade de contar esta história crítica. enquadramento) parece mesmo
como se fosse uma reportagem São três filmes bastante uma vénia a Renoir.
de uma zona de guerra, ela se diferentes, expressões dos Em Coelho Mau, que é
deixou tolher pela sua origem e universos pessoais dos seus Farpões, Baldios é o filme de estreia de Marta Mateus porventura o melhor filme de
se refugiou nas convenções. autores, e se o seu visionamento Carlos Conceição, mergulha-se
Detroit nunca consegue existir em conjunto e em sequência até ainda mais num clima onírico,
para lá do seu programa de salienta a existência de alguns ou pelo menos numa ordem de
denúncia. E de Kathryn Bigelow curiosos pontos de contacto (a AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
realidade sempre vacilante,
esperamos sempre mais que isso. ruralidade, um onirismo de
diversas colorações e matizes, a DO PÚBLICO algures entre uns pozinhos de
Lynch e alguma contiguidade
preponderância de figuras com o universo do realizador
femininas e maternais), a português que parece mais
ocasião será menos de ressalvar Detroit mmmmm mmmmm – próximo do cinema de
essas continuidades Cidade Pequena mmmmm mmmmm – Conceição, João Pedro Rodrigues
essencialmente circunstanciais e (aliás, João Rui Guerra da Mata,
fruto da sua programação Coelho Mau mmmmm mmmmm mmmmm habitual colaborador de João
conjunta, e mais de reiterar esse Farpões, Baldios mmmmm mmmmm mmmmm Pedro, é creditado como
facto, que continua a Reviver o Passado em Montauk mmmmm – – responsável pela direcção
surpreender até o mais rodado artística). É um mundo
— a vitalidade e a diversidade de The Bad Batch-Terra sem Lei – mmmmm – nocturno, de conto de fadas para
uma cinematografia como a 9/11 – mmmmm – adultos mas de onde ainda não
portuguesa, sempre periclitante Os Crimes de Limehouse mmmmm – – se excluiu a possibilidade de
mas sempre capaz de deitar cá uma forma de “inocência”, com
para fora realizadores convictos O Futebol mmmmm mmmmm – sexo e máscaras sadomaso,
do que estão a fazer e objectos Sorte à Logan mmmmm – – amor, vingança e doença (mais
que, gostando-se mais ou menos Una - Negra Sedução – mmmmm – máscaras: a ajuda respiratória da
especificamente de cada um, são miúda protagonista), florestas e
Detroit, de Kathryn Bigelow tudo menos “neutros”. Estes três Uma Viagem a Espanha mmmmm – – casas na árvores, um bestiário
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
filmes conferem-no. insólito (outra máscara: a do
28 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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“rapaz-coelho”) que se dispõe a “espectadores”, e todos aqueles


ser cruzado, como em tantos velhos trabalhadores do campo Uma rapariga
contos de fadas, por um par de que são como fantasmas presos
irmãos. Sonhos e fábulas, nos seus castelos há muito anda sozinha
portanto, onde o veneno e a
doçura, o latex negro e o
obsoletos, traz essa carga
“romanesca” (à la Tourneur ou à
pelo deserto
“veludo azul”, se tratam por tu, la Carpenter: “eles são iguais a
e tudo se encena como uma nós, mas são diferentes”, diz um Sem ideias, sem imaginação,
sucessão de rituais de dos garotos, como se sem sentido de estilo, nada
significados obscuros que confrontado com criaturas redime a sequência que Ana
incluem — teatralmente ou míticas) a enformar o que é,
cinematograficamente — o essencialmente, o retrato duma
Lily Amirpour deu a Uma
musical e a canção. realidade social (e política) Rapariga Regressa de Noite
Finalmente, Farpões, Baldios, “deixada para trás” mas cujos Sozinha a Casa. Luís Miguel
filme de estreia da sua vestígios, materiais e humanos, Oliveira
realizadora. É o Alentejo, sim, persistem mais ou menos
reconhecível e palpável naquelas espectralmente, e são a essência The Bad Batch - Terra sem Lei
paisagens, naqueles casebres do filme. Na atenção aos rostos,
De Ana Lily Amirpour
e instrumentos de trabalho há cavados e marcados, na fricção Com Suki Waterhouse, Jason
muito abandonados, naqueles entre o texto e a dicção, Momoa, Keanu Reeves, Jim Carrey
rostos queimados dos homens imperfeita e desafectada, e no Nem Jim Carrey por redimir The Bad Batch
e das mulheres de mais idade, modo como tudo isto se assume mmmmm
na luz dourada e esmagadora como expressão de um
(para mais, “puxada” e quase testemunho vindo do fundo Depois do êxito de Uma Rapariga do que um reiteração banhar o filme — que,
desnaturalizada pelo trabalho da da terra e do fundo do Regressa de Noite Sozinha a Casa, desinspirada dos códigos do porventura consciente disso
imagem digital) com o que o sol tempo, há uma égide óbvia que era um filme cujas “filme de vingança”, construída mesmo, vive muito de “planos-
alentejano parece fazer “arder” para Farpões, Baldios: peculiaridades lhe atribuíam um entre as ruínas do western, a efeito”, e de artimanhas visuais
tudo aquilo em que se reflecte. aqueles últimos Straub/Huillet, certo charme (não há muitos (mais que provável) inspiração para encher o olho. Há uns
Mas, narrativamente — se não se sobretudo os filmes “italianos”, filmes de terror feitos no seio da de Tarantino ou Robert breves momentos em que a
negar que há uma “narrativa” baseados em Vittorini ou em comunidade iraniana emigrada Rodriguez, e um inicial flirt com coisa parece prometer arrebitar,
em Farpões, Baldios — também Pavese e votados a “operários e nos EUA...), Ana Lily Amirpour o chamado torture porn (a nas cenas em que entra, tipo
há um certa presença onírica, ou camponeses” e a modos de dá sequência a uma obra que à sequência de abertura, ou como guest star, o tão desaparecido
pelo menos duma ordem de vida rasurados pela segunda tentativa parece já não uma rapariga acorda de manhã Jim Carrey na pele de um
realidade dúbia, a revindicar “modernidade”. Mas se duma ter gás para ir muito mais longe. sem uma perna e sem um braço). eremita encardido. Mas não:
para a poesia do filme a filiação se trata, o filme de Marta Afastado tudo o que contribuía A narrativa é morna e cheia de The Bad Batch é um filme
vizinhança de um “fantástico”, Mateus enverga-a com nobreza, para a “especialidade” de Uma figuras estereotipadas, e não é aborrecido, sem ideias, sem
esparso mas não menos desenvoltura e uma Rapariga Regressa..., do preto e por filmar o deserto do Texas imaginação, sem sentido
misterioso por isso. A relação originalidade bastante branco ao “ecossistema”, resta que por um passe de mágica há estilístico, e nada (nem Carrey)
entre os miúdos, como que promissora. pouco mais, em The Bad Batch, algum tipo de “atmosfera” a o pode redimir.

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Livros
Cada um dos textos obedece a lembramos de que existimos?”,
uma mesma estrutura: o autor nestes volumes de textos curtos
começa por descrever (por vezes parece querer deixar à filha por
com uma precisão quase infantil, nascer algumas repostas a essas
ou como se o fizesse para um ser questões, mostrando-se já mais
alienígena) o objecto ou a ideia apaziguado com o mundo,
que titula a pequena narrativa; conformado com a sua
depois tece mais umas quantas tragicidade: “a vida existe por
considerações, e passadas umas teimosia e é trágica na sua
linhas relaciona-o com um natureza. (...) A tragédia trata
sentimento, uma memória da sua apenas de como a revelação do
vida (por vezes da sua infância), inevitável [nos] chega”.
uma situação social, e fá-lo quase A escrita de Karl Ove Knausgård
sempre com aquela singular transforma o tempo em palavras,
intensidade que o caracteriza como se com a sua subtileza de
desde os seis volumes de A Minha narrar, de poder introspectivo e
Luta. É o que acontece em visceral, se libertasse de
Cadeiras, que começa assim: “A incomodidades obscuras; e não
cadeira serve para uma pessoa se apenas ele mas também o leitor é
sentar. Consiste em quatro arrastado neste processo, que já
pernas, sobre as quais assenta não é tanto de emersão catártica,
uma placa, e da extremidade como acontecia nos romances,
desta ergue-se um apoio para as mas que de qualquer forma
costas.” Uma página e meia continua a não deixar que
depois, está a dissertar sobre uma nenhum dos dois saia ileso: por
cena do filme Fanny e Alexandre, vezes o espanto de Knaugård é
de Ingmar Bergman, e sobre a também o do leitor, o espanto da
concepção do cinema do próprio nossa relação com o mundo e
realizador. A profundidade com com nós próprios.
que Knausgård expõe os seus
pensamentos não é, obviamente,
a mesma com que o faz em A
Minha Luta, acabando por nestes Os despojos dos
textos curtos, de certa forma, ser
mais directo e claro. Se nos
dias passados
romances dissertava longamente,
por exemplo, sobre o acto de Nesta colecção de contos,
empurrar um carrinho de bebé Amos Oz, um dos mais
por um parque e como se tornara conhecidos escritores
“transparente” para as mulheres,
israelitas contemporâneos,
o leitor percebia que não era essa
A escrita de Karl Ove Knausgård transforma o tempo em palavras acção, ou esse facto, que lhe relata o ambiente e as
interessava, mas antes reflectir relações dos kibbutzniks,
(quase em jeito de disfarçada quando os sonhos de
de “enciclopédia pessoal”, parábola) sobre a masculinidade; uma sociedade perfeita
Ficção cartografando o mundo em seu em No Inverno ele abrevia essas
redor, desde os objectos aos descrições algo metafóricas e começaram a dar sinais de
Enciclopédia sentimentos e vontades humanas,
passando por alguns
esclarece logo o que quer dizer.
Assim: “Quando Hegel escreveu
desgaste. Helena Vasconcelos
Entre Amigos, Amos Oz,
pessoal do acontecimentos domésticos. Não é que a coruja só levanta voo ao
Tradução do hebraico de Lúcia
um registo diarístico, apesar de o escurecer, era na sabedoria que
quotidiano livro estar dividido por meses. Em pensava. Pode interpretar-se que
Liba Mucznik
Dom Quixote
cada um dos tomos surgem alguns a sabedoria ou o conhecimento se
Mostrando-se mais textos a que chamou Carta a uma segue ao acontecimento como a mmmqm
apaziguado com a filha que vai nascer (apesar de na noite se segue ao dia, mas
última carta deste volume agora também pode interpretar-se que a Em 1954, Amos
tragicidade da vida, publicado, o segundo, No Inverno, sabedoria pertence à noite, ao Oz tinha quinze
Knausgård torna a a menina ter acabado de nascer). escuro, ao oculto, ao adormecido, anos quando
cartografar com minúcia Os outros textos têm títulos como: àquilo que está próximo dos largou a
o mundo em seu redor. Neve, Comboio, Açúcar, O desejo mortos mas que não está morto.” confortável vida
sexual, Fogueiras, Janelas, Cérebro, A sua escrita torna-se assim familiar para ir
José Riço Direitinho Sexo, Sons de Inverno, Peluches… menos ostensivamente reflexiva viver num
No Inverno Neles Knausgård parece querer — a reflexão, de certa forma, kibbutz.
mostrar à filha o que pode esperar passou para a imediatez do Admirador
Karl Ove Knausgård
do mundo, da complexidade da significado dos objectos, dos actos confesso de Ben Gurion, o sionista
(trad. de Pedro Porto Fernandes)
Relógio D’Água natureza, das pessoas e dos seus e sentimentos descritos, em vez e primeiro líder do Estado de
sentimentos, porque todos das longas e pormenorizadas Israel, entregou-se à aspereza da
mmmmm “estamos entregues uns aos divagações a que nos habituara. prática comunitária com a sua
outros” e é preciso aprender a Nos volumes da saga disciplina militar, falta de
Entre o final de lidar com isso. “É estranho que autobiográfica A Minha Luta, privacidade e liberdade sexual.
2013 e o Verão de existas, mas que não saibas nada Knausgård fazia uma tentativa de A criação do primeiro kibbutz,
2014, o escritor de como é o mundo. É estranho recuperar um tempo perdido (o em 1909, ainda na Palestina
norueguês Karl que haja uma primeira vez que se seu, biográfico), ao esboçar o Otomana, visava uma ocupação
Ove Knausgård vê o céu, uma primeira vez que se mapa íntimo de um homem que no sentido de experimentar ideais
(n. 1968) vê o Sol, uma primeira vez que se procura sentido para a sua de vida comunal e de exploração
escreveu quatro sente o ar na pele. É estranho que experiência de vida, contando a agrária, baseados nas teorias do
volumes — haja uma primeira vez que se vê sua história a partir dos socialismo utópico de, por
titulados com os um rosto, Gi, uma árvore, um sentimentos que o foram exemplo, Charles Fourier. Para
nomes das estações do ano — de candeeiro, um pijama, um sapato. moldando e que acabam por o estes colonos, o trabalho era
textos curtos (duas ou três Na minha vida isso já quase não definir. Se nesses romances árduo e não existia espaço para a
páginas), em que usa material da sucede. Mas em breve voltará a tentava responder às perguntas: contemplação, ou mesmo para o
sua vida quotidiana (o dia-a-dia acontecer. Daqui a apenas uns “Quem somos quando não amor. O ensino não era
com a mulher e os filhos na Suécia meses vou ver-te pela primeira sabemos quem somos? Quem particularmente valorizado e as
rural) para compor uma espécie vez.” somos quando não nos mulheres, apesar de trabalharem
30 | ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017
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tanto como os homens, não Numa comunidade tão restrita, alunos sair do kibbutz para visitar
tinham acesso a lugares de chefia. não é de admirar que os o pai, encerrado num hospital
O estado das coisas foi-se movimentos e a forma de actuar psiquiátrico.
alterando ao longo do tempo e dos seus habitantes sejam alvo de Amos Oz, assumido admirador Estação Meteorológica
Amos Oz, defensor acérrimo do
estabelecimento de dois estados
(o israelita e o palestiniano) como
escrutínio cerrado por parte da
comunidade, deixando pouco
espaço para os pensamentos mais
de Anton Chékhov — único
escritor com quem gostaria de
passar tempo “à conversa sobre
António Guerreiro
forma de solução para o conflito
naquela região, tem sido o grande
íntimos e para acções mais livres.
O jardineiro Tsvi Provizor, por
vidas banais”, como declarou
numa entrevista — retrata aqui as
Como se reconhece
observador (e crítico) do seu país
e da experiência dos
“kibbutzniks”, a partir da sua
exemplo, ouve religiosamente as
notícias e lê os jornais de ponta a
ponta só para ter o prazer de
histórias de personagens não
heróicas, submetidas a uma série
de árduas experiências
um fascista
própria vivência. comunicar as desgraças, mundo psicológicas, sociais e políticas.

N
Em 1964, publicou uma fora. Único que demonstra Para além de um uso magnífico da o nosso tempo, não é fácil reconhecer um
primeira colecção de contos, Onde interesse por aquilo que acontece linguagem — a chuva, a lama, o fascista: porque eles não ousam dizer o seu
os Chacais Uivam, em que analisa fora do kibbutz, entretém-se a brilho do sol, as casas fumarentas, nome ou nem sequer sabem que o são; porque
o lado positivo da existência nos traduzir para hebreu um escritor os cheiros acres e doces, os risos e um antifascismo demasiado espontâneo
kibbutz, revelando também, de polaco. É um solitário — uma choros, as correrias das crianças, provocou uma inflação demagógica dessa
uma forma franca e directa, o lado condição estranha e impensável, os olhares dos adultos, o desejo classificação e retirou-lhe todo o rigor. Com
mais negativo, de que é exemplo o contrária aos princípios reprimido, os acessos de ternura algumas precauções, confirmei na semana passada a
conto O Nómada e a Víbora, onde comunitários — e rejeita a familiar, o frio e o calor, a existência de um exemplar da espécie: chama-se
os judeus acabam por linchar um aproximação da viúva Luna Blank, segurança e os perigos —, o autor Henrique Raposo e é cronista do Expresso. Na sua
grupo de nómadas que, com receio que se comece a falar revela uma certa ternura coluna, começava por glorificar a caça como ritual de
supostamente, os tinham demais da amizade que constroem desencantada que contrasta com feição mística, remetendo a morte do animal para a
roubado. Em 1966, Oz publicou tão fragilmente. Todos têm medo um realismo acre e implacável. Se, esfera da cerimónia sacrificial, impregnada de
um romance, Noutro Lugar, da língua afiada de Roni Scheidlin por um lado, parece sentir o elementos cultuais. Este discurso é aquele que serviu o
Talvez, que retoma as vivências que, à noite, quando os homens se aguilhão da nostalgia em relação a culto da guerra. Enriquecida com elementos de um
dos kibbutzniks, os seus dramas reúnem no refeitório, está sempre um espaço e a um tempo em que erotismo negro, a cerimónia sacrificial da morte esteve
pessoais e colectivos, o estado de presente para desfiar um rosário homens e mulheres acreditavam no centro de uma estranha comunidade onde se
permanente alerta e as tensões de maledicência e de piadas feitas estar a construir uma sociedade encontraram nos anos 30 do século passado, em torno
físicas e psicológicas a que estão à custa dos outros. Como um bobo melhor e mais justa, por outro, a de uma revista chamada Acéphale, nomes importantes
sujeitos. É um romance incómodo, da corte que mostra impunemente ironia acerba que nunca o da literatura francesa: Bataille, Leiris, Caillois,
cujo título remete para as os “podres” da vida, ele desenterra abandona, serve para colocar Klossowski e outros. Segundo o testemunho deste
frustrações dos idealistas que e faz troça dos mais ínfimos questões incómodas, tais como: último, Walter Benjamin, que tinha acabado de chegar
pretendiam que esse modelo fosse pormenores do quotidiano dos para onde foram estas pessoas ao exílio parisiense, assistiu a uma dessas reuniões do
o espelho de uma sociedade homens e das mulheres que o cheias de coragem e de boa grupo e comentou: “Vous travaillez pour le fascisme.” Na
harmoniosa, alegre, feliz, saudável rodeiam. Mais adiante no livro, vontade? O que aconteceu aos versão kitsch e pindérica de Henrique Raposo (mas não é
e solidária, sendo confrontados, numa outra história, Scheidlin é, ideais comunitários, às acções que o kitsch ideológico uma característica do fascismo?) o
no entanto, com as falhas muito por sua vez, vítima da coscuvilhice pareciam ser as únicas certas e culto da morte exprime-se desta maneira: “Há qualquer
humanas que, mais cedo ou mais da comunidade, com belas, num mundo marcado por coisa de belo num tiro que é o encontro entre a
tarde, destroem um desejo de consequências dramáticas. David desgraças? Porque razão trajectória da bala e a trajectória da presa; colocar a bala
perfeição igualitária, impossível Dagan, o professor cinquentão, é desapareceram os risos, as portas ou chumbo naquele milionésimo de segundo em que as
de manter. outra das presenças recorrentes. sempre abertas, a entreajuda e a duas linhas, a do tiro e a da presa, se encontram é um
Os contos breves contidos neste Parece ser o único a quem não são protecção das famílias e das desafio belo”. O critério de reconhecimento do fascismo,
Entre Amigos (2012) são, mais uma atribuídas tarefas rotativas fora da colectividades? Na última história, disse uma vez Deleuze, é este: “Alguém que diz ‘viva a
vez, o espelho de uma sua esfera de acção — nos campos, um homem está a morrer: é morte!’ é um fascista.” Raposo não satisfaz todos os
comunidade a braços com nos galinheiros, nas vacarias, nas Martin Vandenberg, estudioso de critérios de definição de um fascista, mas está dotado do
contradições insustentáveis entre rondas nocturnas, na esperanto, a língua universal que afecto fascista que encontra beleza na morte. É verdade
o privado e o comunitário, entre o administração — e tanto surge uniria todos os povos e assim, que se trata da morte de animais e não de homens, mas
desejo e a disciplina, entre a paz e como uma espécie de Casanova acabaria com guerras e a máquina antropológica do humanismo (que Raposo
a guerra, entre o dever e a ânsia que, depois de vários casamentos desigualdades. Vandenberg defende de maneira acérrima), aquela que exacerba a
de escapar a um sistema e muitos filhos, leva para casa a acredita que os Estados deveriam diferença zoo-antropológica, é exactamente o mesmo
implacável. muito jovem Edna Ashrov, o que ser abolidos, as fronteiras dispositivo que serviu para exterminar os judeus.
Todas estas histórias acontecem provoca um caos emocional no pai deveriam desaparecer (bem como O melhor vem a seguir. Henrique Raposo desenvolve a
no espaço mais ou menos desta, o seu amigo de longa data o dinheiro) e que a fraternidade sua ideia de uma mística da caça e da morte do animal
circunscrito do kibbutz Ykhat e as Nahum Ashrov (no conto Entre global deveria triunfar. A sua como um sacrifício onde se manifesta a categoria
personagens aparecem em Amigos que dá o título ao livro), agonia e morte — e a sua dureza e estética da beleza. E fazendo o elogio de umas
diferentes narrativas, sempre como se revela um homem cheio intransigência — espelham o declarações do cozinheiro Ljubmir Stanisic, sentencia:
descritas, analisadas e criticadas de compaixão e capaz de quebrar colapso das ideias e o fim das “Ljubmir Stanisic e Anthony Bourdain [são] cozinheiros
por observadores diferentes. regras para deixar um dos seus utopias. que não pedem desculpa por serem homens,
heterossexuais e carnívoros.” Na sequência lógica do
ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

grito necrófilo vem a virilidade ostensiva, a afecção


fascista do pensamento viril. O fascista “tem colhões” e
gosta de os mostrar. Isto é suficiente para definir um
pequeno fascista. Ele só se torna um pouco maior
quando usa continuadamente a estratégia do espantalho
universal, isto é, a estratégia que consiste em fundir as
grandes questões políticas, sociais e morais (o fascista é
sempre hipermoral) nos problemas privados e da
vizinhança. Trata-se de categorizar os grandes sujeitos
colectivos a partir de pessoas singulares. Chama-se a isto
o pathos da totalidade. Uma pequena vila do Alentejo,
uma periferia urbana ou o senhor José da oficina
Amos Oz é um fornecem então a Henrique Raposo a universalidade de
defensor do uma visão do mundo. E só não digo Weltanschauung
estabelecimento porque é uma palavra demasiado fascista para o nosso
de dois Estados pequeno fascista, que começou a semana a fazer um
(o israelita e o mea culpa por causa de na semana anterior ter levado
palestiniano) demasiado longe a sua estratégia do espantalho
como forma de universal da pedofilia (o espantalho eram, então, os
solução para o educadores de infância masculinos). Ora, um fascista, ao
conflito naquela contrário do pequeno fascista que apresenta algumas
região afecções da estrutura psicológica do fascismo, nunca se
arrepende.
ípsilon | Sexta-feira 15 Setembro 2017 | 31
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19 – 2
6 Se
t

19 Ter · 19:30 Sala Suggia 23 Sáb · 18:00 Sala Suggia 24 Dom · 18:00 Sala Suggia 26 Ter · 19:30 Sala Suggia
NOTAS DE HUMOR PIADAS MUSICAIS RRRRRRRIR HUMOR CLÁSSICO
Remix Ensemble Orquestra Sinfónica Coro Casa da Música Orquestra Barroca
Casa da Música do Porto Casa da Música Casa da Música

MECENAS MÚSICA CORAL MECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA
DO PORTO CASA DA MÚSICA

Após o período de férias, a Casa da Música acolhe os


estudantes da Universidade do Porto, oferecendo os
concertos do ciclo Humor na Música a um preço de € 5
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