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BELO HORIZONTE - MG
FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2008
Agradecimentos
Senhor, obrigado pelo dom da vida e da sabedoria que me fazem me aproximar de vossa
infinita bondade e misericórdia.
Senhor, obrigado pelos pais, irmão e irmãs que me destes e que me possibilitaram a
experiência da ternura e do vigor no aconchego familiar.
Senhor, obrigado pelos irmãos e irmãs que encontrei no caminho da vida e que me ensinaram
a alegria de amar e ser amado.
Senhor, obrigado por nos revelar o seu maravilhoso SER.
Senhor, obrigado por me fazer conhecer a vossa palavra de vida eterna. AMÉM!
RESUMO
A fé e o anúncio são dois temas fundamentais do Evangelho de João. À primeira vista, tem-se
a impressão de serem referidos exclusivamente aos homens, como se os discípulos tivessem o
privilégio do apostolado, na condição de testemunhas do Ressuscitado. Esta dissertação, indo
além das aparências, tem o objetivo de mostrar a importância das mulheres no Quarto
Evangelho, por reunirem os elementos que as tornam paradigmas de fé e de anúncio para a
comunidade joanina. O primeiro passo consistirá em fazer um levantamento da vivência e dos
desafios da fé na comunidade de João. Sobre este pano de fundo, serão projetadas duas
imagens de mulheres que, no Evangelho, são modelos de discipulado. A análise de Jo 4,1-42
explicitará a experiência de fé e de anúncio na narração do encontro da mulher Samaritana
com Jesus, junto ao poço de Jacó. Na mesma linha, a análise de Jo 20,1-18 concentrar-se-á em
Maria Madalena, na cena do encontro com o Ressuscitado, próximo ao túmulo vazio. O passo
seguinte consistirá em retomar os pontos mais relevantes da análise de Jo 4,1-42 e 20,1-18,
para explicitar os eixos semânticos de ambas as perícopes, no tocante à fé e ao anúncio. Os
relatos da Samaritana e de Maria Madalena comportam as grandes linhas da catequese sobre a
fé e o anúncio na comunidade joanina. O último passo consiste na leitura hermenêutica do
tema da dissertação, na tentativa de haurir inspirações para a vivência da fé e do anúncio nas
comunidades cristãs de hoje.
PALAVRAS-CHAVES
ABSTRACT
Faith and proclamation are two fundamental themes of the Gospel of John. At first sight there
is the impression that they refer exclusively to men, as if the disciples had the privilege of
apostleship, being Witnesses of the Risen One. This dissertation, going beyond the
appearances, has as its objective to show the importance of women to the Fourth Gospel, by
uniting the elements which make them paradigms of faith and proclamation for the Joannine
community. The first step will be to examine the life and challenges of faith in the community
of John. Onto the background will be projected two images of women which in the gospel are
models of discipleship. The analysis of Jn 4:1-42 will make explicit the experience of faith
and proclamation in the narration of the encounter of the Samaritan woman with Jesus, at
Jacob‟s well. Similarly the analysis of Jn 20:1-18 will concentrate on Mary Magdalen in the
scene of her encounter with the Risen One near the empty tomb. The next step will be to take
up again the most relevant points of the analyses of Jn 4:1-42 and 20:1-18 to make explicit the
semantic hinges of both pericopes, as they touch on faith and proclamation. The stories of the
Samaritan woman and of Mary Magdalen carry the main lines of catequetics about faith and
proclamation in the Joannine community. The last step consists in the hermeneutical reading
of the theme of the dissertation, trying to derive inspiration for the living of faith and
proclamation in the Christian communities of today.
KEY-WORDS
The Samaritan, Mary Magdalen, Gospel of John, Woman, Faith, Proclamation, Paradigm.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
3.2.1. Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo – Jo 20,2 .......... 77
3.4. Jesus fala com Madalena e lhe dá uma missão – Jo 20,16-17 .................... 88
4.3. A abertura ao dom de Deus torna o discipulado sinal do Reino ............... 104
4.3.1. A mulher samaritana é sinal do Reino para seus conterrâneos .......... 105
5.2. O amor: ato fundante da comunidade que crê e anuncia .......................... 119
AT Antigo Testamento
NT Novo Testamento
aC Antes de Cristo
dC Depois de Cristo
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CELAM Conferência Episcopal da América Latina
v, vv Versículo, versículos
v Volume (quando aparece na indicação bibliográfica)
s, ss Seguinte, seguintes
As abreviações bíblicas seguem a tradução da CNBB. As abreviaturas da ABNT não são
referidas.
INTRODUÇÃO
A narração joanina apresenta uma comunidade marcada por uma vida de fé, a
ponto de viver mergulhada na intimidade com Jesus, selando, assim, seu compromisso radical
no seguimento a ele. A vida de Jesus narrada pelo evangelista traz também à tona a vida da
comunidade inserida nela. Para participar da comunidade cristã torna-se necessário vincular-
se a Jesus sendo capaz de caminhar com seu sofrimento e com todo o sofredor. A palavra de
Jesus fecunda o coração dos discípulos e das discípulas tornando-os íntimos do Senhor. Os
seguidores do Nazareno assumem corresponsavelmente seu compromisso na construção do
reino de Deus. Os ensinamentos de Jesus fazem do discipulado um sinal da presença de Jesus
no mundo. Sinal que leva a uma verdadeira profissão de fé: “... ele é verdadeiramente o
Salvador do mundo” (Jo 4,42). O evangelista João evidencia a intenção da narrativa do
Quarto Evangelho quando afirma: “Estes foram escritos para que creais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20,31). Na constituição e
participação desta comunidade, João apresenta algumas mulheres, personagens presentes ao
longo de toda a narração como paradigmas de fé e de anúncio. São mulheres que escutam,
dialogam, aderem e anunciam o Cristo aos outros irmãos e irmãs, como o Messias que tanto
esperavam (cf. Jo 4,28-30). Elas acompanham Jesus em todo seu ministério. Não se
escandalizam com a cruz; pelo contrário, marcam presença aos pés da cruz. O amor destas
mulheres vai além da cruz. A insistência e a procura pelo Senhor da vida (cf. Jo 20,1-2.11-16)
faz de Maria Madalena uma verdadeira testemunha do Cristo ressuscitado. Estes paradigmas
são muito importantes para a vida da comunidade, pois refletem a história, a teologia e os
valores nela presentes. Em João, esses paradigmas tipológicos femininos não encontram
paralelo entre os homens.
O segundo capítulo faz uma análise da perícope sobre a mulher samaritana (cf. Jo
4,1-42) que compõe o livro dos sinais no evangelho de João. No diálogo com Jesus, a mulher
samaritana abre o coração para o Messias que todo o povo esperava. A samaritana ouve, vê,
interpela, responde e vai anunciar o Cristo que todo o povo esperava. Essa mulher não recebe
um mandato para o anúncio, mas se torna discípula ao largar tudo o que está fazendo para
anunciar aos conterrâneos o que ouviu do Cristo. Portanto, a partir das atitudes da samaritana
e de seu diálogo com Jesus, tornar-se-á evidente a gênese de sua fé e de seu seguimento no
anúncio do Cristo.
O terceiro capítulo analisa a perícope sobre Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) que
compõe o livro da glória no evangelho de João, com a finalidade de detectar nos gestos e
palavras dessa mulher os elementos de sua fé em Jesus e o conseqüente seguimento do
10
Ressuscitado. A procura incansável e destemida leva Maria Madalena a encontrar-se com o
Senhor ressuscitado. Quando tudo parecia perdido e sem sentido, Maria Madalena reconhece
o Senhor que a chama pelo nome. Sem deter-se, ela cumpre o mandato do Senhor de anunciar
aos seus irmãos a mensagem da qual tornou-se portadora. A mensagem estabelece na
comunidade uma nova relação que extingue toda e qualquer diferença entre os irmãos e as
irmãs. Maria Madalena, sustentada pela fé no Cristo glorificado pelo Pai, reúne os discípulos
temerosos de passar pelo mesmo sofrimento de Jesus na cruz. Somente com uma
espiritualidade encarnada é possível constituir uma comunidade de discípulos e discípulas,
seguidora fiel e comprometida com o Cristo Jesus.
11
- Apresentar a partir da Samaritana e de Maria Madalena um modelo eclesial onde
todos, sem exceção, são valorizados.
Como pano de fundo da reflexão, está uma série de questões, cujas respostas
encontram-se nas entrelinhas do texto. Assim, para explicar o modo de vida adotado antes da
Páscoa por Jesus e seus discípulos, pergunta-se qual o valor e a importância das mulheres na
comunidade cristã? O que se pode apreender da estrutura social da comunidade joanina,
levando-se em conta a cultura da época? Qual a posição ocupada pela mulher na sociedade da
época? O conhecimento desses dados contribui para a compreensão do funcionamento
econômico, cultural e religioso da época em que nasceu o texto do Evangelho de João.
Após estas duas etapas analíticas, o trabalho consiste em haurir inspirações para a
Igreja de hoje em sua práxis cristã.
12
1. JOÃO E SUA COMUNIDADE: DESAFIOS DA FÉ E DO
ANÚNCIO
1.1. Introdução
João explicita bem o objetivo de seu escrito ao declarar: “Estes foram escritos
para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome” (Jo 20,31). O crente passa por uma transformação no mais íntimo do ser porque
acolheu a fé. A fé é para João o eixo que impulsiona toda a ação do cristão3. Somente pela fé
1
BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 15. O autor
sugere que o Quarto Evangelho deve ser lido em diferentes níveis, pois narra tanto a história de Jesus quanto a da
comunidade que acreditava nele.
2
SOARES-PRABHU, G. Wir werden bei ihm wohnem. Das Johannesevangelium in indischer Deutung. Herder,
1984 apud LÉON-DUFOUR, Xavier. Agir Segundo o Evangelho. Palavra de Deus. Petrópolis: Vozes, 2003. p.
46.
3
A fé é o objeto precípuo de todos os “sinais” relatados no Quarto Evangelho, como João deixa claro no final: os
sinais feitos por Jesus foram escritos “para que acrediteis” (cf. Jo 20,31). Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura
do Evangelho Segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. p. 164.
13
se reconhece a glória do Filho.
No hebraico existem duas raízes verbais que são utilizadas para exprimir a fé:
aman acentua a certeza, a firmeza; batah tem em vista a vivacidade da fé e da confiança.
4
Cf. ZIMMERMANN, Heinrich. Fé. In: Dicionário de teologia bíblica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1988. v. 1, p.
413.
5
Cf. DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica/Paulus, 2003. p. 245-
250.
14
Em primeiro lugar, o vocábulo aparece em 4,21 e 14,11, na expressão pi,steue,
moi, significando “confia em mim”, no sentido de dar crédito às palavras de Jesus. Logo, quer
dizer “crê em mim”, tendo o conteúdo da crença apresentada na frase com o[ti.
Em terceiro lugar, encontramos pisteu,ein seguido de uma frase com o[ti, que
representa a expressão hebraica he’emin ki, no sentido de “estar convencido”, “acreditar”. Em
8,24; 13,15; 11,27; 20,31; 14,11; 16,30, o conteúdo da crença é a natureza, a missão, a
condição de Cristo.
Em quarto lugar, pisteu,ein vem seguido de eivj com acusativo. Segundo Dodd,
parece ser uma alternativa para traduzir o hebraico he’emin ki. A preposição eivj é equivalente
à preposição hebraica. É claro em 14,1 o sentido de confiança pessoal ou segurança que
afirma que crer em Deus e em Jesus é o remédio contra a perturbação e o desnorteamento. A
expressão também pode implicar um reconhecimento da afirmação de Jesus de ser ele a
revelação de Deus, como aparece de modo negativo em 7,5. Pisteu,ein eivj auvto,n significa
ter confiança em Jesus baseado numa aceitação intelectual das afirmações feitas em relação a
ele. É interessante perceber, em alguns textos, a utilização de pisteu,ein eivj auvtou/ seguido de
o;noma (“crer no nome do filho”) que, no cristianismo primitivo, referia-se ao batismo (cf. Jo
1,12; 2,23; 3,18). Isto implicava a pertença ao Cristo e, como reconhecimento desta pertença,
prestar-lhe serviços como um servo ao seu senhor.
O ser batizado em nome de Cristo é realizar um ato pelo qual a pessoa passa para o
absoluto domínio de Cristo e fica devendo a ele, por conseguinte, vassalagem, como
um doulos a seu kyrios. Não seria possível que, sendo o batismo sempre associado
intimamente com a fé, o evangelista tenha aplicado diretamente à fé um conceito
ligado ao batismo? Assim, pisteuein eis to onoma autou seria não simplesmente
aceitar sua asserção, por consentimento intelectual, mas reconhecer tal asserção
prestando vassalagem6.
Em quinto lugar, aparece o uso absoluto de pisteu,ein, onde o contexto claramente
mostra que se deve suprir com alguma idéia que complete o sentido. É o caso de 3,18
“...porque não creu no nome do filho único de Deus” e 12,39 “...pela qual eles não podiam
crer”. Há ainda lugares onde pisteu,ein tem o sentido de “ser ou tornar-se cristão”, como
aparece na fé da comunidade primitiva em Atos dos Apóstolos. Em Jo 4,53 – “Desde este
6
DODD, A interpretação, p. 247.
15
momento creu, tanto ele como todos de sua casa”, percebe-se um notável paralelo com At
16,34 – “Em seguida, o carcereiro fez Paulo e Silas subirem para a casa dele, ofereceu-lhes
uma refeição e se alegrou com os seus por ter crido em Deus”.
Nestas passagens, a visão pode não desencadear a fé, como em 6,36, em que
vendo o Senhor não acreditavam. Era uma visão puramente física. Eventualmente, pode vir
acompanhada da fé que leva a um sentido profundo, que dá vida ou conhecimento de Deus.
Quem tem fé tem a vida eterna. No episódio de Tomé, ocorre a transição: Tomé viu o Cristo,
fisicamente; e, tendo fé, ele o viu no verdadeiro sentido. Porém, mais felizes são os que, sem a
visão física de Jesus, têm fé. Portanto, quem tem fé7, mesmo que não o tenha visto
fisicamente, continua tendo a capacidade de ver sua glória.
Ver a Deus significa crer que Cristo está no Pai, e que o Pai está em Cristo. O
homem não produz por si só a fé. Esta lhe é dada por Deus. Por isso Jesus disse: “Ninguém
pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (cf. Jo 6,44.65; 17,6-8).
O sentido de crer também pode ser explicado como ouvir a voz de Jesus,
conforme atestam vários versículos: “Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a
tiverem ouvido viverão” (5,25); “Depois de o terem ouvido, muitos dos seus discípulos
começaram a dizer: „Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?‟” (6,60); “Porque não sois
capazes de escutar a minha palavra” (8,43); “Aquele que é de Deus escuta as palavras de
Deus; e é porque não sois de Deus que vós não me escutais” (8,47); “Todo aquele que é da
7
DODD, A interpretação, p. 250: “Pi,stij é aquela forma de conhecimento ou visão, apropriada àqueles que
encontram Deus numa pessoa histórica do passado, uma pessoa que, embora sendo do passado, através da pi,stij
continua sendo objeto do conhecimento que salva, da verdade e da vida”.
16
verdade escuta a minha voz” (18,37). Ouvir é pôr-se no caminho de Jesus, porque se crê nele
como o Filho de Deus, enviado para a salvação do mundo. Deste modo, ouvir é também crer.
E quem o ouve viverá.
João indicou, de modo bem incisivo, o escopo de seu evangelho: “Estes (sinais)
foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais a vida em seu nome” (20,31). Procurou, evidentemente, dar especial relevo à
fé na pessoa de Jesus Cristo e em seu poder salvífico. O fundamento dessa fé é a sua
própria apresentação dos fatos, a preferência dada por ele a certos sinais entre
muitos outros realizados por Jesus (20,30). Seu intento é induzir os homens a crer
que este homem de carne e sangue, Jesus de Nazaré, é o Messias da expectativa
judaica – e algo de muito, muito mais que isso. Ele é o “Filho de Deus” no sentido
da profissão cristã de fé, que ultrapassa todas as expectativas judaicas8.
Para João, não existe meio termo. É necessário acreditar plenamente nas palavras
de Jesus, que são os ensinamentos do próprio Deus. A fé é exclusivamente dirigida à pessoa
de Jesus, assumindo para com ele, um compromisso definitivo. Esta fé pode crescer e tornar-
se “conhecimento”, porque, na Sagrada Escritura, o saber é sempre um ato que institui ou
reforça os vínculos de comunhão e amizade. O conhecimento vem pela fé, e a fé deve crescer
e tornar-se conhecimento; uma comunhão mais íntima com o Pai e o Filho.
8
HARRINGTON, Wilfrid John. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. 2.ed. São Paulo:
Paulinas, 1985. p. 602.
17
não precisando deste testemunho humano (cf. Jo 5,34). Em outro texto, aparece a informação
de que Jesus e seus discípulos batizavam em terras da Judéia, enquanto João Batista batizava
em Enom, perto de Salim (cf. Jo 3,22). João ainda não tinha sido encarcerado. Seus
discípulos, após uma discussão sobre a purificação com um judeu, foram ter com ele: “Rabi,
aquele que estava contigo além do Jordão, aquele sobre quem deste testemunho, eis que se
põe também a batizar e todos vão ter com ele” (Jo 3,22-26). Alguns discípulos de João Batista
que não seguiram Jesus, como os dois citados em Jo 1,35-37, se opunham às pessoas que o
seguiam. Segundo Brown, somos levados a suspeitar que os cristãos joaninos tinham de tratar
com tais discípulos e que as afirmações negativas significam uma apologética contra eles. No
fim do século XIX, o motivo do Batista foi muito exagerado na interpretação do Quarto
Evangelho9.
9
Cf. BROWN, A comunidade, p. 72.
10
O Evangelho de João é também o único a dizer explicitamente que os primeiros discípulos de Jesus vieram do
círculo do Batista (1,35ss). Essa informação permite compreender a importância de João Batista para a
comunidade primitiva: tudo havia começado com o Precursor, segundo os Sinóticos e os fragmentos de
catequese conservados pelos Atos dos Apóstolos (At 1,5.22; 10,37; 11,16; 13,24; 18,25; 19,3). Ela explica
também as reações daqueles que, apegados a seu mestre João Batista, recusaram-se a passar para Jesus, o
Galileu. Cf. JAUBERT, Annie. Leitura do Evangelho Segundo João. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 8.
11
Os cristãos da comunidade de João mantinham a esperança de que os seguidores de João Batista, que ainda
não eram cristãos, haveriam de reconhecer a superioridade do mestre Jesus. Por isso, os seguidores de João
Batista eram convidados pelo Evangelho, através de uma correção prudente, a retificar suas interpretações
errôneas a respeito da figura de João Batista, que eles julgavam superior a Jesus.
18
por certo não realizou nenhum sinal, mas tudo o que ele disse deste homem era verdade‟. E
numerosos foram os que nele creram”.
Tal exclusão da sinagoga não era característica do tempo de Jesus, nem de Paulo
que, em At 21,26, em sua última viagem a Jerusalém, foi cultuar no templo. A cura do cego,
no capítulo 9, apresenta de maneira sutil o nível histórico mais tardio da experiência da
comunidade de João. O versículo 22 declara: “Os seus pais (do cego de nascença) falaram
assim porque tinham medo dos judeus. Estes já haviam decidido excluir da sinagoga todos
aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo”. João faz do cego um modelo para os
membros de sua comunidade, apresentando-o como testemunha de Jesus, intimada a escolher
entre o ensinamento da sinagoga e a fidelidade a Cristo. A comunidade é encorajada a colocar
toda sua confiança em Cristo Jesus, a exemplo do cego: “Creio, Senhor”, e a se prostrar diante
19
do Senhor para adorá-lo (v. 38)12.
O texto de Jo 18,20s contém uma clara evidência de que a exclusão dos judeus-
cristãos das sinagogas era própria da época em que João escreveu o Evangelho. A resposta de
Jesus ao Sumo Sacerdote evidencia que falou abertamente (cf. Jo 7,26; 7,4.10; 10,24s);
ensinou onde todos os judeus se reuniam, nas sinagogas e no templo (cf. Jo 6,59; 2,14;
7,14.28; 8,20; 10,23), lugares de oração onde o israelita que está em busca de Deus encontra-
se mais disposto ao encontro.
João quer mostrar que Jesus é o Messias, acentuando a identidade cristã de todo
discípulo. Jesus apelava para que o reconhecessem como o Enviado que falava as palavras de
Deus. O não declarar-se a favor de Jesus por medo de ser excluído da sinagoga pelos fariseus
faz João afirmar que os dirigentes que tinham começado a crer nele preferiam a glória que
vem dos homens à glória que vem de Deus (cf. Jo 12,42s)13.
Por volta de 90-95 dC, quando o Evangelho tem sua configuração final, depois da
destruição do templo, em 70 dC, a comunidade cristã sofria com a competição do judaísmo
que estava se reorganizando e chegou a expulsar de seu meio todos os que acreditavam em
Jesus Cristo, os judeus-cristãos14. Ser expulso da sinagoga era uma experiência traumatizante
para os primeiros cristãos de origem judaica. Como se vê em Jo 9,22.34; 12,42 e 16,1-4,
tornar-se cristão significava ser banido da família, da comunidade religiosa, do povo.
Praticamente ficava-se fora da vida social do povo judaico, cuja instituição não suporta a
liberdade obtida pelo cego. Jesus comunica a plenitude da vida, que é incompatível com o
regime de opressão. Ora, o judaísmo rabínico exercia grande atração sobre os judeus-cristãos,
que parecem ter constituído a maior parte da comunidade joanina. João, em conflito com o
judaísmo (judeus), mostra que a adesão a Jesus comportava a ruptura com as instituições (cf.
Jo 8,23-24.31; 10,3-4), cujos líderes permanecem cegos (cf. Jo 9,39-41). Portanto, na cura do
cego, com o testemunho dos vizinhos, com a interrogação do cego por duas vezes e a dos seus
12
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 240: “O cego de nascença, que recobra a visão, percebe o Senhor em sua fé e
„crê‟ (9,38), sem demonstrá-lo, decerto, mas fazendo um gesto pelo qual dá glória a Deus, num sentido distinto
do que lhe pediam os fariseus (9,24). O verbo „prostrar-se‟ (proskune,w) adquire o sentido claro de adorar quando
tem por objeto o próprio Deus, assim como no diálogo com a samaritana (4,20-23); em outros casos, exprime
profundo respeito. Aqui no entanto, comporta um sentido mais rico: não é o destinatário do gesto o novo Templo
da Presença? O cego de nascença, que se mostrou também “israelita sem fraude” (1,47) e que foi „encontrado‟
por Jesus, passa a crer. Ele é a ovelha que escuta a voz do pastor para ser conduzida ao Pai”.
13
Esta representação original de Jesus procura dar perfeita expressão à fé cristã em Jesus, o Messias e o Filho de
Deus, procedendo conseqüentemente da imagem de fé da comunidade cristã. “João representa de maneira mais
sistemática, mais original, e de forma mais grandiosa que os sinóticos, não o que Jesus foi, mas o que os cristãos
têm em Jesus” (KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 296-
297).
14
Cf. BROWN, A comunidade, p. 61-95.
20
pais, João quer mostrar que os fariseus fecham os olhos para o que é evidente. Vêem a luz e a
reconhecem, mas ficam nas trevas, temendo as conseqüências de sua decisão. Os líderes
propõem como luz o que sabem serem trevas; assim, desorientam o povo impedindo-o de
alcançar a libertação que Jesus lhe oferece. Por isso pecam, porque, sendo cegos, cegam o
povo. Ocultam a verdade, para permanecerem em sua posição. Afinal, aceitar a glória de Deus
em Jesus como norma de vida significa perder a situação de privilégio. Por isso preferem
continuar como estavam, renunciando à vida plena, abrindo mão da vivência de filhos de
Deus (cf. Jo 12,25; 3,36; 1,12). Os judeus que se deixam dominar pelo príncipe deste mundo,
Satanás, são a causa da morte de Jesus, pois não escutaram suas palavras, nem creram que ele
era o enviado do Pai15. Portanto, a expulsão ou exclusão dos cristãos de origem judaica da
Sinagoga é uma característica da época em que o autor escreveu o seu Evangelho. Mas quais
foram os motivos que provocaram este conflito com a Sinagoga e, conseqüentemente, a
exclusão dos judeus-cristãos de seu meio?
O próprio episódio da cura do cego de nascença tem como centro, não o milagre,
mas a discussão que suscita. No interrogatório feito ao cego, percebe-se uma confissão em
favor de Jesus: “O homem a quem chamam Jesus fez lama” (9,11); “é um profeta” (9,17); “Se
este homem não fosse de Deus, nada poderia fazer” (9,33). Ora, “os judeus já haviam
decidido excluir da sinagoga todos aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo” (9,22b). E,
segundo eles, Jesus é um indivíduo que não observa o sábado, pois curara neste dia; portanto,
ele não é de Deus. E ainda questionavam: “Como é que um homem pecador teria o poder de
realizar tais sinais?” (9,13-16). A insistência dos judeus deseja forçar o cego a confessar que o
homem que o curou não é de Deus e sim um pecador. Recusam-se a admitir que Jesus é o
Enviado de Deus. E, com a cura do cego em dia de sábado, surge a discussão sobre a origem
de Jesus: “Nós sabemos que Deus falou a Moisés, ao passo que este, não sabemos de onde é!”
(9,29). Se o êxodo do Egito fora obra do amor de Deus ao seu povo (cf. Ex 4,22s; Os 11,1),
interpõem agora a lei de Moisés para evitar toda nova manifestação de seu amor. Não estão
dispostos a reconhecer a presença de Deus, que é visibilizada em Jesus, pois o encontro com
Jesus é encontro com Deus no ser humano ou com o ser humano que torna Deus presente
como atividade de amor. O ser humano torna-se o lugar da manifestação de Deus. O sábado é,
15
Gerd Theissen afirma que, para o Evangelho de João, não são os judeus em si que são a causa da morte de
Jesus, mas apenas os judeus que caíram na dependência do príncipe deste mundo. Satanás é uma encarnação
simbólica do poder dos romanos. No Evangelho de João, portanto, a oposição entre judeus e cristãos, com o
auxilio de uma linguagem mítica, é entendida como expressão de uma alienação do judaísmo em relação a si
mesmo, uma alienação politicamente condicionada. Por causa das afirmações estarem sujeitas a mal-entendidos,
deve ser rejeitada qualquer acusação de antijudaísmo ao Evangelho de João. Cf. THEISSEN. Gerd, O Novo
Testamento. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 120s.
21
portanto, o ponto de partida que leva à pergunta essencial: quem é Jesus?16 Sua pessoa e suas
pretensões exorbitantes é o que está em discussão; afinal, ele “não apenas violava o sábado,
mas ainda dizia ser Deus seu próprio Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus” (Jo 5,18). Ao se
auto-revelar como Filho de Deus, Jesus recorre em sua defesa a outros testemunhos além de
sua palavra, que podem, em certo sentido, ser considerados objetivos (cf. Jo 5,31-47). Mas,
para serem entendidos, os testemunhos citados supõem uma abertura espiritual que os
ouvintes, até o momento presente, se recusaram a ter, a ponto de não reconhecerem até o
testemunho que deveria ser o mais convincente: as Escrituras de Israel - “Vós perscrutais as
Escrituras porque pensais adquirir por elas a vida eterna, e são exatamente elas que dão
testemunho a meu respeito; mas vós não quereis vir a mim para terdes a vida eterna” (Jo 5,39-
40). E, por isso, interroga: “Com efeito, se crêsseis em Moisés, creríeis em mim, pois é a meu
respeito que ele escreveu. Se não acreditais no que ele escreveu, como creríeis no que eu
digo?” (Jo 5,46s). Eles não toleram a afirmação de Jesus: “O meu Pai até agora está
trabalhando, e eu também estou trabalhando” (Jo 5,17). Desta forma, o ponto fulcral da
discussão é a filiação divina de Jesus, que faz os judeus tomarem a decisão de matá-lo sob a
alegação de blasfêmia17.
16
Conforme a tradição sacerdotal (Gn 1,1–2,4 ; Ex 20,8-11), o sábado tem origem no descanso de Deus no fim
da obra da criação. Na reflexão judaica posterior, o sábado torna-se – e não podia ser diferente – sinal de repouso
escatológico; antecipa a escatologia, é sua pregustação. É o que pensa, por exemplo, Is 56,7, acentuando o
motivo da alegria, da jubilosa comunhão com Deus, do festivo congraçamento de todos os seres humanos.
Segundo Ex 31,13-17, o sábado é um sinal da consagração do povo de Deus. Com o repouso sabático, o homem
consagra parte de seu tempo a Deus e renuncia a usá-lo para si, testemunhando assim que Deus é o dono do
tempo. Assim nasce a exigência de cumprir gestos cultuais no sábado. E aqui está, a nosso ver, a raiz do possível
equívoco: o sábado é tempo dado a Deus, mas esquece-se que o Deus do sábado é o Deus do Êxodo e da
libertação; o sábado torna-se um preceito, um dever a cumprir ao lado dos outros, não mais a alegria da dádiva, o
sinal do homem liberto diante de Deus e do mundo. Cf. MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João. In: FABRIS,
R.; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2006. v. 2, p. 329.
17
Cf. MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 330. Também aqui João imprime à polêmica um caráter mais
nitidamente cristológico. Jesus chama a atenção para sua relação com o Pai. A filiação divina é a razão profunda
pela qual ele é dono do sábado. A afirmação central, que deve ser bem entendida para se compreender o
raciocínio de Jesus, encontra-se no v. 17: “Meu Pai continua agindo até agora, e eu também vou agindo”. Os
rabinos distinguiam a atividade de Deus na criação, que é suspensa no sábado, de sua atuação na providência e
no juízo, que não conhecem interrupção. Deus sustenta e salva o ser humano também no sábado. Curando em
dia de sábado, Jesus aplica a prerrogativa divina da atuação contínua, não interrompida nem mesmo pelo sábado;
assim é associado à ação salvífica do Pai, que não admite interrupção. Por isso, a discussão que se segue não
trata exatamente da observância da Lei, e sim da filiação divina de Jesus, sua afirmação de ser igual ao Pai.
22
relacionamento da comunidade joanina com os de fora, as Epístolas, que são escritas no
mesmo período, se ocupam com os de dentro. Quais são os motivos que levam a esses
conflitos dentro da comunidade?
Assim, sem ter que aderir a todo um esforço de uma tese tão radical, sem
impedimento, deve-se admitir que a maioria dos estudiosos hoje em dia estão de
acordo em considerar que João, o apóstolo, o filho de Zebedeu, não deve ser visto
como o autor “real” do Evangelho, senão somente como o autor “originário”. Isto,
com efeito, não diminui a paternidade joânica da obra, senão que opera uma
distinção entre o autor e o escritor. O apóstolo, com sua autoridade e sua pregação,
constitui o ponto de partida e foi a garantia da tradição que, nascida na Palestina,
transpassou essas fronteiras, difundindo-se na Turquia e na Ásia Menor, e culminou
em uma produção literária, cujo fruto excelente é o Evangelho, escrito
provavelmente em torno do ano 100 dC20.
As comunidades joaninas não estão concentradas numa mesma região. Encontravam-
se em diferentes cidades ou povoados. Nelas aparecem divisões que, aos poucos, caminham
18
Cf. MORGEN, Michele. As epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 7.
19
As Cartas de João mostram muita semelhança temática com os discursos de Jesus no Quarto Evangelho,
especialmente Jo 15-16. São fortemente marcadas pelo problema da coerência de vida da comunidade. O
conjunto de 1Jo parece aprofundar a mensagem do amor fraterno (cf. Jo 15). 1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o
prólogo do Evangelho. Embora pareça refletir o pensamento da fase final do Evangelho, 1Jo não menciona a
discussão com a Sinagoga, pois o assunto não é o conflito com os de fora, mas os problemas da comunidade: a
caridade e a profissão de fé. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis:
Vozes, 2000. p.27.
20
TILBORG, Sjef van. Comentário al evangelio de Juan. Estella: Verbo Divino, 2005. p. 6.
23
para o cisma21. No tempo das Epístolas e depois delas, diferentes grupos religiosos, cristãos e
não cristãos, especialmente gnósticos, lerão o Quarto Evangelho. O autor das Epístolas reage
vivamente e apresenta a exegese autêntica do Evangelho em face aos grupos separatistas e às
heresias. Isto sugere que tanto o autor das Epístolas quanto os separatistas conheciam a
proclamação do cristianismo que nos foi feita através do Quarto Evangelho, mas a
interpretavam diferentemente. De acordo com Brown,
a luta acontece entre dois grupos dos discípulos de João, que estão interpretando o
Evangelho de maneiras opostas, no que se refere à cristologia, à ética, à escatologia
e à pneumatologia. Os temores e o pessimismo do autor das Epístolas sugerem que
os separatistas estão tendo maior sucesso numérico (1Jo 4,5) e o autor está tentando
defender seus adeptos contra posteriores incursões de falsos mestres (2,27; 2Jo
10.11). O autor sente que é a “última hora” (1Jo 2,18)22.
Por isso, a chamada Primeira Epístola atribuída a João, que não é uma epístola e sim
um documento, seria na realidade, um complemento trazido pelos discípulos do
21
Cf. BROWN, A comunidade, p. 151-171.
22
BROWN, A comunidade, p. 22
23
Esses oponentes devem ter sido membros do círculo joanino (é inútil tentar identificá-los com algum
heresiarca em particular dentre os conhecidos dos Padres da Igreja de algum tempo depois, como Cerinto, por
exemplo), pois eles liam o Evangelho de João e a ele apelavam, afirmando que o Jesus desse evangelho dava
total suporte à sua teologia gnóstica. Eles falavam do seu conhecimento de Deus (2,4; 4,8), do seu amor a Deus
(4,20), da sua isenção de pecado (1,8-10) e do seu caminhar na luz (2,9). Como o próprio Jesus, eles diziam
proceder de “Deus” e falar na voz do espírito (4,2-6). Mas negavam a vida de Jesus na carne (4,2) e a identidade
do Cristo Celeste e do Jesus terreno (2,22). Cf. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e
literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2. p. 212.
24
autor do Quarto Evangelho com o fim de retificar leituras heréticas. Essa epístola
insiste no concreto de Jesus. O Cristo preexistente, objeto da nossa fé, é esse Jesus
que viveu na carne, esse Jesus que entrou na história. A insistência da Epístola supõe
que havia cristãos muito inclinados a fazer uma leitura espiritualizante e
desencarnada do Evangelho24.
1Jo 2,22 conduz a Jesus: como confessá-lo como Filho? O conflito aqui gira em
torno da correta confissão de fé no Filho. Quem o nega é mentiroso. E a mentira é total,
porque destrói a fé cristã no seu núcleo: a pessoa de Jesus Cristo.
Uma teoria doceta atribuída por Irineu a Cerinto é formulada assim: “Depois do
batismo de Jesus, o Cristo, descendo desse Poder, que está acima de tudo, desceu sobre ele em
forma de uma pomba... mas, no fim, o Cristo se retirou de novo de Jesus.... o Cristo, sendo
24
O‟CONNOR, J. Murphy. A comunidade do discípulo bem amado. São Paulo: Paulinas, 1983. Apud
COMBLIN, José. A força da palavra. “No princípio havia a Palavra”. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 78.
25
Dodd usa o termo para designar um grupo vasto e amorfo de sistemas religiosos, descrito por Irineu e Hipólito
em suas obras contra a heresia (Adversus Haereses e Refutatio Omnium), e também para indicar semelhantes
sistemas conhecidos por outras fontes. O uso desse termo não é atestado nesses escritores, nem em autores
antigos, mas é conveniente e não parece deturpado. Cf. DODD, A interpretação, p. 137.
25
espiritual, ficou incapaz de sofrer”26. Logo, a humanidade de Jesus não passava de uma mera
aparência. No entanto, os grupos cristãos contra os quais o autor das Epístolas reage não são
docetas27, mas já denotam essa tendência, por colocarem em dúvida a paixão de Cristo e até
mesmo a realidade de sua encarnação. A única coisa importante para esse grupo de cristãos
era que a vida eterna tinha sido trazida para os homens através de um Filho divino que passou
por este mundo. A humanidade de Jesus é relativizada.
26
BROWN, A comunidade, p. 117.
27
O termo docetismo (do grego doke,w, “parecer”, “ter a aparência”) designa as doutrinas heréticas que reduzem
a humanidade de Cristo a uma aparência. Contra os docetas, os Padres da Igreja, desde o século II, mantiveram
controvérsias que levaram às fórmulas cristológicas dos Concílios do século V, em Éfeso e Calcedônia (sobre
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem). Cf. MORGEN, As Epístolas, p. 38.
28
Brown compara o prólogo da Primeira Epístola como o prólogo do Evangelho evidenciando a diferença de
significação dos mesmos termos utlizados tanto no Evangelho quanto na Primeira Epístola. Cf. BROWN, A
comunidade, p. 125s.
26
Epístola, o autor sublinha a vida eterna não somente “como ela era na presença do Pai”, mas
também “como ela nos fora revelada”: “O que ouvimos... do Verbo da vida, – pois a vida se
manifestou, e nós vimos e damos testemunho...” (1Jo 1,1-2). A Palavra da vida é a mensagem
evangélica da carreira vivificante de Jesus entre os homens. E ainda, quando se compara o
comentário do Evangelho sobre o “Verbo-feito-carne” em Jo 1,14: “...e nós vimos a sua
glória”, com o comentário da Epístola 1Jo 1,1: “...o que ouvimos, o que vimos com nossos
olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram”; percebe-se que mesmo a ênfase na
encarnação é diferente nos dois prólogos. Na Epístola a ênfase é na qualidade observável e
tangível da proclamação e daí na carreira humana de Jesus29.
Outro ponto interno conflitante nas comunidades joaninas era o das implicações
da cristologia no comportamento cristão. O autor da Primeira Carta chama a atenção para
aqueles que não guardam os mandamentos (cf. 2,3-4; 3,22.24; 5,2-3). Assim, aquele que diz
que conhece a Deus, mas não observa os mandamentos é um mentiroso e não tem condições
de permanecer no amor de Cristo Jesus (cf. Jo 14,10.15; 15,10). Isto leva a pensar que alguns
membros das comunidades joaninas interpretaram o Evangelho de João, mas deixaram de
lado a radicalidade do amor, que implica em uma vida ética exemplar, coerente com os
ensinamentos e a vida de Jesus30. O próprio Evangelho mostra do começo ao fim como Jesus
foi obediente ao Pai e cumpriu sua vontade, realizando a “obra de amor” (cf. Jo 4,34; 10,17s;
12,49s e 15,10). Cristo cumpriu o mandamento do amor e se tornou palavra-luz (cf. 1Jo 2,8)
para o caminho que todo crente deve andar (cf. 1Jo 2,6). Segundo Feuillet,
no Evangelho é primeiro pela fé que o homem se abre à luz que emana de Cristo, o
Revelador, mas na segunda parte, começando com o cap. 13, Cristo faz insistentes
apelos em prol do amor fraterno, da parte dos que se lhe entregaram pela fé: crede e
amai, estas são as duas exigências fundamentais de Cristo no Quarto Evangelho.
Viver à luz da fé, e para isso rejeitar o erro e o pecado, e amar o próximo, estas são,
também na Epístola, as duas condições essenciais de uma autêntica comunhão com
Deus. Os diversos temas apresentados em 1Jo gravitam, cremos nós, em torno dos
29
Cf. BROWN, A comunidade, p. 126s.
30
Do mesmo modo que esses membros da comunidade joanina ignoravam a importância da obra salvífica de
Jesus, tornando-se indiferentes ao modo como ele viveu e morreu, também afirmavam uma intimidade com
Deus, independentemente do comportamento neste mundo.
27
dois motivos básicos da luz divina e do amor divino, bem como a volta das duas
atitudes humanas correspondentes: fé e caridade31.
É clara a firmação do evangelista: “Ninguém vai ao Pai a não ser por mim” (Jo
14,6). E, no caminho traçado por Cristo, o amor ao irmão constitui a prova de uma vida
espiritual autêntica. “Um mandamento novo eu vos dou: amai-vos uns aos outros. Como eu
vos amei, vós também amai-vos uns aos outros. Nisto todos reconhecerão que sois meus
discípulos: no amor que tiverdes uns para com os outros” (Jo 13,34s). “Se o conhecimento
leva à perfeição o amor de Deus no coração do crente (cf. 1Jo 2,4s), este não pode pretender
permanecer nesse amor sem amar seu irmão, segundo o exemplo de Jesus”32.
Em 2Jo 6–7, o autor evidencia que a negação da encarnação de Jesus Cristo era a
falta de compromisso no nível concreto da caridade para com o irmão, o que significa dizer
que “confessar que Jesus veio na carne” se traduz por “amar-se uns aos outros”. O cristão não
pode confessar a fé independentemente de sua prática. 1Jo 2,10 afirma que “quem ama seu
irmão permanece na luz, e nele nada há que o faça tropeçar”. E “quem pretende estar na luz,
embora odiando seu irmão, está sempre nas trevas” (v. 9). Quem odeia o irmão se fecha à luz
que se revela em Jesus Cristo. A negação da humanidade de Jesus e a conseqüente falta de
caridade com o irmão é substancialmente uma fuga da história e do mundo. Ela não permite
que a luz de Cristo brilhe para os irmãos que mais necessitam. “Se alguém disser „Amo a
Deus‟ e odeia seu irmão, é um mentiroso. Com efeito, quem não ama seu irmão, a quem vê,
não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). O mandamento de amar presente nas cartas
joaninas diz respeito antes ao amor ao irmão de comunidade, àqueles que professam a mesma
fé no Cristo feito carne. Para amar aqueles que não pertencem a esse grupo, conforme exige
Mt 19,19, é preciso antes dar o testemunho do amor na vida interna da comunidade. Os
escritos joaninos insistem: é preciso amar uns aos outros (cf. Jo 13,34s; 15,12.17). Jo 15,13-
15 permite interpretar “uns aos outros” como aqueles que são discípulos de Cristo e que
observam os mandamentos33. A recusa de Jesus em orar pelo “mundo” (cf. Jo 17,9) é também
transladada para a Primeira Epístola na recusa de se rezar por outros cristãos que cometeram o
pecado mortal de apostatar (cf. 1Jo 5,16).
Ainda nesse ponto conflitante, está a prática da justiça, que também é sinal do
31
FEUILLET, A. The structure of the first John. In: Biblical Theology Bulletin 3, p. 214-215, 1973. Apud
HARRINGTON, Chave, p. 609.
32
MORGEN, As Epístolas, p. 23.
33
MORGEN, As Epístolas, p. 64: “Aquele que tem a caridade fraterna, que a tem diante de Deus, onde vê a
Deus, e que, interrogando seu coração num exame rigoroso, recebe como resposta a certeza de ter em si a
verdadeira raiz da caridade, da qual saem os frutos das boas obras: esse tem a plena segurança junto de Deus e,
seja o que for que lhe peça, recebê-lo-á dele, porque guarda seus mandamentos”.
28
reino de Deus. Essa atitude ética desenvolve-se a partir do amor ativo e atuante ao irmão (cf.
1Jo 2,28-3,24), pois “todo o que não pratica a justiça não é de Deus” (1Jo 3,10). Praticar a
justiça e purificar-se são características dos filhos de Deus (cf. 1Jo 2,28-3,6). Pelo contrário,
cometer pecados é atitude característica dos filhos do demônio. Portanto, a fé em Cristo, o
amor fraterno e a prática da justiça constituem o penhor da amizade com o Senhor Deus.
Para o autor das Epístolas, os dons proclamados na escatologia joanina realizada não
são um fim em si mesmos (como são para seus adversários), mas uma fonte de
confiança no futuro, contanto que os que já são filhos de Deus continuem a viver
uma vida digna do Pai, a quem um dia eles verão face a face34.
34
BROWN, A comunidade, p. 143-144.
29
desejariam recebê-los, expulsando-os da Igreja” (v. 10). Diótrefes bate de frente com os
missionários35 enviados pelo autor da carta. Diótrefes não recebe os missionários e expulsa da
comunidade aqueles que os recebem. O autor apresenta a falta de hospitalidade de Diótrefes
para com os irmãos itinerantes, que dependiam dela para a subsistência. E aqui a Primeira
Epístola questiona: como amar a Deus sem amar os irmãos? “Quem não ama seu irmão, a
quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Na disputa pelo poder, alguns
fecharam o coração aos irmãos em necessidade. O autor da carta, chamado de Ancião, diante
do testemunho que os membros da comunidade dão sobre Demétrio, apresenta-o como
modelo a ser imitado. Deve-se fazer passar a segundo plano a sua própria pessoa e a sua
ambição. Deve colocar-se a serviço dos outros e ajudar-lhes em sua labuta. Não se deve
acreditar que seja tempo perdido o que se empreende na ajuda aos irmãos que trabalham na
mesma obra em que o amor de Deus se está comunicando a si mesmo. No pólo oposto, está
Diótrefes, que tem diante da comunidade um comportamento negativo, ambicionando ser o
primeiro entre as pessoas da Igreja local, exercendo com presunção uma função de
autoridade36. Estes textos demonstram um clima difícil no interno dessas Igrejas: expulsão de
irmãos e denúncias recíprocas. E aqueles que eram fiéis, que caminhavam no amor e na luz da
verdade, estavam sujeitos aos ataques vindos de seus próprios irmãos de fé. A Segunda
Epístola confirma ainda que os conflitos internos eram mais ásperos e rígidos que os externos
(cf. 2Jo 10). Diante de atritos tão intensos, o autor recomenda romper as relações com os
hereges, negando-lhes inclusive a saudação: “Se alguém vem ter convosco sem ser portador
desta doutrina, não o recebais em vossa casa, nem lhe desejeis as boas vindas” (2Jo 10). É
uma atitude dura contra os hereges, condicionada pela época. Os adversários gnósticos
representavam um perigo para as comunidades cristãs, que, segundo a opinião do autor da
carta, só a mais estrita separação deles podia sustentar o essencial da fé. A saudação que aqui
se proíbe é certamente mais que uma simples saudação de cortesia. Significa entrar em
comunhão eclesial.
35
Na verdade, percebe-se nitidamente que, diante do Ancião, Diótrefes assumiu para si um papel exclusivo a que
não tinha direito algum; e o fez a despeito de seu papel de liderança atual na comunidade. Como resultado de tal
atuação, a atividade missionária fica prejudicada, uma atividade missionária que tinha atrás de si o Ancião e que
era apoiada por alguns membros da comunidade de Diótrefes. Cf. KÜMMEL, Introdução, p. 589.
36
Provavelmente Diótrefes e os seus se entendiam como representantes do verdadeiro cristianismo e procuravam
proteger-se contra a penetração de um grupo cuja teologia era, de fato, muito avançada. Os enviados do Ancião,
por sua vez, considerar-se-ão com o mesmo direito de representantes do verdadeiro cristianismo. Estruturalmente
trata-se de um conflito entre autoridades carismáticas localmente estabelecidas e itinerantes. A Terceira Epístola
de João mostra que a decisão se dava cada vez mais em favor das autoridades locais. Cf. THEISSEN, O Novo
Testamento, p. 125.
30
Outro conflito é o da Igreja que, ao testemunhar o Cristo Ressuscitado, deve
enfrentar com coragem a provação37. Parece que o autor do Apocalipse experimentou a
perseguição nos últimos anos do imperador Domiciano. O poder político se arroga honras e
louvores divinos, contra o princípio cristão, pois um só é o Senhor que está em Jesus Cristo.
Assim, a comunidade se vê envolvida num conflito fundamental que lhe exige fidelidade à fé
e unidade diante da perseguição do poder político.
Essa situação da comunidade joanina revela que nem tudo ocorreu perfeitamente.
Desmentidos por parte dos antigos irmãos – discípulos de João Batista –, acusações da parte
dos judeus, rivalidades internas e perseguições vindas do exterior mostram uma comunidade
afligida por todos os lados. Ao observar estas dificuldades, o evangelista escreve o Evangelho
com o intuito de fortalecer e firmar os passos das comunidades cristãs. A fé da comunidade
joanina era a sua força na convicção comunicada pelo Espírito: o mal e o ódio estavam
vencidos em sua fonte: “...tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16,33). É no mundo e não
fora dele que se difundem a alegria e a esperança deixadas pelo próprio Cristo na paz: “Eu vos
disse isso para que em mim tenhais a paz” (Jo 16,33a).
37
Uma base segura para a interpretação que o próprio texto do Apocalipse exige encontra-se na situação
específica das comunidades cristãs primitivas, que certamente seriam levadas, dentro de muito pouco tempo, a
uma perseguição sangrenta que atingiria toda a Igreja. Encontra-se também na confiança em face da vitória,
propiciando perspectivas que ultrapassam o tempo de sofrimento já bem próximo e fazendo a atenção voltar-se
para a parusia de Cristo e a destruição de todos os poderes e forças que se opõem a Deus. Cf. KUMMEL,
Introdução, p. 607.
38
JAUBERT, Leitura, p. 13.
31
1.6. Preocupações pastorais do evangelista
O relato da vida de Jesus de Nazaré nos Evangelhos tem por finalidade suscitar ou
confirmar a fé dos seus leitores. Cada evangelista dá o testemunho de sua comunidade eclesial
sobre os fatos que servem de base para sua existência e para sua fé.
39
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 20.
40
Smith diz que, se a comunidade joanina que produziu o Evangelho viu a si mesma em continuidade tradicional
com Jesus, podemos perceber no “nós” dos prólogos não só do Evangelho como também da Epístola, não a
testemunha ocular apostólica em si, mas uma comunidade que, apesar disso, entendeu que era herdeira de uma
tradição baseada em alguma testemunha histórica de Jesus. Cf. SMITH, Moody D. Johannine Christianity: Some
Reflections on Its Character and Delineation. NTS 21, p. 236, 1974-1975. Apud BROWN, A comunidade, p. 33.
41
Cf. MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 268-270.
32
paulatinamente, levando os leitores a tirarem o véu que os impede de perceber a clareza
daquilo que está sendo anunciado. Assim são os diálogos entre Jesus e Nicodemos (cf. Jo 3,1-
21) e de Jesus e a samaritana (cf. Jo 4,1-42). Jesus apresenta uma verdade enigmática de
difícil compreensão imediata, provocando o interlocutor a fazer um pedido de explicação
necessária para que, a seguir, seja dada uma resposta clara. A incompreensão permite o
aprofundamento de determinada idéia. É um modo dinâmico e vivo de apresentar a catequese
para instruir a comunidade cristã. Outro exemplo são os episódios do capítulo 20, cada um
com sua própria importância. Há uma catequese da fé que reconhece em Jesus o Senhor e que
se torna capaz de irradiar sua presença para o mundo. Assim, Maria Madalena e os discípulos
partem da falta de fé e têm acesso à plena fé. O evangelista, preocupado com a vivência da fé
no Ressuscitado de sua comunidade, construiu o texto começando pela fé do discípulo amado
e de Maria Madalena, passando depois para o grupo dos discípulos e atingindo o ápice com a
solene proclamação: “Bem aventurados os que não viram e, contudo, creram” (Jo 20,29).
Quem lê o Evangelho percebe uma extensão progressiva da fé no Ressuscitado que vem até o
leitor de hoje.
As lutas pelo poder dentro das comunidades já bem organizadas fazem parte
também das preocupações pastorais do autor, como se vê na Terceira Epístola. O autor chama
a atenção para a caridade e a hospitalidade para com os irmãos, missionários itinerantes de
43
THEISSEN, O Novo Testamento, p. 122-123.
44
KÜMMEL, Introdução, p. 290.
34
outras comunidades. As lutas são tão ásperas que se admite o rompimento de relações com
aqueles que não permanecem na doutrina de Cristo (cf. 2Jo 9–10).
45
Maggioni, citando Cullmann, afirma: “João está preocupado em estabelecer uma relação entre o culto cristão
de seu tempo e os acontecimentos da vida de Jesus. Mas esta preocupação faz parte de outra mais ampla: mostrar
a identidade do Senhor presente e operante na comunidade com a do Jesus histórico. Assim encontraríamos mais
uma vez o tema cristológico ao qual João reconduz todas as outras realidades da salvação. Para ele, „os
sacramentos, no tempo da ressurreição, tomam o lugar dos milagres realizados por Jesus, no tempo de sua
encarnação‟” (MAGGIONI, Os Evangelhos, p. 27).
35
Há ainda o texto da mulher adúltera (cf. Jo 7,53-8,11) que, segundo os exegetas, trata-se de
um acréscimo posterior e não é de autoria joanina. Desta forma as mulheres no Quarto
Evangelho refletem a história, a teologia e os valores da comunidade joanina46. Com isso, o
evangelista mostra também que a autoridade eclesiástica não é o único critério para julgar a
importância da adesão a Jesus Cristo.
1.7. Conclusão
João marca a identidade da comunidade com a fé no Cristo Jesus. Para fazer parte
da comunidade joanina, faz-se necessária uma adesão incondicional ao Cristo, o que implica a
exigência de um compromisso total de seus membros com o projeto de fé e vida cristã. João
não se preocupa com a discussão teórica ou com a conceituação da fé, mas mostra a realidade
concreta do crer em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o salvador do mundo.
46
Elisabeth Fiorenza mostra que o evangelista começa e conclui o ministério público de Jesus com uma narração
sobre a mulher, Maria, a mãe de Jesus, e sobre Maria de Betânia. Ao lado do fariseu Nicodemos, coloca a mulher
samaritana; ao lado da confissão cristológica de Pedro, coloca a de Marta. Quatro mulheres e o discípulo amado
estão sob a cruz de Jesus. Maria Madalena não é apenas a primeira a testemunhar o túmulo vazio, mas também a
primeira a receber a aparição do Senhor ressuscitado. Assim, em pontos decisivos da narrativa, emergem
mulheres como discípulas exemplares e testemunhas apostólicas. Ainda que a narrativa sobre a mulher
supreendida em adultério seja acréscimo posterior ao texto do Evangelho, quem a interpolou possuía, todavia,
fino senso da dinâmica da narrativa que coloca as mulheres em pontos decisivos de desenvolvimento da
narração. Segundo esta autora, a preeminência das mulheres na comunidade joanina e sua tradição apostólica
causaram consternação entre os outros cristãos e isso pode ser percebido em Jo 4,27s, onde os discípulos ficam
“chocados” por Jesus conversar com uma mulher e se revelar a ela. Cf. FIORENZA, Elisabeth. As origens
cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 373.
36
(Jo 2,5). Além dela, Marta, que crê na ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,24ss) e em Jesus
como ressurreição e vida (cf. Jo 11,27); Maria, irmã de Marta e Lázaro, que crê em Jesus
como profeta (cf. Jo 12,3). As mulheres que estavam ao pé da cruz (cf. Jo 19,25), que creem
em Jesus como o Senhor; a mulher samaritana (cf. Jo 4,19.25s), que crê em Jesus como
profeta e Messias, aquele que anunciará todas as coisas; e Maria Madalena (cf. Jo 20,16), que
crê em Jesus como Mestre e Senhor. São mulheres que sustentam a fé até o fim. Não
abandonam o seu Senhor, nem na hora da Cruz. O amor que possuem faz delas verdadeiras
discípulas de Jesus. A coragem delas não deixa com que as palavras de Jesus caiam no vazio.
Ao contrário, faz com que essas palavras cheguem a muitos irmãos e irmãs. Muitas atitudes
dessas seguidoras de Jesus mostram por que são paradigmas de fé e de anúncio. Como são
muitas as mulheres que protagonizam o Evangelho e seria dificil analisá-las em seus
pormenores, este trabalho centra-se na análise das perícopes da mulher samaritana, em Jo 4,1-
42 e de Maria Madalena, em Jo 20,1-18.
37
2. O DOM DE DEUS OFERECIDO À SAMARITANA
2.1. Introdução
Na seqüência de reações diante de Jesus que encontramos nos diálogos dos capítulos
38
2, 3 e 4, parece haver uma mudança, partindo da descrença, passando pela crença
insuficiente, para uma crença mais suficiente. Os “judeus” na cena do Templo são
abertamente céticos sobre os sinais (2,18-20); Nicodemos é em Jerusalém um dos
que acreditam por causa dos sinais de Jesus, mas não tem uma concepção adequada
de Jesus (2,23s); a samaritana é levada quase a perceber que Jesus é o Cristo
(Messias; 4,25-26.29) e transmite isto aos outros. Na verdade, os samaritanos
acreditam por causa da palavra da mulher (4,39 e 42): dia ton lógon [lalian]
pisteuein. Esta expressão é significativa porque ela aparece novamente na oração
„sacerdotal‟ de Jesus por seus discípulos: „Não rogo somente por eles, mas pelos
que, por meio de sua palavra, crerão em mim‟ (17,20: dia tou lógou pisteuein)1.
1
BROWN, A comunidade, p. 197.
2
Cf. GALVÃO, Antonio Mesquita. Jesus e a samaritana: um diálogo sempre atual. Revista Grande Sinal,
Petrópolis, v. 59, n. 1, p. 61-62, Janeiro/Fev. 2005.
3
Cf. ESTÉVEZ, Elisa. A mulher na tradição do Discípulo Amado. Ribla, Petrópolis, n. 17, p. 68, fev. 1994.
39
“encontro” com a samaritana e com os samaritanos. Se Jesus atravessa a Samaria é porque sua
missão o exige segundo o desígnio de Deus. E o diálogo de Jesus com a samaritana se
desenvolve alternando a revelação de Jesus com a incompreensão humana ante o mistério de
Deus. Fica evidenciada, assim, a paciência de Deus que não só satisfaz as aspirações da
pessoa humana, mas, muito mais, ele as suscita.
1
~Wj ou=n e;gnw o` VIhsou/j o[ti h;kousan oi` Farisai/oi 1Quando Jesus soube que os fariseus tinham ouvido
o[ti VIhsou/j plei,onaj maqhta.j poiei/ kai. bapti,zei h' dizer que ele fazia mais discípulos e batizava mais
VIwa,nnhj gente do que João
2
&kai,toige VIhsou/j auvto.j ouvk evba,ptizen avllV oi` 2 – na verdade, Jesus mesmo não batizava, mas os seus
maqhtai. auvtou/& discípulos –,
3
avfh/ken th.n VIoudai,an kai. avph/lqen pa,lin eivj th.n 3
ele deixou a Judéia e foi para a Galiléia.
Galilai,anÅ 4
4
Ora, era preciso que atravessasse a Samaria.
:Edei de. auvto.n die,rcesqai dia. th/j Samarei,ajÅ 5
5
Foi assim que ele chegou a uma cidade da Samaria
e;rcetai ou=n eivj po,lin th/j Samarei,aj legome,nhn chamada Sicar, não longe da terra dada por Jacó a seu
Suca.r plhsi,on tou/ cwri,ou o] e;dwken VIakw.b Îtw/|Ð filho José,
VIwsh.f tw/| ui`w/| auvtou/\ 6
6
lá mesmo onde se acha a fonte de Jacó. Cansado da
h=n de. evkei/ phgh. tou/ VIakw,bÅ o` ou=n VIhsou/j viagem, Jesus estava assim sentado junto à fonte. Era
kekopiakw.j evk th/j o`doipori,aj evkaqe,zeto ou[twj evpi. th/| mais ou menos a sexta hora.
phgh/\| w[ra h=n w`j e[kthÅ
Primeiramente João informa que o grupo de Jesus estava batizando mais que João
Batista. Esta afirmação pode ser uma confirmação do que fora dito em Jo 3,30: “É preciso que
ele cresça e eu diminua”. Com isso o evangelista mostrava que a missão de João Batista já
estava no fim. A missão do Batista era a de preparar o povo para acolher aquele que vem do
alto, o Cristo Jesus. A alegria de João Batista é perfeita (cf. Jo 3,29), porque Jesus Cristo faz
mais discípulos e batiza mais gente do que ele (cf. Jo 4,1). Para os fariseus maliciosos devia
ser insuportável ver que Jesus recrutava mais neófitos e adeptos que João Batista.
4
Oriundos do povo, constituindo um partido do povo, os fariseus procuram ser separados do povo (este é, ao
que tudo indica, o sentido do seu nome): eles consideram o povo por demais ignorante da Lei e sobretudo
impuro, por não respeitar suficientemente a lei de santidade, expressão da própria vontade de Deus. Desta Lei de
Moisés, só uma parte foi posta por escrito, sendo o resto transmitido oralmente de Moisés aos profetas e depois
aos sábios ou escribas (rabis), graças a um ensino esotérico que, no século I, torna-se cada vez mais importante.
Essa Lei oral tem o mesmo valor ou até mais que a Lei escrita. E é à medida em que se respeita toda essa Lei,
escrita e oral, que são adquiridos os méritos necessários à salvação e ao envio do Messias, que estabelecerá
enfim o Reino de Deus, expulsando ao mesmo tempo os romanos e todos os outros ocupantes da Palestina. O
farisaísmo era o único movimento religioso que tinha profundidade bastante para resistir à catástrofe de 70; é
dele que em Jâmnia, na costa mediterrânea, renascerá o judaísmo. Cf. SAULNIER, Christiane; ROLLAND,
Bernard. A Palestina no tempo de Jesus. 3.ed., São Paulo: Paulinas, 1983. p. 81-82.
40
Jesus, ao suscitar um movimento de adesão a si, gera como conseqüência uma ruptura com as
instituições. Ser seu discípulo supunha abandonar tudo o que impedia a abertura do coração
ao dom de Deus. E, por isso, o foco dos fariseus estava em Jesus e não mais em João Batista.
Jesus não quer, neste momento, nenhum tipo de conflito com os dirigentes do judaísmo. Por
isso toma a decisão de ir para a Galiléia, província do norte, fora da jurisdição romana e
afastada das autoridades nacionais e religiosas de Jerusalém5. Jesus está sob o imperativo da
hora, que lhe foi fixada pelo Pai (cf. Jo 2,4).
Acentuando o conhecimento e domínio que Jesus tem de seu destino, o autor anota
que Jesus sabe da preocupação dos fariseus a respeito de seu sucesso que supera o
do Batista (ver 3,25-26). Reconhecemos por trás disso a situação da comunidade
cristã, muito mais “intragável” para o judaísmo dominante que o grupo do Batista,
que não põe em xeque seus conceitos nem confessa Jesus como “Filho de Deus” (cf.
5,18; 10,30). Conhecendo o zelo dos fariseus e achando que é muito cedo para
provocar o conflito decisivo, Jesus se retira para a Galiléia6.
No caminho para a Galiléia está a Samaria7 onde “é preciso” (:Edei) que Jesus
atravesse. Geograficamente, Jesus podia ter ido para a Galiléia, passando pela Transjordânia,
como se fazia freqüentemente. Era até mais fácil. O verbo “:Edei” – era preciso ou tinha que
– denota que a necessidade de Jesus era de outra ordem. Como em outras passagens de João
(cf. 3,14), a idéia de necessidade indica que se trata de cumprir a vontade ou os desígnios de
Deus. Em Isaías há uma profecia segundo a qual os dois reinos separados (Israel e Judá)
seriam um dia reconciliados. O profeta anuncia que o rei justo, sobre o qual pousará o Espírito
de Deus, “congregará os exilados de Israel, reunirá os dispersos de Judá dos quatros cantos da
terra” (Is 11,12). Esta vontade é confirmada em Jo 4,34: “O meu alimento é fazer a vontade
daquele que me enviou e realizar a sua obra”. Jesus quer reconciliar os dois povos, os irmãos
5
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 260.
6
KONINGS, Evangelho, p. 140.
7
A região da Samaria – assim denominada por causa do nome de sua capital, fundada pelo rei Omri (886-
875a.C.) – corresponde ao antigo reino israelita do norte. Em 722, os assírios dele se haviam apossado,
deportando uma parte dos habitantes e instalando colonos. Quando o sumo sacerdote judeu João Hircano (134-
104a.C.) conseguiu reconquistar o país, a população local provinha de duas cepas, a judaica e a pagã. Os
descendentes dos israelitas tinham conservado a fé ancestral, mas reconheciam tão somente a tradição do
Pentateuco e consideravam o monte Garizim, onde havia sido posta a benção de YHWH sobre Israel (cf. Dt
11,29; 27,12), era o autêntico lugar do culto; além disso, elementos colhidos em religiões estrangeiras
misturavam-se às suas crenças. Por esses motivos, os judeus os consideravam cismáticos, quando não heréticos.
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 261.
41
divididos desde os primórdios da realeza. Jesus levará a cabo a obra do Pai junto aos
samaritanos, esses herdeiros do antigo reino de Israel que outrora se separara do de Judá. Por
isso Jesus toma a decisão de ir para a Galiléia pelo caminho da Samaria para realizar a obra
daquele que o enviou.
Jesus chega a Sicar8, cidade da Samaria, próximo à terra dada por Jacó a seu filho
José, onde fica a fonte de Jacó. Estas terras remontam às origens de Israel, quando não havia a
divisão entre judeus e samaritanos. Junto a esta fonte, Jacó encontrou-se com Raquel em Harã
(cf. Gn 29,2-10). Jacó tira a pedra que estava em cima da fonte para dar de beber ao gado. Em
Gn 24, encontramos uma narrativa semelhante o relato joanino do encontro no poço: quando o
estrangeiro acabou de falar, Rebeca voltou aos seus e disse-lhes de que modo lhe falou aquele
homem. A samaritana age do mesmo modo. O que é destacado certamente é a fonte e sua
água que garante a existência e reanima as forças para prosseguir o caminho.
Jesus, ao chegar com seus discípulos, mostra-se cansado (kekopiakw,j) e, por isso,
senta-se junto à fonte. Jesus trabalha, prega, afadiga-se na missão antes de dar sua vida pelos
seus na cruz. Mas que cansaço é esse? Será da fadiga de uma caminhada sob o sol? Ou um
cansaço pelo não-entendimento de seus discípulos acerca de sua missão? Tal cansaço provem
de um trabalho necessário que está fazendo para que se produza o fruto. O caminho de Jesus é
marcado pela fadiga de quem trabalha sempre. No caminho que está fazendo, Jesus vai
semeando. Por isso, em Jo 4,38, diz a seus discípulos: “Eu vos enviei para colher o que não
vos custou nenhum trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no que lhes custou tanto
trabalho”.
A narração marca a hora em que Jesus está sentado junto à fonte (w[ra h=n w`j e[kth
– era mais ou menos a sexta hora)9. Segundo vários exegetas, esse é o horário em que Jesus
será apresentado à multidão por Pilatos. Assim, alguns autores vêem aqui uma alusão à
paixão. Antecipa-se, como em Caná (cf. Jo 2,4), a hora de Jesus. O cansaço da paixão já se
faz presente em sua caminhada evangelizadora. Também o v. 23 – “Mas vem a hora, e é
agora, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” – faz
referência à paixão. O culto com espírito e lealdade será possível somente quando Jesus tiver
entregue o espírito (cf. 7,39; 19,30), a água viva que oferece à mulher (cf. 4,14) e que brotará
8
A cidade existente nos tempos de Jacó chamava-se Siquém (Gn 33,18-20; Js 24,32; Os 6,9) e, perto dela,
surgira a cidade mais moderna de Sicar. Siquém fora destruída há mais de um século. Cf. MATEOS, Juan;
BARRETO, Juan. O Evangelho de São João. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1999. p. 219
9
Alguns exegetas chamam a atenção por ser uma hora que ninguém vai ao poço tirar água. É a hora mais quente
do dia. Normalmente se faz isso pela manhã, quando ainda está fresco ou ao entardecer. Cf. LÉON-DUFOUR,
Leitura, p. 267.
42
de seu lado aberto pela lança do soldado (cf. 19,34). O evangelista antecipa na cena de
Samaria, como em Jo 3,3-7, o fruto da morte de Jesus. Une o tempo de Jesus com o tempo da
comunidade que lê a vida de Jesus após a sua morte e ressurreição, e vê na sua atividade
anterior a antecipação da realidade que ela vive.
O encontro com Jesus sempre possibilita uma transformação de vida para todo
aquele que abre seu coração a ele. Jesus sentia ressoar em seu humano coração um amor
infinito, que vinha do invisível mistério de seu Pai. Ele sabia que o grande dom, que o Pai sem
cessar lhe dava, era destinado a todos os seres humanos. Muitos desses encontros de Jesus
com homens e mulheres são mencionados pelos Evangelhos. Pensando na força
transformadora desses encontros, João Paulo II afirma:
7 7
e;rcetai gunh. evk th/j Samarei,aj avntlh/sai u[dwrÅ Chega uma mulher da Samaria para tirar água; Jesus
10
JOÃO PAULO II. Ecclesia in América. Exortação Apostólica pós-sinodal do Santo Padre João Paulo II. São
Paulo: Paulus, 1999. p. 13.
11
Segundo Weiler, o episódio do encontro de Jesus com a mulher samaritana à beira do poço de Jacó e todo o
desenrolar da cena que se segue trazem à luz vários elementos hermenêuticos para três questões candentes na
época de Jesus e hoje: mulher, cultura e evangelização. Cf. WEILER, Lúcia. Jesus e a samaritana. Ribla,
Petrópolis, n. 15, p. 98-103, 1993.
43
le,gei auvth/| o` VIhsou/j\ do,j moi pei/n\ lhe disse: “Dá-me de beber”.
8
oi` ga.r maqhtai. auvtou/ avpelhlu,qeisan eivj th.n po,lin 8 Os seus discípulos, com efeito, tinham ido à cidade
i[na trofa.j avgora,swsinÅ para comprar o que comer.
9
le,gei ou=n auvtw/| h` gunh. h` Samari/tij\ pw/j su. 9 Mas esta mulher, esta samaritana, lhe disse: “Como?
VIoudai/oj w'n parV evmou/ pei/n aivtei/j gunaiko.j Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim, uma
Samari,tidoj ou;shjÈ ouv ga.r sugcrw/ntai VIoudai/oi mulher samaritana?” Os judeus, com efeito, não
Samari,taijÅ querem ter nada em comum com os samaritanos.
Num horário anormal para se ir buscar água, chega uma mulher da Samaria. E
Jesus, na sua sede, interpela aquela mulher, pedindo-lhe: do,j moi pei/n – Dá-me de beber. É o
pedido de um judeu. Para a mulher da Samaria, esse pedido é estranho. Pedir que essa mulher
lhe dê de beber parece ser um ato insano de Jesus. É esse pedido que dá inicio ao diálogo
revelador e transformador da vida daquela mulher e de seu povo, os samaritanos.
A mulher com quem Jesus dialoga não é nomeada, mas tem história e reações
próprias. Representa o povo da Samaria, cuja mentalidade religiosa nela se reflete 12. Nela está
presente uma expectativa que vai além da simples sede que é saciada quando se bebe água
que é tirada da fonte de Jacó.
Como afirma o v. 8, os discípulos vão à cidade para comprar o que comer13. Jesus
encontra-se sozinho. Ele tem a iniciativa de provocar o diálogo. Este gesto de Jesus simboliza
a iniciativa de Deus, que sempre vem ao encontro da humanidade. De acordo com Bastianel,
todas estas circunstâncias não são a causa do encontro, mas o espaço humano que
torna possível o encontro nesta modalidade. Deus sempre encontra o homem ao
interno de sua história concreta. Em Jesus de Nazaré, o modo semelhante de estar
próximo de Deus assume o rosto da história concreta de um homem, entrelaçado
pelas circunstancias, à modalidade da relação humana. Jesus assume a história do
homem e nessa vive a sua missão, tornando presente o amor salvífico de Deus
através da situação de seu encontro concreto com a pessoa 14.
12
João mostra muito bem que o centro religioso dos samaritanos não era a Samaria pagã, mas o monte Garizim
perto de Siquém, e que, exatamente como os judeus, os samaritanos também esperavam a vinda do messias. Cf.
KOESTER, Introdução v. 1, p. 248.
13
Pode ser a razão de que Jesus pedisse de beber à mulher. Pois, se os discípulos estivessem presentes, eles
mesmos teriam tirado a água do poço ou teriam se entendido com a mulher. Jesus pediu a água pessoalmente,
porque os discípulos estavam na cidade. Pode também dar razão clara de Jesus ter falado a sós com aquela
mulher, e por isso os apóstolos ficaram admirados (v. 27). Jesus travou, pois, com a mulher samaritana um
colóquio a sós, porque a sede urgia e os discípulos estavam na cidade. Mesmo assim há bons autores que
afirmam que Jesus, na realidade, não teve sede nenhuma, senão que a simulou para introduzir a mulher no
diálogo. Cf. MALDONADO, Juan de. Comentários a los cuatro Evangelios: Evangelio de San Juan. Madrid:
Editorial Católica, 1954. v. 112, p. 241 (BAC).
14
BASTIANEL, Sergio. La samaritana: Giovanni 4,1-42. In: _____ Ho visto il Signore: Figure di preghiera
nella Bibbia. Casale Monferrato: Edizione Piemme, 1999. p. 74.
44
Jesus sente o que é próprio de todo ser humano: a sede. E pede de beber. Jesus
sedento se solidariza com a necessidade de todo ser humano. Dar água era sinal de acolhida,
solidariedade e hospitalidade (cf. Mt 10,42; Mc 9,41).
Mas, com sua pergunta, a samaritana revela toda a polêmica entre dois grupos que
esperavam pelo Messias que devia vir. “Como? Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim,
uma mulher samaritana?” Judeus e samaritanos se detestavam mutuamente. Ao que parece os
samaritanos normalmente negavam água aos judeus. Comer e beber com alguém que não
fosse da mesma religião era sinal de intimidade e não era permitido entre os judeus. Por
comer com os pecadores, Jesus foi rejeitado por escribas e fariseus. Porque amar e igualar-se
com os “malditos” foi para Jesus a maneira de ensinar a ser Senhor e Mestre. É o que se
percebe pelo comentário do evangelista: “Os judeus, com efeito, não querem ter nada em
comum com os samaritanos”. Isto é compreendido perfeitamente pelo contexto histórico15.
Jesus não está preocupado com a relação conflitual entre judeus e samaritanos e, por isso, põe
a questão em discussão com sua interlocutora. Jesus quebra as barreiras que os separavam e
elimina a superioridade dos judeus em relação aos samaritanos ao pedir água 16. Apesar da
estranheza, a mulher, pelo simples tratamento (tu), situa o diálogo na relação entre pessoas:
“Tu a mim...?” Ao entrar em diálogo com aquele homem, que para ela era um estranho, a
samaritana permite que Jesus estabeleça um encadeamento com o que ela disse, conduzindo-a
a uma progressão no acolhimento da revelação. Aceitar Jesus, o Salvador, é libertar-se do que
impede, do que obstaculiza a realização como pessoa humana em sua dignidade e
transcendência.
A mulher samaritana insiste no desejo da água que lhe matará a sede do corpo.
Foi ali para retirá-la como, certamente, fazia todos os dias. O seu semblante expressa o
espanto de quem quer entender aquele pedido de Jesus. Para entender o que aquele judeu lhe
pede, a mulher samaritana deve se abrir para uma superação da oposição étnica. A resposta
que Jesus dá à mulher, induzindo-a a seguir perguntando, converte-se em sua palavra de
15
KOESTER, Introdução v. 1, p. 248: “A verdadeira causa da rejeição dos samaritanos por parte dos judeus está
no desenvolvimento separado da comunidade cultual samaritana. Essa divergência começou bem antes da
reorganização do judaísmo sob a liderança dos fariseus. Não é de se admirar que os samaritanos aparecessem tão
cismáticos e „impuros‟ aos olhos dos que tinham uma visão rabínica da observância da lei. Por outro lado, isso
não impediu os primeiros missionários cristãos de levar sua mensagem para a Samaria (At 8,1ss)”.
16
Ao pôr-se no nível da necessidade humana, Jesus afirma a igualdade (cf. 2,21: seu corpo, 19,31: os corpos),
suprime a discriminação e dignifica a mulher. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 222.
45
revelação para os leitores crentes. Jesus exorta-os a reconhecer o verdadeiro e próprio dom de
Deus e àquele que é o único que lhes pode oferecer; ou a reconhecer aquele que fala a palavra
de Deus e a pedir-lhe o seu dom. Jesus evoca o dom de Deus, que transcende toda
discriminação de pessoas e raças. A água viva, enquanto expressão figurada, refere-se ao dom
do doador.
10
avpekri,qh VIhsou/j kai. ei=pen auvth/|\ eiv h;|deij th.n 10 Jesus lhe respondeu: “Se conhecesses o dom de
dwrea.n tou/ qeou/ kai. ti,j evstin o` le,gwn soi\ do,j moi Deus, e quem é aquele te diz: „Dá-me de beber‟, tu é
pei/n( su. a'n h;|thsaj auvto.n kai. e;dwken a;n soi u[dwr que lhe pedirias e ele te daria água viva”.
zw/nÅ 11
A mulher disse: “Senhor, tu não tens sequer um
11
le,gei auvtw/| Îh` gunh,Ð\ ku,rie( ou;te a;ntlhma e;ceij balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa
kai. to. fre,ar evsti.n baqu,\ po,qen ou=n e;ceij to. u[dwr to. água viva?
zw/nÈ 12
12
Serias maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o
mh. su. mei,zwn ei= tou/ patro.j h`mw/n VIakw,b( o]j poço do qual ele mesmo bebeu, como também seus
e;dwken h`mi/n to. fre,ar kai. auvto.j evx auvtou/ e;pien kai. filhos e os seus animais?”
oi` ui`oi. auvtou/ kai. ta. qre,mmata auvtou/È
13
13
Jesus lhe respondeu: “Todo aquele que bebe desta
avpekri,qh VIhsou/j kai. ei=pen auvth/|\ pa/j o` pi,nwn evk água ainda terá sede;
tou/ u[datoj tou,tou diyh,sei pa,lin\
14
14 mas aquele que beber da água que eu lhe darei nunca
o]j dV a'n pi,h| evk tou/ u[datoj ou- evgw. dw,sw auvtw/|( ouv mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe darei
mh. diyh,sei eivj to.n aivw/na( avlla. to. u[dwr o] dw,sw se tornará nele uma fonte que jorrará para a vida
auvtw/| genh,setai evn auvtw/| phgh. u[datoj a`llome,nou eivj
eterna”.
zwh.n aivw,nionÅ
15
15 A mulher lhe disse: “Senhor, dá-me essa água, para
le,gei pro.j auvto.n h` gunh,\ ku,rie( do,j moi tou/to to.
que eu não tenha mais sede e não precise mais vir aqui
u[dwr( i[na mh. diyw/ mhde. die,rcwmai evnqa,de avntlei/nÅ
tirar água”.
O dom de Deus está ali diante daquela mulher samaritana. O dom de Deus é a
doação que Deus faz: Jesus Cristo. “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu
filho único” (Jo 3,16). Por isso Jesus respondeu àquela mulher: “Se conhecesses o dom de
Deus e quem é aquele que te diz: „Dá-me de beber‟, tu é que lhe pedirias e ele te daria água
viva”. Jesus não se preocupa com os desacordos entre judeus e samaritanos, causados pelas
ideologias, principalmente as religiosas. Pelo contrário, oferece o dom de Deus que as supera,
porque seu amor se dirige à humanidade inteira. Mesmo assim, aquela mulher não
compreende o que aquele homem quer lhe dizer. E o desencontro prossegue nas perguntas que
ela faz: “Senhor17, tu não tens sequer um balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa
água viva? Serias maior que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço do qual ele mesmo bebeu,
como também seus filhos e os seus animais?” (vv. 11-12). Enquanto Jesus escancara a
17
Senhor – Kýrios – é um título de Jesus, capaz de significados muito variados desde a simples cortesia até a fé
mais autêntica, conforme o caso. Nesta perícope aparece por três vezes, sempre nos lábios da samaritana; e o seu
conteúdo se torna cada vez mais profundo à medida que cresce a compreensão da mulher (v. 15.19). Cf.
NICCACI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p.
79.
46
revelação de sua missão messiânica oferecendo a graça, o dom de Deus que suplanta todo
preconceito e toda discriminação, para a samaritana, o dom de Deus é apenas a natureza
fazendo brotar aquela água tão boa18. Jesus referia-se às coisas espirituais e a mulher ficara
presa aos aspectos materiais da água do poço de Jacó. Para Jesus, é a verdade e a graça que
dará aos que nele crerem (cf. Jo 7,37ss).
18
No momento, a mulher está ainda em um mal entendido. Através do vocábulo “água”, Jesus e a mulher entram
em contato, porém como cada um fala sempre em um plano de compreensão distinto, não chegam a se encontrar.
A menos que esta diferença de compreensão se apresente como a diferença entre o significado literal e
metafórico do termo “água”: A mulher permaneceria no plano do significado material da palavra “água”,
enquanto Jesus estaria se referindo ao significado figurativo, espiritual. Para Tilborg nesse momento isso não
parece ser exato; tanto a mulher como Jesus falam da água em um sentido figurado. Cf. TILBORG, Comentário,
p. 83.
19
A ironia da mulher poderia funcionar ainda de outra maneira: no Gênesis e no ciclo lendário posterior, Jacó é
aquele que “suplantou” seu irmão, como indica seu nome. A samaritana diria: “Queres tu suplantar Jacó?” Cf.
LEON-DUFOUR, Leitura, p. 272.
20
Cf. THEISSEN, O Novo Testamento, p. 118.
47
Por isso precisamente a samaritana não terá sede eternamente. Porque a água que
Jesus lhe dará se tornará uma fonte que brota e salta até a vida eterna, até o céu.
Como poderá ter sede o que tem em seu interior fonte que brote com tanto ímpeto?
A metáfora está tomada das fontes que jorram a água a grande altura, devido a
grande abundância de água e pressão de seu jorro. Pois, da mesma maneira o que
possui o Espírito Santo dentro de si é como se tivesse uma fonte que salta até o céu,
isto é, até a vida eterna que nos espera. Sucede aqui com a água o mesmo que com
uma semente jogada em terra, que surge e cresce; de igual maneira aquela água em
nós se enche até a vida eterna21.
Deus oferece a todos sua água (cf. Is 55,1), água que, se bebida uma vez, apaga
para sempre a sede, porque é diferente da outra. O Espírito se interiorizará no ser humano
como uma fonte de água viva que jorrará para a vida eterna22. Jesus falava da sua fonte,
aquela que tinha por dentro, inesgotável fonte que jorra infinito amor como coração humano
algum jamais imaginou. E isso para que seja saciada a sede mais profunda do homem: o
desejo de participar da vida do próprio Deus: “A minha alma tem sede de Deus, do Deus
vivo” (Sl 42,2). Os profetas no AT tinham convidado o povo a beber nas fontes da salvação. E
João marcará a força da fé quando Jesus diz: “Aquele que crê em mim jamais terá sede”
(6,35) e “Se alguém tem sede, venha a mim e beba aquele que crê em mim” (7,37s).
Era certo que a mulher desconhecia o dom e a graça de Deus. Aqui Jesus escancara a
revelação de sua missão messiânica. Até então ele não havia se revelado com tanta
21
MALDONADO, Comentários, p. 247.
22
MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 224: “O Espírito é manancial interior, e não exterior como o de Jacó.
O homem deve receber a vida em sua raiz mesma (dentro), na profundidade do seu ser, não por acomodar-se às
normas externas. É dom permanente que faz nascer para a vida nova e a mantém (3,6), que abre o horizonte do
reino de Deus (3,5). Sua força é garantia de plenitude de vida (cf. 10,10: Vim para que tenham vida e a tenham
em abundância)”.
23
O desconhecido promete dar-lhe a “Água Viva”. A samaritana pede-lhe, suplica-lhe, implora-lhe a dádiva, e
assim procede impelida por um misto de curiosidade e de interesse. Curiosidade ante a perspectiva de uma coisa
nova da qual nunca ouvira falar. E de interesse para se ver livre do incômodo diário de ir à fonte e ter que tirar
água. Cf. DELAMARE, Alcibíades. A samaritana. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1955. p. 74.
48
clareza. A água viva oferecida à samaritana é a graça, o dom de Deus, é aquela
amizade divina que suplanta todo o preconceito e toda a discriminação. O amor de
Deus, gratuitamente oferecido, é uma fonte fresca, pura e inesgotável de uma água
que mata a sede para sempre24.
Mas, continuam para aquela mulher muitas dúvidas. Quem é mesmo esse homem
judeu? Qual é o seu interesse?
Jesus está com sede, mas quem acaba pedindo água é a mulher, pois ele tem
água capaz de saciar para sempre a sede de todos. A água que Jesus dá é o Espírito, a força
que vem de dentro e jorra para a vida eterna. A mulher ainda não conhece o seu “Senhor”,
pois pensa em uma água que possa matar a sua sede para sempre e não necessite mais buscá-
la na fonte. A mulher desconhece aquele que está diante dela. Jesus está sedento de sua fé. Por
isso, com paciência, vai se revelando àquela que agora lhe pede dessa água.
Jesus mostra à mulher samaritana que o seu verdadeiro “Senhor” não é o que
está com ela. A verdade divina não é acessível à mulher enquanto a sua vontade estiver cativa
do erro. Jesus leva a samaritana a encurtar suas indecisões e a tomar consciência de seus
pecados. Diante das declarações da mulher, Jesus a coloca na presença de suas faltas. É nesse
contato com os seus erros que a samaritana tem a possibilidade de conhecer aquele que lhe
está falando. A mulher samaritana começa a ver melhor, porque Jesus vai lhe ajudando a tirar
o véu que a impede de conhecer o seu Senhor. Ao sondar a vida da mulher samaritana, Jesus a
coloca em condições de julgar suas disposições interiores.
16
16
le,gei auvth/|\ u[page fw,nhson to.n a;ndra sou kai. evlqe. Jesus lhe disse: “Vai chama teu marido e volta aqui”.
evnqa,deÅ 17
A mulher lhe respondeu: “Eu não tenho marido”.
17
avpekri,qh h` gunh. kai. ei=pen auvtw/|\ ouvk e;cw a;ndraÅ Jesus lhe disse: “Tu dizes bem: „Não tenho marido‟;
le,gei auvth/| o` VIhsou/j\ kalw/j ei=paj o[ti a;ndra ouvk e;cw\ 18
tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido.
18
pe,nte ga.r a;ndraj e;scej kai. nu/n o]n e;ceij ouvk e;stin Nisso disseste a verdade”.
sou avnh,r\ tou/to avlhqe.j ei;rhkajÅ 19
Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que tu és um
19
le,gei auvtw/| h` gunh,\ ku,rie( qewrw/ o[ti profh,thj ei= profeta.
su,Å 20
Os nossos pais adoraram sobre esta montanha, e vós
20
oi` pate,rej h`mw/n evn tw/| o;rei tou,tw| proseku,nhsan\
24
GALVÃO, Jesus e a samaritana, p. 54.
49
kai. u`mei/j le,gete o[ti evn ~Ierosolu,moij evsti.n o` to,poj afirmais que é em Jerusalém que se encontra o lugar
o[pou proskunei/n dei/Å onde se deve adorar”.
21
le,gei auvth/| o` VIhsou/j\ pi,steue, moi( gu,nai( o[ti 21 Jesus lhe disse: “Acredita-me, ó mulher, vem a hora
e;rcetai w[ra o[te ou;te evn tw/| o;rei tou,tw| ou;te evn em que nem sobre esta montanha, nem em Jerusalém
~Ierosolu,moij proskunh,sete tw/| patri,Å adorareis o Pai.
22
u`mei/j proskunei/te o] ouvk oi;date\ h`mei/j 22 Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o
proskunou/men o] oi;damen( o[ti h` swthri,a evk tw/n que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus.
VIoudai,wn evsti,nÅ
23
23
Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros
avlla. e;rcetai w[ra kai. nu/n evstin( o[te oi` avlhqinoi. adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; tais
proskunhtai. proskunh,sousin tw/| patri. evn pneu,mati são, com efeito, os adoradores que o Pai procura.
kai. avlhqei,a|\ kai. ga.r o` path.r toiou,touj zhtei/ tou.j
proskunou/ntaj auvto,nÅ
24
pneu/ma o` qeo,j( kai. tou.j proskunou/ntaj auvto.n evn 24 Deus é espírito, e por isso os que o adoram devem
pneu,mati kai. avlhqei,a| dei/ proskunei/nÅ adorar em espírito e verdade”.
Com o pedido da mulher samaritana, “Jesus lhe disse: „Vai, chama o teu marido e
volta aqui‟”. Jesus é incisivo. Ele toca na ferida daquela mulher, que lhe responde: “Eu não
tenho marido25.” Jesus não pretende dar-lhe lição de moral e muito menos mostrar-lhe o poder
de advinhação para fazê-la entender que ele não era um homem qualquer. O profeta do reino
do norte, Oséias proclama: “Acontecerá naquele dia – oráculo do Senhor – que tu me
chamarás „meu marido‟ e já não me chamarás „meu baal, meu dono‟”. A resposta da
samaritana é uma auto-acusação diante de Jesus, de sua infidelidade ao Deus da Aliança
expressa em termos de adultério. A palavra “marido” (em hebreu baal, em grego avnh,r)
passará a designar YHWH. E, por isso, Jesus lhe disse: “Tu dizes bem: „Não tenho marido‟,
tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido. Nisso disseste a verdade”. O profeta Oséias
fala da prostituta (1,2) e da adúltera (3,1), que são símbolos do reino de Israel, que tinha
Samaria por capital. A prostituição e o adultério consistiam no abandono da fé,
comprometendo-se com os cultos pagãos26. Daí a origem da idolatria dos samaritanos (cf. 2Rs
17,24-41). “Os cinco maridos corresponderiam aos cinco deuses introduzidos depois da
conquista por parte da Assíria em 721 aC”27. Assim sendo, Jesus pode afirmar que aquele que
a mulher tem agora não é o seu verdadeiro marido. A samaritana percorre o itinerário que faz
emergir a história religiosa dos samaritanos. A sua relação com Deus não era exclusiva e, por
25
Aos judeus era permitido casar-se somente três vezes; se a mesma norma se aplicasse entre os samaritanos,
isso significaria que a mulher havia levado uma vida muito imoral. Segundo Brown em seu comentário, não há
motivos para supor que a conversa entre Jesus e a mulher acerca da vida desta tinha maior alcance do que
obviamente se compreendia das palavras. Cf. BROWN, Raymond Edward. El Evangelio segun Juan. Madrid:
Ediciones Cristiandad, 1979. v. 1, p. 373.
26
Há aqui uma paganização de Javé. Deus é transformado em um ídolo (cf. 1Rs 12,25-33).
27
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 277.
50
isso, ela não tem o verdadeiro Deus28. Jesus induz aquela mulher a tomar consciência de sua
infidelidade para fazê-la inebriar-se do Deus verdadeiro: “Ele me disse tudo o que eu fiz” (vv.
29.39)29.
Jesus é identificado como um profeta por causa do conhecimento especial que ele
manifestou possuir, mas também por expressar deste modo o desejo que a mulher
sente de transformar sua própria vida. Os samaritanos não aceitavam os livros
proféticos do AT; é provável, portanto, que a imagem de um profeta que a mulher
tem seja a de Dt 18,15-18, uma passagem que no Pentateuco samaritano, assim
como em alguns materiais de Qumrã, vê a continuação de Ex 20,21b. Quiçá se
esperava que este profeta semelhante a Moisés revelasse certas questões legais, e daí
a pergunta implícita no v. 20 ganha lógica30.
28
No plano em que se move a narração, o marido (recorde-se a palavra “baal”= marido/senhor) tem conotação
religiosa; representa a busca de seguranças opostas ao desígnio de Deus, toda aliança contrária à sua, a pretensão
enganosa de encontrar sedução fora dele. Samaria atraiçoara Deus, o esposo do povo, buscando outros apoios
(Os 2,7: “Sim, sua mãe prostitui-se, cobriu-se de vergonha aquela que os concebeu, quando dizia: Quero correr
atrás de meus amantes, daqueles que me dão o meu pão e a minha água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e a
minha bebida”; 9,1: “Não te alegres, Israel, não exultes como os povos! Porque tu te prostituíste longe de teu
Deus”). Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 226.
29
“„Aquele que faz o mal‟, dizia Jesus, „detesta a luz, com medo de que a suas obras sejam reprovadas‟ (cf. João
III,20). Eis-nos tentados a protestar: nós não fugimos da Luz, não odiamos a verdade. Bossuet responde-nos:
„quando a verdade, não contente de nos mostrar o que ela é, vem manifestar-nos o que nós somos, então, como
se tivesse perdido toda a sua beleza ao descobrir-nos a nossa fealdade, começamos imediatamente a odiá-la, e
esse belo espelho desagrada-nos porque é demasiado fiel‟”. Cf. CHEVROT Georges. Jesus e a samaritana.
Lisboa: Áster, 1958. p. 87.
30
BROWN, El evangelio, p. 374.
51
A mulher apresenta a Jesus a questão controvertida entre os samaritanos e os
judeus acerca do verdadeiro lugar da adoração de Deus (cf. 2R 17,28-41). Os samaritanos
adoravam Yahveh sobre o monte Garizim. Mas a samaritana informa que os judeus afirmam
que é em Jerusalém que se encontra o lugar onde se deve adorar.
Jesus revela à mulher a verdadeira adoração: “Vós adorais o que não conheceis;
nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus” (v. 22)32. Jesus denuncia
assim a idolatria dos samaritanos (vós), revelando o único Deus verdadeiro, a quem o templo
de Jerusalém (cf. Jo 2,13-16) é dedicado e de onde vem a salvação dos judeus (nós)33. Jesus
faz a samaritana compreender o Pai. Não se pode amar o Pai se não se ama Jesus; não se pode
amar o Pai se o Espírito de Cristo não reza dentro do ser humano. A fé em Cristo é o único
caminho que leva ao Pai.
31
É com a palavra “mulher” que Jesus no Evangelho de João se dirige à sua própria mãe: “Que queres de mim,
mulher?” (Jo 2,4) e, depois, na sua hora, do alto da cruz: “Mulher, eis aí o teu filho” (Jo 19,26).
32
Jesus, antes de desenvolver esta idéia, mostra que os judeus têm a primazia da história da salvação. Os
samaritanos não possuem o verdadeiro conhecimento de Deus, pois seu culto surgiu muito mais da ambição e da
concorrência nacional e política. Os judeus são os legítimos adoradores de Yahveh; deles vêm a “salvação”, o
Messias.
33
De acordo com Léon-Dufour, nem todos os estudiosos compartilham desta maneira de ler, não obstante óbvia.
Para alguns, o “nós” corresponde àquele de Jo 3,11, que se refere somente a Jesus ou à comunidade cristã; neste
caso, o “vós” remeteria em geral aos interlocutores não-cristãos; aí, assim como aqui em Jo 4,21. Semelhante
interpretação, que se coloca imediatamente no nível pós-pascal, não leva em conta a situação da conversa de
Jesus com a samaritana e torna incompreensível a frase explicativa: “A salvação provém dos judeus”. E ainda,
outros estudiosos reconhecem realmente que o “nós” se refere aos judeus, mas hesitam em incluir o próprio
Jesus, pelo fato de que, em Jo, ele é com freqüência contraposto aos “judeus”. Mas o próprio texto diz que Jesus
é judeu! Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 281-282.
52
“Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e verdade; tais são, com efeito, os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e por
isso os que o adoram devem adorar em espírito e verdade” (vv. 23-24). Jesus aprofunda o
diálogo com a samaritana, dizendo que, graças à sua presença, os adoradores que o Pai
procura o adorarão em espírito e verdade: “vem a hora, e é agora”. Os “adoradores”
verdadeiros não são mais só os judeus, que sabiam a quem adoravam, mas todos aqueles que
adorarem em espírito e verdade.
Deus é definido pelo evangelista como Espírito, dinamismo de amor que faz
compreender os efeitos da água viva que Jesus dá a beber e que sacia a sede do ser humano.
Esse amor produz no ser humano a capacidade de amar generosamente como ser amado (cf.
Jo 4,14), transformando-o em espírito (cf. Jo 3,6) semelhante ao próprio Deus (cf. Jo 1,16). O
Espírito é o amor de Deus dirigido à humanidade inteira. É um dom; e é também uma tarefa.
A expressão evn pneu,mati – “em espírito” – refere-se à presença do Espírito que regenerou
aquele que crê. “Jesus, em quem habita o Espírito e que batiza no Espírito (1,33), anuncia
adoradores nascidos do Espírito (3,5-8). João se aproxima aqui do que diz Paulo: „É o Espírito
que nos faz exclamar: Abba, Pai!‟”35. Quanto à expressão avlhqei,a| – “verdade”, refere-se à
revelação trazida por Jesus: a adoração do Pai pressupõe a acolhida de sua palavra. O novo
culto, portanto, eleva o ser humano, fazendo-o cada vez mais semelhante ao Pai. Esse culto só
será autêntico se produzido pelo Espírito, que diz a verdade do Cristo. Esses são os
verdadeiros adoradores que o Pai procura.
34
MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 316-317.
35
LEON-DUFOUR, Leitura, p. 284.
53
de Abraão. A samaritana crê no Messias que está para chegar. Ela sabe que o Messias já está
próximo. E quando ele vier, explicará todas as coisas.
A espera do Messias, que chamam Cristo, terminou para esta mulher samaritana.
A samaritana, ao dizer que sabe que o Messias deve vir, escuta do próprio Jesus: “Sou eu, eu
que estou falando a ti”. Esta revelação marca o ponto culminante da conversa de Jesus com a
samaritana. Jesus é o messias. E, diante dessa escuta, a sua reação é de uma intensa
movimentação. Larga tudo para se tornar uma mensageira do Evangelho.
25
le,gei auvtw/| h` gunh,\ oi=da o[ti Messi,aj e;rcetai o` 25 Disse-lhe a mulher: “Eu sei que um Messias deve vir
lego,menoj cristo,j\ o[tan e;lqh| evkei/noj( avnaggelei/ h`mi/n – aquele que chamam Cristo. Quando vier, ele nos
a[pantaÅ anunciará todas as coisas”.
26 26
le,gei auvth/| o` VIhsou/j\ evgw, eivmi( o` lalw/n soiÅ Disse-lhe Jesus: “Sou eu, eu que estou falando a ti”.
“A mulher lhe disse: „eu sei que um Messias deve vir – aquele que chamam
Cristo. Quando vier, ele nos anunciará todas as coisas‟” (v. 25). A mulher reconhece nas
palavras de Jesus o eco da longa esperança dos filhos de Abraão, mas tem receios de dizer-lhe
objetivamente e, por isso, introduz o assunto com a esperança do seu povo: “Eu sei que um
Messias deve vir – aquele que chamam Cristo”. Ao mesmo tempo, abre seu coração para
aceitar o Messias36, quando ele chegar. É a entrega – disposição para a comunhão com o
verdadeiro Deus. A samaritana compreende que as palavras do profeta anunciam a era
messiânica: “Ele nos anunciará todas as coisas”. Ao ouvir a revelação sobre sua vida
conjugal, a samaritana compreende que na sua frente está um profeta e, escutando o anúncio
da adoração do Pai, pensa imediatamente naquele que deve anunciar todas as coisas.
Reconheceu em Jesus um profeta, um homem de Deus, que lhe falava coisas extraordinárias
sobre questões já adormecidas em seu coração. Mas ela não conhecia ainda a identidade
profunda daquele homem com quem falava tão seriamente. O mistério que ali se fazia em
Jesus ainda não lhe fora revelado. É aí que Jesus lhe disse: “evgw, eivmi( o` lalw/n soi – sou eu,
eu que estou falando a ti” (v. 26). Esta revelação do próprio Jesus marca o ponto culminante
do diálogo com a samaritana. Evidencia a conversão daquela mulher que vai se tornar uma
mensageira do Evangelho. É a primeira vez que no relato Jesus fala assim, de si mesmo, na
36
Os samaritanos não esperavam um Messias no mesmo sentido que os judeus, como rei ungido da casa de
David. Esperavam um Taheb (Ta’eb = verbo hebreu sub = aquele que retorna), seguramente o Profeta
semelhante a Moisés. Esta crença era o quinto artigo do credo samaritano. Demonstra que a conversa recolhida
em Jo 4,19-25 concorda com o conceito samaritano de Taheb como mestre da Lei, ainda que nos lábios da
mulher o termo judeu “Messias” seja mais conhecido. Cf. BROWN, El evangelio, p. 375.
54
primeira pessoa do singular37. A mulher samaritana induziu Jesus a uma profunda
autocompreensão. De modo figurado, Jesus tinha expressado o seu messianismo muitas vezes,
porém aparece agora também na sua própria boca com a revelação “Sou eu”. Por que Jesus
não se declarou com tanta clareza aos judeus, se ele veio principalmente para eles?
Certamente a resposta a esta questão está na dificuldade que os judeus tinham em conceber
Jesus como o “Enviado de Deus” ou o “Filho de Deus”. Na proclamação messiânica, Jesus
declara ser aquele que realiza a expectativa dos samaritanos. Ele é o profeta, aquele que revela
e restaura o verdadeiro culto. E, para os seus contemporâneos, Jesus não foi e não podia ser o
conquistador terreno que eles esperavam. Por isso eles o rejeitaram.
Portanto, enquanto a mulher nomeou o Messias e confessou que já sabia que ele
deve vir, declarando que estava preparada para acreditar em seus ensinamentos, aquele que
chamam Cristo tomou a palavra para dizer-lhe que ele era o Messias anunciado. Assim, em
Jesus, a samaritana acabara de descobrir a presença do mistério maior, o Pai. Na força do
olhar de Jesus, descobrira, ela mesma, que o templo santo de Deus era Jesus. Jesus torna-se
para ela o templo, no qual existia uma fonte (cf. Ez 47) a jorrar a água da vida: “Se
conhecesses o dom de Deus, e quem é aquele que te diz: „Dá-me de beber‟, tu é que lhe
pedirias e ele te daria a água viva” (v. 10). Deus, o Pai, era a fonte que estava em Jesus. O
dom era o Espírito Santo, Espírito de amor e de vida (cf. Jo 7,37-39) que, uma vez oferecido,
como a água brotava misteriosamente de dentro, como se ela mesma, a samaritana, fosse uma
37
Léon-Dufour faz uma distinção desse evgw, eivmi para os outros que aparecem no evangelho. Nesse evgw, eivmi, os
comentadores se comprazem em ler um anúncio velado da divindade de Jesus, tal como em outros evgw, eivmi do
evangelho. Segundo Léon-Dufour, proceder assim seria precipitar a revelação que ainda deve progredir para
culminar no título que os samaritanos darão a Jesus (cf. Jo 4,42). Aqui Jesus responde a uma expectativa
expressa pela mulher, e convém não traduzir “Eu sou” e sim “Sou eu”, como quando Jesus declara ser o pão, a
vinha, o pastor. Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 287.
55
fonte de águas tão puras. A samaritana descobre que aquele que estava diante de seus olhos
morava desde sempre na sua própria alma. Sua reação é o gesto concreto de quem
atentamente ouviu o que o Senhor lhe disse e acreditou em suas palavras, largando tudo (o
cântaro) para ir anunciar ao seu povo o que ele lhe disse.
27
Kai. evpi. tou,tw| h=lqan oi` maqhtai. auvtou/ kai. 27 Nisso, os discípulos chegaram. E eles ficaram
evqau,mazon o[ti meta. gunaiko.j evla,lei\ ouvdei.j me,ntoi estupefatos ao verem Jesus falar com uma mulher; mas
ei=pen\ ti, zhtei/j h; ti, lalei/j metV auvth/jÈ ninguém lhe disse: “Que procuras?” ou “Por que lhe
falas?”
38
Cf. BULTMANN, Rudolf. The gospel of Jesus: A Commentary. Oxford: BasilBlackwell, 1971. p. 192-193.
39
Cf. BROWN, El evangelio, p. 375.
40
SAUNIER; ROLLAND, A Palestina no tempo de Jesus, p. 65: “Ela nada tem a fazer fora de casa e, se for
obrigada a sair, deve guardar o anonimato mais completo, por isso se usa o véu. Se ela conversa com alguém,
por exemplo para pedir uma informação, deve-se responder-lhe o mais brevemente possível; fora disso, não se
lhe deve dirigir a palavra, nem sequer para cumprimentá-la. Diante de um tribunal, ela jamais é admitida como
testemunha e menos ainda como juíza. Na sinagoga, ela tem seu lugar; no entanto, pode haver lá uma infinidade
de mulheres, se não houver dez homens adultos, é impossível celebrar o ofício”.
56
Os discípulos, com seu espanto, evidenciam a mentalidade judaica. Era natural
que se espantassem com tal cena. A reação não fica só no espanto, pois além de não
compreenderem a fala de Jesus com aquela mulher, uma samaritana, ninguém ousa dizer-lhe:
“Que procuras?” ou “Por que lhe falas?”. João intui as perguntas que os discípulos poderiam
ter feito e não fazem. Eles preferem se calar, mesmo não compreendendo a atitude do Mestre,
a terem que articular uma palavra que possa parecer reprovação. Estavam eles como que
fechados em seus costumes que os impedia de ver que Jesus podia manifestar o seu amor
àquela samaritana e a todo o seu povo (cf. Jo 4,40), como tinha feito com eles em Caná (cf. Jo
2,11). Os discípulos tinham um olhar completamente diferente do olhar de Jesus. Jesus olhava
com o olhar do Pai, que criara a humanidade, homem e mulher, à sua imagem e semelhança.
Os discípulos deveriam aprender a trocar os critérios distorcidos da cultura, da religião, que
faziam da mulher uma imagem diminuída, pelos valores de Jesus: mulher objeto, escrava,
confinada, que em Ex 20,17 integra, junto com escravos e animais, a lista das posses que não
podiam ser cobiçadas por outros. Jesus definitivamente não aceita essa desigualdade. Mas
acolhe todos aqueles que são desprezados pelos notáveis de Israel: os samaritanos, os
pecadores, os funcionários, os soldados de Roma, os pobres, as crianças, as mulheres. Todos
aqueles que vinham a ele e nele acreditavam encontravam nele seu defensor.
A samaritana volta à cidade sem se preocupar com a água que fora buscar no poço
de Jacó. Larga o seu cântaro para trilhar, a partir desta hora, um novo caminho: caminho que
não faz sozinha, porque, dentro do mais profundo de si mesma, descobrira que habita Deus.
Este Deus que se manifestou à mulher samaritana é o Pai de Jesus Cristo, o Messias que devia
vir e anunciar ao povo todas as coisas.
57
2.6.1. A mulher torna-se discípula - Jo 4,28-30
O diálogo de Jesus com a samaritana terminou, mas a missão dela estava apenas
começando. Com seu cântaro foi buscar a água que lhe saciava a sede; agora volta para a
cidade sem o cântaro e aquela água. Para a “água viva” que interessava àquela mulher, aquele
cântaro se tornou inútil. O cântaro não servia para transportar aquele tipo de água. Traz em si
a água da vida, que se tornou nela, pela fé no Cristo, uma fonte que jorra para a vida eterna. É
essa água que faz da mulher samaritana a discípula de Jesus. Como discípula, vai ao seus
compatriotas para derramar a “água da vida” sobre eles. Da mesma forma com que Jesus
conduziu o diálogo, a samaritana com a sua palavra atrai os samaritanos para o Cristo.
28
avfh/ken ou=n th.n u`dri,an auvth/j h` gunh. kai. avph/lqen 28 A mulher, então, largando o cântaro foi à cidade e
eivj th.n po,lin kai. le,gei toi/j avnqrw,poij\ disse ao povo:
29
deu/te i;dete a;nqrwpon o]j ei=pe,n moi pa,nta o[sa 29 “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu
evpoi,hsa( mh,ti ou-to,j evstin o` cristo,jÈ fiz. Não seria ele o Cristo?”
30 30
evxh/lqon evk th/j po,lewj kai. H;rconto pro.j auvto,nÅ Eles saíram da cidade e foram ter com ele.
Jesus foi aos poucos se revelando àquela mulher samaritana. Ela, por sua vez, foi
recebendo-o em seu coração à medida que ele lhe falava. O que nela se passa altera tudo o que
pode ser previsto. O cântaro, com o qual buscava a vida e que era a imagem da lei41, é
abandonado pela mulher. Ela rompe com a lei. Dá sua resposta de fé ao Messias que se lhe
deu a conhecer. Ao contrário de Nicodemos (cf. Jo 3,4), que não via a possibilidade de novo
princípio, a mulher viu. Deixou o cântaro, como Tiago e João deixaram as redes para seguir
Jesus (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Jo 21,1-11).
Numa pintura, o utensílio que ali fica funcionaria visualmente como uma presença
da mulher ausente, enquanto Jesus anuncia aos discípulos que a seara está madura.
Num texto literário, é conveniente manter para a bilha a função que lhe cabe no
contexto da narrativa: ela servia para a mulher colher água do poço de Jacó. Ora, ao
pedir a Jesus que lhe desse água viva de que lhe tinha falado, a mulher havia
precisado que, graças àquela água, ela não teria mais sede nem, portanto, precisaria
voltar ali para buscá-la (cf. Jo 4,15). Depois de ter Jesus declarado que era o
Messias, a samaritana nada responde, encerrando-se a conversa com esta
41
A palavra que designa cântaro é a mesma usada no episódio de Caná para designar as talhas (cf. Jo 2,6). Como
estas talhas representavam a lei, também o cântaro é imagem da lei que a mulher samaritana toma do poço para
buscar a vida. A mulher estava provida da vasilha, onde bebia água que não lhe matava a sede. Abandonar o
cântaro, que era sua conexão com o poço, significa romper com a lei, que não lhe matava a sede. Cf. MATEOS;
BARRETO, O Evangelho, p. 233.
58
proclamação solene. Abandonada, a bilha diz, sem palavras, que a samaritana conta,
daí por diante, unicamente com a promessa de Jesus42.
Primeiro, ela chama seu povo para ir e ver aquele homem. Pede para que eles
mesmos tirem as suas conclusões. O convite da mulher a seu povo é o mesmo de Jesus a dois
discípulos de João Batista que queriam saber onde ele morava: “Mestre, onde moras? Ele lhes
disse: „Vinde e vereis‟” (Jo 1,38-39). É o convite para se aproximar daquele que rompe com
todas as barreiras e desigualdades. A samaritana é uma das primeiras mulheres a proclamar o
messias que chegou àquela região. Tornara-se uma testemunha do Cristo. Não teme o
desprezo de seu povo e nem os esforços e sacrifícios que a esperam. Esvazia-se de si mesma
quando convida seu povo com o “vinde ver...”, na certeza de que Deus está com ela.
Segundo, seu anúncio apóia-se em Jesus, “um homem que me disse tudo o que eu
fiz”. Ela não diz que aquele homem era judeu, mas apenas “um homem” que instigará seu
povo a ir ao seu encontro. O Salvador saberá bem acabar nela a transformação que começou.
A atitude da samaritana é comparável à atitude dos discípulos quando encontraram Jesus.
André foi buscar seu irmão Simão (cf. Jo 1,41); Felipe, a Natanael (cf. Jo 1,45). Ela vai à
povoação e anuncia. “Ele me disse tudo o que eu fiz” é o anuncio que evidencia a conduta da
samaritana e de todo seu povo. Essas palavras são como uma fonte de água viva que brota do
coração da samaritana, que está sob a influência de um sentimento novo: o amor de Deus
transbordante de um coração que foi completamente convertido. Ela tomou consciência de
seus atos a partir daquilo que Jesus lhe disse sobre a sua conduta. E, por meio dela, Deus fará
com que o povo da Samaria tome consciência de sua má conduta (cf. Os 7,1s). Como uma
autêntica evangelizadora ela conduziu seu povo a Jesus43.
Terceiro, para elevar a força da palavra que anuncia e da fé que passa a professar,
a samaritana anuncia de forma interrogativa: “Não seria ele o Cristo?”, com o intuito de fazer
com que seu povo tire suas próprias conclusões. A samaritana quer que cada um chegue à sua
própria conclusão. E o povo da cidade viu nela – no seu modo de anunciar, no brilho de seus
olhos outrora turvos e apagados, na alegria incontida que lhe iluminava o rosto antes sombrio
42
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 288.
43
Cf. GALVÃO, Jesus e a samaritana, p. 61.
59
– a verdade que haveriam de encontrar em Jesus. A samaritana não volta para sua casa ou se
retira para um deserto. Ela vai ao encontro de seus concidadãos, que são testemunhas de sua
conduta, e toma parte na vida deles para levá-los a Cristo. Como discípula, só poderá levá-los
pela cordialidade, pelo espírito de sacrifício, pela pureza íntegra de seu coração, pela
serenidade, pela alegria. Sob a influência do amor de Cristo, é impelida a servir e a salvar os
seus semelhantes. A prontidão da samaritana em evangelizar torna-se a prontidão dos
samaritanos em acorrer a Jesus: “Eles saíram da cidade e foram ter com ele” (v. 30).
31
VEn tw/| metaxu. hvrw,twn auvto.n oi` maqhtai. le,gontej\ 31 Enquanto isso, os discípulos insistiam com ele:
r`abbi,( fa,geÅ “Rabi, come!”
32
o` de. ei=pen auvtoi/j\ evgw. brw/sin e;cw fagei/n h]n 32 Mas ele lhes disse: “Eu tenho para comer um
u`mei/j ouvk oi;dateÅ alimento que vós não conheceis”.
33
e;legon ou=n oi` maqhtai. pro.j avllh,louj\ mh, tij 33 Nisso os discípulos disseram entre si: “Alguém lhe
h;negken auvtw/| fagei/nÈ teria dado de comer?”
34
le,gei auvtoi/j o` VIhsou/j\ evmo.n brw/ma, evstin i[na 34 Jesus lhes disse: “O meu alimento é fazer a vontade
poih,sw to. qe,lhma tou/ pe,myanto,j me kai. teleiw,sw daquele que me enviou e realizar a sua obra.
auvtou/ to. e;rgonÅ
35
ouvc u`mei/j le,gete o[ti e;ti tetra,mhno,j evstin kai. o` 35
qerismo.j e;rcetaiÈ ivdou. le,gw u`mi/n( evpa,rate tou.j Vós mesmos não dizeis: „Daqui a quatro meses, virá
ovfqalmou.j u`mw/n kai. qea,sasqe ta.j cw,raj o[ti leukai, a messe‟? Ora, eu vos digo: levantai os olhos e olhai; já
eivsin pro.j qerismo,nÅ h;dh os campos estão brancos para a messe!
36
36
o` qeri,zwn misqo.n lamba,nei kai. suna,gei karpo.n Já o ceifeiro recebe o seu salário e ajunta fruto para a
eivj zwh.n aivw,nion( i[na o` spei,rwn o`mou/ cai,rh| kai. o` vida eterna, de tal modo que aquele que semeia e
qeri,zwnÅ aquele que colhe se alegram juntos.
37
37
evn ga.r tou,tw| o` lo,goj evsti.n avlhqino.j o[ti a;lloj Pois nisto é verdadeiro o provérbio: „Um é o que
evsti.n o` spei,rwn kai. a;lloj o` qeri,zwnÅ semeia; outro, o que colhe‟.
38 38
evgw. avpe,steila u`ma/j qeri,zein o] ouvc u`mei/j Eu vos enviei para colher o que não vos custou
kekopia,kate\ a;lloi kekopia,kasin kai. U`mei/j eivj to.n nenhum trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no
ko,pon auvtw/n eivselhlu,qateÅ que lhes custou tanto trabalho”.
44
Cf. BULTMANN, The Gospel of John, p. 194-195.
60
Com a mente tomada pelas interrogações não resolvidas, os discípulos insistiam
para que Jesus comesse: “Rabi, come!”. Mostram ter uma hierarquia de valores em desordem.
Sua falta de senso comum os condiciona para não discernir o momento. Prioriza-se o comprar
e satisfazer apenas as necessidades materiais (cf. Jo 4,8). E aí vem a surpresa dos discípulos
que ficam ainda com mais dúvidas, quando Jesus imediatamente lhes disse: “Eu tenho para
comer um alimento que vós não conheceis” (v. 32). Não seria aqui um eco daquelas palavras:
“... que nem só de pão vive o homem...” (cf. Dt 8,3)? No primeiro momento, é Jesus quem
pedia de beber à samaritana e, agora, são os discípulos que lhe pedem que coma. O Evangelho
de João serve-se de nomes de coisas da terra para significar as realidades espirituais. Jesus
parte do sentido do verbo “comer” para mostrar aos discípulos o que ele realmente buscava.
O desconcerto dos discípulos é total: “Alguém lhe teria dado de comer?” (v. 33).
Sentem-se perplexos diante de tal afirmação de Jesus. Não saem dos esquemas estabelecidos.
Não há espaço para a novidade, o dinamismo, a vida. O universo interior de Jesus e o dos
discípulos são tão diversos que são incapazes de compreender o que acontece com seu mestre.
Jesus ensina-lhes que mais poderosa que a fome de pão é a fome “da palavra que
sai da boca de Deus” (cf. Dt 8,3; Mt 4,4)46, que só o Pai pode saciar e mais ninguém. É deste
alimento que Jesus vive: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar
a sua obra” (v. 34) (cf. Jo 6,38-40). Aí estão a vida e a alegria de Jesus: a comunhão com o
Pai. Aí reside seu mistério, sua identidade, a razão de sua presença no mundo. Certamente é
preciso comer para viver, mas para que viver se se perde de vista o motivo pelo qual se vive?
Para o discípulo, o alimento consiste na aceitação de Jesus e sua adesão a ele como doador de
vida. Mas não basta simplesmente aceitar fazer a vontade do Pai, é necessário realizar sua
obra, seu desígnio, trabalhando em prol da humanidade: desígnio traído pelos que,
absolutizando a lei, o rejeitaram na Judéia (cf. Jo 4,1-3). Assim como Jesus explicara à
samaritana de que água se tratava, explicou também para os discípulos de que alimento ele
45
DODD, A interpretação, p. 412.
46
A idéia de um alimento que corresponde à vontade (palavra) de Deus já existe no AT. No Deuteronômio, esta
idéia aparece como releitura do Êxodo: “Ele te afligiu, fazendo-te passar fome, e depois te alimentou com o
maná, desconhecido por ti e por seus pais, para te mostrar que nem só de pão vive o homem mas de tudo o que
procede da boca de Deus” (Dt 8,3; cf. Tb, Sb 16,26 = Palavra de Deus). Nos Sinóticos, Jesus relê esta passagem
da Escritura no contexto de suas tentações messiânicas (cf. Mt 4,4-11). Cf. WEILER, Jesus e a samaritana, p. 99.
61
falava. Tudo em Jesus lhe vem do Pai. O olhar de Jesus sobre as pessoas, sobre as coisas,
sobre o mundo é o olhar do Pai. Toda a vida de Jesus é vista sob o signo da vontade do Pai
como nutrimento e razão última de sua vida. A obra que Jesus realizará é para a glória do Pai
e se dará com sua morte de cruz, pela qual, uma vez exaltado, atrairá todos a si (cf. Jo 8,28;
12,32) e lhes dará o Espírito (cf. 7,37-39).
Com uma exposição metafórica, Jesus serve-se da estação do ano para comparar
duas colheitas: a do campo, ainda longínqua, e a da fé da samaritana, já a ponto de ser
recolhida: “Vós mesmos não dizeis: „daqui a quatro meses, virá a messe‟? Ora, eu vos digo:
levantai os olhos e olhai; já os campos estão branco para a messe!” (v. 35). Chegou o tempo!
É agora! O tempo final está aí! Os profetas pintaram esta imagem, proclamando o tempo da
conversão. Com a vinda dos samaritanos, primícias da colheita, a obra do Pai chega ao seu
objetivo desde aquele momento. Os discípulos são integrados à alegria de Jesus: “Já o ceifeiro
recebe o seu salário e ajunta o fruto para a vida eterna, de tal modo que aquele que semeia e
aquele que colhe se alegram juntos” (v. 36). O esforço de uns e de outros é igualmente
necessário. Trabalham para uma mesma obra. Por isso o fruto torna-se a alegria tanto daquele
que semeia quanto daquele que colhe (cf. 1Cor 3,6-9)47. Para João, o tempo de Jesus, o
enviado do Pai, é único na história da salvação, porque somente nele se recolhem as
semeaduras e a colheita. Como aquele que ceifa, Jesus contempla em suas primícias a colheita
universal.
Os discípulos enviados por Jesus reunirão todos os crentes deixando com que a
palavra de Jesus produza seus efeitos no mundo. “Pois nisto é verdadeiro o provérbio: „Um é
o que semeia; outro, o que colhe‟. Eu vos enviei para colher o que não vos custou nenhum
trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no que lhes custou tanto trabalho” (vv. 37-38).
Parece que Jesus os leva a tomar consciência da apropriação que fazem dos trabalhos dos
outros. Aqui, sem dúvida, há uma referência daquele que semeia e que não participa da
colheita (cf. Mq 6,15). Antes mesmo de Jesus ser enviado pelo Pai, os profetas trabalharam na
vinha. João Batista trabalhou na Samaria em Enon (cf. Jo 3,23). Provavelmente são esses
“outros” sublinhados fortemente pelo seu trabalho, antes dos discípulos, que serve para
manifestar a continuidade do desígnio de Deus. Deus abrange o passado e o futuro, e Jesus
está no centro. Os discípulos entraram no que não lhes custou nenhum trabalho. Entraram no
47
O ceifeiro cobra o seu salário, que é o mesmo fruto que recolhe, e alegra-se da mesma maneira como o que fez
a semeadura. O trabalho de um e outro dista no tempo, mas a alegria é simultânea. Ambos trabalham tendo em
mira a colheita; a finalidade é a mesma e, por isso, a alegria é comum. Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho,
p. 236.
62
estágio final de uma história iniciada há muito tempo. Eles podem se alegrar com Jesus, com
o pleno êxito da obra do Pai. Esta é a benção, o fruto sem trabalho, que continuará com a
alegria da colheita participada com o que semeia (cf. Am 9,13-14). Segundo o desígnio do Pai
em Jesus, o proselitismo irresistível de uma convertida, a mulher samaritana, preparou uma
colheita que fará de sua alegria a alegria de seus discípulos. Que abundante colheita lhe dava
o Pai, como fruto da semente plantada no coração da samaritana! Todo o ambiente está
preparado para um casamento perfeito. É a união do esposo com a esposa48, do Messias que
reúne seu povo numa só fé.
Depois de um intenso labor, Jesus se prepara para a colheita dos frutos. Será o seu
casamento com a comunidade de fé que se formou. Os discípulos tomam parte desta colheita,
alegrando-se com Jesus. Jesus, que chegara àquela terra estrangeira cansado da caminhada e
da rejeição dos judeus, não cessou de trabalhar para fazer a vontade do Pai. Passo a passo,
levou a samaritana a reconhecer nele o enviado do Pai, transformando-a numa discípula fiel,
que foi anunciar a seus concidadãos aquele que seria o Messias que tanto esperavam49. O
Mestre ensinou aos discípulos que foram enviados para colher o que não lhes custou nenhum
trabalho. E, agora, reúne a todos num mesmo lugar com a profissão de fé dos samaritanos.
39
VEk de. th/j po,lewj evkei,nhj polloi. evpi,steusan eivj 39 Muitos samaritanos daquela cidade tinham
auvto.n tw/n Samaritw/n dia. to.n lo,gon th/j gunaiko.j acreditado nele por causa da palavra da mulher que
marturou,shj o[ti ei=pe,n moi pa,nta a] evpoi,hsaÅ afirmava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”.
40
w`j ou=n h=lqon pro.j auvto.n oi` Samari/tai( hvrw,twn 40 Assim, quando chegaram junto dele, os samaritanos
auvto.n mei/nai parV auvtoi/j\ kai. e;meinen evkei/ du,o lhe pediram que ficasse entre eles. E ele ficou lá dois
h`me,rajÅ dias.
41
kai. pollw/| plei,ouj evpi,steusan dia. to.n lo,gon 41 Bem mais numerosos ainda foram os que creram por
auvtou/( causa da própria palavra de Jesus;
42
e eles diziam à mulher: “Não é somente por causa
42
th/| te gunaiki. e;legon o[ti ouvke,ti dia. th.n sh.n dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos ouvimos
lalia.n pisteu,omen( auvtoi. ga.r avkhko,amen kai. oi;damen e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do
o[ti ou-to,j evstin avlhqw/j o` swth.r tou/ ko,smouÅ mundo”.
48
O feminino é elemento constitutivo da humanidade, enquanto evoca o ser pessoa sexuada, vocacionada para o
encontro integral com o masculino. Na unidade amorosa do diverso masculino e feminino, dá-se a semelhança
das pessoas divinas. Na “esposa” se acentua mais o amor do que a lei, o respeito ao diferente mais que o desejo
de uniformidade. Evoca a unidade pessoal do ser diante de Cristo; a necessidade de se conformar afetivamente
com os sentimentos de Cristo e a intuição feminina que dá sentido mais integral às análises puramente racionais.
49
Segundo Weiler, a versão joanina que narra a evangelização da Samaria pode ser considerada extremamente
revolucionária. Uma mulher, marginalizada por ser mulher e por ser samaritana, torna-se evangelizadora dentro
de sua própria cultura e a partir dela. Daí surge a suspeita hermenêutica da valorização do Evangelho, da boa-
nova de Jesus Cristo, já presente nas culturas. Cf. WEILER, Jesus e a samaritana, p. 102.
63
Ouvindo o testemunho da mulher e vendo-a tão diferente, os samaritanos foram
até Jesus: “Muitos samaritanos daquela cidade tinham acreditado nele por causa da palavra da
mulher que afirmava: „Ele me disse tudo o que eu fiz‟”. A partir do testemunho da mulher
samaritana, seus concidadãos chegaram à fé, mesmo que tendo sido prestado por uma mulher
totalmente destituída de autoridade e pertencente a um grupo cismático.
Os samaritanos são tocados pela palavra e pelo modo de ser da samaritana. Neste
primeiro passo, são apoiados num testemunho humano: “por causa da palavra da mulher que
afirmava” compreendem que chegou para eles a hora da misericórdia de Deus. Foram ao
encontro de Jesus, cheios de esperança, porque foram capazes de acreditar na mulher.
Sintonizaram e perceberam que verdadeiramente algo de fundamental mudara em sua vida. A
expressão “tinham acreditado nele” (evpi,steusan eivj auvto.n) denota adesão à pessoa de Jesus
segundo o anúncio da mulher que conclui com uma afirmação interrogativa reveladora de
uma dimensão de seu mistério: “Não seria ele o Cristo?” (v. 29). Por isso os samaritanos se
dirigem a ele esperando encontrar o tão esperado Messias, aquele que chamam Cristo. E,
quando encontraram Jesus e o ouviram, os samaritanos compreenderam que aquele homem
era ainda muito mais que o esperado. E, por isso, pediram-lhe que permanecesse entre eles51.
O evangelista, ao enunciar novamente: “Ele me disse tudo o que eu fiz”, evidencia o sinal
experimentado pela mulher: Jesus que falou de toda sua vida. Este sinal foi esclarecedor para
os samaritanos. O progresso da fé dos samaritanos é motivado pelo sinal da fé que procede da
palavra de Jesus. O retorno imediato da samaritana tinha-os introduzido nas verdadeiras
regiões da fé. A partir daí, eles não põem condições ao Cristo; pelo contrário, são eles que
desejam saber quais são as suas condições. Não vêm como partidários que impõem os seus
preconceitos, mas como discípulos que só pensam em ouvir, aprender e realizar. Jesus, que
ensinara à mulher samaritana, ensinará ao povo samaritano, permanecendo dois dias entre
50
GALVÃO, Jesus e samaritana, p. 60.
51
Aqui os samaritanos pedem que Jesus permaneça com eles. Nos sinóticos, é Jesus quem convida seus
discípulos a permanecerem com ele (cf. Mc 3,13-14). A fórmula ficasse com eles indica um estreito contato
pessoal (cf. Jo 1,39). O ministério de Jesus na Samaria é recordado só por João. De mais a mais, Mateus refere-
se à proibição de Jesus aos apóstolos no que concerne as atividades junto aos samaritanos (cf. Mt 10,5). Também
Lucas, que de resto se mostra bem disposto para com esse povo (cf. Lc 10,29-37; 17,11-19), acena para a
hostilidade dos samaritanos com Jesus na sua viagem rumo a Jerusalém (Lc 9,52-53). Mas, em At 8,1-25, o
evangelho é anunciado na Samaria. Cf. NICCACI; BATTAGLIA, Comentário, p. 85-86.
64
eles52. A sua presença rompeu com todo tipo de obstáculo, preconceitos raciais ou religiosos.
Nos dois dias que Jesus permaneceu na cidade, muitos outros acreditaram nele por
causa de sua própria palavra. A fé aqui não é fundada na experiência da mulher, mas na
experiência pessoal com Jesus. Esse fato evidencia que nem todos tinham acreditado no que a
mulher afirmou. Aprisionados nos velhos conceitos de uma cultura que desconfiava das
mulheres, acharam que tudo aquilo não passava de uma conversa. Esperavam apenas a
confirmação de sua descrença porque não havia mais lugar em suas vidas para a esperança. A
narração informa que eram bem mais numerosos aqueles que creram em Jesus por causa da
sua palavra. Grande é a força que a palavra de Deus possui, seja quem quer que a anuncie, e
muito maior quando é o próprio Deus quem a anuncia por sua própria boca. Por isso eles
diziam à mulher: “Não é somente, por causa dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos o
ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o salvador do mundo” (v. 42). A fé deixa de se
apoiar na palavra humana para atingir sua plenitude na palavra do próprio Jesus. A fé aparece
como o resultado do contato pessoal com Jesus; somente ele leva à confissão plena da fé: nós
mesmos o “ouvimos e sabemos” – auvtoi. ga.r avkhko,amen kai. oi;damen. João descreve nos vv.
40-42 a fé ideal, aquela que não nasce do milagre, nem da mediação de uma testemunha que
se refere ao milagre, mas aquela que nasce mediante o encontro pessoal com Jesus e a sua
palavra53. Assim, a salvação é realizada e brota espontânea a proclamação da fé: “...ele é
verdadeiramente o Salvador do mundo” – ou-to,j evstin avlhqw/j o` swth.r tou/ ko,smouÅ
52
Jesus, cuja missão é dar vida, comunica-a aos samaritanos que responderam ao seu anúncio pela fé. Cf. Os 6,2:
“Ao fim de dois dias nos fará reviver”.
53
Cf. NUOVISSIMA VERSIONE DELLA BIBBIA. Giovanni. 2.ed. Roma: Paoline, 1978. v. 36. p. 200-201.
54
DODD, A interpretação, p. 317: “No mundo helenístico este era um atributo muito comum dos deuses pagãos
(e dos imperadores), e parece provável que tenha sido nos ambientes cristãos helenísticos que ele ganhou
divulgação. O evangelista pode mesmo ter-se conscientizado de uma certa propriedade dramática ao colocá-lo na
boca dos samaritanos, que neste evangelho representam de algum modo o mundo gentio em oposição aos judeus.
Não se dá explicação alguma do termo. Deixa-se que o leitor mesmo perceba pelo próprio teor da obra em seu
todo, em que sentido Cristo é Salvador”.
65
Jesus não se dedicou às instituições, mas à pessoa humana. Ele muda o coração dos homens,
libertando-os do egoísmo e insistindo incansavelmente no valor da ação fraternal. Por isso
Jesus salva o mundo55, agindo sobre o indivíduo. O encontro com Cristo é sempre caminho de
conversão, de descoberta, de crescimento e de mais vida. Por isso a permanência de Jesus
com os samaritanos abriu para eles um horizonte que ultrapassa o seu território. A fé vence
todos os obstáculos que surgem da procedência externa do Revelador (cf. Jo 6,42; 7,27.41-
42.52) e eles se deixam instruir por Jesus como o Enviado escatológico. Também o interesse
histórico do evangelista é evidenciado pela prontidão dos samaritanos para crer,
diferentemente dos judeus de Jerusalém (cf. Jo 2,18-20; 4,1-3) e dos galileus (cf. Jo 4,44;
6,30-31.41.52). Eles compreenderam que Jesus não era somente o Messias que esperavam,
mas verdadeiramente o Salvador do mundo.
A boa acolhida de Jesus entre os samaritanos fez João recordar o que o próprio
Jesus tinha afirmado: um profeta só não é bem acolhido na sua própria pátria (v. 44). Depois
de ter parado naquela região para saciar a “sede” e a “fome”, Jesus seguiu para a Galiléia
onde também foi bem acolhido. Este foi o alimento de Jesus: “Fazer a vontade do Pai”. O seu
“cansaço” é refeito pela fé da samaritana e de seu povo, que deixaram de ser estranhos para
pertencerem à família de Deus. A vida deste povo foi completamente transformada pela fé.
A atividade de Jesus em Jerusalém teve uma grande ressonância nacional. Os
galileus que lá estavam mostram-se favoráveis a Jesus. Por isso ele é bem acolhido entre eles.
E voltando a Caná, onde transformara a água em vinho, Jesus realiza o segundo sinal.
43
Meta. de. ta.j du,o h`me,raj evxh/lqen evkei/qen eivj th.n 43 Dois dias mais tarde, Jesus deixou aquela região e foi
Galilai,an\ para a Galiléia.
44
auvto.j ga.r VIhsou/j evmartu,rhsen o[ti profh,thj evn th/| 44 De fato, Jesus mesmo tinha afirmado que um profeta
ivdi,a| patri,di timh.n ouvk e;ceiÅ não é honrado em sua própria pátria.
45
o[te ou=n h=lqen eivj th.n Galilai,an( evde,xanto auvto.n 45 Entretanto, quando ele chegou à Galiléia, os galileus
oi` Galilai/oi pa,nta e`wrako,tej o[sa evpoi,hsen evn lhe fizeram boa acolhida: também eles tinham ido a
~Ierosolu,moij evn th/| e`orth/|( kai. auvtoi. ga.r h=lqon eivj Jerusalém para a festa, e tinham podido ver tudo o que
th.n e`orth,nÅ Jesus fizera.
46
+Hlqen ou=n pa,lin eivj th.n Kana. th/j Galilai,aj( 46 Jesus volta, pois, a Caná da Galiléia onde mudara a
o[pou evpoi,hsen to. u[dwr oi=nonÅ Kai. h=n tij basiliko.j água em vinho. Havia lá um oficial régio, cujo filho
ou- o` ui`o.j hvsqe,nei evn Kafarnaou,mÅ estava doente em Cafarnaum.
55
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 301: “O termo „mundo‟ não pode designar o mundo perverso que Jo estigmatiza
em outras situações; é evidente o mundo amado por Deus, que o filho único deve salvar (3,16-17), aquele cujo
pecado será tirado (1,21). O vocábulo permite ultrapassar os limites do povo samaritano e abrir para o
universal”.
66
João insiste na presença de Jesus na Samaria, com a finalidade de sublinhar a
mudança de vida daquele povo. A permanência de Jesus entre eles trouxe-lhes nova vida,
aquela que se derrama no coração humano como copiosa torrente que jorra de infinita fonte, o
Pai. “Permanecer com Jesus” é um termo característico de João. Indica uma íntima afiliação
com Jesus (cf. Jo 1,39; 4,40; 6,56; 8,31; 15,4-7). Banhada pelo olhar de Jesus, a samaritana
torna-se o ícone da fé para a comunidade. Não se fechou dentro de si mesma em sua
descoberta, mas tornou-se a mensageira do amor, indo anunciá-lo a seus irmãos. Estes
aceitaram Jesus, pois tinha um olhar de amor e ternura. Era um judeu diferente. E os
discípulos, com o ensinamento de Jesus, deveriam repensar seu modo de ver a mulher. A
atitude de Jesus lhes ensinava.
Por outro lado, o evangelista também frisa que Jesus vai para a Galiléia para
afastar-se da Judéia, onde se sente ameaçado: “De fato, Jesus mesmo tinha afirmado que um
profeta não é honrado em sua própria pátria” (v. 44). Os judeus que viram os sinais que ele
realizou não deram sua adesão a ele, começando por Nicodemos (cf. Jo 2, 23-25). Acreditar
em Jesus somente não bastava. Era necessário aderir à sua pessoa. Jesus, que se manifestara
no templo, experimentou a oposição dos dirigentes (cf. Jo 2,18) e a hostilidade dos fariseus
(cf. Jo 4,1). Na tradição sinótica, o provérbio proferido por Jesus sublinha o fracasso
experimentado por Jesus de Nazaré56. A terra de origem de Jesus parece ser realmente a
Judéia e não a Galiléia. Segundo João, Jesus passa muito tempo na Judéia, porém isto não é
motivo para considerar que essa seja a sua pátria.
56
TILBORG, Comentário, p. 99: “Evidentemente percebe-se que o texto contém uma contradição que não se
pode aclarar totalmente. Porém, o método que se emprega neste comentário a contradição é menos absurda do
que às vezes se pensa. Há que manter, conseqüentemente, uma distinção dos diversos níveis de comunicação do
texto. A procedência nazarena de Jesus tem um papel somente donde se trata do plano de comunicação entre os
personagens da história relatada, ainda que o versículo 4,44, onde se menciona a Judéia como a Pátria de Jesus –
e esta é precisamente a pedra de escândalo –, é uma observação do autor mesmo, isto é: uma declaração que tem
lugar no plano de comunicação do autor implícito e seu leitor implícito. Segundo o autor do Evangelho de João,
Judéia é a pátria de Jesus, Jerusalém sua cidade e o templo a casa de seu Pai. Isto se opõe ao que dizem distintos
personagens de seu relato, porém isto não constitui para ele nenhum mal”.
57
Cf. BROWN, El evangelio, p. 393.
67
“Entretanto, quando ele chegou à Galiléia, os galileus lhe fizeram boa acolhida:
também eles tinham ido a Jerusalém para a festa e tinham podido ver tudo o que Jesus fizera”
(v. 45). Os galileus acolhem Jesus, inspirados por sua atuação em Jerusalém. Tanto os judeus
quanto os galileus acreditavam em Jesus por causa dos sinais que realizava. Mas Jesus não se
deixava levar por ilusões, não acreditava neles (cf. Jo 2,23-24). Eles ficaram maravilhados
pelos sinais, mas não tomaram parte com Jesus (cf. Jo 4,48). Ora, a fé não é simplesmente
uma operação mística, é a consagração total do homem a Deus. Por isso os versículos 44 e 45
podem indicar a superficialidade do acolhimento dos galileus, fundado no entusiasmo dos
sinais que Jesus realizou entre os judeus58. Jesus, como profeta enviado por Deus a falar ao
povo, exige fé em sua palavra, sem a confirmação de algum prodígio (cf. Jo 4,48-50). Para
João, a acolhida dos fariseus baseada nos sinais vistos não significa muita honra.
Jesus vai para a Galiléia porque nela pode circular livremente (cf. Jo 7,1).
Habitada por pessoas sensíveis e fiéis à lei, pessoas menos ilustradas e livres quase que por
completo do fermento dos fariseus, a Galiléia é o lugar para o qual Jesus se dirige para educar
os discípulos, aqueles que tinham aderido a ele totalmente, que descobriam pouco a pouco sua
divina personalidade. A convivência com o Senhor projetará sempre de novo luzes sobre as
sombras do ser humano e os convidará a mais um passo adiante. A comunhão com Deus e
com os outros nunca terá se consumado no caminho da história. A certeza interior, que nada
substitui, nunca se esgota. Jesus já não é só um doutor admirado: é o Mestre que o discípulo
segue sempre. O encontro com ele será sempre um aprendizado se o discípulo permanecer
aberto para suas inesperadas e surpreendentes revelações. É assim que Jesus em Caná da
Galiléia realiza o segundo sinal ao curar o filho do oficial régio, que estava morrendo. Jesus
58
A crítica aos milagres e a polêmica contra os judeus são, sem dúvida, tópicos já presentes na tradição. João,
contudo, recorre a essa tradição para discutir um problema mais fundamental, ou seja, o dilema da documentação
visível da presença divina, que é facilmente aceita porque não combina com critérios teológicos pré-concebidos.
João vê tanto a rejeição quanto a aceitação do “mundo”, um mundo que não ouve a palavra do revelador. O
“mundo” não compreende que a verdadeira revelação é dada pelas palavras do revelador e numa manifestação
do revelador que não corresponde aos critérios religiosos estabelecidos e tradicionais. Cf. KOESTER, Introdução
v. 2, p. 207.
68
apenas disse ao oficial: “Vai, teu filho vive” (Jo 4,50). E, acreditando nessa palavra, o homem
se pôs a caminho. O evangelista utiliza uma fonte inserindo o v. 48, como um convite a crer
na palavra, uma exortação para chegar à fé verdadeira (cf. Jo 20,24-29). Desta maneira, João
sublinha uma trajetória da fé: de uma fé insegura, sob a impressão dos prodígios, a uma fé
autêntica, que se apóia na palavra para chegar, no fim, à fé plena59.
Portanto, podemos concluir que João, neste texto, estabelece para sua comunidade
um modelo de fé em Cristo. Jesus atrai a si todos os marginalizados e desprezados,
devolvendo-lhes a dignidade, a começar pela mulher. Sua presença e acolhida removiam das
pessoas o sentimento de exclusão. A mulher samaritana tornou-se portadora de uma
mensagem de salvação que vence as barreiras impostas pelo judaísmo. Jesus é livre,
plenamente livre. Nele não há lugar para a intransigência legalista dos fariseus, a vaidade dos
escribas, o orgulho dos sacerdotes e nem para a proposta revolucionária dos zelotas60. Jesus
amava sem limites.
2.8. Conclusão
59
Cf. NICCACI; BATTAGLIA, Comentário, p. 87-89.
60
É preciso ressaltar que havia fariseus que acreditavam em Jesus (cf. Jo 3,1-21 e 19,38-42); escriba que se
deixava instruir pelo Mestre e Senhor (cf. Mt 13,52) e sacerdote que confiava plenamente nos caminhos do
Senhor (cf. Lc 1,5-25).
69
Deus presente em sua vida. Segundo, em mais um passo, revela que está ciente de que um
Messias deve vir, aquele que chamam Cristo (cf. Jo 4,25). Ou seja, como seu povo, ela
também espera por esse Messias. Este esperado, com suas palavras, transformará a vida
daquele povo, bem como todo o cosmos. Terceiro, quando Jesus lhe disse: “Sou eu, eu que
estou falando a ti” (Jo 4,26), a mulher, largando tudo, correu para anunciar a seu povo “Vinde
ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não seria ele o Cristo?” (Jo 4,28-29). Ela não
questionou: “Como tu podes pretender ser o Messias?” Ela simplesmente acreditou nas
palavras de Jesus. E, por causa destas palavras, a samaritana levará seus concidadãos a
professar: “Não é somente por causa dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos o ouvimos
e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4,42). Quarto, motivada pelo
mistério que se desvelara nela, foi anunciar o Cristo a seu povo, não se importando com o que
poderiam dizer dela. Mesmo sendo marginalizada e discriminada pelo povo judeu por
pertencer a um povo de hereges (cf. Jo 4,9), não se importa de ser hostilizada. Resgatou, para
nunca mais perder, sua dignidade, aquela que Deus lhe plantara no ser quando a fez à sua
imagem e semelhança.
71
3. A RESPOSTA DE MARIA MADALENA AO CHAMADO - Jo
20,1-18
3.1. Introdução
nos apresenta Maria Madalena com as mesmas credenciais com as quais Paulo
justifica seu apostolado: por um lado, nos narra seu encontro pessoal com o
Ressuscitado e, por outro, o encargo que recebe dele de anunciá-lo a seus irmãos.
Paulo recebe o encargo de anunciar o evangelho a todo o mundo ao passo que Maria
é enviada ao grupo de discípulos. No entanto, não podemos esquecer que nesta
comunidade estavam representadas já pessoas provenientes do âmbito grego e
samaritano. Os limites estreitos do judaísmo estavam superados. Portanto, a missão
desta mulher aparece como prelúdio da missão universal da Igreja1.
1
ESTEVEZ, Elisa. A mulher na tradição do discípulo amado. Ribla, Petrópolis, n. 17, p. 71, fev. 1994.
2
Segundo Brown, a tradição de que Jesus apareceu primeiro a Maria Madalena tem uma grande chance de ser
histórica – ele se lembrou primeiro desta representante das mulheres que não o abandonaram durante a paixão. A
prioridade dada a Pedro e Paulo em Lucas é uma prioridade entre os que se tornaram testemunhas oficiais da
ressurreição. O segundo lugar dado à tradição de uma aparição a uma mulher ou a algumas mulheres
provavelmente reflete o fato de que as mulheres não serviram no começo como pregadores oficiais da Igreja –
fato que tornaria a criação de uma aparição a uma mulher improvável. Cf. BROWN, A comunidade, p. 200.
72
mulher ao lado da virgem Maria, Mãe de Jesus, em cuja festa se recitava o credo. Certamente
esta honra se dava por ser ela considerada uma apóstola – “apóstola dos apóstolos” (apostola
apostolorum)3.
Outra interpretação, feita por volta do século VI, pelo papa Gregório Magno em
seus sermões, prevaleceu no imaginário popular. Gregório Magno não apenas identificou
Maria Madalena com a mulher pecadora de Lucas e João, como também tirou a conclusão
moral que iria dominar o imaginário do Ocidente. O assunto da homilia 33 foi a história da
pecadora arrependida de Lc 7, identificada como Maria Madalena:
Aquela que Lucas chama de mulher pecadora e João chama de Maria, nós
acreditamos ser a Maria de quem foram expulsos sete demônios de acordo com
Marcos. E o que significaram estes sete demônios, senão todos os vícios?... É claro,
irmãos, que a mulher anteriormente usava o ungüento para perfumar sua carne em
atos proibidos. O que ela, portanto, ostentava mais escandalosamente, agora ela
3
JUNGMANN, J. A. The mass of the roman rite. New York: Benzinger, 1950. p. 470, nota 57. Apud BROWN,
A comunidade, p. 200: “O uso de „apóstola‟ aplicado a Madalena é freqüente na sua famosa vida, escrita no
século IX por Rábano Mauro: Jesus a instituiu apóstola para os apóstolos; ela não se demorou em escrever o
ofício de apostolado com o qual foi honrada; ela evangelizou seus co-apóstolos com as novas da ressurreição do
Messias; ela foi elevada à honra do apostolado e constituída a evangelista da ressurreição”.
4
Cf. BOBROVOLNY, Mary K. Mary Magdalene: An icon for women religious. Review for religious, Saint
Louis University, v. 61, n. 6, p. 604, November/December 2002.
5
Cf. KING, Karen L. Canonização e marginalização: Maria de Mágdala. Concilium, Petrópolis, v. 276, n. 3, p.
38-40, 1998.
73
estava oferecendo a Deus de uma forma mais louvável. Ela havia cobiçado com os
olhos terrenos, mas agora, através da penitência, estes são consumidos pelas
lágrimas. Ela exibia seu cabelo para enfeitar o rosto, mas agora o cabelo enxuga as
lágrimas. Ela falava coisas orgulhosas com a boca, mas ao beijar os pés do Senhor
ela agora os beijava demoradamente. Para cada prazer, portanto, que tivera em sua
carne, ela agora se imolava. Ela transformava a enorme quantidade de seus crimes
em virtudes, a fim de servir a Deus inteiramente em penitência, por tanto tempo
quanto erradamente desprezara a Deus6.
Mesmo tendo essa confusão criado o imaginário popular, o Papa Gregório em sua
homilia oferece aos ouvintes um exemplo da possibilidade de arrependimento e de promessa
do perdão7.
A morte de Jesus na cruz deixou os discípulos com muito medo. João confirma
esse medo ao narrar que eles se achavam em uma casa com as portas trancadas “por medo dos
judeus” (cf. Jo 20,19). Medo que, antes da morte do Senhor, caracterizava a atitude dos
israelitas que não ousavam se declarar abertamente a favor de Jesus (cf. Jo 7,13; 9,22; 12,42;
19,38). Os discípulos vivem uma situação de angústia. Tal situação revela um medo que
impedia os discípulos de compreenderem o que tinha acontecido com Jesus. O medo havia
paralisado o grupo dos apóstolos. Ao contrário dos doze, Maria Madalena se coloca em plena
ação, revelando uma coragem surpreendente na busca de Jesus. Maribel Pertuz afirma que,
“neste relato de Maria Madalena, ela aparece com grande protagonismo. Os verbos são de
muita ação. Ela vem, vê (v.1), corre (v.2), se agacha (v.11), procura, diz (v.15), volta e
6
HASKINS, Susan. Mary Magdalene: Myth and Metaphor. New York: Harcourt Brace and Co, 1993. p. 96.
Apud KING, Canonização e Marginalização, p. 40.
7
Cf. WELBORN, Amy. Decodificando Maria Madalena: a verdade, as lendas e as mentiras. São Paulo: Cultrix,
2006. p. 61.
74
anuncia (v.18). Nota-se uma atitude de busca marcante. Jesus tinha dito: „...quem procura
acha‟ (cf. Mt 7,7-8; Lc 11,9-10)”8.
20:1 Th/| de. mia/| tw/n sabba,twn Mari,a h` Magdalhnh. 1No primeiro dia da semana, ao alvorecer, enquanto
e;rcetai prwi> skoti,aj e;ti ou;shj eivj to. mnhmei/on kai. ainda estava meio escuro, Maria de Mágdala vai ao
ble,pei to.n li,qon hvrme,non evk tou/ mnhmei,ouÅ túmulo e vê que a pedra fora retirada do túmulo.
Maria Madalena, que seguira Jesus até a hora de sua morte na cruz, é tomada em
seu coração por um grande amor ao seu Senhor. João relata a busca incessante dessa mulher
para evidenciar a necessidade e a importância da fé na vida da comunidade. Maria Madalena,
que estivera perto de Jesus na hora da cruz (cf. Jo 19,25), não conformada com a morte do
Mestre, dirige-se, no primeiro dia da semana9, ainda meio escuro, para o lugar onde
sepultaram Jesus. Ela vai somente visitar o túmulo, sem saber de nada. Ao contrário dos
sinóticos, João relata que Maria Madalena vai sozinha ao túmulo de Jesus. Segundo Léon-
Dufour,
8
Cf. PERTUZ, Maribel. A evangelista da ressurreição no Quarto Evangelho. Ribla, Petrópolis, n. 25, p. 99, mar.
1996.
9
É importante notar que os Evangelhos não usam a expressão “terceiro dia” ou “depois de três dias”, como
dizem as fórmulas querigmáticas. Possivelmente isto se deu porque a indicação temporal da descoberta do
túmulo vazio se fixou na recordação cristã antes de que se compreendesse o possível simbolismo dos três dias. A
expressão do Evangelho é possível em grego porque neste idioma sabba,twn significa por sua vez “semana” e
“sábado”; no hebreu do AT, sabbat não significa “semana”, se bem que tenha também este sentido no hebreu
posterior. Cf. BROWN, El Evangelio, p. 1287.
10
LÉON-DUFOUR, Leitura, p.145.
11
Jesus foi sepultado no final da sexta-feira, véspera do sábado de Páscoa. Para os judeus, o dia seguinte começa
à tarde, quando aparece a primeira estrela no céu, e não à meia-noite como para nós. Jesus foi sepultado às
pressas no final de sexta-feira porque não se podia fazer sepultamentos no sábado e, muito menos, num sábado
de Páscoa. Se adentrassem o sábado preparando um cadáver, os judeus cometiam um sacrilégio.
75
amo. Eu procuro, não o encontro” (Ct 3,1-2). Como faz a amada, Maria Madalena vai
certamente ao túmulo para procurar aquele que ela ama, ainda que esteja morto.
Em um sermão anônimo do século XVII, descoberto por Rainer Maria Rilke num
antiquário parisiense em 1911, encontra-se:
Madalena, a santa amante de Jesus, amou-o em seus três estados. Amou-o vivo,
amou-o morto, amou-o ressuscitado. Assinalou a ternura de seu amor para com
Jesus Cristo presente e vivo; a constância de seu amor para com Jesus Cristo morto e
amortalhado; as impaciências e os enleios, as fúrias, os desfalecimentos e os
excessos de seu amor entregue a Jesus Cristo ressuscitado 15.
Maria Madalena, ao chegar, vê (ble,pei) que a pedra fora retirada do túmulo. Não
entra, mas constata que o corpo de Jesus não se encontra mais no mesmo lugar. O túmulo está
vazio. Segundo Barreto e Mateos16, a pedra colocada em frente ao túmulo teria sido o selo da
morte definitiva (cf. Jo 11,38s.41). Não foi sequer indicado, no momento da sepultura, que
essa pedra tivesse sido colocada lá. A morte não interrompia a vida de Jesus; um fecho não foi
posto em sua história. Mas a constatação de Maria Madalena é negativa e surpreendente. Ela
permanece numa lógica bem humana, concluindo que o cadáver foi levado embora. A
narração evidencia a impressão trágica que o desaparecimento do corpo produz na discípula,
12
SAULNIER; ROLLAND, A Palestina, p. 52-53: “A prática do sábado foi codificada cada vez mais
estritamente no decorrer dos tempos, tendendo às vezes a se tornar uma espécie de absoluto escravizando o
homem. Jesus não fará senão restituir-lhe seu significado primitivo quando declara: “O sábado foi feito para o
homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). De manhã, antes de qualquer atividade, e à tarde, os homens
adultos deviam rezar. Voltados para o templo de Jerusalém, recitavam uma prece de benção, depois o Shemá,
bem como as primeiras e as últimas das Dezoito bençãos ou Shemoné Esré que certamente já estavam em uso”.
13
Cf. BASTIANEL, Maria di Magdala, p. 118.
14
MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 837.
15
RILKE, Rainer Maria. O amor de Madalena. Sermão anônimo francês do século XVII. São Paulo: Landy,
2000. p. 17.
16
Cf. MATEOS; BARRETO. O Evangelho, p. 837.
76
ao não encontrá-lo no túmulo. Sinaliza que ainda não brotou em Maria Madalena a fé na
ressurreição. O túmulo aberto continua a provocar apreensão e tristeza, como demonstram a
reação imediata de Maria Madalena no v.2 e seu pranto posterior junto ao túmulo nos vv.11,
13 e 15. Segundo Sebastini,
sem querer afirmar que o evangelista tenha inserido com os gestos de afeto e de
culto pelo corpo falecido em seu relato tal aspecto – ligado à experiência feminina,
mas menos óbvio para uma mente masculina – entre os muitos sentidos coexistentes
nesta página, há também o cume do caminho de libertação interior de Maria de
Mágdala, que consegue aqui uma sofrida e progressiva vitória sobre a necessidade
de, em todo caso, “guardar”, fechando-se na intimidade de uma experiência querida
e valiosa: impulso não desprezível , que aliás, é humaníssimo e de grande dignidade,
mas que de fato constitui sempre uma tentação quando o emergir do Kairòs exige
que não se feche e nem se imobilize a experiência, pois é tempo de descortinar um
novo horizonte17.
2 2
tre,cei ou=n kai. e;rcetai pro.j Si,mwna Pe,tron kai. Ela corre, vai ter com Simão Pedro e o outro
pro.j to.n a;llon maqhth.n o]n evfi,lei o` VIhsou/j kai. discípulo, aquele que Jesus amava, e lhe diz:
le,gei auvtoi/j\ h=ran to.n ku,rion evk tou/ mnhmei,ou kai. “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o
ouvk oi;damen pou/ e;qhkan auvto,nÅ puseram”.
Por que Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo? Como Jesus já tinha
anunciado, sua morte provocou a dispersão dos discípulos – “Eis que vem a hora, e ela já
chegou, em que sereis dispersados, cada qual para o seu lado, e me deixareis sozinho” (Jo
16,32). Aqui vemos a primeira justificativa: os discípulos estavam imobilizados pelo que
aconteceu com Jesus de Nazaré. O medo tomara conta de todos. Não queriam o mesmo fim
17
SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida. Petrópolis:
Vozes, 1995. p. 214.
77
que Jesus teve. E a segunda justificativa é evidenciada pela pressa de Maria Madalena para ter
com os discípulos. Sua atitude revela uma realidade profunda de esperança, de compreensão
interior amadurecida no tempo da familiaridade com Jesus. É uma maneira de expressar a
familiaridade que havia entre as discípulas e os discípulos responsáveis pelas comunidades.
A expressão ouvk oi;damen – não sabemos – utilizada por Maria Madalena encontra-
se no plural que pode ser o indício de um relato original com diversas mulheres 20. Por outro
lado, Mateos e Barreto interpretam esse plural como uma comunidade desorientada21.
Também o emprego do pronome pessoal nós na mensagem de Maria Madalena é importante
para a comunicação no relato. Ele evidencia um sentimento de pertença. Pedro e o outro
discípulo sabem o que José de Arimatéia e Nicodemos tinham feito. Maria não anuncia
nenhum roubo do túmulo. A frase “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o
puseram” mostra claramente sua suspeita: havia pessoas que não pertenciam ao grupo
conhecido dos discípulos e que tinham posto o corpo de Jesus em outro lugar. A atitude de
Maria Madalena confirma que ela é muito mais que uma mensageira. Ela convoca os
discípulos a serem ativos.
Outra expressão que chama a atenção é pro.j to.n a;llon maqhth.n o]n evfi,lei o`
18
BASTIANEL, Maria de Magdala, p. 125.
19
Segundo Brown, é possível que, ao descrever os acontecimentos que seguiram a ressurreição, o evangelista se
sinta mais livre, reconhecendo que este título se converteu em uma forma comum de expressar a fé da
comunidade cristã. Cf. BROWN, El Evangelio, p. 1292.
20
MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 479.
21
Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 838.
78
VIhsou/j – o outro discípulo, aquele que Jesus amava. É a terceira passagem que fala
explicitamente desse discípulo (cf. Jo 13,23 e 19,26). Somente no Quarto Evangelho o
discípulo que Jesus amava desempenha um papel decisivo (cf. Jo 21,20-24). Indubitavelmente
foi o evangelista que introduziu o discípulo para a inspeção do túmulo vazio. Assim, o
evangelista coloca em relevo a fé do discípulo que Jesus amava (v. 8)22.
Diante da informação que Maria Madalena lhes fornece, a única reação de Pedro e
do outro discípulo, narrada pelo evangelista, é a verificação do que aconteceu. E o evangelista
faz notar que Pedro e o outro discípulo correm juntos. Essa pressa dos dois discípulos (como a
pressa de Maria Madalena em 20,1) evidencia o apego que tinham a Jesus. Com sua ação,
Maria Madalena torna-se a grande impulsionadora dos discípulos na comunidade nascente. A
ação de Maria Madalena coloca os discípulos a caminho do Senhor. Convida-os a saírem da
dispersão em que se encontravam.
3 3
VExh/lqen ou=n o` Pe,troj kai. o` a;lloj maqhth.j kai. Então Pedro saiu, como também o outro discípulo, e
h;rconto eivj to. mnhmei/onÅ foram ao túmulo.
4 4
e;trecon de. oi` du,o o`mou/\ kai. o` a;lloj maqhth.j Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu
proe,dramen ta,cion tou/ Pe,trou kai. h=lqen prw/toj eivj mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao
to. mnhmei/on( túmulo.
5 5
kai. paraku,yaj ble,pei kei,mena ta. ovqo,nia( ouv Ele se inclina e vê as faixas deitadas ali. Todavia,
me,ntoi eivsh/lqenÅ não entrou.
6
e;rcetai ou=n kai. Si,mwn Pe,troj avkolouqw/n auvtw/| 6
Chega também Simão Pedro que o seguia: ele entra
kai. eivsh/lqen eivj to. mnhmei/on( kai. qewrei/ ta. ovqo,nia no túmulo e observa as faixas ali deitadas 7e o pano
kei,mena( que cobrira a cabeça; este não fora posto com as
7
kai. to. souda,rion( o] h=n evpi. th/j kefalh/j auvtou/( ouv faixas, mas estava enrolado à parte, em outro lugar.
meta. tw/n ovqoni,wn kei,menon avlla. cwri.j 8
Só então o outro discípulo, aquele que tinha chegado
evntetuligme,non eivj e[na to,ponÅ primeiro, entrou, por sua vez, no túmulo; ele viu e
8
to,te ou=n eivsh/lqen kai. o` a;lloj maqhth.j o` evlqw.n creu.
prw/toj eivj to. mnhmei/on kai. ei=den kai. evpi,steusen\ 9
Com efeito, eles ainda não tinha compreendido a
22
Tilborg, em seu comentário, diz que a menção do discípulo anônimo, “O outro (o` a;lloj) discípulo, aquele que
Jesus amava”, chama muito a atenção. De modo muito significativo se estabelece um nexo com Jo 18,15: “O
outro discípulo, que junto com Pedro tinha seguido Jesus, e que era conhecido do sumo sacerdote”. Isto é
possível se se pensa que “o outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote” é o discípulo amado. Para os
exegetas que assim interpretam o emprego desta palavra “outro” é um argumento extra para considerar essas
duas figuras como personagens idênticos no relato. Porém se em Jo 18,15 se trata de Judas, isto já não funciona.
Então há que compreender a expressão “o outro discípulo, aquele que Jesus amava” de modo que, junto ao
segundo discípulo, o “outro” amado (= o discípulo que Jesus amava), Pedro é um primeiro discípulo que Jesus
amava. Em todo caso, chama a atenção, que não se emprega o termo avgapavw, como em outras passagens acerca
do discípulo amado, senão o termo filevw, termo que na discussão entre Jesus e Pedro acerca do amor de Pedro
para com Jesus em Jo 21,15-19 se emprega cinco vezes. Tilborg comenta ainda que filevw aparece duas vezes
junto ao termo avgapavw e que, em última instância, os termos são sinônimos. Cf. TILBORG, Comentário, p. 411.
79
9
ouvde,pw ga.r h;|deisan th.n grafh.n o[ti dei/ auvto.n evk Escritura segundo a qual Jesus devia ressurgir dentre
nekrw/n avnasth/naiÅ os mortos.
10 10
avph/lqon ou=n pa,lin pro.j auvtou.j oi` maqhtai,Å Depois disso os discípulos voltaram para casa.
Nestes versículos não aparece uma única frase que indique “diálogo”. Isso aponta
para a ausência de “discussão”. Os dois discípulos têm a mesma reação diante da informação
que Maria Madalena lhes dá. Lc 24,24 traz a lembrança de que alguns discípulos, avisados
pelas mulheres, tinham ido ao túmulo e constatado a ausência do corpo de Jesus. Lc 24,12 diz
respeito apenas a Pedro. A semelhança entre os textos de Lucas (cf. 24,24 e 24,12) e o texto
de João (cf. 20,3-10) se justificaria pela existência de uma tradição comum, acolhida por
ambos os evangelistas.
A expressão e;trecon de. oi` du,o o`mou/ – os dois correm juntos – mostra adesão a
Jesus e interesse pelo ocorrido23. No caminho, delineia-se a diferença entre Simão Pedro e o
outro discípulo que Jesus amava – “...mas o outro discípulo correu mais depressa do que
Pedro e chegou primeiro ao túmulo” (Jo 20,4). O discípulo que Jesus amava chega primeiro
(prw/toj). Quer saber o que aconteceu, mas não entra: deixa a Pedro a precedência. “Ele se
inclina (paraku,yaj) e vê (ble,pei) as faixas deitadas (kei,mena ta. ovqo,nia) ali. Todavia, não
entrou” (20,5). Ele só entrará no túmulo depois que Pedro tiver entrado. De fora examina o
que pode ser visto. E, ao ver as faixas deitadas, distingue o sinal da vida, mas não o
compreende. O verbo grego ble,pei (vê) mostra uma visão ainda muito distante da fé. É a
visão que Maria Madalena teve quando chegou ao túmulo em meio à escuridão. Chega
também Simão Pedro, que entra no túmulo e observa toda a organização das indumentárias
mortuárias postas ali. O verbo grego qewrei/ evidencia uma silenciosa contemplação de tudo o
que se apresenta. “As faixas ali deitadas (kei,mena) e o pano que cobrira a cabeça (to.
souda,rion), não posto com as faixas, mas enrolado à parte, em outro lugar” (vv. 6-7). A
reação de Pedro é de um silêncio profundo. Não diz nada. O evangelista não informa nada a
respeito da reação de Pedro. Sua atenção é permanente. Ele deixa penetrar no seu pensamento
o vazio daquele túmulo numa atitude de quem espera alguma coisa. Procura entender o que ali
23
Maggioni percebe na narração um interesse apologético, que contudo não é o interesse principal. Des-
membrando a narração de Maria no sepulcro e inserindo nela, como vimos, a corrida dos discípulos, o
evangelista quer atribuir um papel primário ao testemunho de Pedro e do outro discípulo: o testemunho da
ressurreição não se apóia por primeiro lugar na visão de uma mulher (que no mundo judaico não teria tido muito
valor), mas na constatação dos dois discípulos. Estes constataram que as faixas e o sudário nos quais tinha sido
envolvido o corpo de Jesus não tinham sido jogados no chão de um jeito qualquer, mas dobrados com ordem:
indício que já de per si parece contradizer a calúnia de uma transferência fraudulenta do cadáver. Cf.
MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 480.
80
aconteceu24. Pedro contempla e reconhece, portanto, os objetos que tem diante de si. Mas, sua
constatação é de um túmulo vazio.
E ainda sem acreditar no que aconteceu ali, Pedro presencia naquela ausência uma
outra presença, uma presença nova e diferente. O seu “ver” com disponibilidade deixa aberta
a possibilidade de uma esperança.
O discípulo amado, que havia chegado primeiro, entrou no túmulo, viu e creu. Ele
só entrou depois que Pedro chegou e entrou no túmulo. Ao repetir a expressão o` a;lloj
maqhth.j o` evlqw.n prw/toj – aquele que tinha chegado primeiro –, João frisa que o discípulo
quis esperar para que Pedro entrasse primeiro. Segundo Mateos e Barreto,
24
Cf. WEIL; Simone. Attente de Dieu. La Colombe, 1950. p. 119. Apud LEON-DUFOUR, Leitura, p. 148.
25
Cf. DODD, A interpretação, p. 551-552.
26
O salmista põe em evidencia a força da presença de Deus, que vence o poder da morte. Cf. LÉON-DUFOUR,
Leitura, p. 149-152.
27
MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p.839.
81
Atitude parecida teve Maria Madalena que, ao ver o túmulo aberto e sem o corpo
de Jesus, correu para avisar os discípulos. O discípulo amado poderá ser testemunha da
ressurreição como foi da morte e do amor de Jesus (cf. 19,35). “Ele viu e creu” – ei=den kai.
evpi,steusen28. No vazio do túmulo, o discípulo compreende que Cristo venceu a morte. Ele vê
os mesmos sinais que Pedro vira. É uma visão penetrante pela qual ele vê o inicio da fé, uma
fé que abraça toda a vida e que certamente, como demonstra o versículo seguinte, tem como
objeto primeiro a ressurreição de Jesus. Mas o evangelista mostra que eles ainda não tinham
compreendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressurgir dos mortos (v. 9) 29.
Ora, o v. 10 conclui que Pedro e o Discípulo que Jesus amava voltaram para a
casa sem nenhuma preocupação aparente. Esta conclusão confirma a impressão que já produz
o v. 9, de que originariamente não se lia nada acerca da fé31. Podia esta ida ao túmulo ficar
sem nenhum eco nem eficácia? Não devia chegar a notícia até os outros discípulos?
Provavelmente, a necessidade de ter que ver para crer explica que ainda não tinham
compreendido a Escritura. A fé está ainda no início, porque o discípulo está preso ao não-
saber (não tinha ainda compreendido), que o deixa muito lento e despreparado para o
acontecimento32. A necessidade de compreender a Escritura se fundamenta no fato de que a
ressurreição foi querida por Deus. A Escritura, com efeito, é um indicativo dos planos de
Deus. João assinala essa incapacidade do discípulo diante do evento da ressurreição, quando
Maria Madalena informa aos discípulos: “...não sabemos onde o colocaram” (v. 2) e narra que
Pedro e o outro discípulo “não tinham compreendido ainda a Escritura” (v. 9).
28
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 152: “A continuação do relato não explicita se o discípulo repartiu sua certeza.
Por isso, desde Agostinho, propõe-se uma leitura diferente: ele teria simplesmente se convencido de que Maria
de Magdala falara a verdade. Segundo Léon-dufour, tal leitura é praticamente inconcebível em João. Vai de
encontro ao sentido global do relato, no qual a hipótese do roubo do cadáver foi eliminada; e de encontro ao uso
absoluto (sem complemento) do verbo pisteuein, que quase sempre tem um sentido intenso. A ausência de
qualquer referência nas narrativas seguintes mostra, antes, a relativa autonomia dos relatos pascais de João, cada
qual constituindo uma unidade”.
29
Para Bultmann, este versículo é apenas uma glosa. Cf. BULTMANN, The Gospel, p. 685.
30
Cf. WESTCOTT, B. F. The gospel According to St John. Grand Rapids, 1980. v. 2, p. 340. Apud SANTOS,
Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. Aparecida: Santuário, 1994. p. 330).
31
SCHNACKENBURG, El evangelio, p. 387.
32
Segundo Mollat, “este estado inicial de despreparação e como que de cegueira nas primeiras testemunhas da
ressurreição é fundamental (...) Esta despreparação radical não se faz senão colocar melhor em relevo a realidade
da intervenção divina e seu aspecto de ato criador. A fé pascal foi para os discípulos de Jesus como um
despertar” (MOLLAT, D. La foi pascale selon lê chapitre 20 de l’ Évangile de Jean. In: Études johanniques.
Paris, 1979. p.168-169. Apud SANTOS, Teologia, p. 329).
82
A compreensão que eles têm da Escritura não precede, mas segue a certeza da
passagem de Jesus à glória. De fato, historicamente, a Igreja primitiva fez primeiro a
experiência do Ressuscitado e só depois esclareceu sua fé pela releitura das
Escrituras. Assim, segundo o relato lucano da aparição aos discípulos reunidos, o
Ressuscitado, fazendo-se reconhecer, é quem lembra aos seus os prenúncios na lei,
nos profetas e nos Salmos (Lc 24,44-45; cf. 24,25-27)33.
João mostra que, depois de terem visto o túmulo vazio, os discípulos voltaram
para casa sem nenhuma discussão sobre o que poderia ter ocorrido ali (v. 10). A impressão
que se tem é que, ao voltarem para casa, os discípulos encerram sua busca de Jesus. Por outro
lado, Maria Madalena assume o lugar na narração. O afastamento dos dois discípulos do
túmulo abre espaço para o encontro de Maria Madalena com o Senhor. Os discípulos, que se
encontravam dispersos quando Maria Madalena lhes informou o acontecido, continuarão
dispersos até que Jesus faça chegar a eles a sua mensagem (cf. Jo 20,18). Por isso não
anunciaram o acontecido. Apenas constataram a ausência de Jesus. Para testemunhar que
Jesus está vivo, é preciso fazer a experiência de sua presença.
Enquanto os dois discípulos retornam para sua casa, Maria Madalena, que ficara
fora, perto do túmulo, chorava por não ter encontrado o corpo de Jesus. Ela não sacia seu
desejo de encontrar o corpo, que poderia aliviar seu pranto. Tem no coração a certeza de
poder encontrá-lo a qualquer custo. João evidencia o progresso decisivo e comprometedor da
fé pascal. Dos sinais da ausência de Jesus, a narrativa passa à presença do próprio Senhor
ressuscitado, marcando a transformação profunda de Maria Madalena no seu modo de ver
Jesus. Isto quer dizer que sua visão de outrora acerca do Jesus terrestre deve dar lugar a uma
visão de fé que percebe no homem-Jesus, o Senhor glorioso.
Maria Madalena continua sua procura pelo corpo de Jesus. Segundo a narração do
evangelista, os discípulos saem sem dizer uma só palavra. Maria Madalena quer uma resposta,
mas não encontra ninguém para lhe dizer o que aconteceu. E, em seu caminho, não tem
descanso. Ela vai ao encontro da verdadeira fé. João evidencia que, para se chegar à fé, é
necessário perseverar. Quem procura encontra.
33
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 153.
83
11 11
Mari,a de. ei`sth,kei pro.j tw/| mnhmei,w| e;xw Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava.
klai,ousaÅ w`j ou=n e;klaien( pare,kuyen eivj to. Chorando, ela se inclinou para o túmulo 12e viu dois
mnhmei/on anjos vestidos de branco, sentados no mesmo lugar
12
kai. qewrei/ du,o avgge,louj evn leukoi/j onde o corpo de Jesus fora depositado, um à cabeceira
kaqezome,nouj( e[na pro.j th/| kefalh/| kai. e[na pro.j toi/j e outro aos pés.
posi,n( o[pou e;keito to. sw/ma tou/ VIhsou/Å 13
“Mulher, disseram-lhe, por que choras?”. Ela lhes
13
kai. le,gousin auvth/| evkei/noi\ gu,nai( ti, klai,eijÈ respondeu: “Tiraram o meu Senhor e eu não sei aonde
le,gei auvtoi/j o[ti h=ran to.n ku,rio,n mou( kai. ouvk oi=da o puseram”.
pou/ e;qhkan auvto,nÅ
Maria Madalena permanece ali, junto ao túmulo chorando (v. 11a). Até esse
momento, não consegue sequer pensar que Jesus pudesse ter ressuscitado. Para ela, era
inconcebível que seu Mestre pudesse estar vivo. A tristeza dos discípulos por causa da morte
de Jesus havia sido anunciada previamente por ele, mas ele lhes assegurara que seria uma
tristeza breve e que se transformaria em grande alegria (cf. Jo 16,16-23). Maria Madalena
parece não ter presente estas palavras do Mestre e, por isso, não se consola em sua dor.
Reclusa na sua tristeza, segue supondo que Jesus, o seu Senhor, foi tirado do túmulo pelos
não-discípulos. O verbo ei`sth,kei – estava – é o mesmo verbo empregado pelo evangelista,
quando fala daqueles que estavam (ei`sth,keisan) perto da cruz de Jesus. E Madalena então
chorava (klai,ousa) do lado de fora do túmulo, um derradeiro tributo proporcionado por uma
situação humana sofrida e vulnerável diante da aparente inelutabilidade da morte. O pranto de
Maria Madalena é sinal do sentimento de impotência da criatura. Mas a obra de Deus já está
em ato, mesmo se nada ainda parece dar sinal dela. “Pedro e João, não encontrando mais o
divino corpo, retiram-se; Madalena permanece firme e perseverante. Olha de tempos em
tempos o túmulo, com medo de que seus olhos a tenham enganado, e continua procurando
aquele pelo qual seu coração suspirava”34.
E, “chorando, ela se inclinou para o túmulo” (pare,kuyen eivj to. mnhmei/on) para
examinar, para observar atentamente o que estava lá dentro. Não desiste de sua ansiosa
procura. Em meio à sua dor, o olhar permanece fixo dentro do túmulo. Foi então que ela “viu
dois anjos vestidos de branco, sentados no mesmo lugar onde o corpo de Jesus fora
depositado, um à cabeceira e o outro aos pés” (v. 12). O verbo qewrei/ – viu –, que já tinha
aparecido no v. 6 com respeito ao discípulo que Jesus amava, evidencia que, naquele
momento, enxergou aquilo que, quando chegou, não havia ainda se lhe manifestado: os dois
anjos vestidos de branco. A determinação do lugar e da posição em que se encontravam os
anjos, sentados onde estava o corpo de Jesus, um do lado da cabeça e o outro do lado dos pés,
tornam claro o significado do túmulo vazio. Determinam simbolicamente a corporeidade
34
RILKE, O amor de Madalena, p. 30.
84
ausente do Senhor. Os anjos exprimem a corporeidade transfigurada do Ressuscitado. Aqui os
anjos são principalmente sinal; não anunciam, a não ser com a presença.
Maria Madalena, mesmo vendo os anjos no lugar onde o corpo havia sido
depositado, não consegue captar o sinal da não-corporeidade do Ressuscitado que querem lhe
indicar. Sua preocupação é outra: ela quer saber o lugar onde haviam colocado o corpo do seu
Senhor. Por isso, diante de pergunta dos anjos: “Mulher, por que choras?”, sua resposta é:
“Tiraram o meu Senhor e eu não sei onde o puseram”. A presença deles não consegue ainda
falar a Maria Madalena, porque seu coração ainda não está inteiramente preparado para ler
este tipo de sinal. Maria Madalena responde às palavras dos anjos como às palavras de
qualquer outro, inteiramente tomada por seu pensamento dominante.
A descrição dos anjos no v. 12 é, para o leitor, mas não para Maria, uma parada
contemplativa, para evitar o perigo de ver no Ressuscitado um sobrevivente deste
mundo. Os anjos aparecem em Jo somente em relação com a pessoa augusta de
Jesus: no “prólogo histórico” se diz que eles sobem e descem sobre o Filho do
Homem (1,51); em 12,29, a multidão que assiste à cena dos gregos interpreta a voz
do céu como a de um anjo que lhe falou. Aqui, os anjos formam a guarda de honra
do lugar, no qual terminou sua trajetória terrestre. Sua função não é mediar a
mensagem pascal – isso é reservado, em Jo, à Cristofania –, mas marcar o lugar
exato onde tinha repousado o corpo santíssimo. Estão colocados como os dois
querubins que se confrontam de cada lado do propiciatório acima da Arca da
Aliança, o lugar de onde YHWH falava a seu povo35.
A afinidade misteriosa entre os anjos e Jesus é marcada pela pergunta: gu,nai( ti,
klai,eijÈ – “Mulher, por que choras?”. É a mesma pergunta que Jesus fará a Maria Madalena
quando se lhe manifestar. E, ainda assim, Maria Madalena não consegue perceber o que a
presença daqueles anjos lhe fala. Seu coração ainda não está totalmente preparado para ler
esta espécie de sinal. Maria vê os anjos e não tem nenhuma reação.
A pergunta dos anjos não tem como objetivo indagar o motivo do choro. Quer
insinuar misteriosamente, em um nível superior, espiritual, que aquele choro não tem razão de
ser.
35
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 156-157.
85
poderá encontrar Jesus no túmulo. Ele está vivo; deixou o túmulo. É inútil buscá-lo entre os
mortos e querer achar o seu cadáver.
14 14
tau/ta eivpou/sa evstra,fh eivj ta. ovpi,sw kai. qewrei/ Enquanto falava, ela se voltou e viu Jesus que
to.n VIhsou/n e`stw/ta kai. ouvk h;|dei o[ti VIhsou/j evstinÅ estava ali, mas não sabia que era ele.
15 15
le,gei auvth/| VIhsou/j\ gu,nai( ti, klai,eijÈ ti,na Jesus lhe disse: “Mulher, por que choras? Quem
zhtei/jÈ evkei,nh dokou/sa o[ti o` khpouro,j evstin le,gei procuras?” Mas ela, pensando que se tratava do
auvtw/\| ku,rie( eiv su. evba,stasaj auvto,n( eivpe, moi pou/ jardineiro, disse-lhe: “Senhor, se foste tu que o tiraste,
e;qhkaj auvto,n( kavgw. auvto.n avrw/Å dize-me onde o puseste, e eu o levarei”.
Com seu pensamento, sua fala aos anjos e seu olhar para o vazio do túmulo não é
possível reconhecer Jesus. Por isso, “enquanto falava, ela se voltou e viu Jesus que estava ali,
mas não sabia que era ele” (v. 14). Mas Maria não desiste e persiste na sua procura. Continua
ali buscando entender o que tinha acontecido. Os outros dois discípulos, Pedro e o Discípulo
que Jesus amava, não tiveram a mesma perseverança e, certamente, aguardavam o desenrolar
dos fatos em suas casas. Maria Madalena é conduzida à fé a partir de sua profunda ignorância:
uma fé ainda mais explícita e definida que a do discípulo amado. Depois de ter visto os dois
anjos e de ter-lhes falado, ao se voltar, viu Jesus ali. Acontece uma mudança de visão por
completo, pois saem de cena os anjos e entra o próprio Jesus, que Maria Madalena vê como
um estranho (jardineiro). Segundo Sebastiani,
O olhar de Maria Madalena ainda não lhe deu a faculdade de compreensão plena
de que aquele homem que esta ali era o próprio Jesus. Maria Madalena estava diante de Jesus
e não conseguia reconhecer seu Mestre, seu Senhor. Para ela, a única coisa certa era o fato da
morte. Parecia impossível conceber que o evento da morte de Jesus pudesse ter outro desfecho
que não o corpo inerte no túmulo. Maria Madalena estava procurando um morto. Suas
expectativas eram todas orientadas para um corpo morto37.
Com a mesma pergunta que os anjos lhe fizeram – “Mulher, por que choras?”
36
SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 219.
37
Segundo Léon-Dufour, a peripécia do não-reconhecimento imediato do Ressuscitado caracteriza outros relatos
pascais: Jesus aparece “sob outra forma” (Mc 16,12), não se sabe que é ele. Esse traço não é um meio narrativo
para dramatizar o encontro; ele traduz como pode a alteridade que a fé reconhece ao Senhor que volta da morte.
Se os relatos sublinham a continuidade com Jesus de Nazaré, deixam entrever também que aquele que se torna
presente é totalmente diferente de um homem deste mundo: não é acessível e, contudo, bem próximo, ele mesmo
tem de se revelar. Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 157.
86
acrescentado de – “Quem procuras?”, Jesus atrai a mulher ainda ignara para uma
compreensão mais profunda do mistério (v. 15). É como se, ao dizer “Por que
choras? Por quem procuras?”, veladamente Jesus fizesse brotar no íntimo de Maria
Madalena uma pergunta diferente: Não compreendes que não deves chorar, pois
aquela que te pareceu a vitória da morte era a derrota da morte? Tu sabes a quem é
que verdadeiramente procuras, enquanto pensas de procurar apenas o seu cadáver?38
Ao não reconhecer Jesus, sua presença no horto a faz pensar que é o hortelão ou
jardineiro. Com essa palavra, João reintroduz o tema do horto-jardim, voltando ao
linguajar do Cântico (19,41a). Prepara-se o encontro da esposa com o esposo. Maria
ainda não o reconhece, mas já está presente o primeiro casal do mundo novo, o
começo da nova humanidade. Assim, como os anjos, a chamou “Mulher” (esposa).
Ela, expressando, sem o saber, a realidade de Jesus, chama-o “Senhor” (esposo,
marido)39.
Maria Madalena é fiel a seu mestre até o momento da morte. Não se conforma
com a morte de Jesus e, por isso, busca-o incessantemente. Apenas esta busca constante torna
possível compreender ou viver a experiência da ressurreição. Somente é possível reconhecer o
ressuscitado quando se tem de antemão uma relação íntima e afetiva com Jesus e com seu
projeto de vida.
Segundo Faria, para entender Maria Madalena como discípula amada de Jesus,
Estas perguntas de Jesus, “Mulher, por que choras? Quem procuras?”41, são um
convite à purificação da fé: Maria Madalena ainda está muito motivada por interesses
terrenos. Sua preocupação não deve ser com o lugar onde colocaram o corpo de Jesus terreno.
Antes de tudo deve procurar o Cristo, o Senhor ressuscitado. Ao invés de estar preocupada em
encontrar o Senhor para si, sua procura deve se transformar em um movimento de fé para ele.
38
SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 220.
39
MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 847.
40
FARIA, Jacir de Freitas. Maria Madalena, a mulher que Jesus tanto amou! Convergência, São Paulo, v. 246,
out. 2001, p. 511, 2001.
41
Segundo Schnackenburg, esta segunda pergunta descobre o fundo histórico-tradicional: a cena dos anjos nos
relatos sinóticos do túmulo. Ainda que cada um deles a descreva de modo distinto, o motivo da busca se mantém
constante. Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. 3, p.
390.
87
Se ela o confunde com o jardineiro, certamente se deve ao fato de que lhe faltava ainda o
olhar da fé. Jesus está comovido pelo pranto de Maria Madalena. Ele já sabe o que a move.
Portanto, Jesus, que está com o Pai, está também diante de Maria e se manifestará àquela que
o procurava inutilmente entre os mortos.
Jesus chama Maria Madalena pelo seu nome. É nesse instante que ela reconhece
Jesus. A experiência da ressurreição é possível nesse diálogo afetivo, nessa relação pessoal,
íntima e afetiva. Jesus conhece pelo nome suas ovelhas e suas ovelhas conhecem a sua voz
(cf. Jo 10,3-4.14). Ainda que não o tenha reconhecido pela vista, Maria Madalena o reconhece
pela voz, ao ser chamada pelo nome.
16
16
le,gei auvth/| VIhsou/j\ Maria,mÅ strafei/sa evkei,nh Jesus lhe disse: “Mariâm”. Ela se voltou e lhe disse
le,gei auvtw/|~Ebrai?sti,\rabbouni ¿o] le,getai dida,skaleÀÅ em hebraico: “Rabuni”, o que significa mestre.
17 17
le,gei auvth/| VIhsou/j\ mh, mou a[ptou( ou;pw ga.r Jesus lhe disse: “Não me retenhas! Pois eu ainda
avnabe,bhka pro.j to.n pate,ra\ poreu,ou de. pro.j tou.j não subi para o meu Pai. Mas tu, vai ter com os meus
avdelfou,j mou kai. eivpe. auvtoi/j\ avnabai,nw pro.j to.n irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é
pate,ra mou kai. pate,ra u`mw/n kai. qeo,n mou kai. qeo.n vosso Pai, para o meu Deus, que é o vosso Deus”.
u`mw/nÅ
A entonação com que Jesus pronuncia o nome de Maria e a voz querida, tantas
vezes acolhida antes de ele morrer, revelam quem está chamando. Não há mais dúvidas para
Maria Madalena de que ela está diante de Jesus, vivo e verdadeiro. “O som da voz e o nome
são estados e os primeiros meios de reconhecimento; e, portanto, o escutar é o estado
primeiro, entre os sentidos humanos, a certificar a identidade do Ressuscitado”42. Jesus não a
chama mais de “mulher”, como no v. 15; chama-a pelo nome: “Mariâm”, atingindo o mais
profundo de seu ser. A familiaridade de Jesus com esta mulher discípula, a proximidade e a
relação estreita em amizade e missão mostram que não há revelação do ser de Deus a não ser
no amor e na amizade. Maria Madalena cessa seu choro e seu pranto. Ao escutar seu nome
pronunciado por Jesus, Maria Madalena se volta imediatamente para ele, tomada de alegria, e
exclama: “Rabuni” (meu Senhor, meu Mestre). Ela se voltou (strafei/sa) sem nenhum tipo de
dúvida, pois só Jesus a chamava assim. Responde com uma exclamação, um tratamento que
se dava deste mesmo modo ao Jesus terrestre: “Rabuni”, que significa meu mestre.
Rabuni (em arameu “meu mestre”) não é em efeito se não o tratamento habitual de
Rabi, só que reforçado e em tom quase exclusivo, e tão pouco o evangelista o traduz
diversamente do grego (cf. 1,39). A simples estrutura “narrativa” desta cena de
42
NOLLI, Gianfranco. Evangelo secondo Giovanni. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1986. p. 725.
88
reconhecimento envolve toda uma teologia que expressa a fé na ressurreição de
Jesus, o encontro do crente com o ressuscitado43.
É pela fé que se tem a certeza absoluta de que Jesus Cristo está presente,
ressuscitado, vivo e vivente em nossas vidas. O sofrimento e a dor de Maria Madalena são
superados pela certeza de que Jesus, o Senhor, está presente. Como discípula, Maria
Madalena experimenta a ressurreição de Jesus.
Estevez afirma que, do discípulo amado, é dito que “viu e creu” (Jo 20,8). É
testemunha do acontecimento da ressurreição. Mas Maria Madalena é testemunha da pessoa
do Ressuscitado (Jo 20,16). Por isso pode anunciá-lo e encorajar deste modo a comunidade
que estava de portas fechadas por medo dos judeus (cf. Jo 20,19)45. Nada nem ninguém
poderá deter Maria Madalena nesta missão que Jesus lhe confia, assim como aconteceu com a
samaritana ao encontrar-se com o Messias (cf. Jo 4,28-30).
Maria Madalena expõe toda a sua alegria por ter encontrado o Senhor, que não
sabia onde estava (vv. 2.13). Mas sua exclamação não é ainda a expressão autêntica da fé
pascal, pois ela conhece apenas o Jesus terrestre como seu Senhor, aquele a quem havia se
submetido totalmente ao longo de seu ministério na Galiléia. Sua visão está ainda na ótica de
antes da morte e ressurreição de Jesus. O gesto daquele que ama quando encontra o ser amado
é o gesto do abraço, do beijo. E na tecedura destes gestos está o desejo de Maria Madalena de
retê-lo para si, de não deixá-lo nunca mais. O gesto implícito de Maria Madalena com
referência a Jesus corresponde a Ct 3,4: “Mal os tenho passado, encontro aquele que eu amo.
43
SCHNACKENBURG, El evangelio, p. 392.
44
Cf. ARCHILLA, Francisco Reyes. La resurrección como clave teológica en el cuarto evangelio – “Y Jesús le
dijo, Maria!”. Utopias, Bogotá, n. 22, p. 19, mar 1995.
45
Cf. ESTEVEZ, A mulher, p. 71.
89
Seguro-o e não o largo, até tê-lo introduzido na casa da minha mãe, no quarto da que me
concebeu”. Por isso Jesus lhe disse: “Não me retenhas, pois eu ainda não subi para o meu Pai”
(v. 17a).
Num gesto de adoração abraçava os pés, como as santas mulheres segundo Mt 28,9.
A recusa dirigida a Maria não significa vontade de separação, mas é motivada pela
missão que deve cumprir junto aos discípulos. Segundo a estrutura tripartite das
narrativas de aparição, o encontro desemboca numa missão: Maria tem de ouvir que,
para ir levar a mensagem aos discípulos, ela não o pode manter abraçado, mesmo
que ainda esteja aqui na terra: “Vai aos meus irmãos!” 46
Jesus interrompe o desejo de Maria Madalena de retê-lo para si, para enviá-la com
um anúncio para os discípulos, aos quais, pela primeira vez, chama de “os meus irmãos”.
“Mas tu, vai ter com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai,
para o meu Deus, que é vosso Deus” (v. 17bc). Jesus se deixa encontrar por Maria Madalena e
lhe dá a conhecer o significado pleno de sua glorificação e filiação divina, assim como
também o das novas relações fraternas inauguradas em sua pessoa47. Se Jesus chama os
discípulos de “os meus irmãos”, aos quais envia Maria Madalena, é porque também quer
colocá-los em uma nova e especial relação com seu próprio Pai. Maria Madalena recebe uma
ordem que deve mudar sua ação e atitude por completo. O termo poreu,ou mostra que deve se
pôr a caminho para anunciar Jesus ressuscitado aos discípulos. Sua ação não pode ser de
retenção, mas de anúncio que evidencia a presença do Ressuscitado no meio da comunidade.
Maria tem de ir aos irmãos e irmãs para dizer-lhes que Jesus selou um pacto com Deus, que
46
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 161.
47
Cf. ESTEVEZ, A mulher, p. 71.
90
permanece eternamente.
Este v. 17c proclama um texto de aliança. Recorda as promessas que Deus fez a seu
povo: “Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus”; também a resposta de Rute à
sua sogra que não quer que Rute vá à terra de Judá: “Para onde tu fores, eu vou;
onde tu morares, eu morarei. Teu povo é meu povo; teu Deus é meu Deus”(Rt 1,16).
Jesus, em nome de seus discípulos, faz um acordo com Deus, o Pai, que perdura para
além de sua morte e para além da narração da história48.
O verbo subo (avnabai,nw) evidencia uma ação que ainda está no início referindo-se
à exaltação na esfera celeste, atuante desde a morte de Jesus. É pela exaltação junto do Pai
que foi obtida a filiação divina dos homens. Segundo o desígnio de Deus, Jesus assume a
nossa humanidade para elevar até ele todas as pessoas. Trata-se da entrada de todos os que
crêem no amor, que desde sempre une o Pai e o Filho único: “Eu lhes dei a conhecer o teu
nome e darei a conhecer ainda mais, a fim de que o amor com que amaste esteja neles, e eu
neles” (Jo 17,26).
48
TILBORG, Comentário, p. 414.
49
KONINGS, Evangelho, p. 403.
91
qualquer. Ela vê o Senhor ressuscitado porque seu amor vai além de uma experiência
meramente humana. Esta expressão “Eu vi o Senhor” evidencia a plenitude do itinerário de fé
de Maria Madalena. Ela está pronta e habilitada a proclamar o evangelho da páscoa aos
discípulos. Sem a revelação que vem do alto, não se chega a uma fé radicalmente renovada,
capaz de discernir, no homem-Jesus, o Senhor glorioso. O fato de ter visto Jesus ressuscitado
e ter sido enviada a proclamá-lo faz de Maria Madalena a evangelista da ressurreição.
18
e;rcetai Maria.m h` Magdalhnh. avgge,llousa toi/j 18Maria de Mágdala veio, pois, anunciar aos
maqhtai/j o[ti e`w,raka to.n ku,rion( kai. tau/ta ei=pen discípulos: “Eu vi o Senhor, e eis o que ele me disse”.
auvth/|Å
Maria Madalena dirige-se novamente aos discípulos, portando desta vez uma
mensagem de alegria. Vai comunicar aos outros o que tinha experimentado e as palavras de
Jesus. Crescida espiritualmente, Maria Madalena se torna uma grande “apóstola”. Por isso
deve ajudar os outros a crescerem, superando o medo e a desconfiança. O anúncio que levava
era vital para desfazer a dispersão na qual se encontravam os discípulos. Sem este anúncio, o
grupo de seguidores não poderia tornar-se uma comunidade.
O verbo grego o`ra,w, em primeira pessoa (e`wr, aka), exprime o sentido de ver-crer-
compreender, indicando bem o que mais importava a Maria Madalena: ter visto pessoalmente
o Senhor. Quando Maria Madalena foi chamada pelo nome por Jesus, a reação dela foi
imediata com a exclamação “meu Mestre” (Rabuni) (v. 16). Logo em seguida, no anúncio aos
discípulos, ela usa o termo ku,rioj, que faz alusão à glorificação pascal. A fala de Maria
Madalena no v. 2, “tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram”, pertence
50
Cf. TILBORG, Comentário, p. 414.
51
LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 162.
92
ainda inteiramente ao krónos, ao tempo terrestre. Seu amor e sua aflição parecem ainda
inteiramente contidos no horizonte humano. Entretanto, no v. 18, Maria Madalena anuncia
aos discípulos: “Eu vi o Senhor” e conta tudo o que disse Jesus aos discípulos, evidenciando
sua pertença ao tempo da salvação.
3.6. Conclusão
No final desta análise, podem-se perceber alguns elementos essenciais para todo
discipulado. Primeiro, Maria Madalena, depois de ter estado aos pés da cruz junto às outras
mulheres e o discípulo que Jesus amava, não desistiu de sua caminhada com Deus. Não
entendendo que Jesus deveria ressuscitar dos mortos, vai procurá-lo no túmulo, ainda de
madrugada. Revela-se nela a coragem para suplantar o poder da morte. Ela não fugiu, mas
manteve-se ao lado de Jesus até o fim. Segundo, o seu amor pelo Senhor não a deixa longe de
sua fé, mesmo que ainda, não seja plena. Por isso segue numa intensa ação: “...vai ao túmulo e
vê...” (Jo 20,1); “Ela corre, vai ter com Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus
amava, ...” (Jo 20,2); “Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava. Chorando, ela se
inclinou para o túmulo” (Jo 20,11); “...e viu dois anjos vestidos de branco...” (Jo 20,12);
“...ela se voltou e viu Jesus que estava ali,...” (Jo 20,14); Ela ouve Jesus lhe chamar,
“Mariâm” (cf. Jo 20,15s); “Ela se voltou e lhe disse em hebaraico „Rabuni‟...” (Jo 20,16) e vai
anunciar o que o Senhor lhe ordenou aos discípulos (cf. Jo 20,18). Terceiro, a convivência de
Maria Madalena com Jesus em seu ministério terrestre a permitiu reconhecer a voz do Cristo
ressuscitado, quando este a chamou pelo nome. A identidade de Jesus estava selada no ser de
Maria Madalena. Quarto, Maria cumpre o mandato de Jesus de ir anunciar aos irmãos a
palavra do Senhor ressuscitado, tornando-se uma verdadeira “apóstola dos apóstolos”. Quinto,
o anúncio que porta estabelece uma nova relação entre os discípulos e as discípulas na
comunidade. Tornam-se irmãos e irmãs uns dos outros, porque em Cristo são também filhos e
filhas do mesmo Pai que está nos céus. Não é mais só o Pai de Jesus, mas é o Pai nosso. Sexto,
neste contexto da glória, Jesus Cristo estabelece no coração daquele que crê, persevera e
permanece nele, Maria Madalena, mulher que não desiste, um espírito vivificante que torna
esta nova comunidade, a Igreja, sua esposa fiel.
Ao escutar Jesus pronunciar seu nome, Maria Madalena reconhece o mestre. Jesus
atingiu o mais profundo de seu ser. A familiaridade de Jesus com esta mulher discípula, a
proximidade e a relação estreita em amizade e missão, mostram que não há revelação do ser
de Deus a não ser no amor e na amizade.
Assim, no exemplo de Maria Madalena, que tem um amor profundo pelo Senhor,
os discípulos e as discípulas da comunidade de João são convidados a superar a experiência
do passado, a fim de chegar a outro tipo de relacionamento que somente será viável após a
subida de Jesus Cristo ao Pai. Somente quando Jesus estiver junto do Pai, poderá comunicar o
Espírito Santo, que tornará possível a sua nova relação ou presença na comunidade.
94
4. CONTRIBUIÇÃO DA SAMARITANA E DE MARIA
MADALENA NA FÉ E NO ANÚNCIO PARA A COMUNIDADE
JOANINA
4.1. Introdução
A Samaritana, após ter se encontrado com Jesus e escutado suas palavras, convoca
o povo de Samaria para um encontro com o Senhor. E os samaritanos acreditam por causa da
palavra que lhes foi anunciada pela mulher (cf. Jo 4,39-42).
Maria Madalena, após ter visto o Senhor ressuscitado e escutado suas palavras,
recebeu o encargo de ir aos irmãos de Jesus. O anúncio de Maria Madalena reúne os
discípulos e discípulas que estavam dispersos.
Esse capítulo procura fazer uma síntese dos principais elementos levantados no
segundo e terceiro capítulo, confrontando-os com a práxis expressa no primeiro. Esses
elementos iluminam a vida da comunidade joanina e ajudam-na a enfrentar as dificuldades e
os desafios que se lhe impõem. Em síntese, o que se deseja ver agora é como esses elementos
levantados na análise da perícope da Samaritana e da perícope de Maria Madalena iluminam e
fortalecem a comunidade na resolução de seus problemas.
O modo pelo qual os discípulos se uniram a Jesus é sempre por iniciativa dele, o que
é diferente dos discípulos dos filósofos ou do “talmid” rabínico. Esses devem
procurar acercar-se do mestre (esta era uma regra para o início do rabinato, e um
expresso dever do homem pio). Além disso, o discípulo do filósofo grego ou o
“talmid” rabínico em todas as vinculações pessoais com o mestre buscam
ensinamentos efetivos, com o fim de chegar, por sua vez, a ser eles mesmos mestres
ou rabinos. Desse modo, sua relação é provisória, enquanto assimilam a doutrina.
Ao contrário, a chamada ao seguimento por parte de Jesus não significa que ele se
situe com respeito aos discípulos numa relação de mera docência, da qual eles
teriam podido sair por sua vez como mestres (cf. Mt 23,8)1.
1
TEPEDINO, Ana Maria. As discípulas de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 25.
96
figura da samaritana e em Maria Madalena é um acolhimento voluntário da palavra de Jesus e
o desejo de colocá-la em prática (cf. Mt 7,24s). A essa prática, João chamará obediência (cf.
Jo 8,31s; 15,1s). Isto é fácil de perceber pelo comentário do evangelista, que nos informa que
“... era preciso que Jesus atravessasse a Samaria” (Jo 4,4). Jesus é obediente porque faz a
vontade do Pai.
2
SAULNIER; ROLLAND. A Palestina, p. 65: “„Compra-se a mulher por dinheiro, contrato e relações sexuais,
constata um rabino. Compra-se um escravo pagão por dinheiro, contrato e tomada de posse. Há então diferença
entre a aquisição duma mulher e a dum escravo? - Não!‟ Essa definição apresenta bem a condição feminina:
como escravo, a mulher depende de seu Senhor-marido e tem que assumir todas as tarefas; não pode aproveitar-
se nem dos rendimentos do seu trabalho nem do que ela achar; só está sujeita aos mandamentos negativos ou
gerais da Lei e não aos que estão ligadas a um tempo preciso: senão, como haveria de ocupar-se das crianças ou
das tarefas do lar? Se não lhe é proibido interessar-se pela Lei e pelas tradições, é muito desaconselhado, no
entanto, ensinar-lhe demais a respeito disso, pois „aquele que ensina a Torá à sua filha ensina-lhe a
prostituição!‟”
3
O diálogo de Jesus com a samaritana baseia-se provavelmente numa tradição missionária que atribuía um papel
primário a uma missionária mulher na conversão dos samaritanos. Cf. BULTMANN, The Gospel of John, p.
175-177.
4
Cf. BROWN, A comunidade, p. 35-41.
97
trabalho” (Jo 4,38). A mulher chama os seus conterrâneos para o seguimento de Jesus. A
conversão missionária da samaritana faz dela uma discípula de Jesus.
5
JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino. Petrópolis: Vozes,
1995. p. 99.
6
Cf. FIORENZA, As origens, p. 374-375.
98
daquela mulher e sua vinculação a Jesus devem estar presentes em todo o discipulado da
comunidade joanina.
Jesus, na sua existência, demonstra a importância de ouvir ao Pai e aos outros, para
ir descobrindo cada vez mais sua missão, para conhecer cada vez melhor o Pai,
assim como sua própria identidade7.
Foi depois de escutar Jesus que a samaritana lhe disse: “Vejo que tu és um
profeta” (Jo 4,19). O que a samaritana ouviu de Jesus permitiu que visse nele não somente um
judeu, mas um profeta. O escutar capacita a samaritana a alargar o seu conhecimento sobre
Jesus. O ouvir associa-se ao ver. A compreensão do ver e ouvir tem como centro a pessoa de
Jesus. O ver e o ouvir provocam a fé desta mulher. Levam ao conhecimento e trabalham a
percepção interior da mulher samaritana. A fé reconhece o Messias que veio. As palavras
levam à fé, e a fé é necessária para penetrar nas próprias palavras. É a mulher samaritana
quem, repercutindo as palavras de Jesus, torna-se missionária para seu povo. A palavra do
Senhor leva-a do isolamento à fé, à missão. De agora em diante, a mulher samaritana confia
somente na palavra de Jesus. Cumpre o que a própria mãe de Jesus, outra mulher, disse:
“Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5).
7
TEPEDINO, As discípulas, p. 47.
99
11), maior que nosso Pai Jacó (v. 12), profeta (v. 19), a salvação vem dos judeus (v. 22),
Messias (v. 25), sou eu (v. 26), Cristo (v. 25.29), salvador do mundo (v. 42). A resposta da
mulher samaritana a Jesus e o conteúdo de sua revelação trazem para a comunidade joanina a
necessidade de uma escuta que não só se baseia na lei, mas que se funda na revelação que
Jesus faz. É na relação amorosa com Jesus que se pode conseguir a unidade sem o recurso
vazio do legalismo. Essa relação amorosa interioriza a lei, tornando-a expressão vital desse
amor. O Filho de Deus, através da sua palavra, manifesta àquela mulher samaritana o mistério
da sua pessoa e do profundo amor do Pai.
É importante notar que o próprio Jesus tomou a iniciativa de falar com a mulher
para fazê-la discípula. Ela é uma verdadeira discípula que integra a “nova família” de
discípulos, que ora é constituída por aqueles que escutam a palavra de Jesus. A mulher
samaritana superou a fase do mal entendido, compreendendo quem é Jesus. Jesus, como um
mestre, foi interpelado por aquela mulher sobre questões teológicas que lhe diziam respeito e,
como primeira discípula, ela transmitiu aos samaritanos sua fé em Jesus. A mulher assumiu de
coração o que lhe sucedeu no encontro com Jesus. Ela bebeu a palavra do Filho de Deus,
8
FIORENZA, As origens, p. 376.
100
deixando penetrar profundamente em seu coração a verdade, ou seja, deixou a revelação do
Verbo Encarnado fecundar seu coração. A samaritana deixou sua existência ser transformada
pela revelação que Jesus lhe fez9. Por isso, a admiração dos discípulos ao verem Jesus
conversar com aquela mulher não tinha sentido.
Jesus levava a sério as mulheres judias (fossem ou não pecadoras) que a sociedade
de seu tempo marginalizava de toda vida social ou religiosa pública. Conhecia seus
sofrimentos e seus afazeres e sabia falar-lhes e escutá-las ensinando a elas e
convivendo com elas, dando assim uma resposta à sua profunda expectativa, à sua
sede de vida. Sua atitude com relação às mulheres causava espanto e assombro. Fala
publicamente com elas, até com estrangeiras (cf. Jo 4,27); e, como sabemos, os
estrangeiros eram discriminados em Israel. Não compartilha do preconceito do seu
tempo com relação a elas. Trata-as com respeito e carinho, como filhas queridas do
Pai. Vive uma especial aliança com elas, fazendo emergir o “novo” através desse seu
relacionamento10.
9
Cf. PANIMOLE, Salvatore Alberto. Lettura pastorale del vangelo di Giovanni. Bologna: Dehoniane, 1978. v.
1, p. 424.
10
TEPEDINO, As discípulas, p. 82.
11
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 15
101
Jesus deve ser aquele que aprofunda sempre mais a sua fé, deixando-se transformar
radicalmente pela palavra de Jesus.
É o próprio Deus que vem ao seu encontro. Deus encontra sempre cada um no
interior de sua história concreta. E dá a cada um aquilo que quer, que procura ansiosamente12.
Sem dúvida, a mulher samaritana evidencia um caminho para a autêntica fé: a fé em Deus,
que se plenifica em Jesus como dom oferecido a todo aquele que o procura e o escuta
atentamente. E só quem crê pode amar como Jesus amou. É este amor que Jesus, com sua
palavra, vai procurando.
Por ter escutado e seguido Jesus durante todo o tempo de sua vida pública, Maria
Madalena reconheceu o Senhor Ressuscitado, quando a chamou pelo nome e lhe deu o
encargo de ir aos irmãos. Maria deu ouvido ao anúncio do Reino que se aproximava e
acreditou no homem no qual essa proximidade se fez carne e história. Como discípula,
superou no amor e na fidelidade os seus irmãos e os precedeu na fé. A escuta atenta da
palavra de Jesus selou a identidade de Maria Madalena: “Aquele que guarda o aprisco, a porta
12
CHEVROT, Jesus e a samaritana, p. 22: “Pelo gole de água fresca que implora à samaritana, Jesus fará que a
invadam as torrentes da graça que lavarão a sua consciência e acalmarão as sedes temporais para as transformar
em desejos de eternidade. Ele primeiro pede, mas depois dá sempre mais do que pede. E, ao pedir-nos alguma
coisa, é já um dom que nos faz”.
13
O seguimento de Maria Madalena não é um seguimento ocasional, como ocorre com as multidões. O
evangelista Lucas mostra que, além dos doze, acompanhavam Jesus, algumas mulheres que tinham sido curadas
de espíritos maus e de doenças. Maria, dita de Magdala, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de
Cusa, intendente de Herodes, Susana e muitas outras, que os ajudavam com seus bens (cf. Lc 8,1-3). Isto
confirma que Maria Madalena era uma das mulheres associadas à atividade de Jesus, com o mesmo título dos
doze.
102
lhe abre, e as ovelhas escutam a sua voz; as ovelhas que lhe pertencem, ele as chama, cada
uma por seu nome, e as leva para fora. Quando ele as faz sair todas, caminha à frente delas e
elas o seguem, porque conhecem a sua voz” (cf. Jo 10,3-4). O que Maria Madalena escutou
do Ressuscitado não se calou em seu ser, mas ecoou na comunidade joanina: “Eu vi o Senhor,
e eis o que ele me disse” (Jo 20,18).
Maria Madalena, ao receber o mandato de anunciar aos irmãos o que Jesus lhe
ordenou, servia a Jesus, assim como “ele veio dar a vida e servir”. Maria Madalena encarna
em sua vida a palavra de Jesus, servindo-o como fiel discípula. E nunca é dito dos discípulos
homens que serviam Jesus como Jesus os havia servido. Segundo Tepedino15, Maria
Madalena faz a passagem da morte de Jesus à sua ressurreição. Como uma parturiente, ela dá
a luz a boa-nova: Jesus vive! Ela faz a gestação da comunidade dos discípulos.
Maria Madalena seguiu Jesus, desde a galiléia até Jerusalém. Serviu-o, escutou o
que dizia e viu o que fazia. Não fugiu quando Jesus foi preso, permanecendo fiel mesmo na
dor. Arriscou a própria vida quando foi ao túmulo ainda de madrugada e o encontrou vazio.
Porque creu e permaneceu fiel, tornou-se a primeira testemunha da ressurreição. Em
contrapartida, o grupo dos discípulos fugiu no momento da morte de Jesus, por medo de
sofrerem o mesmo destino. Maria Madalena, como verdadeira discípula, acompanhou seu
mestre até o fim do caminho na cruz. De seguidora na missão e testemunha na morte, torna-se
mensageira da boa-nova.
14
GUILLET, Jacques. Jesus Cristo no Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 70.
15
Cf. TEPEDINO, As discípulas, p. 107.
103
abertura, confiança, abandono, busca de sua vontade. A samaritana e Maria Madalena, ao
verem e escutarem a Jesus, penetram neste mistério e se inserem obedientes em sua missão.
Portanto, escutar Jesus é pôr-se em seu caminho, porque se crê nele como o Filho
de Deus, enviado para a salvação do mundo. E quem o escuta, viverá. Todo aquele que escuta
a palavra de Jesus torna-se discípulo de uma missão que provém do coração do Pai. Para
seguir Jesus Cristo, os ouvidos dos discípulos e discípulas devem estar atentos para escutar e
prontos para obedecer. É na escuta amorosa da palavra, como fez Maria Madalena, que a
comunidade joanina descobre que Jesus está vivo.
Os discípulos de Jesus seguem o Mestre para realizar a vontade do Pai, para fazer
sinais, por meio de palavras e obras, de que o Reino de Deus se inaugurou com Jesus. A
abertura do discípulo ao dom que Deus oferece faz do discípulo um sinal do Reino. Ao ver e
escutar, os discípulos conhecem melhor quem é Jesus a quem seguem, assim como percebem
o que devem fazer. Jesus, como enviado do Pai, veio ao mundo revelar a verdadeira vida. Os
discípulos são enviados por Jesus para anunciar e sinalizar a boa-nova. O verdadeiro
relacionamento com Jesus se dá na abertura à sua voz e na escuta do seu convite.
Sendo sinal do Reino, o discípulo aponta para algo que vai além do que se vê;
Jesus Cristo, o enviado do Pai. Na obediência, os verdadeiros discípulos são enviados ao
mundo, com o objetivo de transformá-lo, para que Deus seja visível no cotidiano da história.
16
A situação da mulher no judaísmo era difícil porque havia uma série de discriminações religiosas e legais
contra elas. Tal situação ficou ainda pior no judaísmo tardio e na diáspora. Com a finalidade de se manter a
unidade e a identidade dos judeus, as mulheres eram mais reprimidas mantendo-as afastadas das atividades
públicas. Ficavam mais dentro das casas, embora tenha havido algumas que se sobressaíram lutando em
benefício do povo. Cf. TEPEDINO, As discípulas, p. 67-81.
17
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annete. O Jesus Histórico. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 246.
104
Portanto, podemos afirmar que Jesus, com sua atitude e conduta concretas diante
das mulheres, comunicou-nos de modo exemplar uma nova autoconsciência e uma nova
maneira de sentir, que faz parte da salvação do mundo.
A mulher samaritana teve sua vida totalmente modificada por aquele que se
revelou a ela como o Cristo que ela e os samaritanos esperavam. Ao ir ao poço de Jacó, a
samaritana estava só. Ao voltar dele, está com o Senhor. Ela deixou que Jesus habitasse em
seu ser. Como um sinal desse Cristo, ela corre para anunciar aos seus conterrâneos a grande
novidade. Os habitantes de Sicar viram naquela mulher, no seu modo, no brilho de seus olhos,
na alegria que iluminava o seu rosto, a verdade que haveriam de encontrar em Jesus. O ser
daquela mulher e sua expressão apontavam para alguém que, de fato, se tornava visível e
falava nela. Por isso os samaritanos foram até Jesus. Os samaritanos acreditaram por causa da
18
Cf. JOHNSON, Aquela que é, p. 105.
105
palavra daquela mulher.
O trabalho da mulher samaritana é explicado por Jesus aos seus discípulos: “Eu
vos enviei para colher o que não vos custou nenhum trabalho; outros trabalharam e vós
entrastes no que lhes custou tanto trabalho” (Jo 4,38). O diálogo entre Jesus e os seus
discípulos (cf. Jo 4,17-24) deixa evidente que a samaritana tinha uma real função missionária.
19
THEISSEN; MERZ, O Jesus histórico, p. 247.
20
BUCKER, Bárbara Pataro. O feminino da Igreja e o conflito. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 131.
106
Messias – é a samaritana, que, depois de abandonar o balde, anuncia aos habitantes da cidade
seu encontro com um homem, levando as pessoas a conhecê-lo. Portanto, o modo que a
mulher samaritana passa a viver o dom da fé que recebeu de Jesus torna-se o modo de
anunciar esse Cristo aos seus conterrâneos.
Pela abertura ao dom de Deus que se torna na mulher samaritana uma fonte de
água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4,14), o evangelista apresenta a samaritana como
tendo uma fé maior do que a dos judeus (cf. Jo 2,18-22) e maior que a fé de Nicodemos (cf. Jo
3,1-21). Os judeus são incapazes de assimilar o sentido profundo da atuação do Mestre no
templo. Eles acreditavam se aproximar de Deus mediante o conhecimento e a prática da lei.
Não será por meio dos sacrifícios prescritos na lei que irá se operar a reconciliação de Israel,
mas graças ao dom que Jesus faz de si mesmo. Jesus, aquele que revela o Pai, mostra-o
presente nas relações de fraternidade e gratuidade. O grande sinal está diante dos judeus e eles
não conseguem vê-lo. Os judeus são totalmente descrentes com relação a Jesus (cf. Jo 2,13-
25).
21
Nicodemos vai procurar Jesus à noite, isto é, na escuridão (trevas). No Evangelho de João, a noite representa
as forças da morte que se opõem à prática da vida, presente em Jesus. Nicodemos é alguém que defende a Lei,
enquanto fonte de vida e norma de conduta. Mas o evangelista mostrará que a Lei é fonte de morte, pois
justamente em nome dela é que Jesus será condenado (cf. Jo 19,7). Cf. BORTOLINI, José. Como ler o
Evangelho de João: O caminho da vida. 7.ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 40-43.
107
e serve de transição para que os samaritanos façam a grande confissão de fé, não
fundamentada em sinais, mas na própria palavra de Jesus: “É o salvador do mundo” (Jo 4,42).
Afinal, o fiel samaritano está mais perto do revelador que o rabi judeu. Nicodemos, ao
contrário, não professa sua fé no revelador, nem serve de ponte para provocar a fé nos
membros de seu povo.
Pelo relacionamento que Jesus estabelece com a mulher samaritana, caem por
terra os muros da discriminação cultural e sócio-religiosa. A abertura da samaritana ao dom
oferecido por Deus faz dela um verdadeiro paradigma de fé e anúncio para a comunidade do
discípulo amado.
Jesus foi o meio e o modelo das novas relações, do novo modo do ser humano se
relacionar com Deus. Como palavra feita carne, Jesus pertence a uma história que já passou.
Maria Madalena será sinal do Reino cumprindo o mandato do Senhor: transmitir aos irmãos e
irmãs o autêntico sentido da morte de Jesus. Aquele que acreditar no revelador cumprirá seus
mandamentos e poderá, então, experimentar plenamente a presença de Deus no seu interior,
fruto dos acontecimentos pascais27.
25
MARTINI, O Evangelho, p. 109-110.
26
Segundo Hanna Wolff, “devemos rever radicalmente nossa maneira de imaginar o grupo de discípulos de
Jesus. Os „doze‟ – como se costuma dizer – são uma estilização, uma redação que segue um esquema histórico-
religioso. A maioria dos profetas ou dos fundadores de religiões, como por exemplo, Buddha, têm doze
discípulos mais íntimos. O lado interessante é que se trata de uma redação androcêntrica. Com efeito fala-se
somente de homens: a tendência é aquela costumeira que reina na coletividade, e é aquela antifeminina. Nós
vemos que Jesus, no grupo íntimo dos próprios discípulos, precisa defender-se, e de fato se defende, contra o
androcentrismo daquele coletivo masculino para o qual as mulheres não contam” (WOLFF, Hanna. Gesù, la
Maschilità esemplare: La figura di Gesù secondo la psicologia del profondo. Brescia: Queriniana, 1998. p. 124-
125. Apud SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 41).
27
Cf. CALLE, Francisco de la. A teologia do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 154-155.
109
“em espírito”.
Inteiramente tomada pela doçura de seu amante amado, inebriada no Senhor pela
nostalgia de seu cálice, recolhendo-se totalmente em si mesma, e elevando-se acima
de si própria, esvaindo-se pelo calor do amor puríssimo, saboreava as alegrias
interiores. Espaçava entre as falanges dos anjos enquanto ainda morava na terra,
vagando com a mente entre os anjos [...]. Para que lembrar cada episódio singular?
Quem dos evangelistas se cala sobre os merecimentos de Maria Madalena? Quem
dos apóstolos foi intimamente unido ao Senhor? Quem entre eles bebeu com mais
avidez na fonte de seu ensinamento? Por isso, era óbvio que, se foi enviada aos
apóstolos como apóstola e profetiza da sua ascensão, tornou-se também, por isso
mesmo, evangelizadora [evangelista] dos crentes em todo o mundo 28.
28
SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 103.
29
Bortolini afirma que, “ao longo de todo o Evangelho de João, Jesus jamais chamou seus seguidores de irmãos,
a não ser aqui, quando ordena a Maria Madalena: „Vá dizer aos meus irmãos...‟ (Jo 20,17b). Temos a impressão
de que o Evangelho de João reservou zelosamente essa palavra até o presente momento, sem voltar a repeti-la. A
palavra “irmãos”, dita por Jesus, é coisa rara no Evangelho de João. Por quê? Porque as pessoas não se tornam
irmãs de Jesus de modo fácil e simples. Vimos que o discípulo amado ao pé da cruz representa todos os irmãos
mais novos de Jesus que assumem seu projeto e, mediante o testemunho e o anúncio, suscitam descendência ao
irmão mais velho. Portanto, para ser irmão ou irmã de Jesus, é necessário ser „discípulo amado‟, assumir seu
projeto e levá-lo à realização. Cria-se, desse modo, uma grande fraternidade universal de todas as pessoas entre
si e com Jesus. O Pai dele é também o nosso Pai, o Deus dele é também o nosso Deus. Jesus é nosso irmão mais
velho que nos deixa em herança seu projeto de vida para todos. Ele é a videira e nós somos os ramos (cf. Jo
15,5). Ser irmã ou irmão dele é assumir sua herança e produzir frutos de direito e justiça” (BORTOLINI, Como
ler o Evangelho de João, p. 192-193).
110
pode dispor, para conduzi-lo simplesmente ao reconhecimento desse indisponível 30.
Na certeza da fé, Maria Madalena sabe que Jesus está presente. A fé a acompanha
por toda a vida. Ela não está abandonada. Mesmo não tocando em Jesus ressuscitado, Maria
Madalena sabe que vela por ela, sabe que guia seus passos e sabe que vive dentro dela e de
todos os seus irmãos e irmãs. O amor de Maria Madalena e sua adesão à Palavra de Jesus
conduzem a comunidade à fé na ressurreição. Por sua busca e procura incessante, chega à fé.
Não exige nenhum tipo de condição ou de sinais para acreditar no Ressuscitado. Bastou
escutar a voz do Senhor lhe chamando, para imediatamente reconhecer aquele que procurava
e tanto amava. Tomé, ao contrário, quer garantias para crer (cf. Jo 20,25). Chegou à fé
exigindo sinais que provassem aquilo que seus companheiros lhe anunciaram. Por esta
analogia, evidencia-se um modelo de fé presente em Maria Madalena, que assinala a
importância da abertura ao dom de Deus para o discípulo ser sinal do Reino. A mensagem que
Maria Madalena deve transmitir aos “irmãos e irmãs” consiste na fundação de uma nova
comunidade escatológica, mediante a volta de Jesus para o Pai. O fundamento do Evangelho
de João está na comunhão divina permanente, aberta por Jesus com a Páscoa.
O Evangelho de João, como já foi dito no primeiro capítulo, foi escrito em meio a
muitos conflitos. Antes mesmo de ser escrito, foi vivido e gestado em meio a muitas
dificuldades. O seu testemunho é um testemunho vivo de várias gerações.
30
BLANK, Josef. O Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1991. v. 3, p. 169.
111
de barreira que impede de proclamar a fé em Jesus, permanecendo em seu amor e em sua
palavra31. A coragem e a permanência no Cristo são duas dimensões que não podem se
ausentar do discipulado. São elas as fontes que garantem a vida da comunidade.
Quando João leva a comunidade a olhar para a “vitória de Cristo”, visa a lhe dar
apoio e consolo, não em primeiro lugar para garantir a sobrevivência da comunidade dentro
do mundo, mas para ficar firme até o fim. A fé já participa agora da vitória de Jesus. Pois,
como ressuscitado, Jesus é distribuidor escatológico da vida. Assim a fé torna-se força que
liberta o ser humano perdido no mundo da morte para a vida. “Pois tudo que vem de Deus
31
CNBB, Uma Igreja que acredita, acolhe e envia: Evangelho segundo João. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 86:
“No meio das dificuldades, a comunidade encontra, na mensagem de Jesus, uma garantia de serenidade: „Não
perturbe o vosso coração‟ (Jo 14,1). A fé não elimina o medo; mas ajuda a enfrentá-lo de cabeça erguida.
Principalmente quando partilhada na comunidade, a fé não permite que fiquemos desnorteados: mostra saídas
para a crise; sugere alternativas. Haja o que houver, o cristão não entrega os pontos; não perde a cabeça”.
32
Léon-Dufour afirma que “o primeiro engajamento deve tornar-se fé autentica. Não se tratará somente de
„seguir‟ Jesus (Jo 8,12) ou de confiar nele (Jo 8,31), mas de „permanecer‟ em sua palavra, de assimilá-la, de
existir por ela e descobrir que ela é a palavra do próprio Deus. Permanecendo na palavra de Jesus, o discípulo
„compreenderá‟, entrará num conhecimento sempre mais profundo, que é comunhão com o objeto conhecido, a
„verdade‟” (LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 200-201).
33
SANTOS, Teologia, p. 159.
112
vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo, nossa fé. Pois quem é vencedor do
mundo, senão aquele que crê que Jesus é o filho de Deus?” (1Jo 5,4-5). A fé em Jesus como o
Filho enviado pelo Pai ao mundo é a vitória sobre o mundo, porque é a fé no amor. Esta fé é
produzida pelo poder criador de Deus, pelo Espírito que orienta e conduz a comunidade. É
esse poder criador que faz com que o amor siga fluindo vitoriosamente para o “mundo”. E, se
o “mundo” é o âmbito em que domina o “maligno”, ou seja, as trevas da falta do amor, então
a fé no amor é a vitória sobre a falta de amor e sobre o ódio34.
A atitude dessas mulheres é a mesma atitude de Jesus que amou até o fim.
34
Cf. THÜSING, Wilhelm. Las Cartas de San Juan. Barcelona: Herder, 1973. p. 185.
113
uma conversa sobre questões religiosas importantes como o problema da salvação,
simbolizado pela „água viva‟, o problema da correta adoração de Deus, e do messias”35.
35
BLANK, O Evangelho v. 1a, p. 298.
36
A consciência de ser pecador, o reconhecimento de estar longe da verdade e a confissão sincera de tudo o que
se tem feito fora do caminho desalojam do coração a mentira e o engano e permitem a salvadora presença da
verdade, fonte de vida.
114
Tal e qual a mulher samaritana, os samaritanos querem permanecer na palavra de Jesus. Por
isso pedem a Jesus para permanecer com eles.
37
BOGADO, Anna Patrícia Chagas. Maria Madalena: O feminino na luz e na sombra. Rio de Janeiro: Lucerna,
2005. p. 136.
115
Exceto o discípulo amado, os outros discípulos abandonam Jesus no momento da
cruz. Eles não suportam aquela cena, não o acompanham na hora derradeira, no
enfrentamento da morte38.
O amor de Maria Madalena por Jesus deixa seu ser inquieto. Buscando
compreender o que aconteceu a Jesus, o seu Mestre, ela se agita, se mexe, corre, busca falar
com os outros. É na inteireza de seu amor pelo Mestre, que Maria Madalena vai ao túmulo de
Jesus no primeiro dia da semana, ao alvorecer, enquanto ainda estava escuro (cf. Jo 20,1).
Corajosa e destemida, ela é a primeira a observar o túmulo vazio. Sua atitude mostra para os
discípulos da comunidade que só o amor pode vencer o “medo”39 que tinham dos judeus.
Maria possui uma atitude que se apresenta como uma declaração a favor de Jesus (cf. Jo 7,13;
9,22; 12,42; 19,38).
38
Elizabeth Fiorenza resgata as mulheres como as discípulas da hora da paixão. “Ao passo que os lideres varões
e discípulos não compreendem esse messianismo sofredor de Jesus, recusam-no e por fim abandonam Jesus; as
discípulas mulheres, que seguiram Jesus desde a Galiléia até Jerusalém, surgem de repente como as verdadeiras
seguidoras (akolouthein) de Jesus; que compreenderam que o seu ministério não era governo e glória régia, mas
diakonia, „serviço‟ (Mc 15,41). Surgem, assim, as mulheres como as verdadeiras ministras e testemunhas
cristãs” (FIORENZA, As origens, p. 10).
39
Esse “medo” evidencia a situação da comunidade joanina em relação à sinagoga (cf. Jo 9,22). Cf. KONINGS,
Evangelho, p. 406.
40
CNBB, Uma Igreja, p. 102-103: “Enquanto os homens, assustados, se escondem, em Maria Madalena o amor
vence o medo: ela procura, acha, vê, ouve; acredita. Recebe a missão de, por primeira, anunciar a ressurreição
aos discípulos. Com sua atuação e palavra, os evangeliza em momento de crise; com razão será chamada, mais
tarde, „apóstola dos apóstolos‟. Desde as origens, que seria da Igreja se as mulheres não fossem tão decididas,
dedicadas e atuantes? Em João, todas as mulheres que entram em cena têm papel altamente positivo”.
41
MARTINI, O Evangelho, p. 109.
116
Identificando-se como uma seguidora fiel do Senhor, Maria Madalena possui em
seu ser o registro da voz e da vida daquele que incansavelmente procurava. Por isso, ao ser
chamada pelo nome pelo Ressuscitado, reconhece-o de imediato. E, com o mandato de ir aos
irmãos para lhes anunciar o que Jesus lhe diz, torna-se uma das maiores testemunhas do
Ressuscitado42.
Ela vê Jesus após a sua morte e ressurreição. Tendo sido capaz de atravessar a morte
junto com ele, e dentro de si, é a primeira a vê-lo, o que a torna a testemunha mais
importante de sua ressurreição, colocando-a no papel da “apóstola dos apóstolos”43.
Tendo, portanto, Maria Madalena encontrado esse único amável, ela convoca, por
assim dizer, todas as partes de seu amor [...], para consagrá-las a seu único; junta
toda a sua força no meio do coração, e admirando infinitamente esse novo amante,
ela busca, para ele um novo fundo de amor que não tenha limites 44.
Maria Madalena é intimada pelo Senhor a não retê-lo. É preciso fazer ecoar a boa-
nova de Jesus para os irmãos. É convocada pelo Ressuscitado a sair daquele lugar para
anunciar aos discípulos que o Cristo vive. Ao dirigir-se aos irmãos da comunidade, Maria
Madalena faz uma verdadeira profissão de fé. A “discípula amada” viu o Senhor e anunciou
aos discípulos o que ele lhe disse. Sua participação na comunidade é vital, pois leva dentro de
si aquele que tanto ama. Para Maria Madalena, ficou claro que Jesus venceu a morte e que ele
não está ausente. O anúncio que leva faz dela uma apóstola dos demais discípulos. Maria
Madalena faz a nova comunidade nascer de novo. Ela é um sinal do Ressuscitado, que integra
os irmãos e irmãs da comunidade. Gange lembra que,
42
Cf. O‟COLLINS, Gerald; KENDALL, Daniel. Mary Magdalene as Major Witness to Jesus‟ Resurrection.
Theological Studies, Washington, n. 48, p. 631-646, 1987.
43
BOGADO, Maria Madalena, p. 139.
44
RILKE, O amor de Madalena, p. 26.
45
GANGE, Françoise. Jesus e as mulheres. Petrópolis: Vozes, 2007. p.183
117
4.5. Conclusão
5.1. Introdução
Portanto, os cristãos têm agora nas mãos, como em seu tempo esteve nas mãos de
Cristo, a abertura do homem ao mundo de Deus. A aliança do ser humano feita com Cristo é
mais que um poder, é uma responsabilidade, pois seu agir tem uma transcendência na esfera
do divino. A presença do divino no mundo fica totalmente condicionada à comunidade cristã,
aberta sempre ao contínuo incremento dos seres humanos que creem e praticam os
mandamentos de Jesus.
119
A Igreja é marcada e selada pela identidade de Jesus. Assim, os discípulos e as
discípulas são identificados com o agir próprio de Jesus. Jesus disse: “... aquele que crer em
mim fará também as obras que eu faço; ele fará até obras maiores, porque eu vou para o Pai”
(Jo 14,12). Acolher a boa-nova de Jesus é abrir lugar ao Deus que age.
Jesus identifica o agir dos discípulos com o seu próprio agir. Não se trata de um
“modelo” a copiar exatamente, mas essas palavras são pronunciadas num contexto
que determina o caráter de iminência do Reinado. Jesus certamente terá proclamado
uma moral de exceção, mas ao mesmo tempo de sinergia. Pois o texto vai até o
ponto de declarar que o crente fará não as obras que Jesus fez, mas aquelas que Jesus
está fazendo: o verbo está no presente do indicativo, significando que, se Jesus está a
ponto de morrer, ele não cessará de agir para a glória de seu Pai. Ele terminou sem
dúvida sua missão na terra, mas sua obra continua, hoje ainda, através de seus
discípulos que exprimem seu agir 1.
Segundo João, o outro não é o ser humano em geral, mas o irmão na fé. Jesus
constitui sua comunidade, indicando-lhe a maneira de comportar-se num mundo hostil,
fornecendo aos discípulos e discípulas o modelo do amor que vai até o fim, sem reservas. “No
fundamento do desígnio eterno de Deus, a mulher é aquela na qual a ordem do amor no
mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz”2.
Ao crer no amor de Deus, o cristão pode exprimir a opção fundamental de sua vida.
No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá a vida um novo horizonte
e, assim, o rumo decisivo. Em seu Evangelho, João expressou este acontecimento
com as seguintes palavras: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu seu Filho
único para que todo o que n‟Ele crer (...) tenha a vida eterna” (3,16). Com a
centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo,
deu a esse núcleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de fato,
reza todos os dias com as Palavras do livro do Deuteronômio, nas quais sabe que
está contido o centro de sua existência: “Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o
único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua
alma e, com todas as tuas forças” (6,4-5). Jesus uniu – fazendo deles um único
preceito – o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no
livro do Levítico: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19,18; cf. Mc 12,29-
31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1Jo 4,10), agora o amor já não é
apenas um “mandamento”, mas a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao
nosso encontro3.
Sendo assim a Boa-Nova não comporta ensinamento sobre o ser humano diante
do ter, nem sobre o dinheiro, nem sobre o comportamento diante de seu cônjuge, nem enfim
sobre a vida em sociedade. O evangelista não ignora essas realidades da vida cotidiana. No
entanto, seu intento é diferente: quer chegar à radicalidade do agir humano. O exemplo do
1
LÉON-DUFOUR, Agir, p. 117.
2
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 29.
3
BENTO XVI. Carta Encíclica Deus é amor. São Paulo: Paulus, 2006, n. 1.
120
lava-pés continua sendo o ato fundador pelo qual a Igreja se constitui4.
Comprometer-se com o Cristo Jesus exprime o amor divino que está em cada
discípulo e discípula5. A Igreja deve deixar-se reger pelo amor de Jesus fazendo crescer em
seus discípulos e discípulas o amor de uns para com os outros. Só assim poderá ser um sinal
que atrai a todos para Cristo. “A Igreja como „comunidade de amor‟ é chamada a refletir a
glória do amor de Deus, que é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo”6.
Disse Jesus: “Como eu vos amei, vós também amai-vos uns aos outros. Nisto todos
reconhecerão que sois meus discípulos: no amor que tiverdes uns para com os outros” (Jo
13,34-35). No centro do agir da Igreja, impreterivelmente tem de estar o amor: amor que
constrói novas relações entre os membros da comunidade e que não deixa imperar as
diferenças existentes no poder. O amor nos une em comunidade e nos liberta das definições
pejorativas que resultam em exclusão. O amor transcende as barreiras, une, atrai e intensifica
a vida. O amor estabelece entre os discípulos e discípulas uma nova relação que supera todo
tipo de dificuldade (cf. Jo 20,17). As diferenças que dividem a comunidade deixam de existir,
quando existe amor.
A Igreja não pode tornar visível o amor de Deus ao mundo, senão quando ela
mesma o realiza sempre incansavelmente de novo. O relacionamento do amor se realiza
primeiro dentro da comunidade, pois a Igreja é comunhão no amor. Esta é a sua essência e o
sinal através do qual é chamada a ser reconhecida como seguidora de Cristo e servidora da
humanidade. O que une os discípulos e as discípulas fazendo-os se reconhecerem como
irmãos e irmãs é o novo mandamento. Obedientes a Jesus, como membros unidos à mesma
cabeça, os discípulos e as discípulas são chamados a cuidarem uns dos outros (cf. 1Jo 3,23).
No seio da comunidade humana em que vivem, os discípulos e as discípulas
manifestam sua capacidade de compreensão e de acolhimento, sua comunhão de vida e de
destino com os demais, sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e
bom. Assim, fazem expandir, de maneira simples, concreta e espontânea, sua confiança em
valores que estão para além dos valores correntes e terrenos. Sua esperança não está em
4
Jesus ao cingir-se com uma toalha, tomou o jarro com a bacia e pôs-se a lavar os pés dos discípulos. Todos
tiveram que aprender, como se estivessem começando do ponto zero, a trilhar o caminho de discipulado. Pedro
tornou-se a nossa voz: “Lavar os pés a mim? Jamais!” E Jesus lhe respondeu: “Se eu não te lavar, não poderás
ter parte comigo” (Jo 13,8). Todos os discípulos tinham ainda em seus pensamentos as relações entre os homens
em termos de importância e de poder. A partir deste momento, Pedro, juntamente com os outros, compreendera
que devia viver no amor de uns para com os outros, servindo os irmãos e as irmãs.
5
LA CALLE, A teologia, p.18: “Deus é amor e mandou seu filho ao mundo para que todo aquele que tem fé
nele se salve, guardando os seus preceitos, que encerram o mútuo amor dos fiéis, e dando testemunho da
salvação, mediante a sua palavra que procede do revelador e se amplia em compreensão por obra do Espírito”.
6
CONSELHO EPÍSCOPAL LATINO-AMERICANO. Texto conclusão da V Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano e do Caribe, Aparecida, 2007. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2007, n. 159.
121
qualquer coisa, mas no Cristo Jesus que é o Filho de Deus, o salvador do mundo (cf. Jo
4,29s.39-42).
A fé e o amor devem firmar-se na vida cotidiana e em meio às tribulações do
mundo (cf. Jo 15,19;16,33; 1Jo 3,13). “Aquele que diz: „Eu o conheço‟, mas não guarda os
seus mandamentos é um mentiroso e a verdade nele não está. Mas aquele que guarda a sua
palavra, nele o amor de Deus é verdadeiramente perfeito, e nisto reconhecemos que estamos
nele. Quem pretende permanecer nele deve também andar no caminho em que ele [Jesus]
andou” (1Jo 2,4-6)7.
Todo aquele que quer oferecer amor deve ele mesmo recebê-lo em dom. O ser
humano pode , como nos diz Jesus, tornar-se uma fonte de onde correm rios de água viva (cf.
Jo 7,37-38; 4,14). Para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da
fonte primeira e originária que é Jesus Cristo (cf. Jo 4,15), de cujo coração trespassado brota o
amor de Deus (cf. Jo 19,34).
No encontro pessoal com Jesus, a mulher samaritana tornou-se uma fiel seguidora
de Jesus. O encontro com o Senhor gera uma profunda transformação em todos aqueles que
não se fecham ao seu apelo. Com fé e amor, a mulher samaritana apontou para seus
conterrâneos o caminho do Cristo. Assim, não só ensina o que descobriu, mas faz também
com que os seus encontrem pessoalmente Jesus: “Vinde ver” (Jo 4,29). A fé profunda dos
7
SCHMAUS, Michael; GRILLMEIER, Alois; SCHEFFCZYK, Leo. História de los dogmas. Cuaderno 3a-b,
Madrid: Edica S.A., 1978. v. 3, p. 107.
8
ROCCHETTA, Carlo. Teologia da ternura: um “evangelho” a descobrir. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2006. p. 19.
9
CELAM, V Conferência, n. 31: “A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando
suas atitudes (cf. Mt 9,35-36). Ele, sendo o Senhor, se fez servidor e obediente até a morte de cruz (cf. Fl 2,8);
sendo rico, escolheu ser pobre por nós (cf. 2Cor 8,9), ensinando-nos o caminho de nossa vocação de discípulos e
missionários. No evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a Jesus pobre (cf. Lc 6,20;9,58),
e a de anunciar o Evangelho da paz sem bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro, nem no poder
deste mundo (cf. Lc 10,4ss). Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na
gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho. [...] A Igreja está a serviço de todos os seres
humanos, filhos e filhas de Deus”.
122
samaritanos é suscitada pelo encontro pessoal com Jesus. O amor com que a mulher
samaritana acolheu Jesus é para a comunidade dos discípulos de hoje o caminho para o
coração de Deus. O amor expandiu a vida dessa mulher ao fluir através dela.
A mulher é aquela que recebe amor para, por sua vez, amar. Mas não só ou antes de
tudo a relação esponsal específica do matrimônio. É algo mais universal, fundado no
próprio fato de ser mulher no conjunto das relações interpessoais, que nas formas
mais diversas estruturam a convivência e a colaboração entre as pessoas, homens e
mulheres. Neste contexto amplo e diversificado, a mulher representa um valor
particular como pessoa humana e, ao mesmo tempo, como pessoa concreta, pelo
fato da sua feminilidade. Isto se refere a todas as mulheres e a cada uma delas,
independentemente do contexto cultural em que cada uma se encontra e das suas
características espirituais, psíquicas e corporais, como, por exemplo, a idade, a
instrução, a saúde, o trabalho, o fato de ser casada ou solteira 10.
Esse amor leva a Igreja a ser sinal permanente do Cristo Jesus no mundo e
coloca-a a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas de Deus. Deste modo, “a Igreja,
que vive da presença permanente e misteriosa do seu Senhor ressuscitado, tem como centro da
sua missão o empenho de „levar todos os homens a encontrar-se com Cristo‟”11.
Maria Madalena, com seu amor, recebe em seu ser o Senhor Ressuscitado. Sua
vida torna-se um testemunho que remete ao mistério. O mandato que recebe do Ressuscitado
é imediatamente comunicado aos irmãos da comunidade. Sua adesão incondicional ao Senhor
estabelece na comunidade um novo relacionamento que está para além de toda materialidade,
de todo privilégio e de todo poder que divide. Em Maria Madalena, está o mistério do amor,
da vida, da entrega. Nela se espelha a Igreja, que se esforça para ser um anúncio vivo do
mandato do Senhor12. A riqueza da mensagem de Jesus Cristo dependerá da profundidade do
diálogo da Igreja com o Senhor e a comunidade se enriquecerá à medida que conseguir
meditar sobre os desafios, questionamentos e dons que a ela se apresentam.
10
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 29.
11
JOÃO PAULO II, Ecclesia, n. 68.
12
LIBANIO, João Batista. Olhando para o futuro: Prospectivas teológicas e pastorais do Cristianismo na
América latina. São Paulo: Loyola, 2003. p. 57: “O testemunho parece tocar as pessoas quando ele remete ao
mistério. Vendo alguém que vive dedicação incondicional ao irmão como Teresa de Calcutá ou D. Helder,
esbarramos num mistério de amor. Como é possível alguém viver assim? De onde lhe vem a força? Para que
aponta tal vida? Aflora nessas perguntas uma inquietação pelo mistério do amor, da vida, da entrega. Por aí o
testemunho consegue ainda falar às pessoas de hoje”.
13
MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo: cristologia em dimensões messiânicas. Petrópolis: Vozes,
1993. p. 70.
123
Madalena é, como a própria Igreja, libertada por Cristo da servidão aos demônios que
permeiam nosso mundo. Ao nos entregarmos a Jesus em sinal de gratidão, aguardando com
esperança ao lado do túmulo, mesmo quando tudo parece perdido, seremos recompensados
em um instante rápido, cheio de graça, quando no meio da escuridão, ouvirmos a sua voz
chamando o nosso nome.
A experiência de fé, encontro pessoal com Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida,
alimentará o processo de conversão dos filhos e filhas de Deus, dando um novo
sentido à existência, e fará sentir a profunda alegria de ser discípulo de Jesus na
comunidade e no testemunho do Reino de Deus14.
O modelo de Esposa apresenta uma relação amorosa profunda com Jesus Cristo,
relação de alteridade, que deixa em aberto a possibilidade de tensões provindas da
imperfeição da Esposa para com o Amor do Esposo, que bem corresponde ao caráter
histórico da Igreja, que vai aprendendo, exercitando e crescendo no Amor durante o
tempo de sua peregrinação terrena. Processo que inclui quedas e infidelidades. As
tentações que vêm da presença da Igreja no meio das várias culturas dos povos são:
o risco da mundanização, instalação, assumir a-criticamente os instrumentos
analíticos, etc., e colocam na Igreja como Esposa uma consciência de caminhar
desde a alteridade até uma comunhão com os critérios e valores do Esposo, e com
uma consciência da própria identidade como um Povo que só analogicamente pode
ser comparado aos outros povos da terra15.
14
CNBB, Introdução Doc. 72, letra d.
15
BUCKER, O feminino, p. 241-242.
124
O amor da esposa é um amor que não se retém para si, mas que se doa e se
entrega para a felicidade do outro.
A samaritana, mesmo sem nenhum preparo, mas fiel a Jesus Cristo, proclamou a
chegada do Messias àquela região. Após a cruz, Maria Madalena anunciou a ressurreição,
afirmando aos irmãos e irmãs: “Eu vi o Senhor!” (Jo 20,18). Nelas se deu um processo que
partiu do compromisso, da necessidade do testemunho e da coerência de vida. No agir da
mulher samaritana e de Maria Madalena se dava o agir do próprio Cristo Jesus.
O amor esponsal18 de Cristo pela Igreja incorpora numa única realidade os amores
que chegavam de fontes diferentes19. Cristo entrou na história e permanece nela como o
Esposo que se entregou a si mesmo. Entregar-se significa tornar-se um dom sincero, da
maneira mais completa e radical, pois “Ninguém tem maior amor do que aquele que se
despoja da vida por aqueles a quem ama” (Jo 15,13). Deste modo, por meio da Igreja, todos
os seres humanos, homens e mulheres, são chamados a ser “Esposa” de Cristo, salvador do
16
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 27.
17
Bento XVI, Deus é amor, n. 6.
18
O termo “esponsal”, em correspondência aos “ritos esponsais” dos quais deriva, significa responder,
prometer-se, oferecer-se, e evoca a imagem da doação a alguém ao qual se responde, se promete e se oferece.
19
BUCKER, O feminino, p. 179.
125
mundo. Nisto se exprime a verdade sobre o amor de Deus que nos amou primeiro (cf. 1Jo
4,19) e que, com o dom gerado por esse amor esponsal pelo ser humano, superou todas as
expectativas humanas: “... amou-os até o extremo” (Jo 13,1).
A Igreja torna-se a esposa de Jesus Cristo porque incorpora em seu agir o agir do
próprio Cristo20. E esse amor não se fecha na relação entre o esposo e a esposa, mas alcança
espaços cada vez maiores, porque é fecundo e não se limita por egoísmos partilhados. “O
autêntico amor de Esposa a Cristo revela-se no lançar os missionários nas fronteiras mais que
reprimi-los, em favorecer experiências desde a alteridade em vez de uniformizá-los”21. A
esposa ensaia sempre novos caminhos. A Igreja é uma comunidade de discípulos e discípulas
que respiram juntos um mesmo sonho, um mesmo desejo. Nesse sentido, a Igreja é “por
Cristo, com Cristo e em Cristo...”.
20
LÉON-DUFOUR, Agir, p. 153: “O ser humano encontra-se doravante tão profundamente unido a Deus que
sua ação se torna a ação de Deus mesmo, ou melhor, (...) a ação de Deus se torna a ação do ser humano”.
21
BUCKER, O feminino, p. 315.
22
BUCKER, O feminino, p. 307.
23
De acordo com Léon-dufour, “a palavra do Ressuscitado foi, muitas vezes, entendida como dirigida aos
„apóstolos‟ e, por extensão, a seus sucessores, os futuros ministros da Igreja. Ora, a estrutura relacional
Pai/Filho-Filho/discípulos opõe-se a tal interpretação institucional: cada vez que ela aparece em Jo, rege um
anúncio que, por meio dos discípulos daquele momento, concerne a todos os discípulos por vir. A palavra do
envio comporta outra implicação: do mesmo modo como o Pai permanecia sempre presente para Jesus, assim os
discípulos não estão nunca sozinhos no cumprimento de sua missão, pois „quem crê em mim fará as obras que eu
faço; e as fará até maiores, porque eu vou para o Pai‟ (Jo 14,12)”. LÉON-DUFOUR, Leitura v. 4, p. 169.
126
Em Maria Madalena24, a Igreja revê sua própria fé. Aos pés de Jesus na Cruz,
chora as suas penas. Ao mesmo tempo, deseja dar-lhe todo o seu amor porque só muito amor
pode libertá-la.
Quem é Jesus? De onde ele é? Onde ele mora? O que ele faz? Qual é a sua
missão? Como ele vive? Com quem ele vive? O que ele procura? Quem ele quer encontrar?
Qual é a sua vontade? São questões que muitos, e principalmente os discípulos e discípulas,
fazem a respeito de Jesus. Jesus vem ao encontro do ser humano para lhe comunicar e revelar
quem ele é. Por sua vez, o encontro da parte do ser humano se dá pela escuta da palavra de
Jesus. Palavra que transforma em discípulos e discípulas todos aqueles que a ouvem,
tornando-os íntimos de Jesus pela palavra. “Se alguém me ama, observará a minha palavra, e
o meu Pai o amará; nós viremos a ele e estabeleceremos a nossa morada” (Jo 14,23). Através
da sua palavra, encontra-se resposta para as questões que permeiam a existência do ser
humano. Muitos dos que viram, escutaram e seguiram Jesus confirmaram a sua fé. Fizeram de
seu ser o ser do próprio Cristo Jesus, pois fizeram de sua palavra uma ordem em suas
existências.
O significado último de toda a realidade, de todas as coisas, da vida humana está
24
No mundo semita, a pessoa é o seu nome. Dizer o nome de alguém significa elucidar a sua identidade. Assim,
no nome Maria Madalena ou Míriam de Mágdala estão expressas a missão e a vida dessa controvertida mulher
dos primeiros séculos do cristianismo. Qual outra Beruria do Judaísmo, Miriam de Mágdala incomodou os
discípulos homens da primeira hora e os judeus hostis ao cristianismo. Os Evangelhos canônicos a mencionam
doze vezes. Temos conservado o evangelho apócrifo de Maria Madalena, não reconhecido como inspirado por
uma parte dos cristãos – idéia que prevaleceu. Míriam é um substantivo composto de duas raízes, uma egípcia
(myr) e outra hebraica (yam). Myr significa a amada e yam, Deus (abreviação de Yavé). Maria significa então a
amada de Deus. Maria Madalena é a amada de Deus, ou melhor de Jesus. Outras raízes para Míriam provêm do
hebraico mar que significa amargo e o ugarítico mrym que, ao contrário, significa agraciada, excelsa. Assim,
Maria Madalena simboliza todo e qualquer ser humano que vive a eterna dualidade da vida: amargura e graça
divina. Alegria e amargura são os dias do ser humano sobre a terra. Depois da tristeza, vem a alegria. Na tristeza,
a alma chora. Na alegria, o ser humano sorri. Assim agiu a comunidade de Míriam de Mágdala no seguimento de
Jesus. Mágdala tem por sua vez origem no hebraico. Nesse substantivo estão unidos a preposição me que
significa da e o adjetivo gadol, em português, grande. Torre em hebraico se diz migdal. Maria é, portanto, a
Mulher da Torre, Aquela que guarda, a Guardiã dos ensinamentos de Cristo. A torre era, no mundo antigo, o
lugar que mais se sobressaía nas cidades. Cf. FARIA, Maria Madalena, p. 512. Lagrange e outros chamam a
atenção sobre a etmologia popular que, para o sentido que se dava de fato ao nome, é mais importante: ele
distingue entre o nome hebraico Míryam e o nome posterior Maria(m). Para ele, o nome Míryam era
provavelmente relacionado com rā’āh (ver); Míryam teria significado „vidente‟ ou „aquela que faz ver‟; de fato,
ela é chamada de profetisa (cf. Ex 15,20; também Gn 22,2.14 onde São Jerônimo traduz mōriyyāh por terra
visionis) e de vidente, nome com o qual, nos tempos antigos, indicavam-se os profetas (cf. 1Sm 9,9). No tempo
de Jesus, quando se falava aramaico e se dizia Máryam em vez de Míryam, dava-se a esse nome outro sentido,
sendo ele relacionado, sem dúvida, com o aramaico mārā’ (Senhor); Maryam teria, portanto, signifcado
soberano; [...] Cf. BARDENHEWER, O. Der Name Maria. In: Dicionário enciclopédico da Bíblia. 2.ed.,
Petrópolis: Vozes, 1977. p. 946-947. Cf. também NOLLI, Evangelo secondo Giovanni, p. 711,720,727.
127
na dependência de Deus. É a palavra criadora de Deus que dá sentido à vida humana.
As palavras de Jesus, que o ser humano escuta nas Escrituras, e a sua realidade
pessoal constituem o sentido luminoso e edificante de toda a experiência humana.
A palavra de Jesus não se refere apenas a Israel, mas a todos os humanos, o que
confirma a escolha de termos como “os humanos”, “todos aqueles que”, “a luz” que
está presente no mundo (1,9s). “Fazer a verdade” não significa praticar
honestamente a moral prescrita, mas acolher o atrativo que exerce a palavra de Deus
dirigida a todo o ser humano na criação ou na história de cada povo 25.
A palavra que Jesus dirige à mulher samaritana faz com que resgate o que é
permanente: a vida, a justiça, a graça, a salvação, a liberdade, o perdão. Ela é chamada a
acreditar na palavra que o Senhor lhe dirige: “Acredita-me, ó mulher...” (Jo 4,21). À medida
que escutava a palavra de Jesus, a samaritana bebia de uma água pura. Toma em seu ser essa
palavra. Faz de seu ser a morada do Cristo Jesus. E os samaritanos, levados pelas palavras
daquela mulher, aceitaram e professaram Jesus Cristo como o salvador do mundo. Confiaram,
então, na palavra do revelador Jesus. Assim, a fé é exigida não somente dos discípulos e das
discípulas que encontraram, ouviram e receberam Jesus, mas também de todos os que
continuam na Igreja esta atividade de ouvir e receber a Palavra, pondo-se em sintonia com
Jesus, continuamente presente na Igreja.
Maria Madalena reconhece o Senhor no jardim, quando houve Jesus chamá-la
pelo nome. E exclama: “Rabuni!” (Jo 20,16). Imediatamente, a intimidade, antes rompida pela
morte, torna-se presente: Maria Madalena reconhece Jesus vivo. Sua fé alcança plenitude na
palavra que o Cristo ressuscitado lhe entrega para dizer aos irmãos e irmãs da comunidade. A
intimidade que Maria Madalena adquiriu pela palavra de Jesus quando o seguia junto com os
discípulos tornou-se agora, no encontro com o Ressuscitado, algo inseparável de seu ser.
Mesmo assim, a palavra de Jesus não foi compreendida pelos discípulos. Também
Maria Madalena não a compreendeu. Os ensinamentos de Jesus sobre a Escritura não
penetraram no coração daqueles que o seguiram e o ouviram durante o seu ministério
terrestre. Chama a atenção o comentário do evangelista: “Com efeito, eles ainda não tinham
compreendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20,9).
25
LÉON-DUFOUR, Agir, p. 112.
128
quando não sabemos mais reconhecer a presença de Deus nas situações de nossa
vida, a Escritura deveria ajudar-nos a fazer o discernimento dos sinais e a ver como
em tantas pequenas coisas, que nos haviam fugido, a presença do Ressuscitado
estava se manifestando. Sublinha assim o valor da leitura assídua e da compreensão
da Escritura, para iluminar com a glória do Ressuscitado a vida da Igreja26.
A palavra de Jesus revela paulatinamente sua pessoa diante de seus amigos, diante
do mundo. A palavra do Cristo ressuscitado levada por Maria Madalena aos discípulos
estabelece na comunidade uma nova relação entre seus membros. O evento salvífico na carne
se torna Palavra e anúncio. É esta palavra que os torna íntimos do Cristo. Em Cristo, tornam-
se irmãos e irmãs uns dos outros.
A Igreja encontra Jesus na Sagrada Escritura, Palavra de Deus, fonte de vida e
centro de sua ação evangelizadora. Desconhecer esta Palavra é desconhecer Jesus Cristo e
renunciar a anunciá-lo. É fundamental e indispensável o conhecimento profundo e vivencial
da Palavra de Deus, que é alimento da fé para toda a Igreja. As palavras de Jesus são espírito e
vida (cf. Jo 6,63). A mulher samaritana, com seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,20-24),
graças ao encontro com Jesus, foi iluminada e recriada porque se abriu à experiência da
misericórdia do Pai, que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Ela abriu o seu coração
para o próprio Cristo, caminho de crescimento na “maturidade conforme a sua plenitude” (cf.
Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e irmãs e de compromisso
com a sociedade27.
Juntamente com outras mulheres, a mulher samaritana e Maria Madalena são
consideradas por João Paulo II como “custódias da mensagem evangélica”28. Nelas atua a
palavra de Jesus, fazendo-a chegar a muitos irmãos e irmãs. A samaritana e Maria Madalena
sentem-se amadas de “amor eterno”, por um amor que encontra direta expressão no próprio
Cristo. “Nesse dia compreendereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Quem
tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama, será amado por meu
Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,20-21). E ainda: “Se alguém me ama,
guardará minha palavra e meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada”
(Jo 14,23). Esse amor torna essas mulheres doadoras de Deus. Elas se tornam anunciadoras
das palavras de Jesus, que são palavras de vida eterna.
26
MARTINI, O Evangelho, p. 110.
27
Cf. CELAM, V Conferência, n. 249.
28
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 15.
129
relacionamento entre os seus discípulos e discípulas: “Eis o meu mandamento: amai-vos uns
aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). No amor, tornam-se irmãos e irmãs uns dos outros
(cf. Jo 20,17b). Com isso, Jesus critica o exacerbado formalismo institucional que aprisiona o
ser humano em um baú de leis e rituais que devem ser cumpridos radicalmente. Antes, o amor
deve ser o cumprimento do mandato do Senhor.
Segundo Libanio,
A fé cristã mantém uma tensão originária com a instituição. De um lado, toda fé que
quer ser vivida em comunidade ao longo do tempo e espaço necessita de instituição.
Exigência histórico-antropológica. Sem a instituição a fé se desfaria em pedaços
religiosos até desaparecer no olvido da história. Por outro lado, a posição de Jesus
extremamente crítica ao formalismo das instituições, à perda do espírito da letra, à
tentação de o poder na comunidade copiar os esquemas profanos de dominação
deixou marca profunda na fé cristã29.
Cumprindo o mandato do Senhor, a Igreja deve ser a guardiã da verdade que salva
e defende os direitos contra toda tentativa de alienação e destruição. Esta defesa não pode
acontecer recorrendo-se à arrogância ou a cálculos de poder, mas a partir de um coração que
ama. Deve manifestar-se em uma forma de amor desarmante como em Jesus no momento de
sua paixão: “Se eu falei mal, mostra em que; se falei bem, por que me bates?” (Jo 18,23) e
não configurar-se como ostentação de força ou de autoritarismo30. A maneira como a mulher
samaritana anuncia o Cristo aos habitantes de Samaria – “Vinde ver um homem que me disse
tudo o que eu fiz. Não seria ele o Cristo?” (Jo 4,29) – evidencia um amor que convida aquele
povo a ver em Jesus, o Cristo enviado pelo Pai, salvador do mundo. O anúncio da samaritana
é corajoso e de tal leveza que o povo de Samaria compreende o mistério que nela se revelara.
Leva os seus conterrâneos para o Cristo pela cordialidade, pelo sacrifício, pela pureza íntegra
de seu coração, pela serenidade, pela alegria. Tudo isso brota da fé, que serena o coração e
capacita para anunciar a boa nova do amor de Deus. De maneira que, tornando-se discípula de
Cristo, a samaritana se converte cada dia mais sob a influência deste amor de Cristo que a
impulsiona a servir e a levar a salvação a seus semelhantes.
A Igreja é chamada a confirmar, renovar e revitalizar a novidade do evangelho
arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo,
que desperte discípulos e missionários. Para isso, não é tão necessária a dependência de
29
LIBANIO, Olhando, p. 198.
30
O exercício da autoridade nem sempre foi um serviço desempenhado de forma evangélica. Na história da
Igreja, não faltou a crítica severa contra o exercício abusivo da autoridade, feita por grandes santos. Santa
Catarina de Sena, depois de dizer que os bispos deviam ser obedecidos, sejam eles bons ou maus, tem também a
coragem de censurar os seus vícios. “Não só não dão aos pobres o que estão obrigados, mas tiram deles por
simonia e ânsia de dinheiro. (...) amam a seus súditos tanto quanto os possam saquear, e não mais” (SANTA
CATARINA DE SENA. O diálogo. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 255).
130
grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição
e novidade, como discípulos e discípulas comprometidos com o Cristo Jesus31. Por isso, é
preciso coragem para romper com estruturas que simplesmente não permitem o anúncio da
boa-nova de Jesus Cristo. A fé gera coragem porque é a certeza de apostar em Deus.
Não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um
elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a
adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em
alguns sacramentos, à repetições de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou
crispados que não convertem a vida dos batizados. Nossa maior ameaça é o
medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente tudo
procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando
em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que
não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo
encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida
e, com isso, uma orientação decisiva32.
Na mulher samaritana, a Igreja se quiser ser fiel ao Cristo Jesus e amada por ele
deve ser reconhecedora de seus limites e barreiras. Deve se perceber como pessoa pecadora
com seu esposo Jesus Cristo. “Nesse amor incondicional, o apelo da conversão continua, mais
que o juridicismo do poder que impõe, ou da autoridade que ameaça pela punição, ocorre a
benevolência da vivência da conversão como linguagem que fala e responde amor”33.
Enquanto a Igreja estiver cativa do pecado, a verdade divina torna-se inacessível a ela. A
partir do momento em que se reconhecer pecadora, a luz penetrará em seu interior.
Assim, a Igreja, se quiser fazer a vontade de Deus, deve se perceber num processo
constante de conversão. Cada comunidade de discípulos e discípulas de Jesus deve ser o
espaço que favoreça o crescimento e o amadurecimento da fé, estimulando um processo de
conversão. Neste processo, a Igreja toma consciência de que não é do mundo mas está no
31
Elisa Estevez afirma que “a maioria das tradições presentes na Igreja do século I acentuaram o papel
preponderante dos Doze (especialmente o de Pedro) como mestres autorizados que garantiam a fidelidade com
as origens. A tradição do discípulo amado relativiza esta função magisterial em favor de uma concepção que
acentua, por seu lado, a importância insubstituível do discipulado. A garantia de estarem enraizados firmemente
na pessoa de Jesus é dada não por elementos extrínsecos – por exemplo, „mestres autorizados‟ – mas pela
qualidade do seguimento que se tiver. É significativo o fato de que no Quarto Evangelho não encontramos o
termo apóstolo. Ele foi substituído pelo termo discípulo. Todas aquelas pessoas que se encontraram com Jesus e
estão dispostas a caminhar atrás dele tornam-se fiadores da tradição do Ressuscitado” (ESTEVEZ, A mulher, p.
69-70).
32
CNBB, Introdução Doc. 72, letra i.
33
BUCKER, O feminino, p. 57.
34
RETAMALES, Santiago Silva. Os discípulos de Jesus: relatos e imagens de vocação e missão na Bíblia. São
Paulo: Paulus, 2007. p. 132.
131
mundo e existe para o mundo. É uma comunidade de discípulos e discípulas, sempre fiel e
comprometida com o Cristo Jesus no anúncio e testemunho da verdade.
A Igreja em sua identidade conformada com a do Cristo Jesus não pode isolar-se
em seus edifícios construídos por mãos humanas. Ela deve ir ao encontro do outro, mantendo-
se aberta ao diálogo revelador que encurta distâncias e supera as diferenças que dividem os
cristãos (cf. Jo 4,28-30.38-40). É essa a Igreja universal que o Senhor Jesus anuncia à mulher
samaritana.
Em Jesus, a mulher samaritana chama todos os homens e mulheres que podem dar
a Deus o nome de Pai, cuja adoração é inseparável da união ao Filho de Deus, pelo
intermediário que é o Espírito de Deus. Ficam substituídos os sacrifícios antigos pelo ato
essencial da adoração, que brota do coração humano e pode atingir, por toda a parte e sempre,
o amor do Pai dos céus.
A missão da Igreja supõe sair das fronteiras, mas não por uma missão
conquistadora. Supõe um diálogo Igreja-mundo, que caminha para a unidade, comunhão filial
e fraterna. Em atitude de abertura à unidade, fruto de autêntica comunhão com o Senhor
ressuscitado, a Igreja, em cada um de seus membros, descobrirá, através da própria
experiência espiritual, que o encontro com Jesus Cristo vivo é “caminho de conversão, de
comunhão e de solidariedade”36. “O Espírito, na sua ação, não impõe nem violenta a
liberdade. Por exemplo, na Encarnação pede o consentimento de Maria. O jeito do Espírito
equilibra a unidade e a missão na colaboração e responsabilidade da pessoa, e não na
imposição”37. Assim, a mulher samaritana, imbuída do Espírito, anuncia a seu povo,
chamando-o para ir ver o homem que lhe tinha dito tudo o que fez (cf. Jo 4,29)38.
A Igreja, no serviço que presta ao mundo, não pode usar de métodos de
constrangimento e de repressão que o Evangelho reprova. A pior contrapartida do poder é a
faculdade de abusar dele. Como Jesus, a Igreja deve se mostrar incansável no acolhimento a
35
JOÃO PAULO II, Mulieris. n. 15.
36
Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia, n. 7.
37
GALOT, J. L’Esprit d’amour. Bruges: Desclée de Brouwer, 1959. p. 69. Apud BUCKER, Bárbara P. O
feminino da Igreja e o conflito. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 264.
38
CELAM, V Conferência, n. 14: “Aqui está o desafio fundamental que afrontamos: mostrar a capacidade da
Igreja para promover e formar discípulos e missionários que respondam à vocação recebida e comuniquem por
toda parte, transbordando de gratidão e alegria, o dom do encontro com Jesus Cristo”.
132
todos aqueles que a procuram. Também como Jesus, não fará nenhum pacto com o pecado
nem com o erro. Antes, com amor e firmeza, deve fazer-se próxima do pecador para que este
se redima e comece vida nova. O acolhimento e a ternura se fazem encorajamento, força,
crédito, esperança, emergindo as potencialidades do bem encerradas no coração de todo ser
humano.
A partir do evangelho que recebeu e que anuncia, a Igreja não pode mais admitir
discriminações, nem exclusões, como uma interpretação equivocada da Lei permitia a alguns
grupos judaicos fazer. A mulher é chamada a tornar-se discípula do reino de Deus assim como
o homem, e cotestemunha com ele da salvação messiânica. As palavras de Jesus e as suas
obras exprimem sempre o respeito e a honra devidos à mulher39. A partir de Jesus, as
mulheres são plenamente respeitadas e valorizadas como adultas, iguais aos homens na
dignidade e na responsabilidade, no acolhimento e no anúncio a todos da boa-nova da Páscoa.
Por isso, Maria Madalena, ainda hoje, anuncia o Cristo Ressuscitado para o mundo todo, em
toda parte onde se celebra a Páscoa na liturgia católica40.
A natureza fundamental da identidade cristã como vida em Cristo deixa claro que o
Cristo, o ungido no Espírito, não pode se restringir à pessoa histórica de Jesus e nem
a determinados membros escolhidos da comunidade, mas representa todos aqueles
que, bebendo do mesmo Espírito, participam da comunidade dos discípulos 41.
Isto leva a Igreja a uma profunda reflexão, para ver se o amor está na base de sua
organização como critério decisivo na distribuição de tarefas e serviços. O amor gera a
fraternidade, a solidariedade, a igualdade. E isso se manifesta não em discursos bem
elaborados, mas em gestos concretos que a tornam crível42. A missão da Igreja também não
está a serviço de estratégias sociais-ideológicas, mas é atuação aqui e agora daquele amor de
que o ser humano sempre tem necessidade.
Segundo Lúcia Weiler,
uma mulher, marginalizada por ser mulher e por ser samaritana, torna-se
evangelizadora dentro de sua própria cultura e a partir dela. Daí surge a suspeita
hermenêutica da valorização do Evangelho, da boa-nova de Jesus Cristo, já presente
39
Cf. JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 13.
40
É interessante observar como a Igreja, atualmente, pede para ouvir as palavras que provavelmente os
discípulos varões no começo desprezaram. A seqüência da celebração eucarística do domingo de Páscoa, que é
cantada logo antes do Aleluia e da leitura do Evangelho, insiste dizendo: “Responde pois, ó Maria: no teu
caminho, o que havia?” Ao que ela responde com seu testemunho vibrante: “Vi Cristo ressuscitado, o túmulo
abandonado. Os anjos da cor do sol, dobrado ao chão o lençol... O Cristo, que leva aos céus, caminha à frente
dos seus!” Cf. MISSAL DOMINICAL, 4.ed. São Paulo: Paulus, 1995.
41
JOHNSON, Aquela que é, p. 238.
42
JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 27: “Em cada época e em cada país encontramos numerosas mulheres
„perfeitas‟ (cf. Pr 31,10), que – não obstante perseguições, dificuldades e discriminações – participaram na
missão da Igreja. Basta mencionar aqui Mônica, mãe de Agostinho, Macrina, Olga de Kiev, Matilde de Toscana,
Edviges da Silésia e Edviges de Cracóvia, Elizabeth de Turíngia, Brígida da Suécia, Joana d‟Arc, Rosa de Lima,
Elisabeth Seaton e Mary Ward”. Poderíamos citar ainda Irmã Dulce, Madre Tereza de Calcutá, etc.
133
nas culturas43.
Isto deve ajudar a Igreja a responder uma questão: até que ponto, no contexto
eclesial em que vive, não se está impondo uma maneira de expressar a fé vinculada a uma
determinada cultura e determinado tempo? “As atuações históricas da Igreja podem ter
„encapsulado‟ o Cristianismo e criado barreiras para a missão de novos tempos e culturas.
Impõe-se o discernimento de valores autênticos e elementos acidentais”45.
43
WEILER, Jesus e a Samaritana, p. 102.
44
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994. p. 145.
45
BUCKER, O feminino, p. 315.
134
pelos emigrados das cidades assírias (cf. 2Rs 17). Com o decorrer do tempo, os colonos
pagãos introduziram na religião os seus costumes. Mas, no regresso do cativeiro da Babilônia,
os verdadeiros israelitas recusaram-se a reconhecer, nesta população amalgamada, a raça do
povo de Deus. Excomungados, os samaritanos reagiram, levantando sobre o monte Garizim
um templo rival do de Jerusalém. Portanto, os samaritanos e os judeus, vizinhos no espaço, ou
pelas doutrinas, ou porque prosseguem um mesmo fim, por razão da proximidade de conflitos
de interesses, de idéias ou de métodos, estão expostos a entrar em contínuos atritos.
A mulher samaritana sublinha a diferença com os judeus ao dizer: “Como? Tu,
sendo um judeu, tu me pedes de beber a mim uma mulher samaritana?” (Jo 4,9). Jesus, um
judeu, rompe com essa diferença e integra aquela mulher à comunidade dos discípulos.
Mesmo sabendo que os judeus ignoram os samaritanos, a mulher é impelida para o diálogo
que apagará todo tipo de discriminação.
A samaritana mostra que, em seu cotidiano, já tem certo conhecimento do que ela
pode fazer e não pode fazer. Tudo o que faz se traduz em termos práticos de utilidade, mesmo
que seja para a própria vida espiritual, ou para o bem dos outros. Por isso interroga Jesus:
“Senhor, tu não tens sequer um balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa água
viva? Dá-me essa água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais vir aqui tirar
água” (Jo 4,11.15). Segundo Martini,
“a samaritana é uma pessoa, que tendo já feito uma certa carreira e tendo calculado o
que se pode fazer e o que não se pode fazer, traduz tudo em termos práticos de
utilidade, ainda que este pragmatismo seja talvez endereçado à realização da
vantagem máxima para a Igreja, ou para a própria vida espiritual, ou para o bem dos
outros. Ela vive em termos de dar e receber; o seu espírito está preso numa certa
gaiola institucional, e por isso tudo é traduzido em termos de sucesso apostólico e
ascético, pastoral e pessoal: trata-se então de adquirir novas clarezas de idéias, novas
intuições, para si e para os outros, mas deixando de lado o que é o dom e o entregar-
se à Palavra para além de todas as vantagens pessoais”46.
uma coisa é o dever da claridade dogmática, sóbria, humilde, pronta para o diálogo
e, se necessário, a novas compreensões do depósito da fé; outra coisa é a cegueira ou
a imposição pré-constituída de quem não ouve ou não quer ouvir, só porque – quase
sempre – não tem a coragem de questionar-se e vê com suspeita toda hipótese
diversa da sua”47.
O dogma pode se tornar, como muitas vezes tem sido, uma doutrina meramente
46
MARTINI, O Evangelho, p. 19.
47
ROCCHETTA, A teologia da ternura, p. 18.
135
humana de muitos preceitos que não libertam o homem de sua escravidão48. Jesus ensina à
mulher samaritana que a salvação vem dos judeus. Faz isso oferecendo-lhe a capacidade de
refletir sobre aquilo que crê e de fazer profundas experiências desse ensinamento49. As ações
da samaritana mostram o quanto não está vivendo de acordo com os mandamentos de Deus.
Por isso, em vez de acrescentar uma nova pedra a essas “torres de babel”, a Igreja
pode todo dia tirar uma. Para isso deve imbuir-se do espírito de Jesus Cristo como a
samaritana o fez. Deve esforçar-se para ser o meio de entendimento entre os seres humanos.
Deus não pode ser confinado aos limites dos sistemas religiosos. Jesus foi e é uma presença
de Deus através da qual homens e mulheres entram no reino de Deus, um reino que
transcende toda fronteira religiosa. “O cristão é chamado a ser uma parábola viva do
seguimento de Cristo. Seu testemunho terá mais importância do que o rito e a estética
religiosa”50.
Nesta época em que os progressos científicos, encurtaram as distâncias entre os
habitantes do planeta, oferecendo facilidades nunca imaginadas de comunicação e de
conhecimento, a sociedade é tomada por uma reação de individualismo, no qual as raças, os
povos e nações, os partidos se encolhem ainda mais em si mesmos. Na sociedade neoliberal
em que vivemos, tudo se transformou em descartável, renovável, questionável... As estruturas
de outrora, instituições e formas de expressão religiosa já não conseguem convencer ou
perderam o autêntico sentido. Este parece esgotado, escondido ou vazio. Homens e mulheres
exigem viver cada dia os direitos humanos fundamentais com maior justiça e respeito, e os
valores cristãos com autenticidade. A Igreja é chamada a partir da comunhão e da
solidariedade a combater todo tipo de egoísmo e individualismo que impede um encontro
verdadeiro com o Cristo Jesus, barreiras que impedem as relações entre os seres humanos.
Jesus, ao dizer a Maria Madalena – “Não me retenhas” e “...vai ter com os meus
irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai, que é vosso Pai, para meu Deus, que é vosso
Deus” (Jo 20,17) –, evidencia uma nova relação entre os membros da comunidade. Leva-a a
entender que nem ela e nem os discípulos podem detê-lo. É preciso sair do medo e da
estagnação que estão impedindo sua Palavra, sua vida plena, de se irradiar pelo mundo.
Principalmente, Maria Madalena, a primeira a encontrar o Cristo ressuscitado, deve suscitar
48
Os objetivos a que servem essas reivindicações visam a permitir que determinada instituição afirme que
somente ela possui a verdade e sugerir que quem não faz parte dessa comunidade específica de fé está perdido
nas trevas de seus próprios erros. Essas reivindicações de poder aumentam a pressão para converter as pessoas a
essa instituição, oferecendo, aos pretendentes à conversão, a recompensa de uma salvação indisponível a quem
não fosse um verdadeiro fiel ou não participasse da verdadeira Igreja.
49
Crer significa não uma ortodoxia dogmática, mas uma adesão prática e fiel a Deus e sua aliança e a Cristo.
50
LIBANIO, Olhando, p. 234.
136
nos outros, agora seus irmãos51, a coragem para anunciar que Cristo não está morto, mas que
está vivo. Maria Madalena, ao compreender-se a si mesma, recebe a manifestação de Jesus
Cristo ressuscitado e é impelida a sair de seu “egoísmo” para animar os seus irmãos. “Sua
experiência da ressurreição é também a vitória interior sobre o apego a uma fase superada. A
necessidade de persistir fecha para a vida nova. O impulso para o anúncio abre a vida nova”52.
Sua vida e sua dedicação ao Senhor iluminam toda a Igreja, anunciando que aquele que
enviou Jesus e para o qual Jesus vive, em quem Jesus põe toda a sua segurança, em quem está
o fundamento de sua missão e, portanto, da sua coragem no meio das oposições, é agora o
“Pai nosso”53.
Também, internamente na Igreja, muitos irmãos e irmãs que receberam a mesma
vida em Deus a partir da palavra de Jesus não hesitam, por divergências de ordem secundária,
em se tratarem como inimigos. Há nisso uma escandalosa relação que os verdadeiros
discípulos de Jesus Cristo devem exterminar (cf. 3Jo 9-11). O discípulo escolhe permanecer
em Jesus e identifica-se com ele. Por isso pode ter, com relação a seu Pai, o mesmo abandono
e a mesma confiança que Jesus teve. Assim, na fé e no anúncio, o discípulo sela a sua vida no
Cristo. Jesus Cristo está no Pai e, por isso, o discípulo está junto com ele.
Os que covardemente desertaram e fugiram foram chamados à coragem de
anunciá-lo com suas próprias vidas. Judeus, acorrentados em seus interesses grupais, foram
chamados a se integrarem ao Cristo. Mulheres foram chamadas para a humanidade plena e
para o discipulado pleno. Pessoas que tinham medo foram chamadas para viver
corajosamente. Excluídos foram chamados para a dignidade humana.
5.7. Conclusão
51
Maria Madalena deve levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra seu íntimo
ao outro, de tal modo que se tornem irmãos uns dos outros não por imposição, mas como resultado de sua fé que
se torna viva pelo amor.
52
SEBASTIANI, Maria Madalena. p. 225-226.
53
CELAM, V Conferência, n. 382. “Deus amor é Pai de todos os homens e mulheres, de todos os povos e raças.
Jesus Cristo é o Reino de Deus que procura demonstrar toda a sua força transformadora em nossa Igreja e em
nossas sociedades. Nele, Deus nos escolheu para que sejamos seus filhos com a mesma origem e destino, com a
mesma dignidade, com os memos direitos e deveres vividos no mandamento supremo do amor”.
137
A Igreja deve estar disponível para lavar os pés dos irmãos e irmãs. É o gesto de
seu acolhimento a todo aquele que vier ao seu encontro. O seu poder e a sua autoridade são
justamente o serviço a cada um de seus irmãos como fez o próprio Cristo Jesus, que veio para
servir e não para ser servido. Como uma esposa, ela se entrega ao seu esposo Jesus Cristo. Vai
conformando sua vida à vida do Cristo ressuscitado. Não se fecha num relacionamento
egoísta, mas se lança para fora, proclamando o esposo Jesus Cristo para toda a humanidade.
Quanto mais a esposa proclama o esposo Jesus Cristo mais forte se torna a sua união. A Igreja
é edificada pela palavra de Jesus encarnada na vida de cada discípulo e de cada discípula.
Torna-se íntima de Jesus ao deixar se fazer segundo a palavra de Jesus.
A Igreja deve esforçar-se para levar todas as pessoas a um encontro pessoal com o
Cristo Jesus, por meio do anúncio e de seu testemunho. Para isso deve manter-se aberta ao
diálogo que revitaliza e atualiza em seu caminho os ensinamentos do Cristo, diálogo que
aproxima os seres humanos uns dos outros fazendo-os “beber da água que se torna neles uma
fonte que jorra para a vida eterna” (cf. Jo 4,14). Ela não deve deter egoisticamente a verdade
que lhe é comunicada, mas anunciar a todos a alegria do Cristo que vive no meio da
humanidade. Deve romper com qualquer tipo de barreira e limitação que impedem a palavra
de Jesus de chegar aos diversos lugares. O anúncio que brota da fé deve ser feito de maneira
serena, cordial, humilde e sem imposições. Sua fé não será uma ortodoxia dogmática, mas
uma adesão prática e fiel a Deus e a Cristo. Deve ter a coragem de dialogar com o diferente,
rompendo com a arrogância que, muitas vezes, torna-se motivo de divisão e separação.
Também para a vivência da fé e do anúncio evidenciada na mulher samaritana e
em Maria Madalena, a Igreja deve olhar-se a si mesma, reconhecendo-se pecadora e em
constante processo de conversão. Nesse processo, a Igreja torna-se um sinal vivo e verdadeiro
do Cristo Jesus, que vive no meio da humanidade.
138
CONCLUSÃO
A comunidade cristã deve empenhar-se para viver de modo mais encarnado a fé.
Para isso sublinha-se que, para corresponder ao Deus da vida que se revelou em Jesus Cristo,
deve-se lutar para transformar o mundo em algo mais digno para o ser humano, pois isto é o
que corresponde ao plano de amor de Deus.
Sem vínculo institucional, mas vinculada à Palavra de Deus (Jo 4,25s: “ Eu sei
139
que um Messias deve vir – aquele que se chama Cristo. Quando vier, ele nos anunciará todas
as coisas. Jesus lhe disse: „Sou eu, eu que estou falando a ti‟”), a samaritana deixa tudo o que
estava fazendo e vai anunciar o que ouviu e viu. Sua disposição e vinculação a Jesus é
imediata. A força desta palavra de Jesus irrompe de tal forma nesta mulher, que se torna uma
fonte de água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4,14). O semear desta mulher prepara a
colheita feita pelos discípulos, que nada semearam por ali. Jesus ainda mostra que tanto
aquele que semeia quanto o que colhe se alegram juntos (cf. Jo 4,36). Sua resposta ao
oferecimento de Deus em Jesus transforma sua vida por completo, bem como a de toda a sua
comunidade que ouve sua palavra. Para crer e seguir, é necessário ir mais além do estrutural e
do institucional que muitas vezes não deixam ver, escutar e reconhecer o Cristo Jesus. Em
outras palavras, é preciso sair da nossa comodidade institucional. Conclui-se, assim, que Jesus
não se fecha a um determinado grupo e nem fica num determinado lugar específico, mas
chama outras pessoas em outros lugares, como a Samaritana, mulher tida como pagã, para o
anúncio e a sinalização do Reino.
Maria Madalena vai ao túmulo de madrugada, vê a pedra retirada e corre para ter
com Simão Pedro e o discípulo que Jesus amava. Enquanto os discípulos comprovam o fato e
voltam para casa, Maria Madalena fica perto do túmulo. Ela chora, busca, procura
140
perseverantemente Jesus, ao qual se sente ligada de modo particular. Quando Cristo a chama
pelo nome, “Maria!”, ela o reconhece imediatamente, respondendo: “Mestre”. Sua resposta
faz dela uma discípula, disposta a receber de Jesus um novo saber acerca de Deus. Por sua fé
e seu anúncio, torna-se portadora do mandato do Cristo ressuscitado: transmitir e anunciar aos
discípulos o que ele lhe disse. Em Maria Madalena, figura a nova comunidade, esposa fiel de
Cristo. A mensagem da qual é portadora estabeleceu uma nova relação na comunidade – “...
vai ter com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o
meu Deus, que é vosso Deus” (Jo 20,17). As relações são de fraternidade, pois o Pai de Jesus
tornou-se o nosso Pai. Deus, num ato supremo de amor, ao ressuscitar o Filho, restitui-lhe o
espírito, tornando-o capaz, pela ressurreição, de dar o Espírito Santo a toda criatura,
estabelecendo uma nova maneira de ser com os discípulos e discípulas. O que até aquele
momento eram simples promessas e orações tornaram-se realidades: “... como tu, Pai, estás
em mim e eu em ti...” (Jo 17,21), eles também, os que crêem, são um só no Pai e no Filho.
Portanto, Maria Madalena impulsiona os discípulos a continuar a missão que o Cristo
ressuscitado lhes indicara.
2) A busca e a procura constante destas mulheres pelo seu Senhor é muito maior
que os seus próprios anseios e desejos e só cessam quando encontram o Cristo, Senhor da
vida.
141
sua palavra. A Palavra de Jesus torna-se alimento para a vida destas mulheres. E elas se
tornam o eco desta palavra de vida eterna. Ao abrirem os seus corações aceitam os
ensinamentos deste “Rabi”, aderindo-lhe totalmente. Tornam o seu ser a morada do Cristo
Jesus. João evidencia ainda, que Jesus, sendo um Rabi, não ensina somente os homens, mas
também as mulheres. Rompe com um sistema costumeiro que privilegiava o sexo masculino.
Na Igreja nascente, homens e mulheres trabalham e se afadigam nas obras do Senhor Jesus.
4) A partir do encontro com o Senhor, as mulheres não o detêm para si, mas
correm para anunciar a todos a grande descoberta de suas vidas.
7) Tal como Jesus, estas mulheres se tornam servidoras da comunidade com sua
dedicação, ternura e disponibilidade.
142
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