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Pierre Bourdieu

CONTRAFOGOS
Taticas para enfrentar
a invasão neoliberal

Tradução:
Lucy Magalhães

Consu-Ítoria:
Sergio Miceli
Proftssor titular do
DepIR- í1e Sociologia, lJ.SP

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
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! Sumário
Título original;
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~:
I Contre-feux: propos pour servir à la résistance
amtre t'illvasíon néo-líbétale
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Tradução autorizada da primeira edição francesa
publicada em 1998 por Liber Éditions,
c'
..rI de Paris, França

~ Copyright © 1998, Liber-Raisons d'Agit


Ao leitor 7
-. Copyright © 1998 da edição brasileira:
/Y) Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja
~: A mão esquerda c a mão direita do Estado 9
' ..
a: I
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
tel: (21) 2240-0226 1 fax; (21) 2262- 512.=3
Sollers te! quel 21
'i
, e-mai!: jze@zahaLcom.br
site: www.zahaLcom.br O destino dos esuangeiros como schibboleth 25
,
___ ~ , I Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
Os abusos de poder que se armam ou
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) se baseiam na razão 30
Com a palavra, o ferroviário 33
Capa: Carol Sá
Contra a destruição de uma civilização 37

I CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.
O mito da "mundialização" e o Estado social europeu 42
I O pensamento Tietmeyer 62
I Bourdieu, Piem:;, 1930-
Os pesquisadores, a çiência econômica e
B778c ContrafogQl;: táticas para enfrentar a invasãQ neo··
\
~iberall PieHe Bourdieu; rradução Lucy Magalhães. _o'
o movimento social 71
RlO de JaneHo: Jotge Zahar Ed., 1998
. Tradução de; Comre-feux; propos pom .,ervir à la Por um novo internacionalismo 81
rés.\stance contre l'invasion néo-libérale A televisão, o jornalismo e a política 93
Ii ISBN 85-711 0-476-X
1. Política social. 2. Liberalismo. 1. Título. Retorno sobre a televisão 105
I CDD 361.61 Esses "responsáveis" que nos declaram irresponsáveis 116
98-1713
--------------------
j CDU 304
A precariedade está hoje por toda a parte 119
I ----~-_.--_._--_._._-_.

(
o movimento dos desempregados, um milagre social 128
O intelectual negativo 132 Ao Leitor
O neoliberalismo, utopia (em vias de realização) de uma
exploração sem limites 135

Referências citadas 150

Decidi reunir estes textos, em grande parte inéditos, para


p\lhlIca~ào porque tenho a impressão de que os petigos contra
os quais flHalll acesos os contrafogos cujos efeitos eles que-
riam perpetuar não são nem pontuais nem ocasionais. Tam-
bém porque estas declarações, mais expostas às discordâncias
ligadas à diversidade das circunstânCias do que os textos
metodicamente controlados, ainda poderão fornecer armas
úteis a todos aqueles que tentam resistir ao flagelo neoliberal.·
Não tenho muita inclinação para intervenções proféticas
e sempre desconfiei das ocasiões em que poderia ser levado
pela situação ou pelas solidariedades a ir além dos limites de
minha competência. Eu não teria pois assumido posições
públicas se não tivesse, a cada vez, a impressão talvez ilusória

. Mesmo correndo o risco de multiplicar as rupturas de com c de estilo.


ligadas 3. diveísld3de das sitllaçóes, apresentei as intervenções na ordern
cfonológica, p:tra tornar mais sensível o contexto histónco de declaraçóês
que, seOl rcdu'lir.. se a um contexto, nunca se rendem às. g~ner3.1idades fútei~~
e vagF daquilo 'lU" por ve:zes se chama de "fjlosor:a polírica". Acrescentei
;''lu. e ali alguIl135 indicaçóes bibliográfIcas m(l1im,s, par;) que () leitor possa
cLu conflnuidade à arguinentaçáo proposta
t

de ser obrigado a isso por uma espécie de cólera legítima,


próxima às vezes de algo como um sentimento do dever.
O ide:J do intelectual coletivo, ao qual tentei me adaptar
A mão esquerda e a mão
sempre que conseguia me identificar com outros sobre este direita do Estado·
uU aquele ponto particular, nem sempre é fácil de realizar. I
E se fui obrigado, para ser eficiente, a me comprometer às
vezes pessoalmente e em nome próprio, sempre o fiz com a
esperança, se não de desencadear uma mobilização ou até
Um número recente da revista que o senhor dirige escolheu
um desses debates sem objeto nem sujeito que surgem
como tema o sofrimento. I Há várias entrevistas com pessoas a
periodicamente no universo da mídia, pelo menos de romper
quem a mídia não dá II palavra:jovem de subúrbios carentes,
a aparência de unanimidade que constitui o essencial da força
pequenos agricultores, trabalhadores sociais. O diretor de uma
simbólica do discurso dominante.
escola em dificuldades expressa, por exemplo, a sua amargura
pessoal: em vez de se ocupar com a transmissão do conhecimen-
to, ele se tornou, a contragosto, o policial de uma espécie de
NOTA
delegacia. O sr. pensa que esses depoimentos individuais e
episódicos podem levar à compreensão de um mal-estar coletillo:'
1. Entre todas as m,,,h.1S intcrvençóes coletivas, sobretudo as da Asso-
ciation de Réflexion sur les Enseignements Supérieurs et la Recherche PR.: Na pesquisa que fizemos sobre ° sofrimento social,
(ARE5E.R), do Comité International de Soutien am lntellectuels Algériens
encontramos muitas pessoas que, como esse diretor de es-
(CIS!A) e do Parlement International des Écrivains (com o qual deixei de me
identificar), escolh; apenas o artigo publicado no Lil,ération sob o título "Le cola, estão mergulhadas nas contradições do mundo social,
sort des étrangers comme schibboleth", com a concordância de meus co-au- vividas sob a forma de dramas pessoais. 'làmbém poderia
tores visíveis (Jean-f'ierre Ahux) e invisíveis (Chrisrophe Daadouch, Marc-
citar o chefe de um programa, encarregado de coordenar
Antoine L.:'vy e Daniele Lochak). vítimJJó da censura espontânea e banalmente
exercida pelos jornalistas !esponsávcis por rribunas ditas livres nos jornais: todas as ações nurn "subúrbio difícil" de uma cidadezinha
sempre à procura do capital simbólico associado a certos nomes próprios, do norté da rrança. Ele enfrenta contradições que S30 ()
eles nSo go~taíli de papéis assinados com Hma. sigh ou com v;5..rlos nomes .__.--
esse r \Inl dos ObSláoJio5, e não dos Inraores. 2.. canstitulçáo clt: u,m intelect.ual limite extremo ebqudas que vivern todos os chamados "tra
co1ctivo-.", preferindo diminar._ seja depois de algu!TJJ. negociaçáo, sej<"i, corno
.:tCjui. sern con,(,uÜd, os nomes que ~7:{~S (onhecern eOLhO .

9
A mão esquerda e a mão direita do Estado 11
Contrafogos
10

político, um antiparlamentarismo, é na realidade um deses·


balhadores sociais": assistentes SOCIaIS, educadores, magis-
pero a propósito do Estado como responsável pelo interesse
trados e também, cada vez mais, docentes e professores
público.
primários. Eles constituem o que eu chamo de mão esquerda
Que os socialistas não tenham sido tão socialistas quanto
do Estado, o conjunto dos agentes dos ministérios ditos
apregoavam, isso não chocaria ninguém: os tempos são
"gastadores", que são o vestÍgio, no seio do Estado, das lutas
duros e a margem de manobra não é grande. Mas o que
sociais do passado. Eles se opõem ao Estado da mão direita,
surpreende é que tenham contribuído a tal ponto para a
aos burocratas do ministério das Finanças, dos bancos pú-
depreciação da coisa pública: primeiro nos fatos, por todo
blicos ou privados e dos gabinetes ministeriais. Muitos mo- tipo de medidas ou políticas (citarei apenas a mídia), visan-
vimentos sociais a que assistimos (e assistiremos) exprimem do :1 liqllidaç:lo d:1S conquistas do welfare state e principal..
a revolta da pequena nobreza contra a grande nobreza do llIellte, talvez, no discurso público de elogio à empresa
Estado. 2 pllvada (como se () espíllto de empreendimento não fosse
possível ctn outro terreno a n;ío ser na empresa), de estÍmulo
Como o sr. explica essa exasperação, essas jórmas de desespero e ao interesse privado. Tudo isso tem algo de surpreendente,
essas revoltas? sobretudo para aqueles que sãú enviados à linha de frente,
P.B,: Penso que a mão esquerda do Estado acha que a mão para desempenhar as funções ditas "sociais" e suprir as
direita não sabe mais, ou pior do que isso, não quer mais insuficiências mais intoleráveis da lógica do mercado, sem
saber de fato o que faz a mão esquerda. De qualquer forma, que lhes sejam dados os meios de cumprir verdadeiramente
ela não quer pag<).r o preço. Uma das razões maiores do a sua missão. Como não teriam eles a impressão de ser
desespero de todas essas pessoas está no fato de que o Estado constantemente iludidos ou desautorizados?
se retirou, ou está se retirando, de um cerro número de Deveríamos ter compreendido há muito tempo que a sua
setores da vida social que eram sua incumbência e pelos revolta se estende muito além das questões de salário, em-
quais era responsável: a habitação pública, a televisão e a bora o salário que recebam seja um sinal inequívoco do valor
rádio públicas, a escola pública, os hospitais públicos etc., atribuído ao trabalho e aos trabalhadores. O desprezo por
conduta ainda mais espantosa ou escandalosa, ao menos uma fUl1çáo se rraduz primeiro na remuneraç;ío mais ou

para alguns deles, já que se trata de um Estado socialista do menos irrisória que lhe é atribuída.

qual se podia esperar pelo menos a garantia do serviço


o sr. acha que 11 margem de manobm dos dirigentes políticos
púlAico, assnn como do serviço aberto e oferecido a rodos,
seja assim tão rl'Strita-'
sun disrtnção. O que se descreve como uma cnse do
f

12 Contra fogos A mão esquerda e a mão direita do Estado 13

RB.: Sem dúvida, ela é muito menos reduzida do que se limite de todas as pequenas "fraquezas" comuns, ostentação
diz. E, em todo caso, resta um campo em que os governantes de luxo, aceitação açodada dos privilégios materiais ou sim-
dispõem de teda a latitude: o campo do simbólico. A exem- bólicos.
plaridade da conduta deveria ser imposta a todo o pessoal
:i do Estadu, principalmente quando ele tem uma tradição de Diante da situação que o sr. explicita, qual é, em sua opinião,
devotamento aos interesses dos mais carentes. Ora, como a reação dos cidadãos?
não duvidar quando se vêem não só os exemplos de corrup- RB.: Li recentemente um artigo de um autor alemão sobre
ção (às vezes quase oficiais, como ;:.s gratificações de certos o Egito antigo. Ele mGstra como, numa época de crise de
altos funcionários) ou de traição ao serviço público (essa confiança no Estado e no bem público, floresciam duas
palavra talvez seja excessivamente forte; penso no pantou- coisas: entre os dirigentes, a corrupção, paralela ao declínio
I' flagt?) e todas as formas de desvio, para fins privados, de do respeito pela coisa pública, e entre os dominados, a
l
li !,
bens, benefícios e serviços públicos: neporismo, bvoreci- religiosidade pessoal, associada ao desespero no tocante aos
i mentos (nossos dirigentes têm muitos "amigos pcssoais" ... ~), recursos temporais. Do mesmo modo, tem-se a impressão,
'I
I dientelismo? hoje, de que o cidadão, sentindo-se repelido para fora do
I
Sem falar dos lucros simbólicos A televisão contribuiu,
l Estado (que, no fundo, não lhe pede nada, além das con-
sem dúvida, tanro quanto as propinas, para a degradação da tribuições materiais obrigatórias, e principalmente não so-
virtude civil. Ela Ch:1l11OU e promoveu ao primeiro plano da licita devotamento nem entusiasmo), repele o Estado, tra-
cena política e intelectual indivíduos vaidosos, preocupados tando-o como uma potência estrangeira que ele utiliza do
em exibir-se e valorizar-se, em contradição rotal com o melhor modo para os seus inreresses_
devotamento obscuro ao interesse coletlvo que caracterizava
o funcionáJtio ou o militante. É. a mesma preocupação egoís- o sr: jàlou da grande latitude dos governantes no campo sim-
ta de se valorizar (muitas vezes à custa de rivais) que explica bólico que, aliás, não se refire apenas às condutas dadas como
que os "efeitos de anúncio"5 tenham se tomado prática tão exemplo. 7i-tlta·se tmnblm das palailras, dos ideais molJiliz,li-
comum. Parece que, par;; muitos ministros, uma medida só dores. De onde llem, nesse ponto, a deficiência atual?
vale se puder ser anunciad3 e tidÇ1, como ré'alizada assim que l?B.o· Falou-se muito do silêncio dos intclecmais. O que me
for tornada pública. Em mma, a grande corrupçâo,::ujo I rnpressiona é o silêncio dos políticos. Eles carecem tremen-

desvebmcmo provoca escândalo porque revela a ddasagem dameme de ideais mobili1.adores Sem dúvida porque a
entre as virtudes professadas e as práticas reais, é aperias o protlssionalização da política e <15 c0ndiçôcs exigidas daque-
14 Contrafogos A mão esquerda e a mão direita do Estado 15

les que querem fazer carreira nos partidos excluem cada vez estragos do que dez adversários. Mas dez anos de poder
mais as personalidades inspiradas. Talvez também porque a socialista consumaram a demolição da crença no Estado e
definição da atividade política mudou com a chegada de a destruição do Estado-providência empreendida nos anos
um pessoal que aprendeu nas escolas (de ciências políticas) 70 em nome do liberalismo. Penso particularmente na po-
que, para parecer sério ou simplesmente não parecer fora lítica da habitação. Ela tinha como objetivo declarado ar-
de moda ou ,antiquado, era melhor falar de gestão que de . rancar a pequena burguesia do alojamento coletivo (e, com
autogestão e que era preciso, de qualquer forma, assumir a isso, do "coletivismo") e vinculá-la à propriedade privada
aparência (isto é, a linguagem) da racionalidade econômica. do seu domicílio individual ou do seu apartamento em
Emparedados pelo economismo estreito e de curto alcan- co-propriedade. Essa política, em certo sentido, foi bem-
ce da visão-de-mundo-FMI, que também faz (e fará) tantos sucedida demais. Seu resultado ilustra o que eu dizia há
estragos nas relações Norte-Sul, todos esses semi-habilitados pouco sobre os custos sociais de cenas economias. Pois ela
em matéria de economia evitam, evidentemente, levar em é certamente a causa maior da segregação do espaço e, com
conta os custos reais, a CUrto e sobretudo a longo pral.o, da isso, dos problemas ditos "de subúrbio".
miséria material e moral que é a única conseqüência certa
da Realpolitik economicamente legitimada: delinqüência, Se quiséssemos definir um ideal, seria então a volta do sentido
criminalidade, alcoolismo, acidentes de trânsito etc. Mais de Estado, de coisa pública. O sr. não compartilha a opinião
uma vez, a mão direita, obcecada com a questão do equilí- de todo o mundo.
brio financeiro, ignora o que faz a mão esquerda, confron- RB.: A opinião de todo o mundo é a opinião de quem? Das
tada com as conseqüências sociais freqüentemente multo pessoas que escrevem nos jornais, dos intelectuais que pre-
dispendiosas das "economias orçamentárias". gam "menos Estado" e que enterram depressa demais o
p~blico e o interesse do público pelo público... Temos aí
Os valores sobre os quais os atos e as contribuições do Estado um exemplo típico desse éfeito de crença compartilhada,
estavam fundados não são mais confiáveis? que põ~ imediatamente fora de discussão teses que deveriam
RB.: Os primeiros a desprezá-los são muitas vezes seus ser discutida.'; a valer. Seria preciso analisar o trabalho cole-
ú tivo dos "novos intelectuais", que criou um clima favorável
próprios guardiães. O Congresso de Rennes e a lei de
anistia' contribuíram mais para o descrédito dos socialistas ao retraimerlto do Estado e, mais amplamente, à submissão
do que dez anos de campanha anti-socialista. E um militante aos valores da economia. 8 Penso no que foi chamado de
"convertido" (em todos os sentidos do termo) faz mais "retomo do individualismo", espécie de profecia allto-rea-

16 Contrafogos A mão esquerda e a mão direita do Estado 17

lizante que tende a destruir os fundamentos filosóficos do gócios, os políticos e os jornalistas políticos (isto é, exata-
welfare state e, em particular, a noçáo de responsabilidade mente os que podem pagar pesquisas...).
coletiva (nos acidentes de trabalho. na doença ou na misé-
ria), essa conquista fundamental do pensamento social (e o sr. acabou de mencionar Platáo. A atitude do sociólogo se
sociológico). O retorno ao indivíduo é também o que per- aproxima da do filósofo?
mite "acusar a vítima", única responsável por sua infelici-
RS.: O sociólogo se opõe ao doxósofo, como o filósofo,
dade, e lhe pregar a "auto-ajuda", tudo isso sob o pretexto
porque questiona as evidências e sobretudo as que se apre-
da necessidade incansavelmente reiterada de diminuir os
sentall1 sob a forma de questões, tanto as suas quanto as dos
encargos da empresa.
outros. (.: o que choca profundamente o doxósofo, que vê
A reação de pânico retrospectivo determinada pela crise
um preconceito político no fato de se recusar a submissão
de 68, revolução simbólica que abalou todos os pequenos
profundamente política que implica a aceitação inconscien-
detentores de capital cultural, criou (com o reforço -
te dos lugares comuns, no sentido de Aristóteles: noções ou
inesperado! - da derrocada dos regimes de tipo soviético)
teses com as quais se argumenta. mas sobre as quais não se
as condições favoráveis para a restauração cultural, em cujos
argumenta.
termos o "pensamento Ciências Políticas" substituiu o "pen-
samento Mao". O mundo intelectual é hoje o terreno de
Em certo sentido, o sr. não tende a pôr o sociólogo num Lugar
uma luta visando produzir e impor "novos intelectuais",
de filósofõ-rei, único a saber onde estão os verdadeiro.' proble-
portanto uma nova definição do intelectual e do seu papel
mas?
político, uma nova definição da filosofia e do filósofo, do-
PoR.: O que defendo acima de tudo é a possibilidade e a
ravante empenhado nos vagos debates de uma filosofia po··
necessidade do int.electual crítico, e principalmente crítico
lítica sem tecnicidade, de uma ciência social reduzida a uma
da doxa intelectual que os doxósofos difundem. Não há
politolagia de sarau eleitoral e a um comentário descuidado
verdadeira democracia sem verdadeiro contra-poder crítico.
de pesquisas comerciais sem método. Platão tinha uma
O intelectual é um contra-poder, e de primeira grandeza. É
palavra magnífica para todas essas pessoas, doxósojõ: esse por isso que considero o trabalho de demolição do intelec-
"técnico-da-opinião-que-se-crê-cientista" (traduzo o triplo tual crítico, mono ou vivo - Marx, Nietzsche, Sartre,
sentido da palavra) apresenta os problemas da polftica nos Foucault, e alguns outros classificados em bloco sob o rótulo
próprios termos em que os apresentam os homens de ne- de "pensamento 68"9 --, tão perigoso quanto a demolição
Contrafogos A mão esquerda e a mão di reita do Estado 19
ííl

da COIsa pública e inscrevendo-se no mesmo empreendi- tua!. Seria bom que os "criadores" pudessem exercer sua
mento global de restauração. função de serviço público e, às vezes, de salvação pública.
Eu preferiria, evidentemente, que os intelectuais tivessem Pensar na escala da Europa é apenas elevar-se até um grau

estado, todos e sempre, à altura da imensa responsabilidade de universalização superior, marcar uma etapa no caminho

histórica que lhes cabe e que sempre tivessem empregado do Estado universal que, mesmo nas coisas intelectuais, está
longe de ser realizado. Não se teria ganho grande coisa, de
em suas ações não apenas a sua autoridade moral, mas
fato, se o eurocentrismo tivesse substituído os nacionalismos
também a competência intelectual - para dar apenas um
feridos d;ts velhas nações imperiais. No momento em que
exemplo, à maneira de Pierre Vidal-Naquet, investindo todo
as grandes utopias do século XIX revelaram tod;: a sua per-
o seu domínio do método histórico nllma crítica ao uso
vers;lo, (: urgeme criar as condições para um trabalho cole-
abusivo da história. 10 Dito isso, para citar Karl Kraus, "entre
livo de leLolISlruçào de um universo de ideais realistas,
dois males, recuso-me a escolher o menor". Se não tenho
capazes de lllobilizar as vomadcs, sem mistificar as cons-
nenhuma indulgência para com os intelectuais "irrespons;í·
CIênCIas.
veis", 'gosto ainda menos desses responsáveis "intelectuais",
Paris, dezembro de 1991
polígrafos polimorfos, que expelem sua produç;lo anual cn··
tre dois conselhos de adminislr;tçio, três coquetéis para a
imprensa e algumas partiClpaç()cs !lJ rclevisão. NOTAS

Então, que papel o sr. deSe;tl para os zntelectuais, principal- I. "La souffrance", Acres de Úl Recherche en Sciences Sacia/es, 90, dezembro
de 1991, e P. Bourdieu et al., A múéria do mundo, Petrópolis, Vozes, 1998.
mente na construção da Europa?
(NE)
RB.;' Desejo que os escritores, os arristas, os filósofos (~ os 2. Alusão ao livro de Piene Bourdieu, The State Nabtlity F/ite Schoals in
{hr Fie!d ú/Power, Cambridge, Polity Press, 1996. (NE)
cientistas possam se fazer ouvir diretamente em todos os
3. Pill1tOujl:zgE: o fato de um funcionário públjco prosseguir sua carreira
domínios da vida pública em que são competentes. Creio enl urna ernpr(;'sa privada. (N.E.)

que todo o mundo teria muito a ganhar se a lógica da vida 4. François Minerand, antigo presidente da República, era freqüeoternen.
te elogiado f"H lua "fidelidade aos amigos", e diversas pessoas nomeadas para
llltelectual, da argumentação e dJ refut<\'~ão, se estendesse à cargos ímpolt:ll1tes tinham como qualidade ptincipal. segundo os jornais.
vida pública. Hoje, é a lógica da política, da denúncia c da seren),eus "amigos pcs~oais" {h!E.J
5. No original, t'jjftf d'annol}(:!; o fato de UITl rninistro linlitac sua JçJO
difamação, da "sloganização" e da falsificação do pensamen-
pülíuCi dO Jlll~lIlr!O osterUJrór:o das decisóe.:: espetaculares e muitas vezes ~em
to do adver.sário que se estende muitas vezes à vida inrclec· efeito ~)~l scrn s(~r.:plênciJ (;) nlJflti.r:l dt' Jack .l.~!ng}. (N.F.)

(
,
f

20 Contrafogos

6. O Congresso de Rennes deu ensejo a terrfveis confliros entre os


dirigentes das grandes correntes do Partido Socialista: Lione! ]ospin, Laurent
Fabills e Michel Rocard. (N.E.)
7. Lei de anistia aplicada sobretudo aos generais que comandavam o SollerJ tel quel *
exército francês da Argélia; responsáveis pelo putsch contra o governo do
general de Gaulle. (N.E.)
8. Cf. P. Bourdieu et. aI, "L'économie de la maison", Acte5 de la Recherche
ai Sàences Sociales, 81-82, março de 1990. (N.E.)

9. "Pensamento 68": alusão ao livro de Luc Ferry e AJain Renam, La


pemée 68, Paris, Gallimard, 1985. (N.El
10. P. Vidal.Naqller, Les fui/. Ia mémoire et Ie prbent, Paris, La Découverte,
t.l, 1981, UI, 1991. (N.E.)
Sollcrs, tal (Jua!,1 f1 m, tal como ele próprio. Estranho
I ("11

prazer spinozista da verdade que se revela, da necessidade


JI'I'
Ilil,
t'l,
que se cumpre, na confissáo de um título, "BaIladur tel
qUe!", 2 condensado em alta densidade simbólica, quase bom
1!!j
11'1
:1 1
demais para ser verdade, de toda uma trajetória: da revista
,li,
Tel Quel a BaIladur, da vanguarda literária (e política) fajuta
até a retaguarda política autêntica.
Nada muito grave, dirão os mais informados; aqueles que
sabem, e há muito tempo, que aquilo que SoBers jogou aos
pés do candidato-presidente, num gesto sem precedentes
desde Napoleão m, não é a literatura, e menos ainda a
vanguarda, mas o simulacro da literatura, e da vanguarda.
Mas essas máscaras sao montadas para enganar os verdadei-
ros destinatários do seu discurso, todos aqueles que ele quer
haju!ar, como cortesão címco, ba11adurianos e burocratas
baHadurófilos, envernizados na cultura das "Ciências Polí-

, Este t~xto foi publicado no Libérariol1, em 27 de j,.neiro de \995.


d"pOl' da publIcação de um artigo de l'hilippe Sollers, sob o título "Balbdur
,d qlld". em I.'Exprm. ctn 12 de janeiro de 1995.

21
(

22
Contrafogos Sollers, Tel Quel 23

ticas", para dissertações tronchas e jantares de embaixada; e lha ao sabor das forças do campo. Precedido e autorizado
também rodos os mestres de fachada, que foram agrupados, por roelas as derrapadas políticas da era Mitterand ~ o
em alguns momentos, em tOlIlO de Tef Que!. rüáscara de equivalente em política, e ainda mais em maréria de socia-
escritor, ou filósofo, ou lingüista, ou tudo isso ao mesmo lismo, do que Sollcrs foi para a literatura, e ainda mais para
tempo, quando não se é nada e não se sabe nada de tudo a vanguarda - , foi tragado por rodas as ilusões e desilusões
isso; quando, como na piada, se sabe a toada da cultura,
políticas e literárias do tempo. E sua trajetória, que se pensa
mas não a letra, quando se sabe apenas macaquear gestos do
como excerão/' (: de faro estatisticamente modal, isto é,
grande escritor, e até fazer imperar, durante um momento,
banal, e, nesse sentido, CXClll pIar da carreira do escritor sem
o terror nas letras. Assim, na medida em que consegue
qualidades de uma época de restaurarão política, e literária:
impor a sua impostura, o Tartufo sem peias da religião da
ele é a encarnação típico-ideal da história individual e co-
arte escarnece, humilha, espezinha, jogando-a aos pés do
letiva de toda uma geraçáo de escritotes pretensiosos, de
poder mais baixo, cultural e politicamente ~ eu diria po-
todos aqueles que, por tnem passado, em menos de trinta
licialescamente3 .-- toda a herança de dois séculos de luta
anos, dos terrorismos maoístas ou trotskistas às posições de
pela autonomia do microcosmo literário; e, com c1e, pros-
poder nos bancos, nas g~alldes seguradoras, na política ou
titui todos os aurores, muitas vezes heróicos, que invoca no
seu ataque de recenseador literáric/ para jornais e revistas no jornalismo, lhe conceder:1O com prazer a indulgência.

semi-oficiais, Voltaire, Proust aLI Joyce. Sua originalidade ~ porque de tem urna: fez-se o teórico
O culto das transgressões sem perigo, que reduz a liber- das virtudes da tenegação c da rLil~:\O, condenando assim
tinagem à sua dimensão erótica, leva a fazer do cinismo uma ao dogmatismo, ao arcaísmo c ;l{C: ~IO lerrorismo, por uma

das belas-artes. Insti tuir como revra


o
de vida o "anllthitw
J Ou
voes" prodigiosa inversão auto-juslificac1or;l, rodos aqueles que se
pós-moderno, e permitir-se jog;u simultânea ou sucessiva- recusam a se reconhecer no novo c.,rilo liberado e desencan-
mente em loàos os tabuleiros, é lograr o meio de "ter tudo tado de tudo. Suas inumeráveis illlervenções públicas SJO

e não pagar nada", a crítica da sociedade do espetáculo e o exaltaçóe'; da Il1consd.ncia, ou, ma:~; exatamente, da dupL1
vedetisIllCl da mídia, 5 ü culto de S;lde c a reverência po:- .ruiu mconstáncu,- feit3. sob mcchda I'~n;l [eforçu a visão bur-
Paulo 1(, as profissóes de fé revolucionárias e a defesa (LI guesa das rcvohas Jrtisricas--- 'lll!.'. por uma dupla mr:ia-
ortografia, a sagração do escritor e o massacre da ]:lcr;Hllla volta, uma dupla meia-revoluçao, (c,:ollduz ao pomo de
(penso crn jT;trronCJ). partida) às irnpaciênclas urger~tes Jo;uvcrn bu:gaé:; p;"ovin-
Aqucle que se; .-rpreser'u e se imagina vivendo (orno unl,l ciano, para quem IVb\lnac e !\r..l!;o!l '_~Su(Ovj:ml l.Jl"(;[ácio:;.
(~-n(:~;-na~,;án da !ibcr(L~de Sé'rnpre pairoH COnl() Si.nlj)JCr , jjnL~- I':n",~5J r/c /99.5


24 Contra fogos

NOTAS

(NE.)
I. Philippe SoI!('rs, escritor francês, fundador e diretor da revista Tel Quel o destino dos estrangeiros
2. Balladur: membro do RPR, partido conservador, candidato à presidência como schibboleth *
da República, contra Jacques Chirac e Lione! Jospin. (N.E.)
3. Balladur, quando primeiro-ministro de "co-habitação", tinha Charles
Pasqua como ministro do Interior, autor de uma lei especialmente iníqua
sobre a imigração. (N.E.)
4. Recenseador literário: Philippe Sollers mantém uma coluna permanen-
te de crítica literária no jornal Le Monde. (N.E.)
5. Crítico da sociedade do espetáculo e do vedetismo da mídia: Philippe A questão do estatuto que a França atribui aos estrangeiros
Sollers é um grande admirador das obras de Guy Debord e 11m patlicipante não é um "detalhe". É um falso problema que, infelizmente,
assíduo de todo tipo de programas de TV. (NE.)
6. Philippe Sollers escreveu um livro inritulado Théone deJ exaptiollJ. se impôs pouco a pouco como uma questão central, terri-
(NE)
velmente mal formulada, na luta política.
Convencido de que era fundamental obrigar os diferentes
candidatos republicanos a se expressar claramente sobre essa
questão, o GtupO de Exame dos Programas Eleitorais sobre
os Estrangeiros na França (GEPEF) fez uma experiência cujos
resultados merecem ser conhecidos. Diante da interrogação
que lhes foi colocada, os candidatos se omitiram - à exce-
ção de Robert Hue e Dominique Voynet, 1 que fizeram dela
um dos temas centrais de Slla campanha, com a revogação
das leis Pasqua, a regularização do estatuto das pessoas

• Esre texto, publicado no Libération em 3 dI" maio de 1995, com a


assinatura de Jeau- Piare Alaux e a minha. apresenta o balanço da pesquisa
que o GFI'EE (Grupo de Exame dos Programas Eleito.ais sobre os Estrangeiros
l1a Fran<;a) lanço" em matço de 1995, com oito candidatos à eleição
presidencial "a firn de eXal1l;nar com eles os .(,('us. projetos relativos à situação
dos ,estrangeiro, !H França", tem:l praHcamente excluído da campanha
eleitor:l!.

25
f
,

26 Contra fogos o destino dos estra ngeiros como schibbolet 27

não-expulsáveis, a preocupação em garantir o direito das "emigraram" de lugar algum, e das quais se diz, aliás, que
minorias. Edouard Balladur enviou uma carta enunciando são "de segunda geração"? Do mesmo modo, uma das fun-
generalidades sem relação com as nossas 26 perguntas. Jac- ções mais importantes do adjetivo" clandestino", que as boas
ques Chirac não respondeu a nosso pedido de entrevista. alnus zelosas de respeitabilidade progressista associam ao
Lionel Jospin deu procuração a Martine Aubry e Jean-Chris- termo" imigrantes", não seria criar uma identificação verbal
tophe Cambadélis, infelizmente tão pouco esclarecidos e mental entre a travessia clandestina das fronteiras pelos
quanto esclarecedores sobre as posições do seu candidato. homens e a travessia necessariamente fraudulenta, e logo
Não é preciso ser um gênio para descobrir em seus silên- clandestina, de objetos proibidos (de ambos os lados da
cios e seus discursos que eles não têm grande coisa a opor fronteira) como drogas ou armas? Confusão criminosa qt.:e
ao discurso xenófobo que, há anos, trabalha para trambr p("rmire pensar esses homens como criminosos.
mar em ódio as desgraças da sociedade, o desemprego, a Os políticos acabam pensando que tais crenças são uni-
delinqüência, a droga etc. Talvez por fàlta de convlcçóes, versalmente c0ll1p:1rtilhadas por seus eleitores. Sua demago-
talvez por medo de perder votos ao cxprimi-Ias, eles acaba- gia clcirmal repousa, de faro, no postulado segundo o qual
ram por não falar mais sobre esse Etlso problema sempre a "opinião pública" (~ hostil à "imigração", aos estrangeiros,
presente e sempre ausente, a IÚO ser por cstereótipos con- a qualquer espécie de abertura das fronteiras. Os vereditos
vencionados e subentcndidos mais ou menos envergonha- dos "fazedores de sondagens", esses astrólogos modernos, e
dos, evocando por exemplo a "segurança", a necessidade de as injunções dos assessores, que lhes dão um ar de compe-
"reduzir ao máximo as entradas" ou de controlar a "imigração tência e convicção, lhes recomendam trabalhar para" con-
clandestina" (não sem lembrar na ocasião, a [!ln de parecer quistar os votos de Le Pen". Ora, para nos limitarmos a apenas
progressista, "o papel das traficantes e dos patrÕes" que explo- um argumento, mas bem calibrado, o próprio resultado
ram). alcançado por Le Pen, depois de quase dois anos de leis
Todos os cálculos eleitoreiros, encorajados pela lógica de Pasqua, de disC\L-"l)~ e de práticas de segurança, leva a con-
UH1 universo politico-midiático fascinado pelas pesquisas, clui,r que, quanto mais se reduzem os d.ireitos dos estran-
repousam em uma série de pressupostos sem fundarnento: geiros, mais aumentanl os batalhões de eleitores da Frente
a íÚO ser que se considere corno fundamento a !óglca m"is Nacional (essa constataçao, evidentemente, é um tanto sim-
pnmiliv8 da participação mágica, da contaminação por con- pliftcadon, porém n:io flUIS do que a tese muitas vezes
laio e da associação verbal. Um exemplo entre nd: ,:omo apre.'ient~da de que meia ITledida para melhorar o estatuto
,e pode falar de "imif':!antd' a respeito de peS::O;lS qé:C> n;w jurídico dos ;:SiTangeirm presente, no território francês teria
f
f

o destino dos estrangeiros como schibbolet 29


28 Contrafogos

como efeito fazer subir a aceitação de Le Pen). De qualquer atual da França em matéria de "acolhimento" aos estrangei-
modo, em lugar de atribuir apenas à xenofobia o voto na ros. Esse deveria ser Lionei Jospin... Mas será que ele quer
Frente Nacional, o mais correto setria estudar alguns outros isso?
fatores, como por exemplo os casos de corrupção envolven- Paris, maio de 1995
do o universo midiático-político.
Dito isso, continua sendo necessário repensar a questão
do estatuto do estrangeiro nas democracias modernas, isto NOTAS
é, a questão das fronteiras que podem ser ainda legitima...
. ,
1. Roberl IllIe, secretário geral do Partido CornurllSta.
. Domlnlque
.' Voy-
M'
mente impostas aos deslocamentos das pessoas em universos
IH"(, dili~~<:lItl' dr Ufll dos partido~ c:cololji\L1s, .Hl1.dnlcnte minIstro do elO
que, como o nosso, tiram enorme proveito de todos os tipos Ambielllc do governo Jospin. (Nr)
de circulação de pessoas e de bens. Pelo menos, seria neces- 2 MilllSl ro do Imeriof. '[rala-se de Pas<Jua. (N.E)
é;: Prova decisiva, quc permilc julgar a capacidade de urna pessoa. (N.E.)
sário, a curto prazo e nem que fosse na lógica do inreresse
mais amplo, avaliar os cusros para o país da política de
segurança associada ao nome do sr. Pasqua:" custas provo··
cados pela discriminaç;ío nos e pelos controles policiais,
discriminação sob medida para a criar ou reforçar a ".fatura
social', e pelas ofensas, que se generalizam, aos direitos
fundamentais, custos para o prestígio da França e sua tra-
dição particular de defensora dos direitos humanos etc.
A questão do es~atuto concedido aos estrangeiros é real-
mente o critério decisivo, o schibboletl? que permite juigar
a capacidade que os candidatos têm de tomar partido, em
todas as suas escolhas, entre a Fr2nç:3 mesquinha, rEgressiva,
medrosa, protecionista, conserv;ldora, xenófoba, e a Fr;uliça
aberta, progressista, internacionalista, unlversalislJ. f~ por
IS50 que a escolha dos eleirorcscid~'.dãos dever!;] recair 110
candidato que se empenhasse, da mdJ1tir3 mai" clara, em
operar a ruptura mais radic:d c m~:;!5 total com a política
,

Os abusos de poder que se armam uu se baseiam na razão 31

ocidental, que leva a agir como se alguns homens tivessem


o monopólio da razão e pudessem instituir-se, como se diz
Os abusos de poder que se arrnarn habitualmente, corno polícia do mundo, isto é, detentores
auroproclamados do monopólio da violência legítima, ca-
ou se baseiam na razão""
pazes de pôr a força das armas a serviço da justiça universal.
A violência terrorista, através do irracionalismo do desespe-
ro no qual se enraíza quase sempre, remete à violência inerte
dos poderes que invocam a razão. A coerção econômica se
[...] Vem do fundo dos países islâmicos uma questâo I1lUilO disEII<,-a muitas vC/.cs dc razócs jurídicas. O imperialismo se
profunda em relação aO falso universalismo ocidental, ao vale da legitimidade das instàncias illlcrnacionais. E, pela
que eu chamo de imperialismo do universal. I A França f<li própria hipocrisia das racionalizaçi>es destinadas a mascarar
a encarnação por excelência desse imperialismo, <pre provo- os seus duplos critérios, ele tende a suscitar ou a justificar
cou aqui, neste país mesmo, um nacional-pof'ulisll1o, a meu no seio dos povos árabes, sul-americanos, africanos, uma
ver associado ao nome de HerdeI. Se é verdade que certo revolta muito profunda contra a razão, que não pode ser
universalismo é apenas um nacionalismo que invoca o uni- separada dos abusos de poder que se armam ou se baseiam
versal (os direitos humanos ele.) para se impor, torna-se na razão (econômica, científica ou outra). Esses "irraciona-
menos fácil tachar de reacionária toda reação fundamenta- lismos" são em parte o produto do nosso racionalismo,
lista contra ele. O racionalismo científiCO, o dos modelos illl.perialista, invasor, conquistador ou medíocre, limitado,
matemáticos que inspiram a política do FMI ou do Banco defensivo, regressivo e repressor, segundo os lugares e os
Mundial, o das Lawfirms, grandes muÍtinacionais jurídicas momeIltos. Também faz pane da defesa da razão o combate
que impõem as tradições do direito americano ao planeta ~jqueles que mascaram sob as aparências da razão os seus
inteiro, o das teorias da ação racional etc., esse racionalismo abusos de poder, ou que se servem das armas da razão para
é ao mesmo tempo a expressão e a GlLIJÇão de uma arrogância fundamentar ou justificar um império arbitrário.
Frankfurt, outubro de 199)

lntcncnç::io na disctlssâo púbEca orgJ.íúz.:?da pe!') p(lrl,:~menro Inter-


n2cio:l~Jdos Escritores na Fei:<l do Livro de Frlpkfl1r:t, crn 15 de outubro
dê i995.
f

1I
i
,i 32 Contrafogos

NOTA

I. P. Bourdieu, "Deu" impérialismes de I'universd", in C. Fauré e T. Com a palavra, o ferroviário *


Bishop (OlgS.). L'Amériquc des Frantais, Paris, François Bourin, 1992. p.149-

I I' I
55. (N.E.)

IlIlerror;ado depois da explosáo ocorrida na terça-feira, 17


de oUlubro, 110 segundo vag;ío do rrem suburbano que ele
conduzia, um ferroviário que, segundo testemunhas, execu-·
tara com sangue-frio exemplar a evacuaçáo dos passageiros,
alertava contra a tentação de acusar a comunidade argelina:
são, dizia ele simplesmente, "pessoas como nós".
Esse depoimento extraordinário, "verdade .rã do povo",
como dizia Pascal, rompia subitamente com as declarações
de todos os demagogos habituais que, por inconsciência ou
premeditação, se ajustam à xenofobia ou ao racismo que
atribuem ao povo. E.sses mesmos demagogos que contri-
buem para produzir essas atitudes discriminatórias, ou emão
se baseiam em supostas expectativas daqueles por vezes cha-
mados de "humildes", para oferecer· lhes, pensando satisfa-
zê··los com isso, os pensamentos ~implistas que lhes são
atribuídos, são também os mesmos que se apóiam na sanção
do mercado (e dos anunciantes), traduzida peJos indices de
,

Com a palavra, o ferroviário 35


Contrafogos
34

a vingança preventiva, logo se tornariam menos tranqüili-


audiência ou pelas pesquisas, e cinicamente identificada ao
zadoras.
veredito democrático da maioria, para impor a todos a sua
Essa faJa simples continha uma exortação, por exemplo,
vulgaridade e sua baixeza.
a combater resolutamente todos aqueles que, no desejo de
Essa declaração singular era a prova de que se pode resistir
simplificar todas as coisas, mutilam uma realidade histórica
à violência que se exerce cotidianamente, com toda a tran-
ambígua para reduzi-la às dicotomias tranqüilizadoras do
qüilidade, na televisão, no rádio ou nos jornais, através dos
pensamento maniqueísta que a televisão, inclinada a con-
automatismos verbais, das imagens banalizadas, das falas
fundir um diálogo racional com uma luta livre, instituiu
batidas, e à insensibilização que a violência produz, elevando
como modelo. (~ infinitamente mais fácil tomar posição a
pouco a pouco, em toda uma população, ° limiar de tole- favor 011 contra uma idéia, um valor, uma pessoa, uma
rância ao insulto e ao desprezo racistas, minando as defesas
instiruiçáo ou uma situaçáo, do que analisar em que con-
críticas contra o pensamento pré..lógico c a confus;io verbal
sistem na verdade, em toda a sua complexidade. Tanto mais
(entre islã e islamismo, entre muçulmano c islal1lista, ou
rapidamente se tomarií partido a respeito do que os jorna-
entre islamista e tetrorista, por exemplo), refon;alldo sub-
listas chamam de "um problema de sociedade"- c do
repticiamente todos os hábitos de pensamento e de com-
"véu", I por exemplo -- quanto mais se for incapaz de
portamento herdados de mais de um século de colonização
analisar e compreender-lhes o sentido, muitas vezes total-
e de lutas coloniais. Seria preciso analisar detalhadamente
mente contrário à intuição emocêntrica.
o registro cinematogrifico de um único dos 1.850.000 "con-
As realidades históricas são sempre enigmáticas e, sob sua
troles" que, para grande sarisfação do nosso ministro do
aparente evidência, difíceis de decifrar; e certamente não
Interior, foram efetuados recentemente pela polícia, para
existe nenhuma que apresente essas características em tão
dar urna rápida idéia da miríade de humilhações ínfimas
alto grau quanto 1 realidade argelina. É por isso que ela
(tratamento desrespeitoso, revista em público etc.) ou de
representa, para o conhecimento e para a aç::ío, um exuaOf-'
injustiças e delitos flagrantes (brutalidades, portas arromba-
d1l1ário desafio: prova definitiva para rodas as análises, ela
das, privacidade violada) que teve que sofrer uma fração
é também, e principalmente, uma pedra de toque para todos
imponarne do~: ádadáos ou dos hóspedes àeste país, outrora
os engajamentos.
farnoso pela sua abertura ::lOS 'êstrangeiros; e para dar uma
'Ness e caso mais do que nunca, a anál.i~( IIp;0fOS;J. da;;
idéia também da índigneJç5.o, da revolta ou do furor que
<:nuJÇOCS e das insrituições é sem dúvida o antídoto
esse componarnentü pode provocar: as declarações minis-
(Ollera as vlsóes parCIJ.lS e contra rodos os rnaniqueisrnos ._.
teriais, Vi,,!vcJmC'1.té destínadas a rranqüilizar, ou a satisfazer

(

36 Contrafogos

muitas vezes associados às complacências farisaicas do pen-


samento "comunitarista" --, que, através das representações
que geram e das palavras em que se expressam, são freqüen- Contra a destruição
temente carregados de conseqüências mortíferas. de uma civilização"

NOTA

I. Problema do véu: portar o "véu" na escola provocou vigorosos proresros


Estou aqui para oferecer nosso apoio a todos os que lutam,
por parte de um certo número de "intelectuais", que viram nisso uma ameaça
à laicidade republicana. (N.E.) h1 três semanas, contra a destruição de uma civilização,
associada à existência do serviço público, a da igualdade
republicana dos direitos, direito à educação, à saúde, à
cultura, à pesquisa, à arte, e, acima de tudo, ao trabalho.
Estou aqui para dizer que compreendemos esse movi-
mento profundo, isto é, ao mesmo tempo o desespero e as
esperanças que nele se exprimem, e que também sentimos;
para dizer que não compreendemos (ou que compreende-
mos até demais) aqueles que não o compreendem, como
aquele filósofo que,} no Journal du Dimanche de 10 de
dezembro, descobre com espanto "o abismo entre a com··
preensáo racional do mundo", personificada, segundo ele,
por ]uppé -- diz isso com todas as letras - e "o desejO
profundo das pessoas".
Essa oposição entre a visão a longo prazo da Helite"
esclarecida e as pulsóes a curto prazo do povo ou de seus

Interven~'ao na C;are de Lyon. por ocasião das greves de dezembro de


;99').

37
38 Contrafuyos Contra a destruição de uma civilização 39

representantes é típica do pensamento reacionário de todos uma coisa sua. O que está em jogo hoje é a reconquista da
os tempos e de todos os países; mas ela assume hoje uma democracia contra a tecnocracia: é preciso acabar com a
forma nova, com a nobre'La de Estado, que respalda a con- tirania dos "especialistas", estilo Banco Mundial ou FMI,
vicção da sua legitimidade no título escolar (~ na autoridade que impõem sem discussão os vereditos do novo Leviatã,
da ciência, sobretudo da ciência econômica: para esses novos "os mercados financeiros", e que não querem negociar, mas
I I i
governantes de direito divino, não só a razão e a moderni- "explicar"; é preciso romper com a nova fé na inevitabilidade
dade, mas também o movimento e a mudança estão do lado histórica que professam os teóricos do liberalismo; é preciso
dos governantes, ministros, patrões ou "especialistas"; a des-- inventar as novas formas de um trabalho político coletivo
razão e o arcaísmo, a inércia e o conserv:loorismo do lado capa:r. de levar em conta necessidades, principalmente eco-
do povo, dos sindicatos, dos intelectuais críticos_ númÍcas (isso pode ser tarefa dos especialistas), mas para
É essa Certeza tecnocrática que JupP(: cxprimc, quando combatê las c, se !lll· o caso, ncurrali·ó-las.
diz: "Quero que a França seja UIl1 país sério e um país feliz." A crise de hoje é uma oportunidade histórica, para a
O que pode se traduzir assim: "Quero que as pessoas sérias, hança c sem dúvida também para todos aqueles que, cada
isto é, as elites, os burocratas, os que sabem onde está a dia mais numerosos, na Europa e no mundo, rejeitam a
felicidade do povo, possam fazer a felicidade do povo, mes- nova alternativa: liberalismo ou barbárie. Ferroviários, em-
mo à sua revelia, isto é, contra a sua vontade; de tàto, pregados do correio, professores, funcionários públicos, es-
tornado cego por seus desejos, de que falava o filósofo, o tudantes e tantos outros, ativa ou passivamente engajados
povo não conhece sua felicidade ---- e em particular a feli- no movimento, expuseram, com suas manifestações, decla-
cidade de ser governado por pessoas que, como o sr. Juppé, rações e as inúmeras reflexões que provocaram e que a
conhecem sua felicidade melhor do que ele." Eis como mordaça da mídia tenra em vão abafar, problemas absolu-
pensam os tecnocratas e como eles entendem a democracia. tamente fundamentais, importantes demais para serem re-
E compreende-se que eles não compreendam que o povo, legados a tecnocratas tão presunçosos quanto limitados:
em nome de quem pretcndr:m governar, vá para as lUas ---- COlHO restituir aos prm:elws !ntcrcssados, isto é, a cada um
cúmulo da ingratidão! -- para opor-se a eles. de nós, a definição esclarecida e razoável do futuro dos
Essa nobre?";] de Estado, que prega a extinção do Estado serviços públicos, saúde, educação, transportes etc, em li·
e o reinado absoluto do mercado e do consumidor. substi· gaçâo sobretudo com os que, nos outros países da f:\Hopa,
uno cornerci:J! do cidadão, assaltou o Estado: fez do bem estão expostos às mesmas :UllC'.3';as? Como rCll1venrar a esc.
(
públICO urn bê[)] pnvado, da coisa pública, da RepúbiKa, cob da ReplÍbl íca, recusando 3 IIbtalaçã;) piOi;rcssiva, no
«



t
I

40 Contrafogos Contra a destruição de uma civilização 41

nível do ensino superior, de uma educação de duas medidas, Esse programa pode parecer abstrato e puramente teóri-
simbolizada pela oposição entre as Grandes escolas e as co. Mas podemos recusar o tecnocracismo autoritário sem
faculdades? E podemos fazer a mesma pergunta a propósito cair num populismo, ao qual os movimentos sociais do
da saúde ou dos transportes. Como lutar contra a precari- passado muitas vezes aderiram, e que faz o jogo, uma vez
zação que atinge todo o pessoal dos serviços públicos e que mais, dos tecnocratas.
acarreta formas de dependência e de submissão, particular- O que eu quis expressar, de qualquer forma, talvez sem
mente funestas nas empresas de difusão cultural, rádio, muita habilidade - e peço perdão aos que possa ter chocado
,;1
" televisão ou jornalismo, pelo efeito de censura que exercem, ou entediado - , é uma solidariedade real para com os que
I ,I
I' ]1
ou mesmo no ensino? hoje lutam para mudar a sociedade: penso efetivamente que
I; I,i[ No trabalho de reinvenção dos serviços públicos, os in- só se pode combater eficazmente a tecnocracia, nacional e
'li

telectuais, escritores, artistas, eruditos etc. têm um papel internacional, enfrentando-a em seu terreno privilegiado, o
determinante a desempenhar. Primeiro, podem contribuir da ciência, principalmente da ciência econômica, e opondo
para quebrar o monopólio da ortodoxia tccnocrática sobre ao conhecimento abstrato e mutilado de que ela se vale um
os meios de comunicação. Mas também podem lutar de conhecimento que respeite mais os homens e as realidades
maneira organizada e permanente, e não só nos encontros com as quais eles se vêem confrontados.
ocasionais de uma conjuntura de crise, ao lado daqueles que Paris, dezembro de 1995
podem orientar eficazmente o futuro da sociedade, associa-
ções e sindicatos principalmente, e trabalhar para elaborar
análises rigorosas e propostas inventivas sobre as grandes NOTA
questões que a ortodoxia midiático-política proíbe apresen-
tar: penso particularmente na questão da unificação do I. .. Pilósofo que...»: trata-se de Paul Ricoeur. (N.E.)

campo econômico mundial e dos efeitos econômicos e so-


ciais da nova divisão' mundial do trabalho, ou na questão
das pretensas leis pérreas dos mercados financeiros, em
nome das qUílis são sacrificadas tantas iniciativas políticas,
na questão das funções da educação e da cultura, nas eco-
nomias em que o capital inforrnaciona! se tornou uma das
{-orças produtivas mais determinantes etc.
o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 43

puseram pouco a pouco como legítimas, ora das caracterís-


ticas de seus autores, ou dos colóquios nos quais estes se
' ri
O mzto _a ((mun._d'"
la lzaçao e F" J)
reuniam para produzi-los etc., eles mostraram como, tanto
o Estado social europeu * na Inglaterra quanto na França, um trabalho constante foi
feito, associando intelectuais, jornalistas, homens de negó-
cios, para impor como óbvia uma visão neoliberal que, no
essencial, reveste com racionalizações econômicas os pres-
supostos mais cLíssicos do pensamento conservador de to-
Ouve-se dizer por toda a parte, o dia inteiro -- aí reside a dos os tempos c de rodos os países. Penso num estudo sobre
força desse discurso dominante - que não há nada a opor () papel da revista PreulJes, que, financiada pela elA, foi
à visão neoliberal, que ela consegue se apresentar como apadrinhada por grandes intclc~tuais franceses e que, du-
evidente, como desprovida de qualquer alternativa. Se da rante 20 a 25 anos - para que algo falso se torne evidente,
comporta essa espécie de banalidade, é porqlH: há lOdo um leva tempo-, produziu incansavelmente, a princípio COIl··
trabalho de doutrinação simbólica do qual participam pas- tra o pensamento dominante, idéias que pouco a pouco se
sivamente os jornalistas ou os simples cidadãos e, sobretudo, tornaram evidentes. 1 A mesma coisa ocorreu na Inglaterra,
ativamente, um certo número de intelectuais. Contra essa e o thatcherismo não nasceu com a sra. Thatcher. Ele foi
imposição permanente, insidiosa, que produz, por impreg- longamente preparado por grupos de intelectuais que dis-
nação, uma verdadeira crença, parece-me que os pesquisa- punham, em sua maioria, de espaço nos grandes jornais.]
dores têm um papel a desempenhar. Primeiro, eles podem Uma primeira contribuição possível dos pesquisadores po-
analisar a produção e a circulação desse discurso. Há cada deria ser trabalhar na difusão dessas análises, sob formas
vez mais trabalhos, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na acessíveis a todos.
França, que descrevem de modo muito preciso os procedi- Esse trabalho de imposição, começado há muito tempo,
mentos a partir dos quais essa visão de mundo é produzida, cominua hoje. E pode-se observar regularmente o apareci.
difundida e inculcada. Por toda uma série de análise ora dos menlO, como por miiagre, num intervalo de poucos dias,
textos, ou revistas ·nas quais eram publicados e que se im-o em todos os joma:~; franceses, com variantes ligadas à posi·
';ão de ca(b jornal no UnIverso dos jornais, de constatações
sobre a silUaçào~conômica míIagrosa dos Estados Unidos
j n rCívençlo Cordederaçáo Geral dos -nabaHnciof"'$ Grq;;.o'i ((;SEE),
!l;l
nu da rng\:lIcfLI Essa t:.,~)écie de gota-a-8ota simbólico, par,}
;~'Jn Atenas, en) outubro de 1996.

2
44 Contrafogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 45

o qual os jornais escritos e televisados contribuem muito Contra essa doxa, parece-me, é preciso defender-se, sub-
fortemente -- em grande parte inconscientemente, porque metendo-a à análise c tentando compreender os mecanis-
a maioria das pessoas que repetem essas declarações o fazem mos segundo os quais ela é produzida e imposta. Mas isso
de boa fé - , produz efeitos muito profundos. É assim que,
não basta, mesmo sendo muito importante, e pode-se-Ihe
no fim das contas, o neoliberalismo se apresenta sob as
opor um certo número de constatações empíricas. No caso
aparências da inevitabilidade.
da França, o Estado começou a abandonar um certo número
É todo um conjunto de pressupostos que são impostos
de terrenos de açao social. A conseqüência é uma soma
como óbvios: admite-se que o crescimento máximo, e logo
extraordin:íria de sofrimentos de todos os tipos, que não
a produtividade e a competitividade, é o fim último e único
afetam apenas as pessoas que vivem em grande miséria.
das ações humanas; ou que não se pode resisri r J..~ 1(Jr(,:as
Assim, pode-se mostrar que, na origem dos problemas ob··
econômicas. Ou ainda, pressuposto que fillldamenra rodos
os pressupostos da economia, faz-se UIll corte radicalcIHre servados nos subúrbios das grandes cidades,.i há uma política
o econômico e o social, que é deixado de lado e abandonado neoliberal de habitação que, posta em prática nos anos 1970
aos sociólogos, como lima espf:cie de ('n rulho. Outro pres.- (a ajuda "à pessoa"), provocou uma segregação social, colo-
I' suposto importante é o léxico comum que nos invade, que cando de um lado o subproletariado composto em boa parte
I':
.Ii
j'i absorvemos logo que abrimos um jornal, logo que escuta- de imigrantes, que permaneceu nos grandes conjuntos co-
mos o rádio, e que é composto, no essencial, de eufemismos. letivos, e, do outro lado, os trabalhadores permanentes do-
Infelizmente, não tenho exentplos gregos, mas penso que tados de um salário estável e a pequena burguesia, que
os senhores não terão dificuldade em achá-los. Por exemplo, partiram para pequenas casas individuais compradas a cré-
na França, não se diz mais "patronato", diz-se "as forças dito, e que lhes trouxeram enormes dificuldades. Esse cone
vivas da nação"; não se fala mais de demissões, mas de social foi determinado por uma medida política.
"cortar gorduras", utilizando uma analogia esportiva (um Nos Estados Unidos, assiste--se a um desdobramento do
corpo vigoroso deve ser esbelto). Para anunciar que uma Estado: de um lado, um Estado que mantém as garamias
empresa vai demitir 2.000 pessoas, fala-se do "plano social sociais, m.as para os privilegiados, suficientemente cacitàdos
corajoso da Akatel". Há também todo um jogo com as pai:.! que possam dar segurança, garantias; de ourro, um
conotações e as associações de palavras como fiexibílidade, ESlado repressOl, policialesco, para o povo. No estado da
malcabilidade, desregulament~lção, que rendem a fazer crer Ca!ifórn~a. um do:; mais ricm dos Estados Unidos-- IlOl
que a mensagem neoliberal é iJma mens3gem universalista
um momemo considerado por alguns sociólogos france5t" s1
de libertaçáo.
C\':tno (} paraiso de todas as liberações- e também dos m,lÍs
46 Contra fogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 47

conservadores, dotado da universidade certamente mais diferentes países quanto mais fortes eram neles as tradições
prestigiada do mundo, o otçamento das prisões é superior, estatais. E isso se explica porque o Estado existe sob duas
desde 1994, ao orçamento de todas as universidades reuni- formas: na realidade objetiva, sob a forma de um conjunto
1
das. Os negros do gueto de Chicago só conhecem, do de instituições como regulamentos, repartições, ministérios
I'
I'
I Estado, o policial, o juiz, o carcereiro e o parole officer, isto etc., e também nas cabeças. Por exemplo, no interior da
é o oficial que aplica as penas, diante de quem eles devem burocracia francesa, quando da reforma do financiamento
. se apresentar regularmente, sob risco de voltar à prisão. da habitação, os ministérios sociais lutaram contra os mi-
Temos ali uma espécie de realização do sonho dos domi- nistérios financeiros para defender a política social da ha-
nanres, um Estado que, como mostrou Loi'c Wacquant, se bitação. Esses funcionários tinham interesse em defender
reduz cada vez mais à sua função policial. seus ministérios, suas posições; mas foi também porque
O que vemos nos Estados Unidos, e que se esboça na acreditavam nelas, porque defendiam suas convicções. O
Europa, é um processo de involução. Quando se estuda o Estado, em todos os países é, em parte, o vestígio de con-
nascimento do Estado nas sociedades em que o Estado se quistas na realidade sociais. Por exemplo, o ministério do
constituiu mais cedo, como a frança e a Inglaterra, obser- Trabalho é uma conquista social que se tornou realidade,
va-se primeiro uma concentraçao de força física e uma embora, em certas circunstâncias, ele também possa ser um
concentração de força econâmica-- ambas funcionando instrumento de repressão. E o Estado também existe na

juntas; é preciso dinheiro para fazer guerras, para fazer o cabeça dos trabalhadores sob a forma de direito subjetivo
("isso é meu direito", "não podem fazer isso comigo"), de
policiamento etc., e é necessária a força da polícia para poder
apego às "conquistas sociais" etc. Por exemplo, uma das
arrecadar dinheiro. Em seguida, tem-se uma concentração
grandes diferenças entre a França e a Inglaterra é que os
de capital cultural, e uma concentração de autoridade. Esse
ingleses thatcherizados descobrem que não resistiram tanto
Estado, à medida que avança, adquire autonomia, torna-se
quanto teriam sido capazes, em grande parte porque o
parcialmente independente das [orças sociais e econômicas
COntrato de trabalho era um contrato de cormnon lalO, e não,
dominantes. A burocracia de Esrado começa a ser capaz de
(orno na França, uma convenção garantida pelo Estado. E
distorcer as vontades dos dOlmmntes, de interpretá-las c, às
hoje, paradoxalmente, no momemo em que 11.1 Europa
vezes, de inspirar políticas.
COlHí.ncmal se exalta o moch,lú da Inglaterra, no meSrfl.o
O processo de regressão do Escado m.ostra que a resistên-
momento os nabalhadores ingleses olham para <) Comjn·~n­
cia à crença e à política neoliberais é tanto mais fone nos
To:: (' de:·;coblelTl que de oferece coisas que sua tfadic,io

4
,I '!

48
Contrafogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 49

operária não lhes oferecia, isto é, a idéia de direito do operanos trabalham 12 horas por dia por um salário que

trabalho. varia entre 114 e 11 15 do salário euwpeu, onde não há


O Estado é uma realidade ambígua. Não se pode dizer sindicatos, onde as crianças são postas para trabalhar etc. E
apenas que é um instrumento a serviço dos dominantes. é em nome desse modelo que se impõe a flexibilidade, outra
Sem dúvida, o Estado não é completamente neutro, com- palavra-chave do liberalismo, isto é, o trabalho noturno, o
pletamente independente dos dominantes, mas tem uma trabalho nos fins-de-semana, as horas irregulares de traba-
I'
I autonomia tanto maior quanto mais antigo ele for, quanto lho, coisas inscritas desde toda a eternidade nos sonhos
mais forte, quanto mais conquistas sociais importantes tiver patronais. De modo geral, o neoliberalismo faz voltar, sob
registrado em suas estruturas etc. Ele é o lugar dos conflitos as aparências de uma mensagem muito chique e muito
, !
(por exemplo, entre os ministérios financeiros e os minis- moderna, as idéias mais arcaicas do patronato mais arcaico.
térios "gastadores", encarregados dos problemas sociais). (Algumas revistas, nos Estados Unidos, estabelecem um
Para resistir à involução do Estado, isto é, contra a regressão quadro de honra desses patrões aguerridos, que são classifi-
a um Estado penal, encarregado da repressão, sacrificando cados, como o seu salário em dólares, de acordo com o
pouco a pouco as funções sociais, educa~~ão, saúde, assistên- número de pessoas que eles tiveram a coragem de demitir).
cia etc., o movimento social pode encontrar apoio nos res- É característico das revoluções conservadoras, a dos anos 3D
ponsáveis pelas pastas sociais, encarregados da ajuda aos na Alemanha, a de Thatcher, Reagan e outros, apresentar
desempregados crônicos, que se preocupam com as rupturas restaurações como revoluções. A revolução conservadora
da coesão social, com o desemprego etc., e que se opõem assume hoje uma forma inédita: não se trata, como em
aos responsáveis pelas finanças, que só querem saber das outros tempos, de invocar um passado idealizado, através
coerções da "globalização" e do lugar da França no mundo. da exaltação da terra e do sangue, temas arcaicos das velhas
Falei da "globalização": é um mito no sentido fone do mitologias agrárias. Essa revoluçáo conservadora de tipo
termo, um discurso poderoso, uma "idéia-força", uma idéia novo tem como bandeira o progresso, a razão,. a ciência (a
que tem força social,que realiza a crença. É a a~ma principal economia, no caso), para justificar a restauração e tenta
I J
I' das lutas contra as conquistas do welfàre sttlte: os trabalha- assim tachar de arcaÍsmo o pensamento e a ação progressis-
dores europeus, dizem, devem rivalizar com os trabalhado- tas. Ela constitui como normas de todas as práticas, logo
res menos favorecidos do resto do mundo. Para que isso como regras ideais, as regularidades reais do mundo econô-
aconteça, propôe-se corno modelo, para os trabalhadores mico entregue à sua lógica, a alegada lei do mercado, isto
europeus, países em que o salário mínimo não existe, onde é, a lei do mais forte. Ela ratifica e glorifica o reino daquilo
(

Contra fogos o mito da "rnundialização" e ° Estado social europeu 51


50

que se chama mercados financeiros, isto é, a volta a uma ruído pela concorrência interna dos países europeus e o que
espécie de capitalismo radical, cuja única lei é a do lucro se chama às vezes o Jocial dumping: os países europeus de
máximo, capitalismo sem freio e scm disfarce, mas raciona- frágil proteção social, com salários baixos, podem tirar par-
lizado, levado ao limite de sua eficiência econômica pela tido de suas vantagens na competição, mas puxando para
introdução de formas modernas de dominação, como o baixo os outroS países, assim obrigados a abandonarem as
management, e de técnicas de manipulação, como a pesquisa conquistas sociais para resistir. Para escapar a esse círculo
de mercado, o marketing, a publicidade comercial. vicioso, os trabalhadores dos países avançados têm interesse
Se essa revolução conservadora pode enganar, é porque em associar··se aos trabalhadores dos países menos avançados
'0la não tem mais nada, aparentemente, do velho bucolismo para conservar as slIas conquistas e para favorecer a genera-
I, I
:/il~ ~loresta Negra dos revolucionár~os conservadores dos an~)s lizaçao destas a todos os trabalhadores europeus. (O que
~... ;, 30; ela se enfeita com todos os signos da moderlllllade. I'Ja não é Eícil, devido às diferenças nas tradições nacionais,
'i Ijlão vem de Chicago? Galileu diúa que o mundo natural particularmente no peso dos sindicatos em relação ao Estado
.' ~stá escrito em linguagem matem;ítica. Hoje, querem que e nos modos de financiamento da proteção social.)
~- âcreditemos que é o mundo econômico c social que se põe Mas isso não é tudo. Há também todos os efeitos, que
, ~m equações. l~oi armando-se da matemática (e do poder qualquer um pode constatar, da política neoliberal. Assim,
da mídia) que o ncoliberalismo se tornou a forma suprema um certo número de pesquisas inglesas mostra que a política
da sociodicéia conservadora que se anunciava, há 30 anos, thatcheriana provocou uma formidável insegurança, um
isob o nOlIle de "ftm das ideologias", ou, mais recentemente, sentimento de abatimento, primeiro entre os trabalhadores
!'
I
fi. ~~.
lide "fim da história".
P~la ~olllbater o mito da "m~tI1dialização", que tem ~)or
braçais, mas também na pequena burguesia. Observa-se
exatamente a mesma coisa nos Estados Unidos, onde se
funçao JIlstaural Ulna restauraçao, lima volta a um caplta assiste à multiplicação dos empregos precários e sub-remu-
lismo selvagem, mas racionalizado e cínico, é preciso voltar nerados (qlle fazem baixar artificialmente as tar,:as de desem··
aos t'3.tos. Se olharmos as estatísricas. observaremos que a prego). As classes médias amerÍcanas. submetidas à ameaça
concorrência que os trabalhadores europeus sofrem é, no
da demissão brutal, conhecem urna H'nível imegman~'a
essencial, iDtra"curopéia. Segundo as fontes que utilizo,
(mostrando assim que o irnpOftd,me num emprego não é
70% d3S UOCJS econômicas das nações européias se est<Jbe-
;;,pcl1as o trabalho e o salário que de ofércce, mas a segurança
lecem com o:][ros países europeus. Enfatizando a arm:aça
'!Ili~ de garante). Em todos os pahes, a pr0porl;2o dos trã·
cxtr~: esconde-se que .J principal perigo é consli··
f
,

52 Contrafogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 53

balhadores temporários cresce em relação à população dos de seus cúmplices, com as trocas de favores - , e principal-
trabalhadores permanl'ntes. A precarização e a flexibilização mente ao cinema (pergunta-se o que restará, daqui a dez
acarretam a perda das insignificantes vantagens (muitas ve- anos, de um cinema de pesquisa europeu, se nada for feito
Zl;:S descritas como privilégios de "marajás") que podiam para oferecer aos produtores de vanguarda meios de produ-
compensar os salários baixos, como o emprego duradouro, ção e sobretudo, talvez, de difusão); sem falar das ciências

as garantias de saúde e de aposentadoria. A privatização, por sociais, condenadas a submeter-se às encomendas direta-
mente interessadas das burocracias de empresas ou de Esta-
sua vez, acarreta a perda das conquistas coletivas. Por exem-
do, ou a morrcr pela censura dos poderes (representados
plo, no caso d::l França, 3/4 dos trabalhadores recentemente
pelos oportunIStas) ou do dinheiro.
contratados o são a título temporário, e apenas 1/4 desses
Sc a globalização é antes de tudo um mito justificador,
3/4 se tornarão trabalhadores permanentes. Evidcntcmcnte,
há um caso em que ela é bem real; é o dos mercados
os novos contratados são, em geral, jovens. O que faz com
financeiros. Graças à diminuição de um certo número de
que essa insegurança atinja essencialmente os jovens, na
controles jurídicos e do aprimoramento dos meios de co-
França - como também constatamos em nosso livro A
municação modernos, que acarreta a diminuição dos custos
miséria do mundo - e também na Inglaterra, onde o deses··
de comunicação, caminha-se para um mercado financeiro
pero dos jovens chega ao clímax, acarretando a delinqüência
unificado, o que não quer dizer homogêneo. Esse mercado
e outros fenômenos extremamente dispendiosos. financeiro é dominado por certas economias, isto é, pelos
A isso se acrescenta, hoje, a destruição das bases econô- países mais ricos, e particularmente pelo país cuja moeda é
micas e sociais das conquistas culturais mais preciosas da utilizada como moeda internacional de reserva e que, com
humanidade. A autonomia dos universos de produção cul- isso, díspôe, no interior desses mercados financeiros, de uma
tural em relação ao mercado., que não havia cessado de grande margem de liberdade. O mercado financeiro é um
crescer graças às lutas e aos sacriffcios dos escritores, artistas campo no qual os dominantes, os Estados Unidos nesse caso
e intelectuais, está cada vez mais ameaçada. O reino do partícular, ocupam uma posição tal 'lue podem definir em
"comércio" e do "comercial" St; impõe cada dia mais à grande parte as regras do jogo. Essa unificação d.os men::ados
literarura, notadamente por meio da concenrração dos ca- fin:lflccilOs em torno de um certo número de nações deten··
luis de ço.municação, cada vez mais diretamente submetido:; ll\ra~, da posição dominante acarreta uma redução da auto-o
às exigênCias do lucro irnediato; à critica literária e artística, 110 in la dos mercados financeiros nacionais. Os rlnancistas
emrcí":UC
. . v aos acólitos mais 0POfWl1Istas dos edirores-- ou fr.'1l1CCSeS, os inspetores das Finanças, que nos dizem que
I
1:
1
54 Contrafogos o mito da "rnundialização" e o Estado social europeu 55

.1
I
devemos curvar-nos à necessidade, esquecem de dizer que distribuição do capital financeiro (que define a estrutura do
I eles se tornam cúmplices dessa necessidade e que, através campo econômico mundial).
I
deles, é o Estado nacional francês que abdica. Diante desses mecanismos, o que se pode fazer? Seria
Em suma, a globalização não é uma homogeneização, necessário refletir primeiro sobre os limites implícitos que
I1 a teoria econômica aceita. A teoria econômica não leva em
mas, ao contrário, é a extensáo do domínio de um pequeno
iI número de nações dominantes sobre o conjunto das praças conta, na avaliação dos custos de uma política, o que se
financeiras nacionais. Daí resulta uma redefinição parcial chama de custos sociais. Por exemplo, uma política de ha-
da divisão do trabalho internacional, cujas conseqüências bitação, a que foi decidida por Ciscard d'Estaing em 1970,
atingem os trahalhadores europeus, por exemplo ao trans- implicava custos sociais a longo prazo, que nem apareciam
ferir capitais e indústrias para os países de mão-de-obra COIllO tais, pois, além dos sociólogos, quem se lembra, vinte
barata. Esse mercado do capital internacional tcnde a redu anos depois, dessa medida? Quem relacionaria um tumulto
zir a autonomia dos mercados do capital nacional c, parti-o em 1990 num subúrbio de Lyon com uma decisão política
cularmente, a proibir a manipula~~ão, pelos Estados nacio- de 197m Os crimes são impunes porque são esquecidos.
nais, das taxas de câmbio, das taxas de juros, que são cada Seria necessário que todas as forças sociais críticas insistis-
vez mais determinadas por um poder concentrado nas mãos sem na incorporação aos cálculos econômicos dos custos
de um pequeno número de países. Os poderes nacion<iis sociais das decisões econômicas. O que custarão, a longo
estão submetidos ao risco de ataques especulativos por parte prazo, em demissões, sofrimentos, doenças, suicídios, alcoo-
de agentes dotados de fundos maciços que podem provocar lismo, consumo de drogas, violência familiar etc., coisas que
uma desvalorização, sendo evidentemente os governos de Custam muito caro em dinheiro, mas também em sofrimen-
esquerda particularmente ameaçados, pois provocam a des-· to? Acredito que, mesmo que isso possa parecer cínico, é
confiança dos mercados financeiros (um governo de direita preciso aplicar à economia dominante as suas próprias ar-
que adota uma política pouco de acordo com os ideais do moas, e lembrar que, na lógica do interesse mais amplo, a
FM[ está menos em perigo do que um governo de esquerda, política estritamente econômica não é necessariamente eco-
mesmo que este faça uma política de acordo com os ideais nômica --- gerando inseguranç;!. das pessoas e dos bens, e
do HvIl). f~ a estrutura do campo mundial que exerce uma logo custos com policia etc. Mais precisamente, é necessá··
coaçáo estrutural, o que confere aos mecanismos uma apa- rio questionar de fi')rma radical a visão econômica que in-
réncía de fatalidade. A política de um Estado particular é dividualiza tudo, f3nto a produção como a justiça ou a
largamente determinada pela sua posiçáo na estruttu3 da ;·aúde, os custos corno os lucros, esquecendo que a efióência
,
1

56 Contra fogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 57

-- da qual ela dá uma definição estreita e abstrata, identi- ciliar no seu aspecto sociaL Essa defesa do Estado não é
ficando-a tacitamente com a rentabilidade financeira - inspirada por um nacionalismo. Podendo-se lutar contra o
depende evidentemente dos fins com os quais é medida, Estado nacional, é preciso defender as funções "universais"
rentabilidade financeira para os acionistas e investidores, que ele cumpre e que podem ser cumpridas tão bem, se não
como hoje, ou satisfação dos clientes e usuários, ou, mais melhor, por um Estado supranacional. Se não se quer o
amplamente, satisfação e concordância dos produtores, dos Bundesbank, através das taxas de juros, governando as po-
consumidores, e, assim, sucessivamente, da maioria. A essa líticas financeiras dos diferentes Estados, não se deveria lutar
economia estreita e de visão curta, é preciso opor uma pela construção de um Estado supranacional, relativamente
economia da filicidade, que levaria em conta todos os lucros, autônomo em relação às forças econômicas internacionais
individuais e coletivos, materiais e simbólicos, associados à c às forças políticas nacionais e capaz de desenvolver a
atividade (como a segurança), e também todos os custos dimensão social das instituições européias? Por exemplo, as
materiais e simbólicos associados à inatividade ou à preca-- medidas visando garantir a redução da jornada de trabalho
riedade (por exemplo, o consumo de medicamentos: a Fran- só teriam sentido pleno se fossem tomadas por uma instân-
ça detém o recorde do consumo de tranqüilizantes). Não se cia européia e aplicáveis ao conjunto das nações européias.
pode trapacear com a lei da conservação da violência: toda Historicamente, o Estado foi uma força de racionaliza-
violência se paga; por exemplo, a violência estrutural exer- ção, mas que foi posta a serviço das forças dominantes. Para
cida pelos mercados financeiros, sob forma de desemprego, evitar que assim seja, não basta insurgir-se contra os tecno-
de precarização etc., tem sua contrapartida em maior ou cratas de Bruxelas. Seria necessário inventar um novo inter-
menor prazo, sob fi)Cma de suicídios, de delinqüência, de nacionalismo, pelo menos na escala regional da Europa,
crimes, de drogas, de alcoolismo, de pequenas ou grandes capaz de oferecer uma alternativa à regressão nacionalista
violências cotidianas. que, ,graças à crise, ameaça mais ou menos todos os p~íses
, No estado atual, as lutas críticas dos intelectuais, dos europeus. Tratar-se-ia de criar instituições capazes de CCHl-

sindicatos e das associações devem se fazer prioritariamente trolar essas forças do mercado financeiro, de introduúr -'--
coltUra o enfi-aquecimento do Estado. Os Estados nacionais os alemães têm uma palavra magnífica --- um Regrezions-
estão minados por fora pelas forças financeiras e por dentro verbot, uma proibição de regressão em matéria de conqui,Has
pelos cúmplices dessas forças financeiras, isto é, os financis- Sociais no ángulo europeu. Para isso, é absolutamente in-
tas, os altos funcionários das finanças etc. Penso que os dispensável que as instâncias sindicais ajam nesse nível su"
dominados têm interesse em defender o Estado, em parti·- pranacional, pois é ali que se exercem as forças contra as
58 Contra fogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 59

quais elas combatem. É preciso, portanto, tentar criar as nobreza no sentido medieval do termo, e que devem sua
bases organizacionais de um verdadeiro internacionalismo autoridade à educação, ou melhor, segundo eles, à inteli-
crítico, capaz de se opor verdadeiramente ao neoliberalismo. gência, concebida como um dom do céu, quando sabemos
Último ponto. Por que os intelectuais são ambíguos em que na realidade ela é distribuída pela sociedade, fazendo
tudo isso? Não vou enumerar - seria longo e cruel demais com que as desigualdades de inteligência sejam desigualda-
-- todas as formas de omissão, ou, pior, de colaboração. des sociais. A ideologia da competência convém muito bem
Evocarei apenas os debates dos filósofos ditos modernos ou para justificar uma oposição que se assemelha um pouco à
pós-modernos que, quando não se contentam em deixar as dos senhores e dos escravos: de um lado, os cidadãos de
coisas como estão, envolvidos com seus jogos escolásticos. primcira classe, que possuem capacidades e atividades muito
se fecham numa defesa verbal da razão e do diálogo racionai. raras e regiamellte pagas, que podem escolher o seu empre-
ou pior, propõem uma variante dita pós-modcrna. na vcr gador (enquanto os outros são escolhidos por seu emprega-
·I dade "radical chie", da ideologia do fim das ideologias, com dor, no melhor dos casos), que estáo em condições de obter
a condenação dos grandes reblos ou ;1 dcnúncia niilista da altos salários no mercado de trabalho internacional, que são
,j
ciência. super-ocupados, homens e mulheres (li um belo estudo
Efetivamente, a força da ideologia neoliberal se apóia em inglês sobre esses casais de executivos loucos que correm o
uma espécie de neodarwinismo social: sáo "os melhores e mundo, pulam de um avião para outro, têm salários aluci-
os mais brilhantes", como se diz em Harvard, que triunfam nantes que nem conseguem sonhar em gastar durante qua··
(Becker, prêmio Nobel de economia, desenvolveu a idéia de tto vidas etc.), e depois, do outro lado, uma massa de pessoas
que o darwinismo é o fundamento da aptidão para o cálculo destinadas aos empregos precários ou ao desemprego.
racional, que ele atribui aos agentes econômicos). Por trás Max \Veber dizia qu.e os dominantes têm sempre neces··
da visão mundialista da internacioml dos domin.antes, há sidade de llma "teodicéia dos seus privilégios", 011 melhor,
uma filosofia da competência, segundo a qual são os mais de uma sociodicé~a, isto é, de uma justiflcaç:ão teórjca para
competentes que governam, e que têm tlJbalho, [) que o fato de serem privilegIados. A competência está hoje no
implica que aqueles que não têm lratnJho não selo compe· Centro dess;l sociodicéia, que é aceita, evidentemente, pelos
remes. Há 0$ wimu'ys (vencedores) c os IOSOj (perdedores), dominanles·- é de seu interesse -'-', ma.> também pelos
h;:i a nobreza, o que cu chamo de nobrc~a (k Estado, isto outros. S Na miséria dos exduídos do trabalho, na miséria
é, essas pessoas que têm todas as p!opr;edaJes de uma dos desempregados ,rômcos, há algo mai, que no passado.
f

60 Contr3fogos o mito da "mundialização" e o Estado social europeu 61

A ideologia anglo-saxã, sempre um pouco moralizanre, dis- NOTAS


tinguia os pobres imorais e os deserving poor - os pobres
1. P. Grémion, Preuves, une reVlte européenne à Paris, Paris, Julliard, 1989,
merecedores - dignos da caiídade. A essa justiflcação étic~
e lntetligence de l'a11li-communisme, te congres pour la tiberté de la culuu"e à
veio acrescentar-se, ou substituí-la, uma justificação intelec- Paris, Paris, Fayard, 1995.
2. K. Dixon, "Les Evangélistes du Marché", Liber, 32, setembro de 1997,
tual. Os pobres não apenas sao imorais, alcoólatras, corrom-
1'.5-6; C. Pasche e S. Peters, "Les premiers pas de la Société du Mont-Pélerin
pidos; são estúpidos, pouco inteligenres. Para o sofrimento ou Ies dessous chies du néolibéralisme", Les Annuelles (Cavênement des
social, conrribui em grande medida a miséria do desempe·· sciences sociales comrne Jisciplines académiques), 8, 1997, 1'.191-216.
3. Cf. nota 8 Jo primeiro capítulo. (N.E)
nho escolar que não determina apenas os destinos sociais, 4. Edgar Morin (" Jean [\;lUJrillard<übretudo. (NE.)
mas também a imagem que as pessoas fazem desse destino 5. Cf. 1'. BOIlfJieu, "1.,. raci""" de I'intclligence". in Questions de soci%gie,
Paris, Minllir. I <JHO, 1'.2(,4· B.
(o que conrribui sem dúvida para explicar o que se chama
de passividade dos dominados, dificuldade de mobilizá-·los
etc). Platão tinha uma visao do mundo social que se asse-
melha à dos nossos tecnocratas, COI\1 os filósof()s, os guar-
diães, e depois o povo. Essa filosofia est:í inscrita, em estado
implícito, no sistema escolar. MIlito poderosa, ela esta pro-
fundamente inreriOl'izada. Por que se passou do inrelectual
engajado ao intelecrual "descolado"? Em parte porque os
intelectuais são detentores de capital cultural e porque,
mesmo que sejam dominados pelos dominantes, fazem par-
te dos dominantes. É um dos fundamentos de sua ambiva-
lência, de seu tímido engajamento nas lutas. Eles participam
confusamente dessa ideologia da competência. Quando se
revoltam, é ainda, como em 33 na Alemanha, porque jul-
gam que não recebem tudo o que lhes é devido, dada a sua
com.pe~ênCla, gar3ntida por seus diplomas.
Atenas, outubro de 1996
o pensamento Tietmeyer 63

num centro conhecido por suas tradições de exegese literá-


ria, dedicar-me a uma espécie de análise hermenêutica de
o pensamento Tietmeyer* um texto cuja íntegra poderá ser lida no Le ltdonde de 17
i i
de outubro de 1996.
Eis o que diz o "sumo-sacerdote do marco alemão": "A
questão, hoje, é criar as condições favoráveis para um cres-
cimento duradouro e a confiança dos investidores. É preciso
portanto controlar os orçamentos públicos." Isto é - ele
Não desejo aqui fornecer um "suplemento de alma". A sed mais explícito nas frases seguintes - enterrar o mais
ruptura dos laços de integração social que se pede à cultura depressa possível () Estado social, e, entre outras coisas, as
para reatar é a conseqüência direta de uma política, de lima suas dispcndiosas políticas sociaiS e culturais, para tranqüi-
política econômica. E freqüentemente se espera dm soció· lizar os investidores, que prefeririam se encarregar eles pró-
lagos que consertem os vasos quebrados pelos ccol\omistas. prios de seus investimentos culturais. Estou certo de que
Logo, em vez de me contentar em propor o que, nos hos· rodos eles gostam da música romântica e da pintura expres-
pitais, é chamado de tratamento paliativo, eu desejaria ten·· sionista, e estou convencido, sem nada saber sobre o presi-
tar propor a questão da contribuição do médico para a dente do Banco da Alemanha, de que, em suas horas vagas,
doença. Seria possível que, efetivamente, em grande parte, como o diretor do nosso banco naciona.1, o se. Trichet, ele
as "doen<;:as" sociais que deploramos fossem produzidas pela lê poesia e pratica o mecenato. Continuo citando: "É preciso
medicina muitas vezes brutal que se aplica àqueles a quem portanto controlar os orçamentos públicos, baixar o nível
se deveria tratar. das taxas e impostos até chegarem a um nível suportável a
Para isso, lendo no avião que me levava de Atenas a longo prazo." Entenda-se: baixar o nível das taxas e impostos
Zurique uma entrevista do presidente do Banco da Alema- sobre os investidores até torná-los suportáveis a longo prazo
nha, apresentado como o "sumo-sacerdote do marco ale- por esses mesmos investidores, evitando assim desestimulá··
rnão", nem mais nem menos, eu desejaria, já que estou aqui los ou encorajá.·los a fazer em ourro lugar os seus invesri-
rnerHos. Cominuo tn:nha leitura: "reformar o sIstema de
prolc<;:ão social." Isto é, enterrar o weljàre state e suas poli
" Intervenção nos Enc(Jnao~ Cl.llt ü f3-is Fr~i.;;co-Alernãn sobre <lA integraç'do
ficas de proteçáo social, feitas para arruinar a confiança dos
social corno probierna cuituul", Ur:~ver::;}d:ldc de Freiburg (i\ierrlanha),
outubro de 199Cl. Investidores, p.ua provocar a sua legítima desconGança, cer·

62
64 Contrafogos o pensamento Tietmeyer 65

tos como estão de que, efetivamente, suas conquistas eco- exemplo da retórica eufemística que corre hoje nos merca-
nômicas - fala-se em ganhos sociais quando se poderia dos financeiros: o eufemismo é indispensável para suscitar
falar em ganhos econômicos - , quero dizer, seus capitais de modo duradouro a confiança dos investidores - que,
não são compatíveis com as conquistas sociais dos trabalha- como se sabe, é o alfa e o ômega de todo sistema econômico,
dores, e esses ganhos econômicos devem, evidentemente, o fundamento e objetivo último, o telos, da Europa do
ser salvaguardados a qualquer preço, mesmo às custas das futuro -- evitando ao mesmo tempo suscitar a desconfiança
magras conquistas econômicas e sociais da grande maioria ou o desespero dos trabalhadores, com quem, apesar de
dos cidadãos da Europa do futuro, os que foram amplamen-· tudo, também é preciso contar, caso se queira alcançar essa
te designados em dezembro de 1995 como abastados e nova rase de crescimento que se lhes promete, para obter
privilegiados. deles o es/i.m,:o indispensável. Porque é deles que esse esforço
O sr. Hans Tietmeyer está convencido de que os ganhos é esperado, apesar de tudo, mesmo que o sr. Hans Tietmeyer,
sociais dos investidores, isto é, seus ganhos econômicos, não decididamente mestre em eufemismos, diga: "desmantelar
sobreviveriam a uma perpetuaçao do sistema de proteção a rigidez dos mercados de trabalho, de modo que uma nova
social. Logo, é esse sistema que é preciso reformar urgente- fase de crescimento só será atingida outra vez se nós fizermos
mente, porque os ganhos econômicos dos investidores nao um esforço de flexibilização no mercado de trabalho." Es-
poderiam esperar. E para provar que nao estou exagerando, plêndido trabalho retórico, que pode se traduzir assim:
continuo a ler o sr. Hans Tietmeyer, pensador de alto co- Coragem, trabalhadores! Todos juntos, façamos o esforço
turno, que se inscreve na grande linhagem da filosofia idea- de flexibilização que lhes é pedido!
lista alema: "É preciso portanto controlar os orçamentos Em vez de fazer, imperturbável, uma pergunta sobre a
públicos, baixar o nível das taxas e impostos até chegarem paridade exterior do euro, de suas relações com o dólar e o
a um nível suportável a longo prazo, reformar o sistema de iene, o jornalista do Le lV/onde, também preocupado em não
proteção social, desmantelar a rigidez do mercado de traba- desestimular os investidores, que lêem o seu Jornal e são
lho, de modo que uma nova fàse de crescimento só será excelentes anunciamcs, poderia ser perguntado ao sI'. Hans
. .j , fi t: n H ,
atmgl( a outra vez se nos lzermos um esrorço ._.- o nos Tietmeyer o sentido que de confere às palavras..chave da
fizermos" é magnífico - "se nós fizermos um esforço de língua dos investidores: rigidez do merCtldo de tmbalho e
f1exibilizaçao do mercado do trabalho", Vejam só. As gran- flexibiliztlrão do mercado de trabalho. Os trabalhadores, se
des palavras foram pronunciadas e o sr. Hans Tietmeyer, na lessem um jornal tão indiscutivelmente sério quanto Le
grande tradição do idealismo alemão, nos dá um magnífico j\ilonde, entenderiam imediatamente o que se deve entender:
66 Contrafogos o pensamento Tietmeyer 67

trabalho noturno, o trabalho nos fins-de-semana, as horá- condições favoráveis a um crescimento duradouro e à con-
rios irregulares, pressão aumentada, estresse etc. Vê-se que fiança dos investidores; é preciso portanto... " - observem
"do-mercado-de-trabalho" funciona como uma espécie de o "portanto" -- "... controlar os orçamentos públicos, baixar
epíteto homérico capaz de ser colado a um cena número o nível das taxas e impostos até chegarem a um nível supor-
de palavras, e poderíamos ficar tentados, para medir à fle- tável a longo prazo, reformar os sistemas de proteção social,
xibilidade da linguagem do S1. Hans Tietmeyer, a falar, por desmantelar a rigidez dos mercados de trabalho, de modo
exemplo, de flexibilidade ou de rigidez dos mer-::ados finan- que uma nova fase de crescimento só será atingida outra vez
ceiros. A estranheza desse uso no jargão do sr. Hans Tier- se nós fizermos um esforço de flexibilização dos mercados
de rrahalho" Se um texto tão extraordinário, tão extraordi-
meyer permite supor que, em seu espírito, jamais se poderia
nariamente extraordinário, estivesse sujeito a passar desa-
pensar em "desmantelar a rigidez dos mercados financeiros",
percebido e a conhecer o destino efêmero dos escritos coti-
ou em "fazer um esforço de flexibilização dos mercados
dianos dos jornais cotidianos, é porque ele estaria perfeita"
financeiros". O que autoriza a pensar, ao colHrárno do que
mente ajustado ao "horizonte de expectativas" da grande
pode sugerir o "nós" do "se nós fizermos um esforço" do sr.
maioria dos leitores que somos. E tal fato levanta a questão
Hans Tietmeyer, que cabe aos trabalhadores, e somente a
de saber de que maneira foi produzido e divulgado um
eles, atender a esse esforço de flexibilização, e que é ainda
"horizonte de expectativas" tão divulgado (porque o míni-
a eles que se dirige a ameaça, próxima da chantagem, que
mo que se deve acrescentar às teorias da recepção, da 'lua)
está contida na frase: "de modo que uma nova fase de não sou adepto, é perguntar de onde sai esse "horizonte'}
crescimento só será atingida outra vez se nós fizermos um Esse horizonte é o produto de um trabalho social, ou me-
esforço de flexibilização do mercado de trabalho" .-üocando lhor, político. Se as palavras do discurso do sr. Hans Tiet-
em miúdos: abandonem hoje as suas conquistas sociais, meyer passam tão facilmente, é que elas são moeda corrente.
sempre para evitar destruir a confiança dos investidores, em Elas estão por toda parte, em todas as bocas, correm como
nome do crescimento que isso nos trará amanhã. Uma lógica moeda corrente, são aceitas sem hesitação, exatamente como
bem conhecida pelos trabalhadores afetados que, para resu- se faz com uma moeda, com uma moeda estável e forte
mir a política de participação que em outros tempos o evidentemente, táo estável e tão digna de confiança, de
gauliismo lh~s oferecia, diziam: "Você me dá o seu relógio (~rença, de fé, quanto o marco alemão: "crescimento dura-
que cu lbe dou a hora." douro"" r, 1 InVestI
. (OS
. , conlian~,a . '.J ores,
n " orçamentos pu'b"11,

Releio pela última vez, depois desse comentário, as de ,'os". "sistema de proteção socia]", "rigidez", "mercado de
daraçóes do .'ir. I-Ians Tietmeyer: "A questão, hoje, é criar
\""'a11 ). ·1 ·1'Ização,
.<. '>' "10." " ineXI)1 " às quais se devcrian1 acrescentar
Contrafogos () pensamento Tíetmeyer 69
68

"globalização" (fiquei sabendo por meio de outro jornal que .essa mensagem fatalista assumir ares de mensagem de libe-
li, também no avião que me levava de Atenas para Zurique, ração, por toda uma série de jogos léxicos em torno da idéia
(
que - sinal de uma vasta difusão -- os cozinheiros falam de liberdade, de liberação, de desregulamentação etc., por
também de "globalização" para defender a cozinha france- toda uma série de eufemismos, ou de jogos duplos com as (

S d~ ... ) ) "flexibilização" , "baixa das taxas" - sem precisar palavras a palavra "reforma", por exemplo visando C
quais - "competitividade", "produtividade" etc. apresentar uma restauração como uma revolução, segundo (
Esse discurso de aparência econômica só pode circular urna lógica que é a de todas as revoluções conservadoras.
além do círculo de seus promotores com a colaboração de Para concluir, voltemos à palavra-chave do discurso de
uma multidão de pessoas, políticos, jornalistas, simples ci- Hans Tietmeyer, fi confiança dos mercados. Ela tem o mérito
dadãos que têm um verniz de economia suficiente para de expor cm plclla luz a escolha histórica com a qual se
poder participar da circulação generalizada dos termos ca- defrontam todos os poderes: elltre a confiança dos mercados
nhestros de uma vulgata econômica. Um indício do efeito c a confiança do povo, é preciso cscolher. Mas a política que
produzido pela repetição midiática são as perguntas do jor visa preservar a confiança dos mercados corre o risco de
nalista, que de certa forma satisfazem as expectativas do sr. perder a confiança do povo. Segundo uma pesquisa recente
Tieuneyer: ele está tão impregnado, de antemão, pelas res- sobre a atitude em relação aos políticos, dois terços das
postas, que poderia até mesmo produzi-Ias F. através de tais pessoas interrogada~ queixam-se deles por serem incapazes
cumplicidades passivas que foi, pouco a pouco, se impondo de escutar e levar em conta o que os franceses pensam,
uma visão dita neoliberal, na verdade conservadora, repou- queixa particularmente freqüente entre os partidários da
sando sobre uma fé de outra era na inevitabilidade histórica Frente Nacional - cuja irresistÍvel ascensão se deplora,
fundada na primazia das forças produtivas, sem outra regu-- aliás, sem pensar um só momento em estabelecer uma liga-
lação a não ser as vontades concorrentes dos produtores ção entre a FN e o FMI. (Esse desespero em relação aos
individuais. E talvez não seja por acaso que tantas pessoas políticos é particularmente acentuado entre os jovens de 18
de minha geração passaram sem dificuldade de um fatalismo a 34 anos, entre os operários e os empregados e também
marxista para um fatalismo neoliberal: em ambos os casos, entre os simpatizantes do PC e da FN. Relativamente elevada
o economicismo desresponsabíliza e desmobiliza, anulando entte os partidários de todos os partidos políticos, essa taxa
o político e impondo toda uma série de fins indiscutíveis, de desconfiança atinge 64% entre os simpatizantes do PS,
crescimento máximo, competítívidade, produtividade To- o que tarobénl tem a ver com a ascensão da FN). Caso se
mar como guru o presidente do Banco da J\Jemanha é relacione a confiança dos mercados financeiros, que se de-
aceitar essa filosofia. O que pode surpreender é o fato de seja salvar a quaiquer preço, com a desconfiança dos cida·
70 Contrafogos

dãos, vê-se talvez melhor onde está a ratz da doença. A


economia é, salvo algumas exceções, urna ciência abstrata
fundada no corre, absolutamente injustificável, entre o eco- Os pesquisadores, a ciência
nômico e o social, que define o economicismo. Esse corre
está na raiz do fracasso de toda política que não tenha outro
econômica e o movimento social *
fim senão a salvaguarda da "ordem e da estabilidade econô-
micas", esse novo Absoluto do qual o sr. Tietmeyer se fez o
piedoso servidor, fracasso a que leva a cegueira política de
alguns e pelo qual todos nós pagamos.
Freiburg, outubro de 199G
o movimento social de dezembro de 1995 foi um movi-
mento sem precedentes por sua amplitude, e sobretudo por
seus objetivos. E se foi considerado extremamente impor-
tante por grande pane da população francesa e também
internacional, foi sobretudo porque introduziu nas lutas
sociais objetivos inteiramente novos. Confusamente, sob
forma de rascunho, ele forneceu um verdadeiro projeto de
sociedade, coletivamente afirmado e capaz de se opor ao
que era imposto pela política dominante, pelos revolu-
cionários conservadores que estão atualmente no poder,
nas instâncias políticas e nas instâncias de produção de
discursos.
Perguntando-me como os pesquisadores poderiam con-
tribuir para um empreendimento como os Estados Gerais,
convenci-me da necessidade da sua presença ao descobrir a
dimensão propriamente cultural e ideológica dessa revolu-

~ • Inte,ver'çJ.o por ocasião da s,ossão lflauguraJ dos Estados Gerais do


.\'toVlfl1ento Soei,:, Pari" 13-24 de novembro de 1996.

11

t

72 Contrafogos Os pesquisadores, a ciência econômica e o movimento social 73

ção conservadora. Se o movimento de dezembro foi ampla- portância dessa dimensão e nem sempre forjaram armas
mente reconhecido, é porque apareceu como uma defesa adaptadas para combatê-la. Os movimentos sociais estão
das conquistas sociais, não de uma categoria social particular com um atraso de várias revoluções simbólicas em relação
- mesmo que uma categoria particular fosse a sua ponta a seus adversários, que utilizam assessores de comunicação,
de lança, por ser ela particularmente afetada - , mas de uma assessores de televisão etc.
sociedade inteira, e até de um conjunto de sociedades: essas A revolução conservadora revindica o neoliberalismo,
conquistas se referem ao trabalho, à educação pública, aos assumindo assim uma roupagem cientÍfica, e a capacidade
transportes públicos, a tudo o que é público, e ao mesmo de agir como teoria. Um dos erros teóricos e práticos de
tempo ao Estado, essa instituição que não é - ao contrário muitas teorias - a começar pela teoria marxista - foi
do que querem que acreditemos - necessariamente arcaica esquecer de considerar a eficácia da teoria. Não devemos
e regressiva. mais cometer esse erro. Lidamos com adversários que se
Se esse movimento despontou na França, não foi por armam com teorias, e trata-se, ao que me parece, de enfren-
acaso. Há razóes históricas. Mas o que deveria impressionar tá-los com armas intelectuais e culturais. Para conduzir essa
os observadores é que ele prossegue de forma recorrente, na lma, em virtude da divisão do trabalho, alguns estão mais
França sob formas diversas, inesperadas - o movimento bem armados que outros, pois esse é o seu ofício. E um
dos caminhoneiros, quem o esperaria dessa forma? - e certo número deles está pronto a começar o trabalho. O que
também rta Europa: na Espanha, neSte momento; na Grécia, têm a oferecer? Primeiro, uma certa autoridade. Como fo-
há alguns anos; na Alemanha, onde o movimento se inspi- ram chamadas as pessoas que apoiaram o governo em de-
rou no movimento francês e reivindicou explicitamente sua zembro? Peritos, ao passo que rodos eles juntos não valiam
afinidade com ele; na Coréia --- o que é ainda mais impor- um milésimo de um economista. A tal efeito de autoridade,
tante, por razóes simbólicas e práticas. Essa espécie de luta deve-se contrapor um efeito de autoridade.
recorrente está, ao que me parece, em busca de sua unidade Mas isso não é tudo. A força da autorid.ade científica,
teórica e principalmente prática. O movimento francês pode que se exerce sobre o movimento social e até no fundo das
ser considerado a vanguarda de uma luta mundial contra o consciências dos trabalhadores, é muito grande. Ela produz
neoliberalismo e contra a nova revolução conservadora, na uma forma de desmoralização. E uma das razoes de sua força
qual a dimensão simbólica é extremamente importante. é que ela é detida por pessoas que parecem todas concorda-
Ora, penso que uma das fraquezas de todos os movimentos rem umas com as outras - o consenso é, em geral, um in-
progressistas esLÍ 110 fato de que eles subestimaram a im- dício de verdade_ Além disso, essa força se apóia nos instHl-
74 Contrafogos Os pesquisadores. a ciência econômica e o movimento social 75

mentos aparentemente mais poderosos de que o pensamen- do banqueiro ao filósofo-jornalista, e do ensaísta ao jorna-
ro dispõe atualmente, em particular a matemática. O papel lista. É também um canal pelo qual circulam dinheiro e
daquilo que se chama ideologia dominante é talvez desem- todo tipo de vantagens econômicas e sociais, convites inter-
penhado hoje por um certo uso da matemática (é claro que nacionais, prestígio. Nós sociólogos, sem fazer denúncias,
é um exagero, mas é um modo de chamar a atenção para o podemos empreender o desmonte dessas redes e mostrar
fato de que o trabalho de racionalização - o fato de dar como a circulação das idéias é lastreada por urna circulação
razões para justificar coisas muitas vezes injcstificáveis -- de poder. Há pessoas que trocam serviços ideológicos por
encontrou hoje um instrumento muito poderoso na econo- posições de poder. Seria preciso dar exemplos, mas basta ler
mia matemática). Diante dessa ideologia, que reveste de alellLlmellle a lista dos signatários da famosa "Petição dos
razão pura um pensamento simplesmente conservador, é peritos". () illleressallle, efetivamente, é que ligações ocultas
importante contrapor razões, argumentos, refutaçôes, de- entre pessoas que habitualmente trabalham isoladas apare-
monstrações, e isso implica fazer um trabalho cientÍfiCO. cem à luz do dia -- mesmo que sejam vistas duas a duas
Uma das forças do pensamento neolibcral é o fato de se nos falsos debates da televisão - , tais ligações envolvendo
apresentar como uma espécie de "grande cadeia do Ser". I fundações, associações, revistas etc.
Como na velha metáfora teológica, em que, numa extremi- Essas pessoas elaboram coletivamente, sob a forma de
dade se tem Deus, e depois vai-se até as realidades mais consenso, um discurso fatalista, que consiste em transformar
humildes, por uma série de elos. Na nebulosa neoliberal, tendências econômicas em destino. Ora, as leis sociais, as
no lugar de Deus, no topo, há um matemático, e abaixo, leis econômicas etc. só se exercem na medida em que se
há um ideólogo da revista ésprit,2 que não sabe grande coisa permite que elas ajam. E se os conservadores estão do lado
de economia, mas que pode dar a impressão de que sabe do laisser-fàire, é porque em geral essas leis tendenciais
um pouco, graças a um pequeno verniz de vocabulário conservam, e porque têm necessidade do laisser-fàire para
técnico. .Essa cadeia muito poderosa exerce um efeito de conservar. Sobretudo as dos mercados financeiros, sobre as
autoridade. Há dúvidas, mesmo entre os militantes, que quais nos falam o tempo todo, são leis de conservação, que
resultam em parte da força, essencialmente social, da teoria têm necessidade do laisser~f:úre para que se cumpram.
que confere autoridade à palavra do sr. Trichet ou do sr. Sena preciso desenvolver, argumentar, e principalmente
Tietmeyer. presidente do Bundesbank, ou deste ou daquele matizar. Peço perdão pelo aspecto um tanto simplificador
ensaísta. Não é um encadeamento de demonstraçóes, é uma do que eu disse. Quanto ao movimento social, este pode
cadeia de autoridades, que vai do matemático ao banqueiro, ":Olltentar-se em existir; ele j:í cria bastante problema, e não
f
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76 Contra fogos Os pesquisadores. a ciência econômica e o movimento social 77

vamos pedir que, além disso, produza justificações. Por os hábitos de aparelho, que podem voltar, estão a criação
outro lado, perguntamos imediatamente aos intelectuais de comissões, as moções de síntese muitas vezes previameme
que se associam ao movimento social: "Mas o que vocês preparadas etc. A sociologia ensina como funcionam os
propõem?" Não temos que cait na armadilha do programa. grupos e como se servir das leis segundo as quais funcionam
Já há bastantes partidos e aparelhos para isso. O que pode- os grupos para tentar desmomá-Ios.
mos fazer é criar não um contra-programa, mas um dispo- É preciso inventar novas formas de comunicação entre
sitivo de pesquisa coletivo, interdisciplinar e internacional, os pesquisadores e os militames, ou seja, uma nova divisão
associando pesquisadores, militantes, representantes de mi- do trabalho entre eles. Uma das missões que os pesquisado-
litantes etc., tendo os pesquisadores um papel bem definido: res podem cumprir, talvez melhor que ninguém, é a luta
eles podem participar de maneira particularmente eficaz, contra o "mandamento" da mídia. Ouvimos, durante dias
pois é sua profissão, de grupos de trabalho e de reflexao, em inteiros, frases feitas. Não se pode mais ligar o rádio sem
associação com pessoas que estão no movimento.
ouvir falar de "aldeia planetária", de "mundialização" etc.
Isso exclui logo de saída um certo número de papéis: os
São palavras que parecem inocentes, mas através das quais
pesquisadores não são .:ompanheiros de viagem. isto é, re-
: I passa toda uma filosofia, toda uma visão do mundo, que
féns e cauções, figuras decorativas e álibis que assinam pe-
gera o fatalismo e a submissão. Pode-se enfrentar esse mar-
tições e dos quais nos livramos tão logo tenham sido utili-
te/amemo criticando as palavras, ajudando os não-profissio-
zados; também não são tlpptlratchiks jdanovianos, que vêm
nais a s~ municiarem de armas de resistência específicas,
exercer nos movimentos sociais poderes de aparência inte-
para combater os efeitos de autoridade, o domínio da tele-
lectual que não podem exercer na vida intelectual; tampou-
visão, que desempenha um papel absolutamente capital.
co são peritos que vêm dar lições - nem mesmo peritos
Hoje, não é mais possível conduzir lutas sociais sem dispor
anti-peritos; também não são profetas que responderão a
de programas de luta específica com e contra a televisão.
rodas as perguntas sobre o movimento social, sobre o seu
futuro. São pessoas que podem ajudar a definir a função de Remeto ao livro de Patrick Champagne, Faire l'opinion
instâncias como esta. Ou lembrar que as pessoas que estão (Formar a opinião), que deveria ser uma espécie de manual
aqui não estão presentes como porta-vozes, mas como ci- °
do combatente político. 3 Nessa luta, combate contra os
dadãos que vêm a um lugar de discussão e de pesquisa, com il1telecwais da mídia é importante. Quanto a mim, essas
idéias, argumentos, deixando no vestiário seus jargões, pla- pessoas não me impedem de dormir e nunca penso nelas
taformas e hábitos de aparelho. Nem sempre é fácil. Entre quando escrevo, mas elas têm um papel extremamente im-o
78 Contrafogos Os pesquisadores, a ciência econômica e o movimento social 79

ponante do ponto de vista político, e é desejável que uma ao movimento social, ao invés de perder-se, como acontece
fração dos pesquisadores aceite abrir mão de uma parte de freqüentemente hoje, porque é interceptada e deformada
seu tempo e de sua energia, à maneira militante, para con- por jornalistas ou intérpretes hostis etc. Desejamos, no âm-
tra--atacá-Ias. bito de grupos como "Raisons d'agir", inventar novas for-
Outro objetivo, inventar novas formas de ação simbólica. mas de expressão, que permitam comunicar aos militantes
Nesse ponto, penso que os movimentos sociais, com algu- as conquistas mais avançadas da pesquisa. Mas isso supõe
mas exceções históricas, estão atrasados. Em seu livro, Pa-- também por parte dos pesquisadores uma mudança de lin-
trick Champagne mostra como certas grandes mobilizaçoes guagem e de estado de espírito.

podem ter menos espaço nos jornais e na televisão do que Voltando ao movimento social, penso, como disse há
pouco, que remos movimentos recorrentes - também po-
manifestações minúsculas, mas produzidas de tal modo que
deria citar as greves de estudanrcs e professores na Bélgica,
interessem aos jornalistas. Evidentemente, não se trata de
as greves na Itália etc. - de luta contra o imperialismo
lutar contra os jornalistas, também eles submetidos às coa-
neoliberal, lutas que freqüentemente são independentes
ções da precarização, com todos os efeitos de censura que
umas das outras (e que podem assumir formas nem sempre
ela gera em todas as profissões de produção cultural. Mas é
simpáticas, como certas formas de integrismo). É preciso
capital saber que uma parte enorme do que podemos dizer
pois unificar pelos menos a informação internacional e
ou fazer será filtrado, isto é, muitas vezes aniquilado, por
fazê-la circular. É preciso reinventar o internacionalismo,
aquilo que os jornalistas dirão. Inclusive o que vamos fazer
que foi captado e desviado pelo imperialismo soviético, isto
aqui. Eis uma observação que certamente eles não reprodu-
é, inventar formas de pensamento teórico e formas de ação
zirão em seus relatórios ... prática capazes de se situar ao nível em que deve se dar o
Para concluir, direi que um dos problemas é ser reflexivo combate. Se é verdade que a maioria das forças econômicas
--- esta é urna palavra importante, mas não é utilizada dominantes atua em nível mundial, transnacional, também
gratuitamente. Temos como objetivo não só inventar res- e verdade que há um lugar vazio, o das lutas transnacionais.
postas, mas inventar um modo de inventar as respostas, de Vazio teoricamente, porque não é pensado, esse lugar não
inventar uma nova forma de organização do trabalho de é ocupado praticam.cme,por falta de uma verdadeira orga-
contestação e de organ ização da contestaçao, do trabalho nil.::J.ç;io Internacional das forças capazes de enfrentar, pelo
militante. Aquilo cem que nós pesquisadores poderíamos
I :;unhar é que urru parte de nossas pesquisas plldesse ser útil
n:C::l0S CID escala européia, a nova revolw;ão .:onservadora.
Parú, novembro de 1996

J,
f
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80 Contrafogos

NOTAS

I. Alusão a The Gyeat Chain ofBeing. de Arthur Lovejoy. (N.E.) Por um novo internacionalismo *
2. Esprit, revista intelectual associada à corrente "personalista cristã" e
centro do movimento de apoio dos intelectuais à reforma Juppé. (N.E.)
3. ~ Champagne. Faite l'opinion. Paris. Minuit. 1993.

Os povos da Europa vivem hoje uma virada de sua história,


porque as conquistas de vários séculos de lutas sociais, com-
bates intelectuais e políticos pela dignidade dos trabalhado-
res estão diretameltlte ameaçadas. Os movimentos que se
observam aqui e ali, no conjunto da Europa e mesmo em
outros lugares, até na Coréia, esses movimentos que se
sucedem na Alemanha, na França, na Grécia, na Itália etc.,
aparentemente sem verdadeira coordenação. são revoltas
contra uma política que assume formas diferentes segundo
os domínios e segundo os países e que, todavia, se inspira
sempre pela mesma intenção, isto é, destruir as conquistas
sociais, que estão, digam o que disserem, entre as mais altas
conquistas da civilização; conquistas que se deveria univer-
salizar, estender a todo o uni~erso, mundializar, em Ve'L de
se recorrer ao pretexto da "mundialização", da concorrência
de países menos avançados. econômica e socialmente, para
questioná-las. Nada é mais natural e legítimo do que a defesa

, Inrerven~aO!lO ter{cetro Fórum do DGll de I-1esse. Frankfurt. ? de junho


de 1997

31
Contrafogos Por um novo internacionalismo 83
82

dessas conquistas, que alguns querem apresentar como uma monetária e a seus defensores, como o sr. Tietmeyer, num
forma de conservadorismo, ou de arcaísmo. Condenaríamos ato de oposição à integração política, em resumo, ser "contra
como conservadora a defesa de conquistas culturais da hu- a Europa".
manidade, Kant ou Hegel, Mozart ou Beethoven? As con- Ora, não é nada disso. O que está em questão é o papel
quistas sociais de que falo, direito do trabalho, previdência do Estado (dos Estados nacionais atualmente existentes ou
social, pelas quais homens e mulheres sofreram e combate- do Estado europeu, que se trataria de criar), particularmente
ram, são conquistas igualmente importantes e preciosas e na proteção dos direitos sociais, o papel do Estado social,
que, além disso, não sobrevivem apenas nos museus, biblia único capaz de contrabalançar os mecanismos implacáveis
tecas e academias, mas estão vivas e atuantes na vida das da economia abandonada a si própria. Pode-se ser contra
pessoas, comandando a sua existência de todos os dias. (.: uma Europa que, como a do sr. Tietmeyer, existiria como
por isso que não posso deixar de semir algo como unta simples reserva para os mercados financeiros, sendo ao mes-
sensação de escândalo diante daqueles que, fazendo-se alia- mo tempo a favor de uma Europa que, através de uma
dos das forças econômicas mais brutais, condenam aqueles política orquestrada, seria um obstáculo à violência sem
que, ao defender suas conquistas, às vezes descritas como freios desses mercados. Mas nada au toriza a esperar seme-
"privilégios", defendem as conquistas de todos os homens lhante política da Europa dos banqueiros que preparam para
e de rodas as mulheres, da Europa e de outros lugares. nós. Não se pode mais esperar da integração monetária que
A interpelação que lancei, há alguns meses, ao sr. Tiet- ela garanta a integração social. Pelo contrário: sabemos, com
meyer, foi freqüentemente mal compreendida. E isso por- efeito, que os Estados que quiserem preservar sua competi-
que foi entendida como uma resposta a uma pergunta mal tividade no seio da zona euro, às custas de seus parceiros,
formulada, porque formulada, precisamente, numa lógica não terão Outro recurso senão baixar os encargos salariais,
que é a do pensamento neoliberal, ao qual se filia o sr. reduzindo os encargos sociais; o dumping social e salarial, a
Tietmeyer. Segundo essa visão, admite-se que a integração '"flexibilização" do mercado de trabalho serão os únicos
monetária, simbolizada pela criação do curo, é o preâmbulo recursos deixados aos Estados, privados da possibilidade de
obrigatório, a condição necessária e suficiente para a ime- ogar com as taxas de câmbio. Ao efeito desses mecanismos
gra.;ão política da Europa. Em outros termos, defende-se acrescemarse certamente a pressão das "autoridades
\'Ír;i
que a integração política da Europa decorrerá necessaria- n
111 netárias", como () Bundesbank e seus dirigentes, sempre
mente, inevitavelmente, da integração econômica. Tal pos- ["011ros a pregar a "austeridade salarial". Somente um Esra-
tura converteria o fato de opor-se à política de integração J'l :'oeial europeu ser!::! capaz de contrabalançar a ação de-
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84 Contrafogos ?ar um novo internacionalismo 85

síntegradora da economia monetária. Mas o sr. Tietmeyer e p<:ra sustentar o desemprego). John Major mostra que com-
os neoliberais não querem nem Estados nacionais, em que preendeu bem isso ao dizer cinicamente: "Vocês terão os
vêem simples obstáculos ao livre funcionamento da econo- encargos sociais e nós teremos o trabalho." Como também
mia, nem, menos ainda, o Estado supranacional, que que- compreenderam os patrões alemães, que começam a deslo-
rem reduzir a um banco. E é claro que, se querem se car algumas empresas para a França, onde a destruição dos
desvencilhar dos Estados nacionais (ou do Conselho de direitos sociais está relativamente mais "avançada". De fato,
ministros dos Estados da comunidade) despojando-os do se é verdade que a concorrência é, no essencial, intra-euro-
seu poder, não é, evidentemente, para criar um Estado péia e que são trabalhadores franceses que tomam o trabalho
supranacional, que lhes imporia, com mais autoridade, as dos trabalhadores alemães, e reciprocamente - como é o
obrigações, em matéria de política social particularmente, caso, pois cerca de três quartos das trocas externas dos países
das quais eles querem a qualquer preço se eximir. europeus se jàzem nos limítes do espaço europeu - , vê-se que
Assim, pode-se ser hostil à integração da Europa fundada os efcitos dc uma redução da jornada de trabalho sem
apenas na moeda única, sem ser de modo algum hostil à rcdução de salário seriam muito atenuados, sob a condição
integração política da Europa; e, pelo contrário, apelar para de que uma tal medida fosse decidida e implantada em
a criação de um Estado europeu capaz de cOlltrolar o Banco escala européia.
Europeu e, mais precisamente, capaz de controlar, anteci- Ocorre o mesmo com políticas de retomada da demanda
pando-os, os efeitos sociais da união reduzida à SIla dimen- ou de investimento nas novas tecnologias, que, impossíveis
são puramente monetária, segundo a filosofia neoliberal que ou muito dispendiosas, como repetem os detentores de
pretende apagar todos os vestígios do Estado (social) como baixa qualificação, se conduzidas em um só país, se torna-
obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados. riam razoáveis na escala do continente. E também, mais
É certo que a concorrência internacional (sobretudo in.· genericamente, com toda ação orientada pelos princípios de
tta-européia) é um obstáculo ao funcion~tnento em um só UIna verdadeira economia da felicidade, capaz de levar em
país daquilo que os senhores chamam de "proibição de Conta todos os lucros e lodos os CUStos, materiais e simbó-
regressão". Isso se vê bem em matéria de redução da jornada licos, das condutas humanas, e principalmente da atividade
de trabalho ou de retomada econômica (apesar do fato de e da inatividade. Em suma, à Europa monetária destruidora
que a redução da duração do trabalho se autofinancia par- das conquistas sociais, é itnperativo opor uma Europa social,
cialmente em razão do aumento provável da produtividade fundada numa aliança entre os trabalhadores dos diferentes
e porque permite recuperar as somas enormes que são gastas países europeus, capaz de neutralizar as ameaças que os
86 Contra fogos Por um novo internacionalismo 87

trabalhadores de cada pais Impõem, através do dumping dos coletivos, que, uma vez adotados pelo Conselho de
social em particular, aos trabalhadores dos outros países. Ministros, têm força de lei.
Nessa perspectiva, e para sair de um simples programa Tudo isso é muito bonito, mas onde está a força social
abstrato, tratar-se-ia de inventar um novo internacionalis- européia capaz de impor tais acordos ao patronato europeu?
mo, tarefa que cabe, em primeiro lugar, às organizações As instâncias internacionais, como a Confederação Européia
sindicais. Mas o internacionalismo, além de ter sido desa·· dos Sindicatos, são fracas (por exemplo, excluem um certo
creditado, em sua forma tradicional, pela subordinação ao número de sindicatos, como a CGT) diante de um patronato
imperialismo soviético, se choca com grandes obstáculos, organizado e, paradoxalmente, deixam quase sempre a ini-
pelo fato de que as estruturas sindicais são nacionais (ligadas ciativa às instituiçôes comunitárias (e aos tecnocratas), mes-
ao Estado e em parte produzidas por ele) e separadas por mo quando se trata de direitos sociais. Os comitês empre-
tradições históricas diferentes: por exemplo, na Alemanha, sariais europeus poderiam ser, como se viu em certos con-
existe uma forte autonomia dos parceiros sociais, enquanto flitos no seio de empresas multi nacionais, um recurso po-
na França temo-se uma tTadiç;Ío <':indícal fraca diante de um deroso, mas, sendo simples estruturas de consulta, eles se
Estado forte; do mesmo modo, a proteção social varia enor- defrontam com a diversidade de interesses que os separa ou
memente em suas formas, desde a Inglaterra, onde é finan<- os opõe de um país a outro. A coordenação européia das
ciada pelo imposto, até a Alemanha e a França, onde é lutas está muito atrasada. As organizações sindicais deixaram
mantida pelas cotizações. Em escala européia, não existe passar ocasiões importantes, como a greve alemã pelas 35
quase nada. O que se chama de "Europa social", com a qual horas, que não foi repetida em nível europeu, ou as grandes
não se preocupam os "guardiães do euro", se reduz a alguns mobilizações levadas a cabo, na França e em vários países
grandes princípios, como, por exemplo, a "carta comunitá- .:uropeus, no fim de 95 e no começo de 96, contra a política
ria dos direitos sociais fundamentais" que define uma base de austeridade e de desmantelamento dos serviços públicos.
de direitos mínimos, cuja implementação é deixada a cargo ()s intelectuais -- sobretudo na Alemanha - ficaram si-
dos Estados membros. O protocolo social anexado ao 1'ra<- ].:nciosos, ou então agiram como intermediários do discurso
cado de Maastricht prevê a possibilidade de adotar diretrizes dom ~nJilte.
por maioria na área das condições de trabalho, da informa- Como criar as bases de wn novo internaciona1ismo, no
çâo e da consulta am trabalhadOles, da igualdade de opor- :'~ildicai, inteiectual e popular? Podem-se distinguir
tunidades entre homens e mulheres_ Prevê também que os T{)lJ11dS de ação possíveis, que não são excludentes. :Há

"parceiros sociais" europeus têm o poder de negociar acor.. meuo a mobilização dos povos, que supõe, nesse caso,
88 Contra fogos por um novo internac:ionalismo 89

uma contribuição específica dos intelectuais, na medida em Segunda forma de intervenção em favor de um interna-
que a desmobilização resulta em parte da desmoralização cionalismo capaz de promover um Estado social transnacio-
detctminada pela ação permanente de "propagandà' dos nal, a ação sobre e através dos Estados nacionais que, na
ensaístas e dos jornalistas, propaganda que não se reconhece conjuntura atual, e na falta de visão global do futuro, são
nem é percebida como tal..As bases sociais para o sucesso incapazes de administrar o interesse geral comunitário. É
de tal mobilização existem: citarei apenas os efeitos das preciso atuar sobre os Estados nacionais, por um lado para
transformações das relações no sistema escolar, com, em defender e reforçar as conquistas históricas associadas ao
especial, a elevação do nível de instrução, a desvalorização
Estado nacional (c muitas vezes tanto mais importantes e
dos títulos escolares e a conseqüente desclassificação estru-
tanto mais enraizadas nos "habitus" quanto mais forte é o
tural, e também o enfraquecimento da distância entre os
Estado, como na França); por ouno lado, para obrigar esses
estudantes e os trabalhadores braçais (subsiste a distância
Estados a trabalharem na criação de nm Estado social eu-
entre os velhos e os moços, entre os titulares e os precari-
ropeu, acumulando as conquistas sociais mais avançadas dos
zados ou proletarizados, mas foram se criando laços reais,
diferentes Estados nacionais (mais creches, escolas, hospi-
por exemplo, através dos filhos de operários educados atin-
tais, e menos exército, polícia e prisões) e a subordinar a
gidos pela crise). Mas há também, e principalmente, a evo-
implantação do mercado unificado à elaboração das medi-
lução da estrutura social, contra o mito da enorme classe
média, tão fone na Alemanha, com o aumento das desi- das sociais destinadas a compensar as conseqüências sociais
gualdades sociais, a massa global das remuneração do capital prováveis que a livre concorrência acarretará para os assala-
tendo aumentado em 60%, enquanto a remuneração do riados. (Nesse ponto, pode-se buscar inspiração no exemplo
trabalho assalariado ficava estável. Essa açáo de mobilização da Suécia, que adiou a entrada no euro até uma renegociação
internacional supõe que se dê um lugar importante ao com- que repõe no primeiro plano a coordenação das políticas
bate pelas idéias (rompendo com a tradição "obreirisca" econômicas e sociais.) A coesão social é um fim tão impor-
persistente nos movimentos sociais, sobretudo na França, e tante quanto a paridade das moedas; e a harmonização social
que impede que se dê o justo lugar às lutas intelectuais nas é a condição do sucesso de uma verdadeira união monetária.
Iutas sociais), e particularmente à crítica das representações Caso se faça da harmonização social, e da solidariedade
que produzem e propagam continuamente as instâncias que ela produz e supõe, um pré-requisito absoluto, é preciso
dominantes e seus pensadores de plantão, falsas estatísticas, submeter desde logo à negociação, com a mesma preocupa-
mitologias referentes ao pleno emprego na Inglaterra ou nos ção de rigor até agora reservada aos índices econômicos
Estados Unidos etc. (como os famosos 3% do Tratado de Maastricht), um certo
Contrafogos Por um novo internacionalismo 91
90

número de objetivos comuns: a definição de salários míni- meio ambiente, o desenvolvimento das redes trans-européias
mos (diferenciados por zonas, para levar em conta as dispa- de transporte e de energia, a extensão da habitação social e a
ridades regionais); a elaboração de medidas contra a corrup- renovação urbana (com ênfase sobretudo em transportes ur-
çáo e a fraude fiscal, que reduzem a contribuição das ativi- banos ecológicos), o investimento na pesquisa-desenvolvimen-
dades financeiras aos cofres públicos, acarretando assim in- to em matéria de saúde e de proteção ao meio ambiente, o
diretamente uma taxação excessiva do trabalho, e contra o financiamento de atividades novas, aparentemente mais ar-
dumping social entre atividades diretamente concorrentes; a riscadas, e assumindo formas desconhecidas do mundo fi-
redação de um direito social comum que aceitaria, a título nanceiro (pequenas empresas, trabalho independente).l
de transição, uma diferenciação por zonas, e ao mesmo O que pode parecer um simples catálogo de medidas
tempo visaria integrar as políticas sociais, unificando··se em disparatadas se inspira, de faro, na vontade de romper com
torno de pontos em comum e desenvolvendo-se onde c1e o btalismo do pensamento neoliberal, de "desfatalizar" po-
não existe: com, por exemplo, a instauração dc lima renda litizando, substituindo a economia naturalizada do neolibe-
mínima para as pessoas sem emprcgo remuncrado e sem ralismo por uma economia da felicidade que, fundada nas
outros recursos, a diminuição dos encargos que incidem iniciativas e na vontade human<Js, abre lugar em seus cálcu-
sobre o trabalho, o desenvolvimento de direiros sociais, los aos custos em sofrimento e aos lucros em realização
como a formação, a elaboração de um direito ao emprego, pessoal, que o culto estritamente economicista da produti-
à habitação e a invenção de uma política externa em matéria vidade e da rentabilidade ignora.
social, visando difundir e generalizar as normas sociais eu- O futuro da Europa depende muito do peso das forças
ropéias; a concepção e a implementação de uma política progressistas na Alemanha (sindicatos, SPD, Verdes) e de sua
comum de investimento de acordo com o interesse geral: ao vontade e capacidade de se oporem à política do euro "for-
contrário das estratégias de investimento resultantes da au·· te", que o Bundesbank e o governo alemão defendem. De-
tonomização de atividades financeiras puramente especula- penderá muito de sua capacidade de animar e canalizar o
tivas e/ou orientadas por considerações de lucro a curto movimento por urna reorientação da política européia, que
prazo, ou fundadas em pressupostos totalmente contrários se exprime desde hoje em vários países, em particular na
ao interesse geral, como a crença de que as reduções de .França. Em suma, contra todos os profetas da infelicidade
emprego são urna prova de boa gestão e uma garantia de que querem convencê-los de que o seu destino está nas mãos
rentabilidade, tratar-se-ia de privilegiar as estratégias visan· de potências transcendentes, independentes e indiferentes,
do assegurar a salvaguarda dos recursos não-renováveis e do Corno os "mercados financeiros" ou os mecanismos da
92 Contrafogos

"mundialização", quero afirmar, com a esperança de con-


vencê-los, que o futuro, o seu futuro, que também é o nosso,
o de todos os europeus, depende muito dos senhores, como A televisão, o jornalismo e a política *
alemães e como sindicalistas.
FrankfUrt, junho de 1991

NOTAS
Como explicar a extrema violência das reações que a obra
1. Adoto um certo númeto dessas sugesrões de Yves Salesse, PropositionJ ,)'obre a televisão provocou nos jornalistas franceses mais
pour une autre Europe, Construire Babel, Paris, Félin, 1997.
destacados?1 A indignação virtuosa que manifestaram é sem
dúvida imputável, em parte, ao ejéito da transcrição: esta faz
desaparecer, inevitavelmente, o acompanhamento não escri-
to da palavra, o tom, os gestos, a mímica, os sorrisos, isto
é, tudo aquilo que, para um espectador de boa-fé, assinala
de imediato a diferença entre um discurso animado pela
preocupação de fazer compreender e de convencer e o pan-
fleto polêmico que a maioria deles viu ali a despeito<fe todos
os meus desmentidos antecipados. Mas isso se explica so-
bretudo por algumas das propriedades mais típicas da visão
jornalística (que pôde levá-los em outros tempos a se exaltar
com um livro como A miséria c/o mundo); como a tendência
a identificar o novo com o que se chama "revelações" ou a

• Este texto, publicado originalmente na rraduçáo brasileira je Sobre ri


tr!eú'IJiio (Jotge ZaÍlar, 1997). foi revisto e modificado pelo alHo r para a
preS<:r1le ediçáo. (N.E.)

93
94 Contrafogos A televisão, o jornalismo e a política 95

propensão a privilegiar o aspecto mais diretamente visível didos, como o campo jornalístico produz e impõe uma visão
do mundo social, isto é, os indivíduos, seus feitos e sobre- inteiramente particular do campo político, que encontra seu
tudo seus malfeitos, em uma perspectiva que é com freqüên- princípio na estrutura do campo jornalístico e nos interesses
cia a da denúncia e da acusação, em detrimento das estru- específicos dos jornalistas que aí vão se engendrando.
turas e dos mecanismos invisíveis (aqui, os do campo jor- Em um universo dominado pelo temor de ser entediante
nalístico) que orientam as ações e os pensamentos e cujo e pela preocupação (quase pânico) de divertir a qualquer
conhecimento antes favorece a indulgência compreensiva preço, a política cstá condenada a aparecer como um assunto
do que a condenação indignada (primado do visível que ingrato, que se cxclui tanto quanto possível dos horários de
pode levar a uma forma de censura quando só se aborda um grande audiência, um cspedculo pouco excitante, ou mes-
assunto em função de imagens, de preferência imagens es- mo deprimcntc, e difícil dc tratar, que é preciso tornar

petaculares); ou ainda a tendência a se interessar mais pelas interessante a qualquer preço. Daí a tendência que se ob-
"conclusões" (supostas) do que pelo andamento pelo qual serva por toda parte, tanto nos Estados Unidos quanto na

se chega a elas. Tenho, assim, a lembrança daquele jornalista Europa, a sacrificar cada vez mais o editorialista e o repór-
ter-investigador em favor do animador-comediante, a infor-
que, quando da publicação de lTIeu livro La Noblesse d'État,
mação, análise, entrevista aprofundada, discussão de conhe-
balanço de dez anos de pesquisas, me propunha participar
cedores ou reportagem em favor do puro divertimento e,
de um debate na televisão sobre as Grandes Escolas no qual
em particular, das tagarelices insignificantes dos talk shows
o presidente da Associação dos Ex-alunos falaria "a favor"
entre interlocutores credenciados e intercambiáveis (alguns
enquanto eu falaria "contra" e que não compreendia que eu
dos quais, crime imperdoável, citei a título de exemplo).
pudesse recusar. Da mesma maneira, os "grandes articulis-
Para compreender verdadeiramente o que se diz e sobretudo
tas" que criticaram meu livro puseram pura e simplesmente
o que não pode ser dito nessas trocas fictícias, seria preciso
entre parênteses o método que nele empreguei (e em parti-
analisar em detalhe as condições de seleção daqueles que são
cular a análise do mundo jornalístico enquanto campo),
chamados nos Estados Unidos de panelút?-, estar sempre
reduzindo-o assim, sem sequer o saber, a uma série de
disponíveis, Jsto é, sempre dispostos a participar, mas tam·
tomadas de pósição banais, cntremead<Js de alguns lampejos
bém a jogar;) iogo, aceitando falar de tudo (é a própria
polêmicos. definição Italiana do tuttófogo) e a responder a todas as
No t~ntanto, é esse método qm: ,':U desejaria novamente perguntas, mesrno as mais absurdas ou mais chocantes, que
ilustrar, remando mostrar, com o risco de novos malemen- üS jornalistas se fazem; estar dispostos a tudo, isto é, a todas

,
«
96 Contrafogos A televisão. o jornalismo e a política 97

as concessões (sobre o assunto, sobre os outros participantes dade de uma observação ou de uma investigação, eles ten-
etc.), a todos os compromissos e a todos os comprometi- dem, com efeito, a levar tudo para um terreno em que são
mentos para participar e para granjear assim os benefícios peritos, interessando-se mais pelo jogo e pelos jogadores do
diretos e indiretos da notoried.ade "na mídia", prestígio que por aquilo que está em jogo, mais pelas questões de
junto aos órgãos de imprensa, convites para dar conferências pura tática política do que pela substância dos debates, mais
lucrativas etc.; em particular nos contatos prévios que certos pelo efeito político dos discursos na lógica do campo polí-
produtores fazem, nos Estados Unidos e cada vez mais na tico (a das coligaçóes, das alianças ou dos conflitos entre as
Europa, para escolher os panelistas, empenhar-se para for- pessoas) do que por seu collteüdo (quando não chegam a
mular tomadas de posição simples, em termos claros e invclltar e a impor à discussáo puros artefatos, como, por
brilhantes, evitando embaraçar-se com saberes complexos ocasi:1O da (Jllima deiçao na França, a questão de saber se
(segundo a máxima: "The less you know, the better offyou o debate entre a esquerda e a direita devia ser travado a dois
")
are. - entre Jospin, líder da oposição, e Juppé, primeiro-minis-
Mas os jornalistas, que invocam as expectativas do pü- tro de direita -- ou a quatro ._- entre Jospin e Hue, seu
blico para justificar essa política da simplificação demagó- aliado comunista, de um lado, e Juppé e Léotard, seu aliado
gica (em tudo oposta à intenção democrática de informar, centrista, do outro --, intervenção que, sob as aparências
ou de educar divertindo), não fazem mais que projetar sobre da neutralidade, era uma imposição política, capaz de favo-
ele suas próprias inclinações, sua própriavisão; especialmen- recer os partidos conservadores, fazendo sobressair as diver-
te quando o medo de entediar, e portanto de fazer baixar a gências eventuais entre os partidos de esquerda). Em razão
audiência, os leva a dar prioridade ao combate em lugar do de sua posição ambígua no mundo político, no qual são
debate, à polêmica em lugar da dialética, e a empregar todos atores muito influentes sem por isso serem membros de
os meios para privilegiar o enfrentamento'emre as pessoas pleno direito e no qual estão em condição de oferecer aos
(os políticos, sobretudo) em detrimento do confronto entre políticos serviços simbólicos indispensáveis (que eles não
seus argumentos, isto é, do que constitui o próprio móvel podem conquistar para si mesmos, salvo, hoje, coletivamen-
do debate, déficit orçamentário, baixa dos impostos ou te, no domínio literário, em que fazem funcionar plenamen-
dívida externa, Pelo fato de que o essenóal de sua compe-- te o jogo do "roma-Iá-dá-cá"), eles tendem ao ponto de vista
tênCla consiste em um conhecimento do mundo político de Tersites e a uma forma espontânea da filosofia da suspeita,
baseado na intimidade dos contatos' e das confidências (ou que os leva a procurar as causas das tomadas de posição mais
mesmo dos rumores e dos mexericos) mais que na objetivi- desinteressadas e das convicções mais sinceras nos interesses
98 Contrafogos A televisão, o jornalismo e a política 99

associados a posições no campo político (como as rivalida- cenram a salários extremamente elevados - da ordem de
des no seio de um partido ou de uma "corrente"). 100.000 dólares ou mais na Europa, e de vários milhões de
Tudo isso os leva a produzir e a propor, seja nos consi- dólares do lado american0 3 - os cachês muitas vezes exor-
derandos de seus comentários políticos, seja nas perguntas bitantes associados a participações em talk shows, a turnês
de suas entrevistas, uma visão cínica do mundo político, de conferências, a colaborações regulares em jornais, a "en-
espécie de arena entregue às manobras de ambiciosos sem contros", sobretudo por ocasião de reuniões de grupos pro-
convicção, guiados pelos interesses ligados à competição que fissionais . .t. assim que a dispersão da estrutura da distribui-
os envolve. (É verdade, diga-se de passagem, que são enco- ção do poder e dos privilégios no campo jornalístico não
rajados a isso pela ação dos conselheiros e consultores polí- faz selliio crescer, na medida em que, ao lado dos pequenos
ticos, intermediários encarregados de auxiliar os políticos cmpres;írios capitalistas que devem conservar e aumentar
nessa espécie de marketing político explicitamente calcula- seu capital simbólico por uma política de presença perma-
do, sem ser necessariamente cínico, que é cada vez mais nente no ar (necessária para manter sua cotação no mercado
necessário para ser bem-sucedido politicamente, ajustando- das conferências e de "encontros"), desenvolve-se um vasto
se às exigências do campo jornalístico, e de Sllas instituições subproletariado condenado pela precarização a uma forma
mais tÍpicas, como por exemplo os grandes debates políticos de autocensura. 4
na televisão, os "clubes de imprensa", ou outras, verdadeiras A esses efeitos somam-se os da concorrência no interior
"panelinhas" que contribuem cada vez mais para fazer os do campo jornalístico, já mencionados, como a obsessão
políticos e sua reputação.) Essa atenção exclusiva ao "micro- pelo jUro e a tendência a privilegiar sem discussão a infor-
cosmo" político, aos fatos e aos efeitos que aí sucedem tende mação mais recente e de acesso mais difícil, ou então a busca
a produzir uma ruptura com o ponto de vista do público exacerbada, encorajada pela competição, da interpretação
ou pelo menos de Sllas frações mais preocupadas com as mais sutil e mais paradoxal, isto é, com freqüência a mais
conseqüências reais que as tomadas de posição políticas cínica, ou ainda os jogos da previsão amnésica a respeito do
podem ter sobre sua existência e sobre o mundo social. curso dos acontecimentos, isto é, os prognósticos e os diag-
Ruptura que é consideravelmente reforçada e redobrada, nósticos ao mesmo tempo pouco dispendiosos (próximos
particularmente entre as estrelas de televisão. pela distância das apostas esportivas) e protegidos pela mais completa
social associada ao privilégio econômico e sociaL Com efei impunidade, protegidos na verdade pelo esquecimento en-
to, ~\abe·sê que, desde 05 anos 60, nos Estados Unidos e na gendrado pela descontinuidade quase perfeita da crônica
maior parte dos países europeus, as vedetes da mídia acres·· jornalística e pela rotação rápida dos conformismos suces··
100 Contrafogos A televisão, o jornalismo e a política 101

sivos (os que, por exemplo, levaram os jornalistas de todos concorrência que impõe a identificação do importante e do
os países a passar, em alguns meses, depois de 1989, da nova (o furo e as "revelações") para condenar os jornalistas
exaltação pela magnífica emergência das novas democracias a produzir uma representação instantaneísta e descontinuís-
à condenação das hediondas guerras étnicas). ta do mundo. Na falta de tempo, e sobretudo de interesse
Todos esses mecanismos concorrem para produzir um e de informação prévia (limitando-se seu trabalho de docu-
efeito global de despolitização ou, mais exatamente, de de- mentação, no mais das vezes, à leitura dos artigos de im-
sencanto com a política. Sem que haja necessidade de que prensa consagrados ao mesmo assunto), eles quase sempre
tal ocorra explicitamente, a busca do divertimento acaba não são capazes de situar os aconrecimentos (por exemplo,
por desviar a atenção para um espetáculo (ou um escândalo) um ato de violência em lima escola) no sistema de relações
\' todas as vezes que a vida política faz surgir uma questão em que ('st;io inseridos (como o estado da estrutura familiar,

(/)
I importante, mas de aparência tediosa, ou, mais slllilmenre, da própria ligada ao mercado de trabalho, por sua vez ligado
C) r a reduzir o que se chama de "atualidade" a uma rapsódia de à política tributária etc.) e contribuir assim para arrancá-los
iacontecimentos divertidos, freqüentemente siluados, como de uma aparente condição absurda. Sem dúvida, encoraja-
: no caso exemplar do processo O.). Simpson, a meio cami-- dos nisso pela tendência dos políticos, e, em particular, dos
11' nho entre as notícias de variedades e o show, a uma sucessão responsáveis governamentais que em troca eles encorajam,
sem pé nem cabeça de acontecimentos sem proporção, jus- a destacar, em suas decisões e em seu esforço para torná-las
Itapostos pelos acasos da coincidência cronológica (um tre- conhecidas, os projetos a curto prazo com "efeitos de anún·
I mor de rena na Turquia e a apresentação de um plano de cio", em detrimento das ações sem efeitos imediatamente
i . _. , . . , . .
,I reslnçoes orçamentanas, uma vltona esportiva e um proces- visíveis.
~ so sensacionalista), que reduzimos ao absurdo reduzindo-os Essa visão des-historicizada e des-historicizante, atomi-
I1 ao que se dá a ver no instante, no atual, e separando-os de zada e atomizante, encontra sua realização paradigmática na
todos os seus antecedentes ou de suas conseqüências. imagem que dão do mundo as atualidades televisivas, su-
A ausência de interesse pelas mudanças insensíveis, ISto cessão de histórias aparentemente absurdas que acabam to-
é, por todos os processos que, à maneira da deriva dos das por assemelhar-se, desfiles ininterruptos de povos mise-
continentes, permanecem desapercebidos e imperceptíveis ráveis, seqüências de acontecimentos que, surgidos, sem
no instante, e apenas revelam plenamente seus efeitos com explicaçao, desaparecerão sem solução, hoje o Zaire, ontem
o tempo, vem redobrar os efEitos da amnésill estrutural Biafra e amanhã <) Congo, e que, assim despojados de toda
favorecida pela lógica do pensamento no dia-a-dia e pela necessidade política, podem apenas, no melhor dos casos,
102 Contrafogos A televisão, o jornalismo e a política 103

suscitar um vago interesse humanitário. Essas tragédias sem dores, o jogo político é um assunto de profissionais, para
laços, que se sucedem sem perspectiva histórica, não se encorajar, sobretudo entre os menos politizados, um desen-
distinguem realmente das catástrofes naturais, tornados, in- gajamento fatalista evidentemente favorável à manutenção
cêndios florestais, inundações, que também estão muito da ordem estabelecida.
presentes na "atualidade", porque jornalisticamente tradi- Com efeito, é preciso ter muita fé nas capacidades de
cionais, para não dizer rituais, e sobretudo espetaculares e "resistência" do povo (capacidades inegáveis, mas limitadas)
pouco dispendiosas de cobrir. Quanto às suas vítimas, não para supor, com certa "crítica cultural" dita "pós-moderna",
são mais suscetíveis de provocar uma solidariedade ou uma que G cinislllo profissional dos produtores de televisão, cada
revolta propriamente políticas do que os descarrilamentos vez mais próxilllos dos puhlicitários em suas condições de
de trens e outros acidentes. trabalho, ('111 seus obJctivos (a busca da audiência máxima,
Assim, as pressões da concorrência se conjugam com as porLlllto do "pouco mais" que permite "vender melhor") e
rotinas profissionais para levar a televisão a produzir a ima- em ,~ClJ modo de pensar, possa encontrar seu limite ou seu
gem de um mundo cheio de violências e de crimcs, dc antídoto no cinismo ativo dos espectadores (ilustrado so-
guerras étnicas e de ódios racisras, c a propor 3 contemplação
bretudo pelo zappiníJ a exe:nplo do que fazem cenos her-
cotidiana um ambiente de ameaças incompreensível e in-
meneutas "pós-modernos", tomar por universal a aptidão
quietante, do qual é preciso se manter distante e se proteger,
para praticar a exacerbação reflexiva de uma "leitura" crítica
uma sucessão absurda de desastres sobre os quais não se
de terceiro ou quarto grau das mensagens "irônicas e meta-
compreende nada e nada se pode fazer. Insinua-se assim,
textuais", engendradas pelo cinismo manipulador dos pro-
pouco a pouco, uma filosofia pessimista da história que
dutores de televisão e dos publicitários, é o mesmo que
encoraja a desistência e a resignação em lugar de estimular
incidir numa das formas mais perversas da ilusão escolástica
a revolta e a indignação. Ao invés de mobilizar e de politizar,
em sua forma populisra,
uma taJ filosofia acaba contribuindo para avivar os temores
xenófobos, assim como a ilusão de que o crime e a violência
não param de crescer também favorece as ansiedades e as
tl)bias da visão obnubilada pela idéia de segurança. O sen~ NOTAS
lÍmento de que o mundo não oferece ponto de apoio ao
1. SoIJYl' i1 u/t'1J!5au foi objeto de Uina v;~sta controvérsia q'.le J:nobilj"lol1
comum dos mortais conjuga--se com a impressão de que,
todos us grande.;; jornalistas e editor:1Iistas dos d,ários, dos sernanários e das
um pouco à maneira do esporte de alto nivei que suscita tclcvisôcs fL~nc<:se$ durante vários ml:ses. período durante o qual o livro
uma ruptura semelhante entre os praticantes e os espeeta- encabeçav.l ;! lisLl do:- b.. . st-sdiers. (N.f: )
,

Contrafogos
104

2. Membros de uma mesa redonda transmitida por televisão ou rádio.


(NF..)
3. Cf. James Fallows, Breaking the News. How Media Undermine American
Democracy, Nova York, Vintage Books, 1997.
Retorno sobre a televisão"
4. Cf. Patrick Champagne, "Le journalisme entre précarité et concurren-
ce", Liber, 29, dezembro de 19%.

Em Sobre a televisão o senhor diz que é necessdrio despertar


a consciência dos profissionais sobre a estrutura invisível da
imprensa. () senhor acha que os profissionais e opúblico estejam
IÚnda cegos quanto aos mecanÍJmos dos meios de comunicação
num mundo extremamente midiatizado? Ou existe uma cum-
plicidade entre eles?
RB.: Não acho que os profissionais estejam cegos. Eles
vivem, creio, num estado de dupla consciência: uma visão
I: prática que os leva a aproveitar ao máximo, freqüentemente
com um cerro cinismo, algumas vezes sem de darem conta
disso, as possibilidades que lhes ofêrece o instrumento mi-
diático do qual dispõem (eu falo dos poderosos entre esses
profissionais); uma visão teórica, moralizante e carregada de
indulgência por eles mesmos, que os leva a negar publica-
mente a verdade do que fàzem, a mascará-Ia e a até mesmo
a mascará-la para eles próprios. Duas provas disso são: de
um lado, as rea~:ões a meu pequeno livro, condenado unâ-

• Entrevista concedida ao jornalista Paulo Roberto Pires, publicada em ()


Globo, Rio de Janeiro. (~m 4 de outubro de 1997, por ocasião da publicação
da edição brasileira de Sobre a televisão.

105
106 Contrafogos Retorno sobre a televisão 107

nime e violentamente pelos "grandes articulistas" (uma aná- tom moralizante que convém, como uma forma de se adap-
lise rápida dessas reações pode ser encontrada num número tar à l1?oclernidade e de "aumentar sua curiosidade"! [Acrés--
recente da revista americana Lingua Franca, sob o título cimo de janeiro de 1998: E o "mediador" especialmente
"Bourdieu unplugged') , dizendo ao mesmo tempo a boca design3do para dar o troco a leitores conscientes do peso
pequena que ele não trazia nada que ainda não se soubesse cada vez maior das preocupações comerciais nas escolhas
(segundo uma lógica tipicamente freudiana que eu já havia fedacionais despejará assim a cada semana toda a sua retórica
podido obséfvar a respeito dos meus livros sobre educação); para tentar (;lZer crer que se pode ser jui7. e parte repisando,
de outro lado, os comentários categóricos e hipócritas que inclnS;IVcltllcnIC, os meSIllOS arE;II1Tlt>ntos tautológicos.
foram feitos a respeito do papel dos jornalistas na morre de Àqucll"s quc, a propúsilO da entrevista, por um pálido es-
Lady Di, que exploravam muito além dos limites da dCG~n critor, I de um cantor popular decadente, criticam o Le
cia o filão jornalístico em que se constituía csse lúo-acon- Il10nde por cair em uma "forma de demagogia", ele só
tecimento. Essa dupla consciência IIlUIlO comum nos consegue contrapor, no Le 1l1onde de 18-19 de janeiro de
poderosos: já se dizia que os adivinhos romanos não conse- 1998, a "vontade de abertura" de seu jornal: "esses temas,
guiam se olhar sem rir-- El"!. com que possam ao mesmo e outros, recebem, diz ele, uma ampla cobertura porque
tempo denunciar como um panfleto escandaloso e venenoso trazem um esclarecimento útil sobre o mundo que nos
a descriç;1O objetiva de sua prática e enunciar explicitamente rodeia e porque interessam, por essa razão mesma, a uma
a esse respeito algo equivalente, seja nas trocas privadas, grande parte de nossos leitores"; àqueles que, na semana
entre eles, ou mesmo em relação ao sociólogo que conduz seguinte, condenaram a reportagem complacente de um
a pesquisa ---- dou exemplos disso em meu livro, sobretudo intelectual-jornalista sobre a simação na Argélia, traição de
a propósito das "panelinhas" - , seja em declarações públi- rodos os ideais críticos da tradição do intelectual, ele res-
cas. Desta forma, Thomas Perenczi escreveu no Le lv/onde ponde, no Le Monde de 25-26 de janeiro de 1998, que o
de /'-·S de setembro, em respOsta às críticas dos leitores acerca jornalista 1180 deve escolher entre os intelectuais. Os textos
do tratamento dado pelo jornal ,10 caso Lady Di, que o "Le assim produzidos. semana após semana, pelo defensor da
l110nde mudou". Isto é, d3 um espaço caa;;. vez maior ao que linha do jornal, provavelmente escolhido por sua extrema
ele chama pudicamente de "faros da sociedade", que são as prudência. S30 a maior imprudência desse jornalista o 1!1-

mesmas verdades cuja '~iiunC\ação ele JÚ.o suportava três consciente mais profundo do jornalismo se reveJa aí pO\.lCO

meses antes. No lTI.ornento em que um deslize (glissement), ,1 pouco, ao longo dos desafios lançados pelos leitores, em
imposto peta teiflJisiio, chama a atenção, este é assumido, no lima espéeí.e de longa sessao hebdomadária de análise]
1GB Contrafogos Retorno sobre a televisão 109

Há portanto uma dupla consciência entre os profissionais conhecimento e de compreensão, eventualmente até de
dominantes, sobretudo na Nomenklatura dos jornalistas po- ação, que lhes permitiriam trabalhar com alguma eficácia
derosos ligados por interesses comuns e por cumplicidades para controlar as forças econômicas e sociais que pesam
de todas as ordens. 2 Entre os jornalistas "de base", os tare- sobre eles próprios. Eu me esforço atualmente (especialmen-
fciros da reportagem, os menos sacadores, rodos os obscuros te através da revisra 1.iber) para criar conexões internacionais
condenados à precariedade, que fazem o que há de mais entre os jornalistas e os pesquisadores, desenvolvendo forças
autenticamente jornalístico no jornalismo, a lucidez é evi- de resistência contra as forças de opressão que se abatem
dentemente maior e se exprime freqüentemente de forma sobre o jornalismo - c que ° jornalismo rebate sobre toda
muito direta. É, entre outras coisas, graças a seus depoimen-. a produção cultural c, a partir daí, sobre roda a sociedade.
tos que podemos ter acesso a um certo conhecimento do
mundo da televisão. 3 A lell'lIisão é iderlll/iCrlda a uma/ôrma de opressão simbólica.
QUlzt é a possibilidade democrática da televisão e da mídia?
o senhor analisa o que é chamado de "campo jornalístico '; PoB.: É enorme a defasagem entre a imagem que os respon-
mas seu ponto de vista é o do ''campo sociológico ': Há uma sáveis pela mídia têm e conferem a esta mídia e a verdade
incompatibilidade entre esses dois campos? A sociologia mostra de sua ação e de sua influência. É evidente que a mídia é,
as "verdades" e os meios de comunicação as 'ínentiras"? no conjunto, um fator de despolitização, que age priorita-
RB.: Você introduz uma dicotomia muito própria da visão riamente sobre as frações menos politizadas do público,
jornalística, que, numa de suas características mais típicas, mais sobre as mulheres que sobre os homens, mais sobre os
é deliberadamente maniqueísta. Sem dúvida, pode acontecer menos educados que sobre os instruídos, mais sobre os
que os jornalistas produzam a verdade, e os sociólogos a pobres que sobre os ricos. Isso pode escandalizar, mas está
mentira. Num campo há de tudo, por definição! Mas sem perfeitamente comprovado pela análise estatística da pro-
dúvida em proporções diferentes e com-probabilidades di- babilidade de formular uma resposta articulada a uma ques-
ferentes... Dito isto, o primeiro trabalho do sociólogo con- tão política ou de se abster (desenvolvo longamente as con-
siste em despedaçar essa forma de colocar as questões. E eu seqüências deste fato, especialmente em matéria de política,
escrevi diversas vezes em meu livro que os sociólogos podem em meu livro Mêditations pascaliennes). A televisão (bem
fornecer aos jornalistas lúcidos e críticos- eles são muitos, mais que os jornais) propõe uma visão do mundo cada vez
mas não estão necessaríamente nos postos de comando das mais despolirizada, asséptica, incolor, envolvendo cada vez
televisões, das rádios F dos jornais -- os instrumentos de mais os jornais nessa escorregada para a demagogia e para
110 Contra fogos Retorno sobre a televisão 111

a submissão aos constrangimentos comerciais. O caso Lady jornais, e em particular os que têm uma grande pretensão
Di é uma perfeita ilustração de tudo que eu disse no meu de sewm sérios, retomarão essas análises...
livro, uma espécie de giro pelos extremos. Tem-se tudo de
uma só vez: o [ait divers que diverte; o efeito "deu na Retomando II célebre dicotomia proposta por Umberto Eco nos
televisão", ou seja, a defesa inofensiva de causas humanitá- anos 60, pode-se dizer que o senhor é um "apocalíptico" contra
rias vagas e ecumênicas e, sobretudo, perfeitamente apolíti.. os "intef!,rrldos '?
caso Por ocasião desse episódio que se seguiu à festa papal P.R.: Pode-se dizer que sim. Há muitos "integrados", efeti-
da juventude em Paris e logo antes da morte de Madre vamcllie_ F ;1 lim;;) da nOV:l ordem dominante é que ela
Teresa, os últimos pregos acabaram se soltando. (Madre soube Cllcofllrar os meios específicos de "integrar" .--_. em
Teresa não era tampouco, ao que eu saiba, ullIa progressísr;l certos casos, pode se dizer de comprar, em outros, de seduzir
em matéria de aborto ou de liberaçJo das IlIldhen's, ajlls -- um número cada vez maior de intelectuais, e isso no
tando-se perfeitamente a este f1lUIH!O governado por hall mundo inteiro. Esses "integrados" continuam Freqüente-
queiros senl alma, qm' n:io v(~elll ncnhulll obs(;ícu!o a que mente a se imaginarem como críticos (ou, simplesmente,
piedosos defensores do hlllllanidrio venham cuidar das cha- de esquerda), segundo o modelo antigo. Isso contribui para
gas, inevitáveis aos olhos deles, que eles mesmos contribuí- dar uma grande eficácia simbólica à sua ação em favor da
ram para abrir.) (~ por isso que pudemos ver uma manchete ordem estabelecida.
quinze dias depois do acidente, na primeira página do Le
l\londe, sobre as investigações do caso Lady Di, enquanto Qual a sua opinião sobre o papel da mídia no caso Lad;' Di?
nos telejornais os massacres na Argélia e o conflito árabe- Ela confirma sua hipótese sobre o funcionamento tia mídia?
israelense eram relegados a poucos minutos no fim do pro- f:
P.R.. : uma ilustração perfeita, quase inesperada, para o
grama. Aliás, você me dizia agora mesmo: "Aos jornalistas pior, do gu,,~ eu anunciava. As famílias reais d.e Mônaco, da
a mentira, aos sociólogos a verdade." Mas, como sociólogo Inglaterra e de outras partes do mundo serão conservadas
que conhece suficien temente bem a Argélia, tenho uma como um ripo de reservatório inesgotável de temas de se--
imensa 3dmiraçáo peio jornal fr;mcês La Cmix, que acab;] fiados íOap operas) e telenovelas. De qualquer forma, é claro
de publicar um dossiê exrrermmente preciso, rigoroso t' que o grande lJappening promovido pda morre de bdy Di
cor3joso sobr;.: os \!erJadctros responsáveis pelos massacres se mscn~ve perfeitamente na série de espedculos que fazem
na Argélia. i\ pergunta qu-:: me faço . e para a qual até o as delicias da pequena burguesia da Inglaterra e de outros
momento a resposta é negativa ---- é saber se os outrOS lugares. grandes comédias musicais do tipo Er/lttl ou Jesus
f

112 Contrafogos Retorno sobre a televisão 113

Christ Superstar, nascidas do casamento do melodrama com seja, dispostos a produzir obras que não sejam ditadas pelas
0$ efeitos especiais de alta tecnologia, folhetins televisivos exigências do mercado (como os filmes nos quais o final é
lacrimogêneos, filmes sentimentais, romances baratos de escolhido pela consulta a um grupo de espectadores convi-
grandes tiragens, música popular um pouco vulgar, diver-· dados, entre duas ou três soluções possíveis...), e também
sões ditas familiares, ou seja, toda essa enxurrada de produ- consiga fà.zê--Ios ler, olhar, inventando circuitos de distribui-
tos da indústria cultural transmitidos todo o dia pelas tele- ção independentes_
visões e rádios conformistas e cínicas que aliam o moralismo
lacrimejante das diversas Igrejas ao conservadorismo estético () jOrrJaliJmo, flfl t'rtl da "IV mais do que nunca, serza o
do entretenimento burguês. I"/",matlo quarto poder?
P lI.: A imprensa, () jornalismo escflto, tem uma poslçao
Como vê o papel da mídia nos países do Térceiro Mundo? estratégica. Ela pode oscilar para o lado das forças do mer-
PoR.: Não trabalhei diretamente com esses problemas. Mas cado e da televisão (como é o caso da França, pelo menos),
receio, a partir do que conheço, o deito demagógico e se submetendo a seus temas, seus personagens, seu estilo
despolitizante da mídia sohre os mais desprovidos econo,- etc. I\IIas a imprensa pode também, em vez de servir como
micamente e acima de \lido culturalmente. Ela fatalmente repetidora da televisão, trabalhar para difundir armas de
estimula urna ação conservadora, de desmobilização dos defesa. Costumo dizer que uma das funções da sociologia é
movimentos críticos (explorando sobretudo as paixões po- ensinar uma espécie de judô simbólico contra as formas
pulares mais fáceis, desde o futebol, para os homens, até os modernas de opressão simbólica. A imprensa escrita deveria
filmes sentimentais, par31 as mulheres). Se acrescentarmos a estar na linha de frente neste combate contra a descerebra-
isso a evolução paralela do cinema e da edição de livros, ção. E se me dirijo a jornalistas, não é, como se vê, para
cad;f vez mais concentrada é submetida às exigências do denunciá-los, condená-·los, culpã--Ios, mas, ao comrário,
mercado, pode-se temer que a democracia e a cultura, tais para convod-Ios para um combate comum, chegando assim
como a conhecemos, corram grande risco. A menos que o à definição ideal de slla profissão, como condição indispen-
sistema de educação --- ele próprno em risco em diversos sável do exercício da democracia, Não basta produzir jornais
países devido à sua expansão _.,- consiga produzir pessoas underground, sempre ameaçados de permanecerem confi-
capazes de resIstir ou, ao menos. de se apoderar das armas denCiais> É preciso que as pesquisas de vanguarda sejanil
produzidas pelos produtores culturais, escritores. artistas e ecoadas pelos jornalistas inseridos nos órgáos de grande
acadêmicos ainda aptos a resistir às forças comerciais, 011 diftlsão, capazes de transmitir e defender, mesmo à custa de
114 Contrafogos Retorno sobre a televisão 115

lutas e desentendimentos, as mensagens mais audaciosas e nacional do rock, do pop, do rap, porradora de um estilo
anticonformistas, em todos os domínios. de vida ao mesmo tempo chique e fácil (pela primeira vez
na história, as seduções do esnobismo estão ligadas às prá-
Qual o papel dos intelectuais no mundo dos meios de comuni- ticas e aos produtos típicos do consumo de massa, como os
cação de massa? jeans, a camiseta e a Coca-Cola); para outros, ainda, um
RR.: Não é cerro que eles possam desempenhar o grande "radicalismo de campus", batizado como pós-moderno, e
papel positivo, o do profeta inspirado, que eles têm tendên- perfeito para seduzir pela celebração falsamente revolucio-
cia a se atribuir volta e meia nos períodos de euforia. Já não nária da mestiçagem de culturas etc. etc. Se existe um do-
seria mau se eles soubessem se abster de entrar em cumpli- mínio cm que é realidade a famosa "mundialização", que
cidade ou mesmo colaborar com as forças que ameaçam todos os intelectuais "integrados" enchem a boca ao men·-
destruir as próprias bases de sua existência e de sua liberdade, cionar, é o da prodll<,:;ío cultural de massa, na televisão
ou seja, as forças do mercado. Foram necessários muitos (refiro-mc particularmente às telenovelas, nas quais a Amé-
séculos, como mostrei em meu livro As regrm da artl', para rica Latina se especializou e que difundem uma visão "la-
que os juristas, artistas, escritores e s~í.bios conquistassem sua dydiesca" do mundo), no cinema e na imprensa para o
autonomia em relação aos poderes politncos, religiosos e "grande público", ou então, coisa muitíssimo mais grave,
econômicos, passando a impor suas próprias normas, seus no "pensamento social" parajomais e revistas, com temas
valores específicos de verdade, sobretudo em seu próprio ou expressões de circulação planetária corno "o fim da his-
universo, seu microcosmo, e, às vezes, com um sucesso tória", "o pós· modernismo" ou... a "globalização".
variável, no mundo social (como Zoia no caso Dreyfus e
Sanre na Guerra da Argélia etc.). Essas conquistas da liber-
NOTAS
dade estão ameaçadas em toda parte, e não somente por
coronéis, ditadores e máflas, más por forças mais insidiosas I. "Pálido escritor"; trótta·se de Daniel Rondeau. "Cantor popular"; ]ohn-
e viciosas, as do mercado, agora transfiguradas, reencarnadas ny HalliJay.
2. Sobre essas cu.mplicidades, ver.. S. Halimi, Les nOUlledW; chiaIS de garde,
em figuras capazes de seduzir uns e outros: para alguns, essa Pari,. Libe, Raisons d' agir, 1C)97.
figura será a do economista armado de formalisrno mate· 5. l'ode ·se consultar, por exemplo, as excelentes análises apresentadas na
obra de A. ACClfdo, G. Abou, G. Balbastrt, D. l"larine. joumalistes aI<
mático, que descreve a evolução da economia "mundializa-
'/HoúJÚ'n. (}uúls pOUf une socioanal)'-ié'i des pitltllJuCJJ!.Junudntiq~u·.í, Bordeaux Le
J

da" como um destino: para outros, a figura do astro inter- Ma'c.II'~I. 1995.
f
,
Esses "responsáveis" que nos declaram irresponsáveis 117

políticos que, num momento em que são revistos os com-


prometimentos da burocracia francesa no extermínio dos
Esses cresponsdvei/' que judeus, autorizam praticamente todos aqueles que, na bu-
nos declara1n irrespo nsdveis * rocracia, podem expressar suas pulsões mais estupidamente
xenófobas, como a funcionária da universidade mencionada
acima. De nada serve empenhar-se em grandes discussões
jurídicas sobre os méritos comparativos desta ou daquela
lei. Trata-se de abolir pura e simplesmente uma lei que, por
Estamos fartos das tergiversações e adiamentos de todos sua própria existência, legitima as práticas discriminatórias
esses "responsáveis" eleitos por nós, que nos declaram "ir- dos fUllcion;\rios, pequcllos ou grandes, contribuindo para
responsáveis" quando lembramos a eles as promessas que lan<.:ar uma suspci<.::io global sobrc os estrangeiros - e evi-
nos fizeram. Estamos fartos do racismo de Estado que eles dcntcmcntc náo sobrc quaisqucr dclcs. O que é um cidadão
autorizam. Hoje mesmo, um de meus amigos, francês de l)UC tem dc provar, a cada instante, a sua cidadania? (Muitos
origem argelina, me contou um episódio ocorrido com sua pais franceses de origem argelina se perguntam que prenome
filha. Ao fazer a sua reinscrição na faculdade, uma funcio·· dar aos seus filhos, para lhes evitar depois esses aborreci-
nária da universidade lhe pediu, da maneira mais natural mentos. E a funcionária que importunava a filha do meu
do mundo, que apresentasse sellS documentos, seu passa- amigo se espantava porque da se chamava Mélanie...).
porte, ao ver o seu nome de sonoridade árabe. Para acabar Digo que uma lei é racista se autoriza um funcionário
uma vez por ~odas com esses constrangimentos e humilha- qualquer a questionar a cidadania d~ um cidadão só por
ções, impensáveis há alguns anos, é preciso marcar uma olhar o seu rosto ou o seu nome de família, como acontece
ruptura clara com urna legislação hipócrita que é apenas hoje, mil vezes por dia. É lamentável que não haja, no
uma imensa concessão à xenofobia da ,Freme Nacional. governo altamente civilizado que nos foi oferecido pelo sr.
Revogar as leis Pasgua e Debré, evidentemente, mas sobre-o Jospin, um úni~o portador de um desses estigmas designa-
tudo acabar com todas as declarações hipócritas de todos os dos ao arbítrio irrepreensível dos funcionários do Estado
francês, um rosto negro ou um nome de sonoridade árabe,
para lembrar ao sr. Chevenemcm a distinção entre o direito
< -Iexw publicado em Lei lní"Ol-kuptib!es. em 8 de outubro de 1997, a
propósito dos pmjeto~ de leis Guigou e Chevenernent wbfe a nacionalidade e os costumes, e que há disposiç;óes jurídicas que autorizam
francesa e sobre a cnt:ada c a permanência dos ctitrangeiros na: França. os piores costu.mes. Deixo tudo isso para a reflexão daqueles

116
f

118 Contra fogos

que, silenciosos ou indiferentes hoje, virão daqui a trinta


anos expressar o seu "arrependimento", 1 num tempo em
A precariedade está hoje
que os jovens franceses de origem argelina se chamarão
KelkaJ.2
por toda aparte'"
Paris, outubro de 1997

NOTA
o trabalho coletivo de reflexão que se fez aqui durante dois
1. "Arrependimento": os bispos franceses exprimiram coletivamente seu
dias é bastanrc original, porque reuniu pessoas que não têm
"arrependimento" a propósito da atitude do episcopado durante a oUlpa""o oportunidade de se enconrrar e se confrontar, responsáveis
alemã. (N.E.)
administrativos e políticos, sindicalistas, pesquisadores em
2. Kelkal é o nome do jovem argelino. mcmbro de lllIl rede terrorista,
que foi moto pela polícia. (N.E.) economia e em sociologia, trabalhadores, muitas vezes tem-
porários, e desempregados. Gostaria de citar alguns dos
problemas que foram discutidos. O primeiro, que é excluído
tacitamente das reuniões eruditas: o que resulta afinal de
todos esses debates, ou, mais cruamente, de que servem
todas essas discussões intelectuais? Paradoxalmente, são os
pesquisadores que se preocupam mais com essa questão, ou
aqueles a quem essa questão mais preocupa (penso sobretu-
do nos economistas aqui presentes, logo, pouco repre-
sentativos de uma profisssão na qual são muito..raros os que
se preocupam com a realidade social, ou mesmo com reali-
dade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa

• {",cP/coça0 nos Encontros Europeus contra a Precariedade, Grcnoblc,


,2. U de dezembro de 1997.

119
Contrafogos A precariedade está hoje por toda a parte 121
120

pergunta (e sem dúvida é muito bom que seja assim). Ao talvez porque, como observava um de seus adversários teó-
mesmo tempo brutal e ingênua, ela lembra aos pesquisado- ricos, eles se beneficiam dessa espécie de protecionismo
res suas responsabilidades, que podem ser muito grandes, representado pela estabilidade, pela posição de titular, que
ao menos quando, por seu silêncio ou cumplicidade ativa, os livra da insegurança...). Ela atormenta as consciências e
eles contribuem para a manurenção da ordem simbólica que os inconscientes. A existência de um importante exército de
reserva, que não se acha mais apenas, devido à superprodu-
é a condição do funcionamento da ordem econômica.
ção de diplomas, nos níveis mais baixos de competência e
Constata-se clatamente que a precariedade está hoje por
de qualificaçao técnica, contribui para dar a cada trabalha-
toda a parte. No setor privado, mas também no setor pú-
dor a impressão de que e:e não é insubstiruível e que o seu
blico, onde se multiplicaram as posições temporárias e in-
trabalho, seu emprego, é de certa forma um privilégio, e um
terinas, nas empresas industriais e também nas instituições
privilégio (i;ígil c ameaçH!o ((: aliás o que lembram a ele, ao
de produção e difusão cultural, educação, jornalismo, meios
primciro dcsli;r,c, scus cmpregadores, e, à primeira greve, os
de comunicação etc., onde ela produz efeitos sempre mais
jornalistas e comentaristas de rodo gênero). A insegurança
ou menos idênticos, que se tornam particularmente visíveis objetiva funda urna insegurança subjetiva generalizada, que
no caso extremo dos desempregados: a desestruturaçao da afeta hoje, no cerne de urna economia altamente desenvol-
existência, privada, entre outras coisas, de suas estruturas vida, o conjunto dos trabalhadores e até aqueles que não
temporais, e a degradação de roda a relação com o mundo estão ou ainda não foram diretamente atingidos. Essa espé-
e, como conseqüência, com o tempo e o espaço. A preca- cie de "mentalidade coletiva" (emprego essa expressão, em-
riedade afeta profundamente qualquer homem ou mulher bora não goste muito dela, para me fazer compreender),
exposto a seus efeitos; tornando o futuro incerto, ela impede comum a roda a época, está no p'rincípio da desmoralização
qualquer antecipação racional e, especialmente, esse míni- e da desmobilização que se podem observar (como fiz nos
mo de crença e de esperança no futuro que é preciso ter anos 60, na Argélia) em países subdesenvolvidos, afligidos
para se revoltar, sobretudo coletivílmente, contra o presente" por taxas de desemprego ou de sube.mprego muito elevadas
mesmo.o mais intolerável. ' e habitados permanen temente pela dbsessão do desemprego.
A esses efeitos da precariedade sobre aqueles por ela Os desempregados e os trabalhadores destituídos de es-
afetados diretamente se acrescentam os efeitos sobre todos tabilidade não são passíveis de mobilização, pelo fato de
os outros que, aparentemente, ela poupa. Ela nunca se deixa terem sido <lringidos em sua capacidade de se projetar no
esquecer; está presente, em todos os momentos, em todos futuro, a condição indispensável de todas as condutas ditas
os cérebros (execro certamente nos dos economistas liberais, racionais, a começar pelo cálculo econômico, ou, em uma
122 Contrafogos A precariedade está hoje por toda a parte 123

ordem completamente diferente, pela organização política. tão selvagem quanto a praticada pelas empresas, está na raiz
Paradoxalmente, como mostrei em Travail et travailleurs en de uma verdadeira luta de todos coitltra todos, destruidora
Algérie, l meu livro mais antigo e talvez o mais atual, para de todos os valores de solidariedade e de humanidade, e, às
conceber um projeto revolucionário, isto é, uma ambição vezes, de uma violência sem rodeios. Aqueles que deploram
raciocinada de transformar o presente por referência a um o cnnismo que caracteriza, segundo eles, os homens e as
futuro projetado, é preciso ~er um mínimo de domínio sobre mulheres do nosso tempo, não deveriam deixar de atribuí-lo
o presente. O proletário, ao contrário do subproletário, tem às condições econômicas e sociais que o favorecem ou mes-
esse mínimo de garantias presente, de segurança, que é mo exigem, e que ainda o recompensam.
necessário para conceber a ambição de mudar o presente Assim. a precariedade alUa diretamente sobre aqueles que
em função do futuro esperado. Mas, diga-se de passagem, da alela Cc que ela impede, efetivamente, de serem mobili..
ele é também alguém que ainda tem algo a defender, algo zados) e indiretamente sobre todos os outros, pelo temor
a perder, o seu emprego, mesmo sendo exaustivo e mal pago, que ela suscita e que é metodicamente explorado pelas
e muitas de suas condutas, às vezes descritas como excessi- estratégias de precarização, corno a introdução da famosa
vamente prudentes ou mesmo conservadoras, se explicam "flexibilidade" - que, como vimos, é inspirada tamo por
em função do temor de cair ainda mais, de recair 110 sub- razões econômicas quanto políticas. Começa-se assim a sus-
proletariado. peitar de que a precariedade é o produto de uma vontade
Quando o desemprego, como hoje em muitos países política, e náo de uma jàtalidade econômica, identificada
europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afeta com a famosa "mundialização". A empresa "flexível" explo-
urna parte muito importante da população, operários, em- ra, de certa forma deliberadamente, l.una situação de inse-
pregados no comércio e na indúuia, mas também jornalis- gurança que ela contiibui para reforçar: da procura baixar
tas, protessores, estudantes, o trabalho se torna urna coisa os custos, mas também tornar possível essa baixa, pondo o
rara, desejável a qualquer preço,'submetendo os trabalha': trabalhador em risco permanente Je perder o seu trabalho.
dores aos empregadores e estes, como se pode ver todos os 10do o universo da produção, material e cultural, pública
dias, usam e abusam do poder que assim lhes é dado. A e. !privada, é assim arrebatado num vasto processo de preca-
concorrência pelo trahalho é acompanhada de uma concor- mação, indusive com a destcrritorialização da empresa: liga."
rência no rrahaiho, que é ainda uma forma de concorrência da .ué então a um Estado-nação OLl a um lugar (Deuoit ou
pelo rraba!ho, que é preciso conservar, custe o que custar, "~~llim, para a indústria automobilística), esta tende cada
conua a chamagem da demissão. Essa concorrência, às vezes \a l"llais a dissociar-se dele, com o que se (;hama de "em--
124 Contrafogos A precariedade está hoje por toda a parte 125
i

presa-rede", que se articula na escala de um continente ou expressivo de flexploração. Essa palavra evoca bem essa gestão
i!''I do planeta inteiro, conectando segmentos de produção, racional da insegurança, que, instaurando, sobretudo através
'I
conhecimentos tecnológicos, redes de comunicação, percur- da manipulação orquestrada do espaço da produção, a Con-
sos de formação dispersos entre lugares muito afastados. corrência entre os trabalhadores dos países com conquistas
Facilitando ou organizando a mobilidade do capital, e o sociais mais importantes, com resistências sindicais mais
"deslocamento" para os países com salários mais baixos, bem organizadas - caracteristicas ligadas a um território e
onde o custo do trabalho é reduzido, favoreceu-se a extensão a uma história nacionais - e os trabalhadores dos países
da concorrência entre os trabalhadores em escala mundial. mcnos avançados socialmente, acaba por quebrar as resis-
A empresa nacional (ou até nacionalizada), cujo território tências e obtém a obediência c a submissão, por mecanismos
de concorrência estava ligado, mais ou menos estritamente, aparcntcmentc naturais, quc são por si mesmos sua própria
ao território nacional, e que saía para conquist3r mcrc3dos justificação. Essas disposições submetidas produzidas pela
no estrangeiro, cedeu lugar à emprcs3 rnultinacion31, que precariedade são a condição de uma exploração cada vez
põe os trabalhadores em concorrência, IÚO m3is 3pen3s com mais "bem-sucedida", fundada na divisão entre aqueles que,
os seus compatriotas, ou mesmo, como querem nos fazer cada vez mais numerosos, não trabalham e aqueles que, cada
crer os demagogos, com os estrangeiros implantados no vez menos numerosos, trabalham, mas trabalham cada vez
território nacional, que, evidentemente, são de fato as pri- mais. Parece-me, portanto, que o que é apresentado como
meiras vítimas da prccarização, mas com trabalhadores do um tegime econômico regido pelas leis inflexíveis de uma
outrO lado do mundo, que são obrigados a aceitar salários espécie de natureZa social é, na realidade, tUn regime político
de miséria. que só pode se instaurar com a cumplicidade ativa ou passiva
A precariedade se inscreve num modo de dominação de dos poderes propriamente políticos.
tipo novo, fundado nj instituição de uma situ~ção genera- Contra esse regime político, a luta política ,é possível. Ela
lizada e permanente de insegurança, visando obrigar os pode ter como fim, primeiramente, assim' como a ação
trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração. Apesar caritativa ou caritativo-militante, encorajar as vítimas da
de seus efeitos se assemelharem muito pouco ao capitalismo exploração, todos os possuidores atuais e poteIlciais de em-
selvagem das origens, esse modo de dominação é absoluta- pregos precários, a trabalhar em comum contra os efeitos
mente sem precedentes, motivando alguém a propor aqui destruidores da precariedade (ajudando-os a viver, a "agüen-
o conceito ao mesmo tempo muito pertinente e muito tar" e a comportar-se, a salvar sua dignid.ade, a resistir à
f

126 Contrafogos
A precariedade está hoje por toda a parte 127

desestruturação, à degradação da amo-imagem, à alienação),


reprodução de todas as condições econômicas e sociais ocul-
e principalmente a mobilizar-se, em escala internacional, isto
tas do funcionamento da economia, tal como eles a conhe-
é, no mesmo nível em que se exercem os efeitos da política
cem, aos indivíduos, ou - paradoxo - ao Estado, cuja
de precarização, para combater essa mesma política e neu- destruição eles pregam, aliás.
tralizar a concorrência que ela visa instaurar entre os traba-
Grenoble, dezembro de 1997
lhadores dos diferentes países. Mas ela também pode tentar
desvencilhar os trabalhadores da lógica das antigas lutas que,
fundadas na reivindicação do trabalho ou de uma melhor NOTA
remuneração do trabalho, os restringem ao trabalho e à
exploração (ou à flexploração) que ele autoriza. Tal ocorre I. [' 1I0llrdicll, '(i'lmil ~t trttl!{(ill~urs m Algt'rir, Paris-Haia, Mouton, 1963
((011I A. Ibrlll'l. ).-1' Rivel. C. Seil",!); Alxlrir 60. Slruetum économiqurs ri
por uma redistribuição do trabalho (através de uma forte
<lrtu"t"rrJ lon!,1Jrdl~J. Paris. Millllil, 1')77.
redução da carga semanal de trabalho em escala européia),
redistribuição inseparável de uma redefinição da distribui-
ção entre o tempo da produção e o tempo da reprodução,
I o repouso e o lazer.
I
I Revolução que deveria começar pelo abandono da visão
I estreitamente calculista e individualista que reduz os agentes
a calculàdores ocupados em resolver problemas, problemas
I
,I estritamente econômicos, no sentido mais limitado do ter-
I mo. Para que o sistema econômico funcione, é preciso que
I
!
os trabalhadores lhe forneçam suas próprias condições de
produção -e de reprodução, mas também as condições de
funcionamento do próprio sistema econômico, a começar
por sua crença na empresa, no trabalho, na necessidade do
trabalho etc. São coisas que os economistas ortodoxos ex-
cluem a priori da Slla contabilidade abstrata e mutilada,
atribuindo tacitamente a responsabilidade da produção e da
f

o movimento dos desempregados, um milagre social 129

preitada me pareceu muitas vezes desesperada - a todos


aqueles que, nos sindicatos e nas associações reunidos no
o movimento dos desempregados, seio dos Estados gerais para o movimento social, tornaram
um rnilagre social* possível o que constitui realmente um milagre socia4 cujas
virtudes e benefícios não terminaremos tão cedo de desco-
brir.
A primeira conquista desse movimento é o movimento
em si, a sua própria existência: ele arranca os desempregados,
o movimento dos desempregados é 11m aconrecimento úni- l' com des lOdos os trabalhadores precários, cujo número

co, extraordinário. Ao contrário do que nos repetem sem cresce dia a dia. da invisibilidade, do isolamento, do silên-
l:iO, em suma da inexistência. Reaparecendo em plena luz,
cessar os jornais escritos e falados, essa exceção francesa é algo
de que podemos nos orgulhar. Todos os estudos científicos os desempregados reconduzem à existência e a um certo
mostraram efetivamente que o desemprego destrói aqueles orgulho todos os homens e mulheres que, como eles, o
não-emprego condena habitualmente ao esquecimento e à
que atinge, suprime suas defesas e Sllas disposi\ões sulwer-
vergonha. Mas eles lembram sobretudo que um dos funda-
),'1'
sivas. Se essa espécie de faralidade pôde ser frustada, foi
mentos da ordem econômica e social é o desemprego em
graças ao trabalho incansável de indivíduos e associações
massa e a ameaça que ele faz pesar sobre todos os que ainda
que estimularam, sustentaram, organizaram o movimento.
dispõem de um trabalho. Longe de se fecharem num mo-
E não posso delxar de achar extraordinário que responsáveis
vimento egoísta, eles dizem que, emoora haja certamente
políticos de esquerda e sindicalistas denunciem a manipu-
vários tipos de desempregado, as diferenças entre os RMlstas
lação (evocando o discurso patronal das origens contra os
e os desempregados com seguro - desemprego perto do
sindicatos nascentt:s), quando deveriam reçonhecer as vir·.
fim ou dependentes de outros rendimentos previdenciários
tudes do trabalhó militante, sem o qual, ~como sabemos,
-- não são radicalmente diferentes daquelas que separam
nunca teria havido nada semelhante a um movimento social.
os d~sempregados de todos os trabalhadores precários. Rea-
Quanto a mim, quero expressar minha admiração e minha
Iidade fundamental, que nos arriscamos a esquecer ou a fazer
gratidão -- ainda mais intensas considerando que sua em-
esquecer, enfatizando exclusivamente as reivindicações "por
categoria" (se assim podemos dizer!) dos desempregados,
tendentes a separá-los dos trabalhadores, e em particular dos
* intervenção, feita em 17 de janeiro de 1998, quando da ocupação da
École Norm31e Supérieure pelos desempregados. mais Illstáveis entre eles, que podem se sentir esquecidos.

128
130 Contra fogos o movimento dos desempregados, um milagre social 131

Além disso, o desemprego e o desempregado obcecam o gados lembram a todos os trabalhadores que estes estão no
trabalho e o trabalhador. Temporários, substitutos, supleti- mesmo barco que os desempregados; que os desempregados,
vos, intermitentes, detentores de contratos de duração de- cuja existência pesa tanto sobre eles e sobre suas condições
terminada, interinos na indústria, no comércio, na educa- de trabalho, são o produto de uma política; que uma mo-
ção, no teatro ou no cinema, mesmo que imensas diferenças bilização capaz de atravessar as fronteiras que separam, no
possam separá-los dos desempregados e também entre si, seio de cada país, os trabalhadores e os não-trabalhadores,
todos eles vivem com medo do desemprego, e, muitas vezes, e por outro lado as que separam o conjunto dos trabalha-
sob a ameaça da chantagem exercida sobre eles pelo desem- dores e dos não-trabalhadores, de um mesmo país, dos
prego. A precariedade torna possíveis novas estratégias de trabalhadores e dos não-traoalhadores dos outros países,
dominação e exploração, fundadas na chantagem da dispen- poderia enfremar a política que faz com que os não-naba-
sa, que se exerce hoje sobre toda a hierarquia, nas empresas Ihauorcs possam condenar ao silêncio e à resignação aqueles
privadas e mesmo públicas, e que impõe sobre () conjullto que têm o duvidoso "privilégio" de ter um trabalho mais
do mundo do trabalho, e especialmente nas empresas de ou menos precário.
produção cultural, uma censura esmagadora, impedindo a Paris, janeiro de 1998
mobilização e a reivindicação. A degradação generalizada
das condições de trabalho se torna possível ou até mesmo
favorecida pelo desemprego, e é porque sabem confusamen-
te disso que tantos franceses se sentem e se dizem solidários
a uma luta como a dos desempregado&. É por isso que se
pode dizer, sem jogar com as palavras, que a mobilização
daqueles cuja existência constitui certamente o fator prin-
cipal da desmobilização é o mais extraordinário estímulo à
mobilização, à ruptura com o fat:>.lismo polítí.co.
O movimento dos desempregados franceses constitui
também um apelo a todos os desempregados e trabalhadores
precários de toda a Europa: surgiu uma idéia subversiva
nova, e ela pode se wrnar unl instmmento de luta, do qual
cada movimento naÓOflJJ pode se apoderar. Os desempre-
o intelectual negativo 133

por alguns, descobriram subitamente que todos os seus


esforços podiam ser destruídos, aniquilados em dois tempos
o intelectual negativo" e com três movimentos.
Dois artigos escritos ao fim de uma viagem sob escolta,
programada, balizada, vigiada pelas autoridades ou pelo
exército argelino, que serão publicados no maior diário
francês, I embora recheados de lugares-comuns e erros, e
inteiramente orielllac!os para uma conclusão simplista, feita
Todos aqueles que estiveram a postos, dia após dia, durante para dar satis{;H;;io 21 comoção superficial e ao ódio racista,
anos, para receber os refugiados argelinos, escutá-los, aju- c!isLuçado de indignaç;io humanista. Um comício unani··
dá-los a redigir curriculum vitae e enviar solicitações aos mista retinindo a nata da intclligentsia da mídia e dos
ministérios, acompanhá-los aos tribunais, escrever cartas às políticos, indo do liberal integrista ao ecologista oportunis-
instâncias administrativas, juntar-se a eles em delegações ta, passando pela passionária dos "erradicadores". Um pro-
junto às autoridades responsáveis, solicitar vistos, autoriza- grama de televisão totalmente unilateral, sob a aparência de
ções, carteiras de residência, que se mobilizaram, desde neutralidade. E o resultado está aí. Voltou-se à estaca zero.
junho de 1993, desde os primeiros assassinatos, não só para O intelectual negativo cumpriu sua missão: quem dirá que
levar o socorro e a proteção possíveis, mas também para é solidário dos estripadores, dos estupradores e dos assassi-
tentar. informar-se e informar" compreender e fazer coxn·· nos, - principalmente quapdo se trata de gente que é
preender uma realidade complexa, e que lutaram incansa·· chamada, sem outra consideração histórica, de "loucos do
velmeme por meio de intervenções públicas, entrevistas islã", envolvidos sob o rótulo infame de islamismo, resumo
coletivas, artigos nos jornais, para desvincular a crise arge- de todos os fanatismos orientais, feito para dar ao desprezo
lina das análises
," unilaterais, todos ...esses intelectuais de todos'
,,~
racista' o álibi indiscutível da legitimidade ética e leiga? .
lO ... ...

os países que se uniram para combater a indiferença ou a Para situar o problema em termos tão caricaturais, não é
xenofobia, para lembrar o respeito pela complexidade do preciso ser um grande intelecwal.Mas é o que faz o res-
mundo desfazendo as confusões, deliberadamente mantidas ponsável por essa operação de baixa polícia simbólica --
antítese absoluta de tudo o que define o intelectual, a liber-
dade em relação aos poderes, a crítica das idéias prontas, a
• Este texto, escrito em janeiro de ] 998, permaneceu inédito. demolição das alternativas simplist;),s, <l restauração da com·

132
134 Contrafogos

plexidade dos problemas - ser consagrado pelos jornalistas


como intelectual de pleno direito.
Entretanto, conheço todo tipo de pessoas que, embora o neoliberalismo, utopia
saibam perfeitamente de tudo isso por terem se chocado mil (em vias de realização)
vezes com essas forças, recomeçarão, cada um no seu am-
biente e com seus meios, a executar ações sempre ameaçadas
de uma exploração sem limites
de serem destruídas por um relatório distraído, leviano ou
maldoso, ou de serem apropriadas, em caso de sucesso, por
oportunistas e convertidos de última hora, que teimarão em
escrever explicações, refutações ou desmentidos, destinados
a serem encobertos pelo fluxo ininterrupto da tagarelice na o mundo econlJlllico seria de fato, como quer o discurso
mídia, convencidos de que, como mostrou o movimen to dOlllinallte. UIlla ordem pura e perfeita, desdobrando im-
dos desempregados, culminância de um trabalho obscuro e placavelmente a lógica de suas conseqüências previsíveis e
às vezes tão desesperado que se assemelhava a uma espécie pronto a reprimir todos os erros pelas sanções que ele inflige
de arte pela arte da política, pode-se, com o tempo, fazer seja de maneira automática, seja, mais excepcionalmente,
avançar um pouco, e sem recuo, a pedra de Sísifo. através de seu braço armado, o FMI ou a aCDE, e das
Porque, durante esse tempo, "responsáveis" políticos, há- políticas drásticas que eles impõem, redução do cusro da
beis em neutralizar os movimentos sociais que contribuíram mão-de-obra, corte das despesas públicas e flexibilização do
para levá-los ao poder, continuam a deixar milhares de "sem- uabalho? E s~ ele fosse apenas, na realidade, a prática de
documentos" à espera ou a expulsá-los sem maiores cuidados uma utopia, o neoliberalismo, assim c~nvertida em progra-
para o país de onde fugiram, e que pode ser a Argélia, ma político, mas uma utopia que, com a ajuda da teoria
Paris, j,!neiro de 1998 econômica a que ela se filia, consegue se pensar como a
:11 descrição científica do real?
ESs;l teoria tutelar é uma pura ficção rri'atemática, funda-

NOTA da, desde a origem, numa formidável abstração (que não se


reduz, como querem fazer crer os economistas que defen-
l. Trata-se de dois artigos de Bernard- Henri Lévy, publicados no Le dem o direito à abstração inevitável, ao efeito, constitutivo
Monde. (N.E.) de todo pro,ieto científIco, da construção de objeto como
aprccnsáo deliberadamente seletiva do real): aquela que, em

135
136 Contrafogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 137

nome de uma concepção tão estreita quanto estrita da ra- mlcas daqueles que dominam as relações econômicas e
cionalidade identificada com a racionalidade individual, acrescentando assim a sua força própria, propriamente sim-
consiste em pôr entre parênteses as condições econômicas bólica, a essas relações de força. 1 Em nome desse programa
e sociais das disposições racionais (e em particular da dis- científico de conhecimento convertido em programa polí-
posição calculadora aplicada às coisas econômicas, que está tico de ação, cumpre-se um imenso trabalho político (rene-
na base da visão neoliberal) e das estruturas econômicas e gado, pois aparentemente puramente negativo) que visa
sociais, que são a condição de seu exercício, ou, mais pre- criar as condições de realização e de funcionamento da
cisamente, da produção e da reprodução dessas disposições "teoria"; um programa de destruição metódica dos coletivos (a
e dessas estruturas. Basta pensar apenas, para dar a medida economia neoclássica querendo lidar apenas com indiví-
da omissão, no sistema de ensino, que nunca é levado em duos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos ou
conta enquanto tal, numa época em que ele tem um papel Ltmflias).
determinante tanto na produção dos bens e dos serviços O movimento, que se tornou possível pela política de
quanto na produção dos produtores. Dessa espécie de pc- desregulamentação financeira, em direção à utopia neolibe-
cado original, inscrita no mito walrasiaJlo da "(eoria pura", ral de um mercado puro e perfeito se realiza através da ação
decorrem todos os erros e todas as hlhas da disciplina transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as
econômica, e a obstinaçáo Eual com a qual ela se apega à medidas políticas (das quais a mais recente é o AMI, Acordo
oposição arbitrária que faz existir apenas com a sua própria °
Multilateral sobre Investimento, destinado a proteger con·-
existência, entre a lógica propriamente econômica, fundada tra os Estados nacionais as empresas estrangeiras e seus
na concorrência e p~rtadora de eficiência, e ~ lógica social, investimentos) colocando em risco todas as estruturas coletivas
submetida à regra da eqüidade. capazes de resistirem à lógica do mercado puro: nação, cujo
Dito isso, essa "teorià' originariamente dessocializada e espaço de manobra não pára de diminuir; grupos de trabalho,
des-hístoricizada tem, l;lOje mais do que nunca, QS meios de com, por exemplo, a individualização dos sª,!ários e das
tornar-se lJertÚldeira, empiricamenre verificável. Efetivamen- carreiras, em função das competências individnais e a resul-
te, o discurso neoliberal não é um discurso como os outros. tante atomízação dos trabalhadores; coletillOs de defesa dos
J

À maneira do discurso psiquiátrico no asilo, segundo Erving direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, coopera-
GoHlnan, é um "discurso forte", que só é tão fone e tão t:vas; até a fàmí/ill, que, através da constituição de mercados
d.ifícil de combater porque tem a favor de si todas as forças por cia"ses de idade, perde uma parte do seu controle sobre
de um mundo de relações de força, que ele contribui para o consumo. O programa neoliberal extrai sua força social
bzer tal como é, sobretudo orientando as escolhas econô- da força político-econômica daqueles cujos imeresses ele
138 Contra fogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 139

exprime - acionistas, operadores financeiws, industriais, e salário. Assim se instaura o reino absoluto da flexibilidade,
políticos conservadores ou social-democratas convertidos às com os recrutamentos por intermédio de contratos de du-
desistências apaziguadoras do laisserjaire, altos funcionários ração determinada ou as interinidades e os "planos sociais"
das finanças, tanto mais obstinados em impor uma política de treinamento, e a instauração, no próprio seio da empresa,
pregando sua própria extinção porque, ao contdrio dos da concorrência cntre filiais autônomas, entre equipes, obri-
executivos das empresas, eles não conem nenhum risco de gadas à polivalência, e, enfim, entre indivíduos, através da
pagar eventualmente por suas conseqüências. O programa individualização da relação salarial: fixação de objetivos in-
neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura dividuais; prática de cntrevistas individuais de avaliação;
entre a economia e as realidades sociais, e a construir desse altas individualizadas dos salários ou atribuição de promo-
mundo, na realidade, um sistema econômico ajustado à ç(ics em função da compctência e do mérito individuais;
descrição teórica, isto é, uma espécie de máquina lógica, que carreiras individualizadas; estratégias de "responsabilização"
se apresenta como uma cadeia de constrangimentos enre- tendendo a garantir a auto-exploração de cercos quadros
dando os agemes econômicos. que, sendo simples assalariados sob force dependência hie-
A mundialização dos mercados financeiros, junto com o rárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis
progresso das técnicas de informação, garante uma mobili- por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc.,
dade sem precedentes dos capitais e oferece aos investidores à maneira dos "por coma próprià'; exigência do "auto-con-
(ou acionistas) zelosos de seus interesses imediatos, ou me- trole", que estende o "envolvimento" dos assalariados, se-
lhor, da rentabilidade a curto prazo de seus investimentos, gundo as técnicas do "managementpanicipativo", bem além
a possibilidade de comparar a todo momento a rentabilida- das atribuições características dos gerentes; eis algumas téc-
de das maiores empresas e de sancionar, conseqüentemente, nicas de submissão racional que, ao exigir o sobreinvesti-
os fracassos pontuais. As próprias empresas, defrontando-se menta no trabalho, e não apenas nos postos de responsabi-
com tal ameaça permanente, devem~e ajustar de modo cada lidade, e,0 trabalho de urgência, concorrem para enfraquecer
vez mais rápido às exigências dos mercados; e devem fàz.é-lo ou abolir as referências e as solid~.iedades coletivas. 2
sob pena de "perder, como se diz, a confiança dos merca·· A instituição prática de um mundo darwiniano que en-
dos", e com isso o apoio dos acionistas. Esses últimos, contra as molas da adesão na inseguran.ça em relação à tarefa
prreocupados em obter uma rentabilidade a curto prazo, são c ~. empresa, no sohimemo e no estresse, 3 não poderia
cada vez mais capazes de limpar sua vontade aos managers, certamente ter sucesso completo, caso não contasse com a
de fixar-lhes normas, :lcravés das diretorias fmanceiras, e de cumplicidade de trabalhadores a braços com condições pre·
orientar suas políticas em matéria de contratação, emprego cárias de vida produzidas pela insegurança bem como pela
140 Contra fogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 141

existência -- em todos os níveis da hierarquia, e até nos empresarial constata e deplora). Nesse mundo sem inércia,
mais elevados, sobretudo entre os executivos - de um sem princípio imanente de continuidade, os dominados estão
exército de reserva de mão-df-obra docilizada pela precarizaçáo na posição das criaturas num universo cartesiano: estão para-
e pela ameaça permanente do d.esemprego. O fundamento lisados pela decisão arbitrária de um poder responsável pela
último de toda essa ordem econômica sob a chancela invo- "criação continuada" de sua existência - como prova e
cada da liberdade dos indivíduos é efetivamente a violência lembra a amcça do fechamento da fábrica, do desinvestimen-
estrutural do desemprego, da precariedade e do medo ins- to e do deslocamcnto.
pirado pela ameaça da demissão: a condição do funciona- A profunda scnsac;áo dc insegurança e de incerteza sobre o
mento "harmonioso" do modelo micro-econômico indivi- futuro e sobre si próprio que atinge todos os trabalhadores
dualista e o princípio da "motivação" individual para o assim precarizados deve sua coloração particular ao fato de
trabalho residem, em última análise, num fenômeno de quc o princípio da divis;ío entrc os que são relegados ao
massa, qual seja, a existência do exércido de reserva dos exército de reserva e aqueles que possuem trabalho parece
desempregados. Nem se trata a rigor de um exército, pois residir na competência escolarmente garantida, que também
o desemprego isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e explica o princípio das divisões, no seio da empresa "tecnici-
rompe com a solidariedade. zadà', entre os executivos ou os "técnicos" e os simples
Essa violência estrutural também pesa sobre o que se operários ou os operários especializados, os novos párias da
chama contrato de trabalho (habilmente racionalizado e des- ordem industriaL A generalização da eletrônica, da informá-
reaJizado pela "teoria dos cOlllratos"). O discurso empresarial tica e das exigências de qualidade, que obriga todos os assala-
nunca falou tanto de confiança, de cooperação, de lealdade e riados a novas aprendizagens e perpetua na empresa o equi-
de cultura de empresa como nessa época em que se obtém a valente das provas escolares, tende a redobrar a sensação de
adesão de cada instante tàzendo desap~recer todas as garantias insegurança por meio de uma sensação, habilmente mantida
temporais ("três quartos das contratações são de duração de- peJa hierarquia, de indignidade. A ôrdem protlssionaJ e, su-
terminada; a parcela dos empregos temporários não pára de cessivamente, toda a ordem social, parece fundada numa
crescer, a demissão individual tende a não estar mais subme- ordem das "competências", ou, pior, das "inteligências". Mais
tida a nenhuma resrri',áo). Aliás, tal adesão só pode ser incerta talvez do que as manipulações tecnocráticas das re1açücs de
e ambígua. porque a precariedade, o medo da demissão e o trabalho e as estratégias especialmente armadas a fim de obter
"enxugamento" podem, como o desemprego, gerar a angús- a submissão e a obediência, objeto de uma atenção incessante
tia, a desmoraJização ou o conformismo (taras que a literatura e de uma reinvenção permaneme, mais do que o enmme
142 Contrafogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 143

investimento em pessoal, em tempo, em pesquisa e em traba- neutralizar, como as generosidades à maneira de Bill Gates.
lho, pressuposto pela invençáo contínua de novas formas de Como o marxismo em outros tempos, com o qual, sob esse
gestão de mão-de-obra e de novas técnicas de comando, é a aspecto, ela tem muitos POntos comuns, essa utopia suscita
crença na hierarquia das competências escolarmente garanti- uma crença formidável, a Free tradefaith, não só entre aqueles
das que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e que vivem materialmente dela, como os financistas, os patrões
também, cada vez mais, na função pública: obrigados a de grandes empresas etc., mas também entre os que tiram dela
pensar-se em relação à elite detentora dos títulos escolares sua razão de viver, como os altos funcionários e os políticos
mais cobiçados, destinada às tarefas de comando, e à pequena que sacralizam o poder dos mercados em nome da eficiência
classe dos empregados e dos técnicos restritos às tarefàs de ccolIC>mica. que exigem a suspensão das barreiras administra-
execução e sempre em situação de risco, quer dizer, sempre tivas ou políticas capazes de incomodar os detentores de
obrigados a provar que sáo bons, os trabalhadores condenados capitais :la busca puramente individual da maximização do
à precariedade e à insegurança de um emprego instável e lucro individual instituído como modelo de racionalidade,
ameaçados de relegação na ind.ignidade do desemprego só que querem bancos centrais independentes, que pregam a
podem conceber uma imagem desencantada tanto de si mes- subordinação dos Estados nacionais às exigências da liberdade
mos, como indivíduos, quanto de seu grupo; outrora objeto econômica para os donos da economia, com a supressão de
de orgulho, enraizado em tradições e em toda uma herança todas as regulamentações sobre todos os mercados, a começar
técnica e política, o grupo ,operário, se é que existe, ainda pelo mercado de trabalho, a proibição dos déficits e da
enquanto tal, está fadado à desmoralização, à desvalorização inflação, a privatização gene~alizada dos serviços públicos, a
e à desilusão política, que se exprime na crise da militância redução das despesas públicas e sociais.
ou, pior ainda, na adesão desesperada às teses do extremismo Sem compartilhar necessariamente os interesses econô-
fascistóide. micos,e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas t~m
Vê-se assim como a utopia ~eo!iberal tende a se enca~naJr suficiéntes inter.esses específicôs no campo da ciência eêo-
na realidade de uma espécie de máquina infernal, cuja neces- nâmica para dar uma contribuição decisiva, quaisquer que
sidade se impõe aos próprios dominantes -- às vezes ator- sejam seus sentimentos a propósito dos efeitos econômicos
mentados, como George Soros, e este ou aquele presidente e sociais da utopia que eles revestem com a razão mate-
de fundos de pensão, pela preocupação com os efeitos des- mática, à produção e à reprodução da crença na utopia neo-
truidores do domínio que eles exercem, e levados a ações !iberal. Separados do mundo econômico e social por toda
compensatórias inspiradas na própria lógica que querem a SUa existência e sobretudo por sua formação intelecwal,

c
144 Contrafogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 145

em geral puramente abstrata, livresca e teoricista, eles são, rrusão crescente das considerações comerciais, mas também
como outros em outros tempos no campo da filosofia, e sobretudo pela destruição de todas as instâncias coletivas
particularmente inclinados a confundir as coisas da lógica capazes de resistir aos efeitos da máquina infernal, entre as
com a lógãca das coisas. Confiantes em modelos que prati- quais o Estado está em primeiro lugar, depositário de todos
camente nunca tiveram ocasião de submeter à prova da os valores universais associados à idéia de público, e a im-
verificação experimental, levados a olhar de cima as con- posição, por toda a pane, nas altas esferas da economia e
quistas das outras ciências históricas, nas quais não reconhe- do Estado, ou no seio das empresas, dessa espécie de dar-
cem a pureza e a transparência cristalina de seus jogos winismo moral que, com o culto do vencedor (" winnd'),
matemáticos, sendo em geral incapazes de compreender slIa formado em matemáticas superiores e nos "chutes" sem
verdadeira necessidade e profunda complexidade, eles par- rigor, instaura a luta de todos contra todos e o cinismo como
ticipam e colaboram para uma formidável mudança eCOll()- norma de todas as priticas. E a nova ordem moral, fundada
mica e social. Mesmo que algumas das conseqüências dessa na inversáo de todas as tábuas de valores, se afirma no
mudança lhes causem horror (eles podem contribuir para o espetáculo, prazerosamente difundido pela mídia, de todos
partido socialista e dar conselhos prudente a seus repre- esses imponantes representantes do Estado, que rebaixam
sentantes nas instâncias de poder), decerto não lhes desa- a sua dignidade estatutária ao multiplicar as reverências
gradam completamente pois, com o risco de alguns fracas·· diante dos patrões de multinacionais, Daewoo ou Toyota,
sos, imputáveis principalmente ao que eles chamam de "bo- ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante de
lhas especulativas", tal mudança tende a dar realidade à um Bill Gates.
utopia uhraconseqüente (como certas formas de loucura) à Pode-se esperar que a massa extraordinária de sofrimento
qual eles consagram a sua vida. produzida por um tal regime político-econômico possa um
Entretanto, o mundo é o que é, com os efeitos imedia·· dia lastrear um movimento c.apaz de deter a marcha para o
tarneme visíveis do funcionãmento da grande utopia~neo­ abi'smo? De fato, estamos aqui diante de um extraordionário
liberal: nao só a miséria e o sofrimento de uma fração cada paradoxo: enquanto os obstáculos encontrados no caminho
vez maior das sociedades mais avançadas economicamente, da realização da ordem nova, a do indivíduo sozinho mas
o agravamento extraordinário das diferenças entre as rendas, livre, são hoje considerados efeitos da rigidez do arcaísmo,
o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de enquanto toda intervenção direta e consciente, pelo menos
produção cultural, cinema, edição etc., e portanto, a longo quando de iniciativa do Estado, e por quaisquer meios que
prazo, dos próprios produtos culturais, em virtude da in- sejam, é antecipadamente desacreditada a pretexto de estar
i

146 Co ntra fogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 147

orientada por funcionários movidos por seus próprios il:ue- nova, podendo se tornar forças subversivas nas seguintes
resses e que conhecem maios interesses dos agentes eCOnô- condições: sob a condição prévia de que se saiba conduzir
micos, portanto intimada a suprimir em proveito desse a luta propriamente simbólica contra o trabalho incessante
mercado enquanto um mecanismo puro e anônimo (esque- dos "pensadores" neoliberais, para desacreditar e desqualifi-
ce-se que ele é também o lugar do exercício de interesses), car a herança de palavras, tradições e representações asso-
ciadas às conquistas históricas dos movimentos sociais do
é na realidade a permanência ou a sobrevivência das insti-
passado e do presente; sob a condição também de que se
tuições e dos agentes da ordem antiga em vias de desman-
saiba defender as instituições correspondentes, direito do
telamento, e o trabalho inteiro de todas as categorias: de
trabalho, assistência social, previdência social etc. contra o
trabalhadores sociais, bem como todas as solidaried~des
projeto de conden:í-las ao arcaísmo de um passado ultrapas--
sociais, familiares ou outras, que fazem com que a ordem
sado ou, pior ainda, de constituí-los, desafiando roda veros-
social não desmorone no caos apesar do contingente c:][es-
similhança, em privilégios múteis ou inaceitáveis. Esse com-
cente de população precarizada. A transição para o "libera-
bate não é fácil, sendo muitas vezes necessário travá-lo em
lismo" se faz de maneira insensível, logo imperceptível,
frentes inesperadas. Inspirando-se numa intenção paradoxal
como a deriva dos continentes, ocultando assim seus efeitos, de subversão orientada para a conservação ou a restauração,
mais terríveis a longo prazo. Tais efeitos também se enC::on- os revolucionários conservadores são espertos em transfor-
tram dissimulados, paradoxalmente, pelas resistências que mar em resistências reacionárias as reações de defesa susci-
suscita desde agora por parte daqueles que defende.tu a tadas por ações conservadoras que descrevem como revolu-
ordem antiga, nutrindo-se dos recursos nelas contidos, dos cioná;ias; e ao mesm~ tempo condenam comodefesa arcaica
modelos jurídicos ou práticos de assistência e de solidarie- e retrógrada de "privilégios" reivindicações ou revoltas que
dade nela vigentes, dos hábitos aí estimulados (entre as se enraízam na invocação dos direitos adquiridos, isto é,
enfermeiras, os serviços' sociais etc.), em suma das res{::rvas num passado ameaçado. de degradação ou de des~ruição por
de capital social que p;otegern toda uma parte da preSente suas medidas regressivas -- entre as quais as mais"'exemplares
ordem social de urna queda na anomia. (Capital que, se: não são a demissão dos sindicalistas ou, mais radicalmente, dos
é renovado, reproduzido, está destinado à extinção, mas cujo trabalhadores vereranos que são também os conservadores
esgotamento não ocorrerá de um dia para o outro.) das rradições do grupo.
Mas essas mesmas forças de "conservação", freqü~nre­ E se podemos ter alguma esperança razoável, é porque
mente tratadas como forças conservadoras, são também, sob ainda existem, nas instituições estatais e também nas dispo-
ouno aspecto, forças de resistência à instauração da oltdem sições dos agentes (em especial os mais ligados a essas ins-
,•

148 Contrafogos o neoliberalismo, utopia de uma exploração sem limites 149

no trabalho" (l e 2), 114, setembro de 1996, e 115, dezembro de 1996 e


titUlçoes, como a elite do médio funcionalismo público),
especialmente a introdução de Gabrielle Balazs e Michel Pialoux, "Crise du
forças que, sob a aparência de defender simplesmente, como cravaiI e crise du politique". 114, p.3-4.
logo serão acusadas, uma ordem desaparecida, e os "privi- 3. C. Dejours. Souffiance en France. La banalisation de l'injustice socíale,
Paris. Seuil, 1997.
légios" correspondentes, devem de fato, para resistir à prova,
trabalhar para inventar e construir uma ordem social que
não teria como única lei a busca do interesse egoísta e a
paixão individual do lucro, e que daria lugar a coletivos
orientados para a busca racional de fins coletivamente elabo-
rados e aprovados. Entre esses coletivos, associações, sindica-
tos, partidos, como não dar um lugar especial ao Estado,
Estado nacional, ou, melhor ainda, supranacional, isto é,
europeu (etapa para um Estado mundial), capaz de controlar
e impor eficazmente os lucros realizados nos mercados fi-
nanceiros; capaz também e principalmcntc de cnfrentar a
ação destruidora que estes exercem sobre o mercado de
trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elabo-
ração e a defesa do interesse público que, queira-se ou não,
nunca sairá, mesmo ao preço de algum erro eIl? escrita
matemática, da visão de contador (em outros tempos, dir-
se-ia de "quitandeiro") que a nova crença apresenta como a
forma suprema da realizaç.ão humana.
Paris, janeiro de 1998

NOTAS

1. E. Cofírnan. Asiles. ErudeJ SUy la cona'ition soeiale des malades mentau.x,


Paris, Mínuit. 1968.
2. Poderr: ser consultados, sobre tudo isso. os dois números de Acte> de
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