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FACULDADES MONTENEGRO
Pós-Graduação Lato Sensu
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO
EM HISTÓRIA
Petrolina/PE
2012
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Petrolina/PE
2012
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Coordenador(a) do curso
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Examinador(a)
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Examinador(a)
Novembro
2012
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RESUMO
Pela Constituição Imperial de 1824, a religião do Estado era a Católica Apostólica Romana,
sendo, contudo, assegurada a permissão a outros cultos, desde que fossem praticados em
prédios sem a forma exterior de templos e que respeitassem a fé majoritária do Império. A
despeito do que dizia a lei, acatólicos de todo o país sofriam sérias restrições religiosas e civis
por conta da interpretação tradicional, geralmente inclinada aos interesses da igreja oficial.
Considerando esse contexto, o presente trabalho se propõe a investigar as contribuições do Pr.
Robert Reid Kalley na luta pela liberdade religiosa e pelos direitos civis dos acatólicos,
destacando o sucesso que obteve junto aos setores jurídicos e governamentais do Império,
contribuindo de forma efetiva para a posterior legalização e consolidação dos cultos
acatólicos no país.
ABSTRACT
By The Imperial Constitution of 1824, the State religion was Roman Catholic, being,
however, secured permission to other cults, as long as they were practiced in buildings
without the outer shape of temples and that respect the majority faith. Regardless of who said
the law, non-Catholics from all over the country were suffering serious religious and civil
restrictions due to the traditional interpretation, usually tilted to the interests of the official
Church. Given this context, the present study aims to investigate the contributions of Pastor
Robert Reid Reid Kalley in the struggle for civil rights and religious freedom of non-
Catholics, highlighting the success obtained with legal and governmental sectors of the
Empire, contributing effectively to the subsequent legalization and consolidation of non-
Catholics worship in the country.
KEYWORDS: Non-Catholics. State religion. Religious freedom. Civil rights. The Second
Empire.
*Graduated in History (UPE - Petrolina/PE Campus - 2007), Bachelor in Theology (Superior School of
Theology and Transcultural Studies – Montes Claros/MG - 1996) email: altemar7272@hotmail.com
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SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO..............................................................................................................08
2. INTRODUÇÃO...................................................................................................................08
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................32
10. REFERÊNCIAS…………………………….…………………………………………...34
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1. APRESENTAÇÃO
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, baseada nos principais autores que tratam da
trajetória do Pr. Robert Reid Kalley, médico-missionário escocês que se instalou na Corte
brasileira na segunda metade do século XIX, e que travou uma formidável batalha jurídica e
diplomática em favor da liberdade religiosa e dos direitos civis dos acatólicos.
Utilizando-se de uma cuidadosa revisão bibliográfica, na qual são confrontadas
opiniões de diversos autores de reconhecida autoridade no assunto, o presente artigo faz um
levantamento de algumas ações e posturas do investigado que confirmam a tese do autor de
que houve algum tipo de contribuição da parte de Kalley, na conquista de direitos e liberdades
para os acatólicos no Segundo Império brasileiro.
No primeiro capítulo, é feita uma investigação acerca da liberdade religiosa e dos
direitos civis no contexto do segundo Império, demonstrando as restrições a que eram
submetidos os acatólicos da época. Em seguida, realiza-se um inventário do status social do
pioneiro, constatando sua capacidade especial de estabelecer contatos com as mais elevadas
figuras da política e da própria Corte brasileira. Num terceiro momento, é demonstrado que
sua condição de médico e de incansável divulgador da Bíblia, o coloca em posição
privilegiada no estabelecimento de vínculos amigáveis com o extrato mais baixo da sociedade
de então (inclusive negros). Nos últimos três capítulos, ocupa-se de elucidar sua estratégia de
lançar mão da mídia, do protesto às estruturas injustas de sua época (como a escravidão), e da
busca pela reinterpretação da Constituição Imperial em seus artigos que tratavam dos direitos
dos acatólicos.
Finalmente, propõe o resgate histórico do Pr. Kalley, como um dos protagonistas das
lutas travadas em favor das liberdades e da cidadania no contexto do segundo império,
consignando-lhe um lugar de honra na galeria dos demais políticos, parlamentares,
governantes e diplomatas que lutaram pelo estabelecimento dos direitos na sociedade
brasileira.
2. INTRODUÇÃO
alemã que já transitavam, especialmente no Sul e Sudeste do país. Àquela época, os cidadãos
acatólicos sofriam restrições à sua prática religiosa, não tinham direito ao registro de
nascimento ou de casamento e ainda eram proibidos de sepultar seus mortos nos cemitérios
públicos.
Investigando o período do segundo reinado brasileiro (1840 a 1889), o presente artigo,
deixando de lado a simples constatação de Kalley, como pioneiro da evangelização em língua
portuguesa, fato já amplamente demonstrado em bibliografia consagrada, procurou dar um
passo além, dedicando-se a elucidar as suspeitas levantadas, de que a sua trajetória na Corte
brasileira havia, de algum modo, contribuído para a conquista da liberdade religiosa e dos
direitos civis dos cidadãos acatólicos na vigência do segundo império brasileiro.
Através de uma considerável pesquisa bibliográfica, o artigo focalizou a trajetória de
Kalley como médico, missionário e defensor dos menos favorecidos, diagnosticando e
destacando a sua relevante atuação em vários segmentos da sociedade brasileira, avaliando o
impacto e os efetivos resultados dessas ações no estabelecimento de uma nova realidade para
o direito dos cidadãos acatólicos da época.
Além de promover um relevante debate sobre a cidadania na segunda metade do
século XIX, o presente estudo é de grande importância também, por propor a inclusão do Pr.
Robert Reid Kalley como um dos principais atores da luta pelos direitos civis do século XIX,
resgatando o seu espaço histórico não apenas como fundador de uma denominação
protestante, mas como um dos principais protagonistas dessa luta ao lado de renomados
ícones da política nacional, da maçonaria, do positivismo, dos grupos abolicionistas e dos
defensores da implantação de uma nova realidade política e social no Brasil.
profundas limitações civis. A liberdade religiosa estava escrita na lei, mas o fato é que
acatólicos das mais diversas agremiações viam-se limitados em seus direitos, não podendo
praticar sua fé abertamente nem gozar das liberdades civis que os católicos usufruíam,
enquadrados numa espécie de subcidadania. Uma das razões para tal contradição, era que ...o
direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e
católicos que formavam a sociedade brasileira (GRIMBERG, 2001, p.37).
Tal influência católica na sociedade imperial produzia a falsa impressão de que o país
era formado apenas por católicos, ignorando totalmente a presença de seguidores de outras
religiões no Estado. Ficava implícito que tais grupos permaneceriam à margem da cidadania
brasileira, assim como as mulheres, os escravos e os indígenas, conforme explica Grimberg
(ibidem, pg.38):
Para além dos problemas causados por essa ligação perigosa, havia também o fato de
ela trazer implícita a consideração de que a população brasileira era composta única e
exclusivamente por católicos. Sem contar os seguidores das religiões africanas e
indígenas cristianizados – nem sempre por vontade própria - desde a abertura dos
portos, em 1808, e do estabelecimento da tolerância religiosa, a partir da Constituição
de 1824, havia um número crescente de protestantes e judeus habitando o país.
Essa noção era fruto da prerrogativa histórica concedida à igreja Católica de interferir
diretamente nos assuntos do Estado brasileiro inclusive, organizando a vida civil dos seus
habitantes, determinando quem tinha direito à cidadania e quem não tinha, como declarado
pela citada autora (ibidem, pg. 38):
Pela própria posição social do casal Kalley, tornava-se mais do que natural que os seus
principais contatos no Rio de Janeiro e também em Petrópolis, fossem procedentes da
aristocracia imperial, bem como altos dignitários estrangeiros, radicados no Brasil pelas boas
relações comerciais e diplomáticas internacionais estabelecidas desde a época do príncipe
Regente, D. João VI.
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Tanto o Rev. Kalley como a sua segunda esposa, Sra. Sarah Poulton Kalley, eram
procedentes de famílias abastadas e cultas da Escócia. Ele, Doutor em cirurgia e farmácia pela
Universidade de Glasgow, membro do Royal College of Physicians and Surgeons de
Endiburgo, aumentou ainda mais a fortuna herdada de sua família através de um próspero
consultório que manteve por alguns anos na cidade de Kilmarnock, e também por meio das
diversas viagens que fez à Asia e ao Oriente Médio como médico de bordo de luxuosos
navios que conduziam ricas famílias européias em viagens de lazer.
A família de Sarah, tanto por parte do pai como da mãe era formada de
industriais têxteis. Como resultado do sucesso nos negócios, os Morley e os
Wilson passaram a possuir enorme riqueza[...]Sarah descendia dos Morley,
uma das famílias mais ricas e poderosas do século XIX. No centro de muitas
modificações no campo político inglês, os Morley conseguiram manter-se
durante quase um século ocupando cadeiras no parlamento, elegendo-se em
três cidades: Londres, Nottingham e Bristol
A confortável situação financeira dos Kalley é um fato admitido por todos os seus
biógrafos, e confirmada pela maneira independente como conduziam suas ações, não tendo
necessidade de prestar relatórios a quaisquer entidades mantenedoras que fossem, como
outros missionários que foram enviados pelas missões batistas, presbiterianas, entre outras.
Com um status social e uma cultura tão proeminente, naquele contexto de pobreza e
ignorância em que vivia a maioria dos súditos do segundo Império, seria quase impossível
que Kalley e sua esposa passassem despercebidos no ambiente da Corte. Sua fortuna, sua
formação de médico e seu trânsito nas altas rodas em busca de um lugar adequado para o seu
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domicílio, de acordo com as conveniências que a sua elevada posição exigia, certamente o
conduziriam rapidamente a tocar as melhores camadas da sociedade brasileira.
Ainda a bordo do navio que os conduzia ao Brasil, puderam conhecer inúmeros
mandatários nacionais a exemplo de governadores de províncias, ministros, barões, viscondes
e outras figuras do alto escalão da política nacional, como relata Vieira (1980, pg. 116):
Chegando à Corte, Kalley andou pela cidade distribuindo relógios de ouro a várias
pessoas para quem trouxe cartas de apresentação. Infelizmente, o médico escocês não
registrou quem lhe dera as cartas, nem porque estava presenteando aquelas pessoas.
Convém questionar se tal aproximação se deu por mero acaso, ou se foi uma estratégia
previamente articulada pelos missionários, tendo em perspectiva algum benefício futuro para
seu empreendimento missionário a ser estabelecido em seu novo campo de ação.
Não há como afirmar categoricamente, entretanto, o que fica patente é o benefício que
as amizades e os contatos feitos no inicio de sua estada no país, proporcionaram à sua
propaganda religiosa, estabelecendo pontes preciosas de diálogo com figuras importantes do
governo que, simpáticas à sua postura de cordialidade, perspicácia e cavalheirismo, em várias
circunstâncias, foram favoráveis às suas atividades de médico e propagador da Bíblia Sagrada
nos domínios do império. Talvez seja isto que Cardoso (2001, pg. 134) queira dizer quando
afirma:
Posição mais aberta e enfaticamente defendida por Mafra (2001, pg. 14) quando diz:
Além das duas senhoras nobres que foram convertidas através da pregação de José
Pereira de Souza Louro, português batizado por Kalley em 1857, Gabriela Augusta Carneiro
Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto Esher, respectivamente irmã e sobrinha do
Marquês do Paraná, vários outros personagens de elevada posição no império, estabeleceram
algum tipo de relacionamento com os missionários escoceses. O primeiro, e o mais eminente
de todos não há dúvidas, foi o próprio Imperador, que lhes deu a honra de sua visita em mais
de uma ocasião e que em meio à controvérsia com o Ministro do Exterior, o Conselheiro J. M.
da Silva Paranhos sobre a legalidade da sua propaganda veio, pessoalmente, à sua residência
solicitar que pronunciasse uma palestra sobre suas viagens à terra Santa, conforme assinala
Vieira (1980, p. 121):
Dias mais tarde apareceu o Imperador outra vez na casa dos Kalleys, desta vez
acompanhado de um gentil-homem da Corte. O propósito declarado da visita de Dom
Pedro II foi pedir informação da terra Santa, por onde o médico escocês viajara e
conhecera amplamente. Essa segunda visita foi seguida por um convite para uma
audiência pública e de uma solicitação para que Kalley fizesse uma conferência sobre
a Palestina para a família imperial e à Corte.
tiveram no credo de Jobim. Em seguida destaca-o como: ...um dos maiores batalhadores pela
completa liberdade de religião no Brasil.
Com uma teia de relações tão influente no seio do Império brasileiro, sobretudo,
composta por elementos simpáticos à abertura religiosa do país, bem como tocados pelos
ideais liberalistas colhidos na Europa, onde a maioria dos representantes da elite nacional
recebia seu preparo intelectual, fica evidente que o Pastor Robert Reid Kalley se utilizou de
alguma forma dessa influência favoravelmente ao estabelecimento de seus ideais de liberdade
religiosa e direitos civis dos acatólicos.
Como exposto em outra parte deste trabalho, a partir de 1824, quando as primeiras
comunidades de imigrantes alemães começaram a se instalar em Nova Friburgo (RJ) e São
Leopoldo (RS), os protestantes já gozavam do direito de exercer sua fé, e até recebiam certa
medida de incentivo nessa tarefa. A própria Constituição Imperial de 1824 assegurava-lhes tal
liberdade. Contudo, até à chegada do Pr. Robert Reid Kalley, em maio de 1855, a presença
protestante no país pouco era sentida, dado o caráter restrito e limitado em que essas
comunidades expressavam sua religiosidade. Pode-se assegurar que apenas os estrangeiros
membros de tais confissões, é que tomavam parte nos serviços religiosos praticados em suas
residências e prédios, separados para esse fim. Reily (1984, pg. 38), assim se refere a essa
situação:
estavam por aí, exercendo suas atividades nos mais diversos ramos profissionais, negociando
com os brasileiros, atuando como importadores, exportadores, agricultores, médicos,
professores, advogados, altos funcionários dos governos estrangeiros e até artistas. Contudo,
no que concernia à sua fé, não deixavam espaço algum para o envolvimento com os
brasileiros, uma vez que os serviços religiosos praticados em suas comunidades não incluíam
a busca de novos convertidos nacionais e sim a manutenção da fé pátria.
Mais tarde, quando a estação quente de 1858 aproximava-se do fim, uma epidemia de
febre amarela varreu todo o Rio de Janeiro, dizimando parte da população. O Doutor
se entregou completamente ao combate da praga, não apenas cuidado dos doentes,
mas também escrevendo e distribuindo largamente um panfleto defendendo medidas
profiláticas de contaminação. A imprensa local elogiava o Doutor por sua valiosa
contribuição na luta contra a terrível doença.
Não há dúvida que sua atuação como médico no Brasil, não foi tão intensa como na
Ilha da Madeira (1838-1846), onde estabeleceu um hospital com atendimento diário,
utilizando o ensejo das consultas para a prática da evangelização. Contudo, não se pode negar
que aqui no Brasil, o exercício da medicina lhe abriu muitas portas também, propiciando-lhe
um ambiente favorável à criação de laços de amizade duradouros, tanto com pessoas da
aristocracia imperial, como das classes mais humildes. Foi pela sua atuação positiva como
médico que em 1859, quando foi proibido de clinicar por conta de acusações falsas de
membros do Núncio Apostólico, recebeu o apoio da população de Petrópolis que,
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Percebe-se, desta forma, que a atitude de Kalley lançando mão de suas habilidades
como médico, o colocaram frente a frente com o povo brasileiro, dando-lhe a oportunidade de
travar relacionamento com os mais diversos tipos, levando-o a desfrutar de um envolvimento
com os nacionais que outros grupos protestantes demorariam ainda muito tempo para obter.
A primeira escola bíblica dominical ocorreu ali numa tarde de domingo, dia 19 de
agosto de 1855. Gernheim fora gentilmente cedida à Sarah pela família Webb.
Aparentemente o inicio da escola bíblica foi informal, visto que aconteceu dentro de
uma casa emprestada. O casal Kalley ainda se encontrava residindo no Hotel do
Oriente, onde ficaria até 13 de outubro de 1855, data em que mudaria definitivamente
para Gernheim. Nesta primeira aula, Sarah lecionou a história do profeta Jonas,
participaram os filhos da Sra. Webb e da Sra. Carpenter(duas famílias inglesas). Além
do estudo bíblico cantaram hinos e oraram: Tudo em inglês. A tradição de Sarah em
escola bíblica dominical era muito mais forte do que a de Kalley, devido à sua
influência ser muito maior na Inglaterra do que na Escócia naquela época.
A partir dessa ocasião, a escola dominical passou a fazer parte do cotidiano da família
de Kalley em Petrópolis, estabelecendo vínculos de amizade e companheirismo com muitas
pessoas e envolvendo-a de forma direta com os mais diversos extratos daquela sociedade:
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crianças, adultos, nacionais, estrangeiros e até homens de cor como assegura Rocha apud
Reily (1984, pg. 96): Dois ou três domingos depois, o serviço já estava ampliado: O Sr. Dr.
Kalley dirigia uma classe, composta de homens de cor, com os quais conversava a respeito
das Escrituras.
O uso da estratégia da escola dominical e seus incrementos posteriores, em breve,
colocaria o Pr. Robert Kalley frente a frente com os brasileiros tanto em Petrópolis como
também no Rio de Janeiro, ensejando uma rica oportunidade para o envolvimento pessoal e
para o estabelecimento de amizade entre o missionário e o público que ele desejava alcançar.
Aliado ao uso da escola dominical, Kalley se valeu também da prática do culto
doméstico (reunião familiar onde se lêem as escrituras, fazem orações e se entoam cânticos
religiosos), que já era utilizado pelos protestantes estrangeiros antes da sua chegada ao Brasil,
só que num modelo mais formal (de acordo com a tradição de cada confissão) e somente em
língua estrangeira. Mesmo antes de vir para o Brasil, o culto doméstico já fazia parte do
conjunto de estratégias de proselitismo consagrado em sua obra, trazendo sempre em seu
núcleo, o diferencial da informalidade, da ausência de catecismos e o incentivo a participação
leiga. Tanto em sua estada na Ilha da Madeira, como em sua obra no Brasil (1855 a 1876),
não restam dúvidas de que o culto doméstico constituiu-se num dos mais relevantes
instrumentos de abordagem evangelística utilizado por Kalley. Santos e Lima (2012, pg. 46)
colocam o culto doméstico em primeiro lugar em sua lista de estratégias utilizadas na
evangelização do Brasil: Kalley, com sua propalada autonomia e independência, utilizou
como estratégias missionárias o culto doméstico, a prática de medicina social e a
alfabetização em escolas de primeiras letras.
Diferentemente dos outros protestantes que já povoavam o Império brasileiro, Kalley
em bem pouco tempo demonstrou sua intencionalidade de penetrar o universo nacional,
tocando a língua e a cultura locais, apresentando uma forma diferente de cristianismo, ao
tempo em que franqueou ao cidadão brasileiro a entrada ao restrito espaço religioso de matriz
protestante, território reservado apenas para os estrangeiros e seus descendentes, até aquele
momento da história. Em vez de apenas assistir e oficiar os serviços religiosos (sacramentos),
aos cidadãos britânicos ou alemães, ele vai além e se lança ao ousado empreendimento de
desvendar aos próprios brasileiros uma diferente proposta de crença, tendo como principal
fonte de inspiração a leitura particular e pessoal da Bíblia Sagrada.
Kalley, diferente do que ocorrera quando fora para a Ilha da Madeira em 1838, não
estava numa viagem ocasional, com uma perspectiva difusa quanto ao seu futuro; ele
vinha ao Brasil não por acaso, mas com propósitos definidos: evangelizar os
brasileiros e utilizar todos os recursos para fazer conhecida a Palavra de Deus[..] Nada
do que acontecia estava destituído de intencionalidade, a equipe de Kalley procurava
ganhar e utilizar os códigos da cultura para expandir-se, ganhando micro espaços nos
interstícios da sociedade[...] A sua criatividade em atingir, através dos colportores, os
micro-espaços da sociedade, seu uso do culto doméstico como meio de resistência e
propagação da religião clandestina e seu uso da mídia disponível(jornais) para
propaganda e persuasão, são notáveis como instrumentos para a inserção do
protestantismo no Brasil.
Dentre este conjunto de estratégias, o uso da mídia figura como um dos mais eficazes,
levando a sociedade mais culta do império a questionar a validade dos conceitos por ele
apresentados em suas publicações. Tal expediente, embora não pareça, captou de forma eficaz
a atenção dos brasileiros para a nova doutrina que estava sendo implantada no país. É bastante
relevante para o propósito desta pesquisa, o fato de a grande maioria dos autores que se
ocupam da vida do nosso investigado, destacar o uso da mídia da época, como importante
componente da sua estratégia. David Gueiros Vieira em seu livro, O protestantismo, a
maçonaria e a questão religiosa no Brasil, em seu capítulo sobre o Dr. Robert Kalley, abre um
tópico inteiro para falar sobre a sua ação na imprensa; Duncan A. Reily, em sua História
documental do protestantismo no Brasil alista a publicação de artigos ou obras na imprensa
diária como o primeiro meio empregado por Kalley para propagar o evangelho; Por fim,
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Ele era um grande oportunista. A imprensa diária o provia com material para artigos
que seriam publicados em jornais, principalmente no Correio Mercantil. Os seguintes
títulos indicam os mais variados assuntos com os quais ele lidou: A regra de Nossa Fé,
Uma Importante Confissão, Jesuitismo no Parlamento, O que é o Mundo?,Império
Brasilense e Império Eclesiástico, As Sagradas Escrituras, A Punição da Excomunhão.
Ele usava um pseudônimo, O Crítico ou, às vezes, O Católico-Protestante, e escreveu
um total de trinta e cinco artigos para o Correio! Então, também, escreveu cartas para
a imprensa, geralmente para corrigir uma má interpretação, fosse maliciosa ou de
outro tipo, das crenças e práticas protestantes.
Há quem diga que muitos dos argumentos utilizados por ele em seus artigos
jornalísticos, sobretudo no que concernia à defesa dos direitos à liberdade de culto e à
cidadania dos acatólicos, foram aproveitados por parlamentares brasileiros não-protestantes
em debates travados no Parlamento brasileiro quando discutiam a intolerância da religião
oficial no Império. Vieira (1980, pg. 132), é um dos que assim se posicionam: É interessante
observar como muitos dos argumentos de Kalley foram repetidos nos debates parlamentares
sobre esse assunto.
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Além das variadas matérias veiculadas nos jornais citados, sabe-se que o nosso
investigado dedicou-se à produção e também à tradução de textos considerados relevantes
para a formação de uma mentalidade mais inclinada aos ideais do protestantismo, mas
também de cunho social e educativo para a sociedade em geral. Parece que em face das
restrições legais para a divulgação de seus pensamentos e crenças em forma de sermão, ele
encontrou na mensagem escrita, um surpreendente aliado, criando uma alternativa de leitura
diferenciada para um segmento da sociedade ávido por novidades e que, sem se dar conta, ia
absorvendo aqueles conceitos, idéias e doutrinas, que simplesmente por serem de origem
britânica já presumia-se superior, considerando a hegemonia e a influência histórica que
aquela nação exercia desde os tempos de colônia portuguesa no Brasil. Traduziu o livreto O
Peregrino de John Bunyan e publicou em partes, no jornal Correio Mercantil. Distribuiu O
Ladrão da Cruz, panfleto de sua autoria produzido em língua portuguesa enquanto estava na
Inglaterra.
O problema era que tanto para protestantes quanto para judeus, não havia, durante a
vigência do Império, qualquer tipo de registro civil de nascimento ou casamento. As
uniões entre dois cônjuges não-católicos simplesmente não tinham qualquer valor
legal, nem pela igreja, nem pela legislação civil (Grimberg, 2001, pg.39).
Foi nesse cenário contraditório, que o Pr. Kalley estabeleceu seu empreendimento
missionário, defrontando-se com uma espécie de ambiguidade civil, onde a tolerância
religiosa declarada na Constituição Imperial se tornava, na prática, letra morta, em face da
hegemonia exercida pela religião oficial, e pelo exclusivismo exigido pela ala mais
conservadora do clero.
Considerando sua capacidade diplomática e a experiência adquirida ao longo de sua
trajetória missionária, pouco a pouco o Pr. Kalley foi utilizando o que de favorável existia nas
leis do país, para ganhar espaços ainda inexplorados por quaisquer outros grupos que o
antecederam. Nessa direção, posicionou-se de forma inteligente quanto aos direitos dos
acatólicos, buscando sempre ampliar o alcance da cidadania dos mesmos, usando ao máximo
sua posição e a força dos seus contatos.
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Em sua chegada ao Rio, Dr. Kalley soube que o governo brasileiro sancionara uma lei
que autorizava os ministros protestantes a conduzirem cerimônias de casamento para
não-católicos e também a registrarem tanto os nascimentos quanto os falecimentos.
Isto foi o resultado de uma batalha que perdurou por vários anos e na qual o Dr.
Kalley esteve indiretamente envolvido.[...] O método do Dr. Kalley de assegurar os
direitos legais dos crentes, estimulando a interpretação da Constituição e promovendo
a aprovação de projetos de leis mais liberais no Parlamento, estava se mostrando
eficaz.
Kalley chegou a excluir um membro da Igreja por não haver alforriado um negro de
ganho e fez veemente crítica à prática da escravidão vigente no Brasil. Publicou um
pequeno tratado teológico condenando a escravidão, um discurso que concorria a
favor da abolição do sistema escravista, junto com os liberais e os positivistas.
No campo das leis Kalley iniciou campanha favorável ao casamento civil através das
páginas do Correio Mercantil. Em paralelo criou um contrato de casamento
provisório[...] A vitória jurídica em Petrópolis no ano de 1859 e a aprovação de D.
Pedro II ao casal Kalley, em 1860, iniciaram um processo em série de conquistas dos
direitos dos acatólicos.[...] A próxima batalha legal seria quanto aos casamentos
mistos[...] No regulamento nº3069, de 17 de abril de 1863, a Secretaria do Império
normatizou estas questões, exigindo que ministros protestantes fossem registrados
naquela Secretaria após serem eleitos por suas respectivas igrejas. Na prática, além de
regularizar os atos civis dos protestantes, autorizava as igrejas e os ministros
protestantes.
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Nesse contexto, surge uma situação decisiva para o aprofundamento do debate sobre a
liberdade religiosa nas rodas políticas e diplomáticas do país: A denúncia que o Ministro do
exterior, José Maria da Silva Paranhos, formalizou junto à Legação Britânica no Brasil contra
ele. Na denúncia, Paranhos argumenta que o Pastor estava extrapolando os limites da
liberdade religiosa, deixando claro que sua interpretação da lei era parecida com a do clero da
Igreja Oficial, como descreve Vieira (1980, pg.119):
o ajudava nisto. Além disto, continuou Paranhos, por causa desse tipo de atividade
ilegal Kalley tinha sido expulso da Madeira e da Trindade, onde havia ocasionado
tumultos populares. Paranhos informou então a Stuart que a tolerância religiosa da
constituição brasileira não era tão ampla ao ponto de admitir a propaganda de
doutrinas contrárias à religião do Estado.
Considerando o fato, Kalley não viu outra alternativa senão, a de submeter sua prática
religiosa e proselitista ao escrutínio da lei, através de autoridades jurídicas do Império, na
expectativa de que as mesmas emitissem um parecer imparcial, derivado não da paixão
religiosa, mas unicamente da coerência jurídica, tomando por base os artigos citados acima.
Vale destacar que agindo assim, ele tomou uma atitude extrema e de elevado risco pois, na
hipótese de os advogados serem favoráveis à religião oficial,dando um parecer contrário ao
culto protestante, sua missão no Brasil poderia ter naufragado completamente, atrasando em
décadas a legalização da fé protestante, como afirma Cardoso (Ibidem, 2005, pg. 156):
Porém, para Kalley, ficava claro que era necessário reinterpretar a Constituição do
Império, e isso não somente diante da propaganda feita pelo governo brasileiro para
conquistar novos imigrantes. Era importante definir o nível de liberdade religiosa
existente no país. Assim sendo, ao enviar os quesitos aos três jurisconsultos Kalley
estava lançando à sorte o destino da inserção legal do Protestantismo no Brasil, e,
ciente dos riscos envolvidos, ele escolheu nomes reconhecidos na esfera jurídica e
politica do país. Os três eram católicos e políticos conservadores e possuíam perfis
adequados a terem sua interpretação aceita pelo governo.
Nada obstante, após duas semanas, o parecer dos juristas Dr. José Thomás Nabuco de
Araujo, Dr. Urbano Sabino Pessoa de Melo e Dr. Caetano Alberto Soares, foi completamente
favorável à propaganda protestante, autorizando o Pr. Robert Kalley a continuar realizando
seu culto doméstico e as demais práticas que sua religião exigia. Esse parecer foi anexado a
uma carta redigida por Kalley, na qual, dentre outras coisas, afirmava que caso fosse obrigado
a sair do Brasil por intolerância religiosa, divulgaria em toda a Europa, especialmente nos
países de onde o governo brasileiro esperava receber imigrantes, que a tolerância religiosa
anunciada no texto da Constituição não passava de palavras e, que pelo contrário, havia sérias
restrições à prática do culto acatólico nos domínios do país. O agente da Legação britânica,
William Stuart, informou posteriormente a Kalley que o governo brasileiro ficara satisfeito
com a sua defesa, passando o mesmo a gozar do privilégio de continuar realizado suas
atividades de conformidade com os limites da Constituição, como escreveu Cardoso (2001,
pg. 134).
A interpretação dada ao texto da Constituição até aquele momento, via de regra, estava
alinhada ao hábito secular, herdado de Portugal, de o poder eclesiástico sempre influenciar as
decisões do governo civil, como defende Junior (2004, pg. 331):
Diante disso, mesmo sendo a Constituição Imperial datada de 1824, ainda no momento
da denúncia que Paranhos formalizou contra Kalley (23 de junho de 1859), poucas tinham
sido as manifestações encaminhadas ao governo em favor de uma interpretação mais técnica,
e desvinculada dos interesses eclesiásticos.
É somente com a iniciativa de Kalley que uma nova interpretação realmente se
consolida, provendo argumentos sólidos da parte dos maiores representantes do direito e da
justiça nacional, para a concessão de privilégios e liberdades até àquele momento negados aos
acatólicos. Percebe-se que diante da argumentação dos juristas citados, o próprio Ministro do
Exterior se deu por satisfeito, fazendo cair por terra os temores dos demais representantes do
governo e outras autoridades de confrontarem o posicionamento sempre autoritário do
conservadorismo católico. Daí em diante, pouco a pouco as resistências à adoção da liberdade
religiosa como fato consumado vão caindo por terra na medida em que os próprios acatólicos
vão-se tornando também mais ousados e mais seguros dos seus direitos:
Certamente, a aceitação dos cultos de origem acatólica ainda teria de enfrentar muitos
embaraços até chegar à sua plenitude com a instituição do Estado laico, a partir da
promulgação da Constituição Republicana em 1891. Porém, o estabelecimento de uma nova
interpretação da Constituição Imperial obtida através da batalha travada pelo Pr. Robert
Kalley junto à diplomacia nacional, forneceu o precedente jurídico que as confissões
acatólicas, especialmente os protestantes, precisavam para sair da clandestinidade e passarem
a agir de forma mais intrépida, ocupando os espaços dominados até então, apenas pelo
catolicismo romano.
Nesse caso, o Pr. Robert Kalley eleva-se na história nacional como um dos
responsáveis diretos pela liberdade religiosa e pelos direitos civis do Segundo Reinado,
contribuindo amplamente, para o estabelecimento e consolidação do culto acatólico nos
domínios do Império brasileiro. Sua façanha ao levar o governo brasileiro a acatar essa nova
interpretação pode ser sintetizada nas palavras de um dos mais celebrados conhecedores da
Questão Religiosa e do período do Brasil-Império, Vieira (1980, pg. 133):
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Robert Kalley perante os juristas brasileiros e acatada pelo próprio Ministro do Exterior, Sr.
José Maria da Silva Paranhos.
Não restam dúvidas de que a conjuntura política e social do país já se inclinava para a
outorga da liberdade religiosa e dos direitos civis aos acatólicos e que mais cedo ou mais tarde
tais privilégios seriam obtidos. Porém, verificou-se que as ações coordenadas na estratégia de
Kalley, atuando em várias frentes ao mesmo tempo, contribuíram de forma decisiva para
adiantar o processo, encorajando o debate e a reflexão nas altas rodas do poder, culminando
com a rápida aprovação das leis e decretos favoráveis aos acatólicos.
Destaca-se ainda, nessa pesquisa, a constatação de que dentre os demais interlocutores
já referendados pela história como atores principais da luta pelas liberdades no país, encontra-
se também a figura de um pastor protestante, desconstruindo desta forma, a idéia
preconcebida de que a participação política do segmento evangélico é uma novidade no
cenário nacional e abrindo o espaço para que pesquisas mais aprofundadas sobre esse
tema,venham a ser empreendidas no futuro.
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10. REFERÊNCIAS
BRASIL, Presidência da República. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos.
Constituição política do império do Brasil, 25 de março de1824. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em
Ago. de 2012
BRASIL, Presidência da República. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Lei de 16
de dezembro de 1830. Disponívelem:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-
16-12-1830.htm>. Acesso em set. de 2012
. Robert Reid Kalley: Médico, Missionário e Profeta. São Bernardo do Campo: Ed.
do Autor, 2001
FORSYTH, William B. Jornada no Império. São José dos Campos/SP: Ed. Fiel, 2006
GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2001
JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004
SANTOS, Lyndon de Araújo; LIMA, Sérgio Prates. Robert Reid Kalley: Um missionário-
diplomata na gênese do protestantismo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2012