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O AVESSO DO
CAPITAL
Ensaios sobre o direito e a
crítica da economia política
1
JOELTON NASCIMENTO
O AVESSO DO CAPITAL
Ensaios sobre o Direito e a crítica da Economia Política
2012
PerSe Editora
São Paulo
2
Copyleft © Joelton Nascimento
Setembro de 2012
O AVESSO DO CAPITAL
Ensaios sobre o Direito e a crítica da Economia Política
FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliografía: p. 186-196.
CDU – 330.342.14
Ficha elaborada por Rosângela Aparecida Vicente Söhn –
CRB-1/931
3
Apresentação
4
muito, apenas como um conjunto curioso de ideias lançadas
ao vento (a expressão corrente para designá-los, “movimentos
antiglobalização”, é testemunha disso). Há, certamente,
aqueles que admitem que tal descentralidade dos
movimentos de contestação global são um de seus pontos
positivos, mas observadores e militantes atentos já
perceberam muito bem que a fragmentação e a desconexão
podem também servir para tornar os movimentos de
contestação mais vulneráveis do que as organizações que eles
pretendem superar, ou seja, os partidos social-democratas e
de trabalhadores tradicionais.
5
e a contestação organizada globalmente contra os
dilaceramentos sociais do capitalismo global? Minha resposta
a ambas as questões é um firme “sim”!
6
ainda permanecem plenamente abertas. Cremos que é
chegado o momento de colocar nossa reflexão a serviço de
uma emancipação profunda, que penetre fundo nas bases de
nossa realidade social que, apesar de se ver em crise, parece
atônita quando se trata de agir na direção de um novo
começo. Neste sentido, ao levar adiante as reflexões deste
livro nos encontramos plenamente de acordo com o filósofo
francês Alain Badiou, quando este percebe e nomeia o que
vivemos hoje como “a época da refundação da hipótese
comunista”1.
***
***
8
SUMÁRIO
Apresentação....................................................................... 4
9
2. Juridificação e transformação do dinheiro em capital ..92
II
III
10
I
11
Forma jurídica e forma valor
1. A mercadoria e o valor
12
Tentemos esquematizar ao máximo possível os
argumentos principais de Marx sobre o que ele chamou de
“forma valor”. Segundo Marx, a forma “celular” das
sociedades capitalistas é a “forma mercadoria”3. A mercadoria
é um objeto, simbólico ou material, que tem a enigmática
característica de portar um valor. Portanto, quando dizemos
que uma certa mercadoria, um casaco, por exemplo, “vale 100
reais” dificilmente percebemos as diversas implicações sociais
que estão pressupostas nesta simples frase. É de fato
espantoso o quanto a mera enunciação de algo
aparentemente tão prosaico implica em termos sociais.
Comecemos pela mercadoria. Qualquer mercadoria, diz Marx
no primeiro capítulo de O Capital, tem duplo aspecto. Em
primeiro lugar, toda mercadoria tem algum tipo de qualidade
útil ou desejável. Sendo esta qualidade útil ou o atendimento
de uma necessidade vital ou de um desejo qualquer, a
mercadoria tem uma utilidade ou característica desejável
intrínseca.4 A isso Marx, acompanhando Aristóteles dá o
nome de valor de uso. O valor de uso de um objeto está
fundado em sua qualidade, por isso é essencialmente
qualitativo, ou seja, é incomensurável. Pelas suas
características intrínsecas, não posso comparar um casaco
com um cavalo. Para comparar de modo resoluto dois
14
sido pensado de forma equivocada, como Marx o demonstra.
O que dá “valor” à mercadoria não são suas qualidades
intrínsecas, como parece claro. O que faz uma mercadoria
poder ser trocada por outra, como se estas equivalentes
fossem, é isto o que chamamos aqui de um referencial
homogêneo e exterior. “Deixando de lado o valor de uso dos
corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade
que é a de serem produtos do trabalho.”5
Pois então, voltemo-nos para o trabalho. Em primeiro
lugar, o trabalho aplicado na coisa, tanto quanto a coisa em
sua característica de valor de uso, é algo qualitativo. Isto
significa o mesmo que vimos com os objetos: uma atividade
humana em seu existir mais essencial é incomensurável uma
com a outra. A atividade do jardineiro tem peculiaridades
próprias que não podem fazê-las imediatamente
identificáveis e, portanto, mensuráveis, com a atividade de
um adestrador de cavalos. Portanto, estas atividades são
impossíveis de serem comparadas sem um referencial externo
que as meça. No processo de criação da mercadoria temos de
um lado a coisa útil/desejável e o trabalho útil/empregável,
ambos qualitativos, que sofrem um processo peculiar de
abstração. No processo de formação da mercadoria tanto a
utilidade da coisa quanto o trabalho nela empregado são
abstraídos para e pelo processo de troca mercantil.
15
A atividade humana, ao se converter em atividade de
“valorização” da coisa deve ser abstraída de sua peculiaridade
qualitativa. Ela passa a ser tomada apenas em face de todos
os demais trabalhos e passa a ser um “trabalho socialmente
necessário”, ou um “dispêndio abstrato de energia humana”.
A atividade qualitativa realizada na coisa se converte em
trabalho considerado pelo mercado, pelos demais “trabalhos”
nele oferecidos na forma de mercadorias. Os objetos
materiais e simbólicos são comprados e vendidos pela
comensurabilidade geral ocasionada por este trabalho
"abstrato”. Nas palavras de Marx, no mercado vemos que:
“Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho,
desaparece o caráter útil dos trabalhos nele representados, e
desaparecem também, portanto, as diferentes formas
concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um
do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho
humano, a trabalho humano abstrato”6.
A atividade útil e o seu objeto se transformam
respectivamente e numa relação mútua, em mercadoria e em
trabalho abstrato (sendo, este a atividade, ela própria,
transformada em mercadoria e considerada como tal). De
modo que a mercadoria adquire o status fundamental e
paradoxal de objeto sensível-supra-sensível, de objeto “físico
metafísico” como o diz Marx. O que significa isso? Significa
16
que a mercadoria é sensível em seu caráter de bem
útil/desejável e, ao mesmo tempo, este caráter sensível é
suporte de seu valor que só é acessível por intermédio desta
abstração que ocorre como que “automaticamente” em cada
aparição da mercadoria como tal, uma abstração supra-
sensível. “Os sujeitos não executam conscientemente um tal
processo: é por trás das costas dos sujeitos que se passa a
inversão na qual o objeto concreto e sensível não conta senão
como incarnação do valor abstrato e supra-sensível.”7
O mais importante a ser pensado a partir disto é que
esta célula da sociedade capitalista, a mercadoria e sua lógica
intrínseca, o valor, são a quintessência do modo de
socialização desta sociedade, e essa quintessência a faz ser
uma socialização sempre invertida. Essa inversão se constitui
como uma projeção do concreto no abstrato, uma projeção do
sensível no supra-sensível. A mercadoria, essa forma
molecular da sociedade capitalista, aparece nesta duplicidade,
como forma natural e como forma de valor8.
Essa forma dupla na qual se mostra a mercadoria, a
rigor, diz-nos Marx, não é da mercadoria. “Caráter duplo da
mercadoria”, isso é uma forma abreviada de dizer que a
mercadoria é um “objeto de uso” e um “valor”. Este último, o
valor, é algo jamais constante no objeto, “porém sempre
apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda
17
mercadoria de tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido
isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo”9.
Compreendida esta forma simples do valor, basta deduzir
dela a forma valor desenvolvida, onde aparecem não só duas
mercadorias mas uma cadeia indefinida delas e a forma geral
de valor: nesta última etapa da formação é eleita uma
mercadoria em especial que possa servir de equivalente geral
e medir o valor (o trabalho abstrato nelas “contido”, ou
melhor dizendo, o trabalho abstrato nelas socialmente
“projetado”) de todas as outras. Se o único valor de uso desta
mercadoria é ser justamente este equivalente universal,
temos a forma dinheiro de onde voltamos ao ponto de
partida: “um casaco vale 100 reais”. Portanto, o segredo da
forma dinheiro se encontra já expresso na forma elementar
da mercadoria.
Mesmo a rigorosa apresentação de Marx precisa se
remeter à “região nebulosa da religião” para caracterizar o
que ele chama de fetichismo da mercadoria10. A culpa não é
ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades
naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles,
entre objetos” conclui então Marx que: “...a forma mercadoria e a relação de
valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver
absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí
originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios
homens que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região
nebulosa do mundo da religião. Aqui os produtos do cérebro humano parecem
dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com
18
de Marx, mas de seu objeto: o fetichismo, a projeção social
das faculdades humanas nos objetos, projeção esta que
“adere” (Anklebt) aos produtos do trabalho, e que é
inseparável da produção de mercadorias só pode ser descrita
se se recorre à “região nebulosa da religião”. Trata-se de uma
projeção social secularizada e, por isso, essencialmente
semelhante à projeção religiosa e sagrada. Parece incômodo
encontrar nesta difícil apresentação da forma valor o viés
crítico que se quer destacar. O ponto de partida deste viés, a
contradição social elementar que ele apresenta, entretanto,
foi muito bem assinalado por Jappe11:
Nas palavras de Marx esse processo aparece do seguinte modo: “As mercadorias
14
tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é
necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja
vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a
vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum
a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles
devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados.
Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é
uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo
dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica
mesma. As pessoas aqui só existem reciprocamente, como representantes de
mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias.” Marx, 1988a, p.
209-210
22
realidade social uma aparência socialmente necessária
segundo a qual a normatividade social pode ser derivada de
vontades distintas, porém de iguais capacidades, ou melhor,
de vontades equivalentes.
De modo especialmente claro Michel Miaille assim
expôs esta relação entre a forma da mercadoria e a forma do
sujeito de direito e da norma:
nos ver as relações sociais constantes no valor como atributos da coisa, portanto,
“coisificando” as relações sociais, as formas jurídicas fazem o exato oposto,
fazendo-nos ver necessariamente as relações de coisas, como a compra e venda,
etc., como relações entre pessoas e suas vontades “livres”. Esta “relação cruzada”
seria, portanto, como em uma bateria, com pólos opostos mas em um campo de
forças inseparável, ou ainda, em uma relação entre partes constituintes de um
mesmo campo social fetichista na forma de uma “frente” e um “verso”.
24
juristas e filósofos, se pode ser correto em relação a certos
autores, de modo algum é concebível para Marx e seus
leitores atentos. “Não é o predomínio de motivos econômicos
que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência
burguesa, mas o ponto de vista da totalidade”, já o havia
escrito Georg Lukács16 em 1923. Se foi apenas no sentido da
determinação (ainda que recíproca) que as esferas econômica
e jurídica foram pensadas, mesmo pelas análises que se
reputaram marxistas, a leitura a partir da análise da forma
valor e do fetichismo da mercadoria permite-nos
compreender por um ângulo mais profundo o problema. Não
é como esferas exteriores entre si que a “economia” e o
“direito” devem ser pensadas, como se pudessem ser reunidas
a posteriori e exteriormente, antes, é a própria separação
entre a atividade social convertida em “economia” e a
normatividade social convertida em “direito” que precisam
ser, simultaneamente, pensadas e criticadas. É preciso
perguntar pela práxis social que precisou se cindir nestas
esferas e categorias sociais distintas.17
Esta cisão como ponto crítico e não como pressuposição da crítica é bem realizada
17
Em tempos recentes, André Gorz e Louis Dumont, dentre muitos outros, podem
19
Pasukanis, 1989.
20
28
portador se transmuta em sujeito abstrato de direito. O que
significa esta tese tão bem exposta por Pachukanis? Significa
o vínculo lógico e histórico entre a mercadoria e seu portador,
entre a forma de valor da mercadoria e a forma do sujeito de
direito. A teoria burguesa do direito, em suas diversas formas,
novas e velhas, considera a categoria de sujeito de direito
como algo facilmente dedutível de um princípio especulativo
ou empírico qualquer23. É preciso, segundo Pachukanis, ao
invés disso, “considerar historicamente toda forma social”24, e
a questão mais urgente, no que diz respeito à forma do sujeito
de direito é: como o indivíduo sai de sua existência
“zoológica” (ou de um “mero vivente”, como diria Walter
Benjamin) para uma existência como “sujeito de direito”?
Para Pachukanis, o sujeito de direito surge no interior do
processo exposto por Marx.
23
Como bem lembrou Miaille, o tema do sujeito de direito é tomado de modo tão
natural pela dogmática jurídica que sua abordagem em geral é extremamente
vaga e lacônica (em um campo, completaríamos nós, tão afeito a questiúnculas e
filigranas). Ao contrário, para ele, “... a teoria do sujeito de direito permite
precisamente ocultar o carácter artificial desta noção e, ao mesmo tempo, a sua
função no seio da sociedade burguesa”. Voltamos, portanto, pela primeira vez
aqui à questão da naturalização de categorias sociais. Voltaremos a isso. Cf.
Miaille, 1994. p. 114 e ss. Outro pensador próximo ao marxismo que se deparou
em profundidade com o tema foi o jurista e pensador francês Bernard Edelman,
Cf. Edelman, 1976. Para uma leitura contemporânea de Edelman Cf. Silva, 2008.
24
Pasukanis, 1989, p. 83.
29
dissolvem no trabalho humano abstrato, como
criador de valor [forma trabalho] igualmente a
diversidade concreta da relação do homem com a
coisa aparece como vontade abstrata do
proprietário e todas as particularidades concretas,
que distinguem um representante da espécie
Homo sapiens de outro, se dissolvem na
abstração do homem em geral, do homem como
sujeito de direito.25
31
Direito “marxista” e sua justificativa é bastante emblemática.
As categorias não são neutras, responde o jurista, antes
advêm de processos históricos e sociais concretos, de sorte
que não há uma categoria como o “valor proletário” ou o
“lucro proletário” ou um “capital proletário”, pois as
categorias são formas intrinsecamente ligadas à existência e à
dominação de classe. Assim, de igual maneira, não há formas
jurídicas que não contenham em si seus conteúdos fetichistas
instauradores do poder de classe. Resta a ele concluir que: “O
desaparecimento das categorias do direito burguês significará
nestas condições o desaparecimento do direito em geral, isto
é, o desaparecimento do momento jurídico das relações
humanas”29.
Pasukanis, 1989, p. 26. Não só isso: numa célebre passagem de um texto de 1929,
29
como fator de poder? Não é isso que se expressa na fórmula de Giorgio Agamben
33
Poder-se-ia continuar a exposição de outras teses
pachukanianas e suas consequências talvez não menos
importantes. Por exemplo: a relação entre o sujeito de direito
e o sujeito ético, ou seja, entre o fetichismo jurídico e o
fetichismo ético; da relação profunda entre o poder de classe
e a punição estatal, isto é, entre o poder de classe e o Direito
Penal, e assim por diante. Mas já aqui é possível intuir a
distância que nos separa de Pachukanis. Essa distância não se
deve somente ao fato de que depois de A Teoria Geral do
Direito e o Marxismo assistiu-se à emergência do stalinismo,
à ascensão do nazi-fascismo e da Segunda Guerra Mundial,
também a Guerra Fria e a construção do Welfare State, a
revolução chinesa, seguida tempos depois pelo colapso da
União Soviética e dos regimes autoritários do leste europeu, a
ascensão e queda do neoliberalismo, etc. Mas também, e
principalmente talvez, porque o domínio das gigantescas
redes de produção de mercadorias e, portanto, da vigência do
sistema capitalista global e o consequente domínio de uma
rede ininterrupta de direitos e deveres abstratos, ou seja, o
domínio histórico da regulação social pela forma valor e pela
forma jurídica, nos tornaram insensíveis para o tema da
superação destas formas de regulação. Estas categorias
sociais se tornaram nossa segunda natureza, uma “segunda
pele” social a partir da qual nós nos compreendemos no
do Estado de exceção como o exercício da “força de lei (sem lei)”? Cf. Agamben,
2004.
34
mundo, e, desse modo, de tão atada a nossa própria
percepção deste mundo, não conseguimos ver delas um
começo ou um fim.
Para situar esta obra no contexto do pensamento de Pachukanis, bem como para
32
33
Para uma análise deste período de “autocrítica” de Pachukanis patrocinada pelo
stalinismo, Cf. Naves, 2000, p. 125 e ss.
34
Cf. Naves, 2000, p. 162 e ss.
35
CHAVANCE, Bernard. Le capital socialiste Apud Naves, 2000, p. 165-166.
36
ser normativista.
37
justiça para além da legalidade?36
36
“Nesta noite escura em que repousam os sonhos de transformação social, o
cobertor da legalidade pode até ser para todos, mas a cama ainda é só para
alguns. Os perturbadores pensamentos de Schmitt e Pachukanis, de certa
maneira, ou puxam a coberta ou quebram a cama.” Mascaro, 2002, p. 135-136.
Cf. também Mascaro, 2003.
37
KURZ, Robert.[1995] O pós-marxismo e o fetiche do trabalho - Sobre a contradição
histórica na teoria de Marx. Disponível em
http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm desde 2003.
(Publicado originalmente na Revista Krisis, n.15)
38
imposição do capital como juridificação e coisificação de
todas as relações, cujo horizonte de desenvolvimento ainda
era preeenchido positivamente. E este é, na verdade, o Marx
corrente e mundialmente conhecido: 'ponto de vista do
trabalhador' e luta de classes são os conceitos centrais desta
linha que conduziram ao marxismo histórico”. É o Marx
sobre o qual quase todos ouvem falar, o pensador que parecia
esconder o segredo misterioso do verdadeiro crescimento
modernizador que os próprios capitalistas não haviam
logrado alcançar.
39
seja, à crítica radical do capitalismo, é encontrar em seus
textos o viés que leve ao Marx esotérico, crítico das categorias
de base da sociedades produtoras de mercadorias. É
importante retomar aqui o texto de Kurz, mesmo que em uma
passagem extensa:
40
de produção de mercadorias a baixos níveis de
força produtiva e necessidade, ao passo que uma
libertação da lei compulsória da valorização, que
deve ocorrer ao nível elevado da socialização
alcançada, só é de algum modo possível através de
um rompimento da forma do valor fetichista (ou
seja, por intermédio da superação da mercadoria
e do dinheiro).
43
próprio presente sem concebê-los como passíveis de
superação. No caso de Pachukanis, o “limite de dor” foi
ultrapassado literalmente e mesmo se vergando na direção do
autoritarismo modernizador do stalinismo, representou mais
uma significativa baixa do marxismo esotérico natimorto até
em tempos recentes.
44
teórico mais amplo, não por acaso tornado impossível e
abafado pelo termidor stalinista. A diferença no teor dos
últimos escritos de ambos também não é casual: Rubin
resistiu mais às investidas da mudança de rumo do estado
soviético do que Pachukanis, cuja tentativa de permanecer no
partido o levou a rever muitas de suas teses durante os anos
30.
45
Pachukanis.
46
estas relações pertencem apenas àquela época histórica
determinada, na qual a produção mercantil é o modo de
produção social”41. Estas categorias, entretanto, aparecem na
percepção comum do cientista econômico (sua “percepção
espontânea”, nos termos de Rubin), passando-se por
categorias “naturais”, espontaneamente surgidas na realidade
social. Esta naturalização do que é histórico e que está na
base do conceitos de “reificação” e “fetichismo”, o percebe
Rubin como uma apreensão da espontânea forma de
aparência própria da economia mercantil e que deve ser
estilhaçada pela análise marxiana. Este estilhaçamento nada
mais é do que apreensão do “fetichismo da mercadoria” à
qual Rubin foi um dos primeiros a chamar a atenção no
campo da economia nesta clássica obra.
48
forma de pensamento sem ser de modo algum apenas um
produto do pensamento43. Por conseguinte, podemos aferir
que dadas as premissas fundamentais do valor na sua forma
simples, é possível deduzir-se toda a cadeia produtiva do
capital que dela deriva, como se se tratasse do
desenvolvimento lógico de uma equação. Enfim, a forma do
valor em desenvolvimento nas trocas humanas é uma
“abstração real”44.
Sohn-Rethel, 1978.
43
45
Para um estudo sobre a análise do fetichismo da mercadoria de Rubin, Cf. Perlman,
1987. E para um estudo sobre o método em Pachukanis Cf. Naves, 2000. A
impressionante afinidade das análises de Rubin e de Pachukanis em torno da
problemática do fetichismo já havia sido percebida por John Holloway: “Outros
autores que sofreram ainda mais seriamente por sua tentativa de retornar à
preocupação de Marx pelo fetichismo e pela forma I. I. Rubin e Evgeny
Pashukanis que estiveram trabalhando na Rússia depois da Revolução. Rubin,
em seu Essays on Marx's Theory of Value (Ensaios sobre a Teoria Marxista do
Valor) publicado pela primeira em 1924, insistiu na centralidade do fetichismo
da mercadoria e do conceito de forma para a crítica da economia política de
Marx. Uma das consequências desta insistência na pergunta pela forma foi
sublinhar o caráter especificamente capitalista das relações de valor e, como uma
das consequências, Rubin desapareceu durante os expurgos da década de 30.
Pashukanis teve um destino similar. Em seu General Theory of law and
marxism (Teoria Geral do direito e o marxismo) afirmou que a crítica de Marx à
economia deveria ser estendida à crítica da lei e do Estado, que a lei e o Estado
deveriam ser entendidos como formas fetichizadas de relações sociais da mesma
forma que o valor, o capital e as outras categorias da economia política. Isto
significava que a lei e o Estado, assim como o valor, eram formas de relações
sociais especificamente capitalistas”. Holloway, 2002, p. 118-119.
46
Em suma, poderíamos resumir do seguinte modo o leitmotiv pachukaniano: “...ao
mesmo tempo em que o produto do trabalho reveste as propriedades da
mercadoria e torna-se portador de valor, o homem torna-se sujeito de direito e
portador de direitos”. Marx, 1988a, p. 85.
50
A ausência de coerção extra-econômica, a
organização da atividade de trabalho dos
indivíduos, não sobre os princípios de direito
público, mas com base no direito civil e no assim
chamado livre-contrato, são os traços mais
característicos da estrutura econômica da
sociedade contemporânea. (...) na realidade esta
sociedade de produtores mercantis iguais nada
mais é que uma generalização e uma abstração
das características básicas da economia mercantil
em geral e da economia capitalista em particular.
(...) O capitalista e os operários estão vinculados
um ao outro por relações de produção. O capital é
a expressão material desta relação. Mas eles estão
vinculados, e entram em acordo mútuo, enquanto
produtores mercantis formalmente iguais. A
categoria valor serve como expressão desta
relação de produção que os vincula.47
51
atividade humana reduzida a trabalho produtor de (mais)
valor e, portanto, a trabalho abstrato produtor de riqueza
abstrata, regulada pela “lei do valor”.
48
Kurz, 2004.
52
hostilizada, ainda que tivesse retrocedido aos poucos em
relação às teses presentes em A Teoria Geral do Direito e o
Marxismo. Como bem expuseram Sharlet e Bierne:
53
propriedade proletária dos meios de produção, do Estado,
etc.) se tornou a legitimação mais fundamental da sistema
soviético. Ou seja, o direito e o Estado soviéticos passaram a
ser justificados “juridicamente”. Márcio Bilharinho Naves
percebeu bem esta tautologia no Pachukanis “stalinista”:
54
contrapõe as formas jurídicas e a emancipação socialista
trazida pelo fim da socialização pelo valor, e
consequentemente, pelo capital. Se pelo centro e pela direita
a resposta imediata a esta tentativa é desacreditar a
“emancipação socialista” como possível, defendendo com
mais ou menos afinco o mundo contemporâneo como o
melhor (possível) dos mundos, pela esquerda o caminho foi
outro.
56
se tornam reversíveis e “bipolares”: a “forma direito liberal”,
instância imprescindível para o contrato de trabalho, base de
uma sociedade produtora de mercadorias, passa a ser a pedra
de toque emancipatória, no momento seguinte, o mercado
deixa de ser a realização abstrata da valorização do valor para
ser submetido aos “desígnios políticos da coletividade”,
bastando apenas mais “boa vontade” teórica. Enfim, as
categorias definidoras do modo de produção capitalista
simplesmente “mudam de sinal”.
57
O argumento, tão velho quanto o próprio liberalismo, é
o seguinte: se alguém aquiescer com as leis juridicamente
válidas pela via da representação parlamentar, deve agora
estrita obediência a elas só valendo discuti-las pela via
representativa e, portanto, no parlamento. É um argumento
tão velho e gasto que não foi exclusividade dos autores
marxistas colocá-lo em xeque: Hannah Arendt, (que, como
dizia Leandro Konder, era uma “adversária honesta do
marxismo”), já escreveu, há mais de 30 anos que:
58
jurídica” pela via da participação no parlamento não é
“inusitada no campo crítico” como afirma Rodriguez 55, antes,
nunca se precisou de verniz “crítico” para que esta posição
fosse defendida. O que explica essa retomada entusiasmada
de Franz Neumann, falecido em 1954, é o paradigma “pós-
habermasiano” de onde parte este autor. A defesa filosófica
da formas jurídicas como esfera de mediação privilegiada
para a emancipação social encontra em Jürgen Habermas sua
proposição mais notória e influente.56
59
Continua então este autor: “Quanto a esse ponto, é
certo que há discursos puramente ideológicos em favor da
liberdade econômica, mas não há como negar o problema,
afinal, mesmo numa sociedade organizada sob princípios
socialistas, há que se pensar em formas de produzir
eficientemente bens acessíveis a todos.” E por fim, escreve
ele: “Será sempre preciso decidir como regular a atividade
econômica para atingir os fins que a sociedade fixar para si
mesma”58. A economia, para Rodriguez, é a atividade de
“produzir eficientemente bens acessíveis a todos” e, portanto,
toda e qualquer sociedade tem uma “economia”. Este
“teórico-crítico” passa ao largo, portanto, de qualquer
especificidade histórica da economia das sociedades
produtoras de mercadorias as únicas que produziram, de fato,
uma esfera separada de relações sociais (onde no centro se
encontra o trabalho)59, que poderíamos chamar, de fato, de
“economia”! Este fato não é de modo algum desligado de
outro fato: de que também a especificidade histórica das
formas jurídicas se põe em questão em uma sociedade que
não a sociedade produtora de mercadorias. A tão buscada
“relevância no debate” com a qual a “teoria crítica” da Escola
61
uma que as guia: qual é a radical limitação das formas
jurídicas para o cumprimento dos propósitos da emancipação
social?
Uma Banda de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas
60
extremidades de uma fita, após se efetuar uma meia volta numa delas. Deve o
seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858.
62
juris, no sentido de que a emulação do domínio do abstrato
sobre o concreto, que caracteriza a contradição social
principal da sociedade produtora de mercadorias, só se
realiza a partir de uma ficcionalização jurídica, do
soerguimento de uma esfera separada de relações, onde os
viventes concebem um “dublê” deles mesmos que estabelece
diversas relações por eles: o sujeito de direito, por quem
criam e mantêm as relações ditas jurídicas. As empresas,
incluindo as gigantescas corporações monopolistas, como
sujeitos de direitos que são, podem ser consideradas ficções
jurídicas evidentes, ninguém o nega. Mas o trabalhador, a
dona de casa, o médico, o banqueiro, etc., concebidos como
sujeitos de direito parece ser a coisa mais natural que existe e
ninguém põe esta evidência em questão. Mas já neste simples
movimento, aparentemente inocente e racional em si, já está
todo o segredo das formas jurídicas mais desenvolvidas,
assim como toda a complexidade das formas econômicas
capitalistas, das bolsas de valores às multinacionais
multibilionárias estão contidas potencialmente na forma
simples do valor.
63
essa riqueza é produzida, assim também a crítica do direito
precisa deixar seu eterno insistir em um direito melhor para
ousar a pensar em algo melhor que o direito.
64
História e Metafísica da forma
jurídica
65
compreensão da relação “homológica” entre a forma valor e a
forma jurídica. É chegado o momento de avançarmos no
sentido de esmiuçar um tanto mais o viés histórico desta
relação, assim como é chegado o momento de relacionar esta
homologia com algumas caracterizações históricas específicas
destas categorias de socialização62.
***
Mantemos sob nossa vista as seguintes considerações de Anselm Jappe, que por
62
o mesmo grau de realizações neste campo, não foram encontrados até hoje
documentos escritos da mesma natureza que os documentos dos mesopotâmios.
67
caminho aos juízes. Cada frase, geralmente breve,
diz respeito a um caso concreto e dá a solução
jurídica; a maior parte começa por uma expressão
equivalente à expressão latina si quis (se
alguém...), situando a formulação a meio caminho
entre o concreto e o abstracto. Mas as recolhas de
direito cuneiformes não conhecem qualquer
sistematização do direito, qualquer doutrina
jurídica.64
mais antigo documento “jurídico” sumeriano encontrado até hoje (cerca de 2040
a. C.). “Col. VIII. Um cidadão fracturou um pé ou uma mão a outro cidadão
durante uma rixa pelo que pagará 10 siclos de prata. Se um cidadão cortou o
nariz a outro cidadão com um objecto pesado pagará dois terços de 'mina'”.
SZLECTHER, E. “Le code de Ur-Nammu” Apud Gilissen, 2003, p. 64.
68
negativo: em primeiro lugar não é a insuficiência de “fontes
jurídicas”, como ele alega, que o faz avaliar parcialmente e
negativamente o significado destas legislações, antes é que,
como acontece no chamado “direito dos povos ágrafos”, na
“antiguidade pré-clássica” não se pode separar, sem grande
prejuízo para a compreensão de ambos, o que é jurídico do
que não é jurídico, assim como, acrescentaríamos nós,
haveria uma enorme dificuldade em separar o que é religioso
do que não o é, o que é econômico do que não o é. Em
segundo lugar e mais importante: sua dificuldade se encontra
em explicar porque, dentre as sociedades da antiguidade pré-
clássica, algumas começaram a buscar meios jurídicos
rudimentares para sua regulação social, a não ser que se
julgue suficiente apelar para um “mecanismo instintivo de
associação de idéias”. Em suma: Gilissen parece vago e
negativo quando se refere a estes povos e suas legislações,
pois não relaciona estas formas com os fatores não-jurídicos a
partir de onde estas emergiram.
69
III Dinastia de Ur, num período de “renascimento”
sumeriano, onde este povo, após deter as invasões constantes
de povos nômades, estabelece um período de paz social
relativamente duradouro. Predominantemente agrário, os
sumerianos contudo foram um dos primeiros povos do
Oriente Próximo a estabelecer uma estável rota comercial ao
longo do Tigre e do Eufrates.66 Este intercâmbio mercantil,
todavia, com era a regra de quase toda a vida social, era
inteiramente submetido aos desígnios do poder do monarca e
de seu aparelho burocrático. Moses Finley, um dedicado
historiador da antiguidade descreveu bem esta
particularidade da organização predominante na
Mesopotâmia: “As economias do Próximo Oriente”, escreveu
ele, “eram dominadas por amplos complexos de palácios ou
templos que possuíam a maior parte do solo arável,
monopolizavam virtualmente tudo aquilo que pode ser
chamado 'produção industrial', assim como o comércio
externo (que inclui o comércio entre cidades e não somente
com países estrangeiros), e organizavam a vida econômica,
militar, política e religiosa através de uma única operação de
registro, complicada e burocrática, para cuja descrição o
71
social da antiguidade pré-clássica feita num artigo de jornal
em 10 de junho – que: “Assim como no Egito e na Índia,
também na Mesopotâmia, na Pérsia, etc., as inundações são
utilizadas para fecundar o solo, as cheias para alimentar os
canais de irrigação. Esta necessidade elementar de uso
comum e econômico da água”, continuava Marx, “que no
Ocidente – como em Flandres e na Itália – levou a iniciativa
privada a formas voluntárias de associação, no Oriente, onde
a civilização era muito rudimentar e as áreas demasiado
vastas para gerar associações voluntárias, impõe-se a
necessidade de intervenção do poder centralizador do
governo. Daí a função econômica, atribuída a todos os
governos asiáticos, de prover as obras públicas”69. Nos
Grundrisse (1957-1858), por seu turno, ele voltará a este
ponto. “As condições comunais de apropriação real através do
trabalho, como os sistemas de irrigação (importantíssimos
entre os povos asiáticos), meios de comunicação, etc.,
surgirão, assim, como obras da unidade superior – o governo
despótico que se impõe às comunidades menores” insistia
ele. Enquanto que as “cidades propriamente ditas, surgem ao
lados destas aldeias apenas naqueles pontos de localização
particularmente favorável ao comércio exterior ou onde o
chefe de Estado e seu sátrapas trocam suas receitas (o
produto excedente) por trabalho, receitas essas que gastavam
72
como fundo-de-trabalho”70. Mesmo nestes breves fragmentos
é possível notar que Marx tocava na espinha dorsal do
funcionamento destas sociedades: o poder soberano,
inclusive de organizar as propriedades comunais - que eram
predominantes – se colocava necessariamente por sobre
qualquer forma de propriedade privada que, mesmo
existindo, de modo algum tinha qualquer predominância
nestas sociedades como totalidades. Esmiucemos um pouco
mais este quadro.
Ur-Nammu, o monarca de Ur, “Dedicou-se assim com fervor ao seu novo reino;
72
76
coletiva da comunidade. A riqueza mesopotâmica, mas
também a egípcia, era uma riqueza predominantemente
coletiva ou não era (isso não significa que não houvesse, como
já mencionamos, abismais diferenças de status social). É por
isso que, tomando a devida licença para usar termos
contemporâneos, caracterizaríamos os códigos sumerianos-
babilônicos como contendo normas predominantemente de
“direito público”: onde aparecem contidas normas de “direito
privado”, estas se submetem radicalmente àquelas (daí
porque sequer podemos fazer tal distinção, a rigor). Estes
“códigos” são sobretudo prolongamentos da voz do monarca
religioso sendo sempre também – e não casualmente – a este
monarca que os intercâmbios mercantis devem se submeter.
Isto se encontra bem expresso em um dos mandamentos de
Hammurábi que dispõe que todo aquele que realizar um
contrato sem que este fosse escrito ou tivesse testemunhas,
seria punido com a morte77.
***
77
e as protegessem somente teriam lugar muitos séculos depois.
Não por acaso neste mesmo período, a assim chamada
antiguidade clássica, há uma primeira superação do limite
“lógico” e social da existência de mercados: a cunhagem de
moedas, limite ainda nunca alcançado pelos povos da
antiguidade pré-clássica. Muitos séculos depois do auge da
riqueza da sociedade babilônica é que as condições para um
novo espraiamento de intercâmbios mercantis teve lugar,
desta vez no mediterrâneo. Como assinala Anselm Jappe:
78
mercantis também um espaço considerável para a vida e a
propriedade privada, o que permitia a emergência de uma
riqueza privada cindida da riqueza coletiva das cidade-
estado. Maurice Godelier expressou bem este conjunção
como a grande novidade que se deu com os gregos. “O
capitalismo industrial” percebeu o filósofo e antropólogo
francês, “não apareceu em nenhuma parte fora da linha de
evolução inaugurada pelos gregos. (...) Para explicar este
desenvolvimento, o aparecimento da propriedade privada não
é suficiente. Esta existia na China, no Vietnã, etc. É necessário
que se combinem propriedade privada e produção
mercantil.”79 Porque foi possível, para os gregos, perfazer esta
combinação, que se tornou a base mais recuada, mas
relativamente direta, do capitalismo industrial, associando
pela primeira vez na história a constelação de intercâmbio
mercantil, propriedade privada propriamente dita e a moeda
cunhada?
82
base a uma importante parte de nosso sistema jurídico”84.
84
Gilissen, 2003, p. 52.
85
Ocorre aqui aquilo que bem descreveu Max Horkheimer: “Alguns traços da
atividade teórica do especialista são transformados em categorias universais, por
assim dizer, em momentos do espírito universal ou lógos eterno, ou, antes,
traços decisivos da vida social são reduzidos à atividade teórica do cientista. A
'força da gnose' passa a ser chamada de 'força da origem'. Por 'produzir' passa-se
a entender a 'soberania criadora do pensamento'”. Horkheimer, 1975, p. 132.
86
Gilissen, 2003, p. 52.
83
Arendt, na relação diferente, para não dizer oposta, que os
gregos e romanos estabeleciam entre lei e política. Segundo
esta autora, a lei era para os gregos o delimitador do que era
“interno” e do que era “externo” à política. A lei era o
demarcador do espaço onde a política se dava e, como tal, era
pré-política87. A guerra, externa à política, era também
externa à concepção grega de lei e de onde esta deveria
incidir. Para os romanos, pelo contrário, a lei existia como o
sucedâneo da política aberta pela guerra e era o vínculo,
nascido da guerra e da subjugação decorrente desta, que
permanecia depois que as armas eram baixadas. “Esta
solução da questão da guerra”, escreveu Hannah Arendt, “é a
origem tanto do conceito de lei como da importância
extraordinária que a lei e a formação da lei experimentaram
no pensamento político romano”88. Em outras palavras, se a
lei dos gregos circunscrevia o espaço da isegoria, do falar na
ágora como iguais dos atenienses, a lei romana determinava e
regulava o contrato segundo a qual os diferentes estabeleciam
suas trocas sociais. O “aspecto legal específico da
regulamentação, no sentido romano” pensava a autora,
87
“A lei, como os gregos entendiam, não era acordo nem contrato, não surgiu entre os
homens no falar de duas partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte, não é
algo inserido no âmbito político, mas é, em essência, imaginado por um
legislador e precisa ser aprovado, antes de poder entrar na verdadeira coisa
política. Como tal, é pré-política, no sentido de ser constitutiva para todo o
ulterior agir político e o lidar politicamente entre si. (...) Trata-se, em essência,
de estabelecer fronteira e não de ligação e união”. Assim “violar a lei e deslocar-
se para fora das fronteiras da polis eram, para Sócrates, a mesma e única coisa,
no sentido mais textual.” Arendt, 1999, p. 113-114.
88
Arendt, 1999, p. 111.
84
“residia em que, a partir de então, um contrato, uma eterna
ligação, ligava entre si a patrícios e plebeus. A res publica, a
questão política que surgiu a partir desse contrato e que se
tornou a república romana, estava localizada no espaço
intermediário entre o parceiros antes inimigos”89. Desse
modo, a lei romana passava a ser o “protocolo” segundo o
qual os muitos povos conquistados mantinham ainda uma co-
existência pacificada com Roma. “A lei só surge ali [em
Roma] porque trata-se agora de fazer um contrato entre os
estabelecidos e os recém-chegados”. Se Roma foi fundada sob
um contrato pós-bélico é seu destino manifesto submeter o
número maior possível de povos sob um mesmo contrato de
trocas. E “isso não significa outra coisa” conclui Arendt, “que
atrelar toda a orbe num sistema de contrato para o qual esse
povo era o único qualificado, porque sua própria existência
histórica derivava de um contrato”90.
85
consequências desta distinção para o expansionismo
imperialista dos últimos91. E o mesmo Anderson salienta
também a decisiva ordem escravista mercantil que se
desenvolveu em Roma92. A lógica da propriedade privada e
monetária, já prenunciada pelos gregos, é também
radicalizada pelos romanos. Noutro registro, poder-se-ia
dizer que a comunidade política grega solapada pelos efeitos
“corrosivos” da lógica monetária é substituída, entre os
romanos, tanto na República, quanto mais efetivamente no
Império, por uma comunidade “jurídica” de contraentes do
pacto sócio-jurídico romano.
91
“A estrutura social resultante da cidadania romana, desta maneira, era
inevitavelmente distinta da que havia sido típica na Grécia clássica. (...) Não
houve transformação social econômica ou política para estabilizar a propriedade
rural do cidadão comum em Roma, comparável com a que houve em Atenas ou,
de maneira diversa, em Esparta. (...) O crescimento do poder cívico romano era,
em consequência, distinto dos exemplos gregos em dois aspectos fundamentais,
ambos relacionados diretamente à estrutura interna da cidade. Em primeiro
lugar, Roma provou ser capaz de ampliar seu próprio sistema político para
incluir as cidades italianas durante sua expansão peninsular. Desde o começo ela
havia – diferentemente de Atenas – exigido de seus aliados tropas para seus
exércitos, e não dinheiro para seu tesouro; desta maneira; diminuindo a carga de
sua dominação na paz e unindo-os solidamente em tempo de guerra. Neste
ponto, seguia o exemplo de Esparta, embora seu controle central militar das
tropas aliadas fosse muito maior. Mas Roma também era capaz de conseguir
obter uma integração definitiva destes aliados em sua própria política, o que
nenhuma cidade grega jamais considerara. Era a estrutura social peculiar de
Roma que permitia isso”. Anderson, 1991, p. 53-55. Cf. as pertinentes
considerações de Anderson sobre o direito romano da República e do Império
nas p. 63 e ss.
92
“Além do mais, a inovação decisiva da expansão romana era fundamentalmente
econômica: a introdução do latifundium escravo em larga escala pela primeira
vez na Antiguidade”. Anderson, 1991, p. 57.
86
conceitos básicos para o intercâmbio mercantil tenha sido
construídos em sua maioria durante a República tendo
permanecidos intactos durante o Império. “Foi realmente o
Império”, conclui Anderson, “que produziu as grandes
sistematizações da jurisprudência civil no século III no
trabalho dos prefeitos dos Severos Papiniano, Ulpiano e
Paulo, que transmitiram o direito romano como um conjunto
codificado às eras posteriores. A solidez e a estabilidade do
Estado imperial romano, tão diferentes de qualquer coisa que
o mundo helênico produziu, estavam enraizadas nessa
herança”93.
87
mercantis estão presentes94. Entretanto, deve ficar claro que
não se propõe com isso qualquer tipo de relação mecânica ou
de “determinação” entre o intercâmbio mercantil e as formas
jurídicas, antes, que estes sempre estiveram, ambos,
presentes nas formas sociais onde se desenvolveram.
Também não queremos afirmar que estes fatores foram o
centro das transformações históricas destes períodos, daí
porque é necessário recorrer centralmente ao problema da
política, tal como o fizemos. É preciso se atentar para o modo
das transformações pré-capitalistas95, que diferem
radicalmente das transformações capitalistas, nas quais a
lógica da produção de mercadorias exerce um papel central.
Deve se ter em mente também que mesmo nas formas
jurídicas mais desenvolvidas do mundo antigo, as do Império
Romano em suas sistematizadas e complexas doutrinas
jurídicas, está presente uma característica comum às
legislações sumérias anteriores em milênios àquelas: nelas os
direitos de propriedade e direito de figurar como sujeito de
94
Parece manter-se válido o que escreveu Marx em 1858: “A antiguidade, que não
tinha feito do valor de troca a base de sua produção, que, pelo contrário, morreu
precisamente devido ao desenvolvimento deste, formulara uma liberdade e uma
igualdade de conteúdo totalmente oposto ao atual e que tinha um caráter
essencialmente local. Por outro lado, dado o desenvolvimento das diversas fases
da circulação simples na Antiguidade, pelo menos entre os homens livres, está
explicado por que razão em Roma – e especialmente na Roma Imperial, cuja
história é precisamente a da dissolução da comunidade antiga – foram
desenvolvidas as determinações da pessoa jurídica, sujeito do processo de
troca; assim se explica que o direito da sociedade burguesa aí tenha se
elaborado nas suas determinações essenciais e que tenha sido necessário,
sobretudo em relação à Idade Média, defendê-lo como direito da sociedade
industrial em formação.” Marx, 1983, p. 281-282. (grifei).
95
Finley, 1980.
88
troca mercantil perante outros sujeitos (muitíssimo limitado
entre os sumérios e desenvolvido até seu limite no mundo
antigo entre os romanos do Império) não são universais.
Também no direito romano, as diferenças de status social
estão pressupostas e expressas nas leis e princípios jurídicos
existentes96.
***
“... no direito romano se encontre esta definição exata do servus (escravo): aquele
96
90
produtor agrícola oferecia seus produtos diretamente a uma
clientela próxima, que estava ao alcance de seus meios de
transporte (mercado local, comércio sem mercador)”100. Não
seria forçoso deduzir que o complexo e minucioso direito
romano tenha se tornado apenas uma admirada parte do
legado da Antiguidade conservado pela Igreja (que foi a
gigantesca ponte entre as duas épocas), e que este direito só
“renasceria” com ela quando as condições sociometabólicas
lhe fossem propícias.
Por muito tempo, a Igreja e os cultores do direito
canônico tentaram amalgamar os princípios e doutrinas
jurídicas romanas para sua regulação do mundo feudal, tendo
alcançado algum êxito nisso. Este êxito, contudo, só pode
ocorrer até o momento em que as formas de intercâmbios
mercantis se impuseram e os mecanismos jurídicos
avançados dos romanos puderam ser utilizados não mais
como reserva de sapiência, mas como um regulador concreto
das práticas, sem as barreiras que a cristandade instalava à
cupidez do comércio como fim em si.
A justiça formal da Alta Idade Média, como o disse
Anderson, era um verdadeiro “labirinto jurídico” onde o
poder e o mando direto se confundiam com a fidelidade
senhorial e com as regras próprias da vassalagem101. De certo
domínios não coincidiam normalmente com uma única povoação, mas estavam
distribuídos através de certos números de vilas; portanto, inversamente, poderia
estar entrecruzado em determinada aldeia um certo número de propriedades de
diferentes senhores. Acima deste complicado labirinto jurídico,
caracteristicamente estava a haute justice dos senhorios territoriais, cuja
competência não era senhorial, mas geográfica. A classe camponesa de quem era
extraído o excedente neste sistema habitava então um mundo social de direitos e
poderes superpostos, e a própria pluralidade de cujas instâncias de exploração
criavam interstícios latentes e discrepâncias que seriam insuportáveis num
sistema jurídico econômico mais unificado.” Anderson, 1991, p. 145.
102
Tigar e Levy, 1978, p. 68 e ss.
92
À luz de livros como Lo Codi e Exceptiones Petri,
e principalmente através da leitura de contratos
sobreviventes da época, podemos avaliar o
progresso do direito comercial romano à medida
que o mesmo se expandia a partir da Itália nas
direções Leste e Norte. Em inícios do século XII
(...) Gênova e Pisa haviam adquirido competência
na interpretação do direito romano e criado uma
classe de indivíduos para aplicá-lo.103
93
“sociedade civil” pelos teóricos políticos105. “Quanto mais
complexo o sistema de comércio” concluem Tigar e Levy,
“mais anônimas se tornavam as partes aos olhos da lei”. Uma
vez estabelecido nestas cidades e em seu entorno o direito
comercial romano, nos séculos XIII e XIV foi o momento de
prover um “desenvolvimento e adaptação do direito público
romano com a finalidade de reforçar a autoridade do poder
temporal”106. A ascensão da classe dos mercadores, mais do
que apenas um lugar no mundo feudal, buscou a partir daí a
garantia de uma estrutura jurídico-política mais ampla e
eficaz.
Nos séculos XV e XVI assistiu-se à corrosão, por vezes
violenta, por vezes gradativa e lenta, do mundo feudal e de
suas justificações teóricas e políticas. Esta corrosão também
se deu no nível dos conflitos entre diversas maneiras de
normatização e regulação da vida social, e em especial, pelo
espraiamento das modalidades de contrato civil. O conhecido
historiador do direito do século XIX, Sir Henri Maine
escreveu que “a história do progresso humano é a da
105
A emergência do contrato, segundo Tigar e Levy, estudando em profundidade a
obra de Phillipe de Beaumanoir, era a “expressão de um princípio essencial à
expansão do comércio. Acreditavam os canonistas que a promessa era sagrada e
de boa fé esperavam o cumprimento das intenções intimas das partes. Para os
advogados civis, no entanto, a promessa era nudum pactum: podia constituir um
peso sobre a consciência, mas não podia ser cumprida sem um elemento
adicional. Esse “elemento adicional” era, em quase todos os casos, objetivo e
evidencial, destinado a informar a terceiros sobre a barganha, registrá-la, ou não
deixar dúvida de que fora concluída. Essa noção objetiva de contrato era
conveniente ao mercado, no qual só o contrato une as partes , e não o fato de ser
apenas um elemento numa relação de família, aldeia, comuna ou guilda”. Tigar e
Levy, 1978, p. 154-155.
106
Tigar e Levy, 1978, p. 126.
94
libertação de obrigações baseadas em status e sua
substituição por aquelas baseadas no contrato, ou livre
barganha. Em outras palavras, o instituto jurídico do contrato
fora a mola da revolução burguesa”107. É importante repassar
aqui a brilhante observação de Tigar e Levy segundo os quais
esta afirmação de Sir Maine revela uma “verdade histórica”
ao mesmo tempo que uma “séria falsidade analítica”.
95
é limitado pelo sistema de relações econômicas,
sistema este, por seu turno, determinado pelo
nível de tecnologia, a força de classes opostas e,
de modo geral, pelo estado de desenvolvimentos
dos meios de produção. Ter acesso a uma
sofisticada teoria contratual não constitui
garantia da presença do conjunto de forças
necessário para colocá-la em vigor.109
96
mercado e, por conseguinte, ao valor. “Mesmo quando os
mercados se desenvolveram muito” escreveu Polanyi, “como
ocorreu sob o sistema mercantil, eles tiveram que lutar sob o
controle de uma administração centralizada que patrocinava
a autarquia tanto no ambiente doméstico do campesinato
como em relação à vida nacional. De fato, as regulamentações
e os mercados cresceram juntos”. Entretanto, este
“desenvolvimento”, segundo Polanyi, foi barrado pela ideia
nascente de um “mercado auto-regulado”111.
111
Polanyi, 2000, p. 89.
112
Marx, 1988a, p. 267 . Parece ter razão Jappe quando diz que “não se exagera muito
se se afirmar que a conversão da fórmula M – D – M na fórmula D – M – D'
encerra em si toda essência do capitalismo.” JAPPE, Anselm, 2006, p. 61.
97
fatores sob a égide da circulação, portanto, da “lei do valor”.
Esta mesma passagem é muito bem exposta por Karl Polanyi
como a dolorida e conflituosa passagem da terra, do dinheiro
e dos trabalhadores pelo “moinho satânico” do mercado.
Levou muito mais tempo do que se imagina, conforme se
detrai dos estudos deste autor, para que estes nichos
realmente entrassem na circulação mercantil, e muitas
resistências, inclusive políticas e legais existiram antes que
isso acontecesse.
98
dinheiro e, por último, dos trabalhadores aos imperativos do
mercado. Nasceu assim, de fato, uma teoria e uma prática
propriamente ditas de uma esfera econômica de relações e,
por subtração, de uma esfera política114, mas também,
diríamos nós, de uma esfera jurídica. Se, como defendeu
Polanyi, “a descrição do trabalho, da terra, e do dinheiro
como mercadorias é inteiramente fictícia”, e se “é com ajuda
dessa ficção que são organizados os mercados reais do
trabalho, da terra e do dinheiro”115, é preciso reconhecer o
caráter jurídico desta ficção.
114
“Como já demonstramos, não havia um sistema econômico separado na sociedade,
seja sob condições tribais, feudais ou mercantis. A sociedade do século XIX
revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica
foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta.” Polanyi, 2000, p.
92-93.
115
Polanyi, 2000, p. 94. Conforme já se observou, entretanto, Polanyi concede um
caráter “natural” de mercadoria a todas as outras mercadorias que não a terra, o
trabalho e o dinheiro, passando ao largo da ficção presente no interior desta
aparente “naturalidade”. Como já advertiu Moishe Postone “a insistência de
Polanyi no caráter fictício do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias
obscurece a análise de Marx da mercadoria enquanto forma das relações sociais.
Nesta estrutura teórica, nada é “naturalmente” uma mercadoria. De forma
recíproca,não existe razão ontológica que possa servir de base para distinguir
mercadorias 'reais' e 'fictícias'”. (Postone, 2008) Feita esta consideração,
todavia, não está comprometida em nada sua análise destas “ficções
efetivamente reais” do mercado do trabalho, da terra como mercadoria e do
mercado monetário.
99
Stuarts, paternalista e provedor de recursos direto dos cofres
do tesouro público aos pobres, e o novo imperativo de fazer
depender o maior número de pessoas apenas do trabalho e,
portanto, dos salários advindos do uso da força de trabalho. A
tentativa de instalar um capitalismo sem um mercado de
trabalho, conclui Polanyi do episódio, “falhara
redondamente”116. Este caso é emblemático, pois é um evento
inaugurador de um efetivo e pleno mercado de trabalho na
Inglaterra, primeiro país a amadurecer uma economia
capitalista, e mostra a direção lógica em que foi a juridificação
e sua relação íntima com a economia de mercado no resto da
Europa.
Polanyi, 2000, p. 102. Ora, trata-se de uma conclusão lógica (porém socialmente
116
100
Se durante a vigência desta legislação para os pobres
“cuidava-se do povo como de animais não muito preciosos”,
com a sua abolição em 1834, “esperava-se que ele se cuidasse
sozinho, com todas as desvantagens contra ele”118. A
Speenhamland Law é um arquétipo do direito da sociedade
capitalista: a saber, é uma paradigmática condição sine qua
non, mas também per quam de seu desenvolvimento e de sua
lógica socialmente irracional119.
“Não seria exagero dizer que a história social do século XIX foi determinada pela
119
lógica do sistema de mercado propriamente dito, após ter sido ele liberado pelo
Poor Law Reform Act de 1834. O ponto de partida desta dinâmica foi a
Speenhamdland Law.” Polanyi, 2000, p. 106.
101
diversos os fatores extra-jurídicos que estavam
gradativamente sendo abafados ali em proveito de uma
transformação destes pobres em “sujeitos monetários”,
“sujeitos de trabalho” e “sujeitos de direito”. Portanto, esta
decisão, apenas em certa medida, uma decisão “jurídica”,
deu-se claramente em favor da própria juridificação mais
ampla do social, consoante com a plena “transformação do
dinheiro em capital”.
121
A objeção de que a forma jurídica foi “neutra” em relação aos fatores extra-
jurídicos da decisão não pode prosperar, enfim, pois ela ignora que esta decisão
foi uma base sócio-histórica para uma juridificação mais efetiva do social e que,
portanto, ali operou uma “lei tendencial” da esfera jurídica para a defesa de si
mesma. Voltaremos a este ponto em outra hora, mas não custa acrescentar que é
por conta desta “lei tendencial” que mesmo a classe burguesa esbarra diante da
“esfera jurídica” como obstáculo (transponível, é bom que se diga), sendo
portanto, sempre insuficiente a explicação e a crítica “classista” do direito.
122
Pasukanis, 1989, p. 10.
103
3. Metafísica privada, invocação pública
Marcuse, 2004.
123
104
conservadores e regressistas124.
124
“Dificilmente haverá outra obra filosófica” diz Marcuse a respeito da filosofia
política de Hegel, “que revele mais impiedosamente as contradições insanáveis
da sociedade moderna, e que, ao mesmo tempo pareça, da maneira mais
obstinada, com elas concordar”. Marx também, diz Marcuse “achava que a
filosofia de Hegel fora a mais desenvolvida e compreensiva apresentação dos
princípios burgueses”. Marcuse, 2004, p. 162 e 226.
125
Cf. Hegel, 1983.
105
inicial dos Princípios Hegel abandona em boa parte a
dialética em sua justificação teórica da propriedade. Se no
sistema de Iena e na Fenomenologia do Espírito, Hegel
estabelecia a propriedade na relação entre sujeitos e a partir
de uma base dialética, nos Princípios a propriedade é
deduzida analiticamente da relação entre sujeito e objeto126. A
partir da vontade abstratamente considerada, Hegel deduz a
propriedade privada. E a partir disso são deduzidos também
o contrato e o crime. O que Marcuse nos mostra fazendo esta
referência à arquitetura sistemática dos Princípios de Hegel é
como o irracional penetra surdamente, parafraseando o poeta
Drummond, o reino da razão. Deduzindo analiticamente a
propriedade a partir da vontade ontologicamente
considerada, Hegel afirma, por conseguinte, o caráter
abstrato da fundamentação jurídica do sujeito.
Em suma: para o direito, escreve Hegel, não importam
as diferenças dos indivíduos, assim como não importam as
reais desigualdades na quantidade de propriedades que estes
possuem. Não só não importa quanto não é possível a
dedução racional destas desigualdades. Assim o irracional
entra e faz seu canto: o “sistema das necessidades”, como
Hegel chama a esfera econômica da sociedade civil produz
carências sistematicamente. Este tema e sua explicação
racional, todavia, não pertence à “esfera” do direito, tendo
106
em vista o caráter estritamente abstrato no qual este está
fundamentado. Aqui nós temos um ponto fundamental do
pensamento jurídico que ainda permanece. Na filosofia do
direito de Hegel estão ao mesmo tempo o progresso e a
regressão, uma face emancipadora e uma face conservadora e
opressora. Progresso: a consideração abstrata do direito
garante um mínimo de racionalidade, igualdade e justiça,
pois é incapaz de visar as diferenças individuais instituidoras
de injustiças, irracionalidades e arbítrios. Regressão: uma
ordem social que só pode garantir a totalidade social quando
ignora os indivíduos concretamente considerados, admite a
injustiça e a opressão a indivíduos concretos como parte de
seu caráter “sistemático”127.
É interessante notar que nesta altura é o próprio
filósofo que nos remete à esfera da produção social. Quando
nos Princípios Hegel fala no sistema das necessidades, ele
mesmo toma a autoridade da economia política clássica128
Hegel reconhece no “sistema das necessidades” o trabalho
como fonte de toda riqueza, acompanhando a economia
“científica” de seu tempo.129 Mais do que isso, Hegel se
mostra consciente do caráter do trabalho na modernidade: a
complexa divisão de trabalho e mesmo a mecanização e
127
Marcuse, 2004, p. 171. No final das contas, a “filosofia” da relação entre direito e
justiça está cravada nos Princípios onde permanece até hoje. Se Marx em algo
contribuiu para o problema “filosófico” foi em afirmar que este não era (só) um
problema filosófico.
128
Hegel, 1983, § 189, p. 164.
129
Hegel, 1983, § 196, p. 169.
107
automação deste na indústria moderna. O que vai
impressionar e irritar profundamente um Marx jovem, por
exemplo, é justamente este paradoxo que lateja na Filosofia
do Direito de Hegel. O trabalho é social, crescentemente
socializado e interdependente, mas a apropriação é sempre
justificada na esfera individual, deduzida ontologicamente da
vontade abstratamente considerada. Em suma, o trabalho é
social e a apropriação do trabalho é individual. O trabalho se
torna racional e concreto, e a apropriação da riqueza do
trabalho abstrata e cerebrina. A desigualdade que, segundo
Hegel, era inerente à sociedade civil, não poderia ser
corrigida pelos princípios desta mesma sociedade civil. Para
tanto, era preciso conceder ao Estado seu devido poder
racional. O Estado e sua existência para além da anarquia dos
interesses privados e egoísticos, incontornáveis e inevitáveis,
era a realização da razão superando (no sentido de uma
Aufhebung) as contradições da sociedade civil. A classe
universal, cuja importância como tal Hegel vai reconhecer, é a
dos funcionários públicos.
Não é à toa que Marx começa a criticar Hegel, em sua
juventude, pela filosofia do direito. Para ele não importava
tanto uma crítica meramente conceitual da filosofia de Hegel,
mas uma crítica de seu próprio imperativo de ser a realização
da razão objetiva. Marx começa mostrando que fez toda a
diferença para o pensamento de Hegel não conhecer em
profundidade o modo de funcionamento da sociedade civil,
108
ou seja, da economia política vista de um prisma crítico. Os
fatores que nos Princípios Hegel atribuía a circunstâncias e
dons arbitrários, Marx defende que não são arbitrários de
modo algum. Para Marx não há real superação da sociedade
civil no Estado e muito menos, como Hegel queria, não havia
uma “administração da justiça [que] transforma em lei o
direito abstrato e introduz na ordem universal consciente no
processo cego contingente da sociedade civil”130, sendo este,
todavia, ainda hoje, o mote de quase toda “filosofia” do
direito. Apenas de um modo ideal pode a filosofia de Hegel
assim operar. A real superação da sociedade civil, diz Marx,
somente pode vir de sua abolição como tal, da abolição da
sociedade de portadores abstratamente considerados de
dinheiro e de força de trabalho.
E aqui Marcuse dá uma chave de sua leitura deste
momento da crítica de Marx a Hegel. Para Marcuse, Marx
reconhece o valor positivo que o trabalho recebe no
pensamento de Hegel mas também reconhece que essa
positividade se perde na reificação do seu pensamento
posterior, onde as contradições da sociedade civil são
consideradas sanadas no Estado monárquico constitucional.
A propriedade, admitida como tal e, portanto, a sociedade
civil admitida como tal, fazem da tentativa de Hegel de “abrir
os braços aos fatos”131 um documento das contradições do
109
tempo presente. A realização da razão universal que Hegel
colocava nesta suposta superação da sociedade civil pelo
Estado não foi abandonada de todo por Marx. Antes, ela
precisava ser posta em uma base negativa.
Nos termos de Marcuse leitor de Marx, há uma classe
que encarna a negação dialética desta universalidade da
realização da razão (a razão só se realiza universalmente), e
que possui uma posição no centro do mundo do trabalho
social, mas que não assume posição como proprietários dos
modos de produção. A classe universalmente negativa, por
conseguinte, é o proletariado. O proletariado é a encarnação
da “falsidade” do pensamento hegeliano. Nas palavras de
Marcuse, o proletariado, em seu dia-a-dia, demonstra que “A
realidade da razão, do direito e da liberdade se transforma na
realidade da mentira, da injustiça e da servidão”132.
Bernard Edelman, mais de três décadas depois de
Marcuse também expressou de modo inequívoco o vínculo
que aqui queremos sublinhar: “O que Hegel fez quando
desenvolveu a idéia de direito se não dar a expressão pura do
movimento do valor? E qual é a 'dialética' da Filosofia do
Direito de Hegel se não a expressão ainda mais abstrata do
valor? No final das contas, a ideia hegeliana de direito – ou,
antes, do espírito no direito – é o valor em busca dele
mesmo”133. Enfim, o que se coloca desde Hegel como
132
Marcuse, 2004, p. 228.
Edelman, 1979, p. 96-97.
133
110
paradigmática aporia não superada de qualquer “filosofia” do
direito é a metafísica privada do sujeito de direito (e da
correspondente subjetividade monetária e do trabalho) e o
eterno “correr atrás do prejuízo” do direito público em busca
de seu caráter de síntese social134. Pachukanis, uma vez
mais, já havia colocado este problema de modo
brilhantemente claro:
134
Franz Neumann, embora a seguir tire outras conclusões, expressou bem este
caráter inescapável do direito moderno ao escrever que “Esta doutrina [da
supremacia do Parlamento] revela claramente a posição ambivalente do homem
moderno, pois a enfática afirmação da autonomia do homem é sempre seguida
pela igualmente apaixonada insistência de Governo ou força pelo Estado”.
Neumann, 1969, p. 49. Em muitos ensaios contidos neste volume, entretanto,
Neumann defende piamente o “primado da política” para resolver este imbróglio
existencial do direito moderno.
135
Pasukanis, 1989, p. 73-74.
136
Pasukanis, 1989, p. 28.
111
inescapável que o direito público, por mais complexo, bem
intencionado e mesmo exitoso – dentro de certos limites
históricos – que seja, precisa se valer. A história da
persistência da sociedade produtora de mercadorias pode ser
lida também como a história do soerguimento mais ou menos
bem sucedido de uma bolha daquilo que o sociólogo
brasileiro Francisco de Oliveira nomeou argutamente como
os “direitos do antivalor”137. Os limites intransponíveis da
114
gradativamente a forma jurídica”141.
A intensa suspensão da legalidade formal no interior da
história recente de países capitalistas é geralmente concebida
como a prova inequívoca de que a forma jurídica ou “direito
liberal” é incompatível com o arbítrio e o decisionismo
próprio dos “estados de exceção” e, portanto, a forma jurídica
e sua legalidade formal deve ser concebida como uma ratio
que transcende a sociedade de classes e a dominação social.
Fácil assim. As teorias críticas que assim procedem
defendem, portanto, que o “sujeito automático” capital se
envergonha ao ter que violar o “contrato” social que ajudou a
erguer. Não é por acaso que os crentes nestas teses se
encontrem tão próximos de autores contratualistas clássicos,
como Rousseau e Locke. Vem dessa crença contratualista a
tese de que as formas jurídicas do capitalismo tardio operam
uma “mudança qualitativa de função” e que, em última
análise, é preciso recorrer às elites capitalistas para reclamar
de “quebra de contrato”, em caso de “estado de exceção”. A
conexão entre estado de exceção (e, mais ainda, de um
estado cada vez mais permanente de exceção) e a
dessubstanciação do valor e a consequente fuga para frente
do capital resta invisível para estes “críticos” jurídico-
normativistas. Assim como os esperançosos keynesianos e
neokeynesianos sonham com um restabelecimento “ótimo”
115
da regulação econômica pelo Estado, do mesmo modo que
ainda sonham os “juristas críticos” com o restabelecimento de
uma utopia da regulação jurídica dos conflitos da “sociedade
civil”.
Senão vejamos. A história do século XX precisa ser lida
também como uma acidentada e sempre fraturada
implantação da sociedade produtora de mercadorias e de seus
diversos aparelhos de sucção social de sobrevalor, na
contraditória relação entre aqueles que são submetidos ao
processo de extração de trabalho abstrato e entre as
diferentes formas e níveis no interior dos quais o capital
concorre consigo mesmo. Neste sentido, tanto o Estado
quanto o mercado são pólos opostos, mas de um mesmo
“campo” histórico-social, que sempre se apoiou mutuamente
em um desenvolvimento sistemático que começa a ruir.
Comecemos com o liberalismo clássico e sua teoria e
prática do mercado “auto-regulado”: é ali que o sujeito de
direito brilha incólume, como vimos com Polanyi quando as
massas pauperizadas na Inglaterra se tornaram, com muito
custo, sujeitos de dinheiro, de trabalho e de direito.
Passaríamos depois para o “Grande” colapso de 29-30 que
deu espaço tanto para o Estado de bem-estar social no
Ocidente quanto ao recrudescimento do “socialismo” militar-
estatal soviético142, depois do estado de exceção (cujo caráter
117
liberalismo, Marcuse ainda assim acerta em cheio quando
flagra o caráter hipócrita da crítica ao liberalismo e seu
direito por parte da teoria e da prática fascistas. Manter a
metafísica irracional privada, em um estágio de alta
“compressão” social somente foi possível com a invocação
irracional da Weltanschauung (visão de mundo) totalitária,
como representação maior da “coisa pública”. É a invocação
pública fascista correspondente à sua metafísica privada em
tempos de crise. Afinal de contas, conclui Marcuse,“...o
liberalismo “gera” a partir de si próprio o Estado total-
autoritário, como sendo a sua realização plena num estágio
evoluído do desenvolvimento”144. Nos termos de uma
legalidade e de uma ordem jurídica, tal como estamos
estudando, Marcuse dá a entender que a lógica, a princípio
libertadora e racional, dos direitos humanos à segurança e à
previsibilidade jurídica são intervertidos e se tornam uma
difícil segurança do capital e uma previsibilidade jurídica de
lucro do capital (que Marcuse formula, não obstante, apenas
no modo da “propriedade privada”) e estas “outras”
exigências passam a negar as primeiras ou negarem-se a si
mesmas. Suspensão dos direitos para defender o direito, pois.
Com efeito, suspensão da legalidade burguesa para defender
o processo normal de valorização do valor em crise, que é o
local familiar desta mesma legalidade. O fascismo pode ser
118
compreendido, assim, como uma “solução” última e extrema
para o problema jurídico moderno mais profundo que Hegel
foi o primeiro a levantar: o da metafísica privada e da
invocação pública. Carl Schmitt, o formulador mais
importante desta “solução última”, usou de uma clareza sem
igual: escreveu ele em 1934 que, naquela altura, “o Führer
protege o direito”145.
***
120
Seria então o caso de dizer que se passa com a lei
do valor o mesmo que se passa hoje com a Lei
num regime de urgência permanente: assim como
o ordenamento jurídico vigora porém suspenso
num limbo jurídico de redefinições inconclusivas
e ad hoc, a força de trabalho continua atrelada à
produção de valor e mais-valia ainda que não se
possa mais medir a integralidade do resultado
produzido em tempo de trabalho socialmente
necessário. Numa palavra, a lei do valor continua
vigorando embora tenha perdido sua base
objetiva, desajuste no qual se exprime por outro
lado e não menos contraditoriamente algo como o
fracasso da tentativa capitalista de eliminar o
trabalho vivo do processo de produção. Por este
novo trilho da subsunção total de uma força de
trabalho qualitativamente insubsumível, “o cara
inteiro”, a vida inteira transformada em trabalho,
as reviravoltas entre a exceção e a norma não têm
fim. Em suma, quando a cisão entre produção
material e produção de valor se instaura de vez,
sem no entanto abolir a relação de capital – o
capital em fuga precisa perder o lastro do trabalho
ao mesmo tempo em que rifa a sobrevida dos
sujeitos monetários sem-trabalho –, pode se dizer
que a subsunção assumiu a forma mesma da
exceção.148
121
capitalismo, se acomodam precariamente”149. Imprescindível
ainda é perceber o quanto esta fratura da sociedade
produtora de mercadorias desenvolvida já estava presente em
germe desde seu nascimento. As “formas embrionárias” de
exceção da regra da legalidade burguesa poderiam ser
encontradas na teoria e na prática das colônias européias com
clareza exemplar. Isto pode ser bem compreendido ao nos
voltarmos para a questão da escravidão, o ponto nevrálgico
da formação cultural e social brasileira. Tigar e Levy não
deixaram escapar esse fio solto em sua história do direito
capitalista ascendente:
122
está todo o sentido do estado permanente de exceção que
caracteriza, por exemplo, a (des)ordem jurídica latino-
americana em geral e a brasileira em particular. E quando as
polarizações sociais se aprofundam nas zonas avançadas do
capitalismo, nada mais “natural” que chamá-la de
“brasilianização” do mundo151. O aspecto mais peculiar e
idiossincrático da legalidade periférica, ao fim e ao cabo, é o
fato desta ser diretamente ligada à “valorização internacional
de valor” na global sociedade produtora de mercadorias.
A maioria dos debates atuais sobre direito e justiça se
restringe a formular, de mil e uma maneiras, a metafísica
privada dos direitos, garantias e liberdades, concedendo-os,
entretanto, de mão beijada também ao capital e ao seu
sociometabolismo de valorização do valor. Não se consegue
perceber, porém, a antinomia fundamental entre estes
“sujeitos de direito”152. Outra grande parte tenta ainda fazer,
trazidos às cortes de justiça com a invocação da 14ª emenda. 288 destes casos
foram trazidos por corporações, 19 por afro-americanos”!
153
Genro, 2008, p. 52.
124
abismo. Torna-se, nesta perspectiva, mais fácil imaginar ou
“idealizar” a extinção da humanidade do que uma
transformação das categorias de socialização do “sujeito
automático” capital, sem a qual não é possível uma
verdadeira ação política socialmente “consciente”. O que
Genro está defendendo aqui é que, se a relação entre a
violência do Estado, a “produção do direito” e a organização-
produção-distribuição de riqueza não é uma relação
“mecânica” ou “necessária”, logo, esta pode se estabelecer de
qualquer forma, assumindo qualquer configuração. É a falsa
alternativa teórica que se coloca à crítica marxista do direito
desde seus inícios: ou uma relação “necessária”, “mecânica”
entre “direito” e “economia”, ou nenhuma relação de todo. A
partir dessa falsa alternativa, a única coisa a ser feita pelo
socialismo no “mundo real” é tentar passar todos os
conteúdos de justiça social que precisamos pelo buraco da
agulha da valorização do valor e das formas jurídicas
possíveis na democracia liberal, e nisto se resume quase todos
os esforços da teoria e da prática da esquerda nesse campo. É
preciso usar rigor e imaginação para ir além desse impasse e
desse limite auto-imposto.
125
II
126
Notas sobre as origens da crítica
marxista do direito
128
cego e sem uma subjetividade social possível – como
condição inescapável da emancipação social. Nesta segunda
linha de leitura de Marx, é a socialização pela via de relações
fetichistas que deve ser superada para além da mera
existência de classes e de suas lutas. Neste capítulo Ferreira
termina ainda mostrando o caráter predominantemente
“exotérico” do texto de Engels e Kautsky, “O Socialismo
Jurídico”, de 1887, embora reconheça que em uma passagem
Engels e Kautsky chegam a tocar em alguns aspectos
“esotéricos” do problema do direito para além da existência
empírica das classes. “Todavia”, garante o autor, “parece-nos
efetivamente apenas uma passagem deslocada da linha
adotada pelo artigo, que privilegia o direito enquanto 'visão
de mundo da burguesia'”155.
No capítulo dois Ferreira lê o mais “exotérico” de todos
os autores socialistas, Anton Menger. Não só em Menger o
direito deixa de ser objeto de crítica quanto passa a ser o mais
importante norte para a realização da emancipação socialista.
129
cidadania, à política, ao Estado e ao direito,
privilegiando o Econômico. Outros socialistas
seriam muito mais importantes do que ele.156
130
socialmente diferenciada e separada, mas
perpetuá-lo. Simplesmente pretende socializar a
propriedade privada dos meios de produção,
transferindo-a para o Estado, substituindo a
ideologia privada por uma ideologia socialista,
sem modificar a lógica social subjacente. O
discurso da cidadania pode ser extraído de sua
obra, apenas convertido em “cidadania
socialista”.157
131
em questão de modo definitivo justamente quando a
sociedade do trabalho é erodida pela recorrência e
profundidade de suas crises sistêmicas.
No terceiro capítulo de seu livro Ferreira analisa a obra
de Pietr Stutchka vendo nela a gênese de uma vertente
distinta de argumentação “exotérica” de crítica do direito.
132
acrescentamos, uma cidadania) revolucionária, devendo ser
'rechaçadas todas as teorias que prediquem a impotência da
lei revolucionária em face das relações de produção
burguesas'” 160.
133
seguindo o modelo jacobino, pudesse levar a uma definitiva e
afirmativa vitória do homem e do cidadão trabalhador162.
No quarto e último capítulo, Ferreira apresenta o
primeiro crítico marxista do direito que finalmente pôde dar
conta, mesmo que parcialmente, do caráter “esotérico” da
obra de Marx: Evgeni Pachukanis.
134
levava os estudiosos do tema a ver nas categorias de suas
análises (no caso dos economistas, valor, trabalho e lucro, por
exemplo, no caso dos juristas, lei, contrato e crime, etc.)
dados naturais presentes em toda e qualquer sociedade. Em
Pachukanis, por conseguinte, se encontra a primeira tentativa
de tomar a crítica marxiana da legalidade burguesa em geral
em seu caráter “esotérico” e, assim, também de colocar em
questão a superação da forma jurídica como regulador social,
tanto quanto o valor como cerne da socialização das
sociedades produtoras de mercadorias.
Quase no final do seu livro, reconhecendo o mérito de
Pachukanis em demonstrar a “relação” (prefiro o termo
“homologia”) entre a forma-mercadoria e a forma jurídica,
Ferreira aponta, ainda que en passant, um problema de
grande importância do qual todo estudo sobre o direito que se
repute crítico precisa partir. Segundo ele:
135
O livro de Adriano de Assis Ferreira termina por ser, a
meu ver, um bem sucedido painel das origens das abordagens
críticas do direito, acrescido desse problema citado que nos
remete à grande tarefa, ainda plenamente aberta, de uma
consequente crítica do direito em meio a mais uma crise
sistêmica da sociedade produtora de mercadorias. Isto
porque a tendência imediatamente intuitiva é justamente
tentar se apegar ainda mais a um princípio regulador
novamente mais abstrato e formal, quando é justamente a
regulação e a normalidade deste processo cego e fetichista da
valorização do valor que se coloca em xeque em seu próprio
desenvolvimento interno. Os juristas e moralistas são os
primeiros a sair pregando as leis e a virtude quando uma crise
sistêmica começa a se aprofundar, à cata de “criminosos” e
“especuladores”. Busca-se desesperadamente, enfim, colocar
os culpados na cadeia. Mas a crise é do capital, do “sujeito
automático” e suas ficções jurídicas. “Se o valor perde poder
(Gewalt)” escreveu Franz Schandl, “a violência (Gewalt)
ganha valor”166. Se o “sujeito automático” capital suspende
sua própria legalidade, de muito pouco adianta fazer como
um bom pai de família e lembrar dos anos dourados em que a
lei era vigente para a maioria. Antes, é preciso como já
anteviu Walter Benjamin, superar o estado de exceção que se
Schandl, 2009.
166
136
tornou a regra, instalando um verdadeiro estado de exceção.
Neste sentido seria útil, por exemplo, comparar
algumas abordagens atuais que se reputam “teórico-críticas”
ou “socialistas” e que, na verdade, emulam pela enésima vez
uma combinação diferente daquelas perspectivas “exotéricas”
já defendidas por um Menger ou um Stutchka. Algumas vezes
estas vertentes clamam que as instituições jurídico-políticas
da sociedade capitalista possuem e possuirão ainda mais a
capacidade adquirida recentemente de “absorver” o resultado
das lutas de classes, e assim anunciam como relevante
novidade, portanto, versões requentadas do socialismo
jurídico de Menger, chamando, no ensejo, qualquer objeção a
tal “utopia” de “economicista” (exatamente como Menger!).
Outra hora, ainda, clamam pela transformação “classista” do
direito e do Estado, como se o “direito ao trabalho” pudesse
ser, de qualquer modo que o pensemos, algo mais do que o
Direito do Trabalho, com as “varas” e os juízes que a partir de
normas e processos abstratos, regulam realmente o
desenvolvimento dos trabalhos abstratos e da valorização
abstrata do valor.
Por outro lado – e esta consequência não é
assumidamente buscada pelo autor – a estratégia de seu
estudo da passagem Menger-Stutchka-Pachukanis pela via da
leitura de Kurz, ajuda-nos ainda a esclarecer algumas teses
polêmicas trazidas por este autor, por vezes mal-entendidas
mesmo pelos melhores de seus leitores. Pela via do problema
137
do direito e do Estado, a “perspectiva” ou o “corte classista”
termina necessariamente nas limitadas e esgotadas propostas
de Stutchka. Portanto, pela via da estudo crítico do direito é
possível enxergar claramente que a crítica da forma-fetiche
não pode se harmonizar com uma “pista traçada
imanentemente” por uma “luta de classes”, não importando o
quão elaborada possa ser esta, já que a gramática teórica e
prática que esta pressupõe precisa ser estilhaçada para que o
conflito social possa ser formulado em outro plano.
A passagem que Ferreira captou e o modo como o fez,
como se vê, marca tanto um passo adiante na leitura crítica
do direito que se realizou até então, quanto na leitura crítica
da nova crítica do valor e de sua validade crítico-teórica.
Ambas as tarefas confluem para a construção de um crítica do
direito na esteira da “antieconomia” e da “antipolítica”
sugeridas por Kurz, duas das formulações mais importantes
da crítica radical do capitalismo. Capitalismo este que, hoje, a
olhos vistos, dá sinais indeléveis de seu profundo desgaste.
138
A igualdade jurídica sob suspeita
141
abstrato, mercadoria a ser livremente vendida e
comprada no mercado através de pactos
voluntários entre sujeitos de direito livres e iguais.
(...) O sujeito de direito é então a cápsula da
igualdade jurídica e de toda desigualdade que esta
implica.168 (p. 68-69, grifos do autor)
142
uma determinação causal sobre o direito, como se a
existência de uma relação jurídica fosse apenas um
epifenômeno de outra realidade dada sem possuir qualquer
autonomia. Antes, e mais bem posto: a “norma jurídica é
determinada pelas relações econômicas – de modo direto em
sua forma e não necessariamente de modo direito em seu
conteúdo – e não concentra em si a juridicidade, mas apenas
confirma e confere segurança à forma jurídica que já tinha se
desenvolvido antes dela”170.
Com este movimento teórico, Kashiura Júnior pode
muito bem se colocar no encalço de sua pesquisa acerca da
igualdade jurídica sem, por um lado, recair em qualquer
economicismo, já que não defende a determinação causal de
um conteúdo “econômico” qualquer por sobre o fenômeno da
juridicidade e seus conteúdos, mas também não cai no feitiço
de naturalizar a forma jurídica como prius social (não por
acaso, no último capítulo do livro, Kashiura se detém com
grande desenvoltura diante do problema do fetichismo da
igualdade jurídica) creditando a este uma racionalidade
trans-histórica.
A seguir, em sua análise do Estado, o autor esboça uma
crítica da forma Estado como crítica de seu caráter de
preenchimento da cisão estrutural entre público e privado,
cisão própria e inafastável da formação social capitalista. Em
143
suas palavras:
144
direitos sociais e, em especial, o direito do consumidor e o
problema da discriminação. A tese central deste autor é a de
que as novas movimentações sociais e estatais na direção de
incrementar a subjetividade jurídica libera clássica –
mormente negativa e vazia de diferenciações e especificações
– não são uma “alternativa” à igualdade jurídica própria do
capitalismo. Antes, são variações que buscam assegurar,
mesmo em espaços e nichos onde esta se mostre ameaçada, a
igualdade jurídica como tal.
As proteções especiais dadas a certos “tipos” de sujeitos
de direito, como o sujeito “consumidor” ou o sujeito
“trabalhador” fazem, ao fim e ao cabo, apenas acertar os
modos pelos quais estas relações podem existir de modo mais
resoluto como relações mercantis de troca de equivalentes. As
chamadas “especificações” seriam assim diferenças
juridicamente postas a serviço da igualdade jurídica e que,
portanto, não são capazes de superar a desigualdade social
ocasionada pelo funcionamento da lei férrea do valor e da
mercadoria. Nas palavras de Kashiura Júnior:
145
igualação mesma, mas perpetuar a igualdade, isto
é, assegurar a prevalência da igualdade jurídica
nas relações sociais da superfície do
capitalismo.173
173
Kashiura Júnior, 2009, p. 263.
174
Kashiura Júnior, 2009, p. 158.
175
Kashiura Júnior, 2009, p. 138.
176
Kashiura Júnior, 2009, p. 151.
146
processo de produção e circulação de suas mercadorias é
tamanho que a mínima igualdade jurídica aceitável entre o
consumidor e o fornecedor só pode se realizar por intermédio
de uma diferenciação significativa entre ambos diante de suas
normas e parâmetros regulatórios, com uma série de
concessões benéficas a aqueles e algumas outras a estes. Não
por acaso, e isso o percebe bem o autor, tanto as relações de
trabalho quanto as de consumo precisam necessariamente ser
reguladas por intermédio de “desigualdades posicionais”.
“Isso significa que, tanto na relação de trabalho quanto na de
consumo, o reconhecimento de desigualdades funciona não
contra, mas a favor da igualdade jurídica formal”177.
No que tange a discriminação, tem-se, segundo o autor,
a igualdade jurídica como uma meta a se atingir mesmo que
pela força, criminalizando as condutas contrárias à sua
aceitação (legislações anti-racismo, etc.). Noutro registro,
têm-se as políticas afirmativas, onde, para se garantir um
nível aceitável de equidade social, atenta-se contra a
igualdade jurídica, materializando-se as subjetividades
jurídicas na cor da pele, renda, procedência escolar, etc. Nesta
altura Kashiura Júnior faz uma interessante observação:
147
privilégios pré-jurídicos por servirem de
instrumento à realização da igualdade ao invés de
definirem desigualdades permanentes. Ainda
assim, a desigualação instaurada parece quase
transbordar os limites da forma jurídica.178
148
de emergência possa ser puxado. Como entoa o haiku de Issa
Kobayashi que serve de epígrafe e fecho ao livro de Kashiura
Júnior: ainda se permanece “distraído com flores” “sobre o
teto do inferno”.
No último “movimento” do livro Kashiura Júnior
avança na direção de sua crítica da igualdade jurídica em
especial. A igualdade jurídica ali é captada em sua relação
com a abstração própria da circulação mercantil179 e neste
sentido, destaco a referência feita pelo autor ao conceito de
fetichismo da mercadoria de Marx180.
Com efeito, para o autor, o “feitiço” do sujeito de direito
é o avesso do fetichismo da mercadoria. Se este faz-nos ver as
relações sociais como que plasmadas nos objetos, o fetiche do
sujeito de direito (e consequentemente da igualdade jurídica)
faz-nos ver nos objetos (e no próprio trabalhador e sua força
de trabalho objetivada) relações oriundas inteiramente da
vontade livre181. Um fetichismo é o complemento adequado e
necessário do outro. Não poderia ser mais claro o autor do
que quando conclui que “... a igualdade jurídica é, na
realidade, o “outro lado” da lei do valor”182.
Contra a crença fetichista de que a única forma de
justiça possível é a igualdade jurídica formal e suas variações,
o livro de Kashiura Júnior acrescenta importantes e
179
Kashiura Júnior, 2009, p. 218.
180
Kashiura Júnior, 2009, p. 225.
181
Kashiura Júnior, 2009, p. 230.
182
Kashiura Júnior, 2009, p. 238.
149
oportunas páginas na literatura crítica contemporânea
brasileira e sua obra merece uma leitura e reflexão
aprofundadas.
150
Notas sobre a filosofia do direito de
Habermas
152
“domesticado” pela atuação das instâncias deliberativas da
democracia liberal.
II
153
Tempo, Trabalho e Dominação Social (1993), desde os seus
escritos do início dos anos 60 que Habermas apresenta um
grave equívoco em sua apreensão da teoria marxiana do
trabalho e do valor. Nestes escritos, Habermas tenta provar
que a teoria do trabalho social de Marx não era capaz de
fornecer um correto fundamento para uma teoria crítica em
tempos de burocratização intensa e de dominação
tecnocrática no capitalismo tardio. E, neste ensejo, este
filósofo tenta convencer-nos de que Marx havia centrado
excessivamente sua análise na síntese social do trabalho,
deixando de lado a esfera da interação, enfraquecendo desse
modo as bases para uma teoria crítica da emancipação social
no capitalismo tardio183.
154
desenvolvimento185.
III
155
mesmo padrão que encontramos no conceito de trabalho. Nos
primeiros importantes escritos, Habermas parece
simplesmente identificar valor e riqueza material como tal.
Como nos lembra ainda Postone, Marx já enfatizava o
equívoco desta identificação, tendo em vista que a teoria
social crítica deveria lidar precisamente com a oposição
histórica entre estes. “A diferença entre riqueza material e
valor se torna uma oposição cada vez mais aguda, de acordo
com Marx, porque o valor permanece como a determinação
essencial da riqueza no capitalismo mesmo quando a riqueza
material se torna menos dependente do desgaste do trabalho
humano direto”187. Ou seja: “A contradição básica no
capitalismo, vista assim, é fundada no fato de que a forma das
relações sociais e da riqueza, tanto quanto a forma concreta
do modo de produção, permanece determinada pelo valor
mesmo quando este se torna anacrônico do ponto de vista do
potencial de criação de riqueza do sistema”188.
157
Marx havia distinguido”191. Ou, como escreveu recentemente
Anselm Jappe, numa tese como esta há uma ruidosa
confusão entre a crítica marxiana do valor e do trabalho e a
teoria contemplativa do valor dos economistas clássicos (que
se expressa até na linguagem de Habermas). Segundo Jappe:
158
trabalho perde a razão de ser, como Marx havia
predito relativamente ao comunismo. Com efeito,
a troca só é necessária em circunstâncias em que
os produtores estão separados uns dos outros e
em que só as coisas se encontram socializadas.
Hoje em dia, porém, a separação dos produtores
já não tem base material ou técnica e deriva
exclusivamente da forma do valor abstracto, a
qual perde assim definitivamente a sua função
histórica.192
159
mas por se tratar de uma forma fetichista não
percebida como tal pelos sujeitos. Longe de se
dissipar, a forma valor, embora
“objectivamente” ultrapassada, entra cada vez
mais em colisão com o conteúdo material que ela
ajuda a criar.193
160
fundada “naturalmente”, um fato de “história
natural” - sua base expressa meramente um nível
técnico de produção.194
IV
194
Postone, 2006, p. 234-235. “Que Habermas mais recentemente tenha se referido
ao trabalho social como uma combinação de ação comunicativa e razão
instrumental não neutraliza a crítica da natureza trans-histórica de sua noção de
de razão e ação instrumental, seja estas consideradas como enraizadas no
“trabalho” ou não. Postone, 2006, p. 238, n. 50, cf. Habermas, 1974.
195
Postone, 2006, p. 243.
161
da vida da evolução sistêmica, que é mensurada
pelo aumento na capacidade diretiva de uma
sociedade, e afirma que aumentos na
complexidade sistêmica dependem
derradeiramente da diferenciação estrutural do
mundo da vida. Ele fundamenta a primeira em
um desenvolvimento evolutivo da consciência
moral que é a condição necessária para a
liberação do potencial de racionalidade da ação
comunicativa.196
162
como nos mais recentes, paga o preço por basear-se em
categorizações específicas da modernização capitalista
tomando-as como quase naturais e trans-históricas: sua
teoria esbarra no fato de que só pode chegar “criticamente” ao
seu objeto externamente, só pode criticar os desequilíbrios e
contradições da sociedade produtora de mercadorias
tratando-as por intermédio dos “meios diretivos”, “economia”
e “política” que estariam, “em si” e postos em seus “devidos”
lugares, fora do alcance da crítica. Não é por acaso que
Habermas se desvencilha da crítica categorial marxiana
(sobretudo por não tratá-la corretamente) e se apega com
mais fervor à “boa-vontade” da moral prática no sentido
kantiano do termo199.
desenvolvimento da produção como tal, não é evidente por quê o apelo à razão
prática deveria ser mais do que uma exortação”. Postone, 2006, p. 245. No
mesmo sentido, escreve Jappe: “Vê-se assim por que motivos a crítica marxiana
da economia política, longe de ser incapaz de explicar a crise ecológica ou de dela
dar conta, como por vezes se pretende, oferece pelo contrário para essa crise a
única explicação estrutural que não se limita a um conjunto de apelos morais.”
Jappe, 2006, p. 140.
163
princípios organizacionais ultrapassam seus
limites. Entretanto, a noção de uma quase
ontológica limitação entre estes aspectos da vida
que podem ser “mediatizados” com segurança e
aqueles que somente podem ser “colonizados” é
muito problemática. A ideia de que apenas
aqueles domínios que cumprem funções políticas
e econômicas podem ser convertidas em meios
diretivos – em outras palavras, que o sistema
pode exitosamente colonizar esferas de
reprodução material, mas não de reprodução
simbólica – implica que seja possível conceber
uma reprodução material que não seja
simbolicamente mediada. Esta diferenciação
entre vida material e significado, que continua a
distinção quase ontológica de trabalho e interação
que Habermas esboçou em seus escritos antigos,
revela que Habermas permanece implicitamente
ligado ao conceito de “trabalho”.200
164
como uma crítica “do ponto de vista do trabalho” e desse
modo, como uma crítica que postula da “desdiferenciação”
das esferas da vida próprias da modernidade, algo que
Habermas considera “regressivo e indesejável”202. Mas bem
compreendida, a crítica marxiana não é meramente a crítica
do “ponto de vista do trabalho”, antes, “as formas sociais
categoriais da mercadoria e do capital não escondem
simplesmente as verdadeiras relações sociais do capitalismo,
de acordo com Marx, antes, elas são as relações fundamentais
do capitalismo, formas de mediação que são constituídas pelo
trabalho nesta sociedade”203. Ou seja, o “ponto de vista do
trabalho” é o objeto e não o ponto de vista da crítica.
202
Postone, 2006, p. 255.
203
Postone, 2006, p. 255-256.
204
“O filósofo deve satisfazer-se com a idéia de que, em sociedades complexas, só é
possível estabelecer, de modo confiável, condições morais de respeito mútuo,
inclusive entre estrangeiros, se se apelar para o medium do direito. (...) Isto se
torna claro, a partir do momento que tentamos explicar de que modo o direito
legítimo pode surgir da pura e simples legalidade.” Habermas, [1992], 2003b, p.
322-323.
165
como um medium (sutilmente equilibrado entre a
“economia” e a “política” e mediatizando o “munda da vida” e
o “sistema”) que Habermas toma como estritamente
necessário para qualquer perspectiva crítica ou emancipatória
em face de sua intrínseca racionalidade sistemática e
mediadora.
166
tradicional, que apenas coloca um destes pólos contra o
outro, ele põe-se a defender ferrenhamente um primado da
“política”206 e o vínculo entre este primado e o “medium do
direito”207 como antídoto estático e eternamente necessário.
Deixando de tomar a crítica da sociedade produtora de
mercadorias de Marx como uma uma crítica do valor e do
trabalho como “fato social total”, Habermas imputa a Marx as
deformações de seu objeto, a saber, o reducionismo
economicista da sociedade da mercadoria e do trabalho, e
com isso retoma com sinal inteiramente positivo as supostas
barreiras e grilhões que domesticam e apaziguam
indefinidamente o processo cego e fetichista da valorização
do valor.
VI
167
“charneira”, de articulação (à maneira de uma
dobradiça) entre o mundo da vida e o sistema. De
um lado, o direito desempenha funções sistêmicas
tanto quanto o dinheiro ou o poder administrativo
e, por essa razão, é um medium como eles. Mas é
ao mesmo tempo um medium especial: ele tem a
capacidade de traduzir em termos de dinheiro e
poder administrativo (ou seja, em termos
instrumentais) os influxos comunicativos.
Dinheiro e poder são surdos à linguagem
cotidiana e dispõem de códigos altamente
especializados e funcionais. Para que seja possível
dirigi-los em um sentido determinado, é preciso
que o direito traduza as pretensões comunicativas
cotidianas nos termos especializados de cada um
desses media sistêmicos.208
168
crise da sociedade produtora de mercadorias, todavia, estes
direitos têm repetidamente se convertido em horrendas
obrigações coercivas: a obrigação ao trabalho, a submissão ao
poder das empresas, o constrangimento de habitar em
ambientes degradados. O direito positivo e suas filosofias
legitimadoras reproduzem uma sociedade negativa que se
torna a cada dia mais e mais obsoleta.
169
III
170
Ou porque alguns princípios
arquijurídicos podem ser também
princípios pósjurídicos
171
Inicialmente pode-se pensar: utopia, esperança, dignidade
humana, direito natural, tudo isso não foi pisado e repisado
pelos juristas humanistas de vários matizes? Talvez um dos
maiores méritos deste livro de Mascaro seja, em diálogo com
Bloch, trazer à tona uma ontologia do possível concreto
incrustado nestes princípios, dando um horizonte de
possibilidades políticas para estes temas tratados sempre nas
altas paragens do idealismo jurídico. Em outras palavras,
termina-se a leitura do livro percebendo traços das
possibilidades explosivas – em termos políticos – destas
definições tão comuns e que, aparentemente, não conservam
mais nenhuma energia utópica em um tempo como o nosso.
Nos primeiros capítulos de seu livro Mascaro organiza a
utopia e seus componentes essenciais. É preciso uma
concepção de tempo e de história para que nasça o utópico209,
por exemplo; além do mais, a utopia parecia ser aos primeiros
pensadores que se nomeavam “marxistas” um divisor de
águas entre a crítica marxista e outras formas de crítica ao
capitalismo. Para alguns destes era, de um lado, a utopia, e de
outro, o marxismo. Mascaro explora e relativiza esta
premissa210. Como o sentir utópico é também um afeto, um
impulso, tornou-se mister investigar a relação entre
psicanálise e utopia. Inicialmente em Reich e Fromm e a
seguir em Herbert Marcuse.
209
Mascaro, 2008, p. 17, capítulo 1.
210
Mascaro, 2008, p. 35, capítulo 2.
172
É impossível situar Bloch e seu pensamento na história
intelectual européia do século XX e sua pertinência
contemporânea sem mencionar sua aproximação e posterior
afastamento de Georg Lukács, filósofo e esteta húngaro. O
que chama a atenção no capítulo que Mascaro dedica a esse
tema é a comparação do conceito de totalidade, central para
Lukács, e o de história polirrítmica de Bloch. Muito
importante para o estudo de regiões não-centrais do
capitalismo, os conceitos de história polirrítimica e o de “não-
contemporaneidade” ligado àquele, são chaves encontradas
por Mascaro para o desvelamento da questão da utopia em
Bloch. É também a partir da polirritmia da história que se
“abre margem” à antecipação, matéria-prima da utopia
revolucionária. Sendo a utopia “o grande tema de Bloch”,
Mascaro explora sua base ontológica, a saber, o “ser-ainda-
não” (nicht-noch-sein) que existe em toda utopia.
A seguir, Mascaro adentra os temas do utopismo
jurídico blochiano propriamente dito. Inicialmente investiga
a história da dignidade humana e do humanismo como
princípios normativos à luz das obras blochianas sobre o
direito e em especial Direito Natural e Dignidade Humana
(1961). A seguir, trata do Direito no sentido mais estrito
moderno do termo, ou seja, das estruturas e formas jurídicas
cindidas pelo poder de classes. Nesta altura, o autor aponta a
interessante posição de Bloch frente à literatura marxista
sobre o jurídico: por um lado, Bloch é profundamente
173
humanista, vinculado a certa construção de direito natural e
de dignidade humana; mas, por outro lado, vê-se ele de mãos
dadas com os radicais juristas marxistas, como Evgneni
Pachukanis, que viam nas formas jurídicas uma ligação
intrínseca com as formas mercantis próprias ao capitalismo e,
portanto, com o fim do capitalismo, reclamavam o fim das
formas jurídicas.
Os humanistas, observa Mascaro211, tendiam para o
reformismo social-democrata, assumindo o Direito como
instância supra-histórica da realidade social, já os marxistas
radicais tendiam a menosprezar e hostilizar o humanismo,
por seu compromisso com visões idealizadas do social que se
coadunam com as ideologias legitimadoras da exploração
capitalista. Podemos inicialmente nos perguntar como Bloch
conseguiu costurar, a seu modo, as duas vertentes.
211
Mascaro, 2008, p. 159.
174
similar ao mais radical projeto de entendimento
do direito dentro do marxismo.212
2. Utopia e pósdireito
212
Mascaro, 2008, p. 160.
213
Habermas, 2003a, p. 12 autocitação de Habermas, 1974.
214
Para uma outra tentativa de construir uma relação entre a crítica marxista e o
direito natural Cf. Taiwo, 1996.
175
postulados jurídicos:
215
Mascaro, 2008, p. 161.
176
que se reputam guardiãs desta justiça. As bandeiras que até
então andaram erguidas apenas nos mastros das instituições,
devem ser erguer então no mastro também da libertação e do
dissenso destas instituições. Poderíamos aqui lembrar
vividamente da hipótese crítica de Franz Schandl sobre o fim
do princípio jurídico-formal do ocidente:
216
Schandl, 2001, (hipótese XIII).
177
institucional do presente e do futuro; mas com Bloch, penso,
há que se atentar para o fato de que muitos dos “princípios
normativos pós-jurídicos” serão iluminados pelos princípios
normativos “arquijurídicos”, e que, de fato, o que ocorre é que
estes não puderam se realizar universalmente e
concretamente nos marcos categoriais dos ordenamentos
jurídicos do Estado de direito capitalista – como os direitos
humanos, por exemplo – mas poderão se realizar na
emancipada sociedade pósjurídica.
Podemos inclusive notar que o próprio Schandl
percebeu muito bem o paradoxo (blochiano) da recuperação
emancipatória do legado do direito natural contra o direito
positivo estatista ao escrever que o “grotesco da História pode
assim formular-se: quem quiser salvar o nível civilizacional,
as conquistas do Ocidente – e aqui há, no melhor sentido da
palavra, muita coisa a guardar – tem de colocar-se no plano
da ultrapassagem do princípio formal do Ocidente”217. Dito de
outro modo: quem quiser salvar o legado dos princípios mais
elevados do direito deverá lutar pela ultrapassagem e
superação da rígida organização estrutural-formal que
somente o realiza parcial/abstratamente.
217
Schandl, 2001, (hipótese XIV).
178
Com efeito, noutro nível, em Ernst Bloch Mascaro não
lê um humanismo que pudesse ser contraposto ao
“economicismo” próprio das abordagens marxistas sobre o
direito, mas antes, um pensador que percebeu melhor do que
ninguém a utopia concreta da justiça que subjaz à crítica
radical ao Estado de direito moderno e suas formas de
controle e opressão social que sempre partem dos “de cima”.
Ou seja: há aqui um ponto de partida para superar a
dicotomia renitente entre humanismo e estruturalismo:
218
Mascaro, 2008, p. 194.
179
importância da libertação social que precisa falar em uma
linguagem em grande medida religiosa, “não-
contemporânea”, dando um exemplo bastante claro da
Teologia da Libertação latino-americana:
219
Mascaro, 2008, 190-191.
220
Boff e Boff, [1985], 1998, p.98-99.
180
cristianismo, há uma ruptura significativa com sua
interpretação social até então corrente: “para eles”, escreveu
Löwy:
181
Bloch chama ao seu lado a religião, mas não
aquela dos conservadores. Tem ao seu lado o
espírito místico, herético, messiânico,
escatológico e radicalmente singelo dos que,
sendo cristãos ou não, não levantaram paredes de
templos de segregação. Pelo ângulo jurídico,
quem tomar Bloch como filósofo de um direito
complacente e de vagos ímpetos cristãos de amor
esqueceu-se da lembrança blochiana do Cristo
radical, que expulsou os vendilhões do templo.223
Albornoz, 2002, p. 87. Como bem lembra esta autora, talvez poder-se-ia dizer que
224
225
Mascaro, 2008, p. 196.
183
suposta aplicação irrestrita (e levada até às raias do absurdo)
do princípio da responsabilidade civil e de sua peculiar
obrigação de indenizar226.
Nesta utopia, pela via de progressivas indenizações (e,
poderíamos completar, pela via de inúmeros auxílios, bolsas e
rendas governamentais) poder-se-ia chegar a uma espécie de
restitutio ad integrum de todas as explorações e opressões do
capitalismo contra os pobres, as minorias, os trabalhadores, a
natureza, etc. Contra esta utopia, de resto vergonhosamente
irrealizável, em Bloch encontramos elementos de uma utopia
de ruptura com a ordem presente cujo passado opressor ecoa
impenitente. E neste particular Bloch estaria muito perto de
Benjamin e de sua preocupação com a energia revolucionária
que emana da memória dos mortos e dos vencidos da
história, estes que não podem ser indenizados desta forma.
“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também
os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”227,
226
“A ideia da justiça liberal global de h0je não é apenas trazer à tona todos os crimes
coletivos passados (atos que apareceram como tais a partir dos padrões de hoje);
ela também envolve a utopia Politicamente Correta de “restituir” a violência
coletiva passada (contra negros, nativos americanos, imigrantes chineses...) pelo
pagamento ou restituições legais – ESTA é a verdadeira utopia, a ideia de que
uma ordem legal pode pagar de volta por seus crimes fundantes, por
consequência limpando retroativamente a si mesma de sua culpa e retomando
sua inocência. O que é, no final das contas, a utopia ecológica da humanidade em
sua inteira indenização por seu débito com a Natureza por toda a exploração
passada. E, efetivamente, a ideia ecológica da reciclagem não é parte do mesmo
padrão de restituição por injustiças passadas? A noção utópica subjacente é a
mesma: o sistema que emergiu pela violência deveria indenizar por todos os seus
débitos e então restabelecer um equilíbrio ético-ecológico.” Žižek, 2009, p. 18.
227
Benjamin, 1987, p. 226.
184
escrevera ele nas Teses Sobre o Conceito de História. Assim,
a verdadeira justiça universalmente concreta não se realizará
pela mera inclusão de novos sujeitos sociais no interior da
ordem jurídica e estatal na sua forma vigente – ainda que esta
inclusão seja algo necessário, fruto de constantes lutas sociais
traçadas historicamente, etc., mas afinal os limites desta
inclusão devem ser descobertos – mas na construção de uma
nova ordem de justiça para além desta.
Contra a utopia jurídica da indenização estatal pela
opressão passada é preciso pensar e lutar pela utopia de uma
justiça que possa realizar os princípios arquijurídicos da
dignidade e dos direitos humanos, ainda que (e talvez,
principalmente porque) o Estado de direito democrático-
liberal não é capaz de realizá-los e, além disso, este recua
brutalmente e inexoravelmente na direção oposta, na direção
do puro e bárbaro não-direito em diversas de suas frentes
contemporâneas.
185
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