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No ano em que completaria seu nonagésimo aniversário, a produção do músico que renovou a
chanson française na segunda metade do século 20 ainda tem frescor
Breno Fernandes
É 1969, e você liga o rádio. O piano que se ouve emite notas como se as soletrasse. Pã.
Nã, nã, nã. Pã... Pã, nã, nã. Uma voz feminina sussurra: je t’aime!... je t’aime!... oui, je t’aime!
Assim mesmo, três vezes, pois amar em boa medida é sobre repetições. Uma voz masculina,
então, cochicha de volta: moi non plus! (eu também... não!). E adiante, sem jamais perder o tom
de confidência, sai da alma para o corpo de maneira tão didática quanto o piano, que segue
soletrando o ritmo da ação: je vais et je viens... entre tes reins...
Serge Gainsbourg (1928-1991) adorava escandalizar. Não à toa ele se tornou o enfant
terrible da França da segunda metade do século 20, encarnando, com ares calculadamente
cafajestes, o ideário de liberdade sexual da juventude da época. O músico — que, se vivo fosse,
teria completado 90 anos no último abril — foi para a chanson française o mesmo que Charles
Baudelaire (1821-1867), outrora, fora para a poesia: uma figura de impacto. De renovação.
Não só no conteúdo — que contribuiu para deslegitimar de vez a ideia antiquada de que
haveria temas menores para a arte —, mas também na forma Gainsbourg trouxe novidades.
Num país onde as performances de voz dramáticas de uma Édith Piaf (1915-1963) e de um
Jacques Brel (1929-1978) faziam parte do cotidiano, eis que surge um sujeito que por vezes
parece que não está cantando, apenas conversando tranquilamente conosco sobre um fundo
musical, como se nos recebesse na sala de sua casa para um bate-papo. Nas mãos, sempre, um
cigarro.
Que ninguém se engane, entretanto. O fato de romper com a tradição de canto não
afetava de modo algum sua inventividade melódica, antes pelo contrário, chamava mais atenção
para ela. Um bom exemplo disso é o álbum-narrativa L’histoire de Melody Nelson, a versão
gainsbourguiana de Lolita, em que o instrumental compõe o cenário, intensifica os sentimentos
e ações descritas nas letras e chega mesmo a exprimir estados de espírito que as palavras não
dão conta de fazer.
E, mais importante do que sua função social, ou tão importante quanto essa, sua música
ainda é capaz de nos arrebatar. De nos seduzir, como imagino que ele preferiria que se dissesse.
E também a pessoa que grafitou, na fachada de sua casa, na Rue de Verneuil, 5b, em Paris, a
seguinte frase, que encontrei quando estive lá: Love me, Serge!
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Em livro