Sei sulla pagina 1di 32

1

FACULDADES MONTENEGRO
Pós-Graduação Lato Sensu
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO
EM HISTÓRIA

CONTRIBUIÇÕES DO PASTOR ROBERT REID KALLEY NA


CONQUISTA DA LIBERDADE RELIGIOSA E DOS DIREITOS CIVIS
DOS ACATÓLICOS NO SEGUNDO IMPÉRIO BRASILEIRO

ALTEMAR RIBEIRO DE OLIVEIRA

Petrolina/PE
2012
2

ALTEMAR RIBEIRO DE OLIVEIRA

CONTRIBUIÇÕES DO PASTOR ROBERT REID KALLEY NA


CONQUISTA DA LIBERDADE RELIGIOSA E DOS DIREITOS CIVIS
DOS ACATÓLICOS NO SEGUNDO IMPÉRIO BRASILEIRO

Artigo apresentado ao Curso de


Especialização em História Geral, das
Faculdades Montenegro - como requisito
parcial para obtenção do título de
Especialista em História, sob orientação do
Prof. Dr. Paulo Roberto Ramos

Petrolina/PE
2012
3

Artigo apresentado ao curso de História Geral


das Faculdades Montenegro

_______________________________________________

Aluno: Altemar Ribeiro de Oliveira

______________________________________________

Orientador: Profº. Dr. Paulo Roberto Ramos

______________________________________________

Coordenador(a) do curso

______________________________________________

Examinador(a)

_______________________________________________
Examinador(a)

Novembro
2012
4

“É escravo? Ninguém tem o direito de


fazê-lo escravo, roubando-lhe a liberdade
pessoal, negociando com uma criatura
humana, como se fosse uma máquina ou
objeto qualquer!”
Kalley apud Reily (1984, pg. 102)
5

CONTRIBUIÇÕES DO PASTOR ROBERT REID KALLEY NA


CONQUISTA DA LIBERDADE RELIGIOSA E DOS DIREITOS CIVIS
DOS ACATÓLICOS NO SEGUNDO IMPÉRIO BRASILEIRO

Altemar Ribeiro de Oliveira*

RESUMO
Pela Constituição Imperial de 1824, a religião do Estado era a Católica Apostólica Romana,
sendo, contudo, assegurada a permissão a outros cultos, desde que fossem praticados em
prédios sem a forma exterior de templos e que respeitassem a fé majoritária do Império. A
despeito do que dizia a lei, acatólicos de todo o país sofriam sérias restrições religiosas e civis
por conta da interpretação tradicional, geralmente inclinada aos interesses da igreja oficial.
Considerando esse contexto, o presente trabalho se propõe a investigar as contribuições do Pr.
Robert Reid Kalley na luta pela liberdade religiosa e pelos direitos civis dos acatólicos,
destacando o sucesso que obteve junto aos setores jurídicos e governamentais do Império,
contribuindo de forma efetiva para a posterior legalização e consolidação dos cultos
acatólicos no país.

PALAVRAS-CHAVE: Acatólicos. Religião do Estado. Liberdade religiosa. Direitos civis.


Segundo Império.

*Graduado em História (UPE - Campus Petrolina/PE - 2007), Bacharel em Teologia(Escola Superior de


Teologia e Estudos Transculturais – Montes Claros/MG - 1996) E-mail: altemar7272@hotmail.com
6

CONTRIBUTIONS OF PASTOR ROBERT REID REID KALLEY AT


CONQUEST OF RELIGIOUS FREEDOM AND CIVIL RIGHTS OF
NON-CATHOLICS IN THE SECOND BRAZILIAN EMPIRE

Altemar Ribeiro de Oliveira *

ABSTRACT
By The Imperial Constitution of 1824, the State religion was Roman Catholic, being,
however, secured permission to other cults, as long as they were practiced in buildings
without the outer shape of temples and that respect the majority faith. Regardless of who said
the law, non-Catholics from all over the country were suffering serious religious and civil
restrictions due to the traditional interpretation, usually tilted to the interests of the official
Church. Given this context, the present study aims to investigate the contributions of Pastor
Robert Reid Reid Kalley in the struggle for civil rights and religious freedom of non-
Catholics, highlighting the success obtained with legal and governmental sectors of the
Empire, contributing effectively to the subsequent legalization and consolidation of non-
Catholics worship in the country.

KEYWORDS: Non-Catholics. State religion. Religious freedom. Civil rights. The Second
Empire.

*Graduated in History (UPE - Petrolina/PE Campus - 2007), Bachelor in Theology (Superior School of
Theology and Transcultural Studies – Montes Claros/MG - 1996) email: altemar7272@hotmail.com
7

SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO..............................................................................................................08

2. INTRODUÇÃO...................................................................................................................08

3. A LIBERDADE RELIGIOSA E OS DIREITOS CIVIS NO CONTEXTO DO


SEGUNDO IMPÉRIO............................................................................................................09

4. A ATUAÇÃO DE KALLEY JUNTO À ARISTOCRACIA IMPERIAL.....................12


4.1 O status social dos Kalley...................................................................................................12
4.2 Os contatos com a aristocracia local...................................................................................13
4.3 Figuras de destaque no Império que firmaram amizade com Kalley..................................14

5. SEU ENVOLVIMENTO PESSOAL COM OS BRASILEIROS...................................15


5.1 Como médico......................................................................................................................16
5.2 Como pioneiro da escola dominical e do culto doméstico em língua portuguesa..............18

6. SUA APOLOGIA À DOUTRINA PROTESTANTE ATRAVÉS


DA MÍDIA DA ÉPOCA.........................................................................................................20
6.1 Os jornais e os temas publicados........................................................................................21
6.2 Produção e tradução de panfletos protestantes...................................................................22

7. SEU POSICIONAMENTO FRENTE ÀS QUESTÕES SOCIAIS.................................23


7.1 Registros de nascimento, casamento e óbito.......................................................................24
7.2 A questão da escravidão......................................................................................................25
7.3 O registro de igrejas protestantes na Secretaria do Império................................................27

8. SUA BUSCA PELA REINTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL


ACERCA DA LIBERDADE RELIGIOSA..........................................................................28

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................32

10. REFERÊNCIAS…………………………….…………………………………………...34
8

1. APRESENTAÇÃO

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, baseada nos principais autores que tratam da
trajetória do Pr. Robert Reid Kalley, médico-missionário escocês que se instalou na Corte
brasileira na segunda metade do século XIX, e que travou uma formidável batalha jurídica e
diplomática em favor da liberdade religiosa e dos direitos civis dos acatólicos.
Utilizando-se de uma cuidadosa revisão bibliográfica, na qual são confrontadas
opiniões de diversos autores de reconhecida autoridade no assunto, o presente artigo faz um
levantamento de algumas ações e posturas do investigado que confirmam a tese do autor de
que houve algum tipo de contribuição da parte de Kalley, na conquista de direitos e liberdades
para os acatólicos no Segundo Império brasileiro.
No primeiro capítulo, é feita uma investigação acerca da liberdade religiosa e dos
direitos civis no contexto do segundo Império, demonstrando as restrições a que eram
submetidos os acatólicos da época. Em seguida, realiza-se um inventário do status social do
pioneiro, constatando sua capacidade especial de estabelecer contatos com as mais elevadas
figuras da política e da própria Corte brasileira. Num terceiro momento, é demonstrado que
sua condição de médico e de incansável divulgador da Bíblia, o coloca em posição
privilegiada no estabelecimento de vínculos amigáveis com o extrato mais baixo da sociedade
de então (inclusive negros). Nos últimos três capítulos, ocupa-se de elucidar sua estratégia de
lançar mão da mídia, do protesto às estruturas injustas de sua época (como a escravidão), e da
busca pela reinterpretação da Constituição Imperial em seus artigos que tratavam dos direitos
dos acatólicos.
Finalmente, propõe o resgate histórico do Pr. Kalley, como um dos protagonistas das
lutas travadas em favor das liberdades e da cidadania no contexto do segundo império,
consignando-lhe um lugar de honra na galeria dos demais políticos, parlamentares,
governantes e diplomatas que lutaram pelo estabelecimento dos direitos na sociedade
brasileira.

2. INTRODUÇÃO

O Pr. Robert ReidKalley, missionário escocês, chegou ao Brasil em 10 de maio de


1855, embalado pelo projeto de implantar nessas terras uma igreja de matriz protestante, mas
que fosse formada basicamente por membros brasileiros e não por elementos procedentes da
imigração européia, como era o caso das diversas comunidades protestantes de fala inglesa e
9

alemã que já transitavam, especialmente no Sul e Sudeste do país. Àquela época, os cidadãos
acatólicos sofriam restrições à sua prática religiosa, não tinham direito ao registro de
nascimento ou de casamento e ainda eram proibidos de sepultar seus mortos nos cemitérios
públicos.
Investigando o período do segundo reinado brasileiro (1840 a 1889), o presente artigo,
deixando de lado a simples constatação de Kalley, como pioneiro da evangelização em língua
portuguesa, fato já amplamente demonstrado em bibliografia consagrada, procurou dar um
passo além, dedicando-se a elucidar as suspeitas levantadas, de que a sua trajetória na Corte
brasileira havia, de algum modo, contribuído para a conquista da liberdade religiosa e dos
direitos civis dos cidadãos acatólicos na vigência do segundo império brasileiro.
Através de uma considerável pesquisa bibliográfica, o artigo focalizou a trajetória de
Kalley como médico, missionário e defensor dos menos favorecidos, diagnosticando e
destacando a sua relevante atuação em vários segmentos da sociedade brasileira, avaliando o
impacto e os efetivos resultados dessas ações no estabelecimento de uma nova realidade para
o direito dos cidadãos acatólicos da época.
Além de promover um relevante debate sobre a cidadania na segunda metade do
século XIX, o presente estudo é de grande importância também, por propor a inclusão do Pr.
Robert Reid Kalley como um dos principais atores da luta pelos direitos civis do século XIX,
resgatando o seu espaço histórico não apenas como fundador de uma denominação
protestante, mas como um dos principais protagonistas dessa luta ao lado de renomados
ícones da política nacional, da maçonaria, do positivismo, dos grupos abolicionistas e dos
defensores da implantação de uma nova realidade política e social no Brasil.

3. A LIBERDADE RELIGIOSA E OS DIREITOS CIVIS NO CONTEXTO DO


SEGUNDO IMPÉRIO BRASILEIRO

Não obstante a tolerância religiosa declarada no texto da Constituição Imperial de


1824 em seu Artigo 5º favorecesse a livre circulação de protestantes e outros acatólicos no
território nacional, A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do
Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo (RIBEIRO, 1973, p.32), na
prática, o que ocorria era algo bem diferente, pois a hegemonia católica unida à falta de
acesso da grande maioria da população ao que prescrevia a lei, gerava a sensação de um
exclusivismo religioso que lançava as demais confissões na clandestinidade, impondo-lhes
10

profundas limitações civis. A liberdade religiosa estava escrita na lei, mas o fato é que
acatólicos das mais diversas agremiações viam-se limitados em seus direitos, não podendo
praticar sua fé abertamente nem gozar das liberdades civis que os católicos usufruíam,
enquadrados numa espécie de subcidadania. Uma das razões para tal contradição, era que ...o
direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e
católicos que formavam a sociedade brasileira (GRIMBERG, 2001, p.37).
Tal influência católica na sociedade imperial produzia a falsa impressão de que o país
era formado apenas por católicos, ignorando totalmente a presença de seguidores de outras
religiões no Estado. Ficava implícito que tais grupos permaneceriam à margem da cidadania
brasileira, assim como as mulheres, os escravos e os indígenas, conforme explica Grimberg
(ibidem, pg.38):

Para além dos problemas causados por essa ligação perigosa, havia também o fato de
ela trazer implícita a consideração de que a população brasileira era composta única e
exclusivamente por católicos. Sem contar os seguidores das religiões africanas e
indígenas cristianizados – nem sempre por vontade própria - desde a abertura dos
portos, em 1808, e do estabelecimento da tolerância religiosa, a partir da Constituição
de 1824, havia um número crescente de protestantes e judeus habitando o país.

Essa noção era fruto da prerrogativa histórica concedida à igreja Católica de interferir
diretamente nos assuntos do Estado brasileiro inclusive, organizando a vida civil dos seus
habitantes, determinando quem tinha direito à cidadania e quem não tinha, como declarado
pela citada autora (ibidem, pg. 38):

Mas na prática, como cabia à Igreja determinar a legalidade ou ilegalidade de um ato


civil, em última instância ela também tinha o poder de decidir sobre destinos de
propriedades e bens. Além disso, a igreja também detinha o poder de, no limite,
decidir qual seria o status jurídico de uma pessoa, já que os únicos documentos de
registro eram produzidos dentro da instituição, como, principalmente, os assentos de
batismo, que na prática, serviam como certidões de nascimento.

Nesse contexto, a legítima cidadania tornava-se privilégio quase que exclusivamente,


daqueles que professavam o catolicismo romano, mantendo sob rígidas limitações importante
parcela da população sobretudo, os protestantes, que à época do Segundo Império já
representavam uma cifra considerável, levando em conta a proliferação luterana em Nova
Friburgo/RJ e S. Leopoldo/RS, a partir de 1824, e dos missionários ingleses e Norte
americanos, implantadores de uma mentalidade conversionista e salvacionista, representados
especialmente pelo Pastor Dr. Robert Reid Kalley (congregacional) e pelo jovem Ashbel
Green Simonton (presbiteriano), que desembarcaram no Rio de Janeiro respectivamente em
1855 e 1859. Por outro lado, o trânsito de estrangeiros judeus, alemães, norte americanos e
11

especialmente britânicos, movidos pelas oportunidades de negócio abertas desde os tratados


de 1808 e 1810, e também por questões políticas ou mesmo culturais, engrossava cada vez
mais, o contingente acatólico no território brasileiro. Isso, sem falar nos convertidos
brasileiros que dia a dia iam sendo batizados e arrolados nos livros de membros das recentes
comunidades implantadas no Império, conforme pontuado por Mafra (2001, p.14):

Um ano e meio depois de sua organização, a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro


tinha 22 membros, dos quais, “dezessete são convertidos ao romanismo, três são
ingleses, admitidos por profissão de fé, e os outros dois foram recebidos por
transferência de outras igrejas”. A freqüência era bem maior, entre 60 e 90 pessoas.
Em pouco tempo, a sala de cultos da Travessa do Ouvidor tornava-se estreita demais
“pela afluência”

Nada obstante ao notável crescimento do contingente acatólico tanto de origem


nacional como também estrangeiro em nosso território, prevaleceu, ao longo do reinado de D.
Pedro II, uma configuração civil pouco diferente da que fora legada pelos portugueses,
predominantemente católica e intolerante para com as demais religiões. Nela, os direitos civis
e a liberdade de culto, apesar de constarem, textualmente no corpo da lei, mantinha a maioria
dos acatólicos, nacionais e estrangeiros, quase que completamente à margem de suas regalias,
negando-lhes o direito de participarem plenamente da vida civil e política da nação.
Sem direito a registro de nascimento, certidão de casamento ou mesmo ao
sepultamento nos cemitérios públicos, os cidadãos que não professavam a religião oficial
experimentavam uma espécie de clandestinidade civil, reforçada por uma religiosidade de
gueto que os reduzia à condição de minoria e os afastava de forma contundente da
participação efetiva da vida nacional.
Fica estabelecido, desta forma, que tanto a liberdade religiosa como os direitos civis
no contexto do segundo império eram diretamente proporcionais à proximidade que o
indivíduo mantinha com a religião do Estado, negando a ampla cidadania a qualquer um que
resolvesse, com base na própria consciência, adotar outra forma de culto divergente da
adotada pelo Império.

4. A ATUAÇÃO DE KALLEY JUNTO À ARISTOCRACIA IMPERIAL

Pela própria posição social do casal Kalley, tornava-se mais do que natural que os seus
principais contatos no Rio de Janeiro e também em Petrópolis, fossem procedentes da
aristocracia imperial, bem como altos dignitários estrangeiros, radicados no Brasil pelas boas
relações comerciais e diplomáticas internacionais estabelecidas desde a época do príncipe
Regente, D. João VI.
12

4.1 O STATUS SOCIAL DOS KALLEY

Tanto o Rev. Kalley como a sua segunda esposa, Sra. Sarah Poulton Kalley, eram
procedentes de famílias abastadas e cultas da Escócia. Ele, Doutor em cirurgia e farmácia pela
Universidade de Glasgow, membro do Royal College of Physicians and Surgeons de
Endiburgo, aumentou ainda mais a fortuna herdada de sua família através de um próspero
consultório que manteve por alguns anos na cidade de Kilmarnock, e também por meio das
diversas viagens que fez à Asia e ao Oriente Médio como médico de bordo de luxuosos
navios que conduziam ricas famílias européias em viagens de lazer.

Emile Leonard tem razão ao se referir à situação econômica de Kalley. Tanto


ele como sua segunda esposa pertenciam a famílias abastadas da Escócia.
Quando Kalley veio para o Brasil, alugou a casa do embaixador americano
em Petrópolis. Tinha duas camareiras alemãs e um jardineiro português,
privilégios incomuns para missionários (CESAR, 2000, p. 83)

Ela, filha de importantes industriais ingleses, era professora zelosa, musicista,


poliglota e compositora de centenas de hinos que, ainda hoje são cantados em igrejas ao redor
do mundo protestante. Acerca da posição social e dos recursos da Sra. Kalley, Cardoso (2005,
pp. 69,76) faz as seguintes afirmações:

A família de Sarah, tanto por parte do pai como da mãe era formada de
industriais têxteis. Como resultado do sucesso nos negócios, os Morley e os
Wilson passaram a possuir enorme riqueza[...]Sarah descendia dos Morley,
uma das famílias mais ricas e poderosas do século XIX. No centro de muitas
modificações no campo político inglês, os Morley conseguiram manter-se
durante quase um século ocupando cadeiras no parlamento, elegendo-se em
três cidades: Londres, Nottingham e Bristol

A confortável situação financeira dos Kalley é um fato admitido por todos os seus
biógrafos, e confirmada pela maneira independente como conduziam suas ações, não tendo
necessidade de prestar relatórios a quaisquer entidades mantenedoras que fossem, como
outros missionários que foram enviados pelas missões batistas, presbiterianas, entre outras.

4.2 OS CONTATOS COM A ARISTOCRACIA LOCAL

Com um status social e uma cultura tão proeminente, naquele contexto de pobreza e
ignorância em que vivia a maioria dos súditos do segundo Império, seria quase impossível
que Kalley e sua esposa passassem despercebidos no ambiente da Corte. Sua fortuna, sua
formação de médico e seu trânsito nas altas rodas em busca de um lugar adequado para o seu
13

domicílio, de acordo com as conveniências que a sua elevada posição exigia, certamente o
conduziriam rapidamente a tocar as melhores camadas da sociedade brasileira.
Ainda a bordo do navio que os conduzia ao Brasil, puderam conhecer inúmeros
mandatários nacionais a exemplo de governadores de províncias, ministros, barões, viscondes
e outras figuras do alto escalão da política nacional, como relata Vieira (1980, pg. 116):

Enquanto os Kalley estavam a caminho do Rio de Janeiro em 1855, diversos membros


do Parlamento tomaram o mesmo navio no Recife e na Bahia. Entre eles se
encontravam Francisco Xavier Paes Barreto (Presidente da Paraíba), Francisco
Gonçalves Martins (Visconde de São Lourenço), Domingos Souza Leão(Barão de
Vila Bela), João Lustosa Cunha Paranaguá(Marquês de Paranaguá) e outros políticos
de menos importância.

Ainda falando sobre a proximidade de Kalley com pessoas de alta dignidade do


Império brasileiro, Vieira (ibidem, pg.116), questiona um incidente registrado no diário do
missionário onde o mesmo, ao chegar ao país, distribui presentes e uma carta de apresentação
a algumas pessoas da Corte:

Chegando à Corte, Kalley andou pela cidade distribuindo relógios de ouro a várias
pessoas para quem trouxe cartas de apresentação. Infelizmente, o médico escocês não
registrou quem lhe dera as cartas, nem porque estava presenteando aquelas pessoas.

Convém questionar se tal aproximação se deu por mero acaso, ou se foi uma estratégia
previamente articulada pelos missionários, tendo em perspectiva algum benefício futuro para
seu empreendimento missionário a ser estabelecido em seu novo campo de ação.
Não há como afirmar categoricamente, entretanto, o que fica patente é o benefício que
as amizades e os contatos feitos no inicio de sua estada no país, proporcionaram à sua
propaganda religiosa, estabelecendo pontes preciosas de diálogo com figuras importantes do
governo que, simpáticas à sua postura de cordialidade, perspicácia e cavalheirismo, em várias
circunstâncias, foram favoráveis às suas atividades de médico e propagador da Bíblia Sagrada
nos domínios do império. Talvez seja isto que Cardoso (2001, pg. 134) queira dizer quando
afirma:

Anteriormente cercara-se de amigos influentes, aproximando-se também da Corte e do


imperador. Nos momentos de perseguição valeu-se destes contatos que possuía,
principalmente daqueles que possuíam pensamento conflitante com a religião oficial
(liberais, maçons, jansenistas, regalistas e galicanistas).

Posição mais aberta e enfaticamente defendida por Mafra (2001, pg. 14) quando diz:

Para preservar um campo de proselitismo discreto entre os homens livres de Petrópolis


– seus principais adeptos - Kalley não descuidou das relações com a aristocracia local,
tendo mesmo recebido, de tempos em tempos, visitas do imperador D. Pedro II.
14

Garantia assim um pequeno canto de exercício de certa liberdade religiosa através da


manutenção de relações pessoais com as duas pontas da cadeia social, fórmula que
não perdeu a validade no protestantismo que veio a seguir.

Para responder a questão da intencionalidade de Kalley na articulação de uma teia de


amizades tão ilustres no seio da Corte brasileira, talvez seja necessária uma pesquisa
posterior, focada exclusivamente para esse tema. Contudo, podemos afirmar pela presente
pesquisa, que há indícios de que mesmo antes do seu desembarque no Rio de Janeiro, já havia
um plano e uma estratégia que incluía o estabelecimento de contatos com determinadas
pessoas que supostamente facilitariam suas ações proselitistas em terras brasileiras.

4.3 FIGURAS DE DESTAQUE DO IMPÉRIO QUE FIRMARAM AMIZADE COM


KALLEY

Além das duas senhoras nobres que foram convertidas através da pregação de José
Pereira de Souza Louro, português batizado por Kalley em 1857, Gabriela Augusta Carneiro
Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto Esher, respectivamente irmã e sobrinha do
Marquês do Paraná, vários outros personagens de elevada posição no império, estabeleceram
algum tipo de relacionamento com os missionários escoceses. O primeiro, e o mais eminente
de todos não há dúvidas, foi o próprio Imperador, que lhes deu a honra de sua visita em mais
de uma ocasião e que em meio à controvérsia com o Ministro do Exterior, o Conselheiro J. M.
da Silva Paranhos sobre a legalidade da sua propaganda veio, pessoalmente, à sua residência
solicitar que pronunciasse uma palestra sobre suas viagens à terra Santa, conforme assinala
Vieira (1980, p. 121):

Dias mais tarde apareceu o Imperador outra vez na casa dos Kalleys, desta vez
acompanhado de um gentil-homem da Corte. O propósito declarado da visita de Dom
Pedro II foi pedir informação da terra Santa, por onde o médico escocês viajara e
conhecera amplamente. Essa segunda visita foi seguida por um convite para uma
audiência pública e de uma solicitação para que Kalley fizesse uma conferência sobre
a Palestina para a família imperial e à Corte.

Abaixo do Imperador, vários senadores, desembargadores e outros dignitários da Corte


fizeram parte da lista de amigos e simpatizantes do Pastor Robert Reid Kalley, dos quais,
destacam-se os senadores José Martins da Cruz Jobim, João Lins Vieira Cansanção de
Sinimbu, Bernardo de Sousa Franco e Luis Dantas de Barros Leite. Todos, de alguma forma
colaboraram com a causa da liberdade religiosa no Império, e, em algum momento,
manifestaram claro apoio à própria figura do pregador escocês. Do primeiro (Senador José
Martins da Cruz Jobim), Vieira (ibidem, p. 129), levanta a suspeita que tenha mesmo recebido
influência dos missionários quando diz: Seria interessante saber quanta influência os Kalleys
15

tiveram no credo de Jobim. Em seguida destaca-o como: ...um dos maiores batalhadores pela
completa liberdade de religião no Brasil.
Com uma teia de relações tão influente no seio do Império brasileiro, sobretudo,
composta por elementos simpáticos à abertura religiosa do país, bem como tocados pelos
ideais liberalistas colhidos na Europa, onde a maioria dos representantes da elite nacional
recebia seu preparo intelectual, fica evidente que o Pastor Robert Reid Kalley se utilizou de
alguma forma dessa influência favoravelmente ao estabelecimento de seus ideais de liberdade
religiosa e direitos civis dos acatólicos.

5. SEU ENVOLVIMENTO PESSOAL COM OS BRASILEIROS

Como exposto em outra parte deste trabalho, a partir de 1824, quando as primeiras
comunidades de imigrantes alemães começaram a se instalar em Nova Friburgo (RJ) e São
Leopoldo (RS), os protestantes já gozavam do direito de exercer sua fé, e até recebiam certa
medida de incentivo nessa tarefa. A própria Constituição Imperial de 1824 assegurava-lhes tal
liberdade. Contudo, até à chegada do Pr. Robert Reid Kalley, em maio de 1855, a presença
protestante no país pouco era sentida, dado o caráter restrito e limitado em que essas
comunidades expressavam sua religiosidade. Pode-se assegurar que apenas os estrangeiros
membros de tais confissões, é que tomavam parte nos serviços religiosos praticados em suas
residências e prédios, separados para esse fim. Reily (1984, pg. 38), assim se refere a essa
situação:

As comunidades alemãs, assim estabelecidas, eram tipicamente igrejas de imigrantes.


Usavam a língua materna nas igrejas e escolas, e muitos entenderam que a
manutenção do idioma era essencial à conservação da fé evangélica. Viveram, via de
regra, à margem da vida e cultura brasileiras e, por força das condições da vida rural,
muitos tinham pouca oportunidade de participação na vida da igreja.

Mesmo com o crescimento da população britânica no Rio de Janeiro e, com a


permissão para os clérigos protestantes oficiarem aos seus fiéis, a fé protestante continuou
sendo um elemento estranho aos nacionais, que pouco, ou quase nada sabiam a respeito do
seu conteúdo. Para o brasileiro comum, era como se o protestantismo não existisse no país, ou
como se fosse uma espécie de sociedade fechada, reservada apenas para os estrangeiros, não
apresentando qualquer tipo de relevância para a vida nacional. Seu caráter nada tinha de
evangelizante e, parecia ser mais de preservação das raízes folclóricas das comunidades
transplantadas. Nas palavras de Forsyth (2006, pg.120), O protestantismo havia chegado ao
Brasil, mas não como uma força militante. Isto é, apesar da sua presença, não houve
envolvimento direto dos protestantes de imigração com a população nativa do país. Eles
16

estavam por aí, exercendo suas atividades nos mais diversos ramos profissionais, negociando
com os brasileiros, atuando como importadores, exportadores, agricultores, médicos,
professores, advogados, altos funcionários dos governos estrangeiros e até artistas. Contudo,
no que concernia à sua fé, não deixavam espaço algum para o envolvimento com os
brasileiros, uma vez que os serviços religiosos praticados em suas comunidades não incluíam
a busca de novos convertidos nacionais e sim a manutenção da fé pátria.

5.1 COMO MÉDICO

Diferentemente dos seus antecessores, Kalley, seguindo um modus-operandi mais ou


menos igual ao utilizado em sua passagem pela Ilha da Madeira (com muito mais cautela, sem
dúvida), buscou aproximar-se dos brasileiros utilizando-se de uma estratégia que dificilmente
seria rejeitada pelo povo ou pelas autoridades, que era sua condição de médico.
Farmacêutico e cirurgião experiente, não se omitiu frente ao quadro lamentável da
saúde pública constatada no âmbito do Império, mas apresentou-se para cooperar no combate
a epidemias como ocorreu no caso do cólera, logo nos primeiros meses de estada no país,
conforme publicado pelo jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro datado de 20 de
novembro de 1855: O Sr. Dr. Robert Kalley, sacerdote protestante Inglês, que se acha entre
nós de viagem, ofereceu á comissão sanitária do município da Estrela os seus serviços em
favor da pobreza.Colaborou também no combate a uma epidemia de febre amarela que se
abateu no ano de 1858, como registrou Forsyth (2006, pg. 140):

Mais tarde, quando a estação quente de 1858 aproximava-se do fim, uma epidemia de
febre amarela varreu todo o Rio de Janeiro, dizimando parte da população. O Doutor
se entregou completamente ao combate da praga, não apenas cuidado dos doentes,
mas também escrevendo e distribuindo largamente um panfleto defendendo medidas
profiláticas de contaminação. A imprensa local elogiava o Doutor por sua valiosa
contribuição na luta contra a terrível doença.

Não há dúvida que sua atuação como médico no Brasil, não foi tão intensa como na
Ilha da Madeira (1838-1846), onde estabeleceu um hospital com atendimento diário,
utilizando o ensejo das consultas para a prática da evangelização. Contudo, não se pode negar
que aqui no Brasil, o exercício da medicina lhe abriu muitas portas também, propiciando-lhe
um ambiente favorável à criação de laços de amizade duradouros, tanto com pessoas da
aristocracia imperial, como das classes mais humildes. Foi pela sua atuação positiva como
médico que em 1859, quando foi proibido de clinicar por conta de acusações falsas de
membros do Núncio Apostólico, recebeu o apoio da população de Petrópolis que,
17

reconhecendo os seus prestimosos serviços dedicados ali, redigiu um longo abaixo-assinado


com centenas de assinaturas colocando-se ao seu lado. Jardim (1932, pg. 70), registrou o
cabeçalho do referido abaixo-assinado:

Nós abaixo-assignados declaramos que o procedimento do Medico Inglez, Doutor


Kalley, durante a sua residência em Petropolis, tem sido sempre o mais quieto e
bemfazejo, e desejamos que esteja no meio de nós para podermos consultal-o, quando
houver mister.

Percebe-se, desta forma, que a atitude de Kalley lançando mão de suas habilidades
como médico, o colocaram frente a frente com o povo brasileiro, dando-lhe a oportunidade de
travar relacionamento com os mais diversos tipos, levando-o a desfrutar de um envolvimento
com os nacionais que outros grupos protestantes demorariam ainda muito tempo para obter.

5.2 COMO PIONEIRO DA ESCOLA DOMINICAL E DO CULTO DOMÉSTICO EM


LÍNGUA PORTUGUESA

Tendo-se estabelecido na cidade de Petrópolis, Robert e Sarah inauguram em nosso


País a escola dominical, uma estratégia de evangelização e filantropia criada pelo jornalista
Robert Raikes, em 1780 na Inglaterra, que tinha como principal foco, livrar as crianças da
delinqüência juvenil, transmitindo-lhes princípios cristãos, morais, de higiene e cívicos.
Testemunha ocular dos resultados de tal estratégia em seu país, a Sra. Kalley não pensou duas
vezes quando se viu diante das crianças da família Webb e da família Carpenter: Aproveitou o
clima de informalidade daquela tarde de 19 de agosto de 1855, reuniu as crianças ao seu redor
e contou-lhes a história do profeta Jonas, seguida de orações e cânticos, utilizando-se de toda
a habilidade acumulada nos anos em que foi professora da escola dominical em Torquay, na
Inglaterra. Acerca desse episódio, Cardoso (2001, pg.112) assim se expressa:

A primeira escola bíblica dominical ocorreu ali numa tarde de domingo, dia 19 de
agosto de 1855. Gernheim fora gentilmente cedida à Sarah pela família Webb.
Aparentemente o inicio da escola bíblica foi informal, visto que aconteceu dentro de
uma casa emprestada. O casal Kalley ainda se encontrava residindo no Hotel do
Oriente, onde ficaria até 13 de outubro de 1855, data em que mudaria definitivamente
para Gernheim. Nesta primeira aula, Sarah lecionou a história do profeta Jonas,
participaram os filhos da Sra. Webb e da Sra. Carpenter(duas famílias inglesas). Além
do estudo bíblico cantaram hinos e oraram: Tudo em inglês. A tradição de Sarah em
escola bíblica dominical era muito mais forte do que a de Kalley, devido à sua
influência ser muito maior na Inglaterra do que na Escócia naquela época.

A partir dessa ocasião, a escola dominical passou a fazer parte do cotidiano da família
de Kalley em Petrópolis, estabelecendo vínculos de amizade e companheirismo com muitas
pessoas e envolvendo-a de forma direta com os mais diversos extratos daquela sociedade:
18

crianças, adultos, nacionais, estrangeiros e até homens de cor como assegura Rocha apud
Reily (1984, pg. 96): Dois ou três domingos depois, o serviço já estava ampliado: O Sr. Dr.
Kalley dirigia uma classe, composta de homens de cor, com os quais conversava a respeito
das Escrituras.
O uso da estratégia da escola dominical e seus incrementos posteriores, em breve,
colocaria o Pr. Robert Kalley frente a frente com os brasileiros tanto em Petrópolis como
também no Rio de Janeiro, ensejando uma rica oportunidade para o envolvimento pessoal e
para o estabelecimento de amizade entre o missionário e o público que ele desejava alcançar.
Aliado ao uso da escola dominical, Kalley se valeu também da prática do culto
doméstico (reunião familiar onde se lêem as escrituras, fazem orações e se entoam cânticos
religiosos), que já era utilizado pelos protestantes estrangeiros antes da sua chegada ao Brasil,
só que num modelo mais formal (de acordo com a tradição de cada confissão) e somente em
língua estrangeira. Mesmo antes de vir para o Brasil, o culto doméstico já fazia parte do
conjunto de estratégias de proselitismo consagrado em sua obra, trazendo sempre em seu
núcleo, o diferencial da informalidade, da ausência de catecismos e o incentivo a participação
leiga. Tanto em sua estada na Ilha da Madeira, como em sua obra no Brasil (1855 a 1876),
não restam dúvidas de que o culto doméstico constituiu-se num dos mais relevantes
instrumentos de abordagem evangelística utilizado por Kalley. Santos e Lima (2012, pg. 46)
colocam o culto doméstico em primeiro lugar em sua lista de estratégias utilizadas na
evangelização do Brasil: Kalley, com sua propalada autonomia e independência, utilizou
como estratégias missionárias o culto doméstico, a prática de medicina social e a
alfabetização em escolas de primeiras letras.
Diferentemente dos outros protestantes que já povoavam o Império brasileiro, Kalley
em bem pouco tempo demonstrou sua intencionalidade de penetrar o universo nacional,
tocando a língua e a cultura locais, apresentando uma forma diferente de cristianismo, ao
tempo em que franqueou ao cidadão brasileiro a entrada ao restrito espaço religioso de matriz
protestante, território reservado apenas para os estrangeiros e seus descendentes, até aquele
momento da história. Em vez de apenas assistir e oficiar os serviços religiosos (sacramentos),
aos cidadãos britânicos ou alemães, ele vai além e se lança ao ousado empreendimento de
desvendar aos próprios brasileiros uma diferente proposta de crença, tendo como principal
fonte de inspiração a leitura particular e pessoal da Bíblia Sagrada.

6. SUA APOLOGIA À DOUTRINA PROTESTANTE ATRAVÉS DA MÍDIA DA


ÉPOCA
19

À medida que o autor se aprofundava no estudo da trajetória do Dr. Kalley no Brasil,


crescia a suspeita de que ele possuía um conjunto de estratégias muito bem definido para a
sua tarefa de implantar a crença protestante entre os nacionais, tendo que para isso, superar a
intolerância religiosa e a precariedade dos direitos civis vigentes naquela época. Longe de
uma cartada aleatória, forjada na base do improviso ou numa viagem por motivos recreativos
ou culturais, como, aliás, defende Leonard (1981, pg. 49), a sua estada no Brasil apresenta
fortes indícios de um projeto muito bem elaborado, revelando estratégias que posteriormente
se mostrariam bastante eficazes na implantação, e, posterior consolidação da fé protestante no
país. Na opinião de alguns pesquisadores essa suspeita é tida mesmo como uma verdade
comprovada.
Tomando como base a visão de Cardoso, profundo conhecedor da vida e obra do Dr.
Kalley, percebe-se claramente a sua defesa de que o pastor escocês tinha um projeto bem
definido e que esse projeto constava de várias estratégias que foram utilizadas na implantação
de sua missão no país. É possível acompanhar o raciocínio do autor através das seguintes
passagens (2001, pp.110, 119, 167):

Kalley, diferente do que ocorrera quando fora para a Ilha da Madeira em 1838, não
estava numa viagem ocasional, com uma perspectiva difusa quanto ao seu futuro; ele
vinha ao Brasil não por acaso, mas com propósitos definidos: evangelizar os
brasileiros e utilizar todos os recursos para fazer conhecida a Palavra de Deus[..] Nada
do que acontecia estava destituído de intencionalidade, a equipe de Kalley procurava
ganhar e utilizar os códigos da cultura para expandir-se, ganhando micro espaços nos
interstícios da sociedade[...] A sua criatividade em atingir, através dos colportores, os
micro-espaços da sociedade, seu uso do culto doméstico como meio de resistência e
propagação da religião clandestina e seu uso da mídia disponível(jornais) para
propaganda e persuasão, são notáveis como instrumentos para a inserção do
protestantismo no Brasil.

Dentre este conjunto de estratégias, o uso da mídia figura como um dos mais eficazes,
levando a sociedade mais culta do império a questionar a validade dos conceitos por ele
apresentados em suas publicações. Tal expediente, embora não pareça, captou de forma eficaz
a atenção dos brasileiros para a nova doutrina que estava sendo implantada no país. É bastante
relevante para o propósito desta pesquisa, o fato de a grande maioria dos autores que se
ocupam da vida do nosso investigado, destacar o uso da mídia da época, como importante
componente da sua estratégia. David Gueiros Vieira em seu livro, O protestantismo, a
maçonaria e a questão religiosa no Brasil, em seu capítulo sobre o Dr. Robert Kalley, abre um
tópico inteiro para falar sobre a sua ação na imprensa; Duncan A. Reily, em sua História
documental do protestantismo no Brasil alista a publicação de artigos ou obras na imprensa
diária como o primeiro meio empregado por Kalley para propagar o evangelho; Por fim,
20

William B. Forsyth, em Jornada no império também consigna a atividade na imprensa


fluminense como poderoso aliado do pioneiro em sua obra na Corte brasileira (para citar
apenas alguns).

6.1 OS JORNAIS E OS TEMAS LEVANTADOS

Os principais veículos de imprensa que circulavam na Corte, eram utilizados com


freqüência, divulgando um estilo de matéria inovador na esfera esclarecida do Rio de Janeiro.
A apologia sutil aos conceitos protestantes, e a crítica indireta à religião oficial, num
momento em que a mesma já passava por diversas polêmicas frente aos setores cultos da
corte, de certa forma, minou a sua resistência frente à sociedade da época. Tais matérias eram
infiltradas com toda cautela, num universo em que o catolicismo já não gozava de um
conceito tão grande como em épocas passadas. Aproveitando-se desse vento favorável, o
pastor escocês investia sem economia, especialmente no Correio Mercantil, no Jornal do
Comércio e também no Diário do Rio de Janeiro.
Os temas explorados nos periódicos eram os mais variados. Orientações quanto aos
cuidados para com as epidemias do cólera e da febre amarela; polêmicas sobre a legitimidade
da veneração dos santos; questões relacionadas à guarda do domingo; a excomunhão
praticada pela igreja oficial e principalmente a apologia à doutrina protestante e a
possibilidade de acesso às Escrituras pelo cidadão comum. Forsyth (2006, pg. 165) assim se
expressa quanto aos jornais e temas utilizados por Kalley:

Ele era um grande oportunista. A imprensa diária o provia com material para artigos
que seriam publicados em jornais, principalmente no Correio Mercantil. Os seguintes
títulos indicam os mais variados assuntos com os quais ele lidou: A regra de Nossa Fé,
Uma Importante Confissão, Jesuitismo no Parlamento, O que é o Mundo?,Império
Brasilense e Império Eclesiástico, As Sagradas Escrituras, A Punição da Excomunhão.
Ele usava um pseudônimo, O Crítico ou, às vezes, O Católico-Protestante, e escreveu
um total de trinta e cinco artigos para o Correio! Então, também, escreveu cartas para
a imprensa, geralmente para corrigir uma má interpretação, fosse maliciosa ou de
outro tipo, das crenças e práticas protestantes.

Há quem diga que muitos dos argumentos utilizados por ele em seus artigos
jornalísticos, sobretudo no que concernia à defesa dos direitos à liberdade de culto e à
cidadania dos acatólicos, foram aproveitados por parlamentares brasileiros não-protestantes
em debates travados no Parlamento brasileiro quando discutiam a intolerância da religião
oficial no Império. Vieira (1980, pg. 132), é um dos que assim se posicionam: É interessante
observar como muitos dos argumentos de Kalley foram repetidos nos debates parlamentares
sobre esse assunto.
21

6.2 PRODUÇÃO E TRADUÇÃO DE PANFLETOS PROTESTANTES

Além das variadas matérias veiculadas nos jornais citados, sabe-se que o nosso
investigado dedicou-se à produção e também à tradução de textos considerados relevantes
para a formação de uma mentalidade mais inclinada aos ideais do protestantismo, mas
também de cunho social e educativo para a sociedade em geral. Parece que em face das
restrições legais para a divulgação de seus pensamentos e crenças em forma de sermão, ele
encontrou na mensagem escrita, um surpreendente aliado, criando uma alternativa de leitura
diferenciada para um segmento da sociedade ávido por novidades e que, sem se dar conta, ia
absorvendo aqueles conceitos, idéias e doutrinas, que simplesmente por serem de origem
britânica já presumia-se superior, considerando a hegemonia e a influência histórica que
aquela nação exercia desde os tempos de colônia portuguesa no Brasil. Traduziu o livreto O
Peregrino de John Bunyan e publicou em partes, no jornal Correio Mercantil. Distribuiu O
Ladrão da Cruz, panfleto de sua autoria produzido em língua portuguesa enquanto estava na
Inglaterra.

Em 5 de outubro de 1856, Kalley começa a utilizar a propaganda em jornais,


começando a publicar a tradução da obra de John Bunyan: O Peregrino no jornal
Correio Mercantil. Foram publicados em 35 capítulos, causando boa impressão junto
aos leitores. Este expediente se transformou em importante agente para insuflar idéias
evangélicas e liberais na sociedade e na corte(Cardoso, 2001, pg. 119,120).

Importou folhetos sobre o alcoolismo e os espalhou entre os moradores de Petrópolis,


alertando-os sobre o perigo de se tornarem dependentes daquele vício terrível: Kalley,
finalmente mandou buscar em Londres folhetos sobre alcoolismo e formou uma sociedade de
temperança na cidade (Ibidem,1980, pg.117).
De todas as suas produções no âmbito da mídia, a que se revelou mais eficaz e
duradoura, foi, sem dúvida, a publicação do Hinário Salmos e Hinos(17.11.1861), em parceria
com a sua esposa, Sarah Kalley. Para Santo se Lima (2012, pp. 66, 67), a publicação daquela
coletânea musical serviu também como base litúrgica para as demais denominações que
foram se instalando no Império:

No ano de 1861 deu-se a impressão da primeira coleção de 50 hinos com a tradução


de letras que formaram a base da hinologia evangélica no Brasil, utilizada pelas
demais denominações. Os Salmos e Hinos tiveram uma sucessão de edições que
procuraram aprimorar e acrescentar novos cânticos, a partir da experiência litúrgica da
igreja local e da sensibilidade musical de Sara Kalley. Ela foi a musicista que
compilou, traduziu, adaptou e propagou a tradição hinológica do protestantismo
europeu e norte-americano no Brasil, juntamente com seu esposo.
22

Numa época em que a mídia no Brasil tinha como carro-chefe os jornais e as


produções literárias, o Pr. Robert Kalley soube se valer muito bem desse espaço, investindo
alto em sua utilização, transformando-o numa verdadeira trincheira a partir da qual,
bombardeava idéias, conceitos e melodias com conteúdo apologético de matriz protestante
que, pouco a pouco, iam se insuflando no ambiente e no pensamento dos brasileiros, e que
podia ser utilizado como matéria de revisão tanto por seus adeptos como por missionários de
outras missões que iam se instalando pelo país na segunda metade do século XIX.

7. SEU POSICIONAMENTO FRENTE ÀS QUESTÕES SOCIAIS

Apesar do investimento do governo imperial em atrair mão de obra européia, em


substituição ao trabalho escravo, face à proibição do tráfico africano em 1850, havia
contradições que dificultavam a consolidação do projeto: A restrição civil, os limites da
cidadania dos súditos acatólicos residentes no país e a intolerância religiosa fomentada pelos
líderes da Igreja Oficial.
Se por um lado, desejavam ansiosamente receber os colonos estrangeiros com vistas
ao incremento de uma economia mais dinâmica, por outro, permitiam um ambiente que de
certo modo, hostilizava estrangeiros procedentes de diferentes confissões religiosas, negando-
lhes o amplo direito ao registro civil, ao casamento e até mesmo a um sepultamento digno
para seus familiares:

O problema era que tanto para protestantes quanto para judeus, não havia, durante a
vigência do Império, qualquer tipo de registro civil de nascimento ou casamento. As
uniões entre dois cônjuges não-católicos simplesmente não tinham qualquer valor
legal, nem pela igreja, nem pela legislação civil (Grimberg, 2001, pg.39).

Foi nesse cenário contraditório, que o Pr. Kalley estabeleceu seu empreendimento
missionário, defrontando-se com uma espécie de ambiguidade civil, onde a tolerância
religiosa declarada na Constituição Imperial se tornava, na prática, letra morta, em face da
hegemonia exercida pela religião oficial, e pelo exclusivismo exigido pela ala mais
conservadora do clero.
Considerando sua capacidade diplomática e a experiência adquirida ao longo de sua
trajetória missionária, pouco a pouco o Pr. Kalley foi utilizando o que de favorável existia nas
leis do país, para ganhar espaços ainda inexplorados por quaisquer outros grupos que o
antecederam. Nessa direção, posicionou-se de forma inteligente quanto aos direitos dos
acatólicos, buscando sempre ampliar o alcance da cidadania dos mesmos, usando ao máximo
sua posição e a força dos seus contatos.
23

7.1 REGISTROS DE NASCIMENTO, CASAMENTO E ÓBITO

Diante da ausência dos registros de nascimento e da negação ao direito da celebração


do casamento de seus fiéis, bem como ao sagrado direito a um lugar de sepultura, nosso
pesquisado se reinventou, na tentativa de resolver pelo menos um dos problemas dos
acatólicos, lançando mão de um contrato particular (de gaveta) para ser utilizado nas uniões
matrimoniais realizadas em sua paróquia. Tal postura, apesar de se chocar com o pensamento
da igreja romana, que exigia a prerrogativa de continuar sendo a detentora do direito de emitir
tais documentos, produziu mais do que o Doutor esperava, pois em 11 de setembro de 1861 o
governo imperial decretou a Lei nº 1144, autorizando o casamento dos acatólicos, abrindo o
precedente para o estabelecimento de outros direitos que em breve viriam a ser incorporados à
lei, trazendo incalculáveis benefícios para a minoria acatólica que povoava o império. Essa
conquista é narrada por Forsyth (2006, pp. 169, 170) da seguinte forma:

Em sua chegada ao Rio, Dr. Kalley soube que o governo brasileiro sancionara uma lei
que autorizava os ministros protestantes a conduzirem cerimônias de casamento para
não-católicos e também a registrarem tanto os nascimentos quanto os falecimentos.
Isto foi o resultado de uma batalha que perdurou por vários anos e na qual o Dr.
Kalley esteve indiretamente envolvido.[...] O método do Dr. Kalley de assegurar os
direitos legais dos crentes, estimulando a interpretação da Constituição e promovendo
a aprovação de projetos de leis mais liberais no Parlamento, estava se mostrando
eficaz.

Em 17 de abril de 1863 o Decreto Imperial de nº3069 regulamentou a Lei nº 1144,


estendendo também às religiões toleradas o direito ao registro de nascimento e o registro de
óbito de cidadãos acatólicos, lavrado não mais pelos padres da religião oficial, mas por
escrivães dos juízes de paz, ou, pelos próprios ministros protestantes que tivessem suas
congregações registradas na Secretaria do Império.

7.2 A QUESTÃO DA ESCRAVIDÃO

Uma das evidências mais surpreendentes do engajamento social de Kalley detectados


nesta pesquisa é, sem dúvida, a forma como se relacionou e tratou com a lamentável realidade
da escravidão. Num contexto em que a grande maioria de não-religiosos e clérigos de todas as
confissões manifestava uma quase unanimidade de posição, aprovando, ou simplesmente
mantendo-se indiferente à questão escrava no ambiente da Corte, nos deparamos com a figura
de Kalley, que assumiu uma postura à frente do seu tempo, relacionando-se com pessoas
negras da forma mais natural possível, sem nenhum tipo de restrição racial. Já no primeiro
24

momento da escola dominical e do culto doméstico em Petropólis, parte integrante do seu


público-alvo era composto por negros libertos e serviçais da vizinhança. Com o passar do
tempo, o rol de membros da Igreja Evangélica Fluminense também foi ganhando um colorido
todo especial com o registro de vários membros procedentes de origem escrava ou,
recentemente alforriados. Bastante esclarecedor a esse respeito é o comentário de Santos e
Lima (2012, pg. 81):

Desde o princípio da evangelização protestante em Petropólis(1855), os negros


estavam presentes nas classes de ensino e nos cultos domésticos. Kalley não se furtava
em reuni-los em torno do ensino das Escrituras. A religião representava para os negros
um espaço de ascensão social, de novas sociabilidades a serem vivenciadas no
contexto urbano. E não tardou para que houvesse negros conversos na comunidade.
Felipe Nery, Antonio José Garcia e Faustino Massão Carneiro foram negros
convertidos e batizados na Igreja Evangélica Fluminense.

Em todos os cantos do Império sopravam ventos abolicionistas. No meio protestante,


porém, os missionários estavam mais ocupados em como manterem sua propaganda em meio
à ilegalidade e à perseguição ultramontana. Refletir, discutir ou enfrentar a questão da
escravidão não estava na ordem do dia daqueles pregadores, levando em consideração que o
seu foco principal naquele momento estava mais voltado para a obtenção da licença para
implantarem suas congregações no território. Kalley, por outro lado, em vez de ficar
indiferente ou de se calar em relação ao vergonhoso sistema escravagista em vigor naquela
conjuntura, emitiu seu parecer e tomou as providências que estavam ao seu alcance, para
denunciar e inibir tal sistema. Fazendo isto, ele estava assumindo uma postura corajosa,
levando em consideração que essa medida que tomou em sua comunidade poderia ter
repercussões desastrosas para a continuidade de sua missão, uma vez que diversos
movimentos sociais no país já haviam fracassado por envolverem a crítica aberta ao
escravismo e aos seus defensores. Santos e Lima (Ibidem, pg. 81), confirmam essa posição:

Kalley chegou a excluir um membro da Igreja por não haver alforriado um negro de
ganho e fez veemente crítica à prática da escravidão vigente no Brasil. Publicou um
pequeno tratado teológico condenando a escravidão, um discurso que concorria a
favor da abolição do sistema escravista, junto com os liberais e os positivistas.

Diante desse quadro, a postura do Dr. Kalley se reveste de um ineditismo grandioso,


no momento em que emite seu parecer devidamente documentado e assinado em relação ao
que pensava sobre a realidade da mão de obra escrava, sobretudo a partir do prisma da fé
protestante. Isto foi documentado por Reily (1984, pp. 102,103) que citando um documento
emitido por Kalley na igreja Fluminense, assim escreve:
25

Muito embora o objetivo principal de Kalley e da Igreja Fluminense tenha sido


espiritual, há evidência de preocupação com questões como a escravidão, sistema
social então vigente no país. No dia 03 de novembro de 1865, preocupado com o fato
de Bernardino de Oliveira Rameiro, membro de sua igreja, possuir escravos, Kalley
fez uma exortação expondo seu ponto de vista sobre a escravidão. [...] ...O escravo
não é filho do seu proprietário; não trabalha porque o ama nem porque quer ser
generoso, trabalhando para ele como uma besta, sem obter recompensa de espécie
alguma do seu trabalho; o escravo só trabalha porque teme as ameaças de pancadas e
castigos desumanos da parte de um roubador da liberdade alheia! O senhor que
procede deste modo é inimigo de Cristo: não pode ser membro da igreja de Jesus,
daquele Jesus que nos resgatou da maldição...

A tomada de posição contra o sistema escravocrata no âmbito de sua igreja eleva a


figura do Pr. Kalley à condição de pioneiro no uso de medidas preventivas e também
punitivas à prática da escravidão no seio do jovem protestantismo nacional, harmonizando-se
com todas as demais posições tomadas anteriormente em favor dos direitos e das liberdades
dos acatólicos no país.

7.3 REGISTRO DE IGREJAS PROTESTANTES NA SECRETARIA DO IMPÉRIO

A primeira igreja evangélica em caráter permanente, genuinamente nacional a ser


fundada no Brasil, foi a Igreja Evangélica Fluminense, em 11 de julho de 1858. Esta veio a
ser também, a primeira a ter os seus estatutos registrados oficialmente na secretaria do
Império, tendo como o seu representante legal, o Pr. Dr. Robert Reid Kalley, que por longos
anos travou incansável batalha jurídica e política em favor do reconhecimento do culto
protestante no Brasil. Para obter o beneficio de ser reconhecida no Estado brasileiro, o Dr.
Kalley utilizou os mais diversos meios, contribuindo de maneira decisiva para que os setores
governamentais aprovassem as leis necessárias ao livre exercício do culto protestante em
nosso país. Fez campanhas na imprensa, consultou juristas renomados do império e se acercou
de inúmeros políticos influentes do parlamento na busca de reconhecimento dos direitos civis
e da liberdade de culto. Cardoso (2005, p.p. 177, 178) confirma os meios utilizados pelo
pastor:

No campo das leis Kalley iniciou campanha favorável ao casamento civil através das
páginas do Correio Mercantil. Em paralelo criou um contrato de casamento
provisório[...] A vitória jurídica em Petrópolis no ano de 1859 e a aprovação de D.
Pedro II ao casal Kalley, em 1860, iniciaram um processo em série de conquistas dos
direitos dos acatólicos.[...] A próxima batalha legal seria quanto aos casamentos
mistos[...] No regulamento nº3069, de 17 de abril de 1863, a Secretaria do Império
normatizou estas questões, exigindo que ministros protestantes fossem registrados
naquela Secretaria após serem eleitos por suas respectivas igrejas. Na prática, além de
regularizar os atos civis dos protestantes, autorizava as igrejas e os ministros
protestantes.
26

Percebe-se, que a oficialização do funcionamento de igrejas protestantes no império,


está de alguma forma relacionada às ações de Kalley, na medida em que fomentou o debate na
imprensa, criou alternativas aos instrumentos oficiais de cidadania, influenciou membros do
setor político e provocou uma reinterpretação de artigos importantes da constituição em vigor.
A presente pesquisa não ignora o fato de já existir um forte debate na esfera política
nacional em torno da liberdade de culto e dos direitos civis dos acatólicos mesmo antes das
reivindicações do nosso investigado. Entretanto, chama atenção o fato das referidas leis terem
sido aprovadas justamente após suas reivindicações (meados de 1859). Argumentar que tudo
não passou de mera coincidência, seria minimizar as evidências dos fatos relatados.

8. SUA BUSCA PELA REINTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL


ACERCA DA LIBERDADE RELIGIOSA

Já foi demonstrado neste trabalho, que os artigos da Constituição Imperial que


versavam sobre a tolerância religiosa (especialmente o Art 5º que dizia que todas as outras
religiões seriam permitidas, e o Art. 179, parágrafo 5, que assegurava que ninguém pode ser
perseguido por motivo de religião), eram totalmente ignorados, não traduzindo qualquer tipo
de privilégio para os acatólicos, mantendo-os na prática, totalmente impedidos de exercerem
sua fé e ainda sob forte ameaça dos setores mais exaltados da Igreja estatal. A esse respeito
Cardoso (2005, pg.156), assim se posiciona:

Até aquele momento a interpretação jurídica da Constituição do Império de 1824 não


privilegiava a adoção de cultos acatólicos, mesmo que esses seguissem as prescrições
da Carta Magna do Império brasileiro. O pensamento reinante fazia parte de uma
tradição própria de uma nação que desde as suas origens era católica romana

Nesse contexto, surge uma situação decisiva para o aprofundamento do debate sobre a
liberdade religiosa nas rodas políticas e diplomáticas do país: A denúncia que o Ministro do
exterior, José Maria da Silva Paranhos, formalizou junto à Legação Britânica no Brasil contra
ele. Na denúncia, Paranhos argumenta que o Pastor estava extrapolando os limites da
liberdade religiosa, deixando claro que sua interpretação da lei era parecida com a do clero da
Igreja Oficial, como descreve Vieira (1980, pg.119):

O que aconteceu em seguida é encontrado na correspondência diplomática, no Public


Record Office, em Londres. O Conselheiro J. N. da Silva Paranhos, Ministro do
Exterior do Gabinete de 12 de Dezembro de 1858, teve uma conferência com William
Stuart, o agente diplomático britânico, a 23 de junho de 1859. Nessa conferência,
Paranhos informou a Stuart que Inácio Francisco Silveira da Mota, Barão de Vila
Franca, presidente da Provincia do Rio de Janeiro, confidencialmente, apresentara
queixa contra Kalley. O presidente dissera que Kalley pregava o protestantismo ao
povo; que também pregava aos doentes e às famílias dos mesmos e que Sarah Kalley
27

o ajudava nisto. Além disto, continuou Paranhos, por causa desse tipo de atividade
ilegal Kalley tinha sido expulso da Madeira e da Trindade, onde havia ocasionado
tumultos populares. Paranhos informou então a Stuart que a tolerância religiosa da
constituição brasileira não era tão ampla ao ponto de admitir a propaganda de
doutrinas contrárias à religião do Estado.

Considerando o fato, Kalley não viu outra alternativa senão, a de submeter sua prática
religiosa e proselitista ao escrutínio da lei, através de autoridades jurídicas do Império, na
expectativa de que as mesmas emitissem um parecer imparcial, derivado não da paixão
religiosa, mas unicamente da coerência jurídica, tomando por base os artigos citados acima.
Vale destacar que agindo assim, ele tomou uma atitude extrema e de elevado risco pois, na
hipótese de os advogados serem favoráveis à religião oficial,dando um parecer contrário ao
culto protestante, sua missão no Brasil poderia ter naufragado completamente, atrasando em
décadas a legalização da fé protestante, como afirma Cardoso (Ibidem, 2005, pg. 156):

Porém, para Kalley, ficava claro que era necessário reinterpretar a Constituição do
Império, e isso não somente diante da propaganda feita pelo governo brasileiro para
conquistar novos imigrantes. Era importante definir o nível de liberdade religiosa
existente no país. Assim sendo, ao enviar os quesitos aos três jurisconsultos Kalley
estava lançando à sorte o destino da inserção legal do Protestantismo no Brasil, e,
ciente dos riscos envolvidos, ele escolheu nomes reconhecidos na esfera jurídica e
politica do país. Os três eram católicos e políticos conservadores e possuíam perfis
adequados a terem sua interpretação aceita pelo governo.

Nada obstante, após duas semanas, o parecer dos juristas Dr. José Thomás Nabuco de
Araujo, Dr. Urbano Sabino Pessoa de Melo e Dr. Caetano Alberto Soares, foi completamente
favorável à propaganda protestante, autorizando o Pr. Robert Kalley a continuar realizando
seu culto doméstico e as demais práticas que sua religião exigia. Esse parecer foi anexado a
uma carta redigida por Kalley, na qual, dentre outras coisas, afirmava que caso fosse obrigado
a sair do Brasil por intolerância religiosa, divulgaria em toda a Europa, especialmente nos
países de onde o governo brasileiro esperava receber imigrantes, que a tolerância religiosa
anunciada no texto da Constituição não passava de palavras e, que pelo contrário, havia sérias
restrições à prática do culto acatólico nos domínios do país. O agente da Legação britânica,
William Stuart, informou posteriormente a Kalley que o governo brasileiro ficara satisfeito
com a sua defesa, passando o mesmo a gozar do privilégio de continuar realizado suas
atividades de conformidade com os limites da Constituição, como escreveu Cardoso (2001,
pg. 134).

O governo imperial aceitou a documentação, comunicando este fato a Kalley em 3 de


agosto de 1859. Estes pareceres e a resolução governamental foram a jurisprudência
28

necessária para a implantação do protestantismo no Brasil, servindo de referência aos


demais grupos que começaram a chegar ao país.

A interpretação dada ao texto da Constituição até aquele momento, via de regra, estava
alinhada ao hábito secular, herdado de Portugal, de o poder eclesiástico sempre influenciar as
decisões do governo civil, como defende Junior (2004, pg. 331):

A igreja forma assim uma esfera de grande importância da administração pública.


Emparelha-se à administração civil, e é mesmo muito difícil, se não impossível
distinguir na prática uma da outra em muitos correntes casos.

Diante disso, mesmo sendo a Constituição Imperial datada de 1824, ainda no momento
da denúncia que Paranhos formalizou contra Kalley (23 de junho de 1859), poucas tinham
sido as manifestações encaminhadas ao governo em favor de uma interpretação mais técnica,
e desvinculada dos interesses eclesiásticos.
É somente com a iniciativa de Kalley que uma nova interpretação realmente se
consolida, provendo argumentos sólidos da parte dos maiores representantes do direito e da
justiça nacional, para a concessão de privilégios e liberdades até àquele momento negados aos
acatólicos. Percebe-se que diante da argumentação dos juristas citados, o próprio Ministro do
Exterior se deu por satisfeito, fazendo cair por terra os temores dos demais representantes do
governo e outras autoridades de confrontarem o posicionamento sempre autoritário do
conservadorismo católico. Daí em diante, pouco a pouco as resistências à adoção da liberdade
religiosa como fato consumado vão caindo por terra na medida em que os próprios acatólicos
vão-se tornando também mais ousados e mais seguros dos seus direitos:

As respostas dos três jurisconsultos inverteram completamente a interpretação


ultramontana da Constituição, que tinha sido aceita, até então.(...) Diante da carta de
explicação e, provavelmente, profundamente influenciado pela opinião legal dos três
ilustres jurisconsultos, Paranhos deu por encerrado o assunto.(Vieira, 1980, pg. 120)

O sucesso obtido na reinterpretação do texto constitucional não foi um benefício


particular para o empreendimento de Kalley. Na verdade ele se tornou um divisor de águas na
questão religiosa do Segundo Reinado brasileiro. A partir da conquista de uma interpretação
inédita dos artigos que tratavam da permissão para o culto acatólico atestada pelos maiores
ícones do direito nacional, da aceitação do Ministro Paranhos ao parecer jurídico obtido por
Kalley, e da resposta oferecida pela Legação britânica ao nosso pesquisado, pode-se assegurar
que, pelo menos no que concernia à Lei, a permissão para a adoção dos cultos acatólicos no
29

território brasileiro estava garantida, recebendo posteriormente, em várias situações, o apoio e


a proteção das autoridades governamentais e até policiais.
Sobre a garantia e a proteção da liberdade de culto dos acatólicos, assim se expressa o
pesquisador Boanerges Ribeiro:

A história da introdução e estabelecimento do protestantismo no Brasil vai testar a


tolerância constitucional. E, com franco amparo dos dirigentes nacionais, regalistas,
em processo histórico muitas vezes penoso, a tolerância com restrições tenderá, e
sempre mais, para a liberdade com garantias. Através de conflito constante, nossa
organização social ir-se-á acomodando à presença de protestantes; e os dirigentes
políticos, em regra, oferecerão ao novo segmento do sistema religioso nacional a
proteção militar, mais de uma vez necessária, para o livre exercício de seu culto e
propaganda (Ribeiro,1973, pg. 34)

Certamente, a aceitação dos cultos de origem acatólica ainda teria de enfrentar muitos
embaraços até chegar à sua plenitude com a instituição do Estado laico, a partir da
promulgação da Constituição Republicana em 1891. Porém, o estabelecimento de uma nova
interpretação da Constituição Imperial obtida através da batalha travada pelo Pr. Robert
Kalley junto à diplomacia nacional, forneceu o precedente jurídico que as confissões
acatólicas, especialmente os protestantes, precisavam para sair da clandestinidade e passarem
a agir de forma mais intrépida, ocupando os espaços dominados até então, apenas pelo
catolicismo romano.
Nesse caso, o Pr. Robert Kalley eleva-se na história nacional como um dos
responsáveis diretos pela liberdade religiosa e pelos direitos civis do Segundo Reinado,
contribuindo amplamente, para o estabelecimento e consolidação do culto acatólico nos
domínios do Império brasileiro. Sua façanha ao levar o governo brasileiro a acatar essa nova
interpretação pode ser sintetizada nas palavras de um dos mais celebrados conhecedores da
Questão Religiosa e do período do Brasil-Império, Vieira (1980, pg. 133):

Sua contribuição a várias reinterpretações das leis brasileiras sobre a liberdade


religiosa não pode ser negada. Sua ingerência nas lutas entre os liberais e a Igreja
foram bem reais. Sua contribuição para a luta pelas liberdades civis no Brasil merece
um estudo melhor do que o deixado pelo seu filho adotivo, Dr. João Gomes da Rocha.

Surge, então, desse embate jurídico-diplomático, a abertura para a legalização das


igrejas protestantes de missão, o reconhecimento dos seus pastores como líderes legítimos de
suas corporações e, pouco depois, a legalização dos atos reservados anteriormente apenas à
religião Oficial, a saber, os registros de nascimento, casamento e óbito, pelos referidos líderes,
através da Lei nº1.144 de 11 de setembro de 1861, regulamentada pelo Decreto Imperial nº
3069 de 17 de abril de 1863.
30

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro do processo de inserção do protestantismo no Brasil, o Pr. Robert Reid Kalley


é amplamente identificado pelos historiadores como o pioneiro da evangelização em língua
portuguesa, sendo-lhe atribuída a honra de fundador da primeira igreja evangélica
genuinamente nacional, a Igreja Evangélica Fluminense, em 11 de julho de 1858.
Compreendendo ser este um fato já estabelecido na historiografia nacional, o presente
artigo enveredou-se pela trajetória do médico escocês atento, não apenas aos feitos que
repercutiram em sua obra eclesiástica, mas procurou nas leituras já consagradas confirmar as
suspeitas de que sua caminhada no Império perseguia um projeto mais amplo, através do qual,
além da liberdade de culto, os acatólicos viessem a usufruir também dos privilégios civis
reservados até àquele instante apenas aos que se declaravam católicos romanos.
Nesse trajeto, a primeira constatação necessária foi a de que o período pesquisado,
excluía de fato, os acatólicos da vida civil do Império, não pela Lei em si, mas pela força da
interpretação ultramontana aceita pelo senso comum e legitimada por autoridades que a
subscreviam sem questioná-la. Em seguida, verificou-se que houve um investimento
intencional do Pr. Kalley na criação de vínculos de amizade com uma crescente teia de
personagens de destacadas posições na Corte brasileira, passando por governantes,
parlamentares e chegando até ao trono imperial. Ao mesmo tempo que agregava a elite,
cercava-se com toda a naturalidade de pessoas comuns através do exercício da medicina e das
reuniões domésticas em torno do estudo da Bíblia Sagrada e dos cânticos comunitários.
Verificou-se, também, pelas inúmeras publicações nos mais diversos órgãos de
imprensa da capital da Corte, o propósito de deixar ao alcance dos brasileiros a doutrina e os
costumes protestantes, oferecendo argumentos para que o cidadão questionasse o monopólio
religioso praticado pela igreja Católica. Constatou-se, por outro lado, que o nosso pesquisado
tomando conhecimento da realidade social em que viviam os acatólicos brasileiros, investiu
na criação de alternativas como a de na ausência de certidões de casamentos, redigir ele
mesmo um contrato particular para os membros de sua congregação que não aceitavam ser
casados perante os párocos católicos. Ou no inédito manifesto que publicou contra o ímpio
sistema escravocrata vigente e a forma como excluiu um membro de sua comunidade que se
recusara a alforriar seus cativos.
Além disso, a pesquisa revelou que é mais que provável que a aprovação da lei que
estendeu o direito ao registro de nascimento, casamento e sepultamento e suas
regulamentações aos acatólicos tenha conexão direta com a reinterpretação obtida pelo Pr.
31

Robert Kalley perante os juristas brasileiros e acatada pelo próprio Ministro do Exterior, Sr.
José Maria da Silva Paranhos.
Não restam dúvidas de que a conjuntura política e social do país já se inclinava para a
outorga da liberdade religiosa e dos direitos civis aos acatólicos e que mais cedo ou mais tarde
tais privilégios seriam obtidos. Porém, verificou-se que as ações coordenadas na estratégia de
Kalley, atuando em várias frentes ao mesmo tempo, contribuíram de forma decisiva para
adiantar o processo, encorajando o debate e a reflexão nas altas rodas do poder, culminando
com a rápida aprovação das leis e decretos favoráveis aos acatólicos.
Destaca-se ainda, nessa pesquisa, a constatação de que dentre os demais interlocutores
já referendados pela história como atores principais da luta pelas liberdades no país, encontra-
se também a figura de um pastor protestante, desconstruindo desta forma, a idéia
preconcebida de que a participação política do segmento evangélico é uma novidade no
cenário nacional e abrindo o espaço para que pesquisas mais aprofundadas sobre esse
tema,venham a ser empreendidas no futuro.
32

10. REFERÊNCIAS
BRASIL, Presidência da República. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos.
Constituição política do império do Brasil, 25 de março de1824. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em
Ago. de 2012

BRASIL, Presidência da República. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Lei de 16
de dezembro de 1830. Disponívelem:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-
16-12-1830.htm>. Acesso em set. de 2012

CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: Missionária Pioneira na Evangelização do


Brasil. São Bernardo do Campo: Ed. do Autor, 2005

. Robert Reid Kalley: Médico, Missionário e Profeta. São Bernardo do Campo: Ed.
do Autor, 2001

CESAR, Elben M. Lens. História da Evangelização do Brasil: Dos Jesuítas aos


Pentecostais.Viçosa/MG: Ed. Ultimato, 2000

Correio Mercantil, novembro de 1855, Disponível em:


<http://www.hemerotecadigital.bn.br/>. Acesso em jul. de 2012

FORSYTH, William B. Jornada no Império. São José dos Campos/SP: Ed. Fiel, 2006

GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2001

JARDIM, Henrique de Souza. Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica


Fluminense. Rio de Janeiro, 1932

JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004

LEONARD, E. G. O Protestantismo Brasileiro. Juerp/Aste: Rio de Janeiro-São Paulo, 1981

MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001

REILY, Duncan A. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste,


1984

RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico.São Paulo: Pioneira, 1973

SANTOS, Lyndon de Araújo; LIMA, Sérgio Prates. Robert Reid Kalley: Um missionário-
diplomata na gênese do protestantismo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2012

VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.


Brasília: Ed. Universidade de Brasilia, 1980

Potrebbero piacerti anche