Sei sulla pagina 1di 56

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – UFAL

Faculdade de Direito de Alagoas – FDA

JOÃO ALDO DA SILVA LEITE NUNES

ATIVISMO JUDICIAL
Uma análise crítica

Maceió/AL.
Abril/2017.
JOÃO ALDO DA SILVA LEITE NUNES

ATIVISMO JUDICIAL:
Uma análise crítica

Monografia de conclusão de curso, apresentado à


Faculdade de Direito de Alagoas (FDA/UFAL) como
requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em
Direito.

Orientador: Prof. Dr. Beclaute Oliveira Silva.

_________________________________
Assinatura do Orientador

Maceió/AL.
Abril/2017.
JOÃO ALDO DA SILVA LEITE NUNES

ATIVISMO JUDICIAL:
Uma análise crítica

Esta monografia de conclusão de curso de graduação em


Direito, apresentada à Faculdade de Direito de Alagoas
(FDA/UFAL) como requisito parcial para obtenção do
grau de Bacharel em Direito, obteve a devida aprovação
perante a presente banca examinadora.

Banca Examinadora:

_________________________________
Presidente:

_________________________________
Membro:

_________________________________
Coordenador do NPE:

Maceió/AL.
Abril/2017.
Resumo: o presente trabalho tem o objetivo de analisar o ativismo judicial, de maneira a
reconhecer os caracteres identificadores que determinam o fenômeno e a sua legitimidade e
constitucionalidade perante os ordenamentos jurídicos edificados sob a égide de um Estado
Democrático de Direito. Para isso, faz-se uma análise dos pressupostos teoréticos,
elementares para a compreensão do tema, enfatizando-se o positivismo jurídico liberal,
algumas teorias críticas ao positivismo clássico e sobre um positivismo reformulado.
Desenvolve-se, também, estudo sobre a evolução da Teoria da Interpretação em que se aborda
algumas teorias hermenêuticas que predominaram desde o surgimento do positivismo clássico
até os moldes atuais da Hermenêutica Jurídica. Por fim, chega-se a uma definição de ativismo
judicial, analisando como esse fenômeno se verifica e se apresenta, contextualizando o tema
em diferentes sistemas jurídicos, bem como aos ditames do denominado Estado Democrático
de Direito.
Palavras chave: positivismo jurídico, ativismo judicial, protagonismo judicial, estado
democrático de direito.
Abstract: the present work aims to analyze judicial activism in order to recognize the
identifying characteristics that determine the phenomenon and its legitimacy and
constitutionality before the legal systems built under the aegis of a Democratic State of Law.
For that, an analysis of the theoretical, elementary presuppositions for the understanding of
the subject is made, emphasizing the liberal legal positivism, some theories critical to the
classic positivism and on a reformulated positivism. Also developed is a study on the
evolution of Interpretation Theory in which some hermeneutical theories that have prevailed
since the emergence of classic positivism to the current molds of Legal Hermeneutics are
developed. Finally, we come to a definition of judicial activism, analyzing how this
phenomenon is verified and presented, contextualizing the theme in different legal systems, as
well as the dictates of the so-called Democratic State of Law.
Key words: legal positivism, judicial activism, judicial protagonism, democratic state of law.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS........................................................................................... 9

1.1 O POSITIVISMO JURÍDICO .......................................................................................... 9

1.2 OUTRAS TEORIAS DOGMÁTICAS ........................................................................... 13

1.3 O VELHO E NOVO POSITIVISMO............................................................................. 16

2. O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO E O POSITIVISMO JURÍDICO ............... 20


2.1 O POSITIVISMO CLÁSSICO E A SUBSUNÇÃO MECÂNICA ................................ 20

2.2 DOS FATOS À NORMA ............................................................................................... 24

2.3 UMA PROPOSTA AO PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO ................................... 27

3. A DOGMÁTICA JURÍDICA E O ATIVISMO JUDICIAL .......................................... 32


3.1 O ATIVISMO JUDICIAL EM ALGUNS PAÍSES ....................................................... 32

3.2 O ATIVISMO JUDICIAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................ 34

3.3 DISCRICIONARIEDADE E INTERPRETAÇÃO........................................................ 38

3.4 ATIVISMO JUDICIAL E INTERPRETAÇÃO CRIATIVA ........................................ 41

3.5 ATIVISMO E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ................................................. 43

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 50

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 53
6

INTRODUÇÃO

Ubi societas, ibi jus – onde está a sociedade, está o direito. Este antigo brocardo
jurídico, expressa, por si só, um conceito axiomático basilar do direito, qual seja: que o direito
é uma manifestação social que existe desde quando os seres humanos passaram a se organizar
em sociedade. Deste modo, é possível afirmar que o direito é um fenômeno universal, embora
possa se apresentar de diferentes formas de acordo com as realidades socioculturais em que
surge.

Neste sentido, o direito nasce como um meio encontrado pelas sociedades para
normatizar comportamentos humanos – e puni-los na hipótese de transgressões – com vistas a
manter a organização e o equilíbrio necessários para a vida em comunidade.

Seguindo esse raciocínio, observa-se que o direito, a princípio, não surge como algo
independente e autônomo, mas sim indelevelmente entrelaçado a estruturas sociais, culturais,
religiosas e costumeiras. Nesta dinâmica, o direito, desde seu nascedouro, parece estar
simbioticamente ligado à ideia de justiça, tendo inclusive, ambas as palavras, origem
etimológica comum da palavra latina jus.

Conquanto direito e justiça tenham a mesma origem e na maioria das vezes se


apresentem como expressão do mesmo fenômeno, noutras, parecem ser conceitos
antagônicos. Esta realidade se verifica quando os ideais de justiça não correspondem ao
direito posto.

Na dialética direito/justiça, as sociedades, por muitas vezes, encontram situações em


que o direito parece não ser justo e a justiça parece não estar amparada pelo direito. Situações
como esta são mais comuns do que se deseja, pois o conceito de justiça é mutável e comporta
várias acepções que se diversificam de acordo com a realidade sociocultural de determinada
sociedade. Nestes casos, surge sempre o questionamento sobre o que deve ser feito. Como
prova, tem-se a célebre frase de Eduardo Couture: “Teu dever é lutar pelo direito; porém,
quando encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça” 1.

Com vistas à efetivação da ideia de justiça, a experiência jurídica, em especial, a


brasileira, apresenta um fenômeno denominado ativismo judicial, que surge na tentativa de
sempre, no caso concreto, obter um resultado justo, segundo critérios subjetivos e através de

1
Cf. COUTURE, Eduardo Juan. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio A. Baptista da Silva e
Carlos Otávio Athayde. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1979, p. 7.
7

um comportamento deveras ativo por parte do julgador, que não necessariamente precisa estar
respaldado integralmente no direito posto. Ou seja, na tentativa de acelerar ou retardar uma
mudança social que entenda justa segundo seu juízo, o julgador, ao julgar, decide através de
critérios de desejo e vontade.

Atualmente, no mundo jurídico, um dos temas mais relevantes e controversos na


efetivação da justiça é o chamado ativismo judicial. Este fenômeno de caráter global tem sido,
por parcela respeitável da doutrina e jurisprudência, quesito de grande debate
científico/dogmático, que propicia, em suma, posições contrapostas quanto à legitimidade,
constitucionalidade, impacto e consequências jurídico-sociais da sua adoção por parte do
Sistema Judiciário.

Tal ativismo judicial, como apresentado, se concretiza na aplicação do direito ao caso


concreto. Ou seja, o juiz, ao julgar, passa a exercer uma função excessivamente ativa na
interpretação e aplicação do ordenamento jurídico vigente ao caso em análise, decidindo
através de um ato de vontade.

A concretização da justiça é o dever-ser histórico do direito e tem como base a pessoa


como fonte de todos os valores. Esta noção serve de premissa para mostrar o caráter dialógico
entre o conceito filosófico de justiça e de Estado Democrático de Direito, que se subtende, em
apertada síntese, como sendo o Estado que cria e se submete ao ordenamento jurídico criado
por ele, sempre através de processos democráticos e tendo como fundamento a dignidade da
pessoa humana.

No Brasil, essa dinâmica se mostra em sua plenitude, posto que o próprio ativismo
judicial, suas consequências e os reflexos que dele decorrem se apresentam à sociedade,
integrante de um Estado Democrático de Direito, que busca a concretização da justiça. Por
isso, é forçoso examinar até que ponto o ativismo judicial é legítimo e possui reflexos
positivos na concretização da justiça em um Estado Democrático de Direito.

Destarte, o presente trabalho tem o objetivo de analisar o ativismo judicial, de modo


que seja provável reconhecer as peculiaridades e os caracteres que identificam o fenômeno,
bem como apontar uma compreensão adequada sobre o objeto de estudo, contextualizando as
conclusões com a realidade brasileira.

Cumpre-se informar, que será realizada uma investigação teórica do tema, utilizando-
se as conclusões para confrontar os resultados com a realidade brasileira, de maneira a retratar
um panorama capaz de informar o leitor sobre os fundamentos conceituais e teorias que
8

lastreiam a pesquisa, do mesmo modo que seja possível indicar os caracteres identificadores
que constituem o fenômeno do ativismo judicial, bem como apresentar um conceito
satisfatório.

Em um primeiro momento, pretende-se discutir alguns pressupostos teoréticos,


elementares para a compreensão do tema, tratando do positivismo jurídico, desde a sua
concepção liberal, até à sua reformulação atual, perpassando por algumas teorias
antipositivistas que tiveram acentuado destaque nesta evolução. Em seguida, serão abordados
itens relativos ao problema da interpretação jurídica em sua dinâmica com os modelos
dogmáticos dominantes ao longo da história do direito moderno, onde se examinará a
problemática interpretativa em relação ao positivismo jurídico, entre outras teorias
dogmáticas, como o realismo e o pragmatismo jurídicos, até os moldes atuais de soluções
interpretativas. Finalmente, planeja-se discorrer sobre o ativismo judicial propriamente dito,
analisando a configuração do evento com base nos fundamentos anteriormente apresentados,
de maneira a ser possível identificar as características definidoras do fenômeno e, desta forma,
apresentar uma conceituação minimamente satisfatória sobre o tema e sua incidência em
diferentes sistemas jurídicos erigidos ante um Estado Democrático de Direito.
9

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.1. O POSITIVISMO JURÍDICO

É sabido que o positivismo jurídico, esteio metodológico de parcela da teoria do


direito moderna, sofreu grandes críticas no século passado, especialmente após a 2ª Grande
Guerra, o que acarretou a reformulação filosófica de seus pressupostos e forte rejeição pelas
teorias denominadas pós-positivistas. Em que pese haver duras críticas ao modelo positivista,
o que se observa, no entanto, é que a ideologia antipositivista é considerada por muitos como
uma retórica tautológica abarrotada de argumentos emocionais, tendo, portanto, reduzido
valor científico 2.

Ao se analisar o direito contemporâneo, verifica-se que, malgrado as teorias pós-


positivistas, os pressupostos metodológicos do positivismo se encontram presentes na
realidade jurídica dos Estados coetâneos, servindo de fundamento instrumental para a
interpretação e aplicação do direito, com vistas à pacificação social.

O positivismo jurídico liberal, mais difundido entre os países ocidentais, tem como
premissa a ideia de que o direito deve ser estudado e entendido enquanto norma jurídica,
separadamente das considerações axiológicas e fáticas a seu respeito. Deste modo, o objeto da
Dogmática Jurídica é, portanto, o direito posto, ou seja, as normas vigentes em determinado
Estado e época, não importando, necessariamente, que correspondam ao ideal filosófico de
justiça de quem as interpreta 3.

Cabe aqui destacar também a existência do juspositivismo ponteano, tal qual proposto
por seu idealizador, Pontes de Miranda, eminente jusfilósofo alagoano, que, conquanto não
seja tão difundido pela comunidade jurídica em geral, trouxe relevantíssimas contribuições
para a Dogmática Jurídica como um todo. Influenciado pelo positivismo filosófico de
Auguste Comte, Pontes de Miranda propugnava pelo estudo do direito com o mesmo rigor
metodológico das chamadas ciências naturais, mas acreditava que, tal como nas ciências
ontológicas, “a missão do cientista consistiria na revelação de leis naturais invariáveis que

2
DIMOULIS, Dimitri, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 32.
3
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 33.
10

explicassem os fenômenos sociais” 4. Dessarte, para Pontes de Miranda, o direito não seria
entendido apenas como norma jurídica, mas, sobremaneira, como resultante da realidade
social, pois, para ele, os fatos sociais estariam sujeitos a leis imutáveis que acabariam por
revelar o direito. Segundo lição do jurista alagoano, destacada por George Sarmento, a
“ciência tirada dos fatos, a ciência positiva implica a mais profunda revolução, a completa
reorganização das sociedades contemporâneas, fundadas todas, em graus diferentes, no
empirismo e na escolástica” 5, e complementa:

Os fatos sociais são estudados como objeto de ciência autônoma, mas com tão
desejado rigor, aprendido nas outras disciplinas, que as suas leis são conferíveis e
verificadas com as das outras, e os seus resultados, depois de comprovados dentro
do domínio sociológico, podem ser submetidos à crítica geral no concerto das
demais ciências.

Embora se observe a pretensão de objetividade metodológica do positivismo jurídico,


isto não exclui a apreciação dos juízos de valor sobre a realidade fática, presentes,
principalmente na nomogênese. Não se pode olvidar que o direito se concentra na prescrição
de condutas humanas, decorrentes de fatos sociais, devidamente valorados e alçados à
tamanha importância que, dentro de sua dinâmica própria, transformam-se em normas
jurídicas.

No mesmo sentido, na atividade de compreender e aplicar as normas postas, a


dimensão axiológica jamais será excluída por completo, tendo o intérprete, a depender das
teorias e métodos hermenêuticos utilizados, maior ou menor autonomia na conformação da
norma ao caso concreto 6.

É nesta linha de entendimento que Herbert Hart, um dos expoentes do positivismo


jurídico moderno, afirma que o direito de todos os Estados modernos sofre influência tanto da
moral social, quanto de ideais morais mais amplos, que são introduzidas no direito, quer de
forma repentina e explícita, por meio da legislação, quer de forma gradual e velada, através da
jurisprudência 7.

4
SARMENTO, George. Direitos Fundamentais e Técnica Constitucional: Reflexões sobre o positivismo
científico de Pontes de Miranda. Disponível em: <http://www.georgesarmento.com.br/wp-
content/uploads/2011/02/T%C3%A9cnica-Constitucional.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2017.
5
SARMENTO, George. Direitos Fundamentais e Técnica Constitucional: Reflexões sobre o positivismo
científico de Pontes de Miranda. Disponível em: <http://www.georgesarmento.com.br/wp-
content/uploads/2011/02/T%C3%A9cnica-Constitucional.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2017.
6
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 33.
7
HART, Herbert Lionel Adolphus. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª edição. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 220.
11

Outra tônica do positivismo jurídico diz respeito a hierarquização das fontes do


direito. É inegável que no mundo moderno o Estado passou a possuir o monopólio na
produção de normas jurídicas, elevando a legislação ao primeiro plano e relegando as outras
fontes normativo-jurídicas ao ostracismo, estas sendo apenas aplicadas subsidiariamente e
desde que não contrariem o direito positivo. Nesta dinâmica, a Constituição dos Estados
passou a ocupar lugar de destaque na produção das normas jurídicas, informando e
conformando todo a ordem jurídica.

O positivismo jurídico ainda possui como elemento-chave a construção teórica que


reconhece os atributos da coercibilidade e da imperatividade do direito. O primeiro se refere à
potencialidade do direito, quando necessário, utilizar-se da força para fazer cumprir suas
prescrições; o segundo diz respeito à obrigatoriedade do comando estatal, não só apenas à
sociedade, como também aos magistrados em seu mister. Tais atributos se encontram
mutuamente associados, de forma que Hans Kelsen chega a afirmar que o ordenamento
jurídico nada mais é do que um conjunto de “proposições enunciando que, sob pressupostos
determinados (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção
(determinados igualmente pela ordem jurídica)” 8.

Contudo, talvez a característica mais importante do positivismo jurídico seja o


conceito de ordenamento jurídico. Esta ideia consiste na concepção de que há uma ordem
jurídica intimamente conectada e logicamente integrada, criando, assim, efetivamente um
único sistema normativo. Este conceito se desdobra em outras duas características, a ideia de
coerência e de completude, esta presumindo que não haveria situação fática, axiologicamente
relevante, que não estivesse prevista no ordenamento jurídico; aquela pressupondo que não
existiriam normas incompatíveis entre si. Para Bobbio, interpretando os ensinamentos de
Radbruch, o princípio da completude do direito “se apresenta necessário para conciliar entre
si dois outros temas juspositivistas fundamentais: aquele segundo o qual o juiz não pode criar
o direito e aquele segundo o qual o juiz não pode jamais recusar-se a resolver uma
controvérsia qualquer” 9.

Porém, não obstante os princípios da coerência e da completude do ordenamento


jurídico serem características marcantes do positivismo jurídico, estas não são absolutas e se
traduzem mais em uma ficção jurídica do que propriamente em uma realidade fática. Destarte,

8
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 62.
9
RADBRUCH, Gustav, apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito.
Compilação de Nello Morra. Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 207.
12

a respeito da coerência em questão, muito embora existam os critérios de solução de


antinomias (critérios hierárquico, cronológico e da especialidade), estes, muitas vezes,
revelam-se insuficientes, posto que em muitos casos é possível a aplicação de mais de um
critério, levando assim a vários resultados diversos, bem como em algumas situações não ser
possível aplicar nenhum dos critérios, visto que as normas antinômicas são contemporâneas,
paritárias e gerais 10. No mesmo sentido, em relação à ideia de completude, Maria Helena
Diniz, ao invocar o pensamento de Karl Engisch, assevera que existem “autênticas lacunas na
ordem jurídica que devem ser colmatadas pelo poder competente, mediante o emprego de
mecanismos jurídicos, a fim de que se mantenha como princípio a completude do sistema
jurídico” 11.

Apesar das severas críticas advindas dos autores denominados neoconstitucionalistas


no intento de demonstrar a superação do positivismo jurídico, o que se verifica é que estes
ainda se encontram intimamente vinculados à metodologia positivista, embora não admitam.
As críticas são carregadas, quase que exclusivamente de argumentos emocionais, como o
discurso reductio ad Hitlerum, ou seja, para rejeitar o positivismo jurídico, propaga-se a ideia
de que este serviu de base para o regime nazista. Nas palavras de Dimitri Dimoulis: isto
“permite rejeitar imediatamente essa teoria ou visão política, já que ninguém aceitaria, em
nossos dias, defender o pensamento nazista. Temos aqui um artifício retórico que objetiva
desqualificar os adversários sem análise da substância” 12. Neste sentido, é importante
salientar que o referido autor, “com esteio em argumentação lógica e profusamente
documentada, refuta a existência de qualquer contribuição do positivismo germânico ao
nazismo” 13.

Vê-se, pois, que o positivismo jurídico não está superado. Na verdade, seus
fundamentos metodológicos servem de base para todas as correntes teóricas do direito
moderno, bem como possuem caráter instrumental na aplicação das normas jurídicas. Tanto é
assim, que Norberto Bobbio, conclui que, caso se pretenda fazer ciência jurídica ou teoria do

10
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 205 et seq.
11
DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 72 et seq.
12
DIMOULIS, Dimitri, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 255.
13
DIMOULIS, Dimitri, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 255.
13

direito, é indispensável que seja utilizado o método positivista, pois do contrário, se estaria
fazendo filosofia ou ideologia do direito 14.

1.2. OUTRAS TEORIAS DOGMÁTICAS

Como já mencionado, o positivismo jurídico, desde a sua gênese, foi alvo de duras
críticas, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, período no qual se presenciou a
nefasta realidade dos regimes nazifascistas, que supostamente fundamentaram suas ações com
base nas teorias positivistas. Algumas destas críticas resultaram na revisão de alguns dos
aspectos da doutrina positivista, outras se afastaram por completo do positivismo, criando
concepções teóricas alternativas em oposição ao positivismo jurídico. Grande parte das
doutrinas antipositivistas se mostraram inadequadas quando experimentadas concretamente,
entretanto, “certas vertentes de Teoria do Direito (...) se colocam no cenário atual como
autênticas alternativas ao positivismo jurídico, chegando mesmo a lhe roubar a primazia
teorética, conquanto, em termos de funcionamento efetivo do sistema jurídico, nada pareça
ameaçar-lhe a predominância” 15.

Como exemplo, faz-se necessário citar a chamada Jurisprudência dos Interesses de


Jhering e Philipp Heck, que censurou fervorosamente a Jurisprudência dos Conceitos
(doutrina positivista em ascensão na Alemanha no século XIX), que pregava uma valoração
demasiada do raciocínio dedutivo e do formalismo abstrato 16. Insta salientar que as principais
diferenças entre estas escolas teoréticas se verificam nos métodos interpretativos e na
consequente aplicação do direito. A Jurisprudência dos Interesses não retirou da lei a posição
de principal fonte do direito, mas esta passou a ser entendida não mais “como um produto da
razão abstrata e sim de interesses concretos dos membros da comunidade” 17. Desse modo, a
Jurisprudência dos Interesses propõe que o aplicador do direito deve conhecer “com rigor,
historicamente, os interesses reais que causaram a lei e de tomar em conta, na decisão de cada
caso, os interesses que assim se descobriram” 18. No entanto, é importante notar que a

14
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 238.
15
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 39.
16
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 39.
17
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 39.
18
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José de Souza Brito et al. 2ª edição alemã.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p. 53.
14

Jurisprudência dos Interesses permanece restrita aos limites impostos pelo legislador, mas
agora conectado à realidade social, não sendo, portanto, uma negação ao positivismo e sim, na
verdade, uma revisão crítica de tal teoria. Nas palavras de Heck 19:

Esse estudo levará à conclusão de que a forma de interpretação das leis que melhor
satisfaz os interesses práticos é constituída pela investigação histórica dos interesses.
É uma interpretação histórica – adota os métodos da investigação histórica – mas
não exclusivamente subjetiva: deve procurar sim os pensamentos exteriorizados ou
revelados por meio do ato legislativo, mas a sua ação retrospectiva deve ir mais
longe, até aos interesses determinantes da lei, aos interesses causais. Além disso não
exclui a criação judicial do direito, antes supõe o seu contínuo desenvolvimento
jurisprudencial. Se a toda essa atividade de determinação do direito se quiser chamar
interpretação, esta será histórico-teleológica.

Também na Alemanha, aprofundando ainda mais a crítica realizada pela


Jurisprudência dos Interesses, surge a Teoria do Direito Livre, corrente teórica que rompeu,
efetivamente, com a teoria positivista vigente. Esse movimento criticava veementemente a
subsunção mecânica realizada pelo positivismo do século XIX, propugnando pela ampliação
da liberdade interpretativa do aplicador do direito, acarretando em um subjetivismo que
eliminava totalmente a vinculação do juiz aos limites normativos estabelecidos na legislação,
pois “é a vontade de chegar a uma decisão já antecipadamente conhecida que preside à
escolha dos lugares da lei que permitem fundamentar essa decisão” 20. No entanto, não
obstante alguns autores declararem que o Movimento do Direito Livre não surtiu efeitos
significativos e duradouros na Dogmática Jurídica, chegando até mesmo a afirmar que tal
corrente teórica não passou de “uma ventania romântica que assolou os domínios da
Jurisprudência” 21, o que se observa é que, ainda hoje, o ideário do Direito Livre pode ser
encontrado disseminado nas mais diversas decisões judiciais.

Em uma visão geral, existem duas grandes correntes teóricas que se afastam do
positivismo jurídico em sentido estrito e que exercem grande influência na Dogmática
Jurídica. Uma delas é “a vertente sociológica, que, em oposição ao normativismo positivista,
desloca o foco de análise para os elementos fáticos do fenômeno jurídico, principalmente para
a contribuição das decisões judiciais na conformação pragmática do direito” 22. A outra, por

19
HECK, Philipp. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses. Tradução de José Osório. São Paulo:
Saraiva, 1947, p. 10.
20
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José de Souza Brito et al. 2ª edição alemã.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p. 71.
21
ASCOLI, Max, apud REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª edição. São Paulo: Editora
Saraiva, 2002, p. 289.
22
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 40.
15

sua vez, é “a vertente filosófica ou axiológica, que tenta recuperar, conquanto de modo
restrito, o antigo postulado jusnaturalista de identificação entre direito e moral” 23.

Talvez o principal modelo dogmático de matriz sociológica seja o Realismo Jurídico.


Tal corrente teórica se desenvolveu no início do século XX, nos Estados Unidos, onde passou
a exercer grande influência teórica e prática. O Realismo Jurídico rompe com o positivismo,
em especial quanto à hierarquização das fontes normativo-jurídicas, posto que, como bem se
evidencia no trecho de discurso do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Charles Evans
Hughes: “a Constituição é o que os juízes dizem que é” 24. Destarte, a jurisprudência assume o
posto de principal fonte do direito, relegando a legislação ao segundo plano, resultando em
uma inversão de sentido em relação à teoria positivista. Nas lições de Dimitri Dimoulis,
segundo o Realismo Jurídico, o direito seria um mero “conjunto de fatos, isto é, de decisões
efetivamente tomadas (ou condutas assumidas) em relação a um caso e empiricamente
constatáveis” 25. É importante salientar que o Realismo Jurídico “com sua concepção
instrumental de direito foi retomado na década de oitenta, porém então renomeado para
pragmatismo jurídico” 26.

Por sua vez, as correntes teóricas que de algum modo pretendiam aproximar o direito
da moral, sem defender, no entanto, o retorno ao jusnaturalismo, são espécies da vertente
axiológica de cunho antipositivista. Esta alternativa teórica recebeu a denominação de
Moralismo Jurídico, posto que segundo os ensinamentos do ilustre Miguel Reale, aos juristas
que “não compreendem juridicidade indiferente à licitude ou à ilicitude moral da conduta
prescrita ou proibida, vinculando o Direito à Moral de maneira absoluta, damos o nome
genérico de moralistas, na falta de melhor qualificação” 27. Como expoentes do Moralismo
Jurídico, pode-se identificar a doutrina e jurisprudência alemãs após a Segunda Grande
Guerra, neste ponto, como bem assegura Habermas, “para o Tribunal Constitucional Federal,
a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha não constitui um sistema de regras
estruturado através de princípios, mas uma ‘ordem concreta de valores’” 28. É neste mesmo

23
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 40.
24
HUGHES, Charles Evans, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª
edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 40.
25
DIMOULIS, Dimitri, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 41.
26
POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 147, Rio de Janeiro: ago./dez. 2000, p.125.
27
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 464.
28
HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p. 315.
16

sentido que Alexy estende sua teoria dos direitos fundamentais, de modo a identificar, ainda
que implicitamente, a existência de uma ordem externa de valores que serve de referência
para o direito positivo, pois ainda que, segundo a referida teoria, os direitos fundamentais
sempre emanem de normas jurídicas positivas, “sejam elas princípios ou regras, essas normas
são por ele equiparadas a valores, compondo um quadro de preferências dotado de um
mínimo de objetividade e que, como tal, se impõe ao próprio Constituinte originário” 29. Essa
ordem objetiva de valores, para o Moralismo Jurídico, portanto, acaba por influenciar a
atividade de interpretação e aplicação do direito, na tentativa de corrigir os desvios
axiológicos existentes nos textos normativos, através da liberdade discricionária resultante de
conceitos indeterminados e normas principiológicas. Porém, em se tratando do Moralismo
Jurídico, acaba-se tendo como resultado a crença na existência da “única solução correta” .

1.3. O VELHO E NOVO POSITIVISMO

Neste ponto, faz-se necessário compreender os pressupostos hermenêuticos que se


vinculam à determinada teoria do direito para que seja possível distinguir, em relação aos
saberes específicos da Dogmática Jurídica, os limites impostos à liberdade criativa da função
jurisdicional e, desta forma, reconhecer os parâmetros capazes de identificar o ativismo
judicial. Pois, como bem adverte Habermas, a teoria do direito, “ao contrário das teorias
filosóficas da justiça, movimenta-se nos limites de ordens jurídicas concretas”, obtendo “os
seus dados do direito vigente, de leis e casos precedentes, de doutrinas dogmáticas, de
contextos políticos da legislação, de fontes históricas do direito etc.” 30

Entre os três modelos dogmáticos, já referidos, que são reconhecidamente prestigiados


na atualidade (Positivismo, Realismo (Pragmatismo) e Moralismo Jurídicos), não se pode
negar que, caso se queira acrescentar cientificidade à teoria do direito, não se pode deixar de
aplicar, em maior ou menor grau, os pressupostos metodológicos positivistas.

Não obstante as críticas sofridas pelo positivismo jurídico e os ajustes que passou ao
longo dos anos, as bases do positivismo continuam firmes. Na lição de Elival da Silva
Ramos 31, “não se registram controvérsias relevantes sobre a relação necessária existente entre

29
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 43.
30
HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p. 243 et seq.
31
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 46.
17

coação e ordenamento jurídico, vista essa característica de uma perspectiva sistêmica”, e


complementa, afirmando que o mesmo acontece “quanto à imperatividade do direito,
registrando-se razoável consenso doutrinário em torno da configuração das normas jurídicas
como proposições prescritivas hipotéticas”.

Do mesmo modo, a concepção do direito como sistema normativo permanece, ainda


que a pretensão de completude e coerência já tenham sido relativizadas e incorporadas à
teoria positivista. Como adverte Norberto Bobbio 32, “um ordenamento jurídico não é
necessariamente coerente, porque podem existir no âmbito do mesmo ordenamento duas
normas incompatíveis e serem ambas válidas (a compatibilidade não é um critério de
validade)”, da mesma forma que “um ordenamento jurídico não é necessariamente completo,
porque a completitude deriva da norma geral exclusiva, ou norma de clausura, que na maior
parte dos casos – excluído o direito penal – não existe”.

Por fim, resta claro que não assiste razão à crítica feita ao chamado “legalismo
positivista”, posto que não há, como característica fundamental do positivismo jurídico, a
primazia da lei, em sentido estrito, sobre as demais fontes do direito. O que há, na verdade,
como postulado positivista, é a supremacia das fontes estatais sobre as demais fontes do
direito, resultando, por assim dizer, em um “estatismo positivista”. Destarte, é um equívoco
afirmar que “a suplantação da lei pela Constituição, no plano das fontes do direito (interno),
dando ensejo ao chamado Estado Constitucional de Direito” tenha afetado a Dogmática
positivista, pois tal fato não diz “respeito a um elemento essencial e sim meramente acidental
ou conjuntural dessa vertente teorética, presente na obra de autores europeus que produziram
trabalhos anteriormente à consolidação da jurisdição constitucional na Europa” 33.

No entanto, é na teoria da interpretação que o positivismo jurídico demonstra sua


principal deficiência teórica. Esta deficiência não deriva do postulado positivista, como
comumente se propala, da subsunção mecânica dos fatos à norma, mas é resultado, isto sim,
da pouca dedicação teórica à interpretação e aplicação do direito, bem como seus
desdobramentos sobre a argumentação jurídica. Thamy Pogrebinschi, tomando como
referência a obra de Kelsen, afirma que “o positivismo jurídico, tal como elaborado por
Kelsen, pode ser encarado antes como uma ciência que quer descrever o seu objeto, o direito,

32
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 237.
33
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 48.
18

do que como uma teoria sobre a aplicação deste mesmo objeto” 34. Neste mesmo sentido,
Dimoulis 35:

Confirma-se, assim, que muitos representantes do PJ stricto sensu negligenciaram a


teoria da interpretação, expondo-se à acusação de propor uma teoria do direito
formalista e incompleta – se não totalmente vazia. Essa crítica se baseia no fato de a
maioria dos partidários do PJ stricto sensu não examinar as conexões do direito com
outros fenômenos e sistemas normativos, ignorando as relações sociais que explicam
a criação e as formas de aplicação das normas jurídicas. (...). Isso indica a ausência
de uma teoria juspositivista no âmbito da interpretação.

O positivismo jurídico não pretende necessariamente produzir um conhecimento


puramente isolado da realidade social e do aspecto axiológico que a cerca e, por isso, não se
pode renegar estas variáveis na tarefa hermenêutica do intérprete-aplicador. Esta tarefa,
contudo, é diferente da empreendida pelos representantes políticos, posto que estes exercem
uma prática político-legislativa, que compreende uma grande margem de liberdade na
elaboração das normas jurídicas, ao passo que ao juiz, resta respeitar essas escolhas feitas pelo
legislativo, sendo-lhe apenas facultado “a movimentação permitida pela normatização das
escolhas políticas primárias” 36. Por este motivo, é importante levar em consideração o
conhecimento agregado pelas disciplinas jurídicas de cunho zetético, como a Filosofia e
Sociologia do Direito, no exercício de interpretação e aplicação do direito 37.

Por isso, atualmente, o positivismo jurídico não se encaminha no sentido de ser


unicamente reflexivo, mas, sobretudo, integral, ou seja, que se perfaça através da dinâmica da
tridimensionalidade do direito, como proposta por Miguel Reale, levando em consideração
fato, valor e norma. Constata-se que o aparecimento “de cada regra jurídica marca o momento
culminante de uma experiência jurídica particular, a qual é solidária das demais, através de
conexões múltiplas, umas aparentes e facilmente identificáveis, outras subentendidas ou
ocultas nas tramas das relações sociais”. Por isso, pode-se dizer que “os valores são como que
fachos luminosos que, penetrando na realidade social, se refrangem em um sistema dinâmico
de normas, cada uma delas correspondente a uma decisão” 38.

34
POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 147, Rio de Janeiro: ago./dez. 2000, p.137.
35
DIMOULIS, Dimitri, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 261.
36
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 50.
37
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 8ª
edição. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015, p. 40.
38
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 532.
19

Feitas estas considerações iniciais, assentando o positivismo jurídico reformulado


como modelo dogmático paradigma por excelência, cumpre-se analisar o positivismo jurídico,
e algumas outras teorias relevantes, em relação ao seu aspecto interpretativo e os problemas
daí decorrentes, o que ficará a cargo do próximo capítulo.
20

2. O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO E O POSITIVISMO JURÍDICO

2.1. O POSITIVISMO CLÁSSICO E A SUBSUNÇÃO MECÂNICA

É propagado pelos antipositivistas que uma das bases do positivismo seria a aplicação
dos textos normativos através de simples operação lógica de subsunção, na qual o julgador se
limitaria apenas a enquadramento mecânico dos fatos ao supedâneo normativo. Neste sentido,
afirma Paulo Bonavides 39 que:

Os que intentam, todavia, restaurar a era do positivismo formalista e legalista já não


têm voz, nem vez. A dogmática interpretativa tradicional, como hermenêutica
constitucional, possui hoje pouca ou nenhuma serventia. O método silogístico,
dedutivo, arrimado à subsunção, cede lugar ao método axiológico e indutivo que,
com base nos princípios e nos valores, funda a jurisdição constitucional
contemporânea, volvida mais para a compreensão do que para a razão lógica, de
sentido formal, na aplicação da lei.

O processo subsuntivo, é importante ressaltar, trata-se de uma operação lógica


imanente a todo processo de aplicação de normas jurídicas. Como bem destaca Elival da Silva
Ramos 40, a subsunção “pressupõe a fixação inicial de um sentido provisório para a proposição
prescritiva que serve como premissa maior, já tendo em vista as aplicações concretas que a
partir dela se anteveem, bem como um manejar subsequente dos dados fáticos (premissa
menor)”, desembocando na fixação da chamada norma de decisão.

A atividade de interpretar, segundo Bobbio 41, pode ser considerada como a ação de
“remontar do signo (signum) à coisa significada (designatum), isto é, compreender o
significado do signo, individualizando a coisa por este indicada”, que às vezes pode prestigiar
a expressão textual (signo), e outras fazer prevalecer a norma extraída do texto (coisa
significada). E complementa, afirmando que existem ainda a interpretação estática e a
interpretação dinâmica, a depender da atividade do intérprete ser tendenciosa unicamente à
reconstrução fidedigna do que queria dizer o autor dos signos, objeto da interpretação, “ou,
vice-versa, tender ao enriquecimento do significado dos signos interpretados, para adequá-lo
às exigências das variadas circunstâncias histórico-sociais”.

39
BONAVIDES, Paulo. Jurisdição Constitucional e Legitimidade (algumas observações sobre o Brasil). In:
Estudos Avançados, vol. 18, n. 51, São Paulo: mai./ago. 2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200007>. Acesso em: 30 mar.
2017.
40
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 53.
41
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 212 et seq.
21

O contraste entre as posturas subjetivistas e objetivistas, na tarefa interpretativa,


instiga as discussões no campo hermenêutico desde os primórdios do positivismo jurídico. Na
lição de Karl Engisch 42:

Antes, é precisamente aqui que começa a problemática central da teoria jurídica da


interpretação: O conteúdo objectivo da lei e, consequentemente, o último “escopo da
interpretação”, são determinados e fixados através da “vontade” do legislador
histórico, manifestada então e uma vez por todas de modo que a dogmática jurídica
deva seguir as pisadas do historiador – não, claro está, em razão da história, mas em
razão da própria matéria em causa –, ou não será, pelo contrário, que o conteúdo
objectivo da lei tem autonomia em si mesmo e nas suas “palavras”, enquanto
“vontade da lei”, enquanto sentido objectivo que é independente do mentar e do
querer “subjectivos” do legislador histórico e que, por isso, em caso de necessidade,
é capaz de movimento autónomo, é susceptível de evolução como tudo aquilo que
participa do espírito “objetivo”?

Na França, em 1804, após a entrada em vigor do Código Napoleônico, o dualismo


existente entre direito natural e direito positivo foi substituído pelo positivismo jurídico, que
garantia a supremacia das fontes estatais sobre as demais fontes jurídicas. Segundo Elival da
Silva Ramos 43:

No entanto, a supremacia da lei não se fundava apenas na necessidade de superar as


instituições do Ancien Régime, mas, também, em duas qualidades que então se
atribuíam ao ato legislativo: a) a legitimidade política, por constituir emanação
direta do Parlamento, em que se encarnava o princípio da soberania popular,
finalmente vitorioso em face do princípio monárquico que se lhe contrapunha; b) a
legitimidade ética, na medida em que a lei nada mais era do que “a expressão da
vontade geral” e esta, fruto da razão, era sempre reta e tendia sempre para a utilidade
pública.

Embora se observasse que o positivismo jurídico predominante à época tivesse como


um dos fundamentos o princípio da supremacia da lei, isto, na verdade, resultava na
supremacia do Parlamento, órgão que monopolizava a atividade legiferante. Deste modo, o
esquema da separação dos Poderes tendia para o predomínio do Poder Legislativo sobre os
demais poderes constituídos, precisamente porque a lei “que dele provém é a pauta a que se
devem ajustar quer o Executivo, quer o Judiciário” 44.

Neste momento histórico, ao Judiciário restou apenas a tarefa de aplicação da lei, da


maneira mais neutra possível, respeitando, assim, a vontade do legislador, que deveria ser
aplicada mecanicamente pelo julgador. É por isso que Montesquieu afirmara que o Judiciário

42
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1965, p. 140.
43
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 54.
44
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Reconstrução da Democracia: ensaio sobre a
institucionalização da democracia no mundo contemporâneo e em especial no Brasil. São Paulo: Editora
Saraiva, 1979, p. 176.
22

é um poder invisível e nulo e que os juízes “são apenas a boca que pronuncia as palavras da
lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o rigor” 45. É neste
instante que nasce a tese positivista da separação entre direito e política, que, nesse momento,
foi levada ao extremo, pois se entendia que a decisão política, uma vez positivada pelo
legislador, deveria ser considerada pelo Judiciário de um modo puramente técnico. Elival da
Silva Ramos ensina que 46:

Essa neutralidade técnica era, sem dúvida, facilitada pelo dogma de que a lei era a
expressão da vontade geral e, portanto, dotada de intrínseca conformidade ao padrão
de justiça construído pela ideologia liberal de modo racional, abstrato e à margem de
qualquer relação com os fatos históricos. Como já se viu, a rigidez da dicotomia
direito/política começa a se atenuar com o advento da teorização conhecida por
Jurisprudência dos Interesses.

É de se reconhecer que, para o momento histórico em que se desenvolveram tais


acontecimentos, foi de grande importância o surgimento do positivismo jurídico, tal qual
como foi abordado, pois a sociedade francesa buscava a contenção do poder, em oposição aos
abusos do absolutismo, bem como igualdade de direitos, em reação aos privilégios feudais. A
supremacia da lei, juntamente com o princípio da separação dos Poderes, foram, portanto, a
melhor solução para os problemas que assolavam a sociedade francesa, pois eliminavam o
arbítrio estatal e asseguravam a igualdade de direitos a todos. Além de tais benefícios, tal
circunstância também propiciava a segurança jurídica, pois possibilitava o prévio
conhecimento do que podia ou não podia ser feito. Neste sentido, Bobbio assevera que 47:

Um outro fator de natureza também ideológica é representado pelo princípio da


certeza do direito, segundo o qual os associados podem ter do direito um critério
seguro de conduta somente conhecendo antecipadamente, com exatidão, as
consequências de seu comportamento. Ora, a certeza só é garantida quando existe
um corpo estável de leis, e aqueles que devem resolver as controvérsias se fundam
nas normas nele contidas e não em outros critérios.

Estes fatores, associados a alguns outros mais particulares à realidade social francesa,
acabaram por influenciar o surgimento da chamada Escola Exegética, que foi, talvez, a
primeira manifestação teórica totalmente lastreada nos pressupostos positivistas.

A Escola da Exegese sustentava que o exegeta deveria buscar sempre a vontade do


legislador e a ela se fixar de maneira intransponível. O método interpretativo dominante era o

45
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina
Murachco. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 175.
46
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 265.
47
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 79 et seq.
23

gramatical, complementado pelo histórico. Deste modo, o julgador não possuía liberdade
interpretativa, limitando-se apenas à mera subsunção mecânica dos enunciados normativos
aos fatos concretos. Deste modo, ao Judiciário era vedada a atividade criativa na
interpretação-aplicação das normas jurídicas, de maneira a influir na criação do direito, sendo
apenas permitido, aos magistrados, a ação declaratória ou cognoscitiva que exprimisse a
vontade estrita do legislador. De acordo com Bobbio 48:

Se o único direito é aquele contido na lei, compreendida como manifestação escrita


da vontade do Estado, torna-se então natural conceber a interpretação do direito
como a busca da vontade do legislador naqueles casos (obscuridade ou lacunas da
lei) nos quais ela não deflui imediatamente do próprio texto legislativo, e todas as
técnicas hermenêuticas – estudo dos trabalhos preparatórios, da finalidade para a
qual a lei foi emitida, da linguagem legislativa, das relações lógico-sistemáticas
entre uma dada disposição legislativa e as outras disposições etc. – são empregadas
para atingir tal propósito.

Com o tempo, percebeu-se que as vicissitudes da vida eram tantas e tão diversas que
jamais seria possível que o legislador as previssem com antecedência. Destarte, a tarefa do
magistrado encontrava um ponto de estrangulamento que não conseguia ser resolvido com
base nos pressupostos teóricos propostos. Essa deficiência do positivismo clássico em matéria
interpretativa foi percebida não só pelas correntes teóricas que se seguiram ao positivismo,
como também pelo próprio pensamento positivista. A própria corrente positivista foi forçada
a reconhecer que seria necessário uma maior liberdade na tarefa de interpretação-aplicação
das normas jurídicas, reconhecendo-se, desta forma, um sopro criativo à jurisprudência.

O grande nome a defender tal ideia foi Hans Kelsen, talvez o jurista que melhor
simbolize o positivismo jurídico, despendeu severa crítica à tese da subsunção mecânica, ao
afirmar que 49:

A ideia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do


ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida
através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente, é uma
autoilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma
interpretação.

Em sua Teoria Pura do Direito, prossegue declarando que a criatividade é algo


inerente ao processo de interpretação e aplicação das normas jurídicas 50:

48
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 87.
49
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 368.
50
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 369.
24

Assim como da Constituição, através da interpretação, não podemos extrair as


únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as
únicas sentenças corretas. De certo que existe uma diferença entre estes dois casos,
mas é uma diferença somente quantitativa, não qualitativa, e consiste apenas em que
a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais
reduzida do que a vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais
livre na criação do Direito do que este. Mas também este último é um criador do
Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre. (...) Se queremos
caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades
administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada
pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um
órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de
conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o
órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas
através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida
uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na
norma jurídica aplicanda.

Verifica-se, no entanto, que Kelsen, ao fazer tal crítica, manteve as questões relativas
ao uso da argumentação jurídica e à Teoria da Interpretação afastadas da Dogmática, apenas
desmistificando a atividade puramente declaratória do julgador ao aplicar o direito.

2.2. DOS FATOS À NORMA

Conforme destaca Miguel Reale, vários juristas vislumbraram na perspectiva fática “o


grande instrumento de libertação da Jurisprudência das garras de uma ordenação legal
relativamente estática, em perene conflito com o cambiante drama coletivo” 51.

Não obstante o interesse comum sobre os fatos sociais, faz-se necessário destacar que
a transferência do foco de atenção das normas aos fatos se deu de maneira bastante diferente
entre os sistemas de common law e de civil law. Na Europa, entre os séculos XIX e XX,
registra-se o aparecimento do denominado “sociologismo jurídico”, que se preocupava,
principalmente, em analisar a realidade social, de maneira a persuadir o legislador a
transformar em lei as necessidades e os interesses da sociedade. Esse movimento lançou as
bases do que viria a ser a Sociologia do Direito, mas, no que diz respeito ao funcionamento do
sistema jurídico, pouco se afastou do positivismo. Ao contrário, ao garantirem legitimidade
social aos textos normativos, acabaram por conduzir a um normativismo exacerbado. É nesse
sentido a conclusão de Miguel Reale 52:

Se para os empiristas a norma resulta de condições impostas pelas circunstâncias do


viver social, e se para um apriorista a norma é condição lógica de condutas
possíveis; se há, pois, uma diferença essencial no modo de conceber a

51
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 422.
52
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 423.
25

condicionalidade ínsita no conceito de norma, não é menos certo que podem


empiristas e aprioristas descambar para o mais exacerbado “normativismo”.

Ainda complementa o jusfilósfo brasileiro 53:

O Direito, no fundo, reflete as preferências do legislador; é o legislador quem decide


sobre o Direito in concreto e seus modos de atualização. A teoria de Duguit leva-
nos, assim, à conclusão de que o Direito é um complexo de regras técnicas com as
quais o legislador, com maior ou menor sucesso, busca realizar certas aspirações
dominantes do povo. (...) Como se vê, apesar de sua fundamentação empírica, a
doutrina de Duguit culmina em um normativismo que foi justamente considerado
exacerbado.

Já nos Estados Unidos, por exemplo, que possui um sistema jurídico de vertente
anglo-saxônica, elevando, desta forma, a jurisprudência à condição de fonte primária do
direito, o “sociologismo” culminou na corrente doutrinária do “realismo jurídico”. É sabido
que, por possuir um sistema em que o direito é construído a partir de decisões judiciais, que
possuem maior proximidade com os fatos do que as leis, e que são menos vinculativas em
relação ao processo de aplicação do direito, os Estados Unidos, apresentou-se como fecundo
ambiente para o desenvolvimento da ideia de que o julgador cria o direito unicamente com
base nas consequências sociais da norma concreta por ele expedida.

Para o realismo jurídico, o julgador deve exercer sua função livre de qualquer moldura
normativa estabelecida previamente, seja lei ou precedente judicial, desta forma, afastando-se,
desde logo, a possibilidade de um raciocínio subsuntivo. Destarte, por não estar vinculado ao
marco normativo representado pelas fontes formais, o “realista”, nunca irá declarar ou
reproduzir um direito preexistente. Neste caso, para o realismo jurídico, a criação do direito é
baseada diretamente nas fontes materiais, que são os fatos sociais relevantes à construção da
norma de decisão pelo magistrado. Vale ressaltar que o realismo não defende a ideia de que
não se deve levar em consideração as fontes formais do direito, no entanto, as leis,
precedentes e costumes jurídicos, devem ser considerados em sua condição de fato social,
portanto, situados no âmbito das fontes materiais. “O direito vigente propriamente dito
somente aflora após a concretização da norma de decisão pelo juiz” 54. De acordo com Thamy
Pogrebinschi 55:

O direito tornar-se-ia positivo ou positivado após ser aplicado pelo juiz e não
quando promulgado pelo legislador. Ou seja, antes de ser aplicada, a norma jurídica
constituiria apenas um dentre os diversos recursos e materiais dos quais o juiz pode

53
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 437.
54
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 60.
55
POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 147, Rio de Janeiro: ago./dez. 2000, p. 128.
26

se valer. Ela seria, sim, uma fonte autoritativa, mas não seria ainda uma norma
válida. O que confere validade às normas para os pragmatistas é a sua aplicação.

O realismo jurídico, ao movimentar o referencial do aplicador do direito para o


domínio dos fatos em detrimento da norma, terminou por ignorar, quase que completamente,
a teoria da interpretação, produzindo quase nada a esse respeito. Deste modo, “pensar o
Direito de forma pragmatista implica mesmo desconsiderar a ideia de interpretação judicial”,
porque “o juiz pragmatista não interpreta, ele considera consequências de decisões
alternativas”. Ou seja, “de todas as possibilidades de decisão, o pragmatista tentará supor
consequências, e, do confronto destas, escolherá a que lhe parecer melhor” 56. É nessa linha a
exposição de Elival da Silva Ramos 57:

Destarte, sob o ângulo do condicionamento normativo da atividade do aplicador e da


fixação do sentido dos textos balizadores, previamente à construção da norma de
decisão, pode-se dizer que o realismo jurídico redunda em uma posição cética, por
não acreditar na existência de norma jurídica antes da decisão judicial criativa e por,
consequentemente, tornar desnecessária ou sem importância a sua exegese.

É importante salientar que o pragmatismo jurídico também apresenta a mesma


concepção cética presente no realismo jurídico, diferenciando-se, no entanto, sob o prisma da
legitimidade do direito. Para o pragmatismo, esclarece Ronald Dworkin que 58:

O pragmático adota uma atitude cética com relação ao pressuposto que acreditamos
estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado,
por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do
Estado. Ele encontra a justificativa necessária à coerção na justiça, na eficiência ou
em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva, como e
quando ela é tomada por juízes, e acrescenta que a coerência com qualquer decisão
legislativa ou judicial anterior não contribui, em princípio, para a justiça ou a virtude
de qualquer decisão atual.

Este ceticismo do realismo jurídico em relação à formulação de normas gerais e


abstratas desvinculadas dos fatos apresentados no caso concreto, acaba por fomentar uma
insegurança jurídica que decorre da impossibilidade de antecipação normativa das condutas
lícitas ou ilícitas. O pragmatismo jurídico, ao tentar recuperar o modelo dogmático do
realismo, identificou essa consequência perniciosa e tentou superá-la trazendo uma maior

56
POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 147, Rio de Janeiro: ago./dez. 2000, p. 126 et seq.
57
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 60.
58
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 119 et seq.
27

sofisticação através da Teoria da Argumentação. No magistério de Elival da Silva Ramos,


com base na doutrina de Dworkin 59:

Um juiz pragmatista “tentaria encontrar o exato equilíbrio entre a previsibilidade


necessária para proteger as valiosas instituições da legislação e do precedente e a
flexibilidade necessária a si mesmo, e a outros juízes, para aperfeiçoar o direito
através do que fazem no tribunal”, sendo que um magistrado com esse perfil “estaria
pronto a rever sua prática ao ampliar ou reduzir o alcance daquilo que considera
como direitos, à medida que a experiência aperfeiçoasse os cálculos complicados
dos quais dependeria qualquer estratégia desse tipo”. Em suma, a sofisticação
argumentativa alcançada pelo pragmatismo, no sentido de disfarçar as restrições de
base no que concerne à validade formal de atos legislativos e precedentes judiciais
(os direitos “como se” a que se refere Dworkin), resulta em “uma doutrina atenuada
de respeito às leis e aos precedentes”.

Vê-se, pois, que é possível chegar à conclusão de que as fontes formais, nestes
modelos dogmáticos, serviriam, na verdade, como um álibi justificativo ao juiz, que, deste
modo, preencheria de legitimidade sua decisão, ao passo que, de fato, estaria, o julgador, a
decidir com base em motivos subjetivos ou pessoais. Contudo, não se pode afirmar
categoricamente que os realistas ou pragmáticos ignorem por completo o conteúdo normativo
emanado dos textos legais, ainda que estes, efetivamente, sirvam simplesmente como
elementos de fundamentação racional de suas decisões.

2.3. UMA PROPOSTA AO PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO

Como já se viu, a atividade do exegeta acontece de maneira dialética entre dois


extremos, na qual o intérprete-aplicador (sujeito cognoscente) busca compreender o sentido
do texto normativo (objeto cognoscível). Miguel Reale explica que os textos normativos, por
serem objeto cultural de natura deontológica, não podem ser explicados e sim compreendidos,
pois, “explicar consiste em ordenar os fatos segundo nexos ou laços objetivos e de
causalidade ou de funcionalidade. (...) Compreender é ordenar os fatos sociais ou históricos
segundo suas conexões de sentido, o que quer dizer, finalisticamente, segundo uma ordem de
valores” 60.

O juspositivismo liberal, como já mencionado, com as contribuições de Kelsen, se


preocupava apenas com as prescrições jurídicas, extraídas dos textos normativos através de
um procedimento cognoscitivo e aplicadas pelos julgadores mediante atividade de cognição e
criação, esta última alheia à Dogmática. O realismo e o pragmatismo jurídico, por sua vez,

59
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 61.
60
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 86.
28

como bem aponta Elival da Silva Ramos, diferentemente, voltam sua preocupação para o
intérprete-aplicador, “adotando uma visão cética no tocante à utilidade da compreensão de
textos legislativos ou de precedentes judiciários, salvo como mero recurso argumentativo,
com o que provocam o esvaziamento da própria Teoria da Interpretação” 61. Vê-se pois, que o
desenvolvimento da Hermenêutica Jurídica até os contornos que possui atualmente se deu,
sobremaneira, pelo encontro do ponto de equilíbrio entre essas duas orientações.

Esse desenvolvimento da Hermenêutica Jurídica, teve a influência de abordagens


interdisciplinares e amplas do fenômeno interpretativo, em especial a obra de Emilio Betti
sobre Teoria da Interpretação. O jurista italiano dividiu a interpretação em três modalidades:
interpretação recognitiva, interpretação reprodutiva ou representativa, e interpretação
normativa. Segundo Betti, nas palavras de Elival da Silva Ramos, a interpretação jurídica 62:

Consiste em um “entender para agir” ou para decidir, ou seja, um entender para “se
posicionar diante de preceitos a observar”. Por conseguinte, existe aqui “um círculo
de reciprocidade e contínua correlação entre a vigência da ordem jurídica, moral
etc., de onde se extrai a diretriz da ação, e o processo interpretativo que também o
faz, em sentido integrativo e complementar”. Nesse caso, “interpretar não é apenas
tornar a conhecer uma objetivação do pensamento completa em si mesma, mas
tornar a conhecê-la, para integrá-la e realizá-la nas relações concretas.

Hans-Georg Gadamer também teve bastante importância no desenvolvimento da


Teoria da Interpretação. O referido autor, “conferiu ao processo hermenêutico,
independentemente do texto ou objeto interpretado, um sentido unitário, sustentando, pois, em
oposição ao pensamento de Betti, que não há diferença substancial entre as várias espécies de
interpretação” 63. Gadamer retoma a ideia da concepção circular de compreensão geral do
processo de interpretação e aplicação dos textos normativos vinculantes, o chamado “círculo
hermenêutico” proposto por Heidegger 64:

Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo apareça
um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo.
Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir
de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A
compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse
projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base
no que se dá conforme se avança na penetração do sentido.

61
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 62.
62
BETTI, Emilio, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 63.
63
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 63.
64
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Tradução de Flávio Paulo Meurer. 8ª edição. Petrópolis & Bragança Paulista: Vozes & Ed. Universitária São
Francisco, 2007, p. 356.
29

Betti, portanto, deixa clara a importância que as questões que surgem no procedimento
de aplicação normativa possuem no próprio processo exegético, deixando, ainda que
implicitamente, um papel ativo ao julgador no tocante à compreensão do texto normativo.
Gadamer, ao seu turno, afirma, categoricamente, que na concretização da norma de decisão, o
hermeneuta possui uma participação ativa imprescindível. No dizer de Elival da Silva
Ramos 65:

Quem se propõe a interpretar um texto normativo não o faz de modo totalmente


aberto e neutro em relação ao objeto, pois parte de uma pré-compreensão em que se
amalgamam conceitos jurídicos, classificações, o sentido de outros dispositivos
correlatos, o conhecimento da matéria fática, juízos de valor pessoais etc., pré-
compreensão essa que irá ajudar a compor o projeto prévio decorrente de uma
primeira leitura do texto interpretado.

Essa opinião prévia, como salienta Gadamer, só seria possível se não fosse fruto do
arbítrio subjetivo do julgador, pois deve ser lastreada nos limites estabelecidos pelo próprio
objeto da atividade hermenêutica. Em outras palavras 66:

Quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias que não se
confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas,
que como projetos são antecipações que só podem ser confirmadas “nas coisas”, tal
é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” a não ser
a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que é
que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas senão o fato de
que no processo de sua execução acabam sendo aniquiladas? A compreensão só
alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia
não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente
aos textos a partir da opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente
essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.

Esta etapa de interpretação e aplicação normativa, considerada em si mesma, segundo


a moderna Teoria da Interpretação, é chamada de concretização normativa. É, portanto,
imprescindível destacar que, nestes termos, interpretar é concretizar a norma. Conforme
destaca Friedrich Müller, “concretizar” não é o mesmo que tornar mais concreta uma norma
genérica já contida no texto normativo, “ao contrário, significa, a partir de uma ótica e
reflexão realistas, construção da norma jurídica no caso individual a ser decidido, sendo que
os elementos do trabalho textual se tornam crescentemente ‘mais concretos’ de uma fase a
outra” 67.

65
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 64.
66
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Tradução de Flávio Paulo Meurer. 8ª edição. Petrópolis & Bragança Paulista: Vozes & Ed. Universitária São
Francisco, 2007, p. 356.
67
MÜLLER, Friedrich, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 65.
30

Destarte, a atual hermenêutica entende o processo de interpretação-aplicação


normativa como parte de uma estrutura lógica e complexa de compreensão dinâmica,
permeada por uma relação dialética entre sujeito cognoscente e texto normativo, bem como
entre interpretação e aplicação, que mutuamente se implicam. É neste turbilhão, em que
mergulha o intérprete-aplicador, que a partir do texto normativo e dos elementos fáticos, vai
sendo construída, ou seja, concretizada, a norma de decisão, tendo sempre a pré-compreensão
do exegeta como referencial 68.

Atualmente já se encontram superadas tanto a postura do positivismo liberal do século


XIX, que propugnava por uma interpretação como mero ato de cognição que deveria exprimir
a vontade do legislador, bem como a proposta teorética de Kelsen, que apesar de reconhecer o
caráter criativo na atividade de interpretação-aplicação da norma jurídica, por parte do
julgador, excluía esse aspecto criativo do interesse da Dogmática.

Portanto, o que se constata hoje, é que o exegeta-aplicador, diferentemente de só


declarar ou reproduzir um direito preexistente, atua de maneira verdadeiramente ativa no
processo de concretização normativa, não de forma arbitrária ou desvinculada, e sim a partir
das normas que compõem o ordenamento jurídico a que estão submetidos. Deste modo, há
que se observar que existe uma distinção crucial entre texto normativo e norma, sendo aquele
o objeto da interpretação e este o seu resultado. Neste sentido, a atividade hermenêutica é
simultaneamente cognoscitiva e criativa, que consiste no “conhecimento ativo de um objeto
que o próprio sujeito cognoscente contribui para produzir” 69. Para elucidar melhor o assunto,
Karl Larenz ensina que 70:

O juiz, de modo semelhante ao legislador, é de acordo com a sua própria ideia


descobridor e ao mesmo tempo conformador do Direito, que ele traz sempre de novo
para a realidade num processo interminável a partir da lei, com a lei e, caso
necessário, também para além da lei. O Direito (realmente vivo, existente) é o
resultado deste processo, no qual colaboram a ciência do direito e finalmente todos
aqueles também que exprimem publicamente a sua opinião sobre questões jurídicas
e contribuem assim de qualquer modo a definir a “consciência jurídica geral”. De
uma maneira ou de outra, quer o juiz apenas “interprete” a lei, quer a restrinja ou
integre em conformidade com o sentido dela, quer abra lugar pela primeira vez a um
“novo” pensamento jurídico que ainda não encontrou expressão na lei – ou só uma
muito incompleta –, é sempre a lei na verdade o ponto de partida das suas
ponderações, mas ela só determina raras vezes a sua decisão. O que ele acrescenta,
nomeadamente, a determinação última, o “afinamento” dos elementos da previsão

68
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 65.
69
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de Nello Morra.
Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999, p. 211.
70
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José de Souza Brito et al. 2ª edição alemã.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p. 271 et seq.
31

em vista deste caso concreto, ou ainda o cuidadoso preenchimento duma “lacuna da


lei”, tudo isto não deixa intacta a lei, como ela “vigora” realmente, mas antes vem
determinar a maneira precisa como ela se torna eficaz como factor de ordem. Por
este meio, a norma é como que de novo libertada da sua “abstracção” inevitável e
irrenunciável e possibilita-se enfim a sua função de regular relações “concretas” da
vida.

Na arrumação do esqueleto basilar de poder predominam dispositivos normativos com


linguagem mais precisa, que propiciam menor liberdade criativa, ao passo que, as
Constituições, em sua dimensão prospectiva, utilizam-se de enunciados abertos,
indeterminados ou polissêmicos, que conferem ampla liberdade criativa ao julgador. Os textos
normativos que possuem uma delimitação mais estreita, dão origem às normas-regras,
enquanto os que possuem um menor grau de precisão, originam as normas-princípios. De
acordo com Elival da Silva Ramos 71:

Com efeito, “os princípios constitucionais são capazes de tudo disciplinar, ampliam
a aplicabilidade do sistema jurídico, de modo que nada fique fora de sua
qualificação deontológica”. A atuação ativa do intérprete-aplicador na concretização
dos princípios constitucionais fica evidenciada com a importância que a Teoria da
Argumentação vem assumindo no âmbito da Teoria do Direito, em boa medida a
partir do trabalho desenvolvido pelas Cortes Constitucionais, priorizando-se “a
perspectiva argumentativa no estudo do Direito, isto é, seu estudo como um sistema
dinâmico de argumentos e não como mero sistema estático de regras e princípios”.

Neste sentido, as Constituições principiológicas, trazidas pelo constitucionalismo


social-democrático, contribuíram significativamente para acentuar a criatividade conferida ao
julgador no exercício da jurisdição, ao passo que limitaram a liberdade de conformação do
direito infraconstitucional pelo Legislativo.

71
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 67.
32

3. A DOGMÁTICA JURÍDICA E O ATIVISMO JUDICIAL

3.1. O ATIVISMO JUDICIAL EM ALGUNS PAÍSES

Primeiramente, é importante salientar a diferença existente entre os sistemas de civil


law e de common law, mais precisamente em relação a preponderância das fontes do direito.
Os sistemas de origem romano-germânica possuem como principal fonte jurídico-normativa a
legislação proveniente do procedimento constitucionalmente estabelecido e atribuído ao poder
legislativo para instituir normas genéricas, de caráter vinculante sobre os sujeitos de direito e
sobre os órgãos responsáveis pela solução das controvérsias. Dessarte, as decisões judiciais,
com raras exceções, não se configuram essencialmente como fonte formal do direito, no
máximo são entendidas como fontes secundárias ou indiretas. Ou seja, nos sistemas de civil
law, “a jurisprudência move-se dentro de quadros estabelecidos para o direito pelo legislador,
enquanto a atividade do legislador visa precisamente estabelecer esses quadros” 72.

Já os sistemas da família anglo-saxônica, como é o caso dos Estados Unidos e da


Inglaterra, possuem a jurisprudência como principal fonte normativa, embora se observe a
tendência em atribuir uma supremacia formal à Constituição. Nesse sentido, é fundamental
entender que a decisão judicial apresenta uma dupla função, pois esta, primeiramente, define a
contenda, ou seja, “de acordo com a doutrina da res judicata as partes não podem renovar o
debate sobre as questões que foram decididas. Em segundo lugar, no sistema do common law,
consoante a doutrina do stare decisis, a decisão judicial também tem valor de precedente” 73.

Observa-se, pois, que a diferença existente entre os dois sistemas possui uma
consequência prática, que é o grau de liberdade criativa conferido aos órgãos jurisdicionais no
exercício de sua função típica. Como já exposto, os sistemas de civil law acabam encontrando
mais restrições no momento de aplicação do direito in concreto, possuindo, desta forma,
balizas claras e precisas que delimitam o âmbito de sua atuação. Os sistemas de common law,
por sua vez, possibilitam uma maior independência inventiva aos julgadores, posto que a
jurisprudência possui preponderância na criação normativo-jurídica.

Por este motivo, é possível afirmar que a identificação do ativismo judicial, posto que,
em análise preliminar, este fenômeno corresponde a uma disfunção no exercício da função

72
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 2ª
edição. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 120.
73
RE, Edward D., apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 81.
33

jurisdicional, em prejuízo, especialmente, da função legislativa, é muito mais difícil nos


países que adotam os sistemas de common law, visto que “existe na família originária do
direito anglo-saxônico uma proximidade bem maior entre a atuação do juiz e a do legislador
no que tange à produção de normas jurídicas” 74. Neste sentido, Hans Kelsen, já fazia
referência ao exposto, asseverando que a “função criadora de Direito dos tribunais, que existe
em todas as circunstâncias, surge com particular evidência quando um tribunal recebe
competência para produzir também normas gerais através de decisões com força de
precedentes” 75.

Embora a atuação jurisdicional nos sistemas de common law possua certa semelhança
com a função legislativa típica, por produzir normas com força cogente que serão aplicadas às
situações semelhantes ao caso paradigma, não há como equipará-las. Os órgãos jurisdicionais
têm como principal função a solução dos litígios, prevalecendo a dimensão executória ou
aplicativa do direito, enquanto na função legislativa prevalece a dimensão criativo-prescritiva.
Percebe-se, pois, que “não se comportam os órgãos de jurisdição como um autêntico
legislador, tanto mais que estão compelidos, ao contrário deste, a justificar suas decisões, o
que fazem lançando mão de argumentação técnico-jurídica” 76. Este entendimento já era
referido por Hart, quando declara que os poderes jurisdicionais, diferentemente do legislativo,
possuem muitas restrições substantivas que estreitam a liberdade de escolha, posto que o juiz
deve decidir casos concretos e não “introduzir reformas de larga escala ou novos códigos” 77.

Desta maneira, em uma acepção ampla, verifica-se que o sistema de origem anglo-
saxônica possui um ativismo jurídico por natureza, já que, como exposto, a jurisprudência é
fonte primária na produção normativo-jurídica. Portanto, estabelecer parâmetros objetivos
capazes de identificar eventuais abusos jurisdicionais que ultrapassem os limites de sua
função típica, torna-se tarefa muito mais árdua do que nos sistemas de família romano-
germânica 78.

74
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 83.
75
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 268.
76
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 84.
77
HART, Herbert Lionel Adolphus. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª edição. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 336.
78
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 84.
34

3.2. O ATIVISMO JUDICIAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

É sabido que a conquista do modelo de Estado Democrático de Direito, nos moldes


atuais, é devido ao movimento jurídico-político denominado constitucionalismo, que tem
como objetivo “estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos
moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas” 79. A tônica que
rege este modelo é a juridicização do poder, em outras palavras, consiste na
“institucionalização do poder, que passa a ser exercido pelos órgãos indicados na Constituição
e na forma por ela prescrita (e também de acordo com as normas de conteúdo por ela
antecipadamente impostas)” 80. Desta maneira, o próprio Estado se submete ao direito por ele
criado, dentro dos limites constitucionais estabelecidos. Este modelo de Estado ficou também
conhecido como Estado Constitucional e possui como um dos elementos-chave a separação
dos poderes constituídos.

O primeiro a teorizar sobre o Poder Constituinte foi Emmanuel Joseph Sieyès, em


meio à turbulência da sociedade francesa às vésperas da Revolução de 1789. O abade, em seu
opúsculo mais famoso, declara que “a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo” e
prossegue afirmando que o Poder Constituinte é o poder originário que pertence à nação,
capaz de criar de maneira autônoma e independente, a Constituição escrita 81. Neste momento
histórico, também influenciado pela doutrina de Montesquieu, notadamente em relação a
separação dos poderes, o movimento constitucionalista teve um grande avanço teórico e
prático, eclodindo no conceito ideal de Constituição presente na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão: “Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos
direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” 82.

Em sua obra mais proeminente, Charles-Louis de Secondat, enfatiza que as três


funções estatais, por ele identificadas (legislativa, executiva e judiciária), devem ser atribuídas
a órgãos diferentes, que possuam independência funcional e prerrogativas próprias. Como
bem afirma o Barão de Montesquieu, “estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um
mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer
as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos

79
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34ª edição. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 7.
80
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 85.
81
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa: Que é o Terceiro Estado?. Organização e introdução
de Aurélio Wander Bastos. Tradução de Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986, p. 116 et seq.
82
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves et al. Liberdades Públicas. São Paulo: Saraiva, 1978.
35

particulares”; pois “é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a
abusar dele”, exceto se, “pela disposição das coisas, o poder freie o poder” 83.

É neste mesmo sentido que Canotilho assevera que “a cada órgão de soberania, dotado
de determinadas características, é atribuída a função que ele pode desempenhar de uma forma
mais adequada (ou da única forma adequada) da que seria se ela fosse atribuída a outros
órgãos” 84.

Não obstante o princípio da separação dos poderes seja uma nota marcante dos
ordenamentos jurídicos modernos, há que se observar que o modo de sua implementação
varia de acordo com a realidade histórico-cultural de cada Estado e nos limites dos contornos
estabelecidos em suas Constituições. Sobre esse ponto, aduz Konrad Hesse, que a separação
dos poderes é um princípio constitucional que depende do fator histórico para estabelecer suas
diretrizes, isto porque o “critério de realização é, antes, a organização concreta pela
Constituição, à qual é importante aqui, como em toda parte, uma ordem material determinada
da atividade de forças históricas reais” 85. Este é o entendimento assente na jurisprudência da
Excelsa Corte brasileira, como se pode observar no excerto do seguinte julgado 86:

O princípio da separação e independência dos Poderes não possui uma fórmula


universal apriorística e completa: por isso, quando erigido, no ordenamento
brasileiro, em dogma constitucional de observância compulsória pelos Estados-
membros, o que a estes se há de impor como padrão não são concepções abstratas ou
experiências concretas de outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente de
separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na
Constituição da República.

É importante salientar que o princípio da separação dos poderes pressupõe uma


divisão de funções a serem exercidas por determinados órgãos específicos, e não uma divisão
propriamente dita do poder estatal, que é uno. Por conseguinte, cumpre-se também informar
que as manifestações das funções de poder, por atos emanados dos respectivos órgãos, podem
ser analisadas sob o ponto de vista formal ou material. “Sob o ângulo formal, os atos estatais
são ordenados considerando-se a qualidade do órgão dos quais emanam ou a forma da qual

83
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de Cristina
Murachco. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 165 et seq.
84
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 552.
85
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de
Luís Afonso Heck. 20ª edição alemã. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 368.
86
Acórdão proferido em 7/8/1997, no julgamento da ADI 98-5/MT, sob a relatoria do Min. Sepúlveda Pertence,
DJ 31/10/1997.
36

são revestidos, que, em regra, está associada ao órgão competente para produzi-los” 87. Já no
aspecto material, considera-se “o conteúdo do ato, independentemente do órgão do qual
emana e da forma que o reveste” 88.

Desta maneira, os limites estipulados pela separação dos poderes, nos moldes
constitucionalmente instituídos, implicam em parâmetros para a identificação do ativismo
judicial, posto que, prioristicamente, a transgressão das barreiras que delimitam a função
jurisdicional, em agravo não só da função legislativa, como também da administrativa, ou até
mesmo das funções de governo e de fiscalização, importam, necessariamente, na deturpação
da função típica atribuída ao Judiciário. Nas palavras de Elival da Silva Ramos, o ativismo
judicial não é simplesmente, por parte do Judiciário, o “exercício desabrido da legiferação (ou
de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a
ser deferido pela própria Constituição aos órgãos superiores do aparelho judiciário”, mas,
sobremaneira, a “incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente
atribuídas a outros Poderes” 89.

Desta forma, para que se possa compreender a separação dos poderes e sua
consequente deturpação, é imprescindível que se identifique, ainda que de maneira ampla, os
limites da jurisdição do ordenamento jurídico investigado. Nesse sentido, Jorge Miranda
afirma que “na função jurisdicional define-se o Direito (juris dictio) em concreto, perante
situações da vida (...), e em abstrato, na apreciação da constitucionalidade e da legalidade de
normas jurídicas” 90.

Tradicionalmente, a função jurisdicional é entendida como uma atividade executória,


ou seja, é a aplicação in concreto das normas jurídicas. No entanto, a função administrativa
também se trata de uma função executória das normas jurídicas, mas, difere-se, todavia, da
função jurisdicional, pois “enquanto a administração visa à satisfação dos interesses que o
Estado assume como próprios, a jurisdição visa à justa composição da lide” 91. Em outras
palavras, na função administrativa “a atuação da lei é meramente instrumental, ao passo que a
jurisdição vê na atuação do direito o seu fim imediato, associado, por certo, com os objetivos

87
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 87.
88
VIRGA, Pietro, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 87.
89
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 88.
90
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Editora Coimbra, 1997, t. 5, p. 29.
91
VIRGA, Pietro, apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 286.
37

sociais inerentes à preservação da ordem jurídica (paz, ordem, segurança jurídica, isonomia
etc.)” 92.

Vê-se, pois, que o caráter executório da jurisdição, a priori, se contrapõe, notadamente,


à natureza eminentemente inovadora e criativa da função legislativa. Entretanto, essa
distinção não é integralmente válida, pois como bem ensina Kelsen, a respeito da dinâmica
dos sistemas jurídicos 93:

Uma norma que regula a produção de outra norma é aplicada na produção, que ela
regula, dessa outra norma. A aplicação do Direito é simultaneamente produção do
Direito. Estes dois conceitos não representam, como pensa a teoria tradicional, uma
oposição absoluta. É errado distinguir entre atos de criação e atos de aplicação do
Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limite – a pressuposição da
norma fundamental e a execução do ato coercitivo – entre os quais se desenvolve o
processo jurídico, todo ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma
superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior.

Destarte, a capacidade de criar e inovar no ordenamento jurídico, não se revela, por si


só, parâmetro capaz de identificar os limites entre a função jurisdicional e a legislativa, posto
que, como se viu, a jurisdição possui natureza híbrida (cognoscitiva e criativa). Todavia, o
grau de liberdade criativa, atribuído ao exercício de tais funções do poder estatal, é
explicitamente diferenciado, restando reduzido, o grau conferido à função jurisdicional. A
descrição de Elival da Silva Ramos elucida tal conclusão 94:

Tenho para mim que o requisito da inovação do ordenamento jurídico, mormente se


atentarmos para a sua completa estrutura escalonada, não serve à distinção entre as
funções ditas de aplicação do direito (jurisdição e administração) e a função
legislativa. Todavia, se observarmos o nível hierárquico em que são postos os atos
legislativos e o predomínio do fator constitutivo ou executório em relação às normas
disciplinadoras de conduta, assim entendidas aquelas diretamente voltadas à
regulação do comportamento dos sujeitos de direito, podem-se caracterizar os atos
legislativos, materialmente, como veiculadores de normas gerais, abstratas e situadas
no nível primário do ordenamento, logo abaixo do nível constitucional, contribuindo
de maneira predominantemente constitutiva para o seu desenvolvimento. Por seu
turno, os atos jurisdicionais estão situados em escalão inferior da ordem jurídica,
com referência aos atos de legislação, e se voltam, precipuamente, à atuação de atos
normativos superiores, contribuindo, apenas, moderada e limitadamente, na
modelagem do conteúdo desses atos.

Embora não se possa afirmar categoricamente que o ativismo judicial é um fenômeno


exclusivamente associado a Estados que adotam a separação dos poderes constituídos, é
possível, entretanto, afirmar que a verificação de tal fenômeno se realiza mais facilmente nos

92
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 286.
93
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 252 et seq.
94
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 90.
38

Estados Democráticos de Direito, onde se encontra constitucionalmente previsto tal princípio.


Isto posto, têm-se que a inobservância dos limites impostos às funções estatais, mormente à
jurisdicional, importa em grave violação ao princípio da separação dos poderes, ao passo que
tal fato acarreta, inexoravelmente, na invasão indesejável das demais funções e na deturpação,
em especial, da jurisdição 95.

3.3. DISCRICIONARIEDADE E INTERPRETAÇÃO

Cabe aqui discutir sobre um instituto do direito que tem importante relevância para a
caracterização do fenômeno ora estudado, trata-se da chamada discricionariedade ou poder
discricionário. Karl Engisch afirma que a definição do que seria poder discricionário é um dos
“mais plurissignificativos e mais difíceis da teoria do Direito”, lançando o questionamento
sobre o que seria a discricionariedade judicial e a administrativa, senão o livre parecer pessoal
do juiz ou do funcionário administrativo 96. Hart também se refere à discricionariedade quando
leciona que “a textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que
muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos
funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias” 97.

No século XIX, o positivismo oitocentista negou qualquer poder discricionário ao


Judiciário, reduzindo sua atuação à subsunção lógico-formal das normas. Com Kelsen, o tema
da discricionariedade judicial novamente voltou a ser discutido, mas foi retirado da
Dogmática Jurídica, passando a integrar a chamada Política do Direito. Segundo Elival da
Silva Ramos 98:

Para Kelsen a discricionariedade é da essência da função jurisdicional, pois se a


norma superior “determina não só o processo em que a norma inferior ou o ato de
execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a
estabelecer ou do ato de execução a realizar”, o certo é que “esta determinação
nunca é, porém, completa: A norma do escalão superior não pode vincular em todas
as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de
ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a
norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou
de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este
ato.

95
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 91.
96
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1965, p. 178.
97
HART, Herbert Lionel Adolphus. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª edição. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 148.
98
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 287.
39

Atualmente, há um relativo consenso sobre a existência da discricionariedade atribuída


à atividade jurisdicional, mas este tema ainda é pouco estudado e debatido entre os
doutrinadores do Direito Processual ou Constitucional. De acordo com Elival da Silva Ramos,
“a razão para isso reside na utilização pragmática do conceito de discricionariedade, que serve
para tornar menos intenso o controle jurídico sobre determinados atos do Poder Público,
exatamente em virtude da liberdade de escolha no tocante a alguns aspectos de sua prática” 99.
Segundo Engisch, “trata-se aqui da importante questão de saber se as decisões discricionárias
das autoridades administrativas podem ser revistas e corrigidas pelos tribunais e se as
decisões discricionárias dos tribunais podem ser revistas e reformadas por tribunais
superiores” 100. De acordo com o artigo 1.008 do Código de Processo Civil Brasileiro de 2015,
que prescreve que “o julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no
que tiver sido objeto de recurso”, vê-se que não é possível impedir que o Judiciário reveja as
decisões administrativas, ou as suas próprias, pois esta função é inerente à sua própria
atuação, restando apenas a discussão a respeito dos limites ao poder discricionário. Não cabe
aqui adentrar nas discussões relativas à discricionariedade administrativa, mas apenas
apresentar algumas informações necessárias ao estudo do ativismo judicial.

Neste ponto, ao analisar a discricionariedade legislativa em relação à


discricionariedade judicial, verifica-se que há entre elas apenas uma diferença de grau. Sobre
o assunto, Hans Kelsen 101 afirma que:

De certo que existe uma diferença entre estes dois casos, mas é uma diferença
somente quantitativa, não qualitativa, e consiste apenas em que a vinculação do
legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais reduzida do que a
vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais livre na criação do
Direito do que este.

De fato, o Legislativo, na tarefa de elaborar as leis, encontra-se apenas vinculado aos


ditames constitucionais, havendo ampla liberdade na conformação material do direito, ao
passo que o Judiciário permanece vinculado a todo o ordenamento jurídico, de forma a sofrer
maiores restrições em sua liberdade discricionária. Neste sentido, na atuação jurisdicional, se
a solução de determinada demanda judicial necessitar de integração de lacuna, haverá
liberdade máxima na discricionariedade do intérprete-aplicador; já se o texto normativo for

99
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2015, p. 92.
100
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1965, p. 178.
101
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 249.
40

preciso e objetivo, neste caso, haverá a mínima liberdade discricionária na aplicação do


direito ao caso concreto. No entanto, é entre esses dois extremos que se situa a maioria das
situações postas à apreciação do Judiciário, de modo que o aplicador do direito detém
considerável discricionariedade em suas decisões, “devido, por exemplo, à existência de
programas normativos conflitantes, cada qual atrelado a distinta combinação de métodos de
interpretação, ou por se tratar de dispositivo legal que renda ensejo à formulação de um
conceito indeterminado” 102.

Destarte, verifica-se que a depender da densidade mandamental contida nas normas


jurídicas, o julgador terá maior ou menor liberdade discricionária. Essa densidade
mandamental é, sobretudo, resultado da técnica legislativa de se utilizar de conceitos jurídicos
indeterminados. Tais conceitos jurídicos indeterminados é que deixam ao domínio do juiz a
tarefa de melhor adequar a decisão judicial aos preceitos normativos. Neste sentido, Karl
Engisch 103 ensina que:

Tem de se decidir de caso para caso se os conceitos discricionários das leis quer se
encontrem na “hipótese legal” quer na “consequência jurídica” (mais exactamente:
na estatuição da consequência jurídica), são entendidos no sentido da atribuição de
um genuíno poder discricionário, se, portanto, são de entender no sentido de que
deve ser deixada à competência do órgão aplicador do Direito a descoberta – dentro
de dados limites, é certo, em conformidade com o respectivo dever funcional e,
portanto, não arbitrária, mas contudo autónomo-subjectiva – da decisão correcta do
caso concreto segundo a concepção pessoal do que é conveniente, necessário e justo.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua doutrina, possui uma excelente definição do
que seria a discricionariedade administrativa 104:

Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao


administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um,
dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim
de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade
legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida
no mandamento, dela não se possa extrair, objetivamente, uma solução unívoca para
a situação vertente.

Neste ponto, é importante salientar que, embora muitos autores falem em


discricionariedade judicial, ao julgador não é conferido efetivamente discricionariedade nos
termos da definição de Celso Antônio Bandeira de Melo. Como bem explica Beclaute
Oliveira Silva, a discricionariedade é instituto atribuído exclusivamente ao administrador e se

102
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora
Saraiva, 2015, p. 93.
103
ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1965, p. 187.
104
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 48.
41

situa no modal deôntico de permissão existente no consequente normativo, que é onde está, na
verdade, a prescrição da conduta. Para o referido autor, portanto, ainda que do ponto de vista
semântico o texto normativo seja construído a partir de conceitos jurídicos indeterminados,
caberá ao aplicador do direito a função de construir o sentido normativo contido no
antecedente do enunciado, através da interpretação, tarefa esta que antecede a construção da
norma. Para elucidar a questão e tornar mais fácil o entendimento do exposto, cumpre-se
transcrever exemplo utilizado pelo referido autor 105:

(...) "caso exista um perigo para a saúde pública e medidas de vacinação parecerem
necessárias, o órgão competente deve determinar obrigações de vacinação". Aqui
fica claro que o administrador, diante de uma situação fática concreta, deverá,
mediante um processo elucidativo, verificar se ela se coaduna com a hipótese
normativa. No exemplo posto, percebe-se que a hipótese normativa possui conceitos
(ou termos) indeterminados, a saber: perigo à saúde pública e parecer necessário.
Cabe ao intérprete, interpretar o que está posto para verificar se é hipótese de
aplicação do preceito abstrato e geral. Se neste processo se verifica que há perigo
para a saúde e a vacinação lhe parece uma medida necessária, no caso, então a
autoridade deve determinar a vacinação. Se durante o carnaval de Salvador há uma
grande possibilidade de milhares de pessoas virem a ser infectadas pelo vírus HIV.
Isto é um perigo para a saúde pública, mas não se faz necessária a vacinação, até
porque ela não existe ainda disponível no mercado. Não havendo a hipótese não
surge a obrigação de vacinar. Houve discricionariedade? Não. Apenas constatou-se
ao preencher os conceitos (ou termos) indeterminados que a hipótese não poderia ser
efetivada. Caso viessem a ser configuradas as hipóteses do antecedente, que se fará
mediante o relato linguístico constitutivo do fato, a conduta não seria facultativa,
mas obrigatória.

Verifica-se, assim, que embora na aplicação do direito haja um espaço volitivo, isto
não corresponde verdadeiramente a poder discricionário. O juiz estará, desta forma, vinculado
aos paradigmas fixados na Constituição Federal, que deverão ser obrigatoriamente respeitados
para justificar a construção normativa realizada. A concretização da Constituição não pode
ficar ao alvedrio do julgador, ela é normativa e estabelece as condições do agir do intérprete-
aplicador, que deve preservar os valores por ela consagrados 106.

3.4. ATIVISMO JUDICIAL E INTERPRETAÇÃO CRIATIVA

Neste ponto, já é possível conceituar o fenômeno do ativismo judicial, de modo a


caracterizá-lo, ainda que de maneira ampla, pois desvinculado de qualquer sistema jurídico
105
SILVA, Beclaute Oliveira. Dimensões da Linguagem e a Efetividade dos Direitos Fundamentais: uma
abordagem lógica. In: Revista Jus Navigandi, ano 11, n. 1186, Teresina: set. 2006. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/8990/dimensoes-da-linguagem-e-a-efetividade-dos-direitos-fundamentais/1>. Acesso
em: 20 abr. 2017.
106
SILVA, Beclaute Oliveira. Dimensões da Linguagem e a Efetividade dos Direitos Fundamentais: uma
abordagem lógica. In: Revista Jus Navigandi, ano 11, n. 1186, Teresina: set. 2006. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/8990/dimensoes-da-linguagem-e-a-efetividade-dos-direitos-fundamentais/1>. Acesso
em: 20 abr. 2017.
42

específico, embora seja mais fácil a sua incidência e identificação nos sistemas de civil law,
que adotam a separação dos poderes como um dos princípios basilares de seus ordenamentos.
Nas palavras de Elival da Silva Ramos 107:

Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além
dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao
Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de
interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos).

Essa exacerbação da função judicante possui uma conotação negativa perante à


Dogmática Jurídica, posto que se traduz na invasão pérfida das funções delegadas aos demais
Poderes constituídos, sendo assim, portanto, indesejada. Mais uma vez, é importante ressaltar
que o ativismo judicial vulnera principalmente o Legislativo, já que este pode ter suas normas
irregularmente invalidadas por uma decisão judicial, ou pode ter sua função legiferante
usurpada quando o Judiciário age de maneira excessivamente criativa.

O positivismo clássico de cunho liberal trouxe em sua doutrina a primazia do texto


normativo sobre a atividade hermenêutica do julgador, reduzindo a atividade do intérprete-
aplicador à mera subsunção mecânica da norma ao caso concreto. Tal acontecimento eliminou
a possibilidade de incidência do ativismo judicial, mas trouxe como consequência um
fenômeno de mesma gravidade, o “passivismo judicial”.

Porém, o positivismo pós-kelseniano propugnou por uma atuação mais intensa do


intérprete-aplicador do direito, conferindo margem de criatividade ao processo de
concretização normativa, desde que nos limites impostos pela moldura jurídica, desonerando
a realidade jurídica do passivismo que se instalara.

Desta forma, se o positivismo clássico tende a remeter ao passivismo, as teorias


denominadas pós-positivistas inevitavelmente desaguam no ativismo. Seguindo esta linha,
para Dworkin 108:

O ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista


ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões
anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de
nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do
Estado o seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como
integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que
lhe esteja próxima. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição por meio da
interpretação, e não por fiat, querendo com isso dizer que suas decisões devem
ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la.

107
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora
Saraiva, 2015, p. 97.
108
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 451.
43

Cumpre-se aqui transcrever importante ensinamento de Elival da Silva Ramos a


respeito do tema 109:

Se no positivismo clássico a interpretação se submete à vontade do legislador, a


consequência do pragmatismo e do moralismo jurídico é o ativismo subjetivista do
intérprete-aplicador; amplo e explícito no primeiro caso, circunscrito e implícito, no
segundo. No positivismo moderado ou renovado, o que prevalece é a vontade da lei,
não no sentido de um pressuposto prévio, pronto e acabado, que o juiz tenha que
meramente atender, mas no sentido de que o texto normativo objeto de exegese
contém algo de objetivo, que não pode ser desconsiderado, embora constitua apenas
um limite no trabalho de construção da norma de decisão, em que também conta
(embora não com o mesmo peso) a vontade do intérprete.

Como conclusão, para arrematar a ideia de equilíbrio entre criatividade e obediência


ao ordenamento jurídico-normativo, utiliza-se, neste momento, de lição do mestre Miguel
Reale 110:

Não nos atemoriza, em mais esta oportunidade, afirmar que a verdade está no meio-
termo, na conciliação dos extremos, devendo o juiz ser considerado livre, não
perante a lei e os fatos, mas sim dentro da lei, em razão dos fatos e dos fins que dão
origem ao processo normativo, segundo a advertência de Radbruch de que a
interpretação jurídica, visando o sentido objetivamente válido de um preceito, “não é
pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo
contrário, um saber pensar até o fim aquilo que já começou a ser pensado por outro”,
observação que deve ser completada com a de que a interpretação de uma norma
envolve o sentido de todo o ordenamento a que pertence.

Verifica-se, portanto, que o juiz não age de forma passiva perante os textos
normativos, pelo contrário, tem tarefa deveras ativa na concretização da norma. No entanto,
seu agir não é completamente livre, e sim pautado pelos ditames do ordenamento jurídico
posto e interdepende dos fins e dos fatos que informam o caso concreto.

3.5. ATIVISMO E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Neste momento, faz-se importante apresentar, ainda que de maneira resumida, alguns
pontos que se tornam alvo de questionamento e debate acerca do tema.

Primeiramente, com base no conceito apresentado, seria natural concluir que há uma
definição unívoca do que seja ativismo judicial, entretanto, é preciso advertir o leitor para que
não caia nesta armadilha. Segundo William P. Marshall, o ativismo judicial se manifesta de
sete formas diferentes, ou, como ele próprio denomina: “os sete pecados do ativismo

109
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo: Editora
Saraiva, 2015, p. 103.
110
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 424.
44

judicial” 111. São eles: 1) ativismo contra-majoritário; 2) ativismo não-originalista; 3) ativismo


de precedentes; 4) ativismo formal (ou procedimental); 5) ativismo material (ou criativo); 6)
ativismo de reparação; e 7) ativismo partidarista 112.

O primeiro tipo, o ativismo contra-majoritário, seria, neste caso, a resistência do


Judiciário em fazer cumprir as escolhas eleitas pelas vias democráticas tradicionais. Ou seja,
as escolhas eleitas pelos representantes da população para a efetivação de direitos preferidos,
acabam por passar pelo crivo do julgador, que deterá, em última análise, a interpretação final
sobre o tema, podendo resultar na invalidação ilegítima de escolhas democraticamente
realizadas, substituindo o juízo político dos mandatários da representação popular, pelo seu
próprio 113.

O ativismo não-originalista, por sua vez, “caracteriza-se pelo não reconhecimento de


qualquer originalismo na interpretação judicial, sendo desprezadas as concepções mais estritas
do texto legal e as considerações sobre a real intenção do legislador” 114. Em outras palavras, o
julgador abre mão de qualquer posição conservadora e busca uma interpretação
excessivamente inovadora que se desprende dos significados circunscritos aos textos
normativos.

A nota caracterizadora do ativismo de precedentes é puramente o desprezo pelos


precedentes anteriormente estabelecidos. Desta forma, o julgador, ao decidir, ignora por
completo as decisões anteriormente proferidas para os casos semelhantes, rejeitando os
fundamentos jurídicos utilizados para justificá-las e sobrepondo seus próprios juízos aos
antecedentes 115.

111
MARSHALL, William P.. Conservatives and The Seven Sins of Judicial Activism. In: Public Law and Legal
Theory Research Paper, n. 02-8, Colorado: 2002. Disponível em:
<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=330266>. Acesso em: 20 abr. 2017.
112
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
113
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
114
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
115
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
45

No ativismo formal (ou procedimental), verifica-se a incidência da relutância dos


julgadores “em aceitar os limites legalmente estabelecidos para sua atuação” 116. Caracteriza-
se pelo uso excessivamente expansivo da jurisdição, adentrado na esfera de atuação específica
das funções primariamente conferidas aos outros poderes 117.

O ativismo material (ou criativo) ocorre quando o julgador age verdadeiramente como
como legislador positivo, ou seja, tal ativismo “é resultante da criação de novos direitos não
previstos em lei” 118. Destarte, o juiz, na tentativa de realizar a justiça, segundo seus critérios
subjetivos, termina se imiscuindo na função legiferante e ilegitimamente produzindo novos
direitos.

Nas palavras de Fernando Gama de Miranda Netto, “o ativismo de reparação é


marcado pelo uso do poder judicial para impor ações positivas ou de controle para os outros
poderes” 119. De outra maneira, o Judiciário se utiliza das decisões judiciais para implementar
ações afirmativas que julga necessárias, impondo, aos outros poderes, obrigações a serem
cumpridas.

O último tipo de ativismo, é o ativismo partidarista, no qual “há o uso do poder


judicial para atingir objetivos específicos de um determinado partido, grupo social ou mesmo
do governo” 120. Assim, o julgador, ao decidir, guia-se por motivos partidaristas, tendentes a
desencadear transformações sociais que satisfaçam sua ideologia política.

Em segundo lugar, cumpre-se esclarecer a diferença entre “ativismo judicial” e


“judicialização da política”, que embora sejam fenômenos que usualmente possam acontecer
simultaneamente, um não se confunde com o outro. Ativismo judicial, como já evidenciado, é
a atuação jurisdicional para além dos limites impostos pela própria ordem jurídica, enquanto
judicialização da política seria a tentativa de obter, através de uma decisão judicial, direitos

116
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
117
MARSHALL, William P.. Conservatives and The Seven Sins of Judicial Activism. In: Public Law and Legal
Theory Research Paper, n. 02-8, Colorado: 2002. Disponível em:
<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=330266>. Acesso em: 20 abr. 2017.
118
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
119
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
120
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal. In:
SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.). O novo Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 87-99.
46

previstos e garantidos nos textos normativos, em especial na Constituição Federal, que não
são respeitados e concretizados por conta da inércia do Poder Executivo.

Pois bem, ainda que o cidadão, como último recurso, ajuíze ação judicial, com o
objetivo de ter seu direito realizado, e o juiz profira decisão no sentido de compelir o
Executivo a concretizar o direito violado, esta decisão, não necessariamente será uma decisão
ativista. Da mesma forma que as decisões ativistas não corresponderão sempre àquelas
decorrentes da judicialização da política. Neste sentido, o esclarecimento de Lenio Streck 121:

Judicializar a política pode não ser exatamente o mesmo que praticar ativismos.
Aliás, não é o mesmo. (...) Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é
contingencial. Ela não é um mal em si. Ocorre na maioria das democracias. O
problema é o ativismo, que, para mim, é a vulgata da judicialização. Enquanto a
judicialização é um problema de (in)competência para prática de determinado ato
(políticas públicas, por exemplo), o ativismo é um problema de comportamento, em
que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua
subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas).

Como terceiro ponto, é imprescindível destacar que uma decisão ativista nem sempre é
aquela que declara uma norma jurídica inconstitucional, ou a deixa de aplicar por motivo
justificável. Como já se viu, ativista é a atuação do magistrado para além de suas funções
constitucionalmente estabelecidas, desta forma, é possível que o juiz, ao fazer cumprir uma
norma jurídica, esteja atuando de forma ativista, desde que essa norma seja, por exemplo,
inconstitucional. Neste mesmo sentido, ao declarar uma norma inconstitucional
acertadamente, o julgador não estará agindo de maneira ativista, senão dentro do exercício
regular de suas funções. Nas palavras de Lenio Streck 122:

Como preliminar, há que dizer que o fato de o STF (ou o PJ lato sensu) declarar ou
não declarar um ato normativo inconstitucional (...) não tem, necessariamente,
relação com o ativismo/judicialização da política (...). O STF (ou outros tribunais)
podem declarar a inconstitucionalidade de leis em alto índice e ainda assim,
necessariamente, tal atitude não poderá ser epitetada como ativista/judiciopolítica.
Se as leis forem inconstitucionais, é bom para a democracia — ou, diria, condição
de possibilidade da democracia — que sejam assim declaradas. Ativismo ou
judicialização não se capta a partir do código “constitucional-inconstitucional” e
tampouco do código “ação deferida-ação indeferida”.

Por último, é pertinente estabelecer a diferenciação, ainda que básica, entre regras e
princípios, de modo a conferir substrato suficiente para sua análise incidental e suas
implicações quanto ao ativismo judicial. Segundo Humberto Ávila, não haveria uma definição

121
STRECK, Lenio Luiz. Observatório Constitucional: o que é isto, o ativismo judicial, em números?. In:
Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-
26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>. Acesso em: 1 abr. 2017.
122
STRECK, Lenio Luiz. Observatório Constitucional: o que é isto, o ativismo judicial, em números?. In:
Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-
26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>. Acesso em: 1 abr. 2017.
47

unitária para o que seja princípio jurídico, chegando-se até a afirmar que “haveria quase tantas
definições de princípios quantos são os autores que sobre eles escrevem” 123. De acordo com o
referido autor, ao esclarecer sobre os estudos desenvolvidos por Esser, Larenz, Canaris,
Dworkin e Alexy, as normas jurídicas são divididas entre normas-regras e normas-princípios,
indicando que os princípios possuem maior grau de indeterminação, abstração e generalidade
do que as regras, mas que sua diferenciação dependerá, principalmente, do critério distintivo
adotado (quanto à formulação, ao conteúdo, à estrutura lógica, etc.) 124.

Embora sua classificação seja importante, é no cenário da concretização normativa que


a diferenciação entre normas e princípios se faz imprescindível. Atualmente, talvez a doutrina
mais difundida sobre a incidência das regras e princípios seja a desenvolvida por Robert
Alexy. Nas palavras de Humberto Ávila, para o referido autor, partindo dos estudos
elaborados por Dworkin, “os princípios jurídicos consistem apenas numa espécie de normas
jurídicas por meio das quais são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários
graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas”, enquanto as regras seriam normas
“cujas premissas são, ou não, diretamente preenchidas, e no caso de colisão, será a
contradição solucionada, seja pela introdução de uma exceção à regra, de modo a excluir o
conflito, seja pela decretação de invalidade de uma das regras envolvidas” 125.

Para Alexy, os princípios são obrigações “prima-facie”, pois na hipótese de conflito


normativo, utiliza-se da ponderação, onde um princípio colidente se sobrepõe a outro, de
acordo com a análise das circunstâncias concretas. Já as regras, seriam obrigações absolutas,
pois sua inaplicação só seria possível na hipótese de regras colidentes, na qual uma seria
declarada inválida ou existiria a abertura de exceção que excluiria a antinomia 126.

Destarte, ao se utilizar de princípios para fundamentar a decisão jurídica, o magistrado


utilizará a ponderação como mecanismo de interpretação e aplicação da norma. Ou seja, o
julgador deverá, diante das possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto, sopesar a

123
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
124
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
125
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
126
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
48

aplicação do referido princípio, em relação a outros princípios também aplicáveis, de maneira


a otimizar os bens jurídicos em questão, fazendo prevalecer, de maneira gradual e em face do
caso concreto, o princípio que melhor se adeque à situação 127.

Já as regras, por serem altamente determinadas e objetivas, são consideradas como


comandos definitivos, que quando válidas e incidentes sobre uma situação fática, devem ser
integralmente aplicadas. Isto é, no caso das regras, não há juízo de ponderação, nem
cumprimento gradual de seus preceitos, ou elas são completamente aplicadas, ou não são
aplicadas 128.

Vê-se, pois, que devido ao maior grau de indeterminação, abstração e generalidade


conferida aos princípios, e a possibilidade do uso da ponderação na hipótese de conflito
normativo, a identificação do ativismo judicial se torna potencialmente mais trabalhosa,
diferentemente do que ocorre com as regras, porquanto, como se viu, sua incidência é
absolutamente obrigatória.

É neste ponto que reside o último argumento a ser debatido. Ao se deparar com uma
norma, legitimamente válida, ao magistrado não é conferida liberdade para deixar de aplica-la
ou aplica-la apenas em determinado grau. Assim sendo, embora a norma de decisão seja
produto da atividade interpretativa do julgador em face do texto normativo, aquela deve ser
compatível com o programa legislativo que a originou. No apanhado de Lenio Streck 129:

Em suma: não podemos cumprir a lei só quando nos interessa. Explicitando isso de
outra maneira, quero dizer que o acentuado grau de autonomia alcançado pelo
direito e o respeito à produção democrática das normas faz com que se possa afirmar
que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei
nas seguintes hipóteses: a) quando se tratar de inconstitucionalidade; b) quando for o
caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias; c) quando aplicar a
interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung); d) quando
aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne
Normtextreduzierung); e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade
com redução de texto; f) quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face
de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados
performativos.

127
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
128
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso em: 20 abr. 2017.
129
STRECK, Lenio Luiz. Observatório Constitucional: Supremo pode deixar de aplicar lei sem fazer jurisdição
constitucional?. In: Revista Consultor Jurídico, 25 out. 2014. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2014-out-25/observatorio-constitucional-stf-deixar-aplicar-lei-jurisdicao-
constitucional>. Acesso em: 1 abr. 2017.
49

Como frisado, não há um consenso quanto à natureza jurídica dos princípios, e,


portanto, faz-se imperioso destacar outra teoria de relevante valor epistemológico que não
reconhece a normatividade dos princípios. Segundo Beclaute Oliveira Silva 130, os princípios
não são logicamente estruturados como norma jurídica, e, portanto, não o são. Na verdade,
para o referido autor, com base nos estudos de Paulo de Barros Carvalho, os princípios ora se
comportam como valores, ora como limites objetivos. Quando se referem a valores, os
princípios “são bipolares, têm implicação recíproca, são referíveis a um dado da realidade, são
hierarquizados, são incomensuráveis, são históricos, possuem objetividade e existe
preferibilidade”. Quando se referem a limites objetivos, “são postos para realizar certas metas,
fins, valores, como o caso do princípio da publicidade que tem por fim realizar a moralidade
da administração pública, que é um valor”. Deste modo, por não reconhecer a normatividade
dos princípios, o embaraço encontrado para a identificação do ativismo judicial em decisões
fundamentadas com base nestes se desfaz, pois, neste caso, o princípio é unicamente um
enunciado prescritivo, cujo sentido comporá a norma jurídica.

Feitas tais considerações, é forçoso acreditar que já há razões suficientes para realizar
o arremate conclusivo deste trabalho.

130
SILVA, Beclaute Oliveira. Dimensões da Linguagem e a Efetividade dos Direitos Fundamentais: uma
abordagem lógica. In: Revista Jus Navigandi, ano 11, n. 1186, Teresina: set. 2006. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/8990/dimensoes-da-linguagem-e-a-efetividade-dos-direitos-fundamentais/1>. Acesso
em: 20 abr. 2017.
50

CONCLUSÃO

Viu-se, pois, que o positivismo jurídico, com os ajustes recebidos ao longo de sua
evolução, especialmente quanto à Teoria da Interpretação, sua maior fraqueza, continua a ser
o modelo teórico mais apropriado aos ordenamentos jurídicos situados sob a égide de um
Estado Democrático de Direito, porquanto, não se pode fazer Ciência do Direito senão através
do método positivista. Ademais, seus principais postulados teóricos, como a coatividade e
imperatividade do direito, a primazia das fontes estatais e a concepção sistêmica do direito,
continuam firmes.

Discutiu-se também sobre a evolução hermenêutica sofrida nos últimos séculos, desde
a subsunção mecânica propagada pelo positivismo clássico, passando pela reformulação de
Kelsen, que reconheceu o papel criativo do intérprete, mas que retirou tal fato da esfera da
Dogmática Jurídica, bem como pelo realismo e pragmatismo jurídicos, até chegar aos moldes
atuais da Hermenêutica Contemporânea, que entende a interpretação-aplicação como parte de
uma estrutura lógica de compreensão dinâmica e complexa, que se perfaz através de uma
relação dialética entre sujeito e texto normativo.

Também foi visto que nos ordenamentos da família do common law a atividade
exercida pelo julgador é essencialmente ativista por natureza, dificultando a identificação do
momentum em que os limites estabelecidos à atuação jurisdicional são transpassados. É
também por isto, que nestes sistemas, o fenômeno do ativismo judicial não recebe,
geralmente, conotação diretamente negativa.

Seguidamente, apresentou-se o princípio da separação dos Poderes e a sua importância


para o acontecimento, caracterização e identificação do fenômeno do ativismo judicial, pois é
exatamente neste ponto que se pode verificar os limites instituídos para a atuação da função
de cada um dos Poderes, e desta forma, perceber a violação destes limites e a intrusão na
esfera de atribuições dos outros Poderes.

Em consequência, foi debatida a discricionariedade judicial, fazendo-se a distinção


entre esta e as discricionariedades legislativa e administrativa, pois a discricionariedade
judicial é muito mais restrita que as demais e corresponde apenas à liberdade de escolha
deferida ao julgador diante das possibilidades interpretativas consistentes.
51

Finalmente, com base nos fundamentos expostos e discutidos ao longo do trabalho,


bem como no contexto apresentado, chegou-se ao conceito de ativismo judicial e se discutiu
alguns pontos específicos que são tópicos importantes sobre o tema debatido.

Diante do exposto, verifica-se que o ativismo judicial, nos termos apresentados neste
trabalho, é um fenômeno indesejado e inconstitucional. Ativismo judicial é, portanto, a
ultrapassagem dos limites impostos pelo próprio ordenamento jurídico para o exercício da
função jurisdicional, institucionalmente conferida ao Poder Judiciário para resolver litígios de
caráter subjetivo (conflitos de interesse), bem como demandas de natureza objetiva (conflitos
normativos). Essa suplantação dos limites demarcatórios da função jurisdicional ocorre,
principalmente, em agravo da função legislativa, posto que este fenômeno, embora não se
traduza no exercício escancarado da função legiferante ou de outras funções não
jurisdicionais, descaracteriza a função típica do Poder Judiciário, através da invasão insidiosa
sobre o núcleo essencial de funções atribuídas a outros Poderes pela Constituição.

É importante lembrar que o Judiciário possui o dever político de respeitar as normas


jurídicas democraticamente estabelecidas, pois é desta maneira que suas decisões se
locupletam de legitimidade democrática. Deste modo, é imprescindível que se tenha como
base para a função jurisdicional o princípio de que na atividade exegética é a vontade da lei
que deve prevalecer, não como um pressuposto prévio, pronto e acabado, que o juiz deva
simplesmente obedecer, mas no sentido de compreender que no texto normativo há algo
objetivo que não pode ser ignorado, não obstante seja apenas um limite à atividade de
construção da norma de decisão, na qual também contará a subjetividade do julgador.

Assim, se a discricionariedade conferida ao julgador não é tão ampla quanto a do


legislador, tampouco as decisões judiciais são elaboradas livremente ao querer do juiz, os
critérios para verificar a existência do ativismo judicial se encontram nos limites substanciais
que o próprio direito a aplicar estabelece. Por este motivo, a identificação do ativismo judicial
não é uma tarefa das mais fáceis, pois, a depender da própria interpretação e subjetividade de
quem analisa o fenômeno, poder-se-ia chegar a conclusões distintas. Ao se analisar o contexto
de aferição da existência do fenômeno do ativismo judicial, alcança-se o resultado de que há
decisões em que existe um relativo consenso quanto a existência ou não do ativismo judicial,
no entanto, a dificuldade na identificação do fenômeno resta concentrada na zona
intermediária entre estes dois extremos.

Portanto, conclui-se que o julgador, em seu mister, deve, ao interpretar os textos


regulamentares, buscar extrair todo o significado da norma, através das ferramentas que o
52

próprio ordenamento jurídico e a Hermenêutica lhe proporcionam, de maneira a escolher a


norma de decisão que melhor se adeque ao caso concreto. No entanto, neste intento, o juiz
deve caminhar até a baliza que delimita sua atuação, mas sem jamais ultrapassá-la. Vê-se,
pois, que a atuação judicial é localizada na zona fronteiriça que estabelece os limites
demarcatórios de validade e legitimação de sua atuação.

Atualmente, pode-se afirmar que o Brasil está atravessando uma crise de legitimidade
democrática, posto que os representantes eleitos, em grande parte, acabam por não defender
efetivamente os interesses de seus representados, atuando, isto sim, apenas em benefício
próprio, deturpando, desta forma, o princípio da representatividade democrática. Diante disto,
torna-se aparente que a última chance de salvação da sociedade está a cargo do Poder
Judiciário. É notório que o Judiciário tem importante dever nesta problemática e sem dúvida
um papel de protagonismo na solução destas dificuldades. No entanto, não se pode corrigir
um erro através de outro erro, isto é, ao Judiciário é vedado de que, na tentativa de solucionar
a crise de legitimidade democrática vivida no Brasil, por exemplo, exceda-se em suas
funções, ultrapassando os limites que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico. O Brasil é
um Estado Democrático de Direito e isto pressupõe regras e princípios caraterísticos, que às
vezes aparentam ser um bônus e em outras parecem um ônus da democracia, mas, que em
todo caso, precisam ser completamente respeitados. Deste modo, não é permitido ao
Judiciário corrigir os erros consequentes do exercício da democracia ou se alçar ao patamar de
“salvador da pátria”, pois se assim fosse, o Judiciário, ao exceder os limites a ele impostos e
ao exercer ilegitimamente as funções constitucionalmente atribuídas aos outros Poderes,
transformar-se-ia em um super-Poder.

Sendo assim, depreende-se que o ativismo judicial representa uma malquista anomalia
que afronta os princípios e regras basilares do próprio Estado Democrático de Direito. Até
porque, um agravo, por parte do Poder Judiciário, à Constituição, é sempre mais preocupante
do que qualquer outro cometido por quaisquer dos outros Poderes, uma vez que ao Judiciário
é atribuída a função primordial de guarda da Carta Constitucional.
53

REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. A Distinção Entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de
Proporcionalidade. In: Revista Diálogo Jurídico, ano 1, vol. 1, n. 4, Salvador: jul. 2001.
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/eadcnj/mod/resource/view.php?id=47756>. Acesso
em: 20 abr. 2017.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compilação de


Nello Morra. Tradução de Márcio Pugliesi et al. São Paulo: Ícone Editora Ltda., 1999.

BONAVIDES, Paulo. Jurisdição Constitucional e Legitimidade (algumas observações sobre o


Brasil). In: Estudos Avançados, vol. 18, n. 51, São Paulo: mai./ago. 2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200007>.
Acesso em: 30 mar. 2017.

BRASIL, Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. In:
PLANALTO. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 30
mar. 2017.

BRASIL, STF. ADI nº. 98-5/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 31.10.1997.

COUTURE, Eduardo Juan. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio A.


Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1979.

DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio


A. Carvalho. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do


pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1989.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de J. Baptista Machado.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão,


Dominação. 8ª edição. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015.
54

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Reconstrução da Democracia: ensaio sobre a


institucionalização da democracia no mundo contemporâneo e em especial no Brasil. São
Paulo: Editora Saraiva, 1979.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2008.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves et al. Liberdades Públicas. São Paulo: Saraiva,
1978.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 8ª edição. Petrópolis & Bragança
Paulista: Vozes & Ed. Universitária São Francisco, 2007.

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Tradução de


Flávio Beno Siebeneichler. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª


edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

HECK, Philipp. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses. Tradução de José


Osório. São Paulo: Saraiva, 1947.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da


Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20ª edição alemã. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2ª edição.
São Paulo: Martins Fontes, 1987.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José de Souza Brito et al.
2ª edição alemã. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.

MARSHALL, William P.. Conservatives and The Seven Sins of Judicial Activism. In: Public
Law and Legal Theory Research Paper, n. 02-8, Colorado: 2002. Disponível em:
<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=330266>. Acesso em: 20 abr. 2017.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª edição.


São Paulo: Malheiros, 2000.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Editora Coimbra, 1997.


55

MIRANDA NETTO, Fernando Gama. O ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal
Federal. In: SOUZA, Marcia Cristina Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coords.).
O novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro. Tradução de


Cristina Murachco. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate


Contemporâneo. In: Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 147, Rio de Janeiro: ago./dez.
2000.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2ª edição. São Paulo:
Editora Saraiva, 2015.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª edição. São Paulo: Editora Saraiva,
2002.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa: Que é o Terceiro Estado?.


Organização e introdução de Aurélio Wander Bastos. Tradução de Norma Azeredo. Rio de
Janeiro: Liber Juris, 1986.

SILVA, Beclaute Oliveira. Dimensões da Linguagem e a Efetividade dos Direitos


Fundamentais: uma abordagem lógica. In: Revista Jus Navigandi, ano 11, n. 1186, Teresina:
set. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8990/dimensoes-da-linguagem-e-a-
efetividade-dos-direitos-fundamentais/1>. Acesso em: 20 abr. 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Observatório Constitucional: o que é isto, o ativismo judicial, em


números?. In: Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2013. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-
numeros>. Acesso em: 1 abr. 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Observatório Constitucional: Supremo pode deixar de aplicar lei sem
fazer jurisdição constitucional?. In: Revista Consultor Jurídico, 25 out. 2014. Disponível
em: <http://www.conjur.com.br/2014-out-25/observatorio-constitucional-stf-deixar-aplicar-
lei-jurisdicao-constitucional>. Acesso em: 1 abr. 2017.

Potrebbero piacerti anche