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FREDERICO GARCIA
MICHELLE RALIL DA COSTA
LÍVIA PIRES GUIMARÃES
MAILA DE CASTRO LOURENÇO DAS NEVES
Vulnerabilidade e
o uso de drogas
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Ficha Catalográfica | Vulnerabilidade
e o uso de drogas
Os autores e os organizadores se empenharam para citar adequadamente e dar o devido
crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer material utilizado neste
livro, dispondo-se a possíveis acertos posteriores caso, inadvertida e involuntariamente, a
identificação de algum deles tenha sido omitida.
CDU 614
615.9
Lista de Figuras............................................................................................................06
Sobre os Organizadores.................................................................................................07
Sobre os Autores...........................................................................................................08
Apresentação...............................................................................................................13
Sessão 1: Conceitos e definições de vulnerabilidade..........................................................15
Figura 6: Impacto de experiências traumáticas e idade de início do uso de cocaína e crack ...143
Lívia Pires Guimarães Possui graduação em Psicologia pela Fundação Mineira de Educação
e Cultura (2005), Especialização em Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica /
Academia de Polícia (2007), Pós-Graduação em Gestão Pública em Organizações de Saúde
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), Pós-Graduação em Dependência Química
pela UNIFESP (2013) e Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais pela FUNE-
DI/UEMG (2011).
Michelle Ralil da Costa é psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Mi-
nas Gerais (2004); Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pelo Departamento de
Pediatria - Faculdade de Medicina/UFMG (2012) e Doutoranda do programa de Pós-gra-
duação em Saúde do Adulto/UFMG. Pesquisadora Associada do Núcleo de Pesquisa em
Drogas, Vulnerabilidade e Comportamentos de Risco a Saúde NUSA – UFMG e atualmente
professora convidada da Faculdade de Medicina da UFMG.
Maila de Castro Lourenço das Neves graduou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Minas Gerais (2003), fez Residência Médica em Psiquiatria pela
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2004), Residência Médica em Psicoterapia
pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2006), possui Mestrado em Farma-
cologia Bioquímica e Molecular pela UFMG (2006), e Doutorado em Medicina Molecular
(2008). É professora Adjunta de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG.
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Sobre os autores
Sociais e Cidadania pela UCSAL e Doutoranda do
Adalberto de Paula Barreto é Médico pela Universi- Programa de Pós-Graduação em Bioética, da Uni-
dade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Psiquiatria versidade de Brasília - UNB. Atualmente é coorde-
pela Universidade René Descartes Paris V. Doutor nadora de programas de prevenção na parceria en-
em Antropologia pela Universidade de Lyon II - tre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
França. Docente da Faculdade de Medicina da UFC – SENAD/Ministério da Justiça- MJ com a Fundação
e criador da abordagem da Terapia Comunitária In- Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Foi Coordenadora Geral
tegrativa. de Políticas de Prevenção, Tratamento e Reinserção
Social da SENAD / MJ. Ex-Coordenadora do Consul-
Adriana Prates é Cientista Social formada pela tório de Rua do CETAD/UFBA. Foi assistente social
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Cursa atual- do Núcleo de projetos especiais do CETAD/UFBA e
mente o Doutorado em Saúde Pública no Instituto coordenou a implantação do Consultório de Rua
de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Foi coordenadora do nos municípios de Salvador, Camaçari e Lauro de
Consultório de Rua nos períodos junho de 2010 a Freitas-BA.
maio de 2011; outubro de 2013 a maio de 2015.
Angelo Americo Martinez Campana é Graduado em
Alessandra Diehl é psiquiatra, tem formação em Medicina pela Faculdade de Medicina de Marília
Pesquisa Clínica (INVITARE), Especialização em De- -S.P (1977); tem Especialização em Psiquiatria pela
pendência Química na Universidade Federal de São UFRGS (1982); é Membro do Conselho Consultivo
Paulo (UNIFESP) e Sexualidade Humana na Univer- da ABEAD-Associação Brasileira de Estudos sobre
sidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciências pela Álcool e outras Drogas; é Diretor Administrativo da
UNIFESP. Doutorado pelo Departamento de Psi- Villa Janus- Porto Alegre-RS; é Presidente da ABEAD
quiatria da UNIFESP e especialista em EDUCAÇÃO bienio 2015/2017
SEXUAL pelo Centro Universitário Salesiano de
São Paulo. Certificado em Sexual and Reproductive Antônio Augusto Bastos Alvim é Psiquiatra. Médico
Health (Geneva Foundation for Medical Education Assitente do Ambulatório de Dependências Quími-
and Research 2014) and Adolescent Sexual and cas do IPSEMG desde 2012. Coordenador do Am-
Reproductive Health (Geneve Foudation, 2014). Co- bulatório de Dependências Químicas do IPSEMG
coordenadora e Professora do curso Sexualidade e desde 2015. Preceptor da Residência Médica em
Saúde Sexual (Módulos I e II) na pós-graduação do Psiquiatria do IPSEMG.
Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, Professo-
ra convidada do Centro Brasileiro de Pós-Gradua- Antonio Nery Filho é Médico. Psiquiatra. Professor
ções (CENBRAP), presidente do Centro de Estudos Aposentado da Faculdade de Medicina da Bahia
Psiquiátricos Américo Bairral (CEPAB 2015-2016). –FMB/UFBA. Médico Aposentado da Secretaria Es-
Membro do Grupo de Estudos em Sexualidade no tadual da Saúde. Bahia –SESAB. Consultor da Se-
Departamento de Psiquiatria da Universidade Fe- cretaria da Saúde do Município de Salvador, Bahia.
deral de São Paulo (UNIFESP). Pertence a equipe de Fundador e Coordenador Geral do Centro de Estu-
profissionais do Instituto Psiquiatria Américo Bair- dos e Terapia do Abuso de Drogas – CETAD/UFBA
ral e atende em consultório privado. (1985-2013). Ex-Membro do Conselho Regional de
Medicina da Bahia-CREMEB. Doutor em Sociologia
Amata Xavier Medeiros - Graduanda em Psicologia e Ciências Sociais pela Universidade Lumière Lyon
pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 2 . França. Pós-Doutorado na Universidade Laval.
Quebec-Canadá.
Ana Luisa Marliére Casela é psicóloga, graduada e
mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Breno Sanvicente-Vieira é psicólogo, mestre em
Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do Centro de Pes- psicologia com ênfase em cognição humana pela
quisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
(CREPEIA). do Sul (PUCRS), especialista em Terapia Cogniti-
vo-Comportamental pela Wainer e Piccoloto (WP),
Ana Maria de Carvalho é psicóloga do sistema pri- doutorando em psicologia pelo Programa de Pós
sional da Secretaria de Estado de Defesa Social de Graduação em Psicologia da PUCRS, docente em
Minas Gerais. psicologia pela Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA).
Andréa Leite Ribeiro Valério é Graduada em Serviço
Social pela Universidade Católica de Salvador - UC- Carolina Couto da Mata é Terapeuta Ocupacional,
SAL, Especialista em Saúde Mental pela Universida- Especialista em Atendimento Sistêmico à Família,
de do Estado da Bahia – UNEB. Mestre em Políticas Mestre e Doutoranda em Psicologia pela UFMG, Co-
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ordenadora Clínica da Comunidade Terapêutica da Sexual and Reproductive Health (Geneva Foundation
Terra Sobriedade/BH-MG. for Medical Education and Research, 2014). Professora
e co-coordenadora do Curso “Sexualidade e Saúde
Claiton Henrique Dotto Bau Graduação em Medici- Sexual” - Módulos I e II - no programa da pós-gra-
na pela UFSM (1990), Mestrado (1992) e Doutora- duação do Departamento de Psiquiatria da Univer-
do (1998) pela UFRGS. Pós-doutorado no “National sidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e membro
Institutes of Health” (2001). Professor Titular do do Grupo de Estudos em Sexualidade da UNIFESP.
Departamento de Genética, UFRGS. Orientador nos Terapeuta certificada pela Federação Brasileira de
Programas de Pós-Graduação em Genética e Bio- Terapias Cognitivas (FBTC), Terapeuta em formação
logia Molecular - PPGBM e em Ciências Médicas: em Eye Movement Desensitization and Reprocessing
Psiquiatria (UFRGS). Atual Chefe do Departamento (EMDR) e Brainspotting.
de Genética, UFRGS. Ex-coordenador do PPGBM-U-
FRGS. Investigador em genética psiquiátrica, com Diego Peixoto de Souza é Graduando(a) do curso de
ênfase no transtorno de déficit de atenção / hipera- medicina – UFMG e aluno de extensão vinculado
tividade e dependências de álcool e nicotina. ao Centro Regional de Referência em Drogas CRR/
UFMG.
Cynthia Wolle é Psicóloga e Psicanalista. Mestre em
Ciências pelo Departamento de Psiquiatria e Psico- Doralice Oliveira Gomes é Psicóloga pela Universi-
logia Médica da UNIFESP. Especialista em Depen- dade de Brasília. Mestre em Saúde da Família pela
dência Química pela UNIFESP. Especialista em Psi- Universidade Federal do Ceará. Formadora em Tera-
cologia Clínica e Teoria Psicanalítica pela PUC-SP. pia Comunitária Integrativa. Atuou como Coordena-
Psicóloga do Hospital Infantil Darcy Vargas. dora Geral de Prevenção pela Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas.
Daniel Barcelos é bacharel em Direito pelas Fa-
culdades Integradas do Oeste de Minas, Especia- Edilaine Moraes é Psicóloga clínica. Pós Doutora
lista em Direito Penal e Direito Processual Penal em Psiquiatria e Psicologia Médica - UNIFESP - Uni-
pela UNICOC, Especialista em Segurança Pública versidade Federal de São Paulo. Especialista em
e Complexidade pela Escola Superior Dom Helder Dependência Química – UNIAD / UNIFESP. MBA em
Câmara, Mestre em Administração pelo Centro Uni- Economia e Gestão em Saúde – GRIDES / UNIFESP.
versitário UNA. Coordenadora e professora em cursos de Educação
à Distância - UNIAD / UNIFESP.
Daniele da Silva Gonçalves Pompeu de Camargo
é Psicóloga com formação em Terapia Cogniti- Enio Roberto Pietra Pedroso Graduado em Medici-
vo-Comportamental pelo CETCC, Especialista em na (1973), mestrado em Medicina Tropical (1977), e
Dependência Química pela UNIAD/UNIFESP e em doutorado em Medicina Tropical (1982) pela Uni-
Neuropsicologia pelo Centro de Estudos Psico-Ci- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Profes-
rúrgicos e Divisão de Psicologia do Instituto Central sor titular do Departamento de Clínica Médica da
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina Faculdade de Medicina, membro do Corpo Clínico
da Universidade de São Paulo, Pós-Graduanda (lato Permanente do Serviço Especial de Diagnóstico e
sensu) em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Tratamento em Clínica Médica e em Doenças In-
Instituto de Terapia Cognitiva. Homepage: HYPER- fecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas
LINK “http://www.danielegoncalves.com.br/”www. da UFMG. Editor Geral da Revista Médica de Minas
danielegoncalves.com.br Gerais.
Denise Leite Vieira é psicóloga, terapeuta sexual Érika Pizziolo Monteiro é psicóloga, graduada e
pelo Centro de Sexologia de Brasília (Cesex), espe- mestre em Psicologia pela Universidade
cialista em Sexologia Clínica pelo Centro de Sexolo- Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do
gia de Brasília e Escola Bahiana de Medicina e Saú- Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção
de Pública, especialista em Educação Sexual pelo em Álcool e Drogas (CREPEIA).
Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNI-
SAL), mestre em Clinical and Public Health Aspects of Erica Cruvinel Psicóloga, graduada pela Universida-
Addiction pelo Institute of Psychiatry, King’s College, de Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Saúde
University of London, doutora em Ciências pelo De- Coletiva pela UFJF, tendo como objeto de estudo
partamento de Psiquiatria da Universidade Federal na dissertação de mestrado a relação entre o Cli-
de São Paulo (UNIFESP). Certificado em Sexual and ma Organizacional e atividades de prevenção ao
Reproductive Health Research (Geneva Foundation for consumo de álcool, tabaco e outras drogas. Dou-
Medical Education and Research 2014) e Adolescent toranda pelo Programa de Pós-graduação em Psi-
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cologia, UFJF, doutorado sanduíche pelo CNPQ na dade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora
Universidade de Kansas, KU Medical Center, EUA. do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em
Atua no desenvolvimento de projetos de pesquisa Álcool e Drogas (CREPEIA).
e extensão na área de álcool, tabaco e outras dro-
gas, com enfoque na implementação de atividades José Aniervson Souza dos Santos é Aluno do Pro-
preventivas na rede assistencial . É pesquisadora grama de Pós-Graduação em Educação, Culturas e
do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção Identidades da Universidade Federal Rural de Per-
e Avaliação em Álcool e Drogas (CREPEIA) da UFJF. nambuco (UFRPE) e da Fundação Joaquim Nabuco
Atua como coordenadora de módulo e docente do (FUNDAJ). Membro do Grupo de Estudos da Trans-
Centro Regional de Referência sobre Drogas, CRR, disciplinaridade, da Infância e da Juventude – GETIJ.
Belo Horizonte e professora formadora em Juiz de
Fora. Está envolvida em pesquisas na área de ces- Juliana Joni Parada é psiquiatra Titular da Associa-
sação do consumo de tabaco no ambiente hospita- ção Brasileira de Psiquiatria. Especialista em de-
lar. É membro-fundadora da Associação de Terapias pendência química pela UNIAD/UNIFESP. Coorde-
Cognitivas do Estado de Minas Gerais (ATC-MG). nadora do Ambulatório de Dependências Químicas
do IPSEMG de 2009 a 2015. Preceptora da Residên-
Fabiana Paula Bueno da Silva é Graduanda do curso cia Médica em Psiquiatria do IPSEMG.
de medicina – UFMG e aluna de extensão vinculada
ao Centro Regional de Referência em Drogas CRR/ Juliana Rodante é aluna de graduação em medicina
UFMG. da Faculdade de Medicina da UFMG.
Felipe José Nascimento Barreto é médico psiquiatra Leonardo Alves Ferreira Almeida é aluno de gra-
e psicogeriatra pelo Hospital das Clínicas da UFMG. duação em medicina da Faculdade de Medicina da
Mestrando em Medicina Molecular pela Faculdade UFMG.
de Medicina da UFMG.
Luania Ludmilla Castro é Bacharel em Ciências Sociais
Fernando Santana de Paiva Psicólogo e Mestre em pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF). Doutor em Psicologia Social pela Luisa Fernanda Habigzang é Doutora em psicologia
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pro- pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
fessor Adjunto da Universidade Federal de São João Professora do Programa de Pós Graduação em Psi-
Del Rei (UFSJ). cologia da PUCRS, coordenadora do Grupo de Pes-
quisa em Violência, Vulnerabilidade e Intervenções
Geraldo Mendes de Campos é Psicólogo clínico, es- Clínicas (GPEVVIC).
pecialista em Dependência Química pela UNIAD /
UNIFESP. Professor de graduação em Psicologia e Luisa Zamagna Maciel é Psicóloga Especialista em
de Pós-Graduações em Dependência Química. Ges- Terapia Cognitivo-Comportamental pela Wainer e
tor em Saúde Pública e Políticas Públicas no seg- Piccoloto (WP), mestranda em psicologia pelo Pro-
mento de Álcool, Tabaco e Outras Drogas. Preceptor grama de Pós Graduação em Psicologia da Ponti-
do SUS – Sistema Único de Saúde fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS).
Guilherme da Rocha B. Costa é Mestre em Econo-
mia, pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Marco Túlio de Aquino Possui graduação em Medicina
Filho (UNESP) e Doutor em Políticas Públicas, Es- pela UFMG em 1990, residência em psiquiatria pelo
tratégia e Desenvolvimento, pela Universidade Fe- Instituto de Previdência dos Servidores do Estado
deral do Rio de Janeiro (UFRJ). de Minas Gerais (1993), Título de Especialista em
Psiquiatria pelo Conselho Federal de Medicina (1995),
Hugo Monteiro Ferreira é Professor do Departa- Título de Especialista em Psiquiatria pela Associação
mento de Educação, Universidade Federal Rural de Brasileira de Psiquiatria-ABP (2004), Pós-Graduação em
Pernambuco. Professor Permanente do Programa Perícia Médica pela Fundação Unimed/Universidade
de Pós-Graduação Educação, Culturas, Identidades Gama Filho (2005), Mestre em Ciências da Saúde pela
(UFRPE/FUNDAJ). Professor Colaborador do Pro- Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
grama de Pós-Graduação em Educação Profissio- Minas Gerais (2012). Médico perito psiquiatra con-
nal (UPE/FFNM). Coordenador do GETIJ – Grupo de cursado da Junta Central de Saúde da PMMG entre os
Estudos da Transdisciplinaridade, da Infância e da anos de 1995 e 2014, Médico psiquiatra concursado
Juventude. Escritor. da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais,
atualmente membro do Núcleo de Apoio Psicope-
Jéssica Verônica Tibúrcio de Freitas é psicóloga, dagógico dos Estudantes da Faculdade de Medicina
graduada e mestre em Psicologia pela Universi- da UFMG e clínica privada.
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Marianne Leal é aluna de graduação em medicina Patrícia von Flach é Psicóloga. Assistente Social.
da Faculdade de Medicina da UFMG. Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de
Monica Maria de Oliveira Melo Possui graduação Saúde Coletiva ISC- UFBA. Coordenadora do Ponto
em Medicina pela Universidade Federal de Minas de Cidadania – Centro de Estudos e Terapia do Abu-
Gerais (2005), Residência Médica em Psiquiatria so de Drogas -CETAD/UFBA- Secretaria de Justiça,
pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do
de Minas Gerais (2009) e Mestrado em Ciências da Estado da Bahia - SJDHDS. Consultora Técnica do
Saúde - Área de Concentração Saúde da Criança e Curso de Prevenção aos problemas relacionados ao
do Adolescente (2011). Atualmente é Médica Psi- uso de Drogas, da Secretaria Nacional de Políticas
quiatra da Universidade Federal de Minas Gerais sobre Drogas - SENAD – UFSC. Tutora da Residência
- Perícia Médica Oficial da Unidade SIASS do Minis- Multiprofissional em Saúde Mental do ISC – UFBA.
tério do Planejamento. Docente do Curso de Psicologia da Faculdade So-
cial da Bahia.
Monica Zilberman é Médica Psiquiatra. Doutora em
Psiquiatria pela USP. Pós-doutora pela Universidade Paula Alves Pinheiro é aluna de graduação em me-
de Calgary, Canadá. Especialista em Psiquiatria pela dicina da Faculdade de Medicina da UFMG.
ABP. Professora do Programa de Pós-Graduação do
Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Pesquisa- Pedro Henrique Antunes da Costa Graduado em Psi-
dora do Laboratório de Psicofarmacologia LIM-23 cologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(IPq-HC-FMUSP). - UFJF (2012). Mestre e Doutorando em Psicologia
pela UFJF, na linha “Processos Psicossociais em
Nádia de Souza Las Casas é aluna de graduação em Saúde”. Professor do curso de Psicologia da Facul-
medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. dade Machado Sobrinho. Pesquisador do Centro de
Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação
Nathália Didoné Poppi é aluna de graduação em em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA). Atua tam-
medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. bém como docente do Centro Regional de Refe-
rência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF). Tem
Nathália Munck Machado é psicóloga, Pesquisadora do interesse e experiência nos seguintes campos do
Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool conhecimento e temas de pesquisa: Saúde Coletiva,
e Drogas (CREPEIA), Mestranda em Psicologia pela UFJF. Saúde Comunitária, Psicologia Social e Comunitária,
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e Participa-
Nathália Ribeiro Notaro é aluna de graduação em ção Social.
medicina da Faculdade de Medicina da UFMG e
Aluna voluntária de iniciação científica do Centro Pollyanna Santos da Silveira é Graduada e Mestre
Regional de Referência em Drogas CRR/ UFMG. em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), Doutora em Ciências da Saúde pela
Nathalie Maissa Fantoni é aluna de graduação em Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pes-
medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. quisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Inter-
venção em Álcool e Drogas (CREPEIA),Coordenado-
Neliana Buzi Figlie Psicóloga, Especialista em De- ra adjunta do Centro Regional de Referência Sobre
pendência Química (UNIAD), Mestre em Saúde Men- Drogas CRR-JF da UFJF. Professora do Programa de
tal e Doutora em Ciências pelo Depto de Psiquiatria Mestrado em Psicologia da Universidade Católica
da Universidade Federal de São Paulo, Professora de Petrópolis (UCP).
Afiliada Modalidade: Ensino/Assistencial da Escola
Paulista de Medicina. Atuação como Psicoterapeuta Renata Lima é Bacharel em Direito pela PUC-Minas,
Cognitiva e formação em Entrevista Motivacional. Especialista em Segurança Pública pela Escola Su-
Homepage: www.nelianafiglie.com.br perior Dom Helder Câmara.
Nina Roth Mota Possui Graduação em Ciências Bio- Roberta Payá é psicóloga, Psicoterapeuta de Famí-
lógicas pela Universidade Federal de Santa Maria lia e Casal. Doutora em Saúde Mental – UNIFESP;
e Mestrado (2009) e Doutorado (2013) em Genéti- Mestre em Terapia Familiar pela Universidade de
ca e Biologia Molecular pela Universidade Federal Londres; Especialista em Dependência Química –
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou estágio de UNIFESP e Especialista em Terapia Familiar e de
Doutorado no exterior (Doutorado-Sanduíche) no Casal Sistêmica – PUC/SP. Educadora Sexual pela
Instituto de Psiquiatria do King’s College London, Unisal. ww.robertapaya.com.br
na Inglaterra. Atualmente é bolsista de Pós-Douto- Rodrigo Grassi-Oliveira é Psiquiatra, livre docente,
rado pelo PNPD/CAPES no Programa de Pós-Gra- doutor em psicologia pela Pontifícia Universidade
duação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), professor
da UFRGS. do Programa de Pós Graduação em Psicologia e do
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Programa de Pós Graduação em Pediatria e Saúde Health Center. Professor do Departamento de Psico-
da Criança da PUCRS, coordenador do Developmen- logia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Coor-
tal Cognitive Neuroscience Lab (DCNL). denador do Centro de Pesquisa, Intervenção e Ava-
liação em Álcool e Drogas (CREPEIA). Bolsista de
Rodrigo Ribeiro de Souza é psicólogo e Técnico So- Produtividade CNPq. Pesquisador Mineiro FAPEMIG.
cial do Programa Mediação de Conflitos da Secre-
taria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Vilene Eulálio de Magalhães é psicóloga. Mestre
em Sexologia. Funcionária Pública da Secretaria de
Saulo Gantes Tractenberg é psicólogo, mestre em Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Professora
psicologia com ênfase em cognição humana pela do Centro Universitário UNA. Pesquisadora Colabo-
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do radora Núcleo de Pesquisa em Drogas, Vulnerabili-
Sul (PUCRS), especialista em Psicoterapia Cogniti- dade e Comportamentos de Risco a Saúde – UFMG.
vo-Comportamental pela PUCRS, doutorando em
psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Vinícius Sousa Pietra Pedroso Possui graduação em
Psicologia da PUCRS, docente em psicologia pela Medicina pela Universidade Federal de Minas Ge-
Faculades Integradas de Taquara (FACCAT). rais (2007) e mestrado em Infectologia e Medicina
Tropical pela Universidade Federal de Minas Ge-
Sérgio de Paula Ramos Possui graduação em Medi- rais (2009). Residência médica em Psiquiatria pelo
cina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Hospital Escola Instituto Raul Soares da Fundação
Casa de São Paulo (1973), especialização em Psi- Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2009-2012).
quiatria pela Clínica Pinel de Porto Alegre (1975) e
doutorado em Medicina pela Universidade Federal Wellington Eustáquio Ribeiro é psicólogo Clínico
de São Paulo (2003). Organizador e coordenador do pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge-
Serviço de Alcoolismo da Clínica Pinel até 1982. rais, Especialista em Gestão e Políticas Públicas de
Organizador e coordenador da Unidade de Depen- Segurança pela Universidade Estácio de Sá, Técnico
dência Química do Hospital Mãe de Deus (1984 a Superior em Gestão Pública Municipal da Secretaria
2012). Fundador do Grupo Interdisciplinar de Estu- de Defesa Social de Contagem.
dos sobre o Álcool e o Alcoolismo (GRINEAA), da
Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e o
Alcoolismo (ABEAA) - que presidiu de 1989 a 91 - e
da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool
e outras Drogas (ABEAD) - que presidiu de 2005 a
07. Membro do Conselho Federal de Entorpecentes
(1984 a 88) e de várias comissões de assessorias no
Ministério da Saúde e na Secretaria da Saúde do RS.
Também foi o coordenador do grupo de autores do
Projeto Valorização da Vida (1990), solicitado pelo
Ministério da Educação, e o coordenador de sua im-
plantação no estado do Rio Grande do Sul (1991 a
94). Sócio-proprietário e diretor da Villa Janus.
12
Apresentação
Frederico Garcia
Michelle Ralil da Costa
Lívia Pires
Maila de Castro Neves
Esperamos que a leitura desta obra possa ampliar seu conhecimento sobre
a vulnerabilidade e contribua para a melhoria das práticas assistenciais e
preventivas no domínio dos transtornos por uso de substâncias. Boa leitura!
13
Sessão 1:
Conceitos e definições
de vulnerabilidade
16
01
Conceito de vulnerabilidade e sua aplicação nos
transtornos do uso de drogas
Frederico Garcia
Michelle Ralil da Costa
17
18
Introdução
19
Quadro 1: Algumas características que exemplificam a influência da vulnerabilidade.
20
Nas ciências econômicas o conceito de vulnerabilidade estende-se aos sistemas, in-
cluindo não somente o indivíduo e seu ambiente, referindo-se a todo o conjunto de ele-
mentos que interagem entre si para reagir negativamente durante a ocorrência de um
evento perigoso (5). Neste caso, além do indivíduo e do ambiente, o conceito de vulnera-
bilidade integra as interações que cada elemento desse ambiente estabelece entre si. Por
exemplo, um adulto que tenha sido adequadamente orientado sobre os riscos de exposi-
ção às substâncias psicoativas, quando exposto a um ambiente em que a disponibilidade
de drogas seja alta, é menos exposto ao risco de desenvolver dependência química que ou-
tro que não recebeu boa educação sobre o tema. Ainda assim, o primeiro indivíduo, quando
exposto a uma condição adversa, como a guerra ou a pobreza extrema, pode, apesar do
conhecimento sobre drogas, tornar-se tão vulnerável quanto o segundo à dependência.
A filosofia política reconhece a vulnerabilidade como uma entidade inerente ao ser hu-
mano e propõe que as ordens sociais destinam-se a proteger a vida, a integridade corporal
e a propriedade. As ordens sociais servem, assim, para proteger os indivíduos da violação
de seus direitos básicos. A vulnerabilidade afetaria a capacidade decisional ou a liberdade
pessoal, impondo aos indivíduos vulneráveis uma gama mais reduzida de escolhas de bens
essenciais para suas vidas6.
O conceito de vulnerabilidade está presente ainda na bioética. A Declaração Universal
de Bioética e Direitos do Homem delimita a vulnerabilidade como um princípio ético, po-
dendo ser oriunda de enfermidades, incapacidades e condicionantes sociais e ambientais7.
Segundo essa declaração, todo ser humano é vulnerável em quatro aspectos:
21
alta tem mais risco de desenvolver uma dependência química que um outro, em que a
disponibilidade de drogas é menor. Contudo, alta disponibilidade e acessibilidade ao trata-
mento podem fazer com que ambos tenham menos potencial de dano pela dependência,
visto que esta seria abordada mais rapidamente.
Outra diferença entre risco e vulnerabilidade é quanto ao objeto a que se referem as
suscetibilidades. Risco diz respeito aos grupos e populações e vulnerabilidade relaciona-se
aos indivíduos. A vulnerabilidade existiria apenas onde o risco está presente e sem este
aquela não teria efeito. Por exemplo, existem evidências de vulnerabilidades biológicas,
ambientais, psicológicas e sociais interagindo de maneira complexa na gênese do compor-
tamento suicida. No modelo de estresse-diátese de Mann et al.10 é descrita a possibilidade
de que traços estáveis de impulsividade e agressividade em indivíduos com hipofunção
serotoninérgica possam interagir com estressores ambientais como perdas e doenças crô-
nicas e psiquiátricas, aumentando a vulnerabilidade ao comportamento suicida11.
O conceito de vulnerabilidade contribui para que se possa pensar a saúde de forma
mais complexa, dimensional, interativa e não simplesmente causal. Ele ajuda na compre-
ensão de problemas complexos, para os quais, apesar dos esforços, não foram encontradas
respostas. Abordam-se, hoje, os mecanismos de interação de múltiplas vulnerabilidades
biológicas, sociais, ambientais, culturais e econômicas. Essa mudança de paradigma serve,
por exemplo, no embasamento teórico para a classificação diagnóstica do DSM V12.
Como se pode integrar o conceito de vulnerabilidade aos transtornos por uso de subs-
tância? Como esse conceito pode contribuir para a compreensão do risco, dos danos, da
possibilidade de prevenção e redução de danos?
Quando considerados conjuntamente, o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas estão impli-
cados em 12% da mortalidade mundial, constituindo, assim, uma das principais causas de
morte que podem ser prevenidas. Essas substâncias são responsáveis por aproximadamente
10% da carga global de doenças13,14. Contudo, estes indicadores representam ou referem-
se a uma minoria da população, que corresponde aos usuários de drogas, aqueles que têm
algum transtorno por uso de substância, ou seja, aqueles que fazem um uso abusivo ou são
dependentes de drogas. Sabe-se também que, não obstante a elevada frequência de expe-
rimentação e uso de drogas na vida, somente a minoria de pessoas evolui para uso abusivo
ou dependência. Surge, então, a questão de como identificar quem irá evoluir ou não para o
uso abusivo ou dependência.
Parece que o conceito de vulnerabilidade pode ajudar a melhor responder a essa questão.
A vulnerabilidade aos transtornos de uso de substância engloba múltiplas dimensões da vida
de um indivíduo, como aspectos biológicos, ambientais e culturais.
A propensão à dependência química pode ser dividida em três níveis de vulnerabilidade.
O primeiro nível, o mais amplo, abrange fatores sociodemográficos, que incluem variáveis
que caracterizam uma população como um todo (ex. cultura e localização geográfica) ou
variáveis individuais (ex. idade, sexo, nível educacional, raça, necessidades especiais).
O segundo nível corresponde aos aspectos psicológicos e psiquiátricos, que acabam por
refletir ou determinar as escolhas, preferências, experiências ou problemas individuais. Es-
ses fatores acabam por influenciar a escolha do tipo de droga usada, se ela terá uma ação
estimulante, calmante ou perturbadora do pensamento, se ela será usada ou não, qual a
22
percepção em relação ao uso da substância e o valor atribuído a ela.
O terceiro nível refere-se aos fatores biológicos e genéticos que irão determinar os efei-
tos fisiológicos de determinada droga e a sua valência adictogênica15. Cabe lembrar que a
divisão em três níveis é meramente didática. A todo instante, esses três níveis estabelecem
interações entre eles, associando-se e modificando constantemente o grau de vulnerabilida-
de a dependência.
Um exemplo dessa interação é que os mecanismos associados ao risco geográfico para
a dependência de substâncias envolvem fatores culturais, por exemplo, aceitabilidade do
uso da droga, a necessidade de um comportamento ordálico em certas fases da vida ou
mais hedonismo. Por outro lado, fatores biológicos, como isolamento genético, deficiência
de certas vitaminas e a inibição de certas enzimas por substâncias alimentares podem ser
mais presentes em determinados locais do que em outros. Da mesma forma, a expressão da
vulnerabilidade genética pode depender fortemente das experiências únicas da trajetória de
vida de um indivíduo e da sua capacidade de enfrentamento delas. Apesar de esses fatores
serem abordados em outros capítulos, serão apresentados brevemente alguns deles a seguir.
23
lência de transtornos de uso e de dependência de drogas. Sabe-se, por exemplo, que essas
diferenças devem-se, provavelmente, a influências sobre o sistema de recompensa das
mulheres devido ao ciclo hormonal feminino (21).
Vulnerabilidade e estigmatização
24
orientar-se em direção a mais autonomia e autodeterminação.
Tais aspectos dessa proposta podem gerar dificuldades na aplicação do conceito em
situações reais, nas quais sujeitos ou grupos são mais expostos a certos fatores de risco ou
situações de risco. O conceito de vulnerabilidade pode, assim, enfatizar e reduzir a vida do
indivíduo a uma série de fatores de risco que o impedem de estar no centro das decisões
para intervir adequadamente em suas experiências vitais. O termo vulnerabilidade carrega
em si uma sobrecarga semântica, tendendo a se referir a ideias de dependência, fragilida-
de, insegurança, centralidade, complexidade, ausência de regulação efetiva e baixa resili-
ência, tornando-se, nessa significação fonte de estigma e exclusão.
Considerações finais
O termo vulnerabilidade tem sido bastante utilizado nos últimos anos, tangenciando
diferentes significados.
No campo da saúde, compreender as vulnerabilidades a que estão expostas as pessoas
é entender não apenas as condições que podem deixá-las em situação de fragilidade e
expô-las ao adoecimento, mas também os recursos que cada indivíduo ou grupo social
dispõe para enfrentar essas fragilidades. Sendo assim, os mesmos fatores de risco se ex-
pressam de maneira diferente, conforme o contexto em que as pessoas vivem, e interferem
de diferentes maneiras em eventos relacionados à saúde. Assim como o conceito de saúde
evoluiu ao longo do tempo, a prevenção do risco de adoecimento deixou de ser determina-
da por um componente causal único e lançou seu olhar para a multicausalidade.
O conceito de vulnerabilidade que norteia este livro leva em consideração fatores indi-
viduais e contextuais que tornam as pessoas mais ou menos suscetíveis ao uso, consumo
abusivo e dependência de drogas, de forma a encontrar os melhores recursos para minorar
os fatores de risco.
Partindo do pressuposto de que as pessoas apresentam características individuais na
sua forma de existir (o que as coloca em diferentes graus de vulnerabilidade em relação
às drogas), será possível ampliar o leque de recursos socioeconômicos, políticos e culturais
à disposição da sociedade e, assim, compreender melhor sua dinâmica e pensar métodos
mais eficazes de prevenção.
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26
Epidemiologia da vulnerabilidade associada ao
02
uso de drogas
27
28
Vulnerabilidade e consumo de drogas
• centrado na droga; e
• centrado no indivíduo1.
Definição de epidemiologia e como esta ciência aborda a questão das drogas e sua vulne-
rabilidade
29
mo doença. Essa mudança de perspectiva se faz porque o objeto de estudo dela não são
somente as doenças, as causas de óbito. O termo abrange também os hábitos, os com por-
tamentos - como o tabagismo -, os aspectos positivos em saúde - como a percepção de
bem-estar - e as reações das populações às medidas preventivas e à oferta de serviços
de saúde, entre outros apectos3.
A premissa básica da epidemiologia social é de que os eventos relacionados à saúde não
ocorrem ao acaso e que cada um de nós possui certas características que nos predispõem
ou nos protegem desses eventos. A compreensão dessas características/fatores determinan-
tes pode nos auxiliar em sua eliminação, redução ou neutralização4.
30
Alguns aspectos associados à vulnerabilidade para as substâncias psicoativas
Experimentação Abuso
Pré-experimentação
Uso Dependência
Potencial da Impacto
Disponibilidade droga Qualidade de
Percepção de Idade de vida
segurança uso regular Doenças
Permissividade Genética mentais
social Vulnerabilidade Doenças
Estruturação social orgânicas
familiar
Violência
Pressão dos
Vulnerabilização
pares
A compreensão das características que podem tornar certos grupos mais vulneráveis
que outros depende, muitas vezes, da avaliação do nível de associação dessas variáveis.
Detalham-se, a seguir, alguns exemplos dessas características.
Fatores sociodemográficos
Idade
31
Figura 2 – Prevalência do uso de bebidas alcoólicas entre os adolescentes brasileiros
Sexo
32
Fatores socioculturais
Transtornos mentais
Conclusões
Como se pôde ver ao longo deste capítulo, diversos aspectos contribuem para a
vulnerabilidade de se experimentar, abusar e desenvolver dependência às substâncias psi-
coativas.
A epidemiologia contribui para a compreensão e dimensionamento qualitativo e
quantitativo da questão da vulnerabilidade e o uso de drogas. Conhecer a real magnitude
do problema e identificar os grupos de mais vulnerabilidade pode auxiliar no processo
de construção de medidas direcionadas para minimizar os prejuízos gerados para a saúde
pública.
33
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35
36
03
Vulnerabilidades, estigma e uso de drogas
Pollyanna Santos da Silveira
Ana Luisa Marliére Casela
Érika Pizziolo Monteiro
Jéssica Verônica Tibúrcio de Freitas
Nathália Munck Machado
37
38
Introdução
Definindo o estigma
Erving Goffman, em seu clássico ensaio “Estigma: notas sobre a manipulação da iden-
tidade deteriorada”, publicado no ano de 1963, propõe uma definição de estigma social
como uma marca ou um sinal que designaria ao seu portador um status “deteriorado” e,
portanto, menos valorizado que as pessoas consideradas normais, tornando o indivíduo
39
estigmatizado incapacitado para a aceitação social plena. O processo de estigmatização
seria uma forma de categorização social a partir do qual se identifica de forma seletiva um
atributo negativo considerado desviante da norma e que por si só compromete a identida-
de social do portador por completo em uma situação de interação social 16.
Apesar do marco teórico conceitual do estigma social ter suas raízes na Sociologia,
possuindo grande valor heurístico, uma substancial porção da produção científica acerca
do tema tem buscado compreender como as pessoas constroem categorias e as relacionam
a crenças estereotipadas 17. Segundo essa perspectiva psicossocial, a definição de estigma
envolve:
Internalização do estigma
40
quando membros de um grupo desvalorizado, conscientes do preconceito, estereótipo e
discriminação na sociedade, endossam e internalizam essas crenças, sentimentos e com-
portamentos acerca de si próprios 20. A partir de uma perspectiva sociocognitiva, a interna-
lização do estigma ocorre à medida que o indivíduo se torna consciente de sua condição
de saúde e está sujeita à maneira como ele atribui, para si próprio, responsabilidade por
essa condição 20,21.
O processo de internalização do estigma pode acarretar diversos prejuízos, como a
perda da autoestima, autoeficácia, depressão 22,23, a diminuição do repertório de interações
sociais, a exclusão social e o desemprego 24. Discute-se que existe uma relação entre o
estigma internalizado e a vulnerabilidade, tanto o processo de estigmatização agrava a
vulnerabilidade do usuário de drogas como o uso de substâncias, uma condição permeada
por vulnerabilidades, acarreta mais chances de internalização do estigma.
41
influenciava as necessidades básicas do ser humano, como emprego, habitação, relações
interpessoais, saúde física e mental e a busca por tratamento de saúde. As necessidades
de emprego de indivíduos estigmatizados em grande parte não são atendidas, por sua
vez, causam o aumento dos prejuízos psicológicos e financeiros. Há que se destacar que o
estigma internalizado pode interferir na procura de emprego bem como na execução da
função no local de trabalho36. Por outro lado, a inclusão produtiva pode reduzir o impacto
da estigmatização, na medida em que os usuários ocupam novos papéis e espaços sociais,
contribuindo para melhor qualidade de vida e tornando-se um aspecto fundamental na
recuperação e reinserção social37.
O uso de álcool e outras drogas é uma das condições que mais apresentam conotação
moralizante do mundo 38-40, sendo considerado principalmente um problema individual,
em que o diagnóstico e o tratamento muitas vezes exacerbam os aspectos morais do uso
12,41,42
. Estudos sobre a percepção popular acerca de determinadas condições de saúde
mostram que indivíduos dependentes de álcool são vistos como mais responsáveis por
seu problema, mais violentos e imprevisíveis que outros indivíduos afetados por outros
transtornos mentais 43,44. Além disso, respostas que colocam a responsabilidade da doença
sobre o indivíduo, como fraqueza de caráter e falta de autoestima, são consideradas mais
relevantes para explicar o problema da dependência do que as causas biológicas 45,46. Além
disso, os dependentes são vistos como a condição mais provável de ser violenta e, como
consequência, existe mais desejo de distância social em relação à pessoa dependente de
drogas 37,48.
As consequências do estigma relacionado ao abuso de substâncias foram descritas no
estudo de Link et al. 15, no qual indivíduos com diagnóstico de dependência de substâncias
e transtorno mental relataram experiências de rejeição que envolvem desde atendimento
médico negado até receber menor remuneração por conta da história de abuso de subs-
tâncias. Os resultados mostram que não houve declínio da percepção de estigma, nas
estratégias de coping ou na recordação de experiências de rejeição com a diminuição dos
sintomas após um ano de tratamento, sugerindo que o estigma pode ter efeitos não só
transitórios, como duradouros para os indivíduos 15.
Outro estudo realizado com usuários de drogas encontrou que a percepção de desva-
lorização entre os usuários é prevalente, sendo que 85% dos respondentes relataram que
muitas pessoas pensam que usuários de drogas não são confiáveis; e porcentagem similar
(84,5%) opinou que as pessoas pensam que usuários de drogas são perigosos. Observou-se,
ainda, que os usuários evitam contato com outras pessoas porque eles podem parecer infe-
riores aos olhos dos outros por usarem drogas. Os participantes reportaram alta frequência
de discriminação devido ao uso de drogas, sendo que os tipos mais comuns de discrimina-
ção experienciada foram atribuíveis à família (75,2%) e a amigos (65,8%) 14.
Como alternativa à concepção moralizante do usuário, procura-se estabelecer ações
baseadas na perspectiva da saúde coletiva, em que o foco é dado ao uso de álcool e aos
danos associados, e não aos indivíduos propriamente ditos, procurando traçar ações mais
gerais, compreensivas e menos estigmatizantes, que também se articulem com ações dire-
cionadas aos indivíduos12,41,42,49. Uma das estratégias é o foco na mudança de posturas que
levam à estigmatização do uso de álcool como forma de prevenir os danos associados no
42
sentido de melhorar a eficácia e o acesso ao tratamento 50,51. Essas ações são planejadas
partindo-se do princípio de que a automaticidade e a estereotipagem podem ser controla-
das ou modificadas por mediadores sociocognitivos 52.
Para tanto, é importante considerar que as políticas assistenciais e a formação dos
profissionais de saúde devem enfocar a mudança de atitudes negativas no sentido de evi-
tar a estigmatização e a diminuição da consequente injustiça social que os portadores de
sofrimento mental sofrem49,53.
43
conteúdos das crenças a respeito dos usuários, utilizando-se como metodologia a troca de
experiências.
Já as ações educativas incluem apresentações e discussões que visam a alterar atitudes
e comportamentos em um nível comunitário, permitindo que a questão do uso de substân-
cias seja pensada de forma crítica 24 .
Na tentativa de reduzir o estigma, é necessária, ainda, a sensibilização dos profissio-
nais de saúde, uma vez que estes apresentam visão moralizante do consumo de drogas25,
o que por vezes contribui para a estigmatização e exclusão de dependentes de drogas.
Diante disso, Ronzani et al. 56 buscaram elaborar um primeiro guia para profissionais e
gestores para sensibilizar os profissionais sobre o impacto de se compartilhar imagens
e percepções negativas sobre usuários de drogas. Esse guia pode ser acessado gratuita-
mente em: http://www.editoraufjf.com.br/ftpeditora/site/reduzindo_o_estigma_entre_usu-
arios_de_drogas.pdf
Conclusão
44
ram-se em barreiras à procura de tratamento e trabalho, aspectos estes importantes para
a recuperação e reinserção social de indivíduos. A superação desse estigma social torna-se
necessária a fim de garantir estratégias de prevenção, tratamento e reinserção social com
foco na evidência de efetividade e, mais do que isso, é importante que os pacientes sejam
envolvidos no processo decisório do tratamento e considere as demais demandas do indi-
viduo, além do foco exclusivo na abstinência do uso de drogas.
O estigma social ou internalizado pode limitar as perspectivas de inserção social, dimi-
nuindo a autoestima e autoeficácia, o que, consequentemente, diminui a disposição para
buscar um emprego. E isso, por sua vez, contribui também para aumentar ainda mais a
internalização do estigma. Da mesma forma, esse ciclo também se reflete diretamente na
vulnerabilidade social. O estigma social está relacionado ao risco frente ao desemprego,
à pobreza, garantia dos direitos e oportunidades, ao agravamento da condição 1, 4, 5 e ao
maior ou menor grau de qualidade de vida da população, uma vez que este é o resultado
entre as oportunidades sociais, econômicas e culturais e a disponibilidade desses recursos
6,7
. Sendo assim, é de fundamental importância no processo de recuperação considerar am-
bos os aspectos - estigma e vulnerabilidade -, a fim de garantir os benefícios do tratamento.
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48
04
Violência, vulnerabilidade e uso de drogas
Daniel Barcelos
Renata Lima
Luania Ludmilla Castro
49
50
Introdução
O uso de substâncias que produzem alterações no organismo humano não é uma no-
vidade. Milenarmente os indivíduos exploram os recursos naturais em prol da sua sobre-
vivência e paulatinamente descobrem as potencialidades desses recursos, estabelecendo
nova relação com essas descobertas, as quais interferem diretamente na forma como os
indivíduos interpretam o mundo e se interpretam no mundo. A história das substâncias
psicoativas, a que muitos atribuem a nomenclatura drogas, não foge a esse cenário. So-
ciedades antigas e contemporâneas inseriram em seu cotidiano o uso dessas substâncias,
associando-as às práticas medicinais, ritualísticas, religiosas e recreativas, entre outras.
Como problema social, observa-se o uso (ou abuso) problemático das drogas ilícitas
como um processo moderno, que coincide com a expansão colonial europeia e com a
consolidação do capitalismoa. O fenômeno da industrialização, por meio dos processos tec-
nológicos modificadores do uso de drogas tradicionais, e o desenvolvimento da indústria
químico-farmacêutica são outros fatores que potencializaram as consequências do uso de
drogas.
No que se refere ao tratamento dado pelos sistemas legais ao consumo de substâncias
psicoativas, observam-se movimentos variados. No Ocidente, o fenômeno do proibicionis-
mo teria sido desencadeado inicialmente em razão do álcool, na Inglaterra, em 1736, com
a edição do “Gin Act”, uma lei que objetivava reprimir o consumo de gim, bebida destilada
que fora largamente produzida com subsídios governamentais, inclusive, a partir de 1690,
para fazer frente ao vinho francês, diante da produção excedente de grãos na Grã-Breta-
nha. Em poucas décadas o consumo de gim atingiu níveis considerados intoleráveis e de-
sencadeou movimentos de “temperança” que se propagaram da Inglaterra para os Estados
Unidos, onde encontraram campo e floresceram.
Os movimentos pela temperança, repressivos ao álcool, tiveram seu auge nos Estados
Unidos, em 1919, quando foi promulgada a 18ª Emenda à Constituição Americana, que
proibia a produção, o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território
estadunidense. Em pouco tempo a proibição se tornou ineficaz e foram construídas al-
ternativas mais severas, com o aumento de penas e sanções. Com o recrudescimento das
penas, aumentaram também o silêncio da população, a corrupção e a sonegação de infor-
mações a respeito do tema, o encarceramento e o nascimento de uma criminalidade que
se organizava para explorar os lucros da atividade ilícita1. Naquele período, fortaleceu-se
consideravelmente o tráfico de álcool, resultando na construção de verdadeiros impérios
pertencentes aos estereotipados gângsteres como Al Capone, imortalizado e romantizado
pelo cinema.
Após a Primeira Guerra Mundial, havia indícios de que o consumo de álcool seria abo-
lido do mundo e que já existia algum nível de proibição legal nos Estados Unidos e na
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, enquanto grandes líderes mundiais, como Hi-
tler, Mussolini, Gandhi e Cárdenas, condenavam o consumo e pregavam a proibição total 2.
A falta de eficácia da Lei Seca nos Estados Unidos resultou na liberação de seu consumo
e comercialização já em 1933, por meio da 21ª Emenda Constitucional, sendo relevante
que as receitas tributárias obtidas pela taxação dessa atividade foram importantes para
compensar o 2 New Deal resultante da Crise de 1929b.
a
Exemplos desse desenvolvimento são o isolamento do alcaloide da folha de coca tradicionalmente usada pelos
povos andinos, em 1860, por Albert Niemann e o isolamaento da morfina, codeína e heroína, derivados do ópio, em
1804, 1832 e 1874, respectivamente.
b
Programa de Medidas de intervenção do Estado na Economia implementado pelo Governo do Presidente Franklin
Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América.
51
A modificação legislativa não foi capaz de alterar, entretanto, a cultura proibicionista
que conduziu à discussão sobre a proibição da maconha, culminando no “Marijuana Act”,
que proibiu o consumo da substância no país.
No Brasil, foi o Decreto-Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que primeiro estabele-
ceu a Lei de Fiscalização dos Entorpecentes. Nele foram arroladas 19 substâncias sujeitas
à disciplina dessa norma, por serem classificadas como entorpecentes, em relação às quais
se proibia o plantio, cultivo, colheita, fabricação, transformação, transporte e comerciali-
zação discricionários, regulamentando-se ainda os processos de importação, exportação e
reexportação, armazenamento e estocagem de substâncias entorpecentes por drogarias,
laboratórios e unidades fabris, unidades de tratamento e de ensino. O capítulo terceiro do
Decreto-Lei disciplinava a internação e interdição civil, considerando como doença aomia
toxicomania ou intoxicação habitual, prevendo-se, em consequência, os condicionantes
para internação obrigatória 3.
Artigo 33 Facilitar, instigar por atos ou por palavras a aquisição, uso, emprego ou aplicação
de qualquer substância entorpecente ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, minis-
trar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas
no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art. 2º ou de qualquer modo
proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias - penas: um a cinco anos de pri-
são celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000.
52
unidades federativas e municípios, assim dispondo5:
Art. 3º Fica instituído o Sistema Nacional Antidrogas, constituído pelo conjunto de órgãos
que exercem, nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, atividades relacionadas com:
I - a prevenção do uso indevido, o tratamento, a recuperação e a reinserção social de de-
pendentes de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica; e
II - a repressão ao uso indevido, a prevenção e a repressão do tráfico ilícito e da produ-
ção não autorizada de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou
psíquica.
Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à
venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecen-
te ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com de-
terminação legal ou regulamentar; Pena - reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento
de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou
que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determi-
nação legal ou regulamentar: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento
de (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.
Não por coincidência, poucos anos antes, já no início dos anos 70, os Estados Unidos
do então presidente Richard Nixon difundiram sua política de combate às drogas ou a
chamada “War on Drugs” (Guerra contra as Drogas), sob a perspectiva de que os problemas
de criminalidade urbana e ordem social estavam primordialmente vinculados às drogas,
exigindo-se, portanto, a potencialização da atuação repressiva sobre a produção e distri-
buição, tráfico e uso de entorpecentes. De maneira geral, o mundo adotou a ideologia da
“guerra às drogas”, incluindo o Brasil. Foram poucos os países, como Suíça e Holanda, que
adotaram políticas de redução de danos ainda na década de 70, como vozes dissonantes à
propagada ideologia norte-americana.
No final do século XX, a perspectiva de uma política de redução de danos (RD), já
adotada em países europeus com relativo êxito, passou a ser debatida no Brasil fora do
âmbito exclusivo da saúde pública, provocando alterações legislativas com base na Lei
nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, atualmente em vigência. E afastou a pena de prisão
para a conduta de portar drogas para consumo próprio, prevista no artigo 28, embora não
tenha deixado de tratá-la sob a égide do Direito Penal. Mesmo tratamento recebeu o ato
de plantio de drogas para consumo próprio.
O breve relato acerca da evolução legislativa sobre drogas no Brasil, bem como do
panorama geral nos Estados Unidos, visa a demonstrar como a sociedade brasileira tem
tratado legalmente a questão, além de exortar as questões reflexivas sobre o fato de que
a matéria transita ao longo do tempo como tema tratado ora pela saúde pública, ora pela
segurança pública, recebendo influência relevante das dimensões morais e sociais que
sustentam as alterações jurídicas e orientam a privação de direitos no país. Longe de pre-
tender exaurir o tema, os pontos abordados neste capítulo objetivam agregar valor e ele-
mentos ao debate.
O usuário e o traficante
53
gas vigente no Brasil, que em comparação com as leis antecedentes é mais ampla, uma vez
que, além de estabelecer as normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico
ilícito de drogas e definir crimes e dar outras providências, ainda regulamenta as medidas
preventivas do uso indevido de drogas, regula as medidas de atenção e reinserção social
de usuários e dependentes e institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD).
A discussão que veio gerar a edição da Lei nº 11.343/06 iniciou-se ainda no final do
século XX, quando o discurso da guerra contras as drogas começou a sair do foco proibi-
cionista puro e colocou-se em perspectiva uma política pública de redução de danos6. A Lei
nº 11.343/06, embora criminalize o usuário, retirou deste a possibilidade de ser privado de
liberdade. Em seu artigo 28 da Lei nº 11.343/06, dispõe que:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para
consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regula-
mentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1 Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou
colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz
de causar dependência física ou psíquica.
§ 2 Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza
e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação,
às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
O criminalista gaúcho Salo de Carvalho identifica em seu artigo “Nas trincheiras de uma
política criminal com derramamento de sangue: depoimentos sobre os danos diretos e colate-
rais provocados pela guerra às drogas” “vazios ou lacunas na linguagem jurídica e “dobras
de legalidade” nas estruturas incriminadoras da Lei 11.343/06, que permite amplo poder
criminalizador às agências da persecução criminal, notadamente a agência policial; es-
truturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são
instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora” 8.
A dobra de legalidade está associada ao excesso normativo, à previsão de condutas
idênticas nos dois tipos penais que estruturam a política criminal de drogas – proibição
das condutas facilitadoras do consumo (art. 28, caput, Lei 11.343/06) e incriminação do co-
mércio (art. 33, caput, lei 11.343/06). São cinco as condutas idênticas, sendo elas: adquirir,
guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo.
Todas essas condutas estão previstas no artigo 28 e se repetem no artigo 33, ao qual
são somadas as condutas de vender, expor à venda, oferecer, prescrever, ministrar, entregar
54
a consumo ou oferecer drogas, ainda que gratuitamente.
O que se percebe é que cinco condutas objetivas (adquirir, guardar, ter em depósito,
transportar ou trazer consigo) impõem consequências jurídicas distintas e discrepantes,
sendo aplicadas ao chamado “usuário” as sanções do artigo 28: advertência, admoestação
verbal, prestação de serviços e medida educativa, nunca a pena de prisão. Sem dúvidas,
este é o tipo penal mais leniente do ordenamento brasileiro, um “delito de mínimo po-
tencial ofensivo”. E para indivíduo que se enquadrar como “traficante”, a pena de prisão
entre cinco e 15 anos está entre as mais severas previstas, superior até mesmo à pena por
estupro, que é de seis a 10 anos de prisão, classificado, assim, como um “delito de máximo
potencial ofensivo”.
Além da severidade das penas mínima e máxima impostas, há ainda que se considerar
que o tráfico de drogas, sendo crime equiparado aos hediondos, tem regime jurídico dife-
renciado no que se refere ao cumprimento da pena.
Já a lacuna, ou vazio, é identificada quando, no artigo 28, §2º, o legislador diz: “para de-
terminar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade
da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstân-
cias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente’”.
Embora tal regra se dirija ao juiz, o primeiro destinatário é o policial, que exercerá o
primeiro “filtro” da aplicação da lei e avaliação da conduta. O dispositivo legal não define
precisamente os critérios de imputação e é prolífero em metarregras que se fundem em
determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam
os traficantes e os consumidores, alimentando os estereótipos do “elemento suspeito” e da
“atitude suspeita”, os quais estão definitivamente incorporados ao exercício de aplicação
da lei penal, não somente pelas agências policiais, mas pelos demais órgãos da persecução
penal 8.
Campos6 ressalta que o debate sobre as drogas está permeado de representações his-
tóricas estigmatizantes que, por um lado, associam a imagem do usuário de drogas à prá-
ticas assistencialistas ou compulsórias, por outro lado, vinculam a imagem do traficante a
uma figura monstruosa destinada a penalizações cada vez mais longas. Na mesma dire-
ção, Medeiros7 destaca que forjar uma imagem de um indivíduo às margens dos padrões
e rotulá-los é uma estratégia intencional e política, assim tanto o modelo médico como o
penal constroem representações que transitam entre o enfermo e o delinquente. Medeiros
7
complementa que Becker, ao estudar a categoria outsiders, concluiu que “os grupos sociais
criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar tais regras a certas
pessoas, em particular, qualificam nas de outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma
qualidade do ato cometido pela pessoa, mas uma consequência da aplicação que outros fazem 7”.
55
presos por tráfico era de 14%, totalizando 47.500 pessoas, número que passou para 25% da
população carcerária em 2012 (132 mil presos). Especialmente, observe-se que, segundo
dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, em pesquisa coordenada pelo NEV-USP, em 2013,
constatou-se que 67% dos presos por tráfico de drogas portavam menos de 100 gramas de
maconha, enquanto 14% portavam menos de 10 gramas de maconha, o equivalente a cerca
de 10 cigarros. Entre os que portavam cocaína, 77,6% portavam menos de 100 gramas da
droga.
Os dados apurados demonstram os efeitos da política antidrogas em vigor e a fatia da
sociedade que vem sendo atingida, em duas frentes, por assim dizer, pelos efeito da polí-
tica de guerra às drogas.
Em um primeiro viés, a adoção do proibicionismo diminui drasticamente ou mesmo
afasta as possibilidades terapêuticas de aplicação de uma política de redução de danos
aos indivíduos que, além de usuários, recreativos ou não, são também enquadrados nas
sanções do artigo 33 da Lei 11.343/06. Como explanado, não há uma quantidade mínima
ou forma de acondicionamento ou outro critério objetivo que venha a definir o que confi-
guraria o tráfico de drogas, penalizado por lei, distinguindo-o do porte de drogas para uso
próprio, que apesar de definido na lei penal não implica penas de prisão para o denomina-
do coloquialmente “usuário”.
Noutro ângulo, a mesma população, majoritariamente jovem, negra ou parda, de baixa
renda e escolaridade, é atingida pela violência associada e decorrente do tráfico.
Luiz Flávio Sapori elaborou vários estudos, especialmente em Belo Horizonte, em que
sugere uma epidemia de homicídios relacionados especificamente ao “crack”. Sapori, Bráu-
lio Figueiredo Alves da Silva e Lúcia Lamounier Sena analisaram a evolução dos homicí-
dios num período de 20 anos e desenvolveram a tese de que o recrudescimento dos assas-
sinatos em Belo Horizonte está relacionado à consolidação do tráfico do crack na cidade,
em seu artigo “Mercado do crack e violência urbana na cidade de Belo Horizonte”, de 2011.
Em pesquisa realizada em São Paulo para a verificação da associação entre a mortali-
dade entre os usuários de crack e a violência urbana, constatou-se que entre 1992 e 2006
a taxa de mortalidade entre usuários de crack foi sete vezes superior à mortalidade da po-
pulação em geral. Número superior a 50% das mortes decorreu de homicídios, sendo que
o padrão de mortalidade dos usuários de crack é distinto dos usuários de outras formas de
cocaína 11.
Para Sapori, a introdução do “crack” no mercado das drogas ilícitas tende a incrementar
a incidência de crimes contra a vida, conformando novo patamar da violência urbana11.
Dados sobre homicídios e “crack’ na cidade de Nova Iorque durante o ano de 88, no auge da
violência que atingiu a cidade entre 1985 e 1993, notificam que 52% das mortes estavam
relacionadas às drogas e, desse percentual, 65% envolveram o “crack”, não sendo causados
pelos efeitos farmacológicos, mas por conflitos relacionados ao mercado ilícito da droga 11.
No Brasil, a obra de Alba Zaluar também registra que a dinâmica da violência é afetada
pelo tipo de droga comercializada, sendo que no final da década de 1970 o aumento da
violência esteve associado ao tráfico de cocaína e à corrida armamentista entre as quadri-
lhas. No bojo do processo de armamento das quadrilhas, houve a incorporação dos jovens
em situação de vulnerabilidade social e a institucionalização do ethos guerreiro e da hi-
permasculinidade, legitimando o recurso à violência física 11.
O fenômeno mais recente do “crack” é destacado por Sapori em sua abordagem, des-
tacando-se os “efeitos singulares do crack” na configuração de um mercado ilegal mais
violento na região metropolitana de Belo Horizonte, sendo que a droga potencializou as
56
situações de endividamento devido ao principal efeito farmacológico, que é a compulsão.
O usuário do “crack” está propenso a ser vítima de situação de violência quando quebra as
“regras” do mercado em que está inserido, a partir do endividamento. Além da vitimização
pelo homicídio do usuário devedor, o endividamento ainda afeta a criminalidade patrimo-
nial. O roubo é um crime que é tido como prática própria do comércio de crack, seja pela
prática de delitos para saldar dívidas, seja pela troca de mercadorias pela droga, nas “bo-
cas de fumo”. Obviamente, todo um “mercado negro” antecedente ao crack existe em toda
comunidade, o que favorece a existência dos crimes contra o patrimônio, decorrentes ou
não do “crack” em si.
Dados sobre a intensidade dos homicídios derivados da dinâmica do mercado ilegal
de drogas revelam que quando um território está sob domínio de um mesmo “patrão”
os números de mortes decorrentes de disputas de “bocas” (pontos de venda) decresce. E
quando há um conflito armado, com diversas “firmas” disputando o “mercado consumidor”,
as situações de confronto e, portanto, as mortes tendem a ser mais frequentes.
Maria Lucia Karam escreve de forma incisiva: “não há pessoas fortemente armadas, tro-
cando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja ou junto aos postos de venda desta e de ou-
tras bebidas alcoólicas. Mas isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos da América, entre 1920
e 1933, quando lá existiu a proibição ao álcool. [...] Hoje, não há violência na produção e no
comércio de álcool ou na produção e no comércio de tabaco. Por que é diferente na produção e
comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é óbvia: a diferença está na proibição” 12.
Segundo esse ponto de vista antiproibicionista, só existiria a violência associada ao
comércio das drogas “tornadas ilícitas” porque o mercado é ilegal, e a ilegalidade, além de
fazer as armas necessárias enfrentar a repressão, é essencial para a resolução de conflitos,
diante da ausência de regulamentação e de acesso aos meios legais e pacíficos.
Thiago Rodrigues13 relata que “o proibicionismo emergiu como uma das táticas de contro-
le social que, na passagem do século XIX para o XX, investiram na segurança das sociedades
pela articulação de políticas punitivas e de intervenção sobre a vida e que procediam, por sua
vez, de práticas de governo das populações que despontaram um século antes e foram chama-
das por Michel Foucault de biopolíticas”.
A Conferência de Haia, de 1912, produziu o primeiro tratado internacional nesse campo
e não proibia a produção, venda e consumo de qualquer substância, mas estabelecia uma
intervenção sobre questões até então desregulamentadas. Foi dedicada ao ópio e seus
derivados, com o objetivo de limitar sua aplicação nas chamadas finalidades médicas ba-
seadas no juízo de que todo “uso não medicinal [de drogas] é patológico em si” 13.
Com o fracasso da “Lei Seca”, em 1933, o alvo do proibicionismo se deslocou para outras
drogas, inicialmente a maconha e posteriormente a cocaína e a heroína.
A partir da Conferência de Haia, em 1912, e especialmente depois da 1ª Guerra Mundial,
os encontros diplomáticos sobre drogas tiveram impulso e a conferência foi seguida pelas
reuniões e documentos produzidos pelo Comitê sobre o Ópio (Opium Board), ainda sob a
Liga das Nações, os quais foram incorporados pela ONU após o fim da 2ª Guerra Mundial.
Na segunda metade do século XX, com a assinatura na Convenção Única sobre Drogas,
da ONU, em 1961, convergiram os esforços para a padronização e universalização do regi-
me de controle de drogas, estipulando-se as listas de psicoativos organizadas a partir do
critério de “uso médico”: as drogas sob prescrição médica, ainda que com potencial aditivo,
57
seriam aceitas e todas as demais, consideradas de certa forma meramente recreativas,
deveriam ser banidas. A partir da Convenção Única, consolidou-se e universalizou a lógica
proibicionista, pautada na associação entre argumentos médico-sanitaristas e o objetivo
de eliminação de todo uso que escapasse do controle estatal ou do estamento médico13.
Para tanto, deveria persistir a criminalização de traficantes e usuários, além da expansão
de medidas internacionais para combater o fluxo de psicoativos ilícitos.
A partir de 1972, com a histórica fala de Richard Nixon proclamando a “guerra às dro-
gas”, baseado em uma divisão estática dos países em dois blocos – produtores e consumi-
dores –, ignorando a dinâmica complexa do mercado de produção e tráfico de psicoativos,
passou a predominar a lógica militarista. É a partir desse momento que é forjado o con-
ceito de “narcotráfico”.
A Drug Enforcement Agency (DEA), que centraliza o aparato repressivo da política an-
tidrogas norte-americana, iniciou as ações em 1974 e atuou inicialmente no Caribe e no
México, logo, voltando-se para os considerados “países produtores”, especialmente os an-
dinos Bolívia, Colômbia e Peru.
Na década de 80, sob a égide do governo Reagan, o investimento em treinamento e
formação de grupos policiais e militares na América Latina, pelos EUA, se intensificou.
As agências norte-americanas identificaram associação entre guerrilhas de esquerda e o
tráfico de cocaína e o fenômeno, denominado “narcoterrorismo”, justificaram a insistência
do governo dos EUA em combater militarmente o narcotráfico e exigir dos países andinos
medidas mais severas contra o tráfico de drogas, sem que, no entanto, fosse possível dimi-
nuir a produção e o consumo, tampouco o tráfico internacional.
Importante ressaltar que países considerados pela política norte-americana como “con-
sumidores”, como o próprio Estados Unidos e o Canadá, são atualmente reconhecidos como
grandes produtores de droga, especialmente maconha. Sobre tal fenômeno, trataremos
mais adiante.
Enquanto em países como Panamá, Peru e Colômbia o efeito das intervenções norte-a-
mericanas na política interna com o respaldo da guerra às drogas justificou e incrementou
o combate interno, especialmente diante do vínculo entre narcotráfico e guerrilhas de
esquerda, no Brasil e no México é detectado o efeito da “guerra às drogas” no reforço de
políticas de segurança pública voltadas para a repressão seletiva aos grupos sociais em-
pobrecidos13.
No caso específico do Brasil, considerado até meados dos anos 90 um “corredor de
exportação de cocaína”, hoje percebido como grande mercado consumidor e especialmen-
te importante praça de lavagem de dinheiro, o tráfico é associado a populações pobres,
habitantes de favelas ou periferias e vinculado aos chamados “comandos” ou “partidos” do
crime. Mesmo não sendo um quadro simples, a associação “pobreza e tráfico” tem funda-
mentado vários programas de segurança pública que insistem na repressão e no proibicio-
nismo como meios para tratar da “questão das drogas”.
A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) foi criada em 1996, no governo Fernando
Henrique Cardoso, vinculada à Casa Militar da Presidência e foi inicialmente designada
para atuar nos moldes da DEA norte-americana como uma agência de repressão. Mas es-
barrou na divisão de atribuições prevista no art. 144 da Constituição e foi esvaziada, res-
tando uma agência de trabalho no campo da prevenção. Já no governo Lula da Silva, quan-
do foi promulgada a Lei 11.343, em agosto de 2006, foi alterada a denominação da SENAD
para Secretaria Nacional sobre Drogas, mantendo-a, todavia, vinculada a um militar até o
primeiro mandato de Dilma Roussef, quando foi transmitida a um civil.
58
A Lei 11.343/06 instituiu ainda o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD), o qual tem como finalidade articular, integrar, organizar e coordenar as ativida-
des relacionadas à prevenção do uso indevido, à atenção e à reinserção social de usuários
e dependentes de drogas e à repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de
drogas.
No campo jurídico penal, conforme já mencionado, não houve na nova lei de drogas a
definição de um critério objetivo para a distinção entre as categorias “usuário” e “traficante”,
mantendo nas políticas públicas como principal forma de prevenção ao uso de drogas o
paradigma da abstinência, força motriz do proibicionismo. Todavia, a partir de 1994 ações
de redução de danos no campo da saúde começaram a ser adotadas, levando a uma pon-
deração no campo penal que veio impactar na edição da Lei 11.343/06, na distinção entre
as sanções impostas ao traficante e ao usuário.
59
lizada como política pública federal, no cenário da atenção integral ao usuário de álcool e
drogas, mas não é consenso, sendo que muitos entendem que incentivaria o consumo de
drogas, com gastos desnecessários, quando o objetivo deveria ser a desintoxicação total.
Conforme Passos, na RD a abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, sendo, po-
rém, uma meta pactuada e não imposta por uma instituição. As regras da RD, mesmo a abs-
tinência, são imanentes à própria experiência e não se exercem de forma coercitiva como
regras transcendentais. E enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de
remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui como direção
a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si.
Descriminalização
60
distribuída em 150 municípios brasileiros, totalizando 24.000 entrevistas15. A pesquisa ti-
tulada “Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça – proximidades e opiniões” apresentou
resultados interessantes. Por exemplo, entre os entrevistados, 47% tiveram algum contato
pessoal com drogas ilícitas, enquanto 20% disseram possuir algum familiar que faz uso de
droga ilícita, dos quais 60% utilizam a maconha.
A maconha foi citada por 44% dos entrevistados como a droga ilícita mais acessível.
Entre eles, 16% tiveram acesso ao crack e 0,2% à cocaína. Já 40% dos respondentes consi-
deraram o crack a droga mais perigosa, 22% consideraram a cocaína a droga mais perigosa,
15% a maconha, 9% o álcool e apenas 3% dos entrevistados consideraram os fármacos
como a droga mais perigosa.
A pesquisa constatou ainda que a taxa de dependência dos fármacos e da heroína e
morfina foi de 50% ou mais, enquanto a maconha, crack e cocaína apresentaram taxa de
dependência entre os usuários de 30%15.
Conforme pesquisa do INPAD (2012) em parceria com a UNIFESP, estima-se que o Brasil
teria em 2012, 2,6 milhões de usuários de crack e cocaína, sendo metade deles depen-
dente (1,3 milhão). Deste total, 78% cheiram a substância exclusivamente (consumida na
forma de pó); 22% fumam (crack ou oxi) simultaneamente e 5% consomem apenas pelos
cachimbos.
Pesquisa similar da FIOCRUZ (2012), portanto, do mesmo ano informa números dis-
tintos: o levantamento, realizado em parceria com a SENAD, indica que cerca de 370 mil
brasileiros de todas as idades usaram regularmente crack e similares (pasta base, merla e
óxi) nas capitais ao longo de pelo menos seis meses em 2012. Por “uso regular” foi consi-
derado o consumo de pelo menos 25 dias nos seis meses anteriores ao estudo, de acordo
com definição da Organização Pan-americana de Saúde. Esse número (370 mil pessoas)
corresponde a 0,8% da população das capitais do país e a 35% dos consumidores de dro-
gas ilícitas nessas cidades.
O coordenador da pesquisa da FIOCRUZ alerta que os números são subnotificados,
pois se trata de uma “população oculta”, que devido à questão criminal e à discriminação
tem dificuldades de revelar seu uso (do crack), que é mais estigmatizado do que o uso de
outras drogas.
Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor titular de Psiquiatria da Escola Pau-
lista de Medicina (UNIFESP) e presidente da Associação Paulista Para o Desenvolvimento
da Medicina, “cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na
sua proporção existe a tendência a buscar soluções mágicas e simples como a de legalização
de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como
isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Primeiro, dizem que a quantidade de
crimes associados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos
traficantes. O segundo argumento é que, tornando as drogas disponíveis legalmente, haveria
uma série de benefícios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas
e agulhas limpas poderia prevenir doenças como hepatite e AIDS, por exemplo. Tais argumentos
têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em detalhes, eles desabam. A ação
direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha
a ser usada novamente” 16.
O debate travado atualmente no STF, no julgamento do RE, é um avanço quando se
trata de ampliar a abrangência de uma discussão necessária. Porém, o Ministro Gilmar
Mendes foi sagaz ao indicar que “quando se cogita, portanto, do deslocamento da política de
61
drogas do campo penal para o da saúde pública, está se tratando, em última análise, da con-
jugação de processos de descriminalização com políticas de redução e de prevenção de danos,
e não de legalização pura e simples de determinadas drogas, na linha dos atuais movimentos
de legalização da maconha e de leis recentemente editadas no Uruguai e em alguns Estados
americanos” RE 635.659, STF.
Parece que os argumentos de ambos os lados, sejam de defensores, sejam de oposito-
res da descriminalização, perpassam desde as questões de saúde pública até a esfera da
privacidade e intimidade da pessoa humana.
O voto do Ministro Barroso, proferido no dia 10 de setembro de 2015, no citado julga-
mento do STF situa de forma adequada a questão:
“Estamos lidando com um problema para o qual não há solução juridicamente simples nem
moralmente barata. Estamos no domínio das escolhas trágicas. Todas têm custo alto. Porém,
virar as costas para um problema não faz com que ele vá embora. Por isso, em boa hora o Su-
premo Tribunal Federal está discutindo essa gravíssima questão. Em uma democracia, nenhum
tema é tabu. Tudo pode e deve ser debatido à luz do dia. Estamos todos aqui em busca da
melhor solução, baseada em fatos e razões, e não em preconceitos ou visões moralistas da vida”
(Ministro Luís Barroso, RE 635.659, STF).
O Ministro votou pela descriminalização da maconha, sugerindo uma quantidade má-
xima de 25 gramas ou seis mudas da planta-fêmea para que não se considere criminosa a
conduta. Diferentemente, os Ministros Facchin e Gilmar Mendes usaram apartes para suge-
rir que há significativa incoerência nos votos de seus pares quando entendem que deverá
ser permitido o porte de maconha, mantendo as sanções para as demais drogas.
Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, três já se manifestaram favoravelmente
à descriminalização do porte para consumo, entre os quais apenas um se manifestou sobre
a operacionalização desse entendimento jurídico, estipulando limites conforme mencio-
nado. Exatamente para este é que os Poderes Executivo e Legislativo são tímidos quando
se trata de debater temas considerados polêmicos, como a questão da legalização/descri-
minalização da maconha e de outras drogas devido ao custo político. Citou ainda o caso de
Pedro Abramovay, que foi afastado do cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública
após se manifestar publicamente como contrário à prisão de pequenos traficantes.
Conclusão
A revisão do “estado da arte” sobre políticas públicas de drogas nos principais países do
mundo indica que boa parte deles reconheceu o fracasso da “guerra às drogas”, passando
a buscar alternativas para coibir e prevenir o uso/abuso de drogas, sem necessariamente
fazer uso da coerção penal em todos os casos. O idealizador e precursor da política proibi-
cionista, Estados Unidos da América, também dá sinais no mesmo sentido quando permite
o uso legalizado da maconha para fins medicinais e até recreativos em vários Estados-
membros, registrando-se o fato de que, diferentemente do Brasil, eles possuem autonomia
legislativa para disciplinar a questão de forma distinta.
No Brasil, onde apenas a União, por meio do Congresso Nacional, pode elaborar leis
sobre a descriminalização ou proibição do uso de drogas, parece não haver indícios de
um debate sólido sobre o tema. Apesar disso, existem abordagens e manifestações dis-
tintas que propõem, desde a descriminalização pura e simples do uso - com a vedação à
comercialização -, até a legalização, com o controle da cadeia de produção, ora sobre todas
as drogas, ora somente a maconha, o que tem sido mais comum. Os argumentos, tanto
62
de defensores como de opositores da descriminalização, variam entre questões de saúde
pública e aspectos de segurança pública até a proteção da privacidade e intimidade da
pessoa humana.
A discussão acerca das vulnerabilidades da população em relação ao tráfico e uso de
drogas parece orbitar, segundo os especialistas, ora sobre a utilização de mão de obra de
jovens moradores de aglomerados urbanos no tráfico, gerando lucros acima do mercado
convencional de trabalho e elevando os indicadores de criminalidade violenta, ora sobre
as condições do usuário que traficam para manter a própria dependência ou vício e que é
tratado pelo sistema como traficante.
Nesse aspecto, a falha ou insucesso da política antidrogas atualmente tem como resul-
tado altas taxas de encarceramento, limitadas de forma geral a determinado segmento das
populações, sem implicar a diminuição da oferta de drogas proscritas no mercado ilícito e
sem impactar nos indicadores de violência e criminalidade, sobretudo a violência. Na pers-
pectiva de que as políticas de redução de danos se mostram como caminho promissor a ser
trilhado, deixa-se aberto o debate, concluindo que a atual política criminal atua em duas
frentes de vulnerabilização da população: ao não estipular critérios objetivos, permitindo
a seletividade do encarceramento exatamente dirigido às populações já abandonadas pelo
Estado, e ao afastar do usuário de álcool e drogas, que é enquadrado como traficante, as
possibilidades da atenção integral, perpetuando o ciclo da violência e da criminalização.
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64
05
Vulnerabilidade, guerra contra as drogas: uma
abordagem econômica atual
Guilherme da Rocha B. Costa
65
66
Introdução
O debate acerca da liberação e/ou descriminalização das drogas está presente entre
os economistas há, pelo menos, 30 anos. Durante esse período, os argumentos mudaram
pouco, mas a robustez do pleito aumentou consideravelmente, seja a favor ou contra.
Optou-se, neste capítulo, por apresentar as principais considerações a favor do fim da
guerra contra as drogas; as principais falhas do modelo atual de combate ao tráfico de
drogas; e, finalmente, sugestões, tanto para aprimorar o modelo atual, como para mudá-lo
completamente. Entretanto, cabe deixar claro que essa perspectiva não está fundamenta-
da no conceito de vulnerabilidade individual, mas, sim, em questões de vulnerabilidade de
países, já tratada no primeiro capítulo deste livro.
Ademais, cabe definir racionalidade nos termos da ciência econômica, mais precisa-
mente da ortodoxia econômica (mainstream), segundo a qual ser “racional significa que
indivíduos maximizam utilidade consistentemente ao longo do tempo, e um bem é po-
tencialmente viciante se aumentos no consumo passado aumentam o consumo corrente”1.
Finalmente, “a justificativa-padrão para a intervenção governamental em interesses
privados requer que esses interesses ou atividades privadas produzam externalidades: em
uma perspectiva econômica neoclássica, política pública deve intervir somente se o setor
privado age de tal forma a gerar custos ou benefícios que são impostos sobre ou captura-
dos por outro que não o agente original da decisão ou ação”2 .
Tendo essas considerações em mente, cabe agora revisitar alguns momentos históricos
importantes no combate às drogas em uma perspectiva histórico-econômica, para, então,
tecer comentários sobre políticas alternativas ao status quo.
É sabido que alguns produtos que podem ser classificados como “drogas” são consi-
derados legais, ou lícitos, como o tabaco e o álcool. Entretanto, nem sempre foi assim.
Nos primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos, existia crescente preocupação de
grupos conservadores com o alcoolismoa . A preocupação foi tamanha que alguns estados
implementaram legislações proibitivas à comercialização do álcool, chegando ao ápice
em janeiro de 1920, com o ato Volstead, que proibia a venda, manufatura e transporte do
álcool. Foi a implementação da conhecida “Lei Seca”, que durou quase 14 anos, tendo sido
revogada em dezembro de 1933.
Essa lei falhou, pois simplesmente não era obedecida: as pessoas continuaram a con-
sumir álcool. Na época, estima-se que 1/3 da população norte-americana consumia álcool.
Fazer cumprir a lei tornou-se um grande problema, já que expressiva parcela da população
era “criminosa”.
A Lei Seca, então, acabou por ter efeitos ruins e absolutamente opostos aos seus ob-
jetivos: estimular o tráfico de álcool e aumentar os gastos com o combate ao tráfico. Se-
gundo Hampshire3, para atender a essa demanda por álcool, a Lei Seca norte-americana
“foi o elemento mais importante no desenvolvimento do crime organizado na América”. Já
o custo para fazer cumprir a legislação proibitiva foi elevado. É estimadob que os gastos
do governo e da justiça norte-americana tenham elevado em 500%, em um comparativo
entre antes (em 1913 gastavam-se US$ 3 milhões) e depois da lei (em 1922 gastavam-se
a
Para mais sobre o tema, ver Hampshire (1993).
b
Fonte: Historical statistics of the United States, Bicentennial Edition. U.S. Department of Commerce, 1976.
67
US$ 14 milhões). Comparando também o período final da lei, houve queda de 50% dos
gastos federais da justiça norte-americana, caindo de US$ 31 milhões em 1932 para US$
15 milhões em 1934.
68
e a falta de emprego para os jovens pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos institu-
cionais do sistema de justiça na sua ineficácia no combate ao crime organizado”.
Segundo Kassouf6:
Os resultados [de seu estudo empírico] fornecem evidências empíricas que permitem dar
sustentação à hipótese de que o mercado de drogas que se desenvolveu no Brasil é um dos
principais responsáveis pela alta criminalidade que atinge a sociedade brasileira... Os resulta-
dos fornecem suporte para concluirmos que a desigualdade de renda e a urbanização exercem
efeitos positivos sobre a criminalidade brasileira e, também, que as condições do mercado de
trabalho podem implicar criminalidade.
Ou seja, o que esses autores defendem é que um combate sistemático e sistêmico sobre
fatores socioeconômicos seriam medidas eficazes para contribuir para a redução da cri-
minalidade, inclusive, da criminalidade oriunda das drogas. Entre as medidas necessárias,
podem-se citar a diminuição da desigualdade de renda e a criação de meios para cessar
o processo de urbanização, advindo da migração campo/cidade – o qual ainda ocorre sem
planejamento e que causa uma urbanização desorganizada.
Adicionalmente, a realidade mexicana também é alarmante. Os níveis de violência no
México, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, aumentaram significativamente nos últi-
mos anos, pois o conflito entre traficantes na busca por território se intensificou. Segundo
os autores 7, três fatores explicam esse aumento na violência: mudanças exógenas no
mercado de narcóticos (incluindo, acima de tudo, o sucesso relativo da Colômbia em sua
“guerra” contra as drogas); o aumento da fragmentação dos cartéis de drogas; e a militari-
zação da guerra contra as drogas e o tráfico, a qual começou durante a administração do
Presidente Felipe Calderón.
Esses três autores, inclusive, mencionaram um fato, no mínimo, provocativo: quanto
mais se coibiu o tráfico de drogas no México, mais violento se tornou o crime organiza-
do das drogas. Não menos importante, identificou-se que 90% dos homicídios ligados ao
tráfico de drogas foram execuções, de tal forma que foi possível inferir que o aumento da
violência no México é fundamentalmente associado às rivalidades entre cartéis de drogas.
Ademais, o estudo empírico dos autores sobre o México revela que o aumento de 10
homicídios por 100.000 habitantes gera:
Por fim, o aumento de um homicídio por 100.000 habitantes diminui a renda municipal,
na média, em 1,2%.
Desde 2006, quando se iniciou uma ofensiva mais clara e direta contra os cartéis de
drogas no México, focando, principalmente, a prisão dos líderes das famílias e dos grupos
dominantes, os crimes comuns aumentaram consideravelmente. Isso se explica pela falta
do líder. Na visão desses autores, a ausência do líder, preso ou morto, desencadeia um
efeito dominó entre os criminosos de “menor patente” - sem um líder para discipliná-los
ou para direcionar suas ações, esses criminosos recorrem à forma de ganhar dinheiro que
conhecem – como extorsão, roubo e sequestro -, até que novos líderes, menores e mais
fragmentados, surjam.
69
Com isso, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, “é importante enfatizar que um dos
principais problemas que explicam a onda de crimes no México está relacionado com as
instituições que fazem cumprir a lei de repressão às drogas no país”.
Becker, Murphy e Grossman8, em estudo de caso acerca das drogas, elucidam os be-
nefícios e malefícios econômicos da proibição/criminalização das drogas e argumentam
a respeito de impostos especiais de consumo. No caso, taxas não monetárias na forma de
punições criminais para a produção ilegal de produtos. Ou seja, foram analisados os efeitos
normativos e positivos de punições que fazem cumprir a lei que torna ilegais a produção
e o consumo de drogas.
O ponto de partida foi determinar como o preço das drogas é formado. Becker, Mur-
phy e Grossman8 afirmam que: “[...] a demanda por drogas, presume-se, depende do preço de
mercado por drogas, que é afetado pelos custos impostos aos traficantes através de punições
e aplicações da lei, tais como o confisco das drogas e prisão. Bem como a demanda também
depende do custo imposto pelo governo sobre os usuários”.
Adicionalmente, cabe destacar que a demanda por drogas ilícitas é inelástica ao preço.
Isso significa dizer que variações no preço geram reduzido impacto no volume do consumo.
Ou seja, é necessário acentuado aumento nos preços para que a diminuição da demanda
por drogas seja significativa.
Dessa forma, os autores passam a simular/modelar dois cenários, um com o atual mo-
delo de proibição às drogas e outro no qual existe taxação sobre produtos legalizados. Um
dos objetivos é simples, descobrir em qual caso o preço das drogas será mais elevado e,
dessa forma, tornará essa indústria menos viável/rentável.
Ademais, ressalta-se que as tentativas de reduzir a oferta de drogas a partir de leis co-
ercitivas têm consequências qualitativas, como o aumento da violência e da influência de
gangues de rua e cartéis da droga (em outras palavras, fortalece o crime organizado, assim
como fez a Lei Seca). Por outro lado, a liberação/descriminalização aumenta os custos com
a saúde pública e outros problemas de segurança pública podem surgir.
No primeiro cenário, com o atual modelo de proibição às drogas, Becker, Murphy e
Grossman8 modelaram o nível de intervenção governamental ótimo, no qual a queda do
consumo e o aumento do preço do produto ilegal são mais satisfatórios para o governo.
Nesse caso, os autores constataram que o grau de intervenção ideale é nulo, mesmo quan-
do se considera que a demanda é, até certo ponto, elástica. Ou seja, quando são levadas
em conta as externalidades, positivas e negativas, da intervenção governamental, o melhor
que o governo pode fazer é não intervir no mercado de drogas (também realçando as ex-
ternalidades positivas e negativas dessa ausência de iniciativa). A conclusão dos autores é
de que somente em um cenário com demandas por drogas elásticas ao preço, uma política
nos moldes da Guerra contra as Drogas seria bem-sucedida, pois apenas nesse caso um
aumento nos gastos em fazer cumprir a lei traria benefícios suficientemente grandes para
a sociedade, para justificar seu dispêndio (o custo de coibir o tráfico de drogas geraria ex-
ternalidades positivas suficientemente grandes).
No segundo cenário, das taxas monetárias sobre bens legalizados:
e
Para mais detalhes na Matemática envolvida para chegar a essa conclusão, ver Becker, Murphy e Grossman (2004).
70
[...] se as receitas fiscais são transferências puras, [a Matemática do modelo] dá o resultado
clássico, que o imposto monetário ótimo é igual à diferença entre o valor marginal privado e o
social. Com uma transferência pura, a elasticidade da demanda é irrelevante... [...] Nossa análise
mostra, além disso, que usar taxas monetárias para desencorajar produção de droga legalizada
pode reduzir o consumo de drogas de forma mais acentuada que a mais eficiente das guerras
contra as drogas (Becker, Murphy e Grossman8.
Dessa forma, os autores reafirmam o trabalho de Becker e Murphy 1, o qual mostra que
o consumo de produtos que criam dependências responde menos por mudanças temporá-
rias nos preços do que mudanças permanentes. A conclusão dos autores é de que depen-
dências fortes só são superadas caso os dependentes parem de vez, de forma abrupta e por
um período consideravelmente longo de tempo (to go “cold turkey”).
Para reforçar o exposto até o momento, o relatório do grupo de experts da London
School of Economics and Political Science (LSE), de 2014, tem no seu prefácio a seguinte
passagem:
A busca pela militarização e aplicação das leis em uma Guerra contra as Drogas global tem
produzido grandes resultados negativos e danos colaterais. Estes incluem encarceração em
massa nos EUA, uma polícia altamente repressiva na Ásia, ampla corrupção e desestabilização
política no Afeganistão e na África Ocidental, imensa violência na América Latina, uma epidemia
de HIV na Rússia, uma aguda falta de medicamentos contra a dor e a propagação sistemática
de abusos e violações dos direitos humanos ao redor do mundo. A estratégia falhou em seus
próprios termos.
A mensagem do prefácio continua e foi assinada por muitos economistas de peso, como
Kenneth Arrow, Dani Rodrik, Jeffrey Sachs e Oliver Williamson. Como visto até aqui, os argu-
mentos para essa passagem citada já foram elucidados. Entretanto, é importante destacar,
assim como fez Felbab-Brown9 no relatório da LSE, que essa contribuição não sustenta a
ideia de que, com a legalização, per se, será erradicada a violência. Pelo contrário, mesmo
em mercados de commodities de produtos legalizados, a aplicação da lei é fundamental.
Ademais, o que é proposto, costumeiramente, quando é proposto o fim da Guerra con-
tra as Drogas, é que a política atual de segurança pública, voltada para a repressão do
uso e tráfico de entorpecentes ilícitos, seja substituída por uma política pública de saúde,
acompanhada de uma política de segurança pública menos repressiva e, por isso, menos
onerosa.
Csete10 afirma que:
Serviços de saúde para pessoas que usam drogas são importantes em vários níveis. Além dos
benefícios clínicos para o indivíduo e dos benefícios para a comunidade de reduzir os malefícios
relacionados à droga, como HIV e crimes relacionados às drogas, eles representam uma alterna-
tiva à prisão e detenção por alguns crimes e, são, portanto, um começo para o desenvolvimento
de políticas de drogas menos repressivas. Apesar de significativa evidência de que os serviços
de saúde relacionados à droga são um ótimo investimento para a sociedade, eles continuam
lamentavelmente subfinanciados e indisponíveis.
Portanto, o que se sugere é uma importante mudança de foco, de algo que já se provou
ineficiente (repressão contínua, com externalidades negativas onerosas, tanto econômica,
quanto socialmente) para algo que já se provou valoroso para a sociedade (política públi-
ca/privada de saúde), que gera externalidades positivas significativas (ressocialização de
indivíduos, redução da população carcerária por crimes não violentos relacionados à droga
e redução da violência relacionada à guerra por território de tráfico de drogas, para citar
algumas). Isso, claro, além da tributação sobre os produtos que se tornaram legalizados.
71
Considerações finais
“Apesar da ampla ação dos esforços norte-americanos [em coibir a produção e uso das drogas]
– e várias outras tentativas em outras nações –, nenhum presidente, ou “czar” da droga, declarou
vitória contra ela, nem mesmo a vitória está em vista” (Becker, Murphy e Grossman) 8. Com isso,
mas não só por isso, conclui-se que declarar guerra às drogas a partir da legalização do
consumo, atrelada a uma política tributária sobre esse produto, pode ser mais efetivo do
que continuar proibindo seu uso. Afinal, nem mesmo o preço global das drogas ilícitas se
elevou, pelo contrário, os valores caíram substancialmente ao longo dos anosf .
Dessa forma, acredita-se que o impacto orçamentário, e inclusive social, da guerra con-
tra as drogas é deletério. As experiências apresentadas, tanto em um país desenvolvido
(EUA), quanto em países subdesenvolvidos (Brasil e México), trazem à luz a ineficiência
da guerra contra as drogas em reduzir o consumo e a violência. Adicionalmente, também
se mostrou ineficaz em aumentar o preço do produto ilegal a patamares que tornassem a
indústria da droga pouco atrativa para o crime organizado.
A fragmentação vista nos cartéis mexicanos, quando seus líderes são presos ou mortos,
pode ser vista em escala global. Quando um grande cartel em um determinado país é “fe-
chado”, a partir da aplicação de leis e medidas rígidas contra as drogas, um cartel, em outro
país, emergirá para tomar posse do território que ficou “sem dono”.
Portanto, boa parte dos estudos econômicos acadêmicos sobre a indústria dos produtos
ilegais recomenda o fim da guerra contra as drogas. Seriam criados tributos sobre os pro-
dutos recém-legalizados e substituir-se-ia no orçamento a guerra contra as drogas, hoje
uma política de segurança pública, para gastos com políticas de saúde, para o tratamento
do viciado em drogas. Contudo, não há consenso quanto à abrangência da liberação/des-
criminalização.
Referências
1. Becker, Gary S.; Murphy, Kevin M. (1988). A Theory of Rational Addiction. Journal of
Political Economy, vol. 96, nº 4.
2. Benson, Bruce L. (2008). The War on Drugs: A public bad. Paper presented for a
Research Symposium on Bad Public Goods, sponsored by Northwestern University’s
Searle Center on Law, Regulation, and Economic Growth. November.
3. Hampshire, (1993). The Social and Economic Feasibility of Sustaining the War on
Drugs. In: Charting the Course: Florida Criminal Justice Executive Institute Senior
Leadership Program Charter Class. U.S. Department of Justice, National Institute of
Justice.
4. Cleveland, Mary M. (2005). Economics of Illegal Drug Markets: What happens if
we downsize the drug war? IN: Drugs and Society public policy, Jefferson M. Fish/
Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 2005.
5. Zaluar, Alba. (2007). Democratização inacabada: fracasso da segurança pública.
Estudos Avançados, 21 (61).
6. Justos dos Santos, Marcelo; Kassouf, Ana Lúcia. (2007). Uma Investigação Econô-
mica da Influência do Mercado de Drogas Ilícitas sobre a Criminalidade Brasileira.
f
Para os dados exatos nos preços das drogas, ver Felbab-Brown (2014).
72
Revista Economia, Maio/Agosto.
7. Robles, Gustavo; Calderón, Gabriela; Magaloni, Beatriz. (2013). The Economic Con-
sequences of Drug Trafficking Violence in Mexico. Documento de trabajo del BID
#IDB-WP-426. Novembro.
8. Becker, Gary S.; Murphy, Kevin M.; Grossman, Michael. (2004). The economic Theory
of Illegal Goods: the case of drugs. National Bureau of Economic Research. Working
paper 10976.
9. Felbab-Brown, Vanda. (2014). Improving Supply-Side Policies: Smarter Eradica-
tion, Interdiction and Alternative Livelihoods – and the possibility of licensing. In:
Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy. (2014). Ending the
Drug Wars. 2014.
10. Csete, Joanne. (2014). Costs and Benefits of Drug-Related Health Services. In:
Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy. (2014). Ending the
Drug Wars. 2014.
73
74
Drogas, vulnerabilidades e relacionamentos
contemporâneos
Hugo Monteiro Ferreira
06
José Aniervson Souza dos Santos
Ei, menino branco, o que é que você faz aqui
Subindo o morro pra tentar se divertir
Mas já disse que não tem
E você ainda quer mais
Por que você não me deixa em paz?
(Legião Urbana).
75
76
Introdução
Este texto traz reflexões sobre o tema drogas, vulnerabilidade e relacionamentos con-
temporâneos. Amparado numa reflexão que se fundamenta em aportes filosóficos, socioló-
gicos, antropológicos e pedagógicos, os autores propõem que a instituição do significado
das drogas tenha relação com a sustentação paradigmática construída social e histori-
camente. Ao mesmo tempo, propõem que a vulnerabilidade humana está indiretamente
relacionada às relações afetivas engendradas entre os humanos na teia das convivências
individuais e coletivas.
Para cada modelo paradigmático, ainda segundo o teórico citado, a instituição de sen-
tido ocorre fundamentada nas ideias que sustentam o dado modelo. Dessa maneira, é im-
portante que sejam feitos breves comentários sobre cada um desses modelos nominados,
com vistas ao melhor esclarecimento do leitor sobre o que ora é argumentado neste tópico.
Modelo Pré-moderno
77
taram evitar exageros e extravagâncias, desvios e inexatidões; quiseram sobremaneira a
harmonia e o equilíbrio.
A Matemática lhes deu uma impressão de que a harmonia e o equilíbrio não estavam
no interior do ser humano (endógeno), porém no exterior (exógeno). Em outras palavras,
a existência da harmonia e do equilíbrio estava em fatores externos ao pensamento e ao
sentimento das pessoas. Não havia relação entre o sentir e o pensar e a verdade que existia
para além da condição humana.
O modelo pré-moderno, como se tentou explicar antes, baseia-se na ideia de que existe
uma realidade equilibrada e harmônica e que a finalidade da vida individual e coletiva
das pessoas é alcançar essa realidade e tentar internalizá-la tanto em seus pensamentos
quanto em seus sentimentos, desdobrando-se, portanto, em suas ações e em seus proce-
dimentos.
Harmonia Equilíbrio
Modelo moderno
No modelo moderno, datado, como visto, de XVI a XIX, a ideia de equilíbrio e harmonia
é, de certa forma, substituída pela ideia de avanço e crescimento. O avanço e o crescimen-
to são a base do pensamento do paradigma moderno, entretanto, a Matemática ainda é
considerada a linguagem adequada para tal intento e a razão é, mais uma vez, a faculdade
humana legítima.
Segundo Boaventura de Souza Santos4, o paradigma Moderno tem na razão seu chão e
nas ciências racionalistas suas pilastras e seus edifícios, ou seja, a razão, fundamentada na
a
Importante que se registre a cronologia do período. No caso dos três filósofos gregos, o tempo é a.C., ou seja, antes
de Cristo.
b
De certo modo, já na Modernidade, por volta do segundo quartel do século XIX, o sociólogo francês Emile
Durkheim retoma essa discussão quando apresenta sua teoria sobre o funcionalismo social.
78
Matemática é considerada pelos modernos - empiristas, iluministas, positivistas, marxistas
e mesmo freudianas – como faculdade psíquica fulcral à descoberta da verdade.
É sobre o chão dessa lógica que emerge a chamada ciência moderna ou aquela que se
fundamenta na recusa ao subjetivo e evidencia a importância do objetivo. A natureza da
modernidade é racionalista e ultranacionalista, logo, é intensa e densamente objetivista.
Conforme Edgar Morinc,5, a ciência moderna compreendeu e explicou a vida sob a regência
da racionalidade matemática.
Se o avanço e o crescimento são as matrizes geradoras do paradigma moderno, pode-
se dizer que a obsessão desse modelo de sociedade foi a dominação do conhecimento e a
sua proliferação de modo ostensivo. O primeiro e mais importante objetivo dessa forma de
compreender e explicar a vida foi, sem dúvida, a proliferação do conhecimento embasado
em estudos matemáticos, físicos, químicos e biológicos.
Na lógica do paradigma moderno, a ciência – ou o conhecimento científico – deve ser a
régua que mensurará todos os tipos de saberes realmente valiosos para o desenvolvimen-
to de uma pessoa tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito social. A ciência funcionará
como uma espécie de norte que tratará de conduzir o ser humano ora para o avanço ora
para o crescimento.
Razão Ciência
79
Modelo pós-moderno
No modelo pós-modernod , há, de certa sorte, mudanças em relação aos modelos ante-
riormente apresentados. Numa perspectiva pós-moderna, existem questões que trazem à
tona a seguinte pergunta: a verdade tem sua existência deslocada da vontade humana ou
a verdade tem sua existência fundamentada na vontade do ser humano?
Tal pergunta, se respondida de forma positiva em relação à instituição da verdade
como resultado da mente humana, exibirá uma nova noção de verdade, de realidade e de
real. A verdade não será mais exógena ao ser humano, mas endógena: advém das intera-
ções individuais e coletivas, geradoras de conhecimentos.
No modelo pós-moderno, há uma ruptura com a razão como sendo a única faculdade
humana capaz de compreender e explicar a verdade, visto que os elementos emocionais
passam a ser entendidos como possíveis elementos interpretantes da verdade, da reali-
dade, do real. A Matemática não é mais a única disciplina sustentadora do conhecimento.
Saberes Verdades
Segundo o dicionário Michaellis6, a palavra droga tem variação conceitual. Ora poderá
ser entendida como uma espécie de substância química, ora poderá ser entendida como
algo ou alguma coisa de natureza nociva. No primeiro conceito, a palavra “droga” tem a ver
com algo externo ao ser humano e no segundo como algo interno.
A palavra droga, quando analisada sob a etimologia grega – pharmakon –, possui duplo
sentido: remédio ou veneno. No entanto, a palavra droga, se analisada sob o termo holan-
d
A expressão pós-moderno nem sempre é acatada por determinadas filiações teóricas, entretanto, em razão do que
ora se argumenta, parece pertinente seu uso, ainda que se tenha clareza de sua fragilidade em determinados aspectos
epistêmicos e metodológicos.
80
dês doog, tem a ver com a ideia de folha seca, de medicamento feito a partir de vegetais
existentes na natureza.
As drogas, em sentido mais amplo, se consideradas como entorpecentes, têm matrizes
étnicas e culturais registradas em diversas cronotopias e em diversas fases da chamada
civilização humana, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Nesse sentido, quando se pensa
na palavra droga, analisa-se o que se quer dizer e o que se está ouvindo alguém dizer.
De acordo com a OMS7, droga é qualquer substância que, não sendo produzida pelo
organismo, tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo
alterações em seu funcionamento. Talvez o conceito tratado pela OMS tenha a ver com o
significado pré-moderno de vida, uma vez que entende a droga como uma substância não
produzida pelo organismo, logo, uma substância não viva.
A expressão aqui usada “não viva” tem relação com o conceito trazido pelas teorias da
complexidade8 que subdividem a realidade em dois grandes blocos: as coisas que são in
vivo são aquelas que são produzidas dentro do organismo e como tal funcionam; e as coi-
sas in vitro são aquelas produzidas fora do organismo e como tal existem.
Seguindo essa lógica, a droga entendida como uma substância que não é produzida
pelo organismo, porém com poderes de atuação sobre ele, poderá ser compreendida e
explicada como algo exógeno ao ser humano, como algo que vem de fora para dentro, não
é natural, é artificial, não é essencial e é estranha ao ser humano.
Nessa lógica, a droga é uma substância in vitro ainda que não seja quimicamente pro-
duzida em laboratório. Com essa concepção de droga, a OMS, de certo modo, usa critérios
de separatividade, estabelecendo uma espécie de distanciamento entre o que é do ser –
aquilo que o organismo produz – e o que lhe é externo, aquilo que não é produzido pelo
organismo.
A lógica pré-moderna, como dito no tópico 1.1, entende que a harmonia e o equilíbrio
são metas que deverão ser alcançadas pelos seres humanos, mas essas condições não exis-
tem in vivo, mas in vitro, se se recorrer aos termos da teoria da complexidade morraniana8.
Isto é, a harmonia e o equilíbrio estão fora e precisam ser alcançados.
De verdade, parece acertado dizer que o conceito de drogas tratado pela OMS, para
além do paradigma pré-moderno, mantém-se também no moderno, visto que, em ambos,
a ideia de exterioridade é predominante. Nesse sentido, se o intento da modernidade são
o avanço e o crescimento, o entendimento de droga como psicotrópico talvez tenha aí
sentido.
Drogas psicotrópicas podem ser entendidas como qualquer substância capaz de afetar
os processos mentais (pensamento, memória e percepção). A palavra “psicotrópico” é com-
posta de duas palavras: “psico” e “trópico”. “Psico” relaciona-se a psiquismo, tem origem na
etimologia grega; e “trópico” diz respeito ao termo tropismo, que significa ter atração por.
Desse modo, psicotrópico significa atração pelo psiquismo e drogas psicotrópicas são
aquelas que atuam sobre o cérebro, alterando de alguma maneira o psiquismo. Todavia,
essas alterações do psiquismo não são sempre no mesmo sentido e direção, posto que de-
penderão do tipo de droga psicotrópica ingerida e do contexto em que tal ingestão se deu.
Se os grandes objetivos da modernidade foram a difusão e a proliferação do conheci-
mento científico, amparado nas ciências ditas exatas, oriundas da matemática pitagórica,
81
da geometria euclidiana, da metafísica cartesiana, certamente a compreensão e a explica-
ção que a modernidade possui sobre drogas relaciona-se àquilo que o dito saber científico
diz sobre essas substâncias usadas pela humanidade desde sempre.
Nesse sentido, as drogas modernas, aqui pedindo toda licença poética para o uso do
temo “modernas”, possuem significados que tendem a estar mais fundamentados nas cha-
madas drogas lícitas ou drogas que são utilizadas com finalidades autorizadas pelas ci-
ências, pelas pesquisas médicas, pelas orientações prescritas. As drogas modernas são,
nesse sentido, in vitro, mas drogas legais, utilizadas de modo que o usuário não se sente
inadequado no seu uso.
No ponto de vista sociológico, a modernidade instaurou a utilização das drogas ditas lí-
citas e fez isso, na medida em que criou a industrialização dos remédios, fazendo distinção
conceitual entre o que é remédio – usado para tratar doenças – e o que não é remédio, usa-
do como forma de fuga da realidade, de desvio do equilíbrio, de entorpecimento adoecido.
Sob a ótica da modernidade, saúde é diferente de doença e doença é o contrário de
saúde. Combater uma doença é proteger a saúde. As drogas modernas foram criadas com o
objetivo de combater as doenças, visto que uma sociedade doente nem avança nem cresce,
pois morre. A droga na modernidade é autorizada pelas vias oficiais, mas é diferenciada,
com vistas a não ser confundida com restritos entorpecentes.
e
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf.
82
mento pré-moderna e moderna, visto que essas abordagens paradigmáticas não contemplam
necessariamente a utilização das drogas, mas a sua condição se in vivo ou se in vitro.
A abordagem integral propõe que o problema do uso das drogas seja tratado não como
um fenômeno exógeno ao organismo humano, mas endógeno, uma vez que entende que
a separação dentro e fora do organismo pode servir para conceituar as drogas, mas certa-
mente não serve de modo ampliado para entender e explicar como se dão as ocorrências
de uso, no tocante a motivações.
Em outras palavras, as razões que levam alguém a usar drogas, sejam lícitas ou ilícitas,
é uma problemática que exige por parte de quem lida com usuários de drogas capacidade
de tentar entender o ser humano como um ser vivo composto de inúmeras dimensões e,
portanto, necessário de ser compreendido e explicado – se é que isso é viável – também a
partir de uma visão transdisciplinar.
Entende-se por vulnerabilidade toda situação, toda circunstância, toda posição que de-
flagra fragilidade, seja de que natureza essa fragilidade esteja constituída. Ser vulnerável é
não ser protegido. Nesse ponto de vista, existem muitos seres vivos vulneráveis em nossos
ecossistemas, em nossas biodiversidades. No entanto, é sobre a vulnerabilidade que aco-
mete seres humanos que se irá tratar.
Os seres humanos vulneráveis são, de modo geral, aqueles que não possuem um siste-
ma de garantia de direitos que possa ofertar-lhes condição de seres fortalecidos, ou seja,
aqueles que são seres desprotegidos, aqueles que são conhecidos como minorias. De modo
individual e coletivo, os seres humanos classificados como minorias são vulneráveis, por-
que têm e/ou podem ter seus direitos aviltados.
Na história da formação do pensamento no Ocidente, a infância sempre esteve entre
minorias, visto que seus direitos foram, em muitas situações, violados. Os povos negros e os
povos indígenas, as mulheres, os homossexuais, os idosos, as travestis, os economicamente
pobres e os usuários de drogas talvez sejam efetivamente sujeitos que vivem vulnerabi-
lidades ou transitórias ou prolongadas, em alguns casos, efetivas, porque permanentes.
Quando se é vulnerável, também se pode dizer que se está vulnerável. Ser ou estar
vulnerável, ao que parece, não é uma questão meramente individual, como sugeriu a
Sociologia de Emile Durkheimf , mas uma questão que envolve circunstâncias também
coletivas. Logo, não é exclusivamente uma opção, mas, de modo claro, uma condição.
Em seu livro A condição humana9, a filósofa judia teuto-americana Hanna Arendt explica
que a condição humana é uma situação não necessariamente de natureza restritamente
biológica, porém uma conjuntura de elementos que compõem uma dada situação que en-
volve a vida ativa do ser humano, ou seja, sua condição como sujeito social.
A vulnerabilidade das pessoas – de todas elas – tem a ver com a condição humana, ou
seja, com a vida ativa em sociedade. Diz-se que se é vulnerável quando não se é seguro
nem assegurado. As minorias são vulneráveis sempre que sua condição humana, a sua vida
ativa, é posta em xeque e levado à situação de risco, de fragilidade, de insegurança.
f
David Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 — Paris, 15 de novembro de 1917) foi sociólogo, psicólogo
social e filósofo francês. Formalmente criou a disciplina acadêmica e, com Karl Marx e Max Weber, é comumente
citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da Sociologia.
83
Mesmo que se faça distinção conceitual, em termos jurídicos10, entre minorias e grupos
de pessoas vulneráveis, uma análise simples, ainda que superficial, mostrará que há uma
relação sinonímica entre essas suas condições humanas e entre essas duas situações so-
ciais. Os vulneráveis estão fragilizados em relação aos seus direitos e são ameaçados no
sistema de garantia dos seus direitos individuais e coletivos.
As minorias, aqui incluídos os grupos vulneráveis, também têm o sistema de garan-
tia de direitos ameaçado constantemente, logo, se se nominar por ameaçados todos que
têm inseguranças na garantia de seus direitos, vulneráveis e minorias serão uma só coisa,
embora, em determinados aspectos, sejam, de fato, diferentes. Mas nos aspectos que são
diferentes, ainda possuem similitudes.
Nem sempre as pessoas vulneráveis têm consciência de que são ou estão em condição
de vulnerabilidade. Segundo a OMS, o século XXI prima-se por muitas doenças psicológi-
cas que emergem de modo expressivo. De algum modo, a condição de doente psicológico
pode ser entendida como uma condição humana vulnerável. A vulnerabilidade, nesse sen-
tido, não se restringe nem a um grupo nem a uma classe.
No entanto, para os objetivos com os quais se lida neste texto, o conceito de vulnerabi-
lidade está menos relacionado ao que foi registrado na segunda parte do parágrafo ante-
rior e mais relacionado ao que se vem afirmando ao longo do tópico. Isto é, embora exis-
tam diferenças conceituais entre minorias e grupos vulneráveis, de verdade, toda minoria,
em razão de sua condição humana, pode ser vulnerável numa sociedade que assim a trate.
Seres humanos, se analisados sob a ótica pré-moderna, nada mais são do que duas coi-
sas: carne e espírito. À carne cabe tudo que disser respeito ao biológico e ao espírito, tudo
que disser respeito à moralidade. A condição humana, portanto, terá duas bases fundantes:
• A biológica; e
• a moral.
Ambas não dependentes uma da outra, sem conexão e com pouco diálogo entre suas
nuanças.
De alguma maneira, as relações humanas, se amparadas numa perspectiva paradigmá-
tica pré-moderna-moderna, ignorará a importância das interações e focalizará seus esfor-
ços na relevância das dicotomias. Relações humanas separatistas são hierárquicas, dispos-
tas à construção de identidades inspiradas em padrões identitários previamente definidos.
Quando se trata de identidades definidas previamente, está-se aludindo a modelos
biológicos e morais os quais deverão servir de espelho para a instituição de relações in-
dividuais e coletivas. As relações humanas, fundamentadas em paradigmas pré-modernos,
tendem a ser individualistas, pois buscam menos a conexão e mais a desconexão entre as
bases fundantes da vida.
Relações familiares pré-modernas, por exemplo, são provavelmente mais relacionadas
à ideia de superioridade de uns em detrimento da inferioridade de outros. O sentimento
machista ou o seu duplo - o feminista - tem amparo nessa ordem de superioridade e infe-
rioridade. O machismo, como se sabe, gera uma série de problemas nas famílias humanas.
Dados do Instituto Patrícia Galvãog , organização não governamental brasileira que in-
vestiga casos de violência contra a mulher, afirma que, a cada oito segundos, no Brasil, em
g
Dados para acesso ao endereço eletrônico do Instituto Patrícia Galvão: http://agenciapatriciagalvao.org.br/
84
razão do machismo, uma mulher é espancada dentro de sua casa, na frente de seus filhos.
O espancamento é feito pelo companheiro dessa mulher e geralmente pai dos filhos
que presenciam a agressão.
Ainda segundo dados do Instituto, a violência infradoméstica é um problema social
que, portanto, não se restringe a uma questão privada. A violência contra a mulher, fun-
damentada numa sociedade patriarcal e machista, afeta diretamente as relações hu-
manas forjadas dentro das casas. De algum modo, a vulnerabilidade de uma família
violentada é ostensiva.
Entende-se que as pessoas que estão em estado de vulnerabilidade ostensiva, antes
mesmo dos problemas sociais que acometem grupos vulneráveis e/ou minorias, são as
que experimentam sérios problemas emocionais oriundos da ausência de experiências
amorosas. As vulnerabilidades ostensivas têm a ver com as poucas experiências amoro-
sas dentro das casas, no seio das famílias.
h
René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650) foi filósofo, físico
e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius.
Notabilizou-se, sobretudo, por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também obteve reconheci-
mento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria - fato que gerou a geometria analítica e o sistema
de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica.
Descartes, por vezes chamado de “o fundador da filosofia moderna” e o “pai da matemática moderna”, é considerado
um dos pensadores mais importantes e influentes da História do Pensamento Ocidental. Inspirou contemporâneos e
várias gerações de filósofos posteriores; boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou
a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que, a partir de Descartes, inaugurou-se
o racionalismo da Idade Moderna. Décadas mais tarde, surgiria nas Ilhas Britânicas um movimento filosófico que,
de certa forma, seria o seu oposto - o empirismo, com John Locke e David Hume.
85
tudos científicos que ocorreram a partir do século XVI no Ocidente. Os estudos ditos
científicos estão fundamentados nas teorias filosóficas de Descartes e nas pesquisas
mecânicas e físicas de Newton, entretanto, o paradigma social e histórico que se forja,
tendo tais pensamentos como base, é uma espécie de dogma.
O dogma da modernidade não são necessariamente os estudos dos grandes pensa-
dores modernos, tampouco suas relevantes pesquisas para o avanço e o crescimento da
vida na Terra. O dogma da modernidade é uma espécie de ideia oriunda dos princípios
e pressupostos modernos e que gera toda sorte de distorção do que seja avanço e do
que seja progresso.
De verdade, por razões que o espaço e o tempo não permitem analisar aqui, o dog-
ma da modernidade tem adesão intensa dos seres humanos. E é nele que se criam as
ideias reacionárias e conservadoras que mantêm as experiências amorosas distantes
dos seios das relações entre as pessoas, visto que para esse dogma experiências amo-
rosas são de pouca valia na condução da vida em sociedade.
O dogma da modernidade não necessariamente é moderno. Ele, de alguma maneira,
se encontra na pré-modernidade e também poderá ser analisado na pós-modernidade.
É um jeito, um olhar, uma atitude que tem na razão exacerbada a sua estrada de condu-
ção e relega às emoções humanas um lugar secundário na vida e nos desdobramentos
que advêm da vida individual e coletiva.
Quando se trata, pois, de relações amorosas como sendo essenciais à estruturação
mental de uma pessoa, trata-se de ocorrências que se dão entre as pessoas, dentro de
suas casas, nas instituições de ensino, nas organizações trabalhistas e nas convivências
diárias em diversas situações sociais. As experiências amorosas podem ser sinônimos
de questões como acolhimento, escuta, cuidado, atenção, zelo, empatia.
As relações humanas e as experiências amorosas: o dialógico e o monológico, o
sujeito real e o sujeito abstrato
Qualquer relação humana, para ser saudável, precisa acontecer de modo dialógico.
O que é dialógico contempla o direito do outro de dizer o que pensa e sente e implica
o direito do outro de aderir à escuta do que ouve e do que sente sobre o que ouve.
As relações humanas saudáveis são confortáveis para quem as experimenta. Qualquer
noção de desconforto pode ser sinal de que algo precisa ser dito.
Os interditos de uma relação - nem sempre indicados na linguagem verbal - podem
estar ocultos em outras manifestações da mente e do corpo. Nesse sentido, a noção de
separação entre mente e corpo, presente nos modelos paradigmáticos pré-moderno e
moderno, são desconstruídos numa perspectiva de relação pós-moderna, para a qual o
sujeito de direito prevalece sobre a ideia preconcebida de sujeito.
A ideia preconcebida de sujeito tem fundamento nas identidades que são forjadas
previamente antes da experiência real. A ideia preconcebida de sujeito se choca com
o sujeito real que aparece no cotidiano das relações. Na perspectiva monológica de
relação humana, não existe espaço para diferenças e contestações. Eis um problema
que necessita ser resolvido.
As relações humanas amorosas tendem a ocorrer quando existe um processo de
empatia, ou seja, uma pessoa se põe no lugar da outra e nesse processo evitam-se a so-
breposição de ideias e a hierarquização de opiniões. Numa perspectiva paradigmática
dialógica, as relações tendem a ser ampliadas e a sinceridade passa a ser um chão no
86
qual se pisa com mais aceite.
Relações amorosas não são idealizadas nem forjadas nas experiências abstratas,
mas se dão no concreto, no real, na lucidez mais ampliada sobre o que ocorre entre as
pessoas que vivenciam as situações.
O sujeito abstrato que criamos em nossa mente e que de fato nunca se materializa
na realidade é perfeito ou é imperfeito, mas efetivamente nunca é alguém que pode
cometer falhas e cometer acertos, dizer bobagens e ao mesmo tempo alcançar níveis
elevadíssimos de ações. O sujeito abstrato ou é ruim ou é bom, ele é maniqueísta, por-
que nunca é visto como alguém em construção identitária.
Não se conseguiu dialogar com a abstração que se faz do sujeito e, por isso, não
se constrói, com esse sujeito, uma relação real e válida. De modo geral, é uma relação
projetada, idealizada, pensada por um, porém não entendida pelo outro. Quase sempre,
essas relações abstratas são fracassadas e simplesmente machucam quem nelas existe.
Os machucões, ao contrário de nossas idealizações, são reais, deixam marcas e provo-
cam sérios problemas.
Num livro chamado Emílio ou quando se nasce com um vulcão ao lado11, apresenta-se
a história de um menino que, em razão da rejeição, decide viver com um vulcão escon-
dido dentro dele. A experiência de Emílio é dolorida, visto que o vulcão em si é registro
de sofrimento e de agonia, porém o medo de exposição também o faz sofrer.
De alguma maneira, a condição ficcional de Emílio é a situação real de muitas pesso-
as que, em razão de poucas experiências amorosas no cotidiano de suas vidas, em razão
de uma tentativa de fugir ao real, de encontrar refúgio, acolhimento e entorpecimento,
decide, sem ter controle sobre seu organismo, viver uma vida ao lado das drogas e de-
pois decide escondê-las dentro de si.
São pessoas vulneráveis, menos porque, em muitos casos, tenham problemas eco-
nômicos e financeiros e, mais porque, em muitas situações, suas trajetórias de vida são
traçadas sob o silêncio e a inadequação em relação aos sujeitos abstratos com os quais
teriam de ter identificação prévia, porém não têm. As drogas, nesse caso, são um jeito
de dizer: Não aguento pressão.
Não aguentar pressão é, de todo modo, não se adequar aos modelos previamente
estabelecidos. Não se encontrar na imagem posta no espelho. Não se sentir bem com
aquilo que se lhe dão como referência. As drogas, para o bem ou para o mal, veneno ou
remédio, surgem como espécie de lenitivo a quem não suporta a dor dilacerante de ter
de ser o que não se preparou para tal.
É sobre essa condição de usuário de droga que se trata aqui. É evidente que exis-
tem outras motivações para que um ser humano opte pela experiência com as drogas,
porém, acredita-se que as experiências da não identificação com o espectro que lhe
impõem no individual ou no coletivo são merecedoras de destaque. Viver sob regência
de modelos é um desafio, nem sempre superável.
Na contemporaneidade, como já mencionado, entender se existem drogas lícitas ou
ilícitas, temática deveras relevante, parece não ser o tom da questão. O tom é outro, é o
87
que se faz quando se está diante de uma pessoa que, por marcas emocionais nem sem-
pre ditas, busca fugir de si no entorpecimento e depois não controla mais o momento
de se entorpecer.
A problemática é não saber controlar o momento e o local aonde se quer ir na fuga.
Eis uma questão difícil para quem não suporta as pressões que a vida lhe confere nos
momentos em que se fazem exigências individuais e sociais, pessoais e coletivas no
momento em que não se abriram espaços para diálogos sinceros, verdadeiros, legíti-
mos, nos quais os sujeitos possam dizer suas coragens e seus medos.
Talvez as drogas entrem nas vidas de pessoas que não encontram na relação com
o outro o barco no rio que o leve à outra margem. As vozes silenciadas nas relações
humanas não são excluídas, mas, como bem explicou Jean Piaget12, são introjetadas e
passam a fazer parte de uma espécie de voz interior. A voz interior, como analisa Freud
(1856-1939)i , pode ser fantasmagórica.
“Essa voz interior”, explicou Raulj , um dos usuários de drogas ilícitas com o qual
conversamos em 2011/2012, época em que foram realizadas 100 escutas com adoles-
centes evadidos escolares e moradores de rua, é muito forte na minha cabeça e “ela”
sempre me diz uma coisa que não consigo entender: Raul, você é forte. Mas sou fraco. Sou
fraco igual caldo de cana com água.
Raul, assim como quase todos os sujeitos que responderam várias perguntas, não
se identificava com a imagem que lhe diziam ser ele: um sujeito forte, capaz de vencer
desafios, de superar obstáculos e de cumprir sua trajetória na escola e na vida. Raul,
caso pudesse ter sido frágil, inofensivo, não estudioso, pouco corajoso, pudesse também
ter sido mais genuíno.
O que se chama de “genuíno” é uma condição de sinceridade que relações forjadas
em idealizações não alcançam. Os adolescentes evadidos da escola também eram “fu-
gitivos” de relações familiares bastante difíceis, nas quais a violência havia sido uma
linha de conduta para os membros da família. A violência experimentada dentro de
casa refletia-se na necessidade de refúgio fora de casa.
i
Sigmund Schlomo Freud (Freiberg in Mähren, 6 de maio de 1856 — Londres, 23 de setembro de 1939), mais conhe-
cido como Sigmund Freud, foi médico neurologista e criador da Psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica,
em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco. Atualmente a localidade é denominada Příbor,
na República Tcheca.
j
Raul é um nome fictício para um dos 100 jovens que participaram de uma coleta de dados realizada em 2011/2012,
com vistas à elaboração de material para a pesquisa “Os que não respondem - presente, Professora!”.
Projeto acadêmico cujo objetivo geral era investigar, a partir de pesquisa teórica e empírica, as razões que levavam
adolescentes à evasão escolar e ao mesmo tempo ao confinamento das ruas.
88
não cumpridas.
A reabilitação passa pela revisão do que é viver em sociedade para uma pessoa
que não se sente feliz sendo cobrada de modo veemente. Em outras palavras, está-se
dizendo que entre os adolescentes pesquisados, cerca de 90% estavam dispostos a não
continuarem utilizando as drogas como recurso de fugas, mas, ao mesmo tempo, não
queriam ter de olhar no espelho.
Olhar no espelho dói, tio. Essa frase dita por Rebeca, uma das adolescentes escutadas,
revela o grau de sofrimento que alguém sente por não se adequar ao modelo social que
lhe é imposto. É urgente que se passe a compreender que nem todas as pessoas são
fortes ou devem sê-lo; são ágeis ou devem sê-lo; são maravilhosas ou devem sê-lo. As
pessoas são diferentes umas das outras, meu caro.
Essa frase com a qual se encerrou o parágrafo nos foi dita por Demétrio, adolescen-
te que tinha mania particular de ler livros de literatura numa biblioteca localizada no
bairro onde já havia morado. Demétrio era dependente químico, porém reabilitado e
que costumava, em razão de sua religião, ir tentar “salvar” vidas. Ele se “salvou”, porque
se “identificou”.
A identificação certamente não é a solução, talvez seja um equívoco terapêutico.
Num processo de busca pela volta à escola, muitos adolescentes disseram que não
queriam encontrar na sala de aula tudo o que eles viam antes. No entanto, eles viam
o que os demais alunos viam, mas, para eles, aquilo visto não tinha o mesmo sentido.
A construção do sentido de quem se machuca emocionalmente não é a mesma
construção de quem não vivencia essa experiência de dor. Alcançar o retorno daqueles
adolescentes à escola, embora não fosse esse o objetivo central desta investigação, só
se daria se a escola, no lugar de querê-los enquadrados em identidades estabelecidas
previamente, fosse capaz, antes de tudo, de ouvi-los.
Ouvir uma pessoa em estado de reabilitação é algo que a escola - a família nem se
fala - precisa saber fazer. A escuta, nesse caso, é sinônimo de empatia, de acolhimento,
de compreensão e de respeito. O respeito implica a capacidade de entender que as
pessoas possuem idiossincrasias específicas e não podem ser classificadas de modo
padronizado.
A padronização é um dos maiores obstáculos à reabilitação. Quando alguém não se
identifica com a imagem que lhe é dada como espelho, a ação mais saudável que se
tem a fazer é compreender que, não havendo identificação, não precisa haver retaliação
e, por conseguinte, rejeição. A rejeição é uma maneira perversa de jogar dentro do poço
quem não sabe andar com as próprias pernas por estradas desconhecidas.
Na construção de uma relação saudável, é imperioso que não haja palavras de co-
mando dadas por um e obedecidas por outro. A mente de alguém que busca acolhi-
mento numa experiência de amor é frágil e precisa ser amada como ela é: frágil. Não
se deve querer dicotomizar a fragilidade em oposição da fortaleza. Isso porque, numa
relação saudável, o forte é fraco e o fraco é forte e a fragilidade é excelente e a forta-
leza é excelente. Não se sabe o que é o que não é.
A dialética necessária para a boa convivência entre todos também precisa ser exer-
citada na convivência com quem não se encontra na mesma sintonia - seja qual seja
essa sintonia. Os adolescentes, das mais diversas formas, disseram o tempo todo: Aqui,
89
na rua, é bom. Melhor aqui. Na escola, tem obrigação. Em casa, tem briga.
Na rua, local onde todos pensam existir o ruim, para os adolescentes ouvidos havia
o bom. O bom a que eles se referiam estava indiretamente relacionado à possibilidade
de não viver abstrações projetadas e identificações construídas. Aqueles adolescentes
declaravam, por meio de seus interditos e - às vezes - de seus dizeres explícitos: não
somos o que esperam que sejamos.
Eis algo muito importante na instituição de sentido: a liberdade. É muito importante
que nós, seres humanos, no lugar de termos medo, tenhamos liberdade. No entanto, a
liberdade não é senão o direito da genuína verdade. A genuína verdade não é senão o
direito a ser o que sentimos e o que pensamos. Assim mesmo: o que pensamos e o que
sentimos. Não é preciso ir muito além disso.
Eles inventam que a gente tem de ser médico, advogado, engenheiro, professor, artista,
pianista, sei lá. Eu quero é ser só Raul. Saca, tio? Então, nós achamos que sacamos, Raul.
No entanto, é uma longa jornada até que a sua fala, do jeito que ela é, ressoe por entre
os muros dessa instituição que habilmente soubemos construir chamada sociedade
humana.
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90
Sessão 2:
Populações vulneráveis
92
Vulnerabilidade clínica em pacientes com depen-
dência química: quando a vulnerabilidade é o
07
corpo
Maila de Castro Lourenço das Neves
Felipe José Nascimento Barreto
Juliana Rodante
Nádia de Souza Las Casas
Nathália Didoné Poppi
Paula Alves Pinheiro
93
94
Introdução
Álcool
O álcool é fator causal de cerca de 60 doenças e contribui como cofator causal em ou-
tras duzentas. A OMS, em publicação de 2011², estimou que o uso do álcool é responsável
por 2,5 milhões de mortes por ano em todo o mundo, ou seja, 4% das mortes no mundo
em um ano.
O estresse oxidativo decorrente do metabolismo do álcool leva à produção de alto
nível intracelular de espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio. Esses dois metabólitos
estão fortemente associados à patogênese de uma série de complicações clínicas relacio-
nadas ao álcool, entre elas a hepatopatia, a pancreatite, a miocardiopatia e as alterações
95
hematológicas. A peroxidação de lipídios, formando ácidos graxos, também contribui para
as lesões orgânicas advindas do metabolismo do álcool. O álcool também interfere no
metabolismo de macromoléculas celulares, como os ácidos nucleicos, na cascata de sina-
lização intra e extracelular e na integridade de organelas celulares como mitocôndrias e
ribossomos³. A injúria orgânica causada pelo uso crônico do álcool também está relaciona-
da à deficiência nutricional, como déficit de vitaminas, em especial àquelas do complexo B,
e de aminoácidos como metionina-colina4.
Na Tabela 1, a seguir, estão listadas as principais complicações clínicas associadas ao
uso abusivo de álcool e/ou sua dependência.
1 - Transtornos mentais podem estar correlacionados com o alcoolismo e/ou serem causa de uso abusivo de
álcool. (Adaptado de Campana AAM et al., 2011)5
Nicotina
96
de 18 anos, 200 mil óbitos ao ano são associados ao tabagismo, sendo 3.000 de fumantes
passivos6.
O fumante inala uma mistura tóxica com cerca de 60 componentes cancerígenos7. Evi-
dências revelam relação de nexo causal entre tabagismo e cânceres de pulmão, laringe,
cavidade oral, faringe, esôfago, pâncreas, bexiga, rins, colo uterino e estômago e leucemia
mieloide aguda8.
A exposição à fumaça do tabaco pode danificar o endotélio vascular, levando a mais
vulnerabilidade a eventos tromboembólicos. A mortalidade por doença isquêmica corona-
riana aumenta em razão direta com o aumento do número de cigarros fumados por dia9.
Há comprovação de associação entre a exposição à fumaça ambiental do tabaco e o risco
de acidente vascular encefálico10.
As substâncias químicas produzidas pela queima do tabaco podem causar inflamação
no tecido bronquiolar, reduzindo a capacidade pulmonar para efetuar trocas gasosas, po-
dendo levar, com o tempo, ao desenvolvimento de doença pulmonar obstrutiva crônica
(DPOC)11. Outras doenças também associadas ao tabagismo são: tuberculose pulmonar,
histiocitose, úlcera péptica, doença de Crohn, doenças hepáticas, diabetes mellitus, doença
de Graves, hipertireoidismo, osteoporose e periodontite8,12.
O tabaco também pode ser fator de risco para não adesão ou ainda agravante para o
controle de uma doença de que o indivíduo fumante já seja portador11,13. Isso ocorre, por
exemplo, entre a população portadora do HIV, na qual a prevalência do tabagismo é alta e
representa fator de pior prognóstico14.
Cocaína
97
A cocaína pode produzir agregação plaquetária por meio de mecanismos alfa-adrenér-
gicos e potencialização da produção de tromboxano. Evidências experimentais mostram
que a cocaína altera a integridade do endotélio vascular a partir da redução da produção
de prostaciclina, reduzindo, então, a vasodilatação. Assim, o endotélio danificado no local
da constrição arterial torna-se propício à agregação plaquetária seguida por adesão e
trombose16.
No sistema respiratório, as alterações decorrentes do uso de cocaína dependem do
modo de administração (fumado, inalado, intravenoso) ou de alterações na regulação cen-
tral da função pulmonar15.
Outras alterações documentadas resultantes do abuso de cocaína são insuficiência re-
nal e, em estudos com animais, alta incidência de malformações cardiovasculares e cere-
brais congênitas em crias nascidas de mães com histórico de abuso de cocaína17.
Maconha
A Cannabis sativa (marijuana ou maconha) é usada em todo o mundo, sendo que a ina-
lação da fumaça oriunda da queima dos componentes secos da planta é a sua forma de
uso mais comum. O uso crônico e não medicinal de maconha está associado a alto risco
de cânceres, como os tumores nasofaríngeos (independentemente do consumo de tabaco),
elevado risco de câncer de pulmão (embora o consumo de tabaco possa ser considerado
um potencial fator de confusão deste achado) e tumores de cabeça e pescoço. Há na li-
teratura científica, ainda, evidências de consequências no sistema reprodutor de usuários
de maconha, tais como irregularidades no ciclo menstrual, redução do número de esper-
matozoides e impotência nos homens. Recém-nascidos de mulheres expostas à maconha
durante a gravidez apresentaram peso mais baixo ao nascer, mais chances de nascimento
pré-termo e mais risco de necessitar de unidade de terapia intensiva neonatal do que os
filhos de mulheres sadias18.
Adesão ao tratamento
98
à terapêutica, deve-se sempre considerar a possibilidade de não adesão ao tratamento da
comorbidade clínica em pacientes dependentes químicos. Essa simples afirmativa pode
mudar o prognóstico desses pacientes. Sempre que possível, decisões clínicas persona-
lizadas devem ser consideradas, como posologias simplificadas, incentivo ao retorno às
consultas, uso de recursos como agentes comunitários de saúde ou visitas domiciliares ou
mesmo indicação de tratamento hospitalar quando necessário. Além, é claro, do diagnósti-
co e manejo da própria dependência química.
99
veis e troca de sexo por drogas/dinheiro. Conclusão importante foi que usuários de crack
reportaram mais uso de álcool do que outros UDIs, o que aumenta a probabilidade de
comportamentos sexuais de risco entre aqueles usuários21.
Outro estudo também reafirmou a relação entre o comportamento sexual de risco e o
uso de drogas, principalmente cocaína/crack. Tal estudo relatou, ainda, que a associação
entre HIV e cocaína/crack é mais frequente nas mulheres, principalmente jovens e desabri-
gadas, mais propensas a realizarem a troca de sexo por drogas25. As mulheres também são
mais propensas que os homens a iniciarem o uso do crack por influência dos parceiros26.
Esses dados citados endossam a relação entre dependência química e compor-
tamentos sexuais de risco. Contudo, é importante ressaltar que nem sempre o comporta-
mento de risco ocorre em decorrência da dependência química, podendo ocorrer simulta-
neamente. Transtornos psiquiátricos como personalidade antissocial e transtorno bipolar
foram associados tanto a alto risco de dependência química quanto a comportamentos de
risco em geral.
Um dos primeiros estudos sobre estigma foi o de Erving Goffman, autor do livro “Estig-
ma: notas sobre a manipulação de uma identidade deteriorada”. Ele definiu o estigma como
a desumanização do indivíduo com base na sua identidade social, participação negativa na
sociedade ou categoria social indesejável que ocupa27.
Segundo o modelo psicossocial, o estigma é observado em três aspectos do comporta-
mento social: estereótipos, preconceito e discriminação. Estereótipos são aprendidos pela
maioria da população e representam um acordo geral sobre o que caracteriza determinado
grupo de pessoas. Quando esses estereótipos são disseminados e aplicados, o preconceito
social é manifestado, expressando-se por meio de atitudes e valores que resvalam na
efetiva discriminação28. Atualmente, considera-se estigmatizante qualquer característica,
não necessariamente física ou visível, que não se harmoniza com o quadro de expectativas
sociais acerca de determinado indivíduo.
Tipos de estigma
100
Estigma relacionado à dependência química
101
danos associados, muitos usuários deixam de frequentar ou até mesmo de procurar ajuda
nesses serviços. O estigma pode não apenas afetar negativamente sua autoestima, como
também reduzir suas possibilidades de inserção social32. Esse isolamento dos usuários de
drogas pode reduzir o acesso à prevenção de diversas doenças comórbidas, ao tratamento
e aos serviços sociais.
Os efeitos nocivos do estigma sobre o bem-estar psicológico e social dos usuários
de drogas ressaltam a importância de ir além do indivíduo, sendo necessário abordar o
estigma tanto na população quanto, principalmente, entre os profissionais de saúde. Além
do esclarecimento da população frente aos transtornos que podem ser desenvolvidos pe-
los usuários de drogas e os malefícios que essa estigmatização traz tanto para o doente
quanto para a própria sociedade, a implementação de estratégias para formação adequada
de profissionais de saúde é fundamental para a mudança de atitude em relação aos de-
pendentes químicos e para melhorar tanto a qualidade do serviço quanto a qualidade de
vida desse grupo.
102
acometimento pela doença. As pessoas também não sabem ao certo sobre a capacidade
desses doentes em gerir sua herança. O fato mais revelador sobre o conhecimento da do-
ença mental foi o elevado grau de confusão entre o transtorno mental e retardo mental
na população em geral, provavelmente devido à falta de conhecimento adequado sobre o
significado das duas expressões28.
Atitudes estigmatizantes têm foco especialmente sobre a disposição em ajudar a pes-
soa a se tratar até mesmo coercivamente, além do sentimento de piedade. Demais per-
cepções como necessidade de segregação, raiva e os estereótipos de responsabilidade e
periculosidade não foram questões fortemente evidenciadas no estudo28.
Usuários de cocaína e HIV-positivo experimentaram nível mais alto de estigmatização
quando comparados aos portadores de um câncer ou de depressão28. Observa-se também
alguma percepção de contaminação ou influência da condição mental e sentimentos de
piedade para com os familiares do doente mental, significativamente associado ao estigma
sofrido pelo doente28.
Existe, portanto, a necessidade de ampliar a atenção às pessoas com doença mental,
considerando-se não só os sintomas como também suas necessidades sociais.
Conclusão
Referências
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105
106
08
As vulnerabilidades associadas às minorias sexu-
ais que usam substâncias psicoativas
Alessandra Diehl
Denise Leite Vieira
107
108
Introdução
109
de substâncias psicoativas. Isso reflete poucos dados de representatividade populacional.
No Brasil, por exemplo, os grandes levantamentos domiciliares nacionais sobre o uso de
substâncias psicoativas na população brasileira, realizados tanto pelo Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) em 2002 e 2005 quanto os dois últimos
levantamentos Nacionais sobre o Consumo de Álcool e Drogas (LENAD) de 2006 e 2012
pelo Instituto Nacional de Políticas para o Álcool (INPAD), não contêm qualquer dado sobre
orientação afetivo-sexual11,12.
Diehl (2009) conduziu revisão da literatura sobre esta temática cuja busca de artigos
baseou-se na seleção de estudos de abuso e/ou dependência de álcool e/ou drogas ilíci-
tas na população geral (ex. estudos de base populacional) ou em amostras selecionadas
representativas (ex. todos os estudantes de uma cidade) e na qual a orientação sexual foi
relatada. Dos nove estudos incluídos nessa revisão, pelo menos seis mostraram claramente
o risco ou prevalência de altas taxas de abuso de substâncias psicoativas, particularmente
o álcool, entre lésbicas e mulheres bissexuais10,13.
Portanto, a melhor compreensão de questões relativas ao universo de vulnerabilida-
des e especificidades da população LGBTI no que concerne ao abuso e dependência de
substâncias psicoativas tem implicações importantes para o planejamento de políticas de
saúde (tratamento e prevenção), para a adequada condução de pesquisas científicas e para
o treinamento de profissionais nos serviços de saúde geral e equipamentos de atenção
ao tratamento da dependência de substâncias psicoativas onde essas pessoas são aten-
didas1,14.
Assim, é objetivo deste capítulo fazer uma revisão narrativa das questões que envol-
vem estes dois universos: a dependência química e a população LGBTI, principalmente
com foco em suas vulnerabilidades.
“Eu sou um gay alcoólatra. Esses dois rótulos têm informado a minha vida. Quando eu
tinha 15 anos eu fui à biblioteca da nossa cidade natal e procurei todos e quaisquer catá-
logos e títulos que forneciam alguma referência sobre a homossexualidade. E sabem o que
eu acabei aprendendo sobre mim? Sim, que eu era psicologicamente anormal, que eu era
ilegal, que eu era imoral e que eu era inaceitável”3.
Parece claro que as pessoas não escolhem sua orientação sexual, pois de alguma forma
ela é “built in”, ou seja, algo inato15. O que “causa” a orientação sexual das pessoas per-
manece alvo de pesquisas. Aliás, muito poucas pesquisas de fato vêm sendo conduzidas
para descobrir por que, por exemplo, a maioria da população (aproximadamente 90%) é
heterossexual. A literatura científica recente tem se preocupado em focar mais os efeitos
da homofobia e na homofobia internalizada de indivíduos com orientação sexual homo-
afetiva. Esse campo de pesquisa e documentário cultural assume frequentemente uma
perspectiva construtivista social. Estudos biológicos também têm aumentado, tentando se
distanciar da frequente confusão gerada entre orientação sexual e identidade de gênero1.
A orientação sexual não pode ser explicada por um único fator. Acredita-se que existe
uma base genética que fundamenta as influências biológicas, componentes bioquímicos,
familiares e sociais que se moldam para o desenvolvimento da expressão da orientação
sexual no adulto masculino e feminino1. Cabe aos profissionais da saúde diminuir estigmas
e preconceitos e trabalhar a aceitação numa perspectiva mais afirmativa para indivíduos
110
com orientação homoafetiva ou bissexual6.
Podem-se observar também diversas manifestações sociais e algumas manobras le-
gislativas que se apoiam nas remanescentes categorias pouco definidas da Classificação
Internacional das Doenças, atualmente na sua 10ª versão (CID 10) em relação à orientação
sexual para propor tratamentos de “conversão” para a heterossexualidade. Nessas perspec-
tivas de entendimento da orientação sexual é que o grupo de trabalhos da Organização
Mundial da Saúde (OMS) propôs a necessidade de revisar a atual Classificação Interna-
cional das Doenças em relação a essa categoria15. A proposta desse grupo de trabalho
é a total eliminação de todas as categorias do código F66 (transtornos psicológicos e
comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e à sua orientação) existentes na
CID-10, os quais incluem: F66.0, transtorno da maturação sexual; F66.1 orientação sexual
egodistônica; e F66.2 transtorno do relacionamento sexual15. Isso porque essas categorias
não apresentaram relevância ou utilidade clínica. Além disso, há o intuito de eliminar qual-
quer “brecha” que permita a interpretação de uma resposta normal do desenvolvimento
como doença, pois a patologização gera estigma, discriminação social e idiossincrasias
terapêuticas16.
Travestis são pessoas que mantêm sua identidade de gênero em referência tanto à
masculinidade quanto à feminilidade. A característica marcante da travesti é sua reivindi-
cação no sentido de androgenia, e não apenas o reconhecimento social como gênero femi-
nino, distinto do sexo atribuído à nascença. Uma travesti apresenta-se como uma mulher,
sustentando uma identidade de gênero feminino, mas pode vir a assumir práticas sexuais
masculinas (por exemplo, com a penetração e uso do seu pênis)17. No Brasil, uma travesti é
um homem em sentido anatômico e fisiológico, mas refere-se ao mundo como uma mulher,
seu corpo progride para formas e contornos femininas (com o uso de hormônios femini-
lizantes e/ou aplicações de silicone). Muitas podem entender que se “encaixam“ melhor
como um terceiro gênero, ou seja, alguém com uma posição entre o homem e a mulher17.
Cenas de prostituição em geral tendem a emergir como espaços significativos para a
formação de sociabilidade entre as travestis18,19. Principalmente no Brasil, as travestis têm
sido historicamente patologizadas, criminalizadas, mortas e ridicularizadas. Desta feita,
muitas delas têm buscado projetos de vida na prostituição, os quais trazem o aprendiza-
do desde muito cedo de como se pratica o viver entre diferentes espaços e a construção
de uma vasta rede de sociabilidade que pode fornecer-lhes o direito de viver uma “vida
travesti”. Não raro existe o relato de terem sido expulsas de casa ao assumirem a sua tra-
vestilidade e acabam por buscar referências e proteção na afiliação a uma travesti mais
velha, que as ensina os ”truques”, as estéticas e os jogos eróticos que garantem seu poder
de sedução e os mecanismos de proteção e resistência em contextos potencialmente de
risco para violência e discriminação20.
A prostituição entre as travestis está bastante associada à prática de comportamentos
sexuais de risco, incluindo o não uso ou uso esporádico de preservativo, consumo de subs-
tâncias psicoativas com os clientes e, consequentemente, mais chances de contaminação
pelo HIV e aquisição de infecções sexualmente transmissíveis21,22.
111
Saúde e população LGBTI
112
podem variar de 45-74%. Os estudos também sugeriram que as barreiras aos serviços de
tratamento de abuso de substâncias para essa população muitas vezes incluem discrimi-
nação, hostilidade e insensibilidade do prestador de serviço, rigor no binarismo de gênero
(feminino/masculino), segregação no âmbito dos programas e falta de aceitação em gru-
pos de recuperação destinados a gênero específico32,33.
O fato de que homens que fazem sexo com homens (HSH) têm risco aumentado de
infecção por HIV tem sido bem documentada. A eficácia de práticas de sexo seguro para
reduzir a taxa de infecção pelo HIV é uma das grandes histórias de sucesso da comunidade
gay. O sexo seguro (quando o preservativo é usado em todos os tipos de relações sexuais
- oral, vaginal e anal) mostrou-se eficaz na redução do risco de receber e transmitir o HIV.
No entanto, estudos ao longo dos últimos anos evidenciaram o retorno de muitas práticas
sexuais inseguras. Os profissionais devem estar cientes de como aconselhar seus pacientes
a apoiarem a manutenção de práticas sexuais mais seguras30.
Alguns trabalhos também têm ressaltado que lésbicas, gays e bissexuais têm maiores
taxas de fumantes do que seus pares heterossexuais. No entanto, faltam estudos empíricos
sobre por que existem essas disparidades. Muitos tratados internacionais indicam também
que os homens gays usam tabaco a preços muito mais elevados do que os homens hete-
rossexuais, atingindo quase a diferença de 50% em alguns casos. Estudos americanos que
coletaram dados sobre tabagismo a partir de inquéritos populacionais encontraram taxas
30 a 40% maiores entre bissexuais que na população geral. Outras pesquisas têm mostra-
do que as diferenças nas taxas de tabagismo são mais significativas entre mulheres bis-
sexuais (39,1%) do que em mulheres heterossexuais (19,4%)31,34-37. Portanto, o tabagismo
parece permanecer uma questão importante entre os gays, lésbicas e bissexuais, apesar
dos esforços globais para reduzir o consumo de tabaco35,36,38. Pesquisa de documentos da
indústria do tabaco têm revelado que campanhas de mídia foram direcionadas para impul-
sionar o tabagismo entre lésbicas e gays no mercado. A indústria do tabaco entendeu há
muito tempo o papel que a orientação sexual pode exercer na aceitação do tabagismo e
do marketing direcionado de determinadas marcas39.
Vulnerabilidades
Muitas vulnerabilidades interagindo entre si podem contribuir para o uso, abuso e con-
sequente dependência de substâncias psicoativas em indivíduos LGBTI1,40. Entre essas vul-
nerabilidades citam-se:
Homolesbotransfobia
113
às próprias características projeta no outro o que não aceita em si próprio, ou seja, se per-
turba tanto, pode ser que haja algo mal resolvido. Assim, em relação à orientação sexual,
a homofobia internalizada, o não se aceitar homossexual, também pode contribuir para
a expressão da intolerância em relação aos outros. Estudo realizado na Universidade da
Geórgia, nos Estados Unidos, em 1996, sugere que a homofobia pode estar relacionada à
excitação homossexual, ou seja, aqueles que se dizem homofóbicos podem, segundo este
estudo, não estar cientes disso ou negar a excitação homossexual43.
As várias faces do preconceito e discriminação contra os homossexuais muitas vezes
tomam proporções avassaladoras e chegam ao extremo da violência, resultando em mor-
tes. A homofobia definida como rejeição ou aversão a homossexuais e a homossexualidade
são protagonistas e molas propulsoras de muitos crimes, crimes estes que são classifica-
dos como crimes de ódio. Como a orientação sexual ou etnia, crença, origem, classe social
pode “justificar” um crime? Com que direito alguém discrimina, humilha, persegue, agride,
mata outra pessoa devido à orientação sexual? Em nome de quê?
O Brasil tem a vergonhosa liderança internacional em crimes de homofobia: a cada 28
horas um indivíduo com orientação sexual não heterossexual é assassinado no país por
crime de ódio. Além disso, 40% de todos os assassinatos do mundo contra indivíduos LGBT
ocorrem no Brasil44.
Várias são as formas de preconceito que a população LGBT sofre no Brasil. A seguir,
algumas são relacionadas segundo documento publicado pelo Grupo Gay da Bahia, intitu-
lado “Violação dos Direitos Humanos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais no Brasil:
2004”: agressões e torturas; ameaças e golpes; discriminação em órgãos e por autoridades
governamentais; discriminação econômica, contra a livre movimentação, privacidade e traba-
lho; discriminação familiar, escolar, científica e religiosa; difamação e discriminação na mídia;
insulto e preconceito anti-homossexual; lesbofobia: violência antilésbica; e travestifobia.
Homofobia, lesbofobia, travestifobia, transfobia, tantas fobias que talvez fosse mais
apropriado o termo “diversofobia”, intolerância ao diferente. Resultados do estudo realiza-
do pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo Stiftung,
em 150 municípios brasileiros, em 2008, que teve como objetivo identificar o quanto as
pessoas têm aversão ou intolerância a diversos grupos sociais: pessoas que não acreditam
em Deus, usuários de substâncias, garotos de programa, transexuais, travestis, prostitutas,
lésbicas, bissexuais, gays, gente muito religiosa, pessoas que estiveram em situação carce-
rária, gente muito rica, ciganos e pessoas com AIDS. Os resultados desse estudo (“Diversi-
dade sexual e homofobia no Brasil: intolerância e respeito às diferenças sexuais”) mostram
que um em cada quatro brasileiros tem preconceito contra pessoas LGBT. Além disso, um
grupo que tem uma das maiores taxas de repulsa é o de usuários de drogas. Com base
nestes resultados, vale ressaltar que lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros usuários de
substâncias sofrem ainda mais preconceito, haja vista que sofrem com os dois estigmas45.
É dever do Estado combater a discriminação e garantir os direitos de seus cidadãos. No
Brasil, o Projeto de Lei 122/2006, que transformaria em crime a discriminação de pessoas
em razão da orientação sexual foi arquivado, mas o tema foi incluído para ser discutido
pelo Projeto 236/2012 sobre a reforma do Código Penal Brasileiro, ainda em tramitação.
Enquanto isso, outras intervenções têm sido feitas para garantir os direitos do público
LGBT. Exemplo disso é o Decreto 51.180, assinado pelo Prefeito de São Paulo, Gilberto
Kassab, que prevê que transexuais e travestis utilizem o nome social (nome que escolhe-
ram e não o de nascimento) na administração municipal, ou seja, “órgãos e entidades da
114
Administração Municipal Direta e Indireta devem incluir e usar o nome social das pessoas
travestis e transexuais em todos os registros municipais relativos aos serviços públicos sob
sua responsabilidade, como fichas de cadastro, formulários, prontuários, registros escolares
e outros documentos congêneres”.
Cumprir essa medida, dirigir-se a alguém pelo nome social, é simples e importante para
evitar constrangimentos desnecessários. No caso de serviços de saúde e de tratamento
para uso de substâncias, por exemplo, além de evitar constrangimentos, o uso do nome so-
cial possibilita a criação do vínculo com o profissional e com o serviço com mais facilidade
e aumenta adesão ao tratamento46. Outros municípios também já adotaram essa iniciativa.
Atualmente, no país, ainda não existe uma lei federal que regule o uso do nome social por
indivíduos transgênero, travestis e transexuais e que permita a alteração do prenome de
registro de forma simples e rápida. Sendo assim, têm sido desenvolvidas estratégias para
que o nome social seja incorporado e reconhecido em instituições públicas. Por exemplo,
o Ministério da Educação já reconhece esse direito desde 2011 a partir da Portaria no
1.612/2011. É importante ressaltar que em 2014, pela primeira vez no Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM), travestis e transexuais puderam usar o nome social47.
No sistema prisional brasileiro, travestis e transexuais têm o direito de usar o nome
social, conforme Resolução Conjunta 01/2014 do Conselho Nacional de Combate à Discri-
minação de LGBT (CNCD/LGBT)48.
Sociais
Heterossexismo
Homofobia internalizada
Coming out
Essa expressão em inglês adaptada para o nosso idioma quer dizer “sair do armário”.
Refere-se à experiência de alguns, mas não de todos os gays e lésbicas, quando exploram
ou assumem o seu status homossexual atual, tentando conciliá-lo com a socialização an-
terior49. Esse parece ser um dos momentos mais difíceis e propícios ao uso de substâncias
psicoativas, com riscos de mais possibilidade de manutenção desse uso ao longo da vida14.
115
Drogas podem servir como um alívio “mais fácil”, promovendo a aceitação da sexualidade e,
mais importante, fornecendo conforto que muitas vezes não existe na família ou na socie-
dade. O uso de substância psicoativa pode auxiliar o processo de socialização e a realiza-
ção daquilo que se acha ser “proibido”. Muitos gays têm suas primeiras experiências sexuais
sob a influência de álcool e outras drogas. Para muitos gays e lésbicas, essa associação
entre abuso de substâncias psicoativas e sexualidade persiste e pode tornar-se parte do
processo de “sair do armário” e da formação pessoal e social da identidade1.
Adolescência
“Sair do armário” - assumir para si e para os outros uma identidade sexual diferente da
maioria - pode não ser um processo fácil, principalmente durante a adolescência, quando
a aceitação pelo grupo é tão almejada. Não é preciso muito esforço para compreender
que adolescentes LGBT enfrentam mais desafios que seus pares heterossexuais, pois além
daqueles inerentes à própria adolescência, esses indivíduos ainda lidam com intolerância,
rejeição, provocações e violência provenientes da homofobia, inclusive dentro da própria
família e na escola. Muitos sofrem com a falta de contato e de relacionamentos de apoio
com adultos ou pares; falta de oportunidade para socializar com outros gays e lésbicas,
exceto em clubes e bares; falta de acesso a uma modelagem positiva ou maneiras alter-
nativas de vivenciar a diferença. Por isso, muitos desses adolescentes podem se sentir
envergonhados e com problemas de autoaceitação e acabam vivendo em segredo, evitam
exposição de muitas de suas características, opiniões e sentimentos, o que pode levar ao
isolamento social, prejuízos de suas relações e repercussão na sua saúde mental50.
A palavra-chave é inclusão. Quanto mais esses adolescentes se sentirem incluídos e
acolhidos por seus pares, familiares, amigos e professores, menos dificuldades eles terão
para se aceitarem. Retirar o foco da sexualidade e propiciar que deem atenção a outras áre-
as importantes da vida e papéis sociais possibilita a percepção de que a orientação sexual
é apenas uma das características de uma pessoa e não o que a define como indivíduo50.
A abordagem de tratamento do adolescente deve ser mais abrangente, especialmente
para aqueles com mais vulnerabilidades. Além da homofobia internalizada, muitos adoles-
centes sofrem ameaças, incluindo de familiares e amigos que podem rejeitá-los. Alguns,
inclusive, podem acabar em situação de rua (por terem sido expulsos ou por terem fugido
de casa) e podem começar ou intensificar o uso de substâncias, além de muitas vezes aca-
barem se prostituindo para sobreviver50.
Culturais
Existe uma tendência entre gays e lésbicas a terem mais convivência entre o chama-
do “gueto gay”, por questões de autopreservação da comunidade, proteção e suporte dos
iguais e também por apropriação do sentimento de pertencimento51. O mundo social é
repleto de bares, clubes, boates, turismo gay e saunas onde o álcool e outras drogas estão
também muito presentes e amplamente disponíveis1,52.
116
pessoas que abusam de álcool e drogas. Vários estudos têm mostrado que existe tal asso-
ciação entre uso de substâncias psicoativas e comportamento suicida. Na pesquisa con-
duzida por Diehl e Laranjeira (2009), que avaliou tentativas de suicídio em uma amostra
de pronto-socorro, todos os que preenchiam critérios para dependência química já haviam
tido pelo menos uma tentativa prévia. A incidência e prevalência de tentativa de suicídio
e suicídio na população LGBT, em especial entre adolescentes e adultos jovens, é maior
em comparação aos heterossexuais. Extensa revisão sobre prevenção, tratamento e suici-
dologia foi conduzida em 2012 na população LGBT. Os principais achados de prevalência
revelam ampla variação, dependendo da amostra estudada (10% a 63%), com taxa de ten-
tativas claramente maior em indivíduos com orientação homoafetiva e/ou bissexual do
que exclusivamente heterossexual.
Visitar um profissional de saúde pela primeira vez para um indivíduo transgênero pode
ser uma experiência extremamente estressante e ameaçadora. Mesmo em retorno de con-
sulta esses sentimentos podem novamente emergir, pela simples possibilidade de ter que
lidar com outros membros da equipe de saúde que não são previamente conhecidos. Para
transgêneros, visitas a profissionais de saúde geralmente envolvem algum grau de outing,
ou seja, necessidade de ter que se revelar perante os outros sobre sua transexualidade,
o que pode ser assustador principalmente para aqueles que frequentemente enfrentam
discriminação e estigmatização dentro e fora dos serviços de saúde53.
Medo e desconforto em relação a pessoas cuja identidade de gênero ou sua expressão
não está em conformidade com as normas culturais de sexo de determinada sociedade
são geralmente referidos como transfobia. Preocupações acerca da transfobia podem levar
alguns transgêneros a não procurarem ajuda médica ou revelarem o seu status transgê-
nero para o profissional de saúde, o qual, por sua vez, pode levar a um insatisfatório ou
desastroso desfecho53.
Indivíduos transgêneros também têm medo de rejeição oriunda não somente de pro-
fissionais da saúde, mas também de suas famílias de origem, de sua igreja e de outras re-
des sociais de sua comunidade. Dessa forma, transgêneros necessitam ter mais esperança,
uma vez que “ser diferente” não é tarefa fácil de lidar no dia a dia, principalmente quando
essa noção de se perceber transgênero emerge em idade bastante precoce, em geral en-
tre os dois e 14 anos. No entanto, a maioria dos indivíduos transgêneros que procuram
por tratamento psicoterápico pela primeira vez em suas vidas está entre 26 e 68 anos. A
discrepância de idade revela, na verdade, a demora dessa população em estar pronta para
buscar ajuda psicoterápica para lidar com todas as questões que envolvem esse universo
(Samons, 2008). Na verdade, os transgêneros podem ter qualquer problema psicológico ou
de ordem emocional tanto quanto outro paciente. O importante é o profissional de saúde
ter habilidades para reconhecer e diferenciar a disforia de gênero de um sintoma de outros
transtornos comórbidos54.
É importante ressaltar que, de forma geral, indivíduos transgêneros procuram assistên-
cia de saúde pelos mesmos motivos que os não transgêneros - exceto se o motivo da busca
for por profissional da saúde especializado em questões ligadas ao processo transexuali-
zador. No entanto, qualquer profissional da saúde deve ter habilidades técnicas e culturais
117
para reconhecer algumas particularidades dessa comunidade53,54.
A escolha de tratamento deve estar baseada na necessidade do indivíduo em combi-
nação a diversos fatores, tais como: sexo biológico, status cirúrgico, declaração de gênero,
uso passado ou corrente de terapia hormonal, idade, histórico familiar de doenças, uso
de silicone, etc.53. É necessária atenção para algumas situações, por exemplo, o fato de a
terapia hormonal aumentar as chances de risco de desenvolver certos tipos de câncer de
mama. O uso de estrógenos por mulheres trans pode aumentar o risco de formação de co-
águlos sanguíneos, como o uso de testosterona por homens trans pode aumentar nível de
colesterol e de enzimas hepáticas e levar ao aparecimento de acne e predispor a doenças
cardíacas55. Transgêneros (mulheres trans) que ainda não fizeram a cirurgia de transge-
nitalização podem ter necessidade, dependendo da idade, de continuar a fazer exames
de rotina para doenças prostáticas. Outra preocupação é o fato de muitas pessoas trans
recorrerem a uma prática inadequada e perigosa, que é a utilização de silicone industrial
ou adulterado para transformação corporal (aumento dos seios, nádegas, maçãs do rosto,
etc.), geralmente aplicado pelas chamadas “bombadeiras” (gíria utilizada para designar as
pessoas que aplicam o silicone de má-qualidade e sem condições adequadas de higiene e
assepsia), o que acarreta uma série de complicações à saúde e até mesmo morte14,53.
Boas práticas
Um grande entrave - não somente nos serviços de saúde como em qualquer lugar em
que um transgênero se apresente - é a exibição de documentos o qual gera algum grau de
desconforto, pois em geral o nome do registro geral de nascimento não é compatível com
a vestimenta que o indivíduo usa. É boa prática então, perguntar a essa pessoa como ela
deseja ser chamada, assim como com qual prenome (masculino ou feminino) se sente mais
confortável. Muitos transgêneros indicarão sua preferência, mas alguns podem querer que
você tenha liberdade de tratá-lo como queira, desde que haja respeito2.
É importante ter em mente que a presença de uma pessoa transgênero em um local
de tratamento qualquer não significa sempre uma “oportunidade de formação” para outros
prestadores de cuidados em saúde. Muitos indivíduos transgêneros podem se sentir des-
confortáveis quando o seu cuidador chama outras pessoas, como residentes ou estagiários,
para observar os seus corpos ou as interações entre um paciente e o profissional da saúde.
No entanto, como em outras situações em que um paciente tem achado raro ou incomum,
pedir permissão ao paciente é o primeiro passo necessário antes de convidar um colega
ou estagiário para participar da consulta. Além disso, perguntas desnecessárias que visem
satisfazer apenas a curiosidade do profissional da saúde e, sem relevância clínica devem
ser totalmente evitadas55.
Outra boa prática é estabelecer uma política eficaz para lidar com comentários e com-
portamentos discriminatórios nos ambientes de saúde em geral, tanto pelos prestadores
de cuidados quanto por parte dos usuários desse serviço de saúde. Outra atitude é assegu-
rar que todos os profissionais do estabelecimento possam receber transgêneros com trei-
namento e competência cultural para que não exista um sistema de conduta inadequada,
principalmente vexatória. Estar acessível, com “mente aberta”, numa atmosfera acolhedora
e de não julgamento, disponibilizar cartazes sobre campanhas relacionadas a essa comu-
nidade e ter a possibilidade de banheiros de neutralidade de sexo nos serviços podem ser
estratégias que auxiliam nesse processo55. Em outras palavras, não há necessidade de criar
118
ou aumentar constrangimento tanto para os indivíduos transgêneros quanto para seus
familiares, que muitas vezes se veem desamparados54.
Os profissionais da saúde estão, sem dúvida, em posição bastante privilegiada quando
reconhecidos como autoridades e formadores de opinião e têm a valiosa possibilidade (e
incumbência) de informar, esclarecer dúvidas, usar terminologias adequadas e desconstruir
crenças inapropriadas, principalmente no atendimento a pacientes e seus familiares55.
Relacionamentos
Violência
Como já mencionado, a violência dirigida à população LGBT varia desde agressões ver-
bais e ataques físicos até assassinatos por crimes de ódio motivados pela homofobia. A
violência doméstica é também uma realidade entre casais gays, apesar de ser sub-rela-
tada. Todos esses fatores contribuem tanto para o uso (experimentação ou aumento) de
substâncias psicoativas, quanto representam um fator de risco para recaídas e devem ser
considerados em programas de reabilitação4.
119
pelos recentes dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS)
de 2014, que revelam que enquanto no mundo todo se observou diminuição de 27,6% nas
taxas de novas infecções pelo vírus HIV de 2005 a 2013, no Brasil houve aumento de 11%
de novos casos. Entre as populações mais vulneráveis estão os usuários de drogas e os
homens que fazem sexo com homens (HSH)57.
Há evidências científicas de que indivíduos sob o efeito de álcool e drogas têm o jul-
gamento prejudicado e se expõem a mais riscos, como compartilhar seringas, alto número
de parcerias sexuais, assim como práticas sexuais sem proteção. Devido à vergonha, ho-
mofobia internalizada, depressão e baixa autoestima, alguns gays, consciente ou incons-
cientemente, podem se expor a mais riscos de contágio de IST. Outro desafio é fazer com
que aqueles que já estão em terapia antirretroviral continuem tomando a medicação da
maneira e horários corretos, pois com o abuso ou recaída ao uso de drogas pode haver
negligência do esquema medicamentoso2.
A identidade sexual é uma questão que pode gerar confusão e constrangimento para
transgêneros nos serviços de tratamento para usuários de substâncias psicoativas devido
aos conceitos heteronormativos e da “dicotomia” de gênero: masculino e feminino. Uma
questão, por exemplo, é a utilização de espaços comuns nos centros de tratamento, como
banheiros, enfermarias e acomodações: uma travesti usaria qual banheiro, de homens ou
mulheres? Uma pessoa que é transexual quando internada ficaria na enfermaria masculina
ou feminina? Profissionais de serviços de tratamento para dependentes químicos sempre
se deparam com a polêmica questão dos banheiros e das acomodações/leitos separados
por binarismo de gênero em seus serviços. Pergunta-se, por exemplo, se deveriam ter ba-
nheiro “neutro” ou se transgêneros/travestis se adaptariam em enfermarias/unidades onde
o tratamento é misto, ou seja, para homens e mulheres. O fato é que não existe ainda uma
política clara sobre essa questão para equipamentos de saúde de internação binários. E
frequentemente vários equívocos são cometidos em nome da tão sonhada preservação de
direitos. Infelizmente, sabe-se, de forma anedótica, que muitos transgêneros sequer são
aceitos em comunidades terapêuticas para tratamento para dependência química. Nova-
mente, a palavra-chave parece ser a inclusão e o bom senso e respeito do acolhimento e
da aceitação da diferença, os quais deveriam prevalecer. Não existe uma regra, cada serviço
deverá se adaptar dentro de suas realidades e, sobretudo, perguntar ao maior interessado,
o paciente transgênero, como ele ou ela se sentiria melhor nesse serviço2.
Nome social
Todos nós temos nomes e atendemos, quando chamados, pelo nome que nos identifica,
que nem sempre é o nome de registro. Às vezes, é um apelido e que, de tão identificado
com o mesmo, é integrado ao registro original (p. ex., Lula). No caso de travestis e transgê-
nero, as pessoas escolhem ser chamadas por um nome diferente da carteira de identidade;
uma travesti elege um nome feminino e apresenta-se e identifica-se com o gênero femi-
nino. O mesmo acontece com as pessoas que desejam e/ou realizam a cirurgia de transge-
nitalização. Um caso famoso no Brasil é o da Roberta Close, que passou boa parte de sua
vida com o nome com que foi registrada ao nascer (Luiz Roberto). Realizou a cirurgia de
120
transgenitalização e, embora já se identificasse com o gênero feminino e se apresentasse
como Roberta muito antes da operação, apenas conseguiu alterar seu nome no registro
civil depois de muita luta e constrangimento2.
As pessoas têm o direito de serem chamadas pelo nome que desejarem e pela iden-
tidade de gênero com que se reconhecem. Geralmente, os próprios pacientes (travestis e
transgêneros) fazem uma ressalva em relação a como querem ser chamados quando se
apresentam nos serviços de saúde. Então, por que provocar constrangimentos ao chamar
pelo nome que consta na carteira de identidade uma pessoa que se apresenta com um
nome (e gênero) diferente do registro? Dirigir-se à pessoa pelo nome com o qual ela não se
sente confortável, além de gerar um mal-estar desnecessário, interfere negativamente no
vínculo desse paciente com o serviço e/ou profissional e dificulta a adesão ao tratamento,
além de prejudicar a qualidade de atendimento.
Considerações finais
Como qualquer outra comunidade, a população LGBT é formada pela sua própria histó-
ria, costumes, valores e normas comportamentais e sociais. Tem claramente identificados
seus festivais, feriados, rituais e símbolos, heróis, linguagem, arte, música e literatura. In-
tervenção efetiva na prevenção do abuso de substâncias psicoativas, tratamento e recupe-
ração deve ao mesmo tempo mobilizar e refletir essa cultura. Prevenção e tratamento que
não sejam afirmativos e positivos em relação às pessoas LGBT não são somente improdu-
tivos, mas podem também aumentar os problemas.
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124
09
Os desafios enfrentados pelos filhos no convívio
com pais usuários de substâncias psicoativas
Neliana Buzi Figlie
Daniele da Silva Gonçalves Pompeu de Camargo
125
126
Introdução
Um levantamento inglês estimou que 30% (3,3-3,5 milhões) das crianças menores de
16 anos que moram no Reino Unido convivem com um dos pais que usa álcool de forma
nociva, 8% com pelo menos dois bebedores nocivos1. Outro levantamento sobre morbida-
de psiquiátrica nacional indicou que, em 2000, 22% (2,6 milhões) viviam com um bebedor
de risco e 6% (705 mil) com um dependente1. O British Crime Survey (2004) e MPN (2000)
indicaram que 8% (até 978.000) de crianças viviam com um adulto que tinha usado drogas
ilícitas naquele ano: cerca de 335.000 crianças viviam com um dependente de drogas,
72.000 com um usuário de drogas injetáveis, 72.000 com um usuário de drogas em trata-
mento e 108.000 com um adulto que teve overdose1.
Infelizmente não há estimativas nacionais e não é raro deparar-se com profissionais
da área de saúde e politicas públicas no Brasil que desconhecem os danos sofridos pela
população de filhos de dependentes químicos.
Crescer em uma família que possui um dependente químico é sempre um desafio,
principalmente quando se fala do contato direto de crianças e adolescentes com essa
realidade. Esse desafio pode atuar desenvolvendo competências para lidar com situações
estressantes e soluções de problemas, bem como desestruturar o crescimento saudável de
uma criança e adolescente, podendo levar ao desenvolvimento do alcoolismo e de outros
quadros psiquiátricos como depressão, ansiedade e transtorno de conduta. Além disso,
pode desencadear problemas físico-emocionais, como baixa autoestima, dificuldade no
relacionamento, ferimentos acidentais, abuso físico e sexual2. Daí a necessidade de um tra-
balho preventivo que almeje condições para um desenvolvimento mais estável e saudável
e que busque a ampliação da capacidade de resolução de problemas e de habilidade de
enfrentamento e relacionamento inter e intrapessoal.
Este capítulo procura trazer informações sobre filhos de dependentes químicos que,
apesar de serem vítimas indiretas do consumo de álcool e outras drogas, acabam sofrendo
diretamente as consequências desse envolvimento, uma vez que não teve livre arbítrio
para dizer “sim” ou “não” frente às consequências geradas pela dependência química na
família.
A convivência com um dependente químico pode trazer diversos prejuízos, sendo gran-
de fator de risco para criança e adolescente que pertence a essa família. Uma em cada qua-
tro crianças está exposta ao abuso de álcool no ambiente familiar3. Esse dado alarmante
traz muita inquietação, pois pesquisas têm mostrado que os filhos de alcoolistas estão em
desvantagem quando comparados a filhos de não alcoolistas e costumam ter mais pre-
domínio de problemas, tais como: déficit cognitivo, baixa autoestima, dificuldades acadê-
micas, problemas de comportamento e dificuldades emocionais e de relacionamento4,5,6,7.
Além disso, podem apresentar algumas características psicológicas que têm sido cita-
das como precursoras no desenvolvimento do alcoolismo e de distúrbios psicológicos, que
são: insegurança, impulsividade, agressividade, baixa tolerância às frustrações, transtorno
de conduta6,8.
Belsky, Steinberg e Draper9 identificam alguns fatores como os maiores estressores
para as crianças, são eles: baixos níveis de coesão familiar, discórdia matrimonial, emprego
instável, insensibilidade, rejeição, incongruência e comportamento imprevisível dos pais.
127
Pode-se afirmar que esses estressores estão mais presentes nas famílias de alcoolistas,
quando comparadas a famílias de não alcoolistas10,11,12.
Devido às problemáticas apresentadas e outras situações de vulnerabilidade, foi reali-
zado estudo por Figlie et al.4, que avaliou amostra de crianças assistidas no Centro Utilitá-
rio de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA) e observou que 59%
dos filhos de dependentes químicos necessitaram de algum tipo de tratamento, eviden-
ciando consequências no desenvolvimento infantil. Por outro lado, 58% dos cônjuges apre-
sentaram risco para o surgimento de distúrbios mentais, dificuldades no relacionamento
familiar e agressividade. Nas crianças percebeu-se a predominância de sentimentos de
insegurança e inadequação associados à depressão, apatia e repressão, rebaixamento de
autoestima, alto índice de carência afetiva, empobrecimento na capacidade de solucionar
problemas, isolamento e maturidade precoce.
Os pais são considerados as principais referências e a forma como se relacionam com
os filhos é fundamental para a saúde mental deles, podendo algumas interações trazer
sérios prejuízos para o desenvolvimento infantil13.
No aspecto cognitivo, têm sido encontradas diferenças no desempenho em avaliações
cognitivas e desempenho acadêmico inferior. Crianças e adolescentes filhos de dependen-
tes de álcool frequentemente têm mais problemas acadêmicos14,15.
Estudo sobre autoconceito e desempenho escolar comparando filhos de dependentes
de álcool com filhos de não dependentes demonstrou que filhos de dependentes tendem
a ter autoconceito mais negativo e desempenho escolar inferior nas tarefas de leitura e
aritmética16. Em idade pré-escolar, mostram linguagem e raciocínio mais precários que os
filhos de não alcoolistas e o mau desempenho dos filhos de alcoolistas é previsto, pela
qualidade inferior do estímulo presente em casa. Além disso, filhos de alcoolistas têm mais
dificuldade de abstração e de raciocínio conceitual. Essas funções cognitivas desempe-
nham importante papel na solução de problemas, sejam eles acadêmicos ou de situação
relacionada à vida. Portanto, os filhos de alcoolistas poderiam necessitar de explicações e
instruções mais concretas e aprofundadas17.
128
afetivos, é mais prejudicado quando a mãe tem algum transtorno psiquiátrico25.
O impacto também pode variar dependendo da substância consumida. Estudo rea-
lizado com 305 famílias apurou que o ambiente envolvido com drogas ilícitas prejudica
mais o desenvolvimento da criança do que o ambiente envolvido com álcool, a destacar:
retraimento, queixas somáticas, problemas de contato social, problemas de pensamento
e comportamento delinquente. Já os filhos de pais dependentes de álcool sofrem maior
impacto na aprendizagem, depressão e ansiedade. Também foi constatado que quanto me-
nor a idade da criança, maior a incidência dos fatores de risco em seu desenvolvimento26.
O fato de na família alguém se envolver com bebidas alcoólicas ou outras drogas acio-
na nos demais membros uma série de reajustes, na qual cada membro tenderá a agir de
uma forma, uns com melhores recursos, outros não27.
Levando em consideração as reações negativas dos membros que convivem com o de-
pendente químico, há mecanismos que podem aumentar o risco de uso e abuso de drogas
dos filhos e são descritos por Ellis, Zucker e Fitzgerald28 (Tabela 1).
129
modo geral, o humor do cônjuge que não abusa de substâncias é decisivo na interação
familiar.
Inconsistência parental: o ambiente de regras familiares geralmente mostra-se erráti-
co, inconsistente e com estrutura familiar inadequada. Geralmente as crianças mostram-se
confusas frente ao que é certo ou errado, acarretando comportamentos inconsistentes.
Negação parental: apesar dos sinais óbvios, os dependentes químicos afirmam não
haver problemas, gerando com isso insegurança na perceção das crianças que convivem
com essa realidade.
Falha na expressão de raiva: crianças e adolescentes que convivem com a dependência
química em suas famílias mostram-se temerosos em expressar seus sentimentos e pensa-
mentos, uma vez que podem desencadear escândalos ou atrocidades na expressão de raiva
por parte do dependente de substâncias.
Automedicação: tanto um familiar quanto uma criança passam a usar substâncias ou
bebidas alcoólicas para lidar com sentimentos, podendo acarretar quadros de ansiedade
ou depressão.
Expectativas parentais irreais: crianças expostas frente a expectativas irreais ou baixas
expectativas tendem a se tornar inseguras e com a sensação de fracasso.
Apesar de seu estado de risco, é importante salientar que grande parte dos filhos de de-
pendentes químicos é acentuadamente bem ajustada e, por tal, uma abordagem preventiva
de caráter terapêutico pode ser de vital importância no desenvolvimento dessas crianças e
adolescentes. Dessa forma, nem sempre “filho de peixe, peixinho é!”.
130
de que dispunham. No entanto, o cuidado entre irmãos, mesmo nessas famílias numero-
sas, foi considerado importante fator de proteção. O estudo salienta, ainda, que crianças
que têm irmãos apresentam mais desenvolvimento emocional e social, especialmente em
relação à empatia.
Diante disso, a implementação de programas de intervenção junto a esses grupos de
crianças em situação de risco pode potencializar e favorecer o desenvolvimento da resili-
ência, sendo este um importante fator de proteção.
A resiliência pode ser vista como o resultado da interação entre aspectos individuais,
contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e os cha-
mados fatores de proteção encontrados na família e no meio social36. A ideia em torno da
resiliência é a capacidade de desenvolvê-la na saúde coletiva, conectando o individual e
o coletivo.
As ações institucionais só são entendidas como propiciadoras de resiliência desde que
efetivadas por meio de um vínculo com a criança e o adolescente. E este talvez seja um dos
grandes ganhos que a resiliência traga para o campo da saúde, ou seja, propõe uma nova
práxis pautada em ações personalizadas, nas quais a interação entre sujeitos realmente se
estabeleça como vínculo de confiança, como espaço de acolhida e escuta. Logo, a resiliên-
cia não pode ser vista como uma nova panaceia para a saúde, uma saída mágica aplicável
inadvertidamente a qualquer situação. A questão que se estabelece é uma mudança de
olhar em relação às crianças que vivenciam situações adversas. Tal mudança pode signifi-
car para o próprio sujeito uma aposta de emancipação diante de um estigma, como o dos
maus-tratos37.
Pelos aspectos expostos, torna-se clara a importância das abordagens interventivas
que sustentem, ainda num período de prevenção, o desenvolvimento e o crescimento de
filhos de dependentes químicos. No próprio contexto da dependência química, a aborda-
gem familiar revela-se um importante recurso para o tratamento38. No âmbito da preven-
ção, investir em programas que ofereçam assistência aos filhos, bem como aos familiares,
também é relevante para assegurar laços afetivos, cuidados básicos e promover recursos
que ampliem os fatores de proteção39.
O contexto de risco no qual uma criança se desenvolve deve ser foco de extrema aten-
ção. Prevenir-se significa se antecipar, esse mesmo ambiente deve ser avaliado, acolhido e
monitorado pelos profissionais, como forma de assegurar um olhar diferenciado aos filhos
de dependentes químicos. Os serviços, tanto no campo da saúde como da educação, pre-
cisam buscar alternativas preventivas, psicoeducacionais e de assistência para garantir a
essa população oportunidades de se proteger do meio em que vive.
Na periferia de São Paulo, em um dos bairros mais violentos da cidade, foi criado o ser-
viço Centro Utilitário de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA),
idealizado por Neliana Buzi Figlie, em parceria com a ONG Sociedade Santos Mártires e
com o apoio técnico da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), pertencente ao
Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM33.
O CUIDA funcionou de setembro de 2001 até setembro de 2011, inicialmente com fi-
nanciamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, posteriormen-
te com o da Secretaria Municipal da Saúde. Nesse período, 1.109 crianças e adolescentes
131
(não incluindo o atendimento de familiares) foram, assistidas. Infelizmente, o CUIDA teve
suas atividades interrompidas devido corte de financiamento, deixando vulnerável aproxi-
madamente 200 assistidos.
A missão do CUIDA é diminuir os fatores de risco que interferem no desenvolvimento
biopsicossocial de crianças e jovens que convivem com a dependência química em seus
lares e aumentar os fatores de proteção, capacitando-os para uma integração social e
comunitária que lhes facilite a realização de seu potencial como cidadão, com saúde e
dignidade33.
Da experiência do serviço foram realizados alguns estudos sobre essa população, des-
critos a seguir: estudo inicial, desenvolvido com 63 familiares, 54 crianças e 45 adolescen-
tes, demonstrou em relação ao perfil familiar que 67% pertenciam à categoria socioeconô-
mica D; na maioria das famílias o pai é o dependente químico (67%), tendo como principal
substância de escolha o álcool (75%); 59% dos cônjuges que não eram dependentes quí-
micos apresentaram risco de distúrbios em saúde mental e 73% dos pais declararam que
a gravidez não foi planejada. Nas crianças foram observados timidez e sentimento de in-
ferioridade; depressão; conflito familiar; carência afetiva e bom nível de energia, o que é
indicativo de equilíbrio emocional e mental. Nos adolescentes, foi detectado alto índice de
problemas nas seguintes áreas: desordens psiquiátricas, sociabilidade, sistema familiar e
lazer e recreação. É importante destacar que a área de uso de substâncias foi considerada
fora do ponto de corte4.
Um dos maiores desafios encontrados nesse serviço foi a adesão dos adolescentes. Foi
realizado então outro estudo com 791 crianças e adolescentes para identificar quais eram
os fatores determinantes que impediam a adesão ao tratamento, tendo sido encontrados:
mudança frequente de moradia, baixo grau de escolaridade do pai e situação socioeconô-
mica desfavorável, nessa ordem. Vale ressaltar que na população estudada tais caracterís-
ticas eram extremamente frequentes40.
A proposta de tratamento era de um ano, focada na prevenção do uso de substâncias e
de transtornos na área de saúde mental com avaliação constante dos fatores de risco, de
modo a reduzir danos e favorecer os fatores de proteção.
Como se deparava com alta rotatividade e difícil adesão dos casos devido à situação
socioeconômica, que se apresentava como um fator importante tanto para a gravidade da
situação familiar quanto para a possibilidade de conclusão do tratamento, e consequen-
temente com o prognóstico das crianças e adolescentes assistidos no serviço, optou-se
por uma intervenção breve, pautada na resolução de problemas dentro do referencial da
terapia cognitiva.
A solução de problemas nessa proposta é compreendida como um processo autodiri-
gido cognitivo-comportamental, no qual a pessoa tenta identificar ou descobrir soluções
eficazes ou adaptativas para os problemas da vida cotidiana. É representada pelos três
componentes hipotéticos do pensamento meios-fins:
1. Capacidade de conceituar os passos sequenciais ou meios necessários para alcançar
determinado objetivo na solução de problemas
2. Capacidade em antecipar possíveis obstáculos que possam interferir na obtenção do
objetivo;
3. Capacidade em estimar que a solução de problemas leva um tempo determinado,
que pode ser essencial para a implementação bem-sucedida da solução41.
A abordagem de atendimento utilizada era a terapia cognitiva, que enfatizava os efei-
132
tos de crenças e atitudes mal-adaptativas ou disfuncionais no comportamento atual, par-
tindo do pressuposto de que a reação de um familiar, criança ou adolescente é influen-
ciada pelos significados atribuídos ao fato. Isso implica que as respostas emocionais e
comportamentais a fatos diários decorrem da forma como esses eventos são percebidos
e relembrados, das atribuições que são feitas, da causa desses eventos, das formas como
esses eventos afetam a percepção que a pessoa tem de si própria e da forma como busca
atingir seus objetivos. Esses esquemas são considerados moldes que guiam a percepção, o
processamento, as recordações e a análise de informações42.
Mediante respostas comportamentais inadequadas – quando prejudicam a adaptação
social e escolar dos assistidos –, a proposta era reestruturar crenças disfuncionais e atuar
na resolução de problemas, por meio de monitoramento de pensamento, identificação de
distorções e erros cognitivos, avaliação de pensamento e desenvolvimento de processos
cognitivos alternativos e treinamento de habilidades de enfrentamento42.
Vale destacar que em nossa prática clínica as crenças disfuncionais mais prevalentes
nesse grupo eram de incapacidade, principalmente com familiares que não eram depen-
dentes químicos; baixa auto-estima associada a transtornos de conduta e crianças de casa
-abrigo; e inadequação, mediante a existência de algum transtorno psiquiátrico.
A postura da equipe era de fundamental importância para a adesão ao tratamento.
Nesse sentido, a utilização da entrevista motivacional visava auxiliar os atendidos em seus
processos de mudança de comportamento.
Faz parte da essência da entrevista motivacional reconhecer que o cliente tem com-
petência, recursos e força própria para construir uma mudança em sua vida. Dessa forma,
quando o profissional vê o seu cliente como “capaz”, torna-se mais fácil para o profissional
utilizar os princípios essenciais da entrevista motivacional - de colaboração, autonomia e
evocação. Essa diferente visão a respeito do cliente torna mais fácil ao profissional enten-
der a diferença entre essa abordagem e os outros tipos de aconselhamento43.
Nessa ótica, a postura do profissional e a intervenção passam a ser compostos pela
parceria, aceitação, compaixão e evocação. A mudança aqui é compreendida em amplo
aspecto do comportamento, possibilitando que o indivíduo se decida, tome atitudes e se
resolva. Nessa nova proposta, a parceria do profissional é bastante significativa, sendo re-
forçada nas bases relacionais da entrevista motivacional, que inclui, além do engajamento,
do foco e da evocação, o planejamento como condição para a mudança de qualquer tipo
de comportamento43.
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133
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136
Vulnerabilidade nas mulheres usuárias de droga
10
Luisa Zamagna Maciel
Saulo Gantes Tractenberg
Breno Sanvicente-Vieira
Luisa Fernanda Habigzang
Rodrigo Grassi-Oliveira
137
138
Introdução
O envolvimento com álcool e drogas vem sendo, ao longo dos anos, identificado como
um comportamento predominantemente masculino. Entretanto, recentes estudos epide-
miológicos revelam crescimento substancial do consumo de substâncias psicoativas na
população feminina1,2. Como consequência do aumento desse consumo, pesquisadores têm
se dedicado a investigar os possíveis fatores associados à progressão e ao risco do uso de
drogas entre as mulheres.
Tendo em vista as distinções biológicas, psicológicas e comportamentais entre homens
e mulheres, alguns estudos se propuseram a investigar os fatores de risco e vulnerabilida-
de que levam ao início do uso, bem como as diferenças de sexo que poderiam estar envol-
vidas no curso do desenvolvimento do transtorno por uso de substâncias (TUS). Sabe-se,
por exemplo, que existem diferenças significativas vinculadas às razões e motivações para
o primeiro uso, bem como especificidades na progressão e desenvolvimento do TUS. Além
disso, a adesão ao tratamento também tem particularidades ligadas ao sexo3-8.
Além dos aspectos subjacentes às diferenças entre homens e mulheres, alguns autores
defendem a ideia de que o uso de drogas entre as mulheres representa um rompimento
dos padrões sociais e das expectativas do papel feminino. Situações da esfera social e
emocional que acompanham a dependência, como marginalização e abandono da família,
são exemplos de comportamentos que não correspondem ao papel culturalmente ideali-
zado da mulher9,10.
O estigma social, desta forma, aparece como um dos possíveis motivos responsáveis
por distanciar as mulheres dos serviços de saúde. O medo de julgamento e a vergonha
são aspectos que fazem com que essas mulheres procurem menos auxílio especializado
para tratar o TUS. Em paralelo, muitos profissionais responsáveis pelo atendimento de tal
demanda possuem uma visão estereotipada em relação ao papel feminino e, por conse-
quência, mesmo que não explicitamente, demonstram preconceito contra as usuárias de
drogas2,11.
A invisibilidade da população feminina com TUS coloca-as em mais vulnerabilidade e
situação de agravo social e de saúde5. Estudar a mulher usuária de drogas desconsiderando
as expectativas sociais implícitas no papel feminino impossibilita compreender os motivos
e circunstâncias do uso de drogas. Também dificulta a construção de estratégias de saúde
mais efetivas para atender essa população.
Embora os estudos com mulheres usuárias de drogas ainda sejam incipientes, as evi-
dências reforçam a importância de se pensar em um atendimento particularizado, uma vez
que, atualmente, a realidade nos serviços de saúde é prioritariamente baseada em proto-
colos de tratamento desenvolvidos e testados em populações masculinas, negligenciando
as especificidades inerentes às mulheres.
Neste sentido, este capítulo tem por objetivo apresentar conceitos e fatores de risco
e de vulnerabilidade específicos para a população feminina, que devem ser considerados
ao pensar em uma avaliação e em um plano de tratamento especializado. Ao final deste
capítulo será possível identificar:
• Papel da desigualdade de gênero no cenário de álcool e outras drogas.
• Fatores de risco e vulnerabilidade em mulheres usuárias de drogas.
• Fatores que interferem no desenvolvimento e curso do uso de drogas.
• Aspectos que dificultam a busca por serviços especializados e adesão aos tratamen-
139
tos ofertados para álcool e drogas.
140
cia social2,11. Aspectos emocionais vinculados à baixa autoconfiança, irritabilidade e tristeza
estão associados à maior vulnerabilidade ao uso abusivo de substâncias por mulheres5,17-20.
Mulheres, uso de drogas e fatores de risco e vulnerabilidade biopsicossociais
O início de uso de drogas é motivado no indivíduo por diferentes razões. Alguns acha-
dos sugerem que os motivos que levam homens e mulheres ao primeiro contato com uma
substância psicoativa podem ser distintos. Além disso, etapas sensíveis do desenvolvimen-
to do indivíduo podem favorecer a experimentação, da mesma forma que o contexto social
e familiar em que estão inseridos2-5,8. A adolescência, por exemplo, é considerada um perí-
odo de vulnerabilidade, uma vez que contempla um conjunto de transformações orgânicas,
físicas e psicológicas no indivíduo21. A busca de identidade e autonomia, a necessidade
de aceitação pelos pares e a busca de separação emocional dos pais são características
psicossociais do adolescente que podem estar associadas à experimentação de drogas em
comparação às demais faixas etárias. A maioria dos quadros de TUS diagnosticados na vida
adulta possui histórico de uso de drogas durante o período da adolescência22.
O início do uso de álcool por mulheres é descrito em idades mais precoces. Os dados
brasileiros referentes ao início de uso de substâncias em adolescentes mulheres apresen-
tados no II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas mostraram que, no ano de 2006, 1%
das adolescentes tinha experimentado álcool com idade inferior a 11 anos. Em 2012, no
entanto, esse número quadriplicou. Isso demonstra início de uso de álcool cada vez mais
precoce entre meninas brasileiras. Ainda nesse mesmo levantamento, observou-se que, em
2006, 7% das adolescentes entre 12 e 14 anos bebiam regularmente, enquanto em 2012 a
estimativa foi de praticamente o dobro, atingindo os 13%23. Apesar do uso precoce vir sen-
do indicado como um dos fatores de vulnerabilidade para o TUS, percebe-se que existem
também outros fatores influenciando esse início de uso.
Entre algumas razões reconhecidas que podem predispor a adolescente ao primeiro
uso, percebe-se forte influência das experiências amorosas. Tanto na adolescência quanto
na vida adulta, o cônjuge tem sido citado como um dos principais membros da família que
influenciam o início do uso de drogas de sua parceira24. Nesses casos, o companheiro nor-
malmente já é um usuário ou possui envolvimento com tráfico de drogas. Tal característica
não é observada em populações masculinas, uma vez que a família tem pouca influência
para o primeiro uso, sendo o grupo de amigos um dos principais motivos que levam jovens
homens a experimentar qualquer tipo de substância psicoativa6.
Além dos aspectos sociais, estudos mostram que o histórico de diagnóstico psiquiátrico
ou mesmo sintomas de humor e ansiedade são condições capazes de motivar o uso de
drogas entre as mulheres. A motivação para o uso de drogas parece estar associada à busca
141
pelo alívio do desconforto subjacente às experiências negativas, sendo também utilizada
como forma de automedicação. Isso não se verifica de igual maneira entre os homens, uma
vez que os fatores que motivam seu uso devem-se pela busca do reforço positivo associado
aos efeitos da droga ou pela curiosidade em experimentar determinadas sensações8,17-20.
O início de uso de determinada substância pode estar relacionado à sua progressão e
desenvolvimento do TUS. Sugere-se que a primeira droga de uso, mesmo que não leve à
dependência, pode ser considerada um potencial de risco para a experimentação de outras
drogas e, consequentemente, desenvolvimento de dependência25. Tal hipótese é conhecida
como “hipótese da porta de entrada” e sugere uma sequência de acontecimentos nos quais
o uso de drogas como álcool e a maconha pode conduzir ao uso de outras drogas, incluindo
a cocaína, crack, heroína e meta-anfetamina. Assim, o uso precoce de tabaco ou álcool, que
geralmente está associada à influência de um ambiente familiar ou de grupo de amigos,
aumenta a probabilidade de usar maconha e, consequentemente, segundo a hipótese da
porta de entrada, passar para o uso de outras drogas como a cocaína e o crack. Embora
a maioria dos estudos que investigaram essa hipótese incluíram participantes de ambos
os sexos, achados específicos com amostras de mulheres sugerem que usuárias de crack
possuem um comum histórico de uso de álcool e/ou maconha antecedentes ao início de
uso de crack, confirmando essa hipótese24,26,27.
O curso e a progressão do uso evidenciam diferenças biológicas entre mulheres e ho-
mens. Observa-se que mulheres manifestam sintomas de abstinência, tolerância e fissura
em um período de tempo de uso inferior ao dos homens7,15. Em usuárias de crack, por exem-
plo, isso pode ser exemplificado pela diferença significativa em comparação aos usuários
homens no que se refere à quantidade da droga consumida. Percebe-se que mulheres con-
somem maior quantidade de pedras de crack do que os homens dentro do mesmo período
de uso3, o que sugere a maior necessidade em usar a droga possivelmente em resposta aos
sintomas de abstinência experienciados.
Além disso, do ponto de vista neurobiológico, mulheres parecem ter mais reatividade
cerebral quando estimuladas pelo uso de drogas em comparação a homens28,29. A influên-
cia dos hormônios, como a progesterona e o estrógeno, bem como os respectivos níveis
desses hormônios nas diferentes fases do ciclo menstrual, parecem desempenhar papel
importante tanto para uma diferente ativação cerebral, quanto para a intensidade dos
sintomas decorrentes do uso da droga28,30. Dreher et al.31 investigaram essa relação, de-
monstrando que sintomas de fissura e maiores ativações de regiões cerebrais do sistema
de recompensa (área fundamental para a motivação ao uso de drogas) estavam associados
à fase folicular do ciclo menstrual feminino.
O fato de a experiência com a droga ter papel distinto para homens e mulheres faz com
que seja necessário entender o curso da dependência como um aspecto que envolve desde
as motivações iniciais até as questões envolvidas na vulnerabilidade para a progressão e
desenvolvimento da dependência. Compreender essas questões pode possibilitar a cons-
trução de propostas preventivas na área da saúde5,8.
142
tratos (MT) na infância referem-se a situações na qual a criança ou adolescente é exposto
de forma repetida ou continuada a eventos que incluem situações de abuso sexual, físico,
emocional e negligência de cuidados básicos de saúde, higiene e afeto32. Observa-se cres-
cente número de estudos que reforçam os achados de que tais situações poderiam estar
associadas ao aumento da vulnerabilidade, bem como do risco de desenvolver condições
psiquiátricas, sendo o TUS um dos transtornos mais prevalentes32-34.
A B
*
Adaptado de Tractenberg27.
No que diz respeito ao prognóstico, alguns estudos têm revelado que mulheres expos-
tas aos MT apresentam elevados níveis de ansiedade, depressão e fissura no processo de
desintoxicação quando comparadas às mulheres sem exposição aos MT33,40. Nesse sentido,
é possível observar que mulheres usuárias de drogas com histórico de situações adversas
na infância manifestam sintomas psiquiátricos mais intensos que mulheres usuárias sem
o mesmo histórico. A vitimização também implica prognóstico clínico mais reservado33.
Não somente diferenciações no curso e prognóstico do tratamento têm sido identifi-
cadas em mulheres que passaram por situações adversas, alguns estudos mostram altera-
ções relacionadas à visão de si e de mundo. Mulheres vítimas de MT têm baixo autocon-
ceito, sentimentos de desvalia e visão negativa em relação ao mundo e sua perspectiva32,41.
Além disso, essas mulheres estão mais propensas a mostrar diminuída expectativa de que
receberão o apoio necessário, bem como acentuada dificuldade de regulação emocional
frente a situações estressoras42.
Além do histórico de MT na infância presente em muitas mulheres usuárias de drogas,
identificam-se outras situações de violência ao longo do desenvolvimento. Estudos ressal-
tam que mulheres usuárias de álcool e outras drogas ilícitas, tais como maconha, cocaína
e crack, possuem histórico de revitimização na vida adulta, vivenciando situações de vio-
lência conjugal43,44. Uma das hipóteses para a revitimização é a dificuldade das mulheres
em reconhecerem as situações de violência como tal, devido à “normalização” que ocorre
quando se vive recorrentemente situações dessa ordem45.
143
A reexposição a situações de violência acentua a baixa autoestima dessas mulheres,
sentindo-se menos valorizadas e vulneráveis. Aliado a isso, o sentimento de vergonha pre-
sente em usuárias de drogas contribui para a subnotificação das situações de violência
sofridas na vida adulta na rua ou no contexto familiar. Em estudo qualitativo que buscou
avaliar a percepção de mulheres em tratamento para TUS sobre a violência, identificou-se
que para essas mulheres a violência que sofriam estava associada à sua condição socio-
econômica e com a sua maior “disponibilidade” sexual quando intoxicadas pelo uso de
crack46. No que diz respeito à violência sofrida na rua, estudos com usuárias de crack mos-
tram que mulheres que praticam a prostituição como forma de sustentar o vício sofrem
ameaças e situações de violência física e sexual com mais frequência quando comparadas
aos homens47,48.
Outros achados reforçam a importância de investigações que relacionem tais aspectos.
Por exemplo, mulheres que sofrem violência conjugal têm risco dobrado para o abuso de
álcool e cocaína comparada com mulheres que não foram expostas a esse tipo de violên-
cia49,50. O uso de álcool e drogas pode surgir como uma tentativa de alívio ao sofrimento
advindo do cenário de violência51.
Percebe-se que a violência é um fator presente na realidade de mulheres usuárias
de drogas. Entende-se que essas questões devem ser contempladas no atendimento e
plano de tratamento individualizado, pois potencializam o risco para a recaída do uso de
substâncias. Terapias integrativas desenvolvidas para abarcar concomitantemente os pro-
blemas relacionados ao uso de substância e os sintomas pós-traumáticos, bem como as
alterações cognitivas e de regulação emocional subjacentes à coocorrência de ambos os
diagnósticos, constituem uma proposta promissora52.
Aspectos socioeconômicos
144
derivado da cocaína, possuir alto potencial de dependência e ter baixo custo e fácil acesso,
o crack ganhou mais visibilidade e destaque no Brasil55. Por essa razão, estudos nacionais
têm dado mais ênfase aos aspectos socioeconômicos relacionados ao uso de crack56,57.
Indicadores socioeconômicos revelam distinções entre mulheres que fazem uso de cra-
ck em comparação a homens, como também em relação a mulheres que fazem uso de
cocaína. Por exemplo, foi identificado que a proporção de mulheres usuárias de crack que
vivem em situação de rua é maior em comparação a homens (51,61% e 27,67%, respecti-
vamente); a média de escolaridade é baixa, 50% das usuárias de cocaína possuem ensino
médio completo, porém 76,6% das usuárias de crack possuem apenas o ensino fundamen-
tal; 74,9% não têm vínculo empregatício devido à incompatibilidade do uso de crack com
as exigências das atividades laborais, ao passo que 25% se encontram na mesma situação;
o envolvimento em atividades ilegais como forma de sustento é prevalente, sendo a pros-
tituição e os serviços de entrega de droga (aviãozinho) as atividades mais recorrentes entre
as usuárias de crack24,58.
No que diz respeito à constituição familiar, grande parte das mulheres usuárias de
drogas possui histórico de saída da casa dos pais ainda jovens. Estudos que buscaram
avaliar a situação familiar anterior ao uso de drogas sugerem vínculos familiares compli-
cados. Evidencia-se histórico de desentendimentos com a família – anterior ou posterior
ao início de uso de drogas – bem como situações de maus-tratos10,24,27. O casamento surge
em idade prematura, assim como a primeira gravidez. A justificativa do casamento deve-se
pela vontade de sair de casa ainda na adolescência. Após a dependência de crack, mulheres
tendem a engravidar por manter relações sexuais com diferentes parceiros e com prática
não segura, isto é, sem preservativo. Os filhos, em geral, são provenientes de pais diferentes
e, em muitas situações, desconhecidos pelas próprias mulheres24.
Tendo em vista que os estudos exibem um perfil de usuária de crack caracterizado por
fatores socioeconômicos específicos, é possível perceber que essas condições contribuem
para mais vulnerabilidade dessa usuária no que diz respeito ao uso e à manutenção do
consumo de crack. O contexto ambiental torna-se, portanto, um facilitador para o acesso e
uso dessa substância.
145
(TEPT)63,64. Prevalências superiores são encontradas quando avaliados apenas sintomas de
humor e ansiedade sem necessariamente um diagnóstico associado27. Além disso, esses
sintomas refletem mais impacto global de saúde em mulheres em comparação a homens65.
A escolha do tipo de droga para lidar com sintomas psiquiátricos também é um as-
pecto que deve ser considerado. A escolha por determinada droga quando o indivíduo é
acometido por comorbidades psiquiátricas pode ter associação com seu mecanismo de
ação farmacológico66, indicando a hipótese de automedicação. Tal hipótese sugere que a
dependência por determinada substância pode ser motivada pela tentativa de aliviar o
sofrimento subjacente aos sintomas psiquiátricos experienciados. Não somente o uso de
drogas ilícitas é identificado quando se refere à hipótese da automedicação. No Brasil, o
consumo de medicamentos entre mulheres, principalmente estimulantes, benzodiazepíni-
cos e analgésicos, é superior em comparação a homens, sendo seu uso justificado como
uma tentativa de solucionar problemas de ordem física e mental que afetariam a saúde
da mulher14.
Ainda, algumas condições clínicas crônicas, como doenças cardiovasculares, respira-
tórias e diabetes, entre outras, têm sido associadas ao uso crônico de drogas32. Mulheres
usuárias de tabaco, por exemplo, apresentam prejuízos acentuados no sistema imunológi-
co que podem predispor o aparecimento de câncer de pulmão, ovário, mama, colo do útero
e bexiga quando comparadas a homens fumantes67. Os danos na saúde global tendem a
aparecer mais rapidamente entre as mulheres. Em usuárias de álcool têm sido identifi-
cadas taxas mais elevadas de cirrose hepática, hipertensão arterial, anemia, desnutrição,
úlceras gastrintestinais e cardiopatias em comparação a homens que ingerem álcool em
excesso4,10. Outras drogas como cocaína, maconha, tranquilizantes e estimulantes também
revelam efeitos clinicamente mais prejudiciais em mulheres4. Como o uso de drogas tem
relação direta com mais exposição a comportamentos de risco, como sexo sem proteção
e prostituição, observa-se ainda uma relação entre tais comportamentos e o surgimento
de doenças infeccionas como HIV e hepatite45,46. Portanto, as evidências indicam que a
mulher com TUS não somente se encontra em vulnerabilidade para a manifestação de
transtornos psiquiátricos adjacentes, como também apresenta efeitos deletérios sobre sua
condição de saúde global. Ao pensar em uma avaliação geral da mulher usuária de droga,
esses aspectos devem ser contemplados, uma vez que são agravantes que devem receber
acompanhamento e tratamento adequado.
Prostituição e HIV
146
promíscuos estão presentes entre as mulheres em igual ou maior grau em comparação aos
homens usuários. Somado a isso, a prostituição é vista pelas usuárias como uma forma de
sustento para a dependência por drogas e pode potencializar situações de risco10,47.
Em estudo realizado em São Paulo, 75 mulheres usuárias de crack foram entrevistadas
e os resultados revelaram que a maioria delas não se recordava de quando havia iniciado a
prática da prostituição. No entanto, recordavam que iniciaram com o objetivo de sustentar
o uso do crack. Para manter o consumo diário, as mulheres relataram um a cinco progra-
mas, em média, por dia. A prostituição é percebida por muitas usuárias como um meio mais
seguro (do ponto de vista legal) e rentável para garantir seu sustento quando comparada
a alternativas ilegais, tais como assaltos e furtos24.
Os comportamentos sexuais de risco explicam a associação entre consumo de drogas
como o crack e a infecção pelo HIV. Na prática de prostituição, não há uma conscientização
sobre a necessidade de uso de preservativos para prevenir a contaminação de DSTs, em
especial o HIV24,58. O principal argumento para a não utilização de preservativos após a
dependência do crack é o maior valor cobrado pelo programa24.
É possível observar que o número de parceiros, a baixa escolaridade e o transtorno por
uso de crack constituem-se como fatores de risco para a infecção pelo HIV. Em relação à
saúde, por exemplo, a prevalência do HIV em usuário de crack é de 5%, o que representa
oito vezes mais do que é encontrado na população geral, sendo uma das principais com-
plicações relacionadas às altas taxas de mortalidade nessa população24.
147
à violência física e sexual). Além disso, o atendimento prestado pelos profissionais muitas
vezes revela déficits de capacitação71. Identifica-se também que o estigma social por parte
dos profissionais é um fator que colabora para a desistência dessas mulheres à adesão ao
tratamento, bem como dificulta o vínculo dessas mulheres com os serviços de saúde9.
Os fatores de risco e vulnerabilidade apresentados ao longo deste capítulo contribuem
para a baixa taxa de ingresso em unidades de tratamentos. Fatores socioculturais (estigma
social, falta de apoio do companheiro e da família), familiares (cuidados com os filhos),
gravidez, aspectos legais (problemas em relação à guarda dos filhos) e as complexidades
frente a vários diagnósticos psiquiátricos acabam por afastar as mulheres de tratamentos
adequados para o TUS5,58. Não incluir tais aspectos secundários ao TUS interfere na conti-
nuidade do tratamento. Assim, pesquisas que visam promover alternativas para proteger
a usuária de drogas, compreendendo o fenômeno de vulnerabilidade psicossocial e de
gênero, podem contribuir para um planejamento mais preciso de intervenções em saúde
eficazes para essa população.
Conclusão
Este capítulo teve como objetivo explicitar os avanços do conhecimento científico so-
bre a dependência química e o cenário desse transtorno aplicado à população feminina.
Percebe-se que ser mulher, por si só, já pode ser considerado um fator de risco e de vul-
nerabilidade para o início de uso e progressão para a dependência de drogas. Os aspectos
que contribuem para isso são inúmeros, desde os sociais e culturais até diferenças bioló-
gicas e psicológicas inerentes ao sexo.
Entender os TUS na população feminina ainda se mostra como um desafio para os es-
tudiosos da área, pois se apresenta como um campo de investigação em potencial. Estudos
voltados para a questão de gênero possibilitam melhor compreensão desse fenômeno e,
mais que isso, permitem o desenvolvimento de estratégias de tratamento eficazes para
atender a população feminina. O impacto da lacuna de conhecimento em relação ao tra-
tamento de usuárias de drogas é percebido diretamente nas dificuldades em lidar com
tal população tanto no que se refere ao tratamento quanto à manutenção da abstinência.
Compreender os fatores de risco e vulnerabilidade que expõem as mulheres ao uso
drogas torna-se fundamental. É preciso avançar o conhecimento sobre esses fatores para
desfechos clínicos, bem como para o prognóstico do transtorno e adesão ao tratamento.
Diversos aspectos foram abordados ao longo deste capítulo, elucidando uma fragilidade
psicossocial relacionada ao sexo feminino.
Por fim, é importante ressaltar que existe um número limitado de estudos nacionais
que contemplam mulheres e TUS. A literatura internacional possibilita mais acesso a infor-
mações relacionadas às especificidades relacionadas ao sexo, principalmente nos aspectos
biológicos e psicológicos. Nesse sentido, mesmo que haja respaldo da comunidade cienti-
fica internacional, é importante fomentar estudos nacionais capazes de proporcionar um
panorama mais fidedigno sobre os fatores de risco e vulnerabilidade de nosso contexto
sociocultural, bem como a realidade de tratamento e melhorias necessárias para essa po-
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Gestação e vulnerabilidade
Monica Zilberman
Cynthia Wolle
153
154
Introdução
Fatores Biológicos
155
Além da dependência propriamente dita, a maior sensibilidade ao álcool pode acarre-
tar o desenvolvimento de doenças relacionadas ao uso abusivo (doenças cardíacas, gás-
tricas, hepáticas, entre outras) de forma mais rápida nas mulheres, com mais morbidade e
mortalidade do que as dos homens8.
Em relação ao tabaco e outros estimulantes, as mulheres também desenvolvem a de-
pendência de maneira mais rápida do que os homens. Alguns autores sugeriram haver
relação entre os níveis de cortisol e os sintomas depressivos em usuários de cocaína e
heroína, sendo essa associação mais pronunciada em mulheres, já que elas exibem maior
concentração de cortisol9. A depressão é o transtorno afetivo mais encontrado nas mulhe-
res usuárias. Também há evidências de efeitos de gênero na ação da metanfetamina, sendo
as mulheres mais suscetíveis aos efeitos da substância na atividade locomotora. Essa dife-
rença possivelmente ocorre devido à função receptora de dopamina, que se manifesta de
forma distinta em homens e mulheres10.
Fatores Psicossociais
156
propensão ao comportamento agressivo e altas taxas de homicídios observadas entre os
homens11.
Em relação aos idosos, as mudanças corporais, tornando-os mais vulneráveis a fraturas
e quedas, e a “síndrome do ninho vazio” podem aumentar os quadros de depressão e, con-
sequentemente, o aumento do consumo de álcool e do abuso de medicações (benzodia-
zepínicos), principalmente entre as mulheres15.
Em países latinos como o Brasil, Peru, México e Colômbia, o uso de álcool está sig-
nificantemente associado à relação sexual sem proteção. No Brasil, homens e mulheres
exibem taxas semelhantes de relação sexual sem proteção quando estão sob o efeito do
álcool. Entre as adolescentes brasileiras, podem-se notar associações significantes entre o
uso de álcool e gravidez, além de mais probabilidade de contrair DSTs16.
Em relação às comorbidades psiquiátricas, as mulheres usuárias de substâncias relatam
taxas mais altas de transtornos do humor (por exemplo, mania e depressão), transtornos
de ansiedade (por exemplo, fobias e transtorno do estresse pós-traumático) e transtornos
alimentares, além de uso abusivo de tranquilizantes4,5.
Mulheres usuárias de cocaína tendem a ter mais problemas psicológicos (e físicos) do
que os homens17. Elas geralmente apresentam mais reatividade subjetiva e maiores esca-
las de estresse, nervosismo e dor do que homens usuários de cocaína, sugerindo possível
especificidade de sexo quanto à reatividade de estresse17. O uso de cocaína foi identificado
como um dos principais fatores relacionados ao início da prostituição18.
Tanto as meninas como as mulheres estão mais propensas a ter transtornos psiquiátri-
cos primários com dependência de substâncias secundária, em oposição à tendência mas-
culina a apresentar dependência de substâncias como transtorno psiquiátrico primário4.
As situações traumáticas também podem desencadear o consumo abusivo de substân-
cias entre as mulheres, eventos esses que podem envolver violência sofrida, separação,
perda de filhos ou mesmo a sua saída de casa, perda de emprego, entre outros que envol-
vam sofrimento emocional exacerbado13.
Consequências à saúde
O uso abusivo de álcool e de outras drogas pode trazer consequências nocivas à saúde
das mulheres. Conforme descrito anteriormente, as mulheres usuárias de álcool estão em
alto risco de desenvolver doenças cardiovasculares, hepáticas, gástricas, cognitivas e on-
cológicas. Com o comprometimento do fígado, aumenta a conversão de androstenodiona
em testosterona, elevando seus níveis plasmáticos. As funções reprodutivas e sexuais ficam
mais prejudicadas, com ausência da ovulação, diminuição dos ovários e infertilidade, além
de diminuição na intensidade do orgasmo2.
As mulheres usuárias de tabaco têm mais riscos de danos ao sistema imunológico,
doenças cardiovasculares e câncer. A nicotina também pode interferir no ciclo menstrual e
na produção de hormônios7.
O uso de cocaína e de crack foi relacionado a alterações nos hormônios femininos, no
ciclo menstrual e na fertilidade. As mulheres usuárias, em sua maioria, queixam-se de do-
res de cabeça, enquanto os homens usuários costumam relatar paranoia e agressividade7.
Em relação ao uso de esteroides19, geralmente observado em adolescentes, os efeitos
são diferentes entre os sexos. Mulheres tendem ao engrossamento da voz, irregularidade
157
menstrual e aumento do clitóris, sendo esses efeitos irreversíveis, mesmo com o cessar
do uso. Já nos homens, os efeitos fisiológicos compreendem a diminuição da produção de
esperma, a atrofia testicular e o aumento do busto.
A saúde emocional das mulheres usuárias frequentemente é prejudicada, pois elas
podem perder a guarda dos filhos e sofrer rejeição dos familiares e amigos. A busca pelo
tratamento se torna mais difícil, considerando o preconceito ainda bastante evidente em
relação a elas13.
Gestantes
Tabaco
Álcool
Em relação ao álcool, não há consenso sobre qual o nível seguro para ingestão de be-
bidas durante a gestação. Contudo, há relatos de prejuízos ao feto mesmo com o consumo
baixo. Algumas vezes, a mulher ainda não sabe que está grávida nas primeiras semanas,
conferindo mais riscos à criança devido ao consumo mais elevado. Mulheres dependentes
tendem a se manter abstinentes no início da gravidez, mas com recaídas no evoluir da
gestação22. Os efeitos danosos ao recém-nascido incluem peso baixo ao nascimento, re-
tardo do crescimento intrauterino, prematuridade e aborto espontâneo23, além de prejuízo
cognitivo.
158
A principal consequência adversa do consumo de álcool durante a gestação é o trans-
torno do espectro alcoólico fetal, condição clínica que abrange a síndrome alcoólica fetal
(SAF), a SAF parcial, transtornos do neurodesenvolvimento e defeitos congênitos relacio-
nados ao álcool.
A SAF é caracterizada por:
As pessoas com SAF podem apresentar prejuízo nas áreas do controle emocional, co-
ordenação, desempenho acadêmico, socialização e manutenção do emprego. Além disso,
elas geralmente têm dificuldade em tomar decisões acertadas, repetem os mesmos erros,
confiam nas pessoas erradas e não entendem as consequências dos seus atos25. Além da
quantidade, da frequência e do estágio da gestação em que a mulher bebe, podem-se citar
outros fatores de risco que influenciam a forma como a SAF irá afetar as crianças: o status
socioeconômico baixo e a nutrição insuficiente, viver em cultura na qual o consumo de
álcool em binge é comum e aceito, o cuidado pré-natal inadequado, o isolamento social e
a exposição a altos níveis de estresse26.
Maconha
Intervenção
159
A detecção das diferenças entre os sexos em relação ao uso de substâncias pode me-
lhorar a eficácia do tratamento. Alguns autores sugerem a criação de serviços especiali-
zados para as mulheres usuárias, considerando as diferenças na etiologia e no curso da
dependência. Além disso, nos grupos de tratamento, detectou-se que os homens priorizam
os assuntos legais e empregatícios, enquanto as mulheres priorizam os assuntos familiares
e de saúde7,13.
160
Quadro 1: Ferramenta de triagem para uso de álcool – Questionário TWEAK
Uma vez detectado o problema, a mulher poderá passar por intervenção breve carac-
terizada por orientação de médio e longo prazo. A avaliação dos problemas clínicos e de
comorbidades psiquiátricas faz-se fundamental, bem como se deve evitar a prescrição de
medicamentos com potencial de dependência (por exemplo, benzodiazepínicos) e a inges-
tão de grandes quantidades de medicação13.
O primeiro passo do tratamento é a desintoxicação, realizada em nível ambulatorial ou
de internação, dependendo da gravidade do caso. Nesse período em que deve ser promo-
vida a motivação do paciente, técnicas como a entrevista motivacional, abordagens psico-
educativas e psicoterapia individual podem auxiliar. Temas como os principais transtornos
decorrentes do uso, fatores de risco e de proteção, sintomas de abstinência, gatilhos para a
recaída e técnicas para a sua prevenção devem ser abordados. A mulher muitas vezes terá
de encontrar novas formas de lazer, recursos de enfrentamento e novos grupos de amigos.
A autoimagem e a autoestima devem ser promovidas, pois muitas vezes estão prejudicadas
nessa fase29.
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163
164
12
Infância e vulnerabilidade
Nina Roth Mota
Sérgio de Paula Ramos
Ângelo Americo Martinez Campana
Claiton Henrique Dotto Bau
165
166
Introdução
Quando, em 1895, Freud1 postulou sua primeira teoria sobre a natureza das neuroses,
sustentou que elas eram decorrentes de possível somatório da constituição do indivíduo,
suas vivências infantis e a existência de fator precipitante.
A consolidação da genética quantitativa, ainda na primeira metade do século XX, trou-
xe a representação matemática das inter-relações entre os múltiplos fatores de risco, ex-
plicando como genes e ambientes atuam de maneira complementar e não determinista.
Percebe-se hoje que o progresso das neurociências a cada dia revela mais e mais não só a
exatidão da assertiva freudiana, como avança na explicação dos mecanismos moleculares
que permeiam o processo.
O presente capítulo irá discorrer sobre os fatores de vulnerabilidades (e de resiliência)
para o desenvolvimento (ou não) de dependência química. Para tanto, em nome da didáti-
ca, será dividido em (1) fatores constitucionais, aqueles herdados ou que nasceram com o
indivíduo e (2) fatores que incidem na infância e adolescência, onde será examinado tanto
o impacto de determinadas experiências infantis e sua associação com o ulterior envolvi-
mento com drogas, quanto a existência ou não de comorbidades. Como o álcool é a droga
mais usada no país, a ênfase recairá sobre ele.
Fatores constitucionais
Genéticos
167
mas multifatoriais, presume-se que existam muitos genes participantes, a maioria deles
com pequeno efeito. Esse fato, aliado à grande heterogeneidade clínica, representa grande
desafio para a identificação dos genes envolvidos. Apesar disso, os estudos genéticos de
associação têm revelado resultados cada vez mais promissores.
168
associação entre Taq1A e o alcoolismo22-25. A mais recente metanálise incluiu dados de 61
estudos publicados entre 1990 e agosto de 2012, totalizando 9.590 casos e 9.140 contro-
les25. Em relação ao tabagismo, três metanálises avaliando o papel do Taq1A obtiveram re-
sultados conflitantes26-28, sugerindo que outros fatores podem influenciar essa associação.
Uma característica recorrente das metanálises em TUS é a evidência de heterogenei-
dade significativa entre os estudos incluídos. Diferenças quanto a sexo, idade, histórico
familiar, gravidade da dependência, comorbidades e características de personalidade entre
as amostras dos diferentes estudos são alguns dos fatores que podem estar contribuindo
para tais achados. Outro fator importante identificado por Wang et al.25, que pode levar a
tal heterogeneidade, é o efeito de possíveis interações gene-gene e gene-ambiente envol-
vendo o gene DRD2 (ou mesmo o ANKK1).
Além do sistema dopaminérgico, outros sistemas e genes candidatos também têm sido
implicados. Merece destaque no TUA o gene que codifica a subunidade alfa 2 do receptor
de ácido gama-aminobutírico (GABRA2), tendo uma metanálise recente apurado resultado
significativo29. Na dependência de nicotina, há metanálises implicando os genes da proteí-
na transportadora de serotonina (5-HTT/SLC6A4), da enzima de metabolização da nicotina
CYP2A627 e do receptor nicotínico CHRNA530 .
169
garros consumidos por dia38. Diversos outros GWAS identificaram associações entre o agru-
pamento de genes de receptores nicotínicos CHRNA5-CHRNA3-CHRNB4, situado na região
cromossômica 15q25.1, com dependência de nicotina39 e com quantidade de cigarros40,41.
A associação do gene CYP2A6 no tabagismo também foi replicada em dois
GWAS 40-42. Além destes, GWAS relacionados ao tabagismo já implicaram outros genes,
como, por exemplo, o BDNF (fumantes vs. nunca-fumantes)40, o DBH (fumantes vs. ex-fu-
mantes)40; e mesmo uma região do cromossomo X em mulheres (Xp11.21; fumantes vs.
nunca-fumantes)43.
170
quais são, por si sós, fatores de risco tanto para o consumo de álcool precoce, quanto para
o uso de drogas.
Cuidados parentais
171
Portanto, há robusta evidência na associação existente, por um lado, entre crianças
negligenciadas/abusadas e o ulterior envolvimento com drogas lícitas e ilícitas. Por outro,
que o monitoramento adequado por parte dos pais, na infância, funciona como fator de
proteção contra esse desfecho.
Transtornos externalizantes
Zucker et al 56, em revisão sistemática sobre o tema, sintetizaram que o uso precoce
de álcool está associado a prejuízo nos cuidados parentais, transtornos externalizantes,
deficiências nas habilidades sociais, pertencimento a grupos de colegas com conduta des-
172
viante, uso de drogas por parte deles, uso de drogas pelos pais e morar com apenas um
dos genitores.
A precocidade da experimentação de álcool, é um dos principais fatores de risco para o
alcoolismo78, mesmo quando controlamos para outros fatores de risco. Isso provavelmente
ocorre porque o álcool e as demais drogas, agindo sobre um cérebro imaturo, são capazes
de promover alterações nos sistemas frontolímbico e frontoestriatal, que se relacionam ao
controle de impulsos78,79. Esse fato explica por que o início precoce do uso de álcool (antes
dos 13 anos) tem sido considerado forte preditor de TUA aos 16 anos81. E também por Hin-
gson et al.82 terem identificado praticamente cinco vezes mais alcoolismo em indivíduos
que tiveram sua primeira experiência com álcool antes dos 14 anos (48%) se comparados
com os que o fizeram depois dos 21 anos (9%). Tais achados foram confirmados por uma
variedade de outros estudos que também relacionaram uso precoce de álcool a ulterior
transtorno por uso de álcool, tabaco e cannabis83-85.
Conclusão
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179
180
13
População em situação de rua e vulnerabilidade
Michelle Ralil da Costa
Marianne Leal
Nathalie Fantoni
Leonardo Alves Ferreira Almeida
Frederico Garcia
181
182
Introdução
183
inexistência de políticas públicas e redes de apoio social (Figura 7).
184
Figura 8: O perfil do indivíduo em situação de rua conforme o Terceiro Censo de População
em Situação de Rua e Migrantes de Belo Horizonte
Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizon-
te. Viçosa. Suprema, 2014.
No Brasil, o último censo nacional realizado foi a Pesquisa Nacional Sobre a População
em Situação de Rua8, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em par-
ceria com a UNESCO, desenvolvida entre agosto de 2007 e março de 2008 e divulgada em
abril de 2008, feita em 71 cidades brasileiras, refletindo, portanto, um retrato incompleto
e desatualizado dessa população.
A pesquisa identificou 31.922 pessoas maiores de 18 anos em situação de rua, a maio-
ria homens (82%). A faixa etária predominante estava compreendida entre 25 e 44 anos
(53%) e 67% se declararam negros (pretos ou pardos). A maioria exercia alguma atividade
remunerada (70,9%), formal ou informal. Dos entrevistados, 29,7% relataram apresentar
algum problema de saúde, sendo que 6,1% tinham algum problema psiquiátrico e 5,1%
informaram serem portadores de HIV/AIDS. A hipertensão foi a condição mais prevalente,
observada em 10,1% dos entrevistados. Apesar de existirem albergues e abrigos nas cida-
des pesquisadas, 69,6% dos entrevistados costumavam dormir na rua. Mesmo que 51,9%
possuíssem algum parente na cidade em que se encontram, 38,9% destes não tinham
contato com esses familiares.
Esses dados sugerem que a população em situação de rua está submetida às mais
diversas vulnerabilidades, sobretudo a vulnerabilidade social e de saúde. A seguir apresen-
tam-se alguns fatores de vulnerabilidade presentes nessa população.
Idade
O perfil etário da população em situação de rua tem mudado nos últimos anos. Quando
comparadas às pirâmides etárias dos censos de população em situação de rua de Belo
185
Horizonte de 19989 e 20136, observa-se que a transição demográfica também está aconte-
cendo nessa população (Figura 9).
Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa.
Suprema, 2014.
Se, por um lado, estes dados indicam redução da entrada crianças e jovens na popu-
lação em situação de rua, por outro pode-se observar o aumento do número de adultos
que passam a compor os estratos etários acima de 30 anos. Esses dados mostram que,
muito provavelmente, nos próximos anos o número de idosos em situação de rua irá
crescer. Os dados do estudo também revelam que esses adultos têm tido pouco acesso
às medidas básicas de prevenção em saúde e que eles continuam expostos a impor-
tantes fatores de risco, como o consumo de álcool, tabaco, a desnutrição e situações de
negligência e violência.
A somatória de todos esses fatores provavelmente criará uma população ainda mais
vulnerável do que conhecemos hoje, nomeada de “população de idosos na rua”. Além
disso, a falta de vínculos familiares fará com que o estado tenha que investir em meios
para proteger, acolher e acompanhar esses idosos, conforme preconiza o Estatuto do
Idoso10. Isso demandará que o Poder Público se prepare para lidar com mais essa po-
pulação vulnerável, pois além da situação de rua, que por si só é um forte fator de vul-
nerabilidade, esses adultos estão envelhecendo sem qualidade (Figura 10). Corroboram
esses resultados os dados da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos
Humanos, que revelam aumento de 26% do número de idosos em situação de rua no
Brasil entre 2010 e 201111.
186
Figura 10: Fatores de vulnerabilidade que contribuem para a formação da população
de idosos em situação de rua
187
Figura 11: Drogas mais utilizadas pela população em situação de rua
Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Su-
prema, 2014.
Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Su-
prema, 2014.
Saúde
188
HIV18,19. As taxas de mortalidade são quatro vezes maiores na população em situação de
rua, quando comparada à população em geral16.
No Brasil, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua6, realizada em
2008, constatou prevalência de hipertensão de 10,1%, de transtornos mentais de 6,1%, de
HIV/AIDS de 5,1% e de problemas de visão/ cegueira de 4,6% (Figura 13).
Em relação à natureza das doenças, aquelas de etiologia infecciosa têm relação direta
com a pobreza20: países em desenvolvimento têm mais mortes por essas doenças que
países desenvolvidos; e regiões mais pobres dentro de um mesmo país são mais vulne-
ráveis que regiões mais desenvolvidas16,19. Além disso, sabe-se que a desnutrição também
prejudica muito a saúde da população em situação de rua e ela é quase que ubíqua nessa
população. A desnutrição é responsável por pior prognóstico nos casos de doenças e au-
menta muito o risco de complicações e a demanda de gastos com saúde.
• Higiene precária;
• Exposição a agentes nocivos;
• Alimentação deficiente;
• Uso de tabaco, álcool e drogas ilícitas; e
• Comportamento sexual de risco
Renda
Pessoas que se encontram em situação de rua têm mais desafios de inserção no mercado
de trabalho. Isso se deve, sobretudo, à falta de ativos, como uma rede social que os ajude
189
a encontrar trabalho, à estigmatização e ao preconceito. Além disso, os agravos de saúde,
o uso de drogas e os problemas jurídicos também prejudicam o acesso ao trabalho re-
gulamentado11,14,21. A situação de rua priva os indivíduos do aceso às atividades básicas
diárias, como higiene pessoal, alimentação adequada e transporte seguro16. Também está
associada ao abandono escolar, sendo que a baixa escolaridade é um dos empecilhos para
a obtenção de emprego21.
O que se observa é a precarização das atividades profissionais exercidas pelos indiví-
duos em situação de rua. Tal precarização os expõe a mais vulnerabilidade a acidentes de
trabalho, às atividades perigosas e extenuantes. Por consequência, tais atividades influem
negativamente na saúde e na percepção de autoeficácia das pessoas em situação de rua.
Violência
Por violência serão abrangidas não somente a violência física, como também verbal, a
discriminação e o preconceito. A violência física tem mais efeitos no estresse emocional e
menos chances de recuperação do que a não física14. Em rigor, a violência está presente na
vida de todas as pessoas em situação de rua e é um risco constante. A situação de rua torna
os indivíduos vulneráveis aos mais diversos tipos de violência, seja preconceito, violência
verbal, violência física e sexual.
Quando se fala em população em situação de rua, esse é um ponto importante, levan-
do-se em consideração que essa população é composta, em sua maioria, de homens6,8,22.
O gênero está associado ao envolvimento em situação de violência e ao tipo de violência.
Estudos revelam que homens têm mais envolvimento em questões policiais do que as
mulheres e são mais comumente aprisionados por atos violentos22,23. Além disso, história
pregressa de encarceramento e de abuso sexual foi associada a mais chances de aprisio-
namento23,24.
As mulheres em situação de rua são mais vulneráveis que os homens em relação a
serem vítimas de violência22. Além da violência sexual, que foi reportada por 36% das res-
pondentes do Terceiro Censo de População em situação de Rua de Belo Horizonte, todas as
outras formas de violência são mais prevalentes em mulheres6.
História de violência sexual, abuso de substâncias e doença mental são os principais
fatores que determinam essa condição de vulnerabilidade25.
Conclusão
190
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192
14
O Sistema Prisional - Droga, criminalidade e seus
efeitos: aspectos de vulnerabilidade
Vilene Eulálio de Magalhães
Rodrigo Ribeiro de Souza
Ana Maria de Carvalho
193
194
Introdução
195
processo penal aumentam significativamente.
Tavares e Almeida (2010, p. 546)5 concordam que o uso abusivo de drogas, o tráfico
de substâncias ilícitas, a disponibilidade de armas de fogo e as desigualdades sociais são
fatores de risco que ocasionam consequências desastrosas no âmbito social, psicológico,
político e econômico.
Criminalidade no Brasil
196
propõem a explicar esse fenômeno de maneira didática. Em 2004, Cerqueira e Lobão9 fizeram
uma compilação das principais linhas teóricas que abordam esse tema. Ao final de seu traba-
lho esses autores fizeram um resumo dessas abordagens, replicada na íntegra no Quadro 1:
197
Observa-se que as teorias ora focam questões macrossociais (status socioeconômico,
heterogeneidade étnica, desigualdade de renda, etc.), ora questões relacionadas às rela-
ções interpessoais (família, vizinhança, pares, etc.), ora questões relacionadas ao desen-
volvimento psicológico. Gronde et al.10 comentam que a agressão violenta, como todas as
formas de comportamento, se desenvolve tanto sob condições ambientais e psicológicas
como também genéticas, apesar do modelo biológico ter sido recorrentemente negligen-
ciado pelos estudiosos da área. Entretanto, sabe-se que há uma inter-relação entre esses
fatores, assim, considera-se o modelo ecológico mais abrangente e mais condizente com a
ideia de criminalidade de que se trata neste trabalho.
198
alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos,
anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que dis-
tingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular, desaparece. O estigma
dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe
impomos”13.
Esse tema já havia sido tratado por Soares, em 20037. Nessa época ele afirmou que
quando um traficante cede uma arma a esse jovem, a invisibilidade se converte numa
visibilidade perversa. Isso porque o jovem, outrora invisível, que não suscitava alguma
emoção, agora desperta o medo. Mesmo ruim, o medo ainda é um sentimento. E além do
ganho simbólico, a arma também pode proporcionar acesso aos bens materiais, seja a par-
tir dos recursos financeiros provenientes do tráfico, seja pelos crimes contra o patrimônio.
Outros resultados nefastos desse processo de reconhecimento perverso foram observa-
dos. Na experiência de Minas Gerais2, o aumento do número de homicídios a partir de 2003
teve como cenário principal as disputas entre grupos juvenis sustentados pelo tráfico e que
eram vizinhos. Assim, as vítimas e algozes partilhavam dados semelhantes: eram jovens,
do sexo masculino, negros, com baixa renda e baixa escolaridade e moradores de alguns
aglomerados urbanos14. E 10 cidades do estado concentravam mais de 50% dos crimes
violentos15. A experiência mineira demonstrou que o uso/abuso de drogas, tráfico, cor da
pele, sexo, dados socioeconômicos, conflitos interpessoais e local de moradia constituíram-
se em fatores de vulnerabilidade.
199
Ainda segundo os dados do DEPEN16, a maior parte da população de presos tem entre
18 e 29 anos (55%), possui escolaridade até o ensino fundamental incompleto (63,2%);
60% dos presos são negros e pardos; e o tráfico de entorpecentes é o segundo crime mais
cometido, representando ¼ dos crimes atribuídos à população carcerária total. Os crimes
contra o patrimônio somaram 43,9% (19% roubo qualificado; 9,8% roubo simples; 7,7%
furto qualificado; 7,4% furto simples). Os crimes contra a vida foram 5,3% (homicídio qua-
lificado); 4,0% (homicídio simples) e 2,5% (latrocínio).
Conforme Zaffaroni e Pierangeli17, existe no Brasil um processo de criminalização se-
letiva que cria condicionamentos que tornam pessoas ou grupos mais vulneráveis ao sis-
tema penal. Esses mesmos condicionamentos, ou vulnerabilidades, impõem a essa mesma
parcela da população índices consideráveis de mortes trágicas.
200
direto e/ou indireto o uso de entorpecentes. Tal envolvimento em crimes diversos, muitas
vezes, relaciona-se à manutenção da dependência. O Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais – DSM IV TR já corrobora a existência da relação entre uso de drogas
e criminalidade ao listar como um dos critérios diagnósticos para abuso de substância os
problemas legais recorrentes relacionados ao uso da substância20.
Como citado anteriormente, a população carcerária brasileira cresceu muito na última
década. Assim como houve aumento da população privada de liberdade, houve também
elevação da prática de crimes relacionados ao uso e tráfico de drogas. Segundo o Departa-
mento Penitenciário Brasileiro, os crimes relacionados a entorpecentes são a segunda mo-
dalidade pela qual a população carcerária masculina mais responde e a primeira tipologia
de crime mais praticado pela população carcerária feminina21. Entre 2008 e 2009 houve
aumento de aproximadamente 18% da população brasileira em situação de privação de
liberdade que respondem por crime relacionado às drogas. Entretanto, como já citado, para
além dos crimes diretamente relacionados a entorpecentes, como uso e tráfico, encontram-
se os demais crimes cometidos direta e indiretamente em função do uso ou dependência
das drogas.
Considerando o exposto, há necessidade de pesquisas com a população carcerária bra-
sileira que salientem os motivadores para a prática de diversos crimes. Isso porque a ex-
periência no sistema prisional tem evidenciado a mudança do público encarcerado, em
que é gritante a jovialidade deste e sua relação direta com as drogas, quer seja pelo tráfico
ou pelo uso, revelando a existência de uma relação entre diversos crimes cometidos e o
envolvimento com drogas que merecem atenção. Diante desse cenário emerge a busca por
explicações acerca do que pode tornar o usuário e o dependente químico mais vulnerável
à prática de delitos.
Baltieri25 objetivou em sua pesquisa, entre outros, avaliar problemas com o consumo de
álcool e outras drogas entre agressores sexuais custodiados na Penitenciária II de Soroca-
ba, no estado de São Paulo. Foram avaliados 198 apenados por crimes sexuais violentos.
Os dados encontrados revelam que 40,9% dos sentenciados têm problemas com o álcool
e 20,7% com outras drogas. No tocante ao uso da droga no momento do delito, a pesquisa
indica que 47,4% haviam consumido álcool e 12,62% haviam usado outras drogas.
De acordo com o V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas28
entre estudantes do Ensino Fundamental e Médio da rede pública de ensino nas 27 capi-
tais brasileiras em 2004, a idade média de início de uso das diversas substâncias ilícitas
variou entre 12 e 14 anos, aproximadamente. Em revisão bibliográfica sobre o risco predi-
tivo para o uso e abuso de drogas, evidenciou-se que o estresse é um fator marcante. Esta
pesquisa revelou, ainda, que adolescentes em situação de risco para o abuso de substân-
cias quando em contato com vários estressores são mais propensos a mostrar diminuição
do controle emocional e comportamental29.
O National Institute on Drug Abuse (NIH)30 informa que o uso precoce de drogas é tido
como um forte indicador de problemas no curso da vida, incluindo a dependência. O NIH
identifica como fatores de riscos para a dependência, além do uso precoce, o insucesso
escolar, ambiente doméstico propício, transtornos mentais, fatores genéticos, a forma de
administração da droga que permite maior potencial (fumar e injetar), influência de cole-
gas, entre outros. Acerca da influência de colega, os adolescentes são especialmente mais
suscetíveis à pressão para agir conforme o grupo age e essa pressão pode levar o sujeito,
201
nessa etapa do desenvolvimento, mais facilmente ao comportamento delinquente31. O de-
senvolvimento ainda imaturo do cérebro do adolescente o torna mais propenso a agir im-
pulsivamente e sem considerar totalmente as consequências, a fazer escolhas insensatas e
a ter explosões emocionais e comportamentos de riscos32.
Vulnerabilidade, criminalidade e o sistema judiciário brasileiro
202
Vulnerabilidade e desenvolvimento humano
Pesquisas têm revelado que a entrada do sujeito para a criminalidade e o uso de drogas/
dependência química tem ocorrido cada vez mais prematuramente. Entretanto, observa-se
que a fase de desenvolvimento humano que mais marca essa inserção é a adolescência.
No Estatuto da Criança e Adolescente35, o adolescente é compreendido como o indiví-
duo que tem entre 12 e 18 anos de idade. De acordo com os estudiosos de desenvolvimen-
to humano36,37, para entender a adolescência deve-se levar em consideração que o sujeito
nessa fase está em processo de construção de valores que firmarão sua identidade.
Para Piaget38, o desenvolvimento cognitivo do adolescente é caracterizado pela capa-
cidade deste em raciocinar em um nível científico e abstrato. A partir dessa fase o indi-
víduo é capaz do raciocínio hipotético-dedutivo e a experiência desempenha importante
papel para se chegar a esse estágio. Entretanto, o desenvolvimento cerebral imaturo leva
a mais interferência das emoções no pensamento racional. Para Piaget, o desenvolvimento
cognitivo e afetivo é útil para a compreensão de muitos aspectos do comportamento do
adolescente. Elkind, citado por Papalia31, descreveu atitudes e comportamentos imaturos
que podem ser provenientes das incursões dos jovens no pensamento abstrato: tendên-
cia a discutir; indecisão; encontrar defeitos na figura de autoridade; hipocrisia aparente;
autoconsciência; suposição de invulnerabilidade. Assim, o período da adolescência carac-
teriza-se por ser uma fase de aumento das vulnerabilidades comportamentais e psiquiátri-
cas39 e corresponde a uma complexa interação entre processos de desenvolvimento físico,
cognitivo e psicossocial, resultando em mais exposição a situações de risco e busca por
novidades40.
A suposição de invulnerabilidade acaba por tornar o adolescente e os jovens, de modo
geral, mais vulneráveis às influências do meio. O adolescente é capaz de criar hipóteses,
mas tem dificuldade em flexibilizar seus pensamentos/ideias, considerando as perspecti-
vas de terceiros. O pensamento é diretamente influenciado pelo desenvolvimento biopsi-
cossocial do indivíduo e esses aspectos podem tanto ampliar como limitar os pensamen-
tos e as ações do adolescente. Diante da necessidade de afirmação de sua identidade, o
adolescente apresenta certa rigidez de pensamento, o que o impede de ponderar outras
possibilidades.
É na adolescência que o sujeito vivencia de forma marcante e estruturante a chamada
“crise de identidade” em que, na tentativa de apropriar-se de sua identidade, o sujeito cria
uma série de rupturas com os valores até então estabelecidos, dando lugar a outros que
emergem a partir do contato desse sujeito com os novos grupos nos quais se insere36.
Aberastury e Knobel37 sugerem que na “síndrome da adolescência normal” uma das
principais características é a “tendência grupal” em que o grupo de amigos, e não mais o
familiar, adquire significativa importância como uma forma de obter segurança e estima
pessoal. Assim, o adolescente transfere para os pares parte da dependência que mantinha
com a família, tornando-se dependente dos valores do grupo, na medida em que se julga
conforme a sua aceitação exterior. Nesse sentido, o grupo constitui uma transição necessá-
ria no mundo externo para se alcançar a individuação adulta.
Estudo realizado com objetivo de avaliar a associação entre comportamento de risco e
status socioeconômico (SES) no período da adolescência concluiu que os comportamentos
de risco nesse período estão associados a níveis mais baixos de SES41. A partir desses da-
203
dos pode-se inferir que talvez a maior exposição ao risco esteja diretamente relacionada
ao risco de perdas e quem tem pouco a perder (afetiva, social e emocionalmente) tende a
se expor ao risco mais frequentemente.
Segundo os dados levantados pela Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar42 realizada
com 60.973 escolares brasileiros do 9º ano do ensino fundamental, 8,7% desses afirmam
ter usado algum tipo de substância ilícita (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança-perfu-
me e ecstasy). E como já mencionado anteriormente, a idade média de início de uso das di-
versas substâncias dos escolares da rede pública de ensino varia entre 12 e 14 anos. A faixa
etária de maior concentração de menores infratores é de 16-17 anos, o que corresponde a
54% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas43. Tal dado sugere uma faixa
etária aproximada acerca da idade inicial do envolvimento na criminalidade, considerando
a escassez de pesquisas que contemplem tais informações. Diante do exposto, percebe-
se que por suas características de desenvolvimento humano a adolescência evidencia a
vulnerabilidade do sujeito em relação ao uso de drogas/dependência química e à crimina-
lidade e que o nível socioeconômico pode potencializar ainda mais tais vulnerabilidades.
Lidar com a realidade do sistema prisional brasileiro significa deparar-se com a dura
realidade de encontrar seres humanos oriundos de famílias desestruturadas, marcados
pela vivência de violência doméstica e onde a ausência paterna é imperativa, delegando à
mulher a responsabilidade, de sozinha, educar, moralizar, prover, além de ser o apoio emo-
cional dos filhos. Essa tarefa está um tanto impossibilitada, já que, para prover economi-
camente esse lar, a mulher tem de se ausentar, deixando os filhos sozinhos e apoiando-se
somente uns nos outros, o que os tornam presas fáceis de agentes da criminalidade e do
uso de drogas. Nesse cenário, a experiência revela que é comum observar-se alto índice de
abandono escolar, bem como um ambiente social hostil na medida em que as crianças e
jovens não têm acesso igualitário à educação de qualidade, assistência médica adequada,
lazer, apoio emocional familiar, referências sociais positivas e significativas dentro do seu
grupo social. Isso possibilita que a figura do tráfico e seus representantes confiram o status
social almejado pelo jovem. O uso de drogas passa, então, a compensar a carência afetiva
e a suprir a ausência de um Estado comprometido com o bem-estar social do cidadão.
No atendimento psicológico a 68 homens condenados ou em cumprimento de prisões
preventivas no presídio de Vespasiano-MG, entre os meses de maio e junho de 2015 verifi-
cou-se que, deste total, 57 relataram uso de drogas ilícitas. Entre os 11 homens atendidos
que negaram o uso de drogas ilícitas, dois declararam uso recorrente de drogas lícitas: um
usuário de bebidas etílicas e o outro de psicotrópicos. Dos usuários de drogas ilícitas, a
maconha foi a droga mais consumida entre os sujeitos privados de liberdade. A maconha
também é a substância ilícita mais consumida pela população geral (representando 8,8%),
segundo os dados de 2005 do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotró-
picas no Brasil44.
Quanto às razões para iniciar o uso de drogas, a “influência de amigos” esteve presente
em todos os argumentos, ainda que apenas três tenham citado também a relação desse
aspecto à curiosidade e um relacionou o início do uso de drogas a conflitos familiares e
emocionais. Do total de homens atendidos em acompanhamento psicológico, oito associa-
204
ram a sua entrada na criminalidade ao uso de drogas. Entretanto, o uso de drogas quase
sempre foi anterior ao início da prática de atos delituosos, ou seja, em 30 casos o consumo
de drogas antecedeu a prática de crimes; em oito casos o consumo de drogas e a prática
de crimes ocorreram na mesma época; em 10 casos os sujeitos não souberam informar a
idade com que cometeram seu primeiro ato delituoso; e apenas em nove casos os sujeitos
depuseram que a prática de crimes foi anterior ao uso de drogas.
Estudo realizado numa população sueca identificou significativa correlação entre ca-
racterísticas familiares psicossociais na infância e comportamento criminoso posterior e
mortalidade45. Nessa pesquisa, as características familiares psicossociais avaliadas foram:
criminalidade do pai, abuso de álcool e/ou drogas do pai, problemas de saúde mental dos
pais e classe ocupacional do pai. Os autores reportam que 2% dos casos de criminalida-
de entre os homens poderiam ser evitados se o abuso de álcool do pai fosse tratado. E
concluíram que a conexão entre características familiares psicossociais, comportamento
criminoso e mortalidade parece ser mediada por fatores de riscos individuais, principal-
mente pelo uso de álcool e/ou abuso de drogas. Este dado corrobora a experiência em
acompanhamento psicológico de homens e mulheres privados de liberdade, que cumprem
pena em unidades prisionais do estado de Minas Gerais, em que é frequente o relato de
vivência de violência doméstica na infância e adolescência, bem como o histórico familiar
de criminalidade e uso de drogas.
Verifica-se também que após o seu ingresso no sistema prisional o sujeito se vê com di-
ficuldade ou impossibilitado de acessar as drogas para consumo próprio. É comum, porém,
que os usuários de drogas/dependentes químicos encarcerados frequentemente passam a
usar psicotrópicos durante o aprisionamento. Queixas de insônia, ansiedade, alterações de
humor são recorrentes nessa população, o que leva o profissional de saúde (psiquiatra) a
prescrever psicotrópicos, que muitas vezes são consumidos em larga escala. Nesse sentido,
ocorre a substituição das drogas ilícitas por drogas lícitas nos estabelecimentos prisionais.
Conclusão
205
rifica-se que a população carcerária brasileira é constituída predominantemente de jovens
pardos ou negros, com baixo nível cultural, socioeconômico e de escolaridade, oriundos de
famílias desestruturadas. Ao coletar a história de vida dessas pessoas, fica evidente que a
sua entrada na criminalidade e a inserção no mundo das drogas está, quase sempre, rela-
cionada ao grupo social e à influência deste sobre a vida do indivíduo.
Não se pode deixar de ressaltar que, se por um lado é possível observar que o nível
socioeconômico, cultural e a cor da pele são aspectos que podem influenciar a dependên-
cia química, em decorrência da desigualdade de acesso dessa população na participação
da vida social, por outro as características individuais (personalidades e aspectos genéti-
cos) também podem ser decisivas. E esses mesmos aspectos podem ser determinantes da
criminalidade, apesar de serem pouco discutidos e pesquisados no Brasil. Em comum têm
também a multiplicidade e entrelaçamento de fatores, tornando o sujeito mais vulnerável
tanto à criminalidade quanto à dependência química.
Conforme já afirmado neste trabalho, a condição ímpar de desenvolvimento dos jovens
e adolescentes faz com que eles sejam mais suscetíveis às influências do meio em que es-
tão inseridos. Assim, ao ter contato com as possibilidades simbólicas e materiais que o trá-
fico proporciona, boa parte dessa parcela da população é seduzida por esse mercado. Além
disso, os efeitos das substâncias entorpecentes contribuem ainda mais no processo de
“satisfação pessoal”. Alguns sujeitos conseguem manter certo controle sobre o uso. Outros
não dispõem de uma estrutura psíquica tão eficaz e tornam-se dependentes químicos. Em
muitos casos, essa dependência se constituirá no maior desafio no que se refere ao proces-
so de restauração desses jovens. Percebe-se, então, que a condição peculiar de desenvol-
vimento associada às influências do meio é fator que torna os jovens mais vulneráveis ao
tráfico de drogas e às diversas composições e formatos. Contudo, é o uso e, principalmente,
a dependência química, que parecem tornar o jovem muito mais vulnerável à permanência
no estado de autodegradação causado pelo uso contínuo de drogas.
À medida que se pensa na vulnerabilidade social e na dependência química versus cri-
minalidade, evidenciam-se os fatores de risco, listados no decorrer deste capítulo, como as-
pectos predisponentes à dependência química e também à criminalidade, tais como: idade,
sexo, cor da pele, desestruturação familiar, local de moradia, incompletude do processo de
redemocratização, a fragilidade do sistema de justiça no Brasil, a incapacidade de ressocia-
lização do sistema prisional, o modelo econômico, as especificidades do desenvolvimento
dos adolescentes e jovens, o tráfico de armas e de drogas, entre outros. A agremiação
dinâmica desses aspectos cria não somente uma atmosfera favorável à emergência da cri-
minalidade e da dependência química, mas contribui efetivamente para sua manutenção.
Enquanto não houver ampliação do olhar sobre o cenário da dependência química e
criminalidade, trazendo à luz a responsabilidade não só do indivíduo, mas também a res-
ponsabilidade do Estado, objetivando-se uma reformulação estrutural e verdadeiramente
participativa da sociedade, corre-se o risco de ficar replicando “ad eternum” os dados en-
contrados neste trabalho que não deixam dúvidas de que a dependência química e a cri-
minalidade trazem em sua essência a mesma complexidade associada à vulnerabilidade.
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209
210
15
Vulnerabilidade em profissionais de saúde
Monica Maria de Oliveira Melo
Vinícius Sousa Pietra Pedroso
Marco Túlio de Aquino
Enio Roberto Pietra Pedroso
211
212
Introdução
213
b) social - que se constitui nos fatores sociais que determinam o acesso às informações,
serviços, bens culturais; nas restrições ao exercício da cidadania, exposição à violência,
nível de prioridade política ou de investimentos dados à saúde e condições de moradia,
educação e trabalho;
c) programática - depende das ações, do compromisso, dos recursos, da gerência e do
monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção à saúde, que o estado, a
iniciativa privada e as organizações da sociedade civil empreendem para o enfrentamento
das condições que proporcionam o adoecimento e diminuem as chances de ocorrência das
enfermidades9-13.
A intervenção sobre todos esses fatores deve considerar não só o trabalhador, mas tam-
bém as situações que interferem em seus comportamentos privados, políticos, econômicos,
culturais e dos gestores das instituições de saúde, que podem determinar mais proteção e
considerar que o cuidado do outro significa também o cuidado de si mesmo14-29.
Qual é a percepção dos profissionais de saúde sobre o risco e a vulnerabilidade a que
estão afeitos? Quais estratégias podem ser empreendidas visando à adoção de práticas
seguras no trabalho em saúde?
É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que
impedem o bem-estar1-4,9,10,28,29.
A educação representa o ponto central em que a informação e sua transformação em
conhecimento, de forma crítica, reflexiva e libertária, alteram o padrão de comportamento
e sua ação sobre as transformações pessoais e sociais. A educação para a saúde amplia o
conhecimento sobre o bem-viver, a consciência individual e social e incita o desenvolvi-
mento de ações preventivas, o reconhecimento de doenças prevalentes e o equilíbrio com
a natureza, impedindo a exploração do trabalhador16-21.
É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais
sobre a doença, a saúde, a tolerância à dor e a legitimidade de reações ao mal-estar e
perceber que a dimensão dos incidentes e eventos críticos que influenciam a vida de cada
pessoa pode predizer a probabilidade de início de doenças físicas e mentais13,29-31.
A intervenção para obtenção de bem-estar, portanto, constitui-se em missão de cida-
dania e pode ser realizada em todos os seus níveis de complexidade do sistema hierarqui-
zado de saúde16-19.
214
para a intervenção prática sem as mediações necessárias para que ganhe significado real,
a sua contribuição para orientar a prática preventiva é insuficiente ou até prejudicial, ao
reduzir os fenômenos de adoecimento a alguns de seus componentes que podem ser iso-
ladamente mensuráveis.
Os estudos de risco de adoecimento determinam, em geral, decomposição do todo em
partes, associadas entre si por relações lineares e fixas de causa-efeito e lidam com a po-
sitividade que abstrai a variabilidade, a complexidade e a dinâmica dos significados e das
práticas sociais em que as possibilidades de adoecer são vivenciadas e experimentadas.
Essas relações de causa-efeito explicam, em parte, as chances de adoecimento e permitem,
quando aplicadas ao comportamento relacionado à saúde, determinar o risco devido à
ignorância, irresponsabilidade ou livre-arbítrio13,16,17,27-29.
É essa compreensão que orienta os modelos educativos que visam a convencer a pes-
soa a agir de modo diferente com base em estratégias educacionais dirigidas ao alerta
e à transmissão de informações técnico-científicas. Esses modelos orientam também o
domínio dos profissionais de saúde, priorizam a sabedoria técnico-científica e desprezam
a vivência do cuidado popular e tradicional, que não tem a pretensão de universalidade da
ciência, nem de reprodutibilidade da técnica, mas que utiliza juízos que associam aprendi-
zado e experiência, de valor para a construção do processo educacional de cada grupo po-
pulacional. É importante, portanto, incorporar aos projetos educativos em saúde a dimen-
são do processo saúde-doença, considerando sua complexidade e sua multiplicidade de
interferências, como é a proposta do estudo de vulnerabilidade. Isto é: considerar a chance
de exposição das pessoas ao adoecimento como o resultado de condições individuais,
coletivas e contextuais implicadas na maior suscetibilidade ao adoecimento e, concomi-
tantemente, na maior ou menor disponibilidade de recursos de proteção e, portanto, reco-
nhecendo a vulnerabilidade de alguém, de quê e de quais circunstâncias ou condições1-8.
Os componentes da vulnerabilidade também agem sobre os profissionais da saúde e
pode-se considerar que dependem das características:
a) profissional-individuais - decorrentes de seu desenvolvimento
i) cognitivo, devido à quantidade e qualidade de informação disponível e em sua
transformação em conhecimento;
ii) comportamental, na capacidade, habilidade e interesse em transformar a infor-
mação e o conhecimento em atitudes e ações de proteção contra o adoecimento, no con-
trole de comportamentos que criam oportunidades para o adoecimento. O comportamento
de mais vulnerabilidade não decorre, necessariamente, da ação voluntária das pessoas,
mas relaciona-se, especialmente, às condições ambientais, culturais e sociais em que o
comportamento ocorre e à consciência das pessoas sobre seu comportamento e à sua
efetiva capacidade de modificá-lo;
b) sociais - envolve o acesso e a possibilidade de refletir sobre a informação e de sua
capacidade de provocar mudança que melhore sua vida, o que se associa ao acesso aos
recursos materiais, à escola e ao serviço de saúde, ao poder de influenciar decisões políti-
cas e à possibilidade de enfrentar barreiras culturais e de estar livre de todas as coerções;
c) programático-institucionais - associam os componentes individual e social ao grau e
à qualidade de compromissos e recursos; gerência e monitoramento de programas nacio-
nais, regionais ou locais de prevenção e cuidado; que são decisivos para definir necessida-
des, orientar e otimizar o uso dos recursos sociais existentes. Depende do entendimento
da presença, multiplicidade, interconexão, instabilidade e inconstância, momento, história,
215
dos fatores profissional-sociais e programáticos que determinam a possibilidade de ado-
ecer10-13.
Determinantes da saúde
Determinantes da doença
216
tes de órgãos e tecidos, ao uso de imunossupressores, à antibioticoterapia irracional em
seres humanos e em animais fontes de alimentos, que se relacionam a encefalite bovina,
síndrome hemolítica urêmica (E. coli), doenças transfusionais (hepatites virais, chagas), in-
fecções em imunossuprimidos e hospitalares;
e) Adaptação e mudança de agentes - que demarcam a evolução de microrganismos, a
pressão seletiva e desenvolvimento de resistência aos antibacterianos e antivirais e que
determinam variações naturais e mutações em vírus (vírus da imunodeficiência humana,
vírus influenza), bactérias (febre purpúrica brasileira por H. influenzae, infecções hospita-
lares) e resistência a antibióticos, antivirais, antimaláricos, pesticidas e herbicidas e im-
pulsionam o desenvolvimento de transgênicos e as suas possibilidades de interferirem no
equilíbrio da natureza;
f) Colapso de medidas de saúde pública que determinam a inadequação do sanea-
mento e do controle de vetores, cortes em programas de prevenção de doenças e que se
relacionam a cólera, dengue, difteria, desnutrição, supernutrição, aterosclerose e doenças
degenerativas32,33.
O modelo econômico baseado na exploração do trabalho, competição, solidão, me-
nos capacidade afetiva, estresse, ação predatória sobre o meio, desvios da nutrição (sub
e supernutrição), desemprego, condições insalubres de moradia, urbanização sem plane-
jamento, saneamento inadequado, em detrimento da solidariedade e distribuição justa e
digna de bens sociais aliado à falta de financiamento para a educação e a saúde favorece
a variabilidade de comportamento de vetores e do ser humano. Essa variabilidade abrange
fome, tuberculose, tuberculose multirresistente, hanseníase, cólera, febre amarela, dengue,
imunodeficiência adquirida, hantavirose, hepatites virais, papilomavirose, leishmaniose,
doença de Chagas, malária, estresse, esquistossomose, violência, pesticidas, uso indevido
de antibióticos e de herbicidas, desequilíbrio ecológico, infecção pelo H. pylori e Chlamy-
dia, exploração inadvertida de nichos ecológicos, uso de transgênicos, saúde e educação
não priorizadas nas políticas públicas e uso de drogas lícitas e ilícitas. O neoliberalismo
tecnocratiza decisões, centraliza riquezas, justifica o desemprego e a desigualdade social,
exclui o cidadão do destino de seu país e incita o consumismo e a competição excessiva,
que desagregam e promovem pressões psíquicas insuportáveis.
Observa-se na trajetória humana que a prevalência da ganância e a luta pela manu-
tenção do poder e do dinheiro associam-se à acentuada possibilidade de desequilíbrio
social e à insensibilidade na percepção do outro. Esse comportamento, ou modelo, possui
grande probabilidade de promover onipotência, desconfiança, paralisia afetiva, intolerân-
cia, incapacidade em lidar com a realidade, vazio existencial, individualismo, violência,
delinquência, falta de moradia, indefinição de políticas sobre a terra e sobre a produção de
alimentos, ausência de água potável e esgotos, deficiência de imunizações, descaso com
a saúde, destruição planetária, desenvolvimento falacioso, temporário, limitado, busca de
poder e manipulação social. O que adoece e mata são menos os microrganismos e mais
a criminalidade, violência, acidentes, solidão, angústia, depressão, estresse, deterioração
ambiental, intoxicantes químicos, drogas lícitas e ilícitas, sedentarismo, má-alimentação,
ignorância, miséria, desonestidade, fisiologismo e impunidade.
O que faz, portanto, o adoecimento ocorrer? Em quase dois terços das vezes, o com-
portamento humano, o que significa como a pessoa e a sociedade agem, seja em relação
217
ao que alimenta e bebe, o que respira e aspira, como exercita ou se mantém sedentário e,
especialmente, no que pensa e como age!
Este é um assunto contemporâneo? Não; eterno, desde sempre. Simples? Não; comple-
xo e da própria existência humana. Fácil de resolução? Não; depende de vontade, coragem
e cidadania. Está relacionado aos valores sociais da contemporaneidade? Sem dúvida, es-
pecialmente de ganância, da busca de patrimônio rápido, de juventude, de eternidade, da
estética, do poder e da incapacidade do estado em garantir bens sociais equânimes e de
valorizar com justiça e dignidade a vida humana32,33.
Visão dos profissionais da área da saúde sobre seu papel profissional e a vulnerabilidade
em seu exercício
O trabalho dos profissionais envolvidos na área da saúde, na maioria das vezes, repre-
senta desafio que não se limita ao diagnóstico e à abordagem terapêutica, mas implica
perceber a pessoa em sua total dimensão, o que extrapola a objetividade e pressupõe a
percepção subjetiva e integrada da pessoa na família e sociedade, plena e em intercâmbio
com implicações resultantes de sua opinião, atitude e crença1-5,34-37.
A visão unilateral e restrita em relação ao ser humano determina o que se observa
quando se fixa algum parâmetro como variável dependente ou apenas independente, no
estudo de um fenômeno físico-químico, o que incita ao risco de transformar o ser humano
em objeto ou peça; e aferir o paciente e a comunidade a partir de partes e não como pes-
soa ou de seu todo “corpo e alma”.
Esse risco pode considerar que a saúde humana depende eminentemente da tecnolo-
gia, o que implica a possibilidade de reducionismo e de expressar parte da matéria, e não
necessariamente o seu todo. A ampla visão da pessoa, sem limites de órgãos ou sistemas,
do corpo e alma, indivíduo e coletivo, permite transgredir e ultrapassar conhecimentos
218
e habilidades técnicas e ampliar a capacidade de criar relacionamento consigo e com o
outro e como valoriza sua vida e a dos outros e se percebe coletivamente capaz de trocas
de tolerância e complacência com o improvável, o erro, o desafio, a solidariedade, a justiça
e a equanimidade34-37.
A capacidade que todos os profissionais que atuam na área da saúde têm de entender
o seu próprio potencial de intervenção em busca do bem-estar e de utilizá-lo com juízo,
equilíbrio e sem aproveitar da boa-fé das pessoas constitui-se na chave de todo relaciona-
mento com a pessoa doente e com sua família, com respeito, confidência e esperança. Isso
beneficia a motivação, aliança e enlevo, de forma integral, em que o paciente se integra
como espécie respeitosa com as outras em seu contexto planetário. Não é a tecnologia
que impõe confiança e confidência, mas a ação empreendida pelos profissionais da área da
saúde em sua capacidade de ausculta e ação. “A tecnologia não é boa ou ruim, mas boa ou
ruim é a sua forma de aplicação”.
O profissional da área da saúde, por isso mesmo, deve aprender a se conhecer o sufi-
ciente para impedir que seus preconceitos e problemas naturais perturbem sua relação
com a pessoa doente, sua família e a sociedade e se aplique na obtenção de relaciona-
mento adequado para evitar que essa interação conduza a erros que decorram de sua visão
unilateral e preconceituosa32,33,37.
A dimensão completa da vida e do trabalho dos profissionais da área da saúde, portan-
to, desdobra-se em todos os níveis em que é vivida, desde o compromisso irrestrito com
a inovação, que pressupõe a coragem de criar e transformar o seu trabalho cotidiano, até
se envolver e participar em movimentos e lutas justas e necessárias ao desenvolvimento
humano. Constitui-se na procura de meios de atingir, pelo exercício profissional, lugares e
experiências que se espalham e recriam por onde se encontram com as pessoas. Por isso
mesmo, requer participar efetivamente do seu encontro com a experiência humana que
puder acumular e entender, que se realiza em todos os momentos e locais, em sua intera-
ção com a vida e com as coisas. É preciso perscrutar a alma em todos os seus recônditos
para reconhecer os limites próprios e de cada um. Esse processo busca entender a singu-
laridade de cada pessoa e de sua harmonia com a própria natureza, em cada momento.
A interação e o papel dos profissionais da área da saúde são perceptíveis na busca pelo
bem-estar de todos e caracteriza-se pela percepção de que para cada 1.000 problemas
de saúde que ocorrem usualmente no ambiente doméstico, 750 são resolvidos no próprio
ambiente domiciliar, por medidas populares milenares, como observação, repouso, limpe-
za, banho, ventilação, tomar sol, dormir; ou uso de água, chá ou compressa. Dessa forma, a
própria natureza se encarrega de resolver adequadamente e revelam-se observação e vi-
gilância, tradição, vivência, impressão, cujo cuidado principal é não impedir que a natureza
cuide de si ou que seja maltratada.
O restante dos problemas recorre à atenção primaria à saúde sem influência de ato
médico, recebendo medidas como hidratação oral, limpeza de feridas, orientação dietética,
exercício adequado, sendo, desses pacientes, 100 encaminhados para consulta médica.
Entre os pacientes sob avaliação médica, em 10 eventualidades a primeira consulta é
suficiente para identificar o problema e ajudar na sua resolução; em 35 é necessário re-
torno para controle e vigilância, sem a necessidade de exame complementar; e em 40 o
acompanhamento médico ocorre por mais de seis meses, sendo 14 encaminhados para a
observação de especialista e um para a internação hospitalar. Na atenção primária à saúde
com resolubilidade médica de quase 85%, ocorrem, em geral, oito grupos nosológicos,
219
sendo necessários 11 exames complementares e 14 medicamentos para a sua abordagem.
Essa observação decorre, em sua essência, de que “o que é raro é raríssimo, e o comum
é comuníssimo”. Revela que há na prática a necessidade de ruptura com o consumismo e
a valorização de bens sociais para qualidade de vida, aliadas da saúde, como: educação,
trabalho, seguridade social; e da atenção e cuidado com a pessoa e sua família. É preciso
entender que os avanços da biologia molecular-estrutural, imunologia, genética não po-
dem impedir o valor da Psicologia, Antropologia e Sociologia sobre o entendimento da
vida e da morbimortalidade32,33,37.
A ciência requer muito mais do que aplicar o conhecimento do último segundo, é pre-
ciso conhecer e aplicar o padrão do pensamento científico, desenvolver mente inquisitiva,
crítica, independência; projetar experimentos; obter dados; analisar sua validade e espe-
cificidade; questionar e responder no limite da precisão definida; estabelecer medidas
de limite do que é adequado ou não, sem decisão fútil ou inútil, e ajuizar com equilíbrio
o que deve e não deve ser feito. Os resultados falso-positivos podem sujeitar-se a algum
procedimento desnecessário. O exame complementar que confirma o diagnóstico já feito
constitui desperdício de recursos. É preciso avaliar se o exame complementar pode modi-
ficar a escolha da estratégia de tratamento. A compreensão da alma, entretanto, ultrapassa
todos esses dados objetivos, e sem a sua perscrutação não se consegue perceber o pedido
de ajuda, de auxílio, do encontro com o ser que está em cada pessoa.
A obtenção de saúde nem sempre significa diagnóstico ou tratamento no sentido de
que é preciso aplicar alguma fórmula físico-química industrializada. Muitas vezes carac-
teriza-se por aliviar o impacto da enfermidade, ajudar a pessoa a se integrar nela mesma,
em sua família e comunidade; por perceber o esforço da pessoa em se adaptar à perda de
sua saúde e a conviver com limitações; e pelo compromisso com o bem-estar biopsicos-
social cultural e espiritual. As enfermidades tendem a ocorrer em situações de excessiva
exigência pessoal ou diante de necessidade de vida não resolvida de forma satisfatória. As
doenças incuráveis inspiram desesperança, sofrimento e angústia. A morte pode devastar
o paciente e sua família, o que inclui ansiedade, medo, pânico, enigma sobre o futuro, res-
ponsabilidade pela família, trabalho, dívidas. É preciso ajudar a pessoa doente a entender
o correto para si, sentir-se valorizado, assumir com esperança recursos existentes para
reduzir sofrimento, cooperar para a cura e o controle da doença.
É preciso, portanto, conhecer-se para impedir que a primeira impressão, não adequada-
mente reflexiva, afete a relação ou promova erros na interação com o paciente.
O interesse e o bem-estar do paciente devem superar os de qualquer dos profissio-
nais da área da saúde e impulsionar a transcender a capacidade técnica, o conhecimento
científico e o interesse e distinguir o que é ou não supérfluo, a atingir a compaixão. A cura
orgânica não significa, necessariamente, sentir-se satisfeito; e a tecnologia aplicada não
representa melhor assistência e pode inclusive descaracterizar e despersonalizar o profis-
sional da área da saúde ou torná-lo minimizador da tensão social. É preciso respeito, confi-
dência, solidariedade desde o nascer até experimentar-se, ajuizar a experiência, entender a
existência, viver a sabedoria do juízo, buscar bem-estar na própria essência, conscientizar-
se da própria morte, transcender a matéria, ajudar a pessoa doente a se sentir melhor com
ou sem a doença e perceber o seu limite ou a doença em paz1-4,12,13,32,33,37.
220
Perspectivas atuais do trabalho dos profissionais da área da saúde e sua influência sobre
o estado de saúde
É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que
impedem o bem-estar.
A educação é essencial, em que a informação e o conhecimento consequentes, refle-
xivos, críticos e libertários, aliados à experiência, ajudam a estabelecer melhor o padrão
de comportamento frente às prerrogativas pessoais e sociais transformadoras e a obter a
sabedoria que amplifica a vida humana. A educação para a saúde amplia o conhecimento
sobre o bem-viver, a consciência individual e social, incita às ações de prevenção, ao reco-
nhecimento de doenças prevalentes, ao equilíbrio com a natureza e impede a exploração
do trabalhador.1-4,9,10,12,13.
É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais
sobre a doença, a saúde, a tolerância ao sofrimento, a legitimidade de reações ao mal-estar
221
e perceber que a dimensão dos eventos de influência sobre a vida de cada pessoa pode
predizer, com muita certeza, a probabilidade de ocorrência de doenças físicas e emocio-
nais32,33,37,42.
A intervenção para obtenção de bem-estar é tarefa de cidadania e pode ser feita em
todos os seus níveis de complexidade.
A transferência de responsabilidades de serviços básicos para o setor privado, sem
garantia de equidade na sua oferta; a instituição do usuário-consumidor, na lógica do cus-
to-benefício, não no cidadão que possui um bem, a saúde; a competição pela lucratividade,
não como benefício para as pessoas e o planeta; a centralização da conceituação de saúde
na doença e no indivíduo, baseada na tecnologia, sem favorecer o uso ajuizado de serviços
adequados ou apropriados; os gastos indevidos com a atenção médica, medicamentos,
exames, equipamentos; tornam impossível pensar em preservar a pessoa e o planeta. A
lógica do individualismo não preserva o planeta para todos, nem privilegia o equilíbrio
e a harmonia do corpo e da alma e de sua interação com a natureza, que é dinâmica e
materialmente finita!
A decisão política de privilegiar o ser humano e não o capital como o substantivo
de todas as decisões, portanto, significa como pressuposto de bem-estar da humanidade:
educação para todos; financiamento adequado para o cuidado com as pessoas e o meio
ambiente; valorização do trabalho como princípio fundamental da organização social; es-
trutura social com oportunidades igualitárias para todas as pessoas, incluindo a reflexão
sobre estigmas; condições físicas dos serviços de atenção à saúde e à doença, em especial,
para o setor saúde, como tipo de consultório, privacidade do paciente; proximidade do
médico e de outros profissionais de saúde com o paciente e sua família, incluindo aten-
dimento domiciliar, noturno, nos fins-de-semana e feriados; disponibilidade de recursos
diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação20-23,42.
Essa perspectiva profissional requer visão interdisciplinar e multiprofissional, com res-
peito não só entre os vários profissionais que compõem a equipe de saúde, mas com a
pessoa doente, que é o substantivo de todas as ações, na preservação da sua dignidade e
de seus familiares.
222
ço, gana e trabalho para a busca do bem-estar que todos merecem32,33,37,42.
A prática dos profissionais da área da saúde depende das condições que moldam a to-
dos para a sua missão compartilhada e se relacionam ao estilo de vida, ao local escolhido
para o trabalho, ao tamanho e às características da comunidade escolhida para o exercício
profissional de cada um. Não é tarefa fácil.
O conceito de vulnerabilidade contém algumas especificidades que abrangem: o indiví-
duo ou a compreensão do comportamento pessoal à qualidade da informação de que cada
pessoa dispõe sobre os problemas de saúde, sua reflexão e a aplicação na prática; o social,
que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibi-
lidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em
instituições; e os programáticos, estabelecidos para responder ao controle de enfermida-
des, o nível e qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do
monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção12,32,33,37.
Esses objetivos têm sido obtidos?
223
A hegemonia médica pode também exercer efeito intimidador nas relações interdisci-
plinares e multiprofissionais, com o risco de desencadear dificuldades de relacionamentos,
o que requer o entendimento do limite pessoal e o respeito com cada uma das profissões
que compõem a equipe de saúde.
É essencial que as políticas públicas em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) se-
jam consequentes, dignas com o cidadão e com seus trabalhadores, como pressuposto para
que seja eficiente e capaz de atender ao desejo das Assembleias Nacionais de Saúde que
lutaram por décadas para que a saúde se transformasse em direito de cidadania e dever
do estado. O SUS, em verdade, não é único, nem igualitário, nem democrático e com inco-
erências e desigualdades que representam desafios a serem resolvidos em sua construção
e desenvolvimento. Esses fatores exercem efeito devastador sobre profissões que cuidam
diretamente do descaso ao cidadão brasileiro, o que é aplicado a todos os profissionais da
saúde. As profissões que são predominantemente exercidas por mulheres têm acrescido
ao desgaste profissional a dupla jornada de trabalho e a pouca valorização do trabalho
feminino na sua família; e as mulheres médicas ainda sofrem preconceitos, obstáculos
familiares e sociais para o seu exercício profissional.
O risco da transmissão da síndrome de imunodeficiência adquirida, nos Estados Unidos
da América, foi mais comum, em ordem decrescente, em: enfermeiros, técnicos de labora-
tório e médicos não cirurgiões1-9,12-20.
224
Tabela 1: Número total de servidores ativos do Hospital das Clínicas da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais afastados do serviço por motivo de adoecimento no período entre
2010 e 2014
Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.
225
profissionais que mais requereram esse benefício, nos últimos cinco anos, revela:
Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.
Tabela 4: Análise do número de dias e duração dos afastamentos do trabalho entre os ser-
vidores ativos das categorias profissionais, nos últimos cinco anos, no Hospital das Clínicas
da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014.
Ano Total de Afastamentos
Média
Causa Psiquiátrica Causa Clínica Total Dias/
Absoluto/% Dias no Ano/% Absoluto/% Dias no Ano/% No Ano Dias no Ano
Ano
A análise dos dias e duração dos afastamentos dos profissionais de saúde lotados no
HC/UFMG (Tabela 4) revela que as licenças por adoecimento clínico, apesar de correspon-
derem a quase 90% do número total de afastamentos em todos os anos, foram responsá-
veis por cerca de 80% dos dias de afastamento. E as licenças por adoecimento psíquico,
apesar de corresponderem a pouco mais de 10% dos afastamentos anuais, foram respon-
226
sáveis por cerca de 20% dos dias de trabalho perdidos, atingindo quase 30% dos dias de
afastamento em 2014. Isso realça a influência do adoecimento mental, com licenças mais
prolongadas em relação aos afastamentos por doenças clínicas. Na duração média dos
afastamentos (número total de dias de afastamento no ano/número total de afastamen-
tos), observa-se que o adoecimento dos profissionais de saúde gerou licenças prolongadas,
de 24 dias por ano, em média, o que significa que a cada ano um mês é consumido pela
ausência do trabalhador em seu posto de trabalho em decorrência de alguma doença.
Esses dados são altamente relevantes e exigem a reflexão sobre como o trabalho, que
representa a sustentação do indivíduo e sua família, a idealização da missão de cada pes-
soa, sua participação social e, especialmente na área da saúde, que cuida e acolhe o pró-
ximo, retorna com o adoecimento do seu trabalhador de forma constante e significativa. É
possível conviver com essas questões sem serem avaliadas e enfrentadas em sua origem
e convenientemente prevenidas?
Assistentes sociais
227
promoção da saúde e curativas. E a busca da qualidade de vida e da cidadania em cada
etapa do processo de sua atenção, com visão interdisciplinar, e de seu trabalho baseia-se
na supervisão contínua do ACS pelo enfermeiro. O PSF enfatiza a universalização e des-
centralização de suas ações, com a participação da comunidade; a substituição do modelo
de atenção primária centrado na relação médico-paciente e no atendimento individual; a
integralidade e hierarquização da atenção à saúde, com referência e contrarreferência in-
terdisciplinar e multidisciplinar; a territorialização na atenção a todas as pessoas; e a ação
de equipe multiprofissional36,38,39.
Os cidadãos buscam, inicialmente, diante de sua necessidade, o ACS para informação,
reclamação ou solução de um problema de saúde e dele esperam a resposta em relação às
cobranças e exigências, nem sempre obtida de forma simples. Espera-se que o trabalho do
ACS seja bem-aceito pela comunidade e consiga ultrapassar preconceitos e sigilo, com éti-
ca, comunicação fácil e capacidade de se integrar à equipe interdisciplinar para a obtenção
da vigilância à saúde, de forma organizada e planejada. Sua função inclui a identificação e
observação contínuas dos problemas que afetam a saúde de cada pessoa e da população
em geral, em sua região de trabalho, inclusive por intermédio da visita domiciliar; com a
supervisão individual, coletiva e contínua de grupos especiais de vulnerabilidade, para en-
tender a sua necessidade, implícita ou não, e ajudar a superar essas dificuldades em busca
de condições adequadas de saúde; além de esclarecer sobre educação para a saúde; en-
volvendo em todas as suas ações a participação do indivíduo e sua comunidade e de toda
a equipe de saúde, desde a identificação dos problemas até propostas para sua resolução
e o controle adequado dos fatores que desencadeiam a morbimortalidade reconhecida.
É necessário, em sua função, o desenvolvimento das ações básicas, como incentivo ao
aleitamento materno, acolhida precoce das gestantes ao pré-natal, prevenção das doenças
prevalentes, busca ativa de portadores de doenças crônico-degenerativas sem acompa-
nhamento de seu estado de saúde, identificação precoce de doenças de notificação com-
pulsória, além do desenvolvimento do conceito de participação popular como correspon-
sável nas ações e controle da qualidade da assistência à saúde. Espera-se que o ACS em
sua missão seja capaz de realizar: observação, identificação, difusão de conhecimentos,
integração, incorporação de valores, juízo profissional, iniciativa e produtividade. Esses
objetivos nem sempre são obtidos, o que faz o ACS buscar esforços para se superar e se
mostrar capaz, para a sua equipe e a comunidade, de que é útil na missão do PSF. Esse
processo resulta em apreensão e sofrimento para o ACS, com riscos de depressão, angústia,
frustração e desamparo32,40,41.
O modelo de supervisão do ACS, sob responsabilidade do enfermeiro, foi se adaptando
às condições precárias de sua implementação e condução, sendo hoje fundamental que su-
pere o desafio de obter capacitação, educação continuada e resolução das suas demandas
psicoafetivas. O cumprimento da excepcional missão do ACS requer o comprometimento
de políticas públicas com os pressupostos constitucionais do SUS, a começar pelo seu
financiamento adequado; valorização e o respeito pelo trabalho de todos os membros do
PSF; e a participação multi e interdisciplinar na ABS dentro do limite de atuação de cada
profissional de saúde.
A sociedade brasileira permanece sob condições precárias de educação baseada na
domesticação, sem a perspectiva de libertação; atrelada à dependência colonialista e com
economia dependente das potências industriais, mantida pelos produtos gerados pela
agricultura e criação de gado e aves; submetida ao mercado sob pouca influência dos seus
228
interesses; com corrupção em todos os seus níveis de organização; com políticas públicas
imediatistas e sem projeção para o desenvolvimento sustentável e sem comprometimento
com a preservação da natureza; com as relações sociais valorizadas constituídas na ganân-
cia, rápida obtenção de patrimônio, estética e juventude. Esses fatores geram isolacionis-
mo, tensão, violência, uso de drogas lícitas e ilícitas, tráfico de influências de toda natureza,
desagregação social, guerra civil velada. É nesse contexto que se situa o trabalho do ACS.
O trabalho do ACS apresenta-se, portanto, com características que determinam riscos:
229
emocional e conflitos diretos em sua equipe de trabalho. Essas responsabilidades exigem
conhecimento científico para a prática, atenção, destreza, raciocínio rápido para planeja-
mento e tomada de decisões, equilíbrio emocional e exigência de doação pessoal ao pa-
ciente mesmo diante de situações pessoais críticas, sem receber condições favoráveis, in-
cluindo salariais e de regime de trabalho, para o desenvolvimento de suas atividades38,42,43.
A equipe de enfermagem torna-se vulnerável em função de ser o maior grupo individu-
al da saúde prestador de assistência ininterrupta, por executar cerca de 60% das ações de
saúde, realizar o maior volume de cuidado direto por intermédio de contato físico com o
doente e executar rotineiramente procedimentos invasivos, principalmente administração
de medicação injetável. Os acidentes de trabalho ocorrem devido ao uso inadequado ou
resistência ao uso de equipamentos de proteção individual (EPI), mas, especialmente, em
decorrência de sobrecarga de trabalho, autoconfiança, autodescuido, falta de capacitação
e insuficiência de medidas de prevenção e reduzido número de caixas coletoras para ma-
terial perfurocortante.
A vulnerabilidade da equipe de enfermagem decorre também da organização do traba-
lho, dos conflitos e ambiguidades nos papéis da equipe que gerencia, da falta de partici-
pação da equipe nas decisões administrativas superiores; de longas jornadas de trabalho,
do rodízio de horários (perda de contato familiar e social), da sobrecarga de trabalho; do
número insuficiente de pessoal e de recursos materiais; da mudança constante das regras
do trabalho e excesso de burocracia; de conflitos com a equipe médica e da falta de reco-
nhecimento profissional; da alta competitividade, dos baixos salários, da pressão por mais
produtividade, da falta de confiança e companheirismo. Alguns fatores físicos podem ser
realçados, como os que decorrem de trabalho em que existem riscos relacionados aos pro-
dutos químicos (para a limpeza hospitalar, medicamentos, produtos para limpeza de equi-
pamentos, antiblásticos), biológicos (bactérias, fungos, vírus, resistência microbiana), físicos
(ruídos, radiações, radiosótopos), mecânicos (transporte e/ou movimentação de pacientes;
acondicionamento e preparo de materiais), psicossociais (pacientes agitados, descontro-
lados, agressivos, com contaminação pelo contato ou pela via aérea). Na UBS, os riscos e
vulnerabilidades relacionam-se à deficiência de recursos para o trabalho, à violência física
e ao desgaste emocional. No contexto hospitalar, destacam-se os acidentes com material
biológico relacionados ao seu uso inadequado e não adesão às medidas de proteção, a
sobrecarga de trabalho e a autoconfiança de que é capaz de fazer todas as tarefas43-46.
O trabalho do enfermeiro suscita, em relação aos pacientes, sentimentos intensos e
contraditórios, como: piedade, compaixão e amor, culpa e ansiedade e ódio e ressentimen-
to. E podem ter, em relação e às instituições onde trabalham, angústia e dúvidas sobre seus
objetivos. O paciente e seus familiares podem também expressar em relação ao enfermei-
ro: apreço, gratidão, afeição, respeito, solidariedade e preocupação; e ao hospital, a crença
de que funciona bem. O paciente relata, usualmente, dependência, má-vontade em relação
à disciplina imposta pelo tratamento e rotina hospitalares e inveja o enfermeiro pela sua
saúde e competência, sendo exigentes, possessivos e ciumentos.
Os baixos salários obrigam o enfermeiro a ter mais de um emprego, o que multiplica
sua sobrecarga de trabalho, seu esforço físico e mental; a simultaneidade de múltiplas
funções, o tempo exíguo para o planejamento de suas ações; as condições inadequadas
do ambiente de trabalho (iluminação, temperatura, ruído), de maquinário e equipamentos.
Esses problemas promovem: insatisfação, improdutividade, absenteísmo e abandono da
sua tarefa, acidentes, doenças ocupacionais, sentimento de fracasso e exaustão, alto grau
230
de tensão, angústia e ansiedade, mudanças de emprego. Observa-se que até cerca de 50%
dos enfermeiros de hospital-escola apresentam distúrbios psicoemocionais, com repercus-
sões sobre a qualidade do serviço prestado, a sua rotina de trabalho e a sua vida pessoal
e social46-52.
É preciso reconhecer esses problemas para repensar as práticas de forma crítica e
transformadora, para a busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas,
capazes de influenciar as mudanças que proporcionem melhores condições de trabalho e
de vida50-52.
Médico
231
cientes e seus familiares a processarem juridicamente, e de forma indevida, médicos e hos-
pitais por imperícia, imprudência e negligência. Todos esses fenômenos tornaram o rela-
cionamento médico-paciente, médico-médico, médico-organizações públicas ou privadas
permeado de desconfiança e tornando a Medicina atividade desgastante, defensivista, não
espontânea e com elevado risco de não ter vínculo. Os principais fatores de desgaste são:
• excesso de trabalho;
• baixa remuneração;
• más-condições de trabalho;
• responsabilidade profissional;
• relação médico-paciente-família;
• conflito-cobrança da população e perda da autonomia.
O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que, se não cor-
respondidas, tendem a produzir decepções e frustrações, com repercussões na saúde dos
estudante, dos residentes e dos médicos32,33,60,61.
O caráter altamente ansiogênico da profissão associa-se ao contato contínuo com: dor,
sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais, de difícil re-
lacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestru-
tivos e cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do conhecimento mé-
dico e do sistema assistencial que se contrapõe às demandas e expectativas dos pacientes
e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis. A síndrome do
estresse profissional surge nesse âmbito e se caracteriza por: embotamento emocional,
isolamento social, exaustão, fadiga, cefaleia, distúrbios gastrintestinais, dispneia, humor
depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo, desinteresse, realiza-
ção de consultas rápidas e rótulo depreciativo a todos os pacientes, evitando os pacien-
tes e, inclusive, o contato visual com eles. Na residência médica, o estresse atinge o seu
máximo e decorre de responsabilidade profissional, isolamento social, fadiga, privação do
sono, sobrecarga de trabalho, pavor de cometer erros, depressão, ideação suicida, consumo
excessivo de álcool, adição às drogas lícitas ou ilícitas, raiva crônica, desenvolvimento de
ceticismo amargo e humor irônico. O resultado é a alta prevalência de suicídio, depressão,
uso de drogas, distúrbios conjugais, disfunções profissionais62-65.
Observam-se, em Minas Gerais, algumas características que prenunciam a vulnerabili-
dade médica e que incluem: quase a metade é jovem (48%), possui menos de 40 anos de
idade; com formação pós-graduada (96,2%), baseada na residência médica (74%), mestra-
do (7,7%), doutorado (3,7%) e no exterior (10,8%); concentra-se nas regiões metropolitana
de Belo Horizonte e na Zona da Mata; com mais de dois empregos; e melhor remuneração
entre 41 e 60 anos de idade; e atividade realizada principalmente em consultório (84,4%),
sendo 66,2% no setor privado e 58,7% no setor público. Os médicos com menos de 30,
entre 30 até 40, mais de 40 até 60 e mais de 60 anos de idade possuem, em sua maioria,
respectivamente: residência médica, trabalho em instituição pública, dois a três empregos,
remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência médica, trabalho em hospital
privado, dois a três empregos remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência mé-
dica, trabalho em consultório e em hospital privado, remuneração de mais de 40 salários
mínimos; formação por outros meios que não a residência médica, trabalho em consultório
e em hospital privado e remuneração de mais de 40 salários mínimos32,33,37,66.
232
Registram-se, entre os estudantes de Medicina, riscos especiais, como: a prevalência de
acidentes de 27,4%, sendo que 47,5% deles ocorrem ao cursarem o oitavo período, especial-
mente devido à perfuração de pele íntegra. Em 349 acidentes de trabalho acompanhados
no início da década de 2010, foram verificados aumentos progressivos dos acidentes em
sua prática, de 33,9 para 52,3% entre o quinto e o 11o períodos, sendo 63% deles determi-
nados por agulhas ou objeto cortante, 18,3% afetando mucosas, 16,6% a pele e 17% pele
e mucosa. Os principais contaminantes foram: sangue (88,3%) e secreção vaginal (1,7%). As
regiões mais afetadas foram: mãos (67%), olhos (18,9%) e boca (1,7%). Os procedimentos
no momento do acidente eram a realização de sutura (34,1%), administração de anestesia
(16,6%), participação em cirurgia como observador (8,9%), punção de veia com agulha
(8,6%) e observação de parto (6,3%). O setor de biossegurança foi procurado em 49% dos
casos, o que representa como o acidente foi banalizado, pois de todos os estudantes, 29,2%
não receberam assistência médica, 87% receberam antirretrovirais, 86% descontinuaram
os antirretrovirais após determinação de que a sorologia do paciente-fonte era negativa
para o vírus da imunodeficiência humana, 6,4% não conseguiram tomar a medicação e 16%
completaram o tratamento30,32,33,39,67,68.
Todos esses fatos revelam a vulnerabilidade da atividade médica, inclusive de alunos
de Medicina, e como, mesmo se tratando de profissional de elevado nível intelectual e de
sensibilidade e que se submetem à seleção árdua e formação intensa e demorada, estão
expostos a sérios riscos em seu trabalho que podem resultar em várias consequências,
inclusive graves e irreversíveis31,69,70.
233
território do nervo mediano.
O adormecimento e a parestesia geralmente localizam-se na porção distal do braço ou
punho, com irradiação para os dedos médios (indicador, médio e metade radial anular) e
polegar, mais frequentemente o indicador. É comum determinar, à noite, hiopoestesia nas
mãos. A dor ou desconforto pode se irradiar até o ombro e ser contínua, intermitente ou
paroxística e exacerbada pelo movimento, força ou uso excessivo da mão. É comum ocorrer
transtornos do tato superficial ou discriminação tátil defeituosa, entretanto, raramente,
provoca transtornos tróficos. Em casos mais graves pode haver hipotrofia ou atrofia tenar.
O primeiro sinal de alteração motora é a lentidão de movimentos tenares pela manhã, que
pouco a pouco melhoram durante o dia. À medida que evoluem a hipotrofia e a parestesia,
os movimentos de coordenação do polegar e do indicador tornam-se débeis, rígidos e en-
torpecidos; e a força de preensão fica cada vez menor7,34,71-78.
Fisioterapeutas
Fonoaudiólogos
234
O caráter ansiogênico profissional associa-se à convivência que desenvolve ao lidar
com a dor, sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais,
de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores,
autodestrutivos, cronicamente deprimidos, em uso de sondas nasogástricas, nasoentéricas
ou ostomias. São aspectos que impedem a vida de relacionamento dos pacientes e o prazer
do sabor dos alimentos associado à dificuldade de resposta de seus pacientes às manobras
usadas para lhes dar alívio, que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes
e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis88.
Os seus riscos são semelhantes, potencialmente, aos de médicos com embotamento
emocional, isolamento social, exaustão e fadiga.
Farmacêuticos
Psicólogos
O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que devem ser
avaliadas em sua realidade ao tratar da complexidade profissional que remete ao compor-
tamento humano.
A profissão pode assumir caráter altamente ansiogênico, como ocorre com os médicos,
e decorre do contato contínuo com: dor, sofrimento, intimidade emocional; cuidado de
pacientes de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivin-
dicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do
conhecimento e do sistema assistencial, que se contrapõem às demandas e expectativas
dos pacientes e familiares que desejam garantia de que se tornarão saudáveis7.
A síndrome do estresse profissional pode assumir proporções de adoecimento intenso,
em que prevalece: embotamento emocional, isolamento social, exaustão, fadiga, distúrbios
psicofuncionais, irritabilidade, ansiedade, ceticismo, desinteresse.
235
Estratégias para adoção de práticas seguras no trabalho em saúde
236
de trabalho e promoção à saúde do trabalhador deve ser institucionalizada e trabalhada
em conjunto com o serviço de Engenharia, Medicina e Segurança do Trabalhador, das Co-
missões Internas de Prevenção de Acidentes, assim como de todas as demais estruturas
organizacionais que se encarregam de educação e vigilância em saúde.
Algumas medidas que podem tornar as condições de trabalho mais seguras são: es-
tabelecimento de plano de gerenciamento de resíduos com critérios bem-definidos, de
forma a contemplar todos os requisitos das legislações vigentes; imunização adequada dos
trabalhadores; estabelecimento de protocolos de uso de EPI; planejamento de estruturas
físicas que favoreçam a adoção de práticas corretas, como, por exemplo, lavatórios com
recursos necessários para higienização das mãos e com acionamento de pedal, caixas de
descarte de agulhas em locais de fácil acesso e não somente nos postos de enfermagem;
utilização de dispositivos e agulhas com mecanismos de segurança. É importante estabe-
lecer o fluxograma para atendimento do trabalhador vítima de acidentes de trabalho e que
permita conhecer as suas características epidemiológicas.
A avaliação da maneira como o trabalho é dividido e organizado também é fundamen-
tal para a adoção de práticas seguras, especialmente para os acidentes de trabalho típicos
envolvendo trabalhadores que desempenham funções sujeitas aos altos riscos profissio-
nais. É preciso conhecer a forma de inserção social do trabalhador e como os processos
de trabalho provocam desgastes. A gama de variáveis que compõem o trabalho hospitalar
exige a preservação e promoção da saúde daqueles que se dedicam a cuidar da saúde de
outros, e por isso não pode perder a sua própria situação de higidez22,25,90,91.
As estratégias para a adoção de práticas seguras relacionadas a riscos ocupacionais,
acidentes de trabalho e vulnerabilidade vão além de medidas de segurança, de mudan-
ças estruturais e organizacionais. Requer de todos a postura voltada para a complexidade
do problema, de forma a conscientizar todos sobre a importância do seu autocuidado. A
educação em saúde é a essência do problema, com posicionamentos interdisciplinares e
intersetoriais, envolvendo gestores, profissionais, estudantes, sociedade, de forma a olhar
para o autocuidado, cuidado do outro e do ambiente de trabalho22,25. É preciso incluir a
compreensão da dimensão psicológica na formação de todos os profissionais da saúde,
o que inclui: a motivação para a profissão, a idealização do seu papel e de suas reações
vivenciais durante a graduação, para a reflexão e trocas de experiências; a criação de
serviços de orientação psicopedagógica para estudantes e de serviços de orientação psi-
cológica e psiquiátrica.
Considerações finais
237
Acrescem aos fatores pessoais aqueles relacionados à estrutura organizacional do sis-
tema de saúde, predominando na atenção ambulatorial aqueles relacionados, principal-
mente, à deficiência de recursos para realização do trabalho, à violência física e moral e
ao desgaste emocional presente no contexto socioeconômico-cultural em que se insere.
E no ambiente hospitalar destacam-se os acidentes de trabalho com material biológico.
Acrescentam-se em todos os locais de trabalho o uso inadequado ou resistência de EPI,
a sobrecarga de trabalho e a autoconfiança. Percebe-se baixa adesão às medidas de pro-
teção à saúde, apesar do conhecimento, pelos trabalhadores, sobre a prevenção ao risco
biológico37,91,92.
A estratégia para o trabalho mais seguro requer educação permanente visando à capa-
citação e à conscientização para a boa prática profissional. E ressalta-se a necessidade de
ampliar a discussão sobre os riscos ocupacionais, os acidentes de trabalho e a vulnerabili-
dade nas práticas profissionais, com o objetivo de elaborar políticas de saúde para o traba-
lhador que tornem adequadas as suas condições de trabalho e mais satisfação profissional.
É preciso, portanto, a promoção de avaliações seguras sobre os processos de trabalho
e o conhecimento sobre a subjetividade do trabalhador para identificar resistências e pos-
sibilitar a adesão às medidas de autoproteção. O exercício da autonomia em forma de de-
cisões ativas pode diminuir os riscos ao evidenciar a vulnerabilidade dos profissionais da
área da saúde como ser humano, seja ela estrutural, individual ou social; e a necessidade
de que respondam à transformação das práticas no sentido pessoal, mas também com a
sua responsabilidade social.
Agradecimento: ao Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, que forneceu dados atuais sobre a saúde dos profis-
sionais da área da saúde do Hospital das Clínicas e que enriqueceram a discussão aqui
apresentada.
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243
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A interface da vulnerabilidade abordada pela
atenção básica na saúde e na assistência
16
Telmo Mota Ronzani
Pedro Henrique Anthunes da Costa
Fernando Santana de Paiva
Erica Cruvinel
Taynara Dutra Batista Formagini
Amata Xavier Medeiros
245
246
Introdução
247
é estéril falar sobre temas como vulnerabilidade e atenção integral no campo da saúde
ou da assistência social se não se adota uma perspectiva psicossocial. O próprio conceito
de vulnerabilidade, bem como a caracterização e os princípios dos cuidados primários em
saúde e assistência social, como será visto a seguir, leva a um aspecto sistêmico e ampliado
da questão9.
Nessa linha, torna-se importante a compreensão de que o uso de substâncias também
se refere não necessariamente a uma relação simples e direta de causa e efeito, mas a uma
série de determinantes sociais. A ideia de se compreender o consumo de drogas a partir
dos determinantes sociais pressupõe que, mesmo o uso de drogas estando presente em
diversas classes sociais e em vários contextos, alguns determinantes tornam ainda mais
pesada a carga social ou de doença em relação a tal comportamento. Exemplos de deter-
minantes sociais conhecidos na literatura em relação ao uso de drogas são: pobreza, raça,
gênero, desemprego, moradia, escolaridade, desnutrição, entre outros10. A compreensão de
tais fatores ajuda a compreender a vulnerabilidade social vinculada ao consumo de subs-
tâncias para um cuidado e planejamento de ações mais adequadas. De forma prática, po-
de-se fazer o seguinte questionamento: as abordagens ou intervenções seriam as mesmas
entre pessoas de classe média e as de classe socioeconômica mais baixa, sem moradia ou
condições adequadas de alimentação?11,12.
Outro aspecto importante a se considerar quando se assume a perspectiva psicossocial
e se considera os determinantes sociais é o que se chama de “ciclo vicioso do uso de drogas”.
Como já mencionado, alguns determinantes aumentam a vulnerabilidade social de usuá-
rios de drogas, que por sua vez deixam de procurar ajuda por receio do estigma associado
ao uso e ao usuário, levando ao agravamento da condição de saúde e de outros problemas
sociais1. A não procura por ajuda está associada, entre outros aspectos, às barreiras de
acesso aos serviços - sendo elas geográficas ou de disponibilidade - ou à vergonha e ao re-
ceio dos usuários em procurar ajudar por serem alvos de estigmas e preconceitos oriundos
de percepções sociais degradantes da sociedade em geral, mas também de profissionais
de diferentes áreas que abordam a temática (saúde, assistência social, entre outras). Há
impacto do estigma na abordagem aos usuários de forma aprofundada, mas sabe-se que
tal condição leva ao distanciamento dos mesmos aos serviços, agravando ainda mais suas
situações e gerando um ciclo vicioso1,13.
Na mesma direção, acrescenta-se nessa linha argumentativa um dos grandes desafios
com que se depara na linha de cuidado às pessoas, em especial em países em desenvol-
vimento e com grandes desigualdades sociais, que são as disparidades em saúde. Tem
sido preocupação entre organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde
(OMS), que algumas populações específicas apresentam acessos comprometidos de cuida-
dos em saúde, o que afeta sua qualidade de vida e suas atividades sociais de forma geral.
As disparidades em saúde estão diretamente relacionadas aos determinantes sociais e
apresentam forte recorte de classe social, raça e gênero14. Tem sido um grande desafio
melhorar o acesso, qualidade e cobertura de saúde para alguns grupos, em especial ne-
gros, mulheres e pobres, uma vez que a visão de saúde como mercadoria ganha força e
as políticas baseadas na universalização do direito à saúde encontram barreiras para sua
efetivação15.
Como se pode perceber, a intervenção junto aos usuários de substâncias requer um
olhar para além dos efeitos das drogas em si e dos sinais e sintomas individuais comuns
para se diagnosticar a síndrome de dependência. É preciso entender que, para uma inter-
248
venção integral, deve-se compreender a dinâmica e os sistemas complexos por trás dessa
temática. Por essa razão, o primeiro passo no presente capítulo foi contextualizar e definir
como é compreendido o consumo e como tal comportamento está associado a outros
aspectos contextuais. A partir dessa breve introdução pode-se apresentar uma discussão
sobre vulnerabilidade social e uso de drogas e discutir pressupostos para uma atuação
ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre atenção primária à
saúde (APS) do SUS e proteção básica do SUAS. Por fim, será apresentada a experiência dos
autores deste capítulo de como se planejar uma ação integrada entre serviços, baseado no
modelo psicossocial do uso de drogas.
249
(como apreciam alguns)? Uma matriz social, que procura compreender a vulnerabilidade
como resultado de um processo histórico, que expressa as contradições da sociedade vi-
gente e conforma sujeitos individuais e coletivos em condições de vulnerabilidade?
É preciso sinalizar que os autores deste breve manuscrito se aproximam da segunda
opção: compreendem a vulnerabilidade a partir de uma dimensão social. Isso não significa
romper ou negar as dimensões biológicas, tampouco as riquíssimas contribuições advindas
das ciências médicas para pensar sobre a intrincada relação do homem com a sociedade.
Trata-se de compreender que as práticas humanas (como o uso de drogas) não ocorrem em
um vazio histórico e social e que, portanto, sua análise deve buscar compreender a relação
que se constitui entre sujeito e realidade, considerando as determinações sociais que inci-
dem sobre ele e, portanto, sobre suas práticas. Nessa direção, ao buscar responder à ques-
tão “quem são os vulneráveis?”, pode-se arriscar que são todos e todas que se apresentam
em posições subalternas no âmbito da sociedade vigente. Aqueles que são classificados
(no plano objetivo e simbólico) como subcidadãos que perfilam no tecido social urbano e
rural do país18.
Especificamente ao tratar a respeito do uso e abuso de drogas, em meio ao debate
sobre vulnerabilidade, vale registrar as importantes contribuições que vêm sendo dadas
a partir do entendimento acerca dos processos de saúde-doença que têm passado por
intensas reformulações, em especial a partir das mudanças decorrentes da transição epi-
demiológica vivenciada ao longo das últimas décadas19. Atualmente, o uso e abuso de
drogas contribuem para a formatação de um novo perfil epidemiológico no Brasil e em
todo o mundo, no qual as doenças relacionadas a agentes etiológicos externos têm sido
progressivamente substituídas pelo aumento da prevalência de morbidades crônico-de-
generativas. Essa mudança tem sido a tônica dos debates sobre como formular políticas
públicas mais adequadas e resolutivas. Cumpre salientar que compreender o uso e abuso
de drogas exige amplos esforços para a conformação de novas modalidades de enfrenta-
mento e modelos alternativos de atenção à saúde, priorizando políticas de redução dos
quadros de vulnerabilidades e danos associados ao uso dessas substâncias, em detrimento
das abordagens de cunho reducionistas e discriminatórias20,21.
Dessa maneira, analisar o uso de drogas como uma prática manifesta por diferentes
sujeitos tem sido um desafio, haja vista as explicações muitas vezes reducionistas, regadas
a moralismos e preconcepções que não colaboram para uma reflexão ampliada acerca do
tema. A culpabilização do sujeito tem sido comumente observada a partir dos discursos e
práticas impetradas por instituições como a mídia, segmentos religiosos, aparato judicial
e políticos conservadores, assim como por tradicionais alas da Psiquiatria que preferem o
caminho da medicalização e individualização da questão em detrimento de uma análise
mais abrangente e compreensiva. Essas análises não têm conseguido avançar no cuidado
e, tampouco, no enfrentamento adequado da questão. Ao se privilegiar uma matriz indivi-
dualista (biologicista e psicologizante) da problemática das drogas, perde-se de horizonte
a referência da dinâmica social, bem como o aspecto das vulnerabilidades decorrentes dos
determinantes sociais anteriormente sinalizados.
As vulnerabilidades sociais dizem respeito às condições de existências das pessoas, em
suas variadas possibilidades e/ou impossibilidades de se desenvolverem com liberdade e
autonomia22. Acredita-se que essa delimitação é importante para tentar analisar como o
uso e abuso de substâncias psicoativas são potencializadores de quadros de vulnerabili-
dade socialmente constituídos (pobreza, miséria, opressões de raça, sexo e etnia). Assim, se
250
aceitar-se que o consumo de drogas é uma prática historicamente presente na cultura hu-
mana (conforme dito anteriormente), depreende-se que o uso e abuso (bem como os graus/
efeitos sentidos nos sujeitos usuários) estarão relacionados aos determinantes sociais que
expressam quadros de vulnerabilidade socioculturais e político-econômicos.
Por conseguinte, a relação que se estabelece entre o uso, abuso e tráfico de drogas e
vulnerabilidade é de contradição, uma vez que as vulnerabilidades (decorrentes dos deter-
minantes sociais acima mencionados) podem favorecer o uso e abuso, bem como potencia-
lizar os impactos e prejuízos na saúde e na constituição das identidades pessoais e sociais
dos usuários.
Dessa maneira, pressupõe-se que o uso de drogas não conforma quadros de vulnerabi-
lidades, uma vez que os processos de opressão já fazem parte da realidade social na qual
nos inscrevemos. Por outro lado, o uso abusivo de drogas pode contribuir para a constitui-
ção de quadros de marginalização mais agudos, não sendo ética a mera patologização, pu-
nição e encarceramento dos sujeitos usuários, tampouco a criminalização arbitrária, uma
vez que se corre o risco de obscurecer a realidade e legitimar padrões de desigualdades
históricos em nossa sociedade.
Ou seja, não se trata de estabelecer uma relação de causa e efeito entre “uso de dro-
gas” e “vulnerabilidades”, mas sim de favorecimento para que determinados sujeitos apre-
sentem maiores problemas (especialmente no âmbito médico e jurídico) em virtude de
recortes de classe, raça e sexo, e menos em função do uso das drogas. Em suma, pode-se
considerar que a relação que se estabelece entre tais categorias é de um ciclo de exclusão
já em processo, a partir do momento em que o enfrentamento (pelos sujeitos, gestores e
profissionais) das vulnerabilidades sociais será cada vez mais limitado em razão do uso
abusivo de substâncias psicoativas, bem como das intervenções sociais moralistas, limita-
das e condizentes com a manutenção do status quo.
A partir desse prisma, considera-se mais produtivo e abrangente entender que a vul-
nerabilidade é socialmente construída e que o uso abusivo e o tráfico de drogas podem se
configurar como elementos que potencializam os problemas já vivenciados por inúmeros
grupos sociais, localizados em posições sociais hierarquicamente subalternas com redu-
zido poder de ação. Indubitavelmente que se se partir desse princípio, os dispositivos de
atenção à saúde e assistência social se constituem como espaços extremamente impor-
tantes na construção de sociedades menos desiguais e, portanto, com menos propensão à
constituição de sujeitos em situações de sofrimento ético-político23.
A seguir será apresentado um panorama da política de atenção básica no âmbito da
saúde e assistência social, indicando suas contribuições na oferta de políticas sociais sinto-
nizadas com a garantia de padrões de cidadania em nosso país. Portanto, a discussão feita
até aqui serve para que se tenha em mente que nossas ações devem ultrapassar simples-
mente os procedimentos técnicos e protocolares, partindo para uma ação-visão crítica de
nosso cotidiano.
Atenção Básica nas Políticas de Saúde e Assistência Social no Brasil: breve delimitação
251
mários) do SUS e SUAS aparecem como elementos-chave para o estabelecimento de um
continuum de cuidado, com base em ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento.
Para entender esses níveis de atenção, será abordada a estruturação do SUAS e do
SUS, de modo que esses níveis, juntamente com os dispositivos que lhes conformam, se-
jam entendidos de forma abrangente. Ressalta-se que tanto a saúde quanto a assistência
social são direitos de todo cidadão e dever do Estado, previstas pela Constituição Federal
de 1988. Dessa forma, esses direitos são geridos por políticas públicas que, em conjunto
com leis e Normas Operacionais Básicas (NOBs), definem e regulamentam os processos,
mecanismos e instrumentos de sua descentralização e operacionalização25,26.
252
Cabe destacar que a proteção especial está organizada em dois níveis de complexi-
dade: média e alta. Em relação à média complexidade, é oferecido acompanhamento a
indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos. O Centro de
Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é o principal dispositivo na oferta
de serviços especializados para tais indivíduos e suas famílias. Entre os serviços ofertados
pelo CREAS, estão: programas de proteção e atendimento especializado a famílias e indi-
víduos, serviços especializados em abordagem social, entre outros, além do trabalho em
rede com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os CAPS voltados para usuários de
drogas (CAPSad). Além do CREAS, o Centro POP (Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua) exerce papel fundamental na proteção especial, visto que
tal equipamento atua junto à população adulta em situação de rua na realização de aten-
dimento socioassistencial e construção gradativa do processo de saída das ruas28.
Na alta complexidade é disponibilizado atendimento de forma integral a pessoas afas-
tadas do núcleo familiar e/ou comunitário, isto é, em situações de vulnerabilidade social
acentuada e/ou exclusão social. Para atingir esses objetivos é organizada a partir de quatro
tipos de serviços, sendo eles: serviço de acolhimento institucional, serviço de acolhimento
em república, serviço de acolhimento em família acolhedora e serviço de proteção em
situações de calamidades públicas e emergências28.
No âmbito da saúde, o SUS consolidou-se, no Brasil, no início dos anos 80, impulsiona-
do pelo movimento da Reforma Sanitária. À época, a maior parte da população não tinha
direito à saúde, uma vez que tal direito era privilégio dos trabalhadores que contribuíam
com o Instituto Nacional de Previdência Social, órgão até então responsável pela assistên-
cia em saúde26.
Nesse contexto, as críticas feitas ao modelo biomédico/curativo aliadas à necessidade
de redução de gastos abriram espaço para a emergência de um novo paradigma em saúde,
uma vez que a proposta até então vigente vinha apresentando altos custos ao Estado e
baixa resolutividade. Trata-se, portanto, de uma proposta de democratização do acesso à
saúde. Dessa forma, surge uma nova estratégia de organização do sistema de saúde, a qual
pretende responder melhor às demandas da população por meio de um modelo descen-
tralizado, integrado, contínuo e hierarquizado.
Nesse novo cenário, em consonância ao estabelecido na Declaração de Alma-Ata (1978)
e com a Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei Federal 8.080, surge o SUS,
baseado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde.
Sendo assim, o sujeito não deve ser abordado a partir de uma ótica fragmentada, pelo con-
trário, os serviços devem estar articulados de maneira a permitir um tratamento integral e
contínuo, com promoção de saúde, prevenção e diversas formas de tratamento29.
Nesses princípios, a construção do modelo de atenção à saúde tem se baseado nas
redes de atenção à saúde (RAS). Estas são entendidas como arranjos de ações, serviços de
saúde e profissionais, de diferentes modalidades e níveis de atenção, que integradas por
meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão buscam o cuidado integral30. Nes-
se modelo, a APS é o centro de comunicação entre os dispositivos da rede, sendo também
a principal porta de entrada do SUS e a responsável por regular o fluxo. Além disso, três
elementos são responsáveis pelas diretrizes das redes de atenção à saúde, sendo eles a
253
população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde30.
Especificamente sobre o cuidado a usuários de drogas, é necessário incorporar a rede
de atenção psicossocial (RAPS). Ela é formulada para ampliar e articular os pontos de
atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de álcool e outras drogas31. A RAPS divide-se em sete níveis de aten-
ção, sendo eles: atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, atenção de
urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, es-
tratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial31.
A atenção básica é formada por:
1. Unidades básicas de saúde (UBS) e equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF),
responsáveis pela organização da APS e por ações de promoção à saúde, prevenção de
agravos, diagnóstico, reabilitação e manutenção da saúde;
2. equipes de consultório na rua (CR), atuando de forma itinerante e ofertando ações de
cuidado em saúde às pessoas em situação de rua;
3. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com equipes interdisciplinares que
atuam de forma integrada com as equipes da ESF, ampliando as ações em saúde; e
4. centros de convivência, que são unidades que oferecem à população em geral espa-
ços de socialização e produção cultural31.
A partir desse panorama inicial sobre os níveis de atenção básica na saúde e na assis-
tência social, a seguir serão subsidiadas possíveis articulações entre os setores na aborda-
gem ao uso de álcool e outras drogas, considerando o cenário de vulnerabilidades sociais
no âmbito da sociedade vigente.
A partir dessa caracterização inicial sobre o SUS e SUAS, é cabível o seguinte questio-
namento: como realizar a abordagem ao uso de drogas e seus determinantes sociais na
atenção primária e proteção básica? De antemão, cabe ressaltar que não existem receitas
prontas e únicas, principalmente levando em consideração a complexidade e dinamicidade
do problema. Contudo, isso não significa que não se possam estabelecer alguns pressu-
postos gerais para as ações, utilizar ferramentas disponíveis de acordo com os contextos e
necessidades ou inspirar-se em boas práticas.
Dessa forma, um primeiro aspecto importante a ser considerado é que, apesar da im-
portância do trabalho articulado e intersetorial, entende-se que as redes de atenção aos
usuários de drogas não são somente meras “articulações” de serviços, sem que se reflita
sobre o que isso significaria. Tampouco é um amontoado de dispositivos. Apesar de funda-
mental, de que valem os serviços estarem articulados se a visão empregada à problemá-
tica, ou seja, o modelo de atenção, ainda é reducionista, voltada somente para os aspectos
biológicos ou psicológicos? É possível abordar de forma efetiva, mesmo com todos os
recursos e serviços à disposição, os determinantes sociais e a vulnerabilidade social, se
minha atuação não contempla os usuários e seus contextos de vida?
O que se pretende com esses questionamentos é refletir sobre o discurso retórico sobre
as redes que acabam gerando dois aspectos negativos:
1. A ideia de rede como panaceia, que resolverá todos os problemas; e
2. que as redes se explicam por si sós, não sendo necessário pensar sobre o que são,
254
suas características, obstáculos e potencialidades32,33. Ou seja, não importa quantos recur-
sos possui se você não sabe como usá-los ou se os emprega sem considerar os cenários e
atores envolvidos, eles nunca serão suficientes34.
Essas reflexões também valem para as próprias políticas sobre drogas, que devem ser
problematizadas e não tomadas como construções inquestionáveis. Por exemplo, onde
está a intersetorialidade, quando a RAPS desconsidera os dispositivos do SUAS? Ou onde
estão os direcionamentos específicos das políticas, para além do generalismo, referentes
a setores como o SUAS e seus dispositivos na abordagem ao problema?33 Ademais, as
reflexões são pertinentes também para o modelo de atenção psicossocial que, conforme
ressalta Traverso-Yépez35, apesar de ser muito falado, “observa-se que se continua privile-
giando a etiologia biologicista, a concepção fragmentada de saúde [...], esquecendo-se a
relevância dos aspectos sociais, psicológicos e ecológicos como mediadores dos processos
saúde-doença”. Todos esses fatores indicam que não é somente a inserção de mais setores
e diferentes categorias profissionais que trarão essa perspectiva ampliada. Deve-se refletir
constantemente sobre os modelos de atenção que, por sua vez, estão relacionados à visão
que se tem de homem e do processo saúde-doença35.
Nessa direção, os níveis de cuidados primários, como a APS no SUS e a proteção básica
no SUAS, possuem papel fundamental na abordagem às questões relacionadas ao uso de
drogas. Isso se deve não somente à capacidade resolutiva, mas principalmente por serem
dispositivos com inserção comunitária, em que, a partir do trabalho territorializado com
as equipes interdisciplinares, possuem a capacidade de prestar atenção contínua (promo-
ção, prevenção e tratamento) e centralizada na população36,37. Mesmo com uma série de
insuficiências (recursos, estrutura, etc.) auxiliando no aumento da demanda e sobrecarga
de trabalho, é possível pensar em formas de assistência ampliadas e integrais. Da mesma
forma que a rede, apesar de perpassada por isso, não se restringe aos serviços existentes,
o trabalho em rede deve ir além, embasado pelos seguintes questionamentos: o que tenho
em minha disposição para abordar o problema? O que é possível ser feito? Como mobili-
zar novos recursos? Como envolver os atores responsáveis? Como construir coletivamente
alternativas para os problemas enfrentados?
Um primeiro aspecto da resposta é o próprio usuário. Isso significa que ele deve ser
implicado no tratamento, não como um mero recebedor de ordens e/ou ações, mas como
um ator participativo, sendo, portanto, considerado o elemento central da rede. Ademais,
o saber teórico-técnico do profissional deve fundir-se com o saber popular e sobre a sua
própria vida dos usuários, numa abordagem participativa, afastando-se do modelo prescri-
tivo, centrado no profissional38. Parte-se do entendimento de que o usuário é sua própria
rede e possui capacidades e ferramentas dentro de si que podem ser potencializadas para
o enfrentamento da questão.
Consequentemente, deve-se pensar na necessidade de abarcar, de forma participativa,
a comunidade e seus recursos para maior abrangência e contextualidade do trabalho. Ora,
se se procura realizar ações que estejam de acordo com os âmbitos e pessoas que as con-
formam, deve-se considerar essas mesmas pessoas e cenários para ação. Afinal, quem sabe
mais sobre si e, por conseguinte, sobre seus cenários de vida, saúde, possibilidades, etc. se
não as próprias pessoas e comunidade? Adianta dispor de extensa gama de serviços se eu
não considero os usuários, suas redes sociais, os contextos nos quais vivem e se constituem
como pessoas, bem como a comunidade e recursos comunitários?
A última parte da resposta está relacionada à atuação dos próprios serviços. Ou seja, é
255
suficiente a existência dos serviços se eles próprios não atuam internamente de forma arti-
culada? Eu trabalho de forma integrada com o profissional que está sentado ao meu lado?
Ou a relação que ocorre é entre profissional e as partes do sujeito, independentemente
do sujeito dessas partes? Em suma, como é possível integrar diferentes níveis de atenção,
setores etc. se dentro dos próprios serviços não se trabalha em rede?
Acredita-se que, negligenciar essas reflexões e partir diretamente para as ações, está-
se desvirtuando a ordem do processo, pois as ações, técnicas e procedimentos devem ser
consequências dessas problematizações, e não o contrário. Tendo isso em mente, aden-
tram-se nos dispositivos das políticas e possibilidades na abordagem aos usuários de dro-
gas e seus determinantes sociais, considerando a vulnerabilidade social.
Em relação às UBS, equipes de ESF na atenção primária do SUS e os CRAS na proteção
básica do SUAS, trata-se de construir caminhos em conjunto, em vez da fragmentação dos
sujeitos em aspectos sociais e de saúde. Apesar das insuficiências estruturais e na for-
mação, os sujeitos de ação e o território, em grande parte, são os mesmos para ambos os
serviços. Assim, por mais que os enfoques possam ser diferentes, ambos dizem respeito ao
sujeito como um todo, devendo, então, buscar compreender a relação dessas pessoas com
seus quadros socioculturais e como a droga emerge como um desses elementos.
Trata-se, portanto, de romper com o modus operandi tradicional das políticas públicas
de polarização e criação de diferentes frentes. Isso significa ser capaz de abarcar a necessi-
dade de linhas-guia de cuidados que indiquem as possibilidades de tratamento e cuidado
compartilhado de acordo com características gerais dos usuários e serviços, em conjunto
com as particularidades e necessidades de cada caso, a partir de projetos terapêuticos
singulares. Assim, o fluxo de cuidado estabelecido entre serviços, níveis e setores não per-
manece somente no plano das subjetividades e/ou das particularidades, devendo ser sub-
sidiado por uma lógica organizacional. Entretanto, também deixa de ser mero receituário,
enquadrando as pessoas em modelos pré-datados e, possivelmente, descontextualizados.
O encaminhamento, nessa perspectiva, deve ser visto como uma operação (entre ou-
tras) que possibilita o cuidado compartilhado e não uma transferência de responsabilida-
des. Apenas encaminhar alguém para algum serviço não significa trabalhar em conjunto39.
Dessa forma, podem ser úteis o mapeamento dos serviços existentes no município e bair-
ros, a criação de mecanismos de comunicação e trocas contínuas, assim como a criação e
compartilhamento de instrumentos unificados. Além disso, algumas ferramentas acessíveis
e fáceis de utilizar como o ecomapa e o genograma podem ser integrados no cotidiano de
trabalho, ao possibilitarem visão ampliada sobre o problema, mapeando a vida do usuário,
identificando vulnerabilidades que podem ser minimizadas ou revertidas e aspectos po-
sitivos para dar suporte ao tratamento, como sua rede social (amigos, familiares, trabalho,
etc.)40,41.
Além desses dispositivos, destacam-se dois arranjos relativamente recentes: os CRs e
os NASFs. Quanto ao primeiro, sua inclusão na RAPS e ampliação do escopo de atuação
para além da saúde mental e transtornos relacionados ao uso de drogas indicam a necessi-
dade de ver as pessoas em situação de rua em sua totalidade, efetivando seus direitos não
só à saúde, mas à vida. Assim como observado por Londero, Ceccim e Bilibio42, os sujeitos
necessitam de cuidados ampliados, decorrentes da situação de rua, sendo o uso de drogas
uma das facetas desse cenário de vulnerabilidade social. Em concordância com Santana43,
para superar essas vulnerabilidades, é preciso potencializar a autonomia individual e cole-
256
tiva, o que é possível a partir de um trabalho integral e integrado entre profissionais, ser-
viços e setores. Dessa forma, apesar de constar na atenção básica da RAPS, esse dispositivo
pode ser utilizado como uma forma de aproximação entre SUS e SUAS.
Assim como o CR, o NASF, apesar de prestar suporte na APS às equipes de Estratégia
Saúde da Família (ESF), trata-se de um dispositivo composto por equipes interdisciplinares,
que poderiam potencializar e aprofundar a atuação de dispositivos como os CRAS. Essa
proposição diz respeito à necessidade de se ampliar o apoio matricial dos dispositivos
especializados (como o NASF, mas também o CAPS, o CAPSad, etc.) a todos os serviços
não especializados, incluindo os CRAS do SUAS, entre outros. Por mais que isso possa
esbarrar na formação profissional inadequada, insuficiência de serviços, alta demanda e
sobrecarga44, é possível pensar em ações que utilizem o que já existe, mas expandindo-as,
como: englobar profissionais e serviços do SUAS nas reuniões de supervisão com a APS, e
vice-versa; grupos de trabalho intersetoriais para planejamento e acompanhamento das
ações; discussão de casos clínicos que perpassam ambos os níveis e setores, etc. Afinal, se
está-se falando de intersetorialidade e integralidade, as práticas não devem ser discutidas
por todos os profissionais e serviços que as conformam?
Nesse sentido, é necessário adentrar na dinâmica de trabalho, problematizando o papel
das diferentes categorias profissionais. Tanto as UBS e equipes de ESF na atenção primária
quanto os CRAS na proteção básica devem atuar de forma prioritária na promoção de saú-
de e prevenção, indo para além da droga e do uso, prevenindo também outras condições de
saúde, situações de vulnerabilidade e risco social, desenvolvendo potencialidades indivi-
duais e fortalecendo vínculos familiares e comunitários31,37. Para isso, devem-se considerar
as potencialidades de todos os profissionais que compõem as equipes interdisciplinares,
em vez de estabelecer uma hierarquização das ações, com o planejamento concentrado
nos profissionais de nível superior e as decisões sobre a concepção do trabalho não sendo
partilhadas por todos, o que compromete a construção de projetos comuns45. Assim, agen-
tes comunitários de saúde (ACS) e os profissionais de nível técnico dos CRAS aparecem
como atores-chave para o cuidado territorializado, centralizando a atenção na comunida-
de, a partir de seu conhecimento local ampliado, não devendo estar relegados somente
a orientações gerais aos usuários e familiares e à realização de serviços administrativos
(encaminhamento dos usuários aos serviços, agendamento de consultas e exames, etc.)46.
A oferta dos serviços de atenção primária e proteção básica deve integrar-se aos de-
mais níveis, serviços, programas e projetos (sejam eles dos SUS, SUAS, educação e também
da comunidade), tendo como norte a atenção territorializada. Apesar da ênfase dada no
presente capítulo aos serviços de cuidados primários, é necessário pensar na articulação
com os demais níveis e seus respectivos serviços, tendo em mente que a ideia de redes
de atenção pressupõe uma organização horizontal não hierarquizada, visando minimizar a
fragmentação entre esses níveis de cuidado30. Na seção seguinte apresenta-se um pouco
da experiência do Centro Regional de Referência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF), que
vem desenvolvendo uma metodologia de trabalho direcionada pela abordagem colabora-
tiva e contextualizada à realidade do município.
257
Possibilidades para o trabalho integrado: a experiência do Centro Regional de Referência
Sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF)
O CRR-JF busca em sua metodologia de trabalho priorizar uma atenção integral dos
usuários de drogas levando em consideração as vulnerabilidades sociais e as possibilida-
des para uma atuação ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre
atenção primária à saúde do SUS e proteção básica do SUAS. Para isso, desde sua implan-
tação, que ocorreu no ano de 2011, a equipe vem intensificando o diálogo entre a univer-
sidade, gestores locais e profissionais para diagnóstico das necessidades de formação e
planejamento das capacitações, viabilizando a interlocução com recursos importantes da
rede de assistência, tais como o Conselho Municipal de Políticas Integradas Sobre Drogas
(COMPID), com o plano municipal integrado sobre crack, álcool e outras drogas (JF + Vida)
e também com o Comitê Intergestor do Programa “Crack, é possível vencer”.
A partir do diálogo inicial estabelecido com a gestão municipal, foram definidas duas
regiões prioritárias para abrangência inicial do CRR-JF no ano de 2015. As regiões foram
escolhidas considerando-se os seguintes aspectos:
258
adequada de novos arranjos organizacionais, tal como dos CRs e NASFs, exigem a incorpo-
ração de uma nova forma de organização do trabalho em saúde que muitas vezes não é vi-
venciada pelos profissionais envolvidos nos diferentes dispositivos da rede de assistência.
As novas estratégias de gestão e estruturas organizacionais já vêm sendo há algum
tempo discutidas com um novo olhar para as concepções de saúde. Essas reflexões foram
incorporadas nas discussões referentes à estratégia da clínica ampliada e exemplifica-
da por meio dos projetos terapêuticos em saúde mental. Os projetos terapêuticos foram
pensados de tal forma que fossem planejados a partir da atuação integrada das equipes
de saúde e com a finalidade de se considerar outros aspectos, além da medicação e diag-
nóstico no cuidado. Nesse sentido, destaca-se a pactuação e construção de diálogo como
aspecto primordial para a elaboração coletiva de propostas adequadas às necessidades
dos contextos e pessoas. Além disso, o vínculo dos membros da equipe com os usuários,
família e comunidade passa a ser fundamental47.
A discussão da reestruturação do trabalho e dos modelos para atenção ampliada aos
usuários de drogas segue as exigências citadas anteriormente, com o desafio de envolver
não só a rede SUS, como também o SUAS, no plano terapêutico. No entanto, mesmo não
sendo recentes as discussões sobre a reorganização do trabalho, ainda persistem os limites
do trabalho coletivo vivenciado nos níveis microrganizacionais. Isso chama a atenção para
a necessidade de os serviços trabalharem a articulação interna e também com os recursos
disponíveis no próprio território, e não apenas restringir as discussões à insuficiência de
dispositivos. Nesse sentido, o CRR-JF vem adequando sua metodologia de trabalho para
uma atuação cada vez mais próxima dos serviços e territórios, utilizando ferramentas para
mediar esse diálogo e ampliar a compreensão do que se constitui como rede de assistência
para os usuários de drogas.
Conclusões
Este capítulo teve como propósito refletir sobre o modelo psicossocial no entendimen-
to e abordagem às questões relacionadas ao uso de drogas, compreendendo os determi-
nantes sociais - entre eles a vulnerabilidade - como construções sociais, sendo o uso abusi-
vo de drogas um dos elementos que se inserem nessa conjuntura vivenciada por inúmeras
pessoas e grupos. Dessa forma, perpassa-se pela estruturação dos níveis de atenção básica
na saúde e assistência social como arranjos possíveis para a articulação de ações abran-
gentes sobre a temática, conforme exemplificado pela experiência do CRR-JF.
Destaca-se a necessidade de se considerar os usuários e seus contextos de vida como
eixos centrais no cuidado integral e para a construção das redes de atenção intersetoriais
aos usuários de drogas, ultrapassando o entendimento restrito às “articulações” de serviços
ou referenciamento de pacientes. Portanto, espera-se que a discussão apresentada neste
texto contribua para que se tenha em mente que nossas visões e ações devem ultrapassar
lógicas reducionistas ou focadas meramente na implementação de procedimentos téc-
nicos e protocolares, partindo para ações que envolvam o reconhecimento dos aspectos
contextuais, como os determinantes sociais, de cada território ou usuário.
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Sessão 3:
Abordagem da vulnerabilidade
e do uso de drogas
264
17
A vulnerabilidade dos agentes de segurança
pública
Wellington Eustáquio Ribeiro
265
266
Introdução
a
O programa “Crack, é possível vencer” é um plano do governo federal com vistas à atuação integrada entre a União,
os Estados e o Distrito Federal em ações de enfrentamento ao crack e outras drogas, nos termos do Art. 5º-A do
Decreto 7.179, de 20 de maio de 2010.
267
Essa característica diferenciada de policiamento e da atuação dos agentes de segu-
rança pública traz novos paradigmas no que diz respeito ao papel dos agentes e da rela-
ção que estes profissionais estabelecem com a população assistida pelas suas ações. Há
tentativa de aproximar saúde e segurança. O agente de segurança não terá o usuário de
drogas como o inimigo a ser combatido, mas como um sujeito de interações cotidianas, o
que, inevitavelmente, desconstrói a distância entre o mundo do enfrentamento e o mundo
do consumo.
O objetivo que norteia a presente discussão é compreender os fatores que fazem com
que os agentes de segurança pública apresentem altas taxas de letalidade em suas ações
e a relação dessas ações com a chamada guerra às drogas, bem como a associação com as
taxas de letalidade relacionadas ao consumo de drogas.
Buscam-se encontrar nessa trajetória alguns pontos de confluência e divergência que
colocam os agentes de segurança pública em um lugar de conflito entre a sua prática
profissional e as suas relações sociais. As representações sociais sobre as drogas, sobre os
usuários de drogas e sobre os agentes de segurança pública usuários de drogas são muito
variáveis e, assim, a abordagem e o tratamento a ser dado à questão da drogadição envol-
vendo agentes de segurança pública precisa ser observado com especial atenção.
Quando se utiliza o termo “agentes de segurança pública”, está-se referindo aos pro-
fissionais pertencentes aos quadros dos órgãos responsáveis pela segurança pública des-
critos no Artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, que são as polícias
federais: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal; as polícias
estaduais: Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; e, ainda, os
agentes municipais, que são as Guardas Civis Municipais1.
Os cenários de atuação das forças de segurança pública e o papel de seus agentes so-
freram alterações significativas ao longo da história e continuam em constante mudança.
Os critérios para o uso moderado da força fazem parte de discussões recorrentes nas ins-
tituições de segurança, mas essa não é uma temática recente e, por esse motivo, será feito
breve percurso histórico para contextualizar o quadro de risco e a vinculação deste com a
vulnerabilidade dos agentes de segurança pública.
No período compreendido entre a Primeira e a Segunda Grande Guerra Mundial, a Liga
das Naçõesb organizou uma troca de correspondências entre intelectuais da época para a
reflexão dos mais variados assuntos, sendo que em 1931 o físico Albert Einstein é convi-
dado a se corresponder e sugere o nome de Sigmund Freud para ser o seu interlocutor. O
tema escolhido por Einstein dá título à sua carta e se torna um texto muito interessante na
obra de Freud. A pergunta de Einstein é “Why war? (Por que a guerra?)”. Um fragmento da
resposta de Freud2 é significativo para nossa reflexão:
“A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual
já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o
mesmo: - uma ou outra facção tinha que ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas
objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força.
b
Instalada em janeiro de 1919, pelo Tratado de Versalhes, o mesmo que colocava termo à Primeira Guerra, sua sede
era Genebra, cidade suíça. A Liga das Nações era organizada de uma maneira bem semelhante à da atual ONU, sendo
composta de um Secretariado, Assembleia Geral, e um Conselho Executivo (semelhante ao Conselho de Segurança
atual da ONU). Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/liga-das-nacoes/ acesso em 02/06/2015.
268
Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para
sempre o adversário, ou seja, se o matasse”. c
A introdução desse discurso de Freud deve ser contextualizada ao se considerar que
os combatentes de guerra são as Forças Armadas, são os exércitos os encaminhados para
o campo de batalha e com objetivos claros e bem-definidos: avançar no terreno, tomar
posições estratégicas, eliminar o inimigo. Entretanto, os agentes de segurança pública têm
se envolvido cada vez mais em guerras urbanas, que são travadas em terreno hostil, onde
há população civil, onde os inimigos não são bem-definidos, o alvo não é claro e, portanto,
os riscos são muito altos. Há risco de identificação do combatente com o inimigo, pois o
campo de batalha é o mesmo lugar das relações cotidianas dos agentes de segurança, é
onde este vive e onde estão a sua família e amigos.
A chamada Guerra às Drogas expõe a face mais cruel de uma batalha urbana. Não se
luta contra drogas, pois são apenas objetos, matéria inerte, o alvo droga é personificado
na figura do usuário e/ou do traficante. Esse usuário (ou traficante) normalmente não é
o produtor da droga, também não é o grande distribuidor, o senso comum atribui a ele
características gerais, tais como classe social (baixa), cor da pele (negra), idade (jovem) e
endereço (favela). É este o grande inimigo, é contra esse sujeito que a guerra é deflagrada,
este é o alvo. Entretanto, essas características atribuídas ao inimigo da guerra urbana são
majoritárias na população brasileira, inclusive, pertencem à maioria dos nossos agentes de
segurança pública.
Um primeiro ponto para reflexão é que se está lutando contra os pares, que a luta é
violenta, inglória e que, paradoxalmente, não se consegue identificar vencedores, apenas
os vencidos. Cotidianamente, contabilizam-se os mortos e feridos, que a mídia insiste em
afirmar serem vítimas das drogas, mas será mesmo a droga o grande matador? Os sujeitos
são vítimas de uma violência estrutural ou de uma violência midiática que reforça a neces-
sidade de consumo? Os sujeitos precisam corresponder a um imperativo moral dominante
e este se encontra corrompido na sociedade contemporânea3. O imperativo que se apre-
senta para que os sujeitos se constituam socialmente é o do consumo.
A Guerra às Drogas declarada pelo Presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971,
de modo explícito, propunha altos investimentos financeiros e militares para o combate
ao tráfico e aos grandes cartéis, porém, implicitamente, o que se vê é a estigmatização de
grupos étnicos e de repressão a movimentos contraculturais surgidos na década de 1960
nos Estados Unidos da América4 . Porém, a virulência dessa guerra é aterradora, atravessou
fronteiras e se tornou discurso prevalente em quase todo o mundo. Era uma guerra que
combatia os questionamentos contra o consumo bélico.
Em outro texto, este de 1915, Freud5 chama a atenção para a intolerância às diferenças
e sobre o que sustenta um estado belicoso entre as nações (ou entre uma nação e seus
cidadãos).
“Já se disse, a nós mesmos, sem dúvida, que as guerras jamais podem cessar enquanto as
nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual
for tão diversamente apreciado entre elas e enquanto as animosidades que as dividem repre-
sentarem forças motrizes tão poderosas na mente” .d
c
FREUD, Sigmund, Por que a guerra? (1933[1932]), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição stan-
dard brasileira, volume XXII p. 191-210 – Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
d
FREUD, Sigmund, Reflexões para tempos de guerra e morte. (1915), Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: edição standard brasileira, volume XIV p. 285-310 – Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
269
Mesmo que existam nações que possuam em sua constituição populacional uma pre-
ponderância quase absoluta de determinada etnia, não serão encontradas as “raças puras”,
talvez apenas entre algumas tribos primitivas que não tiveram contato com outras civi-
lizações. Mas estas são cada vez mais raras e, assim como são diversas as civilizações, os
valores da vida de seus indivíduos também têm apreciações diversas, como sustenta Freud.
São esses valores distintos que promovem a violência entre grupos e tornam uns ou outros
alvos vulneráveis de guerras que objetivam destruir ideologias e culturas e não um ini-
migo comum, como as drogas, por exemplo. As condições diferentes a que Freud se refere
são comumente encontradas nas grandes cidades brasileiras e essas condições compõem
o quadro principal da presente investigação.
Estamos em estado de guerra, ou melhor, o Brasil vive uma guerra civil não declarada.
A história brasileira nega a presença de guerras civis em função de uma postura ufanista
que prega a ordem e o progresso presentes apenas no lema da nossa bandeira. A Balaia-
da, a Sabinada e Canudos são exemplos de guerras civis que foram conceituadas como
movimentos revolucionários, apesar da morte de centenas de civis. Todas essas guerras
tinham caráter de resistência a culturas impositivas e buscavam o reconhecimento de uma
organização social e de um modo de vida próprio de um povo. Se essa organização social
não se enquadra nas normas vigentes, ela é exterminada. É uma imposição necessária para
que a lógica de consumo prevaleça.
Waiselfisz6 destaca no mapa da violência de 2015 que o Brasil encontra-se no 11º lugar
no ranking das mortes por armas de fogo, organizado pela ONU entre 90 países. Apesar
do mapa se pautar pela proporcionalidade e pelo número de pessoas mortas por 100 mil
habitantes, o que chama a atenção é que em nenhum dos outros 89 países a quantidade de
pessoas mortas se aproxima dos números do Brasil. Diante desse quadro de alta letalidade
e considerando que essa mortalidade está diretamente ligada à violência urbana, tendo-
se que os agentes de segurança pública estão diretamente envolvidos com essas mortes,
sendo vítimas e autores, é inegável que esses agentes encontram-se em situação de extre-
ma vulnerabilidade. Assumir a gravidade do momento histórico em que nos encontramos
possibilita um planejamento mais elaborado das ações de segurança.
Drogas e sociedade
270
drogas estão circunscritas a determinado local ou a um nicho populacional. O estigma se
encarrega de consolidar essa percepção e de difundir socialmente a tríade violência-dro-
gas-pobreza. A própria política nacional sobre drogas8 afirma que a pauperização do país,
que atinge em maior número pessoas, famílias ou jovens de comunidades já empobrecidas,
apresenta o tráfico como possibilidade de geração de renda e medida de proteção. É uma
renda que propicia a entrada no ciclo do consumo.
Esses apontamentos são muito coincidentes com as reflexões de Freud9 sobre a guerra
e as desilusões que o afligiam, especialmente quando o autor destaca a baixa moralidade
dos estados e “a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da
mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento”5. A violência
e a resposta dada às condições de enfrentamento a que estão submetidos os agentes de
segurança pública podem proporcionar reações brutais e inesperadas, em situações de
grande tensão.
“A vida, tal como a encontramos, é árdua demais; proporciona muitos sofrimentos, decepções
e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não se pode dispensar as medidas paliativas. “Não
podemos passar sem construções auxiliares” - diz Theodor Fontane. Existem talvez três medidas
desse tipo: derivativos poderosos, que fazem extrair luz da desgraça; satisfações substitutivas,
que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é
indispensável”9
Então, parece que uma inferência bastante plausível como uma das justificativas para
o consumo de drogas seja a busca pelo prazer, ou mesmo a diminuição do sofrimento.
Entretanto, o que interessa em especial é o que torna alguns sujeitos, principalmente os
agentes de segurança pública, mais vulneráveis ao consumo e à dependência das drogas.
A política nacional sobre drogas destaca que o consumo de drogas não atinge de ma-
neira uniforme toda a população e sua distribuição é distinta nas diferentes regiões do
país, apresentando, inclusive, diferenças significativas em uma mesma região, tanto nos
aspectos sociais quanto nas vias de utilização e na escolha do produto8.
Existem inúmeras vertentes que indicam o uso de drogas lícitas ou ilícitas como re-
sultante de problemas de autoestima, autoconfiança, falta de habilidades para enfrentar
situações adversas, ansiedade, fragilidade emocional e sofrimento psíquico10. Mas há uma
característica específica que vincula o uso de drogas aos agentes de segurança pública? É
importante salientar que o uso de armas de fogo no exercício de suas funções é um dos
271
fatores que chamam a atenção sobre esses profissionais e a sua vulnerabilidade no que
concerne ao uso de drogas.
Agentes de segurança pública estão expostos cotidianamente a situações de violên-
cia estrutural, que oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às
estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos,
culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos
quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao
sofrimento e à morte. Esse contato permanente com a violência e com situações de risco
produz um quadro de vulnerabilidade e sofrimento naqueles profissionais e a resposta se
dá na replicação da violência contra grupos também vulneráveis ou numa das medidas
paliativas descritas por Freud para reduzir o desconforto, o sofrimento e o consumo de
substâncias tóxicas9.
O que se observa é que a presença cada vez mais intensa de drogas nas estruturas
sociais contemporâneas tem fomentado novas discussões sobre os padrões de consumo e
dos usuários. Um ponto relevante e que tem chamado a atenção é o consumo de drogas
no ambiente de trabalho. Alguns países vêm adotando medidas de controle sobre o uso de
drogas nos ambientes de trabalho. Costa pesquisou sobre o uso de drogas em 12 unidades
da Polícia Militar do Estado de Goiás11. Esse estudo destacou de modo pormenorizado
quais as substâncias psicoativas mais usadas pelos militares e traz ainda a confirmação de
que o uso de substâncias psicoativas não seleciona o consumidor.
Estudo realizado por Souza12 junto ao Centro de Perícias Médicas Militares (CPMM)
constatou que entre os anos de 2001 e 2008 cerca de 1% do efetivo da Polícia Militar
do Estado da Bahia foi afastado em caráter definitivo em razão de transtornos mentais e
comportamentais. Esses militares tinham entre 35 e 45 anos de idade, portanto, encontra-
vam-se em idade produtiva para o exercício de suas funções. Souza12 ainda destaca que
em 2007, entre os meses de janeiro e outubro, a unidade de assistência psicológica da
Polícia Militar da Bahia registrou 45 internações em estado grave de policiais militares
em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O autor atribui
esse cenário a uma vulnerabilidade psicoestrutural para o uso de substâncias psicoativas,
causada pelo enfrentamento da violência nas ruas, em suas casas, baixos salários e, ainda,
pela violência institucional praticada nos quartéis 12.
Segundo Souza12, em 1999 31 policiais militares do estado de São Paulo foram a óbito
em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas, o que denota não ser uma rea-
lidade exclusiva da Polícia Militar da Bahia. Estudo realizado por De Souza et al. 10 revela a
necessidade de elaboração de políticas públicas voltadas para o cuidado em saúde e com
as condições de trabalho da Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Este estudo corrobora a afirmativa de Souza (2009) de que o uso de substâncias psicoati-
vas por agentes de segurança não é exclusividade de um ou outro estado12.
Os atos de mediação de conflitos e todas as demais ações do exercício profissional dos
policiais são particularmente cercados de um estado de tensão, pois lidam com as mais
obscuras facetas dos seres humanos, o que exige desses profissionais um esforço físico e
mental extremo12. Os níveis de estresse e de frustração são, normalmente, elevados e isso
faz com que se busquem saídas para o alívio dessas tensões, o que deixa os agentes de
segurança extremamente vulneráveis ao consumo de drogas, principalmente às drogas
lícitas. O uso regular de álcool não é tão estigmatizante como o uso de drogas ilícitas, o
que dá a sensação de aceitação social. De Souza et al. 10 destacam que cerca de 50% dos
272
policiais que participaram de sua pesquisa faziam uso regular de álcool (uso diário ou pelo
menos uma vez por semana), a maioria do sexo masculino, com idade entre 36 e 45 anos,
casados, com filhos.
Outro dado que parece relevante é que os policiais lotados em unidade operacional,
ou seja, que vivenciam cotidianamente a guerra urbana, são os maiores consumidores de
drogas. Um ponto também relevante é que quase 60% desses profissionais exercem outra
atividade remunerada fora de suas corporações. Além de confrontar com os regimentos in-
ternos das instituições que proíbem esse tipo de prestação de serviço, isso é um indicativo
da carga de trabalho estressante e de como o lazer e o repouso são negligenciados. Uma
consideração importante é que aproximadamente 80% dos policiais que fazem uso pesado
de álcool se consideram expostos a riscos constantes 10.
Riscos e implicações
273
Diante do cenário atual sobre o consumo de drogas e da sua estreita relação com as
condições de trabalho dos agentes de segurança pública, é necessário pensar a implemen-
tação de políticas de saúde específicas para esse público. É importante que se leve em
consideração as condições de trabalho a que esses profissionais são submetidos. Essas po-
líticas não dependem somente de decisão política, mas também, e principalmente, de ar-
ranjos organizacionais constituídos de recursos humanos, recursos materiais e financeiros.
Conclusão
274
Referências
275
276
18
Práticas em prevenção
Juliana Joni Parada
Antônio Augusto Bastos Alvim
277
278
Introdução
Uma vez que o abuso de drogas tem se iniciado cada vez mais precocemente, com pico
na adolescência3, o grupo considerado mais importante para prevenção é formado por
adolescentes e adultos jovens.
É difícil prever quais adolescentes, entre os que experimentam drogas, se tornarão
dependentes, mas é certo que os futuros dependentes estão inevitavelmente entre eles.
Até certo ponto, a experimentação de drogas na adolescência pode ser considerada natu-
ral, assim como é natural que o adolescente busque novas sensações e experiências em
inúmeras esferas da vida, como, por exemplo, na sexualidade. De fato, a maior parte dos
adolescentes que tem contato com SPAs irá permanecer apenas na fase experimental e
abandonará esse comportamento, a depender de suas vulnerabilidades. Estas são observa-
a
Os unitermos “drogas”, “substâncias” e “substâncias psicoativas” (SPAs) serão usados neste capítulo como sinônimos
e referem-se a todas as drogas, lícitas e ilícitas.
279
das nas esferas individual, biológica, psicológica, familiar, escolar e social e se inter-rela-
cionam de forma bastante complexa e multidirecional.
No âmbito individual, a hereditariedade é um fator bastante relevante, que confere um
risco biológico/genético para o desenvolvimento de dependência química (DQ). A preva-
lência de dependência entre familiares de dependentes pode ser até quatro vezes maior
do que na população geral, inclusive em estudos de adoção4. Do ponto de vista biológico,
idade precoce de início do uso, mais tolerância aos efeitos da substância e doenças psiqui-
átricas concomitantes acarretam mais riscos.
Algumas características de personalidade podem predispor o jovem ao abuso de SPAs,
sendo algumas delas:
• timidez excessiva;
• baixa autoestima;
• baixo limiar a frustrações;
• baixo nível de resiliência;
• pouca responsabilidade e autonomia;
• agressividade e busca por sensações novas.
No âmbito familiar, riscos mais altos são observados quando há uso de drogas e per-
missividade pelos pais, falta de supervisão, falta de clareza com regras e tolerância a infra-
ções. Ambientes familiares com conflitos conjugais, violência doméstica, falta de expressão
de afeto e padrão de comunicação negativo podem igualmente contribuir para o risco.
A escola tem papel crucial no risco ou proteção em relação às substâncias, sendo reco-
mendadas regras bem-estabelecidas e fiscalização do uso, envolvimento entre professores
e alunos e estímulo ao desenvolvimento das potencialidades do estudante. Baixo rendi-
mento, defasagem e evasão escolar trazem riscos maiores do uso de SPAs.
O padrão de uso (ou não uso) de drogas pelos amigos é uma fonte de importante in-
fluência, tanto pelas pressões sociais que estes exercem sobre o adolescente, quanto pela
necessidade deste de se sentir parte integrante de um grupo com o qual se identifica.
Fatores sociais determinantes incluem leis e políticas públicas sobre drogas. A ampla
tolerância social com as drogas lícitas, facilidade de acesso à aquisição e ao uso de subs-
tâncias, falta de fiscalização e baixa percepção de risco (por exemplo, a crença de que a
maconha é uma droga inofensiva) colocam o jovem em posição de mais vulnerabilidade.
Outros fatores sociais, tais como criminalidade na vizinhança, empregabilidade, acesso a
opções de lazer, acesso e qualidade dos serviços de saúde também exercem influência.
O uso de drogas em idade precoce está relacionado a uma série de consequências
negativas que serão determinantes para os desfechos da vida adulta e que podem retroa-
limentar a manutenção do consumo:
280
• perda de produtividade;
• envolvimento com criminalidade5.
No mais, a neurotoxicidade das drogas pode limitar o desenvolvimento cerebral e as
potencialidades do indivíduo. No âmbito acadêmico, o uso de SPAs traz dificuldades de
aprendizagem, queda no desempenho e evasão escolar. Estudo realizado com 2.410 estu-
dantes no Rio Grande do Sul demonstrou associação entre o uso de drogas e maior número
de faltas e reprovações escolares6. Inalantes, comumente usados por crianças em situação
de rua7, são altamente neurotóxicos e com consequências devastadoras. Outro exemplo é
o da maconha. Grande estudo prospectivo neozelandês identificou claramente a associa-
ção entre o consumo precoce de maconha e uma série de desfechos negativos em termos
acadêmicos e profissionais aos 25 anos: índices até quatro vezes menores de conclusão do
nível superior, taxas até três vezes maiores de desemprego, recebimento de benefícios de
auxílio-doença até cinco vezes maior, baixa renda pessoal e menos satisfação com a vida8.
De forma geral, pode-se constatar que as mudanças de valores sociais e culturais (va-
lorização do lucro crescente e incessante, busca do alívio imediato de situações despra-
zerosas e do prazer rápido e intenso a qualquer custo, competitividade, individualismo,
fragilidade dos arcabouços religiosos e morais, em conjunto à apologia da mídia e à tole-
rância social ao uso de drogas lícitas) também contribuem para o uso de SPAs. Ou seja: ao
mesmo tempo em que a sociedade combate e repudia as drogas, também incentiva, ainda
que involuntariamente, o adolescente a procurar saídas imediatas que são facilmente ne-
las encontradas9. Se o uso de drogas não pode ser de todo evitado, medidas de proteção
às crianças e adolescentes necessitam urgentemente ser tomadas na esfera preventiva.
281
tantemente se faz necessária a redução da demanda populacional e individual pelo uso
dessas substâncias.
Ressalta-se que medidas eficazes de prevenção devem estar inseridas em um sistema
de saúde que responda de maneira contundente ao tratamento das dependências quími-
cas, à prevenção e ao tratamento das complicações clínicas (HIV, overdoses, abstinências,
doenças clínicas secundárias) e à prevenção das consequências sociais e outros comporta-
mentos de risco associados (acidentes, violência, abuso sexual, gravidez indesejada, DSTs,
por exemplo)12.
Ainda, um sistema de prevenção eficaz requer um conjunto integrado de políticas e
ações múltiplas baseadas em evidências científicas, com avaliações diagnósticas e situa-
cionais dos resultados e da qualidade das estratégias implementadas para tal fim. Deve
abranger diferentes contextos, focando faixas etárias, níveis de risco e vulnerabilidades,
com recursos financeiros e técnicos adequados e com manutenção a longo prazo.
Definições e conceitos
Prevenção primária
Consiste em evitar que uma doença se instale, dirige-se a um público que ainda não
foi afetado pela doença. No caso dos TUS, envolve evitar que o uso de drogas se inicie.
São exemplos: reduzir a disponibilidade de drogas, concomitantemente a estratégias de
promoção de saúde e intervenções em populações de risco e vulneráveis.
Prevenção secundária
Prevenção terciária
282
Intervenção Universal
Intervenção Seletiva
São ações voltadas para grupos sociais com fatores de risco já identificados.
Intervenção Indicada
283
estatutário reclama igual atenção. A restrição à entrada e venda de insumos específicos
relacionados à produção de drogas sintéticas, assim como a identificação e dissolução
de laboratórios clandestinos, representa resposta inteligente e eficaz no controle desse
mercado.
Na prevenção secundária e terciária, as medidas ganham mais impacto individual, tam-
bém requerendo mais esforço individual do cidadão. O custo-efetividade diminui, embora
a visibilidade de resultados isolados seja maior. Tais medidas também devem fazer parte
da decisão ética e responsável em relação à sociedade. Entretanto, seu maior impacto só
se faz presente quando o manejo do uso problemático das SPAs encontra-se intimamente
conectado com as medidas de base populacional. Os vários setores da sociedade precisam
agir conjuntamente. Esse é o caso de sistemas bem-sucedidos em que, por exemplo, ser-
viços de saúde e o Judiciário colaboram entre si no manejo da delinquência relacionada à
drogadição (Figura 15).
Prevenção
Secundária
Prevenção
Primária
Controle da Entrada
e Oferta de Substâncias
Intervenções na gestação
284
Primeira infância ou idade pré-escolar
Infância
285
plina de maneira positiva e adequada e servirem de modelo para os filhos. Monitorar suas
atividades, acompanhar de perto o tempo livre e supervisionar os padrões de amizades
são atitudes que ajudam a criança a adquirir condições para tomar decisões informadas.
Esses princípios têm demonstrado ser os fatores de proteção mais fortes contra o abuso
de drogas e outros comportamentos de risco e se aplicam também a faixas etárias mais
avançadas22.
Programas universais com trabalho focado nas famílias parecem ser os mais efica-
zes, proporcionando reduções no abuso de substâncias a longo prazo. Favorecem também
melhor funcionamento familiar e ajustamento emocional e comportamental das crianças.
Embora alguns estudos não tenham demonstrado resultados significativos, de maneira
geral há evidências de custo-eficácia e já foram implementados em diversos países20,23-28.
As características que parecem estar associadas a resultados positivos incluem inter-
venções realizadas em grupos de sessões, com organização que facilite a adesão dos pais
(horários não comerciais), por profissionais treinados e com a participação ativa e envolvi-
mento de toda a família nas atividades. Por outro lado, é importante ressaltar que algumas
características não se associam a resultado algum e podem ser até mesmo negativas: utili-
zar como método apenas palestras, pessoal responsável malcapacitado, atividades focadas
apenas na criança, subestimar a autoridade dos pais e fornecer informações sobre drogas
para que os pais possam conversar com os filhos.
Pré-adolescência
286
(incluindo desfazer expectativas equivocadas sobre uso e ampliar a percepção dos riscos e
consequências imediatas do consumo).
Métodos de certa forma “populares” no nosso país não têm apresentado resultados ou
podem até ser prejudiciais: estes incluem palestras, fornecimento de informações por poli-
ciais ou ex-usuários e entrega de informações sobre drogas que despertem medo. Sessões
não estruturadas de diálogos, programas pautados apenas na construção de autoestima
e educação emocional ou aqueles que abordam tomada de decisões baseada apenas em
valores éticos ou morais também não têm apresentado resultados22.
Adolescência
À medida que a idade avança, as medidas preventivas devem ganhar novos ambientes,
como, por exemplo, trabalho, lazer e comunidade. As intervenções descritas nas seções
anteriores também são válidas para os adolescentes e não serão aqui repetidas.
Intervenções breves
287
Programas de prevenção em diferentes ambientes
Escolas
Trabalho
Locais de entretenimento
São locais de alto risco para comportamentos prejudiciais, como uso abusivo de álcool
e drogas, agressões e condução de veículos após intoxicação. Intervenções favoráveis in-
cluem treinamento de gerentes e funcionários sobre a responsabilidade de vender ou ser-
vir bebidas alcoólicas a menores de idade ou clientes embriagados, gestão desses clientes,
288
mudanças de leis e políticas sobre venda ou em relação a beber e dirigir, entre outros55,56.
Mídia
As campanhas de sensibilização por meio da mídia muitas vezes são a primeira ou úni-
ca intervenção governamental, por serem visíveis e atingirem facilmente elevado número
de pessoas. Estas podem reduzir a iniciação do tabaco, em conjunto com outros compo-
nentes preventivos. Entretanto, análises não encontraram resultados significativos para o
álcool ou outras drogas.
A ineficácia de táticas meramente educativas ou amedrontadoras representa um de-
safio para as abordagens via mídia2. Campanhas mal-elaboradas devem ser evitadas, pois
podem até mesmo piorar a situação, despertar curiosidade de experimentação ou tornar
os jovens resistentes ou indiferentes a outras intervenções29,57,58.
Além das campanhas específicas e da restrição à publicidade, é relevante o impacto in-
direto que a mídia exerce nas percepções, conceitos e comportamentos das pessoas acerca
das drogas. É fundamental, portanto, que esses canais de comunicação adotem atitudes
que não idealizem o uso de drogas.
Equipamentos de saúde
289
Quadro 4. Intervenções focadas em problemas específicos realizadas em diferentes settin-
gs (adaptado de United Nations ESCAP, 2005)47
Problema Específico Intervenção Sugerida
Falta de conhecimento nas famílias e comunidades Programas comunitários e em instituições religiosas de tomada de
sobre o uso de drogas. consciência e informativos. Reuniões com professores e pais.
Falta de sistemas de suporte social. Campanhas de alerta em clínicas, albergues para jovens, acesso
fwacilitado em serviços comunitários aos jovens, incluindo
serviços de saúde. Áreas recreativas reservadas a jovens no espaço
público.
Falta de controle de oferta de insumos de nicotina, Alerta sobre a necessidade de uma política de acesso e disponi-
álcool e outras drogas. bilidade de substâncias. Encorajamento da restrição ao acesso a
substâncias por parte de jovens.
Medo da polícia e autoridades. Sensibilizar a polícia e autoridades sobre as necessidades dos
jovens, encorajar a realização de palestras em escolas e centros
comunitários, sobre o papel da polícia, esclarecendo sua premissa
de “amiga dos jovens”, e não pessoas a serem temidas por eles.
Falta de estratégias de enfrentamento Treinamento em resolução de problemas, autoestima, habilidades
sociais, vocacional e de emprego, habilidades de sobrevivência
e educação informal. Fortalecimento da ligação com recursos
comunitários, tutorias.
290
dormir”, “para conseguir estudar melhor”, “para controlar uma dor”) ou recreativo e abusivo
(em geral, em doses maiores, para obter efeitos psicotrópicos mais acentuados, como desi-
nibição, “ficar acordado numa balada”, “conseguir dirigir a noite toda”, “anestesia emocional”
para praticar crimes).
Ao longo do último século, o desenvolvimento de regimes de prescrições com exigên-
cias peculiares – como receituários específicos e notificações e melhor controle farmacêu-
tico e da logística de distribuição – configuram tentativas de estabelecer maior grau de
controle sobre a situação2. Entretanto, por si sós, não são medidas suficientes para conter
plenamente o uso inadequado e excessivo dessas medicações. Fraudes de prescrições, rou-
bo de receituários e carimbos, desvio institucional de medicamentos (estabelecimentos de
saúde, asilos, prisões), venda no “mercado negro”, “doctor shopping” (consultas em múltiplos
médicos para obtenção de prescrições duplicadas, relato de queixas que tenderiam a gerar
aumento das doses prescritas) e obtenção junto a familiares e amigos - são alguns exem-
plos de fontes que sustentam o uso inadequado dessas medicações.
Uma vez que o aporte desses medicamentos requer prescrição, a melhor capacitação
dos médicos ainda durante sua formação poderia ser uma forma de reduzir a circulação
e disponibilidade deles para os casos em que não sejam indicados. Um exemplo seria o
treinamento incisivo para basear a decisão clínica das prescrições em critérios positivos
(critérios diagnósticos claros e bem-definidos, com metas estabelecidas, planejamento do
tratamento e sua duração, uso de doses, prescrição de recursos adicionais não farmacoló-
gicos como adjuvantes, psicoeducação), e não em critérios negativos (para aliviar sintomas
inespecíficos que não preenchem critérios de transtornos mentais propriamente ditos, para
amenizar sofrimentos decorrentes de circunstâncias sociais crônicas, para responder ao
paciente conforme suas expectativas de alívio imediato, para casos em que sabidamente
não haverá benefício clínico – como no uso de hipnóticos em pacientes com insônia crôni-
ca). Capacitação para uso e recomendação de estratégias não farmacológicas (técnicas de
relaxamento, comportamentais, aconselhamento, mudança de hábitos alimentares, exercí-
cios físicos, higiene do sono, etc.) seria igualmente importante12.
Ainda assim, mesmo com cuidados adequados e em contextos controlados, evoluções
desfavoráveis podem acontecer. Nestes casos, quando existem indícios do desenvolvimen-
to de dependência ou de complicações secundárias (quedas, acidentes, alterações do hu-
mor, entre outros), reconhecimento e medidas precoces são necessários. Para tanto, não
apenas médicos, mas também outros profissionais, como farmacêuticos e enfermeiros, ne-
cessitam de capacitação12. Além disso, a abordagem dos generalistas especificamente vol-
tadas para o tema, como intervenções durante as consultas de rotina ou o envio de cartas,
pode reduzir o uso excessivo de benzodiazepínicos2.
Estratégias que parecem interessantes, mas precisam de mais embasamento, incluem
psicoeducação às famílias, melhor treinamento e aconselhamento legal aos médicos, apri-
moramento logístico do sistema de farmácia e medidas práticas na comunidade para eli-
minar medicamentos controlados fora do prazo de validade ou que não estão mais sendo
utilizados pelo paciente22.
Esportes
Não há evidências de que os esportes por si sós contribuam para reduzir o uso de
SPAs22.
291
Intervenções para crianças e jovens em situações de risco
Conclusões
Referências
292
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19 Abordagem da família no cenário de vulnera-
bilidades
Roberta Payá
297
298
Introdução
Funcionamento familiar
299
levar em consideração nas intervenções que envolvem os dependentes e seus familiares3.
Quanto ao funcionamento da família, padrões de organização, crenças familiares e
processos de comunicação são aspectos importantes a serem observados, sendo que as
relações familiares são modificadas quando um de seus membros torna-se dependente
de drogas6.
Compreender a dinâmica familiar do dependente químico possibilita o entendimento
que o sintoma exerce sobre seus membros e propicia um direcionamento de intervenção
mais adequada de acordo com a dinâmica predominante na mesma. Com isso, identifica
aspectos que favorecem e perpetuam a sintomatologia intrínseca no sistema familiar no
qual o dependente está inserido, permite que novos caminhos possam ser traçados para
reestruturação desse sistema e, consequentemente, contribui para melhor qualidade de
vida de ambos. Ressalta-se que o sintoma que regula é o mesmo que denuncia a dificulda-
de da família no enfrentamento da crise7.
A dependência química pode emergir para resolver um conflito familiar, levando a fa-
mília a uma estagnação em seu funcionamento. A problemática da dependência química
contribui para a estabilidade do sistema familiar como sendo parte do seu funcionamento.
Referindo-se ao filho dependente químico, Orth8 salienta que, quando o mesmo con-
segue tirar a droga do lugar privilegiado em que ocupa e usar dos próprios recursos para
alcançar êxitos na vida, a família se desestabiliza, por ter, então, que se haver com suas
próprias questões como casal. E este, ainda que inconscientemente, mata o filho nesse
lugar, impedindo, dessa forma, seu progresso e a possível saída da drogadição.
Moreira9 observa que, em famílias nas quais há vários membros dependentes, existe
alternância do “dependente identificado” onde o comportamento próprio desses circulam
entre si. É característico dessas famílias manter um sistema fechado, impossibilitando seus
membros de alcançarem autonomia.
Limites muito rígidos e falta de confiança por parte da família levam, de acordo com
estudos feitos com o dependente, a sentimentos de estigmatização, isolamento social,
estresse, aumento de risco de recidiva e exacerbação do sintoma. Daí a importância de que
a família, a partir da orientação, venha adquirir habilidades para mudar sua dinâmica, já
que, por falta de informação ou flexibilidade para mudar, a prevalência da droga continua
a comprometer o sistema familiar10.
300
ta adicta, sendo desencadeado pelo acobertamento de sentimentos, tais como vergonha,
medo e culpa. E também, pela distorção do significado e da complexidade que o uso abu-
sivo de drogas representa dentro e fora do contexto familiar.
De acordo com pesquisa realizada por Dias et al.12 na América Latina, estudos revela-
ram que a população reconhece como ineficientes os serviços de saúde no que concerne à
prevenção e ao tratamento, tanto para o dependente quanto para a família. Esta se sente
perdida e desamparada em sua codependência, embora haja sensibilização para que saia
desse lugar e busque ajuda externa.
Pesquisa feita com participantes recrutados em um grupo de autoajuda “Amor Exigen-
te”, na cidade de São Paulo, constatou que o tempo que o familiar leva para descobrir o
envolvimento do membro com drogas é, em média, de 3,7 anos. Desses, 42% procuraram
ajuda imediatamente e os outros 58% demoraram, em média, 2,6 anos para buscar apoio.
Entre as razões mais indicadas para a demora está a crença de que o uso indevido da droga
iria passar ou que poderiam lidar com a situação sem ajuda externa. Alguns relataram não
saber onde buscar ajuda, antes de conhecer o grupo que tem por objetivo oferecer apoio
às famílias com membros dependentes químicos13.
Ter como lente de compreensão sobre a disfuncionalidade familiar pela codependência
é uma das possibilidades.
Não se pode deixar de mencionar que, além das características que compõem a quali-
dade da relação entre familiar e usuário, estudos com visão diagnóstica do codependente
compararam determinados comportamentos de acordo com a CID-10 e DSM 5.
Segundo a CID-10, a presença persistente de quatro dos primeiros critérios e ao menos
três entre os demais determinariam o diagnóstico:
301
até mesmo banalizado.
Por isso, deve-se compreender como uma das condições de enfrentamento do familiar.
Entre outros comportamentos encontram-se diversos aspectos de gatilho familiar. E, para
tal, serão abordados os fatores de risco desse contexto.
Fatores de Risco Familiares
Dados de pesquisa revelaram que existem alguns fatores que colocam as pessoas e
grupos em mais vulnerabilidade, e essa maior propensão pode ser chamada de fator de
risco4. Por outro lado, existem características pessoais ou sociais que diminuem a proba-
bilidade de as pessoas consumirem ou abusarem de substâncias, no caso então seriam os
fatores de proteção14.
Foquemos os fatores de risco do âmbito familiar para reflexão.
Segundo Santana e Ronzani15, a falta de apoio familiar representa um fator de risco
em evidência para o uso ou abuso de alguma substância, assim como o monitoramento
familiar indica ser um fator de proteção em potencial.
Payá e Figlie11; Merikangas et al.,16; Furtado 17; Loukas et al. 18 e outros descreveram o
que se pode compreender como características comuns e fatores de risco presentes nas
famílias mais vulneráveis para o comportamento de uso ou abuso. De modo geral, são eles
no Quadro 1.
302
Os fatores familiares de risco devem ser detectados e abordados pelos profissionais
sob a perspectiva da saúde coletiva, evitando visões deterministas, moralistas e/ou cul-
pabilizadoras na família. Tais fatores podem ser trabalhados, quando identificados por di-
ferentes áreas de atuação. No entanto, na fase infantil, a escola e locais como o posto de
saúde, por exemplo, exercem papéis cruciais. Pois serão esses profissionais, muitas vezes,
os primeiros a terem contato com os cuidadores ou então a perceberem a existência de
um ou mais desses fatores.
A ordem em que os fatores são apresentados também não estabelece prevalência ou
prioridade. O pensamento a ser mantido deve ser na combinação desses fatores em deter-
minado momento de vida familiar.
Pressupõe-se que a pessoa, apesar de sua complexidade, não está isolada do contexto
sociofamiliar. Ao contrário, está conectada e interagindo com as outras pessoas que lhe
são familiares. A família, apesar da diversidade cultural, social e afetiva, é o lugar onde as
expectativas são construídas, transformadas ou repetidas, dependendo da qualidade das
interações.
Nessa visão, o uso indevido de drogas pode ser concebido como um sintoma ou ex-
pressão de crise. Desse modo, o comportamento desviante de um filho adolescente, por
exemplo, representa uma função dentro do sistema familiar 19-20. Para Ausloos21, o sintoma
já era discutido como uma tentativa de o sistema mostrar mudança, sem que de fato algu-
ma mudança ocorra. É um sinal de advertência de que não há soluções nas modalidades
habituais de interação que o sistema apresenta.
Stanton e Todd22 e Stanton et al.23 reconhecem três fases distintas no decorrer do abuso
de drogas. A primeira seria o uso de drogas legais, como no caso do álcool que ocupa um
espaço importante nesse cenário por poder ser compreendida como um fenômeno social.
A segunda estaria representada pela maconha, que é marcada pela grande influência dos
pares, do grupo. E a terceira etapa seria atingida quando o adolescente passa a fazer uso
de outras drogas ilegais, fase esta entendida pelos autores como sendo uma questão inti-
mamente ligada a questões familiares, principalmente entre pais e adolescentes.
Particularmente sobre este último, é importante abrir um comentário, pois não se pode
esquecer do quanto a substância crack pode de fato se opor a qualquer protocolo de en-
tendimento familiar, já que atualmente tornou-se a substância mais desafiadora da nossa
prática clínica e institucional e que com certa frequência “invade” diversas configurações e
composições familiares, de qualquer condição econômico-social.
Mas de acordo com os autores que foram apresentados por Guimarães et al.24 a drogadi-
ção pode ser entendida como parte de um processo cíclico que envolve três ou mais indi-
303
víduos, normalmente o adolescente em situação de uso de drogas e seus pais. Essa relação
triangular ocuparia uma função homeostática: reduzir a ansiedade do sistema quando esta
alcança níveis muito elevados.
Miller e Wilbourne3 ressaltaram como melhor proposta de tratamento aquela que in-
clui algum componente social. E nesse âmbito a família pode ser uma peça-chave para o
início do processo de mudança do usuário, para a redução de problemas da dependência
e de problemas familiares e para a prevenção de outros membros que correm elevados
riscos de desenvolver outros transtornos.
Edwards e Steinglass25 e Stanton e Shadish26 concluíram, por estudos de metanálise,
que a terapia familiar contribui no engajamento do cliente e na manutenção desse enga-
jamento em tratamento; proporciona a melhora de resultados quanto ao uso da substância
relacionada e do funcionamento familiar; e permite a redução do impacto da dependência
e seus danos (psicológicos e/ou físicos) nos membros familiares, incluindo filhos.
A família, assim como a rede social do membro dependente, exerce também papel de
relevância.
Atualmente tem-se como aspecto bem-estabelecido a convivência direta do membro
usuário com seus familiares.
Na configuração da família brasileira, certamente essa realidade não é diferente. Os no-
vos arranjos e composições familiares retratam acordos familiares em que cada vez mais,
ora pelas necessidades econômicas e sociais ora por circunstâncias da história familiar,
a permanência dos filhos dentro de casa estende-se. Isto leva o sistema como um todo a
compor-se em várias pequenas famílias em momentos de vida diferentes. Tais configura-
ções refletem uma arena de negociações de papéis, de intercâmbios de gerações, de sexo
e culturas em que, muitas vezes, não há a efetivação das adaptações esperadas para uma
convivência harmoniosa ou na promoção de relações interdependentes entre os membros
surge o problema do abuso de substâncias.
Numa perspectiva sistêmica, a reconstrução da rede social tanto para a família como
para o membro usuário de substâncias, poderá ser a via de fortalecimento do processo. A
rede é, também, uma estratégia de gestão de riscos aos quais estão expostos os setores
mais vulneráveis da sociedade, e neste caso o dos usuários de substâncias. Ela pode fun-
cionar como um instrumento para o conjunto das políticas de controle e de ordenação
social.
Famílias com mais vulnerabilidade ao abuso e dependência expressam um “debilita-
mento” da rede social e este alimenta um ciclo de modo que segredos, isolamento, indife-
rença e esquecimento das próprias raízes familiares se perpetuem. Nesse desencadeamen-
to de laços afetivos e sociais, há o que Sudbrack27 referiu como sendo o desenraizamento
de códigos que impedem as famílias de conhecerem com quem se pode contar, de quem
se pode receber ajuda, com quem é possível juntar-se para resolver um problema comum.
A compreensão dessa perspectiva condiz com resultados encontrados em estudo com-
parativo entre 310 famílias com pais dependentes de álcool, famílias com membros de-
pendentes de substâncias ilícitas e famílias sem dependência; famílias com problemas
de dependência revelaram ter menos apoio de sua rede social quando comparadas com o
grupo familiar sem dependência1.
Alguns familiares e amigos naturalmente se distanciam devido ao uso.
Esposas, maridos ou parceiros tendem a se separar quando estão convencidos de que o
membro da família usuário de substâncias não vai mudar, o que acarreta a quebra da rede
304
de amigos – e uma curiosidade observada é o fator de sexo presente no tempo de convívio,
uma vez que esposas tendem a permanecer por mais tempo numa relação como membro
de apoio, em comparação com os maridos de mulheres dependentes.
Ao longo do tempo, usuários transitam em outras redes de usuários e amigos não usu-
ários tornam-se estranhos.
Dependentes de álcool tendem a formar rede com outros dependentes de álcool, assim
como dependentes de drogas tendem a formar rede com outros dependentes de droga.
Mulheres, com certa frequência, são apresentadas às drogas pelos seus parceiros e,
geralmente, maridos de mulheres dependentes de álcool têm elevado consumo alcoólico.
Usuários oriundos de famílias com mais facilidade para mudanças tendem a ter me-
lhores desfechos.
Indivíduos com melhores condições de enfrentamento e reduzidas condições de estres-
se têm propensão a uma rede social maior.
A inabilidade de oferecer suporte por parte dos usuários tende a restringir o tamanho
da rede social, logo, indica situação mais acentuada de isolamento.
Explorar crenças e mitos familiares e a promoção de condutas assertivas devem ser
frequentemente focados
Sob o aspecto familiar, para avaliar e tratar a dependência química “sistemicamente”, é
necessário levar em conta as expectativas familiares. Reforçar a quebra de preconceitos e
trabalhar com crenças moralistas e culpas quanto à questão da dependência proporciona
o resgate da autonomia de cada um dos membros, buscando, principalmente, a mudança
de padrões familiares estabelecidos. Além disso, os problemas com bebida alcoólica nor-
malmente se desenvolvem gradualmente. Porém, eles podem ser exacerbados significati-
vamente a partir do acúmulo de eventos estressantes ou pela identidade familiar constru-
ída ao longo das transições no ciclo de vida, pois ampliam o cenário de vulnerabilidade
familiar.
Resiliência familiar
305
que é justamente na vigência de situações adversas que o ser humano revela potencialida-
des extraordinárias. Nesse ponto de vista, resiliência traduz uma dimensão de positividade
inserida nas reações dos sujeitos frente aos desafios que, inegavelmente, aportam uma
perspectiva promissora em termos da saúde e do desenvolvimento humano, principalmen-
te junto às populações que vivem em condições psicossociais desfavoráveis. No tocante ao
contexto de abuso e dependência de alguma substância, a resiliência estaria representan-
do um importante fator de proteção para a família, para a criança e para o usuário.
Investigar tal conceito em famílias com e sem alguma substância foi um dos objetivos
de estudo nacional31 com 305 famílias entrevistas no serviço de prevenção já mencionado
anteriormente. Resultados desse estudo revelaram que famílias que vivenciam a proble-
mática do álcool são mais resilientes que famílias que não têm algum tipo de problema
com a substância. Quanto mais resiliente a família for, menos vulnerável a criança ou
adolescente estará para desenvolver algum tipo de problema emocional ou de comporta-
mento. Conforme as dimensões da escala familiar de resiliência, foi possível observar que
tanto as famílias com problemas da dependência do álcool como aquelas com problemas
de substâncias psicoativas revelaram ter índices mais elevados de tensões familiares e
desconforto familiar. Desta forma, foi possível compreender que o abuso de uma substân-
cia já remete o sistema familiar a mais instabilidade, o que cria um cenário de adversida-
de, logo, tornando-os mais resilientes. Desconforto e tensões familiares são importantes
fatores de risco para o sistema, segundo a amostra estudada, mas como Walsh30 ressaltou,
um sistema saudável não é isento de problemas, e sim aquele que tem potencial suficiente
para encontrar alternativas que tragam soluções para os conflitos e que reduzam compor-
tamentos nocivos.
Considerar a resiliência familiar como um aspecto que desafia o impacto do uso e
abuso de substâncias psicoativas reforça o enfoque nas habilidades familiares e nas com-
petências dos sistemas familiares, indo contra medidas que focam os déficits ou que refor-
çam um sistema público como um todo que perpetua na institucionalização de crianças e
de adolescentes, sistema este que contraditoriamente reforça a não competência familiar.
Religião
A mesma relação que o adolescente tem com sua escola, a família tem com sua vizi-
nhança e comunidade. Os desafios presentes são disponibilidade de substâncias, criminali-
dade, isolamento social, etc. Os fatores socioculturais podem tornar as pessoas vulneráveis
ao desenvolvimento da dependência na medida em que algumas culturas apoiam níveis
ainda mais elevados de consumo de bebida alcoólica ou toleram o uso de determinada
306
droga do que outras. Por exemplo, um nível elevado de consumo de bebida alcoólica é
tolerado nos países nórdicos e não nos países orientais. Fatores no sistema social mais
amplo, como os altos níveis de estresse e baixos níveis de apoio advindos de limitações
básicas de saúde, educação de determinada região também podem tornar as pessoas mais
vulneráveis ao desenvolvimento de problemas com bebida alcoólica. Principalmente se a
distribuição e venda de alguma substância estiver associada a meio de sobrevivência.
Dessa forma, a combinação desses aspectos pode alimentar os fatores de proteção na
família, sendo esses aspectos essenciais para segurança e saúde no desenvolvimento da
criança e do adolescente, reduzindo as chances de vulnerabilidade. O quadro 2 sintetiza
esses fatores:
Conclusão
O ponto-chave de toda discussão com famílias é reconhecer que seu trabalho traz be-
nefícios e contribui positivamente para a mudança no padrão de abuso ou dependência de
substâncias e para a qualidade de vida da família.
Os ganhos de qualquer intervenção familiar devem ser vistos no contexto de vida do
paciente e de sua família, além de terem que ser analisados em um processo, o que signi-
fica que mudanças não serão imediatas, e sim construídas conforme a realidade de cada
sistema familiar.
Sozinhas essas famílias não conseguem resolver uma questão que não é só delas, mas
parte de uma sociedade que produz o desamparo em vários níveis. Por isso, torna-se im-
prescindível ampliar o entendimento do sistema familiar, perceber quais regras e valores
307
regem seu funcionamento. E reconhecer que a codependencia é uma das formas de lidar
com a problemática, mas que não reduz a possibilidade de membros da família buscarem
outras formas de enfrentamento.
Neste capítulo foi evidenciada a combinação dos fatores de risco inerentes às famílias.
Importante reconhecê-los no âmbito escolar, nas unidades básicas de saúde e não obri-
gatoriamente em serviços especializados. Pois esses fatores, quando identificados, podem
redirecionar o tipo de ajuda que a família requer.
Sobretudo, vale ressaltar que a vulnerabilidade familiar precisa ser compreendida en-
tre suas relações internas, entre os membros, mas também nas conexões externas de que o
sistema faz parte. Daí a relevância das condições protetoras da comunidade e do meio para
suprimirem necessidades paralelas ao problema da dependência ou abuso de substâncias,
assim como também potencializarem melhores condições de enfrentamento familiar.
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309
310
20
Como as comunidades terapêuticas abor-
dam a questão da vulnerabilidade
Carolina Couto da Mata
311
312
Introdução
Entende-se que as relações desiguais de poder possuem papel central nos processos
de vulnerabilização experimentados por diferentes grupos sociais, ampliando o alcance
das abordagens que se restringem à responsabilidade individual como determinante des-
ses processos. Estar colocado em situação de desigualdade por motivos socioeconômicos,
religiosos, de sexo, de raça, de idade, de saúde, de opção sexual, de etnia, de cor da pele, por
deficiência física ou mental, pelo uso de substâncias psicoativas, entre outras, configuram
situações que vulnerabilizam os sujeitos, em processos e práticas sociais e históricas1.
Nesse sentido, pode-se dizer que a desigualdade econômica e a desigualdade de sexo
têm, historicamente, vulnerabilizado os pobres e as mulheres; que a população LGBT é
vulnerabilizada pelo preconceito sexual e pelas práticas homofóbicas; que a deficiência
cognitiva e mental vulnerabiliza os sujeitos, por torná-los mais dependentes; que os pa-
cientes que sofrem doenças contagiosas são vulnerabilizados pelo temor da contaminação
que possam provocar; que os doentes crônicos são vulnerabilizados por serem dependen-
tes de tratamentos contínuos e, muitas vezes, incapacitantes; e, igualmente, os sujeitos
dependentes químicos, vulnerabilizados pelo “pânico moral”2 induzido por campanhas e
matérias midiáticas.
Em todos esses casos, a situação de vulnerabilidade potencializa o perigo de serem
desconsiderados, explorados, injustiçados, discriminados, excluídos, agredidos e segrega-
dos. Isso ocorre na medida em que, em uma sociedade segregacionista e violadora, tais
grupos têm reduzidas suas capacidades de proteger seus interesses nas relações de poder.
Por isso, faz-se necessária a criação de dispositivos institucionais de defesa, proteção e
atenção, com vistas ao acolhimento, tratamento e garantia de seus direitos sociais, civis,
políticos, econômicos e culturais - seus direitos humanos. Essa perspectiva é importante,
pois retira tais grupos do campo assistencialista de tutela dessas pessoas - que reforça
uma percepção de incapacidade pessoal, individual - e reconhece a capacidade criadora e
de resistência desses sujeitos na busca de superação das condições de sua vulnerabiliza-
ção. Considera, assim, tanto a dimensão relativa ao indivíduo e ao local social por ele ocu-
pado, quanto os aspectos coletivos e contextuais que os tornam suscetíveis às violações.
Tal concepção indica o conceito de vulnerabilidade, significando grupos ou indivíduos
fragilizados jurídica ou politicamente na promoção, proteção ou garantia dos seus direitos
de cidadania3. Nessa mesma perspectiva analítica, o conceito de vulnerabilidade social
pode ser relacionado aos processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos
grupos sociais4 e à sua capacidade de reação5.
A Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade pauta sua atuação nessa perspec-
tiva ampliada do conceito de vulnerabilidade, colocando o sujeito dependente químico
no centro de relações e determinações que condicionam sua existência e a dependência,
buscando ajudá-lo a compreender a situação na qual se encontra e a se apropriar de
sua história de vida. Isto é, entende a vulnerabilidade dos sujeitos em uma perspectiva
transdisciplinar e complexa, relacionada às determinações de ordem individual, coletiva,
contextual, geográfica, política e econômica, ultrapassando abordagens que primam por
análises de multifatorialidade. Nesse contexto, entende o risco presente nas situações de
vulnerabilidade pelas rupturas que pode provocar, tanto das garantias individuais quanto
dos vínculos sociais e familiares, sem desconsiderar seus impactos na integridade física e
psíquica e na perda de autonomia.
Considera-se que a proposta de vida em comunidades terapêuticas (CT) pode ser um
importante instrumento na abordagem da dependência química e dos processos de vul-
313
nerabilização que dela fazem parte. Para fundamentar esse ponto de vista, neste capítu-
lo pretende-se apresentar os elementos essenciais do modelo de atenção denominado
“comunidade terapêutica”, suas distorções e limites, bem como interrogar seus impactos
no processo de vulnerabilização que sofrem os dependentes químicos e seus familiares.
Inicia-se por uma breve discussão sobre as comunidades terapêuticas, seus fins, normati-
zações e distorções. Em seguida, apresenta-se um histórico do modelo de atenção das co-
munidades, seu método de tratamento e, finalmente, a experiência da Terra da Sobriedade.
a
”A partir de agosto de 2016, as Comunidades Terapêuticas terão como normatização o Marco Regulatório n°01/2015,
do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas”.
314
implantados de maneira irregular no país, com práticas que contrariam a proposta original
de CT e a legislação, constituindo-se muitas vezes em violações de direitos. A esse res-
peito, em 2011, o Conselho Federal de Psicologia divulgou documento no qual apresenta
denúncia de práticas que violam os direitos humanos e desrespeitam as demais normati-
vas jurídicas que regulamentam os serviços de saúde e de assistência social. A realidade
apresentada configura situações de violência e opressão que contrariam os princípios de
dignidade humana e evidencia a necessidade de fiscalização constante por parte do poder
público, visando inibir e impedir o funcionamento de tais programas ditos de tratamento.
A identificação dessas práticas com o modelo de comunidades terapêuticas demonstra
o desconhecimento de parte da sociedade sobre a real proposta metodológica das CTs, so-
bre seu modo de funcionamento, bem como sobre seus resultados. De fato, essas práticas
denunciadas são inassimiláveis e muitas comparações equivocadas e descontextualizadas
historicamente, por desconhecimento do modelo de reabilitação proposto, têm prejudi-
cado a articulação, o fortalecimento e o avanço na implantação de uma rede de atenção
psicossocial, como a que é proposta pelo Ministério da Saúde.
Desde o seu surgimento, o modelo das comunidades terapêuticas vem sendo adaptado
a diferentes públicos (homens e mulheres adultos, mulheres com seus filhos, adolescen-
tes, dependentes químicos com outros transtornos psiquiátricos), em diferentes ambientes
(prisões, abrigos para pessoas em situação de rua, setores de hospitais, permanência-dia),
sofrendo a influência do desenvolvimento das profissões e suas técnicas de atendimento
(psicanálise francesa, prevenção da recaída, etc.) ao ampliar sua equipe de profissionais.
Além disso, sua abordagem sofre a influência da cultura, do momento histórico e, conse-
quentemente, da política de saúde, assistencial e educacional de cada país onde a CT está
localizada. Todo esse contexto tem como resultado a heterogeneidade dos serviços pres-
tados e a necessidade de consenso na definição dos elementos essenciais e dos princípios
específicos desse modelo de atenção, para garantir sua efetividade.
Historicamente, dois grandes campos do saber científico direcionaram a proposta clí-
nica das CTs: a Psiquiatria social e a dependência química. No primeiro campo, as CTs, de-
nominadas democráticas, têm sua origem no pós-guerra, na reabilitação de soldados por
meio de grupos terapêuticos. Essa proposta foi desenvolvida por Maxwell Jones, psiquiatra
do exército inglês, no Hospital Belmont (mais tarde chamado Henderson), na segunda me-
tade da década de 1940. De Leon define essas comunidades do campo psiquiátrico como
“unidades e instalações inovadoras destinadas ao tratamento psicológico e à guarda de
pacientes psiquiátricos socialmente desviantes dentro (e fora) de ambientes hospitalares
de tratamento de transtorno mentais”7.
Como alternativa ao tratamento manicomial vigente na época, essa proposta questio-
nava a desconsideração dos efeitos socializantes da cultura grupal para a terapêutica do
modelo hospitalocêntrico, por compreender que esses efeitos possibilitariam uma vida
social e de trabalho fora da própria instituição de tratamento8. O trabalho de Jones funda-
mentava-se nos seguintes pressupostos:
315
3) na liderança compartilhada; e
4) na aprendizagem social a partir das interações no “aqui e agora”9.
316
nanon7. Com o desenvolvimento de outras abordagens de cuidado, esses modelos iniciais
inspiradores da primeira geração de comunidades foram aperfeiçoados.
317
meio para conseguir mais drogas, entre outras práticas que acarretam rupturas socioafeti-
vas e outros danos como a prisão, ampliando o grau de sofrimento.
Assim é que a comunidade terapêutica é indicada para pessoas com dependência quí-
mica moderada ou grave já inseridas em uma espiral de vulnerabilização – apresentando
comprometimento da saúde, da vida familiar, laborativa e social - que podem se beneficiar
de uma proposta de reabilitação psicossocial, quando o gerenciamento do uso de álcool
e outras drogas e da doença já não é mais possível nem desejado pelo próprio paciente.
Nesse modelo de atenção, na tentativa de deslocar o sujeito dessa espiral, todas as
atividades terapêuticas buscam favorecer ao sujeito a avaliação da maneira como ele ad-
ministra suas próprias emoções, como interage e se comunica, como percebe e vive seu
cotidiano a partir de suas condições materiais de vida e, recursivamente, como essas expe-
riências afetam sua subjetividade e seu modo de vida.
Nas diferentes modalidades de atendimento e tratamento - permanência-dia ou resi-
dencial, em meio urbano ou rural, o objetivo é oferecer aos sujeitos novas oportunidades
para ressignificarem a própria existência e para encontrarem e produzirem um novo sen-
tido para a vida, por meio de atividades orientadas pela liberdade e criatividade. Assim
se configura a abordagem terapêutica das comunidades: o “viver em comunidade”, que se
faz em um setting ético e tecnicamente preparado para proporcionar outras experiências,
diferentes das que o sujeito em dependência estava inserido e que o motivaram a procurar
por ajuda.
Nessa proposta, o paciente assume um lugar ativo, de sujeito e protagonista das ações,
em uma participação democrática na organização social da vida comunitária. Além de
desenvolver sua responsabilidade e autonomia no enfrentamento de suas dificuldades
pessoais - processo denominado como “autoajuda” - ele é estimulado a colaborar com os
outros membros da CT – processo denominado como “mútua-ajuda”. Ao oferecer suporte
aos demais no desenvolvimento das atividades propostas e no cuidado das próprias difi-
culdades e vulnerabilidades, busca-se promover a solidariedade, o sentimento de pertença
e o vínculo entre esses sujeitos, ultrapassando os relacionamentos propostos dentro da CT,
fomentando a formação de outras redes e a experiência de coesão social.
Ao participar ativamente da rotina de atividades, decidindo e compartilhando a res-
ponsabilidade pela manutenção da vida em comunidade e por todas as consequências que
essa convivência proporciona, o sujeito cuida de si mesmo, reorganizando-se quanto aos
procedimentos básicos e saudáveis para seu organismo (abstinência, autocuidado, sono,
higiene, exercícios físicos, alimentação adequada, espiritualidade); cuida do “bem comum”
e descobre intenções e habilidades (organização, limpeza e manutenção dos ambientes
coletivos: quarto, banheiro, cozinha, casa, quintal, jardim, horta, etc.); e amplia sua atuação,
participando dos programas educativos, produtivos, culturais, religiosos, esportivos e de
lazer, disponíveis na CT e na sociedade em geral (atividades extramuros). Não se trata aqui
de etapas, mas ações concomitantes e dinâmicas10.
Nesse contexto comunitário, cada paciente pode aprender com os diferentes papéis
sociais que desempenha, ao conviver em uma rede social que incentiva a comunicação, o
enfrentamento dos problemas e dos conflitos e que busca o equilíbrio entre a necessidade
individual e a coletiva. Essa abordagem exige que os programas de tratamento sejam flexí-
veis às necessidades, possibilidades e limitações de cada um, possibilitando a todos cons-
truírem alternativas que respeitem e valorizem a diversidade de respostas às situações de
vulnerabilidades vividas, conferindo dinamicidade ao processo terapêutico.
Para que a terapêutica comunitária seja possível, durante o período de tratamento in-
tensivo o sujeito é convidado a interromper o uso de substâncias psicoativas e das demais
318
atividades ligadas ao consumo de drogas, lançando mão de todo o suporte e acompanha-
mento terapêutico oferecido pelo serviço. A abstinência faz-se necessária para a avaliação
precisa da extensão dos comprometimentos orgânicos e psíquicos decorrentes do consu-
mo abusivo de álcool e outras drogas e para seu devido tratamento. Afinal, nesses casos
graves, o transtorno mental e comportamental apresentado pelos dependentes não se
resume àqueles envolvidos na administração do uso de substâncias psicoativas e de seus
danos diretos, mas também ao sofrimento psíquico, às perdas cognitivas, à dificuldade de
administrar os relacionamentos familiares, às perdas financeiras, educacionais e laborais
e, considerando a complexidade dessa realidade, a todas as situações que alimentam e as
que são consequências desse contexto de vulnerabilização.
Durante o tratamento, um dos aspectos que são trabalhados pelo sujeito é o papel
ou o lugar, em sua história de vida, do consumo de substâncias e da experiência objetiva,
subjetiva, familiar, social, cultural e política desse uso de álcool e outras drogas. Em uma
perspectiva profissional e ética, caberá ao profissional que o atende alertá-lo e orientá-lo
quanto aos riscos e possíveis consequências da retomada do uso de qualquer substância
psicoativa, deixando ao sujeito a decisão de como será esse consumo em sua vida.
Essa proposta de interrupção do uso de substâncias durante o tratamento é polêmica,
tendo sido considerada como vinculada ao proibicionismo em oposição à abordagem de
redução de danos, proposta pelo Ministério da Saúde11. Há ainda os que afirmam, na tenta-
tiva de sustentar a efetividade da política de redução de danos, que a metodologia das CTs
tem como pretensão “definir campos de normalidade e anormalidade” ou “desconsiderar
os arranjos pessoais construídos pelos próprios sujeitos para lidar com seu uso (algumas
vezes abusivos) de drogas”12.
No entanto, a política de redução de danos não é contrária à abstinência. Respeitar a es-
pecificidade de cada caso implica considerar a história de vida de cada sujeito, acreditando
em seu potencial de autonomia, de enfrentamento e reconhecendo seus limites. Cabe ao
profissional de saúde, tecnicamente preparado, oferecer as informações e os instrumentos
necessários para que o sujeito decida sobre a condução de sua vida - que não está restrita
ao tempo de permanência na CT nem pode ter como premissa a posição de que cada um
tem o direito de realizar seus desejos sem restrições ou consequências de diferentes natu-
rezas – e desenvolva sua condição de saúde, que significa autonomia para viver, construir
suas próprias normas13. Além disso, a vida comunitária é tecnicamente organizada para que
essa experiência em coletividade promova a reflexão crítica de sua condição material de
vida e instrumentalize esses sujeitos a serem ativos na vida social e política nos territórios
dos quais eles fazem parte.
A restrição ao consumo de substâncias dentro da CT é necessária e um dos aspectos es-
senciais do método das CTs. Nos casos graves de envolvimento, como nos elegíveis para o
tratamento com esse método, a experiência clínica mostra que a busca e o consumo podem
se tornar prioritários em relação às demais atividades terapêuticas propostas, impedindo
o envolvimento dos sujeitos com a vida comunitária e, consequentemente, prejudicando o
alcance dos objetivos do tratamento voluntariamente buscado. Um ambiente protegido do
consumo de substâncias psicoativas é um importante fator de segurança psicológica para
que a comunidade possa alcançar o nível de agregação e vínculo entre seus membros7.
O objetivo dos relacionamentos entre os participantes na convivência em comunidade
é criar uma cultura de mudança no modo de viver e de lidar com os problemas cotidianos,
o que deve ser compreendido por eles. Para tal, é preciso que os sujeitos percebam a rela-
ção entre a maneira como expressam seus sentimentos e o próprio uso de substâncias psi-
319
coativas. Essa aprendizagem é possível quando o sujeito não está sob o efeito de drogas7,
o que reforça a importância de um ambiente acolhedor, favorecedor da fala e da escuta, da
compreensão do outro, uma vez que os conflitos serão tratados de forma condizente com
a cultura de paz e solidariedade proposta10.
Tais premissas são estranhas aos sujeitos recém-admitidos nos serviços da comunida-
de, que precisam ser instruídos sobre o método utilizado e o que se espera. Fica a cargo
dos membros veteranos e dos profissionais a responsabilidade de continuamente criar um
ambiente de convivência fraterna e tolerante entre os participantes, livre do consumo de
álcool e outras drogas, dialogando e intervindo nas situações que possam comprometer a
convivência entre os sujeitos. Tal conduta tem como objetivo garantir o caráter terapêutico
e a credibilidade da proposta da comunidade.
Os profissionais também são considerados membros da CT e, portanto, espera-se que
tenham comportamento coerente com as concepções de tratamento e de convivência.
Atuam clinicamente como facilitadores do processo de criação comunitária de um am-
biente de interação, escuta e aprendizagem através da experiência, do envolvimento e
do crescimento individual e coletivo. Como o elemento terapêutico essencial do processo
de mudança é a relação entre os dependentes, ou seja, é a COMUNIDADE, o profissional
tem como objetivo promover e aperfeiçoar a aliança indivíduo-comunidade e mediar o
processo de construção conjunta de uma ética da convivência, com a participação ativa
dos sujeitos. Além de atuar como facilitadores do vínculo comunitário, a equipe clínica
administra e cuida da qualidade do programa de tratamento, como autoridade última no
gerenciamento clínico dos casos e das instalações7.
Participar ativamente na vida comunitária significa propor aos sujeitos que se envol-
vam em atividades voltadas “para a vida prática, para a produção de utilidades, para a
rotina doméstica e para o autocuidado”14. O caráter terapêutico das atividades está na
possibilidade de esses sujeitos serem ativos no preenchimento de um espaço de nego-
ciação entre as pessoas, onde se busca conciliar os direitos e os deveres como membros
da CT14. O objetivo principal não está no produto, resultante do trabalho, ou nos serviços
realizados, nem nas capacidades desenvolvidas. Além do seu caráter expressivo - por ser
a atividade laborativa reveladora dos problemas pessoais – na participação ativa da vida
comunitária, o paciente lida com as rotinas de outra forma e constrói alternativas para seus
problemas. Por isso, considera-se que a CT oferece um cenário de aprendizagem pessoal
e social e de enfrentamento de suas vulnerabilidades. As situações cotidianas promovem
oportunidades experienciais ricas, desafiadoras e estimulantes para o autoconhecimento
e o desenvolvimento de novas maneiras de lidar com as dificuldades emocionais e de
relacionamento7,9,10.
A organização social da vida comunitária é um aspecto fundamental do serviço. A di-
visão de trabalho entre os membros da comunidade e as responsabilidades correlatas às
funções se dá pelo tempo de tratamento, de assimilação da proposta do programa e pelas
características pessoais, ocupacionais e clínicas de cada caso. Geralmente divide-se o pro-
cesso de tratamento em fases ou estágios que refletem: a maneira como cada paciente
entende, aceita, participa e valoriza as atividades da CT e a forma como desenvolve o
próprio programa de tratamento; o nível de compromisso com a proposta e de confiança
que exibe; o grau de liderança e de facilitação do processo de tratamento de outros de-
pendentes; e a espontaneidade do relacionamento que estabelece com a equipe clínica. A
determinação do tempo necessário para que o indivíduo alcance os resultados esperados
tem sido um grande desafio, diante da gravidade do comprometimento biopsicossocial
320
apresentado por aqueles que têm buscado ajuda.
O modelo e a metodologia das CTs propõem o respeito à diversidade cultural, políti-
ca, de sexo, social, racial e religiosa como uma de suas principais diretrizes. A aceitação
voluntária do tratamento pelos homens e mulheres que buscam por ajuda está prevista
nas normativas jurídicas que regem seu funcionamento. O cuidado integral do sujeito e
não dos sintomas da intoxicação ou da desintoxicação isoladamente e a possibilidade de
participação ativa do ajudado na terapêutica, como “sujeito” de suas escolhas, ativo no
processo de entendimento dos diferentes fatores que influenciam seu modo de vida e no
enfrentamento de suas dificuldades e vulnerabilidades são igualmente diretrizes impor-
tantes do método.
Discorda-se de que as CTs sejam “ilhas isoladas do resto do mundo, nas quais os con-
flitos da sociedade são esquecidos” 15. As dificuldades e problemas de diferentes nature-
zas enfrentados nas CTs não diferem dos que acontecem em outros contextos e práticas
sociais. Os processos propostos para o trato dessas situações também não são diferentes
daqueles desenvolvidos pela humanidade para lidar de maneira digna com as adversida-
des – diálogo, cooperação mútua, compromisso com o bem comum, respeito e acolhimento
das dificuldades e diferenças, entre outros. Os conflitos sociais vividos na comunidade e
seus entrelaçamentos intersubjetivos são o conteúdo da terapêutica. Todas as contradições
e ambiguidades da vida social e da condição humana fazem parte dessa realidade e muitas
vezes são a matéria-prima para a construção de outras possibilidades de vida. Justamente
por se tratar de um espaço temporário de tratamento, a CT tem como um de seus objetivos
levar o sujeito a realizar uma reavaliação do seu modo de vida ao ser atuante na cons-
trução de uma experiência de fraternidade e solidariedade, sustentada numa perspectiva
ética de cooperação mútua para a superação dos dilemas inerentes a qualquer vida comu-
nitária, dentro ou fora da comunidade terapêutica.
Apesar da riqueza das experiências resultantes da utilização da comunidade como ins-
trumento terapêutico, sintetizadas no Quadro 2, a CT não considera que sua metodologia
atenda à necessidade de todos os casos de dependência química. Diante de uma realidade
complexa como a que atualmente se enfrenta e considerando todo o contexto histórico,
cultural, econômico, político, além das particularidades de cada um dos envolvidos com
a dependência química e suas consequências, seria ingênuo propor uma única saída. Isso
exige que o projeto terapêutico e o lugar da CT na rede assistencial sejam reavaliados
continuamente.
321
Quadro 2 – Síntese das principais particularidades da abordagem da comunidade terapêu-
tica7,16
• Tem como enfoque o cuidado de diferentes aspectos da vida, afetados pela dependência química:
saúde em geral, psicológicos, interpessoais, sociais e existenciais.
• A terapêutica se dá em um ambiente organizado para a realização de atividades coletivas, para a
comunicação constante entre todos, gerando um sentimento de pertencimento a uma rede de apoio co-
munitário. Estimula-se a compreensão do processo de adoecimento e suas consequências para si mesmo
e para outras pessoas e a responsabilização pelo autocuidado, pelo desenvolvimento emocional e pela
cooperação mútua entre os membros da comunidade no enfrentamento das dificuldades.
• O programa de tratamento é organizado em fases que consideram o processo de desenvolvimento
das mudanças pretendidas ao longo de um tempo planejado para a intervenção.
• A vida comunitária é organizada em funções rotineiras a serem desempenhadas por cada membro,
de acordo com o nível de comprometimento psicossocial e experiência de vida de cada dependente e
com o entendimento que ele demonstra do programa de tratamento. Essa compreensão depende do
tempo de envolvimento do paciente com o tratamento.
• Os funcionários e profissionais são membros da CT e são facilitadores da aliança do dependente
com a comunidade.
• Os dependentes participam ativamente da terapêutica, cuidando e ocupando-se de si mesmo e da
vida em coletividade.
• O planejamento, o encaminhamento e o acompanhamento da adesão do paciente a uma rede de
assistência, de acordo com suas necessidades biopsicossociais, que favoreçam sua inclusão e integração
familiar, educacional, profissional e social.
322
monitores, professor de ciclismo e músico. Os casos que precisam de acompanhamento
médico, odontológico ou de outra especialidade não oferecida na instituição são encami-
nhados para a rede pública de saúde ou para outros serviços, conforme a possibilidade do
paciente e de sua família.
O projeto terapêutico é individualizado e prevê o aumento gradativo das responsa-
bilidades de cada paciente, partindo daquelas relativas aos cuidados com a vida na CT e
seguindo em direção ao desenvolvimento de atividades que dizem respeito ao ser cida-
dão. As atividades do cronograma semanal proposto no programa de tratamento incluem:
espiritualidade; atividade física e esportiva; terapia ocupacional grupal e individual; par-
ticipação diária, efetiva e rotativa na rotina de manutenção da CT; oficina de cinema co-
mentado e de música; educação para saúde; atendimento social; atividades pedagógicas
e didático-científicas; grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos
e Amor-Exigente); assembleia da CT e orientações familiares. O Quadro 3 descreve a dinâ-
mica de tratamento proposta quanto aos seus objetivos e quanto à metodologia utilizada.
Quadro 3: Dinâmica de tratamento da Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade10
Objetivos Metodologia
Busca de conscientização da dependência química Intervenção, educação para saúde, grupos de mútua ajuda e
consultas ambulatoriais.
Ambientação do recém-chegado à comunidade tera- Acolhimento, apresentação do espaço físico e das acomoda-
pêutica ções da Terra da Sobriedade, dos líderes e colaboradores.
Desintoxicação Avaliação clínica.
Alimentação balanceada, exercício físico sistemático,
organização dos hábitos e retirada do meio facilitador ou
propiciador do uso de SPA.
323
paciente é orientado, inicialmente, a propor a realização de uma atividade na CT. Gradati-
vamente, ele é incentivado a ampliar sua proposta para fora do serviço, ou seja, para que
seu projeto inclua atividades que serão realizadas em outros contextos sociais (escolas,
empresas, igrejas, praças, parques, na casa de familiares e amigos, etc.).
As atividades a serem realizadas na CT, as funções e as responsabilidades de cada um
são escolhidas por cada paciente a partir do seu interesse e de suas possibilidades físicas
e mentais. As necessidades da CT e os projetos pessoais são discutidos nas reuniões diárias
e nas assembleias semanais10.
Semanalmente, as atividades de manutenção da CT são escolhidas pelos pacientes em
reuniões coordenadas pela equipe. A organização e a hierarquia das funções são definidas
também pelos pacientes, não tendo qualquer relação direta ou obrigatória com o tempo de
tratamento. Tudo isso se dá a partir da descoberta que o paciente faz de seus interesses e
habilidades, pois quando está na CT assume a responsabilidade pela manutenção da vida
em comunidade, conforme discutido anteriormente10.
Ainda, nas assembleias semanais é que todos os membros da comunidade - pacientes,
equipe clínica e administrativa e demais funcionários – discutem os temas relevantes ao
funcionamento da vida comunitária, sejam eles relativos à convivência entre os indivíduos,
ao planejamento das atividades externas de cada paciente, ao funcionamento administra-
tivo do serviço que implique a participação coletiva ou à filosofia do modelo de tratamen-
to. Todos os problemas da comunidade, de qualquer natureza, são tratados no coletivo. Nas
assembleias, os pacientes recém-admitidos apresentam-se e dizem qual o objetivo de sua
estadia na CT, assumindo formalmente um compromisso com os demais. As recaídas no
uso de drogas ou o não cumprimento de qualquer outra regra básica - no que se refere aos
atos de violência, por exemplo, assim como as evasões, os desligamentos e a alta, também
são avaliados, discutidos e/ou planejados nas assembleias10. A proposta é que todos os
membros da comunidade se sintam participantes ativos desse processo, contribuintes e
beneficiários do seu progresso. Dessa forma, mais do que um usuário do serviço, o sujeito
é protagonista nas ações terapêuticas.
O tempo de permanência voluntária na CT é flexível, pretendendo-se sempre o menor
prazo possível, determinado segundo cada caso, variando de acordo com o nível de adesão
e manutenção no tratamento, considerando o comprometimento biológico, psíquico, social
e legal e o suporte familiar à reabilitação e à reintegração social. O acompanhamento
pós-alta se dá por período mínimo de um ano nos grupos de mútua-ajuda, no ambulatório
e nos eventos festivos.
Considerações Finais
O modelo de comunidade terapêutica tem sido considerado, por seus críticos, contrário
à política pública de álcool e outras drogas brasileiras, fundamentada na redução de danos.
Apesar da participação das CTs na RAPS proposta pelo Ministério da Saúde, as diretrizes
estabelecem que essa parceria se dá entre o poder público e os serviços não governamen-
tais, reforçando essa pretensa distância entre a política pública de álcool e outras drogas
do país e o modelo proposto pelas CTs, mantendo-se, dessa forma, o modelo comunitário
de tratamento numa posição marginal. Além disso, a definição da RAPS não reconhece o
caráter terapêutico das CTs nem a capacidade do modelo comunitário de promover mu-
danças psicológicas e sociais, restringindo seu enfoque ao abrigamento protegido, o que
324
parece um equívoco.
É preciso disposição para um diálogo franco que, por considerar sua complexidade,
amplie e aprofunde o debate sobre a temática do abuso de álcool e outras drogas, suas
consequências e suas múltiplas abordagens, se a pretensão é avançar na organização de
serviços comprometidos com o cuidado integral dessa população.
Um dos grandes desafios para as CTs é capacitar sua equipe de ajudadores para atu-
arem em um modelo comunitário de tratamento. Muitos dos profissionais “tradicionais”
não foram formados para usarem tecnicamente a convivência com os sujeitos nos mais
diversos contextos da CT de forma terapêutica. O modelo comunitário de tratamento lhes
propõe que ultrapassem a pretensa proteção do setting dos consultórios e que desenvol-
vam atividades no refeitório, na cozinha, na sala de estar, na lavanderia, no jardim, na horta,
no cinema, no clube, na escola, na empresa, na igreja e nas praças, ensinando os sujeitos a
usarem a “comunidade como método” de mudança do seu modo de vida.
Além disso, é preciso que os profissionais compreendam que, apesar de intensa e rica
em experiências significativas, a permanência do sujeito na CT é provisória e suas expe-
riências nesse âmbito são artificiais, não como se “artificial” fosse sinônimo de uma expe-
riência “não verdadeira”, mas no sentido de serem tecnicamente preparadas para serem
terapêuticas. Dessa forma, a experiência de estudo dentro da CT, apesar de válida e muito
útil ao sujeito, não equivale à experiência natural de estudo na Faculdade, por exemplo. A
similitude do contexto da comunidade com o espaço doméstico não substitui a residência
na própria casa e a convivência com os próprios familiares. A experiência da vida em uma
CT, além de provisória, não tem a pretensão nem o objetivo de substituir ou responder às
demandas do curso natural da vida social cotidiana.
O modelo de CT está centrado na relação sujeito-comunidade. Diferentemente do que
era feito nos manicômios, a proposta não é de “ambientoterapia”, ou seja, de uma mudança
externa no ambiente que provoque mudanças internas nos sujeitos. A terapêutica não está
resumida ao cumprimento de determinados procedimentos de recuperação, atendendo ao
programa de tratamento e às expectativas de um regimento interno do serviço, por um
determinado período de tempo, desconsiderando a necessidade e a demanda dos sujeitos.
Essa lógica da produção capitalista, que organiza o tempo do trabalho na nossa socie-
dade e determina o cumprimento de determinadas prescrições, não pode ser a referência
para o uso da experiência de uma vida comunitária que se pretende terapêutica. A lógica
do tempo regida pelo capital não permite o respeito à dinamicidade e à variação do pro-
cesso de constituição da vida comunitária. Afinal, quanto tempo e quais experiências um
sujeito precisa ter para avaliar, ressignificar e modificar o seu modo de vida? O que o mo-
delo comunitário de tratamento pretende é que esse processo de longo prazo tenha início
na CT e não que ele seja o resultado das intervenções propostas, contrariando a expectati-
va social de que o tempo dedicado ao tratamento é o responsável por “recuperar o sujeito
de sua dependência química”, para que ele, enfim, retorne à sociedade.
A Terra da Sobriedade tem adotado um marco referencial diverso e mesmo oposto às di-
ferentes modalidades de CTs ilegalmente disseminadas no país. Enfrenta grandes desafios,
entre os quais resistir às tentativas de sucateamento de sua proposta de tratamento, pelo
fato de as fontes financiadoras terem como referência outras abordagens mais generali-
zantes. Os resultados conseguidos ao longo de sua história demonstram que a perspectiva
metodológica adotada pela Terra no acolhimento e tratamento da dependência química
pode ser considerada importante instrumento de ajuda aos sujeitos dependentes e a seus
325
familiares. Sua proposta pretende ajudá-los a romper com o ciclo de vulnerabilizações
que o abuso de álcool e demais substâncias psicoativas pode mergulhá-los, levando-os
a construir posições mais autônomas na vida cotidiana. Além disso, a Terra da Sobriedade
preserva a existência de uma proposta de tratamento verdadeiramente comunitária que,
ao que parece, está se perdendo.
Referências
326
14. Viana RGV. O uso do trabalho como tratamento do dependente químico. Cader-
nos de Terapia Ocupacional. Belo Horizonte: GES.TO, 2004. p 47-96.
15. Damas, F.B. Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização
e relevância social. Revista de Saúde Pública de Santa Catarina, Florianópolis, 2013
jan/mar 6(1).
16. Viana, R.G.V. Comunidades Terapêuticas X Manicômios: tudo, lugar de doido?!
Terra à Vista – Série Comunidades Terapêuticas. n.1, Terra da Sobriedade, 2012.
327
328
21
Terapia comunitária integrativa: saúde co-
munitária na prevenção e atenção ao uso e
abuso de drogas
Adalberto de Paula Barreto
Doralice Oliveira Gomes
329
330
Introdução
331
a substância, com poucos episódios de uso, havendo interrupção no consumo); uso recre-
ativo (uso ocasional, presente em circunstâncias sociais, tendo os riscos ampliados caso
haja continuidade e o aumento de intensidade); uso médico (o uso da droga obedece à
prescrição e acompanhamento médico, sendo o uso indevido se ocorrer sem prescrição
e acompanhamento médico); uso ritual (consumo em cerimônias religiosas ou sociais,
com significado contextual); uso indevido/abusivo (apresenta consequências prejudiciais
ao usuário de ordem orgânica, psicológica ou social); dependência (o usuário perde o con-
trole do uso, há necessidade do aumento da quantidade da droga consumida, forte desejo
de consumo)8.
O uso de drogas está envolto num universo de preconceitos, ditos, não ditos, que im-
pactam sobremaneira a visão dos profissionais sobre o fenômeno e orientará suas práticas
e, principalmente, sua relação com o usuário de determinada substância. Faz-se primordial
que o profissional conheça suas próprias posturas, revisite-as, questione-as para, a partir
daí, estabelecer o que é essencial quando o foco é a busca da melhoria da qualidade de
vida e da relação das pessoas consigo e com os outros.
Nessa etapa introdutória do capítulo objetivou-se suscitar uma reflexão sobre o uso
de drogas, pois está presente em diversas culturas e classes sociais, seja em panoramas
vulneráveis e de risco social ou em comunidades com melhores condições de vida. Pode-se
vislumbrar um círculo vicioso no qual dificuldades relacionadas ao acesso ao mercado de
trabalho, condições precárias nas áreas de saúde, educação, habitação e segurança pública
e entraves no acesso a políticas públicas sociais favorecem o aumento do consumo de dro-
gas. Ao passo que o aumento no consumo pode ocasionar problemas na vida das pessoas,
famílias, comunidades e países4.
332
ao usuário como às pessoas da sua rede de convívio, pois estas exercem importante papel
nesse percurso de superação11.
Possibilidade de atuação: visão da saúde comunitária
Neste capítulo propõe-se a pensar a questão do uso de drogas a partir de uma visão da
saúde comunitária, compreendida como atividades realizadas na e com a comunidade em
prol da saúde das pessoas a partir da mobilização de diferentes segmentos de uma comu-
nidade. De forma coletiva, as pessoas refletem sobre suas vidas, expressam necessidades e
conhecimentos desenvolvidos no lidar com as demandas de seu cotidiano.
A abordagem de saúde comunitária desafia os profissionais a realizarem, também, tra-
balhos em espaços não institucionais, com um olhar para as competências e potencialida-
des das comunidades12.
O trabalho comunitário contribui para a criação e o fortalecimento de redes sociais,
pois possibilita a aproximação entre as pessoas da comunidade por meio das trocas de
experiências, de aprendizados e da construção de soluções coletivas. Nessa abordagem, o
foco está na promoção da saúde, extrapolando a questão específica das drogas12.
333
• reforçar a autoestima individual e coletiva;
• valorizar o papel da família e da rede de relações que ela estabelece com seu meio;
• suscitar, em cada pessoa, família ou grupo social seu sentimento de união e identifi-
cação com seus valores culturais;
• promover e valorizar as instituições e práticas culturais tradicionais que são deten-
toras do saber fazer e guardiãs da identidade cultural;
• estimular a participação como requisito fundamental para dinamizar as relações
sociais, promovendo a conscientização e estimulando o grupo, por meio do diálogo e
da reflexão, a tomar iniciativas e ser agente de sua transformação;
• contribuir com o indivíduo, família e rede de relações para que possam descobrir seus
valores, suas potencialidades, favorecendo sua autonomia;
• favorecer o desenvolvimento comunitário, prevenindo e combatendo as situações de
exclusão dos indivíduos e das famílias por meio da restauração e fortalecimento dos
vínculos sociais e de encaminhamentos socioeconômico-educacionais;
• tornar possível a comunicação entre as diferentes formas de “saber popular” e “saber
científico”;
• intervir nos determinantes sociais da saúde, em especial na redução do estresse e
ampliação do apoio social;
• criar espaços de partilha dos sofrimentos, digerindo uma ansiedade paralisante que
traz riscos para a saúde dessas populações; e
• promover a saúde em espaços coletivos.
A TCI possui cinco bases teóricas que a alicerçam: pensamento sistêmico, teoria da co-
municação, antropologia cultural, resiliência e pedagogia de Paulo Freire14.
Na TCI, o pensamento sistêmico possibilita compreender o indivíduo e a comunidade
numa rede de relações e, com isso, a ampliação do foco ao incluir o contexto e sua dina-
micidade. Conscientes da rede em que estamos inseridos, compreendendo a relação de
interdependência que existe entre as várias partes desse todo, fica mais fácil compreender
os mecanismos de autorregulação, proteção e crescimento, dos quais somos todos corres-
ponsáveis14.
A TCI tem na teoria da comunicação humana outra base teórica, por meio da qual se
compreende que os comportamentos, individuais e/ou coletivos, os atos verbais e não ver-
bais têm valor de comunicação com múltiplas possibilidades de significados e sentidos17.
Pela comunicação, a troca de experiências e a formação de vínculos podem ocorrer e,
com isso, favorecer a criação e o fortalecimento das redes sociais de apoio. Na TCI, a comu-
nicação é um dos elementos essenciais, pois a base do encontro é a comunicação estabe-
lecida entre as pessoas, o que oportuniza àqueles que expuseram suas vivências de sofri-
mento e/ou de superação vislumbrar novas leituras e posturas diante de sua experiência18.
A valorização da cultura configura-se como um dos elementos estruturantes da TCI e,
para tanto, baseia-se na ciência da antropologia cultural. Para essa ciência, as pessoas são
resultantes de suas crenças, costumes, mitos, valores, rituais, religião, língua e do que fa-
zem a partir de sua história de vida. Há um referencial histórico e sociocultural na constru-
ção da identidade individual e coletiva. A partir da cultura desenvolvem-se habilidades e
competências para pensar, avaliar, discernir valores e fazer opções no cotidiano. Com base
334
na identidade individual e coletiva, as pessoas podem se afirmar, se aceitar, assumir uma
identidade como cidadãos, romper com relações de dominação e exclusão social pautadas
em culturas que desvalorizam outras. A diversidade cultural é rica de fonte de saberes,
sendo um recurso a ser reconhecido, valorizado e mobilizado na busca de resolução de
problemas coerentes com as necessidades e realidades culturais das comunidades19.
A resiliência é outro importante conceito na compreensão teórica da TCI. Na Física,
esse conceito é utilizado para descrever materiais que se dilatam e contraem a depender
das condições ambientais, em especial da temperatura. Ao transpor esse conceito para as
ciências humanas, a resiliência é associada à capacidade de superação de adversidades,
relacionada ao aprendizado de repertórios no contexto individual ou coletivo para lidar
com situações adversas20.
A TCI tem, igualmente, como referência a pedagogia de Paulo Freire, na medida em
que reconhece as contribuições da experiência de vida para o processo educativo. A TCI e a
pedagogia de Paulo Freire partilham de princípios comuns, como a autonomia das pessoas,
a horizontalidade do saber, a educação como prática libertadora e a incompletude do ser
humano. Como autônomas, as pessoas são autoras de suas histórias e detêm a capacidade
de reconduzi-las, ou seja, de escrevê-las e reescrevê-las, inclusive numa perspectiva eman-
cipatória. A horizontalidade do saber reconhece, valida e valoriza os saberes que cada um
possui e desenvolve ao longo de sua vida21. A qualidade libertadora da prática educativa
refere-se ao apropriar-se da própria experiência de vida, numa perspectiva de autoco-
nhecimento e postura proativa, com escolhas e posicionamentos e não como vítimas das
circunstâncias.
335
apresentam algo que esteja gerando sofrimento ou outro assunto que queiram comparti-
lhar, e o tema é democraticamente escolhido. Em seguida, o proponente do tema expõe sua
vivência com mais detalhamento e o grupo pode fazer-lhe perguntas que contribuam para
ampliar sua compreensão. Essa etapa é chamada de contextualização13,14,23.
A contextualização finaliza no momento em que o terapeuta agradece ao protagonista
por apresentar seu sofrimento e o solicita para ficar em silêncio escutando o que será
partilhado nessa próxima etapa. Nesse momento o terapeuta apresenta ao grupo uma
questão gerada com o aprofundamento do tema escolhido. A pergunta básica é “quem já
viveu uma situação parecida e o que fez para superá-la?”. Nessa etapa da problematização,
os participantes falam de suas vivências relacionadas ao tema do encontro13,14,23.
A etapa seguinte constitui-se do momento em que os participantes compartilham os
aprendizados pela participação na roda, a partir da escuta das histórias de vida. É a etapa
da conotação positiva. Após a conotação positiva, o grupo se despede e os terapeutas fazem
a avaliação da terapia13,14,23.
Pelo exposto, viu-se que a realização das etapas da TCI possui uma simplicidade ine-
rente à proposta inclusiva da mesma. Todavia, cabe ressaltar que a descrição da TCI não
abarca o quão impactante, acolhedora e terapêutica é a abordagem24. Ao final do capítulo
apresenta-se uma roda de terapia comunitária integrativa a fim de facilitar a compreensão
das etapas apresentadas.
A simplicidade, um dos méritos da TCI, não pode ser compreendida como simplista. A
TCI possui arcabouço teórico e requer conhecimentos para a prática e manejo de grupos.
O terapeuta irá facilitar o encontro e cabe a ele estruturar a condução do encontro, pres-
supondo que o terapeuta tenha sensibilidade para a escuta e atenção para com todos os
participantes. A TCI não é um modelo para uso indiscriminado, sendo necessárias a capaci-
tação e a supervisão para a sua execução16.
336
• ter disponibilidade para realizar uma terapia comunitária integrativa semanal.
Terapeuta comunitário
Os valores da TCI
A TCI, embora tenha esboço definido com eixos teóricos, é muito mais uma postura do
que uma técnica a ser aplicada. Na formação em TCI, prioriza-se o trabalho exaustivo das
histórias de vida de cada um, para que os cursistas possam incorporar os valores indispen-
sáveis para quem quer ser terapeuta comunitário. A TCI é um espaço de desenvolvimento
emocional para o próprio terapeuta.
• Ser acolhedor: o terapeuta comunitário é um agente de acolhimento na comunidade
e isso requer alguém que saiba se acolher, aceitar-se como é, estar aberto às diferenças,
aos valores tradicionais e modernos e estar atento à linguagem corporal e às emoções de
cada um. Cabe ao terapeuta ser uma presença acolhedora, autêntica, simples e disponível.
• Ser simples: resgatar a simplicidade de linguagem e de postura e se livrar do lugar
do especialista que sabe, para aceitar aprender com o outro. A simplicidade permite aban-
donar a postura de poder sobre os outros para poder ser com os outros, permite resgatar
o essencial. É preciso o reencontro com a criança interior que há em cada um, esse mestre
interno, resgatar a sabedoria tradicional dos antepassados.
• Valorizar as emoções: as emoções são o ponto de partida para a construção das iden-
337
tificações que vão tecer as redes de apoio social. Trata-se de identificar, nomear a sensação
presente no corpo. Uma vez que essas sensações são identificadas, elas podem ser pensa-
das, gerando consciência e possibilitando as mudanças. É pelas emoções que as pessoas
se unem, descobrem que são iguais e vivenciam sua humanidade independentemente das
diferenças.
• Ser ousado: na TCI o animador pode falar também de seus sofrimentos. Para chegar
lá deve se permitir falar em público e ser ele mesmo, sabendo que a TCI é um espaço de
acolhimento e não julgamento. A responsabilidade do animador/facilitador é garantir um
ambiente acolhedor que deixe as pessoas à vontade para se permitirem desvelar o que
estava silenciado.
• Gerar dúvidas nas certezas: toda certeza é uma prisão. Compete ao terapeuta comuni-
tário, por meio de perguntas, semear a dúvida na certeza, perguntas que abram perspecti-
vas das diferentes opções de encarar a realidade. O terapeuta comunitário deve se esforçar
para ser um especialista em fazer perguntas que geram dúvidas, num clima de confiança
e serenidade.
• A horizontalidade: a experiência de uma pessoa não é mais importante do que a de
outra, é apenas diferente. Não existe um saber superior ao do outro, mas um saber a com-
partilhar, pois todos são aprendizes. O que existe é um saber coletivo. A horizontalidade
remete ao valor humildade. É ter consciência de suas competências e de seus limites, acei-
tando a competência dos outros como complementares.
•Ver o outro como um recurso: o outro, por sua singularidade, é propulsor de mudanças,
de crescimento e de resiliência. A fim de que cada um possa se beneficiar dos recursos de
todos, é fundamental acolher as diferenças.
A TCI é uma abordagem que amplia a rede de recursos comunitários por meio de ações
de prevenção e promoção da saúde, em encontros nos quais são disponibilizados às co-
munidades espaços de partilha de sofrimentos e superações dos desafios do cotidiano, o
que lhes possibilita encontrar alternativas para lidarem com os problemas relacionados
ao uso de drogas26.
Outro destaque para a TCI está em seu caráter inclusivo. De maneira geral, as rodas
de terapia comunitária integrativa estão disponíveis para as populações com baixo poder
aquisitivo e em contextos vulneráveis ao uso de drogas. Nas rodas, as questões relacio-
nadas ao uso de drogas podem ser compreendidas e trabalhadas no contexto da vida
das pessoas, contemplando as dimensões emocionais, sociais, econômicas e políticas. Na
comunidade, essas dimensões estão entrelaçadas e são trabalhadas no coletivo, podendo
beneficiar o indivíduo e a coletividade27.
Os benefícios obtidos pela participação em grupo de apoio comunitário como a TCI em
relação ao uso de drogas estão, sobremaneira, na possibilidade de as pessoas refletirem e
ampliarem seu conhecimento sobre si mesmas, suas dificuldades e potencialidades, bem
como dos recursos comunitários que dispõem em diferentes dimensões da vida, como no
trabalho, na família, na comunidade, entre os amigos e consigo mesmas27.
Nas rodas de TCI, são acolhidos usuários, não usuários, familiares, dependentes e não
dependentes, o que torna o âmbito rico em possibilidades de trocas de experiências de
vida e, consequentemente, de apoio social para a prevenção, apoio ao tratamento e rein-
serção social, pois disponibiliza aos usuários e famílias espaço para a criação de vínculos
positivos e para encaminhamentos26.
338
Nos encontros as pessoas são estimuladas a falarem de seu sofrimento, sem riscos de
serem julgadas ou condenadas. Poder expressar seus sofrimentos, seus conflitos, medos
e dúvidas, valorizando e respeitando as diferenças individuais e as experiências de vida
de cada um, o que favorece a prevenção, o tratamento e a reinserção social de usuários14.
A TCI é uma abordagem terapêutica promissora em relação aos problemas relaciona-
dos ao abuso de drogas, por incentivar o exercício do autocuidado, valorizar os recursos
culturais e possibilitar que estratégias de resolução sejam compartilhadas, o que contribui
para o empoderamento dos participantes e para a promoção da saúde numa perspectiva
de busca de autonomia28.
A TCI tem se tornado um espaço de interconexão das diversas redes de apoio não go-
vernamentais, como os Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Pastoral das diversas
igrejas e entidades governamentais, a exemplo das escolas, centros de apoio psicossocial
e justiça. São recursos que precisam ser reconhecidos e valorizados em todo programa de
prevenção e atenção ao uso de drogas18.
A terapia comunitária integrativa funciona como uma primeira instância de atenção
básica em saúde pública. Ela acolhe, escuta, cuida e direciona melhor as demandas e per-
mite que só afluam para os níveis secundários de atendimento as que não foram resolvidas
nesse primeiro nível de atenção. Ela não tem a pretensão de ser uma panaceia, nem de
substituir os outros serviços da rede de saúde, e sim complementá-los. O fator determinan-
te é o acolher indiscriminadamente, disponibilizando o suporte comunitário18.
A promoção de redes de apoio social constitui um fator de proteção dos mais importan-
tes a serem incrementados pelos programas de prevenção ao uso indevido de drogas, nas
esferas federal, estadual e municipal. É nesse sentido que a metodologia da TCI foi quali-
ficada como uma estratégia eficaz de prevenção do uso indevido de drogas e de promoção
da saúde, sendo inserida em ações da Política Nacional Sobre Drogas13.
339
A inserção da TCI em ações da Política Nacional de Atenção Básica e da Política Na-
cional de Práticas Integrativas e Complementares ocorreu pelos convênios 3363/2007 e
2397/2008, que proporcionaram a capacitação de 2.105 profissionais da Estratégia Saúde
da Família e rede SUS de todo o país em TCI18. A articulação da TCI com a Política Nacional
de Saúde Mental se deu pelo convênio 101/2014, que teve como foco a capacitação em
terapia comunitária integrativa em cenários de calamidade pública de 560 profissionais
do SUS de municípios dos estados de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio
de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. Todos os convênios foram firmados entre
o Ministério da Saúde, Universidade Federal do Ceará e Fundação Cearense de Pesquisa e
Cultura13,18.
Nas formações, os cursistas realizaram rodas de TCI e as registraram em formulário
predefinido. Os dados levantados foram sistematizados e estão apresentados na Figura 16,
que ilustra os temas mais frequentes em rodas realizadas de 2004 a 2014.
A Figura 16 sinaliza que a temática álcool e drogas foi um tema frequente em rodas
de TCI no Brasil, estando na quarta posição dos temas. Destaca-se que os demais temas,
embora não tratem diretamente das drogas, fazem uma interface com essa questão, a
exemplo dos conflitos familiares, estresse, depressão e violência.
340
O vídeo da roda de TCI que foi parcialmente degravado neste capítulo integra a coleção
“Terapia comunitária e a prevenção do uso de álcool e outras drogas”. Esse material peda-
gógico em audiovisual foi produzido no convênio 16/2004 (SENAD/MISMEC/UFC)13,14,18,26.
E é transcrito em sic.
Coterapeuta (Seu Zequinha): “pessoal, o nosso cordial boa tarde e os votos de boas-
vindas a cada um de vocês. Quem está vindo aqui pela primeira vez?”.
Grupo canta: “seja bem-vindo, olê lê. Seja bem-vindo, olá lá. Paz e bem pra você que
veio participar”.
Coterapeuta (Seu Zequinha): “hoje, como sempre, na terapia nós vamos falar de coisa
boa, de vida. Na terapia nós falamos não só de coisas ruim, mas falamos de coisas boa. Ela
acontece para eu descobrir. Cada um fala de si, as coisas que está me incomodando. O que
é que me incomoda? Falta de sono? Falta de emprego? Falta de relacionamento em casa?
Com os meus vizinhos? Com o meu trabalho? Nas terapias nós não damos conselho e nem
se faz discurso. A intenção de perguntar é para compreender. Porque, se a gente não buscar
compreender o outro, o que se faz? Julgar? E aqui não se pode julgar. Durante a terapia se
você se lembrar de uma música, de uma estoriazinha, de uma piada é só dá sinal para quem
tiver coordenando a terapia e a pessoa dá o espaço para você. Todos tem direito de falar. Eu
queria saber se tem alguém aniversariando esse mês”.
Terapeuta (Adalberto): “chegou a hora da gente escolher o tema que vamos discutir
hoje. Porque é importante a gente falar com a boca? Quando a gente não fala com a boca
a gente vai falar com depressão, com insônia, com dor nas costas, com gastrite. Quando a
boca cala, os órgãos falam. E quando a boca fala, os órgãos saram. Por isso é que é impor-
tante a gente falar com a boca daquilo que a gente tá sentindo. A gente escolhe a hora
errada, a pessoa errada e aquilo vira uma intriga, vira uma futrica, e a gente vai fechando o
coração e dizendo nunca mais vou confiar em ninguém. Tem um outro ditado que diz: quem
guarda azeda, quando azeda estoura e quando estoura fede. Essa é uma terapia pra gente
não andar com cara de azedo e estourar nos horários inconvenientes com as pessoas que
não têm nada a ver com a nossa história. O que falar? A gente fala daquilo que tira o sono,
das preocupações do cotidiano, da educação dos filhos, da relação familiar, do emprego, do
desemprego. Quem tem segredo não traga pra terapia. Aqui não é espaço pra partilha de
segredos. Aqui a gente fala das preocupações do cotidiano. Aqui a gente fala sem medo de
ser julgado e de ser mal-interpretado ou de virar fofoca, porque aqui a gente fala com o
coração em busca de compreender a si próprio. Como nós somos muitos, quem gostaria de
compartilhar uma preocupação? Uma angústia. Qual é o seu sofrimento atual?”.
Participante 1 (sexo masculino, 30 anos): “o sofrimento atual é que eu passo por mui-
tas dificuldades, perdi a família, fiz coisas que eu não gostaria de ter feito. Hoje em dia eu
me arrependo do que eu fiz. Hoje estou vivendo na rua, mendigando como se eu fosse um
cachorro, mas tudo tem sua provação”.
Terapeuta (Adalberto): “uma musiquinha – ‘Eu não sou cachorro não...’”
Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “porque minha irmã é assistente social e
341
conheceu um médico lá no interior e ela propôs dele morar lá em casa. A minha primeira
resposta foi não. Hoje em dia ele tá lá com a gente. Quando ele entra eu saio, quando ele
sai eu entro”.
Grupo cantou “quando eu ia ela voltava, quando ela voltava eu ia”.
Participante 3 (sexo feminino, 29 anos): “mora três irmãos lá em casa e a responsabili-
dade está toda nas minhas costas. E isso tá me incomodando”.
Terapeuta (Adalberto): “sentimento de burro de carga?” (participante 3 concorda fa-
zendo gesto com a cabeça). “Nós temos aqui três situações problema e nós vamos poder
escolher apenas uma dessas três. É aquela que mais me toca, que tem a ver com a minha
história. Não tem aquela escolha objetiva não. São três temas importantes que têm a ver
com o cotidiano. Não tem nenhum maior do que o outro. Agora gostaria que vocês se pro-
nunciassem”.
Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “escolheu o tema da participante 3. Eu tenho
cinco filhos e durante um tempo da minha vida eu me senti também muito sobrecarregada”.
Participante 5 (sexo feminino, 51 anos): “escolheu o tema do participante 2. Não era
conviver com estranho, mas com dificuldade de relacionamento em casa”.
Coterapeuta (S. Zequinha): “escolheu o tema do participante 1. Deve ser muito amargo-
so a pessoa perder a família. Eu acho uma qualidade a pessoa reconhecer o erro. E eu acho
que ele precisa de uma ajuda”.
Terapeuta (Adalberto): “agora a gente vai votar. Só pode votar uma vez, levantando a
mão”.
O terapeuta reapresenta os temas e o grupo vota.
Tema do participante 1 – 40 votos
Tema do participante 2 – 12 votos
Tema do participante 3 – 16 votos.
Etapa 3 – Contextualização
342
Terapeuta (Adalberto): “tu parou com o crack?”
Participante 1: “parei, graças a Deus”.
Terapeuta (Adalberto): “e tu botou o que no lugar?”
Participante 1: “nem cachaça, nem bebida. Só Deus”.
Coterapeuta (S. Zequinha): “como você tá ganhando o pão de cada dia? Trabalhando
com o quê?”
Participante 1: “eu no momento não tô trabalhando com nada, mas eu tô atrás. Se fosse
outra pessoa no meu lugar, se tivesse passando pelo que eu tô passando, eu acho que já
tinha feito uma loucura. Porque o crack é o seguinte, quando a pessoa consome ela você
não quer só um, dois, três... você quer mais. Eu tirava coisas de casa. É a coisa mais horrível.
Não presta. Aí eu saía. Ia pelo meio da rua, não podia ver um casal fora de hora e eu che-
gava e era um assalto... ia pra bocada, comprava mais pra consumir. E assim ia levando...”
Terapeuta (Adalberto): “e qual foi a reflexão que você fez que levou você a dizer que
se eu continuar eu vou morrer e eu não quero morrer? Se você lembra do momento, da
circunstância que você disse que agora vou parar mesmo”.
Participante 1: “foi desde o dia em que eu caí na cadeia. Nem bicho era pra tá preso”.
Terapeuta (Adalberto): “o que passava na tua cabeça quando tu tava lá dentro? Que
filme passou na sua cabeça?”
Participante 1: “muita loucura, arrependimento”.
Terapeuta (Adalberto): “quer dizer que essa tua prisão foi um mal necessário?”
Participante 1: “justamente, porque você pensa... tu tá no xadrez, aquele negócio aper-
tadinho, só um quadradinho, sem poder se levantar, sem andar, com um bocado de macho
ao seu redor, fedorento e suado”.
Participante 6 (sexo feminino, 60 anos): “e seus pais te abandonaram?”
Participante 1: “me abandonaram”.
Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “agora que você já reconheceu tudo o que você
fez, qual o teu maior desejo?”
Participante 1: “meu maior desejo, moça, é que seu eu pudesse recuperar minha família
de volta, de novo”.
Terapeuta (Adalberto): “então eu queria te agradecer por ter aberto seu coração, feito
um streep tease existencial. Mostrou sua alma de gente sofrida, mas que tá buscando sair
dessa situação. A partir de agora ninguém vai mais te azucrinar fazendo perguntas e eu
pediria que você ficasse só prestando atenção no que nós vamos conversar entre nós”.
Etapa 4 – Problematização
Terapeuta (Adalberto): “agora que nós ouvimos a história dele, que perdeu a família,
fez besteira na vida, chegou a ir pra cadeia, mas se arrependeu do que fez. Quem de nós,
também, já se arrependeu de alguma coisa que fez? E o que que eu fiz pra superar?”
Participante 8 (sexo feminino, 47 anos): “há poucas horas atrás eu me sentia assim
perdida, sem nome, sem lenço, sem documento, desmoralizada porque eu sou alcoólatra.
Não posso, não devo ingerir nada que venha a conter álcool. Por conta do meu alcoolismo
muitos viraram as costas pra mim. É o padrão normal, ninguém quer levar tapa. Todo mun-
do de preferência quer carinho. Mas eu tô admirada com o que eu ouvi aqui porque eu bebi
demais, fui de cair nas calçadas, fui de urinar em via pública, enfim, tudo aquilo que faz que
acha que embriagado tem direito. O que me admirou aí na história é que sem autoajuda...”
Terapeuta (Adalberto): “o que se chama de autoajuda?”
343
Participante 8: “uma terapia de grupo pra conseguir sair de uma situação dessa. Nós
temos três irmandades paralelas, né? Nós temos o NA, que é um problema com drogas. Nós
temos a irmandade de alcoólicos anônimos, que é o meu problema. Nós temos ALANON,
que é para os familiares compreender e passar pelo menos a conviver com o problema do
alcoolismo. Alguém perguntou ao rapaz o que levou ele a parar. Ele insistiu, insistiu na fé.
O que me levou a parar não foi a fé, foi meu fundo de poço”.
Terapeuta (Adalberto): “como assim?”
Participante 8: “expulsa de casa, desmoralizada, sem trabalhar, sem produzir, me tornei
um bicho. Embriagado era um monstro. Quer dizer, as coisas todas se viraram contra mim.
E eu cheguei no meu fundo de poço quando um dia eu tava numa churrascaria. Tava com
várias pessoas bebendo e na hora da confusão eu fui a única que fui espancada, a única
que fui presa e fui a única que paguei pelo assunto. Aquilo começou a me chamar a aten-
ção. Meu fundo de poço foi poder nem olhar, nem abrir a porta da minha casa. O que me
levou a superar vários problemas da minha vida em primeiro lugar foi Deus, a irmandade
de alcoólicos anônimos e, sem sombras de dúvidas, essa caloria, esse abraço, esse aperto,
esse sorriso, tudo o que existe aqui dentro, até por ser totalmente natural, que nunca vi
nada igual na minha vida que se chama Projeto 4 Varas”.
Participante 9 (sexo masculino, 59 anos): inicia uma música e o grupo acompanha. “Eu
sou feliz é na comunidade, é na comunidade eu sou feliz”.
Terapeuta (Adalberto): “quem mais já se arrependeu do que fez? Já chegou no fundo do
poço, não interessa as razões, pode ser por outras razões, por outros caminhos...”
Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “o fundo do poço lhe obriga a ir pra frente,
não tem mais pra onde descer. E me obrigou a subir. E o fundo do poço foi uma relação. Eu
era muito nova, 17 anos, primeiro namorado, primeiro amor, projeto arrojado de ter mui-
tos filhos, desenvolvi quase que uma obsessão pelo marido. O que eu sei que tudo passa,
tudo acaba e as relações não são eternas. Então ele deu um ponto final. Ele deixou muito
claro há muito tempo, há mais de dez anos atrás que não me amava mais, mas eu não me
conformava. Nunca aceitei. Parecia uma droga, um vício. Eu corria atrás, me rebaixava, me
humilhava. Eu hoje olho pra trás e vejo que eu tinha tudo, bom emprego, dinheiro. Nunca
precisei de marido pra pagar minhas coisas, tinha tudo. Carro bom. Mas tinha essa ânsia,
essa falta, esse desespero por alguém que não me queria. À medida que eu insistia, mais
ele me maltratava, me humilhava era degradante...”
Terapeuta (Adalberto): Inicia uma música e o grupo acompanha. “Quem eu quero não
me quer, quem me quer mandei embora, o que será me mim agora?”
Participante 4: “e foi numa dessas de humilhação que eu cheguei no fundo do poço e
falei pra mim...”
Terapeuta (Adalberto): “então tem hora que chegar no fundo do poço termina sendo
uma boa coisa porque dá um impulso pra vida?”
Participante 4: “só resta subir. Foi interessante que o fundo do poço foi como se tivesse
um espelho e eu disse pra mim mesma que eu não precisava disso. Aí eu comecei a resga-
tar. Tu é uma mulher nova, cheia de energia, trabalha, é querida, tem afeto, não tem afeto
desse marido, mas tem afeto de tantas pessoas que te querem bem. Vai à luta. Deixa ele.
Deixa esse troço pra lá”.
Coterapeuta (S. Zequinha): “hoje em dia ele tá atrás de você?”
Participante 4: “não sei. Só sei que eu arranjei um amor”.
Grupo bate palmas e canta: “chorei, não procurei esconder. Todos viram, fingiram, não
precisava. Ali onde eu chorei qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei quero
344
ver quem dava... reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta
por cima”.
Etapa 5 – Encerramento
O grupo fica de pé em circulo, uma pessoa abraçada à outra formando uma roda. Fazem
um leve balanço.
Grupo canta “Tô balançando, mas não vou cair”.
Terapeuta (Adalberto): “esse é um pouco o movimento da vida. A gente vai pra um lado,
quando pensa que vai cair pra direita, aí o da esquerda puxa e da mesma forma para o
outro lado. E assim a gente vai saindo da rigidez das nossas ideias, das nossas convicções,
porque toda convicção é uma prisão. E a vida passa a ser uma caminhada mais suave. Que-
ro agora agradecer ao [participante 1], que contou sua história de vida, por causa da droga
perdeu a sua família, perdeu o amor próprio. Antes de perder o juízo caiu no fundo do poço
e você disse que pra você a sua espiritualidade foi uma coisa importante. Encontrou uma
igreja que te deu apoio e que hoje você já tá dois meses sem usar crack e que tá querendo
recuperar sua família, sua dignidade. Então queria lhe agradecer e dizer que a sua história
é uma história muito bonita. E que você tá no processo. Já driblou vários, mas que é muito
importante fazer gol. Não basta só driblar. Ainda tem muitos gols para serem feitos. E se
você continuar nesse pique a gente tem certeza de que você vai fazer alguns gols. Quero
lembrar se você lembrarem de alguma música, estória, poesia, vocês podem propor. O que
eu tô levando da terapia de hoje? O que eu tô levando do [participante 1] ou das outras
pessoas?”
Participante 10 (sexo masculino, 45 anos): propõe uma música e o grupo acompanha.
“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia...”
Participante 10 (sexo feminino, 65 anos): “eu quero dizer pra você [participante 1] que
você não está só. Parabéns pela coragem de ter vindo, por ter parado com esse vício e conte
conosco e volte aqui, às terapias. Você vai vencer. Já deu o primeiro passo”.
Participante 11 (sexo feminino, 42 anos): “eu vou levando daqui a coragem dele de ter
parado com o vício da droga e já tá com dois meses sem usar”.
Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “eu vou levando a conversão dele [participan-
te 1]. Ele se propôs a se converter a uma vida sem estar no mundo das drogas”.
Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “ouvindo a história do [participante 1], eu fi-
quei me perguntando o que passa na televisão quando a pessoa faz alguma coisa errada na
sociedade, é um bandido, né? E aqui a gente foi tratando a história dele, cada um que tem
sua dificuldade, como ser humano. Eu acho que o Projeto 4 Varas nos ajuda a mudar a men-
talidade, a vida e a nossa linguagem. A nossa linguagem pesa nas pessoas. Pesa na gente.
Nosso modo de pensar. E eu acho que hoje com a história dele creio que ninguém viu ele
como um bandido, como um drogado, mas como um ser humano que quer se reerguer”.
Conclusão
345
Referências
346
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347
348
A prática do consultório de rua na abordagem
da vulnerabilidade associada ao uso de drogas
Antônio Nery Filho
22
Patrícia von Flach
Andréa Leite Ribeiro Valério
Adriana Prates
Sem a real dimensão da aventura a que se
propunha, o consultório de rua orientava-se
pela certeza dos efeitos que podem produzir
os encontros plenos entre humanos, susten-
tados em princípios éticos: responsabilidade,
vulnerabilidade, autonomia e justiça.
349
350
Introdução
Na vida, tudo parece determinado pelo acaso. Mas, se se atentar melhor, pode-se per-
ceber que há certa organização no caos. Tomemos o consultório de rua: seu aparecimento
exigiu 10 anos de trabalho do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD),
atividade ambulatorial especializada, inaugurada em 1985 como extensão da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal da Bahia e apoiada pelo governo estadual. Para esse
centro acorriam todos os que, fracassando ou não na relação com uma ou mais substância
psicoativa, desejavam encontrar algum acolhimento que não os julgassem e, menos ain-
da, os considerassem doentes ou criminosos, destinados à exclusão em alguma unidade
psiquiátrica ou prisional. Aliás, o próprio centro havia surgido inspirado na experiência de
trabalho de um dos autores deste texto, em hospital judiciárioa . Para lá eram, por força da
antiga Lei 6.368/76, dita Lei de Tóxicos do Brasil, encaminhadas todas as pessoas flagradas
em um ou mais dos verbos constantes no rol das proibições (portar, transportar, guardar,
etc.)1, tendo em vista definir a condição de dependente ou traficante e suas consequências,
isto é, tratamento compulsório ou encarceramento.
Isso não pareceu ao autor uma medida justa. Aliás, considerando os danos causados à
maioria dos adolescentes submetidos a essas avaliações, podia-se afirmar que não só eram
injustas como gravemente danosas à vida física, psíquica e social daquela população de jo-
vens, cujo uso preponderante de maconha (Canabis sativa) representava um ritual ordálico,
de passagem da adolescência para a vida adulta. Ou era o recurso mais comum na prática
transgressora que marcava e afirmava, subjetivamente, o lugar do jovem no mundo.
Deve-se ter presente, ainda, que a maconha estava, àquela época, impregnada da his-
tória hippie e, mais tarde, dos festivais, em que a paz, o amor e a recusa de uma sociedade
orientada pelo e para o consumo eram tidos como fundamentais para uma nova ordem
que se propunha mais justa, menos excludente e mais humana.
Desse modo, movido pelas discussões no ensino da Psiquiatria Forense, parte do con-
teúdo da disciplina Medicina Legal, um dos autoresb concebeu o CETAD, apoiado em três
princípios: o anonimato, a gratuidade e a busca voluntária pelo tratamento. Este último
assegurava ao paciente o direito de recusar tratamentos impostos pela família ou pelo
Estado, posto que, em geral, estava fadado ao fracasso em razão da ausência de adesão ou
envolvimento com a proposta terapêutica. No decorrer do tempo, o CETAD/UFBA sempre
se orientou pelo respeito à decisão do paciente de permanecer ou não em tratamento,
quando conduzido à sua revelia. Nesse sentido e de sua experiência foi pensado o consul-
tório de rua, prática clínica voltada para os mais desvalidos ou vulneráveis e apoiada nos
conhecimentos da redução de danos e das práticas do campo socioantropológico.
Um pouco de história
Até meados dos anos 90, em que pese o conhecimento largamente difundido entre mé-
dicos e acadêmicos de Medicina, particularmente nos serviços de urgência e emergência, o
CETAD/UFBA, em Salvador, não registrava o uso de drogas injetáveis entre seus pacientes.
a
Antonio Nery Filho, psiquiatra, trabalhou no então Manicômio Judiciário (1970-1973), hoje Casa de Custódia e
Tratamento, instituição da estrutura da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia.
b
A Em julho de 1985, o Prof. Antonio Nery Filho apresentou ao Departamento de Anatomia Patológica e Medicina
Legal da Faculdade de Medicina da UFBA a proposta de criação de serviço especializado para cuidado, estudo,
pesquisa e ensino, relacionado às substâncias psicoativas e seus usos. Inicialmente como atividade de extensão, lo-
calizado no Centro Social Urbano da Caixa D’água, desde 1993 o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas
(CETAD) transferiu-se para o Canela, no campus universitário.
351
O motivo provavelmente estava relacionado à condição socioeconômica e à marginaliza
ção envolvendo os consumidores de drogas injetáveis que dificilmente buscavam tra-
tamento pelo uso de drogas2. Ademais, era muito restrito o conhecimento da prevalência
da contaminação pelo HIV naquela população. A primeira pesquisa sobre o assunto foi rea-
lizada em 1996 por Andrade, apesar das primeiras abordagens terem ocorrido por volta de
1992, a partir do Programa de Redução de Danos3, iniciativa pioneira do centro, inspirada
nas atividades desenvolvidas pelos Médecins du Monde, em Paris. No Brasil as experiências
foram implantadas em Santos algum tempo antes.
Em consequência das informações obtidas envolvendo usuários de drogas injetáveis e
HIV em outras regiões do Brasil4,5, foi inaugurada em 1999 no CETAD/UFBA a atividade de-
nominada pontos móveis de prevenção, constituída por equipe multidisciplinar, qualificada
segundo os princípios da redução de danos, atuando em diferentes locais da cidade. Essa
atividade buscava alcançar os mais excluídos e fragilizados, usuários de drogas injetáveis
(ou seus parceiros), incapazes de cuidarem dos diversos agravos à saúde e voltados quase,
se não exclusivamente, para a sobrevivência no dia a dia.
Naquele mesmo ano, 1999, outra iniciativa foi posta em marcha no CETAD/UFBA e de-
signada pelo seu idealizador como consultório de rua. Na verdade, anos antes (1989), técni-
cos do CETAD/UFBA se indagaram sobre a ausência de assistência aos meninos e meninas
encontrados nas mais diversas regiões de Salvador, lavando para-brisas de carros, men-
digando, roubando ou cheirando cola de sapateiro. Chamava a atenção a ausência dessas
crianças e adolescentes no centro e, mais ainda, a possível inadequação técnica para seu
atendimento, constatado na baixíssima adesão dos poucos encaminhados para tratamento
por instituições religiosas ou de proteção à infância e adolescência. Parecia indispensável
olhar mais de perto por essas crianças e o mundo da rua em que viviam. Era necessário
compreender “onde as coisas se passavam”, dar significação aos gestos, ouvindo os atores
sem a preocupação de contá-los ou de convencê-los a abandonar o uso de drogas, mas de
compreendê-los por meio de suas histórias, não raro escritas no real de seus corpos.
A rua havia ganhado, segundo DaMatta6, estatuto de “categoria sociológica”, “como con-
ceito que pretende dar conta de noções a partir das quais uma sociedade pensa ela mesma
e define como códigos de ideias e valores sua cosmologia e seu sistema de classificação
das coisas do mundo e, também, para traduzir aquilo que a sociedade vive e faz concreta-
mente”, na medida em que “não designa simplesmente espaços geográficos ou coisas físi-
cas mensuráveis, mas, sobretudo, entidade moral, área de ação social, espaço ético dotado
de positividade, domínio cultural institucionalizado, reações, leis, rezas, músicas e imagens
esteticamente enquadradas e inspiradas”. As expressões “fora”, “já pra rua”, “coisas da rua”,
“no olho da rua”, “gente de rua”, “rua”, pronunciadas com as mais diversas tonalidades afeti-
vas, em português, como em muitas línguas, dão a dimensão desse lugar onde tudo é, ou
deveria ser, transitório7.
Nessa perspectiva, durante dois anos, pesquisadores do CETAD/UFBA desenvolveram
intensa e produtiva observação de uma área central da cidade de Salvador (Praça da Pie-
dade), a que chamaram de “banco de rua”c. Esse trabalho mostrou que uma criança (ou
adolescente) não é igual à outra simplesmente porque são crianças. Do mesmo modo,
c
Entre 1990 e 1991, Antonio Nery filho, Gey Espinheira, Nívea Chagas, Margareth Leonelli e Jane Montes denominaram de
“banco de rua” a observação socioantropológica e clínica das crianças, adolescentes e adultos vivendo na Praça da Piedade,
região central de Salvador. Este trabalho foi fundamental para a compreensão do que se passava na rua, envolvendo o con-
sumo de drogas e as posteriores atividades desenvolvidas pelo CETAD/UFBA.
352
a presença de um pai, de uma mãe e de um filho não faz uma família igual à outra. Elas
diferem por seu patrimônio material, cultural; por suas histórias e raízes; por seu passa-
do, presente e possibilidades futuras. As famílias diferem em sua vida cotidiana a partir
da qual se organizam e se estruturam, marcando o destino de seus filhos. A presença de
crianças na rua denunciava, com base em suas vidas, a miséria, a crise, os desvios, a mar-
ginalidade. Crianças e adolescentes que não eram iguais às outras crianças e adolescentes
porque haviam envelhecido pela vida. Homens e mulheres em corpos infantis. Homens e
mulheres pelo saber, pelo amor e pelo sofrimento. Esse fato não era novo, nem na Bahia,
nem em outras regiões do Brasil, mas se reatualizava no dia a dia da observação de suas
estratégias de sobrevivência na rua e nas significações sociais que portavam, sem esquecer
as oposições que marcam as famílias, as crianças e a rua, a ação do Estado por intermédio
das instituições oficiais e suas interpenetrações7,8.
353
para o atendimento a uma população cujas demandas eram tão específicas e especiais?
Em que medida experiências como esta poderiam contribuir para a melhoria da formação
acadêmica dos futuros profissionais da saúde?12. Vale lembrar que a equipe inaugural do
consultório de rua era multidisciplinar, constituída por uma psicóloga (de orientação psi-
canalítica), um médico psiquiatra, um antropólogo, um acadêmico de Medicina (5º ano) e
um motorista (capacitado como agente de saúde/redutor de danos).
Na primeira reunião do idealizador do consultório de rua com esta equipe, foi posta a
seguinte questão: o que se deve fazer na rua? A resposta foi: destituírem-se de seus olhares
e observarem a rua com os olhos de seus pares, de modo que possam viver a experiên-
cia dos “olhares cruzados”. Ao longo do trabalho esta equipe foi sendo modificada pelas
exigências da prática, chegando a uma equipe mínima constituída por: psicólogo, médico
generalista, pedagoga/educadora social, assistente social, redutor de danos e o motorista,
também capacitado como agente de saúde.
Essa experiência durou de 1999 a 2006, quando foi interrompida por ausência de su-
porte financeiro, posto que durante sete anos a contratação dos técnicos (à exceção da
coordenadora) se deu graças aos convênios estabelecidos com a prefeitura de Salvador e
com o estado da Bahia, por intermédio da Associação Baiana de Apoio ao Estudo e Pes-
quisa Sobre o Abuso de Drogas (ABAPEQ), Organização Não Governamental de Utilidade
Pública, apoiadora do CETAD/UFBA.
As pesquisas desenvolvidas no Brasil13,14 mostraram que a maioria dos jovens em si-
tuação de rua buscava atendimento em razão de problemas de saúde relacionados ao
consumo de drogas, prioritariamente em uma instituição específica para essa população.
Entretanto, apenas 0,7% dos entrevistados buscava atendimento em uma unidade de saú-
de, indicando “a enorme distância entre a situação de rua e os serviços de saúde”, prova-
velmente em razão da “descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde [...] e
“preconceitos dos profissionais em relação à situação de rua”13,14.
Pesquisa Nacional Sobre a População de Rua realizada entre agosto de 2007 e março
de 2008, publicada em 2009, mostrou que 18% da população entrevistada haviam sido
impedidas de receber atendimento na rede de saúde15,16, associando-se a esses fatores o
despreparo das equipes de saúde: “Os serviços públicos de saúde não estão adequados à
realidade e às necessidades das pessoas em situação de rua. Não existem condições de
acolhimento e as pessoas que vivem nas ruas não procuram tais serviços, por conhecerem
as limitações de acesso e por sentirem-se discriminadas. [...]. É necessário, assim, o desen-
volvimento de ações especiais na área do atendimento de saúde, abrangendo a capacita-
ção dos profissionais de saúde, a alteração da atual cultura sobre a população em situação
de rua e a mudança de regras e procedimentos adotados no funcionamento dos hospitais
e centros de saúde”17.
354
ferida), quer na sua dimensão adjetiva, isto é, relacionada às circunstâncias especiais ou
particulares que tornam os indivíduos mais suscetíveis de serem atingidos18.
Firmin Schramm, por sua vez, distingue a potencialidade genérica de populações e
indivíduos serem vulneráveis (vulnerabilidade), de uma efetiva vulneração, condição que
define os vulnerados, propondo para estes uma bioética de proteção que pode ser enten-
dida como:
Nesse sentido, o consultório de rua pode ser reconhecido em sua prática junto aos vul-
nerados, em particular àqueles vivendo em situação de rua e usuários de drogas (lícitas e
ilícitas), como efetivamente inseridos na dimensão de uma bioética de proteção, na medida
em que os alcança em seus espaços de vulneração e lhes possibilita a indispensável assis-
tência no campo da saúde mental e geral, pelo reconhecimento de sua cidadania, tornando
-os visíveis socialmente e capazes de buscar outros recursos disponíveis e indispensáveis
a uma vida minimamente digna, ainda que – reconheça-se – seja difícil estabelecer de que
mínimo se está falando.
d
O Programa “Fome Zero” foi criado em 2003 e coordenado pelo Ministério Extraordinário da Segurança Ali-
mentar e Combate à Fome. A partir desse Programa foi formulada a Política Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Programa Bolsa Família. Legislação
e Instruções. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em:
jul. 2015.
355
espaço e liberdade são uma ameaça [...]. Ser aberto e livre é estar exposto e vulnerável.
O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões estabele-
cidos que revelem algo, é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer
significado. O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço, o lugar é
um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e de
lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependên-
cia e liberdade”21.
A rua, como lugar (às vezes entendida como espaço), apresenta diferentes dinâmicas:
é um ambiente instável, sujeito a várias interferências, à sazonalidade e a mutações con-
tínuas, além de, sempre, poder surpreender por acontecimentos inusitados. O consultório
de rua insere-se, portanto, nesse espaço/lugar, territórios psicotrópicos, definidos, segundo
Luís Fernandes e Alexandra Ramos, como “lugares de concentração de atividades drug,
onde uns chegam, partem e regressam, onde outros estão em permanência, mas em con-
dições precárias, que asseguram a logística para as necessidades do consumo de drogas
no imediato”22.
Os territórios psicotrópicos, que equivalem ao que se costuma chamar de “cenas de uso”,
têm como característica “sua grande mobilidade. Constituem-se, quando e onde reúnem
uma série de condições ecossociais específicas, e deslocam-se quando estas são alteradas”.
Esses territórios também costumam sediar atividades ilegais, especialmente o tráfico, o
que atrai a polícia, tornando o cenário ainda mais tenso. Em alguns locais onde tem estado
presente, o consultório de rua de Salvador tem se deparado com diferentes cenas de uso,
possuidoras de diferentes especificidades. Naquelas formadas por pessoas em situação
de rua, a atividade é geralmente bem aceita e consegue atuar na perspectiva da saúde e
da redução de danos. Porém, cenas compostas, frequentadas por indivíduos com alguma
inserção social, são geralmente menos permeáveis.
A experiência acumulada ao longo dos anos permite, hoje, reconhecer, inspirada na
prática de redução de danos, algumas “regras” fundamentais para a implantação e o desen-
volvimento das atividades do consultório de rua23,24, como se segue:
Abordagem de uma nova área: a escolha de uma área de atuação do consultório de rua
orienta-se pela presença de usuários de drogas em determinado território/lugar. Contudo,
cabe observar de modo detalhado a dinâmica que os envolve e, sobretudo, identificar os
possíveis aliados locais (pessoas, equipamentos sociais ou de saúde, comércio, etc.). A abor-
dagem deve tomar como norte a saúde, compreendida em sentido ampliado e não como
ausência de doença(s), deixando o mais claro possível seu distanciamento de propostas
repressoras, higiênicas ou “salvadoras”.
A equipe deve ser constituída por pessoas destituídas de preconceitos quanto ao con-
sumo de drogas, bem formadas tecnicamente - guardadas suas respectivas qualificações -,
identificada com o difícil trabalho nas ruas, percepção clara de seus objetivos e, mais ainda,
seus limites humanos, técnicos e administrativos, conhecendo os códigos e linguagens que
variam de uma região para outra.
Cuidar da sua própria saúde: a equipe do consultório de rua (como de qualquer equipe
trabalhando na rua) está sujeita a muitas das circunstâncias que envolvem sua cliente-
la, tais como contaminações por agentes infecciosos, acidentes, violência relacionada ao
tráfico ou à repressão policial e, sobretudo, ao sofrimento psíquico inerente ao próprio
trabalho. Há de ser garantido, além do tempo necessário à formação técnica permanente,
o tempo indispensável ao acolhimento das dificuldades próprias a cada um e à equipe, a
partir de supervisão permanente.
356
Deve-se lembrar que a atuação do consultório de rua não se sustenta sem articulação
com a rede de saúde - atenção básica e especializada -, além das imprescindíveis parcerias
com outras instâncias formais (educação, assistência social) e informais (ONGs e lideranças
comunitárias).
À exceção do veículo adaptado para as suas atividades, que garante a visibilidade, iden-
tidade e transporte dos técnicos do consultório de rua, os demais recursos materiais são va-
riáveis e devem atender às necessidades do(s) campo(s). Os demais “dispositivos utilizados
são secundários ao encontro e devem servir apenas como apoio para o favorecimento das
relações interpessoais (transferenciais), a exemplo da música, oficinas lúdicas e/ou artísti-
cas. Os objetos servem como apoio ao encontro e não como condição para o encontro”25.
Todos esses fatores, de diferentes modos, influenciam o trabalho na rua, por afetarem
os espaços e mobilizarem os usuários de diversas maneiras. As modificações na dinâmica
da rua, quer longitudinais, quer pontuais, demandam adaptações nas estratégias de atua-
ção da equipe, tal como a pesquisa constante de novas cenas de uso, que têm se tornado de
acesso cada vez mais difícil, sobretudo por conta de contínuas ações de “reordenamento ur-
bano” e “limpeza pública”, relacionadas às políticas imediatistas e superficiais que buscam
atender a interesses nacionais ou não, geralmente determinados pela ordem econômica,
consumista.
A rua pode ser assumida como espaço clínico, como campo de possibilidades. Consta-
tamos em nossas andanças que “o seu olhar melhora o meu”e. Pode-se falar, então, de uma
clínica marcada pela transformação de sujeitos - sujeitos usuários e sujeitos técnicos, em
uma relação intersubjetiva, dialógica e dialogada. Uma clínica do encontro entre humanos,
em movimento, ampliada, da escuta sensível, do olhar que vê, que torna visível, que cuida
e que ampara. Uma clínica poética e estética que, por ser ética e política, se faz tecendo
redes de pessoas vivas, usuários, cidadãos, militantes ou, simplesmente, pessoas voltadas
para a construção de novas redes de significados/existências. Uma clínica que acontece no
“entre” humanos suscitando humanidades.
Uma clínica de/na rua! Espaço de liberdade, mas também de aprisionamento. De en-
contros e desencontros. De guerra e de paz. Certamente, a rua pode representar um lugar
de risco à saúde, mas pode, também, ser uma via de reafirmação de existências negadas, de
organização e de relação com o mundo. Pode ser o único lugar cabível para alguns sujeitos
que trazem em si a solidão, imposição da exclusão social, e que encontram, nos bons en-
contros, uma saídaf, o apaziguamento para uma vida marcada pelo sofrimento, pela falta,
pela miséria que embrutece, pela violência que dilacera, pelo abandono que desampara,
pela negligência que desprotege, pela exploração que denuncia a falta do Estado. Da viola-
ção de direitos à proteção, o certo é que a rua é intensa, é o espaço do inusitado e das mil
e uma possibilidades. O que encontramos quando nos permitem (e nos permitimos) “entrar”
no mundo da rua é uma rede de pessoas e relações com importante função afetiva e po-
tencial de solidariedade, de compartilhamento que nos afeta e nos transforma na relação
com “esse mundo”, com “esse outro”.
e
Referência à música de Arnaldo Antunes, “O seu olhar”. Disponível em: http://musica.com.br/artistas/arnaldo-an-
tunes/m/o-seu-olhar/letra.html.
f
Os bons encontros referidos por Espinosa são aqueles que aumentam nossa força de existir, nossa potência de agir,
nossa alegria. Nos encontros da vida cotidiana vamos aprendendo a fazer acontecer os bons encontros, fazendo!
357
A rua é sempre coletiva. Nela, não há lugar para o privado. Na rua, entretanto, podem-se
viver múltiplas identidades simultâneas, pode-se ser até simulacro. Nela se foge das “tira-
nias da intimidade” que formulam, modelam, violentam. A rua é amparo coletivo, o lugar
dos desamparados26.
A rua como lugar para os desamparados, um “lugar para onde ir”! E, como reiterada-
mente dizia Gey Espinheira , todo humano precisa de um lugar para onde ir, uma referência,
uma casa. A rua, para muitos, tem sido essa casa. E a forma de se apropriar desse espaço
também será a expressão da trajetória de vida de cada um, ainda que modificada ou poten-
cializada a partir da relação que estabelecer com os outros da/na rua.
Com a afirmação das possibilidades da rua e dos usuários nesse contexto, não se está
negando ou deixando de reconhecer o caráter desumano, que marca e faz marcas nessas
existências: a falta de dignidade, a privação de direitos humanos básicos, os estigmas, pre-
conceitos, abusos, desproteção e, principalmente, todo o sofrimento subjetivo consequente
às vivências objetivas de injustiças sociais cotidianas. Mas, também, não se quer reforçar
essa rua estigmatizada (e estigmatizante) como lugar de marginais, dos drogados, da “su-
jeira humana” depositada nos guetos, esgotos e lixões das cidades. Quando nos envolve-
mos com esse “lixo”, quando o tocamos, quando nos responsabilizamos por ele, quando
o tornamos “objeto de nosso desejo”, constatamos sua transformação diante dos nossos
olhos e desvendamos toda a humanidade, antes escondida sob o efeito do discurso social
que desumaniza e condena sujeitos à morte social. É importante considerar, então, que
viver e existir não são a mesma coisa, pois que existir implica o reconhecimento do Outro
e, conforme Bourdieu, citado por Bauman, “talvez não exista pior privação, pior carência
que a dos perdedores da luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência
socialmente reconhecida, em suma, por humanidade”27.
Se se considerar que as identidades se constroem a partir do reconhecimento do outro,
ser identificado como o marginal ou o “sacizeiro” da rua tem como resultados o estigma,
o preconceito, a desqualificação, a desmoralização. Nessa perspectiva, as atividades do
consultório de rua iniciam-se na relação com os usuários, com a desconstrução dessa iden-
tidade marcada pela negatividade, na alienação mantenedora das relações de dominação,
pois “a desmoralização, no sentido mais comum do termo, dos usuários de crack, requer,
como prevenção ou intervenção, a moralização desse sujeito tornado “sujeira humana”9.
O trabalho no consultório de rua ensinou a enxergar possibilidades e fazê-las existir,
fazendo: dali, de onde nada se esperava, quando se passa a desejar e a cuidar, a vida bro-
ta. Essa potência de vida que se reafirma cotidianamente na rua pode ser entendida “[...]
como uma potência de resistência que se afirma na contramão à desqualificação da vida,
que se expressa nos ressentimentos, nos julgamentos morais, nas indiferenças, nos ódios,
nas vinganças”28. A prática clínica do consultório de rua é, também e principalmente, ético
-política, pois que, na sua dimensão terapêutica, busca sempre produzir mudanças, desvios,
nunca acomodações.
O consultório de rua é uma tecnologia de produção de saúde que acontece lá onde a
vida flui sem roteiro, inusitada, intensa e aberta à invenção de outros modos de existência,
em um eterno por vir. Uma clínica do e no mundo da vida, aberta e disponível aos sentidos
que dela emanam – os medos, as insônias, as depressões, a fissura, mas, também, a alegria,
o amor, a felicidade, a solidariedade, a generosidade. Exige que se esteja atento a tudo
aquilo que se estabelece como campo de expansão e de expressão. Propõe a invenção e a
reinvenção cotidiana da vida, a pactuação em rede de novos fluxos, de outros percursos, de
outras formas de caminhar pelos espaços da cidade, de outros movimentos produtores de
358
atos revolucionários, de transformação social.
Dessa forma, as drogas não ocupam, no fazer do consultório de rua, espaço privilegiado.
Nessa clínica de rua ocupam lugar privilegiado “os humanos e suas vicissitudes”29, na qual
“as drogas não podem ser tomadas como um mal em si mesmas, como causas, senão de
modo enviesado ou como avesso da causa”f. Nesse sentido, o cuidado com os usuários, em
nenhum contexto, visa separá-los da(s) droga(s), mas, junto com ele, trilhar os caminhos
dos sentidos e responsabilizações em relação ao seu uso.
“A clínica é o lugar aonde ir quando se sofre, quando se precisa ser acolhido”30. A clínica
é o lugar do “encontro”, que é inseparável da vida social, da convivência, das conversações
e que, assim, nos convoca a sair do lugar, a experimentar, a sentir, a problematizar nosso
próprio eu, imagem do Outro. A direção clínica será, então, fomentar o desejo do cuidado de
si, como propõe Foucault31. O cuidado de si que é ético consigo mesmo. Que implica uma
relação com os outros, que é uma prática social, construída na e em relação ao outro. Uma
ação que implica uma reflexividade e que não está dada, mas a ser construída cotidiana-
mente. Esse “cuidar de si” implica, também, e principalmente, o cuidador, no reconhecimen-
to de seus preconceitos, suas limitações, suas verdades, seus desejos, pois “[...] pensar num
plano ético é pensar/intervir, antes de tudo, sobre nós mesmos, na vida, no viver” 28.
Essa clínica, marcada por preconceitos e estigmas, não é simples. Exige de cada técnico
coragem e reconhecimento de sua impossibilidade para mudar o mundo. Por isso a consi-
deramos uma clínica ético-política e, como tal, exige militância e participação social. Aqui
vale lembrar Goffman32 quando cita a militância como uma ação de contraestigmatização.
Mas pode-se complementar, entendendo a militância como resultado da incorporação de
um senso crítico de realidade a ser construído com e por nós, a partir do reconhecimento
de que:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o in-
ferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas
maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o
inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda
é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer
quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço33.
359
um caminho prévio, um cuidado bom ou mau, mas apenas narrativas polifônicas que, entre
os encontros e desencontros, podem fazer vir à tona o si mesmo. “Mas se não pode ainda
instalar o ‘si mesmo’ (percebido como insuportável), se a implicação não se inscreve, fica
então um trabalho a ser feito”37. Afinal, o cuidado se faz fazendo.
g
Vozes da Seca. Zé Dantas e Luiz Gonzaga. 1953.
360
sibilita a construção de pontes passíveis de levarem a algum lugar, a uma transformação
qualquer, que pode redefinir trajetórias, reacender sensibilidades, produzir novas emoções
e novos desejos. O lugar do consultório de rua não é o da caridade, nem da pena. Um dos
seus princípios é o da dignidade humana e os caminhos que empreende são do diálogo
sem ilusões.
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Cultura).
363
364
23
A visita domiciliar motivacional em situações de
vulnerabilidade
Edilaine Moraes
Geraldo Mendes de Campos
365
366
Introdução
O uso abusivo de substâncias e a dependência química são condições que, quase sem-
pre, caminham lado a lado com as vulnerabilidades. Isso, pelo fato de já o início do uso de
substâncias se dar, invariavelmente, pela exposição do sujeito a alguma situação de vulne-
rabilidade, seja ela ambiental, psíquica ou biológica. De forma semelhante, a continuidade
do uso de substâncias e uma possível progressão ao abuso e à dependência se favorecem
da exposição do sujeito a essas situações. Frente a essa realidade, surge a necessidade
de intervenções que possam priorizar a identificação de tais vulnerabilidades, até mesmo
atuando no desenvolvimento e fortalecimento de fatores protetivos essenciais para a mo-
dificação de tal cenário.
Atualmente, várias intervenções na área dos transtornos pelo uso de substâncias (TUS)
procuram compreender e intervir nessas situações. Neste capítulo, aborda-se uma dessas
intervenções já evidenciadas como eficaz: a visita domiciliar motivacional (VDM)1.
A assistência domiciliar (AD), da qual a visita domiciliar é uma das modalidades, é uma
prática que vem sendo utilizada desde o século XVIII para os mais diversos fins, como so-
ciais, religiosos, caridosos e também por questões relacionadas à saúde2. Embora seja uma
prática utilizada há bastante tempo (exemplo: médicos da família), a criação “oficial” da AD
no Brasil remete a um serviço de visitas realizadas por enfermeiras, no Rio de Janeiro, em
1919. Esse serviço visava, principalmente, à prevenção de doenças infantis3. Daí em diante,
grande número de ações fortaleceu a prática da AD em nosso país2.
Diversos estudos demonstram a gama de possibilidades e contribuições da AD para os
mais diversos segmentos nas áreas social e de saúde, inclusive, mais recentemente, na área
da dependência química (DQ)3.
Especificamente relacionando a AD à DQ, Moraes (2010) revela bons resultados propi-
ciados pela VDM tanto aos pacientes (alcance e manutenção da abstinência; aumento da
motivação e adesão ao tratamento; melhoria nas relações familiares; resgate de papéis
familiares; reinserção no mercado de trabalho e em atividades sociais), quanto aos fami-
liares (melhor compreensão das especificidades da DQ; mudança de atitude em relação ao
paciente; participação nos grupos de orientação familiar; melhoria da dinâmica familiar;
resgate de vínculos afetivos; etc.)1.
Como intervenção que se propõe a atuar na complexidade do tema TUS, a VDM surge
objetivando, entre outros, identificar e intervir tanto nos fatores preditivos (fatores de risco
e vulnerabilidades), quanto nos problemas decorrentes.
De forma sucinta, este capítulo procurará apresentar a práxis da VDM, seus principais
fundamentos e outros aspectos importantes a serem considerados durante as visitas. Será
proposta, também, uma reflexão sobre possíveis contribuições da VDM diante de situações
de vulnerabilidade. Além disso, estará incluído, no final do capítulo, o Protocolo das Visitas
Domiciliares Motivacionais4, elaborado para a realização de uma pesquisa concluída em
2007, para que possa ser adaptado e utilizado por outros profissionais, conforme seus ob-
jetivos e realidades.
367
tivos outros que não o engajamento que aqui se propõe. Para isso, a VDM utiliza técnicas
da entrevista motivacional5, uma intervenção com eficácia já reconhecida na área da DQ.
Entende-se a VDM não como uma modalidade de tratamento independente, mas como
uma estratégia que deva ser aliada às intervenções já praticadas pelos serviços de aten-
ção aos usuários de substâncias. Pode ser utilizada por quaisquer propostas de ação que
busquem a prevenção, tratamento e promoção de saúde nessa área, sejam elas públicas,
privadas ou não governamentais.
Objetivos principais
Estabelecer ou fortalecer um bom vínculo com as pessoas que receberão a visita - a quali-
dade do vínculo estabelecido é um forte preditor do sucesso – ou fracasso – da interven-
ção. Por intermédio dessa relação de confiança que se estabelece, torna-se possível mais
comprometimento entre terapeuta, paciente e familiares, permitindo maior engajamento
de todos no processo terapêutico.
Favorecer e incentivar a adesão de pacientes e familiares ao tratamento - a presença dos
profissionais na residência dos pacientes, por si só, provoca um sentimento de importância
e valorização nos visitados, que favorece maior engajamento e aceitação das propostas
terapêuticas sugeridas.
Possibilitar acesso a informações específicas sobre a dependência química - muitas vezes,
tanto o paciente quanto seus familiares não possuem informações confiáveis sobre esse
transtorno. Muitos mantêm, ainda, o entendimento da DQ apenas como um desvio de cará-
ter, falta de força de vontade, de vergonha na cara, etc. O entendimento adequado, livre de
preconcepções, pode modificar a imagem que se tenha criado do usuário.
Observar e intervir em possíveis vulnerabilidades percebidas - profissionais capacitados,
em visita ao ambiente do paciente, poderão identificar e intervir, in loco, em vulnerabilida-
des importantes que possam estar favorecendo o comportamento aditivo;
Fortalecer fatores de proteção (FP) já existentes - da mesma forma que é possível a iden-
tificação de fatores de risco e vulnerabilidades, pode ocorrer também com os FPs. Pesso-
as significativas, atitudes assertivas, recursos disponíveis na comunidade, etc. podem se
transformar em facilitadores da adesão ao tratamento, da melhoria da qualidade de vida,
do alcance e manutenção da abstinência, entre outros.
368
Questionar discrepâncias percebidas entre comportamentos atuais e metas futuras - auxi-
liar paciente e familiares a perceberem as divergências que possam existir entre seus com-
portamentos atuais e metas almejadas, possibilitando mudanças em aspectos importantes
para o alcance dos objetivos.
Provocar mudanças de crenças e atitudes “defensivas” - não raro, pacientes e familiares
apresentam uma visão distorcida de si, do outro e de suas relações com as realidades que
os cercam. A VDM procura reconhecer e modificar crenças e atitudes que surgem como
escudos nas relações interpessoais.
Estabelecer planos de ação - estratégia muito importante no tratamento da DQ, o plano
de ação terá mais validação se for pactuado junto ao paciente e seus familiares. Como
“cúmplices” nesse processo, obtém-se mais comprometimento de todos.
Fortalecer o compromisso de todos - a presença dos profissionais na residência demons-
tra, subjetivamente, seu comprometimento com o processo de recuperação do paciente.
Essa percepção, por parte do paciente e seus familiares, propiciará mais compromisso com
o tratamento e com as mudanças propostas no plano de ação.
Quantidade de visitas
O número de visitas irá variar de acordo com os objetivos propostos. Para os objetivos
listados, considerou-se a realização de quatro visitas como sendo o ideal. Essas visitas fo-
ram semanais e consecutivas, com duração aproximada de uma hora. Assim, a intervenção
se deu de forma bastante intensiva, visto que ocorreu em aproximadamente um mês. Vale
ressaltar que o número de visitas poderá variar, também, de acordo com a dimensão dos
fatores de risco e vulnerabilidades identificadas.
Agendamento
Recomenda-se que a primeira visita seja agendada com aproximadamente uma se-
mana de antecedência, de acordo com a conveniência do paciente e de seus familiares. É
importante ser enfatizada a necessidade da presença de todas as pessoas que fazem parte
do convívio familiar; não só moradores, como também de outras pessoas significativas
para o paciente.
As demais visitas poderão ser agendadas nesse primeiro encontro, a fim de facilitar a
participação e implicação de todos os envolvidos. Mostrou-se ser mais produtivo manter-
se o mesmo dia da semana e horário para os demais encontros.
Profissionais
Caso seja possível, a VDM deve ser realizada por, no mínimo, dois profissionais com
formações distintas, porém ambos atuantes na área da dependência química. A ação em
dupla favorece a pluralidade de olhares, a troca de informações sobre o que foi observado
e compreendido por cada um, o manejo das intervenções necessárias e a própria segurança
dos profissionais.
É importante e desejável que também estejam capacitados e treinados para utilizar os
princípios e estratégias da entrevista motivacional5, atuando com sensibilidade, empatia,
flexibilidade e escuta reflexiva. Dessa forma, estarão aptos a apresentar, de forma acessível
ao paciente e familiares, aspectos importantes para a compreensão do contexto no qual
estão inseridos e dos processos de mudança propostos durante as VDMs.
369
O ambiente
O ambiente é revelador, por si só! Os visitadores precisam ter a clareza de que a visita
domiciliar motivacional começa antes mesmo de adentrarem na residência visitada.
Pode parecer estranho, mas o trabalho já deve começar com a atenção aos arredores
da casa, à vizinhança, aos equipamentos (sociais, de saúde, educacionais, culturais, etc.)
localizados no bairro, às possibilidades de lazer nas proximidades, aos pontos de venda de
álcool, tabaco e outras drogas, etc.
Essa observação apurada poderá auxiliar na identificação de vulnerabilidades ambien-
tais e comunitárias, assim como de possíveis fatores de proteção, o que será de muita valia
na elaboração de propostas de intervenção mais efetivas.
A quem beneficia?
A VDM já se mostrou capaz de propiciar benefícios não apenas para aquele que tenha
gerado a demanda pela visita, mas também para outros integrantes dos contextos familiar
e comunitário4.
Há múltiplos desdobramentos e implicações que podem atingir fortemente todos os
envolvidos em casos de TUS, sejam eles os próprios familiares ou outras pessoas de con-
vívio, vizinhos, uma vez que a maioria dos usuários de substâncias reside com familiares,
mantendo, ainda, certos vínculos familiares, afetivos e financeiros6. Essas pessoas, então,
precisam ser consideradas como elementos-chave na progressão da DQ, seja por atuarem
como mantenedoras do comportamento de uso ou pela sua modificação.
Geralmente, sentem-se sozinhas, desamparadas e impotentes diante da situação em
que se encontram. Além disso, são facilmente percebidos sentimentos como angústia, cul-
pa, raiva, medo, desmotivação, desvalorização de si e do outro e angústia, entre outros7.
Quando bem conduzida, a VDM pode se tornar uma intervenção capaz de propiciar
atenção e cuidado a essas pessoas, contribuindo para a modificação de um ambiente dis-
funcional já estabelecido. É possível propiciar, a todo o grupo familiar, um espaço de diálo-
go em que seja “permitido” falar sobre angústias, queixas, inseguranças e outros temas por
vezes evitados, dando oportunidades – talvez as primeiras – para que os demais integran-
tes “olhem”, também, para suas próprias questões.
Além disso, por diversas vezes já foram percebidos, durante as visitas, conflitos fami-
liares originados na crença distorcida de que o consumo de substância se dá apenas pela
fraqueza de caráter, pela falta de vergonha na cara, etc. Nessas situações, os esclarecimen-
tos prestados pelos visitadores possibilitaram o enfraquecimento dessas crenças e o sur-
gimento de novos entendimentos sobre o fenômeno, menos enraizados no senso comum.
Tenha-se em mente que qualquer ação que vise à melhoria das relações familiares e do
ambiente comunitário trará benefícios, também, a outros envolvidos.
Atenção
Um cuidado a ser tomado refere-se a uma possível “invasão de privacidade” dos visi-
tados, devido a atitudes que possam ser consideradas invasivas. É necessário pedir auto-
rização, buscar consentimento, estabelecer parcerias e cumplicidades, não “tomar partido”,
defendendo alguns e acusando outros e buscar estabelecer vínculos pela empatia e acei-
370
tação. Algumas atitudes podem ser mal-interpretadas e colocar tudo a perder.
371
vulnerabilidades provocadas. Por exemplo:
Além das questões psíquicas, vulnerabilidades genéticas e biológicas podem estar re-
lacionadas tanto a uma predisposição hereditária ao desenvolvimento da DQ, quanto aos
efeitos e danos causados ao organismo, devido ao uso e abuso de substâncias.
A identificação dessas vulnerabilidades pelos visitadores poderá propiciar orientações
adequadas às particularidades percebidas, seja na questão genética ou nas questões dos
efeitos das substâncias e suas consequências para determinado organismo, em específico.
Mas cabe ressaltar que os transtornos pelo uso de substâncias já deixaram de ser vistos
como fenômenos exclusivamente individuais e muito se tem debatido sobre a importância
do contexto socioambiental como facilitador da experimentação e progressão do uso.
372
• a identificação de situações de vulnerabilidade que poderiam ficar despercebidas, se
outro fosse o setting;
• a intervenção imediata em algumas situações;
• o correto encaminhamento, quando necessário.
• Identificar refere-se ao olhar atento e seletivo dos visitadores, com o claro propósito
de verificar a existência de situações de vulnerabilidade;
• orientar, como código específico, está relacionado às situações em que a correta
orientação possa ser a intervenção suficiente para se obter os resultados esperados;
• encaminhar diz respeito às possibilidades de apoio e atenção percebidas pelos visita-
dores, que poderiam ser prestadas por outros serviços ou profissionais. É muito importante
que esses encaminhamentos sejam feitos de forma responsável e comprometida, media-
dos pelos visitadores junto ao serviço/profissional referenciado;
• intervir nas ações que possam ser executadas pelos visitadores após a identificação
das situações de vulnerabilidade. Também contempla as orientações verbais e os encami-
nhamentos específicos, mas permite outras possibilidades de atuação, como a proposta de
discussões sobre conteúdos percebidos, planos de ação, comprometimento com mudanças
consideradas importantes e possíveis pelos visitados, etc.
Considerações finais
A proposta deste capítulo foi apresentar a VDM como uma intervenção eficaz na iden-
tificação e atuação em situações de vulnerabilidade, no contexto dos transtornos pelo
uso de substâncias psicoativas. Essa eficácia se deve, em parte, à aproximação que a VDM
373
propicia entre os profissionais de saúde e os âmbitos vividos por aqueles aos quais pres-
tam algum tipo de atenção e cuidado - realidades estas que, muitas vezes, só podem ser
realmente compreendidas “se” e “quando” observadas in loco. Contudo, ao mesmo tempo em
que se considera fundamental a aproximação entre os profissionais e seus “pacientes”, tam-
bém se faz necessária a aproximação entre as intervenções propostas e as realidades de
atuação desses profissionais. Ou seja, a intervenção que se pretende aplicar necessita ser
adequada aos serviços e profissionais que a utilizarão. De pouco adiantaria uma interven-
ção clinicamente eficaz que não fosse passível de aplicação, no cotidiano dos profissionais
e dos serviços.
Por isso, a VDM se propõe a ser adaptável às mais distintas realidades de trabalho, sem
que se perca - ou se confunda - sua finalidade. A VDM busca intervir nos contextos, nas
relações que os visitados estabelecem. E, para isso, treinamento e capacitação das equipes
são condições primordiais.
Não se trata de intervenção domiciliar cuja justificativa seja a impossibilidade de o vi-
sitado ir até o serviço, como no caso da assistência aos acamados. Tampouco a visita inves-
tigativa ou de comprovação, como em alguns casos assistenciais. Em nossa prática clínica,
já se puderam verificar modalidades de visitas sendo feitas por psicólogos, assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos, agentes comunitários de saúde,
conselheiros, acompanhantes terapêuticos, educadores sociais e outros, com os mais dife-
rentes fins; embora, geralmente, com objetivos únicos e rígidos.
Acredita-se que esses profissionais, se devidamente capacitados para as questões do
TUS e da entrevista motivacional, serão capazes de agregar esses conceitos às visitas que
já fazem, ampliando objetivos e maximizando resultados.
Outros pontos que, percebe-se, merecem consideração são: o número de profissionais
presentes nas visitas e a quantidade de visitas. Embora, neste capítulo, se tenha apresenta-
do uma experiência de quatro visitas semanais e consecutivas, feitas por dupla de profis-
sionais (psicólogo e assistente social), ressalta-se que esse modelo deve ser adaptado de
acordo com as possibilidades e necessidades dos serviços que a utilizarão.
Sabe-se que a disponibilidade de transporte para o trabalho externo de profissionais é
muito diferente de um serviço para o outro: alguns têm veículos próprios, exclusivos; ou-
tros só podem contar com veículos do mantenedor (prefeituras, secretarias, universidades,
institutos, projetos, etc.), mesmo assim, esporadicamente. Há também aqueles que não têm
possibilidade alguma de acesso a veículos, dependendo exclusivamente da improvisação,
criatividade e abnegação de seus profissionais.
Se realizar uma visita já pode ser tarefa bastante complicada – devido à logística ne-
cessária -, quanto mais realizar quatro, semanais e consecutivas. Fica evidente que esse
aspecto precisa ser adaptado à realidade dos serviços que irão utilizar a VDM. Da mesma
forma, percebe-se, em muitos serviços, uma importante defasagem entre a quantidade
“existente” de profissionais e a quantidade “necessária”. Isso faz com que muitos deles tra-
balhem com carência de pessoal, sendo obrigados a reduzir cuidados ou limitar suas ati-
vidades. Evidente que, nessas circunstâncias, uma exigência de visitas em dupla poderia
inviabilizar a intervenção, tornando-a impraticável.
Por fim, sabe-se que visitas ao domicílio já vêm sendo feitas por diferentes profissionais
e que a VDM é uma intervenção custo-efetiva10 que já se mostrou viável nos mais diferen-
tes quadros de tratamento e prevenção do abuso de substâncias.
O que aqui se propõe é que gestores e profissionais da saúde percebam que poderão
dispor da VDM como mais uma ferramenta de trabalho, bastando iniciativa, capacitação e
um pouco de criatividade. Não se trata apenas de mais tarefas a serem executadas, mas
374
sim de melhores resultados a serem alcançados.
Referências
1. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, FERRAZ MB, LARANJEIRA R. Home Visit in the
Outpatient Treatment of Alcohol Dependents: randomized clinical trial. Addictive
Disorders & Their Treatment, 2010; 9:18-31.
2. MORAES E, CAMPOS GM. Visita Domiciliar: uma intervenção motivacional no tra-
tamento da dependência química. In Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselha-
mento em Dependência Química. 3.ed. - São Paulo: Roca, 2015.
3. MORAES E. Visita Domiciliar: Avaliação do Impacto Clínico e Econômico em um
Tratamento Ambulatorial para Dependentes de Álcool. Tese de doutorado – Depar-
tamento de Psiquiatria e Psicologia Médica – Universidade Federal de São Paulo,
2007.
4. MORAES E; CAMPOS GM, LARANJEIRA R. Visita Domiciliar Motivacional. In: Diehl
A, Cordeiro DC, Laranjeira R e cols. Dependência Química: prevenção, tratamento e
políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011.
5. MILLER WR, ROLLNICK S. Entrevista Motivacional: preparando as pessoas para a
mudança de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.
6. STANTON M, TOOD TC. Terapia Familiar del Abuso y Adiccion a las Drogas. Barce-
lona: Gedisa, 1985.
7. KAUFMANN EF. The family therapy of drugs and alcohol abuse. New York: Gardner,
1982.
8. CAMPOS GM, FIGLIE NB. Prevenção ao uso nocivo de substâncias, focada no indi-
víduo e no ambiente. In: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R e cols. Dependência
Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011. p.
481-494.
9. CAMPOS GM; MORAES E. Como planejar um projeto de prevenção. In: DIEHL A,
FIGLIE NB e cols. Prevenção ao uso de álcool e drogas: o que cada um de nós pode
e deve fazer? Porto Alegre: Artmed; 2014. p. 167-182.
10. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, LARANJEIRA R, FERRAZ MB. Cost-Effective-
ness of Home Visits in the Outpatient Treatment of Patients with Alcohol Depen-
dence. Eur Addict Res. 2010; 16:69-77.
375
ANEXO I
Condições de moradia:
Saúde e higiene:
1ª visita 2ª visita
( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada
Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor
( ) hostil Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( )
hostil
3ª visita 4ª visita
( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada
Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor
( ) hostil Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor
( ) hostil
Relações familiares: MS (muito satisfatório); S (satisfatório); PS (pouco satisfatório); I (insatisfatório); NP (não percebido)
1ª visita 2ª visita
diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
3ª visita 4ª visita
diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP
376
Atividades sociais, culturais e de lazer da família em conjunto
377
Suspeitas de abuso ou agressões físicas sofridas pelo paciente
Informações adicionais
Agendamentos para o paciente
1ª visita 2ª visita
Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Outros (especifique) __________________________: Outros (especifique) __________________________:
compareceu: ( ) sim ( ) não compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) sem encaminhamento ( ) sem encaminhamento
3ª visita 4ª visita
Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Outros (especifique) __________________________: Outros (especifique) __________________________:
compareceu: ( ) sim ( ) não compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) sem encaminhamento ( ) sem encaminhamento
378
Agendamentos para o(s) familiar(es)
1ª visita 2ª visita
Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não
s/ enc. ( ) s/ enc.
Outros (especifique) ______________: Outros (especifique) ______________:
compareceu: compareceu:
( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento ( ) sim
w ( ) não
( ) sem encaminhamento
3ª visita 4ª visita
Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) s/ encaminhamento ( ) s/ encaminhamento
Outros (especifique) __________________________: Outros (especifique) __________________________:
compareceu: ( ) sim ( ) não compareceu: ( ) sim ( ) não
( ) sem encaminhamento ( ) sem encaminhamento
379
Belo Horizonte
2015
Gráfica O Lutador
380
ISBN-978-85-66115-76-5
9 788566 11576 5