Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Comunidade Analítica
01/04/1998 03h00
Jorge Forbes
Um grupo fundado em torno a um ideal é distinto do estabelecido por uma causa. Uma equipe de
futebol, por exemplo, é um grupo marcado por um conjunto ideal: a camisa do time e sua história; a
cidade, estado, ou país que representa; o objetivo de ser o melhor entre todos, de ganhar o
campeonato, de subir no mais alto do pódio, o mais perto do ideal. Serve ao lema dos mosqueteiros:
“um por todos, todos por um”. Pode-se fotografar o time ideal, os jogadores uniformizados e a taça
brilhante no meio.
Um grupo fundado em torno a uma causa é disparatado em seu cenário. São muitos os caminhos
que demonstram o excesso, a causa. O lema é o do “um a um” - não do empate -, o um a um do
particular sempre renovado, pois o todo é incompleto. Não há como fotografar uma comunidade
causada, pois a inércia da pose anula a causa. A causa se deduz depois, como resultado do
movimento.
O alicerce do grupo ideal é o reconhecimento: seus participantes usam uniforme para facilmente se
reconhecerem nas condições mais variadas e difíceis. O uniforme auxilia o jogador, na zona do
agrião, para saber a quem passar a bola; ajuda o soldado assustado a reconhecer de longe, desde sua
trincheira, o amigo ou o inimigo.
É necessária uma preparação - como para tudo na vida - para entrar na comunidade analítica, para
jogar neste time tão variado. O exercício principal é a análise pessoal. É ali que o jogador treina
para suportar a angústia do questionamento dos seus ideais e para evitar os dois principais motivos
de contusão: o acting-out - erro de alvo e lugar - e a passagem ao ato - erro de tempo, precipitação
arriscada.
É difícil, por vezes, estar mal na sua análise e estar bem na comunidade analítica e vice-versa. Em
outro momento comentarei o fenômeno que chamo das “almas penadas da transferência”, aquelas
que se vêem perdidas nos corredores dos congressos, tropeçando nos cantos e nas paredes, se
escondendo, intrigando. Em uma palavra: desbussoladas. A direção da transferência é uma só, a
causa presente em uma análise contínua na causa da comunidade; a clínica se imbrica na Escola e
vice-versa, existe uma inter-influência.
A comunicação visa dissipar o mal entendido, passar uma informação rápida e sem erro – usa-se a
expressão “informação segura”: a comunicação sonha com a língua universal, ela quer ser útil e
suprir as necessidades. A conversação, por sua vez, é exercício do espírito através da palavra
dialogada.
Sua base, como a Escola, foi Atenas, seu promotor, Sócrates. “A conversação – diz Marc Fumaroli
em seu amplo estudo sobre o tema - se dá quando se aproxima ao grupo animado de Sócrates e de
seus atenienses, ela se apaga quando se distancia de novo. Pode-se discutir, disputar, se entreter,
trocar, papear, coloquiar, palavrear, em todas as épocas e em todos os lugares: entrar em
conversação é, a partir de Platão, deixar esses modos bárbaros do discurso para entrar no natural da
palavra humana, e reconquistar a luminosidade ática. É então que sem esforço reaparece, mesmo
que sob formas de faíscas, um pouco do grande brilho do espírito socrático, um pouco da felicidade
ateniense que é tranquilidade e liberdade, um pouco dessa ascensão filosófica que é retorno à casa,
em casa, numa contemplação coletiva, mais perto da unidade, da verdade, da felicidade”. (1)
Pode-se ver no modelo da conversação ateniense a experiência do cartel ampliado. “Desde a sua
aparição, a conversação, animação superior entre homens livres, aparece também como o mais sutil
dos métodos pedagógicos dos mais sutis e a mais completa forma de enciclopédia, embora sob
aparência descontínua.” (3) Para assim funcionar esse grupo de pessoas em conversação, necessita o
que chamamos em nosso jargão um “mais-um”: “Sócrates e sua ironia são o fermento que
transforma uma troca agradável de opiniões em uma luta de idéias entre dois ou entre muitos, na
qual às vezes surgem relâmpagos por vezes cegantes.” (4)
O risco da conversação ocorre quando, em vez de Sócrates, são os sofistas que conduzem o jogo: aí
tem-se “disponibilidade bastante para o jogo e a felicidade, e não suficiente maturidade espiritual
para saber o preço das instituições duráveis.” (5) Hoje, diríamos, podem variar as realizações desde
que não se perca a causa.
Como transpor e aceitar, na psicanálise, a expressão utilizada por Fumaroli de “homens livres”, para
os participantes da conversação? Entenderia como “homens livres do inconsciente”, os desabonados
do inconsciente, na referência que Lacan faz a Joyce, como alguém desabonado, livre do
inconsciente, e por isso, e tanto mais, necessitado da conversação para se situar? O desabonamento
do inconsciente sofrido em uma análise pode dar passagem à mesa da conversação. “A felicidade
singela e elementar deste jogo reparador de palavras entre homens livres já é uma liberação do
cansaço físico, social, político, econômico. Ele abre uma clareira. Basta um “mais-um” (o original
diz: “maître”) para que ela sirva de pista de decolagem”. (6)
A conversação desenha, configura uma rosácea: várias pétalas em torno a uma corola, em torno ao
âmago.
3. Conclusão: De como a conversação preserva o estilo e porque a Escola é uma, como a causa
também o é.
O estilo não é o homem, responde Lacan a Buffon; se se quiser, “o estilo é o homem a quem nos
endereçamos”. (7) Se o estilo fosse o homem, estaríamos no domínio das suficiências, da pompa, do
disfarce da morte como retratou Holbein no quadro dos embaixadores: inútil paisagem.
O analista não deve ser um “escravo do estilo”. Os colegas da IPA tentaram isto confeccionando
uma cartilha, estandarte do estilo analítico: a hora imutável, o número de sessões pré-fixado, a
vestimenta insossa, uniforme, etc. Escravos do estilo. Dizer novamente que o estilo é “o homem a
quem nos endereçamos” é equiparar o analista ao “homem pronto a todas as circunstâncias”. A
quebra dos ideais provoca o alerta à circunstância. O analista deve estar apto a interrogar todos os
discursos: a falar com o mestre, com o universitário, com a histérica e até com os próprios
analistas...
O mestre domina o presente, o estado. O médico é um exemplo de mestre, que prescreve, que
interna, que dá alta, que diz o certo e o errado. O analista deve poder falar com o médico, com o
psiquiatra, por exemplo. Saber a ele se endereçar não é dizer: - “Seu remédio, seu anti-depressivo,
não serve para nada”.
O universitário domina o passado, ele é o guardador dos ditos, do arquivo, da tradição; saber a ele
se endereçar não é dizer: - “Seu conhecimento não serve para nada”.
A histérica, o cientista, dominam o futuro; para eles o amanhã vai ser melhor. Saber a eles se
endereçar não é dizer: - “Seu progresso não serve para nada”.
O analista pronto a todas as circunstâncias destacará em cada tempo: presente, passado e futuro a
permanência da causa. Sustentará um estilo marcado pelo seu endereçamento. É o que propicia a
conversação como um método pedagógico da causa psicanalítica. Uma reunião de homens e
mulheres livres, aberta ao endereçamento e citações (8) múltiplas, diferente do estilo fixo e
congelado da comunicação.
“O verdadeiro poeta, como o verdadeiro escritor – e eu acrescentaria o analista –, não se dirige
jamais à um bando, a uma multidão; tanto um como outro, criam com o seu leitor uma intimidade
de pessoa singular a pessoa singular, e a maravilha da leitura nesse caso é a certeza, para todos esses
diferentes leitores, que eles entraram em uma conversação privada com um interlocutor que fala a
cada um em particular”. (9)
A comunidade analítica pode se organizar em uma Escola: uma Escola da causa. Discute-se se a
Escola é uma ou múltipla. Se a Escola fosse múltipla, em sua essência, não seria melhor e mais
apropriado dizer: “as escolas”? E da mesma forma, para a causa, dizer, “as causas”, levando-nos a
ter “as escolas das causas”? Mas, se assim fizéssemos, será que a cada dificuldade, a cada pedra no
caminho, não se tentaria a ruptura fácil, criar mais uma e mais uma escola?
Proponho dizer que a Escola é uma como a causa é única, mas a par-ticipação é múltipla, como as
volutas da rosácea são múltiplas. E a conversação reaviva o bom encontro feliz.
________________________
Notas:
(1) FUMAROLI, M. Trois institutions littéraires. Paris, Gallimard (Folio), 1994, p.116.
(2) _____, p.116.
(3) _____, p.115.
(4) _____, p.115.
(5) _____, p.118.
(6) _____, p.116.
(7) LACAN, J., “Ouverture de ce recueil”. In Ecrits, Paris, Seuil, 1966, p.9.
(8) Trabalhei especificamente o tema da citação em dois trabalhos anteriores: recentemente em A
Bagagem do Analista, publicado na Revista Opção Lacaniana, nº 21, de abril/98 e em A Escola de
Lacan – do conceito à prática e as condições de sua efetuação, publicado no livro A Escola de
Lacan, organizado por mim para a Papirus, em 1992. A parte do sub-título: “As condições de sua
efetuação” refere-se à “citação”.
Considero que o problema da citação é solidário ao abordado neste trabalho: existem agrupamentos
com um líder e a massa ignara que o segue, e de uma conversação,?agru-pamentos com um “mais-
um” e os participantes por exemplo – que podem ser citados um a um, distintos da massa amorfa. É
importante fazer a diferença entre o papel do “líder” e o do “mais-um” e as consequências na
organização grupal e na produção de seus membros.
(9) FUMAROLI, M. op.cit. p. 132.