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NAS DISPUTAS ELEITORAIS NO SERTÃO DE PERNAMBUCO1
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ta não se identificou como representante família no sertão, enquanto concepções e
dos Gouveias, embora tenha encontrado práticas, remete a um campo de escolha e
apoio político entre eles. Desde então, os invenção, de agência individual e coletiva,
dois antigos lados opositores vêm se recon- para além da disputa pelo acesso, controle e
figurando internamente no que se refere distribuição de recursos escassos. Descrever
às alianças partidárias, nesse período que analiticamente o misto família e política,
certamente é marcado pela força política geralmente considerado espúrio pelo pen-
inusitada exercida pelo Partido dos Traba- samento político euro-americano, é uma
lhadores na região. Os Santanas continuam forma de explicitar outras compreensões e
nomeando um dos lados que disputam o práticas, em geral ocultas pelo ‘semi ideal
governo municipal em Jordânia, mas seus democrático’ (VEYNE, 1983) que, no en-
opositores não são mais perfeitamente en- tanto, não costuma realizar-se em parte al-
globados como Gouveias3. guma4. A explicitação dos modos como os
Nesse contexto, em algumas circunstân- sertanejos vivem e fazem política tem por
cias, “família” e “política” se tornam sinô- propósito e potencial liberá-los da noção de
nimos e jamais se constituem como domí- falta, intrínseca ao conceito de clientelismo,
nios autônomos de ideias ou de ações, con- e o reconhecimento dos preceitos e pontos
forme propomos explorar analiticamente, a de vista que prevalecem na sua busca por
partir de algumas noções locais de família produzir o próprio destino. Trata-se, como
e práticas a elas relacionadas. Com elas em propôs Herzfeld (2005, p. 129), de “violar o
mente nos debruçaremos, em um segundo monopólio das representações do Estado”,
momento, sobre três circunstâncias de crise na própria revelação do que se despreza
que nos informam como o sangue e a po- como “fenômenos periféricos e triviais”.
lítica fazem-se e desfazem-se mutuamente, Jordânia situa-se cerca de 450 Km a
embaralham-se e confundem-se, pela ação oeste de Recife, a capital pernambucana.
dos atores. A população é de quase 32 mil habitantes,
Com nossa abordagem, visamos con- dos quais um terço habita na zona rural. As
tribuir para um deslocamento dos debates principais e mais antigas atividades econô-
sobre clientelismo no Brasil. Um dos fun- micas dessa zona são a pecuária bovina e
damentos da democracia representativa é a caprina e a agricultura, da qual os princi-
depuração dos interesses familiares da vida pais produtos são o milho, o feijão e a man-
política, embora esse ideal seja em toda dioca. Na cidade, para além do comércio, a
parte frustrado. A análise da política e da principal fonte de emprego é a prefeitura,
3. Em outubro de 2016, o candidato dos Santanas (Orlando Santana – PRP) venceu as eleições para a pre-
feitura de Jordânia. Seus adversários se dividiram em duas outras chapas concorrentes. Após prolongada
negociação, a então prefeita Cacau Medeiros e o deputado estadual Renan Gouveia concordaram em
apoiar a candidatura de um primo de Renan, filiado ao PSD, e de uma sobrinha de Cacau, como prefeito
e vice-prefeita respectivamente. Contudo, o então vice-prefeito (Arnô Gouveia – PT) manteve sua decisão
de concorrer como titular de uma terceira chapa em disputa pela prefeitura municipal.
4. O uso de aspas simples neste artigo está reservado a termos do jargão antropológico e conceitos formu-
lados pelos autores citados. As citações bibliográficas ou de nosso interlocutores, assim como as catego-
rias e conceitos nativos são destacados por aspas duplas.
5. A origem do termo “sertão” é controversa, embora haja grande convergência sobre a referência a áreas
não oficialmente ocupadas no interior do território brasileiro, longe do litoral. Segundo Sampaio (2000, p.
26), o termo aparece pela primeira vez em um dicionário, apócrifo, impresso em Lisboa, em 1485. Ali Cer-
tan é definido como “tudo que é apartado do mar e inserido entre as terras”. Esse é o significado conferi-
do ao termo quando se fala do processo de ocupação colonial do interior do Brasil. Em sentido mais estri-
to, sertão é uma das sub-regiões do Nordeste, com características físicas e climáticas que o distinguem da
zona da mata, do agreste e meio-norte.
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damento. A forma do avanço das fazendas, AM, 1991). Nele, os coronéis são entendidos
o regime de herança e o casamento entre os como brokers ou gatekeepers, funções indis-
filhos dos fazendeiros, que vieram se esta- pensáveis para manter o sistema em vigor.
belecer no sertão, importaram na correlação Esse gênero de administração local se terá
entre parentesco e território, própria dessa formado em articulação com as relações de
formação social. parentesco. A historiografia brasileira dis-
O isolamento das longas distâncias e tinguiu na família senhorial ou patriarcal o
difíceis caminhos terá fortalecido o poder modelo analítico dos vínculos supralocais,
privado nas municipalidades do interior. As necessários não só à defesa contra inimigos
funções combinadas de administração, poli- comuns, mas também à vida pública (OLI-
ciais e do judiciário, a cargo dos municípios, VEIRA VIANNA, 1987 [1949]; PEREIRA DE
seriam efetivamente controladas pelos che- QUEIROZ, 1976; LEWIN, 1993). No entanto,
fes locais emergentes entre os fazendeiros, nós sugerimos que a família é também força
os quais tomavam parte entre os “homens de contraposição à tendência monopolista
bons”, com prerrogativa de voto; entre eles do poder do coronel (VILLELA, 2004). Atual-
ainda seriam eleitos os vereadores, os juízes mente, o sistema político se funda sobre o
ordinários e os demais oficiais das câmaras multipartidarismo, mas apesar das mudan-
municipais (o procurador, o tesoureiro, o ças de regimes no decorrer da história, os
escrivão) durante o período colonial (LEAL, dados que extraímos de pesquisa de campo
1997 [1949]; FAORO, 1958). Apesar do pro- e de arquivos nos encorajam a analisar os
cesso de centralização e perda de autonomia modos como a família e a política partidá-
municipal, que a historiografia dominante ria se misturam hoje, e também a cogitar
situa a partir de meados do século XVII e (embora este último não seja nosso objetivo
considera consagrado na independência, o aqui) linhas de continuidade com regimes do
poder dos potentados locais não terá sido passado (VILLELA, 2004).
de todo aniquilado, apenas condicionado à A análise da combinação entre família e
composição com as instâncias de governo política se impôs a nós pelos nossos mate-
a que o município estava submetido. Com riais de campo, por um lado, enquanto por
a proclamação da república, o controle das outro encontrou ressonâncias na tradição
prefeituras pelos chefes locais (os coronéis) do pensamento político brasileiro. Mas a
passou a depender do acordo do governa- fonte de inspiração para o desenvolvimen-
dor da província, do qual eles se terão feito to de nossas reflexões, nós a encontramos
reféns políticos devendo-lhes provar fideli- no NuAP (Núcleo de Antropologia da Polí-
dade política através dos votos que lhe re- tica). A partir de meados dos anos 1990, o
crutavam entre correligionários e seus de- NuAP estimulou pesquisas que estendessem
pendentes (parceiros, posseiros, agregados, conceitos e métodos antropológicos ao es-
moradores etc.) sobre os quais o direito ao tudo da democracia (PALMEIRA; HEREDIA,
sufrágio havia sido estendido. Esse esque- 1994; GOLDMAN; PALMEIRA, 1996; BE-
ma foi chamado “política dos governado- ZERRA, 2004; VILLELA, 2008). Antecipan-
res” (CARONE 1977). O coronelismo é um do, em mais de uma década, antropólogos
conceito difundido na historiografia política britânicos (CANDEA, 2011; SPENCER, 2007;
brasileira, anterior ao de patronagem (LEAL, CURTIS, 2012), os antropólogos brasileiros
1997 [1949]; CARVALHO, 1997; GRAH- pretenderam privilegiar e levar a sério con-
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Nossa abordagem implica na adoção mento, a um grupo de pessoas que viveram
de uma perspectiva processual (CARSTEN, e cresceram sob um mesmo teto, notada-
2000) e política da família, capaz de enri- mente uma “irmandade” com seus pais, ou
quecer e subverter o sentido da fórmula “o ainda a todo um conjunto de descendentes
sangue é mais denso que a água”, utilizada desse grupo, mesmo que a maioria deles ja-
por Schneider (1984, p.165) para explicitar mais tenha morado ali.
os pressupostos que guiariam os estudos A polissemia do termo torna difícil toda
antropológicos do parentesco. Nossos da- identificação unívoca do sentido local da
dos de campo revertem a fórmula de Loi- noção de casa aos conceitos antropológicos
zos (acerca dos cipriotas) segundo a qual ligados a essa palavra. Diferentes aspectos
“o sangue é mais denso que o alinhamento dessas diversas acepções nos remetem ao
político” (1976, p. 78). Em Jordânia, como ‘grupo doméstico’, assim como às dimen-
veremos ao longo deste artigo, a política sões de convivialidade que Marcelin (1996)
tanto adensa quanto dissolve o sangue. e Carsten e Hugh-Jones (1995) acrescentam
Nossa análise descritiva desse processo co- ao conceito de casa, a partir de suas revi-
meçará pela apresentação de noções fami- sões críticas das sociétés à maison de Lévi
liares que estruturam as concepções e prá- -Strauss (1984)6. Entre as grandes e antigas
ticas do parentesco em Jordânia. famílias do sertão, que se instalaram ali
desde o século XVIII, algumas casas adqui-
1.1. Noções e imagens da família rem uma personalidade expressa pelo uso
de nomes próprios. O Jericó, por exemplo,
Para os que vivem nas zonas rurais do designa a casa e as terras em que se estabe-
município, a “casa” compreende a edifica- leceu o casal João Regino e Maria Trindade.
ção de sua moradia, o terreno que abriga Ali eles criaram seus treze filhos, convive-
os recursos de subsistência dos seres hu- ram com parentes, moradores, vizinhos,
manos incluídos nesse nicho existencial, visitantes, constituíram uma reputação en-
bem como todas as pessoas que o habitam, tre todos eles. Os numerosos descendentes
desde logo as que são ligadas por parentes- daquele casal são considerados “do Jericó”,
co ou que são assim assimiladas. Quando independentemente de seus endereços resi-
nossos interlocutores utilizam expressões denciais ou de onde eles nasceram. Nesse
como “lá em casa” ou “nossa casa”, a noção sentido, a casa implica um segmento socio-
adquire uma dimensão temporal. Como ob- territorial no seio do qual predomina um
servou Segalen (1981; 1996), a variação na “sangue”, ao qual são atribuídas qualida-
composição dos membros de um grupo do- des determinadas. Trata-se do sentido mais
méstico, ao longo de seu desenvolvimento, amplo da categoria “casa”.
desafia toda simplificação tipológica dessas As casas são ligadas entre elas e consti-
unidades. Nós observamos, no entanto, que tuem, nessas condições, uma ‘configuração
essas composições são, igualmente, sincrô- de casas’ (MARCELIN, 1996), espacialmente
nicas. A casa pode se referir ao lugar onde contíguas (embora haja de costume uma boa
os habitantes residem em um dado mo- distância entre elas, mesmo quando vizinhas)
6. Para uma concepção inovadora desta noção nas bases do material etnográfico acerca do Baserri, o ca-
sario basco, ver Fernandez de las Heras (2016).
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mação de “ramos” não são consensuais, e ram para a conformação de uma correspon-
sua localização genealógica depende dos dência entre nome, território e reputação.
contextos nos quais o grupo que se preten- Mas essa coesão é sujeita a divisões, as quais
de designar é pertinente. De certo ponto de se explicam também pelo “sangue”, uma vez
vista, o processo de “ramificação” é também que cada indivíduo é portador de uma com-
aquele que cria os “troncos”: variáveis de binação única de “sangue” ao mesmo tempo
poder e prestígio, temporais e morais inter- que é “do mesmo sangue” que todos os seus
vêm aí. Mas esse processo não é algo que ancestrais e colaterais de qualquer grau, des-
existe ou se apresenta por completo e acaba- de que se reconheça o parentesco, por linha
do para que os antropólogos possam registrá feminina ou masculina (MARQUES, 2002).
-lo. Não se fala sempre das mesmas pessoas Os processos de segmentação linhageira
nem dos mesmos coletivos: em certa medi- e territorial, de ramificação e entroncamen-
da, “troncos” e “ramos” são construídos de to, de mistura e pureza de “sangue” são par-
forma ilocutória. Com efeito, a dinâmica das cialmente coextensivos e podem ser obser-
ramificações e dos entroncamentos reproduz vados na sinalética das orelhas dos bodes. A
as propriedades múltiplas e frequentemente “assinatura” das orelhas pode ser entendida
paradoxais do “sangue”, notadamente sua como uma expressão gráfica dessas dinâmi-
fluidez e sua personalidade, assim como sua cas, bem como os ferros de marcar os bois
capacidade de se manter pura e de se mis- (BARROSO, 1956, p. 189). No caso dos ca-
turar a outros, ao mesmo tempo (CARSTEN, prinos, essa “assinatura” é realizada a cada
2013). No sertão, o “sangue” é sempre ligado ano sobre os cabritos do rebanho da “casa”,
ao nome individual ou coletivo e é o meio que nessa ocasião são repartidos entre seus
pelo qual as famílias se circunscrevem ou se membros. Marca indelével de pertencimen-
diferenciam, qualquer que seja a abrangên- to, a “assinatura” é composta de três signos.
cia que confiramos à noção. A orelha direita é reservada ao sinal da “fa-
As “irmandades” constituem os grupos zenda”, presente em todos os animais que
mais estreitamente ligados pelo “sangue”, são criados aí. A orelha esquerda é dividida
mas, em seu seio, as diferenciações indivi- em dois: a parte superior porta o sinal da
duais são significativas: um irmão exprime “casa” e a inferior é reservada à marca indi-
mais do que o outro, por sua aparência, sua vidual do proprietário do animal.
atitude e seu temperamento, as característi- No curso das gerações, as “assinaturas”
cas de um ancestral, porque nele, supõe-se, sofrem modificações que correspondem a
o “sangue” transmitido por seu pai ou mãe processos de segmentação associados a ou-
predomina. Os casamentos entre parentes tros processos, de natureza político-linhagei-
por vezes muito próximos, mais frequentes ra7. A “cruz”, que há mais de um século foi
no passado do que hoje em dia, contribuí- o sinal pessoal do Major Clemente, usado na
7. Também os ferros dos bois sofrem essas modificações no curso das gerações. Sobre um padrão original,
marca de uma “fazenda”, as diferentes “casas” introduzem variações que as identificam como proprietá-
rias da rês. Esse tipo de marcação seria muito mais eficaz, segundo nos explicou um vaqueiro do Umbu-
zeiro, do que as letras correspondendo a iniciais de nomes próprios, mais recentemente adotadas na mar-
cação do gado. Um conjunto de signos derivados de um mesmo padrão original permite que um vaqueiro
identifique com facilidade a região de onde terá partido uma rês tresmalhada, ainda que ele desconheça a
que casa específica ela pertence.
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Alguns autores, a despeito das diferen- não existe família que não esteja associada
ças de objetivos e do aporte teórico de seus à atividade política, ao passo que o êxito da
trabalhos, assinalaram os esforços de pu- candidatura de um indivíduo a um cargo
rificação entre família e política ao longo eletivo depende da pertença a uma família
dos quatro últimos séculos (FABIAN, 1983; e vice-versa. Da mesma forma que a sinalé-
DONZELOT, 1986; KUPER, 1988; HERZ- tica das orelhas dos bodes e dos ferros dos
FELD, 1992; CARRIER, 1995; JULIEN, 2008). bois demonstram a segmentação dos gru-
Em 1975, Foucault assinalava já um proces- pamentos chamados família, também ocor-
so de destronamento das funções da sobe- re com a política eleitoral, visto que esta é
rania da família, transformando-a em meio uma das formas mais poderosas de se fazer
de vigilância que permite a introdução das e desfazer família no sertão de Pernambuco
disciplinas no espaço doméstico. Segalen e, sobretudo, no município de Jordânia. Eis
expõe a tentativa do Estado de produzir uma o que nos ensinam situações como as que
“família reduzida às funções menos impor- passaremos a relatar.
tantes” (1996, p. 35), de que o efeito seria a
celebração desta como grupo doméstico de 2.1. Afiliação política e familiar
consumo e de reprodução social, privado de
atividades políticas nas quais anteriormente Cerca de um ano após as eleições pre-
se engajava. O Ocidente, como sugeriu Don- sidenciais de 2010, ouvíamos as queixas
zelot (1986, p. 47), desenraiza a família de de um amigo e partilhávamos as suas an-
suas conexões coletivas. gústias. Três anos antes, nas eleições mu-
A cisão da família e da política criou um nicipais, ele era um dos protagonistas da
delito, o nepotismo. A separação entre os do- campanha derrotada de sua coligação, da
mínios familiar e político forneceu as condi- sua família política, e por isso tinha a ex-
ções necessárias à elaboração de escalas de pectativa de ser convidado a candidatar-se
perfeição, fundadas mais sobre ideais do que a vereador dali a quatro anos. Entre 2008 e
sobre a diversidade das práticas. Com efeito, 2012, ao longo das conformações de apoios
conforme mostram certas etnografias, mesmo e ofertas de recursos para as eleições gerais,
em países centrais, por assim dizer, os laços a despeito de suas expectativas, fora posto
familiares continuam importando na aplica- às margens do processo. “Querem só que eu
ção da política parlamentar, partidária e elei- lhes sirva. Querem fazer política de sangue
toral (ABÉLÈS, 1991; 2001). Não são a falta puro”, disse-nos ele, amargo com seu pró-
ou a incompreensão as responsáveis pela in- prio destino.
terpelação familiar na política e vice-versa. A No sertão, “sangue” é prole, filiação, fa-
família se imiscui na política da mesma ma- mília, gente de alguém, de algum lugar, de
neira que diversos aspectos da vida política alguma descendência. Ele faz perseverar, em
(sob a forma de campanhas de governos, por continuidade, costumes, hábitos, comporta-
exemplo) pretendem intervir na vida familiar. mentos. O “sangue” é condutor. Ele faz com
Em certos lugares do sertão, família e que alguém seja “manso” ou “brabo”, “va-
política tornam-se sinônimos em certas cir- lente” ou “mole”. E conduz também a “polí-
cunstâncias. Ao menos para uma parte sig- tica”. Há quem traga a “política no sangue”,
nificativa (senão em quantidade, em pres- como se diz frequentemente. De um homem
tígio) das pessoas com quem convivemos, de uma família “braba” (implicados aqui os
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dado, mas uma atualização de um paren- narrativa nos mostra uma tentativa de fa-
tesco possível, posto que existe no estoque zer família que esbarrou, nesse caso preci-
filiativo intensivo. so, na política que desfamiliariza. Aqui, a
Em suas reflexões, nosso amigo retor- política é mais densa que o sangue.
na a dois aspectos da família mencionados Reflexões, neste caso decorrente de uma
anteriormente. Por um lado, reconhece-se crise, de uma derrota eleitoral, nunca são
um legítimo aspirante a esse novo “grupo” ingênuas. O parentesco é um tipo de rela-
que se ergue, tanto por suas competências ção política, repleta de intencionalidades.
técnicas quanto pelo “sangue” que par- A neutralidade só se aplica ao virtual-real,
tilha com os Marchantes. Ele está apto a jamais à genealogia árvore, mesmo quando
reclamar esse segundo critério em virtude se atualiza pela escrita. “Coisa sem futuro”,
da indeterminação da cadeia filiativa, que fruto do ócio ou “coisa de gente besta”, ela
repousa sobre o princípio da filiação cog- no entanto não é apenas exercício de erudi-
nática. Ele dispõe das competências neces- ção ou fonte de anedotário. Seus depositá-
sárias para procurar seus ancestrais no es- rios parciais, os genealogistas, servem para
toque virtual de parentesco para atualizá alguma coisa. Pois eles dirimem dúvidas e
-lo, servindo-se para isso da genealogia e “destrincham” o parentesco para além do
dos critérios de seleção política. Por outro conhecimento exigido pela vida cotidiana,
lado, esse percurso genealógico seguido intencional, cujo funcionamento pode exi-
por ele precisa ser reconhecido e conside- gir a reivindicação de certos laços de pa-
rado pelos outros. Embora seu sobrenome rentesco. O que nos leva ao segundo caso,
não seja o mesmo dos captores do grupo o de um genealogista cujos conhecimentos,
político, ele alega a sua pertença à “famí- à primeira vista inúteis, foram mobilizados
lia” baseado em argumentos irrefutáveis politicamente. Ao contrário deste primeiro
do ponto de vista da árvore genealógica. amigo, que parte da política para analisar a
Argumento nada negligenciável em um genealogia (e retorna para a política), o ca-
lugar onde a genealogia é uma paixão e sal de quem falaremos doravante parte do
onde os seus guardiões são celebridades, saber parentesco para o recorte da política.
onde se recorre aos livros publicados sobre
a matéria, bem como ao site “Genealogia 2.2. O genealogista na política
Pernambucana”, que dispõe de instrumen-
to de busca que permite traçar todos os O homem do casal em questão é um me-
laços de parentesco entre dois indivíduos. morialista que aspira atingir a genealogia
No entanto, o reconhecimento que nosso virtual, total e liberta dos recortes políticos,
amigo esperava de seu enunciado genea- da pedagogia, do cotidiano. Seu trabalho
lógico não se efetuou, porque não se fez é, portanto, infinito. Chamemo-lo Funes.
acompanhar das práticas pedagógicas do Ele constrói laboriosamente uma árvore a
parentesco. Os membros do “grupo” não partir de pesquisas que realiza em arqui-
aprenderam que ele era parte da “família”. vos e de relatos que recolhe entre os que
Tudo isso lhe parece, finalmente, uma ar- sabem mais do que ele, ou sobre vínculos
ticulação indevida do parentesco, que o de parentesco que ele desconhece, capazes
desqualifica como meio seletivo de par- de iluminar trechos e ramos até então sob
ticipação e exclusão. De todo modo, sua a sombra. Ele e sua mulher, ambos primos
8. Onde fazemos nossa pesquisa, em geral se utiliza o verbo “acompanhar” no lugar de votar. Quando o
verbo votar é utilizado, diz-se “votar com” ou “dar seu voto a”, ao invés de “votar em”, como dizemos no
Sudeste. Essas duas locuções vão ao encontro do argumento de Palmeira (1992), que registrou a mesma
observação e para quem os laços entre candidatos e eleitores se estabelecem enquanto adesão, mais do que
representação.
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essa ‘memória-lembrança’, se podemos mos aqui, ao mesmo tempo, a uma fami-
usar esses conceitos bergsonianos (DELEU- liarização e a uma desfamiliarização; ao
ZE, 1999), torna-se uma ‘memória-contra- sangue adensando a política e vice-versa.
ção’. Quer dizer, quando esse saber entra Tudo isso só acontece quando as genea-
no quadro da ação sofrendo os recortes ne- logias estão feitas, desde há muitas décadas,
cessários para funcionar na vida cotidiana. para as famílias antigas e tradicionais. Pas-
Se a teoria política de nosso primeiro saremos a mostrar o que acontece quando a
amigo toma as alianças eleitorais como política e a família, em implicação recíproca,
ponto de partida, recrutando conhecimen- propõem-se a fazer uma à outra. O que acon-
tos genealógicos precisamente para des- tece, quais estratégias são criadas ou copia-
qualificá-los como critérios válidos e ob- das, quando um grupo de pessoas, associa-
jetivos para a seleção de candidatos e de das pelo sangue e pela genealogia pretendem
candidaturas, Funes, Luiza e seu novo alia- constituir-se como família, no duplo sentido
do inverteram esse caminho. Eles partiram da atuação político-eleitoral e do parentesco?
da genealogia. O casal se viu negligenciado
política e pessoalmente e se ressentiu pelo 2.3. Novatos
tratamento dedicado apenas aos “sem pres-
tígio”, para usar o vocabulário local (VIL- Uma nova candidatura a vereador sur-
LELA E MARQUES, 2006), ao passo que a giu nas eleições de 2000. Em Jordânia,
genealogia deveria lhe garantir, como cri- candidaturas inaugurais, sem base familiar,
tério seletivo, alguma deferência por parte costumavam, ao menos até recentemente,
das lideranças políticas da “família” que há fadar ao fracasso. Este jovem, a quem cha-
décadas apoiavam. Funes e Luiza não fo- maremos Ulisses, não pertencia, por genea-
ram considerados “da família”. Nesse caso, logia, a nenhuma das famílias importantes
apenas os seus votos não foram capazes de do município. Até há um par de gerações,
adensar o sangue. Por conta, talvez, de ba- seus parentes estavam circunscritos a uma
searem-se apenas na genealogia. modesta vila de um outro município, eman-
Mas foi mesmo a genealogia a respon- cipada de Jordânia na década de 1980. As
sável pelo novo alinhamento político. Se- atividades políticas dessa família restrin-
rem reconhecidos como parentes e antigos giam-se a “acompanhar” um candidato.
aliados, dada a habilidade político-genea- Mas, sabemos já, em Jordânia política
lógica do prefeito Santana, fê-los transpor faz-se com família. Para ser candidato, é
as fronteiras familiares e partidárias. Talvez preciso fazer família para que se venha a
essa transposição seja correlata de um pro- ‘dizer família’ (JOLAS et al., 1970). Ao mes-
cesso de reconfiguração familiar e políti- mo tempo, para ser uma família de pres-
ca mais amplo e mais profundo ‒ o que se tígio é necessário fazer política. As estra-
torna possível graças ao fato de todas as tégias utilizadas para atingir esse objetivo,
antigas famílias serem ligadas entre si por que passaremos a descrever, reproduzem o
numerosos casamentos celebrados ao longo modelo transmitido pelas famílias tradicio-
de séculos, nos quais se originam “ramos” nais, formadas há mais de um século, pelo
familiares conhecidos e nomeados, particu- sangue e pela política eleitoral e familiar.
larmente pelos genealogistas mas também, Assim como as famílias tradicionais, os
em suas grandes linhas, por todos. Assisti- parentes de Ulisses lançaram mão de recur-
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técnica. Ela resulta de táticas e estratégias e aparência, um saber que logo se apren-
elaboradas no cotidiano. de a cultivar. “Eu tava olhando o jeito dele
Cada habitante do sertão é, ao mesmo andar, o nariz, assim magrinho, pensei que
tempo, um indivíduo e uma coletividade. era dos Fulano”. “Não é, não. Ele aqui não
Para além de sua trajetória pessoal, tudo tem parente nem aderente”, diziam alguns.
que se espera dele ou dela é determinado “Não, ele é do Rio de Janeiro, mas agora é
por uma história longa de várias gerações, como um primo nosso, um sobrinho meu”,
por uma quantidade indefinida de biogra- diziam outros, mais queridos e íntimos, a
fias, pelo lugar (a casa, a fazenda) de onde respeito de um de nós, como gostava de
vem, pelo “sangue” que corre em suas veias, insistir a nossa querida amiga D. Ernesta
pelas suas adesões políticas. Através da di- Trindade, a quem este artigo, com muita
versidade de categorias – “tronco”, “ramo”, saudade, é dedicado.
“linhagem”, “casa” – e dos esquemas de
segmentação ativados pelas afiliações po- Referências
líticas ou ilustrados pelas “assinaturas” das
orelhas dos bodes, as famílias são o resul- ABÉLÈS, M. Avoir du pouvoir politique. In: SE-
tado parcial e cambiante de recortes suces- GALEN, M. (Org.). Jeux de familles. Paris: CNRS
sivos de um estoque virtual de parentesco. Éditions. 1991, p. 79–99.
Para concluir, a família se presta à re- _______. Un anthropologue à l’Assemblé. Paris:
flexão, provoca a curiosidade e suscita dú- Odile Jacob, 2001.
vidas cada vez que é preciso tomar posi-
ABREU, C. Caminhos antigos e povoamento do
ção em relação a uma pessoa que não se
Brasil. Brasília: Ed.UNB, 1982 [1907].
conhece bem, a fim de familiarizá-la ou
desfamiliarizá-la, para além do “sangue” e ANDRADE, M. A terra e o homem no Nordeste.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
da “política”. Ela opera como um ponto de
referência que exprime tanto uma adesão ANTONIL, A. Cultura e opulência do Brasil. Belo
política quanto uma aspiração existencial. Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982 [1711].
Assim, as pessoas são subsumidas nessa BEZERRA, M. O. La politique vue d’en bas. Criti-
socialidade, ao mesmo tempo que a cons- que, v. LX 680, n. 1, p. 66-76, 2004.
tituem. Todos são objeto de apreciação e
BOURDIEU, P. La société traditionnelle: attitude à
curiosidade por parte de quem se interessa
l’égard du temps et conduite économique. Sociolo-
pelo parentesco e pela família. “Esse rapaz gie du Travail , v. 5 n.1, p. 24-44, 1963.
é do Umbuzeiro? Eles são do povo de Fu-
lano?”, questionavam nossos novos conhe- _______. Esquisse d’une théorie de la pratique.
Genève: Droz, 1972.
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vada aos mais velhos. Ao interrogar sobre CANDEA, M. Our division of the universe. Current
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PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Política. Eleições. Parentesco. Família. San- Politics. Elections. Kinship. Family. Blood.
gue. Sertão de Pernambuco. Hinterlands of Pernambuco.
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